A sopa em Portugal e as sopas de plantas silvestres alimentares

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A sopa em Portugal e as sopas de plantas silvestres alimentares
A sopa em Portugal e as sopas de plantas silvestres alimentares
Maria-Manuel Valagão*
Parece não existirem dúvidas sobre a grande actualidade da reflexão em torno dos modos
alimentares que incitem à frugalidade e à inovação das tradições. Neste sentido, a sopa enquanto
prato emblemático que tem acompanhado a evolução das práticas alimentares dos portugueses e
enquanto fonte de conhecimentos nutricionais empíricos, tem sido objecto de interesse crescente dos
estudiosos nesta matéria. Um pouco por toda a parte têm-se legitimado as suas dimensões
nutricionais e culturais, quer como prato saudável, quer ainda como um dos símbolos da nossa
identidade gastronómica nacional. “Em alguns povos a sopa é preparação para o jantar; em Portugal
a sopa é já o jantar”, sustentava Albino Forjaz de Sampaio, nos idos anos trinta do século passado,
em “A sopa alimento” da sua conhecida Volúpia1, o que traduzia bem o papel que a sopa ocupava na
alimentação dos portugueses naquela época. Hoje em dia, observa-se uma situação contraditória. Por
um lado, o consumo da sopa parece ter caído em desuso e ser objecto de rejeição por parte de certos
grupos sociais, por outro, a sopa é frequentemente enaltecida, quer nos seus benefícios nutricionais,
quer como factor identitário das regiões2.
Para perceber como a sopa integra a cultura alimentar dos portugueses, façamos uma breve incursão
no território e no seu passado, o húmus cultural que traduz um conjunto de memórias e de saberes,
em termos de técnicas de preparação culinária e de recursos específicos de cada região, distintas
entre si: as do Norte Atlântico e as do Sul mediterrânico.
*
Investigadora no Instituto Nacional de Recursos Biológicos (INRB).
E-mail: [email protected]
1
Origem
“No conceito de sopa, inclui-se toda a elaboração culinária,
resultado da ebulição em água, durante um certo tempo de
vários componentes, e que geralmente se come à colher.
Pode então distinguir-se entre uma parte líquida (o caldo) e
os componentes sólidos de origens muito diversas” (Abel
Mariné et al., 1996: 207).
Talvez tivesse sido uma questão de “acaso e de necessidade”, que estivesse na génese do
processo de preparação culinária que deu origem às “sopas”, tal como hoje se conhecem. Na
realidade, parecem ser questões de acaso e de necessidade que estão na base de inúmeros
processos de “descoberta”, nomeadamente dos alimentares e dos culinários. Apesar disso, aceitase hoje que, já na época do Paleolítico, se utilizavam recipientes não resistentes ao fogo, como,
por exemplo, cabaças vazias, nas quais os alimentos de origem animal, as sementes e talvez
alguns frutos, eram submergidos em água, que posteriormente era aquecida com pedras
incandescentes. Os “caldos” e as “papas”, que resultavam deste processo ancestral de cozedura,
representam talvez as primeiras versões das actuais sopas e as primeiras formas de preparação
culinária de que há memória. Foi, de facto, com o aparecimento dos caldos que, pela primeira
vez, se articularam os princípios básicos da culinária, os quais pressupõem a existência de uma
fonte de calor, de utensílios, de ingredientes e de um líquido. Apesar desta constatação “é lógico
pensar-se que as sopas não foram, na realidade, rentáveis em termos alimentares até à invenção
da olaria, fenómeno que se conjuga com o aparecimento da agricultura, da pastorícia e com a
fixação populacional”3.
Seria, aliás, a conjugação de todos estes factores que permitiria que as sopas viessem a ocupar um
papel estruturante na alimentação das populações.
Quanto à origem do termo sopa: “Embora de aparência tão latina, era, com efeito, desconhecido
dos gregos e dos latinos. Este termo terá vindo, então, através do germânico “suppa” que
designa um "bocado de pão embebido em líquido”. Em alemão antigo, o termo sûfan significa,
"absorver" e, em escandinavo antigo, sûpan é talvez aparentado com o gótico sûpon, que
significa temperar”4.
2
Geografia
“Portugal é mediterrâneo por natureza, atlântico por posição”5
A citação em epígrafe, resume em grande parte a dualidade geográfica do território banhado pelo
atlântico e crestado pelos frios e pelos sóis, onde a frugalidade imperou durante séculos e que se
caracteriza por diversas microregiões, cada uma com as suas especificidades alimentares. Às costas
aportaram, entre outros, fenícios, gregos, cartagineses, celtas, romanos e árabes, que trouxeram não
só as espécies vegetais e animais, mas também as técnicas de produção agrícola e os saberes
culinários, nomeadamente o uso das ervas aromáticas. Todos estes legados traduzem-se, também, na
forma como se confeccionam muitos dos pratos, dos quais as sopas são um bom exemplo, em
particular no Sul, onde as influências árabes são facilmente identificáveis.
Neste sentido, a compreensão dos diferentes tipos de sopa do país, situado aqui “onde a terra acaba
e o mar começa”, deverá apreender não só a relação existente entre ambos os recursos, o mar e a
terra, mas também a sua relação com a cultura que lhes é própria. Estes são os grandes
factores/elementos a partir dos quais se estruturam as diferentes culturas alimentares e identidades
territoriais, e que moldam a paisagem. Uma marcada identidade atlântica no extremo Norte e uma
identidade mediterrânica no Sul, caracterizam o país, tendo como denominador comum a presença
constante do Oceano, importante território desse recurso alimentar que é o peixe, um dos pilares da
identidade alimentar portuguesa.
Contextualizando em linhas gerais, o Norte do país, região, onde predominam as características
atlânticas e em que “a configuração do relevo, o clima atlântico em plena Europa Meridional, o
domínio do granito que acentua a humidade, são responsáveis pela vegetação luxuriante que
caracteriza, a paisagem (...). A abundância da água é muito importante, bem como as pequenas
amplitudes térmicas, que, conjugadamente, permitiram a aceitação de plantas de todas as partes do
Mundo (...) como foi o caso do milho e batata das Américas” (GASPAR, 1993: 30). É este o milho
de que se faz o pão, a conhecida broa, que acompanha o “caldo-verde”, e as sopas (sob a designação
local de “caldo”) feitas à base das hortaliças (de diversos tipos de crucíferas, couves, nabiças, etc.),
da batata e do feijão, cultivados predominantemente nesta Região. Esta sopa, que pode ser
“adubada”6 só com azeite ou também com um pouco de carne de porco salgada, incorporando
3
sazonalmente os produtos da horta, constituiu o prato base das famílias rurais, até há um passado
recente. Obviamente, que esta não é a única sopa tradicional do Norte do país, como adiante se verá.
Caminhando para o Sul, “onde os árabes reforçaram o tom mediterrâneo que os romanos haviam
começado a imprimir à agricultura” (RIBEIRO, 1987: 57), sobretudo no Alentejo e no Algarve, a
paisagem é desenhada pelos contornos do montado de sobro e de azinho, de campos de cereal, da
vinha e do olival, aos quais se associam produtos hortícolas, frutos, ervas de recolecção e ervas
aromáticas.
Embora não constituindo recursos alimentares directos, no Alentejo o sobreiro e a azinheira como
refere Jorge Gaspar (1993) são determinantes no equilíbrio dos ecossistemas da região e
dominam a configuração da paisagem. Ambas as espécies persistem em campos arborizados,
dando origem à paisagem típica, o montado, sábia construção, que permite combinar a cultura
cerealífera e o pastoreio. As práticas culturais no ecossistema do montado de sobro, conciliam o
aproveitamento das culturas arbóreas com o pastoreio, com a apanha das túberas, das acelgas, dos
cardos, dos espargos e de outras plantas de recolecção, bem como com as ervas aromáticas
condimentares e de outros recursos silvestres. Estes recursos ritmam as estações do ano,
modificam a paisagem e introduzem variações nas práticas alimentares e gastronómicas locais,
particularmente no que se refere às sopas à base de plantas silvestres comestíveis. Estas são parte
integrante da identidade alimentar local, bem como o pão de trigo, elemento estruturante da
alimentação quotidiana, que constitui o ingrediente-base da confecção dos pratos emblemáticos
da gastronomia alentejana, das sopas, dos ensopados, das migas, dos caldos, dos gaspachos e das
“açordas”, em particular.
Através dos percursos, entre o Norte e o Sul de Portugal, traçados pelos geógrafos Orlando Ribeiro e
Jorge Gaspar, é possível perceber a forma como às diferentes variações de relevo, de microclimas,
de disponibilidades em água e de recursos alimentares do território, correspondem especificidades
alimentares bem definidas, entre as quais obviamente se incluem as sopas.
Em Portugal, a infinidade de sopas existente é o resultado de múltiplas adaptações às realidades
cultural e territorial, aos legados dos antepassados que por ele passaram. É igualmente o resultado
da mobilidade social e geográfica das gentes, da mudança social, da continuidade e inovação dos
saberes associados à especificidade mediterrânica e atlântica do território. Como refere Emílio
Peres: “adoptámos e perfilhámos, nós portugueses, culturalmente mediterrânicos caldeados em
atlantismo, um caldo retemperador e soberbamente guloso vindo de muito longe. Mas soubemos
4
mediterranizá-lo: primeiro, acrescentámos massinhas ou aletria, e, depois, arroz; alegrámo-lo
com folhas de hortelã; domesticámo-lo com alguns dentes de alho e umas rodelas de cebola”7.
Esta referência constitui uma síntese indicativa dum tipo de sopas, as que são servidas como
entrada da refeição. Tradicionalmente existe uma grande variedade de sopas que são consideradas
“pratos completos”, isto é, constituem o prato único da refeição.
A sopa e as sopas
“Para os portugueses à refeição sem caldo ou sopa, faltar-lhe-ia de entrada, qualquer coisa de
indispensável” (Olleboma, 1994: 26)8.
“Há entre nós sopas excelentes, sopas para o frio e sopas para refrescar. O que é o gaspacho, tão
usado no Alentejo, senão uma sopa fria? Há sopas para os que podem comer sem embargos e sopas
para os que vivem em dieta. A sopa de lagosta para os primeiros e o caldo-verde para os segundos.
Há sopa para sãos, e todas são, e sopa para doentes como o caldo de carneiro ou a canja, que veio da
nossa Índia, diz-nos Garcia de Orta.
Há sopas de carne, de peixe, de mariscos, de vegetais, de tudo. Sopa de camarão e sopa de ovos à
alentejana; sopa de puré e sopa de cebola; sopa de couves temperada com unto do Norte e sopa de
amêijoas do Algarve; sopa de feijão-frade com boas nabiças ou sopa de castanha pilada à minhota;
sopa de grão com espinafres ou sopa de hortelã (SAMPAIO, 2000: 216-217).
Das sopas para refrescar no Verão, às sopas para aquecer no Inverno, tudo parece ficar dito nesta
longa citação de Albino Forjaz de Sampaio9 sobre as sopas mais características do país. Podemos,
corroborando neste sentido, e segundo as palavras que Olleboma escrevia nos idos anos trinta,
salientar que as quatro sopas mais características, ou aquelas que assumem uma expressão nacional e
reflectem também a diversidade regional são: a “canja”10, o “caldo verde”, a “sopa do cozido
nacional” e as “sopas de peixe dos portos portugueses”. Sobre a primeira sopa, este autor diz-nos
que a canja “é um caldo de galinha com arroz. É o tipo perfeito de sopa leve, higiénica, saborosa,
perfumada e de digestibilidade perfeita, predispondo bem o estômago para outros alimentos (...),
deveria ser a sopa servida aos Deuses do Olimpo em dias de festa” (1994: 26). Com efeito, a canja,
foi sempre a sopa de todas as festas e celebrações. Aliás no contexto rural, as refeições onde se
consumiam outras carnes, que não fossem as de porco, estavam associadas a momentos especiais da
vida comunitária, nomeadamente para assinalar uma celebração festiva, ou uma homenagem a
parentes ou a amigos. Por outro lado, saliente-se que para além de assinalar a festa, a prática do
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consumo de canja estava também associada a uma situação de debilidade física, de doença, onde
esta sopa funcionava então, como um “caldo retemperador”, com funções curativas.
Existem ainda muitas outras “versões” da canja e que não são preparadas à base de galinha.
Obviamente que neste prato, como para qualquer outro, a criatividade tem os limites da imaginação,
mas como estamos a falar de sopas tradicionais de expressão nacional, importa desde já relembrar
que as tradições são dinâmicas, vão-se adaptando e acompanhando o ritmo de outros processos,
nomeadamente o da disponibilidade dos alimentos. Ou seja, actualmente observa-se uma tendência
para a valorização de outras canjas tradicionais, como são por exemplo a “canja ou sopa de
conquilhas do Algarve” ou a “canja de bacalhau” da Marinha Grande ou ainda as “canjas” “de
ameijoas”, “de pescada”, ou “de marisco”. Assiste-se, em simultâneo à invenção de outros tipos de
canjas, como é o caso da “canja de garoupa”11, que se constitui assim como uma forma renovada de
preparação daquela sopa tradicional, articulando a inovação com a valorização das tradições
alimentares.
Das outras sopas tradicionais de expressão nacional e continuando na perspectiva de Olleboma,
temos o caldo verde, que “é uma sopa de couves e batata. É sopa de pobres, remediados e ricos. É a
sopa diária na região norte do País” (1994: 26). Saliente-se ainda que nesta região do país, este
caldo se serve “em tigelas ou malgas com acompanhamento de broa de milho ou de pão de centeio.
Por vezes junta-se uma tira muito fina de salpicão do Norte (temperado com vinho) apenas para dar
um leve gosto. Também se faz caldo verde com grelos de couve ou nabiças...” (1994: 33).
No que se refere à sopa do cozido, esta resulta do aproveitamento do caldo onde foram cozidos os
ingredientes que farão parte deste prato - vegetais, carnes frescas e enchidos adequados - tal como o
próprio nome desta sopa indica. Sendo as carnes e os vegetais servidos à parte. O cozido é um dos
pratos mais consumidos em todo o país (cf. OLLEBOMA, op.cit.). A sua composição varia de
acordo com as disponibilidades da família que o prepara e com a Região do País, mas poderíamos
distinguir, grosso-modo duas situações muito distintas. Enquanto a sopa dos “cozidos” das Regiões
do Norte de Portugal são de facto o caldo da cozedura dos ingredientes aromatizado ou não com
hortelã, já a sopa dos cozidos do Sul, é o próprio cozido, que por vezes se designa por “jantar”, são
disto exemplo, o “Cozido de Grão” e o “Jantar de Feijão” ou “Jantar de Grão”, do Algarve, onde se
denota a influência árabe, em particular com a utilização da carne de borrego. Quanto à sua
diversidade: “ o cozido é, em essência, um prato da terra, feito com os elementos que o homem do
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campo tem à sua mão, na horta (...), com os enchidos a seu estilo. É necessariamente diferente de
uma região para outra, de um país para outro, na sua condição de comida verdadeiramente telúrica.
Com rigor e escrúpulo, pode ser imitado num restaurante de cidade, no estilo vernáculo de tal ou
qual região” (ALVES, 1992: 362).
O quarto tipo de sopa tradicional de cariz nacional é a “sopa de peixe” ou “sopas de peixe”,
designação esta que inclui os “caldos de peixe” e as “caldeiradas”. De acordo com Olleboma, não só
há que fazer uma clara distinção entre estas três preparações culinárias, como há ainda que distinguir
as caldeiradas simples das “caldeiradas à fragateira”. Como refere este autor: “as primeiras são
simples caldos mais ou menos claros, passados depois de cozinhados por peneiros finos e que
servem ou como simples caldos, sem qualquer guarnição, ou como sopas, com pão ou com arroz. As
caldeiradas simples são guisados com ou sem batatas ou tomate, sem junção de água, muito
condimentados, em geral preparadas com um só peixe (…) lulas ou mexilhões de caldeirada,
“enguias à moda de Aveiro”, “caldeirada de congro à moda da Ericeira”, “bacalhau de caldeirada”,
etc. “As caldeiradas à fragateira”, são caldos de peixe muito perfumados, aromatizados com vários
condimentos nacionais e regionais, sendo nestes caldos, depois de prontos, que se cozem por quinze
a vinte minutos de fervura, os peixes previamente cortados em filetes ou postas (...). São, pois, pratos
de peixe guisado com bastante molho, que se serve em pratos de sopa ou malgas e à parte fatias de
pão seco no forno, que se embebem no molho como acompanhamento do peixe” (1994: 27-28). Esta
era a versão que Olleboma escolheu para definir a “caldeirada nacional”. Actualmente, embora com
muitas variantes, poder-se-á dizer que as caldeiradas mais comuns são aquelas que se preparam
alternando as camadas de peixes variados, com as camadas de cebola, tomate, pimento e batata, tudo
regado com azeite, temperado com um raminho de cheiros e estufado sem junção de água.
A caldeirada, que representa uma das sopas mais emblemáticas da identidade nacional, de país
banhado pelo Atlântico e de clima mediterrânico, que apela ao convívio é magnificamente descrita
por Albino Forjaz de Sampaio: “Outra sopa que dá uma refeição completa é a caldeirada, outra
grande orquestra sinfónica do paladar. O caldo sobre pão serve de sopa. Depois, a caldeirada
clássica, com tainha, pescada, tamboril, enguia ou eiró, congro, ruivo ou salmonete, lagosta,
camarão, lagostins, mexilhões e amêijoas. Tudo feito, comer devagar e sem pensamentos torpes,
confortar-se com a riqueza do dia e bendizer Deus nas alturas por ter criado coisas tão
estupendamente agradáveis” (2000: 216). Nesta descrição, uma vez mais evidencia-se a “volúpia
7
dos sentidos – parafraseando ainda o título deste livro – proporcionada por uma obra de arte
gastronómica: “uma boa sopa de peixe”.
Quanto às sopas tradicionais de cada região, Maria de Lourdes Modesto (1982) identificou setenta e
quatro. Muitas mais existem, variam com os saberes e com os recursos locais de cada região e a sua
diversidade é infindável. Esta diversidade é ilustrada no livro Cozinha Tradicional Portuguesa, que
é um verdadeiro tratado de referência. Ao percorrermos esta obra somos confrontados de Norte a
Sul, com uma variedade considerável de designações e de composições de sopas, que só por si são
elucidativas, do quanto o engenho, a arte e a necessidade souberam fixar pela tradição tantos tipos de
sopas que identizam e valorizam as memórias dos lugares, e cujos sabores e aromas constituem um
deleite para os sentidos. A título de exemplo, e sem qualquer preocupação de ser representativo,
referem-se algumas dessas sopas consideradas “pratos completos”: “Sopa seca à moda do Minho”;
“Sopa da Pedra”; “Poejada com queijo fresco”; “Sopa de beldroegas com queijinhos e ovos”;
“Rancho à moda de Viseu”; “Grão guisado com ovos”; “Jantar ou cozido de milhos”; “Jantar da
Matança”; “Sopa da Panela”; “Sopa de lebre”; “Sopa de Perdiz”.
O caso das plantas silvestres alimentares
“A riqueza da paisagem alentejana está (…) nos múltiplos
pormenores que o conhecimento nos faz descobrir, num percurso
pedagógico, que nos mostra quanto a natureza pode ser valorizada
pelo homem: a apanha das túberas, dos cardos, dos espargos, a
descoberta do poejo e de outras aromáticas; a sua transposição para
a gastronomia, que é também uma forma de elogio e de
identificação” (Jorge Gaspar, 1993: 147).
No sul do país, particularmente no Alentejo, o conceito de sopa é ainda utilizado no seu
significado ancestral. Ou seja, a designação sopa ou sopas (sopas de pão) significa precisamente
o pão embebido num "caldo bem temperado", tornando este último mais digerível e mais
saboroso, portanto, mais agradável e mais rico em termos de sabor e em termos nutricionais. Por
outro lado, o uso de plantas silvestres alimentares e de ervas aromáticas condimentares, marcam
de modo emblemático a tradição gastronómica das sopas desta Região, conferindo-lhes aromas e
sabores, que as distinguem das restantes regiões do país.
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As plantas silvestres alimentares12 mais utilizadas no Alentejo são: os cardos (Scolymus hispanicus
L.), também designados localmente por carrasquinhas; os catacuses (Rumex crispus L.), também
conhecidos por labaças noutras regiões do Alentejo; as acelgas13 (Beta vulgaris L. ssp. maritima L.);
os agriões (Nasturtium officinale R. Br.); as beldroegas (Portulaca oleracea L.); os espinafres
(Tetragonia tetragonoides); os espargos bravos (Asparagus aphyllus L.) e os cogumelos. À
excepção dos espargos e dos cogumelos, o uso destas plantas é sobretudo na confecção de sopas, nas
quais se utilizam também ervas aromáticas, principalmente as espontâneas. Uma vez mais, embora
não se esgotando a lista das ervas aromáticas utilizadas nalgumas das preparações culinárias
características da cozinha praticada no Alentejo e no Barrocal Algarvio, diríamos que as mais
comuns são: o poejo (Mentha pulegium L.); a hortelã da cozinha (Mentha spearmint L.); a hortelã da
ribeira (Mentha cervina L.); os oregãos (Origanum vulgaris Hoffm.); o tomilho (Thymus vulgaris
L.); o alecrim (Rosmarinus officinalis L.), às quais se associa o coentro (Coriandrum sativum L.),
que não sendo espontâneo é também um elemento distintivo da açorda, dos ensopados, etc.
A transposição para a utilização culinária de plantas bravias com utilidade alimentar e de ervas
condimentares, assim como de outros recursos silvestres, nomeadamente dos cogumelos, faz
parte do património dos saberes locais, o qual se traduz numa forma tradicional de
aproveitamento dos recursos existentes, que é também uma forma de gestão e de conservação da
paisagem. No Alentejo, os diferentes tipos de sopas agrupam-se em: “açordas”, “caldos” e
“cozidos”.
A emblemática “açorda”, que segundo os historiadores deriva de um prato árabe – a “tharîd14”,
“pão mergulhado em caldo aromatizado e temperado com azeite” (SARAMAGO, 1987: 98). Na
sua simplicidade e no prazer dos sabores que proporciona, esta sopa traduz bem o quanto a
criatividade pode fazer a partir da gestão de parcos recursos. Senão vejamos: para preparar uma
açorda “basta pisar uns dentes de alho, sal, um raminho de coentros e/ou de poejos e azeite num
almofariz. Obtemos assim o conhecido “piso alentejano de alho, azeite, poejos e sal”, sobre o
qual a água quente é então vertida, constituindo um “caldo quente e aromatizado”, ao qual se
junta os pedaços de pão seco. Temos a açorda preparada que se acompanha com ovos escalfados,
bacalhau cozido, e/ou azeitonas; e/ou sardinhas fritas, rábano, etc.
Os “caldos” são de carne, de peixe e de leguminosas com vegetais, resultando da cozedura dos
respectivos ingredientes. Estes caldos vertem-se sobre as sopas de pão, que deverá ser já um
pouco ressequido e ter dois a três dias15, para melhor absorção. Ainda neste universo dos “caldos”
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existem os que se designam por «calduchos», «caldetas», «limados», etc., cujos princípios
culinários e nutricionais se aproximam muito das sopas, embora sejam designados localmente de
outro modo.
Vejamos, por exemplo, ao que corresponde um limado:
A designação de limado refere-se a uma técnica de preparação culinária
muito comum e que está genericamente associada a “uma comida leve
com caldinho engrossado com farinha e vinagre”. Este procedimento,
aparentemente tão simples, revela uma forma sábia e característica da
cozinha familiar mediterrânica, que consiste em valorizar os sabores dos
ingredientes de um prato entre si, através de um elemento aglutinador,
que neste caso é a farinha aromatizada com o vinagre.
Quanto aos “cozidos”, estes são uma mistura mais consistente de múltiplos elementos,
geralmente vegetais com algum acrescento, que dá sabor a essa base e que pode ser gordura,
enchidos ou carnes. Nos cozidos, conjuga-se a combinação equilibrada de produtos entre si, ou
seja, de uma leguminosa e de um produto vegetal, equivalente a um produto hortícola e das
respectivas características nutricionais (proteínas vegetais, hidratos de carbono, sais minerais e
vitaminas), da qual resulta a fusão dos seus sabores e texturas, utilizando-se o caldo resultante da
sua cozedura para embeber o pão das sopas.
A distância que há entre uma sopa, uma açorda e um limado é muito ténue. O principal elemento
é constituído pela água, o engrossamento ou ligação é realizado com amidos (farinha) ou
proteínas animais (queijo, ovos), que espessam a cozedura e a gordura é sempre utilizada em
pequenas quantidades.
Ora, estes procedimentos, constituem as práticas identitárias da culinária de todo o Alentejo. A
presença constante da água como ingrediente durante o processo de preparação culinária é um
dos determinantes para que esta cozinha seja considerada muito saudável. O ponto de ebulição da
água permite que a temperatura de cozedura se mantenha relativamente constante, impedindo a
degradação das gorduras e demais nutrientes. Além do referido, os pratos quotidianos alentejanos
podem integrar na sua composição cereais, leguminosas secas e batatas, alimentos estes que têm
como componente principal os hidratos de carbono. Ao cozer em água, libertam uma certa
quantidade de amido, que engrossa o caldo, veiculando e concentrando nele os sabores
produzidos durante a cozedura, através da mistura dos diferentes elementos diluídos na água. A
estas características associa-se o uso das ervas aromáticas que é transversal a toda a culinária
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alentejana e, particularmente, na preparação das sopas. Enquanto que algumas se utilizam ao
longo do ano, como por exemplo a hortelã, os coentros e a salsa, já outras são utilizadas
conforme a época do ano. É o caso, por exemplo, dos orégãos que se usam secos no Verão, ou do
poejo que se utiliza preferencialmente no Inverno e na Primavera. A propósito do poejo em
particular e dos “cheiros” no geral, Galopim de Carvalho (2001) escrevia: “poejo, o mais
alentejano dos cheiros, quanto a nós, com direito à posição de ex-líbris. Já Estrabão, o grande
geógrafo grego dos finais, do século I a.C., reconhecera esta região a sul do Tejo como o «paraíso
das ervas frescas» (op.cit.: 52).
Do passado aos dias de hoje
O património de saberes, muitos deles do domínio intangível, foi sendo transmitido oralmente,
de geração em geração, e a sua aplicação prática inseria-se numa lógica sustentada de utilização
dos recursos alimentares, num contexto de estreita dependência entre a produção, a
disponibilidade em alimentos e o consumo familiar. Neste caso, trata-se da utilização na sopa das
plantas espontâneas comestíveis16.
Na Primavera, quando a monda das searas do trigo era feita manualmente por ranchos de
“mulheres e raparigas”, um dos recursos alimentares que permitia diversificar a dieta alimentar
no Alentejo era precisamente representado por algumas das ervas infestantes, consideradas como
“ervas daninhas” das searas. Embora se fale da sua utilização como se fosse uma prática do
passado, caída no desuso, a realidade é que todo o conhecimento associado à sua utilização ainda
está muito presente na memória dos protagonistas, na qual o consumo se associa a períodos de
escassez de alimentos, que remetem para um contexto de penúria alimentar, bem diferente do
actual. Com efeito, o seu uso é, actualmente, menos frequente ou quase inexistente, devido à
profunda alteração das práticas alimentares, ocorrida nas últimas décadas, marcadas pelo
aumento dos rendimentos familiares e pela diversificação alimentar. Um relato local, a propósito
da utilização destas plantas nesses tempos, refere que: “aquilo era a sorte de muitas famílias
antigamente, hoje já não, felizmente. Mas ia-se muito buscar aos campos, por exemplo, o
catacuz, que se comia, ou as tengarrigas, que é aqui mais para o sul, nós aqui chamamos-lhes
carrasquinhas, é a mesma coisa”.
11
Se por um lado, a memória dessas vivências condiciona a apreciação que os seus protagonistas
fazem em relação ao papel das plantas silvestres na alimentação, é de salientar que em torno
destas, emerge uma tendência contrária, quer por parte de consumidores urbanos, quer dos que
regressam às origens. Assiste-se assim a uma revalorização das preparações simples e frugais, das
quais as sopas tradicionais à base de plantas bravias comestíveis são consideradas pratos
identitários da cozinha local. Para uns é a procura e descoberta de sabores novos, para outros o
reencontro com memórias de sabores.
Alguns restaurantes, aproveitando esta dinâmica, e articulando tradição com inovação alimentar,
têm recuperado e reintroduzido entre os seus pratos principais, as sopas tradicionais com plantas
silvestres alimentares, indo ao encontro da expectativa e da curiosidade dos visitantes, que
procuram experimentar sabores específicos da região. Neste contexto, a restauração local é um
agente muito importante de divulgação e de revalorização das sopas tradicionais, fazendo
perdurar no tempo a manutenção dos sabores e dos saberes que lhes estão associados.
Neste contexto, o património gastronómico constituído pelas tradições alimentares, associadas às
plantas silvestres alimentares e a outros recursos silvestres, integrado noutros elementos do
património, nomeadamente o agroflorestal, representa um recurso endógeno a mobilizar para o
desenvolvimento de formas de turismo cultural. Assim sendo, o trilhar de novos caminhos para o
desenvolvimento passa, também, pela inovação das tradições alimentares locais. Estas constituem
um dos pilares de referência, para formas organizadas de conhecimento e de descoberta de um
território, ou seja, de práticas de lazer activo, de excursionismo gastronómico, de passeios
pedestres temáticos, dedicados, por exemplo, à identificação da flora local, aos recursos
micológicos silvestres nos espaços florestais, às suas utilizações alimentares e ao
encontro/reencontro com os sabores da gastronomia local.
Em homenagem à Helen Macbeth, alguns exemplos de receitas de “Caldos, cozidos e sopas” da
autoria de José Luís Tirapicos Nunes, Professor da Universidade de Évora
Caldo de carrasquinhas
Refogam-se em azeite cebola picada fina e um dente de alho, tempera-se com colorau, sal e
louro, juntam-se os cardos arranjados e lavados, (troços de cerca d 5cm) junta-se água para
cozer os cardos quando estes estiverem cozidos retira-se um pouco de líquido junta-se a mesma
proporção de vinagre, dissolvendo-se nessa mistura farinha. * Antes de juntar a farinha, que faz
12
o caldo, junta-se queijo fresco já com dois ou três dias, (a ideia de comer queijos cozidos era
aproveitar este tipo de queijos por já terem passado a fase de frescos, assim como na sopa de
tomate se usavam os duros para os tornar mais comestíveis). Abre-se um ovo por pessoa e
finalmente junta-se o polme mexe-se suavemente. Serve-se sobre sopa de pão cortado fino (Prof.
Tirapicos, Univ. de Évora)
Nota: o caldo leva farinha de trigo dissolvida em água e/ou vinagre (exemplo caldo de cação,
caldo de peixe do rio ou “calducho”)
Cozido de grãos com cardos
Numa panela colocam-se os grãos demolhados de véspera, as carrasquinhas (cardos)
arranjados cortados e lavados, cenouras e batatas, um naco de toucinho ou um chispe de porco
alentejano, um bocado de borrego, tudo deixado a repousar com um pouco de sal desde a
véspera, uma linguiça pequena e um chouriço. Cobre-se tudo de água e deixa-se cozer. Após a
cozedura cortam-se para uma terrina fatias finas de pão alentejano cobrem-se com hortelã e
deita-se o caldo por cima, a mistura e as carnes são servidas à parte, mas come-se tudo junto, na
proporção que a cada um dá na gana. (Prof. Tirapicos, Univ. de Évora)
Nota: O cozido tradicional era feito numa panela de barro e cozinhado em lume de chão.
Sopa de beldroegas
Alourar em azeite cebolas em rodelas, juntar as beldroegas e dar-lhes uma volta. Assim, que
estiverem moles, regar tudo com água e deixar levantar fervura; introduzir no caldo umas
cabeças de alhos inteiras, a que apenas se retirou a pele branca exterior e as batatas
descascadas e cortadas em rodelas grossas. Deixar cozer e, na altura de servir, escalfar um ovo
por pessoa e queijinhos secos de cabra, cortados em quartos. Verificar o sal e deitar o caldo
sobre fatias de pão duro, que já se encontram no fundo da terrina. A mistura das beldroegas,
ovos, queijo e batata é servida à parte, mas come-se tudo junto. Há sítios no Alentejo onde não
se inclui a cebola mas reforçam-se as cabeças de alhos. Quer numa versão quer noutra come-se
quente. (Prof. Tirapicos, Univ. de Évora).
13
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Colibri/ INIAP, Lisboa: 81-151.
1
A importância da sopa, na identidade alimentar portuguesa e da sua inserção na vida quotidiana do séc. XIX, é visível
na literatura desta época. Consulte-se em primeiro lugar a notável obra de Eça de Queirós, cujas descrições
gastronómicas se encontram num trabalho singular da autoria de Dário Moreira de Castro Alves, publicado em 1992,
pela Ed. Livros do Brasil, intitulado: Era Tormes e Amanhecia. Dicionário Gastronómico Cultural de Eça de Queirós.
De referência obrigatória, é igualmente o capítulo sobre “A alimentação e seus efeitos nas ideias, nos sentimentos e nos
aspectos da sociedade”, do VI Volume de As Farpas, de Ramalho de Ortigão, no qual este escritor, considera Portugal o
“baluarte da sopa, vaca e arroz”. Entretanto, desde então, Gastrónomos e Cozinheiros têm enaltecido igualmente o papel
da sopa como prato nacional.
2
Este artigo baseia-se em três estudos por nós desenvolvidos no Sul do país. Um deles foi realizado em 1994, na Serra
do Caldeirão, no Algarve, o outro em Alcácer do Sal, Alentejo Litoral, confinando com o que decorre no concelho de
Vendas Novas, no Alentejo Interior. No caso concreto das sopas, temos procurado perceber quais as tendências do seu
consumo, mais especificamente se permanecem na alimentação quotidiana, se vão perdendo a sua importância, ou se
vão ganhando novas configurações através de formas renovadas de preparação. Retomam-se resultados já publicados no
livro: Tradição e inovação alimentar. Dos recursos silvestres aos itinerários turísticos, Maria-Manuel Valagão (org.)
Ed. Colibri/ INIAP, Lisboa, 2006.
3
Abel Mariné et al., “La sopa en la cocina mediterránea. Aspectos higiénicos, dietéticos y gastronómicos” in La
Alimentación Mediterránea − Historia, Cultura, Nutrición, Barcelona, 1996, in F. Xavier Medina (Ed.), Barcelona,
Icaria, p. 214.
4
Françoise Aubaile-Sallenave, L`alimentation en Méditerranée, Préhistoire et Antiquité, CNRS/Musée d`Histoire
Naturelle, Paris, 1989.
5
Pequito Rebelo, A Terra Portuguesa, Lisboa, 1929, p.55 citado por Orlando Ribeiro na sua obra: Portugal, o
Mediterrâneo e o Atlântico, 1987, p.39.
6
O “adubo” da sopa, representa na gíria local, a gordura e/ou o elemento proteico que vai enriquecer a sopa.
15
7
Emílio Peres, “Elogio da Sopa”, in Revista de Alimentação Humana III, n.º 1, Porto, Sociedade Portuguesa de
Ciências da Nutrição e Alimentação, 1997, p. 9.
8
Este era o pseudónimo de António Maria de Oliveira Bello (1872-1935), distinto industrial e mineralogista que
fundou em 1933 a Sociedade Portuguesa de Gastronomia e que escreveu Culinária Portuguesa, uma obra de
referência, cuja publicação teria ocorrido postumamente, possivelmente em 1936, e que é considerada a “primeira
recolha sistemática do receituário português”, segundo as palavras de José Quitério no Preâmbulo da reedição dessa
mesma obra em 1994, pela Ed. Assírio e Alvim.
9
Importa salientar que a obra a que nos referimos, Volúpia, a nona arte, a gastronomia, foi publicada numa primeira
edição em 1940 e já nessa altura o autor, apoiando-se no testemunho de um médico francês, o Dr. Gauducheau, fazia
a apologia da sopa elegendo-a como prato nacional.
10
De acordo com Garcia de Orta (1501-1568), trouxemos da Índia esta preparação culinária e o étimo é indiano:
kanji. Galopim de Carvalho desenvolve um pouco mais a origem deste prato, dizendo-nos que: “a canja fomos
buscá-la ao oriente, ao concani, no século XVI, onde a canje era feita de água e arroz, com pimenta e cominhos.
Nessa época, Manuel Godinho Cardoso fala dela na célebre História Trágico- Marítima: «não havia outras
mesinhas nem benefícios mais que remédio de sangrias, canjas de arroz ou milho». Entre nós fala-se de canja
quando o caldo, de carne ou de peixe, apenas tem arroz (ou massa, por semelhança)”. (2001: 243).
11
A “canja de garoupa” tornou-se o prato emblemático de um Restaurante em Alcácer do Sal (Alentejo) e consiste
num “prato completo”, feito pelo mesmo processo da canja, mas incorporando o referido peixe, espinafres e arroz.
12
Na designação de plantas silvestres alimentares ou plantas bravias com utilidade alimentar englobam-se todas
aquelas que são directamente comestíveis pelas suas folhas, caules ou rebentos e que são espontâneas na natureza.
13
É actualmente “aceite” que muitas das plantas alimentares básicas da zona Mediterrânica, como as actuais
variedades cultivadas de trigo, cevada; aveia, centeio; a oliveira, o linho, hortaliças, como a beterraba, os espinafres,
entre outras; assim como diversas variedades de frutos resultaram da domesticação de variedades silvestres. O
interesse pela domesticação de plantas espontâneas remonta ao início da agricultura. Por exemplo, a “acelga” (Beta
vulgaris L. ssp. maritima L.), é uma das mais importantes e também das mais antigas culturas no mundo, consumida
no seu estado selvagem, desde tempos pré-históricos e referida já em escritos de cerca de 700 a.C, num jardim de um
dos reis da Babilónia, atingindo o Mediterrâneo no séc. I a.C. com os Romanos (Isabel Saraiva et al., 2006).
14
tarida vem da raiz tarada, que significa migar pão (in Saramago, 1987:99).
15
Baseia-se no aproveitamento do pão duro, quando ancestralmente a “amassadura” era “semanal” ou de dez em dez
dias.
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Chamar a atenção para a importância destes recursos genéticos, poderá constituir uma forma de pedagogia da
valorização das tradições alimentares e de descoberta de sabores esquecidos, parte integrante da identidade
gastronómica local. A conservação e utilização sustentável dos recursos genéticos é nos dias de hoje, uma actividade
de importância crucial, para a manutenção da biodiversidade, das paisagens e para a perpetuação de saberes
tradicionais. Ainda mais quando se tem vindo a constatar o seu declínio progressivo, em consequência de práticas
agrícolas intensivas. Desde a década de setenta que organismos internacionais como a FAO (Food and Agricultural
Organization) e O IPGRI (International Plant Genetic Resources Institute) têm vindo a alertar para a importância da
conservação da biodiversidade e da adopção de estratégias de conservação de determinadas espécies seleccionadas
pelo grau de erosão da diversidade e pela importância sócio económica (em particular as neglected minor crops).
A partir da década de noventa, iniciaram-se esforços no sentido de manter e usar a diversidade de recursos genéticos
vegetais no seu habitat natural, in- situ , ou em locais onde o material vegetal iniciou um processo de
desenvolvimento, como por exemplo no campo do agricultor ou em hortas.
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