Elisa Lucinda - Rosany Costa
Transcrição
Elisa Lucinda - Rosany Costa
Elisa Lucinda 1 Elisa Lucinda Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Vitória ,ES, 2 de fevereiro de 1958), é poetisa, jornalista, cantora. Chegou a exercer a profissão de jornalista em Vitória. Em 1986, mudou-se para o Rio de Janeiro disposta a seguir a carreira de atriz. Sempre atuando em teatro, cinema e televisão, publicou seu primeiro livro de poesia “O Semelhante”, em 1994. Este foi um passo para que a peça de mesmo nome, onde ela dizia seus versos e conversava com a platéia, permanecesse em cartaz durante seis anos, no Brasil e no exterior. No mesmo formato, apresentou “Eu te amo Semelhante” e atualmente excursiona pelo país com mais um espetáculo solo, “Parem de falar mal da rotina”, sucesso de crítica e público no Fórum Internacional de Culturas, Barcelona, em 2004. Recentemente esteve representando o Brasil na XIV Feira do Livro de Cuba – 2005. Popularizando a poesia com seu jeito coloquial de escrevê-la e dizê-la, sua presença cênica tanto no palco como na tela é impressionante. Elisa Lucinda é considerada um dos maiores fenômenos da poesia brasileira. “A menina transparente”, poema que marca sua estréia na literatura infantil, recebeu Prêmio Altamente Recomendável, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. Reconhecida pela sua literatura poética (“O semelhante”, “Eu Te Amo e Suas Estréias”, os infantis “A menina transparente”, “Lili a rainha das escolhas”, “O órfão famoso”, “O menino inesperado” e seus mais recentes livros “Cinqüenta poemas escolhidos pelo autor”, “Contos de Vista” e seu mais novo livro "A Fúria da Beleza" ), além de seus espetáculos, recitais e workshops apresentados no Brasil e exterior; por seus trabalhos na área de recursos humanos junto à diversas empresas e instituições como Petrobrás, Banco Real, Fiocruz e por seus recentes trabalhos: na televisão, onde viveu a cantora Pérola em “Mullheres Apaixonadas” novela de Manoel Carlos no horário nobre na Rede Globo, "Páginas da Vida" também de Manoel Carlos, ; no cinema, como protagonista ao lado da amiga e atriz Zezé Polessa, no filme “Alegres comadres” (lançado no Festival BR de Cinema 2003); Elisa ainda mantém a “Escola Lucinda de Poesia Viva” onde ensina interpretação teatral da poesia seguindo o lema: “Falando poesia sem ser chato”. Em breve será lançado o CD do show "Ô Danada", show ao vivo realizado com Marcos Lima e que será o primeiro CD lançado pelo selo CCC (Centro Cultural Carioca) A notável Capixaba vem ao longo de sua carreira presenteando o público com seu jeito peculiar e natural de falar poesia sem representar o verso mas apresentando as emoções que as palavras podem proporcionar... Livros * A Menina Transparente * Euteamo e suas estréias * O Semelhante * Coleção Amigo Oculto (trilogia infantil). * Contos de Vista * A Fúria da Beleza (2006) * Lili a rainha das escolhas CDs de poesias * Semelhante - sob o selo da gravadora Rob Digital * Euteamo e suas Estréias - sob o selo da gravadora Rob Digital * Notícias de Mim, com poemas da poeta paulista Sandra Falcone, participação de Miguel Falabella, direção e produção de Gerson Steves. O CD é resultado do espetáculo homônimo com roteiro e direção de Steves. Fonte: www.escolalucinda.com.br e outros sites na Internet. 2 Elisa Lucinda De: O Semelhante O Poema do Semelhante O Deus da parecença que nos costura em igualdade que nos papel-carboniza em sentimento que nos pluraliza que nos banaliza por baixo e por dentro, foi este Deus que deu destino aos meus versos, Foi Ele quem arrancou deles a roupa de indivíduo e deu-lhes outra de indivíduo ainda maior, embora mais justa. Me assusta e acalma ser portadora de várias almas de um só som comum eco ser reverberante espelho, semelhante ser a boca ser a dona da palavra sem dono de tanto dono que tem. Esse Deus sabe que alguém é apenas o singular da palavra multidão Eh mundão todo mundo beija todo mundo almeja todo mundo deseja todo mundo chora alguns por dentro alguns por fora alguém sempre chega alguém sempre demora. O Deus que cuida do não-desperdício dos poetas deu-me essa festa de similitude bateu-me no peito do meu amigo encostou-me a ele em atitude de verso beijo e umbigos, extirpou de mim o exclusivo: a solidão da bravura a solidão do medo a solidão da usura a solidão da coragem a solidão da bobagem a solidão da virtude a solidão da viagem a solidão do erro a solidão do sexo a solidão do zelo 3 Elisa Lucinda a solidão do nexo. O Deus soprador de carmas deu de eu ser parecida Aparecida santa puta criança deu de me fazer diferente pra que eu provasse da alegria de ser igual a toda gente Esse Deus deu coletivo ao meu particular sem eu nem reclamar Foi Ele, o Deus da par-essência O Deus da essência par. Não fosse a inteligência da semelhança seria só o meu amor seria só a minha dor bobinha e sem bonança seria sozinha minha esperança (madrugada onde fui acordada pelo poema no Rio de Janeiro, 10 de julho de 1994) Aviso da Lua que Menstrua Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua... Imagine uma cachoeira às avessas: cada ato que faz, o corpo confessa. Cuidado, moço às vezes parece erva, parece hera cuidado com essa gente que gera essa gente que se metamorfoseia metade legível, metade sereia. Barriga cresce, explode humanidades e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar mas é outro lugar, aí é que está: cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita.. Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente que vai cair no mesmo planeta panela. Cuidado com cada letra que manda pra ela! Tá acostumada a viver por dentro, transforma fato em elemento a tudo refoga, ferve, frita ainda sangra tudo no próximo mês. Cuidado moço, quando cê pensa que escapou é que chegou a sua vez! Porque sou muito sua amiga é que tô falando na "vera" conheço cada uma, além de ser uma delas. Você que saiu da fresta dela delicada força quando voltar a ela. Não vá sem ser convidado 4 Elisa Lucinda ou sem os devidos cortejos.. Às vezes pela ponte de um beijo já se alcança a "cidade secreta" a Atlântida perdida. Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela. Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas cai na condição de ser displicente diante da própria serpente Ela é uma cobra de avental Não despreze a meditação doméstica É da poeira do cotidiano que a mulher extrai filosofando cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso julgando a arte do almoço: Eca!... Você que não sabe onde está sua cueca? Ah, meu cão desejado tão preocupado em rosnar, ladrar e latir então esquece de morder devagar esquece de saber curtir, dividir. E aí quando quer agredir chama de vaca e galinha. São duas dignas vizinhas do mundo daqui! O que você tem pra falar de vaca? O que você tem eu vou dizer e não se queixe: VACA é sua mãe. De leite. Vaca e galinha... ora, não ofende. Enaltece, elogia: comparando rainha com rainha óvulo, ovo e leite pensando que está agredindo que tá falando palavrão imundo. Tá, não, homem. Tá citando o princípio do mundo! No elevador do filho de Deus A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida Que eu já tô ficando craque em ressurreição. Bobeou eu tô morrendo Na minha extrema pulsão Na minha extrema-unção Na minha extrema menção de acordar viva todo dia Há dores que sinceramente eu não resolvo sinceramente sucumbo Há nós que não dissolvo e me torno moribundo de doer daquele corte do haver sangramento e forte que vem no mesmo malote das coisas queridas Vem dentro dos amores dentro das perdas de coisas antes possuídas dentro das alegrias havidas Há porradas que não tem saída há um monte de "não era isso que eu queria" Outro dia, acabei de morrer depois de uma crise sobre o existencialismo 3º mundo, ideologia e inflação... E quando penso que não 5 Elisa Lucinda me vejo ressurgida no banheiro feito punheteiro de chuveiro Sem cor, sem fala nem informática nem cabala eu era uma espécie de Lázara poeta ressucitada passaporte sem mala com destino de nada! A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida ensaiar mil vezes a séria despedida a morte real do gastamento do corpo a coisa mal resolvida daquela morte florida cheia de pêsames nos ombros dos parentes chorosos cheio do sorriso culpado dos inimigos invejosos que já to ficando especialista em renascimento Hoje, praticamente, eu morro quando quero: às vezes só porque não foi um bom desfecho ou porque eu não concordo Ou uma bela puxada no tapete ou porque eu mesma me enrolo Não dá outra: tiro o chinelo... E dou uma morrida! Não atendo telefone, campainha... Fico aí camisolenta em estado de éter nem zangada, nem histérica, nem puta da vida! Tô nocauteada, tô morrida! Morte cotidiana é boa porque além de ser uma pausa não tem aquela ansiedade para entrar em cena É uma espécie de venda uma espécie de encomenda que a gente faz pra ter depois ter um produto com maior resistência onde a gente se recolhe (e quem não assume nega) e fica feito a justiça: cega Depois acorda bela corta os cabelos muda a maquiagem reinventa modelos reencontra os amigos que fazem a velha e merecida pergunta ao teu eu: "Onde cê tava? Tava sumida, morreu?" E a gente com aquela cara de fantasma moderno, de expersona falida: - Não, tava só deprimida. Viver de Poesia Há tanto o que fazer com a poesia que eu quase não dou conta das tarefas. Trazê-la em estado de circulação é mais que assumi-la sangue de tanto me afundar no mangue decorei o caminho do emergir a volta do desmaio do cair em si em mi e mais todas as notas do percurso e escola. Há tanto o que transar com a poesia 6 Elisa Lucinda que tenho estado com ela sem nenhum projeto de anticoncepção falá-la então é o VT desse sexo explícito de procriação com direito a prazer e gozo em cada dobra de rima Trazendo-a em estado vivo exerço a alquimia de atropelar o efêmero com o doce trator da perpetuação agarrada aos motivos eternos dos versos que eu escrevi latejante exposição em estado de música e fotografia é o que faço aqui e aqui chego com meus cães: sigo tudo de acordo com as ordens do Deus poema que é o fiel domador. Corro, sento, busco ossos e inda faço gracinhas elefante, golfinho, leão, macaquinho, sopro, tambor, teclado, cavaquinho vou bebendo vinho. Há tanto o que fazer com a poesia Há tanto o que namorar com a poesia Há tanto o que compreender com a poesia Há tanto o que viajar com a poesia que eu com esse excesso de bagagem passo na cara do vigia de mãos vazias. Mas tamanha é a magia que toda a muamba que ninguém via agora se esparrama no palco: ela rainha, galinha sambando no pedaço, minha rainha poesia e de salto alto. (Rio, verão de 1991) Cor-respondência Remeta-me os dedos em vez de cartas de amor que nunca escreves que nunca recebo. Passeiam em mim estas tardes que parecem repetir o amor bem-feito que você tinha mania de fazer comigo. Não sei amigo se era seu jeito ou de propósito mas era bom sempre bom e assanhava as tardes Refaça o verso que mantinha sempre tesa a minha rima firme confirme o ardor dessas jorradas 7 Elisa Lucinda de versos que nos bolinaram os dois a dois. Pense em mim e me visite no correio de pombos onde a gente se confunde Repito: Se meta na minha vida outra vez meta Remeta. Consagração da Criatura A Juliano Filho..., igualzinho à minha poesia você nunca foi meu órgão A arte é constante e me habita à hora que ela quer e à hora que eu deixo Mas não me existe combinada, não há contratos nem despejos você tem intimidade com meus interiores com meus departamentos Você é um argumento contra mim e a meu favor Me trai porque conhece meu avesso Me enobrece porque me tornou poderosa Capaz de prosseguir com essa invenção chamada humanidade Você é a barbaridade de ter feito a minha barriga crescer Meu corpo zunir, abrir, escancarar pra você sair de onde eu nunca pus sequer os pés, as mãos da casa em que vivo e habito sem nunca ter entrado porque moro fora de mim. O que faz de seu édipo eficiência e de seu abuso, cultura é essa estrutura feita de mim sem que eu tenha em ti o mesmo acesso Por isso a criatura é mais que o criador e você que saiu por onde entrou Como ocorre com o poema tem seu passaporte carimbado para todos os estados de minha alma, de meu espírito Você que é onírico, sábio vassalo Me tiraniza e perde a fala, o fôlego, o faro Me organiza e ganha o futuro e ainda segura o jogo duro de viver independente de minha respiração Espião de meus bastidores Olhou minhas entranhas enquanto virava ser humano quieto dentro de mim como as palavras antes de serem poesia Mas fui apenas uma pensão, uma besteira ou um hotel cinco estrelas ou um amniótico colchão. Hoje saído dessa embalagem, me olhas como miragem de parecer tão próprio, tão seu Me olhas como árvore ziguezagueia e olha para o que fui: passageira semente. Me olha como gente que já me viu por dentro 8 Elisa Lucinda vasculhou meu plasma, minhas gavetas me deixou pasma, coroou minha buceta e sabe meu segredo Me olha elegante e vestido e se sente despido ao saber que o olho de minha coxia também te viu virar varão. Deixar de ser óvulo, indefinição, projeto, embrião e haverá sempre um leite materno escorrendo pelo seu terno como mirra, bênção, distração como birra, alimento, maldição maior que mim, melhor que mim. Está pronto e feito, como o meu melhor poema Nem branco nem preto. Nem real nem ilusão. Um grande amuleto da palavra são. (Da série “Consagração da criatura”) Safena Sabe o que é um coração amar ao máximo de seu sangue? Bater até ao auge de seu baticum? Não, você não sabe de jeito nenhum. Agora chega. Reforma no meu peito! Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas aproximem-se! Rolos, rolas, tintas, tijolo comecem a obra! Por amor, mestre de Horas Tempo, meu fiel carpinteiro comece você primeiro passando verniz nos móveis e vamos tudo de novo do novo começo. Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora apertem os cintos Adeus ao sinto muito do meu jeito Peitos ventres pernas aticem as velas que lá vou eu de novo na solteirice exposta ao mar da mulatice à honra das novas uniões Vassouras, rodos, águas, flanelas e ceras Protejam as beiras lustrem as superfícies aspirem os tapetes Vai começar o banquete de amar de novo Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões Façam todos suas inscrições. Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate O homem que hoje me amar encontrará outro lá dentro. Pois que o mate. 9 Elisa Lucinda Mulata Exportação “Mas que nega linda E de olho verde ainda Olho de veneno e açúcar! Vem nega, vem ser minha desculpa Vem que aqui dentro ainda te cabe Vem ser meu álibi, minha bela conduta Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar! (Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?) Minha tonteira minha história contundida Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol? Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê; Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer. Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê. Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.” Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor. Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado...” E o delegado piscou. Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena com cela especial por ser esse branco intelectual... Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio nada disso se cura trepando com uma escura!” Ó minha máxima lei, deixai de asneira Não vai ser um branco mal resolvido que vai libertar uma negra: Esse branco ardido está fadado porque não é com lábia de pseudo-oprimido que vai aliviar seu passado. Olha aqui meu senhor: Eu me lembro da senzala e tu te lembras da Casa-Grande e vamos juntos escrever sinceramente outra história Digo, repito e não minto: Vamos passar essa verdade a limpo porque não é dançando samba que eu te redimo ou te acredito: Vê se te afasta, não invista, não insista! Meu nojo! Meu engodo cultural! Minha lavagem de lata! Porque deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata! (Da série “Brasil, meu espartilho”) Dei um gelo nela (o poema da geladeira) Estava há uma semana vazia... Fazia dias que ela não gelava senão água. Até que choveu na minha conta outro dia: Saí, comprei aves, peixes, lagostas, camarões... Olhei pra ela, estava cheia. 10 Elisa Lucinda Chuchus sorriam pra mim: há quanto tempo... diziam. Uvas e beterrabas batiam palminhas do reencontro Até a galinha morta era feliz por mim. Dormi pensando em receitas boas. Acredita que de manhã um carrasco havia sido pago pra levá-la? Ela que nunca foi totalmente minha. Liguei pra dona, me humilhei sozinha dentro do discurso justo de que sou artista e por isso inconstante na economia. E a dona nada. Não cedia. O carrasco ia levar minha deusa, minha neve possível, minha geada de estimação. À hora marcada, chorei agarrada àquela cônsul mimada demais por mim; Tão adotiva, tão afetiva... eu atracada a ela, pedia, gemia... E ela, nada; ela fria, desligada, já não me dava nem gelos. Fiquei sem patrimônio. Sem preservação de alimentos. Fiquei sem centro, a zombar de mim. Até que me lembrei dos meus bens: a coragem, a beleza, a força, a poesia, a esperteza. coisas que não se encontram em pontos-frios, coisas que não são substituíveis por um isopor. Então já amanheci pondo coentros nas jarras como flores! Curei minhas dores sem congelamento. Me virei por dentro onde tudo é mantido quente vivo. Tirei tudo de letra e de ouvido como quem tira uma música! (Da série “Eletrodométricos”) Chupetas Punhetas Guitarras Choram meus filhos pela casa fraldas colos fanfarras Meus filhos choram querendo talvez meu peito ou talvez o mesmo único leito que reservei pra mim Assim aprendi a doar com o pranto deles Na marra aprendi a dar mundo a quem do mundo é A quem ao mundo pertence e de quem sou mera babá Um dia serei irremediavelmente defasada, demodê Meus filhos berram meu nome função querendo pão, ternura, verdade e ainda possibilidade de ilusão Meus filhos cometem travessuras sábias no tapa bumerangue da malcriação Eu que por eles explodi buceta afora afeto adentro ingiro sozinha o ouro excremento desta generosidade Aprendo que não valho nada em mim Que criar pessoa é criar futuro não há portanto recompensa, indenização mesquinhas voltas, efêmeros trocos. Choram pela casa e eu ouço sem ouvidos porque meus sentidos vivem agora sob a égide da alma Chupetas punhetas guitarras meus filhos babam conhecimentos da nova era no chão de minha casa. Essa deve ser minha felicidade. Aprendo a dar meu eu, aquilo que não tem cópia tampouco similar E o tempo, esse cuidadoso alfaiate, não me conta nada Assíduo guardador dos nossos melhores segredos 11 Elisa Lucinda sabe o enredo da estória Vai soprando tudo aos poucos e muito aos pouquinhos Faz eu lembrar que meu pai também já foi pequenininho Que só por ele ter podido ser meu ontem Só por ele ter fodido com desesperado desejo minha mãe um dia eu existi. Choram meus filhos pela Nasa onde passeamos planetas e reveses Eu escuto seus computadores, eu limpo suas fezes faço compressas pra febre, afirmo que quero morrer antes deles assino um documento onde aceito de bom grado lhes ter sido a mala o malote a estrela guia Um dia eles amarão com a mesma grandeza que eu uma pessoa que não pode ser eu Serão seus filhos suas mulheres seus homens Eu serei aquela que receberá sua escassa visita Não serei a preferida. Serei a quem se agradece displicente pelo adianto, pela carona de poderem ter sido humanidade. Choram meus filhos pela casa Eu sou a recessiva bússola a cegonha a garça com um único presente na mão: Saber que o amor só é amor quando é troca E a troca só tem graça quando é de graça. de: Euteamo E Suas Estréias Libação É do nascedouro da vida a grandeza. É da sua natureza a fartura a ploriferação os cromossomiais encontros, os brotos os processos caules, os processos sementes os processos troncos, os processos flores, são suas mais finas dores As conseqüências cachos, as conseqüências leite, as conseqüências folhas as conseqüências frutos, são suas cores mais belas É da substância do átomo ser partível produtivo ativo e gerador Tudo é no seu âmago e início, patrício da riqueza, solstício da realeza É da vocação da vida a beleza e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la com nossos minúsculos gestos ratos nossos fatos apinhados de pequenezas, cabe a nós enchê-la, 12 Elisa Lucinda cheio que é o seu princípio Todo vazio é grávido desse benevolente risco todo presente é guarnecido do estado potencial de futuro Peço ao ano-novo aos deuses do calendário aos orixás das transformações: nos livrem do infértil da ninharia nos protejam da vaidade burra da vaidade "minha" desumana sozinha Nos livrem da ânsia voraz daquilo que ao nos aumentar nos amesquinha. A vida não tem ensaio mas tem novas chances Viva a burilação eterna, a possibilidade: o esmeril dos dissabores! Abaixo o estéril arrependimento a duração inútil dos rancores Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos: a vida inédita pela frente e a virgindade dos dias que virão! Termos da nova dramática (Parem de falar mal da rotina) Parem de falar mal da rotina parem com essa sina anunciada de que tudo vai mal porque se repete. Mentira. Bi-mentira: não vai mal porque repete. Parece, mas não repete não pode repetir É impossível! O ser é outro o dia é outro a hora é outra e ninguém é tão exato. Nem filme. Pensando firme nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas: chuva dia azul crepúsculo primavera lua cheia céu estrelado barulho do mar O que que há? Parem de falar mal da rotina beijo na boca mão nos peitinhos água na sede flor no jardim colo de mãe namoro vaidades de banho e batom vaidades de terno e gravata vaidades de jeans e camiseta 13 Elisa Lucinda pecados paixões punhetas livros cinemas gavetas são nossos óbvios de estimação e ninguém pra eles fala não abraço pau buceta inverno carinho sal caneta e quero são nossas repetições sublimes e não oprime o que é belo e não oprime o que aquela hora chama de bom na nossa peça na trama na nossa ordem dramática nosso tempo então é quando nossa circunstância é nossa conjugação Então vamos à lição: gente-sujeito vida-predicado eis a minha oração. Subordinadas aditivas ou adversativas aproximem-se! é verão é tesão! O enredo a gente sempre todo dia tece o destino aí acontece: o bem e o mal tudo depende de mim sujeito determinado da oração principal. 29 de outubro de 1997 Da chegada do amor Sempre quis um amor que falasse que soubesse o que sentisse. Sempre quis uma amor que elaborasse Que quando dormisse ressonasse confiança no sopro do sono e trouxesse beijo no clarão da amanhecice. Sempre quis um amor que coubesse no que me disse. Sempre quis uma meninice entre menino e senhor uma cachorrice onde tanto pudesse a sem-vergonhice do macho quanto a sabedoria do sabedor. Sempre quis um amor cujo BOM DIA! morasse na eternidade de encadear os tempos: passado presente futuro coisa da mesma embocadura 14 Elisa Lucinda sabor da mesma golada. Sempre quis um amor de goleadas cuja rede complexa do pano de fundo dos seres não assustasse. Sempre quis um amor que não se incomodasse quando a poesia da cama me levasse. Sempre quis uma amor que não se chateasse diante das diferenças. Agora, diante da encomenda metade de mim rasga afoita o embrulho e a outra metade é o futuro de saber o segredo que enrola o laço, é observar o desenho do invólucro e compará-lo com a calma da alma o seu conteúdo. Contudo sempre quis um amor que me coubesse futuro e me alternasse em menina e adulto que ora eu fosse o fácil, o sério e ora um doce mistério que ora eu fosse medo-asneira e ora eu fosse brincadeira ultra-sonografia do furor, sempre quis um amor que sem tensa-corrida-de ocorresse. Sempre quis um amor que acontecesse sem esforço sem medo da inspiração por ele acabar. Sempre quis um amor de abafar, (não o caso) mas cuja demora de ocaso estivesse imensamente nas nossas mãos. Sem senãos. Sempre quis um amor com definição de quero sem o lero-lero da falsa sedução. Eu sempre disse não à constituição dos séculos que diz que o "garantido" amor é a sua negação. Sempre quis um amor que gozasse e que pouco antes de chegar a esse céu se anunciasse. 15 Elisa Lucinda Sempre quis um amor que vivesse a felicidade sem reclamar dela ou disso. Sempre quis um amor não omisso e que sua estórias me contasse. Ah, eu sempre quis um amor que amasse. Euteamo e suas estréias Te amo mais uma vez esta noite talvez nunca tenha cometido “euteamo” assim tantas seguidas vezes, mal cabendo no fato e no parco dos dias. Não importa, importa é a alegria límpida de poder deslocar o “Eu te amo” de um único definitivo dia que parece bastá-lo como juramento e cuja repetição, parece maculá-lo ou duvidá-lo... Qual nada! Pois que o euteamo é da dinâmica dos dias É do melhoramento do amor É do avanço dele É verbo de consistência É conjugação de alquimia É do departamento das coisas eternas que se repetem variadas e iguais todos os dias na fartura das rotações e seus relógios de colmeias no ciclo das noites e na eternidade das estréias: O sol se aurora e se põe com exuberância comum e com novidade diária e aí dizemos em espanto bom: Que dia lindo! E é! Porque só aquele dia lindo é lindo como aquele. Nossa sede, por mais primitiva, é sempre uma loucura da falta inédita até o paraíso da água nova no deserto da nova goela. Ela, a água, a transparente obviedade que habita nosso corpo e nos exige reposição cujo modo é o prazer. Vê: tudo em nós comemora o novo milenar de si todas as horas: Comer é novidade Dormir é novidade Doer é novidade Sorrir é novidade Maravilhosa repetitiva verdade que se expõe em cachos a nosso dispor variando em sabor e temor e glória Por isso te amo agora como nunca antes Porque quando te amei ontem eu te amava naquele tempo e sou hoje o gerúndio daquela disposição de verbo 16 Elisa Lucinda Te amo hoje com você dentro embora sem você perto Te amo em viagem portanto em viragem diferente da que quando estava perto Meu certo é alto, forte Te amo como nunca amei você longe, meu continente, meu rei Eu te amo quantas vezes for sentido e só nesse motivo é que te amarei. (Da série “Eternidades Cotidianas”) Brasília, 01 de dezembro de 1994 Lua nova demais Dorme tensa a pequena sozinha como que suspensa no céu Vira mulher sem saber sem brinco, sem pulseira, sem anel sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê Sem mãe perto, sem pai certo sem cama certa, sem coberta, vira mulher com medo, vira mulher sempre cedo. Menina de enredo triste, dedo em riste, contra o que não sabe quanto ao que ninguém lhe disse. A malandragem, a molequice se misturam aos peitinhos novos furando a roupa de garoto que lhe dão dentro da qual mestruará sempre com a mesma calcinha, sem absorvente, sem escova de dente, sem pano quente, sem O B. Tudo é nojo, medo, misturação de “cadês.” E a cólica, a dor de cabeça, é sempre a mesma merda, a mesma dor, de não ter colo, parque pracinha, penteadeira, pátria. Ela lua pequenininha não tem batom, planeta, caneta, diário, hemisfério, Sem entender seu mistério, ela luta até dormir mas é menina ainda; chupa o dedo E tem medo 17 Elisa Lucinda de ser estuprada pêlos bêbados mendigos do Aterro tem medo de ser machucada, medo. Depois mestrua e muda de medo o de ser engravidada, emprenhada, na noite do mesmo Aterro. Tem medo do pai desse filho ser preso, tem medo, medo Ela que nunca pode ser ela direito, ela que nem ensaiou o jeito com a boneca vai ter que ser mãe depressa na calçada ter filho sem pensar, ter filho por azar ser mãe e vítima Ter filho pra doer, pra bater, pra abandonar. Se dorme, dorme nada, é o corpo que se larga, que se rende ao cansaço da fome, da miséria, da mágoa deslavada dorme de boca fechada, olhos abertos, vagina trancada. Ser ela assim na rua é estar sempre por ser atropelada pelo pau sem dono dos outros meninos-homens sofridos, do louco varrido, pela polícia mascarada. Fosse ela cuidada, tivesse abrigo onde dormir, caminho onde ir, roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado, pintura, teatro, abraço, casaco de lã podia borralheira acordar um dia cidadã. Sonha quem cante pra ela: “Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha...” Sonha em ser amada, ter Natal, filhos felizes, marido, vestido, pagode sábado no quintal. Sonha e acorda mal porque menina na rua, é muito nova é lua pequena demais é ser só cratera, só buracos, sem pele, desprotegida, destratada pela vida crua É estar sozinha, cheia de perguntas sem resposta sempre exposta, pobre lua É ser menina-mulher com frio mas sempre nua. (Poema encomenda,1995) 18 Elisa Lucinda No pasto Meu amor dorme ele sabe que o amo sabe que a gripe dele morre de medo de mim meu amor é um escândalo é masculino do modo mais amplo e mais preciso e é por isso que eu espero os seus processos suas crises como se fossem tratores caminhões desgovernados no meio da perigosa estrada espero que passem e se puder ponho avisos e anjos nos caminhos pra que sejam sem mortes os desastres e descontroles as derrapadas. Meu amor dorme eu chegarei como uma poderosa aspirina toda mulher toda menina extirparei dele o que for constipação o que não for felicidade. Meu homem tem cheiro de mato o cheiro de todos os capins cheirosos no peito lá com nariz enfiado nesse jeito morrerei tudo que quero tem ele no fundo meu bom mundo o cheiro de fazenda que trazes no plexo foi o touro que me ensinou te amo inteira e farta vaca que sou. Lilith Balangandã Ponho o lenço do pescoço na cabeça Molho os cabelos com calma uma mulher é uma espécie de alma com enfeite Chega diante do espelho adorna-se como uma árvore de natal nem é natal mas ela vai dar bola Às vezes não varre o quintal mas pinta as maçãs blushes ruges Às vezes não costura mas realça cortinas cílios rímel lápis Às vezes não conserta as portas mas pinta as bordas das janelas 19 Elisa Lucinda pálpebras delineador sombra Mulher é uma Eva encantada de espalhar-se por fora em paraíso batom cintura tesão juízo pulseiras brincos balangandãs são seus sonhos de fachada que repetem de dentro que rondam a porta da casa Invento de princesa Durante todas as primaveras um cardume de cinderelas ainda insiste dentro dela. Do Príncipe ao sim O homem que eu amo veio de tanto eu pedir mas quando parei de esperá-lo veio quando eu ao depená-lo do meu sonho receio, permiti que em vez de início ou fim ele no meio de mim fosse só o meio. Não meio no sentido tático de jeito ou de modo. Meio no sentido de durante de enquanto de presente. Quando abandonei o título futuro definitivo da eternidade o rótulo azarento de garantia no departamento de intimidade, quando abandonei o desejo de ressarcir aqui o que perdi na antigüidade, meu homem chegou cheio de saudade ocupando inteiro seu lugar de meio sua inteira metade. 4 de agosto de 1995 de: A Fúria da Beleza Lambe Lambe Passam muitas pessoas no saguão dos aeroportos. Passam neste aeroporto da agora, e eu, no meu pensamento, não me comporto, imagino elas fodendo: fulano com fulano, são casados, gozam, fazem planos? E ela, quer logo que acabe? E ele, penetra rosnando? Fantasio as inúmeras possibilidades de encaixes, 20 Elisa Lucinda em como foram as noites de amor que tiveram para fazer essas crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holandesas senegalesas turcas e gregas. (meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe, escrevo num café, estou, por fora, muito chique no cenário e nitidamente estrangeira.) Agora passam dois homens. Sentam à mesa ao lado. Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria, Uma iguaria da mais pura sacanagem! Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei. Pensam que escrevo o abstrato E capricham descansados ao colo do idioma que não alcanço. Mas sou poliglota na linguagem dos molhares, cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro na pátria universal dos gestos, meu bem! Eles não escapam. Um chupa muito o outro, que eu sei, e o magrinho gosta de dar por cima e de lado. Importante dizer que dentro desse meu pensamento safado também não tem pecado. Só me diverte Ver o que todos negam, O que não se diz no social, Uma radiografia verbal da intimidade alheia é o que faço aqui, Sem que ninguém suspeite, Sem ninguém me permitir. Aquele tem pau pequeno e, pior que isso, e, mais que suas parceiras, acha isso um problema. Aquele ali também tem, mas arde na cama e se empenha muito compensando a diferença. Aquela, num outro esquema, diz não gostar da coisa e fala sem parar. Só uma pirocada de jeito para fazê-la calar. A gostosa gordinha engole a espada todinha daquele altão desajeitado, cujo grosso membro se torna, em meio às coxas dela, disfarçado. E o velhinho punheteiro De pau mole com jornal no colo? Talvez seja o único a adivinhar o teor dos meus escritos, dado que me olha dissimulado e constante de modo a nunca perder meus segredos de vista. (Com licença mas é dessa matéria hoje minha poesia) Enxerida, vejo a mulher com cabelo cortado à la moicano Com a menina que iniciara a tiracolo, Feliz sem ser por ela lambida E sem saber no que estou pensando. Passam as pessoas no saguão do aeroporto, 21 Elisa Lucinda fingem que fazem check-in fingem viajar sérias e de férias, fingem estar trabalhando... mentira, pra mim ta todo mundo trepando! Frankfurt, 6 junho de 2002 Tatame Cá estou para uma guerra inesperada e dificil: lutar contra o meu amor, o amor que eu sinto. Puta que pariu! Civil, despreparada e desprovida de armas, pareço perder de cara a empreitada. Levanto da primeira derrubada e o bicho já me golpeia certo no diapasão; justamente o afinador dos fracos, a bússola sonora dos instrumentos de canção. Me emudece, me desafina ceifa rente meu braço de poema, e, manca dele, procuro ainda alguma proteção. Mais um golpe, estou no chão. O amor caçoa então: quer morrer, danada, não vai lutar não? Com o bico da chuteira da mágoa desfiro-lhe dois golpes seguidos no queixo. O amor ri: não doeu, nem senti! Irada, engancho minhas pernas em seu pescoço, tento as tesouras imobilizantes que copiei das lutas da televisão. (Que nunca gostei, será que prestei a devida atenção?) O amor interpreta mal... Ah, quer me seduzir? Enforcar, que é bom, não? Eu nada falava, torcia pernas, me esgotava, fremindo-lhe a cabeça entre as coxas. Isto pra mim é trepada, boba! Eu gosto do aperto, do cheiro da roxa e de te ver roxa. E gargalhava. Cansada, humilhada e sem munição, desmaio e me entrego: pode me matar, amor eu estou na sua mão. O amor me olha de cima então: querida minha, eis o segredo da esfinge eis o problema diante da solução: matar-te é matar-me e matar-me é matar-te. Se no chão do amor estava, nesse chão continuei então. Deitada sob o amor, debaixo do amor, no ringue do amor, o amor me beijou, me beijou, me beijou. 9 de Abril de 2005 22 Elisa Lucinda Mais de Elisa Lucinda: Quanto Mais Vela Mais Acesa Um dia quando eu não menstruar mais vou ter saudade desse bicho sangrador mensal que inda sou que mata os homens de mistério Vou ter saudade desse lindo aparente impropério desse império de gerações absorvidas Desse desperdício de vidas que me escorre agora mês de maio. Ensaio: Nesse dia vou querer a vida com pressa menos intervalo entre uma frase e outra menos respiração entre um fato e outro menos intervalos entre um impulso e outro menos lacunas entre a ação e sua causa e se Deus não entender, rezarei: Menos pausa, meu Deus menos pausa. Para um Amor na Rua Meu amor, vem pra casa que ouvi dizer que vai estourar a guerra Nostradamus previu Raimunda, nega Raimunda confirmou Por favor, ponha os pés na terra Chão firme cama da gente ouvi dizer que vai estourar a guerra. Você que é mundano convicto você que erra vai argumentar que não há perigo e o escambou que é apenas o "bicho" internacional. Vai confundir tudo com show vai dizer que tem Prince, Rock n'roll Gun's N'Roses e talvez Gal; É mau, meu bem tem também Sadam, Bushes e mesquinharias Vem pra casa guardar num cofre sua ingenuidade vem proteger da maldade sua fotografia. Aqui fiz cuscuz farofa e feijão fraldinho aqui pintei filosofia, comigo-ninguém-pode espada de São Jorge, jasmim, arruda, carinho. Tudo anti-míssil tudo bruxaria anti-crueldade bélica Lá fora alguns meninos querem experimentar a potência de seus terríveis brinquedos. 23 Elisa Lucinda Não tenha medo vem pra casa sem nem telefonar aqui tem ar, poesia, fé e tudo que a alegria da alma encerra. Vem, meu amor que ouvi dizer que vai estourar a guerra. Penetração do Poema das Sete Faces A Carlos Drumond de Andrade Ele entrou em mim sem cerimônias Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu Na primeira fala eu já falava como se fosse meu O poema só existe quando pode ser do outro Quando cabe na vida do outro Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada Há apenas frases e desabafos pessoais Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas Te amo porque nunca nos vimos E me impressiono com o estupendo conhecimento Que temos um do outro Carlos, me escuta Você que dizem ter morrido Me ressuscitou ontem à tarde A mim a quem chamam viva Meu coração volta a ser uma remington disposta Aprendi outra vez com você A ouvir o barulho das montanhas A perceber o silêncio dos carros Ontem decorei um poema seu Em cinco minutos Agora dorme, Carlos. Escolha Eu te amo como um colibri resistente incansável beija-flor que sou batedora renitente de asas viciada no mel que me dás depois que atravesso o deserto. Pingas na minha boca umas gotas poucas do que nem é uma vacina. Eu uma mulher, uma ave, uma menina^ Assim chacinas o meu tempo de eremita: quebras a bengala onde me apoiei, rasgas minhas meias as que vestiram meus pés quando caminhei as areias. Eu te amo como quem esquece tudo diante de um beijo: as inúmeras horas desbeijadas os terríveis desabraços os dolorosos desencaixes que meu corpo sofreu longe do seu. Elejo sempre o encontro 24 Elisa Lucinda Ele é o ponto do crochê. Penélope invertida nada começo de novo nada desmancho nada volto Teço um novo tecido de amor eterno a cada olhar seu de afeto não ligo para nada que doeu. Só para o que deixou de doer tenho olhos. Cega do infortúnio pesco os peixes dos nossos encaixes pesco as gozadas as confissões de amor as palavras fundas de prazer as esculturas astecas que nos fixam na história dos dias Eu te amo. De todos os nossos montes fico com as encostas De todas as nossas indagações fico com as respostas De todas as nossas destilairias fico com as alegrias De todos os nossos natais fico com as bonecas De todos os nossos cardumes as moquecas. Incompreensão dos Mistérios Saudades de minha mãe. Sua morte faz um ano e um fato Essa coisa fez eu brigar pela primeira vez com a natureza das coisas: que desperdício, que descuido que burrice de Deus! Não de ela perder a vida mas a vida de perdê-la. Olho pra ela e seu retrato. Nesse dia, Deus deu uma saidinha e o vice era fraco. Reconstituição Tive de repente saudade da bebida que eu estava bebendo... tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava, qual era a bebida... Fui procurando entre copos e móveis e dei com sua boca. A saudade era dela A bebida era o beijo. 25 Elisa Lucinda Texto para uma separação Olhe aqui, olhos de azeviche Vamos acertar as contas porque é no dia de hoje que cê vai embora daqui... Mas antes, por obséquio: Quer me devolver o equilíbrio? Quer me dizer por que cê sumiu? Quer me devolver o sono meu doril? Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar? Quer me deixar na minha? Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha? Olhe aqui, olhos de azeviche: Quer parar de torcer pro meu fim dentro do meu próprio estádio? Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio? Vem cá, não vai sair assim... Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho? Assim: agora fica de joelhos e comece a cuspir todos os meus beijos. Isso. Agora recolhe! Engole a farta coreografia destas línguas Varre com a língua esses anseios Não haverá mais filho pulsações e instintos animais. Hoje eu me suicido ingerindo sete caixas de anticoncepcionais. Trata-se de um despejo Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo. Pronto: última revista Leve também essa bobagem que você chamou de amor à primeira vista. Olhos de azeviche, vem cá: Apague esse gosto de pescoço da minha boca! E leve esses presentes que você me deu: essa cara de pau, essa textura de verniz. Tire também esse sentimento de penetração esse modo com que você me quis esses ensaios de idas e voltas essa esfregação esse bob wilson erotizado que a gente chamou de tesão. Pronto. Olhos de azeviche, pode partir! Estou calma. Quero ficar sozinha eu co'a minha alma. Agora pode ir. Gente! Cadê minha alma que estava aqui? Um Bonde Chamado seu Beijo Quem encobrirá meu sono? Beijará quem minhas costas no cotidiano? Quem, no meio do frio, me cobrirá com lindas orelhas e me dirá palavras indecentes nos ouvidos? Quem, atrevido, me acordará com o ponteiro em riste como um pássaro que não quer tudo apenas o céu, a gaiola, o alpiste? 26 Elisa Lucinda Quem que, quando eu dormisse, por mim zelasse e eu, quando acordasse, lhe fizesse iogurtes brejeiros massagens nos pés, cumplicidades de enlace? Quem me agarrará por trás quando eu sair cheirosa do banho e terá orgulho de eu ser guerreira e perfumada ao mesmo tempo? Quem em bom senso dirá que muito me assanho quem orientará a guerrilha diária a que me proponho quem será inteligente e gostoso a meu lado como está no meu sonho? Quem, a quem me disponho a cozinhar e fazer versos quem racional e perverso cochichará nos tímpanos da minha alma a doce ordem, a venal palavra: Calma? Quem com sua alma me mostrará um mar vertical? Quem, meu igual, me apontará andores reais, sem excesso de glacê no bolo Com determinação de touro e a nobreza de poder ser banal? Quem, coisa e tal, me beijará a boca e me enfiará as mãos por debaixo da barra do segredo do vestido e um dia passeará comigo no segredo contido na Barra do Jucu? Quem, senão tu que eu elejo, eu planejo, pode habitar o lugar a suíte que há tanto tenho reservado? Quem, encomendado, pode me manter na confiança dos edredons enquanto não chega? Quem, com certeza, me visitará num outubourbon no gume da lira de eu ser égua, cadela, mulher e sua? Quem sobre mim sua, pinga, chove? Quem que com lucidez resolve o abismo simples de prever o risco de sonhar pra nele mesmo cair, rir e se embolar? Quem me dará a idéia de conceber a saudade no sentido tático quem, não estático, de longe me fará cometer poemas de meia-noite? Quem, sem favor, me estende o braço com rosas na mão com explicação pro meu calor? Quem, senão meu doido bondinho meus olhos acesinhos, meu comedor... Meu triz, meu risco meu cristo redentor? Au Gratin Fumo um cigarro fino Como um palito O calor do Rio é ridículo Calor de chuva enrustida Calor do céu oprimido De inferno mar resolvido Que não sabe se queima esse cara Ou o assa ao ponto Um calor filho da puta Um calor de estufa E eu sem nem ser judia Sofro aos pouquinhos Sofro esse zé pagodinho Ardo nesse pecado que não cometi Nesse forno onde me meti Por uma apimentada dica De um nordestino Que me mostrou uma placa citada, tinhosa: "CIDADE MARAVILHOSA" Eu vim. 27 Elisa Lucinda Dá Licença, Bastiana? Vim te pedir, mulher seu filho um pouquinha seu filho um cadinho pra brincar comigo. Ah, Bastiana é só por carinho que vim te implorar Juro! Não vou machucar Ai, Tiana tá danado Você pode compreender eu vim pedir emprestado esse fruto abusado de sua enorme paixão Eu não quero ter ele não Se tiver posso perder como já perdi a razão. Eu vim pedir teu curumim pra mim por uns tempos longos por dentro Quero ele só um pouquinho... O quê? Ele diz que pra mim não existe pouquinho? Mas tá mentindo, Tiana, você sabe, vou devolver... Quero fazer com ele um filme pra televisão Quero ir com ele cantar no Canecão e a gente vira cinema na cara de toda Nação Ai, Bastiana, não diga que não! Se ele chupou seus peitinhos eu também quero Lá em casa tem uma rede que é pra ninar ele Se ele dormiu no seu colo eu também quero Ai, Tiana como te venero! Parece apelação mas é mais desespero de nega enfeitiçada que sente no couro o que é pedir para si o filho dos outros. Já sei: A gente grava junto um disco só pra tocar na sua vitrola. No domingo ele ia pra aí só pra comer do seu pudim e molhar a boca na sua galinha ensopada Eu deixava Cheia de felicidade Espalhada na cidade, num grande out-door Pedindo pros deuses pra que falte dor Ai, Tiana, open the door, por favor! Eu até prometia: a netinha, viria linda um dia se você tivesse a gentilieza de me emprestar essa represa que é onde foi dar o meu coração. 28 Elisa Lucinda Entenda Tiana: Não quero tua solidão e tampouco quero a minha Essa é a situação. Mas a culpa é sua! Quem mandou fazer bem feito? Os olhinhos puxadinhos a boca, o umbiguinho. a mão suave de armarinho a voz e até o carinho. Podia até ser caprichosa, mulher sem precisar exagerar Mas você passou da dose fez acabamento e até na pele ton-sur-ton. Vim pedir teu filho um cadinho pra brincar comigo até o sol nascer. Eu vim pedir o seu. Um dia vão levar o meu sem nem pedir, sem nada. Porque a gente é só mesmo mala dessa tal criação dessa tal criatura e não vês a verdura desse meu olhar? Ai, Tiana, me desculpe, eu vou entrando... Me desculpe, eu vou levar. Amanhecimento De tanta noite que dormi contigo no sono acordado dos amores de tudo que desembocamos em amanhecimento a aurora acabou por virar processo. Mesmo agora quando nossos poentes se acumulam quando nossos destinos se torturam no acaso ocaso das escolhas as ternas folhas roçam a dura parede. nossa sede se esconde atrás do tronco da árvore e geme muda de modo a só nós ouvirmos. Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos o pio de todas as asneiras todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha para um dia partirem em revoada. Ainda que nos anoiteça tem manhã nessa invernada Violões, canções, invenções de alvorada... Ninguém repara, nossa noite está acostumada. 29 Elisa Lucinda O Amor de Dudu nas Águas Estou virando uma menina tornada mulherinha com tanta coleirinha de maturidade ainda assim me sinto parida agora tenra, maçã nova nova Eva novo pecado. Tudo gira e eu renasço menina vestido curto na alma de dentro... Deixo no mar os velhos adereços a velha cristaleira, os velhos vícios as caducas mágoas. Nasce a mulher-menina de se amar com água no ventre e no olhar. Nasce a Doudou das Águas. ©Protegido pela Lei do Direito Autoral LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam mantidas. 30 Elisa Lucinda