Intelectuais e Messias em Belo Monte

Transcrição

Intelectuais e Messias em Belo Monte
Intelectuais e Messias em Belo Monte
O messianismo na literatura,
segundo as representações da Campanha de Canudos
em Euclides da Cunha e Mario Vargas Llosa
Julio Souto Salom
[email protected]
Dezembro de 2010
Resumo
Interesa-nos neste trabalho, conhecer estas relações estabelecidas entre o ámbito inteletual
académico e os movimentos religiosos populares de carácter messiánico. Para isso, compararemos
as leituras da campanha de Canudos (1897) realizadas por Euclides da Cunha (Os Sertões, 1903) e
Mario Vargas Llosa (La guerra del fin del mundo, 1981), entendendo o registro literário da “cultura
elevada” como a visão acadêmica da religiosidade popular. Entendemos que no enfrontamento
destas dos cosmovisões, o “intelectual” estabelecerá uma serie de mecanismos de desqualificação
do movimento retratado (como bárbaro e fanático), ao mesmo tempo que constrói a sua posição de
autonomia respeito ao resto de campos sociais (militar, político, econômico...), com o objetivo de
realizar uma “crítica da civilização”.
Finalmente, nos aprofundamos no conhecimento destes movimentos memessiânicos apoiándonos
na ampla teoria sociológica de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Lísias Nogueira Negrão, com a
intenção de comparar as diferentes perspectiva antropológicas e sociológicas, com as visóes
literarias estudadas.
1
Sumário
Intelectuais e Messias em Belo Monte.................................................................................................1
1.Os Sertões de Euclides da Cunha.................................................................................................3
1.1. A cenação literária da historia: vendéia republicana contra os frigios do interior...............3
1.2. Messianismo: barbárie da terra, atavismo do homem.........................................................4
1.3. Intelectualidade: o Zola brasileiro ou “Euclides jamais foi moderno” ...............................5
2. La guerra del fin del Mundo, de Mario Vargas Llosa..................................................................7
2.1. Heróis e anti-heróis na guerra..............................................................................................7
2.2. Utopistas são fanáticos: a incompreensão e o fogo..............................................................9
2.3. Narradores, escrivães e escrevinhadores: cachorros ou vira-latas.....................................10
3. Messianismo na literatura e nas ciências sociais.......................................................................12
3.1. Reflexos de Belo Monte: da raça ao subdesenvolvimento.................................................13
3.2. O progresso como doutrina messiánica?............................................................................15
3.3. O intelectual como profeta?...............................................................................................17
REFERÊNCIAS.............................................................................................................................18
2
1. Os Sertões de Euclides da Cunha.
Publicada por primeira vez em 1905, Os Sertões convertiu-se em símbolo nacional e monumento
literário fundamental para a consolidação do estado-nação brasileiro. Comparável á obra de
Domingo Faustino Sarmiento na Argentina (Civilización y Barbarie), apressenta
paradigmáticamente o paradoxal drama da construção nacional latinoamericana que opõe
modernidade a atavismo, numa luta agonística: “estamos condenados à civilização”; “ou
progredimos, o desapareceremos”. Mas à diferência do entusiasmo do político argentino,
encontramos na obra de Euclides um tom trágico, um “mea culpa nacional generalizado”
(GALVÃO, 2001), que reconhece, na mesma historia fatal do progresso, um crime que precisa ser
denunciado e nunca esquecido.
1.1. A cenação literaria da historia: vendéia republicana contra os
frigios do interior.
Galváo (1974), analisando os artigos que Euclides foi escrevendo no calor da hora para o jornal O
Estado de São Paulo, coloca que a redação d'Os Sertões incorpora um processo de reflexão e
elaboração muito maior que a simples compilação e cronologia dos artigos. Na posterior elaboração
dos acontecimentos, Euclides serve-se de diversos procedimentos literarios (polifonia,
intertextualidade) para organizar o arco narrativo num esquema escatológico, que da génesi das dois
primeras partes, chega até o apocalipsis das últimas. Neste mesmo plano literario localiza Zilly
(2001) o principal aporte d'Os Sertões, na construção duma “coerência estética”. Assim,
conseguem-se articular as diferentes doutrinas moráis e teorias filosóficas, antropolôgicas e sociopolíticas, que em múltiples contradições introducem a tensão na obra: o heroismo épico da
população rebelde vs. a degeneração do mestiço e a ignorante mística messiánica do Conselheiro; a
imperiosidade do progresso e o racismo das teorias postivista-evolucionista vs. a barbarie do crime
que foi o exterminio dos jagunços.
Para a apresentação de estos fatos com um tom universal, Euclides serve-se de dois modelos: Victor
Hugo (Noventa e tres), e Ernest Renan (ideia da “história total”, apresentação da seita milenarista
dos frigios em Historia do catolicismo). Como coloca Decca (2001)
Digamos, metafóricamente, que os grandes acontecimentos merecem apenas um
historiador e que Euclides preparou-se para a grande obra antes mesmo da ocorrência
do grande acontecimento.
Desta forma, aproveitándo-se da ideia da vendéia republicana que escrevera Victor Hugo, pretendese contribuir à consolidação da República, mediante a cenação de uma grande batalha na que ista é
vitoriosa. Mas os jagunços do Conselheiro não encaixaban com a teoria da conspiração monarquista
auspiciada pelo imperio británicos1, e apresentados como miseráveis camponeses sertanejos estes
não ostentariam a “grandiosidade” que deveria se esperar dos “inimigos da República”. Por tanto,
Euclides, que viu-se obrigado a recorrer ao imaginario construido pelo historiados Ernest Renan: a
dos milenaristas frigios.
1 Teoria que Euclides suscribiu num primeiro momento, como se reflete nos seus artigos do O Estado de São Paulo,
ainda que a desaparece completamente n'Os Sertões.
3
1.2. Messianismo: barbarie da terra, atavismo do homem.
Relendo as páginas memoráveis em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu
belo estilo, os adoidados chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência
integral de suas aberrações extintas. Não há desejar mais completa reprodução do
mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas
palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os
povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado.
Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso de uma perspectiva através dos
séculos...
(Os Sertões, “As prédicas” em “O Homem”)
A apresentação do messianismo que fai Euclides encaixaria no marco geral de “Civilização versus
Barbarie”. O messianismo sebastianista aparece como uma patologia psico-social, comparada ao
antropismo selvagem, ao animismo do negro ou ao misticismo católico medieval; uma doença
coletiva semelhante a descrita por Gustave LeBon para a psicologia das massas. É interessante
como essa imagem repete-se não só nas menções explícitas (o sertanejo como “um forte”, Antonio
Conselheiro como “um gnóstico bronco”, “um documento vivo de atavismo”, ou “um heresiarca do
século II em plena idade moderna”), mas tamén como aparece repetidamente em todas as imagems
metafóricas. Talvez uma das máis gráficas imágems do movimento messiánico como alienação
coletiva, seja a utilizada para descrever do estouro da boiada:
...milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indestructível, de
animal fantástico, precipitado na carreira doída.
(Os Sertões, “Estouro da boiada”, em “O Homem”).
Básicamente, esta seria a que Pereira de Queiroz (1965), e posteriormente Negrão (2001), definiria
como “ótica oficial” das instáncias políticas e intelectuáis:
Orientando-se sobretudo por valores e sentimentos tradicionais, em descompasso com
os ideais de modernidade do momento, tais movimentos tendem a ser vistos pelas
vigências política e intelectual como irracionalidades e arcaísmos, frutos da ignorância
e do fanatismo. Sendo seus adeptos historicamente recrutados entre indígenas
destribalizados, populações camponesas, povos colonizados e setores populacionais
marginalizados ou excluídos da moderna civilização ocidental (os “primitivos da
modernidade”, segundo Hobsbawm), tendem a ser interpretados, na ótica oficial, como
arcaísmos deletérios e antiprogressistas, quando não como episódios de loucura
coletiva, a que se chega a partir de efeitos desencadeadores da loucura do líder.
(Negrão, 2001: 120)
Para apressentar esta caraterização, o positivismo de Euclides articula um conjunto de relações
complexas entre a trascendência/immanência da natureza/sociedade. O objetivo é desvelar as
determinações, as leis causais que generam essa mentalidade patológica. Tuda a primeira parte, “A
Terra”, poderia ser considerado como esta exposição causal de evidências que explicaran a
religiosidade sertaneja exposta na segunda parte, “O Homem”. Mas ao mesmo tempo, abrem-se
espazos para o progresso e a capacidade de ação sobre a natureza (“como se faz...” e “como se
extingue o deserto”). Encontramos, então, uma dupla determinação: a terra determina a sociedade,
mas ao mesmo tempo o homem, na sua negligência, não realiza o trabalho preciso para modificar a
terra. Iste é o doble nó da crítica moderna que planteja Latour (1994):
É nesta dupla imagem que reside a potência crítica dos modernos: podem mobilizar a
natureza no seio das relações sociais, ao mesmo tempo em que a mantêm infinítamente
distante dos homems; são livres para construir e deconstruir sua sociedade, ao mesmo
4
tempo que tornam suas leis inevitáveis, necessarias e absolutas. (Latour, 1994: p.43)
Além do meio natural, o segundo gran fator explicativo deste “atavismo”, é a raça. Tal e como
colocara Ortiz (1985: 15), “os parâmetros raça e meio fundamentan o solo epistemológico dos
intelectuais brasileiros de fins do século XIX e início do século XX”. No mesmo plano que as
explicações de Nina Rodrigues, Euclides ve na miscigenação um fator de corrupção e degeneração:
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. (…) A
mestiçagem extremada é um retrocesso. (…) De sorte que o mestiço – traço de união
entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares –
é, quase sempre, um desequilibrado.
(Os Sertões: “Um paréntesis irritante” em “O Homem”).
Visto então que, frente a estos universos incommensuráveis (“ao interior e o litoral não só o separaa
terra, mas tamém 300 anos...”), a comunicação será impossível, cal será o paper do inteletual?
1.3. Inteletualidade: o Zola brasileiro ou “Euclides jamais foi moderno”
Diré la verdad, pues prometí decirla si la justicia, tras la apelación legal, no se aplicaba
plena y enteramente. Mi deber es hablar, no quiero convertirme en cómplice. El
espectro del inocente que expía, en la más atroz de las torturas, un crimen que no ha
cometido, no me dejaría dormir por las noches.
Y le gritaré esta verdad a usted, señor Presidente, con todas las fuerzas de mi
indignación de persona honrada. (…) Lo repito con una certeza más vehemente: la
verdad se ha puesto en marcha y nada la detendrá.
(Émile Zola, Yo acuso, en Carta al señor Félix Faure, presidente de la República.
Publicada en L'Aurore el 13-01-1898)
Aproximadamente na mesma data que Euclides escrevia Os Sertões na sua cabana de zinco em São
José do Río Pardo, Zóla escrevia em Paris fervorosos manifestos clamando pelo crime cometido
contra Alfred Dreyfus2. Com o poderoso manchete de J'accuse, Zola adreçava-se ao presidente da
República, enchendo esse “eu” com uma identidade particular, concreta, carregada de um capital
específico criado no campo autónomo da literatura. Segundo o análisi de Bourdieu (1992), este
episodio de Zola e o caso Dreyfus será o paradigma dum “segundo estadio” de constitução da
autonomia do campo literario, no que, depois de conquistar a autonomia respecto aos campos
hegemónicos (político ou económico), o capital específico do campo académico/literario pode-se
inverter noutros campos, em envites de peso significativo (retornando, por exemplo, ao campo
político como “proclama” ou “denúncia”).
Podemos suponer que, com o mesmo sincretismo que se assumia o positivismo de Comte o as
categorias climatológicas de Hegel, Euclides incorporará a ideia do escritor como “testemunha da
verdade”, asumindo issa representação heróica do escritor independente 3. Nessa “experiência
2 O caso Dreyfus foi um escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do século XIX.
Centrava-se na condenação por alta traição de Alfred Dreyfus em 1894, um oficial de artilharia do exército francês,
de religião judaica. O acusado sofreu um processo turbio conduzido a portas fechadas. Tudo aponta que Dreyfus era,
em verdade, inocente: a condenação baseava-se em documentos falsos. Quando os oficiais de alta-patente franceses
se aperceberam disto, tentaram ocultar o erro judicial. A farsa foi acobertada por uma onda de nacionalismo e
xenofobia que invadiu a Europa no final do século XIX. [Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus]
3 Tal e como se reflete, por exemplo, nas suas palavras a propósito de Gregório de Matos:
“Mais do que o homem, biologicamente falando, Gregório de Matos foi um admirável órgão social quase passivo,
feito uma alavanca, cuja força eram as próprias forças coletivas: uma máquina simples em que se corporizaram
5
reveladora” que seria o viagem a Canudos, Euclides acabaria estabelecendo que a barbarie não só
está no lado dos primitvos sertanejos, mas tamén os modernos republicanos estam em perpetuo
risco de cair no crime. Neste contexto, súa função social, como intelectual independente, seria a de
denunciar. A obra funcionará como proclama política contra os atores hegemónicos depóis da
masssacre de Canudos: contra o poder político republicano, os mandos militares, os dirigentes do
imperio que não souberon integrar às populações bárbaras ao processo civilizatorio. Ao igual que
Zola, resalta a sua independência e desinterés para o poder, resaltando sua servidumbre ética
unicamente à verdade:
Não tive o intuito de defender aos sertanejos porque este não é um livro de defesa; é,
infelizmente, de ataque.
Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador,
com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam
tão lastimáveis selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade.
(Euclides da Cunha, Os Sertões: “Nota à 2a edição”).
Ao mesmo tempo, o Euclides jornalista, que haveria conseguido relativa independência económica
e prestigio inteletual com seu trabalho na imprensa, convertirá Os Sertões no principal capital para
seu fundamental envite personal: o assalto definitivo ao campo literario acadêmico. Como campo
autónomo, iste campo está regido por umas leies próprias e umas autoridades específicas: crítica,
impremsa, outros escritores, leitores/público...
Euclides, como participante subsidiario experimentado neste campo, conhecia mui bem estas leies,
e não hesitou em utilizar todos os mecanismos ao seu abasto para converter Os Sertões no seu salto
à consagração. Isso pode apreciar-se na sua obsesão pela perfecção da sua primeira edição,
chegando a corregir “todos os exemplares a ponta de canivete e bico de pena, tanto o desesperaram
os erros tipográficos”4. Ou depóis, no processo de ingresso à acadêmia, contabilizando em suas
correspondências os votos “certos” com que podia contar:
Rio Branco, Machado de Assis, Arthur Azevedo, João Ribeiro, Verissimo, Lúcio de
Mendonça, Afonso Celso, Coelho Neto, Filinto, Araripe, Raimundo Correia, Garcia
Redondo e, provavelmente, Oliveira Lima, Laet e alguns outros. Dois, Arinos e
Augusto de Lima, que eram certíssimos, ainda não tomaram posse. Como vês, se não
triunfar tenho em compensação a elite dos nossos homens de talento ao meu lado. Nem
quero outra vitória. Sei que os outros concorrentes cavam danadamente, e é possível
que algum deles triunfe. Mas... o grande Paul-Louis também foi derrotado.
(Euclides da cunha a seus amigos, p. 106)
Issa mesma atitude de desinterés interessado (Bourdieu, 1992) que vimos acima, se repetira no
momento em que mostra reticências a aceitar a cátedra de lógica no colégio Pedro II, já que foi
nomeado no cargo a pesar de quedar 2º, por força da interferência do Barão do Rio Branco, Coelho
Neto e outros amigos, suscitando “comentarios desfavoráveis que o encheran de amargura”5.
Observamos, então, a dupla potência da crítica, que moviliza tudos os recursos das ciências naturáis
ou humanas (verdade positiva), e da cenação literaria, da estética e da retórica (épica do heroi
trágico), para realizar uma crítica à civilização no seu conjunto. Não insistiremos, de momento, em
muitas tendências da raça nova que surgia. Foi heroe na alta significação dada à palavra pelo dramático Carlyle:
prefigurou, fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos aspectos de um povo. E passou pela vida obedecendo
à fatalidade mecânica de uma resultante intorcível: incorrigível, rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam
morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou regras para estes avant-coureurs das nacionalidades, títeres
privilegiados, arrebatados pelas leis desconhecidas da história. Foi um grande sacrificado e desenvolto folgazão!”
(Em Euclides da Cunha a seus amigos, p. 91).
4 Segundo se explica nas notas à segunda edição d'Os Sertões.
5 Ídem nota 4.
6
esta aparente contradição entre a ética da independência e a participação ativa nas dinâmicas do
campo. Retomando a Latour, limitaremo-nos a destacar a eficiência desta crítica moderna:
Tornou-se mesmo possível aos invencivíveis modernos combinar as duas [formas de
ciência], tomando as ciências naturáis como forma de criticar as falsas pretensôes do
poder e utilizando as certezas das ciências humanas para criticar as falsas pretensões
das ciências e da dominação científica. (…) Quem nunca sentiu vibrar dentro de si esta
dupla potência, ou quem nunca foi obstinado pela distinção entre o racional e o
irracional, entre falsos saberes e as verdadeiras ciências, jamais foi moderno”. (Latour,
1994: 41).
2. La guerra del fin del Mundo, de Mario Vargas Llosa.
Segundo ele mesmo, o escritor peruano Mario Vargas Llosa descobriu Os Sertões em 1977, e desde
então començou um processo de documentação e criação que culminaria com a publicação, em
1981, de La guerra del fin del mundo, romance no que recria a campanha de Canudos. O trablaho
foi polémico para a crítica mais especializada na obra euclidiana. Wellnice Nogueira Galvão, por
exmplo, comentava numa entrevista6:
Não penso que tenha sido uma homenagem. Ele [Vargas Llosa] pegou Os Sertões, uma
obra de arte, um monumento, uma coisa complexíssima, e transformou num best-seller,
tirando toda essa complexidade, tornando uma coisa banal, e vendeu montanhas. O
imperdoável é que ele tenha colocado Euclides, enquanto personagem de seu livro,
como um jornalista míope e que perde os óculos na guerra. Isso é demais! É fácil
proceder a uma análise psicanalítica: penso que ele tinha tanta inveja de Os Sertões que
diminuiu o autor, tornando-o simbolicamente um míope sem óculos.
Desde o nosso punto de vista, a apresentação que faz Vargas Llosa de Euclides da Cunha é bem
mais complexa que issa presunta castração simbólica. Para nossa leitura da relação entre a
intelectualidade e o messianismo, consideramos máis interesantes os comentarios de Alfredo
Monte, titulados “um neoliberal no sertão”7. Todavía, somos cientes que esse título não reflete a
complexidade das relações simbólicas da obra, que começaremos a esboçar a continuação.
2.1. Herois e anti-herois na guerra
Como o mesmo Vargas Llosa especifica (2010), sua principal aportação sobre a matriz histórica de
Canudos8 é, uma vez mais, de carater literario, no montagem e apresentação dos mesmos fatos
relatados por Euclides. Para esta re-articulação, não só seram relevantes os artificios narrativos na
organização da temporalidade, com técnicas de montagem cinematográficas (por exemplo, tuda
6 No número 154 (março 2010) da Revista-e do Portal SESCSP, disponĩvel em
[http://www.sescsp.net/sesc/revistas/revistas_link.cfm?
Edicao_Id=368&Artigo_ID=5629&IDCategoria=6482&reftype=2]
7 Preparados para o I- Simpósio de Letras (22/26 nov. 2010) da UNIMES VIRTUAL, promovido pela Universidade
Metropolitana de Santos, cujo tema é “O messianismo sob a ótica da literatura”. Disponível em
[http://armonte.wordpress.com/2010/11/07/a-guerra-do-fim-do-mundo-a-sabedoria-epica-e-o-retrocesso-ideologicode-mario-vargas-llosa/]
8 Ainda que Os Sertões seja a principal fonte de Vargas Llosa, não podemos considerar que seja a única. Vargas Llosa
faz uma reapropiação do fato histórico, não só do romance de Euclides.
7
parte IV, articulada em torno duma conversação que acontece anos depóis da guerra, permetendo
apresentar a narração da guerra como flashbacks ou lembranças, dosificando habilidosamente a
informação de que dispõe o leitor), mas especialmente a caraterização individualizada dos
personagems. Se no romance de Euclides, estes perdiam releváncia frente a monumentalidad dos
acontecimentos, aquí a voz narrativa será importantíssima, para criar um efeito “polifónico” no que
as diferentes perspetivas psicológicas e cosmovisões enfrentadas, dialogam em primeira persona,
com abundáncia dos fragmentos introspetivos em estilo indireto livre. Para o nosso estudo, os
principáis personagems aportados por Vargas Llosa seram:
–
Galileo Gall: um anarquista escocés aficionado à frenologia, que aparece em Canudos por
diferentes acasos narrativos. Apresentado extensamente na primeira parte, numa constante simetria
com Antonio Conselheiro, será descrito como um fanático do progresso social e a liberação da
humanidade.
–
Coronel Antonio Moreira César (magnificado): a pesar de que o cornel já aparece na obra
de Euclides, no romance de Vargas Llosa adquere uma dimensão narrativa muito superior9.
Apelidado de “Cortapescuezos”, e apresentado como o antagonista natural de Antonio Conselheiro
e figura paralela à de Galileo Gall, representará de novo o fanatismo do Progresso Republicano na
sua parte máis estritamente bélica.
–
Barão de Cañabraba (Jeremoabo)10: fazendeiro latifundista, dono de Canudos e grande
dominador tradicional da região de Bahia, as menções a Cañabrava aparecem desde os primeiros
capítulos, porém o personagem não aparece direitamente até a parte III, paralelamente à irrupção de
Moréira César. Frente ao republicanismo, o Barão representa o poder tradicional, ligado as
instituções monarquistas e a economia agraria. Como contraponto do Barão, ademas do coronel,
aparecerá o líder do Partido Republicano da Bahia Epaminondas Gonçalves, ademáis diretor do
Jornal de Noticias.
–
“Jornalista miope” (Euclides da Cunha)11: como corresponsal do Jornal, o jornalista chega
a Canudos seguindo a expedição de Moreira César. Ao final da parte III, o jornalista cruza ao bando
dos jagunços, convertendose no único personagem que se move livremente nos dois frentes em luta.
Tuda a parte IV está estruturada em torno a sua conversação com Cañabrava, na que relata “desde
dentro” a última invasão e a caída de Belo Monte. Ademáis destes dos personagems, o jornalista
estabelecerá interações interesantes com Jurema, “o Anão”, e “o Leão de Natuba”, que serám
abordadas depois.
9 Mentras que em Os Sertões, a terceira expedição se resolve apenas em 50 pp. (das quasi 500 do romance), e a
apocalíptica última expedição cobra muita máis releváncia, em La guerra del fin del mundo ista é apresentada no
inicio da Parte II, a campanha e figura de Moreira César articulará tuda a Parte III, ocupando em total máis dum
terço do livro (a trama central).
10 Por alguma razão, Vargas Llosa decide ocultar no pseudónimo de “Cañabrava” a figura de Cícero Dantas Martins,
primeiro e único Barão de Jeremoabo. A participação deste personagem real nos eventos de Canudos pode seguir-se
na leitura das suas correspondências publicadas em Canudos: Cartas para o Barão (2001). Além das relações
evidentes, a tesis da relação Cañabrava/Jeremoabo é suportada por Thiago Pinto Dantas, descendente direto de
Cícero Dantas, quem tamén realiza um depoimento da visita de Vargas Llosa ao casarão de Camuciatá, (“Columbí”,
no romance). [http://www.museudapessoa.net/blogs/historiadodia/index.php?i=211]. Si a ocultação do nome
responde a motivações éticas ou de respeito ao individuo, poderíamos preguntar-nos porque não se faz o mesmo
com outros personagems, como o mesmo Moreira César.
11 Pese a diversas divergências ou inconcreções (baiano em vez de paulista, miopia...), neste caso, a relação emtre o
personagem do romance (que permanece sem nome) e o personagem histórico (o Euclides jornalista e aspirante a
literato), é tão evidente que não precisa máis aclarações. Só lembrar que o romance de Vargas Llosa está dedicado “a
Euclides da Cunha, no outro mundo, e neste mundo, a Nélida Piñon”.
8
2.2. Utopistas são fanáticos: a incomprensão e o fogo.
Em 1997 Mario Vargas Llosa deu um disscurso na academia brasileira de letras 12, na que falando de
La guerra del fin del mundo, dava a súa explicação da liderança carismáticatica de Antonio
Conselheiro:
O que Antonio Conselheiro proporcionou àqueles milhares de homens e mulheres,
talvez os mais desamparados do país, para que chegassem ao ponto de se imolar por
ele? Fiquei com essa pergunta em minha mente obsessivamente durante todos aqueles
anos, enquanto estudava as interpretações contraditórias sobre Canudos, sem encontrar
uma resposta satisfatória, seja naqueles que o explicam como um caso simples de
fanatismo religioso e de barbárie social, seja nos que quiseram ver em Antonio
Conselheiro uma espécie de Lenin do sertão. (…)
Aquelas vidas precárias, eternamente ameaçadas pela seca e pelos bandidos, dizimadas
pela fome, pelas doenças, pela violência, que conviviam com a catástrofe, estavam
predispostas a admitir a proximidade do Apocalipse e a acreditar que a vida—a história
—era uma simples antessala de outra vida melhor e mais verdadeira: a morte.
Pese a sua declarada distáncia (“não e só fanatismo religioso nem barbarie social”), a representação
que construi Vargas Llosa dos movimentos messiánicos não é demasiado diferente da representação
euclidiana. Um contexto social miserável e umas condições naturáis inhóspitas criam um contexto
ótimo para a fantasia escatológica do messianismo fanático, que não deixa de ser apresentado como
“patologia” ou “enajenação”. Ista representação constrúe-se principalmene em toda a primeira
parte, na que se narran múltiplos relatos de sertanejos que, vítimas de misérrimas circunstáncias,
acavam uníndo-se ao Conselheiro. É notável como a introspeção psicológica evita a figura do
Conselheiro, penetrando porém nos diferentes indivíduos que compõem seu séquito: crianças orfas
como Antonio “Beatinho”, criminosos capangas como Paejú ou João Abade, escravos fugidos como
João Grande, ou comerciantes arruinados como os irmãos Vilanova. Em todos os casos, miseráveis
e margináis ávidos de perdão e compasão.
Mas paralelamente a ista composição poliédrica do séquito do Conselheiro, o outro personagem que
articula a Parte I é Galileo Gall, o revolucionario frenólogo. A apresentação do personagem e da
sua dotrina faz-se num tom paródico e caricaturesco, tam ridiculizante como o dos apośtoles do
Conselheiro:
[Galileo Gall] había nacido a mediados de siglo, en un poblado del sur de Escocia
donde su padre ejercía la medicina y había tratado infructuosamente de fundar un
cenáculo libertario para propagar las ideas de Proudhon y Bakunin. Como otros niños
entre cuentos de hadas, él había crecido oyendo que la propiedad es el origen de todos
los males sociales y que el pobre sólo romperá las cadenas de la explotación y el
oscurantismo mediante la violencia. (p. 12)
Na sua perspetiva “revolcionaria” de Canudos, presentada em um tom histriónico e cegado pelo seu
entusiasmo, podemos encontrar o que Negrão chamará de “vertente ficcionista”.
Entre os inúmeros autores que estudaram os maiores movimentos messiânicos
ocorridos no país distingue-se uma espécie de “vertente ficcionista”(...). Segundo essa
vertente, os líderes messiânicos teriam sido líderes revolucionários das massas
camponesas e suas “cidades santas”, comunidades socialistas precursoras do futuro das
sociedades modernas. (Negrão, 2001: 120)
12 “Luces e Sombras de Canudos”, em Sabres e Utopias (Mario Vargas Llosa, 2010)
9
O tercer vértice do fanatismo, desta vez no progressismo republicano, o completa o coronel
Moréira César. Isto é especialmente claro na interação Moréira César / Cañabrava (pp. 117-121).
Frente aos intentos de cordialidade e diálogo do Barão nordestino, o coronel repúblicano só contesta
com frialdade e dureza: “Usted y yo somos enemigos, nuestra guerra es sin cuartel y no tenemos
nada que hablar”. A condena de Vargas Llosa destos personagems utopistas/fanáticos, concluirá na
súa violenta morte.
Frente a estos tres “fanáticos”, o único que parece aportar sentido é o Barão de Cañabrava, que é
capaz de dialogar inclusive com seus piores inimigos, como Moreira César, o jagunço Paejú,
Galileo Gall ou, finalmente, com seu rival político republicano, Epaminondas Gonçalves. Será entre
estes dois políticos que se devolva o equilibrio e a paz à região de Bahia, mediante um pacto
oligarquico no que os monarquistas de Cañabrava “cedem o passo” aos republicanos de
Epaminondas. Os monárquicos só pedem, porém, umas condições: “que no se toquen las
propiedades agrarias ni los comercios urbanos. Ustedes y nosotros lucharemos contra cualquier
intento de confiscar, expropiar, intervenir o gravar inmoderadamente las tierras o los comercios”.
Desta forma, num pacto de cordialidade, o Barão se retira elegantemente da vida política deixando
passo aos líderes republicanos. Na mudança, não se conseguirá a redestribução da propriedade
agraria dos latifundiarios, nem nenhum outro processo significativo para a justiça social ou os ideais
proclamados por Galileo Gall ou Moréira César, mas Vargas Llosa não parece muito preocupado
com isso, já que:
Después de haber soñado también, de joven, con la sociedad perfecta, hace treinta años
me convencí de que es preferible, para la supervivencia de la civilización humana,
conformarse con los lentos y aburridos progresos de la democracia, en vez de buscar la
inalcanzable utopía, que genera hecatombes.
(Mario Vargas Llosa, Carta a Kezaburo Oé)
2.3. Narradores, escrivãos e escrivinhadores: cachorros ou vira-latas.
...Por su cartografía de las estructuras del poder y las afiladas imágenes de la
resistencia, rebelión y derrota del indivíduo.
(Peter Englund, anuncio del premio Nobel de Literatura para Mario Vargas Llosa13)
Assumindo esta renúnicia as grandes utopias da modernidade, devemos repetir a pregunta que
fizemos a propósito de Euclides (1.2): qual é a posição e função do escritor (do “intelectual”) neste
contexto de “progresso em democracia”? Para dar resposta, sem sair do romance estudado,
compararemos a actuação de tres personagems que representariam en diferentes versões iste mesmo
rol: o anão, o jornalista miope, e o Leão de Natuba.
O anão é membro de um circo ambulante, no que participa como trovador contando ao público
historias medievais. Com o avance da guerra, o circo vai descomponhendo-se lametávelmente,
quedando finalmente formado por o anão, um idiota contorsionista, e uma mulher barbuda; aos que
se unem Jurema e Galileo Gall no seu errático caminhar. Chegados a um povo devastado pela
guerra, as doenças e as secas, o anão começa seu espetáculo esperando obter algo de jantar, até que
é interrumpido por Galileo Gall e suas proclamas revolucionarias: “Vuestro mal se llama injusticia,
abuso, explotación. No os resignéis, hermanos. Rebelaos como vuestros hermanos de Canudos!...”.
Mas, frente a essas proclamas, a barbuda reage:
13 Disponível em [http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2010/announcement.html], a dezembro de
2010.
10
“Estupido! Estupido! Nadie te entiende! Los estás poniendo tristes, los estás
aburriendo, no nos darán de comer! Tócales la cabeza, diles el futuro, algo que les
alegre!” (p. 128).
Ista seria, aproximadamente, a apresentação que faz Vargas Llosa da literatura popular da tradição
oral: um espetáculo máis vinculado ao entretenimento, ao corporal e as necessidades coiunturales
do narrador, que a aspirações de ordem espiritual. Igualmente, nos capítulos em que o anão comta
histórias para João Abade, o narrador aparece como um simples repetidor invariável, que busca
entretener a seu público, sem capacidade de interpretar o obter alguma sabiduria da súa narração.
Curiosamente, esta perspetiva contrastará radicalmente à de Walter Benjamin (1936), que vincula a
narração à experiência e à memória, sendo o narrador uma especie de “artesão” das experiências
humanas, gerador de sabiduria e capaz de colocar “conselhos” como proposições e incitações à
reflexão. Em contraposição à narração como sabiduria, Benjamin coloca a informação como
conhecimento registrado, impessoal, inteligível pela audiência, que não gera provocações e pode ser
fácilmente verificado.
No plano da informação poderiamos contemplar ao jornalista miope, especialmente nos momentos
que acompanha ao Coronel Moréira César. E em paralelo a este, aparece, no lado dos jagunços o
Leão de Natuba, um humano deformado que caminha a quatro patas, que aprendeu a ler e escrever
sem que ningém lhe ensinara, e que dedica-se a registrar, “para a posteridade”, cada uma das
palabras do Conselheiro14. Significativamente, estes dos personagems são paralelamente
caraterizados com rasgos de cães15: o conselheiro acariciando entre seus geolhos a cabeça do Leão
de Natuba, ou o jornalista sentado no chão à porta da cabana do coronel Moreira César:
El periodista miope se deja caer en el suelo, a la entrada, como outras veces, pensando
que su postura, presencia, allí, son las de un perro, y que es a un perro sin duda a lo
que más debe asociarlo Moreira César. (p. 159)
No universo simbólico de Vargas Llosa, o cachorro é um elemento muito importante, que adquere
diferentes significações nos múltiples contextos. Assim, vemos como o cão passa de “cachorro de
companhia”, quando associado a um escrivão ligado a uma figura poderosa, até “virgalatas
devoradores de cadáveres”16, “encarnação do Mal” e representação do diabo e o anticristo, quando o
cachorro é livre e anda em bandas sem dono. O cão aparece como um animal flexível que podese
mover do lado da disciplina e a obediência ao lado da insumisão e a herejia. Assim, para explicitar o
peligro que o “intelectual” representa para o poderoso, Vargas Llosa faz dizer ao coronel Moréira
César:
Todos los intelectuales son peligrosos. Débiles, sentimentales y capaces de usar las
mejores ideas para justificar las peores bribonadas. El país los necesita, pero debe
manejarlos como a animales que hacen extraños. (p. 118)
14 Na 2ª Carta a Kezaburo Oé, Vargas Llosa refire-se ao Leão de Natuba como “un colega nuestro”. Em concreto: “A
mí me emocionó saber que, en esa sociedad de miserables, los más pobres entre los pobres del Brasil, alzados en los
sertones bahianos en una lucha imposible contra una República en la que ellos veían al Diablo, había un colega
nuestro, alguien que, armado con un lápiz y un pedazo de papel, libraba también una batalla, solitaria y difícil, para
merecer vivir.”
15 Nestos apartados, os cães são associados aos outros animáis de companhia que rodeian aos personagems poderosos:
o cabritinho do Conselheiro, o cavalo branco de Moreira César.
16 Nestos momentos, os cães são associados às ratas e aos urubús, como nos apocalípticos passagems fináis da toma de
Belo Monte: “...Se comían a los muertos. Los oía escarbar, morder, picotear. Los animales no se engañan. Saben
quien está muerto y quién no está. Los urubús, las ratas, no se comen a los vivos. Mi miedo eran los perros.” (p.302)
11
I a ação imprevisível e perigosa do “jornalista miope”, será escrever Os Sertões. Assim, na parte IV,
o jornalista reúne-se com o Barão de Cañabrava, para pedir-lhe trabalho 17, ao mesmo tempo que lhe
confessa sua grande preocupação: “Se están olvidando de Canudos”. Com a mesma retórica do
honor à verdade que vimos nas notas de Euclides e Zola, Vargas Llosa, por boca do jornalista,
coloca esse imperativo ético do escritor no plano da memória:
– No permitiré que se olviden. Es una promesa que he hecho.
– Como? - (…).
– De la única manera que se conservan las cosas: escribiéndolas. (p.194)
Curiosamente, nesta última cena de diálogo emtre Cañabraba e o jornalista (ou, metafóricamente,
Jeremoabo e Euclides), iste último vai progressivamente escurrindo do sofá no que começou
sentado, pulando até o chão, lembrándo-nos à imagem do Leão junto ao Conselheiro e de ele
mesmo junto a Moreira César:
El periodista miope se deslizó sorpresivamente al suelo. Lo había hecho varias veces
en el curso de la conversación y el Barón se preguntó si esos cambios de postura se
debían a su desasosiego interno o a que se le dormían los músculos.
Neste último diálogo, o jornalista carga seu relato de emotividad e sentimentalismo, logrando a
empatia com o Barão quando refere seu romance com Jurema (que faz ao Barão lembrar Estela, a
sua propria esposa, que perdeu a cordura por causa da guerra). Acabada a entrevista, o Barão parece
disposto a esquecer todo o assunto, mas uma visão casual na janela volta a lembrar-lhe tudo. O
relato -a novela- do jornalista converteu-se em memoria imborrável.
Devemos suponher, então, que esses “lentos e aburridos progressos da democracia” dos que falava
Vargas Llosa com seu colega Kezaburo Oé, seram conseguidos a partir do diálogo, da retórica, da
memoria, convencendo aos poderosos por meio do poder da palavra. Em calquera caso, são
métodos bem diferentes das revoluções violêntas plantejados por Galileo Gall.
3. Messianismo na literatura e nas ciências sociais
Um importante trabalho de estudo sociológico do messianismo vem-se realizando em Brasil desde a
publicação d'O Messianismo no Brasil e no Mundo (1965) de Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Neste livro, baseandose num amplo levantamento bibliográfico, realiza-se uma proposta
comparativa, com fim de estabelecer uma categorização aproximativa dos diferentes tipos de
movimentos messiânicos. Este trabalho encontrou continuidade no ámbito académico, por exemplo
nas continuas re-visitas de Lísias Nogueira de Negrão (2001) e seu grupo de estudo na USP. Neste
último punto de conclusões trataremos de ler a apresentação do messianismo que se realiza nos dos
romances comparados, baseándonos nos trabalhos acima mentados. Ao mesmo tempo,
aproximaremos a caracterização dos movimentos messiânicos ao modelo de intelectualidade
proposto por Euclides e Vargas Llosa.
17 Além, um trabalho que lhe permeta pagar o tratamento do anão, que virou seu amigo e agora está doente de
tuberculosi. Paralelismo literatura escrita / literatura oral?
12
3.1. Reflexos de Belo Monte: da degeneração ao subdesenvolvimento.
Como vimos acima, a apresentação do messianismo que coloca Vargas Llosa não é muito diferente
da que fizera Euclides, que ao mesmo tempo é a hegemônica no Brasil de finais do XIX18. Como a
mesma Pereira de Queiroz senahala:
Anteriormente a Euclides da Cunha, já Nina Rodrigues interpretara o movimento de
Canudos como uma reação contra os progressos dos grupos brasileiros litorâneos, que,
ao se imporem ao sertão, promoviam abalos numa sociedade extremamente
conservadora e considerada atrasada desde o punto de vista socio-cultural; Euclides da
Cunha não fez máis do que repetir e refinar muito do que dissera o grande médico
baiano, cujo trabalho foi escrito ainda quando se processava a reação de Antônio
Conselheiro, e publicado em 1897. (Pereira de Queiroz, 1965: 343)
Todavía, o análisi de Pereira de Queiroz parece contravenir issa perspetiva do movimento
messiánico como retrógrado e antiprogressista. De fato, as conclusões de Pereira de Queiroz e
Negrão sobre Canudos, que normalmente é considerado junto aos movimentos de Juazeiro e de
Contestado, é que “os messias sertanejos brasileiros teriam sido todos líderes reformistas, sem
qualquer veleidade de derrubada da ordem vigente”.
Em Juazeiro, por exemplo, o Padre Cícero fora o motor que transformara um lugarejo
perdido, de poucas casas, em cidade grande e movimentada, o maior centro econômico
de sua região. (Pereira de Queiroz, 1965: 344)
Posteriormente, Negrão (2001) sintetiza as conclusões de Pereira de Queiroz, resaltando alguns
puntos importantes:
–
O conflito eventualmente deflagrado entre os movimentos e a sociedade global
não se deveu à ignorância ou ao caráter retrógrado das massas ou de seus líderes, mas a
interesses políticos e econômicos locais e regionais e à intolerância das autoridades
civis e religiosas
–
Muitos movimentos, quando não hostilizados e tolerados em suas
especificidades, consistiram em interessantes experiências de desenvolvimento
regional, como alternativas aos impactos desestruturantes da modernidade política e
econômica sobre populações rústicas. Tais seriam os casos de Santa Brígida e de
Juazeiro; (Negrão, 2001: 122)
Porém, no esquema narrativo-ideológico de Vargas Llosa (3.2), a visão euclidiana era máis
interesante. Mas para poder reutilizar legítimamente ista apresentação, e contribuir à consolidação
do canon literario latinoamericano (3.3), Vargas Llosa deverá limpar a imágem “racista” das teorias
de Euclides, muito deteriorada no clima intelectual do seu tempo. Assim, defendendo-lhe, declarará
que:
O fato de que, nesse empenho totalizante, Euclides tenha cometido certas ingenuidades
ou erros -por causa da aplicação no Brasil das teorias etnocéntricas em voga na Europa
– não empobrece o seu efeito extraordinario.
(op. cit. in Sabres e Utopias)
Para isso, substitui o fator racial pelo cultural, segundo o paradigma hegemónico do
18 O sucesso destas teorias poderia dever-se à convergência com as necessidades ideológicas do projeto político do
momento. A inferioridade racial permeteria explicar o atraso do Brasil, ao tempo que a noção de mestiçagem
apontaria para a formação de uma possível unidade nacional (Ortiz, 1985).
13
desenvolvimento. Mas, para evitar uma imagem excesivamente determinista ou etnocéntrica, o
escritor desinvolve uma retórica do ceticismo, não exenta de ambiguedades e referências vagas.
Pretende-se que, nesta apoologia da dúbida, se evita a toma de posição clara, que porém aparece
representada na caracterização dos seitarios. No seu romance, as alusões à diversidade racial
práticamente desaparecem, excetuando algumas menções issoladas, nas que a ignorância e a
aculturação som máis importantes do que a raça como fator explicativo do messianismo. Assim, por
exemplo, o debate na barraca do estado maior do General Osear, no que este apressenta a imagem
da razão e a serenidade frente as explicações totalizantes dos coroneis fanáticos:
Uno de los capitanes, que es de Rio, dice que la explicación de Canudos es el
mestizaje, esa mezcla de negros, indios y portugueses que há ido paulatinamente
degenerando la raza hasta producir una mentalidad inferior, propensa a la superstición
y el fanatismo. Esta opinión es rebatida con ímpetu por el coronel Neri. (...) Él, como
creía el coronel Moreira César, a quién admira y casi deifica, piensa que Canudos es
obra de los enemigos de la República, los restauradores monárquicos, los antiguos
esclavócratas y privilegiados que han aazuzado y confundido a estos pobres hombres
sin cultura inculcándoles el odio al progreso.
El General Osear (…) queda cavilando en su hamaca. (…) Nada lo deja satisfecho.
(p. 270)
Desta forma, nesse limbo da indefinição e da dúbida próprio do seu modelo de intelectual, Vargas
Llosa pretende quedar inmune a toda associação com as teorias etnocéntricas ou as paranoias de
conspiração imperialista. Nesse mesmo sentido, o uso da frenologia joga um paper fundamental
nessa construção simbólica. Ciência legítima no momento de redação d'Os Sertões, mas
completamente desprestigiada no tempo de La guerra del fin del mundo, a frenologia é caraterizada
como um projeto de ingénuos, fanáticos e utopistas. E para isso, nada melhor que converter a
Galileo Gall – o fanático do progresso social – num revolucionario frenólogo, com constantes
alusões à teoria i prática desta disciplina ao largo do romance. Ao mesmo tempo, se apaga todo
possível contato emtre o jornalista miope (Euclides) e a frenologia, criando uma importante barreira
simbólica entre “racistas irracionáis” como Nina Rodrigues, e “respetáveis literatos” como Euclides
da Cunha. A única referência explícita na que o jornalista miope fala da frenologia, é cuando relata
ao Barão de Canabrava como o crânio do Conselheiro é levado ao profesor Nina Rodrigues para seu
análisi. O tom é, pelo menos, bastante cético:
Luego de un breve conciliábulo, se decidió decapitarlo, a fin de que la ciencia estudiara
su cráneo. Lo trajeron a la Facultad de Medicina de Bahía, para que lo examinara el
Doctor Nina Rodrigues. (…)
- Todo eso me recuerda a Galileo Gall -dijo el Barón, echando una ojeada esperanzada
a la huerta-. También él tenía una fé loca en los cráneos, como indicadores del carácter.
(p.248).
Uma vez limpado desse possível racismo determinista, Vargas Llosa não tem problema em plantejar
um paradigma evolucionista para a comparação das culturas, com uma perspetica unívoca do
desenvolvimento. Assim, no discurso na Academia de Rio, Vargas Llosa explica:
Simplesmente, quer dizer que em conflito emtre tempos históricos distintos, a
integração cultural dase, infelizmente, mediante a destruição da sociedade arcaica pela
moderna.
(op. cit. Sabres e Utopias)
Isse “infelizmente” remete direitamente ao “fatalmente”, que Sergio Buarque de Holanda colocava
como o adbervio máis usado pelo possitivismo do tempo de Euclides.
14
3.2. O progresso como doutrina messiánica?
Lembremos, então, as razões desse importante succeso do possitivismo no Brasil (e latinoamérica)
que coloca Sergio Buarque de Holanda em Raizes do Brasil (1936):
É possível compreender o bom sucesso do positivismo entre nós e entre outros povos
parentes do nosso, como Chile e o México, justamente por esse repouso que permiten
ao espírito as definições irresistíveis e imperativas do sistema de Comte. Para seus
adeptos, a grandeza, a importância desse sistema prende-se exatamente à sua
capacidade de resistir à fluidez e a movilidade da vida.
Frente à desarticulação de sistemas de crenças contradictorios, o positivismo máis ortodoxo (autodenominada “religião positivista” o “religião da humanidade” 19) árma-se de segurança, no
convencimento de que o emprego da ração terminará, de forma inevitável, sendo a única verdade.
Nessa crença inquebrantável na chegada da revelação, poderiamos encontrar um reflexo da etapa de
“espera messiánica”, senhalada por Pereira de Queiroz (1965) como elemento comum em todos os
movimentos messiánicos. Da mesma forma, a constante recurrência à figura de Comte e as suas
circunstáncias vitáis (em biográficas hagiográficas cargadas de daguerrotipos, dele e a súa viuva,
Clotilde de Vaux), poderiamos encontrar essa “primera chegada” que profetizaria o futuro melhor. E
o circuito de apóstoles no Brasil é certamente identificable, com Teixeira Mendes, Benjamin
Constant Botelho de Magalhães e Miguel Lemos, entre outros.
E é que uma das principáis questoes contemporáneas da sociologia do messianismo, coloca a
questão da possibilidade de emergência deste tipo de movimentos em sociedades modernas, não
vinculadas por relações de parentesco mas por outro tipo de vínculo social. No seu trabalho, Pereira
de Queiroz asociou o messianismo a sociedades tradicináis em etapa de crisi o mudança. Porém,
Negrão encontro em certas seitas ufológicas (ou ufólatras) caraterísticas semelhantes às
identificadas por Pereira de Queiroz, mas em sociedades contemporáneas nas que o principal
vínculo social não é o parentesco.
A incidência, mesmo que diminuta, de movimentos messiânicos em modernas
sociedades industriais parece contrapor-se à concepção de Pereira de Queiroz de que
tais movimentos seriam expressões exclusivas da dinâmica social de sociedades
tradicionais em momento de diluição de valores, que colocaria sua sobrevivência, sob
aquela forma, em perigo. Parece haver compatibilidade entre tais movimentos e a
sociedade moderna, haja vista os exemplos de casos norte-americanos mais antigos e
mais recentes . (Negrão, 2001: 126)
Além do movimento para a ufologia, poder-se-ia colocar nestes novos movimentos messiânicos
uma forte carga positivista20, estabelecendo-se um vínculo entre estes sistemas conceptuais que
tendem a hipertrofiar o futuro. Nunca essa cosmovisão do progresso certo e infinito foi melhor
retratada que na poderosa imagem do Angelus Novus colocada por Walter Benjamin, (1940):
19 A Igreja Positivista do Brasil teve gran importáncia na etapa de fundação da I República. Além, o fato de terem um
extenso site atualizado [http://www.igrejapositivistabrasil.org.br/], com referências a ceremonias dominicáis, faz
pensar que, pelo menos, o positivismo eclesiástico não está extinto.
20 Recentemente, Javier Izquierdo Martín (2010) senhalava a forte vinculação da seita ufológico-messiánica dos
raelianos (originada em França, mais expandida em diferentes países, principalmente Canadá) com a doutrina
positivista. O líder messiánico era caraterizado assim: “Original continuador de la tradición nacional francesa de
teología positiva inaugurada por Descartes y culminada por Comte, Raël es, sin duda, la estrella filosófica más
brillante que ha salido de Francia en los últimos doscientos años.” (p. 118). Ademáis, destaca a vinculação emtre
Raël e reconhecidos filósofos franceses contemporáneos, como Michel Serres (calificado de “o João baptista dos
raelianos”).
15
Hay un cuadro de Klee que se llama Angelus Novus. En él se representa a un ángel que
parece como si estuviese a punto de alejarse de algo que le tiene pasmado. Sus ojos
están desmesuradamente abiertos, la boca abierta y extendidas las alas. Y este deberá
ser el aspecto del ángel de la historia. Ha vuelto el rostro hacia el pasado. Donde a
nosotros se nos manifiesta una cadena de datos, él ve una catástrofe única que
amontona incansablemente ruina sobre ruina, arrojándolas a sus pies. Bien quisiera él
detenerse, despertar a los muertos y recomponer lo despedazado. Pero desde el paraíso
sopla un huracán que se ha enredado en sus alas y que es tan fuerte que el ángel ya no
puede cerrarlas. Este huracán le empuja irreteniblemente hacia el futuro, al cual da la
espalda, mientras que los montones de ruinas crecen ante él hasta el cielo. Ese huracán
es lo que nosotros llamamos progreso.
(Benjamin, 1940, Tesis VI)
Estas mesmas ideias, uma forma talvez menos exagerada -ou máis adequada ao contexto
académico-, poderiamos encontrar-las no marco teórico que foi conhecido como “o fim da história”.
Segundo o marco conceitual proposto, por exemplo, por Berger e Huntington (2003), as grandes
narrativa que marcaran o século XX foram superados depóis da guerra fria, com o triumfo de um
sistema democrático-capitalista com capacidade para gestionar calqueira conflito. Iste sistema
político-económico (o desenvolvido) se extenderá inevitávelmente pelo mundo, ajudado pela ação
de grupúsculos de elites influentes portadores desta cultura, o “faculty club”.
Adaptado ao campo das religiões, este marco teórico é caraterizado por Negrão (2005) como “o
clube dos intelectuáis desencantados”, encontrando, além de Berger, Pierucci dentro da academia
brasileira. Aquí, o invencível vetor é caraterizado por Berger como um processo de secularização,
que, baseándo-se no conceito weberiano de desencantamento, apontaria à perda de importáncia das
religiões no cenario contemporáneo. Mas, quando nas últimas décadas do século XX registra-se
uma “explosão evangélica” em America Latina, paralela a uma “explosão islámica”, Berger se ve
forzado a falar de uma contra-secularização. Contra o totalitarismo destas posições, Negrão realiza
um fino análisi conceitual, tratando de limpar a confusão entre desencantamento e secularização.
Finalmente, apoiándose nos diferentes trabalhos empíricos, Negrão conclui que:
A sociedade brasileira, com sua religiosidade que permanece em parte encantada pois
que renitentemente mágica, é um caso particular da realidade em que a generalidade
típico-ideal do método weberiano não é capaz de abarcar plenamente. E isso nenhuma
surpresa deveria causar, pois, é sabido, ou deveria sê-lo, que os tipos ideais não são fins
em si mesmos, são instrumentais. Devem ser construídos com base na realidade, mas
não a esgotam nem a substituem. E a realidade concreta, à qual o tipo é usado como
instrumento heurístico, não necessita reproduzi-lo, pode dele distanciar-se, diferir, pois
não são tipos empíricos, nem muito menos de abrangência universal. Cada sociedade,
cada momento histórico, tem a sua fisionomia própria, que cabe ao pesquisador captar.
Os referenciais weberianos, seus conceitos típico-ideais, sua interpretação quanto ao
processo de racionalização crescente da civilização ocidental não podem ser usados de
maneira fundamentalista. (Negrão, 2005: 35)
Chegado este punto, poderiamos ubicar a ideologia política de Vargas Llosa neste mesmo plano de
evolução e desinvolvimento unidirecional para o progresso (tal e como analisado no 3.1). E iste
romance, escrito a finales dos setenta e publicado em 1981, senhalaria um punto de inflexão nas
suas perspetivas políticas, que seriam finalmente consolidadas na sua candidatura à presidência do
Perú em 1990.
Se durante todo o romance a “vertiente ficcionista” é ridiculizada em Galileo Gall, por estabelecer
16
uma analogia absurda emtre o movimento messianico de Canudos e o comunismo primitivo; o
mesmo poderia se dizer do modelo Berger / Vargas Llosa, no que toda cosmovisão divergente do
modelo hegemónico é condenada como “fanática”, “arcaica”, ou “subdesenvolvida”.
3.3. O intelectal como profeta?
Q: And so, do you have to be politically active to be Nobel awarded?
Peter Englud: No!! not at all!!... Not at all...
(Emtrevista com Peter Englud, representante da académia suéca21, depóis de anunciar o
Premio Nobel de Mario Vargas Llosa)
Esse potente e perplexo “Not at all!”, vem a afirmar a indiferença que deberia caraterizar ao modelo
de “artista puro” consagrado nas vanguardas europeas: o artista não é um político, ele trabalha para
a beleza e só para a beleza (Bourdieu, 1992). Mas ao mesmo tempo, isso pareceria entrar em
contradição com tudo o presentado no punto 2.3., inclusive com a declaração grandilocuente do
mesmo comité do Nobel, que ubicaba a Vargas Llosa “na tradição de Vicotr Hugo e Émile Zola”,
caraterizando ao escritor como justiciero, heroi dos oprimidos e dos esquecidos do mundo. É nessa
contraditoria ambiguedade que move-se a académia contemporánea, tal e como viu-se nos infinitos
comentarios e artigos de opinião na imprensa mundial que seguiron ao Nobel de Vargas Llosa.
Na reivindicação de Euclides da Cunha como figura central do canon literário latinoamericano (no
que poderia ser uma reprodução regional da proposta de Canon Occidental de Harold Bloom),
Vargas Llosa está apostando por essa figura de “intelectual comprometido”, sempre entendendo
esse compromisso como uma reconstrução da memoria nos termos colocados no apartado 2.3. Em
este punto, seria interessante lembrar algumas das considerações de Walter Benjamin (1940) sobre o
conceito de Historia:
Articular históricamente lo pasado no significa conocerlo «tal y como verdaderamente
ha sido». Significa adueñarse de un recuerdo tal y como relumbra en el instante de un
peligro. (…) El peligro amenaza tanto al patrimonio de la tradición como a los que lo
reciben. En ambos casos es uno y el mismo: prestarse a ser instrumento de la clase
dominante. (Benjamin, 1940: Tesis 6)
A proposta benjaminiana de um “tempo cheio”, não homogêneo na carrera vacia do progresso,
parece completamente necessária frente a estas representações estériles. Mas além disso, o que
quiseramos recalcar neste último punto seria a aparente contradição entre esse conceito de “artista
genial” (uma vez mais, remetémo-nos a Harold Bloom) com a ideologia da democrácia universal
não-messiánica que parecia defender-se na súa obra. Tal vez esta concepção do artista genial esteja
nescesariamente vinculada aos projetos monumentáis de “Obras Totáis” (sejan Romances ou
Histórias), construidas por heróis solitarios. Frente a essa concepção do autor, gostariamos de
senhalar, como contrapunto, o comentario que coloca Antonio Cándido sobre Sergio Buarque de
Holanda, no prefacio de Raizes do Brasil:
...Sérgio adquire timbre diferenciador, ao voltar-se decididamente para o povo. Talvez
tenha sido ele o primeiro pensador brasileiro que abandonou a possição “ilustrada”,
segundo a qual cabe a esclarecidos intelectuais, políticos, governantes administrar os
interesses e orientar a ação do povo. (...) Sérgio deixou claro que só o proprio povo,
tomando a iniciativa, poderia cuidar do seu destino. (Cándido, 1986).
21 Disponível em [http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2010/announcement.html], a dez. de 2010.
17
No que faz respeito aos movimentos messiânicos, consideramos que a geração duma abismal
distância cultural a través dos artifícios da “cultura elevada”, não seria a melhor forma de criar um
espaço de reconhecimento mútuo e possibilidade de diálogo emtre racionalidades divergentes. O
minucioso trabalho das ciências sociais, quando transformadas em ferramentas de
autoconhecimento social, poderiam ajudar para a mentada “toma de iniciativa” do povo. E com isto
não quiseramos ignorar que ista mesma função poderia ser exercida pela literatura, mas talvez para
isso seja preciso, frente a memoria eternizante dos romances monumentais, recuperar a figura
deforme do anão, com a memoria particular da narração ligada às experiências.
///
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter, (1940), "Sobre el concepto de Historia " In: Obras, libro I, vol. 2, Abada:
Madrid, 2008, pp. 305-318.
-----,(1936) "El narrador. Consideraciones sobre la obra de Nikolái Léskov" In: Obras, libro
II, vol. 2, Abada: Madrid, 2009, pp. 41-68.
BERGER, Peter, and HUNTINGTON, Samuel, (2003) Globalizaciones múltiples. Barcelona:
Paidós.
BOURDIEU, Pierre (1992) Las Reglas del Arte. Barcelona: Anagrama.
BUARQUE DE HOLANDA, Sergio (1936) Raizes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympo (20 ed.,
1988)
CÂNDIDO, Antônio (1986) “Prologo” en Raizes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympo (20 ed.,
1988)
Da CUNHA, Euclides. (1905) Os Sertões. São Paulo, Ed. Martín Claret, 2007.
DECCA, Edgar Salvadori de (2001), “Os Sertões e sua cena original”, In: AGUIAR, Flavio e
CHIAPPINI, Ligia, (orgs.), Civilização e Exclusão. (pp. 137-162) São Paulo: Boitempo
Editorial.
FILHO, Francisco Venâncio, (1938) Euclides da Cunha a seus amigos. Disponível em
[http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/115/Euclides-da-Cunha-a-seusamigos], consultado em Dezembro de 2010.
GALVÃO, Wellnice Nogueira de, (2001) “Os Sertões: etapas da génese” In: AGUIAR, Flavio e
CHIAPPINI, Ligia, (orgs.), Civilização e Exclusão. São Paulo: Boitempo Editorial.
GALVÃO, Wellnice Nogueira de, (1974) No calor da hora. São Paulo: Ática.
18
IZQUIERDO MARTÍN, Antonio Javier (2010). Marcianos, melanesios, mormones y murcianos.
Apuntes de antropohistoria galáctica. Athenea Digital, 19, 111-143. Disponible en
[http://psicologiasocial.uab.es/athenea/index.php/atheneaDigital/article/view/746].
LATOUR, Bruno (1994) Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica. Rio de
Janeiro: Ed. 34.
NEGRAO, Lísias Nogueira. (2005) “Nem "jardim encantado", nem "clube dos intelectuais
desencantados". Rev. bras. Ci. Soc. [online], vol.20, n.59 [cited 2010-10-25], pp. 23-36 .
Available
from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092005000300002&lng=en&nrm=iso>.
---------- (2001) “Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro”. Rev. bras.
Ci. Soc. [online]., vol.16, n.46 [cited 2010-10-25], pp. 119-129 . Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
-69092001000200006&lng=en&nrm=iso> .
ORTIZ, Renato, (1985) Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo: Ed. Brasiliense.
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. (1965), O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo,
Dominus/Edusp.
SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. 2 ed. edUSP, São Paulo, 2001
VARGAS LLOSA, Mario, (1981) La geurra del fin del mundo. Barcelona, Seix Barral.
VARGAS LLOSA, Mario, (2010), Sabres e Utopias, São Paulo: Ed. Objetiva.
VARGAS LLOSA, Mario (1990) “Cartas a Kezaburo Oé” In: Contra viento y marea. Barcelona:
Seix Barral.
ZILLY, BErthold (2001) “Ruinas do cenario original” In: AGUIAR, Flavio e CHIAPPINI, Ligia,
(orgs.), Civilização e Exclusão. São Paulo: Boitempo Editorial.
19

Documentos relacionados