FIZO – Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art A
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FIZO – Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art A
FACULDADE INTEGRAÇÃO ZONA OESTE - FIZO ALQUIMY ART A ARTETERAPIA NO TRABALHO COM SONHOS VANESSA FIORE OSASCO - SP 2006 VANESSA FIORE A ARTETERAPIA NO TRABALHO COM SONHOS Monografia apresentada à Fizo – Faculdade Integração Zona Oeste e ao Alquimy Art, de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção de título de especialista em Arteterapia. Orientadora: Prof. Dra. Cristina Dias Allessandrini OSASCO - SP 2006 FIORE, Vanessa A Arteterapia no trabalho com os sonhos / Vanessa Fiore. São Paulo: [s.n.], 2006. 57p. Orientadora: Profª. Drª. Cristina Dias Allessandrini. Monografia (Especialização em Arteterapia) Faculdades Zona Oeste - FIZO (SP) e Alquimy Art (SP). Pós-Graduação Lato Sensu. São Paulo, 2006. 1. Arteterapia 2. Interpretação de sonhos 3. Jung FIZO – Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art A ARTETERAPIA NO TRABALHO COM SONHOS Monografia apresentada pela aluna Vanessa Fiore ao curso de Especialização em Arteterapia em 06/05/06 e recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores: Profª. Drª. Cristina Allessandrini. Orientadora e Coordenadora da Especialização. Profª. MsC. Deolinda Florim Fabietti. Coordenadora da Especialização. Profª. MsC. Regina Chiesa Aos meus pais, amigos, colegas de curso e professores. Aos meus sobrinhos Tomás, Bruno e Clara, Com quem, todos os dias, aprendo o que é o amor incondicional. AGRADECIMENTOS Primeiramente, a Cristina Alessandrinni, pela força, carinho e paciência em todos os momentos de construção deste trabalho. A G. que, carinhosamente, permitiu que eu mergulhasse em seu mundo e pudesse me aprofundar nesta pesquisa. Às minhas colegas de supervisão, pelo compartilhar dos encontros, desencontros, alegrias e angústias da construção deste processo. Aos meus pais e irmãos, presentes sempre, em todos os momentos da minha vida da melhor forma que podem. Aos meus amigos queridos, pelo aprender, ensinar e compartilhar de todos os dias de minha vida com cada um de vocês. RESUMO Esta pesquisa narra o percurso da pesquisadora em torno do trabalho de elaboração de sonhos, utilizando a arte como principal recurso. Inicia a pesquisa teórica em que discute o estudo dos sonhos na psicanálise e à luz da psicologia analítica apresentando conceitos da teoria junguiana e de outros autores que abordam a dinâmica do inconsciente, o self e simbolismos, aprofundando-se principalmente no símbolo da mandala. A discussão avança com a apresentação do conceito da arteterapia e de seus fundamentos. Na pesquisa prática apresenta um trabalho com um sujeito do sexo feminino, 25 anos, em que frente a materiais plásticos diversos e uma folha sulfite com um círculo (mandala) desenhado, a cliente é convidada a expressar seus sonhos artisticamente. Tendo como base o momento psíquico da cliente, são analisadas as relações entre as produções e os simbolismos presentes, em que a autora preocupa-se em questionar a postura interpretativa em relação tanto à psicoterapia quanto à arteterapia. Finalmente, aponta de que forma a produção artística juntamente com a compreensão dos simbolismos presentes trouxeram à tona não só conflitos internos importantes, mas também novas possibilidades de elaboração desses conflitos, a descoberta do potencial de vida e do contato com seu eu-criativo. Palavras-chave: Arteterapia –Interpretação de sonhos – Mandala – Jung. ABSTRACT This research relates the path followed by the researcher towards the work of understanding the meaning of dreams, using art as main resource. The theoretical research begins by discussing the study of dreams by Psychoanalysis, and focusing on the Analytical Psychology, introducing, mainly, some concepts from Jung and others authors who study about the dynamic of unconscious, self and the symbol, pointing out deeply the symbol of mandala. The matter advances including the presentation of the concept of the art therapy and some of its theoretical roots. A work with a 25 years old woman is carried out as practical research. It is offered a sheet of paper with a circle already drawn on it (mandala) and a variety of expressive means, inviting the client to express her dreams artistically. Based on the analysis of the psychic moment of the client, relations are made between the productions and the symbols that arise. The author then discusses the interpretation mastery related to psychotherapy and art therapy. Finally, the researcher points out how artistic production together with the understanding of the symbols that arise in these productions, made internal conflicts to surface and enabled new possibilities for solving theses conflicts, the discovery of life potential and promote the contact with the creativity process. Key words: Art Therapy – Meaning of dreams – Mandala - Jung SUMÁRIO AGRADECIMENTOS........................................................................................ 05 RESUMO.......................................................................................................... 06 ABSTRACT...................................................................................................... 07 APRESENTAÇÃO............................................................................................ 09 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11 1. DE ONDE VÊM OS SONHOS?.................................................................... 16 2. SIMBOLISMO............................................................................................... 20 3. O SIMBOLISMO DA MANDALA.................................................................. 28 4. O QUE É ARTETERAPIA?.......................................................................... 31 5. DESCRIÇÃO DA PESQUISA....................................................................... 37 5.1. Perfil da Cliente..................................................................................... 38 5.2. Momento Terapêutico de G. ................................................................ 39 5.3. O Primeiro e o Segundo Sonho de G. ................................................ 40 5.3.1. Representação do primeiro e do segundo sonhos...................... 41 5.3.2. Simbolismo e relação com o momento terapêutico de G. .......... 42 5.3.3.Considerações de G. sobre o primeiro e o segundo sonhos....... 44 5.4. O Terceiro Sonho de G. ....................................................................... 46 5.4.1. Representação do terceiro sonho.................................................. 47 5.4.2. Simbolismo e relação com o momento terapêutico de G. .......... 47 5.4.3. Considerações de G. sobre o terceiro sonho............................... 50 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 53 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 57 9 APRESENTAÇÃO A escolha pela minha formação em Psicologia foi absolutamente única e natural. Desde que comecei a pensar em uma profissão, em nenhuma ocasião, cogitei uma segunda opção. Paralelamente ao momento em que escolhi que realmente queria ser psicóloga, resolvi procurar uma psicoterapia por questões pessoais e por desejar conhecer de perto a profissão que pretendia exercer. Acabei fazendo psicoterapia na orientação junguiana por onze anos. Mesmo assim, depois de formada, passei por um momento muito difícil, sem saber o que fazer, por onde começar, e me sentia completamente despreparada para atuar na profissão. Comecei então a freqüentar aulas de pintura. Com o tempo fui percebendo o quanto aquilo me preenchia, e muitas vezes contava coisas importantes sobre mim mesma. Certamente, essa experiência aparentemente tão simples foi o que fez com que me sentisse mais preparada para começar a buscar um caminho em minha profissão. Porém, precisava buscar recursos e aprimoramento profissional, o tão pequeno, porém significativo contato com a arte fez com que eu não tivesse dúvidas que o primeiro passo seria em direção à arteterapia. Confesso que no início do curso senti algum estranhamento. A maneira de trabalhar, o olhar para o cliente e o enfoque do processo era algo diferente de tudo que havia aprendido na faculdade. 10 Durante todo o meu percurso em psicoterapia, na abordagem junguiana, o trabalho com sonhos é muito presente, e isto fez com que me interessasse em pesquisar mais sobre este tema. Os sonhos, em meu processo pessoal, sempre foram trabalhados por meio de interpretações, de forma que o terapeuta, conhecendo minha história, dizia o que o sonho representava naquele momento. O contato com a arte e a compreensão do processo arteterapêutico que fui adquirindo no decorrer do curso, fez-me pensar que poderia haver uma outra forma de trabalhar os sonhos em psicoterapia, já que utilizando a arte o sujeito tem a possibilidade de acessar conteúdos tão importantes e inconscientes quanto os que os sonhos nos podem revelar. Sendo assim, a minha intenção nesta pesquisa é verificar como os sonhos podem ser trabalhados utilizando a arteterapia como recurso terapêutico, para que o cliente possa compreender seu sonho com seus próprios recursos e potencial, tendo a chance de trazer para si a responsabilidade e a capacidade de realizar o seu processo e a sua transformação. 11 INTRODUÇÃO Não é de hoje que os sonhos despertam interesse no ser humano de diferentes maneiras. Quer seja em civilizações antigas ou atuais, são considerados ligações com outros mundos, visão do futuro, premonição, contato com o espiritual, entre outras coisas. Para a psicologia, os sonhos são vistos como “um meio de comunicação entre o inconsciente e a consciência” (BOSNAK, 1986, p. 87), e independentemente da linha de trabalho, a forma mais conhecida de compreendê-los é por meio da interpretação. O primeiro teórico a dar alguma importância para os sonhos em um processo terapêutico foi Freud. Nise da Silveira, em um relato sobre o histórico do trabalho com os sonhos, esclarece que para a psicanálise, o “sonho é a realização disfarçada de um desejo inconsciente” (1994, p. 109). Freud afirmou que os impulsos inaceitáveis, normalmente de natureza sexual ou agressiva, são censurados e reprimidos pela consciência, e também que durante o sono, a mente inconsciente se relaxa de modo que imagens surgem como forma de realização (HALL, 1986). Devido a esses impulsos serem inaceitáveis pela mente consciente podem perturbar o sono do sonhador, e por isso são „disfarçados‟ e transformados em uma forma dramática mais aceitável, de acordo com a teoria freudiana. Isto quer dizer que um rapaz que, por exemplo, tenha desejo sexual pela mãe, durante o sonho a figura da mãe será deslocada para outra figura do sexo feminino socialmente aceita para que seu sono não seja incomodado. 12 Na visão freudiana, “o sonho permite uma descarga parcial do impulso original, sem permitir que esse impulso se manifeste de forma tão primitiva a perturbar o sonho do sonhador” (HALL, 1986, p. 120). Para a interpretação dos sonhos, a visão freudiana utiliza o método de associação livre de idéias com os motivos do sonho para produzir o retorno ao desejo latente original, isto é, ao conteúdo do sonho não disfarçado, que se encontra subjacente ao sonho manifesto experimentado e lembrado (HALL, 1986). Jung que, em sua teoria, deu grande importância para os sonhos no processo terapêutico e no de autoconhecimento, trabalhou inicialmente com a abordagem freudiana até desenvolver a sua própria concepção a respeito da mente inconsciente e da manifestação dos sonhos. Deixou então de aceitar que os sonhos são manifestados usando disfarces, e de admitir que todos os sonhos traduzem somente desejos inconscientes do sonhador (SILVEIRA, 1994). Criticou a abordagem freudiana pelo fato de este não ter percebido que muitos sonhos significam exatamente aquilo que querem dizer. Em vez disso, o sonho é considerado uma representação simbólica do estado da psique, e mostra os conteúdos da psique pessoal (os complexos) sob uma forma personificada ou representacional como pessoas, objetos e situações que refletem os padrões mentais (HALL, 1986, p. 122). Bosnak (1994) pondera que na visão junguiana, os sonhos são uma autorepresentação do estado da psique, apresentada sob uma forma simbólica, com o propósito de compensar as distorções unilaterais do ego. Por conseguinte, os sonhos estão a serviço do processo de individuação (construção do ser si mesmo), auxiliando o ego a encarar-se a si mesmo de forma mais objetiva e consciente. 13 Silveira (1994) aponta que, na visão de Jung, uma pessoa não aparece no sonho em lugar de outra - como afirmou Freud -, mas que os personagens que surgem nos sonhos podem se referir à realidade objetiva, quando as pessoas com que se sonha são conhecidos íntimos ou desempenham algum papel na vida do sonhador. Se os personagens do sonho são desconhecidos ou de pouca relação com o sonhador, representam fatores autônomos de sua própria psique. Isto quer dizer que “todas as figuras do sonho são aspectos personificados da personalidade do sonhador” (SILVEIRA, 1994, p. 114). Dentro da abordagem junguiana, os sonhos são considerados uma fonte valiosa de informações, não somente por serem a manifestação mais comum do inconsciente do indivíduo, mas também por fornecer um ponto de vista mais objetivo do que o do analista ou o do analisando, servindo como fator importante para acelerar ou aprofundar o processo analítico. Assim como os sonhos podem ser vistos como uma forma mais direta de contato com o inconsciente, o uso da arte, em um processo terapêutico, pode ser visto de maneira semelhante. Por meio dos recursos artísticos, o cliente tem a possibilidade de entrar em contato com seus conteúdos pessoais, emocionais e afetivos de maneira mais direta e objetiva por intermédio de imagens, dispensando a necessidade de uma interpretação por parte do terapeuta que pode vir carregada de seus próprios conteúdos internos inconscientes. Sobre isso, Andrade afirma que: A arte é uma forma de expressão do ser humano, e como tal, uma forma de comunicação e de linguagem simbólica, é um produto da intuição e da observação, do inconsciente e do consciente, da emoção e do conhecimento, do talento e da técnica, da criatividade. 14 Acolher e utilizar as modalidades de expressões artísticas dentro de um processo psicoterápico, vem enriquecer a possibilidade de um conhecimento profundo e consequentemente uma maior compreensão da pessoa a ser auxiliada (2000, p. 1). O autor menciona que Freud apontou que o inconsciente manifesta-se mais por meio de imagens do que por palavras, e seguindo esse princípio, a arte possibilita uma visão direta e concreta do inconsciente do indivíduo. É como se pudéssemos enxergar com olhos de quem está de fora uma parte de nós mesmos, e por meio disso nos apropriarmos de sentimentos, de emoções e do potencial intelectual, emocional e criativo guardados em nosso inconsciente. A teoria junguiana, assim como a arteterapia, utiliza-se de alguns recursos intermediários para a projeção de conteúdos internos do cliente como o Jogo de Areia (AMMANN, 1989). Nessa técnica, é pedido para que o cliente construa cenários em uma caixa com medidas padronizadas, cheia de areia, utilizando miniaturas de todos os tipos e materiais de várias categorias (figuras humanas, casas, alimentos, entre outros) expostas em prateleiras no local onde está sendo realizado o trabalho. A instrução é que o cliente construa um cenário livre. Para isso, deverá então escolher os objetos que mais lhe chamam a atenção e colocá-los de forma arranjada na caixa de areia. Ao final, a construção é fotografada de ângulos diferentes para promover um olhar mais amplo sobre o trabalho. O terapeuta deve estar atento à ordem em que as figuras são colocadas e como são dispostas na caixa (HALL, 1986). O cenário, assim como os sonhos, é tido como um retrato da realidade da psique do sujeito que o construiu, e o desenvolvimento do trabalho com o Jogo de 15 Areia é semelhante ao trabalho com sonhos: amplificação pessoal e coletiva do simbolismo dos objetos colocados na caixa. Assim como no Jogo de Areia, o uso de qualquer material artístico no processo terapêutico é uma forma de ampliação de consciência e contato com o inconsciente, já que o cliente tem a possibilidade de enxergar sua produção, isto é, parte dele mesmo, de forma concreta. Partindo desse pressuposto, o objetivo desta pesquisa é verificar como os sonhos podem ser inseridos no contexto arteterapêutico. Se o cliente projeta conteúdos inconscientes em uma construção artística ou no Jogo de Areia, por que não utilizar esses mesmos recursos para a compreensão dos conteúdos dos sonhos? O uso da arteterapia e da criatividade possibilita o desenvolvimento de um trabalho diferenciado com os sonhos. Com o uso de materiais expressivos, o cliente tem a possibilidade de „amplificar‟ o sonho e, compreendê-lo com mais autonomia utilizando seu potencial imaginativo e associativo; ao passo que o terapeuta passa a desempenhar a função de encorajar, mediar e acolher as emoções, pensamentos e sentimentos despertados durante o processo. Neste processo, o cliente é convidado a investigar o seu sonho utilizando a criatividade como principal recurso, sendo sempre respeitado em suas necessidades, limitações e possibilidades naquele momento, e assim é levado a uma maior compreensão de si mesmo. 16 1. DE ONDE VÊM OS SONHOS? Jung negou a idéia freudiana do inconsciente como um simples “quarto de despejo” (FREEMAN, 1977, p. 12) e de desejos reprimidos. Para ele, o inconsciente consiste em uma parte tão vital e real na vida de um indivíduo quanto a consciência, e definiu inconsciente como: “Um conjunto de pensamentos, imagens e impressões provisoriamente ocultos e que, apesar de terem sido perdidos, continuam a influenciar nossa mente consciente” (JUNG, 1977, p. 32). Devido às limitações naturais dos sentidos de todo ser humano, a percepção do mundo ao seu redor também é limitada. Assim, existem aspectos inconscientes na percepção da realidade, o quer dizer que, toda realidade concreta possui aspectos que a consciência ignora. Muitas das coisas que acontecem em nossa experiência, apesar de não tomarmos consciência, ficam registradas em algum lugar de nossa psique. Esses acontecimentos são absorvidos subliminarmente, sem que o consciente tome conhecimento. Apesar de inicialmente esses acontecimentos serem ignorados pela consciência em sua importância, mais tarde podem emergir do inconsciente por meio de outras formas como insights, e principalmente, sonhos. Jung nos diz que: “Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento, nos é revelado através de sonhos, onde se manifesta não como um pensamento racional, mas como uma imagem simbólica” (1977, p. 23). 17 Foi inicialmente com o estudo dos sonhos, que os psicólogos iniciaram a investigação a respeito do aspecto inconsciente da vida psíquica, e constataram o quanto ele é importante e presente na mente do ser humano. Para Von Franz (1988), esses estudos reforçam a existência de uma inteligência superior em nós, isto é, o movimento natural e involuntário da psique humana rumo ao desenvolvimento e à maturação, cujo objetivo parece ser tornar a vida a melhor possível e fazer com que o sujeito desenvolva o máximo de seu potencial. Por outro lado, muitos cientistas e filósofos negam a existência do inconsciente, colocando que seria o mesmo que afirmar que “existem dois sujeitos e duas personalidades na mente de um mesmo indivíduo” (JUNG, 1977, p. 25). No olhar de Jung, é exatamente isso que acontece, e afirma ainda que essa divisão da personalidade é uma “maldição do homem moderno” (1977, p. 25), apesar de não ser, de forma alguma algo patológico, sendo considerado somente uma herança comum de toda a humanidade. A partir dessa idéia, Jung (1977) acrescentou que, assim como conteúdos conscientes tornam-se inconscientes, o inconsciente também pode emergir e não só como “um simples depósito de coisas do passado”, mas como algo permeado de idéias e situações psíquicas futuras. Além de memórias de um passado longínquo, há a possibilidade de emergir pensamentos inteiramente novos e idéias criadoras assim como pensamentos que nunca foram conscientes. Von Franz (1988) afirma que a grande descoberta da psicologia moderna, é que cinco ou seis vezes durante a noite, a parte inconsciente da psique é retratada 18 nos sonhos e, ao lembrá-los, temos a oportunidade de observar conteúdos da mente inconsciente. Jung define que a função geral dos sonhos é: “Tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que reconstitui, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico total. É a função compensatória dos sonhos na nossa constituição psíquica” (1977, p. 49). Von Franz (1988, p. 50) complementa afirmando que os sonhos podem ser comparados a “cartas que o Self nos escreve toda noite”, revelando não só a causa básica da desarmonia interior e da angústia emocional, como também indicando o potencial de vida do indivíduo. Muitas vezes podem ainda apresentar soluções criativas para problemas diários e inspirações para o desenvolvimento criativo da vida. Para Jung, quando sonhamos somos despertados para aquilo que realmente somos. O sonho também tem como função compensar as deficiências da personalidade do sonhador, e ao mesmo tempo pode prevenir dos perigos de seu rumo atual. Se os avisos dos sonhos são rejeitados, acidentes reais podem acontecer. Isso não significa que seja função do sonho nos proteger de doenças e contratempos, mas sim nos ensinar a lidar com aspectos difíceis da vida e personalidade, como encontrar o sentido da vida, para que possamos realizar o potencial de vida que há em nós. Von Franz (1988) ilustra com o exemplo de uma pessoa que tem um alto conceito de si mesmo, e apresenta sonhos recorrentes de que está voando, ou que está caindo. Neste caso, o inconsciente envia uma mensagem simbólica de que esta 19 pessoa encontra-se „desaterrada‟ de si mesma e fora de seu eixo, por isso encontrase ou voando ou caindo, e não com seus pés no chão. A teoria Junguiana postula que o inconsciente se manifesta nos sonhos por meio de símbolos. Sendo assim, a compreensão e a interpretação simbólica dos conteúdos de um sonho não é algo tão simples. Freud, por outro lado, afirma que o sonho apresenta conteúdos importantes do sujeito, mas de forma disfarçada, o que nada mais seria do que uma forma simbólica. Para Von Franz os sonhos tocam sempre em nosso “ponto cego” (1988, p. 28), e nunca dizem o que já sabemos sobre nós, mas sim o que não sabemos. Para a autora, interpretar o próprio sonho é como olhar as próprias costas, pois “os símbolos são a linguagem dos sonhos. Nos sonhos, o inconsciente é revelado através de símbolos. A chave para a compreensão dos sonhos é o conhecimento do símbolo” (p. 41). Sendo assim, se os sonhos nos comunicam coisas importantes sobre nós mesmos por meio de símbolos, para desvendar seus significados é fundamental que se tenha conhecimento da linguagem simbólica, já que saber reconhecer as mensagens dos sonhos não é algo tão claro e aparente quanto possa parecer. 20 2. SIMBOLISMO A tarefa do homem, no decorrer de toda sua existência, é tornar-se o que realmente é. Jung chamou esse processo de Individuação, o que considera um movimento inerente de todo o ser humano rumo ao autodesenvolvimento. Segundo Kast (1997, p. 9), é tarefa do homem desenvolver a capacidade de “ser si mesmo” no decorrer da vida, o que é também fundamento para o processo terapêutico baseado na teoria junguiana, que te esse mesmo objetivo. A psicologia junguiana é marcada por uma imagem que vê o ser humano num contexto abrangente, numa transformação criativa e experienciando a falta de mudança como algo opressivo. (KAST, 1997, p. 9). Essa transformação é constante e involuntária. Todo ser humano está destinado a desenvolver-se de forma contínua rumo ao que realmente é por toda sua existência. A teoria junguiana compreende que qualquer acontecimento na vida de uma pessoa possui uma dimensão para além do óbvio, inconsciente, que permanece como que misteriosa. Kast explica que para Jung: “A realidade experienciável por meio dos sentidos está sempre em conecção com uma realidade espiritual” (1997, p. 9). Assim, pode-se considerar que o processo de individuação compreende o relacionamento entre consciente e inconsciente, e esses conteúdos unem-se por meio dos símbolos. Nesse sentido, a individuação também pode ser compreendida como um „processo de diferenciação‟, no qual a singularidade de uma pessoa deve 21 manifestar-se; e a aceitação de si mesmo com suas dificuldades e possibilidades, é uma virtude a ser efetivada neste processo, que ocorre durante toda a vida nas diferentes oportunidades que o homem tem para realizar escolhas e constituir-se como ser. Jung caracteriza o processo de individuação como processo interno de integração, o que significa o indivíduo ter a possibilidade de conhecer outros lados de si mesmo e integrá-los a sua personalidade. Em contra partida, afirma que “a relação com o si mesmo é ao mesmo tempo a relação com o próximo. E ninguém se vincula com o outro sem antes se vincular consigo mesmo” (1977, p. 54). Sendo assim, estar em contato e harmonia com a própria personalidade, é o que traz a harmonia nas relações e em todos os aspectos da vida de uma pessoa. Portanto, a partir desses pressupostos, O processo terapêutico, compreendido como processo de individuação, consiste essencialmente no fato de o inconsciente e a consciência, no âmbito dos conteúdos vivificados, ligarem-se um ao outro no símbolo. Por meio das formações de símbolo torna-se possível o desenvolvimento criativo da personalidade (KAST, 1997, p. 16). O simbolismo que emerge em ações criativas vem carregado de significados para a pessoa e pode revelar aspectos da psique até então não integrados à consciência. Torna-se relevante trazer Jung que define símbolo como: Imagem ou nome, familiar na vida diária, que possua conotações especiais além de seu significado evidente. Isto é, um signo com uma carga afetiva pessoal, um aspecto inconsciente mais amplo, que nunca é precisamente definido ou explicado (1977, p. 57). Ao que Von Franz complementa: 22 O que denominamos símbolo é um termo, um nome ou até mesmo uma imagem familiar na vida cotidiana, mas com uma conotação específica além do sentido do óbvio e convencional... Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando implica algo além de seu sentido óbvio e imediato, adquirindo um aspecto inconsciente mais amplo nunca definido com precisão nem totalmente explicado – que tampouco se poderia ver ou explicar (1988, p. 57). Cada pessoa compreende as imagens que produz e os diferentes elementos que ressaltam em um contexto específico a partir das experiências que acumulou até aquele momento de sua vida. O que significa que há um simbolismo que pertence à própria pessoa, que identificou este ou aquele elemento como importante para si em seu processo de desenvolvimento e de individuação. Kast (1997) exemplifica a definição de símbolo com uma história. Por exemplo, uma mulher perde, um uma faxina, seu anel de casamento e não consegue encontrá-lo inicialmente. Fica ansiosa e pensa se o jogou junto com a água suja, e se o fato de tê-lo perdido pode ter algum significado. Tenta se acalmar, pois é apenas um anel, mas em seguida pensa que não é apenas um anel, é seu anel de casamento. Sente medo de contar o fato ao marido, e fica com sentimento de culpa. Neste momento, ela experiencia o marido como um homem muito compreensivo. Conta, então, o fato a uma amiga, que diz que fica claro que ao perder a aliança de casamento em uma faxina, ela perde sua relação com o marido. A partir dessa consideração, a mulher reflete sobre seu relacionamento com o marido, sobre as expectativas que depositou nesta aliança, se realmente ainda deseja essa relação, já que a joga fora como se fosse água suja. E pergunta-se por que sente tanto medo. 23 A autora expõe que nesta pequena história não se pode separar a perda do anel de seu significado. O medo da reação do marido aponta para isso, já que ela não o teme de modo algum. É o medo de poder perder a totalidade da relação, simbolizada pelo anel. Por isso, muitas vezes o impulso da separação é projetado no parceiro, já que é mais confortável temer as reações do parceiro do que o próprio impulso de separação. O anel, neste caso, é um objeto cotidiano, percebido pelos sentidos, mas que aponta para algo encoberto, um excesso de significado que não pode ser esgotado em um primeiro momento. O objeto e seu significado não podem ser separados, assim como nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que o vivenciou, como afirma Von Franz (1988, p. 36), pois seja por meio de uma experiência ou de um sonho, a conotação pessoal e afetiva de todos os aspectos dos símbolos são absolutamente importantes para sua compreensão. Introduzimos aqui a relação do simbolismo com o aspecto simbólico do sonho. O conteúdo simbólico presente nos sonhos é sempre composto de duas partes: uma delas é um simbolismo universal ou coletivo, isto é, um significado que é comum a todos os seres humanos em decorrência de experiências repetidas entre as gerações e do significado concreto de determinado símbolo. A outra parte é o simbolismo pessoal, que consiste no significado único que surge em decorrência de experiências individuais em relação a determinado símbolo. 24 Kast (1997) esclarece que a palavra “símbolo” origina-se do grego symbolon, que significa um sinal de reconhecimento; reconhecer aspectos que foram separados. A etimologia traz o símbolo como algo composto de um significado individual e um coletivo ou universal, e apenas quando combinado pode ser considerado um símbolo de alguma coisa. Para a autora o símbolo pode ser considerado “um sinal visível de uma realidade invisível, ideal” (1997, p. 19) e aponta que é possível observar sempre dois níveis nos símbolos: em algo externo pode-se revelar algo interno, em algo visível o invisível, em algo corporal o espiritual, no particular o geral. Na compreensão do símbolo, procuramos a realidade invisível por trás de algo que é claro e visível. Jung (1961) afirma que para entender a organização psíquica e a personalidade global de uma pessoa é importante avaliar a relevância de seus sonhos e imagens simbólicas. Explica ainda que o ato sexual, por exemplo, pode ser simbolizado de diversas formas, por uma imensa variedade de imagens. Cada uma dessas imagens, por um processo associativo, pode levar à idéia da relação sexual existente dentro de cada pessoa, isto é, o inconsciente escolhe, por vontade própria, uma dessas imagens para representar o ato sexual naquele sujeito. Diferentemente de Freud, que definiu a libido como a energia sexual presente em cada ser humano desde o nascimento, Silveira (1994) esclarece que para Jung o conceito se aplica de forma mais ampla, isto é, a libido é tida como energia psíquica, instinto permanente de vida e é manifestada pela fome, sede, sexualidade, agressividade, interesse e vontade. 25 Sendo assim, a verdadeira tarefa da análise é compreender porque uma imagem foi escolhida no lugar de outra para representar algo no sonho ou na produção artística e terapêutica da pessoa, já que na maioria das vezes a imagem não representa aquilo que ela parece, mas sim algum aspecto psicológico inteiramente diverso. O símbolo pode ser visto como a metáfora do que está de fato acontecendo na vida do sujeito. Kast aponta que quando os símbolos se tornam experienciáveis num processo terapêutico passamos a nos sentir mais vivos, mais emocionais; ou seja, “realiza-se o lidar consciente com o inconsciente” (1997, p. 35), e acrescenta ainda que “nos símbolos, nossas dificuldades especiais e atuais tornam-se manifestas, assim como nossas próprias possibilidades de vida e desenvolvimento. Nas dificuldades depositam-se as possibilidades de desenvolvimento” (p. 37). O símbolo frequentemente evoca a inibição da vida em conexão com lembranças de períodos anteriores, e traz consigo toda a experiência anterior relacionada a determinado conteúdo simbólico tanto pessoal quanto coletivamente. Ao mesmo tempo, aborda um tema da vida apontado para o futuro, e como foco de desenvolvimento psíquico é portador de desenvolvimento criativo num processo terapêutico, e por conseqüência o processo de individuação torna-se, no símbolo, algo muito mais claro e experienciável. Kast afirma que o objetivo terapêutico da psicoterapia de orientação junguiana é: Lidar criativamente com a vida própria, caminhar, mas também poder lidar com tempos de estagnação e, sobretudo, ser capaz de aceitar a nós mesmos como alguém em transformação, com todos os cantos e quinas que forma uma pessoa... O objetivo também seria assumir o risco de ser si mesmo (1997, p. 38). 26 Para a autora, o desenvolvimento criativo que leva a esse objetivo terapêutico torna-se manifesto no símbolo, e é ele o responsável por levar os conteúdos à consciência. Dentro desse contexto a arteterapia apresenta um objetivo bastante semelhante, já que traz ao indivíduo a possibilidade de olhar partes de si mesmo nas imagens e formas que se apresentam em suas produções e expressões artísticas. É como ter a possibilidade de sobrevoar a própria personalidade e, com o olhar ampliado, ter a chance de integrar aspectos inconscientes de seu ser. Kast (1997) lembra que Jung (1916) descreve o processo de formação do símbolo da mesma maneira como hoje se descreve o processo criativo, em especial a fase de incubação. Podemos perceber que no ato criativo a participação do inconsciente é real e emerge para a consciência como símbolo a ser compreendido pela pessoa. O processo criativo de materializar esses conteúdos internos impulsiona a condição da pessoa de integrar esses conteúdos à sua consciência, portanto participando ativamente do processo de individuação. A autora descreve que a primeira fase do processo criativo consiste em nossa tentativa de solucionar um problema com métodos antigos, que não mais funcionam da maneira desejada. Instala-se então a segunda fase, a fase de incubação: perde-se a concentração e a tensão se instala. No lugar da concentração consciente aparece o inconsciente vivificado, e conscientemente sentimos frustração, angústia e descontentamento. 27 A fase de compreensão vem logo após a fase de incubação. É quando se tem o insight, e esse pode ser acessível à consciência em forma de símbolo. Enfim, podemos considerar que o fato de compreender e integrar os conteúdos simbólicos à consciência no processo de nos tornarmos nós mesmos é uma idéia basicamente junguiana. Por meio de aparentemente meros atos pequenos de criação e do desenvolvimento do criativo existente em cada um de nós, podemos ir ao encontro de nossa verdadeira essência, o que possibilita uma vida muito mais plena e satisfatória. 28 3. O SIMBOLISMO DA MANDALA Alguns símbolos representam aspectos que encontramos nas mais diferentes culturas da humanidade. A forma circular, conhecida como mandala é apresentada no „Dicionário de Símbolos‟ de Chevalier e Gheerbrant (1982) como literalmente um círculo, presente em diferentes culturas e religiões, sendo utilizada com diferentes objetivos e funções. A mandala é provavelmente a forma ou símbolo mais antigo que se tem registrado. Algumas comunidades indígenas usam a forma circular para restabelecer o equilíbrio interior perdido; nas civilizações orientais, o símbolo da mandala é freqüentemente utilizado para favorecer o contato com o mundo interior com o objetivo de contemplar um estado de meditação profunda. Von Franz (1977) explica que ao contemplar uma mandala, os orientais acreditam ser possível entrar em um estado de paz interior, levando a uma sensação de que a vida voltou a ter paz e significado. A mandala por ser considerada uma forma perfeita traz essa possibilidade: é a representação da integração e harmonia entre todos os aspectos da natureza e do ser humano. Hugendubel (1985) aponta que, basicamente, tudo tem forma circulares: o planeta terra, as gotas d´água, os elementos estruturais dos cristais, as células que constituem plantas, animais e o homem. É interessante ressaltar que toda célula tem um núcleo, e esse núcleo é sempre uma mandala. Em termos psicológicos, segundo Jung (1979), a mandala simboliza o nosso self, e Von Franz esclarece que para a psicologia analítica, o self é “o núcleo mais 29 profundo da psique humana” (1977, p. 201), pois expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos, incluindo o relacionamento entre o homem e a natureza. A figura da mandala, em geral, aparece espontaneamente em sonhos ou produções artísticas em estados de conflito ou em pessoas com esquizofrenia, simbolizando, segundo a teoria junguiana, a psique em movimento instintivo de autoregulação, isto é, a tentativa instintiva de retomar o equilíbrio interno e a organização da psique. Segundo Bosnak (1994) em momentos de doença, o aparecimento de símbolos e conteúdos repetidamente, em sonhos ou expressões espontâneas, pode representar um termômetro da condição emocional da pessoa. O autor exemplifica: quando uma pessoa pinta uma mandala sempre da mesma forma, pode significar que ainda não está pronta o suficiente para avançar naqueles conteúdos. Levando em consideração que é possível a expressão de conflitos internos na representação artística, as mandalas podem também ser usadas como forma de diagnóstico, já que retratam simbolicamente o estado psíquico do indivíduo. Porém, o mesmo símbolo também pode aparecer espontaneamente em sonhos quando o sujeito volta-se para seu mundo interior, sem a influência de pensamentos e sentimentos subjetivos perturbadores, seguindo as expressões de sua natureza, deixando seu self emergir. O círculo mágico conforme Jung (1979) descreve, representa um espaço fechado em si mesmo que, por esse fato, tem em si a qualidade de permitir que a energia ali contida permaneça em uma condição única de encontrar seu próprio dinamismo de auto-regulação. Neste caso, a mandala pode produz um sentimento 30 de paz interior, comunicando que o sonhador não está influenciado por qualquer tradição cultural ou religiosa. São os estados de afastamento ou proximidade com o self, que fazem com que o símbolo da mandala apareça nos sonhos, já que, segundo Von Franz (1977), os sonhos não têm preocupação com nossa adaptação à vida exterior, mas tem o poder de desenvolver nossa atitude interior em relação ao self. É o momento em que podemos manter-nos próximos de nossa verdadeira essência e receber suas mensagens de forma simbólica. Para Kellogg (1997), a mandala produzida por uma pessoa funciona como um espelho da psique, da atividade inconsciente e do processo de conscientização que vive naquele momento. Assim, pintar uma mandala é ter a chance de ficar cara a cara com nosso verdadeiro eu. É poder entrar em contato com nossa essência e com nosso estado emocional daquele momento e, a partir daí, poder integrar, conscientizar e transformar os conteúdos necessários para uma psique mais saudável e uma vida mais feliz. 31 4. O QUE É ARTETERAPIA? Desde seus primórdios, o homem tem como forma de registro, expressão, comunicação e organização o desenho e a pintura, entre outras formas também ligadas à arte. Certamente, desde este passado remoto o ser humano já se beneficiava dos aspectos terapêuticos que o contato com a arte e expressão propiciavam, mesmo que ainda o fizessem sem consciência ou compreensão da forma como esse processo acontecia. O simples ato de pintar, desenhar e modelar é, por si só, naturalmente terapêutico. Mesmo sem nenhum objetivo específico, o ato de criar tem o poder de acalmar, organizar, expressar e revelar conteúdos importantes ao criador. Encontramos em todas as crianças, em maior ou menor grau, a arte como principal forma de comunicação antes da aquisição da linguagem verbal, e conforme o sujeito vai crescendo, começa a abandonar a linguagem artística em nome da linguagem verbal. Andrade afirma que “a arte é necessária para o homem conhecer e transformar o mundo” (2000, p. 14), e essa sabedoria parece ser antiga e inata no ser humano. No final do século XIX, aponta Nise da Silveira (1994), Freud trabalhava no revolucionário conceito de inconsciente, e desde então, ele, Jung e outros teóricos passaram a estudar as produções artísticas de seus pacientes com objetivo de desvendar e compreender o inconsciente. 32 Assim como nos estudos de Freud e Jung, a arteterapia também utiliza recursos artísticos com fins terapêuticos, porém, com um objetivo bastante diverso ao de compreender e interpretar o inconsciente. Ciornai cita em seu livro “Percursos em Arteterapia” a definição da Associação Americana de Arteterapia: A arteterapia baseia-se na crença de que o processo envolvido na atividade artística é terapêutico e enriquecedor da qualidade de vida das pessoas. Arteterapia é o uso terapêutico da atividade artística no contexto de uma relação profissional por pessoas que experienciam doenças, traumas ou dificuldades na vida, assim como por pessoas que buscam desenvolvimento pessoal (2002 apud CIORNAI, 2004, p. 47). O fazer criativo, seja ele relacionado a qualquer técnica ou recurso possibilita o sujeito experimentar-se capaz de produzir e concretizar coisas, o que favorece o aumento da auto-estima, o resgate da identidade e a capacidade de resolver problemas. Por meio do criar em arte e refletir sobre os processos e trabalhos artísticos resultantes, pessoas podem ampliar o conhecimento de si e dos outros, aumentar sua auto estima, Lidar melhor com sintomas, estresse e experiências traumáticas, desenvolver recursos físicos, cognitivos e emocionais e desfrutar do prazer vitalizador do prazer artístico (AATA, 2003). Diferentemente dos trabalhos de Freud, o objetivo do arteterapeuta não é interpretar a produção de seu cliente, mas sim incentivá-lo a, reflexivamente, buscar o significado para sua produção enquanto mantém-se focado no processo terapêutico. “A arteterapia sustenta-se na crença de que as pessoas podem ser agentes da própria saúde e de seus processos de crescimento, encontrando em seus trabalhos e criações sentindo o que seja pessoalmente relevante e significativo” (CIORNAI, 2004, p. 15). 33 A mesma autora aponta que “A função básica do arteterapeuta é tornar disponível para pessoas perturbadas os prazeres e satisfações que o trabalho criativo pode proporcionar” (2004, p. 28), e principalmente levar o cliente a perceber que é capaz de lidar com seus conflitos e ser responsável por seu crescimento e transformação. O terapeuta diante de seu cliente deve manter uma atitude de facilitador de seu movimento criativo e expressivo, sugerindo materiais e técnicas para facilitar elaborações e busca de significados. O cliente, por outro lado, é sujeito ativo em seu processo, explorando as formas que produziu, dialogando e desvendando os significados de sua produção. Ao criar, pintar, desenhar ou modelar, o sujeito tem a chance de expressar e dar forma, materializando seus conteúdos e ao mesmo tempo dando significado à sua produção. Conforme desenvolve sua obra, constrói ou reconstrói seu mundo interior e suas relações, acessa antigas memórias e desenvolve seu potencial criativo. Expressar seus conteúdos artisticamente é como ter a chance de enxergar a si mesmo com olhar de quem está de fora ou sobrevoar a própria personalidade, e com este olhar poder fazer os ajustes necessários para uma saúde psíquica mais plena e completa. Para Andrade: Nas artes terapias e terapias expressivas, enquanto se realiza esta possível manifestação, o cliente integra, compreende e vivencia aspectos do mundo exterior e do interior concomitantemente. Pode dar-se conta do que de fato sente e, durante este processo pode verdadeiramente fazer algo que assim o represente, e a ele faça sentido (2000, p. 33). 34 A expressão verbal, diferentemente da arte, apresenta suas limitações. Falamos somente o que queremos e o que sabemos sobre nós mesmos, e levando em conta que a maior parte de nossa psique é inconsciente, o verbal tem um acesso bastante restrito a esses conteúdos. Segundo Ciornai (2004) a linguagem verbal é socialmente compartilhada, diferentemente da linguagem da arte, que é única e individual. Na arte, cada pessoa é convidada a desenvolver uma linguagem própria, que reflete sua personalidade, modo de perceber o mundo e a si mesmo, levando ao desenvolvimento da individualidade e singularidade. Ao produzir algo artisticamente, o sujeito coloca em sua obra tanto seus conteúdos conscientes, isto é, aquilo que ele quer representar em sua produção, quanto seus conteúdos mais profundos e inconscientes, já que na linguagem artística, não existe a limitação ou controle que existe na linguagem verbal. É com este olhar que a produção artística pode ser chamada de um espelho do self. Enquanto expressa seus conteúdos e se depara com eles, o sujeito acessa profundamente sua psique e seu inconsciente, trazendo à tona o que lhe é importante naquele momento. A teoria junguiana acredita que além de conteúdos reprimidos, o inconsciente guarda também grande parte de potencial intelectual, emocional e criativo do ser humano. Em cima deste conceito, o trabalho com arte traz para o sujeito não só o que se refere a seus conflitos e dificuldades, mas também o que há de mais saudável e vivo em sua psique. Assim, a arteterapia busca por meio do criativo enfatizar os aspectos saudáveis do ser humano. Por meio do desenvolvimento do ser criativo, o cliente 35 pode se apropriar de suas qualidades, potencial, força e identidade; o que favorece o fortalecimento e estruturação do ego. Conforme o ego é fortalecido e o sujeito torna-se mais forte e consciente, começam a aparecer os conteúdos de mais difícil elaboração. Quem dá o tom e o ritmo é o cliente, de acordo com suas possibilidades e necessidades naquele momento. Ciornai complementa dizendo que: Tanto na arte quanto na terapia manifesta-se a capacidade humana de perceber, figurar e reconfigurar suas relações consigo, com os outros e com o mundo, retirando a experiência humana da corrente rotineira e por vezes automática do cotidiano, colocando-a sob luzes novas e estabelecendo novas relações entre seus elementos, misturando o velho com o novo, o conhecido com o sonhado, o temido com o vislumbrado, trazendo assim novas integrações, possibilidades e crescimento (2004, p. 36). O arteterapeuta deve ser um profissional preparado e formado para utilizar recursos artísticos diversos com fins terapêuticos, o que não significa que a atuação esteja vinculada a uma abordagem necessariamente psicoterapêutica, permitindo que profissionais de diversas áreas possam tornar-se arteterapeutas e possam utilizar a arteterapia como um recurso dentro de sua atividade profissional. Sendo assim, a arteterapia atua como um recurso terapêutico que pode ser apoiado em uma teoria psicológica como a psicanalítica, junguiana ou gestáltica, e neste caso, os recursos da arteterapia são usado tendo embasamento em uma teoria psicológica, diferenciando-se na forma de o terapeuta conduzir o processo, relacionar-se com o cliente e no olhar diante de sua produção. Para Andrade (2000), a arte é uma atividade lúdica que tem a propriedade de descobrir coisas, conhecer e experimentar objetos de maneiras diversas e diferentes daquelas usualmente instituídas. 36 Utilizar a arte para trabalhar os sonhos, significa dar a oportunidade de o cliente deparar-se com as mensagens de seu self de forma clara e direta. É como dar a ele um espelho que reflita seu mundo interno em sua forma mais completa: trazendo à superfície tanto seus conflitos quanto o que existe de mais vivo e saudável em sua psique. 37 5. DESCRIÇÃO DA PESQUISA A pesquisa foi realizada em consultório particular durante o atendimento psicoterapêutico realizado com a cliente G. que aceitou participar dessa pesquisa, assinando inclusive, um termo de consentimento para tal. A metodologia de coleta de dados foi realizada com o seguinte procedimento: foi apresentada à cliente uma folha sulfite A4 com um círculo de vinte centímetros de diâmetro traçado com lápis grafite HB. Nenhuma instrução foi dada, para que a cliente pudesse utilizar o círculo da forma que desejasse, ou não utilizá-lo. Juntamente com a folha, foi oferecido lápis de cor, giz de cera, pastel seco e tinta guache para ter a opção de escolher o material para representar o seu sonho. O desenho da mandala, símbolo do self segundo Von Franz (1979), já inscrito na folha de papel oferecida, foi introduzido para oferecer à cliente estrutura e segurança para favorecer a livre expressão de seus sonhos. Com o objetivo de possibilitar a G. conhecer e experimentar o contato com seu mundo interno de uma maneira não verbal, foi proposto que representasse seus sonhos artisticamente; para que em sua produção, pudesse dialogar com os conteúdos e simbolismos apresentados nos sonhos, compreender suas mensagens e principalmente, entrar em contato com o que existe de mais vivo e latente em sua psique, revelados tanto nos sonhos quanto em suas produções artísticas, para que se deparando com sua forma simbólica, pudesse integrá-los à sua consciência. 38 5.1. Perfil da Cliente G. é uma mulher de 25 anos, formada em psicologia e atualmente trabalha em uma empresa de pesquisa de mercado. Já fez terapia durante dois anos e se diz muito interessada na abordagem junguiana, especialmente no trabalho com sonhos. É a filha mais nova de quatro mulheres e a única que ainda mora com os pais. Tem uma relação difícil com a mãe, que considera muito crítica e controladora, e além disso incomoda-se muito com o fato de G. estar bastante acima do peso. G. procurou terapia sem uma queixa específica, dizendo que com sua outra terapeuta „parou em um determinado ponto‟, e agora deseja continuar. Nas primeiras sessões, sempre trazia a questão de que não gostava de ficar sozinha. Dizia sempre ter de estar na companhia de alguém ou fazendo alguma coisa. A situação de seu pai incomodava-a, já que é aposentado e tem poucas atividades e muito tempo livre. Após algumas sessões, G. revelou que desde os treze anos, apresenta um quadro de Tricotilomania, patologia que, segundo o DSM IV (2002) a pessoa arranca os próprios fios de cabelo de maneira recorrente, levando à perda capilar perceptível. Normalmente, o ato de arrancar os fios de cabelo é antecedido de tensão, e leva o sujeito à sensação de prazer e de satisfação ao realizar o ato. 39 5.2. Momento Terapêutico de G. Após um ano no processo terapêutico, G. inicia um curso de formação em Psicoterapia de Abordagem Junguiana, e inicia seus atendimentos na clínica da escola. O cliente é um menino de 10 anos, muito grande e gordo, segundo seu relato. Os atendimentos têm feito G. refletir muito sobre sua vida, sua infância e sexualidade, além de estar tendo muitos sonhos os quais relaciona com a nova fase profissional. As questões relacionadas a seus pais continuam recorrentes na terapia. G. começa a entrar em contato com questões referentes à sua sexualidade. Considerava-se bem resolvida nesta questão no início da terapia, e ao longo deste ano de tratamento manteve relações sexuais com alguns homens, que logo não a procuravam mais, o que lhe deixava magoada. Começa a entrar em tabus familiares e religiosos em relação à sua sexualidade, e percebe que a imagem de „bem resolvida sexualmente‟ não condiz com sua realidade. Conscientizar-se desta questão proporcionou um grande alívio à G., pois apesar de ter entrado em contato com a dificuldade, já não precisava mais sustentar o papel de „bem resolvida sexualmente‟ para si mesma nem para os outros, apresentando-se mais autêntica e respeitando suas limitações. Atender um paciente do sexo masculino fez com que refletisse sobre sua relação com o sexo oposto. 40 G. agora podia olhar para suas culpas e dificuldades, inclusive percebendo que a imagem que queria transparecer poderia estar afastando os homens que dela se aproximavam. No início de seu processo, a cliente revelou que era muito religiosa até perder a virgindade. Depois que isso aconteceu, segundo ela não se sentiu à vontade para continuar freqüentando a igreja de cuja crença compartilhava, já que considerava hipocrisia sua, pois não mais seguia os ensinamentos da igreja à risca. Após um ano de trabalho terapêutico, começou a pensar de outra forma. Voltou a ter vontade de freqüentar novamente a igreja. Ensaiou algumas vezes, sem sucesso, mas por fim, hoje, permite-se participar dos cultos, e sente-se muito bem com isso. 5.3. O Primeiro e o Segundo Sonho de G. “Sonhei que puxava os dentes, ia mordendo e eles iam se quebrando. Acordei pensando que preciso ir ao dentista. Já sonhei com dentes quebrando outras vezes”. G. teve esse sonho logo que iniciou os atendimentos com o garoto. Disse que ao acordar, pensou que tem que tomar cuidado, pois está se tornando frágil, e que tem que prestar mais atenção nos dentes. Associa dentes com „fortaleza, forte, firmeza‟. Conta ainda que sempre teve dentes fortes. Na mesma sessão trouxe o sonho seguinte, que disse ser um sonho recorrente, isto é, um sonho que é sonhado repetidamente, esporadicamente ou não, no decorrer de um tempo indeterminado. 41 G. explica que „esse sonho é um sonho que não é sonho‟, pois é muito real para ela e se repetiu, da última vez, há três meses. Diz sentir muita angústia, sufocamento, algo preso, que quer sair e não sai. „Estou deitada na cama, acordo e levo um susto. Tem alguma coisa fora que quer me sufocar pela garganta. É constante, eu tento dormir e sonho de novo. No sonho grito chamando minha mãe, sinto os dentes tremerem e mordo o lençol. Aí grito: Ai, mãe, me ajuda! Me tira daqui!‟. 5.3.1. Representação do primeiro e segundo sonhos Conforme o combinado, convido G. a desenhar seus sonhos. Ofereço os materiais, e G. analisa-os antes de iniciar sua produção. Escolhe o giz de cera e inicia desenhando no canto esquerdo inferior alguns dentes, com uma tonalidade bege e fundo alaranjado. Representou um recorte, isolando esta parte do resto do desenho, que depois completou. O recorte representa um plano mais profundo, onde há uma figura que ressalta: um dente maior, e outros cinco dentes. Um rasgo é desenhado com movimentos angulados, como que isolando esta parte do desenho, feito com uma cor de tonalidade forte, o laranja, com bastante intensidade, inclusive movimentos repetime descrito anteriormente. Começou desenhando um travesseiro e um rosto sem expressão, representando-a adormecida. Em seguida desenhou-se já no momento em que se sentia sufocada por uma coisa externa. 42 Neste desenho, utiliza várias cores, inclusive respeitando os limites do círculo, pois a figura do rosto é representada inferida em parte. Reforça com a cor verde o quanto se sente sufocada, representa a boca bem fechada e vermelha, revelando sua dificuldade em expressar o quê a sufoca. Na terceira etapa, desenha-se com uma cara de pavor. Os olhos, nariz e boca são roxos, mas já podendo gritar e expressar o seu horror. 43 5.3.2. Simbolismo e Relação com o Momento Terapêutico de G. Ao observar a imagem de G. percebo que ela faz uso de um material que lhe permite mais controle, o giz de cera. Os dentes, segundo Chevalier e Gheerbrant (1982), simbolizam força, agressividade. Perder os dentes simboliza a perda da força vital, juventude e defesa. Porém, perdem-se os dentes para que novos possam nascer, o que é símbolo de renovação, de nova fase, de emergir de um novo ciclo. Isso pode relacionar-se com o momento psíquico e de vida de G. Depois de um ano em processo psicoterapêutico, ela se dispôs a trabalhar questões de sua sexualidade, infância e relação com sua mãe, principalmente devido à sua identificação1 com seu novo cliente, que a faz refletir sobre muitas questões pessoais. Como G. diz, a „fortaleza‟ que os dentes representam para ela pode ser lido como seus antigos valores relacionados à família, à infância e à sexualidade que estão pela primeira vez sendo questionados, podendo assim „cair‟, para que seus próprios valores sejam construídos. Além disso, existe o novo momento profissional de G., que busca aprimoramento para começar sua atuação como psicóloga, o que tem grande significado para ela. Seu segundo sonho apresenta-se em três fases. 1 Identificação: processo psicológico no qual a personalidade é parcialmente ou totalmente dissociada. Denota semelhança inconsciente entre sujeito e objeto (SHARP, 1991, p. 62). 44 O primeiro desenho, em que o rosto não tem expressão, mostra a identificação e o quanto se apresentava ainda inconsciente em relação àquilo que a estava sufocando. Possivelmente, a expressão artística deste momento, a fez tomar consciência de que ela já tem condições de verbalizar o que a sufocava, já que na terceira etapa do desenho está gritando, e depois consegue reconhecer e falar sobre essa questão. 5.3.3. Considerações de G. sobre o primeiro e segundo sonho Após desenhar o sonho, G. diz lembrar dos desenhos de seu cliente. Conta que o menino olha os desenhos e diz que não estão bons e que, às vezes, identificase muito com ele, pois assim como ela, ele tem grande preocupação com a aparência. Quando o garoto desenha figuras humanas, faz cabelos pretos, corpo deformado, quadrado. Cobre toda a parte genital e os seios de preto. G. diz que se reconheceu no rosto do desenho dele: „um rosto normal, cabelos, cara feliz e alegre.‟ Aparentemente, G. diz reconhecer-se no rosto „normal‟ do desenho do menino, mas provavelmente identifica-se também com o corpo quadrado e deformado e os seios e partes genitais cobertos de preto, tocando também em suas questões relacionadas à sexualidade. Traz para a sessão este fato em diversos momentos, e trabalhamos para que ela reconheça em que se identifica com as questões do menino, e assim têm surgido muitas situações de sua infância e sexualidade para que possamos discutir juntas. 45 Começa a falar de sua „dificuldade de se comunicar com o masculino‟, e explica que é muito difícil trabalhar isso, inclusive sentiu-se desconfortável quando soube que ia atender um garoto. Durante os atendimentos sente-se bastante incomodada, o que a faz pensar se deve fechar a porta ou não enquanto atende. Tem a fantasia que „alguém pode pensar alguma coisa‟ sobre ela e o garoto estarem fechados na sala. Pergunto de onde vem essa fantasia, e G. diz que pode ter relação com sua mãe que a julgaria punitivamente se a visse fechada em uma sala com alguém do sexo masculino, mesmo sendo um garoto, insinuando que estaria namorando. Quando algum amigo lhe telefona em casa, a mãe logo quer saber quem é pressupondo que possa ser um namorado, o que a deixa incomodada. Pergunto se isso também é um problema para ela, ou somente para sua mãe. G. não tem esse tipo de problema, inclusive tendo vários amigos do sexo masculino, fato relatado em muitas sessões. G. percebe-se olhando a situação como que com os olhos de sua mãe, e não da forma que realmente acredita que seja, pois quem realmente se importa com isso é sua mãe e não ela. Interpreta que o grito pode estar querendo dizer que ela não quer mais isso para si, o valor de pensar que todo contato com o sexo masculino denota um interesse sexual por alguma das partes. Pergunto se gostaria de devolver isso à sua mãe, já que ela percebeu que não é um valor seu, e G. diz que gostaria e emociona-se. 46 Depois deste sonho, avançamos muito no que diz respeito à sua relação com o sexo masculino. Outras questões referentes à sexualidade apareceram, e G. pôde refletir sobre isso em diversas situações de sua vida. 5.4. O Terceiro Sonho de G. Duas semanas depois, G. traz outro sonho: „Estou em uma sala, como uma repartição pública. Algumas pessoas entram e saem. Fechei a porta e fui em direção ao elevador. Havia dois elevadores, estava vazio. Peguei o elevador do lado direito. Entrei, e começou a descer em uma velocidade mais rápida do que o normal, e nessa hora, o elevador diminuiu um pouco de tamanho. Pensei: „tô sozinha‟. Senti um pouco de medo, vazio, quando começou a descer rápido. O elevador abriu, eu saí, e no saguão tinha um teto alto e não tinha ninguém. Comecei a andar, peguei um ônibus em uma rua asfaltada. Comecei a caminhar a pé e de repente, para chegar onde deveria, tinha que passar por um monte de pessoas pobres, de rua. Fiquei com receio, mas fui assim mesmo. Tinham alguns morrinhos no chão. Passei por um jogo de voley, e comecei a andar no meio do jogo. Achei a porta onde deveria entrar. Era um colégio. Tinha uma criança chorando, e eu conversei com ele. Pensei: ‟Será que essa criança era eu?‟ Ao lado dele, tinha umas prateleiras com potes de cristal, e o menino olhando, empurrava levemente como se quisesse que caísse. Não derrubou nenhum, e eu conversei com ele sobre aquilo. Fui para uma sala com várias caixinhas, armário de bonecas e objetos de parede que eu tinha pintado. As pessoas me perguntavam, e eu dizia que eu que tinha feito. Saí, começou a chover e fiquei com receio que as crianças de rua roubassem meus objetos. Corri desesperadamente. Uma mulher arrumou uma sacola pra mim. Mostrou-me algumas caixas cruas, mas não eram as minhas. Cheguei em um lugar e minhas caixas estavam todas amontoadas em um canto do lado direito. Eu estava aliviada porque as crianças não tinham levado minhas caixas, mas não tinha sacola para eu levá-las comigo. Fui atrás da sacola 47 com a mesma mulher, e tinha muito medo que alguém pegasse minhas coisas. Não encontrei as sacolas, e carreguei algumas coisas na mão.‟ 5.4.1. Representação do terceiro sonho Depois do sonho relatado, convidei-a a expressá-lo artisticamente. Novamente ofereci a folha com o círculo e os mesmos materiais. G. não conhecia o pastel seco e decidiu experimentá-lo. Começou pelas cores azul e roxo, pintando o lado direito do círculo. Continuou utilizando outras cores: rosa, laranja, verde e amarelo até que completasse o círculo todo. Não fez nenhum comentário sobre sua produção neste momento, e logo começou a comentar o sonho que, segundo ela, foi muito marcante. 5.4.2. Simbolismo e relação com o momento psicoterapêutico de G. G. mais uma vez escolheu um material que possibilita maior controle, mas desta vez era um material novo, que não conhecia anteriormente, mostrando que está aberta a novas experiências. Representa uma figura abstrata, sem forma aparentemente definida e utiliza várias cores em sua produção. Para melhor compreender a utilização das cores, trago Chevalier e Gheerbrant (1982) que apresentam em sua obra a representação simbólica das diversas cores utilizadas por G. 48 A cor azul, por qual a cliente começou a pintar, segundo os autores é a mais profunda das cores, e representa a imaterialidade, o vazio. A cor roxa representa a involução, é a cor que representa o “apagar das luzes” (p. 456). O laranja aparece somente uma vez em sua produção e quase no centro é a cor que representa o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. O verde, que se encontra bem no centro de sua produção é símbolo do despertar da vida, é o que traz de volta a esperança. O amarelo, que aparece em lados exatamente opostos do círculo, representa, segundo os autores o masculino por sua relação com o sol, símbolo também do masculino ou da figura paterna. 49 É interessante observar que todas as cores, escuras e claras, que representam aspectos positivos e negativos de sua personalidade, estão representadas interagindo entre si, representado uma unidade. G. diz que gostou de sua produção, mas não gostou do lado direito. Segundo os mesmos autores, as cores do lado direito remetem ao vazio e à ausência, podem ser associadas a questões que desde o início do processo ela apresenta muitos questionamentos: o fato de não conseguir ficar sozinha, ou relaxada, já que é nessas situações que ela começa a arrancar os cabelos. O fato de parar e ficar em contato consigo mesma era muito angustiante para G. Para fugir disso, estava sempre envolvida em alguma atividade, ia trabalhar nos finais de semana, ou levava trabalho para casa. Possivelmente é por isso também que G. se incomoda tanto com o fato de seu pai não ter muitas atividades, e muito tempo para ficar ocioso. Aos poucos, G. foi tendo mais condições de enfrentar essa situação. No final do ano passado, permitiu-se tentar uma viagem sozinha para o nordeste, o que foi muito positivo para ela. O lado direito aparece em alguns momentos neste sonho de G: é o lado de que ela não gosta em sua produção, é o lado do elevador que pega para descer, é no lado direito que suas caixinhas estão amontoadas. Segundo os autores, o lado direito, é símbolo do masculino, enquanto o lado esquerdo simboliza o feminino. Mais uma vez, G. apresenta em seu desenho sua dificuldade com o masculino e sua possibilidade de agora poder olhar para isso de forma mais verdadeira e madura, que no sonho reforçada por seu encontro com o menino. 50 5.4.3. Considerações de G. sobre o terceiro sonho Inicia falando sobre o menino do sonho, uma criança gordinha, que é a cara de seu primo de 10 anos. Pergunto como é seu primo, e ela conta que é uma criança tímida, retraída, que não gosta de se expor ou aparecer. É revoltado com a mãe, e também um pouco agressivo. Além disso, aparenta ter muita mágoa, porque o pai se separou da mãe. É um menino que usa a força física para conseguir as coisas. Não é afetivo, é um tipo mais fechado. Apesar disso é sensível, e G. o percebe porque quando estão falando dele ou de sua mãe, ele chora. G. lembra então de seu cliente e diz que ele é um garoto levado, o que é uma queixa freqüente da mãe. É muito grande e gordo para sua idade, pois apresenta um quadro de distúrbio de alimentação. Em um dos atendimentos, estavam brincando, e ela tentou colocar limites ao garoto e ele não gostou. Lembra que a mãe já havia dito que ele não gosta de ser contrariado. Pensa: „vai ser difícil‟, mas afirma que isso não quer dizer que está se esquivando de tentar fazer um bom atendimento. G. mostra que percebe o quanto está identificada tanto com o menino do sonho quanto com seu primo, já que algumas vezes levanta a hipótese de a criança do sonho ser ela mesma. Porém, revela que „vai ser difícil‟ lidar com essa questão, mas que está disposta a enfrentar, como já começou a fazer, „sem se esquivar‟, como ela mesma diz. 51 Segundo ela, o colégio do sonho pode ser o colégio que ela estudou. O pátio tinha o mesmo formato, a mesma porta, mas em sua escola tinha uma escada. Era um lugar muito familiar. Pensa novamente que a criança do sonho pode ser ela. Peço para que ela fale mais sobre isso, e G. diz que é como se soubesse pelo que ele está passando, pois pedia ajuda por não conseguir lidar com o que estava acontecendo. Estava em um canto isolado, sentindo-se sozinho. Diz que a criança sabia que ela sabia o que ele estava passando, pois foi uma criança parecida com ele. Relata que quando olhava nos olhos dele, via algo além de uma criança, pois aquele olhar dizia outras coisas, mas que no momento não sabe identificar exatamente o que é. Neste momento G. mostra ainda não estar pronta para entrar em contato com alguns sentimentos e lembranças de sua infância, pois ainda não pode identificar o que aquele olhar da criança poderia revelar. Começa a falar novamente da representação do sonho. Diz que o pastel seco não é o tipo de coisa que costuma gostar pois „não gosta muito de coisas secas e disformes.‟ Conta que o que permitiu que ela se sentisse bem foi o círculo, que segundo ela dá limites. Neste ponto aparece o quanto a figura da mandala é estruturante. G. permitiuse experimentar algo de que não costuma gostar, porque a mandala deu a sensação do limite, tendo, então, a chance de dialogar com a mensagem de seu sonho em um campo protegido, seguro e motivador. 52 Diz que o colorido de seu desenho, lembra o sonho. „Me lembra planeta terra, a questão do todo. Parece quente e intensa, tem movimento, parece uma célula viva.‟ G. em seu sonho teve a chance de pegar o elevador a acessar partes de seu inconsciente, envolvendo tanto suas dificuldades quanto seu potencial, e todos esses aspectos, puderam ser representados como partes de um todo que se comunicam, que é um só. Percebe que é uma célula viva, quente e intensa, independente de suas dificuldades e questões a serem resolvidas. G. agora pode olhar para as questões que tem a trabalhar, reveladas nos sonhos, de forma mais verdadeira pois percebe-se viva e com movimento, e principalmente com condições de continuar lidando com isso de forma corajosa. 53 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Realizar essa pesquisa relacionando a arteterapia e a psicoterapia no trabalho com sonhos, possibilitou-me analisar, reavaliar, compreender e refletir sobre diversos aspectos referentes tanto a uma abordagem quanto a outra. O objetivo deste trabalho de verificar como a arteterapia poderia ser utilizada, para que a cliente pudesse compreender as mensagens enviadas em seus sonhos, sem a necessidade de intervenção e interpretação do terapeuta, que atuaria acolhendo, mobilizando e mediando o processo da cliente. A arteterapia parte do princípio que o cliente tem potencial para direcionar e trazer à tona conteúdos importantes para seu autoconhecimento e autodesenvolvimento, desde que esteja mobilizado para tal, e foi deste princípio também que partiu minha pesquisa. Logo que pedi para que G. representasse seus sonhos artisticamente, pareceu-me inicialmente que o sonho e sua representação eram coisas totalmente distintas, sem uma significativa relação, e talvez com a necessidade de compreensões diferentes. Porém, no momento que olha sua produção e a relaciona com o sonho, G. se dá conta do quanto a representação de seus sonhos traziam aspectos importantes e profundos sobre seu momento, seu movimento e sua personalidade; e eu, como psicoterapeuta percebi o quanto a representação artística trazia conteúdos e aspectos não antes revelados com a amplificação2 verbal. 2 Amplificação: Método de associação baseado no estudo comparativo de mitologia, religião e contos de fadas, usado na interpretação de imagens de sonhos e desenhos (SHARP, 1991, p. 15). 54 É interessante notar, que na amplificação verbal dos sonhos, G. acessa partes de seu „si-mesmo‟ relacionando-se com alguns personagens dos sonhos, identificando-se com outros, e traz principalmente as características de sua personalidade que ainda estão em desenvolvimento e suas dificuldades emocionais. Isso pode ser visto claramente no terceiro sonho, quando G. identifica-se com o menino chorando, e diz saber exatamente o que ele está sentindo, ou quando também pela relação com este menino, conscientiza-se de sua dificuldade de relacionar-se com o sexo oposto. Porém, a representação artística deste mesmo sonho traz exatamente o outro lado desta questão: o lado de G. mais saudável, vivo, intenso e com movimento, e é quando ela se conscientiza de que todos esses lados unem-se em um mesmo todo. Neste momento percebo o quanto a importância da psicoterapia não é somente trabalhar os conflitos do sujeito. A percepção e a integração de suas qualidades e de seu potencial revelados na expressão artística fizeram com que G. se sentisse mais capaz e preparada para trabalhar conteúdos difíceis e profundos. A partir do trabalho com estes sonhos, G. resolveu encarar com coragem questões muito importantes em sua vida. O trabalho verbal e artístico, neste caso, atuaram de forma complementar: enquanto o verbal acessou questões que G. tem a desenvolver, o artístico trouxe seu lado mais saudável, trabalhando sua auto-estima e impulsionado para um maior desenvolvimento. Ao começar a analisar os trabalhos de G. já fora da sessão, fui buscar os simbolismos do que era apresentado em seus sonhos. Percebi que a busca e a compreensão dos aspectos simbólicos dos conteúdos dos sonhos de G. trouxeram- 55 me muitas informações que tanto eu quanto G. não tivemos acesso enquanto trabalhávamos seus sonhos na sessão. Foi então que comecei a refletir e ressignificar o meu olhar no que diz respeito à interpretação. Percebi, então, que a interpretação em psicoterapia e em arteterapia pode ser compreendida de maneira diferente. Utilizando os recursos artísticos, interpretar implica em uma compreensão do símbolo a partir do que ele revela. Significa o cliente ter a chance de olhar parte de seu „si-mesmo‟, compreender o que representou simbolicamente e integrar o que foi exposto em sua produção à sua consciência. O conteúdo, quando expresso de forma plástica, já está exposto para que o sujeito relacione-se com ele, diferente da interpretação em psicoterapia, em que os conteúdos simbólicos são apresentados e revelados basicamente pelo psicoterapeuta, a fim de tornar consciente o inconsciente (SHARP, 1991, p. 16). Interpretar os simbolismos dos sonhos possibilitou-me um olhar muito mais amplo ao conteúdo psíquico de G., e essa compreensão ajudou-me a aprofundar não só os aspectos trazidos por ela para a terapia, mas também a relação terapeutacliente. Percebi que a interpretação pode ser uma parte importante do processo para o psicoterapeuta, já que este passa a ter muito mais recursos para compreender e trabalhar com o cliente. Sendo assim, além de relacionar o trabalho de psicoterapia e arteterapia, que é onde desejo aprofundar-me como profissional, tive a chance de ampliar o meu olhar nas duas abordagens, refletir e redimensionar os conceitos de interpretação. 56 O objetivo desta pesquisa foi alcançado: G. realmente acessou partes de seu „si-mesmo‟ a partir das representações artísticas, que lhe deram recursos para que compreendesse os conteúdos expressos em seus sonhos; e eu como psicoterapeuta, por outro lado, atuei acolhendo, direcionado e mediando esse processo que, com o uso da arte como recurso, aconteceu de forma natural e espontânea. O pensamento de Jung (1961) de que para cada paciente deve-se inventar uma nova psicoterapia agora me faz muito sentido. Percebi que diferentes recursos podem ser válidos e produtivos, desde que seja confortável e faça sentido tanto para o cliente quanto para o terapeuta. 57 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMMANN, R. A Terapia do Jogo de Areia. São Paulo: Paulus, 1989. ANDRADE, L. Q. Terapias Expressivas. Arte-Terapia, Arte-Educação, TerapiaArtística. São Paulo: Vetor, 2000. ASSOCIAÇÃO Psiquiátrica Americana. DSM – IV. Porto Alegre: Artmed, 2002. BOSNAK, R. Breve Curso sobre Sonhos. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1986. CHEVALIER E GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olímpio,1982. CIORNAI, S. Percursos em Arteterapia. Arteterapia Gestáltica, Arte em Psicoterapia e Supervisão em Arteterapia. São Paulo: Summus Editorial, 2004. HALL, James A., M. D. A Experiência Junguiana. Trad. Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Cultrix, 1986. HUGENDUBEL, K. Mandalas. São Paulo: Pensamento, 1985. JUNG, C. G. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. São Paulo: Nova Fronteira, 2006. KAST, V. A Dinâmica dos Símbolos. São Paulo: Loyola, 1994. RUDIGER, D. Mandalas: Formas que Representam a Harmonia do Cosmo e a Energia Divina. São Paulo: Pensamento, 1985. SHARP, D. C.G Jung Lexicon. A Primer of Therms and Concepts. San Francisco: Inner Books, 1991. SILVEIRA, N. Jung Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 58
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