sobre bruno enei - Todapalavra Editora
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Todapalavra editora Editor-chefe Hein Leonard Bowles Diretor administrativo Orlando Antonio Cestaro Diretor de projetos Niltonci Batista Chaves Diretora acadêmica Carmencita de Holleben Mello Ditzel Diretor de arte Élio Chaves Secretário executivo Danilo Ribeiro Conselho Editorial Dr. Alexandro Dantas Trindade (UFPR) Ms. Anelize Manuela Bahniuk Rumbelsperger (Petrobrás) Dra. Carmencita de Holleben Mello Ditzel (UEPG) Dr. Claudio DeNipoti (UEPG) Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior (UEPG) Dra. Divanir Eulália Naréssi Munhoz (UEPG) Dr. Hein Leonard Bowles (UEPG) Dr. José Robson da Silva (UEPG) Dra. Joseli Maria Silva (UEPG) Dr. Kleber Daum Machado (UFPR) Dr. Luis Fernando Cerri (UEPG) Ms. Luísa Cristina dos Santos Fontes (UEPG) Dr. Luiz Alberto Pilatti (UTFPR) Dr. Luiz Antonio de Souza (UEM) Ms. Manuela Salau Brasil (UEPG) Ms. Marcelo Chemin (UFPR) Dra. Maria José Subtil (UEPG) Ms. Maria Zaclis Veiga (Universidade Positivo) Ms. Niltonci Batista Chaves (UEPG) Dr. Sérgio Luiz Gadini (UEPG) Dra. Silvana Oliveira (UEPG) Ms. Vanderlei Schneider de Lima (UEPG) Dra. Vera Regina Beltrão Marques (UFPR) Dr. Vitoldo Antonio Kozlowski Junior (UEPG) Dr. Wolf Dietrich Sahr (UFPR) © 2010 Todapalavra Editora Revisão Sigrid Lange Scherrer Renaux Hein Leonard Bowles Capa Élio Chaves Desenhos sobre obra de Ricardo Enei Projeto Gráfico Élio Chaves Desenhos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bruno Enei: aulas de literatura italiana e desafios críticos / Sigrid Lange Scherrer Renaux, Hein Leonard Bowles, (orgs.). -- Ponta Grossa, PR : TODAPALAVRA, 2010. Bibliografia 1. Enei, Bruno, 1908-1967 2. Literatura italiana - História e crítica I. Renaux, Sigrid Lange Scherrer. II. Bowles, Hein Leonard. CDD-850-9 10-01783 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura italiana : História e crítica 850.9 Depósito legal na Biblioteca Nacional ISBN: 978-85-62450-07-5 TODAPALAVRA Editora Rua Xavier de Souza, 599 Ponta Grossa – Paraná – 84030-090 Fone/fax: (42) 3226-2569 [email protected] www.todapalavraeditora.com.br Sumário APRESENTAÇÃO. ........................................................................ 9 SOBRE BRUNO ENEI................................................................ 13 AGRADECIMENTOS................................................................. 19 AULAS DE LITERATURA ITALIANA DO MESTRE BRUNO ENEI. ................................................... 21 LITERATURA ITALIANA I (1956)......................................... 23 A LITERATURA MEDIEVAL................................................... 25 A ORIGEM DA LÍNGUA ITALIANA....................................... 28 A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIII..................... 31 A literatura didascálico-alegórica da França setentrional..... 34 A literatura amorosa da França meridional........................... 35 A poesia religiosa no século XIII.......................................... 36 A escola do Dolce Stil Nuovo............................................... 40 A poesia religiosa: Giacomino da Verona, Bonvesin da la Riva, San Francesco d’Assisi e Iacopone da Todi................................................................ 45 A poesia realística e burguesa............................................... 47 A Scuola Siciliana até o Dolce Stil Nuovo............................ 49 A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIV..................... 52 Vida de Dante Alighieri (1265-1321)................................... 54 Obras de Dante...................................................................... 58 A Divina Comédia sob um ponto de vista humano.............. 70 Impressões sobre o Inferno de Dante.................................... 75 Francesco Petrarca (1304-1374)........................................... 81 Obras de Petrarca.................................................................. 83 Obras de Petrarca em italiano............................................... 84 Giovanni Boccaccio (1313-1375)......................................... 89 Obras de Boccaccio.............................................................. 93 Aspectos menores da literatura italiana do século XIV........ 99 LITERATURA ITALIANA II (1957)...................................... 101 O HUMANISMO..................................................................... 103 Angelo Poliziano (Agnolo Ambrogini) (1454-1494).......... 106 Obras de Poliziano.............................................................. 107 Lorenzo de’ Medici: Il Magnifico (1449-1492).................. 111 Obras de Lorenzo de’ Medici.............................................. 112 Luigi Pulci (1432-1484)...................................................... 115 Obras de Pulci..................................................................... 116 Matteo Maria Boiardo (1441-1494).................................... 119 Obras de Boiardo................................................................ 120 Jacopo Sannazaro (1457-1530)........................................... 123 Obras de Sannazaro............................................................ 124 Leon Battista Alberti (1404-1472)...................................... 126 Obras de Alberti.................................................................. 127 Leonardo da Vinci (1452-1519).......................................... 129 A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVI................... 131 Ludovico Ariosto (1474-1543)........................................... 132 Obras de Ariosto................................................................. 135 Niccolò Machiavelli (1469-1527)....................................... 140 Obras de Machiavelli.......................................................... 143 Obras políticas de Machiavelli........................................... 145 Obras históricas de Machiavelli.......................................... 149 Obras literárias de Machiavelli........................................... 150 Torquato Tasso (1544-1595)............................................... 153 Vida de Tasso...................................................................... 154 Obras de Tasso.................................................................... 157 A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVII.................. 161 Giambattista Marino (1569-1625)...................................... 164 Galileo Galilei (1564-1642)................................................ 165 Paolo Sarpi (1552-1623)..................................................... 166 Pietro Metastasio – poeta da Arcádia (1698-1782)............. 167 A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVIII................. 172 A historiografia no século XVIII........................................ 176 A renovação da crítica literária italiana no século XVIII... 178 Carlo Goldoni e a segunda parte do século XVIII.............. 180 Giuseppe Parini (1729-1799).............................................. 182 LITERATURA ITALIANA III (1958).................................... 185 O ROMANTISMO................................................................... 187 O Romantismo italiano....................................................... 196 Ugo Foscolo (1778-1827)................................................... 199 Análise da produção poética de Foscolo............................. 205 A crítica de Foscolo............................................................ 222 Vida de Foscolo.................................................................. 223 Giacomo Leopardi (1789-1837)......................................... 225 Vida de Leopardi................................................................. 241 Obras de Leopardi............................................................... 252 A Silvia e Il sabato del villaggio, de Leopardi, com tradução de Bruno Enei....................................................... 259 Alessandro Manzoni (1785-1873)...................................... 265 Vida de Manzoni................................................................. 269 Obras de Manzoni............................................................... 275 A crítica literária e a estética de Francesco De Sanctis....... 287 Giosuè Carducci e o Romantismo...................................... 288 Obras de Carducci............................................................... 292 A crítica de Carducci........................................................... 294 A LITERATURA DO DECADENTISMO............................... 295 Giovanni Pascoli (1855-1912)............................................ 296 Obras de Pascoli.................................................................. 298 Pascoli crítico...................................................................... 298 Gabriele d’Annunzio (1863-1938)...................................... 299 Obras de d’Annunzio.......................................................... 308 La pioggia nel pineto, de d’Annunzio, com tradução e comentário de Bruno Enei......................... 312 A LITERATURA ITALIANA APÓS D’ANNUNZIO............. 322 Poemas de Giuseppe Ungaretti, Guido Gozzano e Antonia Pozzi, com tradução e análise de Bruno Enei....... 327 ESCRITOS DE BRUNO ENEI. .............................................. 335 Justiniano............................................................................ 337 A propósito de “Uma Interpretação das Américas”............ 339 Leonardo da Vinci............................................................... 343 Da inutilidade da literatura................................................. 345 Necessità di un ritorno........................................................ 348 Gêneros literários................................................................ 350 Impressões do Rio (I) Colóquio com Carlos Drummond de Andrade........................................... 354 Impressões do Rio (II) - Apartes e sugestões...................... 357 Cristóforo Colombo e sua época......................................... 359 Esperanças da crítica........................................................... 362 Literatura na Princesa dos Campos Gerais......................... 366 O Humanismo e a Renascença............................................ 373 Carta a Sigrid Renaux......................................................... 378 Impressões de um leitor contemporâneo............................ 382 A dor da poesia contemporânea.......................................... 384 Breve introdução ao estudo da estética............................... 385 Duas notas sobre estética.................................................... 396 PRONUNCIAMENTOS DE BRUNO ENEI........................ 401 O conceito da filosofia moderna relativamente ao homem............................................................................ 403 À margem da história.......................................................... 417 Saudação à turma de bacharéis “Bruno Enei”.................... 424 ESCRITOS SOBRE BRUNO ENEI....................................... 431 Homenageado o professor Bruno Enei por sua atuação no recente concurso......................................... 433 Profundo interesse cultural da mocidade universitária carioca............................................................ 435 Professor Bruno Enei – Um homem dentro da vida........... 438 Le celebrazioni dantesche a Ponta Grossa.......................... 443 Bruno Enei – A personificação da cultura........................... 444 Bruno Enei.......................................................................... 446 Perfis da cidade................................................................... 449 ORGANIZADORES.................................................................. 451 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos APRESENTAÇÃO Estes “Apontamentos de História da Literatura Italiana”, assim chamados pelo próprio professor Bruno Enei, foram taquigrafados e datilografados durante os anos de 1956-1958, período em que fui sua aluna de Língua e Literatura Italiana no Curso de Letras Neolatinas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (naquela época, Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras). Eles foram preservados, desde então, pela simples razão de que eram preciosos demais para serem descartados e, assim, foram guardados, juntamente com os livros de história da literatura italiana que o professor Bruno havia recomendado aos alunos. Em três volumes, os “Apontamentos” abrangem, em sequência, a história da literatura italiana a partir da literatura medieval até o século XIV; do Humanismo ao século XVIII; e do Romantismo até a literatura italiana após d’Annunzio. Evidentemente algumas dessas anotações estão incompletas, ou até falhas, visto que, por um lado, eu não era taquígrafa profissional, e, por outro, pela rapidez e paixão com que o professor Bruno falava, sem apontamentos – com exceção de títulos de obras e datas de nascimento dos autores, que ele escrevia no quadro-negro –, em seu entusiasmo em transmitir aos alunos toda sua apaixonante erudição e conhecimento profundo de literatura, arte, filosofia e história. O entusiasmo do professor Bruno também se revelava no fato de, em suas aulas, referir-se constantemente a críticos como Attilio Momigliano, Francesco Flora e Francesco De Sanctis, entre outros, citando-os apenas pelo sobrenome e com aquela naturalidade de quem está convivendo com eles a todo instante. Foram essas as razões que me fizeram entregar os originais ao Dr. Álvaro Augusto Cunha Rocha, amigo pessoal do professor Bruno, no ano de 1983, numa primeira tentativa de publicá-los pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Por motivos alheios a esta iniciativa, a publicação não chegou a ser concretizada naquela ocasião. A tentativa foi, entretanto, registrada por Álvaro Rocha no texto “Bruno Enei”, publicado no jornal ponta-grossense Diário dos Campos em 5 de novembro de 1983,1 no qual ele ressalta a importância da publicação desses “Apontamentos”. ,1 Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 446 a 449. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 10 [...] ao longo das considerações expendidas a respeito das escolas e autores estudados – destinadas à análise do jogo dialético de influências e à identificação dos diferentes processos de criação literária – e aí, portanto, as reflexões do professor sobre a linguagem, o tempo, as aspirações, as transfigurações místicas, o peso histórico e social – há sempre, reverberando por estas páginas, a poderosa e instigante ”atualidade” do mestre. Exatamente como se ele estivesse de fato “entre nós”, nítido e intenso, aqui e agora. Como observa ainda Álvaro Rocha, esta iniciativa coincidia com a tramitação de um projeto na Câmara Municipal de Ponta Grossa de promover anualmente uma semana de atividades culturais variadas, com o nome “Semana da Cultura Bruno e Maria Enei”. Este projeto, de autoria dos vereadores José Ruiter Cordeiro e Manoel Ozório Taques, foi transformado na lei n0 3.589, de 8 de novembro de 1983, conforme consta na crônica Perfis da Cidade, de Vieira Filho, publicada no Diário dos Campos em 25 de novembro de 1983,2 na qual o cronista também destaca a importância de se homenagear postumamente “um casal de Mestres cuja passagem entre nós se constituiu num exemplo permanente de saber, sensibilidade, humanismo e beleza estética raramente encontrado no seio de uma comunidade por mais evoluída que ela pretenda ser.” A intenção de contribuir para a preservação da memória da figura intelectual e humana do professor Bruno Enei para as atuais e futuras gerações de estudantes finalmente se concretiza, com a publicação em livro desses “Apontamentos” pela Todapalavra Editora. Na organização do livro, diversas decisões tiveram evidentemente de ser tomadas. Em relação aos textos datilografados, cuidou-se de preservar ao máximo a sua oralidade. Entretanto, mesmo retendo alguns detalhes estilísticos próprios da língua italiana, optou-se, de modo geral, por padronizar em língua portuguesa as variações do mestre entre usar o português ou o italiano ao se referir a títulos de obras, nomes de autores, cidades, movimentos e escolas literárias. O livro inclui, além das aulas expositivas, também trechos em prosa e poemas das obras citadas, que foram lidos e analisados em sala de aula − datilografados pelo próprio professor Bruno, com cópias em papel-carbono para distribuição aos alunos – demonstrando assim sua preocupação com que todos tivessem acesso aos textos. Além disso, inclui também a análise de alguns poemas, como La pioggia nel pineto, de Gabriele d’Annunzio; Non gridate più, de Giuseppe Ungaretti; e 2 Texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 449 e 450. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos L’assenza, de Guido Gozzano, traduzidos pelo próprio professor Bruno, e que retêm, portanto, a espontaneidade com que brotaram do original italiano, comprovando a sensibilidade e profundidade com que o professor Bruno trabalhava os textos em aula e a facilidade com que transitava da perspectiva ampla de épocas e autores à leitura e interpretação de textos. A fim de dar um alcance mais amplo ao livro, e novamente pensando na preservação da memória não só da vida acadêmica, mas também da vida pessoal do professor Bruno –, incluindo-se assim a figura de sua esposa, Dra. Maria Biancarelli Enei – esta “competentíssima e suave professora de grego” − como a ela se refere o professor Álvaro Rocha −, da qual tive também o privilégio de ter sido aluna, optou-se do mesmo modo pela inclusão, neste livro, de uma síntese biográfica, fotografias, ensaios e pronunciamentos do professor Bruno, bem como de textos jornalísticos escritos a respeito dele; além disso, relativa à correspondência que eu mantinha com o casal Enei, especialmente uma carta do professor Bruno – em resposta à indagação que eu lhe havia feito sobre uma citação de Dante em T. S. Eliot – na qual transparece novamente toda sua erudição e humanismo. Em conclusão, e ciente de toda a responsabilidade que assumo perante a crítica, perante o próprio autor, que não teria talvez autorizado a publicação destes “Apontamentos” − como disseram Bally e Sechehaye ao organizarem e publicarem o Curso de Linguística Geral de Saussure − sem a sua cuidadosa revisão, gostaria de expressar meu desejo de que este livro possa simultaneamente servir de leitura instigante e prazerosa não só aos alunos dos cursos de Letras, mas a todos os interessados pela Literatura Italiana, em diálogo constante com a arte, a filosofia e a história. Sigrid Lange Scherrer Renaux 11 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos SOBRE BRUNO ENEI Não sou nada. Não tenho nada. Querem até dizer que nem brasileiro eu sou: eu que nasci na minha Barra Bonita e que tantos anos fiquei longe de meus avós e de meus pais, que aqui estão sepultados, para sentir mais profunda a vontade de agir e de servir esta terra que a nós cabe pôr na história e na vanguarda do progresso e da nobreza sem o otimismo de um instante e sim no trabalho de todo dia [...]3 Bruno Enei nasceu em Barra Bonita, interior de São Paulo, no dia 8 de junho de 1908. Era o mais velho de seis irmãos, filhos de um casal de lavradores originário da região de Marche, na Itália, que tinha imigrado para o Brasil no dia de seu casamento. Concluiu o curso primário em sua cidade natal. Em 1919, logo após a I Guerra Mundial, a família voltou para Itália, e, três meses depois, seus pais desistiram dessa nova empreitada e retornaram definitivamente para o Brasil. Mas lá deixaram o menino Bruno, então com 11 anos, porque eles queriam que um dos filhos estudasse na Itália. Na Itália, Bruno iniciou seus estudos como interno em um seminário na cidade de Ferno e, em 1927, transferiu-se para Gubbio, onde estudou no Liceo Classico Parificato Vicenzo Armanni. Ingressou então na Universidade de Pisa, onde estudou Letras e Filosofia. Finalmente, estudou na Universidade de Florença, onde defendeu tese, doutorando-se em Literatura Italiana em 1936. Era esportista. Praticou boxe na universidade e jogou futebol em Gubbio, como atacante e goleador, o que lhe rendeu o apelido de Togo. Casou-se em 10 de agosto de 1939, em Gubbio, com Maria Biancarelli, doutora em Letras Clássicas pela Universidade de Roma. Tiveram dois filhos: Giuliana e Ricardo. Bruno Enei viveu todo o episódio fascista, desde o surgimento de Mussolini na esfera política até a sua queda, em 1943. Segundo relato de Ricardo Enei, baseado nas histórias que seu pai lhe contava, na Itália, Bruno Enei, dirigindo-se, como patrono, aos formandos da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, em dezembro de 1954, texto reproduzido em sua íntegra nas páginas 424 a 430. 3 13 14 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos no anteguerra, a filiação ao Partido Fascista era praticamente obrigatória, já que, sem essa credencial, o italiano, além de outras formas de discriminação, não tinha acesso nem mesmo ao trabalho. E assim, Bruno Enei, que não acreditava no fascismo e que, por formação e convicção, era contrário a regimes totalitários, entrou no Exército. Foi a forma que ele encontrou para não se ver forçado a filiar-se ao Partido Fascista. Como militar, chegou a Capitano Fanteria. Ainda segundo Ricardo Enei, durante a II Guerra, a unidade do exército italiano de que Bruno Enei fazia parte foi rendida, na França, pelos alemães. Quando ele e seus companheiros de farda estavam sendo conduzidos, a pé, para um campo de concentração, Bruno resolveu que tentaria fugir, e assim avisou alguns de seu grupo, dizendo que, quem quisesse, que o acompanhasse. Então, quando estavam passando por uma estrada que ficava em um lugar elevado, com um despenhadeiro (burrone) em um dos lados, ele se desgarrou do grupo, correu e foi rolando ladeira abaixo, sob o fogo dos alemães. Recebeu dois tiros e ficou estatelado ao pé do desfiladeiro, fingindo-se de morto. E os alemães, dando-o como morto, prosseguiram a sua jornada. Bruno foi então socorrido por camponeses, que cuidaram dele, e no meio deles ficou durante seis meses. Mais tarde, quando restabelecido, obteve, mediante contato com a resistência francesa, documento de identidade francês e embarcou em um trem da França para a Itália, numa viagem muito tensa, já que esse mesmo trem transportava um grande contingente de tropas alemãs. De volta à Itália, reencontrou sua família, em Gubbio, e em seguida engajou-se no movimento de resistência italiano, de que também participava sua esposa, Maria Biancarelli Enei. Como partigiano, comandou o II Batalhão Aldo Bologni. Participou, entre outras, de ações armadas em Tristina, Pietralunga e Camporeggiano. Foi ainda diretor de Il Coriere de Perugia, órgão do Comitê de Libertação e Resistência. O Exército lhe concedeu duas condecorações Croce al Merito di Guerra, uma pela sua atuação como Capitano Fanteria, e outra pela sua attività partigiana. Como professor, na Itália, Bruno Enei lecionou italiano, latim e grego no Ginásio de Gubbio, italiano e latim no Liceu de Perugia, italiano e história no Istituto Magistrale Superiore de San Genesio e, finalmente, ocupou a cátedra de italiano na Universidade para Estrangeiros em Perugia. Voltou ao Brasil em janeiro de 1951. Neste ano, a serviço do Consulado Italiano e da Sociedade Dante Alighieri, proferiu palestras e ministrou cursos em São Paulo e Curitiba. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em 1952, Bruno Enei fixou-se em Ponta Grossa, como professor de Literatura Italiana e, mais tarde, de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa. Sua esposa, Maria Biancarelli Enei, também trabalhou nesta instituição, como professora de Didática Especial das Línguas Neolatinas, Grego, Filologia Românica e Latim. O casal Enei também lecionou no Colégio Estadual Regente Feijó. Em junho de 1956, Bruno Enei participou de um concurso, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Paraná, para provimento da cátedra de Língua e Literatura Italiana, evento que despertou grande interesse nos meios culturais e universitários de Curitiba, com ampla cobertura da imprensa. Os dois candidatos foram aprovados, mas o professor Bruno ficou em segundo lugar, obtendo o título de Livre-Docente, com defesa da tese La Poesia di Giuseppe Gioacchino Belli. Na verdade, esse concurso foi um episódio bastante estranho e constrangedor, que repercutiu intensamente no meio intelectual e acadêmico, já que, ao que tudo indica, o professor Bruno foi seriamente prejudicado por membros da banca examinadora. Na ocasião, o crítico literário e escritor Wilson Martins assim se manifestou: “Muitas das notas que lhe atribuíram não corresponderam às suas provas. [...] houve, por parte dos que as atribuíram, ou ignorância ou má fé”, o que acabou produzindo, ainda em suas palavras, um “resultado monstruoso”. Além disso, e no mesmo pronunciamento, Wilson Martins afirmou que, nesse concurso, o professor Bruno Enei tinha enfrentado “um ambiente declaradamente hostil”.4 Durante os quinze anos em que residiu em Ponta Grossa, até a sua Wilson Martins, em discurso por ocasião de um jantar oferecido por vários intelectuais paranaenses a Bruno Enei, no dia 20 de julho de 1956. O evento, o nome dos participantes e o discurso de Wilson Martins foram registrados nas páginas do jornal O Dia, de Curitiba, em sua edição do dia 22 deste mesmo mês, texto este que se encontra transcrito nas páginas 433 a 435. Ainda a respeito desse concurso, merece destaque o pronunciamento da professora Marcella Mortara, catedrática de Língua e Literatura Italiana da Faculdade de Filosofia da Universidade do Distrito Federal, em uma entrevista à Gazeta do Povo, de Curitiba (21/6/1956), texto em que constam também as notas dadas aos dois candidatos. Única entre os cinco membros da banca examinadora a dar vantagem ao professor Bruno, por uma diferença expressiva na pontuação, ao ser indagada a respeito de sua impressão sobre o concurso, a professora Mortara disse: “Minha impressão sobre esse concurso está expressa nas notas que atribuí aos dois candidatos”. Finalmente, mais de dez anos depois, Raul Rodrigues Gomes, em um artigo sobre Bruno Enei logo após a sua morte, no Diário Popular, de Curitiba (14/1/1967, transcrito nas páginas 444 a 446), ainda fala, com amargura e indignação, sobre esse incidente. 4 15 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 16 morte, em 8 de janeiro de 1967, Bruno Enei desenvolveu intensa atividade cultural e acadêmica. Publicou vários ensaios literários em jornais de Ponta Grossa e Curitiba, fez a tradução, para o italiano, do livro Uma Interpretação das Américas, de Bento Munhoz da Rocha Netto e, além de Ponta Grossa, ministrou cursos e proferiu palestras em instituições culturais e universitárias de Curitiba e do Rio de Janeiro. A título de curiosidade, em 1956, na ocasião em que ministrava um curso de literatura italiana na Universidade do Brasil, na capital federal, teve a oportunidade de entrevistar Carlos Drummond de Andrade.5 Culto e de formação humanista, Bruno não nutria simpatias pelo academicismo, distante e autossuficiente, tampouco por dogmas. Não prelecionava; dialogava. Sabia ouvir. Era uma pessoa afável e gregária. Ao mesmo tempo, idealista, vibrante e dotado de forte espírito libertário. Às idéias prontas e às certezas, ele opunha dúvida e questionamento; ao julgamento e ao preconceito, tolerância e reflexão; e à rotina, inquietação e procura. O texto abaixo é particularmente revelador do pensamento do mestre Bruno. Matai a gramática6 E não falo só desse “sujeito” que – coitado – pode contemporaneamente ser simples e composto, abstrato e concreto, expresso e oculto, agente e complexo. Não falo só desse “predicado”, ele também expresso e oculto, simples e composto, parcial e total, e não sei o que mais. [...] Falo de todas as “gramáticas”. Porque todas as disciplinas têm uma gramática. Na história, essa gramática se chama cronologia pela cronologia, fato pelo fato, nome pelo nome; na geografia, essa gramática se chama comprimento, medida, nomenclatura; na filosofia, essa gramática se chama silogismo, definição, resumo; nas línguas, essa gramática se chama colocação de pronomes, frases modelos, estandardização. Matai tudo isso, até que tudo seja feito como fim e não como meio. O fim é a cultura, é a educação, é a personalidade, é o homem na sua espiritualidade e na sua formação. O resto, tudo o resto é meio e instrumento. Que errem, meus afilhados, que errem quanto quiserem os vossos alunos; mas que falem, que digam, que se exprimam, que se abram, que demonstrem de interessar-se e de ler, que demonstrem que 5 6 Texto transcrito em sua íntegra nas páginas 354 a 356. Bruno Enei, na mesma preleção a que faz referência a nota 3. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sabem distinguir, que criticam, que se estão formando e educando. Não é a elegância que conta, mas sim a propriedade. Um dia eles irão procurar a “gramática” – assim como eu estou fazendo –, mas, se – como um tapa na cara – dareis, agora, àquelas almas só gramática e sempre gramática – não há dúvida – acabareis matando a sensibilidade, o desejo de exprimir, a alegria de dizer a própria opinião: e tudo ficará genérico, monótono, insignificante, retórico, repetido na base de modelos e de preconceitos. [...] Matai a gramática, e dizei continuamente a vós mesmos e aos vossos alunos o que é humanamente a história, a geografia, a literatura. Ler e ler, discutir e discutir, analisar e analisar por um processo crítico e consciente de cada instante para ter um panorama vivo e real do estudo, da vida deste nosso mundo que, apesar de tudo, é um mundo humano. Por meio de seu exemplo e de suas idéias, Bruno Enei ajudou a moldar o caráter e o espírito de centenas de estudantes em Ponta Grossa. Formou e inspirou uma geração de professores. Hein Leonard Bowles 17 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos AGRADECIMENTOS A publicação deste livro foi possível graças ao patrocínio da Itaipu Binacional, que arcou integralmente com os custos de impressão, projeto gráfico e diagramação. Assim, o profundo reconhecimento e os sinceros agradecimentos da Todapalavra Editora a Jorge Samek, Diretor-Geral Brasileiro da Itaipu Binacional, que deu acolhida ao projeto e soube dimensionar o seu significado e a sua envergadura. Seu aval certamente levou em conta também, e talvez primordialmente, a importância que esta obra tem regionalmente, tanto assim é que Ponta Grossa, além de abrigar a Biblioteca Pública Municipal Professor Bruno Enei, promove anualmente, por meio de sua Secretaria de Cultura, a “Semana da Cultura Bruno e Maria Enei”, em reconhecimento ao trabalho e ao valor desse ilustre e tão querido casal de intelectuais. Ao mesmo tempo, com esse gesto ele ajuda a sanar uma enorme carência, já que, de um modo geral, e isso falando principalmente das gerações mais recentes, simplesmente não se sabe quem foram Bruno e Maria Enei, porque praticamente inexistem informações a respeito deles. Somos, de igual modo, gratos à Diretora Financeira Executiva da Itaipu Binacional, Margaret Mussoi L. Groff, nosso primeiro e principal contato dentro da instituição, que, já de início, mostrou interesse pelo projeto e deu-lhe apoio, ensejando que tivesse um trâmite rápido. Destaque-se que, segundo se fez constar no contrato celebrado entre a Itaipu Binacional e a Todapalavra Editora, o projeto não envolve remuneração ou compensação financeira de qualquer ordem e o livro não será comercializado. Ele será encaminhado a instituições de ensino de Ponta Grossa, a bibliotecas e entidades culturais da cidade, bem como a várias bibliotecas universitárias e entidades culturais do país. De outra parte, ele será disponibilizado, em sua versão integral, como e-book, no site da Todapalavra Editora ([email protected]), para todos aqueles que por ele se interessem e que queiram fazer o seu download gratuito, para leitura e/ou divulgação. A ajuda de Ricardo Enei, filho de Bruno e Maria, foi decisiva para moldar o livro, para dar-lhe o formato em que está sendo publicado. Além de seu depoimento, Ricardo nos deu acesso a um rico acervo de documentos de seu pai, em que encontramos alguns ensaios que para nós eram inéditos, bem como importantes informações sobre sua vida Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 20 e sua carreira. Assim, agradecemos ao Ricardo, e também à sua esposa, Jeanine Degraf Enei, por esse gesto de generosidade. No processo de finalização do livro, contamos com a valiosa colaboração da professora Dra. Lucia Sgobaro Zanette, da Universidade Federal do Paraná, como consultora na área de Literatura Italiana, e do professor Ms. Luiz Ernani Fritoli, da mesma universidade, que traduziu alguns poemas. Nossa expressão de gratidão também à professora Vera Marilha Florenzano, cujas informações foram decisivas na fase de levantamento de documentos, e à professora Roselis Oliveira de Napoli, que, como professora de Literatura Brasileira no antigo Departamento de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa, empenhou-se ativamente pela publicação dos “Apontamentos”, ainda na época em que eles chegaram à instituição, em 1983, e que muito nos incentivou quando soube que a Todapalavra estava desenvolvendo esse projeto. Finalmente, cumprimentamos e parabenizamos a professora Sigrid Lange Scherrer Renaux, de início, por ter tido a lucidez e a sensibilidade de reconhecer o valor intelectual e humanístico do professor Bruno; em seguida, pela sua decisão de registrar taquigraficamente as suas aulas, para que elas pudessem ser perpetuadas; e, finalmente, pela sua coragem e persistência. E hoje, quando já se vai tanto tempo desde que Sigrid Renaux registrou a última aula de Literatura Italiana do professor Bruno a que assistiu, a Todapalavra Editora sente-se honrada em ter tido a oportunidade de participar de seu projeto, como instrumento acessório para que ela pudesse realizar esse desejo tão longamente acalentado. Todapalavra Editora AULAS DE LITERATURA ITALIANA DO MESTRE BRUNO ENEI LITERATURA ITALIANA I (1956) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A LITERATURA MEDIEVAL A verdadeira literatura em língua vulgar (em língua, isto é, italiana) começa somente no século XIII. É justamente neste período que encontramos, pela primeira vez, obras e autores que manifestam uma espiritualidade, um conjunto de motivos, uma expressão e um modo de pôr e resolver problemas que merecem o nosso estudo e a nossa apreciação. É justamente neste período que encontramos a poesia e a prosa dos escritores de literatura épica, didática e moral, religiosa, amorosa, popular e burguesa, que representam os vários momentos e períodos da primeira fase da história literária italiana. Antes disso (ou seja, antes do século XIII), vemo-nos diante de uma literatura que, embora em latim, não é mais latina e não é ainda italiana. Não é mais latina porque lhe faltam o espírito, os motivos, os temas da verdadeira espiritualidade latina: o apego à vida, o conceito de dignidade romana, a certeza de um dever terreno e humano, o senso da luta, o gosto alegre e firme de viver, o valor da política, o orgulho do Império, a exaltação de Roma. Faltam-lhe justamente os ideais que foram próprios da literatura latina e que vibram nas obras de Cícero, de Virgílio, de Ovídio, de César, de Horácio. Entretanto, não podemos ainda dizer que essa literatura seja propriamente italiana. Ela representa, no seu conjunto, a crescente e extrema decadência da literatura latina e, simultaneamente, a lenta e confusa formação de uma nova literatura, onde se refletem e se manifestam conceitos novos; uma visão nova da vida, dos problemas humanos e uma nova atitude do espírito. Essa literatura – nem latina e nem italiana – chama-se literatura da Idade Média. E dela queremos agora fixar os caracteres essenciais, as obras e autores mais importantes, relativamente ao longo período que vai do século VI ao século XIII, numa rápida visão de conjunto. Os demais séculos dessa literatura medieval serão objeto de um estudo mais particular e de uma análise mais ampla até chegarmos à literatura dos séculos XV e XVI, que, com o Humanismo e com a Renascença, representam o fim da literatura medieval e o início da literatura moderna. Estudamos, pois, aqui, em resumo, os sete séculos (do VI ao XIII) durante os quais a decadência do Império Romano, a vinda do cristianismo, as invasões dos bárbaros, a insuficiência do idealismo 25 26 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos romano e o aparecimento de novos ideais morais e religiosos determinaram a criação dessa nova literatura, à qual pertencem – de um modo e de outro – escritores do valor de San Francesco d’Assisi (11821226), de Iacopone da Todi (1236-1306), de Marco Polo (1254-1324), de Dante Alighieri (1265-1321), de Francesco Petrarca (1304-1374), de Giovanni Boccaccio (1313-1375), os primeiros dois sendo os autores das mais populares e profundas poesias religiosas da época; o terceiro sendo o autor do imortal Il Milione; Dante, sendo o autor da Divina Comédia; Petrarca, sendo o autor de Il Canzoniere e Giovanni Boccaccio, sendo o autor de Il Decamerone. A literatura medieval desse período (séculos VI-XIII) tem três fases principais: a primeira, que abrange os séculos VI-VIII; a segunda, que abrange os séculos VIII-X; a terceira, que abrange os séculos X-XIII. Da primeira fase (séculos VI-VIII) faz-se mister lembrar dois escritores: Severino Boezio (480-525), autor da obra De Consolatione Philosophiae, e Marco Aurelio Cassiodoro (480-575), autor da obra Variae, onde são evidentes os motivos fundamentais da literatura medieval, ainda ligada à língua e à cultura latina, mas já orientada num sentido de defesa e de exaltação dos princípios novos do cristianismo. Da segunda fase (séculos VIII-X), convém lembrar dois escritores: Paolo Diacono (720-797), autor da obra Historia Longobardorum, e Liutprando da Pavia (922-972), autor da obra Antapodosis. Foi este período o momento mais caótico e mais obscuro da Idade Média, marcado pelas grandes e trágicas invasões dos bárbaros, pelos choques de cultura e de hábito, pelo terror, pela preocupação do futuro, quando a cultura se tornou mais rara e menos livre e limitada aos círculos religiosos dos conventos e da Igreja, que se constituem juntamente nos depositários da língua, da cultura, da hierarquia, da universalidade da Roma imperial. Da terceira fase (séculos X-XIII), faz-se mister lembrar, ao menos, dois grandes filósofos: San Tommaso d’Aquino (1225-1274), autor da Summa Theologica contra Gentiles, e San Bonaventura da Bagnorea (1221-1274), autor da obra Itinerarium mentis in Deum. Foi este um período de ressurreição, de estudos, de entusiasmo pela cultura, de uma dramática e firme procura de elaborar teoricamente os princípios da religião na base da filosofia greco-latina, pondo o pensamento de Aristóteles e de Platão ao serviço das ideias e dos princípios do cristianismo. Foi este um período extraordinariamente intenso e férvido, rico de atividades, de cultura, de pesquisa, durante o qual floresceram, de uma vida nova, a Filosofia, a Teologia, o Direito e a Ciência. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Sede excelsa de estudos jurídicos foi então Bolonha (Bologna docet), para onde se dirigiam os estudiosos de toda a Europa. Sede notável de estudos científicos foi então Salerno, onde se criou a famosa Scuola Medica Salernitana, que fez com que a Medicina abandonasse aquele seu caráter de empirismo e de magia, para tornar-se, sempre mais, um estudo sério e racional, baseado na análise, na experiência, na observação crítica da Patologia e da Terapêutica. Sede dos estudos de Teologia e de Filosofia foram sobretudo os conventos, e seu primeiro e maior cultivador foi o clero, dividido em duas escolas, em duas tendências, em dois endereços filosóficos principais: a Escolástica, com San Tommaso, racionalista e aristotélica; e a Patrística, com San Bonaventura, idealista e platônica. A Filosofia não tinha ainda a autonomia de hoje: era considerada um instrumentum da Teologia, um seu aspecto e momento secundário: era a Ancilla Theologiae. E a Teologia era tudo, sendo a ciência de Deus e reunindo em si, numa hierarquia férrea, todas as outras ciências, criando aquela sabedoria tipicamente medieval que se chama Enciclopedismo. Mais tarde, todas essas disciplinas e ciências tornar-se-ão livres e autônomas, cada uma no seu mundo, com as suas leis e métodos, com as suas precípuas finalidades. Mas, para isso, devemos chegar aos séculos do Humanismo e da Renascença. O que aqui interessa é saber que do século VI ao século XIII se elaboram todos os princípios, todos os ideais, todos os temas que serão próprios da literatura medieval. Sem conhecer esses princípios e ideais e motivos torna-se impossível compreender o espírito e o valor da literatura medieval, no seu significado histórico e estético. O período de 700 anos, pois, que vai do século VI ao século XIII, representa o nascimento da literatura medieval, o nascimento de uma nova espiritualidade. Fica ainda, e se conservará séculos afora, a língua latina; mas o espírito de Roma acaba. Acaba a Roma imperial e temos a Roma da Igreja. Desaparece a concepção heroica e imanentística da literatura latina e temos a concepção ética e cristã, baseada nos princípios eternos do Evangelho, nas palavras de Cristo, nos deveres de uma nova religião, mais íntima e essencial, que vinha substituindo a velha e decaída fé do paganismo. E aparece a preocupação do Além, criando um dualismo entre Deus e o homem, entre Terra e Céu, entre ser e dever ser. Toda a literatura medieval se caracteriza por essas perspectivas: a bondade, a fraternidade, a paz, a justiça, a meiguice, o amor, o temor de Deus, Deus prêmio e castigo, justiça e misericórdia, Paraíso e Inferno, pecado, virtude, redenção, perdão, desespero da carne, anseio do espírito, renúncia aos 27 28 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos bens terrenos, procura da salvação, desejo de morrer (Cupio dissolvi) de Santa Catarina de Siena, a felicidade do Além, a imortalidade como prêmio e castigo, a pureza, a obediência. Todos estes temas e ideais estarão de um modo e de outro presentes em toda a literatura da Idade Média. Não era, portanto, mais possível escrever no velho latim clássico, precisava-se de uma nova língua latina: as línguas neolatinas, e entre elas, a mais querida e a mais íntima, a filha de Roma: a língua italiana. A ORIGEM DA LÍNGUA ITALIANA Como a francesa, a portuguesa, a espanhola e a romena, também a língua italiana deriva do latim. Entretanto, essa asserção não deve ser tomada no sentido de que a língua italiana seja algo de novo, de contrário, de improvisamente e fisicamente diferente da língua latina. Nada na história do homem e de seu espírito surge de repente e negando – ab imis – a sua paternidade. Deve-se, portanto, entender que a língua italiana é a mesma língua latina, a continuação da língua latina em moldes e formas novas, respondendo a novos fatos, a novas exigências, a novas ideias. Na sua dialética, o espírito procura sempre novos “meios” para novas perspectivas. Assim, o mundo latino veio preparando, através dos séculos da decadência do Império Romano e das invasões dos bárbaros, a sua nova língua, a sua nova – poderíamos dizer – nova língua latina que, de vez em vez, recebeu, nos vários países e por diferentes razões, formas e flexões e nomes diferentes (como seja: o português, o francês, o espanhol, o italiano, etc.). Duas objeções poderiam ser, a esta altura, movidas: como se justifica, além da aparente analogia, a diversidade das línguas neolatinas perante a língua latina? Como se explica a pluralidade das línguas neolatinas, diferentes do próprio latim e entre si mesmas, embora todas de uma mesma origem? Tornam-se ambas as dificuldades claramente explicáveis através do exame e da análise do desenvolvimento histórico e prático do latim, sobretudo nas vicissitudes do período da decadência do Império Romano e da primeira fase da Idade Média, ao contato vivo e cotidiano com outros povos, de outras línguas, de outros costumes, de outros hábitos e de outras espiritualidades. É preciso observar esse encontro de culturas diferentes, esse choque de civilizações diferentes. Roma conquistava e impunha sua língua. Mas uma coisa é programa e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos outra, realidade. Além do mais, os romanos das regiões conquistadas nem sempre eram os mais cultos. A língua desses romanos nem sempre era a língua pura e castiça de Cícero, de César ou de Horário e Virgílio, e sim uma língua popular de colonos, de soldados, um latim falado, vulgar: sermo rusticus, sermo vulgaris, sermo plebeius. Com o tempo, foram-se formando duas línguas latinas paralelas: a dos clássicos, usada nos textos, e a falada, a viva, usada pelo povo nas conversações, nos negócios de todos os dias. A unidade política de Roma contribuiu para manter a unidade da língua latina; mas quando a unidade política começou a vacilar e a perder-se até a dissolução, também a língua latina começou a vacilar e a perder-se até decompor-se em mil dialetos, em tantas línguas particulares, adquirindo matizes e moldes e formas fonéticas, morfológicas, sintáticas diferentes. E nasceram novas formas de expressão, novas inflexões, novas palavras, aparentemente latinas – na maior parte – mas já não somente e propriamente latinas. Esses parlari tornar-se-iam, daí a pouco, as línguas neolatinas ou românicas dos povos que tinham pertencido ao mundo político e cultural do Império Romano, à grande família do romanice loqui. A transformação do latim nas futuras línguas neolatinas foi facilitada, inicialmente, pelo fracionamento da vida medieval, pela divisão da família dos povos latinos, pela angústia anárquica e ciumenta da vida feudal, pelo isolamento e separatismo desconfiante e fechado das várias regiões, pela falta de intercâmbio intelectual e econômico, pelo quase abandono da cultura, sobretudo no período mais obscuro e sombrio da Idade Média, entre o século VI e o IX. Houve, mais tarde, um período melhor. Voltou o interesse pela cultura, voltou a organização do comércio, o intercâmbio econômico. Surgiram as escolas nos seus ciclos do quatrivio e do trivio. Os conventos e as pequenas elites voltaram ao Direito, à Filosofia, à Teologia, às ciências. Estamos falando do período entre o século X e o século XIII; o período da Universidade de Direito de Bologna, da filosofia de Tommaso d’Aquino e de Bonaventura da Bagnorea, da Escolástica e da Patrística, da Scuola Medica de Salerno. Podia, pois, ter sido este período o mais oportuno e indicado para uma volta à língua latina clássica. Mas, nada. A História não volta para trás ou volta para continuar assimilando e transformando. Era já tarde. Muitas coisas tinham mudado; e o velho (o latim) não cabia no novo (as línguas neolatinas). Foi, aliás, justamente nesse período que as línguas neolatinas tomaram consciência da própria nascente força, da própria nascente riqueza, da sua histórica e irresistível necessidade. Na verdade, não se abandonou nunca o latim. Nem seria possível, pois que até hoje aquela língua e aquela civilização constituem 29 30 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma necessidade cultural para todos, até para os povos não latinos. Por outro lado, a igreja de Roma – herdeira de tantas instituições romanas – fez sua aquela língua como a fizeram sua, durante tanto tempo, e, às vezes, ainda hoje, a Filosofia, a Teologia, a Ciência. Mas, foi desde então que começaram a aparecer obras e escritores das novas línguas, dessas pequenas e ingênuas e claudicantes filhas de Roma, já, contudo, suficientemente tentadoras e eficazes para oferecer à fantasia e ao intelecto dos povos neolatinos as primeiras expressões de uma linguagem própria, individual, cônsona a cada um. Na “maré” dos dialetos – como sempre acontece – veio, então, prevalecendo aquele da região mais organizada, mais viva e exuberante, imprimindo uma diretriz e um caráter de disciplina e de uniformidade aos demais. É esse o passo lento e histórico da formação da língua nacional de um povo. Na Itália, por exemplo, existiam vários dialetos. Uns deles eram até anteriores ao do Lácio, ao latim. Mas quando a língua de Roma decaiu e se desfez, nessa maré de dialetos itálicos (o dialeto siciliano, o dialeto sardo, o dialeto napolitano, o dialeto umbro, o dialeto vêneto, etc.), foi o dialeto florentino que tomou a dianteira, galvanizando em torno de si os demais, dando-lhes uma fisionomia, uma linha, uma disciplina e um vigor de aperfeiçoamento e de nacionalidade. Foi, assim, o dialeto florentino que determinou a língua italiana. E isso por ser a Toscana a região mais central da Itália, a mais linguisticamente semelhante ao latim, a mais rica, a mais política e economicamente organizada, devendo-se ainda acrescentar que foi em Firenze que – logo de chegada, no século XIV – nasceram a Divina Comédia de Dante Alighieri, o Canzionere de Francesco Petrarca e o Decamerone de Giovanni Boccaccio: três obras-primas da literatura italiana, representando cada uma delas, respectivamente, a mais alta expressão da espiritualidade medieval, a límpida e saudosa melancolia da passagem da Idade Média ao mundo moderno e a serena e realística visão de nossa vida terrena feita de trabalho, de inteligência, de crítica, de amor e de humanidade. Eis, então, a língua italiana. E, alhures, surgem, ou já surgiram, o espanhol, o português, o francês, o romeno. Línguas neolatinas estas, destinadas – talvez – a criarem outras línguas neo-... (como está justamente acontecendo aqui, no Brasil, onde a nossa língua – ao dizer de vários filólogos – não é já mais somente o português de Portugal). Quais as transformações, quais as diferenciações mais representativas e peremptórias entre essas línguas neolatinas e o latim, entre o italiano e a velha língua de Roma? Pois bem, a língua italiana morfologicamente cria o artigo determinativo e indeterminativo, cria a preposição composta, casando o artigo com a preposição simples (os Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos verbos em ere longo junto aos outros em ere breve), torna auxiliar o verbo avere, dá um jeito para liquidar os verbos “depoentes”, pede auxílio ao verbo essere para acabar com a conjugação autônoma passiva, acrescenta o modo condicional, desenvolve o modo supino, etc. E as palavras deixam de ser enquadradas nos grilhões da declinação. Ficam soltas, voltam à liberdade, dançam entre o singular e o plural, entre o masculino e o feminino, com um mínimo de variações que se limitam ao campo das vogais: O e I para o masculino singular e plural, A e E para o feminino singular e plural. Sintaticamente, o trabalho de transformação é mais profundo e delicado. A língua italiana prefere as formas finitas às infinitas, prefere a coordenação à subordinação. E, acima de tudo isso, a particularidade do gênio humano da alma italiana: o gosto pela clareza, pela simplicidade, pela naturalidade, dando preferência à vogal límpida e aberta no corpo e no fim do substantivo, evitando a cacofonia de consoantes antitéticas e de difícil pronúncia, procurando uma equivalência e uma temperada distribuição de vogais e consoantes, fazendo questão que a palavra saia horizontalmente, sem verticalidade nenhuma, sem esforço nasal ou gutural ou palatal: ler e dizer como está escrito, sem as sombras e os impressionismos de outras línguas – a francesa, por exemplo. Língua, pois, límpida, objetiva, firme, lírica, sem tristeza e sem exaltações, sem equívocos e sem sensações, completamente livre da necessidade do “requinte” fonético. Dizer dos primeiros documentos da língua italiana não parece essencial. Quem pode saber quando acaba e quando começa uma língua? Essas criações são o resultado de todo dia, de todo momento. (Precisam, entretanto, séculos para perceber que uma língua nasceu ou nascera.) De qualquer forma, por enquanto, costuma-se dizer que um Documento Lecchese de 746, a Carta Cassinese de 960 e um livro de banqueiros florentinos de 1211 são os primeiros índices de que a língua latina já era... italiana. A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIII A literatura de um povo é sempre um fato posterior e sucessivo à mera aquisição da língua. Surge uma literatura quando um conjunto de 31 32 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ideias e de sentimentos, uma particular consciência de problemas e de anseios, um uniforme e dinâmico patrimônio de tradições, de cultura, de perspectivas e uma comum predileção de formas e de moldes expressivos caracterizam um povo, dando-lhe uma inconfundível unidade espiritual e humana. Por isso, é somente ao começar o século XIII que nós podemos falar em uma história da literatura italiana em volgare. Ao longo do século XIII há já um suficiente número de obras em poesia e em prosa, importantes “centros” de cultura e de arte e um grupo conspícuo de escritores em volgare, donde podemos afirmar que existe já efetivamente uma literatura italiana. Os documentos anteriores são poucos e escassos de valor: provam o nascimento da língua, mas não ainda o nascimento de uma literatura. Numa visão de conjunto, a literatura italiana do século XIII abrange obras de caráter épico-cavalheiresco, didascálico-alegórico, lírico, religioso, burguês e realístico, e obras em prosa de caráter doutrinário, novelístico e historiográfico. A Scuola Siciliana e Il Dolce Stil Nuovo, a poesia religiosa de San Francesco d’Assisi e de Iacopone da Todi, as rimas de Cecco Angiolieri, a doutrina de Brunetto Latini e Il Milione de Marco Polo são os documentos mais vivos e significativos para uma definição dos interesses espirituais e do valor estético da literatura neste século. Mas, antes de mais nada, uma peculiaridade da literatura italiana das origens cabe aqui salientar. Nova e cheia ainda de imperfeições e de deficiências, a língua italiana, não muito notável em geral a sua produção literária, não se pode, contudo, absolutamente dizer que – desde já – fosse a Itália um país de escasso patrimônio cultural. Verdade é, aliás, o contrário. A grande filosofia da Patrística e da Escolástica, os aprimorados estudos jurídicos de Bolonha, a Ciência, a Medicina, a Oratória são provas da existência de um ambiente de alta e profunda cultura. E, além do mais, toda a tradição e a cultura clássica estavam lá presentes num grande esforço de assimilação e de adaptação às novas ideias e aos novos problemas da espiritualidade cristã. Por isso, a literatura italiana das origens apresenta-se com um cunho particular; nada há nela de primitivo, de juvenil, de apaixonado, de popular. Faltam-lhe a fantasia, o lirismo, a espontaneidade, o senso de aventura, a inspiração romântica e democrática de outras literaturas ao seu nascer. Nova na língua, essa literatura parece já avançada e austera e requintada em seu conteúdo. Parece mais uma continuação do que um princípio. A literatura italiana do século XIII deve, em parte, a outros o Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos temário de suas obras e o modo de tratá-lo. Mais “romana” do que as outras, ela surge mais tarde. Assim, Roma, por um lado, a Igreja por outro, e a França são, num primeiro momento, as fontes a quem a Itália deve a sua primeira literatura ou, quanto menos, o caráter peculiar dessa sua primeira produção literária tão intelectual e tão evidentemente alheia a qualquer atitude popular, democrática e primitiva. A literatura francesa da langue d’oil deve à Itália do século XIII dois gêneros: a poesia épico-cavalheiresca e a poesia didascálico-alegórica. A literatura francesa da langue d’oc deve à Itália do século XIII um terceiro gênero literário: a poesia do amor. Três motivos que deram origem a uma vastíssima produção literária nos séculos XIII e XIV e, sobretudo, nos séculos XV e XVI, quando a poesia épico-cavalheiresca alcança a sua maior expressão artística e humana com aquelas obras-primas que são: Il Morgante, de Luigi Pulci (1432-1484), L’Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto (1474-1543), L’Orlando Innamorato, de Matteo Maria Boiardo (1441-1494), e La Gerusalemme Liberata, de Torquato Tasso (1544-1595). Faz-se mister chegar lá para compreender em que consistem a originalidade e o sentido que os italianos souberam imprimir a esses temas, que só indiretamente foram seus. E, desde já, vale anteciparmos que a Itália do século XIII não atingiu o nível da literatura francesa épico-cavalheiresca, didascálico-alegórica e amorosa, mas ela soube – quer traduzindo, quer compilando, quer imitando – dar a esses vários motivos um caráter próprio e original, uma interpretação sua, um espírito seu, fundindo os dois “ciclos” da poesia épico-cavalheiresca, levando, para um plano mais alto e religioso, o motivo didascálico-alegórico, dando ao amor – sobretudo com Dante e Petrarca – um sentido de humana pureza, de espiritual elevação e de religiosa contemplação verdadeiramente singular. A literatura épico-cavalheiresca da França setentrional teve três centros: I – Em torno das figuras de Carlos Magno e de seus paladinos surge um mundo de lendas e de mitos, caros aos povos neolatinos. A luta contra os mouros em favor da Igreja, o sonho do Sacro Império Romano, a defesa dos desamparados e dos humildes, o respeito para com a mulher, o heroísmo de Orlando e de Rinaldo, a traição e a inveja de Ganelon foram os temas das chansons de geste. Destas, a mais famosa foi a Chanson de Roland de Turoldo, verdadeira apoteose de Orlando, que cai heroicamente na sua última luta contra os mouros em Roncevaux (778); II – Também em torno das figuras do Rei Artur e de seus paladinos surge – embora com outro espírito – um mundo de lendas e de mitos: 33 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 34 o mundo dos cavaleiros da Távola Redonda, o mundo de Ginevra, de Isolda, de Tristão, de Lancelote; o mundo romântico e individualístico dos cavaleiros que lutam pelo amor, pela aventura, pela coragem e lealdade; III – Por último, como esquecer as figuras imortais dos heróis da Antiguidade? Como esquecer Alexandre, César, Eneias? Como evitar a tentação de torná-los contemporâneos, como um patrimônio comum, contra o espírito de violência e de destruição dos chefes bárbaros? Surge, assim, um terceiro “ciclo” de poesia épico-cavalheiresca: o dos antigos heróis e das antigas damas, transformados em cavaleiros e em castelãs da Idade Média. Os troveri,7 cantando na “viola”, e os giullari,8 visitando cidades e cortes, difundiram, também na Itália, esses contos da magnanimidade, do valor e da fidelidade. E os italianos começaram a traduzir, a imitar, a compilar, escrevendo até em francês ou em um misto de francês e de dialeto. Não se pode conceber que a alma italiana ficasse insensível diante do fundador do Sacro Império Romano. Não se pode conceber que a alma italiana ficasse insensível diante daqueles antigos heróis que a Eneida e o De Bello Gallico imortalizaram no verso mais límpido e gentil e na prosa mais simples e concreta da literatura latina. Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do Ciclo Carolíngio na Itália são provas, além de tantas outras anônimas e inferiores, a Entrée d’Espagne de Minocchio da Padova e a Prise de Pampelune, de Niccolò da Verona. Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do Ciclo do Rei Artur na Itália são provas, além de tantas outras, La Tavola Rotonda, La storia di Merlino e Tristano Riccardiano. Da penetração e da presença da poesia épico-cavalheiresca do Ciclo dei Cavalieri Antichi na Itália são provas, além de outras, I Fatti di Cesare e I Conti di Antichi Cavalieri. A literatura didascálico-alegórica da França setentrional Toda a literatura medieval se caracteriza por um espírito prático de educação e por uma tendência ao Enciclopedismo. A arte não era 7 8 Trovadores. Jograis. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos autônoma. Tinha a finalidade de instruir, de educar, de iluminar. Era a “veste” da verdade. Era um “meio” a serviço da religião e da moral, justamente como a Filosofia, considerada nada mais do que uma Ancilla Theologiae. E tudo, quase imitando o espírito gótico, tendia a resumir-se na pirâmide das Summae. O escritor obedecia ainda ao binômio horaciano: utile et dulce. Daí a razão dessa literatura com uma finalidade didascálica, daí a razão dessa literatura repleta de imagens e figuras (a alegoria). Da França chegaram à Itália do século XIII e foram muito populares: Le Roman de Renart e os Fabliaux. Começa, assim, a literatura didascálico-alegórica italiana, que, já no século XIII, tem Il Fiore de Durante e a obra anônima Rainardo e Isengrino. A literatura amorosa da França meridional Outra região (a Provença), outra língua (langue d’oc), outro conteúdo (o amor). São poetas desta literatura: Bertram de Born (Dante, Inferno, Canto XXVIII), Arnaut Daniel e Giraut de Borneill (Dante, Purgatório, Canto XXVI), Jaufre Rudel, etc. E da Provença são os poetas Peire Vidal e Rambaldo di Vaqueiras, presentes nas cortes italianas já no século XII e aos quais, mais tarde, no século XIII, sobretudo após o ano de 1209, seguiram-se outros e numerosos. Teve, assim, também a Itália a sua poesia amorosa de inspiração provençal. Começou-se mesmo escrevendo em provençal, nos metros e nas formas daquela escola. Alberto Malaspina, Rambertino Buvalelli, Bartomoleo Zorzi, Lanfranco Cigala e Sordello di Goito (Dante, Purgatório, Canto VI) são os poetas mais dignos dessa poesia, antes de falarmos da Escola Siciliana. Trata-se de uma lírica essencialmente amorosa, que provinha de uma sociedade de apuro, extremamente culta e fechada no ambiente aristocrático e difícil das cortes e dos palácios, onde rodeiam as altas figuras da burocracia e do mundo feudal; onde vivem as damas numa atmosfera de respeito, de cumprimento, cercadas por um cerimonial de homenagens, de galanteio formal e de atenções. A mulher do mundo feudal era quase uma divindade, um ser colocado num pedestal de virtudes e de perfeições que lembravam – de certo modo – a hierarquia político-social dos tempos dos feudatários e dos vassalos. Vivia ela no incenso da adoração, dos suspiros e do desejo. E a palavra peregrina e a expressão polidamente elaborada e elegante e a frase procurada e singular dos poetas cantavam esses temas da gentileza num esquema 35 36 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de amor, de felicidade e de primavera, que – na repetição – acabava tornando-se monótono e artificial. Um amor que não era espontâneo e vivo e sim consciente e intelectual; uma felicidade sem drama e quase expressão de uma satisfação aristocrático-cultural; uma primavera de flores, de perfumes, de estrelas, de luas e de luzes que somente em algumas daquelas canzoni e daquelas ballate alcançavam o vigor e a luminosidade das fulgurazioni da verdadeira poesia. Era, porém, um mundo que tinha a sua razão histórica de ser, como expressão repousada e formalística de uma sensibilidade que tendia à abstração de uma cultura, sem frêmitos e sem apegos a anseios de renovação da realidade. A poesia religiosa no século XIII Um dos motivos dominantes e profundos da literatura italiana do século XIII é o sentimento religioso. Mas o caráter popular, íntimo, profundamente vivido e sentido, a urgência apaixonada com que ele é cantado, a sinceridade, o empenho com que ele é expresso, fugiria à nossa compreensão, se ficássemos somente num plano de literatura religiosa tradicional e dogmática. Não há na poesia religiosa do século XIII nada que nos lembre aquele caráter jurídico, aquele cunho teológico, aquela essência ortodoxa que são caracteres próprios dos grandes filósofos do cristianismo medieval. O terreno onde surge a poesia religiosa do século XIII é um terreno menos oficial, menos rígido do que este. Uma veia de espontaneidade, de sinceridade, de popularidade permeia a inspiração religiosa dos escritores do século XIII. Há nesses escritores um anseio profundo de renovação, uma saudade profunda dos tempos idos e iniciais do cristianismo, uma solicitação mortificada que sai da insatisfação diante da Igreja, que se vai cada dia mais transformando numa entidade política, num organismo teocrático, numa autoridade inflexível, numa hierarquia que se fecha na infalibilidade do chefe da Igreja. Tudo isso, no século XIII, é prova de uma diferença que torna quase irreconhecível aquela igreja dos primeiros tempos do cristianismo em que as únicas preocupações eram os deveres, as virtudes e os ideais do Evangelho; em que a Igreja era mais um conjunto democrático de crentes do que um exército guiado e chefiado pelos dogmas, pela autoridade do clero, pela infalibilidade do chefe da Igreja. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Naquelas lutas entre Império e Igreja, num plano político e territorial, se a Igreja ia ganhando como potência, ia, porém, perdendo como espiritualidade. Daí essa insatisfação no seio popular da Igreja. Daí essa insatisfação do povo diante do enriquecer-se e do corromper-se do clero, que se tornava potente, rico, elemento de uma burocracia teocrática. Surgiram então movimentos religiosos saudosos da primitiva honestidade, intimidade e pureza da Igreja. Surgiram movimentos reagindo contra a realidade da igreja contemporânea. Alguns desses movimentos eram decididamente hostis e adversários abertos da Igreja e criaram aqueles movimentos que se chamaram “heresia”. Outros lutavam no seio próprio da Igreja, na órbita da Igreja, fiéis à Igreja. Mas, uns e outros num ponto concordavam: na necessidade de voltar ao primitivismo dos alvores do cristianismo, num desejo de espiritualidade, numa vontade de ação moral. A Igreja condenou não poucos desses movimentos e outros ela soube acompanhar, sustentar e reconhecer. Na Itália, sobretudo a Úmbria foi o primeiro centro dessas afirmações de fidelidade ao Evangelho e de retorno àquela pureza humilde e heroica dos primeiros tempos. Esse movimento religioso surgia, em geral, nas cidades, nos conventos, no meio dos homens do comércio. Lembremos apenas dos escritores da Itália setentrional, Bonvesin da la Riva e Giacomino da Verona, que são poetas mais do aspecto supersticioso do que do aspecto ideal dessas aspirações religiosas do século XIII. São dois poetas da Úmbria que exprimem na sua pureza e na sua sublimidade o sentido e o espírito dessas aspirações religiosas italianas do século XIII: San Francesco d’Assisi e Iacopone da Todi. O Inferno e o Paraíso de Giacomino da Verona são muito materiais para serem a expressão dessa sensibilidade religiosa; é, em vez, na poesia humana e aberta de São Francisco que o leitor pode colher os aspectos verdadeiramente singulares das aspirações cristãs do povo italiano do século XIII. Nasceu em Assis, em 1182. São Francisco é o poeta que exprime, sobretudo, um anseio de amor, de solidariedade, de alegria diante da natureza. O seu Cantico delle Creature redime a natureza em que vivemos, santifica os elementos da realidade. A natureza, que na Idade Média era um pecado, torna-se na sua poesia, ela também uma manifestação da grandeza de Deus, de sua divindade. A natureza com esse seu céu de estrelas, de sol, de ar, com esses seus rios claros e meigos, com aquela sua sorella morte, com o seu fogo, com seus ventos, nada mais é do que um ser como nós, uma filha 37 38 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de Deus, uma nossa irmã, a quem devemos o amor, a compreensão e a admiração como testemunha da grandeza infinita da criação. E, tudo o que Deus fez tem em São Francisco a sua razão de ser. Nada da criação é supérfluo, inútil ou pernicioso para São Francisco. Na aparente discordância de elementos contrários, como a luz e a escuridão, como a vida e a morte, como o céu e a Terra, há uma substancial unidade e um feliz equilíbrio, estabelecendo por essa diversidade e variedade a harmonia e a melodia de um mundo que Deus criou. Nenhuma maldição por isso, nenhum receio; e sim uma atitude de alegria e de solidariedade diante dessa natureza vária e bonita, que, justamente na sua beleza e variedade, é prova da onipotência a que nós homens também devemos a nossa vida. Está aqui o segredo da poesia de São Francisco. Está aqui a modernidade desse escritor que, na sua humildade e simplicidade, supera o século e a mentalidade do século em que viveu para oferecer-nos elementos que nos dão a possibilidade de considerá-lo o precursor do Humanismo e da Renascença quando justamente a cultura italiana chega a uma atitude naturalística. Um naturalismo, aquele de São Francisco, que se sublima em um conteúdo de profunda religiosidade; uma religiosidade que não sai da cabeça, que nada tem de cerebral, que não é produto da cultura e da teologia e sim de um sentimento de alegre humildade, de simples espontaneidade, de humana compreensão. É alegre, santamente alegre e vivo, o rosto deste poeta italiano. Não há esforço no seu hino! É uma adesão inteira e cordial, quer à sua pobreza, que ele considera uma verdadeira riqueza, quer à humildade que não é perda de dignidade e quer à pureza que não é a renúncia à vida e sim um ritmo nobre de apego à existência. Nenhuma elocução fria e silogista neste poeta que Dante admirou profundamente, dedicando-lhe um dos cantos mais cordiais e espontâneos do seu Paraíso. Não é a palavra e a oratória que define São Francisco, mas a ação, o trabalho, a convicção, o viver coerentemente e profundamente com a moral do cristianismo. Parece um rei diante dos papas Honório III e Inocêncio III, que autorizam a fundação de sua ordem. Parece um homem cavalheiro e digno diante do sultão do Egito, aonde ele vai levar a sua palavra sincera de humildade e de amor. Parece um personagem de lenda esse santo que fala com as aves de Deus, que humaniza Il Lupo de Gubbio. E parece um novo evangelista, em 1224, quando o visita Cristo, que fica com ele nos estigmas que o santo levou consigo à morte. E da Terra sobe, enfim, para o Céu, em 1226, esse cantor da pobreza, esse Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos lírico do amor, esse apóstolo da solidariedade, esse fundador de uma das mais eficazes e positivas instituições religiosas da Igreja, como é a ordem franciscana dos “frades menores”, das “Clarissas”, dos “terciários”. A posteridade lhe deu o nome de Alter Christus. E a poesia italiana viu nele, até d’Annunzio, uma fonte de inspiração. E a pintura, desde Giotto, nele se inspirou. E a Itália de hoje o invoca como seu patrono. E o Humanismo e a Renascença viram nele um precursor que soube, sobretudo com ação, abrir o egoísmo, a crueldade, a violência da idade dura em que ele viveu. Outro temperamento, outras exigências, outro conteúdo anima a poesia religiosa de Iacopone da Todi. Nasceu em Todi, em 1230. Iacopone é um lutador, um intransigente e apaixonado crente e defensor dos seus ideais. Mas, não os vive e não se satisfaz em vivê-los pessoalmente. Encontra ele uma igreja que não é a que ele sonha. Encontra ele uma realidade que nega os seus ideais. Encontra ele um papa que não lhe parece o digno sucessor de São Pedro. Então, após a experiência de vida mundana até 1278, a tudo isso declara ele a sua guerra aberta, inflexível, audaciosa, sem incertezas, sem fraqueza, com um ímpeto heroico e unilateral de protesto e de violência, chegando até, ele franciscano, a tomar partido ao lado dos adversários da Igreja, a tomar parte numa guerra contra o papa Bonifácio VIII e a ser preso até 1303, para depois viver seus últimos anos em Collazzone, onde morreu em 1306. Aqui também, na poesia de Iacopone da Todi, não é a doutrina, o saber, o dogma e a teologia que nos interessam. Embora culto, não é isso que define a personalidade de Iacopone da Todi. É o fervor para com os seus ideais, o misticismo com que os afirma, a intransigência com que luta contra quem os nega que nos revela o espírito de sua obra. Uma amargura sem limite e desesperada domina o seu canto. Não há poesia nas suas Laudi onde não se sinta um desprezo, indistintamente, para com todos os que traem os ensinamentos do Evangelho. Toda a sua poesia é um constante desvendamento da hipocrisia, da assimilação da mentalidade de compromisso entre fé e moral, entre crença e modo de viver. Contra ele e contra os demais, contra o cidadão, o pai, o clero, as hierarquias da Igreja e o próprio papa, que ele chama de Lucifero e lingua di blasfema, de acordo aqui com Dante, que mais tarde condenará aquele mesmo papa. São duas, sobretudo, as notas da poesia de Iacopone: o pessimismo e o misticismo. As poesias que exprimem o seu pessimismo chegam a expressões quase cínicas de condenação da carne e de desespero do perdão de Deus, qualquer que seja a obra de penitência 39 40 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que o homem possa fazer para descontar seus vícios. E as poesias que se inspiram no seu misticismo chegam a verdadeiras expressões de uma exasperada sublimidade. A musa de São Francisco é o amor. A musa de Iacopone é a dor. Os críticos consideram Iacopone da Todi como a maior personalidade italiana do século XIII, como aquele que melhor parece prenunciar a figura angulosa, lutadora, enérgica de Dante. No quadro da literatura italiana do século XIII, antes de chegarmos, então, à grande lírica do Dolce Stil Nuovo, é a poesia religiosa de Iacopone da Todi e de São Francisco que nos fala de um motivo já propriamente italiano, que surge como reflexo de um meio italiano e como expressões da sensibilidade e da espiritualidade italiana, que abandona as solicitações estrangeiras da França e da Provença, dobrando-se em si mesmo e cantando os seus sentimentos e os anseios desse idealismo religioso. A escola do Dolce Stil Nuovo Não é, portanto, nem de repente, que a literatura italiana do século XIII chega à grande afirmação lírica da escola do Dolce Stil Nuovo. Esta escola é mais uma conclusão do que um início; é uma síntese de um trabalho secular que vai dos primórdios da formação da língua “vulgar” até os últimos anos do século XIII. Nenhuma escola, aliás, com um programa claro de técnica de linguagem e de conteúdo surge repentinamente. Isto poderia ocorrer com manifestações de caráter popular que surgiriam no meio do povo, representando os seus sentimentos, as suas paixões, a realidade em que ela vive e age. Mas a literatura do Dolce Stil Nuovo não é uma poesia popular. Ela nada possui de primitivo, de vivo, de fácil, de espontâneo, posto que a facilidade e a espontaneidade são os caracteres fundamentais da poesia popular. A poesia do Dolce Stil Nuovo é, aliás, altamente aristocrática, restrita a um grupo de poetas que Dante chama de saggi, isto é, sábios e cultos, limitados a uma cultura essencialmente filosófica e teológica. Por isso, a poesia do Dolce Stil Nuovo deve ser considerada como a consequência de outras seculares experiências artísticas, como a conclusão de outras tentativas, como o momento em que a língua possui já os seus meios de expressão bem acabados, e a alma italiana, em seu conteúdo autóctone, exprime já uma espiritualidade definida. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Assim é que não é possível falar na poesia do Dolce Stil Nuovo sem brevemente lembrar o que a literatura italiana até então tinha realizado, no campo da poesia religiosa, da poesia didascálico-alegórica, da poesia amorosa, da poesia cavalheiresca. Lembrando essas várias etapas da literatura, abrimos a estrada para uma compreensão historicamente mais profunda do sentido humano e poético desta escola do Dolce Stil Nuovo com que se fecha a literatura do século XIII e que prepara já os elementos formais e de conteúdo sobre os quais surgirá a grande literatura do século XIV. É só chegando à poesia do Dolce Stil Nuovo que o leitor poderá ver como tudo o que até agora foi estudado na história da literatura italiana nada mais é do que uma propedêutica, em que a alma italiana vai se preparando para uma sua pessoal e original poesia, para uma sua pessoal e original visão e interpretação da realidade, dos problemas humanos, da concepção religiosa da vida. A poesia cavalheiresca diante do Dolce Stil Nuovo carece daquele sentido original que justamente lhe será impresso, nos séculos XV e XVI, quando os poetas italianos saberão fazer própria essa matéria, subjetivando-a com um conteúdo tipicamente humanístico e renascentista. É então que encontramos a verdadeira poesia cavalheiresca italiana, com Luigi Pulci, com Matteo Maria Boiardo, com Ludovico Ariosto. Neles, aquela matéria não será mais supina imitação, mas original canto de amor, de virtude, de uma realidade onde prevalece um naturalismo que, embora não deixando de ser ideal, perde aquele conceito de mito e de lenda próprio da primeira poesia cavalheiresca. E mais ou menos as mesmas observações poderiam ser feitas a respeito da produção literária didascálico-alegórica que até aqui estudamos como conteúdo de importação da França. E a poesia amorosa da Scuola Siciliana empalidece diante dos poetas da escola a que pertenceu Dante. Lendo os poetas do Dolce Stil Nuovo, compreendemos a imensa distância entre estes e aqueles e percebemos profundamente o orgulho e a razão daqueles versos com que Dante condena os poetas anteriores ao Dolce Stil Nuovo: “O frate, issa vegg’io”, diss’elli, “il nodo che ‘l Notaro e Guittone e me ritenne di qua dal dolce stil novo ch’i’ odo!”9 (Purgatorio XXIV, 49-57) “Oh irmão, agora eu vejo”, disse ele, “a barreira / que manteve o Notaro e Guittone e a mim / aquém do dolce stil nuovo que eu ouço!” 9 41 42 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E não seria possível chegar ao Dolce Stil Nuovo sem fazer menção à poesia religiosa do século XIII. Tudo converge então para essa escola, que herda do passado formas e conteúdos que ela se encarregará de renovar. E, além disso, não seria possível silenciar sobre outros fatores aos quais o Dolce Stil Nuovo deve o seu aprimoramento; toda a Filosofia, toda a Teologia, todos os estudos de caráter científico e mesmo as condições econômicas e políticas da Idade Média preparam a grande afirmação desta escola. E, se tudo isso serve para compreender a sua gênese, o ambiente em que surge completa essa nossa compreensão. O Dolce Stil Nuovo nasce numa cidade de cultura, no meio de estudos de Teologia e de Direito, em Bolonha, que era então a cidade aonde confluíam os estudiosos da Europa. Assim, também historicamente a poesia do Dolce Stil Nuovo representa uma etapa essencial na história da literatura italiana. Essa escola surge quando a Escola Siciliana morre. Surge quando a política de Frederico II e de Manfredi jaz nos campos da derrota de Benevento, em 1266. Desde então, a Itália central, com Bolonha antes, e com Florença depois, pode tornar-se o fulcro da inteligência, do pensamento, da arte e da ciência italiana. É por todas essas razões que, quando se fala no Dolce Stil Nuovo, fala-se numa escola não mais de caráter regional, numa língua ainda dialetal, mas sim numa escola de caráter nacional, na inspiração e na língua. Na inspiração, porque o programa da escola é tipicamente italiano, surgindo na Itália em meio a uma cultura própria, nada devendo a motivos exteriores e importados, sendo até, como procuramos demonstrar, a superação da literatura anterior não original. Na língua, porque os escritores não pouparam esforços no sentido de levar para um plano nacional o meio expressivo, elaborando sobretudo o dialeto vivo e cintilante da Toscana. O fundador do Dolce Stil Nuovo foi Guido Guinizelli, professor, filósofo e jurista da Universidade de Bologna. Dante reconhece em Guido Guinizelli o pai do Dolce Stil Nuovo: mio e delli altri miei miglior che mai rime d’amore usar dolci e leggiadre (Purgatorio XXVI, 98-99) O poeta Guinizelli é considerado o fundador desta escola justamente por ser autor de uma canzone que é considerada como manifesto do Dolce Stil Nuovo: Al cor gentil rempaira sempre Amore. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Para este sábio, o amor é sinônimo de gentileza, como a luz é sinônimo de sol; o amor purifica e enobrece, como o sol; para esse sábio, a mulher é um ser espiritual, cujo amor não é pecado, mas virtude, meio, origem de todas as virtudes. Para esse sábio, diante até da justiça divina, a mulher se torna um elemento de garantia da pureza moral, da dignidade, e é a razão primeira do prêmio celeste. A canção fecha-se com os versos: Dir Li porò: “Tenne d’angel sembianza Che fosse del Tuo regno; Non me fu fallo, s’in lei posi amanza”.10 Esse conteúdo de Guinizelli, em ritmos diferentes, com paisagens várias e numa tonalidade individual, foi tema de todos os poetas do Dolce Stil Nuovo. Para todos, a mulher deixa de ser a cortesã e o objeto de uma homenagem formal. Ela se torna um espírito, uma imagem, uma mensagem quase aparição e presença breve e juvenil da divindade. Em nenhum desses poetas a mulher alcança uma perspectiva individual. Em nenhum deles há uma simpatia particular em descrever os aspectos físicos ou as impressões morbosas. Tudo se dá num plano de alta espiritualidade e de íntima religiosidade. Trata-se, enfim, de uma concepção religiosa do amor e da mulher. A finalidade do homem é sempre o Além, é sempre o cumprimento dos deveres do Evangelho. Mas tais deveres só podem ser cumpridos na base de um afeto e de um amor por meio de uma mulher, que represente o estímulo real de nossa elevação, de nossa espiritualização. E sem o amor, o homem não é cristão, nem mesmo homem, e se assemelha mais ao animal. Nessa adoração que vive de sentimento e de anseio, corre toda a poesia do Dolce Stil Nuovo, de Guinizelli até Dante Alighieri. O saber, a coragem, a ciência, a família, a pátria, a amizade e qualquer outra manifestação da vida estão todas subordinadas a esse amor ideal, a essa mulher-imagem, a esse platonismo profundamente religioso. E tudo isso em geral fica expresso numa linguagem de alta melodia, num ritmo em que nada manifesta sensualidade, morbosidade, vulgaridade. As palavras límpidas e planas, em que prevalecem sobretudo as vogais, sucedem-se lentamente umas às outras, no mesmo verso, e o verso cai no outro com o mesmo tempo, fixando-se no quarteto, e Dizer-lhe poderei: “Teve de anjo semblante / Que fosse do Teu reino; / Não foi falta minha, se nela deitei amor”. 10 43 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 44 depois no terceto. Daí o soneto, esse conjunto de quatorze versos em que são imagens e sentimentos que se exprimem. A espontaneidade, a adesão da linguagem ao sentir, a correspondência entre a vida do espírito e a realidade, esse imperativo de unidade entre palavra e sentimento, entre corpo e alma, ficam para sempre claros nos versos com que Dante se apresenta no Purgatório como poeta do Dolce Stil Nuovo: E io a lui : “I’ mi son un che, quando Amor mi spira, noto, e a quel modo Ch’e’ ditta dentro vo significando”.11 (Purgatorio XXIV, 52-54) Depois do fundador Guinizelli, o ferreiro dessa escola foi Cino da Pistoia, como diz Francesco De Sanctis, e seu poeta, Guido Cavalcanti. Lapo Gianni e Gianni Alfani aumentaram o número dos poetas desta escola. Mas o poeta que soube verdadeiramente transformar em altíssima lírica e em valor absoluto de canto a espiritualidade e os temas da escola do Dolce Stil Nuovo foi Dante Alighieri. O Dolce Stil Nuovo representa a fase de iniciação da poesia de Dante. O grande autor da Divina Comédia não poderia ter sido aquele sublime intérprete da humanidade e dos seus altos e nobres destinos se não tivesse sido antes o intérprete de si mesmo, de sua alma, de seus sentimentos e ideais, impulsionados pela presença viva e nobre, pela aparição beatificadora e angelical de uma jovem que empolgou e iluminou os seus anos juvenis. No centro da mocidade de Dante, desde os nove anos, aparece uma figura feminina cuja existência real só um positivismo mesquinho e banal poderia negar. E, aliás, essa capacidade idealizadora de Dante, capaz de tornar símbolo um ser real, como foi Beatrice Portinari, é bem o sinal de sua participação na poesia imaterial e quase estática do Dolce Stil Nuovo. Dante, antes da Divina Comédia, escreve um breve livrinho de prosas e poesias intitulado La Vita Nuova. Esse livrinho foi por antonomásia chamado Libretto Aureo porque é justamente o áureo capítulo dos nobres sentimentos e ideais e anseios que acenderam a sua alma de moço, antes que os problemas da realidade lhe enrugassem a fronte. Esse livrinho vive completamente na esfera E eu a ele: “Eu sou um que, quando / Amor me inspira, anoto, e daquele modo / Que ele dita dentro [de mim] vou exprimindo”. 11 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos da sentimentalidade, da psicologia, da espiritualidade do Dolce Stil Nuovo. No último capítulo desse romance juvenil, Dante anuncia A Divina Comédia, assim como os versos, a língua e o alto valor poético da escola do Dolce Stil Nuovo parecem anunciar a grande literatura italiana do século XIV, com Dante, Petrarca e Boccaccio, os autores que concluem os temas, os motivos dessa literatura em sua primeira fase, antes que o Humanismo e a Renascença lhe confiram outra linguagem, outro espírito e novas perspectivas, ou seja, justamente as linhas da literatura moderna, que vai do século XV ao século XIX, na véspera da chegada do Romantismo. A poesia religiosa: Giacomino da Verona, Bonvesin da la Riva, San Francesco d’Assisi e Iacopone da Todi A poesia religiosa tem começo com poetas rústicos, mas notáveis sob muitos aspectos. O cristianismo consagrou a ideia da igualdade, a ideia do próximo e a ideia de uma justiça final e definitiva, que anula as iniquidades e as disparidades da Terra. Ensinou a desviar os olhos das belas aparências do mundo, a procurar no próprio íntimo as verdades profundas e inalteráveis. Os poetas, em sua maioria frades, que caracterizam esta época são muitos; deter-nos-emos, porém, em quatro. Giacomino da Verona Irmão franciscano da segunda metade do século XIII, possuidor de pouca cultura. Escreveu De Babilonia civitate infernali, onde descreve um Paraíso e um Inferno materiais e caóticos, em conjunto com os aspectos sobrenaturais de outras obras medievais. É uma poesia em dialetos de importância histórica, mostra que há poetas de amor, de moral, etc. Poderia fazer pensar ser o precursor de Dante, mas há uma distância imensa de cultura entre um e outro. Bonvesin da la Riva Bonvesin era milanês. Desapareceu depois de 1313. Deu-nos algumas obras de caráter moral, didático e religioso que nos mostram uma literatura humilde de seu tempo, muito embora seja edificante. A 45 46 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos mais vasta dessas obras é Libro delle tre scritture. Três são os elementos contidos na poesia: o negro – doze penas, castigos materiais que ele imagina serem impostos aos pecadores; o rosso – ele descreve as dores da paixão e do sofrimento de Jesus Cristo; o aureo – o Paraíso, naturalmente em proporções bem pequenas. O amor e a luz são dois elementos que invadem suas linhas. San Francesco d’Assisi A biografia de São Francisco de Assis pertence não apenas à história da Igreja, mas também à história civil, graças à influência pacificadora exercida por ele. Viveu de 1182 a 1226 e foi fundador e difundiu uma das maiores ordens religiosas da Igreja. Não foi sempre um santo e era filho de pais muito ricos. No início de sua vida de moço levava a vida mundanamente: era bonito, culto e espadachim. Em 1206, teve uma grave doença e, durante os horrores dessa doença, viu a morte. Teve consciência do que viu e isso lhe serviu de incentivo para aliar-se ao movimento religioso. Tornou-se profundamente pio, meigo, cheio de fé. Finalmente, em 1212, diante do bispo, renunciou a todas as suas riquezas e conforto e fez voto com a pobreza. Tornou-se Il poverello d’Assisi. A pobreza era a mulher que desde a morte de Cristo fora esquecida. O seu amor a ela foi tamanho que criou uma ordem onde ingressaram muitos homens ricos e de posição. São Francisco foi chamado Alter Christus. Dois anos depois de sua morte, sua mão ainda conservava os sinais das chagas. Os dois conceitos pregados na vida espiritual de São Francisco eram: o amor, a caridade e a compreensão; e o amor para com todos os objetos da natureza. As pregações de São Francisco são famosas. Em O Lobo de Gubbio, ele falava com esse animal, conseguiu convertê-lo e mais tarde sempre o acompanhava. Falava também com as aves. A única obra escrita que deixou foi Laudes Creaturarum, mas indiscutivelmente muito famosa e escrita em dialeto umbro. A literatura italiana o considera uma das maiores expressões poéticas. Uma expressão poética não mais cruenta, fragmentária, mas sim, compreensiva. Iacopone da Todi Nasceu em 1236 e morreu em 1306. Foi um homem de cultura: estudou Direito, exerceu a profissão de advogado. Vivia do seu trabalho, frequentava a sociedade rica e gostava dela. Uma ocasião em que fora a um baile com sua esposa, isso em 1268, ela ficou gravemente enferma Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e morreu. Quando ele foi recolhê-la, abaixo de suas vestes elegantes ela carregava o cilício. Nesse momento percebeu que ela era profundamente religiosa e apenas o acompanhava por obediência. Ficou muitíssimo impressionado, de tal forma que em 1278 renunciou à vida mundana e tornou-se religioso. Foi tão fiel que, quando da luta entre os conventuais e espiritualistas, manteve-se com estes últimos, combateu contra Bonifácio VIII, que favorecia os conventuais. Na luta travada entre a Igreja e o Império, ele foi a favor da Igreja, foi firme e grande. Numa guerra com uma família, pelo Castelo no Lácio, que devia pertencer ao papa, ele combateu contra este. Foi preso cinco anos (de 1298 a 1303). Na prisão ele lançou contra Bonifácio uma sátira impetuosa, chamando-o de “O novo Lúcifer”, “Língua de Blasfêmia”. Dante condenou Iacopone ao Inferno antes de morrer. Ele morreu no convento de Collazone. Atualmente é ainda muitíssimo estudado. Se há poeta que faça lembrar Dante é Iacopone. É a maior personalidade poética da época religiosa. O ambiente de que promanam suas poesias não é apenas religioso, mas também moral e político. Tem, não obstante, as suas deficiências. Aliado a seus defeitos, ele mostra a sua personalidade própria de poeta. Entre as obras que deixou, menciona-se Pianto de la Madonna de la passione del figlio Gesù Cristo. A poesia realística e burguesa O século XIII tem o seu fim com o aparecimento da poesia realística e burguesa, a qual surge em caráter de oposição à poesia do Dolce Stil Nuovo, e em geral a toda a poesia do século XII. Primeiramente façamos um comentário sobre os ideais que foram a base das poesias que antecederam a poesia realística e burguesa. A poesia religiosa teve sua inspiração nos sentimentos cristãos, na humildade, no amor, na irmandade, enfim, em todas as virtudes e em todos os ideais nobres. Essa época teve poetas notáveis e que se destacaram na história da literatura italiana. Em seguida surge a história da Scuola Siciliana, cujos poetas, obras e inspiração são motivos de admiração. A fonte de inspiração dos poetas da Scuola Siciliana era o amor, a beleza feminina, o gosto de viver colocando nesse amor um sentido 47 48 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de adoração. Apesar disso, o amor é cantado ou parece ser, na rigidez convencional do estilo, exercício literário e moda. Tem lugar então a escola denominada Escola de Transição; os artistas que dela fizeram parte muito se esforçaram pelo aprimoramento da cultura. Eram escritores de sentido religioso, valor espiritual e profundamente italiano. Surge após, em Bolonha, a Scuola del Dolce Stil Nuovo. O objetivo dessa escola foi também procurar a natureza do amor, porém com muito mais sutileza e espiritualidade. Os objetos da poesia eram a interpretação do amor num sentido altíssimo, nobre e juvenil. O maior poeta dessa escola foi Dante, que escreveu A Divina Comédia. Ele representa e interpreta toda a época do Stil Nuovo. Finalmente, aparece a poesia realística e burguesa, assim denominada por tomar como tema de suas poesias as paixões vividas, o amor às sociedades, ao ambiente alegre e feliz. Procurava afastar-se o máximo possível das preocupações, dedicando o tempo cantando, amando e tocando. Essa vida que foi o motivo da obra de Boccaccio. Em relação às poesias anteriores, ela é feita de imitação, bastante falha, poesia de transição linguística. É uma lírica realista ou sensual, folgazã e geralmente de escasso valor. Os poetas deste período foram: Cecco Angiolieri, o florentino Rustico di Filippi, Cene della Citarra e Folgore da San Gimignano. Cecco Angiolieri Nasceu em Siena em 1260, morreu em 1312. Foi considerado pela crítica como no grupo dos poetas cômicos. Teve uma vida desregrada, ímpia e triste. Deixou mais ou menos cento e cinquenta sonetos, sendo o principal aquele em que canta seus vícios. Pode ser chamado de cínico pela coragem que teve de mostrar nos seus versos o ódio imoral que dedicava ao pai e à mãe. Ele cantou principalmente uma mulher, Bechina, filha de Agevol, a quem ele amou, com quem casou, porém não foi correspondido. Aí começou sua infelicidade. Cantou contra o pai, que, apesar de ser rico, não o ajudava e o deixava na pobreza. Alegrou-se quando o pai morreu. O seu ódio era tanto que escreveu que até na morte não queria visitar seu pai. À mãe ele odiou também e perto desse ódio detestou todo o mundo. Nos últimos três versos ele acorda, pensando como seria roubar as mulheres bonitas para si e deixar as feias para os outros. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Rustico di Filippi O caráter de sua poesia não é amoroso, mas sim sonetos de caricatura. Ele tinha uma capacidade extraordinária para descrever as pessoas daquele tempo. Escreveu Sonetti, constituído de cinquenta e sete versos, onde ele se revela um autêntico caricaturista da vida florentina. Era entretanto um escritor de escassos conhecimentos históricos e seus sonetos, muitas vezes, deixavam o leitor indiferente, porém se este o entende, observa quadrinhos de valor político. Folgore da San Gimignano Foi um suave narrador das festas e da vida cavalheiresca da Toscana. Ele escreveu um grupo de poesias denominadas Corone. Sonetti de’ mesi: sobre os dias do mês, com catorze sonetos dedicados a um chefe de brigada. Nesses sonetos ele sugere o que se deve fazer em cada mês para gozar a vida tranquilamente. Mostra a luz e os perfumes da natureza. Sonetti della settimana: sete sonetos, um para cada dia da semana, mostrando o que se devia fazer. Canta o sentimento da vida natural, o prazer de viver quando a vida é tão bela. Cene della Citarra Sua poesia foi de um cantar popular, quase sem preparo, assemelhando-se a uma paródia dos sonetos de Gimignano, porém num sentido oposto, isto é, sugeria as coisas com o que de pior os “meses” oferecem. A paródia é como um jogo. A Scuola Siciliana até o Dolce Stil Nuovo A literatura italiana na sua origem não pode ser considerada como grandiosa, nem viva e nem mesmo autóctone. Literariamente, ela está ligada à França e Roma. Com a queda do Império Romano do Ocidente, ao iniciar-se o século XIII, tem lugar na Itália uma literatura que, não sendo já latina, ainda não é italiana. É nos séculos XI e XII que ressurgem com as Comunas os destinos da Itália. Deve-se a este ressurgimento de caráter político e mercantil a sequência, o desabrochar das artes, particularmente o desenvolvimento da arquitetura romana e a renovação dos estudos jurídicos e teológicos. A literatura verdadeira e autêntica, porém, continua 49 50 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos silenciosa. Os documentos que interessam são poucos e sem interesse de desenvolvimento futuro. Somente no século XIII é que o italiano vulgar começa a ser empregado em escritos de caráter literário. A nova literatura nasce com caráter de interioridade que não é suficiente para defini-la, que também não é constante, porém retorna nos grandes poetas distanciados por séculos entre si – Dante, Petrarca, Tasso, Alfieri, Foscolo, Leopardi, Manzoni, Pascoli – como sinal de uma revolução espiritual, impossível de refrear. E já no período das origens essa maior interioridade se traduz na poesia do Stil Nuovo, na mística úmbrica e em Dante, isto é, nas mais duráveis criações poéticas da época. Só no século XIII é que podemos ver uma orientação de caráter artístico na poesia italiana, com o aparecimento de uma escola de poetas que se denomina La Scuola Siciliana. Os componentes dessa escola têm uma consciência precisa da poesia provençal. Os toscanos prendem-se a eles e ajuntam ao adestramento técnico uma cultura filosófica mais ou menos ampla. A Escola Siciliana assim se denomina não porque fosse formada por um grupo de poetas essencialmente sicilianos. A razão do seu nome se deve a Frederico II, rei da Sicília de 1208 a 1250, ano em que morreu. Ele teve na sua corte o primeiro centro de cultura no período das origens. Esse rei, pela sua cultura e generosidade, foi considerado um dos precursores da Renascença e do Humanismo. O material e as formas poéticas da Escola Siciliana são antes de tudo de origem provençal. Os motivos não são espontâneos e sim ligados à lírica provençal. O tema é o amor, concebido com um refinamento aristocrático em que se notam os reflexos dos costumes feudais das cortes de Provença. Os poetas da Escola Siciliana cantaram o amor, a beleza feminina, o gosto de viver, colocando nesse amor o panorama da natureza, no sentido de adoração e homenagem à primavera. Nesta poesia falta não só uma mulher viva, mas mesmo um coração vivo de poeta. O amor é ou parece ser, na rigidez convencional do estilo, exercício literário e moda elegante. Os principais poetas desta escola são: Odo delle Colonne, Federico II, seus filhos Enzo e Federico d’Antiochia, Rinaldo d’Aquino, Giacomino Pugliese, Giacomo da Lentino e Pier della Vigna. A Escola Siciliana é lembrada com grande honra, pela primeira vez, por Dante, que, no De Vulgari Eloquentia, falando de Frederico II e de seu filho Manfredi, escreve: Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Os homens nobres de coração e dotados de galhardia se esforçam por conformar-se à majestade de tão grandes príncipes: de tal forma que, tudo o que no seu tempo produziram os mais ilustres dos latinos, primeiramente vinha à luz na corte daqueles reis tão grandes. E porque a sede real era na Sicília, aconteceu que tudo quanto os nossos predecessores fizeram em vulgar foi denominado siciliano: e este uso também nós outros o conservamos e nem saberão mudá-lo os nossos pósteros. A Escola Siciliana teve vigor até 1266, quando teve lugar a derrota de Benevento. Nessa época aparece a Escola de Transição e se transfere da Sicília, que fora o centro das artes e das ciências da Itália, para Florença. Alguns artistas da Escola de Transição muito se esforçam pelo aprimoramento da cultura, e se destacam entre eles: Bonaggiunta Urbiccini da Lucca, Folcacchiero dei Folcacchieri, Dante da Maiano, Guittone d’Arezzo, Campiata Donzele. Esses escritores eram de sentido muito mais religioso, valor espiritual e profundamente italiano. Em alguns poetas deste tempo, sente-se já uma delicadeza artística maior e uma feitura mais suave e mais leve, que prenunciam o estilo novo. A Scuola del Dolce Stil Nuovo surge em Bolonha, centro de cultura da Europa, onde os estudiosos iam terminar e aperfeiçoar seus estudos. O fundador da escola foi Guido Guinizelli, homem de letras em toda a acepção da palavra e professor da Universidade de Bologna. A designação dessa escola vem de Dante: Nuovo indica a distância que a separa da poesia antecedente; Dolce, a entonação dominante nesta lírica amorosa. Não há mais a entonação cavalheiresca, mas psicológica e altamente ideal. Busca também ela, como fizeram alguns poetas da Escola Siciliana, saber qual é a natureza do amor, porém com muito maior espiritualidade e maior sutileza. Esta poesia tem, realmente, um fundamento a um tempo religioso e filosófico. É poesia filosófica quando obtém da Escolástica a precisão das distinções e da linguagem, e estuda o amor com uma severidade científica; é poesia religiosa quando faz do amor um meio de elevação espiritual e da mulher amada uma criatura celestial. Foi na Scuola del Dolce Stil Nuovo que teve início a concepção do amor e da mulher, amor esse não mais cavalheiresco, mas no sentido de religiosidade. A unidade do amor em que ele se torna de caráter moral, onde não há gentileza sem amor e nem amor sem gentileza. A mulher é antes de tudo anjo, embora seja cheia de vida, é como uma visão. Ela nunca é descrita nestes poetas e sim os seus 51 52 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sentimentos íntimos e humanos. A mulher não é motivo de desejo e sim de contemplação num amor juvenil e eterno. O motivo do amor não era o do ser fisicamente amado, e sim de elevar o homem afim de que ele abandonasse as mesquinhezas da vida. O objeto desta poesia era a interpretação do amor num sentido elevadíssimo. Com a poesia do Dolce Stil Nuovo a idealização da mulher, já iniciada pela Escola Siciliana, dá um passo à frente com Dante, que é o maior poeta do estilo novo; a idealização da mulher se diviniza. Os principais autores do estilo novo foram: Guido Guinizelli – fundador –, Lopo Gianni, Gianni Alfani, Cino da Pistoia, Guido Cavalcanti, Dino Frescobaldi e Dante Alighieri. A canção de Cavalcanti é, realmente, como que o enredo filosófico da escola; é ordenada e precisa como um raciocínio, pois estuda, com minúcias, qual é a sede do amor, qual a sua causa, a sua virtude, o seu poder, os seus efeitos, etc. Um pouco dessa disposição lógica se encontra em outros poetas da mesma época. Em todos, afinal, sente-se pelo menos algumas vezes o convencionalismo daquela especial mitologia que o estilo novo criara, personificando na forma etérea, conveniente a uma poesia tão imaterial, os estados d’alma do poeta e da mulher. Dante é considerado o maior poeta das origens; escreveu A Divina Comédia, obra grandiosa e magnífica, onde ele descreve o Paraíso e o Inferno. A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XIV Neste século encontram-se três personalidades da literatura italiana, que, pela importância das obras, são também três grandes personalidades da literatura universal. Não há, pois, povo que não conheça Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio. E interessante é notar que eles representaram três momentos de uma idade, três fases da espiritualidade italiana, três momentos da dinâmica espiritual e artística da literatura. A primeira fase é representada por Dante, a segunda por Petrarca e a terceira por Boccaccio, fases estas que são indicadas pela forma com que Dante exprime o seu mundo artístico, o terceto; Petrarca o seu, o soneto; e Boccaccio o dele, a prosa. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Esses três poetas representam também a passagem, não só métrica e sintática, mas igualmente num sentido humano, de uma forma à outra, isto é, do terceto, que é severo em Dante, ao soneto, que é um pequeno retrato de gentileza, de saudade, em Petrarca, à prosa narrativa, descritiva, representativa de Boccaccio. Temos, por conseguinte, três obras: La Divina Commedia, Il Canzoniere e Il Decamerone. A Divina Comédia é a representação do drama humano, sob o ponto de vista da eternidade. Il Canzoniere é uma análise da dúvida, da melancolia, representada pela crise espiritual de Petrarca. Il Decamerone é a narração objetiva do mundo como ele é, e não como deveria ser, o que acontece na Divina Comédia. Petrarca é o poeta que, entre a Idade Média e o Humanismo, fica numa melancolia, num tom musical de análise da sua alma. Seus catorze versos são os suspiros e as saudades que o atormentam. O século XIV é aquele em que se fecham as lutas da Idade Média, e, através da literatura desses escritores, abre-se a possibilidade de ver as primeiras antecipações da cultura que prepara o Humanismo e a Renascença. É, pois, um século que abandona a Idade Média e anuncia a Idade Moderna. Dante fecha e sintetiza a Idade Média, Petrarca está entre ela e a Renascença, e Boccaccio é um humanista sob muitos aspectos. Daí a grande importância que tem o século XIV. Dante é considerado o pai da literatura italiana, porque faz seus, na Divina Comédia, todos os problemas da Idade Média, sintetizando todos os aspectos secundários inferiores; ainda, porque toda a literatura até então, como a poesia cavalheiresca, religiosa, etc., dificilmente alcançará o ritmo que a poesia moderna exige; e Dante põe tudo isso numa forma eterna. Ele é o intérprete daquela idade, o seu lírico. Nada criou de novo, de extraordinário. Tudo o que escreveu já se encontra em outros escritores da literatura italiana. E é justamente nisso, em não haver nada de novo e especial, que está a sua grandeza, pois suas criações eram sentidas por todos e ele interpreta a todos numa forma definitiva, singular, nova. Eis o grandíssimo poeta. Dante é o pai da literatura italiana também por ter escrito obras de caráter linguístico, como De Volgari Eloquentia; por ter definido o que deva ser uma língua; dispondo de uma linguagem ainda ligada ao dialeto florentino, criou uma nova expressão, com palavras que não são mais regionais mas que permanecerão para sempre incorporadas à língua, ao patrimônio linguistico universal. Eis o vulto, a personalidade de Dante. 53 54 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Vida de Dante Alighieri (1265-1321) Dante nasceu em maio de 1265, em Firenze, filho de Alighiero di Bellincione, de família guelfa nobre, mas não rica. Seus antepassados foram heróis, como seu trisavô, um mártir cristão, que estimula Dante a ser herói como poeta e não como militar. Podemos dividir a vida de Dante em três períodos fundamentais: O primeiro é o da sua infância, da qual pouco sabemos. Aos nove anos, em 1274, encontrou pela primeira vez Beatrice Portinari, que também tinha nove anos. Houve um período na crítica europeia que negou a existência de Beatrice, mas é viva demais a forma com que Dante fala dela para que se possam ter dúvidas quanto à sua existência, pois sendo ele um dos poetas menos sonhadores, cuja reação poética foi sempre devida a um choque, e portanto não há nenhuma razão para acreditarmos nessa crítica. Alguns chegaram a dizer que ele pôs apenas um “b” maiúsculo ao verbo beare (beatificar), o que vem a ser um disparate. E nove anos mais tarde, em 1283, Dante reviu essa moça, tendo ele já completado 19 anos; então compreenderam-se e amaram-se, formando-se La Vita Nuova. Beatrice morre em 1290, tendo casado por questões políticas com um senhor riquíssimo chamado Simone dei Bardi. De 1265 a 1290, ele estudou regularmente nas escolas de então as artes do trívio e do quadrívio. Um outro fato importante de sua mocidade é o seu amor por Beatrice, o que põe em evidência o seu idealismo, a sua honestidade, a sua pureza de sentimentos. Todas as suas lembranças são baseadas em sentimentos de altíssima nobreza, como num sorriso que o enobrece e o transporta a um mundo de idealidade, um traço de seu caráter. Assim como foi puro e honrado para com Beatrice, também o foi para a pátria, pois foi igualmente um lutador, um combatente. Em 1298 combateu com o exército florentino contra Arezzo, sendo ferido na batalha de Campaldino, da qual lembra muitas pessoas no Canto V do Purgatório. Nesse ano também tomou parte num assédio da ilha Caprona (sendo que no Canto XXXIII do Inferno ele canta a tragédia de um pai que antes de morrer foi obrigado a ver a morte dos seus filhos). Até aqui tivemos um Dante estudioso, enamorado e lutador, começando em 1290 uma outra fase na vida de Dante, pois é nesse ano que morre Beatrice, como morrem todas as moças do Dolce Stil Nuovo, que eram visões passageiras. Nesta nova fase Dante está insatisfeito, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos vê somente vácuo, considera a vida inútil porque desapareceu o seu amor. Dante torna-se amante da Filosofia, abandonando a Gramática e procurando na Filosofia o raciocínio para compreender a realidade e por que razão os ideais são verdadeiros. Beatrice então torna-se o símbolo do amor e da verdade, e mais tarde também da Teologia. Dante estuda Filosofia frequentando as escolas filosóficas de Firenze, ministradas em três conventos: Santa Maria Novella, dos Domenicani ou do racionalismo de São Tomaz; Santa Croce, dos Francescani ou do sentimento; Santo Espírito, dos Agostiniani ou da dúvida. É pois através desses três sistemas filosóficos que se formou a personalidade de Dante, que se atira ao pensamento, à Filosofia e define sua personalidade. Este é o período em que forma sua cultura, que nunca é racionalista, pois foi um admirador do mundo de São Francisco, que não é árido, mas fértil e ameno, e seus seguidores pensam e sentem ao mesmo tempo. Dante é um caráter exuberante, generoso, de forma que aquela filosofia fria, calculada, não é a que pode combinar com sua mentalidade. Em 1295 ele está pronto para enfrentar a vida como homem, quando começa outra fase, a de Dante moço, infante, capaz de jogar a vida pelo seu ideal; é a primeira fase. Agora, é o estudioso que sente a vida através da cultura, tomando atitudes na vida, sendo político sem ser partidário, tendo ideais para poder agir na vida. Por isso Dante entra na vida política, e é interessante saber-se que Dante, sendo nobre, não podia tomar parte ativa na vida política, pelo fato de em Florença haver uma confederação chamada Ordinamenti di Giano della Bella, cujo espírito era essencialmente democrático e popular. Naquela época não podiam tomar parte na vida política os homens que não pertenciam a uma profissão: ou a uma arte maggiore ou a uma arte minore. Os nobres não podiam tomar parte nessa vida pública, mas houve uma reforma, com a condição de que eles se inscrevessem numa arte, tornando-se plebeus. Dante então tomou parte na arte dos medici e speziali para poder entrar na vida política. Fez parte do Consiglio dei Cento, sendo um dos conselheiros. O chefe da cidade era o priore, e para nomeá-lo escolhiam-se cem cidadãos, que indicavam quem deveria ser o priore. Eles eram escolhidos pelos bairros. No bairro de Dante, ele era algo conhecido pelas suas qualidades e cultura. Ainda pertenceu depois ao Consiglio dei Savi, a elite dos priori, e que cuidavam dos interesses externos e internos da cidade, que era um Estado independente. Mas a coisa mais triste e feliz aconteceu a Dante em 1300, quando, do dia 15 de junho a 15 de agosto, durante dois 55 56 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos meses então, foi nomeado priore de Firenze, chegando ao posto mais alto, o de chefe da nação. No entanto, foi a sua tragédia, pois com a sua honestidade, os seus inimigos o destruíram. Pois Florença era uma cidade dividida por facções políticas. Existiam em Florença e na Toscana dois partidos tradicionais: os Guelfi e os Ghibellini, que desaparecem em 1265, o ano da batalha de Benevento, e com isso os Guelfi tornam-se vencedores. Mas como acontece geralmente aos vencedores, a vitória é causa de contrariedades. O partido dos Guelfi começa a dividir-se em várias tendências, como a ala revolucionária, etc. Há, sobretudo, duas facções: os Neri e os Bianchi, que dominavam a situação política de Florença. Dante foi sempre Bianco; os Neri eram chefiados por uma família chamada Donati e sobretudo por um que Dante condena no Inferno, chamado Corso. Qual a dificuldade entre os Bianchi e os Neri? Os Neri representavam principalmente a força agrícola, os arredores de Florença, os ricos e fortes proprietários de terra, e, para chegar ao poder, até permitiriam que a Igreja ocupasse Florença. O papa de então era Bonifácio VIII, que tinha ideias de dominação territorial e foi o primeiro adversário de Dante. Os Bianchi representavam a tradição da cidade, a cultura, a classe burguesa, a aristocracia florentina e as artes; eram pessoas que tinham muitos haveres sob o ponto de vista monetário e faziam absoluta questão da autonomia de Florença, pois nunca teriam permitido que alguém ocupasse Florença a não ser eles próprios, os florentinos. Daí a atitude de indiferença, daí a razão de tantos cantos da Divina Comédia, descrevendo-se a figura de Bonifácio VIII como proprietário e não como chefe da Igreja. Em 1300, quando Dante era priore, teve de ir a Roma. Durante a sua ausência, aconteceu algo contra ele: os Neri tomaram força e afastaram os Bianchi. Em janeiro de 1301, Dante teve uma condenação, isto é, ele foi expulso de Florença e deveria pagar uma multa em dinheiro para resgatar o crime de que era acusado: o furto, a barateria, isto é, a pessoa que se serve do dinheiro público para fins próprios. Dante soube disso, que ele foi condenado à morte se aparecesse em Florença. Ele deveria ser igne comburatur sic ut muriator, queimado pelo fogo até ser morto, em 1302. Acontecera que o papa durante a sua ausência serviu-se do rei francês Carlos de Valois, que veio a Florença com uma política habilíssima, em nome do papa. Os cidadãos acreditaram nele e Carlos impôs a vontade da Igreja e Dante foi perseguido e condenado. De 1302 em diante, Dante nunca mais reviu sua caríssima cidade. Deixou lá sua mulher, chamada Gemma Donati, e três filhos: Iacopo, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Piero e Antonia, que tornou-se freira, tomando o nome de Beatrice. Dante teve de abandonar os amigos mais íntimos, sua casa, suas ocupações, sua vontade de agir; bem pobre, sem nada, sem recursos, durante dezenove anos ele viveu no exílio, com a contínua preocupação de ser preso, sem nunca poder ver sua cidade, que lembra nos seus cantos, desde o batismo até ser priore. Dante foi vagabundeando pelos castelos da Itália, sofrendo humilhações, mas amadurecendo sua alma, desabafando o seu idealismo, porque vinha escrevendo suas obras. Imagine-se o que isto significa para Dante, cheio de coragem, honestidade, cultíssimo, este exílio, pedindo para deixarem-no viver, saudoso de sua cidade. Nunca mais ele voltou, apesar de em 1315 oferecer-se uma possibilidade: um parente de Dante escreveu-lhe uma carta convidando-o a voltar a Florença porque havia uma lei que favorecia sua volta. Mas era uma lei de vergonha, pois se ele reconhecesse publicamente o crime de que era acusado, poderia voltar. E é nessa ocasião que Dante escreve a seu amigo uma de suas cartas mais bonitas pela sinceridade, na qual Dante responde o seguinte: “Non haec est via redeundi”,12 pois nunca ele aceitará a esmola que joga sombra sobre sua moralidade. Esta sua reação é a de quem tem uma família e serve para descrever sua personalidade e o enorme valor que tem uma poesia que escreve no exílio: “L’esiglio che m’è dato onor mi tengo”.13 Dante viajou muito na Itália. Esteve em Verona com um grande homem: Can Grande della Scalla. Esteve também na Lunigiana, numa família chamada Malaspina. Em Lucca ele enamorou-se de uma moça chamada Gentucca, e nas terras de Gubbio ele conta o famoso episódio de São Francisco. Também esteve em Paris. Em 1321, Dante encontrava-se numa cidadezinha perto do Pó chamada Ravenna, com suas grandes igrejas feitas no tempo de Teodorico, em 425 de nossa era, e onde há uma famosa pineta. O chefe dessa cidade era Guido da Polenta, pai de uma das moças mais imortais e sugestivas da Divina Comédia: Francesca da Rimini. Dante, voltando de Veneza onde tinha ido levar uma incumbência, ficou doente e morreu em setembro de 1321, sendo sepultado em Ravenna, num mausoléu nesta pineta (campo cheio de pinheiros, muito famoso porque nele bate o vento do mar, e este pinheiral é lembrado por Dante no Purgatório: a ondulação melodiosa das árvores batidas pelo vento do mar). 12 13 Não é esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença. O exílio que me foi dado eu o considero uma honra. 57 58 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Obras de Dante Cada uma das obras dá um aspecto da personalidade de Dante, e em conjunto dão o valor da poesia de Dante. La Vita Nuova É um livro que Dante chama Libretto, dedicado a um amigo seu, o poeta Guido Cavalcanti, do Dolce Stil Nuovo. Provavelmente Dante escreveu esta obra entre 1292 e 1293. Ela é formada de duas partes: uma em prosa e outra em poesia. A prosa foi toda escrita entre 1292 e 1293, no período em que o poeta pensou em descrever, em narrar os seus sentimentos, no período de amor para com Beatrice. E não apresenta por isso diferenças de estilo. A poesia, em vez, sente os vários períodos em que foi escrita, porque as poesias foram escritas em 1274 e 1292, isto é, apresentam situações diferentes. Psicologicamente, porque representam períodos de felicidade, morte, exaltação e diferenças de linguagem. Estão divididas em trinta e uma poesias, que compreendem vinte e cinco sonetos, quatro canções, uma balada e uma stanza. O total desta obra é La Vita Nuova, e os críticos procuraram, uns, dizer que ela assim se chama porque Dante aqui conta a sua mocidade, sua vida dos primeiros anos; mas outros há que dizem que ela assim se chama porque conta a vida de Dante que se transforma pela influência de um nobilíssimo sentimento de amor. No entanto, as duas categorias de críticos são unilaterais, pois nenhuma delas é justa; é em vez as duas coisas ao mesmo tempo, como Dante diz na Vita Nuova, que ele está descrevendo: os efeitos que esse amor provocava na sua mocidade, naturalmente num sentido fisiológico e místico ao mesmo tempo. Muito mais razões devem ser dadas aos críticos que chamaram esse livro de Libretto Aureo, justamente porque fora de acontecimentos materiais externos; é a sistematização de Dante de 1274 a 1292, e transformando esse conceito até à teologia. O enredo dessa obra é o seguinte: Dante começa descrevendo quando ele viu pela primeira vez, aos nove anos, Beatrice, que entrava no seu nono ano. Nove anos depois, quando Beatrice entrava no décimo oitavo ano, Dante a viu outra vez, e Beatrice correspondeu à simpatia de Dante com um sorriso que indicava simpatia mútua, e isso renova a vida de Dante, ficando ele tão ciumento no estudo da alma, que se cria no seu espírito, que ele procura esconder isto, amando outras mulheres, para que as coetâneas de Beatrice não falassem sobre este seu amor, que ele queria que fosse uma coisa misteriosa e ignorada por todos, pois Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos era puro e sacro demais para que fosse objeto de intrigas, e por isso ele procurou esconder seu amor, fingindo amar as mulheres que chama de donne dello schermo. Mas acontece que Beatrice, entristecida, fica julgando Dante inferior ao que ela sonhava e imaginava que fosse, de forma que ela lhe tolhe a saudação (segunda fase). A terceira fase é uma que se pode considerar incompreensível hoje, mas perfeitamente real no Dolce Stil Nuovo, pois Dante continua amando Beatrice, humanizando atitudes reais e concretas, também suspendendo a saudação a Beatrice e ficando indiferente dela, vivendo num sentido platônico e ideal. Seu amor torna-se profundamente religioso, humilde e íntimo e lhe é indiferente a existência de Beatrice, sua saudação, pois tudo isso é separado pela profunda paixão, pela delicadeza de sentir do poeta, que vive somente do pensamento de Beatrice, que se torna dominante em sua alma. Dante se fixa num idealismo sereno, vivendo consigo mesmo de um sentimento que é só seu e que não é realizado. A terceira fase é, pois, platônica. Na quarta fase Dante descreve ter ficado doente, e imagina, no furor da febre, um sonho no qual a morte do pai e da própria Beatrice é iminente. Dante sara, mas em 1290, pouco tempo após este sonho, morrem justamente o pai e Beatrice. Então temos poesias maravilhosas, de uma dor nobilíssima, em que um sentimento individual torna-se quase dor universal. Tem-se a impressão que Florença fica sem sol, sem céu, e quando Dante vê cidadãos entrarem na cidade, ele pergunta por que eles entram rindo em Florença. Depois da morte de Beatrice, Dante enamora-se das donne gentili, moças que, vendo esse poeta meio solitário, desesperado, sem ter confiança na vida, procuraram consolá-lo; Dante ficou amando essas moças. Mas, num desses momentos, Dante sonhou que Beatrice lhe aparece, queixando-se dessa sua paixão por essas moças, e Dante então afasta essas tentações e retoma sua pureza ideal, prometendo que nunca mais dirá algo sobre essa mulher, até que escreva uma obra em que Beatrice seja o símbolo do saber e da teologia, até que, depois de ter conhecido a vida e estudado, escreva uma obra tão vasta, geral, universal, que nela entrarão os dois elementos antípodas: o Céu e a Terra. La Divina Commedia é, portanto, uma obra que ele já pensa em escrever desde 1292. La Vita Nuova, na Itália, foi estudada até nos seminários, onde os padres liam esta obra aos alunos, como uma obra de religião que purificava o espírito, que fazia com que a mocidade se fechasse numa esfera de religiosidade, pois a nobreza está nesta obra, em que não há um 59 60 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos verso que fale dos cabelos ou dos beijos de Beatrice: nada disto existe. Tudo o que Dante fala é uma reflexão religiosa diante de uma aparição que ele imagina quase como um milagre de Deus na Terra. Vê-se como o cristianismo soube influenciar até nos sentimentos que parecem ser menos puros e mais inferiores na vida humana. É o amor que se livra de qualquer sensação sensual, que chega a um silêncio, a uma meditação. Essa é a razão da moralidade da obra de Dante. E nesse sentido vê-se a distância entre a poesia do amor em Dante e a poesia provençal, ou da Escola Siciliana, daquelas atitudes acadêmicas de homenagem. Há em Dante a profunda subjetividade, fora de qualquer objeto alheio a ela; é o seu sentimento com Beatrice que cria seu vocabulário, palavras essas que são condensações do seu espírito, enquadradas em vinte e cinco poemas. Essa obra deve ser considerada em si e por si. Porém, lendo a Divina Comédia e as outras obras de Dante, sente-se como ele, antes de ser o cantor de uma virgem, foi o cantor de Beatrice e transformou e viveu nobremente esse sentimento de amor, e a ela deve sua atitude na vida, que é um bem e um mal ao mesmo tempo, pois até a tragédia da vida de Dante influi nas suas obras. Tudo dá uma razão de viver: o amor de Beatrice renovou sua vida. Ele será um missionário, num sentido mais amplo, pela escola de nobreza que ele teve e esse amor de Beatrice que faz com que ele alheie-se à realidade e se acostumasse que a poesia fosse a expressão do nosso sentir e não de literatura por literatura. La Vita Nuova é o romance da mocidade de Dante, a obra em que ele descreve sua juventude ideal, a pureza da sua alma de moço. Suas outras obras, em vez, têm outro caráter: não são repletas de idealismo, de sentimentos puros, elas não se movem numa atmosfera de religião, com o amor colocado num plano ideal de pureza, mas sim pelo interesse de um homem culto pela língua, e de um cidadão pelo Estado. De Monarchia É escrita em latim não clássico, o que não tem nada que dizer com a perfeição rítmica de Cícero ou de Tito Lívio, pois é um latim medieval, com um ritmo quase vulgar. É escrita nessa língua porque Dante dirigia esta obra aos homens de cultura, aos políticos, à aristocracia daquele tempo. Parece que foi escrita entre 1312 e 1313, isto é, durante aquele período em que aparece na Itália um imperador alemão sonhador, chamado Arrigo VII, de Luxemburgo; ele era cheio de ilusões e veleidades, tendo Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos descido da Alemanha à Itália com a esperança de reconstruir o Império Romano. Sua concepção de fé era a da unidade política de Roma, com a união dos povos. Porém ele não realizou isso, por não ter sido grande político: logo após sua chegada à Itália, em 1313, ocupando-a até Florença, ele morre numa cidadezinha chamada Buonconvento. De Monarchia é composta de três livros; sua importância é a de ter sido a obra em que Dante expõe a sua convicção política, narrando e defendendo o seu ponto de vista. No primeiro livro, Dante prova cientificamente que o Império Romano não foi somente uma conquista de energia, do valor genial romano, pois o Império Romano não podia ser uma criatura humano-política que deva a sua realização exclusivamente a meios humanos. Para Dante, o Império Romano é uma criação de intervenção divina, um milagre, é Deus que favoreceu este povo com uma finalidade profundamente cristã. Deus quis a unidade política do mundo, porque só depois disso teria sido possível a unidade religiosa. Assim como no Evangelho existe um que anuncia a vinda de Cristo, que é Il Prenunziatore, também no mundo da História houve um anunciador da força política do Império Romano e que foi Dante. Ele é então uma espécie de João, prenunciando o cristianismo. Isto é a sua fé, a sua concepção política e religiosa, compreendendo-se então o problema religioso ao lado do problema político. Nesta obra Dante também quer demonstrar algo mais, apesar de ser profundamente cristão e de ter uma concepção religiosa: ele faz questão de pôr em evidência os deveres e os campos das duas forças que são a religião e a política. Então ele traça os deveres da Igreja e os do Império: o imperador tem a incumbência de cuidar do bem-estar terreno, econômico, e o papa, da espiritualidade, da moral, da alma, de modo que os homens, vivendo à luz do Evangelho, cheios de virtude, possam chegar ao Além. Dante afirmou uma coisa que teve transformações profundas, como a presença de Deus na História, porque Deus é um ser transcendente. Como é que Ele permanece no mundo? Através da política e da religião, do papa e do imperador, o primeiro, profundo, íntimo, religioso, honesto como a face de uma outra imagem de Deus na Terra; o segundo, nobre, puro e digno. São estes, então, os dois conceitos de Dante: a religião é necessária como a política, pois ambas representam Deus. Numa outra parte desta obra, Dante fixa as relações entre essas duas forças, isto é, entre o imperador e o papa: eles não devem ter nenhuma relação de hierarquia; a política fora da religião e esta fora da 61 62 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos política, uma representando a atualidade e a outra, a moral, como dois momentos do espírito. Dante sonhou esta unidade político-religiosa do mundo, tendo como centro Roma, que era para ele a caput mundi. A Itália era o jardim do Império e Roma era a aiuola do Império. A humanidade movia-se em torno de Roma, o centro político-religioso do mundo. Foi na fase dessa ilusão, dessa profundíssima convicção, que Dante escreveu, lutou e sofreu o exílio, conservando-se esse apóstolo da literatura italiana. Suas palavras são credos que ele suporta, sofrendo privações enormes. De Vulgari Eloquentia É uma obra de caráter cultural e significa “sobre a língua italiana”. Foi escrita nos primeiros anos do exílio, de 1304 a 1307. Deveria ser composta de quatro livros, mas Dante não completou esta obra e parou no capítulo XIV do segundo livro. Também esta obra é escrita em latim, pela seguinte razão: Dante dirige-se à parte culta da nação, aos que falavam latim. O problema de Dante nesta obra é o seguinte: ele havia sonhado com uma unidade religiosa e política e sonhava com uma linguística. Com esta obra ele queria criar uma língua italiana literária, que não fosse dialetal, nem provençal, mas que fosse de todos os italianos. Até o século XIV, cada qual escrevia no seu dialeto. Dante quer que se separe este conceito de língua como dialeto, ele quer uma língua literária que seja a síntese de todos os dialetos, que seja aceita por todos os escritores e que seja compreendida por todos. É uma grande exigência de Dante, mas que terá continuadores em todos os séculos. O conceito da língua literária: Dante faz a história da origem das línguas. Depois, uma análise dos dialetos europeus, classificando os dialetos italianos em catorze grupos: meridional, central, setentrional, etc. Então analisa cada um desses dialetos e nota que nenhum deles possui qualidades para ser a língua italiana literária, nem mesmo o dialeto florentino, o seu, é digno de ser elevado a língua literária. Esta língua imaginária deveria ter caracteres possuidores do melhor de cada um dos dialetos. “Essa língua está em todos os dialetos e não está em nenhum, pois o melhor deve formar esta língua.” A língua italiana deveria ser: illustre, cortigiana, curiale e aulica. Illustre: não deveria ser vulgar, do povo, da rua, mas sim nobre, limpa, clássica. Cortigiana: devia ter como endereço a língua que se falava nas cortes. Curiale: Dante imaginava que no seio da unidade político-religiosa haveria um lugar que fosse a cúria dos escritores: aquele grupo de pensadores que formava as academias. Aulica: devia ser o fruto não Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos da espontaneidade e da vivacidade, mas sim do estudo e da derivação das línguas clássicas, devendo ser escolástica, culta, trabalhada. Foi um sonho, porém, porque o primeiro traidor foi o próprio Dante, que nunca escreveu assim. A Divina Comédia é escrita repleta de barbarismos e dialetos. Mas, por esta obra, Dante é chamado na literatura de fundador, de pai. Ele projetou os caracteres, sendo o primeiro teórico; seguindo suas observações, temos Pietro Bembo, que criou no século XVI o Bembismo, e no século XIX temos Allessandro Manzoni, que cria uma língua viva, e mais tarde temos Gabriele d’Annunzio. Il Convivio Esta obra é escrita em italiano, em língua vulgar. É necessário, portanto, ao se estudar as obras, atender à razão do autor ao escrever a obra. O De Monarchia é escrito em latim, porque Dante expõe um princípio de sua fé, e como é uma obra austera, emprega o latim, por se tratar de uma questão delicada, falando à classe culta, aos poetas de sua cidade. Ao passo que, escrevendo Il Convivio, Dante tem diante de si um outro público, uma outra assistência, mais numerosa, menos culta: o povo, o qual não podia falar em latim, somente em italiano, em língua vulgar. Esta é a razão primeira. Dante concebeu esta obra como um conjunto de catorze tratados ou livros, isto indicando que a atitude de Dante é tipicamente medieval, pois é próprio da Idade Média escrever obras que se poderiam chamar summas, obras universais. A espiritualidade contemporânea é bem a contrária. Hoje nós procuramos a universalidade num sentido crítico. E é tipicamente medieval também por uma outra razão: a finalidade dessa obra. Dante pensa ser útil oferecer o mínimo de cultura que ele pode oferecer. Nessa obra Dante fala de um banquete secular, em que o povo está convidando a um jantar em que o pão e todo o resto têm um valor alegórico. Trata-se de dar a moral ao público. Foi escrita logo após o exílio. Dante nunca a acabou, somente quatro livros dos que pretendeu escrever. O primeiro livro é o da introdução à obra, no qual afirma as razões pelas quais escreve em língua italiana e qual o plano desta obra. Os outros três livros são três tratados nos quais Dante demonstra o sentido alegórico, místico, religioso das canções que os compõem. É uma obra de divulgação, que poderia lembrar Dante como aluno de Brunetto Latini, o que também explica a mentalidade de Dante, quanto ele está ligado à mentalidade da Idade Média. 63 64 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Um ponto interessante do Convivio é onde Dante diz que a língua italiana deverá surgir onde a língua latina morrerá. Aqui ele sente-se livre de certos preconceitos da Idade Média, nos quais se considera a língua latina como indispensável. Dante sente que ele deveria aperfeiçoar a língua italiana, sendo que a latina fica somente como referência dos clássicos. Le Epistole Dante escreveu treze cartas, todas em latim, dirigidas ao imperador Arrigo VII, aos senhores da Itália, aos florentinos, que ele chama de scelerati, a Can Grande della Scalla, ao qual ele dedica a terceira parte da Divina Comédia. A mais importante é A l’amico fiorentino. Esta foi escrita entre 1315-16, e é a resposta a este florentino que convidava Dante a voltar a Florença. Esta carta é interessantíssima porque é uma das páginas autobiográficas mais profundas de Dante. Aqui aparece sua honestidade, sua intransigência, pois Dante, apesar de saber que o povo era conhecedor da sua inocência e que ele poderia viver tranquilamente, nega voltar e é desta carta a frase: “Não é esta a estrada pela qual posso aceitar voltar a Florença.” As outras cartas demonstram assuntos que já são tratados. A para Arrigo VII é de caráter político, na qual ele estimula a realizar rapidamente a reconstrução do Império Romano. Aquelas aos senhores da Itália também têm sentido político, nas quais convida a estes senhores a abrir as portas e aceitar a chegada de Arrigo VII, fundador do Império Romano. Importante é também uma outra, mas que fica num plano normal, a carta aos florentinos, porque Dante ofende a esse povo, chamando-os de bárbaros, isto porque considera este povo o mais fechado, o mais hostil à abertura e à aceitação de Arrigo VII; no entanto, Florença era a única que defendia a pátria. Le Rime (Il Canzoniere) Esta obra não pode ser chamada de Il Canzoniere, porque não tem harmonia esse conjunto de poesias, que por isso chamam-se Le Rime. É o conjunto de todas as poesias que Dante não incluiu na Vita Nuova, escrita entre 1292 e 1293. São de caráter sentimental, amoroso e de inspiração novista. Primeiro achamos nela também um outro conjunto de poesias, que são ofensas contra Forese Donati, pois Dante também gostava de lutas e brigas. No entanto, na Divina Comédia, Dante se arrepende e pede perdão ao amigo, o que é interessante saber-se para compreender a gênese de muitos cantos da Divina Comédia. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Ele cria dois cantos no Purgatório, que são dos mais bonitos, comparando-se os olhos de Donati a um anel do qual caiu a pérola. Mas em Le Rime há um outro conjunto de poesias, que se chamam Pietrosi, porque se referem a Pietra, por serem, voluntariamente, ásperas e vítreas, quando Dante amou e não teve correspondência. Essas são as obras menores de Dante. Cada uma tem a sua importância, a sua função, e elas explicam um aspecto desse prisma que é Dante. Hoje, elas nada mais são que uma propedêutica à leitura da Divina Comédia. E isto é fato, não por ser mais interessante, mas porque mesmo para Dante há mais consciência dessa obra, que parece a conclusão de duas personalidades. Dante deixa as outras obras por serem secundárias, como em Il Convivio e em De Vulgari Eloquentia; em La Vita Nuova, Dante tinha a impressão de que teria escrito uma obra de caráter muito mais universal, na qual haveria o Céu e a Terra. Nessa época ele já sente que poderá ser o autor dessa obra. La Divina Commedia É um poema em três cantos, divididos em três partes ou cantigas: a primeira parte chama-se Inferno; a segunda, Purgatório; a terceira, Paraíso. Estas três cantigas praticamente possuem o mesmo número de cantos, isto é, trinta e três cada uma delas, porque o primeiro canto deve ser considerado como uma introdução à obra toda. E, considerando-o à parte, é claro que todos têm trinta e três cantos. O Inferno tem este canto a mais. É escrito em versos hendecassílabos, formando tercetos (terzine). No trigésimo quinto ano de sua vida, isto é, em 1300, e que para a Idade Média era a metade do caminho da vida, quando em Roma tínhamos o primeiro jubileu no mundo católico, decretado por Bonifácio VIII, que Dante odiou, ele em vez de ir a Roma, imaginou uma viagem ao Além. A Divina Comédia é a narração viva, dramática, religiosa, de um ser que visita o Além, levando consigo todos os seus ideais, paixões, sentimentos, simpatias e ódios, sua cultura e religião, de forma que, pela primeira vez na história da literatura universal, encontramo-nos com um homem que leva à história do Além, como se o Além fosse a imagem do Aquém. Os três mundos da Divina Comédia são mundos de fé até um certo ponto, porque eles adquirem todos os caracteres da vida humana: poetas, políticos, papas, pessoas chorando, outras felizes, encontram a vida em todos os seus aspectos. Nada há na Divina Comédia de fantástico, de irreal, porque tudo é verdadeiro, concreto, positivo, de uma atualidade 65 66 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos extraordinária: primeiro, porque Dante descreve como se estivesse vendo tudo aqui; segundo, porque aquilo nada mais é do que uma reação irreal de Dante para com a Terra. A Divina Comédia deve ser considerada como uma imensa lírica na qual quem está falando, sentindo, agindo é sempre o poeta. E para reforçar este conceito da Divina Comédia, Leopardi lembra também que A Divina Comédia é a expressão do respeito moral de Dante, de forma que, apesar de ser ela uma obra tipicamente medieval, a mais medieval de todas da Idade Média, porque tem uma finalidade didascálica, procurando levar o leitor a compreender e procurar ver nela a parte do ensino, da educação, devemos considerá-la como intencionalmente escrita, à base dos princípios da estética medieval. Ela é o superamento da estética da Idade Média, pois Dante foi mais poeta do que teórico; como teórico ele pensa pôr a Divina Comédia na Idade Média, mas sua natureza é tão forte, que ele supera esse conceito, o que teria sido um limite na sua personalidade de poeta. O Inferno − É uma verdadeira pirâmide virada cujo vértice se encontra para baixo e cuja base está para cima. Pode ser dividido em três partes: o Pré-Inferno, o Alto Inferno e o Baixo Inferno. O Inferno compreende nove círculos, que se chamam cerchi. Esses círculos começam no Alto Inferno, sendo que do primeiro ao sexto pertencem ao Alto Inferno e do sétimo ao nono, ao Baixo Inferno. O primeiro círculo chama-se Limbo; o segundo, Lussuriosi; o terceiro, Golosi; o quarto, Avari e Prodighi; o quinto, Accidia; o sexto, Eretici. Os outros são mais complexos, mais difíceis, e se dividem em vários setores, de forma que o sétimo círculo chama-se Violenti e subdivide-se em três partes: Violenti contro se stessi: suicidas; Violenti contro Dio: blasfemadores (as três partes desse círculo chamam-se Gironi); Violenti contro natura: sodomitas. O oitavo círculo chama-se Malebolge e divide-se também em várias partes, que têm o nome de Bolge (furnas) e são em número de dez: Fraudolenti: fraudulentos; Ruffiani: casamenteiros; Adulatori: bajuladores; Simoniaci: vendedores de objetos sagrados; Indovini: sortistas; Ladri: ladrões; Baratieri: aproveitadores dos fundos públicos; Ipocriti: hipócritas; Consiglieri di discordia: semeadores de discórdia; Falsari: falsificadores. O nono círculo é o dos Traditori e está dividido em quatro zone: Caina: traidores da família; Antenora: traidores da pátria; Tolomea: traidores do hóspede; Giudecca: traidores do imperador e papa, como representantes de Deus. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O Inferno é uma criação fantástica do Além. Mas isto é feito por um poeta com tal precisão de distâncias topográficas e medidas, que um dos maiores cientistas do mundo, Galileu Galilei, deu o seu reconhecimento, com a sua simetria universal. O Pré-Inferno − Dante o coloca, no centro da Terra, o Inferno. O que seria? Um imenso buraco, devido à caída de Lúcifer, expulso do Céu. Deus o joga com tanta violência que a terra abre-se e fica o buraco. Esta terra vai ao antípodo, indo para cima. Quando a pessoa é pura, chega a um mundo de igualdade, isto é, circular, porque todos os pontos distam igualmente do centro. Para Dante, só a circularidade pode dar a ideia de igualdade, o lugar onde está Deus. O Pré-Inferno compreende os primeiros três cantos da Divina Comédia. Lá existe um lugar que se chama Vestibolo, e aqui encontramos o primeiro grupo de almas, onde Dante toma contato com os primeiros seres que deixaram a vida e que aí estarão eternamente; é um grupo de almas que viverá sempre fora do Inferno, sem ter possibilidades de ir ao Purgatório e ao Paraíso. Estes seres são: gli ignavi. Neste canto Dante descreve uma multidão de seres dos quais ele não diz nem o nome, seres amorfos, nus, correndo atrás de uma bandeira, e essa corrida não é estimulada por um ideal, por uma aspiração espiritual. O que provoca essa corrida são vespas e moscões, que enchem o corpo de feridas e sangue. Os ignavi são os que na vida não tiveram atitudes, que nunca viveram por um ideal, ou agiram por ele, tanto bom como mau, contra ou a favor da religião, do Estado, da bondade. Eles só viveram vegetando e são dignos do maior desprezo porque não viveram. Dante não os condena ao Inferno porque este é da maldade. Os ignavi não ofenderam a ninguém, portanto só viveram e não tomaram atitudes. Dante então os condena lá. Não os põe no Céu porque eles não têm nenhum documento do bem, pois são nus de ideais na Terra. Dante criou uma lei chamada “legge del contrapasso”: ele imagina no Inferno os personagens numa atitude ou igual ou contrária do que eles foram na Terra, como castigo. O Além nada mais é do que uma fotografia do Aquém, mas a pessoa ou aparece pura como é, ou na pena do que ela merece, pelo que fez. Por exemplo: os ignavi são pessoas que nunca tiveram ideais, então Dante os vê nus, pois eram nus de ideais na Terra, então lá eles correm, não por ideais, mas perseguidos por animais, pois na Terra não perseguiram nenhum ideal. E essas almas, que nunca tiveram um ideal, agora vão atrás de um. Somente uma pessoa é nomeada, não com o seu nome, mas com 67 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 68 uma perífrase, com um giro de palavras que fazem adivinhar facilmente quem ele é. No meio dessa multidão, Dante vê uma pessoa, que ele assim chama: “colui che fece per viltate il gran rifiuto”.14 Foi o papa Celestino V, e que por vileza não queria ser papa. Tinha sido um frei muito simples, que gostava da vida interna do seu convento. Por essas razões foi escolhido papa, e quando ele o soube, sentiu não ter a energia para frear esses movimentos e então renunciou; havia muitos interesses contrários para que ele renunciasse. Fato é que sua renúncia significou a eleição de Bonifácio VIII. E então Dante vinga-se de Celestino V, que, em vez de ser papa, duro e forte, renunciou, e coloca-o no Inferno. Este canto é famosíssimo. Os trinta e três cantos do Inferno estão divididos da seguinte maneira: os três primeiros descrevem o Pré-Inferno. Do quarto ao décimo primeiro temos o Alto Inferno. Os outros cantos, do décimo segundo ao trigésimo quarto, são os do Baixo Inferno. O Purgatório − Dante divide o Purgatório em três partes: o Antepurgatório, o Verdadeiro Purgatório e o Paraíso Terrestre. O Antepurgatório compreende os cantos primeiro ao nono; o Verdadeiro Purgatório, do décimo ao vigésimo sétimo; e o Paraíso, do vigésimo oitavo ao trigésimo terceiro. No Antepurgatório Dante encontra quatro diferentes grupos de almas: I contumaci; I negligenti; Morti di morti naturale; Morti di morti violente, I principi della valetta amena. O Verdadeiro Purgatório é dividido por Dante em sete cornici (molduras): Superbia; Invidia; Ira; Accidia; Avarizia e Prodigalità; Gola; Lussuria. O Paraíso Terrestre − Dante imagina que as almas lá chegam purificadas pelos castigos que elas sofreram ao longo do Purgatório. Mas, embora purificadas, elas nunca mereceriam chegar a Deus se não houvesse purificação ulterior, o que não seria possível pelas próprias almas e com meios terrestres; essa purificação só é possível pela intervenção de Deus, e na Divina Comédia é representada pelas águas de um rio, que se divide em dois braços, com eficácias diferentes: um é chamado Ennoé e o outro, Letè, isto é, o rio em que as almas, emergindo-se, esquecem-se de haver pecado. Esta purificação foi efetuada pelas próprias almas, mas elas não mereceriam o Céu se não pudessem esquecer seus pecados, pois só a lembrança deles já 14 Aquele que, por covardia, fez a grande recusa. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos as enodava. E essa purificação acontece através das águas do Letè. Depois passam através do Ennoé, no qual lembram-se exclusivamente das coisas boas, dos bons atos que praticaram, e, com essa disposição de espírito, elas sobem ao Céu. Il Paradiso − É um único lugar, um único Céu; não há mais de um Paraíso, somente um que se chama Empireo: o Céu de fogo, de luz. É um lugar que Dante imagina imóvel, perfeito, cheio de luz, de uma luz perfeita, meridiana. Este círculo que representa o Céu é então um único lugar, onde estão os beatos. Eles estão na parte baixa do Empireo, dispostos na forma de uma “cândida rosa”, formando esta flor, a mais bonita e simbólica na Igreja, com suas pétalas brancas de inocência, após o Purgatório. Esta rosa está viva, iluminada pelos raios da luz divina, que é símbolo de uma eterna felicidade. Então a felicidade está mais longe da luz, iluminando-a. Lá no alto, esta divindade é tríplice e una. Porém, Dante no seu Paraíso não descreve um só Céu, mas nove Céus, isto quer dizer que ele, por uma razão didática de solidariedade com a inteligência humana, para fazer ver que estas pétalas embora pertençam à mesma rosa e os beatos são diferentemente iluminados por Deus, apesar de formarem uma única rosa, para mostrar essa diferença de valor, de distância, de beatitude, Dante distribui essa unidade em nove graus, que são os nove Céus que ele descreve no Paraíso. Dante fala de nove Céus, e nós nos encontramos diante de dez: é que o Paraíso é um só Céu, na verdade, que tem no fundo uma cândida rosa e na frente, Deus; nove Céus que não são reais, só representam o símbolo real de um grau ideal de beatitude, sendo nove sinais de nove diferentes formas de beatitude. Estes Céus são: Cielo della Luna; Cielo di Mercurio; Cielo di Venere; Cielo del Sole; Cielo di Marte; Cielo di Giove; Cielo di Saturno; Cielo delle stelle mobili; Cielo delle stelle fisse. Todos estes Céus formam o Empireo, o décimo Céu. A Lua é o Céu mais baixo do Paraíso dantesco, isto é, o Céu onde estão as almas menos beatas, que estão mais longe de Deus, que menos merecem ser iluminadas. No Mercurio estão as almas que também não são beatíssimas, entretanto mais luminosas que as da Lua. E, quanto mais nos aproximarmos do Empireo, vai aumentando o valor das almas, e sua luminosidade, pois ascensão de valor é virtude. 69 70 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A Divina Comédia sob um ponto de vista humano Devemos imaginar o Inferno como um mundo donde é preciso tirar os seguintes elementos: O tempo: o Inferno é eterno, lá não há tempo, as almas são o que são, eternamente; Dante os vê pelo que os entes são no momento em que vêm julgados por Deus. A esperança: é o segundo caráter do Inferno, pois lá não existe qualquer sentimento de esperança. O Inferno é um desespero eterno em que não é possível sonhar com o futuro, pois é absurdo que aquelas almas possam iludir-se com um futuro melhor que o presente. Elas estão sempre numa atitude de eterna e imóvel dor, de uma dor que, para ser eterna, sempre se renova, e torna a ser dor, pecado e castigo. Não é, pois, algo que liquida, que mata e que acaba. A luz: é também preciso tirar a luz, que é uma consolação, a prova da serenidade, da vitalidade, da esperança. Ao contrário, o Inferno é feito de eterna tenebra e escuridão. Com esses elementos, podemos compreender a dramaticidade da Divina Comédia: o mundo de desespero, sem luz, sem esperança. Mas isto não daria o valor da poesia de Dante se ele parecesse igual aos outros livros da Idade Média. Pois, a tudo que foi dito e escrito com uma perfeição singular, tanto que Dante é o maior da Idade Média, a tudo isso tem que se acrescentar a humanidade naquele mundo, porque ele não é feito só de dor, desespero, falta de luz, mas sim de homens que viveram, agiram, sentiram na Terra, que foram pais, mães, cidadãos, afinal homens que já foram homens e que por um milagre da arte voltam a ser homens, com o aparecimento de Dante, de um ser humano, levando para lá um mundo que eles viveram, e então aquelas almas voltam a viver, por uma milagrosa força da poesia, esquecendo-se de serem danados, ou, pelo menos têm a possibilidade de viver, num breve parêntesis, a vida que eles viveram, de forma que essa saudade torna mais trágico o homem que lá fica, condenado por Deus. Dante torna-se interessantíssimo, mas falando de nossa própria vida, o que ela seria para nós, se mortos pudéssemos pensar a voltar a ser o que fomos, como poderíamos ter agido, sofrido, pensado. Porque não é somente Dante falando, condenando, como o intérprete de Deus, o que seria excessivamente soberbo, abstrato, até paradoxal, ao passo que Dante está substituindo Deus no que Ele faria somente no fim do mundo, e ao fazê-lo tem-se a impressão que é Deus quem fala e ao mesmo tempo Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos como se fosse um homem. Dante condena, mas revive a vida do pecador, com solidariedade ou desprezo. Só assim se justifica a eternidade da Divina Comédia. O Pré-Inferno compreende os cantos Introdução I e II; então começam os do Inferno: o III de Gli ignavi, o IV do Limbo, que é o reino dos que não foram batizados. O Limbo de Dante, além de ser dos meninos que não foram batizados, é também das pessoas que viveram antes de Cristo, e também aqui Dante coloca os grandes filósofos, os literatos, os historiadores, de forma que isso se transforma numa universidade. É o encontro de certa idade com outra, de um poeta cristão com filósofos pagãos: Homero, o mundo grego, Virgílio, o latino. Porém a Dante não interessam os meninos. Ele vai direto a um castelo, com sete muros, e entra na filosófica família, dominada por Sócrates e Aristóteles. Depois vai ao grupo dos poetas, os quais, guiados por Homero, gritam: “volta a alma de Virgílio que tinha se afastado de nós”. É um lugar onde se é feliz, onde estão todos os literatos e nele Dante declara o seu parentesco com o mundo antigo, em que diz ser ele o continuador da cultura antiga, dando as mãos aos antigos, sendo um verdadeiro trait d’union entre o mundo clássico e o cristão. O Limbo é um mundo do Inferno, mas por só ter homens dignos de respeito, lá não há pena, é o único lugar do Inferno onde isso acontece, sendo o único castigo o seguinte: os seres estão como suspensos num desejo que nunca se tornará realidade; “senza speme vivono in deseo”.15 O seu pecado foi o de alcançarem a razão do mundo, mas não o poderem atingir, apesar de grandes, porque isso só seria possível com a chegada de Deus na Terra, pois só Cristo deu a ideia de Deus; a nobreza desses literatos foi a de estudarem a vida toda para supor como se criou o mundo, apesar de não o atinarem, e a sua pena foi o amargor disso. O Canto IV tem a sua razão topográfica de colocação, porque deve ser colocado vis-à-vis ao Canto III, isto é, dos ignavi, que não tiveram desejos nem nada. O Limbo, em vez, contém os que só trabalharam, sendo sua única fatalidade a de terem vivido antes de Cristo. Falamos de um Limbo que não é o mundo dos meninos, mas do saber, da filosofia, dos grandes homens da humanidade: é a homenagem de um homem da Divina Comédia a um mundo a que, embora pagão, a humanidade muito deve. E esse canto tem um valor antitético de contraste com o anterior, que era o dos vis. 15 Sem esperança, vivem em desejo. 71 72 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O Canto V do Inferno de Dante é um dos mais populares, mais universais, mais famosos, do qual tem-se tirado inspiração para poesia. É o canto de Francesca da Rimini. Aqui também, como dissemos antes, devemos ver os dois aspectos da personalidade de Dante: o juiz que condena e o homem que sublima, que exulta, que toma atitudes, que faz reviver o passado, revivendo o mundo em que viveu e que volta pela sua presença. Esse canto pode ser considerado como o de contraste das concepções de Dante. Num certo sentido é a negação da Vita Nuova, a negação do Dolce Stil Nuovo, no qual o amor adquire um sentido ideal, religioso, no qual a mulher é um anjo que desaparece, como era Beatriz, que temos a exaltação do amor num sentido diferente, sendo exaltado como pecado, levando a ele, mas é algo humano e digno, por isso. Essa pecadora Francesca era uma moça de Ravenna, a cidade dos últimos anos da vida de Dante. O senhor de Ravenna chamava-se Polenta, que parte para uma cidade do mar Adriático, cujo dono era Malatesta. Por razões políticas entre os dois, chegou-se a um acordo: as duas cidades não mais lutariam entre si, com o casamento de Gianciotto Malatesta e Francesca da Rimini. Gianciotto, porém, era um ser infeliz, feio fisicamente, disforme, mentiroso, hipócrita, não digno do amor de uma moça. No entanto, ela casou com ele, porém quando foi-lhe apresentada, não foi Gianciotto e sim, por uma insídia do pai, ao irmão Paolo, que era um homem leal, bonito, e então ela quis casar com ele, sentindo que as aspirações políticas estavam de acordo com suas convicções sentimentais. E ela com felicidade aceita. Mas quando chega o dia do casamento, ela nota que não é Paolo e sim Gianciotto. Ela vai morar em Rimini. E mora no mesmo castelo (que ainda existe) onde vivem os dois irmãos. E naturalmente, aquela simpatia escondida, pura e íntima é perfeitamente correspondida. Um certo dia, naqueles salões que davam para o mar, cujos vidros eram mosaicos expressando a beleza da Idade Média, Francesca estava lendo uma página das poesias amorosas do Ciclo do Rei Arthur, quando aparece Paolo, no momento em que ela lê que o cavaleiro da Távola Redonda Lancelot beija Guinevere; então, sem nada de preparado, os dois se unem, revela-se sua mútua simpatia. Eles então viveram o próprio romance: “la bocca mi basciò tutto tremante”. Mas infelizmente Gianciotto sabe disso e, traindo os dois, vinga-se, matando-os: “O amor levou-os à mesma morte”. E para Dante católico, juiz, os dois vão então para o segundo círculo do Inferno, o círculo da Lussuria. Sua pena é a do contrapasso, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos isto é, ambos no Inferno serão eternamente levados pelo ar, de um lado ao outro, numa eterna tempestade, como na vida a própria interioridade foi levada numa tempestade de paixões como é o amor deles. Aquele vento que continuamente se produz é a imagem da paixão de que foram vítimas. Até aqui temos o Dante juiz, e ele vê não só os dois, mas todos os lussuriosi também do mundo grego e latino, todos temas muito bonitos. Lá está também Cleópatra, que se apresenta com uma cara de corrupta, um ser horroroso. A figura de Dido, amada por Eneias, Helena, Semiramis, rainha da Assíria, que fez com que cada cidadão pudesse fazer o que quisesse, de modo que ela fez essa lei para sua própria corrupção. E muitos outros homens, também. Passam diante de Dante esses pecados, como pássaros, leves e pequenos stornelli16 que o ar tem a força de levantar em grupos, que o vento leva de um lugar ao outro, no céu desesperador do Inferno. Depois Dante imagina que no meio daquele céu saiam dois pombos: e são justamente Francesca e Paolo, aí acabando Dante juiz e aparecendo Dante homem. Ele a convida a falar sobre seu amor e ela então se torna a advogada do seu amor, o que se torna para ela uma qualidade, uma virtude, para atenuar a qual ela não tem medo até de morrer. Então é um pecado que se transforma numa virtude, num sentimento natural que não pode ser traído. Ela não fez mais nada do que obedecer a uma lei natural. E aí ela se torna a brilhante advogada que se levanta na tempestade do Inferno e defende o seu pecado, que é virtude. Sua defesa é baseada na repetição tripla do amor: “O amor é um sentimento que imediatamente surge na alma da pessoa gentil.”; “O amor é um sentimento que a ninguém perdoa de não amar, sendo amado.”; “O amor invoca a morte que ela sofreu.” Dante pede mais e diz uma das expressões que ficaram famosas no mundo: “nenhuma dor pode ser maior do que a de lembrar-se do tempo em que se era feliz, quando agora se sofre”. Esse canto tem uma realidade lírica eterna. E como ele interpreta esse sentimento, não tem nada de juiz, é uma coisa humana e justificável, apesar de moralmente ser pecado. O Canto VI também deve ser lembrado: é o do terceiro círculo do Inferno: os golosi, que só viveram para comer. A vida para eles foi alimentação, foi o gosto de comer, de devorar. A sua pena no Inferno é o contrário: eles vivem abaixo de uma chuva cheia de barro, que os transforma em porcos, e no meio deles Dante vê um cidadão de Florença, Ciacco, e como Dante também é de lá, conversam, e a sua discussão 16 Estorninhos. 73 74 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos recai sobre a política de Florença, e então temos a primeira discussão política. Este canto é famoso porque constitui uma trilogia, porque Dante, deliberadamente ou não, faz com que os Cantos VI, tanto do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, refiram-se à política. O do Inferno sobre Florença, o do Purgatório sobre a Itália, e o do Empireo sobre o Paraíso; portanto, do município à nação e ao universo. São estes os cantos de choques políticos. O Canto VII é o dos avari e prodighi. Esse círculo é dividido assim: de um lado, os avari, e do outro, os prodighi. Ao se encontrarem, ofendem-se; os avaros queixando-se dos pródigos porque sempre guardaram seu dinheiro. Sua pena é também a do contrapasso. Os avarentos tiveram sempre trancado seu dinheiro, então Dante os imagina: avarentos e pródigos puxando com o peito uma imensa pedra que carrega o dinheiro, que uns amaram e outros guardaram. O conceito de fortuna, que é um anjo também, quando todos ainda estavam no seu Céu, tinha uma vez a incumbência de volver dinheiro no mundo, de modo que hoje uns sejam ricos e amanhã pobres. Os homens acreditam que isto seja arbítrio, blasfemando contra Deus. O Canto VIII é o dos accidiosi, cuja pena é a de permanecer mergulhados no lodo. Encontra Filippo Argenti. E abaixo estão gargalhando nessa água suja os accidiosi, que têm o pecado da indolência, da falta de energia, e estão submersos numa água pesada. Essa accidia cria uma inquietação contínua. Filippo Argenti faz com que Virgílio exulte a mãe de Dante, que teve um filho que sabe reagir. O Canto X é o dos heréticos, os que se servem da razão para negar os princípios da verdade cristã. Dante encontra personagens de importância extraordinária: Farinata degli Uberti e Cavalcante dei Cavalcanti. Temos aqui outro grandíssimo canto da Divina Comédia, conhecido como o XIII e XIV do Inferno. Farinata degli Uberti foi o chefe do partido ghibellino, contrário ao guelfi, ao que pertencia Dante. Quando Dante nasceu, Uberti acabava seu prestígio político e Dante deve ter ouvido falar desse homem corajoso, vencedor, e lembra a batalha da Arbia; encontra nesse canto dois adversários políticos: um chefe do partido ghibellino e um dos guelfi. O choque entre eles é forte, mas quem ganha é Dante, porque Uberti procura ignorar Dante, perguntando se ele fora nobre ou não. Dante descreve Farinata no meio dos túmulos e imagina que os heréticos estão fechados em túmulos inflamados por dentro. No momento em que Dante aí aparece, abre-se o túmulo de Farinata. Depois, fecha-se para sempre. Dante descreve o grande Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos florentino quando ele entra em cena como a aparição de um herói, que domina com a sua atitude de imenso desprezo pelo Inferno. O que lhe interessa é somente o seu partido. E então começa este diálogo que se conclui com a vitória de Dante, que diz: “Fui exilado, mas os teus também não voltaram a Florença”. Mas quando Dante lhe dá a possibilidade de falar, ao perguntar-lhe por que matara tantos florentinos, Farinata diz: “Disso não sou responsável, pois somente eu impedi que Florença não fosse destruída”. Sua honra está em ser considerado não o chefe de um partido, mas o cidadão amando a própria pátria, e mandando-a não ser destruída. Cavalcanti é pai de Guido, poeta do Dolce Stil Nuovo, e do seu túmulo ouve a conversa entre os dois. Ao notar que Dante está sozinho, pergunta-lhe por que está no Inferno, se merece visitar o Além, e como o seu filho não está junto a ele. Dante fica sem responder alguns instantes e depois diz que não está por pecado, quem o acompanha é Virgílio, a quem teu filho odiou (usa o verbo no passado apesar de Guido viver ainda). Cavalcanti pergunta por que ele não vive, caindo então completamente no seu túmulo para sempre. Temos ao lado do cidadão apaixonado um canto épico, essa página de um pai sofrendo, glorioso e feliz, sabendo que seu filho é culto. E, um canto trágico, quando supõe que seu filho está morto, só porque Dante usou o verbo no passado. Então só agora começa o Inferno para esse pai, pois o Inferno, apesar de ser fora da vida, é a continuação da vida, num sentido desesperado e trágico. Impressões sobre o Inferno de Dante Costuma-se considerar a personalidade de Dante Alighieri completamente fechada na espiritualidade e na forma mentis da Idade Média. Dante seria o expoente daquela cultura, o poeta daquela sensibilidade, o homem que soube levar a um plano de absoluto valor lírico os sentimentos, as ideias, as aspirações da humanidade da Idade Média. Dante seria o poeta a ser colocado ao lado dos teólogos, ao lado de São Tomás, dos doutrinários daquele então. Há de fato muitos elementos, muitos motivos que nos levam a considerar a poesia de Dante como a expressão mais representativa da Idade Média. A sua filosofia, a sua política, o seu idealismo, a sua concepção pedagógica da arte são todos aspectos da espiritualidade da 75 76 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Idade Média, e as suas obras são claras manifestações de uma poesia e de uma inspiração ligadas a uma determinada concepção de vida, a uma determinada sensibilidade, a uma determinada exigência que não poderiam ser de outras idades. A obra juvenil La Vita Nuova, a obra Il Convivio, com aquele seu caráter enciclopédico e didascálico, a obra De Monarchia, com aquela sua fé no Império, e, sobretudo, a Divina Comédia, com essa visão ascensional do Além, são todos momentos e documentos de uma educação da Idade Média. Não há dúvida nem é possível negar que Dante seja um poeta daquela idade. Não é possível negar e, aliás, justamente pelo fato de serem os motivos da sua poesia motivos comuns, é que Dante é grande poeta; nem é possível negar que Dante seja o cantor máximo da espiritualidade da Idade Medieval. Entretanto, nós sabemos que a verdadeira poesia fica sempre fora do espaço e do tempo. Nós sabemos que o poeta não é tanto poeta pelo conteúdo das poesias quanto pela sua particular linguagem fantástica, pelo valor de sua expressão, pela eternidade da sua realização, como imagem. Nesse sentido, embora poeta da Idade Média, Dante fica fora da Idade Média, pelo sentido, pelo valor, pela humanidade do seu canto. Poetas há na Idade Média que hoje se ofuscaram diante da nossa sensibilidade moderna. Eles perderam importância e valor, seja do ponto de vista da forma e seja do ponto de vista do conteúdo. Estes poetas, sim, que são só poetas unicamente de uma idade, expressões de uma época. Mas Dante, não. Dante não, porque a ele aconteceu justamente o contrário; ele ganhou no tempo, foi crescendo através dos séculos até adquirir o valor e o símbolo não tanto e não mais de uma idade quanto de uma civilização, de uma espiritualidade, aquela, justamente, neolatina. Nós devemos dizer que, depois da desconfiança relativa dos humanistas e dos escritores da Renascença, é com a segunda metade do século XIII e durante todo o século do Romantismo até nossos dias que a Divina Comédia foi objeto de estudos, de procuras, de análises e de sínteses, num plano mais propriamente estético. Longe por isso no leitor o desejo de ver e de fixar quais são os motivos e as razões da eternidade da poesia de Dante. E então se sente, através da leitura da Divina Comédia, quanto esse poeta fica também fora da Idade Média. Sente-se quanto de moderno, de atual, de eterno está presente na poesia de Dante, embora pertença ela ao século XIV e seja cheia de referências a fatos particulares contingentes e ligados historicamente àquela longínqua idade. Dante aparece, assim, moderno no conteúdo e na forma. Não somente na forma, como também justamente no conteúdo, que seria a razão única pela qual ele fica ligado à Idade Média. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Vendo Dante com essa nova perspectiva, o leitor percebe quanta parte de Dante está já fora da Idade Média, quanta parte da poesia de Dante prenuncia sucessivas idades e perenes atividades humanas. Dante também, no quadro do século XIV, deve ser considerado como preparador de outros climas, como o poeta de sentimentos, que será próprio da inspiração poética de outras idades. Palpitam e vibram na Divina Comédia situações, atitudes, sensibilidades, interesses, anseios, esperanças e amarguras que pertencem à humanidade em geral, à humanidade de todos os tempos e de todas as latitudes. Poeta ele é justamente por esse fundo constante de sinceridade, de humanidade, de austeridade, de onde surge sempre a sua poesia severa e sublime. Talvez seja justamente o preconceito de colocar Dante como hermeticamente fechado na Idade Média, talvez seja justamente esse frisar que ele cantou tantos séculos antes da presente existência, talvez esse querer a todo custo ligá-lo à cultura, à filosofia e à teologia de uma idade, talvez seja tudo isso que faz com que frequentemente se fale desse poeta com indiferença, quase de um poeta alheio aos nossos problemas e à nossa humanidade de hoje. Mas se o leitor souber vencer esses preconceitos, se o leitor souber pôr-se diante de Dante e de sua poesia, considerando somente o poeta e considerando somente poesia a sua poesia, então ele encontrará no verso de Dante uma eterna mocidade, uma atualidade constante, uma presença que muitas vezes é mais presente do que a própria presença dos poetas contemporâneos. Quais são, na sua poesia, deixando de lado as divisões, os elementos da sua inspiração? A humanidade, o saber, o amor, a pátria, o heroísmo, a coerência, a arte, a virtude, a família não são que alguns dos temas de seu canto. E nenhum desses motivos é alheio à nossa espiritualidade de hoje. Ao lado da coerência entre a palavra e a ação, a unidade do artista e do homem dão à poesia de Dante o valor de uma mensagem ética e artística verdadeiramente rara e singular. A Divina Comédia apresenta-se como projeção de uma luta, como a autobiografia de um homem de fé, como a expressão de um drama. A insatisfação diante de uma realidade cultural, social, política, religiosa e moral desse poeta o leva a colocar num plano altíssimo e definitivo o mundo contingente da vida. Assim, a vida na Divina Comédia se torna eternidade, onde o homem é julgado como num juízo universal antecipado. Dante, como Deus, coloca desde o século XIV a humanidade numa sentença de dor, de esperança ou de felicidade nos três reinos do Além. E o Além fica assim cheio de Aquém. E o Aquém se torna o Além. Nada então de árbitro, nada que não seja humano, nada que 77 78 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos seja superficial ou artificial nesse Inferno de Dante, nesse Purgatório de Dante, nesse Paraíso de Dante. Aquelas almas não perderam, não esqueceram o corpo e a vida. O corpo e a vida continuam no Além; ou desesperadamente ou luminosamente, ou como remorso ou como satisfação, ou como castigo ou como prêmio. Nós poderíamos esquecer que o canto de Dante se refere a um mundo do Além. Mas, neste caso, é justamente o Aquém que perderia. Porque é normal, é comum, o canto da nossa humanidade nos limites de um panorama natural e humano. Raro é em vez cantar a humanidade nas profundezas da sua alma, ou nas alturas de seus destinos. E Dante é quem escolheu esta segunda via, enquanto Shakespeare e Goethe escolheram a primeira. De modo que aquele Além onde Dante projeta a humanidade, sublima a humanidade, a torna mais categórica, mais essencial, mais eterna, não é a humanidade desta ou daquela idade, deste ou daquele continente, mas é a humanidade eterna, considerada exclusivamente como humanidade. Assim, não será lembrando aqui os cantos e as cantigas, não será lembrando aqui as divisões do Inferno, do Purgatório e Paraíso, não será lembrando aqui as questões teológicas e os dogmas que nós poderemos definir o valor, humanidade e atualidade da Divina Comédia. Devemos recorrer às situações, às emoções, e aos episódios que ao longo da Divina Comédia são a prova da humanidade de Dante, da sensibilidade deste poeta diante do homem e do seu viver aqui, no mundo, na História. Será lembrando os elogios, as exaltações, a delicadeza e o desprezo com que Dante se inspira na ação humana, na sua realização de vida, que nós poderemos sentir o quanto ele seja ligado à nossa vida daqui. Leia-se o Canto III do Inferno; sai daí aquela atitude de desprezo diante da ambiguidade do homem e sai daí aquele estímulo e aquela admiração para a vida heroica, considerando o heroísmo como um dever propriamente cristão. Não haveria necessidade de colocar esse desprezo e essa admiração num lugar fora do mundo; entretanto, é justamente essa colocação no Além, no vestibular do Além, que torna mais significativo esse desprezo e mais solene essa admiração, parecendo o desprezo e a admiração divina. Leia-se o Canto VI, onde, pelo contrário, Dante coloca os sábios da Antiguidade, quase num vis-à-vis antitético entre Limbo e Vestibolo. A humildade cheia de admiração e de afeto com que Dante descreve a solidão austera e pensativa daqueles grandes é outro trecho de profunda comoção, e esse canto vale também como a prova da homenagem da Idade Média à Idade Antiga, do cristianismo ao paganismo; entretanto, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos se tudo isso fosse colocado aqui num plano imanente, que permanece dentro da experiência possível, não teria a grandeza e o sentido eterno que adquire justamente porque colocado fora do mundo, fora do tempo, na eternidade, como um obséquio da própria divindade à cultura. Leia-se o Canto V do Inferno, onde um pecado se torna ao invés o símbolo e a expressão da nossa humanidade. Francesca não é a pecadora que condena e, embora condenada, as justificações, a saudade, o pudor, a inocência com que ela evoca, não o seu pecado e sim o seu amor, a redimem e a colocam naquele ar como o eterno feminino, como a imagem de um sentimento sobre o qual a poesia nunca se cansará de voltar. Leia-se o Canto X, onde Farinatta se ergue magnânimo e superior, na certeza da boa-fé, da honestidade, do seu heroísmo de homem político, de vencedor e de cidadão. Leia-se o Canto XIII, onde a figura do suicida se redime na certeza de sua fidelidade e honestidade. Aquela selva contorta e árida fica como a imagem do desespero, mas aquele desespero é a prova da exasperação, da honestidade.17 Leia-se o Canto XV, onde Brunetto Latini não é o sodomita condenado e sim o mestre que, também no Além, sente a dor de não viver para continuar ao lado do aluno, aconselhando e indicando o rumo da virtude e da glória.18 Leia-se o Canto XXVI, onde Ulisses não se aposenta como fazem os vencedores comuns, mas, até esquecendo de ser pai, até esquecendo de ser marido, até esquecendo de ser filho, e velho, já bem velho, é apresentado como o desejoso de um mundo que não seja somente a Europa, de um mundo que seja todo o mundo, desejoso de conhecer uma humanidade que seja toda a humanidade, desejoso de conhecer outras terras, além do Atlântico, para que a História desde então pudesse ser não somente a história da Europa e sim a história de todos os povos, de todas as experiências.19 Numa palestra, em outra ocasião, o prof. Bruno assim se referiu a este assunto: “O canto XIII, naquela floresta habitada por Harpias, em que cada árvore é a alma de um suicida, imagens do desespero e onde é redimida a figura de um suicida pela sua fé na sua honestidade e fieldade”. 18 Na mesma palestra de que trata a nota anterior, o prof. Bruno assim se referiu a este assunto: “Ao ler-se o Canto XV, é o mestre que sente também a dor de não viver junto ao discípulo, recordando os primeiros anos de sua mocidade e predizendo-lhe um futuro glorioso, e não o sodomita que aparece na figura de Brunetto Latini”. 19 Na mesma palestra de que trata a nota 17: “O vulto de Ulisses surge, no Canto XXVI, como ansioso de descobrir e conhecer novas terras, do além-mar, para que a história da Europa se tornasse a história universal, e para isso ele esqueceu Penélope, sua esposa, 17 79 80 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Leia-se o Canto XXXIII, onde a figura de Ugolino traidor se torna a figura de um pai traído e eternamente desesperado, numa dor que se renova diante do espetáculo de seus filhos inocentes caindo de inédia e de fome.20 Leia-se, enfim, o Canto XXXIV, que fecha a visão do Inferno, numa planície gélida, árida, onde se perfilam os rostos comidos e pendentes, da boca de Lúcifer, dos maiores traidores dos ideais mais eternos da História, quais são para Dante a pureza da religião e a honestidade da política. O Inferno abrira-se com os negligentes e fecha-se com os traidores de Cristo e de César. Abrira-se com uma multidão anônima e fecha-se com Bruto, Cássio e Judas.21 Rapidamente é essa a impressão que nos deixa a primeira cantiga da Divina Comédia. Ninguém vivendo esses episódios pensa no Inferno; o Inferno só torna mais dramático, mais eterno o motivo da inspiração. É como o tempo, que deixa nas coisas da vida, nas paredes das catedrais, dos monumentos, um sinal de majestade, de sacro, de respeito, de austeridade. Assim, o Inferno de Dante, esse Inferno que é dor, que é castigo, que é eterno, que é julgamento, torna mais séria, mais sublime, mais amarga e mais pura a humanidade, nesse seu caminho que é feito de bem e de mal, de vícios e virtudes, de heroísmos e de fraquezas, de escuridão e de luz. E o Inferno, que é tudo isso, é então a imagem eterna do nosso Aquém, da nossa vida, do nosso drama histórico e doloroso e feliz da vida.22 Eneias, seu filho, e seu velho pai. Também ao incitar os companheiros a seguirem-no nas viagens, diz: [...]”. 20 Na mesma palestra de que trata a nota 17: “No Canto XXXIII ergue-se a tétrica figura do conde Ugolino, traidor, e ao mesmo tempo traído, desesperado, numa eterna dor perante a morte de seus quatro filhos, e esta narração tão dolorosa é um dos episódios mais trágicos da Divina Comédia”. 21 Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Finalmente, no Canto XXXIV, que encerra o Inferno, está a Judeca, uma enorme geleira onde habita Lucifero, com três fauces, e rói com os dentes os traidores de Deus e da pátria, que são para ele [Dante] os maiores pecadores possíveis e que são Judas, Bruto e Cássio: o primeiro, traidor de Cristo, os outros dois, de César, que representa o Império de Roma”. 22 Na mesma palestra de que trata a nota 17: “Assim encerra-se o Inferno de Dante, um Inferno que não é somente dor e castigo, mas também é julgamento. Esse sentido ético e religioso de Dante é um dos maiores segredos da Divina Comédia, e ela pode ser considerada como uma intenção de Dante de querer induzir os homens a encontrar a verdadeira vida cristã. E essa viagem é uma viagem do próprio espírito humano pelo caminho mundano dos erros e expiações, até chegar ao fim da dor extrema ou da eterna beatitude. E o Inferno, que é o fim desse caminho cheio de mal, vícios, fraquezas e escuridão, é, pois, um reflexo mais terrível e medonho da tragédia e da comédia humana, da qual somos ao mesmo tempo atores e espectadores”. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Francesco Petrarca (1304-1374) Nasceu em Arezzo, uma cidade da Toscana, filho de Ser Petraccolo e de Eletta Canigiani, a 20 de julho de 1304. Passou a primeira infância com a mãe em Valdarno, mas em 1311 vão a Pisa, onde o menino conhece Dante. Seu pai era do partido dos Bianchi e foi exilado juntamente com Dante para longe de Firenze, essa a razão de Petrarca nascer em Arezzo. Perdendo Petraccolo as esperanças de retornar, conduz sua família para Avignone, em 1312, mandando Petrarca à vizinha cidade de Carpentras, na escola de Convenevole da Prato. Remontam àquele tempo a primeira excursão a Valchiusa e talvez as primeiras impressões de paz que tantas vezes deviam depois ser renovadas no Petrarca daquela solidão. Mas em 1316 foi enviado a Montpellier para estudar Direito, onde estudou sobretudo os clássicos. Quatro anos permaneceu na França. Depois, no fim de 1320, acolheu-o Bolonha, onde continuou os estudos jurídicos, aos quais, todavia, sempre preferiu Virgílio e Cícero. Por destino, quase todos os poetas encontram no princípio de sua vocação o obstáculo dos estudos jurídicos: Petrarca foi um dos primeiros a vencer esta prova, ligado às necessidades do viver cotidiano; enquanto que as Letras, a Filosofia, eram, também agora, pobres e singelas. E para conservar a fé na poesia e nas letras, Petrarca, ao retornar a Avignone pela morte do pai, dirigiu-se com seu irmão Gherardo à condição eclesiástica; não foi além das ordens menores, mas foi canônico leigo e, a título de honra, incluído ao Capitolo: os benefícios que lhe advieram por aquela sua qualidade permitiram-lhe cuidar das obras de poesia. Foi culpado de não dedicar-se completamente ao clero, não procurando aumentar seu patrimônio, não percebendo os outros quanta luz trouxe à sua vida de intrigantes a poesia do ozio23 ativíssimo de Petrarca, e que seus contemporâneos pagaram com tão pequena moeda, como as prebendas canonicais. Na sexta-feira, 6 de abril de 1327, na Igreja de Santa Chiara, teve a sorte ou azar de encontrar uma moça de nome Laura e amou-a profundamente, dedicando-lhe tantos cantos de sua obra, e mesmo ao morrer ela, vítima da peste em 1348, continuou a cantá-la. Laura no Canzoniere é certamente uma pessoa determinada, mas é transformada de modo a recolher todos os afetos do poeta, todas as naturezas, todos os cantos, todas as memórias. Daquele 6 de abril de 1327 até o 6 de abril de 1348, data da morte de Laura, e mesmo até os últimos anos da vida de Petrarca, aquele amor e aquela matéria de poesia significaram 23 Ócio. 81 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 82 sobretudo como exercício da mais secreta humanidade do poeta e a razão providencial de sua arte. Em 1330, Petrarca segue o novo bispo Colonna a Guascogna; em seguida, volta a Avignone junto ao cardeal Colonna, irmão do bispo. O ano 1333 é o de viagens para Petrarca: visita a França, Flandres, Alemanha. Essas viagens tiveram uma função de desabafo e de esquecimento. Em 1337, visitou Roma, que nunca havia visto, enamorando-se desta bela cidade. Depois vai ao setentrião, à Inglaterra, sempre levado pelo desejo de conhecer lugares e costumes. Nasce seu filho Giovanni, de uma desconhecida. Retirando-se em seguida a Valchiusa, onde possuía uma casa perto do rio Sorga, em 1337, onde inicia uma vida de solidão e de estudo, até 1341. É a época de profundo fervor: em 1338 inicia o Africa, que termina em Parma. A sua fama cresceu na Itália e na França: da Universidade de Paris e do Senado de Roma chegam-lhe, a 10 de setembro de 1340, cartas que lhe oferecem a coroação poética. Preferida Roma, e examinado durante três dias em Napoli pelo doutíssimo rei Roberto d’Angiò, foi solenemente coroado sobre o Campidoglio, na páscoa de 1341. Ao voltar, fechou-se com seu amigo Azzo da Correggio em Parma e, na solidão de Selvapiana, continuou o Africa, que havia interrompido. Em 1343 nasceu sua filha Francesca. É o ano de uma grande crise interior, pois seu irmão que ficou monge em Montreux chamava-o por uma carta convidando-o a recitar o Ofício. Também em 1343 é enviado como embaixador do papa às cortes de Napoli. Em 1344, escreve a famosa canção Italia Mia. Em 1347, visita o irmão na Certosa di Montrieux; e inspirado na morada dos cartuxinos, surge sua obra De ocio religiosorum. Vai a Roma encontrar Cola di Rienzo, mas interrompe a viagem em Gênova. Em 1348, a mulher que havia inspirado sua mais íntima poesia, Laura, morreu no contágio da peste. Na sua dor nasce uma nova e mais profunda substância de poesia. No ano seguinte, ordenou a primeira silogge24 do Canzoniere, duzentas e quinze poesias a oferecer a Azzo da Correggio. Em abril de 1351, os priores das artes e o magistrado supremo de Florença mandam-lhe o amigo Boccaccio com uma carta na qual lhe é oferecida uma cátedra no Studio e a restituição dos bens confiscados de seu pai em 1302. Mas Petrarca recusou e voltou a Valchiusa em junho. Permanece, em seguida, oito anos em Milão, a convite do arcebispo Giovanni Visconti. Viagens e embaixadas cumpriu ainda; em 1355, enviado embaixador em Praga junto ao imperador Carlos, o 24 Antologia, florilégio. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos filho do tabelião Ser Petraccolo tornou-se conde paladino; em 1361, foi embaixador de Visconti em Paris, junto ao rei Giovanni. Voltando a Milão, a peste o força a refugiar-se em Pádua e depois em Veneza, onde o Senado lhe cedeu um palácio à margem do Schiavoni, com o pacto de que o poeta deixasse à República seus livros. Fixa finalmente sua moradia em Arquà, em 1370, junto com sua filha Francesca; lá morre em 19 de julho de 1374 e lá foi, pelo seu desejo, sepultado. Suas dúvidas e antigos contrastes acalmam-se agora; ao seu irmão escreveu em 1373: “Qui, sebbene infermo, vivo con l’animo tranquillo, senza agitazioni né errori né preoccupazioni, sempre leggendo e scrivendo, e lodando Dio”. Teve funerais solenes, último sinal da fama que havia gozado junto dos literatos e dos poderosos da época. Viveu somente para os estudos, e ele próprio descobriu as cartas de Cícero, num livro. Petrarca é cheio de dúvidas, tem um desejo imenso de ser religioso e, no entanto, apegado à vida; nunca soube tomar uma atitude heroica de persuadir alguém com sua fé. Sua alma e seu modo de viver ficam muito pertos do nosso, pois tem nossa psicologia e analisa a alma. Faz mostrar a diferença de sua época e a de Dante: este se põe no meio da vida e quer modificá- la; Petrarca se afasta da realidade, desejando ser apenas espectador. Se Dante é heroico, Petrarca é elegíaco, isso é evidente em suas palavras, que são aveludadas e moldadas harmoniosamente. As poesias de Dante parecem criar figuras, as de Petrarca se transformam em melodia. Obras de Petrarca Podem ser divididas em dois grupos, isto é, o das obras escritas em latim e as escritas em italiano. Em italiano, as mais famosas são: Il Canzoniere, que, aliás, não é o verdadeiro título da obra, pois Petrarca chamou esta obra, com desprezo, Rerum vulgarium fragmenta – com desprezo, orgulho e satisfação do clássico, com a confiança, otimismo e fé e consciência de ser um grande latinista, não dando importância às obras que escrevia em italiano. I Trionfi é a segunda obra escrita em italiano. As obras em latim seriam bastante numerosas se quiséssemos lembrar todas. As mais importantes, que estão ligadas à espiritualidade das outras duas, são: De Africa (poema épico); Le Epistolae (grupo de cartas); Epistolae metricae (outras cartas em poesia); Secretum; De ocio 83 84 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos religiosorum; De vita solitaria; De remedius utriusque fortunae; Rerum memorandarum libri; De viris illustribus. Deixa de lado uma infinidade de obras escritas em latim. Petrarca deve ser considerado como um precursor do Humanismo e da Renascença. Obras de Petrarca em italiano Foi um crítico italiano, um grandíssimo crítico, que procurou primeiro ver na obra de arte não tanto a língua, a eloquência e oratória, mas humanidade e unidade de linguagem, como artista que procura a síntese entre conteúdo e linguagem, se a forma não é a síntese de um conteúdo. Foi precisamente Francesco De Sanctis quem pôs numa justa visão crítica a personalidade de Petrarca. Até para De Sanctis o vulto de Petrarca mudou completamente, porque passou a ser grande não tanto pela linguagem e beleza da língua e cultura, mas pelas obras de caráter emotivo, pela personalidade lírica, pela psicologia e drama interior que são evidentes nas suas obras. Vê-o então não como latinista, não como personalidade do Humanismo, mas como personalidade da poesia lírica italiana, que se inspira nos sentimentos, na felicidade, no anseio, no drama interior da própria alma, e como Il Canzoniere é o conjunto das poesias em torno do amor, do desabafo de todos os sentimentos humanos, Petrarca tornou-se famoso não pela obra que ele esperava, De Africa, mas pela que não apreciava e que era Il Canzoniere. Petrarca foi grande numa época serena, realista, como Homero, porque é poeta lírico e por isso criou uma escola na Itália, França, Espanha, Portugal; as líricas de Camões repetem motivos da poesia de Petrarca, motivos de analogia sentimental e linguística, o que faz Camões considerá-lo o melhor. Il Canzoniere É o conjunto de trezentos e sessenta e seis poesias, das quais mais de trezentas são sonetos; possui muitas canções, madrigais, baladas. A obra é dividida em duas partes: a primeira é intitulada In vita di Madonna Laura e a segunda, In morte di Madonna Laura. A distinção feita entre as duas partes não tem um verdadeiro valor cronológico, isto é, não quer dizer que todas as poesias que estão na primeira parte foram Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos escritas durante a vida de Laura, pois muitas delas foram escritas depois de 1348, quando ela morre, ao passo que outras escritas antes pertencem à segunda metade. O tempo tem sua função, mas a disposição de espírito tem mais valor. Na primeira parte Petrarca pôs as que exprimem uma poesia diferente, na segunda revela outros aspectos da sua psicologia. O assunto fundamental é o amor, isto é, o sentimento de Petrarca para com Laura, mas não é somente amor que o poeta canta no Canzoniere. Temos poesias religiosas, políticas, de caráter filosófico, descritivas, da natureza, mas o núcleo fundamental é naturalmente o amor. Agora temos que dizer que esse amor em Petrarca nunca foi motivo de alegria, de felicidade, de forma que, em geral, Il Canzoniere não é uma obra feliz: a expressão, a finalidade dessa obra não é otimística porque esse amor não se realiza e porque o amor criou na alma de Petrarca atitudes de tristeza, de melancolia, de crise religiosa, que eram próprios da personalidade de Petrarca. Il Canzoniere na base do amor é o desabafo de uma alma, o desabafo de um homem em crise, e como isto é também a expressão de uma idade em crise. Petrarca representa aquele período da passagem entre a Idade Média e a Renascença em que muitos ideais vão caindo e os novos ainda não têm força profunda, personalidade e convicção. Petrarca tem apego à natureza e à mulher, que são conceitos próprios da Idade Média. Sua maior preocupação é o Além, e tem pouco apego à vida. Bem ao contrário como nos séculos XIV e XV, quando se acendem na alma humana desejos de criar, explorar, conhecer coisas novas, e então temos as descobertas geográficas com Colombo e tantos outros, e por essa razão temos os pintores no século XV; é por isso que se inventa a imprensa, a pólvora, a bússola, que são a prova de que o homem deixou a Idade Média e seu empenho maior é a vida, a Terra que ele deve melhorar, pois é seu dever a transformação de tudo num mundo melhor. A história do mundo torna-se a da Europa e depois, da América. Petrarca é o poeta que prenuncia tudo isso, e em certos aspectos que são os mais nobres, os mais delicados e humanos: o seu amor pela cultura, pelo saber, quer conhecer, explorar a Antiguidade, ver o que ela foi, com seus escritores que foram apóstolos antes de Cristo, apresentando seus juristas, seus filósofos, seus heróis. A beleza da natureza ele exulta sem medo, com uma claríssima solidariedade, a natureza como criadora e renovadora. Aprecia as paisagens matinais e vê entre os homens a mulher, e no meio delas, a bela, que é Laura. 85 86 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Laura ainda não é uma personalidade com esses ou aqueles defeitos, mas é puríssima em ideais, é um símbolo, mas não um religioso, espiritual, como no Dolce Stil Nuovo, nada disso; Laura é o símbolo da pureza, da perfeição do mundo grego, transformado em mulher. É uma ideia platônica, símbolo da natureza. É um conceito moderno, conceito petrarquista. Um outro seu conceito moderno é o apego para com essa beleza e a preocupação e a consciência da tentação dessa beleza. Petrarca está preocupado com a beleza, que o puxa para um lado, e com o Além, pois não esquece Dante e São Tomás, e então tem dúvidas, sente-se incapaz de decidir se continuará a seguir Dante ou se entrará no mundo moderno. Foi portanto um elegíaco cantando esses dois polos opostos. Um outro conceito seu é o da consciência da fugacidade da vida, da natureza, das coisas bonitas, que desaparecerão e acabarão. Como também os homens morrem, sente esse desejo imenso de fazer algo de valor. E então essa finalidade elegíaca da poesia, pois preocupa-se com o que é bonito e com a brevidade do tempo dado à beleza. Afasta-se pois da realidade e vive sobretudo da imagem das lembranças. É o poeta que nunca enfrenta a realidade por si diretamente, procura contar a realidade longe dela, como em Valchiusa. Lá ele sonha ver Laura, deitada num verde prado, banhando-se, e aí o desejo de viver com ela e a decepção que teria se vivesse com ela. É o desejo que, quando se torna realidade, já é decepção. O ideal é o sonho e a ilusão, mas se a consciência desse sonho cria nele uma decepção, então é diferente de um Goethe romântico, desesperado, mas sempre uma afirmação da vida. Para ele a dor é quase um prazer, porque gosta de sofrer, porque vê a alegria de poder se exprimir. O desabafo poético é sua alegria. Muitas poesias suas são de caráter religioso, como a que fecha Il Canzoniere: La Vergi. Ela é diferentíssima da poesia de Dante, onde a mulher é algo de deusa, ao passo que aqui é a virgem descrita como se fosse Laura: é bonita, melancólica, humana, cheia de compreensão. As virgens de ambos os escritores são muito diferentes. Il Canzoniere pode ser considerada uma obra da história da literatura europeia. Petrarca criou uma escola na Alemanha, Espanha, França, onde se encontram petrarquistas. D’Annunzio pode ser considerado um filho de Petrarca, pelo latinismo da palavra; por outro lado, ele foi o corruptor da língua porque ele cria um estilo que foi um defeito em muitos poetas nos séculos XVI a XVIII, o que foi uma maladie na história da literatura italiana. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos I Trionfi É a segunda obra de Petrarca em italiano (1352). É um poema alegórico feito à imitação da Divina Comédia, que Petrarca escreveu nos últimos anos de sua vida, depois da sua volta da França para a Itália, onde ficou morando definitivamente. Esta obra artisticamente não tem nada de novo, não pede uma comparação com Il Canzoniere, e não nos dá nada de novo, nem no sentido dos motivos de valor artístico do Canzoniere. Petrarca é verdadeiramente grande porque escreveu o Canzoniere, porém, psicologicamente, I Trionfi tem valor notável. Com esta obra, nos últimos anos de vida do seu amor, da sua decepção e da morte de Laura, voltando à Itália, quis num certo sentido retratar o seu passado, confessar os erros da sua vida até então e procurou também retomar o seu passado num sentido de mostrar, de procurar, de enquadrar num sentido de nobreza, religiosidade, todos os ideais que tinha no Canzoniere, que foram o motivo de sua vida. Procurou o seu amor, o desejo imenso da glória, da honra, procurou ser o maior poeta e de retomar o seu apego diante da natureza e da vida, que podia ser considerada um pecado. Então procurou enquadrá-los num sentimento de divindade para que nunca pudesse ser dito que ele esqueceu da existência de Deus. Então ele tentou religiosizar esses seus anseios de mocidade. Portanto, I Trionfi é a descrição de uma visão da vida em que, num primeiro momento, é o amor o primeiro triunfo, e Petrarca o canta em todas as situações psicológicas que ele determina. Sobre o amor há um outro triunfo, a castidade, a pureza, desaparecendo então o amor. Sobre a castidade há o triunfo da morte. Chega o momento em que o pensamento dominante é o fim, a consciência de abandonar o mundo, a preocupação da morte, com versos belos sobre Laura. Agora, o triunfo da fama: é verdade que a morte triunfa sobre a vida, mas o homem que a tornou culta adquire um outro tempo, a vida da fama, da glória, que às vezes não somente continua, mas começa depois da morte, quando o homem continua sua vida junto aos seus leitores e os que tiveram simpatia com ele; a fama, pois, vence a morte. Depois temos o triunfo do tempo. A fama voa, diz Virgílio, porém ela tem um limite e desaparece, empalidece, porque o tempo está acima dela. Este é o quinto triunfo. E além do tempo, um outro triunfo ainda, da eternidade, que é o pensamento de Deus e do Além. A vida humana passa, pois, através desses triunfos: amore, castità, morte, fama, tempo, eternità. Nessa obra temos um Petrarca arrependido e desejoso de purificar os seus sentimentos, fazendo ver como todas essas coisas que o preocuparam durante a vida na sua alma sentimental, como esses 87 88 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sentimentos tinham uma linha de ascensão, que é o pensamento de Deus. É uma obra interessantíssima, porque é a reveladora das dúvidas, dos choques, do drama interior da alma de Petrarca. É evidente que nela falta uma fé firme, insofismável, como em Dante. Petrarca é incerto, viveu numa crise, reflexo de uma idade em crise. Por isso ele exprime bem a passagem da Idade Média à Renascença; sente profundamente não ser mais da Idade Média, mas ainda a lembra. Está entre Dante e Ariosto, e surgem então outra vez essas preocupações. Secretum, De remedius utriusque fortunae, De ocio religiosorum e De vita solitaria São quatro obras que poderiam ter um único título. São de caráter ascético, místico, com essa atitude e perspectiva. A mais famosa é Secretum, quer dizer, segredo. É uma obra autobiográfica, em que Petrarca se confessa diante de um seu irmão espiritual que é Santo Agostinho, que o compreende, aprecia, também é emotivo, cheio de sentimentalismo, bem semelhante a Petrarca: lírico e não racionalista. Petrarca imagina confessar-se diante dele, contando os seus desejos, o que aspira da vida, o que esta deveria ser para ele, os seus pecados, seus segredos, os seus instintos. Assim nasce esta confissão, os seus sonhos para a glória, o amor, etc. Santo Agostinho diz que ele está errado, que Deus e o Além devem preocupar o homem, mas Petrarca continua a revelar-se, sem se mostrar convencido do que ele disse. Como testemunha a esta confissão temos uma personagem que nunca fala, mas assiste a tudo, e que é Verità. Ela escuta o que Petrarca diz, nota que ele está fora da estrada certa e que ele não sente nenhuma necessidade de obedecer a Santo Agostinho. É uma obra de caráter autobiográfico, porque Petrarca desabafa, pondo em evidência o caráter humano. De remedius utriusque fortunae − Diante da fortuna da sorte boa e da sorte má, qual o remédio que o homem deverá usar para isso? É um dos livros que mais põem em evidência o lado culto, o aspecto humanístico e moderno de Petrarca. E qual seria o remédio que ele sugere aos homens diante da sorte? O equilíbrio, a serenidade, a calma, a alma, que é o imperativo categórico da Idade Moderna: diante da sorte má não precisa desesperar-se, e diante da boa não precisa exultar-se; é preciso saber ser feliz com equilíbrio e enfrentar as amarguras da vida com equilíbrio, que sabe dominar os próprios instintos. De ocio religiosorum − É a vida solitária e a exaltação da vida dos padres nos conventos, a meditação desses padres que vivem lendo, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos rezando, pregando, e é evidente que nesta obra revela-se o caráter de Petrarca que sempre viveu na solidão. É a exultação do mundo latino nos estudos da meditação, a visão de um mundo sereno, em que a realidade fica longe, tudo isso torna esta obra um drama. Petrarca escreveu muitas epistole e que são em vinte e quatro volumes: são milhares de cartas, escritas em latim e divididas em quatro tomos, cujos títulos são: De rebus familiaribus; Variae; Sine nomine; Senili. De rebus familiaribus são cartas sobre assuntos da cultura, de amizade, de pessoas que Petrarca conhecia, assuntos políticos e culturais. Variae são de caracteres diversos. Sine nomine são cartas em que ele enfrenta o problema da volta dos papas a Roma, como Santa Catarina da Siena. Senili são as últimas cartas de Petrarca. Petrarca também é o autor de Epistolae metricae, que são sessenta e seis cartas, apostilas escritas em verso. De Africa É a última obra de Petrarca, quase só em latim. São nove livros em hexâmetros latinos, escritos entre 1338 e 1340, antes que fosse coroado poeta. Petrarca fala não tanto da África, mas do Império Romano, da história de Roma, das glórias da ascensão da potência romana, sobretudo aproveitando a Segunda Guerra Púnica, em que Cipião ganhou de Aníbal. Essa obra deu a Petrarca a sua glória. Mas, com o Romantismo, começou-se a se afastar das obras em latim e apreciar-se nele o escritor em língua vulgar, e o primeiro crítico foi Francesco De Sanctis. Giovanni Boccaccio (1313-1375) É o terceiro grande poeta do século XIV. Sua vida: também é toscano como Dante e Petrarca. Porém, não é de uma grande cidade como Firenze ou Arezzo, pois num certo sentido nem é italiano, pois nasceu em Paris. Seu pai chamava-se Messer Boccaccio di Chellino, que era de um lugarejo perto de Firenze, Certaldo. É possível que se ouça dizer il certaldese. Isto se chama antonomásia, como no caso de Rafael, chamado l’urbinate. O pai de Boccaccio era um negociante e mercantejava muito entre a Itália e a França, sendo um homem muito rico, e a seda sua 89 90 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos indústria, e sócio do maior banco europeu daquela época, o Banco dei Bardi, uma família que possuía um dos mais bonitos prédios em Florença e que foi feito por Leon Battista Alberti. Messer Boccaccio, embora tivesse família na Itália, amou uma moça na França, pertencente à aristocracia, chamada Giovanna, e daí o nome que deu a seu filho, que é o fruto ilegítimo desse amor, e essa é a razão pela qual Boccaccio nasceu em Paris. Seu pai o reconheceu como filho e levou-o à sua família em Certaldo e o pôs junto aos seus outros filhos, mas teve de afastá-lo de sua família, como era natural, e mandou-o a Napoli. Este é então o primeiro período na vida de Boccaccio: 13131325. Agora podemos considerar um segundo aspecto na vida de Boccaccio, o período que vai de 1325 a 1340, passado em Napoli. Lá achou o seu ambiente. Era sem preocupações, sem receios, bonito, inteligente e teve por isso muita sorte, fazendo parte da melhor sociedade napolitana e sendo introduzido na corte, entre moços da alta aristocracia francesa e napolitana, e o rei naquela época era Roberto d’Angiò, tendo sido culto, e que durante três dias interrogou Boccaccio, para ver se era digno de ser coroado poeta. Boccaccio era riquíssimo, e por isso não tinha nenhuma preocupação, e sua maior simpatia intelectual era a literatura francesa e latina, quer dizer que desde os primeiros anos é evidente uma simpatia, não para com o problema moral, do Direito, da Filosofia, ou com os problemas da Idade Média; era uma simpatia no sentido de romance, de contos, e é evidente a simpatia de Boccaccio para com Dante e Petrarca. Seu pai queria que ele se dedicasse ao comércio e deu-lhe uma incumbência, mas ele não revelou nenhuma qualidade nesse sentido, pois não sabia comerciar. Mais tarde seu pai autoriza-o a abandonar o comércio e estudar Direito Canônico (Diritto Canonico), mas também nesse campo Boccaccio não tinha atitudes, não podia brilhar, pois as leis exigem serenidade e ele não tinha preocupações e por isso não tinha atitudes. E assim abandonou também o Direito. No entanto, vinha escrevendo os seus primeiros romances e foram três que lhe deram fama e consideração. Boccaccio, além de ser considerado um dos melhores intelectuais do ambiente cultural de Napoli e ser amigo de Roberto d’Angiò, teve nesse período um amor muito importante, teve uma relação profunda, não num caráter ideal, nem platônico, como o de Dante e Petrarca, com uma filha natural do rei Roberto; sua mãe, Maria d’Aquino, teve relações com Roberto Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e então nasceu esta filha, uma das moças mais bonitas da sociedade napolitana. Boccaccio amou profundamente essa moça. Mas é interessante saber que ela é objeto nas suas obras de muitas páginas de caráter autobiográfico. Porém ela não é lembrada com o nome de Maria, mas como Fiammetta (Flamazinha). Pensem em Beatrice e em Laura, e agora em Fiammetta, o fogo amoroso de Boccaccio, para compreender a mentalidade desses escritores. E Fiammetta abandonou Boccaccio, passando a outros amores, e isso o deixou numa amargura que só esqueceu na velhice e que é objeto de páginas satíricas e que são intituladas Il corbaccio, nas quais ele chicoteia a mulher como infiel. A sua vida nesse ambiente foi tão serena, tão bonita, tão alegre, em Napoli, pela sua beleza, inteligência, que Boccaccio nesse período nem era chamado assim, mas, latinamente: Joannes Tranquillitatum (João das Tranquilidades), pois tudo era risonho em torno dele. Porém, isto vai até 1340, quando tinha 27 anos, porque no terceiro período de sua vida as coisas mudam. De 1340 a 1345 apresenta este período caracteres opostos àqueles com os quais ilustrava sua vida em Napoli. Em 1340, o Banco Bardi faliu e então Boccaccio teve que trabalhar e conhecer a realidade, pois não podia mais viver de riquezas, de cheques, como aconteceu até então. Agora tudo muda. Então Boccaccio, com 27 anos, deve começar uma experiência dura, amarga, de todos os dias, ele que era o moço que não conhecia preocupações. Começou a ser empregado em Florença, como mensageiro junto ao papa, sendo uma espécie de embaixador, levando informações da república florentina aos senhores da Itália. Em 1352, ele teve da república de Florença a honra e a incumbência de ir a Padova, e lá, convidar para a Universidade de Firenze ninguém menos que Petrarca. Ele apresentou esse homem famoso à Europa e ficaram amigos, mas com uma diferença, pois não era tão sério, honesto e famoso como Petrarca, e foi uma amizade num plano de admiração de Boccaccio para com Petrarca e simpatia desse para com Boccaccio. Em 1362, Boccaccio já começava a manifestar sinais da decadência e sobretudo pela sua miséria. Por um conjunto de coisas, Boccaccio envelheceu física e espiritualmente; a sua velhice espiritual constituiu uma preocupação de caráter religioso, que só se apresentou depois de 1360, quando ele começa a pensar no Além, que ele não tinha feito nada até então e que seus livros eram uma negação, sobretudo seus diálogos fizeram que ele pensasse nisso. Em 1362, quando estava em Certaldo, apareceu-lhe a fazer uma visita imprevista um humilde frei que se chamava Gioacchino Ciani, que 91 92 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos era portador de uma gravíssima mensagem; a informação que ele levava a Boccaccio era justamente que um seu colega de convento, Pietro Petroni, ao morrer teria pedido a Gioacchino falar a Boccaccio e pedir-lhe que mudasse de vida, porque numa das suas últimas visões, Boccaccio iria ser condenado ao Inferno. Isso deixou uma impressão grandíssima na alma de Boccaccio. Ele pensou em mudar de vida, em estudos sérios da verdade, abandonando tudo o que tinha feito até então e queria queimar todos os seus livros e principalmente Il Decamerone, e por isso ele escreveu a Petrarca pedindo-lhe conselhos. E foi justamente Petrarca, tão cheio de dúvidas, que lhe disse que poderia perfeitamente salvar-se sem ter nada que ver com religião as suas obras. É bonito, sobretudo, pois foi afirmado por um poeta cheio de dúvidas, e, no entanto, é ele mesmo quem convida Boccaccio a não preocupar-se com suas obras, porque ele poderia mudar de vida e abraçar a religião sem negar sua genialidade, e é esse conselho que nos dá hoje a faculdade de podermos ler suas obras. Um outro fato que nós podemos ainda lembrar é 1373. É uma data bonita, porque pode ser considerada como o coroamento, como o ano de homenagem à figura de Boccaccio: a república de Florença deu-lhe a incumbência, pela primeira vez honra pública, de comentar numa igreja de Florença, Santo Stefano di Badia, A Divina Comédia, uma obra que é a visão do Além comentada por um escritor que comentou a visão do Aquém. E Boccaccio faz cem aulas sobre a Divina Comédia, não tendo chegado a concluir a décima sétima. Esse comentário foi publicado e o possuímos ainda hoje, mas não tem agora a importância de antigamente. No entanto, ainda é útil esta obra, pelas infinitas informações que contém, pois Boccaccio era pequeno quando Dante morreu, então conheceu pessoalmente pessoas das quais a Divina Comédia está cheia. Em 1373 ele se retira definitivamente à sua casa de Certaldo e, no meio da doença, da preocupação, da tristeza e solidão, esse homem que teve uma vida alegre, brilhante, social, conhecido na Europa e até na Inglaterra, morre em 1375. Teve uma vida serena de letrado, de homem que não tem nenhum empenho no sentido moral, nenhuma luta no sentido religioso, é um daqueles para quem sempre vale o lema epicurélio Carpe diem, que até 1370 viveu assim e depois conheceu a dor, a amargura da vida e sentiu a sombra da Idade Média na sua alma, mas que teve grandes amizades e que morre depois de ter escrito uma grandíssima produção literária, o seu Il Decamerone. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Obras de Boccaccio Il Decamerone O título desta obra é de origem grega: deca = dez; emeron = dia. É pois uma obra comutável: novelas em dez dias, contadas por dez diferentes personagens. Dez dias x dez personagens dá cem. Foi escrita entre 1348 e 1351, quando Boccaccio tinha 35 ou 36 anos, num período não mais de mocidade, em que ele podia sentir a vida com maior equilíbrio e objetividade. O enredo desta obra é o seguinte: durante a peste que havia em Florença em 1340, quando ela era mais cruel, matando Laura, homens e mulheres, o poeta imagina que um grupo de sete moças e três moços, encontrando-se numa das mais famosas igrejas – Santa Maria Novella –, combinassem de ir viver nas colinas de Florença durante a peste. Os moços se chamavam: Filostrato, Panfilo e Dionello. Os nomes querem ter algo de alegórico, e pelo menos um tem um sentido autobiográfico: Dionello, que é o personagem que mais possa lembrar os acontecimentos da vida juvenil de Boccaccio. Mas também os outros dois nomes desta obra têm um sentido figurado. Filostrato é o vencido pelo amor e Panfilo é todo amor. Dionello é um moço vivo, aberto, sem disciplina, amante da vida, e é a imagem de Boccaccio. As mulheres ou moças, nenhuma delas é mais nova do que dezenove anos e mais velha do que vinte e seis, isso quer dizer que se determina tudo num mundo de mocidade: Filomena, Fiammetta, Emilia, Elisa, Lauretta, Neifile e Pampinea. Estamos então diante de um mundo de mocidade, diante de dez diferentes caracteres, diante de dez diferentes psicologias, e isso dá o caráter de universalidade, de diferenciação que esse conjunto de novelas possui. Os dias durante os quais o poeta imagina que esse grupo de moços vive longe de Florença são na verdade catorze, mas a sexta-feira e o sábado não são contados por serem os dias da penitência e da salvação. Então, dois dias da semana não se contam, de forma que, durante os quatro dias que sobram das duas semanas, ficam dez, um dia de cada um dos personagens, que conta uma novela. As novelas são contadas à tarde, quando os moços estabelecem viver nos campos, gozando o ar, e vão contando a novela, e depois dizem as próprias impressões, e assim temos também essa conclusão viva, que contém essas impressões. No fim de cada dia há uma ballata em verso, de modo que todos os dias do Decamerone se fecham com versos, contados pelos moços e moças; e todo dia se nomeia um rei e 93 94 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma regina, que será quem deverá dizer as novelas, isto é, os temas das novelas daquele dia. Um dia se falará sobre o amor feliz, o infeliz, a inteligência, a arte, a morte, e então as novelas devem ser inspiradas pelo rei ou rainha, a não ser Dionello, que é livre de contar o que quer. É o moço mais livre e cria por isso também uma variedade, isto é, a variedade do conjunto desta obra. Toda obra é precedida por uma introdução, que é a parte mais trágica, mais triste, mais dolorosa do romance, em que Boccaccio descreve a peste de Florença, mas como ele diz na introdução, o seu livro é como uma montanha, é preciso subi-la para gozar de uma lúcida paisagem, assim é a introdução. Dois dias desses dez são livres, quer dizer que no primeiro e no nono o assunto é livre, eles podem ser de qualquer assunto. Isso contribui a quebrar a monotonia no conjunto da obra dessas cem novelas. Portanto, estão bem construídas e estão ligadas a uma lógica filosófica e existência artística. É interessante observar que as novelas são cem, como cem são os cantos da Divina Comédia, o que confirma uma impressão nos italianos: como a Divina Comédia é a comédia divina, o Decamerone é a comédia humana. Esses elementos são indispensáveis para compreender o Decamerone. O espírito de Boccaccio coloca sua figura no seu lugar no século XIV. Boccaccio representa o terceiro momento da dinâmica e da dialética da literatura italiana no século XIV. Se uma literatura se pode dizer que possua dialética, isto é, movimento, então diremos que o primeiro aspecto da literatura é Dante, o segundo Petrarca e o terceiro Boccaccio. O primeiro é o poeta do terceto, o segundo, do soneto, das diretrizes psicológicas, da nossa sensibilidade. O terceiro é o do escritor objetivo, sereno, da vida assim como ela é. Em Dante nós temos um apóstolo julgando a vida humana, não pelo que ela é, mas pelo que deveria ser na base de um ideal religioso e político. Ele não se compraz com a realidade, que é para ele condenada, e ele quer por meio dela transformá-la; ela torna-se o ideal político e religioso que ele defende nas suas obras. Ele olha a realidade não objetivamente. Petrarca é o poeta que vive numa crise espiritual, na preocupação que sente em si, a força de uma tradição moral, religiosa, política, que é própria da espiritualidade da Idade Média, e ao mesmo tempo pressente uma nova, que é a da Renascença. Então cria-se na sua consciência esse choque, entre amor para a realidade e a preocupação de um mundo severo do Além. Então essa poesia melancólica, essa descrição do papa, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos alma com grande preocupação, o desabafo de uma situação crítica, qual é aquela de um poeta de transição. Em vez, Boccaccio, com seu Decamerone, é um poeta que não tem nenhuma preocupação religiosa pelo Além, mas quando ele escreve as cem novelas, descreve-as da realidade, não sob a perspectiva de um dever ser, mas pelo que ela é, aceitando a realidade pelo que ela é, sem querê-la melhor, ele descreve a vida como é; não há nele uma preocupação moral, ele não se faz apóstolo à base de que queira revolucionar o mundo. Descreve o mundo como é, nos seus aspectos realistas, olhado, porém, com distância, com objetividade, que é possível na mentalidade de um escritor que escreve com trinta e cinco anos, e então olha sorrindo, sem malícia, quer descrever a vida real e também com uma certa simpatia. É justo dizer que Boccaccio é o poeta que descreve a vida com uma objetividade que, porém, não lhe fecha a possibilidade de exultar a vida, quer dizer que o Decamerone é um hino à vida, é uma exaltação da vida, um reconhecimento dos valores da vida, que é um valor não pela virtude da penitência, mas é um valor pelo que o homem faz instintivamente. E duas coisas lá põe em evidência: o amor sentido não platonicamente, mas naturalisticamente, como algo que nasce e vive, como um homem que ama porque instintivamente é levado a amar. E então não é pecado. Tanto é verdade que nas suas novelas não poucas são as freiras e os padres que amam. Mas isso não é um absurdo na sua mentalidade. Pois se o amor é algo natural e eles são humanos, por que não devem amar? E isso é interessante, pois todas as literaturas modernas muito se baseiam neste conceito naturalista do amor. Mas até em Dante achamos isso, com Francesca e Paolo. A outra característica é a inteligência. Ela é capaz de desvendar os segredos da natureza feminina e capaz de criar a arte, a música, que ilumina a natureza, pois é épica. Então essa exaltação e confiança na inteligência humana, que são dois aspectos típicos da literatura moderna. No século XV, descobertas, navegações, só não havia essa imensa confiança na inteligência humana, em contradição à Idade Média, onde tudo se baseava numa fé e não numa crítica. Em vez, no século XV, com Boccaccio, Petrarca e Dante, precursores com essa mentalidade dos valores humanos e imanentes, é que se determinam bases novas na Ciência, na Medicina; então todo o movimento no século XVI. Boccaccio conta também essa inteligência. A Igreja condena Boccaccio porque é considerado autor de obra imoral, porque muitas novelas falam de amores não puríssimos, mas não só de homens como também de clérigos. Não para defender Boccaccio, diremos que, 95 96 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos primeiro, numa obra de arte não se julga o conteúdo que não pode ser separado da forma, mas a obra de arte não vale pelo que diz, mas como se diz aquilo. Deve ser profundamente educativa, não pelo que diz, mas como o diz. Expressar-se educa muito mais do que dizer. A poesia tem um outro modo de persuadir, de tocar nossa personalidade, portanto, Boccaccio é um grande artista. Boccaccio não tinha nenhuma preocupação ao escrever sua obra, portanto não é nem imoral nem moral, é amoral, fica fora do julgamento. Nós devemos pensar que Boccaccio no século XIV é um dos escritores que mais reflete essa tendência para uma nova visão e concepção do valor, e sua intuição da realidade é livre de preocupação e é considerada, pois tira sua conclusão em si mesma. Portanto, o Decamerone descreve a vida como é, e para Boccaccio é uma belíssima coisa, porque é um conjunto de contrastes, de artistas, de bobos e de medíocres, e o homem age, atua, realiza suas aspirações e anseios. Tantas páginas das novelas de Boccaccio são um hino ao aspecto do homem na vida. Não é verdade que suas novelas falem só de corrupção. Porque ele trata da vida dos padres e freiras e dos homens com uma delicadeza raríssima, onde descreve a candura das moças e dos homens e a liberalidade das pessoas, de todos os clérigos, o que quer dizer que ele também é idealista e agora o homem é virtuoso, porque obedece a um catálogo de virtude. A liberalidade é uma virtude religiosa e também humana. O ser cavalheiro, ser leal, culto, são coisas boas ou não? O fato que uma diferente religião sugira tudo isso, se esses elementos são imperativos de todas as idades, o que é que há de imoral? Só o fato de atribuir tudo isso não à religião. É verdade que o amor em Boccaccio, descrito mais como um vício e naturalmente visto pelo conteúdo, pudesse ser condenado, mas outros aspectos são esquecidos em que o assunto do amor enobrece o leitor; quer dizer que sempre há essa objetividade da vida, vista pelo que ela é, pela sua imanência fora do reflexo do Além. É um espelho da vida, do que se faz, de nosso viver, do nosso desejar quando somos moços, da nossa melancolia quando somos velhos; é a vida como ela é, e o importante para compreender isso é ter um senso lógico da passagem da vida à prosa. Petrarca escreve sonetos que são pequenos instantâneos da sensibilidade pessoal de um período longo, objetivo, narrador, depois gozando aqueles aspectos da vida que constituem a realidade da vida, de forma que é uma obra belíssima, juvenil, cheia de uma visão romana, clássica da existência, porque os valores que ele canta são os mesmos que ele hoje põe em evidência. Dante é o poeta do homem na espiritualidade Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e Boccaccio, na sua humanidade. Dante o vê sob um prisma espiritual e Boccaccio, pelo da humanidade. Obras anteriores ao Decamerone (antes de 1348) Filocolo (poema); Filostrato (romance); Teseida (romance); Fiammetta (poesia); Il ninfale d’Ameto (poema); Il ninfale fiesolano (poema). Após tudo o que dissemos sobre o Decamerone, depois de ter ilustrado a espiritualidade de Boccaccio no espírito do século XIV e tê-lo comparado com Dante e Petrarca, e tendo feito ver a dinâmica do século, para melhor documentar o valor da obra-prima e para documentar psicologicamente a figura de Boccaccio, seria interessante dizer que todas estas obras antes de 1348 são obras que só deviam ser estudadas do ponto de vista da propedêutica, são obras em que se colhe o mesmo Boccaccio do Decamerone, porém num plano menor, porque todos estes poemas indicam as verdadeiras atitudes de Boccaccio do Decamerone, porém essas atitudes ainda não chegaram a uma clareza, a uma firmeza, que é evidente só na experiência do autor, antes de chegar ao Decamerone. Nelas estão presentes num plano de alta poesia, de alta arte, quer dizer que Boccaccio é mais autobiográfico, isto é, acontecimentos de sua vida, sua vida alegre e feliz, o que é nada mais do que autobiografia, ele se serve disso para nela pôr sua autoexperiência. Sempre teve uma simpatia para com a realidade, agora uma coisa é a realidade autobiográfica e outra coisa é a visão realista da realidade. Isso é um dos aspectos das obras menores. Quando lá sentimos a simpatia de Boccaccio para com a prosa, sente-se que ele não é um lírico ou um trágico, é essencialmente narrador, mas entre o modo de narrar nas obras menores e maiores, porque aqui Boccaccio ainda demonstra inspiração literata, e no Decamerone ele é um artista próprio. A terceira obra é sobre a língua. É verdade que Dante fundou a língua, mas Boccaccio colabora para uma determinada prosa em italiano. Mas está muito ligado à prosa de Cícero e sente-se nas obras a imitação, sente-se que aquela língua italiana é uma poesia latina. Mas no Decamerone, prosa italiana. Esses são os aspectos das suas obras. Exaltar a figura de Boccaccio é demonstrar que as obras anteriores são o difícil trabalho de aperfeiçoamento das suas atitudes, que justificarão a sua última obra. 97 98 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Obras pós-1348 Il corbaccio; De claris mulieribus; De casibus virorum illustrium (plutarquiana); De genealogia deorum gentilium. As mais importantes são: De montibus, silvis, fontibus, lacubus (histórico-geográfico); Trattatello in laude di Dante (comentário da Divina Comédia); La vita di Dante. Temos ainda Buccolicum Carmen, poesia em latim. São obras escritas depois do Decamerone. E podemos dizer pelos títulos, documentam com elas a grande transformação que encontramos em Boccaccio, arrependido de uma vida que o preocupa. Boccaccio nos últimos anos de sua vida, depois de 1362, mudou completamente o seu modo de viver, preocupado com o Além, e o monge que lhe comunicou a visão fez com que Boccaccio se fechasse no mundo moral, clássico e literário. Em De claris mulieribus, fala das ilustres mulheres que souberam ser ótimas mães e cidadãs: Andrômaca, Penélope, etc. Sabe exultar o caráter das mulheres. De casibus virorum illustrium fala dos acontecimentos de homens ilustres e de homens destruídos, isto é, uma obra que faz pensar na obra de Plutarco. E seria interessante ilustrar, Il corbaccio é de origem espanhola, quer dizer chicote; é uma obra em que Boccaccio descreve uma visão que ele imagina ter tido, pelo seguinte: ele enamorou-se em 1348 de uma viúva moça, bonita, mas que não escutou aos seus amores, e ele vinga-se dessa não-correspondência descrevendo uma visão em que o marido descreve todos os vícios da mulher; é um livro de caráter misógino, que instiga o ódio para a mulher. Boccaccio antes de 1348 não era misógino, não odiava as mulheres. De montibus, silvis, fontibus, lacubus e De genealogia deorum gentilium são obras que poderiam ser a expressão da seriedade de Boccaccio. Na primeira se interessa pela origem dos deuses pagãos. Na segunda, de caráter científico, fala dos bosques, montes, lagos; é o segundo aspecto clássico de Boccaccio. Seus últimos livros, ele que era tão oposto de Dante, o amor que teve justamente para com Dante poderia ser objeto de uma dissertação. Petrarca era mais cheio de dúvidas, teve pouca simpatia para com Dante, de forma que não admirava a intransigência moral de Dante. Mas Boccaccio, embora o contrário de Dante, teve uma grandíssima simpatia para com Dante. Embora lhe interesse a vida e não os ideais, portanto estas duas últimas obras são uma verdadeira prova de amor, de simpatia; têm uma importância que prenuncia o Humanismo e a Renascença, de um autor da Idade Média. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Aspectos menores da literatura italiana do século XIV O que resta do século XIV é uma conclusão. Também esse resto do século, também os escritores, além de Dante, Petrarca e Boccaccio, também eles, embora menores, todos eles, e é por isso que queremos lembrá-los em todos os campos, nos vários setores de suas obras, revelam essa tendência que pusemos em evidência, essa tendência de uma literatura que abandona os idealismos medievais, e isto vai tomando uma nova personalidade, de realidade, e é prova sobretudo de um realismo, de uma simpatia, um interesse por tudo, o que quer dizer que esses escritores menores vão modelando essa visão que prepara o Humanismo e a Renascença; e então não se pode dizer que isso brotou de repente, mas preparou-se através de todo um século, e até com San Francesco notam-se já sinais da Renascença, e nos escritores menores, que se interessavam por problemas históricos, que dão a impressão que o Humanismo e a Renascença são preparados por uma arte e os ideais da Idade Média vão desaparecendo e os da vida vão aparecendo. Então, compreende-se por que Colombo, com sua descoberta, e todos os outros, e por que esse interesse de todos pelos mares, e pelo desconhecido, é uma mentalidade nova que surge, que não se restringe à Itália, mas espalha-se em todos os países da Europa, em todos os campos da Filosofia, das descobertas, das ciências, criando o que se chama Idade Moderna. Na historiografia, temos como escritores importantes: Dino Compagni, que escreveu Cronica delle cose occorrenti ne’ tempi soui. Não é mais a crônica num sentido medieval, de origem do mundo, de um ponto mítico, mas sim o interesse em falar da realidade contemporânea, da qual o autor sente que tomou parte. Giovanni Villani discute os mesmos assuntos, de um ponto de vista econômico, na sua obra La cronica. Começa a sua crônica da Torre de Babel, para chegar à fundação de Florença, depois aos fatos contemporâneos. Na sua obra falta a alma, como em todas as obras que narram fatos e não pensamentos. Literatura religiosa Domenico Cavalca escreveu uma obra, Vite dei santi padri, em que são descritos os padres do antigo Oriente, o que sentiam, suas tentações, etc. O conteúdo do livro é monótono, mas em algumas vidas, como a de São João Batista, de Abraão, o estudo é íntimo e revela na 99 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 100 alma do autor uma capacidade singular de retratar a força persuasiva da virtude e a perturbação do remorso. Iacopo Passavanti recolheu suas pregações na obra Specchio di vera penitenza. É um pregador dominicano e as distinções escolásticas dão-lhe um aspecto claro, mas árido. O ambiente destes contos é infernal e incute um medo maior do que o dantesco, e a imaginação, muito medieval, faz do diabo o protagonista exaltado desta obra. Santa Catarina da Siena é famosa pela sua paixão, misticismo e coragem ante os papas, exigindo que eles voltassem a Roma; suas obras estão reunidas em Le Lettere. Ela morre com trinta e três anos, e uma sua frase famosa, com a qual fechava suas cartas, era: “Cupio dissolvi”,25 quer dizer que não ligava a vida, para ela só a caridade importava, era uma espécie de São Francisco no século XIV, que acompanhava ao patíbulo os homens. Numa sua carta, em que descreve a decapitação de um inocente que não queria receber de ninguém os confortos religiosos, mas Catarina vence sua resistência, morrendo então ele serena e santamente. Temos a obra I fioretti di San Francesco, uma obra espetacularmente bonita, não havendo outra que tenha sido tão lida como essa. É serena, límpida, pura, e descreve os milagres de São Francisco, que domesticava os lobos, que falava às pombas, etc. A obra toda é um louvor, ora pequeno ora grandioso, da criação. Foi escrita por um anônimo toscano, na primeira metade do século XIV. Novellieri Como escritores de novelas, imitadores de Boccaccio, temos: Giovanni Sercambi: um escritor inexperiente, querendo imitar o Decamerone com sua obra. Giovanni Fiorentino, apenas notável por uma certa clareza expositiva, assinala o início da novela boccaccesca com sua obra Il Pecorone. Franco Sacchetti, o mais famoso de todos. Alguns de seus temas têm semelhança com Boccaccio. Nos seus I sermoni evangelici aparecem suas considerações morais, de homem religioso e bom cidadão. E, finalmente, um humilde poeta, Antonio Pucci, com seu amor por Florença, sendo um espírito mais pobre e simples que Sacchetti, e suas obras melhores, os poemas Gismirante e La Reina d’Oriente. Citamos apenas os nomes de Alesso di Guido Donati, Fazio degli Uberti e Federico Frezzi, com os quais se encerra o século XIV, com a sua dinâmica confirmada através dos artistas menores. 25 “Desejo morrer”. LITERATURA ITALIANA II (1957) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O HUMANISMO O Humanismo não surge improvisadamente. É um movimento literário preparado de longa mão, sobretudo no século XIV, pelos três grandes escritores: Dante, Petrarca e Boccaccio. E desses três, principalmente Petrarca. Esse escritor, autor de Il Canzoniere, exultador da beleza, do amor, esse poeta angustiado, melancólico, preocupado, no meio de dúvidas, de incertezas, com uma forma elegante, com um desejo de escrever bonito, preocupado com o estilo e admirador sem limites da literatura latina, de Cícero, de Tito Lívio, esse escritor deve ser considerado, no século XIV, como o iniciador do Humanismo e da Renascença. Então temos razão em afirmar que o Humanismo não surgiu improvisadamente; os nossos conceitos, convicções, ideias, são fruto de superamentos que não podem ser desenvolvidos de um momento ao outro. O Humanismo é um fenômeno literário do século XV, com suas origens inteiramente baseadas no período clássico. O que é o Humanismo? É uma nova concepção da realidade, da vida. É uma nova visão e interpretação da realidade e dos problemas humanos. Essa é a definição de Humanismo: uma nova concepção do homem e da vida, nova porque é diferente da concepção que da vida e do homem teve a literatura medieval e a anterior ao Humanismo. A concepção humanística, embora não seja uma negação da medieval, é porém uma afirmação polêmica, diante da concepção da Idade Média, isto é, o Humanismo afirma valores que a Idade Média negava. Afirma uma visão da vida diferente da Idade Média; embora passando através dos conceitos da literatura medieval, afirma coisas diferentes, sem contudo negar os valores da Idade Média. Embora o Humanismo não seja ligado aos ditames da Idade Média, a literatura humanista tem suas religiosidades. Qual é o elemento fundamental do Humanismo? É uma infinita confiança nas faculdades humanas. Com este conceito tem-se em síntese a definição dele: uma expressão de absoluta confiança nas faculdades humanas, na potência do homem, na energia espiritual e intelectual do homem. É um hino ao homem. Toda essa literatura é exultante do homem, esse lutador na Terra. É uma concepção imanentística da vida e do homem. Imanência é uma 103 104 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos concepção filosófica na qual se acredita nos problemas do homem na Terra, é o contrário do dualismo. Por essa imensa confiança no idealismo humano é que temos os pintores e arquitetos da Renascença, os heróis como Vasco da Gama e Colombo, que desafiam os mares; por essa razão é que surge a imprensa, que difundiu a cultura no mundo, a pólvora, que cria a artilharia, tudo isso determinou a literatura do Humanismo: uma visão nova da vida que se chama moderna. Qual a diferença entre Humanismo e Renascença? O Humanismo é um movimento literário, ao passo que a Renascença é um movimento mais complexo, isto é, espiritual, filosófico e moral. O Humanismo é que prepara a Renascença; a Renascença é uma consequência do Humanismo; o Humanismo é a fase literária da Renascença. E como se caracterizou essa fase literária? O caráter fundamental foi uma volta aos antigos, um retorno aos gregos e aos romanos, sobretudo; mas foi um retorno objetivo, com uma atitude científica. Durante a Idade Média, os escritores tinham uma atitude subjetiva, transfigurando o pensamento antigo, ao passo que os humanistas se avizinharam dos gregos com objetividade, com uma atitude crítica e científica. Não se tratava mais de servir-se dos conceitos, cristianizando-os. Podemos dizer que justamente nesta atitude é que se distingue o Humanismo da Idade Média, pois ele volta a uma atitude pagã, em contraste com a atitude cristã da Idade Média. O cristianismo também influiu no Humanismo, porém de um modo diferente: os escritores são estudados com objetividade, sem nenhuma preocupação de cristianizá-los. Os humanistas estudaram Cícero, Horácio, Sêneca, entre outros, pelo que eles haviam dito e não pelo que deveriam ter dito. É um estudo analítico, uma atitude crítica que transformou um conceito de filosofia: põe os homens diante dos fenômenos da natureza. Com o Humanismo, o homem começa a estudar a realidade. No século XVII, os escritores se põem diante dos fenômenos da natureza, estudando-os cientificamente, como Galileu e Kepler, dando conceitos novos de História, de Astronomia, de Ciência, de Religião. Cria-se o movimento literário, o científico, o crítico, preocupando-se somente com a realidade. É um movimento tipicamente italiano. O Humanismo surge em Pádua e Florença; depois é que ele se torna mais vivo e se espalha, como na Alemanha, onde o Humanismo e a Renascença adquirem caracteres diferentes, mais profundos até, no campo religioso. Também na França, Inglaterra e Península Ibérica ele se espalha, de modo que o Humanismo foi um movimento europeu, não só italiano, revolucionando todos os movimentos culturais. E pelo fato Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de ter sido um movimento europeu, embora nascido na Itália, é que tem a sua importância. Ele anuncia uma idade moderna, a idade da pesquisa, da procura, quando as pessoas não mais creem em tudo que está escrito, mas comentam-no, dão suas opiniões, iniciando, assim, a Ciência. Isso influencia a Igreja também, apesar de serem convictos; e um dos aspectos fracos do Humanismo é a diferença entre cultura e fé. O Humanismo e a Renascença não são um movimento cultural popular, mas sim um da alta aristocracia, sobretudo dos ricos, e nas grandes cidades; então não é de caráter geral, difundido popularmente, tanto assim que a Itália, politicamente dividida, o é também culturalmente. O movimento humanista, nos centros mais importantes, está sob a proteção de famílias senhoriais, tais como: em Florença, com os Medici (Lorenzo), chamados mecenati. Em Ferrara, com os Estensi (Ippolito e Alfonso), que protegeram Ariosto, que lhes dedicou L’Orlando Furioso, e Tasso. Em Mantova, com os Gonzaga. Em Milão, com os Visconti, protetores de Leonardo da Vinci. Em Napoli, que, apesar de ser dividida por pertencer à Espanha, com os Aragonesi, que eram os reis espanhóis que dominavam nesse período (Ferdinando, O Católico). Em Urbino, com os senhores Della Rovere (Il Cortigiano desenvolve-se lá). Embora Roma fosse a sede da Igreja, não poucos foram os papas a quem o Humanismo e a Renascença tanto deve. Estes movimentos até costumam ser chamados de o Século de Ouro ou de Leone. Temos ainda outros papas, como Clemente XIV e Júlio II. Esses foram os fulcros do Humanismo, e foi daí que se difundiram pela Europa esses conceitos que mostram como no Humanismo houve uma concepção quase divina e como o homem era considerado um alter Deus, porque Deus não é considerado um Deus que condena, mas um que cria, ao passo que na Idade Média Deus é um ser severo, que pune, bem o contrário do Humanismo, onde Ele é o criador que transforma. Então o homem também quer criar, quer embelezar. É nesse período que Florença embeleza-se. E esse conceito de otimismo deriva de Platão, não tanto de Aristóteles, pois Platão era um idealista, como o Humanismo o é. Como os humanistas conheciam o mundo grego e latino? Porque o estudaram, e a Itália deve às imigrações e aos gregos, que nesse período abandonaram a Grécia e foram viver na Itália, a sua cultura, pois os gregos eram de imensa cultura e saber. Lá os gregos traduzem objetivamente para o italiano os escritos gregos e latinos, criando-se as academias. Temos Manuele Crisolora e Giorgio Gemisto, que adotou o nome de Platone em honra a Platão. Esses, no meio de centenas de mestres 105 106 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos gregos, foram a todas as cidades e difundiram a cultura e ciência gregas, criando esse movimento que foi o Humanismo. E, com seu discípulo que era Marsilio Ficino, surgiu a Academia Platônica em Florença. Angelo Poliziano (Agnolo Ambrogini) (1454-1494) Para mostrar o que foi o Humanismo e quanto esse escritor estava transformado pelo Humanismo, quanto a sua sensibilidade era humana e delicada como esse sentimento literário, ele mudou seu nome para Angelo, que é menos arcaico. O equilíbrio de vogais faz muito mais límpido o nome desse autor, e também seu sobrenome é um qualquer, mas ele mudou-o para Poliziano, que é muito mais bonito; ele se chamou assim porque nasceu perto do Monte Pulciano, que em latim é Mons Politianus. Chama-se, portanto, Angelo Poliziano. Os nomes representam a obra de um artista. Angelo Poliziano nasceu em 1454 e morreu em Florença em 1494. Os humanistas quase todos morrem moços, consumidos pelo gosto de estudar, de descobrir; é um período quase de loucura. Ele morre com quarenta anos. Quando Poliziano tinha dezesseis anos, isto é, em 1470, ele era um perfeito conhecedor do grego e do latim, tanto assim que ele escrevia poesias e prosa nessas línguas, e justamente em 1470 ele traduziu uma obra à qual ele deve a sua fama: L’Iliade. Deve sua sorte, sua vida, sua fortuna e amizades pelo fato de ter vivido na corte mais humanística, mais generosa, mais delicada da Renascença, na corte de Lorenzo de’ Medici, que ficou entusiasta da poesia de Poliziano e logo depois de 1480 confiou a ele a educação de seu filho Piero de’ Medici, que foi um aluno particular de Poliziano. É uma grande consideração, sendo muito rara, como com outros grandes estudiosos, como Aristóteles, professor de Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, ou Descartes, professor da rainha Cristina da Suécia. Em 1480 ele foi nomeado professor de eloquência greco-latina na Universidade de Firenze, neste período em que surgem tantas universidades e professores. Faleceu em 1494, dois anos após a descoberta da América e da morte de seu grande protetor Lorenzo de’ Medici. Sua vida é a menos romântica, menos audaciosa que podemos estudar, porque é uma vida de estudioso, de humanista, rodeado de livros Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos antigos; é um desses escritores que se afastam da realidade, que vivem num mundo de melancolia, de cultura, o que raramente se vê hoje em dia. É meigo, religioso, calmo, delicado, sempre com um olhar sonhador. Momigliano foi o seu grande biógrafo. Poliziano foi protegido por Lorenzo, não tinha preocupações econômicas; era amadíssimo pelos seus alunos, tinha bibliotecas e tudo que desejava; teve uma vida muito bonita, livre dos anseios que perturbam a nossa vida de hoje. Obras de Poliziano Miscellanea e Silvae, em latim; Le Stanze, L’Orfeo, Rispetti e Canzoni a ballo, em italiano. As duas primeiras obras são dois documentos da personalidade humanista de Poliziano. Se quisermos procurar sua cultura, temos que ler Miscellanea e Silvae; através delas vemos quanto ele conhecia o grego e o latim. Miscellanea é um conjunto de opúsculos filológicos. Esse aspecto da personalidade de Poliziano é o de fundador da filologia italiana, pois estuda a língua latina e grega tecnicamente, sendo um profundo filólogo desses dois mundos, procurando o valor da palavra sem nenhum símbolo, ao contrário do que se diz, que os alemães foram os fundadores da Filologia. A maior preocupação do Humanismo foi a de restaurar os textos antigos, e não transformá-los, como aconteceu na Idade Média. Esta também amou o mundo grego e latino, mas subjetivamente, ao contrário do Humanismo. Silvae é um conjunto de quatro aulas inaugurais, que se chamam Prolusioni: quatro introduções de quatro cursos na Universidade de Firenze. Poliziano apresentava-se falando em grego e latim, fazendo as introduções em verso, que eram o resumo do curso que iria fazer. Esse é o seu aspecto cultural e humanístico, motivo para considerar-se a sua imensa cultura, o que o torna uma das maiores expressões do italiano. O que o torna o maior poeta do Humanismo italiano não são, no entanto, as obras em latim, porém as em italiano. Le Stanze é um comprimento poético de oito versos, e esse conjunto se chama oitava ou stanza, sendo rimado alternativamente: ab/ ab/ab/cc. A obra de Poliziano traz esse título porque foi escrita em rima oitavada. Mas por que foi chamada Stanze? A razão está no seguinte: o título não é dele, porque ele não acabou a obra, chegando somente à 107 108 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos quadragésima sexta stanza do segundo livro. É uma obra inacabada e sua primeira obra poética. O conteúdo é o seguinte: Poliziano escreveu esta obra com uma intenção encomiástica, isto é, de homenagem e louvor. Ele quer prestar uma homenagem a um irmão de Lorenzo de’ Medici, chamado Giuliano de’ Medici; este, em 1475, venceu numa giostra (torneio) ou palio (corrida), que é uma reminiscência da Idade Média, um aspecto do folclore italiano. Para celebrar este fato, Poliziano escreveu esta obra. Nada disso, porém, é o vivo, o essencial da obra de Poliziano. Ele não é um bajulador, não vende facilmente seu sentimento, pois é livre, independente, sereno. Ele inventa em torno disso uma fábula, transformando os nomes italianos em latinos: Giuliano fica Iulo. Então o poeta imagina que Iulo de’ Medici seja um moço corajoso, bonito, forte, mas que não ama as mulheres, que não gosta de amores: é um misógino, despreza as mulheres. Gosta, em vez, dos cavalos, das matas, de lutas, gosta de coisas viris e não aprecia os que ficam vítimas de mulheres e do amor. O poema começa assim, com essa descrição psicológica. O poeta então descreve que uma manhã Iulo vai caçar javalis, quando num certo momento seu cavalo vai para um prado coberto de flores, bonito como a intimidade de um quarto familiar. Neste prado, Iulo segue uma corça, que repentinamente se transforma numa ninfa, numa deusa da qual ele fica enamorado, encantado, pois estava seguindo um animal e encontra um ser humano, apesar de ser o que ele não aprecia, mas que o seduz, e ele, seduzido pela sua beleza, fica normal, como todos os outros. A natureza se transforma de real (corça) num ser ideal (ninfa), em uma paisagem de sonho. Ele então vive um sonho de moço normal, que deve amar, pois aquela ideia dele é um complexo, tanto que, quando ele não controla seu coração, uma corça se transforma em mulher. Aí está a delicadeza do poeta. A ninfa não é a ninfa e a corça não é a corça, pois na verdade Poliziano sabia que Iulo amava uma moça chamada Simonetta Cattaneo. O poeta transforma os elementos empíricos em fatos, em sonhos, pois é uma coisa dizer que, em vez de encontrar Simonetta, ele encontra uma ninfa. Nos conceitos de moço enamorado, a moça não é uma moça qualquer, mas uma deusa, uma ninfa, e são com esses olhos de enamorado que ele imagina encontrar Simonetta no meio do verde e das águas. Ela não é um ser real, é quase como no Dolce Stil Nuovo, só que lá encontravam-se santas e aqui encontram-se ninfas, isto é, espíritos pagãos. Aqui é uma Simonetta que é tão bonita como uma ninfa, e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos por isso esse caçador fica enamorado, perdendo a corça e os animais e ficando lá, a adorar essa mulher bonita. E compreende-se o valor poético desta obra, a sensibilidade da sua poesia; o poema acaba com uma corrida de um ser que hoje para nós é só sentimento: a corrida de Cupido. Cupido é um moço com uma flecha, representando o amor. Ele flecha o coração de Iulo e faz com que ele ame, faz com que ele vá atrás da corça, até chegar à ninfa. Então Cupido, satisfeito, vai junto à sua mãe, Vênus, que mora na ilha Cipro, contar-lhe a sua vitória. Vênus fica satisfeita e apresenta um sonho a Iulo, dizendo-lhe para ir à luta, porque dessa vitória depende o amor de Simonetta. Aqui Poliziano termina para descrever a luta de Iulo. Mas como ele não é um poeta heroico, não tem a mesma eficácia que teve até agora. É muito bonita essa sua honestidade, acabando aqui. Esta obra tem o seu valor psicológico, porque é o estudo, o acompanhamento da passagem da insensibilidade ao sentimento, do não-amor ao amor, é um hino à mocidade, com um terno véu de melancolia, porque a mulher e a mocidade são valores que passam, do que o Humanismo tem consciência. Essa paisagem de sonho nada mais é que um sonho, que uma realidade muito pouco duradoura; então há nesse poema oitavado a consciência da brevidade desse sonho. L’Orfeo: é uma obra de Poliziano em italiano, sendo uma azione scenica. Durante muito tempo, os historiadores da literatura italiana deram a essa obra uma importância essencialmente histórica. Essa razão histórica consistiu em que essa seria a primeira obra cênica dramática italiana em que o assunto não é de caráter religioso, mas pagão; de forma que L’Orfeo seria também um documento desse caráter pagão, leigo, da cultura do Humanismo e da Renascença: seu valor histórico estaria nisso, que Poliziano pega um gênero literário próprio da literatura medieval em que a representação é atingir o mundo greco-latino de caráter pagão. Isso poderá ter o seu sentido, o seu valor, isso importa algo, mas não daria nenhum valor a Poliziano se não fosse esteticamente uma grande obra. Devemos julgá-la pelo seu valor estético. Ela é inferior a Le Stanze, porém devemos acrescentar que tem o seu notável valor artístico. Orfeu é o personagem mitológico da Grécia, que com o som da sua lira era capaz de mover as árvores e fazer com que os animais parassem para escutá-lo. Ele é o divino cantor, o transformador das multidões, com a sua música, dos vícios e paixões, em profunda alegria. A Orfeu deve-se a concepção de que a arte deve ser pedagógica, pois ele procura serenar os nossos sentidos, fazendo com que nós sejamos mais nobres. 109 110 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Orfeu amou uma moça chamada Eurídice. Esta, um dia mordida por uma serpente, morre. Desespero por parte de Orfeu, desse cantor sereno e meigo; ele quer matar-se, porém um último recurso ele ainda possui: servir-se do seu canto para atrair, para seduzir o demônio, de modo que o Inferno o ajude; então ele vai ao Inferno e lá toca sua lira; e o Inferno também se transforma. O demônio fica bom e acede em ouvir o que Orfeu quer dele. Então Orfeu lhe pede que dê outra vez a vida, a luz do céu à sua querida mulher. Satan promete-lhe isso. A lira de Orfeu deixa estáticos os danados do Inferno, pois lá também eles são sensíveis à arte e à música. O Humanismo transformou até o Inferno numa plateia delicada e sensível à música. E Orfeu leva Eurídice. Mas havia uma condição: ele não devia olhar Eurídice até que ela saísse do Inferno, pois só quando ela chegasse ao mundo é que ele poderia olhá-la e ficar beato diante de sua beleza. Mas Orfeu não pode resistir à beleza de sua mulher, e não pode pensar que somente mais tarde ele poderia contemplá-la, e olha Eurídice, perdendo-a para sempre. As bacantes matam também a Orfeu, e o jogam no Inferno. Na aristocracia, nos palácios, no teatro dos senhores, no meio de gente rica, sem necessidade nenhuma, com todos os trajes que eles tinham, com suas toilettes, aquela gente sentada lá, ouvindo L’Orfeo, é uma coisa maravilhosa, cheia de Humanismo, que caracteriza bem. Poliziano aqui não nega as suas melhores qualidades. Afinal de contas, o espírito dessa obra é que a beleza é um sonho que desaparece, a mocidade é breve e o resto é o fim. Eurídice aparece como uma sombra e desaparece para sempre. É uma obra tangida de melancolia, cheia de estupor, de dor e de meditação, como em Le Stanze, quando aparece a corça. Aqui também Eurídice aparece um só momento, e quando Orfeu vai olhá-la, ela se transforma. E fica no Inferno, com as suas mãos vazias, tendo perdido o seu ideal que tinha obtido com a sua música. É um sonho cheio de tristeza. Mas não é trágico como os românticos, como Goethe, que é desesperado: é uma melancolia doce, que deixa uma ponta de dor na alma. É uma imagem que nunca se torna realidade, quer dizer, uma realidade que nunca é verdade, realidade porque é uma aparente imagem que aparece até um certo momento, realidade assim como desaparece o dia na noite. É uma obra delicada e brevíssima, tendo sido escrita em três dias. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Lorenzo de’ Medici: Il Magnifico (1449-1492) Viveu quarenta e três anos, sendo notável sobretudo como político. Ele foi por antonomásia chamado L’ago della bilancia, isto é, a agulha da balança; isto porque sua política sempre foi de equilíbrio. No século XV, a Itália era dividida em muitos Estados e senhorios. Esses senhorios intervinham em luta para conquistar maiores pedaços de terra, maiores riquezas, mais influências, havendo então lutas, como Nápoles contra Sicília, Milão contra Veneza, etc. Lorenzo de’ Medici foi o político que pregou durante o seu governo o equilíbrio entre os Estados italianos, afirmando que, se esses continuassem lutando um contra o outro, enfraquecer-se-iam todos, permitindo ao estrangeiro conquistar a Itália. A sua habilidade foi essa, que até 1492 a Itália pertencia aos italianos. Depois de sua morte ela foi ocupada por estrangeiros, como os franceses, que dominaram a Itália em 1494, com Carlos VIII. Ele chegou a Nápoles e depois vieram outros conquistadores, até 1918, quando a Itália voltou a ter os confins a que ela tinha direito. Então, Lorenzo de’ Medici tem esta grande importância, de haver permitido aos italianos de conservarem a própria independência. Ele foi um grande político e administrador. Florença, que já tinha sido a cidade de Dante, Petrarca e Boccaccio, no século XV é a cidade da beleza e da arte; erguem-se nesse período os grandes palácios, as ruas são alargadas e surgem as calçadas. Lorenzo de’ Medici transformou a cidade, tornando-a serena e esplêndida como ela é hoje, tirando dela as sombras medievais, com suas fortalezas. Além disso, ele não foi somente um grande administrador, mas também um grande mecenate, foi protetor dos poetas, dos músicos e dos artistas. A sua corte se encheu de músicos e poetas, como a famosa Companhia de [Vincenzo] Galilei, e a [Camerata dei] Bardi. Poliziano foi protegido de Medici e o mestre do seu filho. Também os gregos e o filósofo Ficino foram seus protegidos. Lorenzo é um homem cultíssimo; sua cultura, embora vasta, não era muito profunda; notável, mas não original. Momigliano definiu Lorenzo como “la mente poliedrica del Umanismo italiano”, isto é, era a alma que refletia em si todos os aspectos do Humanismo. Na sua poesia Il trionfo di Bacco e Arianna, temos estes versos: 111 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 112 Quant’è bella giovinezza, Che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sia Di doman non c’è certezza Quanto é bela a juventude Que foge, porém, continuamente! Quem quiser ser feliz, seja-o Do amanhã não há certeza. Obras de Lorenzo de’ Medici Um homem como Lorenzo de’ Medici, com toda sua atividade, era culto. Um homem cheio, que tinha tempo para tudo, até para educar-se. Suas obras podem ser divididas em três grupos: opere classiche: Ambra e Corinto; opere populari: I Beoni, La caccia col falcone, La Nencia da Barberino; opere erudito-platoniche: Altercazione, Canzoniere, Le selve d’amore. Opere classiche Quer dizer, obras escritas em latim, onde é evidente o desejo dele de alcançar a perfeição da linguagem. Aquele espírito próprio do Humanismo, de num só sentido lutar junto com os clássicos, numa inspiração de perfeição. Ambra é o nome de uma ninfa, de uma figura mitológica, uma figura pagã grega. Esta ninfa era perseguida por um bichão que se chamava Ombrone, que é o nome de um rio. Nos gregos havia essa tendência de transformar um ser em humano e vice-versa, como Ambra, que não queria saber nada de Ombrone, apesar de ele a amar, isto é, um rio amando uma ninfa. Então ela pede à deusa da caça, Diana, para ser transformada em pedra. Mas o que é esta rupe?26 É um lugar perto de Florença, perto do rio Ombrono, que se chama Poggio a Caiano, uma aldeiazinha num lugar feio, por ter muita pedra. Mas o poeta transforma tudo isso. Para ele a pedra se chama Ambra, e Ombrono é um homem. Em Poggio a Caiano, Lorenzo de’ Medici havia feito construir a sua melhor vila. Este político, este administrador tinha a dois passos de Florença uma maravilhosa vila, que ainda hoje existe: jardins imensos, salões enormes, onde havia leituras, solenidades e banquetes. Nesta vila ele ia descansar. E como se ama a casa em que se mora, então a transformou em algo mitológico, levando essa vila a um plano de paraíso. Esse lugar é Poggio. Lá tudo surgiu, porque uma ninfa quis ser pedra, 26 Rochedo. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sendo o lugar desta maravilhosa vila o lugar das amizades de Lorenzo. Esta é uma obra clássica, fina e elegante. Corinto é escrita em tercetos. É uma obra em que um pastor que se chama Corinto canta a beleza e chora a saudade da ninfa da qual ele está enamorado. Ele não vive procurando unir-se a ela, mas pensa e vive dela através do idealismo da saudade, da melancolia, e canta com a sua zampogna27 diante do seu rebanho as belezas da moça, o que faz lembrar os poetas idílicos latinos e gregos, como Virgílio e Teócrito. Opere populari Até aqui, um ar grego, latino, literário. Agora teremos as obras populares, obras que um crítico quis dizer que eram uma espécie de doppe, que Lorenzo dava aos seus súditos: aquelas obras eram o estímulo que jogava no povo para enganá-lo. Mas ele não era demagogo. Ele queria que o povo brincasse. Ele tinha uma simpatia pelo povo, tomando parte no carnaval, bebendo vinho com o povo. Sabia viver no meio dele, de modo que suas três obras populares apresentam um aspecto de sua personalidade. I Beoni, La caccia col falcone, La Nencia da Barberino são as obras populares, das quais foi dito que tinham um valor demagógico, que Lorenzo de’ Medici quis simpatizar com o povo para que este não tivesse consciência da sua escravidão. Mas nada disso. Elas são a sensibilidade desse homem político que também sabia amar o povo, sendo o autor de cantos carnavalescos, como Bacco e Ariana. As três obras acima são pequenas e escritas em verso. I Beoni é uma descrição humorística, mas sem despeito, sem raiva, em vez, com uma atitude risonha de bonomia e solidariedade. É uma descrição dos maiores bebedores de vinho de Florença. A obra torna-se uma análise da sociedade florentina daquele período. No entanto, esta obra perdeu muito do seu valor, porque não temos documentos suficientes dos nomes dos bebedores; muitos deles eram da alta sociedade, ocupando cargos importantes, de autoridade. E teria sido interessante saber quem foram. Lorenzo confunde os bêbados numa mesma classe, isto é, gente do povo e gente de cultura, e os descreve saindo de uma cantina de Florença, voltando para suas casas; é um desfile de bebedores. O fundo desta obra é claramente popular. La caccia col falcone põe em evidência o aspecto de homem viril de Lorenzo de’ Medici, que não foi somente poeta, político, 27 Gaita de foles. 113 114 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos escritor, mas gostava da vida de ação. Apreciava muito a caça, tendo grande amor à natureza. Essa simpatia dos italianos pela natureza nasceu com o Humanismo, então esse amor pela natureza vária, magnífica e criadora. O Humanismo nunca concebeu a natureza como mística, mas como ela é, natura naturans, isto é, uma natureza que continuamente se naturaliza e se transforma. Ele descreve uma caçada na sua vila; caçada muito bonita, o rei e a nobreza a cavalo, as damas com suas toilettes, etc. Os homens da corte e da vila, todos fazendo barulho nos campos, para caçar o falcão. Cegava-se com uma agulha os olhos dele e com seu grito, então, convidava os animais a pousar na árvore. É um imã que eles usavam para poder caçar. La Nencia da Barberino é uma obra historicamente importante, embora não seja artisticamente grande. O Humanismo foi à procura de um estilo limpo. Por isso, os canzonieri do Humanismo e Renascença se inspiram em Petrarca, que é o rei do soneto. Lorenzo de’ Medici, em vez, escreve uma obra em polêmica com essa tradição, com esse gosto de bela expressão. Ele descreve as expressões com que Vallera, um trabalhador dos campos, exulta o amor que ele tem por Nencia, uma moça bonita, forte, cheia de saúde; não é bonita e ideal como Laura. Será uma boa mãe e dona de casa, essa agricultora que é de Barberino. Toda vez que falamos de literatura amorosa, neste século temos até mulheres que escreveram poesias amorosas. Todo o século XVI é ligado ao formalismo de Petrarca. Lorenzo descreve, em vez, o amor como ele é. A adesão do poeta a esse amor banal, popular, é sincera e viva, não sendo por nada a descrição de um homem superior, que julga até com desprezo o amor de duas pessoas que não são cultas. Aqui se vê apenas sentimentos. Esta é a poesia popular de Lorenzo de’ Medici. Opere erudito-platoniche Altercazione − Em italiano é um termo que vem da palavra altercare, que quer dizer discussão um pouco forte, acesa, quase uma briga. Lorenzo imagina então uma discussão acerca deste problema: se o homem é mais feliz na cidade, no meio civil, com todo conforto, ou se a felicidade consiste em viver nos campos, na solidão, na natureza, afastado dos luxos da cidade. Em que consiste a felicidade: em viver na cidade ou longe dela? Aqui intervém Ficino, o maior filósofo, que também vivia na corte de Lorenzo, junto a Poliziano. Ficino é o fundador da Escola Platônica e intervém como defensor de Platão. Afirma que a felicidade não consiste nos bens naturais, isto é, vivendo na cidade ou no campo. E sim, que a felicidade consiste em chegar ao sumo bem, consiste em Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma contemplação, que faz com que o homem abandone tudo, todas as coisas terrenas. É uma obra platônica, uma contradição. Esse homem que exulta o amor de dois pastores, esse homem abandona o chão. Essas são suas contradições. É um outro aspecto, isto é, a poliedricidade de Lorenzo. A felicidade é essa atitude platônica de elevar-se das ambições terrenas, até chegar a Deus. Canzoniere é uma obra que recolhe os madrigais de Medici durante sua vida, e de vários períodos. Ele recolheu os que dedicava à moça que amou. Obra de caráter humanístico, imita os grandes clássicos, sobretudo Petrarca. Temos então Lorenzo de’ Medici popular e poeta, escrevendo o Canzoniere num sentido clássico e ideal. Le selve d’amore: obras não completas, em que ele recolheu poesias sem ordem, de vários momentos, e que por isso se chamam selve, isto é, não têm uma única linha, são caminhos diferentes. Nelas está recolhida toda sua sensibilidade no campo do amor. É uma figura não notabilíssima, mas digna de ser lembrada, porque Medici, com sua multiplicidade de simpatias clássicas e platônicas ou populares, de sensibilidade, é o espelho em que se refletem três, quatro ou cinco aspectos próprios do Humanismo. Nele, o Humanismo, embora não tenha chegado, representa seus vários aspectos. Luigi Pulci (1432-1484) Esses escritores são quase todos contemporâneos, florentinos e morando no mesmo palácio, sob a proteção de Lorenzo de’ Medici. É admirável esse gosto do rei, poderoso e rico, de ter ao seu lado homens de valor. Luigi Pulci nasceu em Florença e morreu em Pádua. Apreciado por Lorenzo de’ Medici, a convite deste, foi morar no seu palácio. Lucrezia Tornabuoni, também o nome da rua que desce de Santa Maria Novella, e mãe de Lorenzo, foi sua grande amiga. Tinha uma imensa simpatia por Pulci, que era de família pobre. Ele viveu na miséria, era popular, gostava do sotaque dialetal, e não do linguajar bonito, elegante. Era popular por essa linguagem viva, espontânea, quase vulgar. Muito inteligente e vivo, apesar de ser espiritualmente infeliz, cheio de complexos, devido à sua inteligência. Lucrezia Tornabuoni, que era católica, gostava desse tormento de Pulci e procurava consolá-lo, sem nunca ter conseguido isso. 115 116 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Lorenzo deu muitos cargos políticos a Pulci. Mas ele nunca soube aproveitar-se do que a vida lhe oferecia. Foi sempre generoso e solitário. Dois irmãos dele também eram poetas: Luca e Bernardo. Pulci foi sempre pobre, perseguido e odiado pelo clero, tanto que, em 1484, seu corpo ficou sem sepultura por ser herético. Morreu em Padova, porque tornou-se inimigo de Lorenzo, indo viver junto ao príncipe Sanseverino, e lá morreu. Obras de Pulci Escreveu muitas: La Giostra, La Beca da Dicomano, Epistolario, mas a obra que mais nos interessa, sua obra-prima, é Il Morgante. Momigliano formou-se com este trabalho sobre Luigi Pulci. La Giostra É uma obra que poderia lembrar Le Stanze de Poliziano, embora seja muito inferior como estilo e sensibilidade, que Poliziano soube levar tão alto. É uma obra encomiástica, de cumprimento, de simpatia a Lorenzo de’ Medici. Trata-se de uma giostra, uma luta que houve em Florença em 1469 (ano em que nasce Niccolò Machiavelli), que Lorenzo ganhou, e então ela exulta esta vitória. La Beca da Dicomano Faz ver como é grande a simpatia de Luigi Pulci para com Lorenzo e vice-versa, sendo uma simpatia também de caráter intelectual. Aqui também Pulci descreve um pastor que exulta Beca, que é de Dicomano. Temos então amores populares, exultando-se a saúde. Mas é muito superior pela personalidade de Luigi Pulci. Epistolario É o conjunto das cartas de Pulci. Elas são importantes porque, ao contrário daquelas de Petrarca, que se interessavam pela língua, pelo estilo, estas são verdadeiras confissões e têm um valor autobiográfico, mostrando a psicologia e preocupação de caráter cultural de Pulci, sobretudo sua luta religiosa e suas dúvidas. Pulci viveu num período em que os aspectos dogmáticos da Igreja iam caindo. Todos os princípios da fé nem sempre souberam subsistir. Ele então, diante de Copérnico e Ficino, começa a vacilar em sua fé. Mas Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ele não tinha nenhuma fé que pudesse substituir essa fé. É o drama de tanta gente e que pode ser objeto de tantas críticas. Esses poetas lembram Pascal, que foi torturado por uma crise de fé, que substitua uma fé que estava caindo. Essa obra põe em evidência a amargura interior de Pulci, que é o mais popular dos humanistas – sincero, grandioso, simpático – da literatura italiana do século XV. É o poeta que no Morgante exulta um mundo diferente do Epistolario. Il Morgante É o título de um poema de Pulci constituído de vinte e oito cantos em versos hendecassílabos oitavados. Essa forma métrica é própria da poesia épico-cavalheiresca e que, por isso, aqui assume um caráter italiano. Quem deu este caráter de italianidade foi justamente Pulci. Outros serão Boiardo, Ariosto e Tasso. Il Morgante é constituído de vinte e oito cantos, sendo os primeiros vinte e um mais ou menos os acontecimentos de um poema intitulado L’Orlando. Os sete outros imitam outro poema, La Spagna in ruina. O poema de Pulci como material de inspiração não é original. Isso dá prazer, porque a verdadeira poesia não está na originalidade do conteúdo, mas no tratamento do conteúdo e na forma. Porque o mundo não possui muitos conteúdos novos. O mundo é sempre o mundo, que se desenvolve entre mal e bem. O interessante é saber dar uma forma própria. O seu valor está nisso, em ter sido original como forma, por ter sido um tema já tratado por outros, ao qual ele deu sua própria originalidade. O conteúdo serve até um certo ponto somente para dizer por que é que esta obra deve ser considerada como uma continuação da literatura épico-cavalheiresca. Pomos em evidência um aspecto exterior histórico: a literatura cavalheiresca, com o Ciclo Carolíngio, ligada à Idade Média, essas canções de gesta estão presentes aqui. Mas não é o espírito da obra, ela não é grande por isto, o seu valor não é somente épico. Seu valor está fora da sua tradição. Cada uma dessas obras, seja de Pulci, Boiardo, Ariosto ou Tasso, ligadas pelo conteúdo à poesia épico-cavalheiresca, está ligada pela arte e originalidade e estética da própria obra, por isto é que devem ser lembradas. O valor dessa obra está na popularidade de Pulci, no humorismo, nessa capacidade de tornar contemporâneo, assim como ela pode aparecer ao povo. Esta obra nada mais é que a visão do mundo cavalheiresco pelo povo, pelos homens não cultos do século XV. Então a importância desta 117 118 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos obra naquela época, num mundo de cultura, de imitação greco-latina, de anseio pelo Classicismo, em que esta poesia é, em vez, risonha e popular. Este conteúdo tem um valor muito limitado para julgar-se sua personalidade. Orlando está em Paris, paladino de Carlos Magno, que aqui não é um herói brilhante, mas uma vítima da corte, um injusto que não compreende o valor dos heróis. Orlando então abandona Paris, vai procurando aventuras, amores, lutas, como os cavaleiros da Távola Redonda. Ele chega a um convento de pedras e luta contra três gigantes, matando dois e ferindo o terceiro, que se chama Morgante. Este sara e se converte ao cristianismo, disposto a acompanhar Orlando nas suas aventuras, e torna-se seu escudeiro, quase como um Sancho Pança. Outra coisa: o nome desta obra não é dado a um cavaleiro famoso na canção, em que ninguém se lembra de um qualquer. Em vez, aqui o personagem principal é Morgante, que põe um sino na cabeça como capacete e, como lança ou espada, luta com o badalo do sino. Ele é um homem do povo, e então cai toda essa dignidade dos cavaleiros. É o povo que transfigura os antigos, tirando-os do pedestal da nobreza, para como eles deveriam ser, então temos a transfiguração do cavalheiresco. A um certo momento, um outro personagem acompanha os dois: Margutte, que é meio homem e meio gigante, é um monstro. Enquanto Morgante é ingênuo e forte, tanto Margutte é astuto e fraco; um, com sua força primitiva, e o outro, com sua cabeça de monstro. Também Astarotte, que é até um diabo que vem viver aqui na Terra, com seus ideais ateus, criando problemas, acompanha os três. O poema vai narrando todas essas aventuras, até que num certo momento Orlando volta a Paris. Em Roncisvalle é circundado pelas tropas de Marsílio, que foi solicitado a mover guerra contra Carlos Magno e que é adversário de Orlando. Lá então os dois exércitos encontram-se, e Orlando é traído, perdendo sua vida, e Gano, o traidor, é esquartejado. Esse é o material da tradição das poesias épico-cavalheirescas de Pulci, e aí está sua originalidade, pois o espírito dessa obra é popular, é a simpatia e a solidariedade de Pulci para com o povo de Florença no século XV. Ele quis descrever como o povo imaginaria a cavalaria. É originalíssimo. É a interpretação de um homem culto, que, personificando-se com o povo, procura ver como o povo vê essa literatura em que os piores são os maiores; aqui é degradado Carlos Magno, que não entende as insídias da corte, e o protagonista é um pobre gigante. Morgante é o cavalheirismo popular, em que o povo imagina o herói como um ser superior. (Em Homero temos um herói assim, que Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos lembra Morgante: Polifemo). Morgante é bom, generoso, estúpido e ridículo. Margutte é o diabo, o fingidor que só confessa os seus pecados mortais, que são setenta e sete, sem confessar os pecados veniais. Ele morre porque tira as botas, e um macaco as põe. Esse macaco é sua imagem, isto é, um ser caprichoso, viciado, ruim, mesquinho. É o personagem mais interessante. No meio dos personagens reais históricos, temos até um diabo. Qual é a sua função? A de criar contínuas discussões, acontecendo ao acompanhar Rinaldo. Tem o seu valor autobiográfico, por ser a imagem da vida espiritual de Pulci, sempre incerto da sua fé. E tem o seu valor histórico porque Astarotte é a imagem da cultura humanística, que sempre se apresenta aos dogmas da Idade Média. Ele é o carimbo da idade em que surgiu esta obra. Nesta idade, a crítica começou a desmanchar a intransigência da Idade Média. Ela critica os problemas fundamentais da fé. Bem à imagem de Pulci, que teve problemas de crise religiosa. Então este poema é interessantíssimo pela configuração popular: todos os cantos começam sempre com uma fábula, e toda última oitava fecha-se com uma reza a uma virgem ou a um santo. No meio do poema está o popular, pondo em dúvida os problemas da Igreja, fazendo os leitores rirem. É cheio de ensinamentos da mentalidade popular do século XV, influenciado pelo Humanismo. É uma das obras mais alegres e discutidas e que foi apreciada em certos períodos por estas dúvidas de caráter religioso e outras vezes apreciada pelo povo. Sob o ponto de vista estético, esta obra é uma das melhores do século XV, por esse senso de popularidade e coerência. A poesia cavalheiresca recebe uma extraordinária transfiguração, que é a seguinte: talvez Pulci seja o primeiro escritor a quem nós devemos a fusão dos dois ciclos, o Carolíngio e o Bretão, aos quais a Itália tanto deve. Temos acontecimentos num plano de defesa da Igreja e do Império e também temos aventuras que lembram a Távola Redonda. Então, a fusão dos dois ciclos começa com Pulci e continua mais tarde com Ariosto. Matteo Maria Boiardo (1441-1494) Pulci é um tipo original, pobre, popular; Boiardo é um senhor generoso, estudioso, cheio de genialidade, é quase o oposto de Pulci. Boiardo é emiliano, conde em Scandiano, na província de Reggio 119 120 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Emilia. E a cidade mais famosa dessa região é Ferrara, onde havia uma grande corte dominada pelos Estensi. Lá a mesma vida de riquezas, de estudos do Humanismo de Florença, embora com uma importância muito maior. Boiardo viveu muito tempo em Ferrara, e seu cargo na corte era de bibliotecário dos Estensi. Biblioteca cheia de volumes preciosíssimos, a começar do século XIV. Sua vida lá não tem grandes acontecimentos. Ele foi governador desta cidade, e quando Carlos VIII desceu à Itália, ele conta defender Emilia das tropas, mas justamente lá é que os soldados inimigos fizeram o que quiseram. Ele morre quando a Itália cai sob Carlos VIII. Obras de Boiardo É autor de Il Timone e Il Canzoniere, que têm apenas uma importância relativa perto de L’Orlando Innamorato, que é sua obra-prima. Il Timone É uma ação teatral em que, à guisa das sacras representações, ele reproduz um diálogo de Luciano. Serve para pôr em evidência sua cultura, pois ele traduz latim e grego. Esta obra nada mais é do que uma prova da sua cultura. Il Canzoniere Dedicado à moça que ele amou, que foi Antonia Caprara. Este Canzoniere é feito à imitação daquele de Petrarca, nutrido dos mesmos sentimentos, dos mesmos ideais, da mesma delicadeza de Petrarca. Pode-se ver o Canzoniere considerando três momentos: O primeiro é o da felicidade, em que o poeta ama Antonia e é por ela amado. Aqui o poeta exprime-se com exuberância, devido ao estado da alma feliz. O segundo é o da tristeza, é a parte elegíaca, em que o poeta expõe a sua decepção, pois Antonia esqueceu-o. Então esse véu de tristeza sobre o soneto. A terceira parte é o da superação, pois o poeta supera sua tristeza numa visão de caráter religioso, em que ele inclui seu amor, sublimando-o, com aquela pureza que é própria do platonismo do século XV. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos L’Orlando Innamorato Descreve o amor de Orlando. Mas o poema mais famoso da literatura italiana do século XVI é o de Ariosto, a quem Camões tanto deve, e chama-se L’Orlando Furioso. Ariosto é o continuador. Orlando começa enamorado com Boiardo e acaba louco com Ariosto. É o cúmulo da mentalidade do Humanismo e da Renascença. L’Orlando Innamorato deveria ser um poema de cem cantos, mas a morte improvisada de Boiardo deixou o poema incompleto, com sessenta e nove cantos. Qual é o resumo desta obra? Angelica, esta figura de moça brilhante, bonita, pura, brincando com o fogo, uma dessas mulheres que não têm paixão, mas é naturalística, sem procurar encontrar amores, sem sentido de corrupção, é filha do rei Galifrone de Cataio, na China, cheia de esplendores e riquezas, que já temos desde Il Miglione de Marco Polo. Angelica decide abandonar sua família e seu país e, junto com seu irmão Argalia, vai para Paris. O poema começa assim, com a chegada de Angelica e seu irmão ao palácio de Carlos Magno, onde ela, depois de um riquíssimo banquete, desafiou os paladinos de Carlos Magno, em nome do irmão. Este luta com os paladinos e cobre-se de glória. A beleza de Angelica faz com que os paladinos enamorem-se dela. E quando ela decide abandonar Paris e voltar a Cataio, os paladinos vão atrás dela, prontos a enfrentar privações, para poder contemplá-la; entre eles estão Orlando e Rainaldo, os mais famosos. A um certo momento, Angelica enamora-se secretamente de Rainaldo e ele dela. Rainaldo não tem nada de novo por gostar dela, que era uma coisa natural. Mas quando chegam à selva de Ardennes, entra a parte mágica do poema. Rainaldo bebe da água do ódio e ela, a do amor. Angelica fica loucamente apaixonada por ele e Rainaldo, odiando-a. Orlando continua amando-a, mas não amado por ela. Orlando e Rainaldo cobrem-se de glórias, no Oriente e Ocidente, até chegarem a Albracà, onde Angelica é presa. Orlando toma parte em duelos fortíssimos para libertá-la, enquanto Rainaldo fica indiferente, mas Angelica gosta de Rainaldo e não de Orlando. Num certo momento, eles ficam sabendo que Agramante, rei do exército pagão dos mouros, agrediu Paris, e instado por Gano, marcha contra a cidade. Facilmente teria a melhor contra Carlos Magno se Orlando e Rainaldo, seus melhores paladinos, não voltassem a Paris, tendo antes libertado Angelica. Porém, ao chegarem a Ardennes, acontece o contrário: Rainaldo enamora-se novamente e Angelica odeia loucamente Rainaldo. E chegam a Paris nesta situação, na véspera da luta. Carlos Magno pede a Angelica ficar sob a proteção de Naimo, duque da 121 122 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Baviera, e que é um cavaleiro coberto de honra e glória, prometendo-a ao cavaleiro que mais pagãos matar, ao que mais glória alcançar. O poema fica nessa expectativa, acabando no nono canto da terceira parte, quando o poeta começa a descrever a luta entre cristãos e pagãos, e Angelica à espera do seu destino de casar com Orlando ou Rainaldo, ambos enamorados por ela. Ariosto continua na quarta parte com o seu Orlando Furioso. L’Orlando Innamorato tem um valor duplamente histórico: Primeiro, porque é notável o esforço desse escritor em fazer com que o dialeto florentino se tornasse língua nacional. Ele não é toscano, vive em Emilia, sobretudo na corte de Ferrara, onde falavam o dialeto emiliano. Boiardo procurou imitar Dante, Petrarca e Boccaccio, e seu valor está nessa tentativa, nessa colaboração de estender para fora da Toscana a língua florentina, fazendo com que ela se tornasse a língua italiana. Sua obra é lida em toda a Itália e a língua toscana começa a ser usada fora da região. Segundo, pela tradição do conteúdo. Ao lado de Pulci, Boiardo tem a função de ter fundido os dois ciclos cavalheirescos, misturando os caracteres peculiares do Ciclo Carolíngio com o Bretão, isto é, o ciclo de Carlos Magno, que defendia os fracos, com o ciclo da Távola Redonda, com suas aventuras e simpatias. Vemos então o amor no meio dos cavaleiros de Carlos Magno e o heroísmo deste no meio dos cavaleiros da Távola Redonda. Essa é a base essencial para entendermos L’Orlando Furioso. Pomos em evidência o aspecto mais louvado por Momigliano, que exulta sobretudo o primitivo, a força, a potência, a ingenuidade nesta obra: a nobreza de sentir, a força do sentimento, o amor na sua honestidade, intensidade e pureza. Então as figuras que aparecem no Orlando Innamorato são figuras de gigantes, de nobres, embora possuam algo de antigo, de velho, pois estão ligados ao antigo. São como feitos de pedra, que despertam em nós admiração, admiração pela nobreza, pelo idealismo. Esses conceitos são os que mais enobrecem a poesia de Boiardo. Nota-se a diferença entre ele e Pulci, que transformou a cavalleria em algo popular, cômico e até cheio de polêmicas religiosas. Boiardo exulta essa nobreza primitiva, esse sentir dos paladinos, como se fosse um mundo de aristocráticos. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Jacopo Sannazaro (1457-1530) Nasceu em Napoli, em cuja corte foi poeta e funcionário. Viveu por isso num ambiente de cultura, de alta aristocracia, de grandes negócios públicos. Foi organizador das festas da monarquia aragonense em Napoli. Neste período, no século XV, Napoli pertencia à Espanha e ainda hoje é possível ver no dialeto napolitano a influência espanhola. Naquela época, sobretudo de 1458 a 1492, houve grande movimento cultural. Napoli (isto é, toda a Itália meridional) foi uma das cidades italianas famosas pela sua cultura, humanismo, poesia, música, pintura e escultura. Aí também temos esse movimento de desbravamento da Idade Média, como em Ferrara com os Estensi e em Roma com os papas, entre outros. Em Napoli deve-se ao rei Alfonso d’Aragona, que promoveu os estudos em Napoli, fazendo fundar uma Academia Pontaniana, porque é fundada em Pontani, recolhendo as culturas da Itália meridional. Dessa academia fez parte Iacopo Sannazaro, com o nome latino de Actius Sincerus. Sannazaro foi um homem que escreveu em latim e grego, que preparou todas as festas da corte, que organizou os espetáculos festivos na corte, que foi adorado pelas damas, porque era bonito, delicado, cheio de cultura, sabendo mover-se nessa sociedade aristocrática da corte espanhola, admirado por todos. Fiel e honesto, pois quando os aragonenses foram expulsos de Napoli em 1501 ele vendeu seus bens, suas riquezas, abandonou seus costumes, seus amigos, seus livros e acompanhou seu senhor no exílio − Federico, filho de Alfonso −, fiel a esse senhor a quem ele devia toda sua glória. O Humanismo e a Renascença são os períodos em que se critica muito a honestidade dos artistas. Em vez, Jacopo Sannazaro mantém-se fiel ao seu senhor, e quando ele volta a Napoli em 1504, após a morte de Federico de Aragón, vive seus últimos vinte e seis anos lá. Sannazaro amou duas moças: a primeira, num romance delicado, um amor juvenil que era Carmosina Bonifacio. Mais tarde, depois do exílio, ele amou outra mulher, que se chamava Cassandra Marchese, que foi o amor de sua maturidade. Em Napoli há um bairro sobre uma colina que domina o mar e que se chama Margellina. Neste lugar há uma vila com uma igreja chamada Santa Maria del Parto, dedicada à Virgem, que protege o nascimento dos filhos. Essa vila é a que ele fez, vivendo lá seus últimos anos, tendo sido 123 124 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma doação do rei Federico. Sannazaro era o dono dessa vila e lá morreu em 1530, sempre contemplando o mar, em sua colina. Obras de Sannazaro Sannazaro é autor de uma infinidade de obras: De partu Virginis Escrita em latim, é de caráter religioso-mitológico; mas o título não justifica a obra, pois é simplesmente o pretexto para encher de mitologia esse acontecimento. É uma imensidão no mundo clássico e mitológico. Eclogae piscatoriae Conjunto de églogas, que aqui, em vez de falarem de campos e pastores, falam de pescadores, de mar, e têm o valor de representarem o início de uma tradição literária napolitana, em que o mar e os pescadores constituem o começo dessa tradição. Il Canzoniere Conjunto de poesias em que o poeta exulta o amor por Carmosina. L’Arcadia É a obra sobre a qual devemos mais falar e que deu nome às academias literárias. O título desta obra é universal, porque foi muito lida do século XV em diante, não somente na Europa, mas na Ásia e na América, tornando-se seu título tão comum, que ficou como nome de uma academia e de um movimento literário que se chamou Arcádia. Chama-se de arcádicos os escritores ou as agremiações que não têm grandes recursos. Sannazaro foi conhecido e teve uma grande influência na literatura europeia e mundial. L’Arcadia é um poema idílico, formado de doze prosas e doze poesias, em que o escritor, com os nomes mudados, fala de si, de forma que a obra tem um sentido autobiográfico. Sincerus, como se sabe, era o nome de Sannazaro na Academia Pontaniana de Napoli. Então o poeta imagina que Sincerus, para esquecer um amor seu, para evitar a sua paixão, sua insatisfação, vai a um lugar afastado da realidade, um lugar Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de naturalística beleza, um mundo bucólico, uma região que nos lembra uma passagem da Eneida, isto é, a Arcádia: fala-se de uma região da Grécia que vivia das leis naturais, cheia de pastores que cuidavam das próprias ovelhas, no meio dos bosques, então esse mundo de paz, de amor, de felicidade, sem polêmicas, sem lutas, apenas amando e sendo amado. O poeta, pois, imagina ir a essa região, que dá nome a essa obra. Sincerus vai para lá, para esquecer o seu amor. Lá ele fala com a natureza, vive com os poetas, vê aquelas paisagens, mas não pode esquecer o seu amor. Um dia, ele encontra um pastor chamado Carino, ao qual confessa suas penas de amor, sua incapacidade de esquecer; descreve-lhe a beleza da moça de que está enamorado e sua não-correspondência. Carino, que é mais velho e esperto, que também amou, mas que superou as penas do amor vivendo nos campos, consegue persuadi-lo e estimula-o a esquecer sua paixão, vivendo com os pastores. Sincerus começa a esquecer em parte suas amarguras. Mas um dia ele tem um sonho no qual vê sua moça amada, longe em Napoli, morta. Então abandona os campos, os pastores, a Arcádia e volta a Napoli e lá encontra morta sua Carmosina Bonifacio. A Arcádia que Sannazaro lembra é a Arcádia clássica de Virgílio, esse mundo de leis naturais, de uma felicidade que consiste numa beleza naturalística, sem a dor da crítica da consciência. É o mundo que os clássicos idealizaram e que ele volta a idealizar. Um mundo em que não chegam os rumores da vida, em que não há nada de dramático, é o mundo próprio das Bucólicas de Virgílio, o mundo dos livros VII e VIII da Eneida. A importância deste livro na história da literatura italiana, à parte dos sentimentos e da delicadeza dos fatos aqui descritos, está na forma literária, no modo como o poeta soube tratar este seu momento autobiográfico. É sobretudo a rica mitologia a que recorre continuamente; é tão cheia de reminiscências mitológicas e referências clássicas, que é considerada uma pérola literária. Se num momento foi julgada grandíssima, num segundo momento, julgada péssima. Hoje a crítica volta a um juízo mais equilibrado. E essa mitologia não é um artifício na sua obra, porque é a expressão da admiração de Jacopo Sannazaro para com o mundo clássico. Recorrendo a essas evocações clássicas, ele nada mais faz que idealizar seu problema autobiográfico. Foi excessivamente considerado, até o século XVIII. Sannazaro criou em todas as cidades da Espanha, França e outros países o nome das Arcádias, que foi a doença da Itália do século XVIII. 125 126 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Ele é o escritor que no Humanismo representa essa atitude literária e idílica, que é um outro aspecto do Humanismo. Leon Battista Alberti (1404-1472) Leon Battista Alberti com Leonardo da Vinci são figuras muito complexas: são escritores, além de representarem atitudes múltiplas, como pintor, crítico, arquiteto, escultor, de forma que temos neles a realização daquilo que foi o ideal do Humanismo e da Renascença, isto é, um homem completo, que fosse um pouco de toda aquela mentalidade enciclopédica. Esse é o complexo do mundo do Humanismo e da Renascença. Eles vão além da personalidade de simples literatos. Leon Battista Alberti nasceu perto do mar, em Gênova. Porém, se por um lado é interessante dizer que nasceu em Gênova, o que faz ver como o Humanismo estava presente em centros diferentes, não podemos esquecer que era de origem florentina, podendo assim frisar essa genialidade contínua dos toscanos, que se revelava de Dante para frente. Ele morreu em Roma, onde viveu por muito tempo. Viveu sessenta e oito anos, uma vida dedicada à escultura e, sobretudo, à arquitetura. Ao Humanismo dedicou as críticas e obras que escreveu. É uma das figuras mais completas do Humanismo, um dos personagens mais representativos do homem. O ideal do Humanismo parece incorporado na figura de Leon Battista Alberti. Como Leon Battista Alberti poderia ser considerado a expressão equilibrada do Humanismo, assim Leonardo da Vinci representa o Humanismo apaixonado, rebelde e insatisfeito, em cuja consciência não vive a serenidade, e sim, o desespero, de caráter quase religioso, que faz com que se veja nele um homem que já queira superar o Humanismo, numa atitude religiosa. Leon Battista Alberti é conhecido por três aspectos: como artista, isto é, como arquiteto; é o seu primeiro aspecto. Ele construiu, entre outros, quatro monumentos que ainda hoje são objeto de admiração na Europa: o Palácio Rucellai e a fachada de Santa Maria Novella em Florença; a Basílica de Santo Andrea em Mantova; o templo Malatestiano (que se chama também Igreja de San Francesco a Rimini). É então um arquiteto que glorifica a arte italiana do século XV. Mas foi também um humanista notável (seu segundo aspecto), Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e a ele se deve uma iniciativa: em 1441, ele promoveu um certame coronario, que se chamava assim porque o prêmio do vencedor era uma coroa. Esse concurso deveria ser para estimular os escritores do Humanismo a escrever em italiano e abandonar o latim. Tem um grande significado histórico, pois o Humanismo teve essa imensa simpatia pelo latim, e os escritores faziam questão de escrever em latim, como o faziam Cícero e Horácio; mas Alberti, seguindo as teorias de Dante, sentia que o mundo latino tinha desaparecido; então, ele dizia que precisava trazer a perfeição da língua latina, em italiano, isto é, escrever bonito em italiano e não em latim. Ele traz então esta revelação ao Humanismo: é um dos escritores (terceiro aspecto) que não consideram o Humanismo um fenômeno literário, mas também espiritual, moral, complexo, isto é, total. É uma revelação no sentido humano, filosófico e linguístico, e ele foi o criador desta teoria que Bembo continua no século XVII e Manzoni, no século XIX. Obras de Alberti I Trattati Os séculos XV e XVI na Itália são séculos em que se escreviam muitos tratados de fama internacional, como Il Galateo, um tratado do século XV, que naquele tempo era o máximo dos bons costumes, hoje considerados um horror. Era uma das preocupações dos humanistas, a de saber viver em sociedade, algo muito coerente com essa cultura. Temos outros tratados, como II Cortegiano, que tratava do ideal do homem cortesão, que, pelas suas maneiras, muitas vezes pensamos que é hipocrisia. Há centenas de trattati que falam de tudo. Mas os tratados antes de Leon Battista Alberti eram escritos em latim, por serem de origem ciceroniana. Cícero tem muitos tratados, obras de caráter filosófico, que naquele tempo se chamavam trattati. Então, a língua oficial deles era o latim. Leon Battista Alberti começa a tratar dos assuntos de arte na própria língua. Isto depois era uma coisa normal: na França, escreveu-se em francês, na Espanha, em espanhol, e assim por diante. Mas antigamente, se quiséssemos ler obras, tínhamos que ler em latim. Até Spinoza escreveu em latim. Essa é, pois, a importância de Alberti, que os tratados com ele abandonam o latim e começam a ser escritos em italiano. 127 128 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Il Teogenio É um tratado em que Alberti fala da contingência dos bens materiais, como o homem sábio deve aceitar essa volubilidade da sorte, da fortuna, da riqueza, da vida. A vida espiritual não consiste na posse de bens, pois a vida espiritual sabe que os bens vêm e vão e que isso não é caso de desesperar-se. A vida é sobretudo um desenvolver-se espiritual, é um tornar-se sempre mais homem. Essa é a maior riqueza: a espiritual. É este o conteúdo dessa obra, como teoria ligada à filosofia greco-romana, ao estoicismo, que fazia questão da pobreza, como Diógenes. Então é baseado nessas tradições, num sentido ético-moral: o homem deve ser forte pelo domínio das próprias paixões e sentimentos. Della tranquillità dell’animo Esta obra também não fala de bens materiais e sim das paixões, como o homem deve dominá-las, como deve e pode dominar os sentimentos de hostilidade, de violência, sua subconsciência, como o homem é lobo do homem. Ele deve dominar isso refletindo, pensando na beleza, na felicidade da serenidade espiritual. É uma obra serena, de homem de cultura que considera a virtus como uma conciliação dos opostos, no meio. Poucos de nós sabemos ser equilibrados, harmoniosos, belos. Esse é o conceito que Alberti queria inculcar nos italianos, como uma filtração moral do Humanismo, como é possível falar numa atitude moral, numa atitude literária. O Humanismo não fica apenas num plano de língua, mas procura também dar uma educação moral e religiosa ao homem, mudando os problemas da vida, ao contrário do que acontecia na Idade Média, onde tudo era uma visão triste da humanidade. De iciarchia Quer dizer: do governo da casa. Trata da casa e do seu governo, em relação ao governo do Estado. Faz essa comparação entre o modo como um pai administra e se comporta com sua família com o modo como um chefe de Estado deveria se comportar com o povo, que é seu filho. Della famiglia É o tratado em que fala da figura do pai, da escolha da mulher, das qualidades que deve ter a mulher, da educação dos filhos e, por ultimo, da escolha e da amizade dos amigos. A figura do pai é esse homem que providencia, que rege a casa, com o seu sentido de responsabilidade. A Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos mulher deve ser culta, educada, conhecedora da arte, para poder instruir seus filhos; a necessidade de educar os filhos nos livros do savoir faire. Exulta também o valor do sentido dos amigos. Temos então imagem das ordens: o pai está no centro da tela, dirigindo e preparando os filhos para a vida, tudo numa completa harmonia. Em conclusão, Leon Battista Alberti, no meio da literatura do Humanismo, tem a importância de ser o poeta, o representante, o idealizador do conceito de homem, assim como o Humanismo o concebia, como o homem deveria ser na mentalidade do Humanismo. É o homem que fica satisfeito com o homem assim como ele é, ou como deveria ser pela educação, pela perspectiva da vida. Ele representa o ideal do homem sonhado pelo Humanismo, isto é, o homem equilibrado, uma síntese da cultura e da experiência, da inteligência e do coração, que fosse estudioso, que soubesse tudo, num conjunto harmônico. Esse é o homem que Alberti descreve nas suas obras e que ele mesmo encarnou, ao contrário de Leonardo da Vinci, que foi um apaixonado do Humanismo e que sai fora dele, dessa serenidade. Então esta figura nobre, bela, o que o italiano nunca soube ser, mas num sentido frio e temperado, que é a prova do domínio sobre as emotividades, que o espírito deve ter sobre as paixões, o que alcança nos anos maduros. Alberti ama esta mentalidade de homem moderno, equilibrado, aristotélico e cortesão, mas tudo sem excessos, num equilíbrio perfeito. Essa é a sua figura, como o ideal do Humanismo. Leonardo da Vinci (1452-1519) Nasceu em Vinci, perto de Florença, em 1452, e morreu em 1519, em Cloux, na França, ao serviço de Francisco I, o famoso adversário de Carlos V, rei da Espanha. Leonardo é escultor, pintor (La Gioconda, La Madonna delle Rose, etc.), engenheiro, astrônomo, físico e matemático. Desde menino, em Florença, trabalhou com Andrea Verrocchio, já dando provas da sua inteligência. Depois foi a Roma e a Milão, trabalhou lá com Lodovico il Moro, e por último foi viver na França. Sob ordens de Francisco I, fez estradas, aquedutos, fortalezas militares, entre outras obras. Foi um profundo técnico da cor. A Gioconda é feita com uma tinta inventada por ele e que era capaz de durar através dos séculos. Seus desenhos foram de invenção no campo marítimo, pois foi o iniciador e 129 130 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos projetador dos submarinos. Quando moço, quebrou uma perna tentando inventar uma espécie de aeroplano, pois confiava nos seus planos, o que fazia com que ele tentasse pessoalmente. São coisas que foram inventadas mais tarde. No campo da engenharia, ele pensou em transformar o esgoto de Milão e assumiu a possibilidade de fazer estradas abaixo da terra. Em suma, foi um homem cheio de iniciativas. Vai além do Humanismo pregado por Alberti, este com seu equilíbrio e aquele com sua admiração por essa maravilha que tem diante de si, a natureza. Sua cultura é diferente da dos humanistas porque, enquanto os outros eram cultos, ele dizia que não apreciava os latinos e gregos. Apreciava a natureza, analisando as relações entre os seus elementos. Ele é um religioso diante de uma divindade. Para ele, a natureza não se apresenta como uma coisa material, mas como um transformar-se contínuo, como um ser humano, como uma divindade que eternamente se cria, na base da lei que ele procura ver. Que desejo imenso dele, de possuir a natureza! Seu drama principal é justamente o de poder chegar e criar ele mesmo algo da natureza, o que parece um esforço louco. Ele não esteve ao lado dos humanistas, que procuravam ser iguais a todos os poetas antigos. Ele não quer imitar, não quer aperfeiçoar nada, ele quer criar! O homem é um infeliz. Por isso seu esforço em criar tantas coisas. Encheu o céu, o mar e a Terra com coisas novas. Gostaria de ser Deus, mas vê que há um abismo entre ele, que vê a natureza e que não pode criar esta lei. Ele conhece todas as leis pelas quais se verificam os fenômenos, mas estas não lhe permitem criar. Gostaria, na base desta lei, formar um mundo seu. Sente em si a necessidade de tornar-se Deus – um sonho, uma utopia, uma ilusão que o levou até sua velhice. Às vezes parece alucinado, dizendo: “Donde va, Leonardo? Sine lassitudine”. Este servidor religioso traz, leva e põe no Humanismo um tormento, uma aspiração, uma dor, uma insatisfação, que são próprios de uma alma romântica. Alberti representa tudo que o Humanismo não podia dar. Leonardo da Vinci, o que o Humanismo não podia dar, mas que será próprio do século XVIII, que ele previu. Suas obras estão ainda hoje sendo publicadas, porque ele escrevia de um modo esquisito: com vidro, etc. Tinha um alfabeto particular. Há nos Estados Unidos um instituto chamado Leonardo da Vinci, onde os engenheiros dedicam-se exclusivamente a traduzir e estudar seus escritos. E isto no século XX, interessando-se por um escritor do século XV. Suas leis ainda hoje podem ser aproveitadas na Ciência. Em 1952, foi fundada uma universidade onde só se estudam suas obras, de modo a poder publicá-las. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVI Entre o fim do século XV e os primeiros anos do século XVI, passa-se do Humanismo à Renascença. Prova-se com isso a verdade da afirmação de um crítico estrangeiro sobre o Humanismo e a Renascença, dizendo que esta nada mais é do que a continuação e a conclusão, num plano filosófico e artístico, de tudo o que o Humanismo no século XV preparou em todos os campos. É muito errado destacar o Humanismo do Renascimento, dizendo que não há relação entre ambos. Verdade é justamente o contrário, isto é, não havia um sem outro. O Humanismo preparou a renascença do espírito. Se assim não fosse, o que quer dizer Renascença? Não quer dizer renascimento do espírito? Não quer dizer nova concepção da vida, da realidade? Novos valores, um modo de viver diferente, uma forma mentis nova? Não foi o Humanismo, com seu amor pelos pagãos, pela língua latina e grega, com seus estudos científicos, que preparou esta renovação espiritual? O Renascimento não é como um filho do século XV? O século XVI foi por isto mesmo chamado de Século de Ouro, em que todos os princípios e hipóteses, ideais, orientações e perspectivas da consciência humanista se realizarão numa perfeita harmonia. O pensamento chegará aos grandes pensadores, elaborado, aperfeiçoado e sistematizado. A arte do século XV chegará aos grandes artistas do século XVI e neles achará sua mais pura expressão. Em conclusão sobre isto, diremos que os dois aspectos do Humanismo eram justamente a arte e o pensamento. E quando é que estes dois chegarão à própria perfeição? No século XVI: o pensamento na obra política de Machiavelli e a arte na poesia de Ariosto. Estes dois escritores, Machiavelli (1469-1527) e Ariosto (14741543), representam no século XVI tudo aquilo que o Humanismo pensou e poetizou. Este leva ao máximo da expressão lírica a poesia do Humanismo e aquele, à mais clara filosofia todos os pensamentos do Humanismo. Machiavelli é a expressão mais alta do pensamento do Humanismo e da Renascença e Ariosto, da lírica. O Humanismo cala-se e esquece-se na Renascença, quando esta é a expressão de uma consciência realmente nova. E com o século XVI é 131 132 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que podemos dizer que estamos diante de uma nova visão da realidade, pois com ela Machiavelli está longe do mundo da Idade Média e Ariosto, da arte da Idade Média. O binômio utile et dulce, isto é, a utilidade do conteúdo à doçura da palavra, não interessa a Ariosto: o seu conceito de arte, a razão pela qual escreve, o seu desejo de contar não têm nenhuma preocupação moral; escreve pelo gosto de contar, exprimindo nos seus versos o ritmo da harmonia do universo. Ariosto conta os vários elementos antagônicos que formam a harmonia da vida, e sua poesia só tem esta aspiração, de ser a imagem dessa harmonia. O mundo flui, corre, nele há bem e mal, ele é feito de contradições, que dão a harmonia que é a vida. A finalidade de Ariosto é essa, a de ser a imagem dessa harmonia. Portanto, Ariosto é o ponto máximo da arte do Humanismo e Machiavelli, do pensamento do Humanismo e Renascença: o que a Itália pensou encontra-se em Machiavelli e o que ela cantou, em Ariosto. Mais de que todos os outros, eles levaram para a Europa o espírito do Humanismo e da Renascença, fazendo com que se nutrissem dessa cultura e fizessem muito mais do que os italianos souberam fazer. Depois do século XVI, os italianos caíram no rococó, foram dominados e divididos. Então os franceses, alemães e ingleses criam os grandes movimentos religiosos, na Alemanha com Lutero, o Classicismo na França e a Filosofia na Inglaterra, com Hume e Kant. A Itália receberá de volta toda essa cultura, com Newton e Descartes, no fim de século XVIII e no século XIX, quando ela começará a repensá-la, vinda de fora. A importância então que deve ter a liberdade da própria pátria. A Itália era rica e feliz até o século XVI, criando tudo isso. Depois foi escrava dos espanhóis, depois dos franceses até 1714, depois dos alemães até 1918, e tudo isso impediu muito aos italianos desenvolverem-se, como até com as últimas consequências do Humanismo e Renascença: na França com a revolução, na Alemanha com o protestantismo, e na Inglaterra com Hume. Ludovico Ariosto (1474-1543) Foi um poeta queridíssimo de Camões. Nasceu em Reggio Emilia. Seu pai chamava-se Niccolò Ariosto e a mãe, Daria Malaguzzi. Era o mais velho de dez filhos, sendo cinco irmãos e cinco irmãs. Morreu em Ferrara. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Os dez primeiros anos de sua vida, portanto de 1474 a 1484, viveu em Reggio Emilia, aí fazendo seus primeiros estudos. Mas com dez anos seu pai transferiu-se para Ferrara, esta importante e culta cidade do Humanismo, que ao lado de Florença, Roma, Nápoles, foi um dos centros da cultura humanística da Itália, governada pela família dos Estensi, onde temos a presença do poeta cavalheiresco Matteo Maria Boiardo. Em Ferrara Ariosto completou seus estudos secundários e entrou para o Direito. Seu pai queria que ficasse advogado, porque os estudos de advocacia ofereciam grandes possibilidades de emprego com os senhores do governo de Ferrara. Mas, como com Petrarca, Ariosto não tinha qualidades para ser um bom jurista: foi um homem sonhador, que gostava de viver de estudos, de poesia, de imaginação. Mais tarde, então, seu pai autorizou-o a estudar Letras. Ariosto forma-se conhecendo latim e grego, sobretudo latim, revelando às vezes sua apreciação pelo latim. Não foi um Poliziano com o grego. Até 1500, com vinte e seis anos, Ariosto teve uma vida calma, tranquila, serena, de estudos, sem aborrecimentos, sem dramas. Viveu na riqueza, na comodidade, podendo com disposição dedicar-se aos seus estudos preferidos, que eram os de literatura. Em 1500 perdeu seu pai, e então, ele, que era o mais velho dos seus irmãos, sentiu-se com a responsabilidade de cuidar da vida deles, preparando os dotes das suas cinco irmãs para casarem. É algo muito bonito essa sua sensibilidade, que se põe em evidência ao manter durante toda a vida seu irmão paralítico Gabrielle, que escrevia e passava a limpo seus versos. Como a situação econômica de Ariosto não era boa, procurou um modo de viver, empregando-se com os Estensi. Primeiramente com o cardeal Ippolito d’Este, irmão do duque Alfonso d’Este. Aquele era um político que gostava de lutar com os interesses em Milão e Veneza, sendo amigo de Ariosto, que não era político, nem homem de negócios. Era, em vez, um sonhador. Por isso, nas sátiras dele há uma página em que descreve sua vida com esse cardeal. E Ariosto, confessando isso na sua autobiografia, diz que “De poeta, Ipolitto me transformou em cavallaro”28 Era então uma espécie de Sancho Pança, ele, que vivia no meio de amores, de cortesias, tornou-se um cavallaro, pois o cardeal o mandava a todos os lugares. Serviu junto a Ippolito de 1503 a 1517, tendo sido seu secretário. Em 1517, o cardeal foi nomeado bispo em Budapeste, e Ariosto não quis acompanhá-lo, por ter nove irmãos, por viver bem em Ferrara e por estar cansado dessa vida, sendo então licenciado. 28 Pastor de cavalos. 133 134 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Um ano depois, em 1518, ele foi reassumido no serviço pelo irmão de Ippolito, que é duque de Ferrara, lá então vivendo até 1522, quando teve outra incumbência: foi nomeado a administrar uns bens de Alfonso, umas propriedades, numa zona da Toscana chamada Garfagnana, cheia de florestas e castanhas, zona de pessoas violentas e prepotentes. Então imagina-se esse poeta governando essa região, onde era necessário uma pessoa de pulso. Queixa-se de viver aí, onde não se sabia nada, onde só se matava e caçava, no meio de doenças, pois onde o mar entrava nas matas deixava a água estagnada criar epidemias. Lá viveu até 1525, quando volta a Ferrara. Os seus seis últimos anos de vida foram os mais bonitos, quando já havia publicado seu poema, que era admirado em toda a Europa, pois era o símbolo de toda a Renascença. Separa-se do seu irmão e constrói uma vila, em 1527, num bairro de Ferrara que se chama Mirasole, isto é, o lugar onde se pode ver nascer o Sol. Nesta sua pequena vila ele mandou escrever um dístico: “Parva sed apta mihi”, isto é, pequena, porém é dada para mim. Não teve mais casa desde 1500, quando perdeu seu pai, ele, que nunca amou viajar, e, por ter sido obrigado a isso, sentiu-se transformado num cavallaro. Construiu então sua casa, que é a sua intimidade, onde poderá continuar sua poesia. Sobretudo faz um ato bonito que prova sua honestidade. No ano de 1513, quando era secretário de Ipolitto, foi mandado a Florença, onde conheceu o papa Leone X e também uma moça, que ele amou profundamente, com a qual teve relações de uma simpatia instintiva, baseada num idealismo. De 1513 a 1527 viveu com esta moça um amor livre. Ela chama-se Alessandra Benucci. Ariosto começa a dizer que falará também da loucura de Orlando, que essa mulher o faz louco, e que, se ela permitir de ele não enlouquecer, então contará a loucura de L’Orlando Furioso. Ariosto morre em 1543. Uma vida sem grandes acontecimentos externos, sem dramas nem paixões fortes, sem privações políticas e econômicas; é uma vida feita de estudo, de recolhimento, de sossego, de verdadeiro literato, de amador de Letras, que vive em ozio, mas ócios de literato e de estudioso, transformando a realidade em motivos ideais. Ele sempre sentiu repugnância pela realidade. Nunca entrou na vida real, porque sempre se sentiu alheio à vida real. É bem parecido com Petrarca, sendo que seu afastamento, que para outros significaria tristeza, para ele é uma felicidade. É bem diferente de Alberti, de caráter impetuoso, e de Dante, que gostava de viver no meio de brigas. Ariosto é um poeta risonho que não tem amarguras, preocupações, remorsos; é um poeta que quer viver naturalisticamente, sem incomodar, transformando, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos idealizando tudo. Uma vida, enfim, que naturalmente não é em nada a vida de hoje. Obras de Ariosto Quando se fala em Ariosto na Itália, não se põe em evidência suas primeiras produções literárias, que estão muito longe da terceira. A verdadeira poesia dele, essa grande expressão do Humanismo, está no Orlando Furioso. Mas para conhecer melhor Ariosto, é preciso conhecer também as outras duas, que o põem em evidência como humanista e como homem. Le Commedie São La Cassaria, La Lena, II Negromante, I Suppositi e La Scolastica. No século XVI, que é de grande admiração pelo Classicismo, muitas foram as comédias que se representavam nos teatros, e sobretudo nos teatros dos senhores, as comédias latinas. Elas eram representadas na língua original, isto é, em latim. A cultura era tão difundida que os assistentes podiam encontrar os dramas na língua original. O Humanismo foi justamente um período de alto nível cultural. O teatro representado durante a Renascença era o velho teatro latino de Plauto e Terêncio, ambos do período arcaico, muito anteriores a Cícero e Horácio. Foram os primeiros representantes da literatura latina. Neles não havia nada de extraordinário: eram suas peças baseadas num fatalismo no qual o personagem não tinha nada do drama interior. Depois do século XVII, na Itália e na Europa, depois dos séculos XVI e XIX, o teatro teve uma transformação espetacular, com Ibsen e Pirandello, cujos dramas são verdadeira arte, pois o drama é a representação de um sentimento, é o choque entre dois desejos. O teatro de Plauto não tinha nada disso, pois era baseado em assuntos leves e fáceis, não tocando a intimidade do homem, como Othello e Macbeth. Portanto, as comédias eram representadas em latim na Itália, no século XVI. E Ariosto foi o primeiro que começou a fazer com que o teatro iniciasse representações em língua italiana. As comédias de Ariosto são muito fracas, porque são de imitação. Para ele o grande comediógrafo é Terêncio, e ele o imita escrevendo em italiano. Suas comédias podem ser consideradas como as primeiras em língua italiana, representadas no século XVI, o que representa a vitória da língua italiana 135 136 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sobre o latim. Procurava-se com que o italiano chegasse à perfeição da língua latina; nesse sentido, vê-se a grande influência que tem Boiardo, que sempre procurou estimular os italianos a estimar sua língua. As comédias de Ariosto também põem em evidência sua cultura humanística, isto é, nenhum dos escritores do Humanismo fica completamente livre do que foi a cultura pagã, sobretudo de Roma, porque Ariosto não chegou a saber bem o grego. São dois, então, os valores das comédias: com elas Ariosto iniciou a representar em língua italiana; nelas evidencia-se sua cultura humanística. Le Satire As sete sátiras em Ariosto não querem dizer o que é hoje, isto é, ofensas, polêmicas, obra ofensiva, desnudadora, que apresenta as coisas como são. Em Ariosto, sátira tem um sentido mais horaciano, querendo dizer cheio de acontecimentos, de humanidade; vem de satura, então na sua etimologia antiga quer dizer conto autobiográfico, autoconfissão dos problemas, dos anseios, entre outros. Elas são a produção em que Ariosto conta os acontecimentos da sua vida, numa delas narrando suas desventuras como cavallaro. Mandou-as a seus amigos em forma de carta. Uma delas foi enviada a Pietro Bembo. É interessante lê-las, porque explicam tudo que aconteceu na sua vida, pois têm esse valor de confissão. As comédias dão o Ariosto humanista e as sátiras, o Ariosto homem. L’Orlando Furioso Se as comédias dão o humanista e as sátiras, o homem, esta obra nos dá o Ariosto artista. Trata-se de um poema épico-cavalheiresco, formado definitivamente de quarenta e seis cantos, mas na primeira vez que foram publicados, em 1516, eram apenas quarenta. Também na segunda vez que foi publicado, em 1521, aparece com quarenta cantos, mas na última edição antes de sua morte, em 1532, o poema saiu com o acréscimo de seis cantos, então com quarenta e seis cantos. Em 1503, quando entrou para o serviço de Ippolito d’Este, já tinha começado a trabalhar no Orlando Furioso, trabalhando nele mais ou menos trinta anos. E isso é a prova da seriedade, da honestidade, do amor, da profunda unidade que havia entre Ariosto e o seu poema. Levado a um plano mais alto, tem a unidade que deve haver entre o artista e a obra. Não há poeta mais fácil que Ariosto. Leopardi é fácil e outros o são, mas nenhum deles é tão limpo, tão simples, tão sublime na sua Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos humildade, na sua castiça pureza, como Ariosto. E nenhum outro corrigiu tanto o que escreveu. Ariosto tem exemplos das correções que fazia. Essas correções têm uma importância enorme, porque querem dizer que Ariosto queria mesmo que seus versos fossem a imagem da visão que tinha da vida. Esta obra é escrita em oitava rima: ab/ab/ab/cc. É dedicada àquele famoso cardeal que ele serviu de 1503 a 1517. E Ippolito recebeu o poema dizendo “queste corbellerie”: essas bobagens. Esse homem a quem tinha dedicado o maior poema da literatura italiana, um dos homens que todo o mundo leu e traduziu, foi considerado como o autor de umas bobagens. E isto porque Ippolito era um cardeal muito vivo, ativo, lutador, e Ariosto só fala de amor, de sonhos, então definiu assim a obra de Ariosto. O conteúdo é pouco importante: é a continuação de Orlando Innamorato, de Boiardo, que acaba no sexagésimo nono canto, com a morte do autor, em que Angelica é presa do duque Namo da Baviera, pela ordem de Carlos Magno, para que Rainaldo e Orlando pudessem lutar contra os sarracenos. Então, na quinta estrofe Ariosto começa a descrever que Angelica, presa, vendo que tudo estava perdido, foge, escondida atrás de uma sebe. Os cavaleiros vão-lhe atrás, esquecendo seus deveres. E de acontecimento em acontecimento, um dia Orlando, vagando pelos campos, vê uns dizeres nas árvores, nos quais se fala de um amor de Angelica para com um soldado: era Medoro, loiro, ingênuo. E Orlando, ao saber que Angelica, essa mulher que venceu os corações dos paladinos, tinha acabado na honestidade de uma vida familiar, burguesa, enlouquece; o amor dele chega a um ritmo tal que o cega. É muito humano, em comparação com toda a tradição cavalheiresca, que sempre o apresentou como um invencível. Mas Ariosto, que é humanista e renascentista, que é um poeta moderno, vê um Orlando furioso, pois não há nada mais humano do que fazer que se torne louco não por heroísmo, mas por amor. Isto terá uma paródia em Dom Quixote. Então Orlando fica louco, quebrando florestas, parecendo um pouco com o Morgante. Carlos Magno, que se interessa por seus paladinos, envia um de seus paladinos, Astolfo, à procura da cabeça de Orlando. Astolfo, montado num cavalo alado, o hipogrifo, vai até o castelo do mago Atlante e até à Lua, que é o lugar ao qual confiamos nossos segredos e pensamos achar as coisas que perdemos na Terra. A Lua seria esse poço de riqueza, esse poço de tudo que o mundo não tem. Então, como Orlando não tinha mais cabeça, onde poderia procurá-la senão na Lua? Encontra-a lá, trazendo-a de volta numa ânfora fechada, e então Orlando sara, começando a combater novamente e, vencendo, acaba com a batalha entre cristãos e sarracenos. 137 138 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O conteúdo move-se sobre três pontos: 1. A guerra contra Carlos Magno e os sarracenos, o que seria natural do motivo épico tradicional; 2. A loucura de Orlando. É a parte completamente nova, que se pode chamar de motivo lírico. É loucura, não enamoramento. Aqui, a matéria cavalheiresca sofre uma profunda transformação, levando-se até o excesso o enamoramento; 3. O casamento do pagão Ruggiero com Bradamante, que é o motivo encomiástico, com o qual Ariosto, não ferindo a honestidade, faz ver as origens nobres da família que está servindo, pois desse casamento é que deriva a família dos Estensi. É a parte de homenagens aos seus senhores, que justifica sua dedicação. L’Orlando Furioso representa a síntese artística e estética do Humanismo e da Renascença, porque, se o Humanismo e a Renascença foram uma nova concepção da realidade, de uma nova visão da vida, não mais influenciada com tanta intransigência pelo ideologismo e pela transcendência próprios da Idade Média, se foi uma visão nova, serena e confiante da vida e dos problemas e significa apego à humanidade, se significa viver a vida com confiança nos meios humanos, enfrentando-a com heroísmo, então L’Orlando Furioso é justamente a expressão mais alta dessa visão harmoniosa da humanidade. De forma que, aqueles críticos que na obra procuraram uma definição e julgaram-na como escrita exclusivamente num sentido de arte pela arte não estão certos. Porque essa definição não é profunda e não colhe o sentido profundamente real e admirativo da aparição desse poema no quadro da literatura italiana do Humanismo e da Renascença. Porque nada significa dizer que escreveu na concepção da arte pela arte. Se assim fosse, nunca seria um grandíssimo artista. Se o consumado fato o é, o é porque sua obra é a imagem daquela espiritualidade, é a realização fantástica dessa concepção da vida, porque L’Orlando Furioso é exclusivamente a representação da harmonia em que se realiza e define e conclui a dramática existência humana. Nossa vida é feita de amores, de amarguras, de esperança, de passado, presente, futuro, de decepções, de injustas bajulações, de ilusões, de contraste, mas todos esses elementos diferentes e antagônicos se compõem numa harmonia que se chama vida, e L’Orlando é a imagem dessa harmonia. Ariosto canta não por um cantar vácuo, literário, superficial. Canta porque a vida nada mais é do que um canto. É um canto feito de altos e baixos, mas numa perspectiva, numa serenidade da qual o verso de Ariosto é a imagem, o símbolo. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Daí o caráter não tanto realístico que o Orlando Furioso possui. Daí a humana e pessoal elaboração do material cavalheiresco que Ariosto atinge, e que é um material de uma tradição secular, que vai da Chanson de Roland a Boiardo e Pulci, nos séculos XV e XVI. Há um elemento importante que confirma essa nossa impressão sobre a obra: é a ironia da poesia de Ariosto. Os cantos de L’Orlando Furioso sempre se abrem a uma atitude de ironia, sobretudo diante de fatos heroicos, diante da paixão, da inalterabilidade. Não é o ceticismo essa interferência de Ariosto; é, em vez, o esforço de abaixar os cumes de certas paixões, nivelando-as a outras e criando um mundo de equilíbrio, de modo que nada se sobrepuje. Angelica não é mais bonita ou superior do que as outras moças anteriores ao Orlando Furioso. Este não é somente herói, mas também um enamorado, um louco. O amor não é apenas paixão cega, mas é algo que faz rir e confiar na vida. Então todos colaboram numa igualdade cavalheiresca, como se fossem paro e anteparo. De forma que essa ironia é o elemento mais importante para entender a personalidade de Ariosto. Tem-se necessidade de acabar com aquela hierarquia pela qual se cantam certos sentimentos antes de outros. A vida não é feita deste ou daquele sentimento, mas de um conjunto de fatos que formam a vida. L’Orlando Furioso é o Céu do Humanismo e da Renascença. Não nega o homem nem Deus; então, é esse diálogo que é feito dos complexos psicológicos e emotivos de cada um de nós: é alegria e tristeza, é sorriso e melancolia, é heroísmo e fraqueza. Então que há de mais humanístico e renascimental, que outra obra pode exprimir isto melhor? Assim erra quem procura pôr em evidência no Orlando Furioso a guerra entre Carlos Magno e os sarracenos. Não é o único motivo. Erra também quem evidencia que a loucura é a parte fundamental do poema. Erra quem disser que foi escrito para bajular os Estensi, o que é apenas um dos motivos. O poema nada mais é do que a visão objetiva e ao mesmo tempo ideal da vida nos seus contrastes, nas suas diferenças. É verdade que no Orlando Furioso nota-se a simpatia, o amor, o cor cordium de Ariosto e sente-se que tem admiração pela beleza, que não tem nada que ver com o Dolce Stil Nuovo, pois é mais humano, menos transcendente e menos religioso. Esse conceito de beleza, pela qual Angelica é comparada à rosa, que é bonita no galho e que não o é mais quando tirada do galho, esse conceito que é mais objeto de admiração serena é evidente em todos os cantos de Ariosto. Um outro ideal na obra é o da mocidade. Raramente há velhas ou velhos, principalmente. Esses são magos, que também são jovens. Há 139 140 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos esse hino à mocidade, sem seriedade. Por isso essa variedade evidente no Orlando Furioso, o que o torna o poema menos estático e o mais dinâmico da literatura italiana: não há canto em que os assuntos não sejam cinco ou seis diferentes, como de Paris aos bosques e estradas, procurando algo que não se alcança, com esse senso de entusiasmo que é próprio do moderno. Angelica foi definida como a criatura centrífuga, a força que tira os cavaleiros de Paris. Paris faz com que os cavaleiros unam-se num ideal político-religioso. Angelica é a vida, a expressão da vida, que tira o homem dos seus propósitos de intransigência. Como a vida, propósitos que se amenizam e se fecham na realidade. Por esta razão que é grandíssimo Ariosto, o mais pictórico dos escritores italianos. Sua obra é uma música, nada há nela de arquitetônico. Em Boiardo temos cavaleiros fortes, mas Ariosto não tem nada disso. Ele prenunciou as cores e a pintura de Rafael, que representa essa serenidade circular de sine curis, não como a preocupação de Michelangelo. Ariosto é um pouco essa visão. Serviu-se de um material de séculos de tradição e que ele renovou. Niccolò Machiavelli (1469-1527) Niccolò Machiavelli nasceu em Florença, em 1469. Não era de família nobre nem rica, porém seus pais não eram pobres; possuíam terras num lugar perto de Florença, onde eles tinham uma vila que se chamava Albergaccio, em La Lenuta de San Casciano. É difícil dizer qual foi a formação cultural dele, é difícil contar os primeiros anos de sua vida, sua infância, sua mocidade. Mas seus críticos e biógrafos têm todos a certeza de que ele foi educado humanisticamente. Machiavelli seguiu por isso as escolas regulares no século XV e aprofundou-se nos estudos clássicos. Embora não seja um literato, embora a literatura não tenha sido a coisa mais importante na sua personalidade e na sua vida, embora não seja um artista, não podemos negar que tenha sido um grande humanista. E se ele, como parece, não conheceu o grego, era um conhecedor do latim e da literatura latina. Entre os latinos, não procurou os líricos ou trágicos ou os oradores. São duas suas simpatias. Machiavelli estudou, sobretudo, os comediógrafos, e mais ainda, os historiadores: Plauto entre os comediógrafos, e entre os historiadores, o que mais o empolgou foi Tito Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Lívio. É importante pôr em evidência esse amor por Tito Lívio, que o ajudou durante a vida a julgar a realidade, e por isso mesmo é um dos maiores historiadores do Humanismo italiano e europeu. É uma figura universal por ter sido um dos maiores políticos que existiu, criando uma ideologia política e uma concepção histórica. Machiavelli atingiu sua orientação histórica, examinando a história do seu tempo como também os tempos do Império Romano. É notável desde já esse casamento entre Humanismo e realidade, entre experiência pessoal e cultura. Nele havia essa unidade. Ele não procura a literatura latina por um desejo de elegância, mas para descobrir nos acontecimentos históricos as leis eternas dos acontecimentos humanos, a dialética dos Estados, a descendência de um povo, sua hegemonia, o que significa povo, religião. Esses são os problemas da grande figura de Machiavelli. Por esta razão é importante lembrar o ano de 1498. Esta data é a que representa o ano em que tomou parte direta na política, nos negócios públicos, com um cargo de responsabilidade de direção em que tinha possibilidade de observar os movimentos políticos dos vários Estados italianos e europeus, as ambições dos chefes de nações da Europa. O que houve em 1498? Foi nomeado secretário da Seconda Cancelleria da república florentina. Lorenzo de’ Medici morreu em 1492, e a Itália perdeu um dos homens mais sábios politicamente, que pregava a harmonia. Dois anos depois, em 1494, quando era justamente herdeiro o seu filho Piero, a Itália foi invadida pelos franceses, que ocuparam os vários Estados italianos até Napoli, com facilidade. Dizia-se que Carlos VIII ocupava a Itália con il gesso. Quando ocupou Florença, os Medici foram exilados, abandonaram Florença e só voltaram em 1512. Nesses 18 anos, Florença foi república, sendo o presidente Piero Soderini, e seu grandíssimo secretário foi Machiavelli. Nesse período há lá uma agitação política e de caráter religioso, dirigida por um frei que foi queimado, diante do qual Machiavelli riu quando era moço, um frei generoso, que tinha uma coragem extraordinária. Foi Girolamo Savonarola, e enquanto era queimado vivo, Machiavelli começou sua vida de político, porque, enquanto Girolamo Savonarola poderia lembrar Iacopone da Todi, desejando uma paz anacronística, Machiavelli é uma expressão do mundo moderno, ao passo que Savonarola convidava os florentinos a chorar por Deus. Foi nesse período que Machiavelli sobe à Seconda Cancelleria, que era o Ministério dos Negócios Internos e da Guerra. Então ele era secretário com dois ministérios na mão: o do Interior e o da Guerra. De 141 142 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos forma que, com esses cargos, ele tinha possibilidade de conhecer a situação econômica, política e moral da república florentina, mas, sobretudo, de conhecer os vários Estados que se contendiam pelo predomínio. Machiavelli esteve viajando muito. Esteve na França até 1510, observando tudo em Carlos XVIII e Luiz XII, o que queriam fazer. Também viveu muito tempo na Áustria e acompanhou as ambições políticas de Maximiliano. Foi a Roma, então um Estado, e observou Alessandro VI, um dos papas tão famosos daquele tempo, e também Giulio II e Clemente VII, cujas ambições ele conhecia. Foi a Urbino, onde viveu um filho de Alessandro VI, famoso por sua crueldade, e que era Cesare Borgia, com o título de Duque de Valentino. Então Machiavelli tinha na mão a situação da Europa, e a incumbência de fato que ele tinha, viajando nesses lugares, era de observar e escrever objetivamente o que via. Em vez, a coisa bonita é, no entanto, sua objetividade, uma pessoalíssima, de forma que são obras de extraordinário valor, revelando a capacidade, os segredos ideais que determinavam aqueles planos e ações dos políticos de então. Ele se consumia na Secretaria, trabalhando, discutindo, mas acontece que em 1512 há na Itália uma guerra entre os Estados e a França, que se fecha com a batalha de Ravenna e com a derrota dos italianos, voltando a Florença os Medici em 1512. E Machiavelli, que tinha sido secretário de 1498 a 1512, deve abandonar o seu cargo, porque os Medici não confiavam nele por ter sido secretário da república florentina. Embora não tivessem razão de afastá-lo, ele foi afastado e perseguido, porque houve uma conjuração contra os Medici, e ele foi viver em San Casciano, na vila de Albergaccio. Salvo breves aparições em Florença, ele viveu nesse lugar até 1527, quando morre no dia 20 de julho. E esses anos, embora fossem anos de dor, de provação, de penúria, pois como político nunca roubou nada – e seu filho, escrevendo aos amigos, conta que seu pai não deixou nada –, mas o que houve de bonito é que nesse silêncio ele pôde completar suas grandíssimas obras. Todas elas escritas como num relâmpago, com uma paixão, com um desespero, nesse período em que a realidade o tinha afastado do mundo político de Florença, em que se suspeita e ameaça, cheio de preocupações, é nesse período que escreveu suas obras. Em uma carta ele conta como vivia em Albergaccio, onde havia um bosque em que mandava cortar a lenha, comendo com esses operários, jogando cartas com eles, e à noite andava bem vestido e punha-se a falar com os grandes políticos romanos da História de Tito Lívio, escrevendo suas Considerazioni. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Os Medici, que em 1512 tinham voltado, em 1527 outra vez abandonam Florença, ano em que houve o Sacco di Roma, em que levaram tudo. Nesse período então houve a Segunda República florentina. Machiavelli estava em Albergaccio, e quando soube dessa derrota, ele, com o maior entusiasmo, dizia que voltaria para lá com outro cargo, porque não foi somente honesto, mas escreveu livros e tinha sido afastado de 1512 a 1527. Mas os homens da Segunda República o recusaram, por inveja e por uma acusação entre Machiavelli e os Medici, pois sua miséria econômica obrigou-o a dirigir-se à Universidade de Firenze para que lhe desse algo para viver, e aí o papa Clemente VII deu-lhe o encargo de escrever a história de Florença, pelo que ele é considerado um faltoso da política e não recebe o cargo. Isso determina nele um choque tão forte que morreu em 20 de julho de 1557. É um homem como Dante, que acredita no que faz com uma pureza de espírito que o leva até à morte. Sua vida foi objeto de grandes obras, contos, dramas. Napoleão e Bismarck foram admiradores dele. Sua genialidade política fez com que seja um dos seres mais famosos até hoje, pois ele era a vanguarda da visão política num mundo moderno. Obras de Machiavelli Suas obras devem ser estudadas numa tríplice divisão: obras políticas, históricas e literárias, pois são três aspectos da sua personalidade. A Renascença italiana dos séculos XV e XVI concentra-se em dois grandes escritores: Ariosto e Machiavelli. Ariosto é, sobretudo, a maior expressão da arte italiana, é um artista, é o poeta que soube exprimir poeticamente mais do que qualquer outro o mundo da Renascença. Machiavelli soube exprimir com profundidade, seriedade e com um caráter de universalidade o pensamento dos italianos. Machiavelli é um pensador, o maior da Renascença, é filósofo e historiador. A obra principal de Ariosto é L’Orlando Furioso e a de Machiavelli é Il Principe. Por que se deve dizer que Machiavelli exprime nas suas obras o pensamento da Renascença italiana? Como é que ele pode ser o representante dela? Porque ele é o escritor que soube sentir mais que qualquer outro o Humanismo intelectualmente, porque é o poeta que mais entendeu o que a Renascença deveria ser filosoficamente, e por isto é o criador de uma determinada concepção política, o fundador, dando a 143 144 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ela uma definição filosófica e uma concepção autônoma e independente e livre de qualquer outra sugestão. Política: polis + techné = técnica da cidade. A política já existia, mas ele deu esse novo caráter a ela. Disse que o homem, além de ser moral e artista, é também fatalmente um homem político, e o grande valor da sua obra está em ele ter distinguido a política da moral. Aí está a sua personalidade e o grande equívoco com respeito à sua pessoa: dele se fala como se fosse um bárbaro. Ele é, em vez, um realista, chegando a uma definição da política pelo que ela é, não devendo ser confundida com a moral. O espírito humano age politicamente e moralmente. Uma das finalidades do homem é o aspecto prático da vida, que se realiza com a política; o aspecto estético, com a arte; e o aspecto moral, com a ética. Machiavelli supera a Idade Média e colhe a espiritualidade do Humanismo e da Renascença, porque teve por primeiro a coragem de distinguir a política da moral. Antes havia confusão entre ambas: homo politicus, homo ethicus. Como é que Machiavelli cria um conceito novo de política? Pelo fato de que o Humanismo e a Renascença tinham um particular conceito da vida e da História. A vida humana era exclusivamente uma responsabilidade do homem, esse conceito heroico do homem, o homem para tudo é centro da verdade, essa confiança nos sentimentos humanos, enfim, uma concepção humanista. A História era feita não pelos povos, mas pelo homem, pelo indivíduo, um homem forte, prático, realizador, que impõe sua vontade aos outros. Esta a concepção histórica. Machiavelli tem uma concepção pragmática. Pragmatismo é uma corrente filosófica que mais tarde difundiu-se, sobretudo na Inglaterra, com William James, que adota como critério da verdade a utilidade prática, identificando o verdadeiro com o útil. Machiavelli sente que o povo se move em torno de uma vontade. Então, o conceito pragmático que ele teve da História levou-o a ter uma atitude heroica: a História não é esse conjunto do trabalho de todos. A História para Machiavelli não é essa comunhão de todos, esse agir de indivíduos e desconhecidos, não é esse coro. Porém, é o terreno onde age o homem, o homem é que impõe certas ações e realizações. Então Machiavelli é o poeta desse Prometeu, dessas figuras que dominam o povo, por isso que ele é o maior pensador do Humanismo e da Renascença. Em outros países esses movimentos culturais levaram a grandes lutas. Mas na Itália não houve nada disso, pois foram poucas as pessoas que se ofendessem com o problema religioso, como o protestantismo. Portanto, para Machiavelli a História é o resultado da vontade de um Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos indivíduo. É o indivíduo que cria um Estado, uma história. Hoje a História é algo que vai além de um país, pois é feita pela humanidade, é todo o mundo. Então o caráter individual do pensamento político-histórico de Machiavelli. Obras políticas de Machiavelli Considerazioni sulla prima deca di Tito Livio (Discorsi) Nesses três livros (1513-1521), Machiavelli expõe seu pensamento político e histórico, como um apêndice às obras históricas de Tito Lívio, que é o maior historiador do Império Romano, escrevendo uma grande Histoire, tendo sido perdida uma parte desses volumes. Ficou um conjunto de dez livros, e Machiavelli forma-se estudando esse historiador e olhando a realidade da Europa no período em que foi secretário florentino, pois, viajando bastante, via a realidade daquele período. E observando a realidade, faz essas suas considerações, suas conclusões sobre Tito Lívio. Quais são? Para ele, os romanos são os verdadeiros grandes políticos de antes de Cristo. Nenhum outro povo teve a consciência política dos romanos. Tanto assim que Virgílio considera o Império Romano como uma preparação para a vinda de Cristo. Roma teria ganhado o mundo para que depois fosse transformada num sentido religioso. É nesta obra que Machiavelli afirma o seguinte: para fundar um Estado, é necessário um monarca, uma pessoa, a vontade heroica, clara, consciente de uma pessoa, que se imponha a todos. Machiavelli diz que, se para fundar um Estado é necessária a vontade granítica e individual de uma pessoa, para conservar esse Estado é necessária a vontade de um povo inteiro. Isso é muito democrático. Por que é que um Estado se conserva pela vontade de todos? Porque todos estão interessados, ricos e pobres. Um Estado tanto mais se conserva quanto mais houver harmonia. Depende dos cidadãos, que fazem com que o Estado se conserve. Não há povo que possa querer a abolição do Estado. É bobagem, porque seria uma anarquia, apesar de ser uma necessidade. Todos combatem tudo. O Estado é uma necessidade. Que fariam os indivíduos que não tivessem quem os organizasse, disciplinasse? Então Machiavelli afirma que o Estado é necessário porque o homem é necessariamente político-social. Se, para criar o Estado, é só necessária a força de um indivíduo, para mantê-lo são necessários todos os indivíduos. 145 146 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Machiavelli afirma que as grandes vitórias dos romanos são devidas ao fato de que os soldados eram romanos e não soldados pagos. Afirma o conceito da necessidade de um exército nacional. É o primeiro a pôr na Idade Média o problema do exército nacional, pois durante a Idade Média os exércitos nunca eram de uma só nação, eram tropas mercenárias, combatiam senza ira, como diz Manzoni. Machiavelli substituiu a concepção medieval por uma mais moderna: diz que a divinidade de um homem é o Estado, de forma que todas as outras forças e ideais e aspectos devem trabalhar em função do Estado, inclusive a religião: religio instrumentum regni. Tudo deve empolgar-se a favor de sua pátria, até a religião. Aí ele faz uma observação: dizia que, pelo que ele via na história italiana, sentia que a religião da Igreja não ajudava os italianos como a pagã, que algo impedia o italiano de ser italiano, pois o paganismo tinha algo de mais forte, imanente. Não que ele negasse a religião, mas faz distinção entre o cristianismo e o catolicismo. O paganismo, em vez, faz com que os italianos vivessem a vida, é com o paganismo que a Itália era aquela força. E com o catolicismo os italianos perdem tudo isso. É um ponto discutível, em que se deve pensar, se, para ser religioso, se deva esquecer os deveres da religião. Il Principe Quer dizer: senhor absoluto. Não se entenderia esta obra se não se lembrasse do significado. Machiavelli, quando usa a palavra príncipe, não a entende num sentido democrático, mas latino, o homem que impõe a uma nação a sua vontade. Esta obra foi escrita em 1513, isto é, no período fecundo da atividade literária e filosófica de Machiavelli, quando o encontramos exilado em San Casciano. É uma obra bem pequena, formada de vinte e seis capítulos, sendo o último um capítulo cheio de fé, de entusiasmo, porque é o capítulo com o qual ele convida um príncipe italiano dos Medici a levantar os destinos da Itália. Uma das razões de toda sua produção histórica, filosófica e literária foi justamente isso, ele procurou estimular os políticos italianos a unificar a Itália. A maior amargura de Machiavelli era a de ver que os italianos eram os herdeiros legítimos de Roma. Diante desses blocos fortes no século XVI, ele via a Itália como uma ovelha devorada pela França, Espanha e Alemanha. Toda a sua obra era para acordar os italianos a examinar, a espelhar-se na História de Tito Lívio, para ver o que os seus ancestrais fizeram. Mas isto nunca aconteceu. É por esta razão que Machiavelli fica na Itália como uma das Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos colunas da História. Dante falando de Império e Machiavelli, de Estado: são os dois precursores do ressurgimento italiano. Os italianos sempre se lembrarão de Dante e Machiavelli. Ele não foi um simples literato. Escreveu para ser prático, para acordar os italianos, para concluir melhor isso. II Principe termina poeticamente, com versos de Petrarca à Itália: “Virtù contro a furore / Prenderà l’arme, e fia el combatter corto”.29 E a luta será brava, porque o antigo valor ainda não morreu nas almas dos italianos. Então, no vigésimo sexto capítulo Machiavelli faz essa apóstrofe, convidando-os a tornar nação a Itália. Porém, se na Itália tudo isso tem um sentido particular, no mundo a razão da fama de Machiavelli não está nisso. Está em vez nos conceitos políticos que ele expõe nesta obra: 1. Fala da origem do Estado, do modo como se deve conquistar um Estado, como se deve considerar um Estado, defendê-lo. Os primeiros sete ou oito capítulos falam somente disso; 2. Fala da milícia, das tropas. Sustenta como experiência pessoal que um Estado não se pode conservar sem milícia própria. Nunca os italianos poderão surgir servindo-se de outros soldados que não têm, com o mesmo, amor. Deste modo, se pode dizer que Machiavelli é o fundador do exército nacional;. 3. Fala das virtudes que deve possuir o chefe de Estado, o príncipe. O termo virtude não tem nada de moral, não tem nada de religioso, o que aparece com o Evangelho, com o catolicismo. Virtude é uma palavra puramente clássica e serve-se dela porque vem do latim: virtus, virtutis é o abstrato de vir: o homem, o varão. Então é: energia, e não todos os conceitos que o cristianismo soube incluir nesta palavra. É a capacidade de atinar, uma ideia que ele tem na cabeça, capacidade realizadora. A moralidade está justamente nessa confiança entre o dizer e o fazer, entre o pensar e o agir. Um homem é virtuoso pelo que ele realiza. O homem de Estado não olha se mata alguém ou não, mas olha se realiza o que quer realizar. O seu valor está na atuação, não importa o meio, pois, se ele realiza o plano, ele é moral, se não, é imoral. É um conceito triste, feliz e doloroso, pois não podemos admitir que um ser mais forte liquide os outros, que il fine justifica il mezzo. Machiavelli diz: “io non guardo la realtà como dov’essere”. Ele se põe nas coisas como são, não como deveriam ser. Há algo na nossa consciência que Machiavelli não conheceu. Há algo que grita e que reage e que sofre se fazemos algo que não está bem. Ele quer que o homem sufoque esta voz. Temos que sufocar o naturalismo. 29 O valor consciente reagirá contra o furor bestial dos adversários. 147 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 148 Qual o animal símbolo do Principe de Machiavelli? La volpe e il leone. O príncipe deve ser esse binômio: astucioso e fortíssimo; quando precisa descobrir, torna-se raposa, quando deve derrubar, torna-se leão. É assim, mas não deveria ser, ainda que seja, não deveria ser. A Inglaterra apreciou a Machiavelli, adotando seus conceitos. Com sua habilidade, impõe sua vontade. Mas nós devemos ir num sentido político muito mais humano, aberto, delicado, baseado nos direitos e no dever, e suas restrições poderão ser sentidas hoje. Naquele então, todos o faziam sem ter ideia teórica do que faziam; 4. Fala do conceito de fortuna.30 Para os gregos, um personagem muito alto ao qual eram devidos os acontecimentos humanos era o acaso. Jove obedecia à necessidade, aos fatos. Depois cria o conceito de fato. O cristianismo substitui-o com a providência, o mistério de Deus, mas também ainda hoje há um outro conceito ao qual nós atribuímos o acontecer das coisas: falamos de azar, de acaso. Muita coisa depende do acaso. Machiavelli diz então o que é fortuna, que ela coincide com a nossa fraqueza, pois ela é subjetiva e não objetiva: “a sorte está em mim, não fora de mim; se eu quero, nenhum acontecimento me pode estragar”. Nada pode impedir ao homem a realização da própria subjetividade. Então o valor do homem está em saber se inserir nas ocasiões favoráveis da História. O valor do homem está em alcançar esta oportunidade. O valor do homem escraviza a fortuna. Então, no Principe ele compara a fortuna com uma bonita mulher, que gosta mais de um homem forte, vigoroso, corajoso. Por isso a fortuna gosta de príncipes, porque são como o leão. O homem cria situações favoráveis para seu plano, e não há loteria nenhuma que lhe faça ser feliz, não é a sorte que lhe dá esta ou aquela vitória. E aqui temos o conceito heroico do homem, mas sobretudo esse valor individual e heroico do homem. Individualidade e personalidade são coisas diferentes. Machiavelli é o pai de Nietzsche. Nas Considerazioni, faz o comentarista. No Principe, apresenta uma mensagem: é o sugeridor de um programa de ação. Para realizar esse programa, esta obra deveria ser considerada como um vade mecum, obra que se leva consigo. Dell’arte della guerra (Dialoghi) Se nas duas obras anteriores, é comentarista e sugeridor, nessa terceira obra política (1519-1520) temos o meio para realizar isso. Fala 30 Sorte, acaso. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos da força do exército, que deve ser o instrumento sobre o qual se devem apoiar os desígnios de um príncipe. É interessante dizer que Machiavelli, tão avançado em ideias, se demonstrasse passadista no fato de não ser favorável à criação da artilharia. Ele contava muito mais com a infantaria e repete aqueles conceitos de exércitos nacionais. Os Dialoghi concluem a parte política de Machiavelli. Quer dizer que, se as Considerazioni continham um comentário sobre Tito Lívio, no Principe expôs suas teorias, e nos Dialoghi indica qual é o meio para a realização da guerra. É um conjunto de sete livros em que imagina uns diálogos entre capitães de ventura, em reuniões nas quais falavam sobre o exército, sobre a artilharia, cavalaria, infantaria, e Machiavelli aproveita desses ensinamentos para indicá-los ao príncipe. É uma obra técnica. O importante para nós leitores que não somos oficiais é saber que Machiavelli também afirma a necessidade das milícias nacionais e faz questão de dizer que os cidadãos devem amar a pátria como amam a própria família. Temos de defender e libertar a pátria. É um grito para o militarismo, para a força, e que ficará por muito tempo esquecido na Itália, mas quando ela tem necessidade de sentir-se livre, no século XIX, lembrar-se-á de Machiavelli, quando ele terá importância. Ele realiza um sonho no século XIX, que se afirma já com Alfieri, antes do Romantismo. Obras históricas de Machiavelli La vita di Castruccio Castracani Também como histórico, Machiavelli foi um filósofo. O valor de suas obras históricas está no fato de que ele interpreta os acontecimentos históricos na base de sua teoria e princípios. A História torna-se uma prova da verdade de suas teorias. Castruccio não é descrito como o que ele realmente foi, isto é, capitão de ventura. Guiava tropas pagas para este ou aquele senhor, sem idealismo. Conquistou, venceu, foi derrotado. Machiavelli narra tudo isto fazendo ver Castruccio como se fosse um personagem que encarnasse os seus conceitos e, com sua coragem de chefe, é o típico exemplo do príncipe como Machiavelli o sonhava. Esta história é a idealização de Castruccio. Não temos os acontecimentos como o são, mas temos a subjetivização da História, a intervenção dos princípios de Machiavelli. Ele procura ver sua própria 149 150 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos teoria nesta obra. Então, as obras políticas representam suas teorias e as históricas, a história realizada das suas teorias. Istorie fiorentine É uma obra voluminosíssima, em que Machiavelli descreve a história de Florença, que é antiquíssima, pois vem do período de Roma, e Catilina, que destruiu Florença. Mas a história de Florença tornou-se mais importante em 1466, quando se transferiu para Florença toda a história italiana, todos os acontecimentos. A política teve uma importância enorme, devido à imensa cultura de Florença e à sua colocação no centro da Itália. Machiavelli vai descrevendo tudo até a morte de Lorenzo de’ Medici em 1492. O importante são os últimos cinquenta anos, que em parte são acontecimentos que ele ouviu ou pessoalmente viu, de 1469 em diante. Então, o enfraquecer-se do exército italiano, e Machiavelli tenta fazer os italianos verem o que era preciso para impedir a invasão da Itália. Esta obra não foi escrita pela história nem pela boa linguagem, também não é uma obra encomiástica. O seu objetivo é de analisar a história de Florença e ver quais são as situações dos séculos XV e XVI, para que seja possível um reerguimento da própria Itália. Ela tem o mesmo valor de Castruccio Castracani, pois é uma visão de acontecimentos históricos na base de uma teoria política. Obras literárias de Machiavelli La Mandragola (comédia), La Clizia (comédia), Belfagor (novela), I Capitoli, Canzoni, Sonetti, Canti carnascialeschi, entre outras. La Mandragola Calímaco, um moço bonito, inteligente, rico, gosta de uma moça chamada Lucrezia e prepara um plano para fazer com que ela também o ame: manda presentes à mãe da moça, Sostrata, que é muito boba. Tinha um servo de grande habilidade, Ligúrio, que diz a Lucrezia como ele está louco por ela. O marido de Lucrezia é muito rico e bobo, Micchia. E como ela sempre vai à igreja, ele se dá com o frade Timóteo, e por fim realiza seu plano, fazendo-se amar por ela. Calímaco realiza seu plano como um príncipe realizaria seu plano Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos político. Esta comédia não tem o sentido torpe do século XVI, mas um sentido amargo: que plano, que firmeza, que frieza com que Calímaco realizou isso. É uma comédia importante na literatura italiana, porque no século XVI há um certo adormecimento do espírito religioso. Espiritualmente a Renascença é uma polêmica, não é tão cristã como a Idade Média, interessa-se mais pela cultura, e o problema religioso fica adormecido. Os italianos ficam hipócritas religiosamente até o século XIX, que faz com que muitos voltem ao catolicismo. Mas no século XVIII a Itália foi muito hipotética, interessando-se mais pela cultura, ciência e arte. Temos o Consiglio di Trento (1541-1560), em que houve o imenso movimento de reação da Igreja contra a Reforma. No século XVII há a inconsciência e a imoralidade, que se revela em Manzoni com I promessi sposi, obra dominada pela imoralidade. Sendo fraco o espírito religioso e moral no século XVI, é evidente que a literatura transcendeu, caindo em manifestações como o teatro, as farsas, o drama. Toda esta literatura é muito fácil, não é muito pura; há um gosto pelo macabro, pelo lúgubre, imoral, fatos sensuais, como em Pietro Aretino, de onde a palavra “aretinesco”. Então, La Mandragola tem este enredo mais ou menos comum no teatro da Itália. Porém, o espírito dela é bem diferente. É de uma amargura e realismo extraordinários. A amargura deriva do realismo com que Machiavelli observa as relações entre os indivíduos. Observa com a mesma objetividade com que observava as relações entre os Estados. No mundo sempre haverá pobres e ricos, fortes e fracos, sinceros e falsos. O mundo é feito destes opostos, e quem ganha não é a virtude, mas o vício, a força, a corrupção. La Clizia, uma outra comédia de Machiavelli, não é importante. Belfagor Há uma revista dirigida por um dos maiores professores de literatura italiana da Universidade de Pisa, Luigi Russo, intitulada Belfagor. É importante essa novela. Tem o nome de um diabo de Dante, que aparece nos Bolge, no oitavo círculo. É justamente este diabo que aparece na novela. Machiavelli imagina que este demônio volta à Terra e que a condição de voltar seja a de casar novamente com a mulher dele, e a isto ele prefere o Inferno, deixando de sonhar com a beleza da Terra e o que poderia voltar a fazer. Machiavelli põe em evidência os defeitos, o egoísmo da vida conjugal. Tem um valor misógino. Não é justa essa superioridade, mas é uma obra muito viva polemicamente, e é por isso que Russo a adotou 151 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 152 como título de sua revista de crítica literária. Esta obra é a prova de uma qualidade fantástica que faz com que se pense na fé. É um grande artista. O valor literário está em que esta obra não foi escrita segundo os ditames do século XVI, com a perfeição de linguagem da Renascença, em que se procura uma idealidade linguística, em que se procura igualar o Classicismo. Em vez, Machiavelli se distingue do aulicismo, dos anseios de perfeição, justamente pela vivacidade, cheio de anacolutos, abandona verbos, esquece o sujeito. Essa improvisação é importante, porque o seu espírito literário é aceito pelo Romantismo italiano pelo valor dado à popularidade, pois escreve com uma ansiedade que não lhe permite ir atrás de regras. Machiavelli é a vítima do maquiavelismo dos homens. Não foi ele quem inventou isso, mas foi inventado pelos homens. Devemos libertar a sua figura de qualquer impressão precipitada e desfavorável. Ele não é cruel, não ensinou aspectos ruins, não sugeriu ações ruins a fazer. É um dos homens mais solidamente morais da literatura italiana. É difícil no século XVI achar uma figura tão amargurada, pessimista como Machiavelli. Essa amargura não era devida ao seu sentimentalismo, mas Machiavelli era pessimista porque a realidade não poderia despertar nele um sentimento de otimismo. A vida, pelo que ela é, é bem o contrário do que ela deveria ser. Ou nós estamos com a vida como ela é ou como ela deveria ser. Ou seremos Dom Quixote ou sabemos que a vida é uma difícil luta, é responsabilidade, feita de contradições, e o que infalivelmente ganha é a força, a potência. Machiavelli descreve a realidade como é: a raiva, o desejo, a ambição dos senhores. Ele reduz todas as ambições do Estado a um defeito individual do príncipe. É uma análise também dos homens, com os seus limites, apresentando esse ecce homo. Todas essas coisas que ele sugere com sua obra e que andam por aí comentadas como os princípios de Machiavelli ele as disse não com o espírito que hoje se dá a essas teorias. Ele as disse com amargura, com uma insatisfação diante dessa realidade que ele descrevia. Ele queria que a vida fosse outra coisa, mas é uma utopia. Então descreve a realidade, mas não que essa realidade deva ser sempre a mesma, embora acredite que nunca será diferente, é por esta razão de amargura. Os ingleses disseram dele, na Igreja de Santa Croce, onde o primeiro monumento à direita é dedicado a ele: tanto nomini nullum par elogium.31 31 A um tão grande nome nenhum elogio é par. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Torquato Tasso (1544-1595) Antes de falar em suas obras, antes de expor sua vida infeliz, cheia de acontecimentos e amarguras deste poeta italiano do século XVI, que por muitos aspectos é considerado um dos pré-românticos italianos, devemos dizer o que Torquato Tasso representa no quadro da literatura italiana da Renascença, É preciso dizer que com ele desaparece aquela confiança no homem e na inteligência humana, que eram próprias da Renascença. Para ele a vida não é mais imaginosa, fabulosa, não é mais prazer, realização, confiança. Com ele acaba aquele otimismo que era próprio da espiritualidade da humanidade da Renascença e do Humanismo, aquele heroísmo de Machiavelli, a serenidade de Leonardo, aquele idílio de Poliziano, o equilíbrio de Leon Battista Alberti, todas essas figuras cujas obras nada mais faziam do que idealizar o homem na Terra. Tudo isso desaparece com Tasso. Sua poesia é cheia de dúvidas e turva, amarga, cheia de sombras. Não é mais uma poesia descrevendo luminosamente os aspectos da nossa alma, mas é, em vez, pesquisando, analisando a nossa alma. Conta o contraste entre o real e o ideal, denuncia aquela confiança da Renascença e faz com que no poeta sejam mais evidentes os aspectos tristes e preocupados da nossa alma. Se os outros poetas, ou eram líricos, idílicos ou heroicos, Tasso é, em vez, elegíaco: é das confissões e desabafos. Se para os outros havia necessidade de uma serenidade, de rios, de natureza, de matas, para ele havia necessidade de luar, de solidão, de um dobramento em si sem necessidade de outros elementos que o acompanhem nessa solidão, meditação e amargura. Costuma-se dizer que com ele a Renascença italiana manda a sua última grande voz poética. Melhor seria ainda dizer que com ele a Renascença italiana acaba com o movimento literário e se percebe nele uma insatisfação que não estava presente na Renascença italiana. Se não é justo dizer que Tasso é o filho da Contrarreforma, é justo dizer que com ele temos outras tonalidades, uma humanidade muito mais íntima, amarga e moderna. É por isso que muitos críticos querem ver nele um prenunciador do Romantismo, um poeta que foi objeto de uma infinidade de simpatias em todo mundo. A literatura francesa e inglesa têm obras sobre ele. Todos falaram deste poeta, crítico, amargurado, pesquisador da própria alma, das nossas ansiedades interiores. Sua vida é digna de um romance. Porque Tasso era de uma cultura extraordinária, um dos homens mais dignos do Humanismo e da Renascença. Era de uma beleza extraordinária, moço, 153 154 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos vivo, inteligente, culto, elegante, delicado, nobre, todas essas qualidades maravilhosas. Era um orador extraordinário, um homem de iniciativas que maravilhavam. Tinha nascido em Sorrento, tinha a palavra fácil, que encontrava nas cortes. Foi o mais infeliz dos poetas italianos, porque ele ficou louco e sua loucura é uma tristeza que arrepia, porque na serenidade da Renascença vê-se esse homem que prenuncia Dom Quixote. Tem medo da poesia, da política, tem medo dos amigos, desconfia de tudo e acaba louco. É a única figura que impressionou Giacomo Leopardi. Sua loucura era alternada, o que lhe permitia escrever em certos momentos. Um homem amargurado, pobre, e que entretanto estava sem família, sem ser amado, cheio de dúvidas e de crises interiores. Sobretudo nas obras comove-se profundamente pela sua vida grande. Não há nada da serenidade de Ariosto. Com Tasso vê-se essa incerteza, essa dúvida que é a dos homens de hoje, esse querer e ficar católico porque os avós foram, e não estar satisfeito com nada. Traz consigo uma tradição cultural, mas que não lhe dá nada. Isso coincide com a Contrarreforma, e ainda por essa razão é nobilíssimo, porque a Contrarreforma, querendo defender os dogmas da Igreja, querendo arguir o protestantismo e estabelecer uma infinidade de dogmas que salvaram aparentemente a Igreja, mas não renovaram o espírito religioso da Igreja. Tasso é vítima da Reforma e da Contrarreforma, quer dizer, nunca na poesia é possível achar um poeta verdadeiramente grande que não escreva o que sinta, que não vibra por um ideal. Mas o dele não é um verdadeiro. A cultura da Reforma não lhe basta, a Contrarreforma não o satisfaz, pois surgirá com o Romantismo. Tasso tem na poesia a abertura de uma alma que não é serena. Vida de Tasso Nasceu em Sorrento, em 1544. Já haviam falecido Ariosto e Machiavelli, já tinham desaparecido as duas maiores expressões da Renascença italiana, um representando a arte e o outro, a Filosofia, o pensamento. Seu pai era poeta também, e se chamava Bernardo Tasso, autor de um poema Amadigi, que ele queria escrever para dar à Itália uma glória do gênero épico, obedecendo às regras de Aristóteles. Mas é um Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos péssimo poeta, apesar de ser muito fiel e honesto. A mãe de Tasso é Porzia de Rossi, nobre e nascida na Itália setentrional, em Bergamo. Seu pai era secretário de um príncipe que se chamava Sanseverino e amava esse homem, que era liberal, culto, adversário da dominação espanhola em Napoli. Era tão fiel que, quando em 1552 Don Pedro di Toledo, que era o vice-rei de Napoli, representando os aragoneses, declarou rebelde o príncipe Sanserverino, condenando-o ao exílio, Bernardo Tasso o acompanha, deixando em Sorrento a mulher, Torquato e uma filha. Primeiro período (1544-1565) Se há poetas dos quais se deva lembrar a vida, Tasso é um daqueles em que é indispensável conhecer a vida. Nasce em 1544. Em 1552, isto é, quando tinha oito anos, seu pai abandona a família para seguir o príncipe, que tinha sido expulso. Ele não teve então a presença de um homem culto, de um afeto firme em sua casa. Em 1554, com dez anos, ele abandona sua família e alcança seu pai em Roma, vivendo com ele no exílio. Tasso, que num primeiro momento vive sem o pai, agora está sem a mãe, perdendo o ambiente materno. Logo depois, com doze anos, em 1556, a mãe morre, ficando sem a mãe, e nunca mais poderá ver sua irmã, a não ser em 1578, quando está alienado e chega à sua casa com uma barba comprida, dizendo que conhece a Itália, para procurar a irmã, dizendo que havia morrido só para ver se alguém ainda o amava. Em 1557, Tasso vai junto aos pais da mãe em Bergamo. Em 1560, Tasso abandona Bergamo e vai viver em Urbino, uma cidade de Guidobaldo de la Rovere, onde estudou com o filho dele, Francesco Maria. Agora começam os estudos verdadeiros. Em 1561 ele vai estudar Direito em Padova. Porém, não gosta de Direito e se dedica aos estudos literários, tanto assim que em 1562, com dezoito anos, ele publica o seu primeiro poema, Rinaldo, em oitava rima, que canta a mocidade desse cavaleiro. Em 1565, Tasso começa sua vida de cortesão, fazendo parte da corte. Segundo período (1565-1576) É o período mais operoso, mais ativo e mais feliz da vida de Tasso; moço, bonito, culto, organizador de festas, poeta, admirador, escritor de sonetos, ótimo esgrimista, teve neste ambiente de Humanismo momentos cheios de atividade. Em 1565, começa a sua vida na corte, servindo primeiro o cardeal Luigi d’Este. Com este, vai em 1570 a 1571 viajar pela França, conhecendo a literatura francesa. Em 1571, deixa o cardeal e torna-se secretário do duque Alfonso II d’Este. Em 1573, Tasso escreve uma de suas obras mais famosas, L’Aminta. 155 156 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em 1575, escreve sua maior obra, La Gerusalemme Liberata, dedicada ao duque Alfonso II. Logo depois da publicação dela é que o poema começa a ser conhecido na Itália. Nota-se em Tasso um desequilíbrio: primeiro, como esgotamento mental; segundo, como razão de caráter literário-religioso. A literatura do Humanismo não satisfaz os escritores amargurados como ele. Vivia na corte em que Renata de Valois (protestante) fazia propaganda do protestantismo, tornando as dúvidas de Tasso ainda mais agudas. Ele então é acusado pelos críticos. Além disso, havia uma razão psicológica: Tasso não confiava na amizade dos outros, tinha medo de qualquer crítica, pois esta o diminuía. Pede então para ser examinado, por duas vezes, num exame da Inquisição. Mas os críticos foram muito ferozes com ele, sobretudo Iperone Iperoni e C. Scipione Maffei, que acabaram com sua vida. Não era poeta épico, mas elegíaco. Além dessa inquisição em 1577, Tasso falava com a irmã de Alfonso, Lucrezia (duas recíprocas simpatias), mas percebeu que atrás de uma cortina havia a sombra de um servo. Lançou então uma faca contra esse servo, o que causou um grande escândalo. Foi então que, fechado no convento de San Francesco, a sua dor, melancolia e loucura foram aumentando. Mais tarde, saiu pobre e foi a pé de Ferrara a Palermo. Lá, vestido pobremente, apresentou-se em sua própria casa, encontrando sua irmã, à qual perguntou sobre sua vida, se tinha irmão, pais. Ela então contou que tinha um irmão que havia ido a Roma e que não tinha mais dado notícia. Tasso diz então que conheceu esse moço e que ele, depois de um escândalo, morre. Sua irmã então cai em terrível pranto. Tasso então vê que alguém ainda o quer e declara sua verdadeira identidade. Mais tarde, abandona outra vez Palermo e, a pé, chega a Torino. Mas seu sonho foi sempre Ferrara, seu paraíso e seu inferno. Paraíso porque foi onde passou seus anos mais felizes. Inferno porque foi lá que teve suas maiores crises interiores. Em 1579, chega a Ferrara. Chega no momento em que Alfonso, ficando viúvo, casa pela segunda vez, com Margherita Gonzaga, princesa de Mantova. Nesta ocasião chega fazendo barulho na corte e vê que ninguém o liga. Ele, que tinha inúmeras obras, ninguém o convida a entrar, e seu desespero é maior ainda. Tasso sabe de segredos que poderiam atirar toda a Igreja contra a corte. É preso e posto na cadeia durante sete anos: 1579–1586. Nesta cadeia, inicialmente recebeu os piores tratamentos e, por essa razão, muitas biografias falam de falta de reconhecimento por parte de Alfonso II. Entretanto, não é verdade que Alfonso desejasse isto. Tasso mesmo aí escreve inúmeras obras, pois sua loucura era alternada. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em 1586, Tasso teve a autorização de Alfonso de sair da cadeia e ir morar em Mantova, junto ao sogro de Alfonso. Tasso não gosta de Mantova, foge e vai para Roma, a cidade dos seus últimos anos. É em Roma que, no meio de sua loucura, trai sua obra, escrevendo uma contradição de sua grande obra, para ser a favor dos críticos. Em 1595, tem certeza de ser coroado poeta no Capitólio. Entretanto, no mesmo ano, no hospital de Sant’Onofrio, falece. Este hospital está situado em Gianicolo. Obras de Tasso Rinaldo (1562), L’Aminta (1573), La Gerusalemme Liberata (1575), Torrismondo (1586, tragédia), Epistolario, Rime, Dialoghi e Gerusalemme Conquistata (1592). L’Aminta É um drama pastoral, breve, feito de cinco atos curtos, que são precedidos por um prólogo, que está na boca de Cupido. São fechados por um epílogo feito por Cupido e Vênus. Seu conteúdo é: um pastor romântico, Aminta, ama, tinha uma paixão ideal, simples, por Silvia, admiradora de Diana, que vive nos bosques caçando e é inacessível ao amor. Um dia Aminta recebe a notícia de que um lobo havia comido Silvia. Esta notícia, apesar de não ter sido boa, pareceu ser realidade, pois foram encontradas suas vestes, espalhadas pelo bosque. Desesperado, joga-se num precipício, mas uns galhos o protegem e ele não morre. Quando Silvia sabe que a paixão de Aminta por ela o tinha levado ao suicídio, apaixona-se por ele. A obra acaba com o casamento. Esta obra foi representada durante a primavera de 1575 em Belvedere, uma ilha do Pó perto de Ferrara, onde os Estensi iam passar o verão. O conceito é que Aminta é o drama pastoral em que Tasso descre ve a passagem da adolescência à mocidade. Qual é o elemento que ma nifesta esta passagem? Como se concretiza esta passagem? Diz-se que a humanidade existiu sempre e sempre se realiza através do amor. Por isso, neste drama pastoril Tasso descreve o evoluir psicológico de Silvia, afastada, alheia às simpatias de Aminta, e que num segundo momento, quando se espelha nas águas do rio, por uma autoconsciência e por um 157 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 158 sentido de emoção diante do drama de Aminta, é que ela aceita essa lei natural da vida que é o amor. Então é um drama pastoril que se fecha ainda otimisticamente. Embora aqui já se esteja longe da atmosfera da Renascença, não podemos dizer que haja pessimismo, amargura, contraste. O amor é uma lei natural à qual nem Silvia pode subtrair-se. Por isso, se fecha otimisticamente, embora tenha momentos de tragédia; apesar disso, o fecho é otimístico. Diante dessa sociedade culta e burguesa do século XVI, a sua linguagem adquire dois caracteres que são dele, isto é, a musicalidade e a sombra, uma tonalidade de bemol. Quanto encanta sua música, quase como a técnica de Petrarca. Tasso não é transparente, mas é mórbido e musical, íntimo, cheio de sombras. Os desabafos de Aminta são lindos. Tudo isso é o prenúncio do Romantismo, do melodrama, preparando, no fim do século XVI e no século XVII, o melodrama, pois não foi escrito com a função de ser citado, mas para ser cantado. Temos então Vivaldi, Scarlatti, com palavras e música ou música e palavras. De todos esses artistas, o maior no século XVIII é Metastasio. La Gerusalemme Liberata É um poema épico, formado de vinte cantos. Os versos são em decassílabos e rimados de oito em oito, formando oitavas. O assunto está preso num período histórico que se refere às Cruzadas, nos últimos dias do ano 1099. Os países europeus, com o início do caráter religioso, jogaram-se no Oriente, com uma atitude comercial-econômica. A obra tem uma importância pelo caráter mercantil. Tasso declara num seu Discurso sobre o poema épico32 qual a razão pela qual vai buscar seu assunto em 1099: ele sempre quis criar para a literatura italiana um gênero que os italianos não possuíam, isto é, o poema épico. Então, Tasso seria o criador do gênero épico na Itália. Essa foi sua mania, que criou nele depois de 1585 um complexo que o levou à loucura. Diz Tasso que o poema épico só poderia ser escrito quando ao poeta fosse possível entrar num assunto com uma percentagem mínima de imaginação e quando não fosse permitido um máximo de imaginação. Tasso escolhe um fato que não fica nem muito longe de sua existência nem muito perto. Ele nega a arbitrariedade da imaginação de um Ariosto, mas não sabe conceber a poesia épica como unicamente baseada na História, pois o poeta sempre deve acrescentar algo. Tasso publicou, em 1587, I discorsi dell’arte poética, e, em 1594, I discorsi del poema epico, as duas obras a respeito das discussões sobre os poemas heroicos ou épicos. 32 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A literatura grega e latina tiveram poemas épicos, mas eles eram pagãos. Tasso, poeta italiano católico, pensava que um motivo épico só poderia ser de um acontecimento histórico de caráter religioso. Há uma cruzada, guiada por Goffredo di Buglione, que possui todos os caracteres de herói, de rei, de imperador, de idealista, uma espécie de Aquiles e de Eneias. Empolga a todos os outros. Ele, após haver ocupado cidades como Damasco e outras, prepara-se para conquistar Jerusalém. Mas neste momento as forças hostis contra a religião cristã e as forças divinas se põem contra a realização de Goffredo di Buglione. Começam então dificuldades que o impedem de libertar Jerusalém. Uma mulher, Armida, uma maga bonita, apaixonada e infeliz, pois o pai dela, Idraote de Damasco, tinha perdido o reino e ela então estava perdida, um dia ela vai ao exército cristão pedir a Goffredo ajuda para voltar a Damasco. Depois de uma discussão, ele adere a esta mentira, permitindo a dez cavaleiros acompanhá-la. Entretanto, muitos diante de sua beleza vão atrás dela, de modo que o exército perde os melhores cavaleiros. Rinaldo é um dos melhores combatentes do exército, mas, pelo seu caráter impulsivo, ele deve afastar-se e é outra força que Goffredo perde. Há também um mago entre os pagãos, que encanta as selvas, e os cristãos não podem fazer escadas para agredir os mouros. Mas depois intervém a vitória para as forças aliadas: surge um grande combatente cristão, Tancredi, que é sentimental, embora forte. Está enamorado de uma pagã, Clorinda, que é uma mulher bonita, mas violenta. Quantos laços interiores e escondidos há entre os inimigos, que são amigos por outras razões. Uma pagã, Erminia, ama Trancredi, que não a ama. E tudo isso desmancha aquele caráter épico. Tasso escreveu, em vez, um poema elegíaco, de dúvidas, de contrastes, de profundo conhecimento das amarguras; ele escreveu o que se agita nas almas das pessoas, em contraste com a realidade. Tudo isso afasta sua poesia da serenidade. Chega a intervenção dos arcanjos, e um deles desencanta o mago Ismeno, e então os cristãos poderão cortar as árvores. Clorinda morre, matada pelo homem que a amava, Tancredi, que não a reconhece. É a maior ottava da literatura italiana do século XVII. Tudo isso cria uma tradição que faz que só se descrevessem as mulheres morrendo, desde Beatriz, Laura, Francesca, Silvia, entre outras. As melhores poesias cantam mulheres que estão morrendo. Todas elas, ao morrer, diante do amor e da beleza, souberam inspirar-se sobretudo na fugacidade da vida, pois os italianos não souberam encontrar a mulher até uma idade avançada, vendo-a como mãe ou tornando-a sedutora.Por fim, os cristãos acabam ganhando. 159 160 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O espírito desta obra está na imensa diferença entre o Orlando Furioso e a Gerusalemme Liberata. A primeira canta o amor natural, instintivo, como uma lei, e isso é um pouco de Tasso na Aminta. Aqui o amor não é felicidade, alegria. O homem não se acha feliz, porque o amor é irrealizável, então torna-se uma tortura, uma infelicidade. No interior da Gerusalemme Liberata, o amor é como motivo de infelicidade, porque o amor é um sentimento que não se realiza. É verdade que o poeta descreve fatos que mostram isso: Tancredi ama Clorinda, mas Clorinda não ama Tancredi, Erminia ama Tancredi, mas este não a ama. O amor não é causa de alegria, mas de infelicidade. Então, a paisagem de Gerusalemme, a humanidade e espiritualidade mudam de tom. Qual era o tom do Orlando Furioso? Era de alegria, de otimismo, tudo é generoso. Em vez, aqui o amor não produz mais alegria, ventura, mas torna passivos, tristes, os que amam. Temos então não uma natureza aberta, não um sol iluminando a natureza, mas a solidão, os rios, a noite, a escuridão, porque a noite convida a gente a pensar, serve de fundo às confissões e à solidão, no meio de pastores. Quando Erminia desabafa, quando sabe que Tancredi está ferido, é delicado então contar como ela veste as armas de Clorinda e, mascarada, vai tratar das feridas de Tancredi. Mas as armas de Clorinda deixam os soldados desconfiados que seja Clorinda mesmo, não a deixam entrar e a perseguem, e então Erminia, sem mais guiar o cavalo, acaba numa planície, no meio de ovelhas, no rio Jordão, ouvindo ao longe uns pastores. Ela se avizinha a eles e conta ao pastor a sua vida infeliz. Sua figura é a autobiografia ideal de Tasso. A outra é Tancredi. É um tema elegíaco. Se Ariosto é a expressão alta da Renascença musical, Tasso é o filho de Petrarca, com a diferença que Petrarca é feliz em sonhar e Tasso é infeliz, é amargura sem esperança, sem solução. Por isso, prenuncia os elementos da literatura italiana do século XVII. Então vale a humanidade, esses contrastes, essa insatisfação, esse apego a algo que não se realiza. Porém, no poema ele tinha sido escrito com uma finalidade épico-religiosa. Mas o motivo existe do começo ao fim, e aí se encontra a retórica de Tasso. Ele vibra nos momentos de confissão, de sonho, de saudade. De forma que a Gerusalemme é um poema menos dinâmico do que o Orlando Furioso, com o seu dinamismo; em vez, na Gerusalemme está a arte nos seus parênteses, nas suas elegias, quando deixa os assuntos e desabafa seus personagens. É verdade que um crítico disse que é o primeiro romance, porque tem todos os caracteres de um romance. As figuras dos atores nada têm de luminoso, mas o que interessa é a alma. Se os heróis do Orlando Furioso são claros e inconfundíveis, os da Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Gerusalemme são confundíveis, também os caracteres românticos o são, e a obra se fecha como visão psicológica dos personagens, cujas almas são todas torturadas. É a imagem de uma nova humanidade que sofre. Tasso é a última grande voz do século XVI da literatura italiana. É a revelação das insuficiências que se devem reconhecer da Renascença italiana, porque, se o Humanismo e a Renascença foram importantes, faltava-lhes uma dose de fé, uma razão, um motivo que pudesse criar uma energia. Tasso é vítima dessa volta de energia, e então, prenuncia o Romantismo. Ele então fecha um período e, juntamente com Petrarca – aos quais um outro período deverá dirigir-se –, como os precursores melancólicos do Romantismo. A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVII O século XVII na literatura italiana é um século que, apesar dos últimos estudos que procuraram valorizar os aspectos positivos deste século, é um século em conjunto considerado de decadência. Nos últimos anos depois de d’Annunzio, sobretudo depois do período dos futuristas e da poesia de Papini,33 Ungaretti34 e outros, procurou-se explicar, para a poesia italiana valorizar o que de positivo havia no século XVII e o que tinha sido negado até então. A crítica literária italiana do século XVIII, com Baretti e De Sanctis, sempre procurou admitir que foi um século de decadência. Agora há uma tentativa de revalorizar o século XVII, mas tirando-se a comédia da arte, as ciências, a historiografia, a literatura italiana é muito inferior às tradições de Dante, Petrarca e Boccaccio, muito inferior ao nível clássico da literatura do Humanismo e da Renascença. Por que ela deve ser considerada de decadência? Por duas razões: 1. Os poetas do século XVII cantaram sem sentir profundamente o que cantavam. Não tiveram grandes ideais, não sentiram anseio de caráter religioso, moral, não sentiram as grandes idealidades que devem sempre estar como alicerces da poesia. Não é possível uma literatura onde não haja grandes sentimentos, ideais e consciência. É verdade que 33 34 Giovanni Papini (1881-1956). Giuseppe Ungaretti (1888-1970). 161 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 162 eles não representam e não definem e não dão o valor definitivo de uma obra de arte se não surgem sobre um ideal e persuasão. E o século XVII não apresenta poetas que sentiram esses ideais, tanto num plano nacional como social. Não há aspiração de justiça, de religião. A razão ficou em conformismo, e poucos poetas ficaram evidentes nessa crise. Se se quisesse julgar pelo conteúdo das obras, deve-se dizer que os poetas nunca vão além da sensualidade, da musicalidade. Morboso de exterior e poroso de sentimentalismo; 2. O caráter literário nada mais é, do ponto de vista de forma e expressão, do que a continuação do Humanismo e da Renascença, porém com a diferença que, como movimento literário, o século XVII, apesar de não ter sido um grandíssimo século, como o do Humanismo e da Renascença, sempre teve grandes, nobres e últimas concepções, aquela aspiração de equilíbrio, a uma forma que fosse clássica, que fez com que aquela literatura, embora não cheia de sentimento, não vibrando, embora tudo isso, sempre fosse uma grande literatura, pela serenidade, pelo gosto, pelo sentido de perfeição, pelos seus ideais de perfeição. Nos séculos XV e XVI há também uma filosofia que se conclui com Machiavelli, isto é, uma visão ideal da realidade, uma visão magnânima do homem. Sem falar dos filósofos que continuam no neoplatonismo com Giordano Bruno e Tommaso Campanella. Em vez, no século XVII não há idealidade, são apenas, no aspecto literário, imitadores do Humanismo e da Renascença. Mas eles se tornam extraordinariamente elegantes. Quando só se propõem a alcançar a beleza e ela não pode ser alcançada, porque já o foi, só resta um jogo, um cerebralismo, um capricho, um arbítrio do poeta, que se esforça em procurar formas novas, dando um ritmo musical, equívoco, recorrendo a figuras gramaticais, que transformam a literatura em algo extravagante, como a metáfora, a alegoria de coisas brevíssimas. Temos como exemplo o Seiscentismo, também chamado Marinismo, Gongorismo e Barroco, em que o poeta mais representativo deste século e o mais inventor dessas fórmulas foi Giambattista Marino. Era um estilo grandioso, extraordinário, extravagante, onde o que interessa é o capricho das formas, o objeto é maravilhar o visitante. Temos estes quatro nomes para designar este século. Como exemplo de suas palavras: para exprimir a dor, diziam “aborti di dolore”;35 outro dizia que a caneta e o papel eram “faccio strale de la penna e campo il foglio”.36 Isto tudo não é normal, sereno, 35 36 “abortos de dor” “da pena faço flecha e campo a folha” Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos íntimo. Uma mulher antipática era chamada “uno scoglio di superbo orgoglio”.37 Como no século XVII há uma guerra, um poeta marinista, querendo dizer algo de novo, para dizer que precisavam de armas e canhões, disse “sudate, o fochi a prepar metalli”.38 E para concluir os versos, para dizer o que foi a literatura barroca, os versos de Marino, que com eles define a função do poeta, qual deva ser a arte: “è del poeta il fin la meraviglia: chi non sa far stupir, vada alla striglia”.39 Qual era a poética do século XVII? A maravilha. Mas isso não é poesia, pois faltam sentimentos, razões, ideais, nobreza. É considerada um meio qualquer para exprimir a maravilha. A preocupação do artista não é a dele mesmo, mas a dos leitores. Aonde chega este lema do século XVII? Chega a Giuseppe Artale, a loucura de um escritor que queria considerar a poesia só um meio de estupefação: Che ‘l crin se è un Tago e son due soli i lumi, prodigio tal non rimirò natura bagnar coi soli e rasciugar coi fiumi.40 Imagina que Madalena tivesse os cabelos loiros, comparados a um rio, então, sendo este amarelo, porque corre na areia e seus dois olhos são dois sóis, milagre tal nunca a natureza pode ver: molhava os pés de Cristo com o sol e secava-se com o rio (silogismo). O maior destes poetas foi Marino, que nasceu em 1569 e morreu em 1625. Cem anos antes, em 1469, nascia Machiavelli, o maior pensamento italiano, e agora este que brinca. Houve uma infinidade de marinistas: Giuseppe Artale, Girolamo Preti, G. Fontanella e Claudio Achillini. A poesia deles é toda cheia de metáforas, de conceitos abstratos, quase caprichos da inteligência. De notável possuem apenas a capacidade musical de representar bem a sensualidade. Há também os clássicos, isto é, os que tentaram imitar os clássicos com pouca eficácia: Vincenzo da Filicaia, Francesco Redi, Gabriello Chiabrera, Fulvio Testi. Eles reagem ao Marinismo. Francesco Redi era um médico e escreveu I trionfi di Bacco in Toscana, que descreve Baco correndo pelos campos, bebendo para escolher qual vinho é o melhor. Então acontece que, apesar de ser um deus, embebeda-se, e por fim vê uma mulher, Ariana. São quinhentos “um recife de soberbo orgulho” “suem, oh fogos, a preparar metais” 39 “o objetivo do poeta é a maravilha; quem não souber causar maravilha, vá se lixar” 40 Que a crina se é um Tejo e são dois sóis os lumes, / Prodígio tal não admirou a natureza / Lavar com os sóis e enxugar com os rios. 37 38 163 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 164 versos: então andava nessa sensualidade pelo vinho e acaba com o vinho do Monte Pulciano. Giambattista Marino (1569-1625) Obras de Marino: La lira, La galeria, La sampogna, L’Adone. L’Adone (1623) faz com que ficasse o poeta triunfal da Europa. É um poema de vinte cantos e quarenta mil versos, que esse abençoado escreveu sobre o episódio tão famoso da mitologia grega. Adônis amava Vênus e, mordido por um porco, morre. Baseia-se nisso para fazer quarenta mil cantos, todos cheios de capacidade, como as cinquenta oitavas em que descreve a morte de um rouxinol. Sua arte em ir atrás do canto dele aí está, mas o perigo de estupefação, essa sua tentação de querer maravilhar o leitor. Teve uma enorme importância. Quem deve muito a ele são os poetas contemporâneos italianos, como Ungaretti,41 Quasimodo,42 Onofri, poetas que ainda vivem e que, para fazer uma reação a d’Annunzio, voltaram ao Marinismo, e nessa procura do extraordinário souberam achar aquela fraqueza que é própria da poesia contramarinista italiana. La sampogna é uma obra clássica, sulcada de sensualismo e musicalidade. La galeria é formada de poesias, madrigais, sonetos, em que, com sua habilidade, descreve suas impressões de pintura, etc., inspiradas por outras manifestações de arte. A literatura italiana do século XVII não foi somente sensualidade e musicalidade e Marinismo num esforço literário, capricho linguístico, como apêndices da literatura do século XVI. Não foi só isso. Houve no século XVII umas obras, uns escritores que merecem o nosso apreço e que ainda hoje vibram não só na arte, mas como puros sentimentos, idealismo, beleza. O século XVII poeticamente não foi notável, porque teve um grande defeito de origem: era excessivamente literário. É grande quando surge sobre a suavidade, sobre o sentimento, e esta literatura, a não ser a suavidade e sentimento, só pensou em criar figuras linguísticas, o que era prova de vacuidade, de pobreza. Seus escritores nada mais são do que apêndices do espírito externo da Renascença, isto é, eles pensavam que a prosa do século XVI, a obra da arte, deveria ser não perfeição e 41 42 Giuseppe Ungaretti (1888-1970). Salvatore Quasimodo (1901-1968). Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos equilíbrio, mas desequilíbrio, equidade de engenho, deveria ser coisa surpreendente. E, naturalmente, a verdadeira arte e a poesia sempre têm algo de melancólico. A obra da arte sempre é de uma beleza que não é serena, otimista, intelectual. As verdadeiras belezas são essas, epicúrias, felizes, devem ter algo delicado no rosto ou na linguagem do poeta. Porém, os do século XVII abusam de tudo isso. Mas um aspecto da literatura do século XVII foi grande: a prosa. Nela a literatura soube dar grandes coisas: Galileo Galilei e Paolo Sarpi. Galileo Galilei (1564-1642) Nasceu em Pisa, em 1564, e faleceu em 1642. Ele foi vítima da cultura e da ciência europeias quando sentia a verdade das teorias, afirmando no campo da ciência aqueles valores que já na literatura viveu. É o símbolo da ciência, da experiência. Não deve, segundo ele, o indivíduo crer, mas observar, viver espiritualmente e através da vida, da experiência, deve chegar às leis, à fé. É o homem que se põe diante do céu diretamente e não com os olhos de Aristóteles, da Bíblia, da Teologia. O elemento natural nasce com o anseio, com a análise, então se põe diante do firmamento e vê que a Terra não é imóvel, mas o Sol é imóvel, e essa visão nova é o ponto de saída para as descobertas de Newton, com os seus princípios. A maior amargura de Galilei foi o processo que teve depois de 1632, pela religião. Era muito católico, e sua filha, Maria Celeste, era freira. Ele acreditava na religião, mas no campo teológico. Então sofreu seu processo, que o deixou amargo, e depois da última inquisição, disse “Eppure si muove” (apesar de tudo isso, a Terra se move). Nesta inquisição teve de retratar todas as suas ideias e princípios. Dever retratar uma verdade, dizendo que não era verdade o que sabia ser verdade, ele que via que a Terra se move, que os astros pertenciam ao universo, que o tempo, a gravidade, que tudo aquilo não tinha nada a ver com a religião, ele teve de retirar tudo o que disse. Obras: Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, entre outras. Era toscano, então escreveu esse diálogo, e faz como Sócrates, afirma suas verdades através de uma conversa. É socrático, alcança a verdade através da discussão. Nesta obra discutem três personagens: 165 166 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Simplicio, Sagredo e Salviati, acerca dos dois máximos sistemas, o ptolemaico e o copernical. Salviati representa Galilei, a favor do ptolemaico; Sagredo é simpatizante do copernical e equilibra os dois contrários. Simplicio é ptolemaico, de Aristóteles. O problema é de pôr em evidência que Deus revela-se através dos escritores num sentido moral e através da ciência e da natureza no sentido físico. Ao papa cabe interpretar a Bíblia pelo que se refere ao espírito, e ao cientista cabe analisar a natureza para chegar às leis de dinâmica da natureza. Galilei dizia: “ipse dixit” (Aristóteles disse). Em vez, levou todos os professores debaixo da torre de Pisa. O que ele quer pôr em evidência é a distinção entre Teologia e Ciência. Galilei é o fundador da ciência objetiva, analítica, baseada na experiência. Se não houvesse posto esse princípio em evidência, que só olhando a natureza é que podemos descobrir as leis dela, não poderíamos ter chegado ao que chegamos até hoje. A religião não tem nada a ver com isso. Nos últimos anos, ficou cego, na vila de Arceti. E a sua filha lutava em sua alma entre a obediência à Igreja e o amor ao pai. Paolo Sarpi (1552-1623) É também um frei, mas é um daqueles padres sérios, objetivos, estudiosos, humanizados, que querem a realidade. Escreveu uma obra histórica, que é um monumento: Istoria del Concilio di Trento, na qual tem a coragem de dizer que a Contrarreforma da Igreja representou um regresso, porque a Igreja só pensou em defender todos os pontos que Lutero pôs em evidência. Depois de 1517, ele via na atitude da Igreja uma simples defesa política. Isso é importante, porque nele, além do problema político, ele vê na atitude da Igreja algo que prejudicará a Itália no sentido político, fazendo com que se desinteressassem da política, fazendo com que se tornassem hipócritas. Foi um continuador de Machiavelli. Expõe situações e sabe concluir. Temos ainda no século XVII o melodrama, o drama transformado em música. Claudio Monteverdi, esse músico que, difundindo na Europa a música de câmara, cheia dessa elegia, baseada no contrabbasso, sereno, aéreo, cheio de melodia, que ainda hoje se faz em Vivaldi. Também a comédia de arte, que a Itália criou como seu particular gênero dramático, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos faz-se na base de um sketch, em que um homem inventa um assunto e confia aos atores. Um faz o empregado, outro, o namorado, etc. Chama-se le maschere, como o arlequino, o hipócrita e todos os outros atores. Mas Carlo Goldoni quer acabar com a comédia de arte, porque não sai daquilo, os personagens são sempre os mesmos; em vez, o drama deve ser a representação do homem, da vida real. Pietro Metastasio – poeta da Arcádia (1698-1782) Desse mundo da Arcádia, caracterizado por um sentido de graça e de delicadeza que se move numa tonalidade melancólica e docemente morbosa, assim disposta por aqueles motivos de sensibilidade e de volúpia onde nunca se chega à tragédia e sempre se vive numa atmosfera de devaneio, dessa poesia arcádica que é a imagem da expressão de uma particular espiritualidade e de uma particular humanidade que se manifestou nos primeiros anos do século XVIII, foram muitos os poetas e muitas as obras em que se reflete essa sensiblerie feminina, nervosa, musical, feita mais de caprichos do que de verdadeiros sentimentos. E não seria inútil lembrar que a Arcádia tem certas atitudes às vezes hiperbólicas e exageradas, também porque ela nasceu como uma reação a um gosto, a uma mentalidade e a uma retórica da poesia, que é aquela do século XVII. Parece que ao exagero de uma intenção de reação correspondia muitas vezes o exagero da realização, que se torna maneira nos poetas medíocres. Mas a Arcádia tem seus valores positivos e inegáveis, não somente porque reage ao Barroco, mas porque nos seus melhores poetas soube verdadeiramente exprimir aquele desejo de simplicidade, de ingenuidade e de clareza que são os caracteres de uma idade feliz, como foi a primeira metade do século XVIII, antes que os ideólogos franceses e os escritores da Enciclopédia lançassem ideias e ideais que mais tarde, ao cair do século, determinariam aquela trágica transformação da França e da Europa, jogando uma sombra de morte sobre a alegria da aurora do mesmo século. De bem outros teatros conheceremos os dramas, os atores e as vítimas, depois de 1789, lembrando os atores e as atrizes da primeira metade desse século, quando floresceu justamente a poesia da Arcádia. 167 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 168 E se Giovanni Battista Zappi43 foi o inzuccheratissimo poeta daqueles sonetos que justamente mereceram a crítica mordaz de Francesco De Sanctis, se o fundador da Arcádia foi um poeta medíocre, cujos merecimentos não vão além da grande admiração que ele tinha pelos clássicos e do fato de ter sido ele inicialmente o educador do maior poeta da Arcádia, devemos, porém, acrescentar que poetas houve que souberam com uma musicalidade tênue e delicada, com uma atitude psicológica sincera e solidária, souberam interpretar esse mundo de sonho e de ilusão, essa euforia de gentileza e de devaneio, que é próprio da sociedade e da humanidade daquele então. Porque devemos nos guardar de dar à Arcádia uma interpretação exclusivamente literária, dizendo que ela surgiu literariamente a uma literatura barroca. É uma reação também humana e espiritual, que não se vê representada por aquele estilo excessivamente luminoso e fulgurante do século XVII. É uma poesia que reflete uma humanidade espiritualmente despida de graves problemas, mas dotada de uma ternura e de um desejo de paisagens mais simples e mais delicadas. Dessa poesia e dessa espiritualidade, o intérprete mais ilustre, o intérprete mais íntimo, aquele que soube verdadeiramente colocá-la em ritmos e imagens, foi Pietro Metastasio: um poeta que vai além da literatura italiana, para ser o poeta de um período da Europa, tanto assim que de 1730 a 1782, durante cinquenta e dois anos, ele viveu na serena, burguesa, meiga Viena de Carlos VI e de Maria Teresa. Foi de Viena que se espalharam para a Europa as canzonette, as ariette e os melodrammi de Pietro Metastasio. Curioso o destino deste poeta. Nascido em 1698 em Roma, com o nome de Pietro Trapassi, logo em seguida, pela sua beleza, pela sua delicadeza e pela sua precocidade, foi justamente Gianvincenzo Gravina44 quem o recolheu e quem lhe deu as primeiras diretrizes no campo da cultura e da produção literária. E como Gravina era um estudioso e um admirador da literatura grega e latina, assim ele pensava que o Metastasio pudesse ser o grande restaurador desse seu gosto clássico. Por isso, num primeiro momento, Pietro Metastasio foi mandado estudar na Calábria, junto a grandes e ilustres mestres da literatura clássica. Mas foi uma decepção para Gravina a sempre mais evidente inclinação do seu discípulo para os autores proibiti e que seriam os seus preferidos em vez. Assim, quando em 1718 morreu o Gravina, que era também um advogado, Pietro Metastasio abandonou o Direito, abandonou os 43 44 Giovanni Battista Zappi (1667-1710). (1664-1718) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos estudos clássicos e se deu à literatura profunda e íntima dos dramas pastorais dos séculos XV e XVI, da Aminta de Tasso, do Pastor Fido de Guarini. Transformou a sua educação. E como Metastasio sempre teve sorte na sua vida, a completar esta sua educação pastoral, bucólica, delicada, contribuiu não pouco uma das mais famosas mulheres e atrizes daquela idade: Marianna Bulgarelli, que Metastasio muito oportunamente sempre chamou de Mariannina. Foi a Bulgarelli que ensinou a música a Pietro Metastasio. Foi ela que lhe fez conhecer a intimidade dos salotti, foi ela que lhe fez conhecer os segredos e os abandonos dos canapés, foi ela que lhe fez conhecer o teatro. Assim Metastasio completa sua educação e se prepara, por instinto, por cultura e por um conhecimento direto da música, a ser o autêntico intérprete da espiritualidade arcádica. Em 1730, ele é convidado a ir como poeta cesareo45 a Viena, e lá permanecerá até seus últimos dias, morrendo com oitenta e quatro anos e fechando com a sua atividade poética uma idade que poderíamos considerar como um parêntese na história dramática e frequentemente sangrenta da Europa. Em 1721, Metastasio escreveu uma azione que foi o início de sua brilhante carreira de poeta. Essa azione é Gli orti esperidi, onde atuou como prima donna a sua Mariannina. Em 1724, Metastasio escreveu o seu primeiro melodrama, intitulado Didone abbandonata. Depois desta data, as ariette, as canzonette, os melodrammi se sucederam, de ano em ano, formando uma produção portentosa, que foi admirada não somente por críticos dispostos a compreender a alma arcádica, mas também por críticos ideologicamente contrários a essa sensibilidade, por críticos e pensadores que são considerados como revolucionários e preparadores da Revolução Francesa de 1789. Voltaire, Diderot, Rousseau foram admiradores sinceros da poesia de Metastasio. Admiraram nele essa clareza límpida, essa simplicidade espontânea, essa musicalidade arcana que representam a alma da Europa dos primeiros anos do século XVIII. É por isso que, quando se fala em Arcádia, não se fala em um movimento literário localizado em Roma, onde verdadeiramente esse movimento surgiu em 1690, mas se fala de uma realidade italiana e, mais ainda, europeia. Em todos os teatros da época, na Itália e na Europa, Metastasio representou e cantou os seus melodramas, fascinando uma assistência que via naqueles versos e naqueles enredos a própria alma e a própria vida. 45 Poeta dos reis. 169 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 170 Metastasio é o poeta que, com os seus vinte e seis melodramas, fez aqueles milagres poéticos, literários, de difundir a palavra com a música, e a música com a palavra, encurtando os versos, reduzindo os personagens, fazendo prevalecer a mulher ao homem, dando ao cenário algo de mágico, de íntimo, de sentimental. Nunca é o tema heroico que prevalece na poesia de Metastasio. Nunca é o tema dramático que o preocupa, nunca é um problema ou uma dúvida que o amargura. Em Metastasio é justamente a incerteza sem dramaticidade nenhuma, é justamente a conciliação num plano sentimental e emotivo que caracterizam os seus melodramas. Uma falta de propósitos, uma incapacidade de resolver-se, um querer e não querer, um partir e um não partir, um si e um no: entre esses contrastes se move a palavra doce, a música aérea, o torpor lânguido da inspiração de Metastasio. E mais do que lembrar o título dos seus melodramas (dos quais não nos poderíamos esquecer os maiores, como: Didone abbandonata, L’Attilio Regolo, La clemenza di Tito, Achille in Sciro, Il Demofoonte, L’Olimpiade), apraz-nos lembrar aqui umas de suas arietas para sentir a sugestão ainda hoje extraordinária desse poeta. Citarei, por exemplo, esta arieta de L’Olimpiade:46 Se cerca, se dice: “L’amico dov’è?”. “L’amico infelice”, rispondi, “morì”. Ah no! sì gran duolo non darle per me: rispondi ma solo: “Piangendo partì”. Che abisso di pene lasciare il suo bene, lasciarlo per sempre, lasciarlo così! Ou então, estes versos da Betulia Liberata:47 Se procura, se diz: / “O amigo, onde está?” / “O amigo infeliz”, / responde, “morreu”. / Ah, não! Tão grande dor / não lhe dês por mim: / responde, mas somente: / “Chorando partiu”. / Que abismo de penas / Deixar o seu bem, / Deixá-lo para sempre, / Deixá-lo assim! 47 Se Deus tu quiseres ver, / Olha-o em todo objeto; / Procura-o no teu peito, / E o encontrarás contigo! / E se, onde Ele mora / Não entendestes ainda, / Confunde-me, se puderes; / Dize-me, onde Ele não está. 46 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Se Dio vedertu vuoi, Guardalo in ogni oggetto; Cercalo nel tuo petto, Lo troverai con te! E se, dov’Ei dimora Non intendesti ancora, Confondimi, se puoi; Dimmi, dov’Ei non è. De Didone abbandonata, acho que a imagem mais característica esteja na seguinte arieta, onde Eneias, junto ao mar, não sabe decidir-se, abandonando a sua Didone e obedecendo às ordens divinas:48 Se resto sul lido, Se sciolgo le vele, Infido, crudele Mi sento chiamar. E intanto, confuso Nel dubbio funesto, Non parto, non resto, Ma provo il martire Che avrei nel partire, Che avrei nel restar. A Arcádia com a poesia de Pietro Metastasio adquire a sua importância histórica, o seu significado no desenvolvimento da literatura italiana, e se pode justamente achar esse valor histórico da Arcádia no fato de que ela representa uma superação da literatura do Marinismo. Volta a firmar-se com ela uma aspiração à simplicidade e à clareza, que sempre representam na história da poesia os momentos iniciais de uma afirmação. Sem a Arcádia, seria difícil entender Carlo Goldoni. A essa literatura da Arcádia logo sucederão uma crítica mais austera e moral, uma historiografia mais substancial e profunda, um programa de renovações e de idealismo mais urgentes. A atmosfera da Revolução Francesa queimará essa poesia fácil e despreocupada da Arcádia. Virá, então, a literatura italiana da segunda metade do século XVIII. Se fico sobre o lido, / Se solto as velas, / Infido, cruel / Me sinto chamar. / Enquanto isso, confuso / Na dúvida funesta, / Não parto, não fico, / Mas provo o martírio / Que teria ao partir, / Que teria ao ficar. 48 171 172 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E aí Carlo Goldoni fixará o seu objetivo numa visão pictórica, mais ligada à realidade de todos os dias, Giuseppe Parini saberá infundir nessa realidade uma ânsia moral e renovadora de cristianismo e, por último, Vittorio Alfieri colocará essa realidade nas suas tragédias e os seus heróis tingir-se-ão de sangue pelos ideais da liberdade, da nacionalidade. Mas a Arcádia resta, apesar de tudo, resta sem ser alcançada ou destruída pela sede revolucionária de 1789, sem ser negada por essa literatura mais concreta, mais austera e mais trágica da literatura italiana da segunda metade do século XVIII. Aquele mundo sempre fica como um oásis de encantamento, eternizado no ritmo, na musicalidade, na ternura fácil, mas clara e compreensível da grande arte de Pietro Metastasio. A LITERATURA ITALIANA NO SÉCULO XVIII Com o século XVIII nós nos encontramos diante de uma nova espiritualidade, diante de uma nova literatura, diante de novos métodos, de novas acepções e atitudes na literatura italiana. O século XVIII é um século muito complexo, cheio de acontecimentos, de atitudes que, nas sucessões do seu dinamismo, levam ao Romantismo italiano. Parece que este século seja como um trait d’union entre o Humanismo e a Renascença e o Romantismo. O Humanismo e a Renascença foram dois movimento construtivos, realizadores, duas verdadeiras afirmações. Também o Romantismo será uma grande afirmação. Qual a diferença entre as três afirmações? O Humanismo e a Renascença afirmam sobretudo a cultura, o equilíbrio, a beleza, a serenidade, a perfeição. Uma aspiração cultural num sentido de nostalgia, de saudade com o mundo clássico. Parece que os estudiosos, eruditos, filósofos do século XV e XVI da Itália, depois da Idade Média, em que os problemas foram outros, parece que todos eles sentiram a necessidade de renovar o ar, voltando aos temas e formas do mundo clássico; através de meditação, de leitura, de uma secreta competição eles quiseram renovar o mundo com um novo classicismo. O Romantismo italiano foi uma afirmação no campo do sentimento, da popularidade, da dor, da concepção de vida baseada na vida, na amargura, entre o choque do real e do ideal; foi o contrário, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos numa certa maneira, do Humanismo e Renascença, num certo sentido, porque, se aqueles dois foram só cultura e racionalismo, este foi apenas fantasia e sentimento. Como é que se chega a essas duas bases positivas da história da literatura italiana? Através de uma crise do Humanismo e Renascença, representada pelo século XVIII. Então o século XVIII tem sua imensa importância, é o século trait d’union entre os dois grandes movimentos positivos. Veremos as várias atitudes desse século, que se abre com o movimento da Arcádia e sucessivamente se transforma e fica mais profundo, com o Iluminismo, com uma atitude de História que cria uma nova visão, com Muratori e Vico, diante de uns escritores que, através de reformas polêmicas e de uma nova atitude crítica, prepararam a segunda metade do século XVIII, que é o século em que essas várias atitudes se transformam em verdadeiras afirmações de arte: primeiro com Goldoni, que é o poeta que volta nas comédias a descrever a realidade, dando à literatura aquilo que lhe é próprio, isto é, inspiração na realidade. O realismo volta nas suas comédias: não é apenas o poeta que renova a comédia, mas o escritor que transforma todo o espírito da literatura italiana, fazendo ver a necessidade de inspirar-se na realidade. Suas comédias são a visão da vida e não da imaginação, fantasia e abstratismo. Mais tarde ainda, a literatura se torna mais profunda, mais séria, mais austera, mas tudo isso devido ao trabalho de Goldoni: com a obra de Parini, o poeta italiano que vê a realidade através da amargura, da sátira, da insatisfação com ideais cristãos, que vê contraditos na realidade. Mais tarde ainda, com o realismo sereno e pictórico de Goldoni, com o realismo moral e amargo de Parini, torna-se um realismo desesperado e civil, trágico, heroico, através das tragédias de Alfieri, que morre justamente em 1803, quando se fecha o século XVIII. Estudaremos então o século XVIII em função desses três escritores: a comédia com Goldoni, a sátira de Parini e a tragédia de Alfieri, que são o coroamento de todo esse trabalho de elaboração que representa a primeira metade do século XVIII. É evidente que podemos dividir o século XVIII em duas partes: a primeira representada por essas tentativas, por essa renovação lenta, mas firme, por essa força autóctone e heterônoma; e a segunda parte, a positiva, em que esses três escritores põem o leitor diante de uma literatura que não tem nada mais com a do século XVII, tão abstrata, barroca, caprichosa. Como começa esse movimento, essa renovação? Começa com a consciência que os escritores italianos têm da decadência da literatura. Os escritores italianos no fim do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII sentem a vacuidade da literatura, sentem que não está ligada à 173 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 174 realidade, que não está dizendo nada, sentem que é uma literatura abstrata, sem conteúdo, sem sentimento, sem valor, sem humanismo. Sentem que é supérflua, é inútil, não tem uma razão de ser. Eles gostariam que ela fosse a acepção da vida, da realidade, dos anseios humanos, e em vez, é barroca. Então se propuseram os moços dos últimos vinte anos do século XVII e os moços dos primeiros vinte anos do século XVIII renovar a literatura italiana. Pelo menos tiveram a consciência, a convicção que todo o século estava errado. Isso é uma grande coisa, porque, quando um povo sabe que está errado, é algo bom. Então tiveram a certeza que aquele século não era literatura e propuseram de “combattere il cattivo gusto ovumque esso s’annidi”.49 E o que era “cattivo gusto”? Era o Barroco, o Marinismo, o Seiscentismo. Essas alegorias, metáforas e grandiosidades, o desejo de surpreender. O que propuseram fazer? Substituir tudo isso pela ingenuidade, simplicidade e clareza. Quais os objetivos da renovação nos primeiros quarenta anos do século XVIII? Serem simples, claros, ingênuos, naturais, acabar com as iluminações e dar, em vez, à palavra um tom de penumbra, de sombra, um ritmo melancólico, íntimo, até sentimental. Quer dizer que, quanto eram grandiosos os outros, tanto queriam ser simples estes. É uma rebelião a essa saturação da imaginação, do Barroco. E para isso eles criaram uma escola, uma academia, um movimento chamado Arcádia. Como a criaram? Em 1690, dez anos antes do fim do século XVII, havia um grupo de catorze escritores que costumava reunir-se em Roma, no palácio da rainha da Suécia, Maria Cristina, que renunciou ao trono e foi morar em Roma, onde reunia em torno de si os homens cultos da Itália central, que lá iam ler as obras estrangeiras. E tudo isso numa intimidade, numa amizade. E quando ela morre em 1689, um ano depois, esses catorze escritores continuaram a reunir-se, lendo cada um as próprias obras, poesias, desabafando-se um ao outro. E num certo momento um desses poetas saiu-se com uma expressão de beleza, pois, quando um amigo seu estava lendo uma poesia, ele disse: “ei mi sembra di vivere in l’Arcadia”. Assim surgiu o desejo de fundar uma academia com o nome de Arcádia, em que se exprimisse tudo numa atitude espiritual. Não foi por acaso que foi escolhido este nome como de batismo dessa literatura do século XVII. Eles nada mais queriam do que a simplicidade, a clareza, e quando é que os homens viveram em simplicidade, em clareza, senão na Arcádia? No livro VII da Eneida, com o rei Evandro e seu filho Palante, 49 Combater o péssimo gosto onde quer que se encontre. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos quando Eneias canta suas misérias e sua dor e vai com os deuses para uma terra onde fundará uma cidade que deverá vingar a destruição de Troia, o filho de Evandro pede licença para combater com Eneias e morre. Palante vem de um mundo de pastores, de primitivos, de simples, vivendo do que a natureza oferecia, afastado das lutas da idade, como num paraíso ideal, a Arcádia. Como o mundo do iluminismo de Rousseau. Então, daí fundou-se a Arcádia, as leis da Academia, que foram escritas em latim, não o de luxo, de Cícero, Homero, Tito Lívio, mas o dos primitivos, das doze tábuas romanas, tudo simples, e quem escreveu isso foi o poeta Gianvincenzo Gravina, um enamorado do mundo clássico. Os poetas que fundaram a Academia se chamavam pastores, isto é, simples guiadores de ovelhas. O chefe, o patrono deles, era naturalmente “il grande pastor dei pastori: Gesù Bambino”, não o da cruz, que é muito trágico, mas o menino loiro e simples. E nenhum dos poetas tem o próprio nome, pois em geral adotavam nomes gregos, tendo muito gosto em escolhê-los. O maior deles, Pietro Trapassi, chamou-se Metastasio. Essa Arcádia difundiu-se em toda a Itália. Não é um fenômeno romano, mas italiano. Em todos os lugares tomava nome diferente, como em Perugia, onde se chamava Frontone. Esse é o perigo da Arcádia, tanto que transformou tudo em amorzinhos e as mulheres se tornam excessivamente etéreas e os homens efeminados, num certo sentido. Daí a revolução de Alfieri, que não apenas põe o homem como herói, mas também as mulheres masculinizam-se, como Nicol, Myrra, Clitemnestra. Mas isto tudo se torna muito choroso, e o poeta que se excedeu nesse sentido é Giovanni Battista Zappi, que foi tão criticado por De Sanctis. Caiu então a literatura nesse absurdo, e ficou chata, num sensabor, numa simplicidade excessivamente tola, sem vida, sem aspirações, sem problemas, sem véu de sombras, sem amarguras, sem nada de triste, como é a realidade. É muito fora do mundo essa atmosfera. Porém, a Arcádia levou tudo que era ruim do século XVII e criou três grandes coisas que são notáveis, isto é, le ariette, il melodramma e la canzonetta. Le ariette são refrãos, leitmotifs, seis ou sete versos curtos em que os poetas sabiam fazer o a solo no melodrama, esses momentos a sós, que exprimiam tudo e são a alma do melodrama, cantados em geral pela mulher. Il melodramma é uma continuação de Petrarca, é algo de muito mais breve, de onde nascerá a canção de hoje. La canzonetta é a criação maior da Arcádia, onde a palavra se transforma em música e a música, um conjunto de palavras. Os poetas sabiam que o melodrama escrito deveria ser cantado, com o ritmo do poeta e do músico. O maior escritor foi Pietro Metastasio. 175 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 176 A historiografia no século XVIII Um segundo momento da literatura italiana é representado pela historiografia. Nele não podemos esquecer Ludovico Muratori, Girolamo Tiraboschi, Pietro Giannone e, sobretudo, aquele a quem a cultura contemporânea deve o novo conceito de estética, que é um filósofo que tem uma grande importância de ter, ante literam, posto em evidência as falhas de uma concepção racionalista da vida. Esse filósofo é Giambattista Vico. A este ponto devemos perguntar o que significa historiografia no século XVIII. Na Idade Média houve muitas obras de História e grandes escritores, como Compagni, Villani, entre outros. Mas qual era o caráter da História na Idade Média? É, sobretudo, teologia, isto é, concebida como uma narração da providência; a História torna-se uma exaltação a Deus. Há uma visão não real, não concreta, não crítica dos acontecimentos humanos, pois a História adquire um valor de apologia. Há também uma historiografia no Humanismo italiano, cujo maior representante é Machiavelli, e a historiografia com ele adquire um caráter pragmático, isto é, ele vê a História como uma sequência de acontecimentos que devem servir de ensinamentos às nossas ações. Apresenta-se como um conjunto de normas, de princípios, de conclusões que nós devemos aplicar. Ela é vista subjetivamente, ela serve para ammaestrare,50 é o passado que criticamos, para, na base dele, continuar. Em vez, qual é o caráter da História no século XVIII? A História aqui tem um caráter de erudição, e isso é importante. O que quer dizer? O caráter de erudição quer dizer que Vico procurou recolher e interpretar os documentos e apresentar tudo o que foi escrito sobre acontecimentos militares, sobre a política, sobre os governos, e os reúne num armazém, em bibliotecas, em anais, apresentando-os na melhor versão e objetividade. Então, tem um caráter científico, o de exclusivamente recolher. Não é criticar, subjetivizar, idealizar numa imagem, mas exclusivamente esforço de estudo, de procura, de recolher. Aí então temos homens como Muratori, que viviam em bibliotecas, procurando tudo acerca dos outros. Ele teve uma importância enorme, pois, além de serem autênticos nesse modo, no século XVIII podemos ter uma visão geral e objetiva da Itália e Europa, pois essas obras chegaram no momento em que a Itália estava despertando espiritualmente, no momento em que abandonava o Barroco, em que deixava de cantar metastasicamente, em que estava para 50 Ensinar, amestrar. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos renovar-se com Goldoni, Parini e Alfieri, no momento em que no século XIX procurava-se alcançar a independência; aí está todo o passado italiano, acumulado, escolhido por esses grandes historiadores. Veja-se a providência da inteligência de um povo, pois tudo isso significa a insurreição desse povo. Num aspecto geral, os historiadores desta idade pesquisaram sobretudo a Idade Média: aqueles reis, as invasões, a vida comercial e mercantil, a vida dos marinheiros, a vida no Oriente, o momento financeiro e a amargura e tristeza pela divisão da Itália. Há um sentido interessantíssimo: o que significa esse desejo de ir-se procurar na Idade Média? Nada mais do que o prenúncio de uma atitude sentimental para com o passado, que foi a fantasia, o sentimento, o misticismo, o idealismo transcendente. Significa o surgir do Romantismo, que é justamente da França, Espanha, Portugal, Inglaterra, Alemanha e Itália, que se baseia no conceito que a arte é essencialmente tristeza, choque entre o real e o ideal. Então, toda essa historiografia que representa o passado cheio de tintas amargas, de dor, de tristeza, que apresenta um mundo de paixões, tudo isso vai despertando esse sentimento na alma europeia que prepara os italianos a entender o valor da Renascença, o drama e o suicídio, que são os temas do Romantismo do século XIX. Mas na Alemanha essa simpatia com a Idade Média alcança o absurdo, pois sempre tiveram antipatia pelos romanos, que para eles eram conquistadores; em vez, os alemães achavam a própria força nos Nibelungen e em Siegfried, por isso os alemães valorizarão Grimm, Lessing, Schlegel, Goethe, que propagaram o grande romantismo de Dante. A historiografia no século XVIII, além de ter o caráter medieval, teve também, com Giannone, um valor leigo, civil, pois ele, fazendo a Istoria civile del regno di Napoli, é o escritor que procura pôr uma distinção clara entre a Igreja e o Estado. Já havia sido de Dante essa distinção, que é interessante para a Itália, para as suas guerras. E o maior dos historiadores foi Vico. Muratori é autor de Antiquitates italicae medii aevi e Annali. Tiraboschi é autor da Storia della letteratura italiana, porque recolhe edições, biografias, histórias em torno das obras italianas, das origens até o século XVIII. Esta obra não tem valor crítico, porém, para consultar sobre algum poeta. Isso é importante para as críticas que serão feitas sobre a literatura italiana, pois aí surgem seus valores estéticos. Giannone, como foi dito acima, é autor da Istoria civile del regno di Napoli. Vico é o pai do idealismo italiano; quando se fala nele, pensa-se em De Sanctis, que é o maior crítico do século XIX. Fala-se do idealismo italiano, tendo como seus seguidores Croce e Gentile. 177 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 178 Vico é o fundador da estética, do conceito novo de História e de uma nova visão da História. Escreveu Principii di una scienza nuova d’intorno alla natura comune delle nazioni. Um dos seus conceitos básicos é o famoso: “Gli uomini prima sentono senza avvertire, poi avvertono con animo perturbato e commosso, infine riflettono con mente pura”.51 É o princípio de dignidade, em que os homens então, antes de mais nada, sentem sem prestar atenção; depois, percebendo com uma alma turbada e comovida; e, por último, refletem com mente objetiva: a infância, a mocidade, a maturidade; a inconsciência, a fantasia, a inteligência. Num primeiro momento a inconsciência; a arte, a filosofia, em seguida, respectivamente. A vida do homem é esse conjunto de tudo isso, de três momentos, que Vico via como uma distinção cronológica, como se não pudesse ser só um deles e não todos os três ao mesmo tempo. Os idealistas que vieram depois fizeram esse trabalho, pois eles viram essa distinção não como cronológica, mas sob um ponto de vista dialético, pois no homem sempre há esses três momentos, que se acompanham. A distinção existe. Não é na idade, mas na dialética. É o que acontece nos indivíduos, é o que acontece aos povos: primeiro bárbaros, depois homéricos e, finalmente, civilizados. A renovação da crítica literária italiana no século XVIII A crítica adquire justamente nos limiares do Romantismo um sentido não tanto literário, fisiológico, quanto, em vez, civil e moral. O escritor, o poeta, o livro que os críticos julgam é julgado pela sua função pedagógica, pelo seu valor moral. Eles querem que os poetas digam alguma coisa, que cantassem ideais, que a literatura sirva para renovar e transformar os homens, a inculcar na alma do leitor sentimentos nobres no sentido religioso e patriótico. Porque ele é que será o iniciador do movimento que na Itália vai sob o nome de “non parole ma cose”. Houve um período em que um crítico (De Sanctis) disse isto, isto é, ideias, sentimentos que indiquem uma substância moral no escritor. Esta crítica é bem coerente com esta renovação, na qual, um “Os homens antes sentem sem perceber, depois percebem com ânimo perturbado e comovido, enfim refletem com mente pura.” 51 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos pouco com a Arcádia e com a historiografia, se está realizando uma atitude hostil à do século XVII e da primeira parte do século XVIII, que foi muito abstrata, feminina, lânguida. Em vez, aqui se quer o homem, quer-se ideias. O maior crítico nesse sentido é considerado também um artista: Giuseppe Baretti (1719-1789). Nasceu em Piemonte. Não teve estudos regulares, mas tem “bom senso” e conhece o mundo. Viajou na Itália, Turquia, Oriente, combateu e viveu na Inglaterra. A filosofia racionalista de Hume ajudou a formação deste crítico, que baseia toda sua crítica no “bom senso”, na moralidade e civismo da obra de arte. Seu jornal tem o nome de La frusta letteraria, quer dizer, o chicote literário. Já é evidente que não é uma obra serena que nós podemos julgar pelo equilíbrio das opiniões, pela serenidade. Devemos julgá-la pelo tom polêmico, exasperado e insatisfeito com que julga os escritores dos séculos XVII e XVIII. Ele os considera verdadeiros animais que merecem o chicote de sua polêmica. Ele escreve esse jornal, assinando um pseudônimo que é interessante: Aristarco Scannebue.52 É o açougueiro dos poetas, é muito bonito. Imagina voltar da guerra com uma perna a menos. Vai fixar-se num lugarejo onde tudo é amargo, triste, e isso põe em evidência os aspectos de misantropia e as ideias para com os outros. Quer viver numa solidão e quer fazê-la habitar apenas pelos homens de letras dos séculos XVII e XVIII. Então, nessa obra ele imagina que um padre, Zamberlano, dessa aldeia, fornecesse-lhe todos os dias livros novos, que se vão publicando, e imagina lê-los. Duas coisas são então importantes: 1. o valor da crítica de Baretti, no sentido de procurar no escritor algo de humano, sério, pedagógico e religioso, observando-se o ódio que ele tinha pelos escritores que consideram as palavras sem sentido, como se fossem só ritmo, música, e não fossem também honestidade; 2. o valor artístico de Baretti, que, pelo seu caráter bizarro, singular, ele sabe dar ao leitor imaginário, Aristarco Scannabue, que volta da guerra, que não é muito ilustrado e que viveu na vida e quer que as obras sejam expressões da vida. Tudo isto está preparando uma alma nova na literatura italiana, esse período em que os poetas Manzoni, Foscoli e outros deverão considerar a obra de arte como expressão do sentimento, de ideais. 52 Este vocábulo significa cortar o pescoço dos bois. 179 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 180 Carlo Goldoni e a segunda parte do século XVIII Goldoni nasceu em Veneza, em 1707, e justamente por essa razão, por ficar isolada no mar, ela é considerada como um teatro: falta pouco para transformar aquela praça de San Marcos num verdadeiro teatro, sobretudo ao pôr-do-sol, quando a laguna se endourece e as senhoras saem na praça e vão ocupar as pequenas mesas que estão nos bares. E falta pouco para que aplaudam, falta pouco para que se transforme a praça num salão de dança, tanta é a familiaridade com que se cumprimentam. Está cheia de turistas, é uma cidade cheia de cores, que se nota ao ver os quadros de Tiziano. De forma que lá se respira o teatro, o mundo lá é uma comédia. Não se sente a amargura, a dificuldade da vida, e raros são os poetas de Veneza que a descrevem sob um ponto de vista pessimista. Não se preocupam com problemas universais, os pintores e escritores escrevem numa linguagem não muito exigente, não muito clássica, como a florentina. Em Veneza a palavra adquire uma certa cor, uma certa palpabilidade, parece mórbida, musical, serena, e se transforma em paisagem. E é por isso que lá, pela musicalidade do dialeto ou por outra razão, fato é que lá já se nasce comediógrafo. Então quer dizer que, com Goldoni, estamos diante de um escritor que não apresenta nada de dramático. Com Ibsen ou Pirandello, ficamos horrorizados diante das suas situações, que são desesperadas e impensadas. Mas o mundo de Goldoni é um mundo sereno, cheio de cor, tudo é gentil, é felicidade, é real, mas com um véu de ilusão. Tudo parece real, mas numa visão de imagem, a realidade se sfuma53 no perfil da imagem. Os personagens que são todos reais no café e no bar de Veneza, Goldoni os toma como inspiração; entretanto, todos eles têm algo que fica entre a realidade e a imagem. Reais, mas quase idealizados, ideais, mas com algo de real. O homem fica mais bonito, a mulher é vista através de uma superfície de água. Suas comédias são ainda quadros de uma sociedade bonita, serena, confiante. Não aparece ainda o homem desesperado do Romantismo, mas o homem real, burguês, que vive uma vida comum. A comédia de Goldoni apresenta-se sob dois aspectos: a de caráter e a de ambiente. Comédias de caráter: são aquelas em que Goldoni procura 53 De sfumare: nuançar, matizar, diminuir a intensidade da cor. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos representar um homem através do seu espírito, do seu caráter. É um estudo que ele faz sobre os defeitos e as qualidades de um homem. Uma das mais famosas é Le Bourru bienfaisant (é um homem que parece uma besta, mas é um benfeitor). Goldoni consegue captar o caráter sentimental de uma pessoa. Comédias de ambiente: são suas melhores, nas quais representa uma família, uma praia, um mercado, uma praça de Veneza, como Mirandolina. Representa um lugar, o folclore, a humanidade. La famiglia dell’antiquario, com cenas cômicas no interno dessa casa. Então essas duas comédias têm uma grande importância porque são as peças com as quais ele inicia a revolução no teatro. Quando ele nasceu, havia na Itália a comédia de entrecho, a improvisada e a de arte. A comédia de entrecho é baseada exclusivamente numa complicação enorme de casos, muito ligada a Plauto e Terêncio; é um romance imoral. A improvisada é a que o escritor inventava sobre um assunto e o confiava à técnica do especialista e improvisador, que fazia isso durante o espetáculo. A comédia de arte tem caráter acadêmico, literário. Goldoni faz sua revolução com a comédia de caráter e ambiente, acabando com a artificialidade, com a tradição, com essa literatura, e trouxe para o teatro a realidade, escrevendo por completo a comédia, do último ao primeiro ato, e os atores devem decorar o que aprendem. Ele fixa em atos, em partes, a sua comédia e a confia a uma companhia de atores. Isso transformou em parte a literatura francesa, porque, de 1762 a 1793, ele viveu em Paris, onde faz a mesma revolução na comédia. Ele renovou a comédia e a literatura, e é o primeiro que dá o que a literatura deve ter: um senso de realidade, de substância, de experiência, de vivida e não de inventado, de fantasiado, de abstrato. Deve ser a imagem de como o homem vive ou gostaria de viver, mas não deve ser invenção. A literatura volta à fibra de Dante, ao caráter de Petrarca, ao mundo de Boccaccio, de escritores que, um com uma concepção religiosa interpreta o mundo, o outro com um sentimento de nostalgia descobria a alma, e o terceiro, que, com suas novelas, descobria, o mundo. Deve-se, portanto, a Goldoni esta transformação. Uma obra tal é Les memoires, que escreveu até 1798, e é bonito para ver quanto passou e conhecer de onde tirou o assunto de suas comédias. Faleceu em 1793. 181 182 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Giuseppe Parini (1729-1799) Nasceu em Bosisio, na Itália setentrional, e morreu em Milão. Era filho de agricultores, e por isso conheceu os duros trabalhos da vida dos agricultores. O pai e a mãe trabalhavam nos campos, vivendo apertados, e ele nunca viveu num ambiente de comodidade, de luxo. Por isso, desde o início da vida sentiu o amor por uma natureza aberta, sadia, e sentiu uma particular simpatia para com o trabalho e o dever de exultar a honra, a honestidade, aquelas virtudes que são dos homens que lutam na vida. Depois dos anos de grupo, foi mandado estudar em Milão, num colégio de padres, e uma tia, também agricultora, mas economicamente em melhor posição que seus pais, ao morrer lhe deixou uma herança, com a condição de se fazer padre. Então Parini, para poder estudar, para obter essa herança, tornou-se padre: l’abate Parini. Isto não quer dizer que não tivesse vocação, pois ele foi um exemplar sacerdote, mas através de sua poesia é possível ver aspectos de um Humanismo que são alheios ao clero, porque ele amou a vida, foi sensível à beleza, ao trabalho, à liberdade, à cultura. Ele era completo, e como sacerdote foi perfeito. Em 1752, ele publicou suas primeiras poesias, Alcune poesie di Ripano Eupilino (é um anagrama, pois Ripano vem de Parini e Eupilino é o lago onde nasceu, Eupili). Seu nome pertenceu a uma academia no século XVIII que era dos Trasformati, quer dizer que houve um grupo de poetas, cujo representante é ele, que se sentiram renovados, transformados entre uma tradição italiana que devia concluir e, em vez, as ideias novas que vinham através da Revolução Francesa, através do Iluminismo e Racionalismo. Entre uma e a outra temos os Trasformati, que aceitam os conceitos novos de cultura, de lumière, e ao mesmo tempo ficam fiéis a uma tradição clássica de equilíbrio italiano, um conjunto de ideias e sentimentos novos, sentidos por uma educação tradicional italiana, por um mundo de cultura, que na Itália são seculares. Parini não é um revolucionário, não é somente aquela cultura ateia, anárquica, mas um conjunto desses conceitos e sentimentos na base de uma cultura cristã e tradicional italiana, que se liga a Dante e Metastasio. Parini é o poeta do equilíbrio, está entre duas tendências, uma nova e revolucionária e outra, passada, que não queria destruir. Em vez, ele faz essa síntese entre o velho e o novo, num equilíbrio representado pelas suas atitudes de equilíbrio profissional. É a encarnação de um equilíbrio cultural, seja como professor, poeta ou homem. Ele sempre Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos foi e representou esse in medio esse virtus, lema aristotélico da virtude no meio de dois extremos. Entre 1754 e 1762, ele foi preceptor, junto a uma casa de nobres, do príncipe Serbelloni. São os homens de cultura a quem cabe a educação de um filho, e estes oito anos de vida de um Parini agricultor, que vem de uma cidadezinha, que não é nobre, em contato com a sociedade, podem ser considerados como o período fundamental de sua vida, porque é justamente durante oito anos que ele tem possibilidade de conhecer a vida da aristocracia italiana. Pode ver de viso como a nobreza era o contrário do que deveria ser, quanto era ociosa, inútil, passada, decaída; então, para Parini, a nobreza assume o valor de um alvo para a sua polêmica, de sátiras, de reação de uma pessoa de fé, cristã e culta. E toda sua obra tem um valor educativo de preceptor. Como homem, poeta e professor, sempre é o educador que procura vivificar no espírito da nobreza um sentido nobre da vida, uma missão na vida, uma atuação de princípios que são já vivos e eternos, de cristianismo, mas que foram cantados também antes de Parini e que voltam a ser difundidos por uma doutrina que, apesar de ser ateia, tem razão de exultar certos princípios, porque concorda com o Evangelho. Então, essa saúde de sua poesia, essa integridade, resultada entre a nova e a velha, entre cristianismo e a cultura, que lança como sátiras contra a nobreza, com a intenção de renovar a mocidade italiana e prepará-la para as guerras de independência. Em 1862, saiu da casa do príncipe, por ter brigado com a princesa (protestou diante dela porque tinha dado um soco numa empregada). Em 1763, justamente um ano depois, ele publicou a primeira parte do seu grande poema, Il Giorno. Escreve um poema satírico-didascálico, dividido em quatro partes: a primeira é Il mattino (1763), a segunda é Il mezzogiorno (1765), a terceira é Il vespro e a quarta é La notte (póstumas). E, além do mais, são duas partes que não foram completadas porque ainda ofereciam uma infinidade de correções e partes que revelam a falta de acabamento. Além de ter escrito isso, Parini escreveu dezenove odi; três são de caráter amoroso e dezesseis, de caráter civil e moral. Tem também aulas de estética, os Dei principii generali e particolari delle Belle Lettere, que deu como professor, primeiro na Escola Palatina de Milão e, depois, no ginásio de Breda. Tem também o Dialogo sopra la nobilità. É interessante saber que Parini era manco, em virtude de uma queda, e nos últimos anos os milaneses indicavam esse velhinho mancando e admiravam sua figura austera de padre e professor. E entre esses moços que tiveram a honra de conhecer esta austeridade havia um 183 184 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos dos maiores poetas italianos, Ugo Foscolo, que justamente dedica muitos versos maravilhosos de uma sua obra a este velhinho que muitas vezes o levava sob as tílias, onde contava o que era preciso para ser poeta. Qual é o conceito de arte de Parini? Ele volta ao conceito clássico da arte, que Dante já tinha, isto é, a poesia é utile et dulce, é um binômio de utilidade e doçura, a arte deve ser bela, elegante, correta, lúcida, fácil e horaciana, e ao mesmo tempo deve ter uma finalidade moral, civil, quer dizer que Parini concebia a arte como Dante a concebia, e Horácio, isto é, um binômio de utilidade e elegância, isto que está a provar o Classicismo italiano, que prova o sentido moral de Parini, renovador junto com Alfieri. LITERATURA ITALIANA III (1958) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O ROMANTISMO Já com a segunda metade do século XVIII, observa-se na serenidade da literatura iluminista uma sensibilidade, orientada no sentido de descrever o choque e a dor entre o sujeito e o objeto, entre o real e o ideal. Já na segunda metade do século, os princípios estéticos do Humanismo e da Renascença parecem não satisfazer mais a humanidade amargurada da época. E essa visão amarga dará lugar ao Romantismo, que é um movimento que surge justamente na segunda metade do século XVIII e se afirma no século XIX. Surge primeiro na Inglaterra, com o Pré-Romantismo, e depois na Alemanha, Espanha, Portugal e em outros paises. Portanto, o Romantismo é uma visão nova da vida, dos problemas do homem diante da vida e do Além. Com ele, o homem se propõe a definir as razões de viver, com ele o homem se propõe uma outra vez a definir a finalidade da existência. Existe uma razão pela qual o homem viva: qual é a finalidade de nossa existência? Sendo a vida infelicidade, dor, amargura, luta, vale a pena enfrentar essas lutas, aguentar essas amarguras? Qual é a razão da dor na vida? É um direito viver ou não? Pelo que o Racionalismo, a filosofia do século XVIII tinha então afirmado, os românticos afirmaram que não vale a pena viver. Os românticos deverão procurar uma outra razão de viver, a razão romântica da vida. É a razão que governa tudo na literatura inglesa, russa, alemã, portuguesa, e que se chama Romantismo. Quer dizer que, nos limiares do século XIX e durante a primeira metade deste, temos uma luta que é uma polêmica contra a Renascença, contra o Racionalismo e Iluminismo. Procurar-se-á destruir uma concepção clássica da existência, substituindo um valor por outro valor: para todos do século XVIII, o mundo não é somente razão, o homem não é somente racionalidade, mas é, além de tudo, sentimento e paixão, e é na base disso que surgirá uma nova literatura, espontânea, livre, viva, que destruirá as leis do Classicismo, e que é a literatura romântica, que é uma polêmica contra todas as leis de tempo, lugar, personagem que estabelecem o poema épico e o teatro, entre outros, todas aquelas leis imutáveis. O Romantismo quer a maior liberdade na arte, pois expõe o sentimento do poeta. Isso é o Romantismo. O que foi o Romantismo antes que ele chegasse a uma consciência de si? Isto é o que devemos ver, quem é que prepara o Romantismo. 187 188 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Devemos estudar o período de cinquenta anos no século XVIII em que se manifestam umas tendências de poesias procurando exprimir a dor, a amargura, a morte, os limites humanos, que são considerados como prolegômenos do Romantismo. Houve de fato na literatura clássica, cartesiana da segunda metade do século XVIII, nesta literatura límpida de Metastasio houve uma tendência, na qual uns poetas, cujos versos eram sombrios, tristes, nos quais a palavra adquire uma tonalidade amarga, profunda, não musical, não leve: é a poesia que prepara a literatura romântica. Essa literatura da segunda parte, que é pré-romântica, é justamente orientada a cantar a escuridão da noite, os silêncios dos túmulos, a cantar os choques interiores, as insatisfações da alma, a nossa inquietude diante da realidade, diante da vida, o contraste entre o que quereríamos e o que somos capazes de obter. Essa luta em ser e não ser desenvolve-se justamente no fim do século XVIII. Os maiores poetas nesse sentido não são italianos. Mas devemos falar em geral neles e ver como surgem e como toda a Europa se orienta baseada no sentimento. Toda a literatura do Romantismo é uma polêmica contra a cultura do Iluminismo, do Racionalismo e da cultura francesa, pois Descartes tinha reduzido tudo ao Racionalismo. Mas há tantas coisas que não sabemos julgar com a razão mas com o coração, e é isso que os românticos irão cantar: a amizade, as ilusões, a imortalidade, o amor. Como a imortalidade é Deus, que nenhum nega. Assim é a pátria, o amor, a beleza, a justiça, esses ideais pelos quais lutamos e pelos quais toleramos todas as amarguras que a vida oferece. Os primeiros poetas que dão um esqueleto filosófico ao Romantismo são os alemães, como Kant, Hegel, os irmãos Schlegel, Lessing e Goethe, entre outros. Foi todo esse movimento que recebeu seu caráter filosófico sério junto aos alemães. É visível na literatura inglesa, sobretudo nos poetas: Edward Young, autor de uma poesia, Pensieri noturni (1744), que não escreve sub luce, não exalta a força do homem, mas canta a noite, e deste virão Leopardi e Foscolo; Thomas Gray, que escreveu Elegia sopra un cimitero di campagna (1752), com seu amor calmo e profundo pela natureza, pela solidão; outro muito maior é James Macpherson, autor dos poemas de Ossian Fingal e Temora; Fingal é um poeta bardo da Escócia pré-romana, pai de Ossian, que é o poeta destes poemas que Macpherson imagina achar lá. Ele, com sua mentalidade de romântico, que sente essas paixões, esses amores, essas tragédias, esses ideais, revelando um mundo de heróis num panorama de montanhas azuladas, abismos, mortes, suicídios, tudo num conjunto de termos que são tipicamente românticos. Este poema foi traduzido ao italiano em Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos dois períodos: 1764 e 1772, e o tradutor foi Cesarotti. É essa literatura sombria, orientada para a noite, descrevendo essa insatisfação humana, que prepara a literatura romântica. Na Itália, quais são os poetas pré-românticos? Ippolito Pindemonte, tradutor de uma obra de Homero, a Odisseia. A Ilíada é o poema da mocidade, do heroísmo, e na Odisseia Homero canta a volta de Ulisses, é o poema da saudade, da melancolia, [Ulisses] que volta para casa, onde o esperam sua esposa e filho, onde o atende um maravilhoso pai, já velho, e um cachorro; e Ulisses encontra durante sua viagem imensas dificuldades. Pindemonte é também autor de uma obra, I cimiteri, que é importante porque, quando falarmos do maior poeta, que é Ugo Foscolo, este também é autor de I Sepolcri. Poesie campestri, que é um grupo de poesias breves, curtas, em que fala da meditação, da melancolia, da tristeza, também foram escritas por Pindemonte: “Melancolia, ninfa gentil, a minha vida entrego a você”. É um solilóquio. Outro é Alessandro Verri, autor de Le notti romane, poema em que imagina que as sombras dos maiores homens de Roma falam com as sombras dos Cipione. E aí também descreve os colóquios que ele imagina ter feito quanto à barbárie romana. É importante, por Alessandro Verri ter feito questão de sublinhar com o espírito da civilização romântica, pondo-se diante dos romanos, que eram violentos. Esses românticos, que vivem preparando a independência dos povos, esses homens já se põem diante da civilização romana já digna de ser apresentada com limites e restrições. E junto aos românticos alemães, vemos como se vão afastando do Classicismo. O Romantismo, lembrando tantas coisas da Renascença e também dos ateístas, que procurarão os motivos junto à Idade Média, à história deles mesmos, das selvas, nos Nibelungen, motivos mais autóctones. Temos ainda Vittorio Alfieri e Giambattista Vico, da crítica literária italiana. Então, todo esse quadro, para pôr em evidência o Pré-Romantismo, aquela atmosfera que prepara uma nova literatura, que é livre, espontânea, popular, liberta de qualquer mitologia e baseada sobretudo no sentimento e numa concepção amarga, triste, dolorida da vida, que parece que se põe uma interrogação: a vida vale a pena ser vivida? Deve ou não tolerar, suportar essas amarguras, diante dos próprios ideais? Diante dessas decepções da vida, devemos continuar a viver? Aspecto histórico: uma outra razão do Romantismo é a polêmica contra o Racionalismo e Descartes, contra o Enciclopedismo. 189 190 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Depois de Descartes, houve na França, com Voltaire, Rousseau, Diderot, d’Alembert, um movimento em que o homem é essencialmente razão. E quais as consequências? Que toda a história humana está no futuro, destruindo-se o passado. Isso é falso, é impossível construir uma felicidade destruindo o passado, porque a perfeição é uma consequência da imperfeição. É radical negar o passado e pensar num futuro melhor. É do passado que vem o melhor. Não negando o passado, mas através dele é que se constrói o amanhã. Esse é o limite desse movimento, o de negar o valor do passado, projetando o homem numa polêmica, destituindo do que é e o pondo diante de um futuro. Foi a tentativa que eles fizeram com a Revolução Francesa, que foi um buraco n’água, pois fez e não fez. Não é possível a luz sem a sombra e um dia que não seja sem noite. Isso é tipicamente romântico. O Romantismo é que dirá dessa dialética entre bem e mal, entre natureza e humanidade, que porá o problema do bem e mal, é uma superação da moral, não uma negação que está in re. O bem e o mal são dois abstratos. Está na síntese e na superação, numa outra realidade que a síntese da tese e antítese. O Racionalismo nega a História. O Romantismo afirma a História. Quando os italianos, espanhóis, portugueses, com suas colônias que se tornarão independentes, começarem a própria luta, cada um desses países achará energia olhando no próprio passado. A Alemanha volta aos Nibelungen, a Grécia volta aos grandes poetas, a Espanha volta-se contra os árabes; quer dizer que nunca se poderá construir algo sem se basear no passado. Vale mais o morto do que o vivo, afirmam os românticos. Os verdadeiros vivos são os mortos. Depois, os iluministas afirmam que o homem é exclusivamente razão e negavam outra atitude de nossa alma. Não sentiam o valor das paixões, das ilusões, só existiam as verdades claras e evidentes. Tudo isso deveria ser aceito, mas quantas outras coisas não são claras e evidentes, das quais vivemos. Nós gostamos de uma sombra até no amor, na amizade, nos sucessos da vida. Há algo em nós, um gosto pelo ignoto. O homem não é tão cristalino como queriam que o fosse os iluministas. E contra isso luta a arte romântica, que quer no homem, sobretudo, até chegar ao ponto de procurar no Romantismo um sentimento que é quase igual ao mal. Muitos foram chamados de maudites, como Baudelaire e outros, atacados do mal du siècle, com esses aspectos diabólicos da subconsciência humana. Toda a insatisfação diante da romanilidade superficial do Iluminismo tornava-os desejosos de conhecer os mistérios do Além, e então surge essa gama de poetas na França, Inglaterra, Itália, Espanha e outros países. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Falando sobre o Romantismo, diremos o que será a literatura do século XIX: sobretudo na primeira metade, é uma literatura essencialmente romântica. Até 1860, para chegar ao máximo, temos na Itália esse movimento caracterizado pelo Romantismo. Depois virá uma nova literatura, no sentido do Positivismo: virá aquela literatura que coincide com a caída de Napoleão III. A literatura do Positivismo abandona os ideais, as idealidades, as abstrações, os sentimentalismos da literatura romântica e procura pesquisar o homem, a sociedade, a maldade, e se orienta numa descrição objetiva, amarga, quase pessimista, em cores muito fortes de pobreza, de corrupção. Faz um diagnóstico da sociedade europeia. Os maiores escritores são Émile Zola e Giovanni Verga. Depois teremos uma literatura mística e, no mais, romântica e versátil, que se chamará Decadentismo. Os grandes homens do Decadentismo italiano são três: Pascoli, Carducci e d’Annunzio. Depois dele teremos a literatura contemporânea, representada por três movimentos: Crepuscularismo, Futurismo e a poesia do Hermetismo, que é a de hoje, com Ungaretti. Dissemos que o Romantismo é preanunciado por todo um movimento, uma literatura em que a expressão, a palavra, o período têm uma acentuação grave, triste, profunda, de tonalidade baixa; as palavras vão perdendo aquela limpidez e clareza que era própria do clássico e da primeira metade do século XVIII e da Arcádia. Agora não temos mais uma linguagem limpa como as gavottes, o rococó e Metastasio, essa linguagem dos músicos como Vivaldi, no fim do século XVII e no XVIII. Não há mais uma literatura que seja límpida como Ariosto, pois vai ficando cada vez mais profunda. Até os nomes são fortes, cheios de sugestões. A literatura romântica até na palavra adquire uma tonalidade desesperada: All’ombra dei cipressi; é uma poesia bem diferente de Ariosto. Há uma crise espiritual enorme, de onde surge esta literatura. Esta crise é esta desconfiança absoluta nas capacidades racionalistas do homem. Desmorona toda a concepção racionalista da vida, ficando um vácuo. Não é mais a deusa Razão que sabe explicar os problemas da vida, o porquê do morrer; o que fazemos, não é mais a razão que pode explicar tudo isso. Surgem problemas muito mais graves, sente-se a necessidade de enfrentar a vida muito mais, construindo sugestivamente e vivendo, vibrando, e tudo isso cria este estado d’alma, este pathos espiritual de onde surge esta literatura de grandes veias e de grandes idealidades. É uma espécie de faixa de luto na campa da literatura clássica do século XVIII. Mas devagar essa faixa preta vai transformando a literatura 191 192 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos europeia, com este sentido de novas formas poéticas e novos ritmos, preanunciados sobretudo por uma poesia e um cantar da morte, a tristeza dos nossos momentos íntimos e pessoais, de crise, de não saber o que fazer. Essa literatura, que num primeiro momento canta os grandes ideais, canta agora o que a vida nos obriga a ser, essa confissão de amargura, de tristeza, preferindo a morte a viver. No começo, encontra-se nos ingleses, com Young, Gray, Ossian, dando um caráter arcaico à sua obra. Na Itália temos um Cesarotti; mas em Pindemonte, em Verri, essa literatura lúgubre, triste, que ainda não constrói, que é a confissão de uma crise, é a poesia que surge sobre uma concepção de vida subjetiva, mas que ainda não é substituída por uma que constrói, que possa fazer com que o homem lute na sociedade e na política. Quando o Romantismo alcançar seus ideais e achar uma fé otimista, quando não for somente expressão de tristeza, de amargura, mas também hino e descrição de ideais vividos e sentidos, então no mundo inteiro teremos os grandes heroísmos com as conquistas da pátria, como no século XVIII. É o século da história da liberdade, da unidade, da independência dos povos. É isso que soube fazer o século XIX quando superada a crise do Racionalismo; o homem tem fé e acredita nas ilusões e ideais de glória, de amor, e então morre na Grécia, na Polônia, Itália, Portugal, México, Argentina e em outros países. É o período de San Martin e outros, dessas figuras colossais que, por um ideal altíssimo como o de criar a pátria, pela qual se deve viver lutando, morrem por ela. É preciso lembrar essa distinção entre o Romantismo e o Iluminismo, que negava o valor da História, ao passo que os românticos cantam o passado, através do qual é possível construir o futuro. Em qualquer país, os românticos falam de conceitos tristes e nobres, que não desprezam o passado. Então a literatura romântica reage a essa literatura iluminística, que nega o valor do país e da arte e de tudo aquilo que é produção de nossa fantasia, de nosso sentimento, porque o Racionalismo e Iluminismo nascem e surgem sob uma concepção racionalista e só afirmam o que é verdadeiro. E o que não é mais verdadeiro do que uma nota, um som, um poema? Mas eles não apreciaram a produção emotiva do homem, pois queriam acontecimentos, e o passado era um regresso, uma decadência do homem. O problema religioso: para o Iluminismo, a religião é uma forma irracional, porque a religião é quase mitologia, é emulação da razão, como a polêmica de Voltaire. Em vez, o romântico afirmará a necessidade da religião. O romântico europeu é quase todo cristão, e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos também os poetas cristãos estão dentro do catolicismo. O maior deles é Manzoni, que é católico e que escreve as melhores poesias de caráter religioso, além de I promessi sposi. No século XIX há uma necessidade imensa de religião. Muitas vezes, quando não achavam no cristianismo uma razão que os satisfizesse, que iluminasse a própria alma, iam procurar até cultos ignotos e místicos: o mal du siècle. A diferença entre o Iluminismo e o Romantismo é o problema da pátria. O Iluminismo afirmava o cosmopolitismo, que era uma concepção do cidadão como cidadão do mundo e não desta ou daquela pátria. Então, para o Iluminismo o problema da pátria não era um problema vivo. Para o romântico, é o problema de personalidade e não de individualismo, é um problema de nacionalidade e não de cosmopolitismo. Somos, antes de mais nada, brasileiros e pertencemos a uma pátria, pela qual vivemos. O mundo não é uma unidade abstrata, mas um conjunto de personalidades que se chama nação, que deve ser livre, independente, autônoma. Outro conceito: no Iluminismo se fala essencialmente de les droits de l‘homme. A revolução francesa, a revolução dos direitos. Em vez, o Romantismo não fala de direitos, fala de deveres. Tudo o que era direito torna-se dever dos românticos. É um dever ser forte, direito, honesto. É uma conquista e não uma concessão, pois a lei não garante nada disso, o que põe em evidência a ética romântica. Observe-se um pouco o rosto dos românticos, como Goethe, Lessing, Manzoni, Leopardi, e ver-se-á o rosto de apóstolos; não como Voltaire, com a sátira, mas um rosto generoso, pronto para morrer, figuras generosas, quase como Cristos. Há um soneto de Foscolo, “bello di fama e di ventura”, como são os românticos, todos bonitos pela glória e pela dor. Houve poetas que sempre vestiram luto, como Masini, porque não tinham a mãe – a pátria – que era sem liberdade, e então andavam de luto. A figura de Beethoven é a mais bonita. A missão do homem culto de Fichte. Quando se fala de nacionalidade, sentimento, vibração espiritual, o perigo do Romantismo é o de transformar isso em sentimentalidade. Não é uma queixa, mas um protesto contra a dor, um grito contra os contrastes da realidade. Os românticos, porém, firmes, heroicamente de pé diante das injustiças do conformismo, desse costume comum dos homens de se transformarem em sapos, são vivos, vibrantes, lutadores, preferindo a morte a viver. O Romantismo filosoficamente se completa e se afirma sobretudo junto aos alemães, com Kant (1724-1804), Emerson e outros. Depois, adquire na França um caráter individualista, morboso, misterioso, diabólico, um caráter social, político, oratório. Na Itália, o Romantismo 193 194 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos é um movimento que não se acha completamente adormecido. Na segunda metade do século XVIII, não podemos dizer que a Itália esteja adormecida, pois ela está acordando desde a Arcádia, que é uma reação ao Barroco do século XVII. Agora tem esse equilíbrio que revela uma renovação, que é mais evidente na segunda metade do século XVIII com três escritores, que são Goldoni, Parini e Alfieri. Com Goldoni, voltando à realidade; com Parini, voltando a uma seriedade moral com a História; e com Alfieri, que, exaltando a pátria, transforma os homens e mulheres em heróis. O Romantismo que está vindo da Europa acha a Itália acordada. Essa Itália onde tinham nascido o Humanismo e a Renascença, essa Itália ainda meio adormecida e que se vai agora passando para um período de convalescença, acorda com uma puxada de orelha de uma mulher viva, cheia de entusiasmo, essa mulher que é Germana de Staël. Ela publica sua obra na Itália em 1816 e cria um caso enorme, pois com ela insta os italianos a entrar no meio da literatura europeia, a conhecer os poetas alemães, franceses, espanhóis, a escrever coisas do presente e abandonar esse mundo muito longe da sensibilidade. Surgem então dois partidos, um a favor e um contra ela. Mas o Romantismo vai tomando pé, é uma corrente que não encontra uma Itália adormecida e acelera a inovação italiana e torna mais rápido esse movimento político, cultural e artístico italiano. O Romantismo se põe ao lado dessa inovação, acelerando-a. Nesse sentido, é um elemento vindo de fora, mas que não encontra uma Itália completamente morta, mas renovada, que se torna mais séria, mais profunda, mais concisa, por essa injeção de sensibilidade romântica. E temos assim a literatura romântica italiana. Até o presente momento fizemos uma introdução ao Romantismo, falando do Pré-Romantismo e, depois dele, em geral, como surge, onde e a que ele aspira. Pusemos em relação o Romantismo e a cultura iluminista e fizemos ver como o Romantismo quer ser a expressão de uma crise espiritual. Nos primeiros anos do século XIX, uma grandíssima crise espiritual surge, como hoje, depois de 1945, é tão evidente, em que os valores antigos vão caindo, não têm mais razão. Mas não se pode viver num governo em que só há injustiças, crueldades, dor, se não houver um ideal, um conjunto de ideais, de mensagens que sejam os motivos de fé, de esperança, de crença num mundo melhor. No fim do século XVIII e começo do XIX, é isso que acontece: acontecimentos políticos de grande importância, movimentos culturais de uma solidez são destinados a desmantelar-se, a tornar-se poeira, e criam uma decepção enorme na espiritualidade europeia. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Os acontecimentos mais importantes serão a Revolução Francesa, com o sangue, a crueldade, as guerras que até 1815 ensanguentarão a Europa. Aquele desejo de liberdade, em que eles perdem a independência, divididos por razões políticas pelo Congresso de Viena, será a razão da sua estaticidade e imobilidade, que deixa insatisfeitos os homens, procurando outros princípios religiosos. Será uma cultura que até então tinha entusiasmado o homem, baseada no fato de que o homem é razão, inteligência, capacidade, criando aquela atmosfera de otimismo, de dinamismo, de polêmica, de crítica, e criando uma esperança e quase uma certeza de que o mundo, desmanchando o passado, começaria a viver melhor. Era preciso que, com o Racionalismo e o Iluminismo e com Voltaire, Rousseau, D’Alembert, e com a Enciclopédia e a Revolução Francesa, se tentasse eliminar certos elementos do passado, como a monarquia, o clero, a injustiça social, e pensava-se que, eliminando isso, a ignorância, o dogmatismo, o mundo começaria a progredir e seria uma imensa cidade da qual nós seríamos cidadãos. O mundo, la patrie, é de todos, num plano de igualdade. Mas isto é uma utopia, porque nunca o mundo será feito de um modo tal que, estando na estrada do bem, continuaria nela. Nunca acontecerá no mundo que a humanidade tenha visto a estrada boa e não saia dela. É tão absurdo que o catolicismo, mais prudente e positivo, chega a dizer que o Paraíso só é possível no Além. Aqui na Terra há bem e mal, estrelas e lama, e o que é bonito sai do que é feio e o que é bonito cria o feio. O fascismo é uma coisa horrenda, o nazismo também, mas deles sai algo melhor. Seus defeitos farão com que se veja algo melhor. O progresso no mundo é resultado de um choque. Não se pode eliminar o mal, porque eliminar-se-ia o bem. O bem é uma consequência do mal. Mas não se deve bater palmas diante do ruim. Nunca seremos ótimos. Precisamos passar através do ruim. Deus é parado na sua perfeição. O homem, platonicamente, virá a ser bom e mau, é uma eterna dialética. A um certo momento, o que aconteceu na espiritualidade dos moços? O Iluminismo, que só fala de liberdade, paz, traz uma decepção enorme, porque os franceses só matam, só existe a morte com a guilhotina, de 1792, 1795, 1800, 1802, 1807, 1809, 1813, 1814 a 1815, é uma eterna luta. Nota-se que tudo isso está errado, é o que surge na psicologia europeia. Além disso, parece que no mundo há um maquinismo que não justifica a existência, parece tudo sem finalidade, não vale a pena, então, lutar, sofrer? Tudo isso cria o Romantismo. Hoje nós também vivemos isto, é eterno. Em qualquer país os moços e homens sentem, ao lado de uma convicção, uma decepção; ao lado de ideais, algo chocando com eles. 195 196 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Se o moço não ficasse insatisfeito diante da realidade, ela seria horrível. É preciso ser eternamente insatisfeito. Isso é essencial para entender o Romantismo. É uma aspiração à beleza, uma confissão de amargura, da incapacidade do homem; ele afirma tudo aquilo que o Iluminismo tinha escondido com sua fé na razão, matando o passado. É bobagem, porque o mundo nunca será imóvel na sua perfeição. O Romantismo é tudo isso, que se observa na poesia dos séculos XVIII e XIX. Por isso, são tristes, existe o Schmerz, existem Fausto, Marguerite, Lessing, os problemas de Hölderling, etc. Alguns caem no desespero, não é suficiente dizer que o mundo é uma contradição, é preciso lutar contra isso. Se se pensa que sua missão é ser como os outros, fica-se chato como os medíocres, ou herói, ou suicida, chegando ao desespero. Então, essa literatura é amarga, triste, séria, em que se tem a impressão de que quem escreve não é um literato, quem escreve dá a impressão de que não o faz por bonito. É o contrário: a sua luta é contra o formalismo, o que interessa a eles é uma coerência entre o que sofrem e o que dizem, entre o que fazem e o que escrevem, entre a inteligência e o coração. Tudo é uma confissão da verdade, da própria realidade. O Romantismo não é uma literatura descritiva como, em geral, a dos outros séculos. Não interessa o céu, a Lua, os rios. O Romantismo é todo um desabafo interior, e quando falam de Lua, é porque ela é a imagem da alma, quando falam do céu, é porque ele é o símbolo do idealismo, quando falam dos campos, é porque eles representam um desejo de solidão. Então, quando procuram uma imagem na natureza, é porque ela é a imagem da própria alma. A alma realiza uma imagem noturna, uma provação interior do espírito. O infinito é um desejo de superar as sebes da imobilidade, do silêncio, uma visão de uma coisa que queremos real, e então, “quer-se naufragar neste mar”. Silvia, não chegando à mocidade, é o símbolo dessa amargura de quem cresce para morrer. O Romantismo italiano Num certo momento, todo esse movimento chega à Itália e encontra uma literatura em movimento. Quais são as relações entre essa literatura iluminista já em movimento e o Romantismo que está transformando a realidade europeia em algo de amargo? Não é algo destrutivo, mas a acelera e faz mais profunda, mais consciente, mais Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos grave. É uma espécie de chicote num cavalo que já corre. E, ao chegar na Itália, sua literatura se transforma e perde algo de excessivamente italiano que possui, de nacional, de romano, de tradicional, e se torna europeia, joga-se na Europa, e a literatura italiana então corre junto com a de outros povos, num plano de igualdade, de intercomunicação. Ela não se fecha, mas se joga no continente europeu, com os outros países, respirando os mesmos ideais, sentindo as mesmas dores, desejando os mesmo ideais, e sente que tudo isso deve ser cantado numa forma nova. O Romantismo faz com que se resolva um problema antigo da Itália, que era: a Itália nunca soube libertar-se da influência clássica. Sempre teve uma tendência, uma saudade para com o mundo romano, para a literatura romana, para a cultura clássica. A Itália sempre sentiu a fascinação do Classicismo. É uma coisa nobre, muito bonita, mas uma grande restrição, tão grande que nós não temos medo em dizer que seja uma das razões pelas quais a literatura italiana não é rica em romances, porque o escritor é muito cheio de classicismo e o romance quer uma expressão livre. O italiano tem medo do romance como se fosse um gênero inferior à lírica. Isso é notável. Mas os franceses são mais cheios de romance e de comédia do que de obras firmes e acessíveis. Isso é um defeito. O Romantismo ajudou a literatura italiana a libertar-se definitivamente do formalismo clássico. Do século XIX para frente, a literatura italiana se tornará muito mais ágil, fácil, popular, e os ideais cantados agora são antes os ideais da idade em que vivem, ideais de amor, infelicidade, e não os dos gregos, romanos, etc. Jogam de lado a tradição, mas não combatendo-a, porque sempre ficam as aspirações à expressão linda, firme, tanto assim que Leopardi, Manzoni são bonitos de expressão e cheios de Romantismo. Mas o Romantismo põe diante deles um desejo de um Classicismo renovado, de um Classicismo romântico. Até 1816, o Romantismo já era conhecido na Itália, mas pode-se considerar que este é o ano em que entra oficialmente na Itália, e quem provoca esta discussão é Madame de Staël. Essa inteligente mulher, admiradora do Romantismo, é quem convida os italianos a jogar-se na literatura europeia e ler os problemas contemporâneos. Ela cria dois partidos: o favorável e o contrário. O segundo é feito pelos velhos, como Vincenzo Monti, que escreve uma obra para defender o Classicismo, não podendo esquecer o mundo grego, o mundo renascentista. Mas os moços se jogam ao lado dos românticos, dos insatisfeitos, e sobretudo Giovanni Berchet,54 que entra escrevendo em 1816 uma carta na qual comenta 54 (1783-1851) 197 198 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos duas baladas de Bürger, Sul cacciatore feroce e sulla Eleonora di G. A. Bürger. Nela expõe sua convicção sobre o Romantismo e dá seu apoio ao movimento romântico. Essa atitude dele não é isolada, porque tem ao seu lado um Pellico e um Manzoni, entre outros. O que o Romantismo italiano aceitou do europeu? 1. A espontaneidade da obra d’arte. É uma coisa que não se podia discutir. Tudo o que será escrito no Romantismo italiano deverá obedecer a esse dogma romântico, da espontaneidade da obra d’arte, não fria, estudada na biblioteca romana, mas a poesia que deve ser viva, com a facilidade de um barco que corre, e não cerebral; 2. Para os românticos é indiscutível que a obra d’arte deva ser uma produção da fantasia. Nasce no sentimento pelo sentimento. É importantíssimo. A fantasia é aquele momento em que nós não raciocinamos, mas sentimos. Escreve-se quando se sente. Se não há uma razão emotiva, não se pode ser poeta. É preciso sentir. Não que o sentimento seja o crisma, isso não. É preciso transformar o sentimento em imagem, em ritmo, em canto; 3. O Romantismo aceita que não deve haver distinção entre conteúdo e forma. Nem há distinção, porque as palavras surgem do sentimento, do conteúdo, quer dizer que tanto sabemos dizer quanto sentimos. A palavra nasce com o que queremos dizer. É a expressão, é síntese de conteúdo e forma. Se fosse só sentimento, a expressão ficaria fora. O sentimento é que se transforma em palavra. Nunca uma palavra do dicionário tem o valor que ela tem num verso, como Silvana, Nerina, etc. As palavras da poesia não são as mesmas do dicionário, nós é que somos os criadores das palavras; 4. A modernidade da inspiração. A obra d’arte deve cantar os problemas da idade em que vivemos. A poesia não é literatura, é ação, quer dizer que nós não podemos sentir o que há dois mil anos foi objeto do sentimento de uma nação. Devemos sentir aquilo que vivemos, os sentimentos que são de nossa idade. A poesia deve ser atualidade. Os antigos foram grandes, porque cantaram o momento. Devemos também cantar o que vivemos hoje, é contemporaneidade; 5 O Romantismo aceitou fundamentalmente a nacionalidade. O problema da pátria, os ideais. É o caráter que distingue o Romantismo italiano do dos outros países. Ele serviu-se para a liberdade da Itália, foi a serviço do problema político italiano. Uma literatura militante, nacional, que faz questão de cantar a liberdade, a independência, a unidade; 6. Para os românticos, a arte deve ter finalidade pedagógica. Ela deve instruir, iluminar, deve despertar na alma do povo o sentimento, os ideais; Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 7. A popularidade da arte. Ela não deve nascer na biblioteca, como resultado da corte dos Gonzaga, dos Aragonesi, da Igreja, não deve ser cortigiana, mas deve ser popular, dirigida ao povo, deve ser fácil, viva, vibrante. Ugo Foscolo (1778-1827) A primeira coisa que devemos observar: uma boa introdução e uma descrição da figura humana e poética de Foscolo. A confirmar o que já dissemos antes, que o Romantismo italiano não é um contraste do Renascimento com a segunda metade do século XVIII, a confirmar que o Romantismo renova o Classicismo italiano e este acompanha o Romantismo italiano, a confirmar que entre Classicismo e Romantismo e Romantismo e Classicismo há uma continuação, uma reciprocidade, a confirmar que o Romantismo começa com uma atitude neoclássica, temos entre o fim do século XVIII e os primeiros anos do século XIX, com Foscolo, Leopardi, Manzoni, uma fase que se pode chamar, pelo espírito, pelas atitudes que os poetas cantam, romântica; e pela forma com que são descritos e vividos os sentimentos, pode-se dizer que seja clássica, mas de um Classicismo romântico, romântica de uma classicidade nova: menos literária, mais artística. É um diálogo entre Classicismo e Romantismo. O Classicismo é a expressão, o gosto de uma linguagem aristocrática, que não desperdiça os sentimentos românticos numa linguagem popular, e o Romantismo dá ao Classicismo uns matizes, umas atitudes que o Classicismo anterior não tinha. O Romantismo enriquece a alma clássica e o Classicismo enobrece a amargura do Romantismo europeu. Esse neoclassicismo com que se manifesta o primeiro Romantismo italiano é representado por dois grandes escritores: Vincenzo Monti55 e Ugo Foscolo. Monti não é famoso por ter escrito uma imensidade de obras, mas porque traduziu a Ilíada de Homero, e é o escritor cuja musicalidade, perfeição de linguagem, cujo gosto não se pode pôr em dúvida. Porém, não teve as atitudes humanas, o caráter heroico dos que acreditavam nos novos ideais; por isso, é um escritor superficial, definido como um grande decorador da palavra fácil, cuja alma não é cheia daquele pathos ideal que é próprio do Romantismo. 55 (1754-1828) 199 200 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em vez, o verdadeiro escritor que representa a consciência de sua idade, que levanta imediatamente o Romantismo num plano europeu, fazendo com que o Romantismo italiano esteja à altura das outras formações românticas da Europa, dando a ele um respiro europeu e contemporâneo, é Ugo Foscolo. Porque o Romantismo ajuda a esse poeta, à alma dele a esclarecer-se, porque é um poeta que escreve na sinceridade, por uma crise espiritual que é a crise de todos os europeus. É um poeta que no Romantismo acha os elementos do seu canto e na sua vida acha, não os elementos literários, mas os reais de uma dor, e nele é que o artista se casa com o homem, nele é que volta aquela unidade entre poesia e humanidade, entre palavra e ideal, entre ação e sonho, é a aspiração que constitui o valor essencial da arte, da poesia, que é coerência, mensagem. Ele é primeira voz do Romantismo italiano. Em que consiste a mensagem romântica de Foscolo? É o poeta que, através de um drama interior, chega a dar uma interpretação religiosa à vida, aos problemas da nossa existência. É um poeta trágico, triste, amargo, que não cai na negação, no ceticismo, e que, através da dor, da decepção, chega a uma afirmação religiosa, a uma justificação religiosa da existência. Tudo na sua personalidade, na sua vida de moço e cidadão, no seu coração e inteligência e sentimento, tudo o levaria para uma negação da existência, o levaria a preferir a morte à vida. Entretanto, através dos anos de sua poesia, de 1802 a 1827, durante e através das várias obras dele em prosa, em poesia, de caráter fantástico ou crítico, percebe-se o imenso heroísmo deste homem procurando justificar a dor, a existência, resolver a existência humana. Tudo seria favorável na psicologia dele a negar qualquer valor da existência. Entretanto, sua poesia é piramidal e em ascensão para uma afirmação do caráter altamente, idealmente religioso. A dor, que num primeiro momento é diante de sua cultura, o choque, o contraste, a decepção, tudo isso acha na dialética da sua poesia uma interpretação luminosa, em vez, que lhe permite chegar a uma fé, a uma confiança, a uma conquista. Toda sua poesia, embora dolorosa, cheia de tristeza, toda ela é otimista. É um pessimismo cheio de otimismo. É uma voz amarga da realidade, mas cheia de luz, porque ele nunca cai na tentação de tomar uma atitude cética. Esse é o segredo da sensibilidade romântica dele, a de resolver de qualquer modo. Porque Foscolo não chegou a entender a filosofia, as conquistas da verdadeira filosofia romântica, não chegou a realizar o drama do pensamento romântico, não faz sua a filosofia romântica, que concebe a vida como dialética, o espírito como formalismo, a História como progresso, a realidade como finalidade. A realidade não é imóvel e mecânica, mas tem a sua finalidade; a História Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos não é um conjunto de acontecimentos ilógicos, mas é um drama de sangue e de ideais, de derrotas e de vitórias, num sentido de progresso. Foscolo não chegou a isso, sempre ficou na alma dele uma cultura mecanicista e materialista, em contraste com o espiritualismo e o idealismo do Romantismo, que era idealidade, finalidade. Para o Romantismo, a realidade e o homem têm uma finalidade; em vez, Foscolo nunca chegou a convencer-se disso, pois sempre fica na sua poesia este contraste entre idealismo e materialismo, entre finalidade e mecanicismo, entre a natureza e o homem. Ele não sabe conceber que o problema da filosofia romântica está numa síntese do bem e do mal. A História é também algo de alcançado e de não alcançado, é uma afirmação e uma negação. Na realidade, há uma razão de ser, nessa noite que vem depois do dia, nesse Sol que aparece quando não há estrelas, nesses rios que descem, nesse verde dos campos; há uma razão no chão e no céu, pois a natureza é algo de humano também, ela vive e o homem também, e tudo isso deve ter uma razão, que é o progresso. O século XIX é o da fé no progresso, do otimismo no melhoramento da civilização. Foscolo não chega a isso, e sua filosofia tem algo de amargo e ideal. Mas sua grandeza está nisso: nunca é cético, mas sempre cheio de entusiasmo. Ele acha poeticamente, humanamente e sentimentalmente a razão do nosso existir, pois nós devemos viver, apesar de tudo, e não somente viver, mas viver para uns deveres, uns ideais. Dever e ideal são dois termos errados para Foscolo, pois, não tendo alcançado a convicção da filosofia romântica, não poderia chamar de ideais aquelas razões que justificam a nossa existência. Ideal é um conceito real e um valor. Não deveríamos dizer que ele alcança a razão do existir: deve-se existir para realizar, para atualizar altíssimos ideais. Mas está errado, porque ideal é uma coisa real, nada é mais real do que o ideal. O ideal é uma realidade ideal, que é muito mais eterna, categórica. Só será realidade se se humanizar. Uma poesia não é uma poesia até que eu a domine com o mundo espiritual. É o domínio humano que transforma o material em ideal, Foscolo não chegou ao ideal. Como chamou seus ideais? Chamou-os de illusione. Nós devemos existir para realizar as nossas ilusões, e aqui está a amargura e a sua beleza: ele sabe o que o homem sofre para viver; é uma ilusão, em nome da qual devemos lutar, mais do que em nome de uma fé clara, que é até interesseira. Esse desejo, esse sentimento desse subconsciente emotivo é a razão pela qual devemos viver. A pátria é uma ilusão para Foscolo, pois nunca será aquilo que queremos que seja. O amor é uma ilusão, a 201 202 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos imortalidade é uma ilusão. Se fosse um ideal, teríamos uma realidade até material na imortalidade, que para ele só consiste em ser lembrado pelos póstumos. O homem não será imortal fisicamente, continuando velho ou moço, isso é só uma aspiração. A mulher, a beleza, tudo isso são nomes dessas ilusões pelas quais devemos viver, dessas ilusões que, por serem excessivamente bonitas, acham e encontram sempre sebes, como a de Leopardi, impedindo a realização do infinito, que fica diante de nossos olhos como uma realidade fantástica. Devemos pôr as ilusões no amor, na família, em todos os lugares devemos levar esse mundo de ilusões e agir em nome dele. É uma concepção altamente religiosa, não no sentido tradicional da palavra, pois fica fora de qualquer religião. É mais um sentimento do que uma fé, é mais do que um conjunto de dogmas, de elementos de fé, mais no sentido de religiosidade do que de religião. Por isso, Foscolo é a primeira voz do Romantismo italiano. Os moços italianos amam imensamente sua poesia, porque é a imagem do drama, da crise, da intimidade deles, dos anos cheios de melancolia, de aspirações, cheios de desespero e de pudor, em que a gente só quer uma infinidade de coisas bonitas e gasta os anos nos bancos da escola, num ambiente banal, e então sente aquele choque, e a poesia de Foscolo dá esses golpes de asas, e ele é o sermão dos juvenis. Essa é a introdução de sua poesia. Ela tem sua dialética. É uma poesia dinâmica, que não é estática, que não afirma, que não canta sempre o mesmo tema, mas é um poeta numa eterna insatisfação, numa eterna e interior dialética, procurando uma solução. Sua poesia e obras deverão ser vistas sucessivamente, até chegarmos ao ponto em que sentimos que ele se realiza completamente. Foscolo não começa como acaba, ele se procura intimamente, escrevendo não na base de uma cultura, mas de um sentimento. Seu espírito é que lhe sugere de momento em momento atitudes que não são isoladas, contraditórias, mas que se sucedem como faces, como aspectos diferentes, é um crescendo de um motivo que se resolve no sucessivo. É como um único volume, com momentos e atos diferentes, um ligado ao outro, um resolvendo o outro. Quais são esses momentos? Os fundamentais são: Ultime lettere di Iacopo Ortis Observe-se o título. O que são? Um romance epistolar autobiográfico. O interessante é que essas cartas não são intermináveis, não abraçam muitos anos de vida. São as últimas dos últimos tempos, e aqui já há muito de romântico. São a descrição de um drama, de um choque, uma solução. São confissões e não contemplação; não são de Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma forma olímpica, serena, meiga, mas são desesperos, confissões, aberturas de insatisfações, de ideais, de negações, de pessimismo, são uma confissão que justificam até o final desse romance. Iacopo Ortis são dois nomes sobretudo românticos. Como é autobiográfico, não é o poeta que inventa, como Walter Scott; não é uma obra da imaginação, como Júlio Verne; mas são coisas que ele próprio sente e que confia a um personagem. Não é como acontece nos dramas clássicos, não é uma figura objetiva da literatura contemporânea italiana, porque é subjetiva, é uma projeção de si mesmo. Iacopo Ortis é Foscolo idealizado, representado numa obra d’arte, abaixo de um nome que destaca um pouco os fatos biográficos, num fato de arte. Foi escrita em 1802, uma época triste na Europa por muitas razões: é o período de Napoleão, que já tinha semeado de sangue a Itália e decepcionado os grandes admiradores dele, entre os quais Foscolo, que acreditava no corso, nesse revolucionário general, que levava a guerra à Europa, dizendo que derrubava os tronos para levantar as cabanas e que invadia os povos para dar-lhes a liberdade e a independência. Mas, entre outras decepções, uma foi grandíssima: a de 1797. Napoleão invadiu a Itália, conquistou a Itália setentrional e Veneza, que cai com os seus séculos de história, que era um símbolo com suas naves, que trazia as riquezas das Índias, que dominava o Oriente, essa Veneza dos doges, depois de tantos séculos de sangue e de heroicidade, essa Veneza cai podre abaixo da força e do vigor de Napoleão. Ele declara o Reino Unido da Itália do Norte. Mas, por uma razão política, faz um acordo com a Áustria: cede Milão à Áustria e a Áustria lhe cede a Lombardia. A Áustria troca Milão por Veneza, e os franceses então vão dominar em Milão. Há uma troca de povos. Napoleão troca o destino de um povo, como se fosse um moço qualquer. É o Tratado de Campoformio. Então, em 1797, com dezenove anos, imagina que o protagonista deste romance seja um moço de Veneza que está estudando na Universidade de Padova e sabe que Napoleão tinha vendido Veneza à Áustria, trocando com Milão. Iacopo Ortis abandona os estudos, pega sua roupa, beija sua mãe e vai para Veneza, ofendido, pondo-se diante do mundo numa polêmica sem conciliação. Ele vê o seu ídolo Napoleão tratando tão mal um dos ideais vivos na alma da mocidade, que é o sentimento da pátria. Foi viver na solidão; escolhe um lugar perto de Padova: o Colle Eugani. São os colles que dividem a Pianura Pagana. Solitário, falando com as montanhas, ele tem outra imensa decepção de ideal. Conhece uma moça, Teresa, bonita, gostando de poesia romântica como ele, infeliz como ele, cheia de idealismos como ele. Ela é infeliz porque é obrigada a casar com um moço que não ama, que é o protótipo 203 204 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos da burocracia: gosta de comodidade, etc. Esse moço é Odoardo, e deve casar com ela por inspirar confiança aos pais de Teresa. Mas ela ama Iacopo Ortis. Acontece que, para esquecer, para não pensar sempre nela, ele viaja, sai, e vai viver em Pádua, em Bolonha, em Milão, e, por último, volta a Colle Eugani. E tendo escrito uma carta a ela, finca um punhal no coração. São duas então as decepções deste poema: a pátria e o amor. A mocidade, aos dezoito anos, entra na vida cheio de idealismo e pensa que todos lhe querem bem, e ao entrar na realidade, nota que a pátria é algo que se vende e que o amor é algo de triste para o coração de um moço. Esta é a primeira obra em que a dialética de Foscolo adquire a exasperação do seu pessimismo, em que sua alma se revela em toda sua loucura, chegando a negar a vida e procurando a morte. É a primeira grande obra do Romantismo italiano, é uma voz dele. Porque é justamente em que aparece pela primeira vez essa desconfiança diante da vida, em que os valores da vida são negados, em que os choques com a realidade levam a uma negação e ao suicídio. Nesse sentido, é uma obra romântica. Prevalecem as dores, as insatisfações. Os ideais, os entusiasmos, manchados, curtidos, mortificados pela realidade. A realidade da vida parece uma foice cortando as asas dos nossos entusiasmos. Então, nesta obra aparece tudo aquilo que é o pathos, o conteúdo, a emotividade, o sentimento de onde sai o Romantismo. É também tipicamente italiano, isto é, escrito por um italiano, quando na literatura italiana do século XIX aparece o problema da italianidade, o problema da pátria, com um ideal, uma exasperada saudade do que essa terra foi e do que deveria ser. Aqui não fala um homem político, ligado a este ou àquele partido. Não fala um homem que segue um ideal social, isto é, que fale da justiça e da injustiça entre ricos e pobres, que tenha ideais revolucionários. Quem está falando é um italiano que, num plano superior, porque ama a terra em que vive, é a primeira expressão daqueles ideais próprios da espiritualidade europeia, que neste momento sente, em muitas partes da Europa, como deveres de homem e de cidadão, a necessidade de realizar a liberdade, a unidade e a independência da pátria. Esta obra tem muitos defeitos, mas é uma grande obra. Eles estão incluídos na definição, isto é, é mais uma definição do que uma contemplação. O defeito fundamental é que Foscolo faz do seu protagonista um moço que é um contraste, dominado por duas paixões diferentes: uma, romântica, sentimental, isto é, o amor para com Teresa, sua simpatia, a comunhão interior entre ele e essa moça sacrificada Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ao interesse, a uma voz prática da vida; ele é também dominado pelo sentimento pátrio, pela Itália, pela falta de liberdade. A obra não teria nada de mal se ele resolvesse numa unidade emotiva esses dois temas, mas o fato é que esse é o defeito da obra: nunca o amor para com Teresa se põe num plano patriótico, nunca combina com a pátria. Não é um enamorado que ama a pátria nem um patriota enamorado. Parece estar em luta entre os dois sentimentos, faltando à obra unidade sentimental. Onde Foscolo exulta sobretudo Iacopo Ortis como cidadão, às vezes cai numa certa eloquência excessiva, e quando fala no amor para com Teresa, alcança expressões muito sentimentais. Falta equilíbrio no tema sentimental e no nacional. Apesar disso, essa obra é imensamente grande. É preciso lembrar duas obras: Die Leiden des jungen Werthers, de Goethe, que se move sobre esses temas, e Ultime lettere di Iacopo Ortis, dominada pelo amor e pela pátria. Análise da produção poética de Foscolo I Sonetti Os sonetos (escritos de 1798 a 1802) são a primeira manifestação poética de Foscolo. Conhecido como um dos maiores escritores italianos de sonetos, Foscolo com eles continua aquela gloriosa tradição de sonetistas italianos que começam com Guinizelli e perpetuam-se com Dante, Petrarca, Tasso, tornam-se expressão altíssima com Alfieri e tornam-se, com Foscolo, não um ideal transformado em suavidade, em sonho, em fé, como em Dante e Petrarca, mas uma visão amarga, uma dor parada, uma imobilidade e uma resignação diante da negação dos ideais, e a morte é como um elemento da natureza. Foscolo, num plano dantesco de altíssima idealidade, transmite ao soneto uma amargura de expressão, uma densidade dolorosa, uma sensibilidade sem felicidade, um desabafo parado, imóvel, quase desesperado, uma gravidade que o soneto de Dante não pode ter, pois descreveu Beatriz numa base de fé, e então Beatriz é cantada como uma melodia quase horizontal, aberta, larga, simples. Petrarca, em vez, transforma seu motivo ideal numa suavidade, numa visão, num sonho, é o poeta do violino com a surdina. Foscolo, em vez, torna o soneto imóvel, com uma amargura, uma dor parada, uma visão que não se consola, que não acha confiança, que exprime uma resignação. Mesmo assim, os sonetos ainda são como 205 206 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos um intermezzo entre as paixões que tumultuam em Iacopo Ortis e a serenidade apaixonada de I Sepolcri. Já são um volver-se interior do desespero à resignação. Foscolo é escritor de doze sonetos. E eles na sua poesia representam uma serenação diante de Iacopo Ortis, porque, se as cartas exprimem a exasperação do pessimismo, os sonetos representam uma atitude mais íntima, mais calma, mais parada, desesperada, triste, mas não negativa. Foscolo parece aceitar as leis naturais da vida, isto é, a dor, a negação dos ideais, parece aceitar a morte como um elemento da natureza. Há neles uma atmosfera imóvel, que não é mais o desespero de Iacopo Ortis. Três sonetos são essencialmente dignos de ser lembrados como os melhores da literatura italiana: Alla sera, A Zacinto, In morte del fratello Giovanni, que, com três títulos tão diversos, trazem em seu germe a resignação da morte, como uma conclusão a todas as belas imagens antes descritas. Alla sera É Foscolo diante do cair do Sol, diante dessas sombras que fecham a luz, a atividade, o movimento do dia, e que jogam o mundo nesse silêncio, nessa escuridão, nessa imobilidade que é a noite. Foscolo, diante desse espetáculo, sente que há uma analogia entre a natureza e o homem. Consiste no seguinte: como existe para a natureza a noite, assim existe para a vida humana uma noite, que é a morte. A morte é essa sombra que fecha as atividades humanas, que leva do cenário do mundo o homem, com os seus ideais. Tira a morte o homem desse cansaço, dessa responsabilidade, assim como a noite tira a natureza do seu esforço ativo do dia. Se então a morte encontra sua imagem na noite, quando ela desce ao mundo, tanto no inverno como no verão, nós a abençoamos e saudamos com imensa saudade; embora ela no inverno apareça triste, esquálida, trazendo nuvens impressionantes, ela é bonita também no verão, quando, como uma jovem, passa, acompanhada pelos ventos, os zéfiros. A noite, como a morte, leva o homem a pensar. E ele, pensando, chega à conclusão que todo dia acabará, o que poderia dar motivo de desespero incrível, de amargura. Entretanto, nesse soneto Foscolo declara sua felicidade diante da constatação do fim, da realidade, porque sente que seu espírito, seu pessimismo diante desse espetáculo da noite e da morte o fazem pensar. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A Zacinto56 É o soneto em que Foscolo chora sobre as coisas que nós perdemos na vida. Tudo o homem perde, o que ele sonha e deseja na infância, na adolescência, na idade que o leva justamente à vida. Então, é o soneto em que Foscolo chora, medita, pensa, aperta-se-lhe o coração diante do que ele e os homens perdem na vida. Tudo o homem perde: quantos sonhos e imaginações não nos acompanham? Quantos ideais não nos estimulam a desejar o futuro mais cedo do que ele vem? Não vemos a hora de chegar aquilo, pois temos a impressão de que aí se realizam. É a poesia que Foscolo dedica à cidade em que nasceu, Zacinto, uma ilha da Grécia que pertencia a Veneza, por isso é poeta italiano. É uma saudação à pátria. Todos no mundo têm a sorte de rever a pátria, menos ele, pois, entre as outras decepções e amarguras, sente que lhe faltará também esse dom, o de rever a terra em que nasceu. Ele evoca sua infância naquela pátria, sonhando na cidade, fantasticando naquela ilha cheia de árvores, de atmosfera que se espelha no mar e que é vista mais como uma imagem do mar do que em realidade na terra. Não é um mar comum, igual aos outros, pois dele, num certo momento, saiu Vênus, envolta de espuma. Ele deu ao mundo uma mulher, que é símbolo da beleza. Então Foscolo evoca esta ilha, que é tão bonita que o próprio Homero, cantando coisas que não tinham nada a ver com Zacinto, não pôde diante daquela beleza silenciar e entoa um hino ao céu e às árvores de Zacinto. Até que Homero acabou de cantar a peregrinação de um infeliz, que, contrariamente a Foscolo, teve porém a sorte de voltar à terra natal; uma terra menos bonita, mas é a pátria de Ulisses, que beijou sua Ítaca pedrosa. Foscolo sente que morrerá longe da terra em que nasceu e termina dizendo que os estrangeiros se lembrem de levar aos olhos de sua mãe o seu corpo. A Zacinto é todo um hino de saudação à sua pátria distante, é todo um lamento por não poder mais rever sua terra natal, em que exprime sua recordação, seu íntimo afeto para com a ilha em que nasceu e que ele agora vê como através de um sonho, não como uma imagem brilhante, cuja fulgurante beleza fere a vista, mas como um reflexo, espelhada nas águas do mar, como a imagem das coisas perdidas na vida. De certo modo, para Foscolo é o cantar de sua infância desaparecida, do seu próprio eu que deixou em Zacinto, dessa sua meninice feliz e despreocupada, rodeada de árvores, pelo céu límpido e pelo mar tão belos, que só uma deusa poderia ter criado toda aquela beleza. É em 56 Soneto analisado em aula. 207 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 208 Zacinto que ele vê sua cidade, não mais na materialidade de suas ruas e palácios, mas apenas na sua delicada imagem, que se reflete no mar; é em Zacinto que ele vê sua infância, onde seu “corpo fanciuletto giacque nelle sacre sponde”,57 ainda não imaginando que a dor e a amargura da existência logo fariam um outro berço para ele. E, ao envolver-se no turbilhão da existência, as correntes das decepções arrastam-no de um lugar ao outro em procura de um ancoradouro, que ele só encontra quando uma vaga mais serena o leva de volta a Zacinto, neste mar cujas ondas foram o berço de uma divindade. Foi a virgem Venere que, nascendo do mar, deu a transparência do céu e a exuberância de suas florestas com seu primeiro sorriso, que recorda este ambiente helênico que preanuncia as Grazie. In morte del fratello Giovanni58 Foscolo diz que, um dia, se ele não for obrigado eternamente a fugir, um dia ele quer ir ao túmulo do seu irmão, chorando o destino fatal desse Giovanni, que, ainda moço, preferiu morrer. A razão da morte é banal: era oficial e se matou pela honra. Mas Foscolo transfigura a razão, atribuindo ao irmão as razões pelas quais ele prefere morrer. Esta é a segunda fase da personalidade poética de Foscolo, que se abre com essa calma, com essa visão da morte, com essa resignação diante de uma morte sentida como um motivo amargo, mas natural, e que deve ser respeitada e considerada, embora com toda amargura. A outra fase de sua poesia é representada, de 1800 a 1803, por suas odes: A Luigia Pallavicini caduta da cavallo e All’amica risanata.59 Por que essas duas odes representam um sucessivo momento na poesia de Foscolo? O que é que nelas aparece de novo para colocá-las depois de Ultime lettere e dos sonetos? O que há nelas de novo, qual é a sua mensagem? As duas odes são o hino nobre, clássico, límpido, entusiasta, sincero que Foscolo levanta à beleza. É a homenagem de Foscolo a uma das ilusões da existência, a beleza. Até agora, nas duas primeiras obras vimos que Foscolo cantou sobretudo nas tonalidades graves da decepção, da amargura, do choque, do desespero. Aqui não, pois está aparecendo algo que poderia justificar a existência, que poderia dar uma razão ao nosso viver. Como poderia gozar a beleza humana, a arte, a música, a natureza, como poderia viver essas emoções se não houvesse a vida? “corpo de criança jazeu nas sacras margens” Analisado em aula. 59 Antonietta Fagnani Arese. 57 58 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Não vale a pena viver se, vivendo, gozamos tudo isso? Não é já algo, tudo isso? A vida não parece que seja somente negação e destruição. Nem tudo é ruim, nem tudo está perdido. Há algo que a levanta e enobrece, que lhe dá um conteúdo, uma razão pela qual podemos dizer que a vida é uma coisa bonita. Essa é a razão: a contemplação da beleza. Só vivendo é possível viver e adorar a beleza. A beleza, não somente num sentido físico, natural, mas a beleza num sentido platônico, ideal. Se não houvesse a existência, como o homem teria a visão do belo? Então há já uma razão sobre a qual Foscolo coloca os seus pés. Ele já achou um dos motivos pelos quais procura o viver: a beleza. Nestas duas poesias, um outro motivo aparece pelo qual devemos viver: é a poesia, ao lado da beleza. Como não é bonito ser poeta, que satisfação maior do que de exprimir os próprios sentimentos, emoções, num ritmo de expressão, de imagens, o que há de mais bonito do que pegar uma caneta e escrever um conto, pintar um quadro, o que há de mais bonito do que a arte? E como se poderia ser poeta se não se vivesse? A poesia tem um valor formidável. Nada aguenta a poesia. Só ela faz com que o homem possa eternizar o que ele sente. Há no homem um elemento de imortalidade: Dante não morre, Petrarca, Beethoven, da Vinci, pois o que eles cantaram é eterno, é vivo, é lido. A única coisa que existe é a poesia: de um poeta não se pode esquecer, ainda que falem mal dele. Então esse conceito altíssimo: o valor eternizador da poesia. Esses dois motivos e ilusões já representam um aspecto construtivo da poesia de Foscolo, estamos vendo esse dinamismo, como ele já encontrou duas razões pelas quais já vale a pena viver: a beleza e a poesia. A Luigia Pallavicini caduta da cavallo Tece um hino à beleza. Suas duas odes são a homenagem, a interpretação romântica, a expressão da admiração, da solidariedade, da simpatia ideal do Foscolo para com a beleza. Com a beleza física e, sobretudo, a ideal, que para ele já representa um elemento positivo diante da negação, das decepções da vida. Ela se levanta das amarguras, luminosa e cheia de fascínio e enérgica, capaz de criar em nós vibrações. A beleza é uma das razões pela qual o homem sabe viver e morrer, porque uma das coisas mais contraditórias e ao mesmo tempo verdadeiras, como diz Camille,60 é que sempre o ideal pelo qual gostamos de viver é o ideal pelo qual somos capazes de morrer. É um canto à beleza, num Camila, irmã dos Horácios, morta pelo irmão porque chorava a morte de seu noivo, um “Curiáceo”. Personagem da tragédia Os Horácios, de Corneille. 60 209 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 210 sentido complexo, pois em nome dela é que o homem sabe enfrentar as dificuldades da vida. A primeira das odes ainda conserva algo de físico. Parece uma homenagem digna da literatura da Arcádia, porque ela fica ainda num plano exterior, não é profunda, ideal, não é elemento teórico e desinteressado, como é a segunda, mas apesar disso é um hino cheio de tradições, uma ode cheia de uma atitude de receio diante dos perigos que ameaçam a beleza. Essa flor que dá vida ao mundo, esse perfume que nobiliza a realidade, a mediocridade da vida real, essa flor corre infinitos perigos. Às vezes o homem os cria, como, por exemplo, a equitação. É um exercício vigoroso, viril. Entretanto, Luigia Pallavicini, que é o símbolo da beleza lígure, que é o fulcro da sociedade genovesa, ama a equitação. E um dia, galopando nas praias do mar lígure, entre Gênova e Nova Lígure, numa praia cheia de pedras, deserta, bonita, cheia de uma natureza romântica, que não tem nada de plácido, calmo, as ondas do mar amedrontam o cavalo e o seu par cai dos estribos, e ele por um comprido curso leva essa mulher bonita pelo chão, arrastada. Então, o seu rosto, símbolo de beleza, fica cheio de feridas. Nada adiantam as perícias dos médicos. Ela não tem mais a cintilação dessa Vênus quando Foscolo era tenente em Nápoles. Então essa mulher teve, daquele dia em diante, de velar o rosto com um véu preto, que escondia as cicatrizes. Esta poesia é justamente essa trepidação, essa amargura diante dos perigos, das tempestades que derrubam essas flores bonitas, esses rostos pelos quais os homens que sofrem são capazes de reconciliar-se com a vida. Foscolo procura salientar a monstruosidade do cavalo, a irracionalidade dele, e em vez, o que ele procura idealizar, tornar mais delicado, mais gentil, é a mulher, que se transforma num véu branco, como uma espuma, em algo de fácil que só se percebe como uma cor. Então, essa coisa bonita, frágil, rara, singular, que é a beleza, se transforma em algo de vítreo, em cima de um animal. E a paisagem dessa calamidade é justamente a solidão da praia, as montanhas da Ligúria e o furor desse cavalo inexorável, que destruiu a beleza, que é a visão de algo que justifica a vida. All’amica risanata61 Depois de uma doença, volta a sarar, volta a ser o que era. Aqui, nesta poesia, a doença é um simples parêntese. Enquanto ela é o 61 Analisado em aula. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos fulcro da poesia, aqui é um simples parêntese, porque o que interessa a Foscolo aqui é cantar esse retorno da beleza. O ritmo, a melodia são numa ascensão que se torna mais aguda, mais alta, é uma melodia que começa baixo e se levanta para os agudos. Aqui não canta os perigos, a desgraça, mas os elementos da beleza desta mulher, cujos olhos encantam, cuja elegância é tal que parece que pinta e não desenha. Parece que ela pinta a dança, parece uma pintora, parece uma divindade, parece aquela estrela maravilhosa que é a primeira a aparecer e a última a sair do céu no amanhecer, porque, sendo Vênus, é a divindade, enamorada do Sol; aparece antes das outras, porque vai saudar o Sol que vai dormir. Por que quer ser a última a sair? Para saudar o Sol que volta. Então essa moça se levanta para a vida, para a sociedade, para os moços de Milão, levanta-se santificada, portadora da felicidade, justamente como se fosse uma deusa. O poeta que inicia, depois de ter descrito o surgir de Vênus, diz que não é ela, afinal de contas, que esteve doente. Era como se estivesse doente. A doença ela deixa na cama. E se levanta, como era, cheia de fascínio, preocupando suas amigas, que estão ciumentas, preocupando as mães das moças. Como acaba esta poesia? A última parte dela é a seguinte: Foscolo diz que não é a primeira vez que os poetas cantam deusas, porque, no passado, na literatura grega, poetas cantaram seres humanos destinados a morrer, contingentes como são os humanos. Mas como se poderia lembrar hoje Antonietta Fagnani, que volta à sua mocidade, que sabe que para ela também haverá um dia fatal? Como se poderia dizer que também estaria submissa à lei total? Ela é uma das mulheres que não morreram, assim como também não morreram as mulheres antigas, Diana, a caçadora, Belona, a lutadora, e Vênus, a beleza, que, de seres mortais que eram, ficaram deusas. Quem eram, afinal de contas, Diana, Belona e Vênus? Nada mais do que moças, uma famosa por ser caçadora, a outra porque combatia e a terceira por ser bonita. Mas quando a poesia tocou esses três seres, a capacidade de Diana, Belona e o fascínio de Vênus, como beleza, essas mortais se tornaram imortais. Sai deste conceito que a poesia é justamente essa força que toca as coisas mortais e as torna imortais, que se inspira em um ser humano e o torna divino, que canta uma mulher e a torna deusa. A poesia é capaz de transformar um sentimento numa coisa eterna. Nunca morre o céu da poesia, nunca acaba o céu onde a poesia coloca seu sentimento. É a única força que o homem possui para transformar tudo que é mortal em algo de eterno, sublime, imorredouro. E a fé, a convicção profunda no valor da literatura. 211 212 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Hoje em dia um poeta é um desprezado, considerado um coitado. Em qualquer lugar do mundo, o artista vive fora da sociedade: Picasso, Ungaretti, Thomas Mann, essas figuras de escritores que, amando a liberdade, sempre foram desprezados. Vale mais um calibre 38 que um maravilhoso verso. Entretanto, a única coisa que conta no homem é essa capacidade de entusiasmar, essa fé no progresso que sai do poeta. Não é o poeta que joga o ceticismo, é sempre a amargura de um poeta que produz o entusiasmo. Não há um que não seja cheio de entusiasmo. Ninguém tem coragem de dizer que o choro é uma bobagem. A poesia é este anelo secreto que é capaz de reproduzir o entusiasmo, ou de criá-lo, ou pelo menos tem essa mínima capacidade de poder entendê-lo, o que já é uma satisfação. Já que não podemos ser deuses, pelo menos tendo gosto, embora diferente do gênio, o gosto é capaz de entender o gênio. O gênio sabe multiplicar a natureza, tornando-a poesia. I Sepolcri É assim intitulada. Entretanto, numa poesia em que se canta a morte, em que se chora diante do limite humano, diante do destino amargo em que o homem sabe que tem uma duração que não vai além de um certo período e que deve deixar amores, simpatias, então nesta obra, em vez, em que só se fala da vida, em que não é a morte que interessa, mas a vida, os ideais pelos quais devemos viver, então esse pessimismo criando um otimismo, essa visão amarga criando o estímulo da vida. Essa consciência do nosso morrer e ao mesmo tempo essa aspiração a uma imortalidade que só se consegue através de uma atitude de honestidade, de empenho. I Sepolcri foram publicados em Bréscia em 1807. Há muitas razões que justificam a publicação dessa obra. Mas três são essencialmente fundamentais: 1. No Pré-Romantismo italiano houve um escritor, Ippolito Pindemonte, que escreveu nesse mesmo período uns versos, uma poesia em versos soltos, que ele nunca acabou, e cujo título era I Cimiteri. Sobre essa obra Pindemonte teve com Foscolo conversações em Veneza. Um dos motivos exteriores da publicação dessa obra é esse; 2. Há uma razão histórica mais importante: em 1804, Napoleão, na lei de Saint-Cloud, tinha proibido na França que os mortos fossem sepultados nas igrejas, de modo que os túmulos fossem colocados fora da cidade, num lugar igual para todos, e que as inscrições tivessem os nomes examinados antes de serem colocados, por uma comissão. Já em 1806, essa lei valia também na Itália. Então acabava aquele costume Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos medieval de levar o morto para a igreja, abaixo da igreja. Acabava também aquela questão de dizer que este é importante, aquele é pobre. Acabava a distinção. Havia também uma questão de caráter higiênico: eles deviam ser sepultados longe da igreja, pois a cidade é viva, é alegre. Napoleão não fazia isso por razões ideais, mas por demagogia. Ele queria fazer ver que havia igualdade entre os povos. É uma razão de caráter polêmico, pois, num momento Foscolo descreve as mulheres que vão rezar na igreja. Naquele então, não era só igreja, era também o lugar dos mortos, então as mais moças voltavam para casa à noite e afastavam os meninos recém-nascidos, pois viviam nesse conúbio de cheiro de altar e de mortos; 3. É uma razão de caráter pessoal e moral: I Sepolcri representam o momento em que, decididamente, emotivamente, com todo seu entusiasmo, religiosamente, Foscolo volta a crer na vida, em que resolve seu drama romântico. Este poema é sua mensagem. Ele achou sob um ponto de vista emotivo a razão pela qual ele vive e pela qual nós vivemos. É que a morte é somente uma coisa física, um conceito material. Acima da morte há algo muito mais importante, e esta ressurreição é somente conseguida agindo e sendo nobres na vida. Morre somente quem não faz nada, quem não gasta a existência, quem não tem fé, quem é egoísta, quem não polemiza, não age para o melhor. Mas quem possui virtudes, quem se mata por um ideal realiza o ideal pelo qual morre, “é morrendo que o homem se torna imortal”, e é em nome dessa ilusão que nós devemos viver. O que é I Sepolcri? É uma poesia de duzentos e noventa e cinco versos hendecassílabos soltos. Deve-se considerar como uma carta epistolar dirigida a Ipolitto Pindemonte. Esta é a razão do precedente ser o autor de I cimiteri. É uma carta de caráter lírico didascálico. Lírica, porque é esse hino amargo, e dessa fé e dessa amargura é didascálica, porque justamente é cheia de mensagem, de ensinamento, procura convencer, lançar na alma amargurada dos românticos que sofrem, procura lançar nessas almas uma fé, um motivo qualquer que justifique a nossa existência, que faça com que o homem continue a viver e que realize suas ilusões, que são a pátria, o amor, a poesia, pelos quais nós devemos viver, qualquer que seja a fé filosófica que nós abraçamos. Acima de qualquer igreja, não se pode negar certos ideais que são imanentes, na nossa razão prática há ideais que nenhuma religião e filosofia podem negar. Quem pode negar a beleza de uma pátria, de uma família honesta ou o conceito do amor, se a vida é justamente isso? É em nome disso que o homem deve viver; acabará morrendo, mas é o início de sua imortalidade, de sua historicidade. Confunde-se nas páginas de um livro e nas vibrações de um coração que lembra uma ação bonita e de quem a faz. 213 214 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Já explicamos os elementos de caráter introdutório e dissemos as razões históricas, pessoais e polêmicas que originaram I Sepolcri e pusemos em evidência o espírito desta obra. Ela se move em torno de três pontos fundamentais, isto é, os temas de I Sepolcri podem ser considerados sucessivamente em três momentos: o primeiro, em que Foscolo fala do culto dos mortos; o segundo, em que fala da função, do valor dos túmulos, da vivificação estimuladora dos túmulos à civilização; o terceiro, em que exulta o conceito concreto, positivo, ideal da poesia. Então temos três temas que naturalmente não devem ser considerados como trajetoriamente sucessivos, mas como três variações de um único. Um todo é a Divina Comédia, embora seja tétrica no Inferno, cheia de paisagens no Purgatório e lírica no Paraíso. I Sepolcri é sempre a expressão da alma, da sensibilidade romântica de Foscolo: na primeira parte, que é a elegíaca, na segunda, que é a épica, e na terceira, que é melódica e lírica. Foscolo abre I Sepolcri com uma afirmação negativa, com uma confissão de desespero, com uma atitude pessimista que nos lembra o autor de Ultime lettere di Iacopo Ortis. Ele se pergunta se, sabendo o homem ser sepultado ou de não ser sepultado o dia em que morrer, sabendo qual o destino do seu corpo, ele pergunta se a certeza de ser sepultado pode ser um conforto para ele: “O homem posto no túmulo, protegido pelos ciprestes, defendido da chuva, dos animais, sabendo isso, será que o sono da morte é menos doloroso?” Então, pergunta-se o que significa morrer. Significa perder a possibilidade de contemplar a natureza, essa visão variada e colorida de árvores, crescidas e criadas pelo calor e pela luz do Sol; viver é amizade, amor, quer dizer poesia, canto, quer dizer servir, ter diante de si um refúgio que não é possível encontrar no presente nem no passado, pois o futuro é a idade em que esperamos o que se realiza hoje. É uma espécie de dança da esperança, ou das esperanças. Foscolo pergunta: “As obras futuras não dançarão mais diante dos meus olhos? O que me representa se eu sou sepultado como todos os outros que morrem em outros pontos da terra?” E responde: “Não há possibilidade de ser feliz, de poder esperar além da morte. Não há nada que possa levantar-nos nas asas de uma esperança qualquer.” Se o homem olha o mundo como se fosse morto, nada mais vê na vida do que uma força eterna, imortal, irracional, mecânica, que tudo consome e que, de consumação em consumação, acaba com a realidade. Mas agora vem um segundo momento. Apesar da amarga constatação de que o túmulo nada serve e que até o túmulo é destinado a destruir-se, apesar disso, por que o homem deverá negar a si mesmo a ilusão da imortalidade, que o acompanha ao túmulo? Nenhum homem, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos morrendo, tem a consciência verdadeiramente convencida de que morre verdadeiramente, crente ou não crente. Nenhum homem tem matemática certeza de que ele, fisicamente morrendo, morrerá também idealmente. Há essa ilusão pela qual um morto, morrendo, é capaz de dizer arrividerci. Ele sente que deve deixar nos outros uma esperança de sobrevivência, que, até morrendo, deve deixar essa esperança. É ilusão para Foscolo o que para outros é certeza. Não há essa certeza para ele, pois Foscolo tem a ilusão ideal, histórica, humana de uma sobrevivência ligada à nossa saudade, ao nosso afeto. Se o homem, morrendo, tem a ilusão de que não morrerá, por que deve negar o valor do túmulo? Nunca poderá negar, se o túmulo representa justamente o afeto dos póstumos para com o morto, a solidariedade dos vivos para com o morto. Não é o túmulo uma pedra fria, mas o símbolo ideal de uma lembrança da imortalidade do homem que morreu, e a imagem real, sublime, luminosa da ilusão que encontrou a morte no homem que morreu. Não é o túmulo o conjunto de pedras, mas a imagem de que o homem, morrendo, quer a imortalidade. O cemitério é uma chama viva da História; nada mais é do que o mundo dos calmos, dos que serão eternamente vivos, dos que não morrerão mais. Vivos, num sentido ideal. Então, o túmulo tem sua razão de ser e só uma pessoa não tem nenhuma simpatia, só um povo não tem simpatia com os túmulos: é com aquele que não fez nada na vida, que sabe que não será lembrado por ninguém. Então, é uma ironia o túmulo desse homem, se não é lembrado. Esse povo que não quer túmulo é o vil, o escravo, que não tem a consciência de morrer por um ideal. Esse indivíduo, esse povo, por que se preocupam diante do túmulo? Porque é só e tristemente a imagem da morte e não de uma visão ideal; então, o cemitério é uma coisa tristíssima. Mas, se vemos nele pessoas que deixaram lembrança, ele é a nossa casa, como é nos povos modernos o cemitério dos ingleses. Onde estão os cemitérios mais serenos? Na Grécia antiga e, hoje, na Inglaterra. Porque os gregos e os ingleses são povos firmes, cheios de ideais. Lá houve veneração para com os mortos. São lugares onde se vai conduzir os meninos, para que aprendam com o exemplo dos grandes, é onde se vai rezar para que voltem os grandes da pátria. Assim fazem as moças inglesas, vão pedir a Deus que conceda o retorno daquele que é Nelson, que venceu a Napoleão, a esse homem que tinha a certeza de morrer, mas que soube ser tão herói, que já pensou em construir seu caixão para lembrar-se de que deverá morrer, para estar pronto a morrer a qualquer momento. Até aqui precisaria lembrar a evocação que faz de Giuseppe Parini. 215 216 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Chegamos até o verso 150. A segunda parte é a heroica; não triste, não amarga, não dolorosa, mas virgiliana, é a função do túmulo. “Não é somente a imagem real de uma ilusão, que acompanha um morto ao túmulo.” É também o lugar das inspirações, dos grandes exemplos, de onde vêm os propósitos nobres. Toda vez que um povo quer fazer algo de bonito, ele poderá confessar-se com um povo amigo, mas promete sempre em nome de uma pessoa que morreu, na qual se inspira. “Duas coisas os túmulos fazem: estimularam as grandes ações e fazem mais bonita a terra onde estão.” Mas num sentido ideal e humano, o lugar mais bonito é o cemitério, porque é onde se recolhem os mortos, porque é um lugar mais puro, por ter seres que são vivos idealmente. A presença da morte faz mais bonita a terra onde o morto jaz. O cemitério se torna como uma palpitação ideal do que de melhor haja na História. Aqui temos a famosa página em que Foscolo exulta Santa Croce: é uma igreja onde estudou Dante, que não é famosa pelo culto, mas de um certo período para cá ela se transforma no cemitério dos grandes italianos. Então Santa Croce representa aquela Itália ideal, que no campo das ciências, da arte, da filosofia, do pensamento soube dar o que possuía de melhor; lá vive a verdadeira Itália, não a mesquinha dos vivos, mas a dos grandes, como Machiavelli, ensinando a política, Petrarca, ensinando o amor e a poesia, Alfieri, inspirando os ideais da pátria, Galileu, lutando pela Ciência, estimulando. Esses homens aí são o que de melhor deu a Itália. São a verdadeira e eterna Itália. Representam a verdadeira italianidade, enquanto os outros representam a Itália natural. Foscolo, quando visitou Florença, sentiu a beleza da terra, as águas, o céu, a Lua, mas a coisa que mais o impressionou foi o túmulo de Machiavelli, de Petrarca, onde se lembrou de Dante, Galileu, Alfieri, todos eternizados idealmente. Há também em Santa Croce uma lápide onde se lembra Foscolo. “Essa confiança na eternidade” lembra também que, no passado, os gregos que combateram em Maratona, embora fossem inferiores em número aos persas, sentiram-se centuplicados, porque ao lado dos vivos estavam os mortos. A terceira parte é o grande conceito que Foscolo tem da poesia. Siedon custodi de’ sepolcri: as musas, isto é, as deusas que protegem a poesia invencível, estão em torno do cemitério, dos lugares em que alguém caiu nobremente, e quando percebem que o tempo com as asas frias vai destruindo pedra por pedra, “do túmulo elas se levantam e começam a falar, a embaçar a morte, e o canto delas vence o silêncio de mil séculos”. Será que a poesia tem essa força? É claro, por uma ação extraordinária. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A última parte é a exaltação do maior poeta que houve até hoje: Homero era um cego. Como todos os poetas, ele não cantou por um amor, um sentimento puro, pela melodia, pelo gosto de exaltar o que é nobre na vida. Cego, velho, um dia viajou, queria ver os lugares onde houve aquela luta de dez anos entre gregos e troianos. Naquele deserto de mil anos começou a perguntar às ruínas, penetrou naqueles túmulos, e de lá saíram as figuras de Aquiles e Andrômaca, os sacrifícios dos que amam a pátria, de lá saiu essa Ilíada que canta a tragédia de um povo, que, acima de sua derrota, por ter resistido à derrota com heroísmo, é tão imortal e tão eterna como o vencedor. Diante da morte, o que conta é o modo como se vence e se é derrotado. Aquiles volta, tanto como Heitor; ambos são eternos, até que o Sol resplandeça sobre as amarguras humanas, sobre as tristezas da vida. Há, porém, a imortalidade, que é representada primeiro por aquele túmulo material e mais tarde por aquele túmulo ideal. Não há um canto em que, só falando de morte, seja mais dinâmico, enérgico, juvenil. Parece que Foscolo se propunha em exaltar a morte. A crença, a ilusão da imortalidade, lutando com a necessidade da morte. É verdade que o homem morre, mas tudo em nós confirma o desejo de não morrer, há uma divina força que impele o homem a não morrer, pois sua morte ou sua vida ideal dependem de suas ações: não ser medíocre, ser capaz de jogar-se, pois só assim se atinge a imortalidade. É uma declaração de realizações, uma reconciliação com a vida. O que interessa saber que morre? O importante é saber que viveu bem. Este é o ensinamento mais nobre deste poeta. Temos essa síntese de dois elementos contrários, pois Foscolo mostra a vida: sombra e luz, tristeza e ilusão se encontram num desejo de viver heroicamente. Sai desse choque, da certeza de morrer, a ilusão da imortalidade. Até a ilusão de um ideal vale mais do que um fato. Quem vence a luta entre essas duas coisas, em que a diferença de valor é enorme, é a ilusão. Então, é o grande momento da poesia de Foscolo. Depois de Iacopo Ortis, em que assume uma atividade negativa diante da vida, depois de I Sonetti, onde aceita, sem reação, sem estímulo, a lei natural da morte, depois de Le Odi, em que exulta a beleza, a poesia como duas forças que dão uma razão ao viver, chega esta obra, I Sepolcri, em que exalta todas as coisas bonitas pelas quais devemos vencer, apesar das amarguras. Há uma razão na dor da existência. Pelo menos podemos gastar a existência na ilusão da imortalidade. Esses ideais são a pátria, a beleza, o amor, a solidariedade, esses conceitos e ideais eternos são os pelos quais vale a pena viver e superar as amarguras da existência. Essa exaltação da vida, sem negar que a vida é infelicidade e amargura, 217 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 218 essa valorização da existência, embora não se negue que a vida não seja infelicidade e tristeza e amargura. Le Grazie Constituem um poema fragmentário, que Foscolo nunca pôde acabar. Não, porém, no sentido da inspiração, isto é, no sentido lírico, estético, mas simplesmente num sentido material, concreto, isto é, que não é acabado, como as sinfonias de Schubert. É uma obra que Foscolo nunca pôde completar, mas, lírica, estética e humanamente Le Grazie constitui uma outra grande afirmação, um outro grande momento de Foscolo. Ele começou a escrever em 1803. Aliás, em 1803 publicou uns versos que depois colocou neste poema, como se fossem versos não seus, mas de autores desconhecidos, ignorados, da literatura grega. Voltou mais tarde sobre o poema, em 1808, mas o período fundamental em que se dedicou à obra é em 1812-1813. Neste período, Foscolo se encontrava em Florença, e lá, um grandíssimo escultor, famoso porque no campo da escultura traz o Neoclassicismo, como Vincenzo Monti e Foscolo na literatura, e que se chama Antonio Canova,62 faz a exposição de uma estátua de Vênus, que deixou uma impressão extraordinariamente profunda na alma de Foscolo, sobretudo por aquela seriedade própria do Neoclassicismo na inspiração à beleza. Então Foscolo pensou em escrever um hino a Vênus, mas este foi devagar alargando-se, completando-se, enchendo-se de ideias, num plano vastíssimo. Pensou então em escrever, não um hino a Vênus, mas a Le Grazie. Como elas são três, propôs-se a escrever três hinos. Aí a origem de Le Grazie. Depois de 1812-1813, voltou a esse poema, antes de ir ao exílio em 1815. Mais tarde, em 1823-1824, voltou, sem acabá-lo. Como o podemos ler hoje, foi feito desse modo por um crítico italiano, Giuseppe Chiarini,63 que, na base dos versos de Foscolo, pôde dar aos versos aquela ordem em que se os lê hoje. Foscolo queria “idoleggiare tutte le idee metafisiche della bellezza”. Era seu ponto de saída. Queria exaltar todas as ideias, consequências, efeitos, num plano civil de educação, de sensibilidade, que a beleza exerce física e espiritualmente. Para Foscolo, a arte, que é sobretudo beleza no sentido estético, exerce uma função essencial, categórica, indiscutível. 62 63 (1757-1822) (1833-1908) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A beleza, a poesia, a literatura, a perfeição de forma, o ritmo, o canto representam criação de ideais. Se existem ideais no mundo, é devido à arte, se existe progresso, é devido à arte, que levanta o homem num plano ideal de altíssima finalidade, destacando-o dos egoísmos de aspecto primitivo que são próprios do homem selvagem. O homem chega à civilização pela arte, que é o conceito altíssimo e verdadeiro que faz com que tenhamos no poeta a solidariedade, que faz com que fiquemos rindo diante dos que consideram a poesia um lazer. A arte é, em vez, um empenho moral, tanto que atribui à beleza a missão de ideais. Como é que Foscolo considera Le Grazie? São como os anjos na religião cristã, são divindades intermediárias entre o Céu e a Terra, elas vinham do alto para o baixo e do baixo para o alto, distribuindo aos homens o que recebiam de Deus: a beleza, o canto, o ritmo, a exaltação dos ideais. Isso elas trazem ao mundo, à realidade, à vida humana, para dispersar, para afastar as amarguras e criar a harmonia. Seriam os elementos da arte, da beleza e da poesia, que fazem com que o Céu devagar se estabeleça no mundo. Só trazem o que Deus lhes concede. Quer dizer que há possibilidade que o mundo se torne um paraíso, um sorriso de compreensão de ideais, quando a arte terá essa difusão e compreensão que elimina os choques, os egoísmos, os aspectos amargos da existência. A arte para elas parece um evangelho, não é somente poesia. A função de Le Grazie é de realizar no mundo a harmonia. A obra de Foscolo é dividida em três inni: o primeiro é dedicado a Venere, o segundo a Vesta, e o terceiro a Pallade. No primeiro hino, Foscolo descreve a aparição, o nascimento de Le Grazie. Pensa-se em Schumann, nessa transparência do mar, numa luz esplêndida e imóvel, e num certo momento Vênus aparecendo do mar. Vão para a Grécia. E quando sente-se o efeito da presença de Le Grazie no mundo grego? Na criação das ciências, da lírica, da tragédia, então o povo, a civilização grega se humanizam, porque estão diante da beleza. Le Grazie são esses anjos transferindo para a Terra o que recebem de Deus e, diante de Sua presença, o mundo grego se humaniza. Começa lá a origem da cultura ocidental, a civilização baseada na ideia, na Filosofia, no Direito, na Arte, que é a origem de tudo que pensamos e sentimos no mundo europeu. E continua Foscolo nesse primeiro livro a descrição da passagem das grazie64 do mundo grego ao romano, criando a civilização romana. As três Graças, Aglaia, Talia e Eufrósina, divindades pagãs, personificações da beleza graciosa e sedutora. 64 219 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 220 Querem os romanos dizer serem descendentes dos deuses, mas, afinal de contas, o próprio Eutrópio65 diz que viveram no meio de ladrões. Roma era pobre e cheia de dificuldades, mas quando esse povo, dominando a Grécia, foi vencido pela literatura grega, criando aquele senso prático da existência, aquele senso de direito, que faz com que o povo romano ainda hoje não seja esquecido, por aquilo que soube dizer em todos os campos de ciências, ainda hoje o mundo latino não é esgotado. Foscolo então descreve a aparição das grazie na Grécia e em Roma, fundando na Itália o Humanismo e a Renascença. Aparece uma poesia com Dante, Petrarca, Boccaccio, Ariosto, Machiavelli, mas sobretudo com o Romantismo, que significou a luz diante das trevas, do nada. O choque anunciando que as grazie estão iminentes a voltar, depois de um período de decadência, que são o Parnasianismo e o rococó, a voltar com os românticos, de quem Foscolo é um dos expoentes. O segundo hino é aquele em que Foscolo descreve uma paisagem florentina, um colle66 que se chama Bellosguardo. Foscolo amou Florença intensamente, por ser o centro da cultura italiana, da liberdade, da crítica, da ciência, da arte italiana. Foscolo, que era um humanista, um grego de gosto, não podia deixar de apreciar Florença. Um dos colles que mais amou foi Bellosguardo. Descreve então a criação de um altar, improvisa um rito para as grazie, e as sacerdotisas não são padres, mas mulheres, moças, que representam idealmente três grandes ideais: a música, a poesia e a dança. A música é representada por Eleonora Nencini (Florença), a poesia, por Maddalena Bignami (Bolonha), e a dança por Cornelia Martinetti (Milão). Assim, temos três expressões da beleza feminina italiana: a florentina, uma moça viva, inteligente, fria, aguda; a bolonhesa, loira, humana, simpática; a milanesa, calma, materna, familiar. São três mulheres representando três amigas, três aliadas de Le Grazie. Entender como os versos dançam na poesia do poeta. Neste segundo hino descreve o auxílio que recebem das três, para a realização da harmonia do mundo. O terceiro hino é dedicado a Pallade. Ela nasceu da cabeça de Júpiter. É a deusa a quem é dedicado o terceiro hino. Mas aqui Foscolo não descreve mais o mundo em que se vive, mas uma ilha mitológica, lendária, fantástica, a Atlântida, imaginada como o reino de Pallade. Aí se retiram as três grazie, aí elas se refugiam, tornando-se alheias ao mundo, pois elas não querem submeter-se às tentações, não querem que 65 66 Historiador latino do século IV. Morro, outeiro. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a beleza seja sujada pela presença da realidade. Exilam-se num mundo irreal, e lá constroem um véu alegórico, com o qual se escondem, para não permitir que a dor, o pranto, a violência, os instantes possam tentá-las, obscurecê-las. Não há na poesia de Foscolo versos mais bonitos do que os escritos para Le Grazie. São perfeitos, cristalinos, transparentes, de uma musicalidade, desse sonho de uma intimidade que lembra a literatura grega, de um esplendor que lembra Horácio, mas, com tudo isso, podemos dizer que Le Grazie são inferiores a I Sepolcri. Porque Foscolo é verdadeiramente poeta quando a felicidade é o resultado de uma superação da dor, quando descreve uma realidade à sombra da amargura, a alegria à sombra da tristeza, a perfeição à sombra de imperfeição. É poeta quando os dois opostos se encontram e se chocam: a imortalidade, as ilusões, a crença. Foscolo é grande quando Heitor e Aquiles se tornam imortais; mas fica o mundo sempre como infelicidade, mas já à luz de uma centelha, sempre o Paraíso perto da Terra, sempre a aurora depois da noite, sempre as estrelas como um reflexo do mundo. Mas, em Le Grazie, canta-se a beleza fora de qualquer relação com as amarguras da vida. Nesta obra falta o drama, a superação, pois canta um dos polos da visão da vida, a beleza, essa ilusão, que foi um dos motivos fundamentais de Le Grazie. Mas nós o apreciamos quando ele é amargurado, cheio de reflexos sombrios. Foscolo não canta um Paraíso fora do Inferno, mas como uma superação do Inferno, por isso sua obra-prima é I Sepolcri, e Le Grazie, porquanto perfeita e gloriosa, deixa quase insatisfeito, quase frio o leitor, porque tem-se a impressão de que é uma simples visão de uma coisa irreal, que gostaríamos que fosse e que não existe, não havendo um convite para lutar. É a felicidade já existente e não a conquista do homem que luta, que realiza nesse mundo porque trabalha e porque está pronto a se sacrificar. Iacopo Ortis é a obra da paixão e da pátria, I Sonetti é o momento da contemplação diante da lei natural que define e restringe, Le Odi afirmam os dois motivos pelos quais se deve viver, a beleza e a poesia, I Sepolcri descrevem o culto dos mortos, e agora, exultando metafisicamente, Le Grazie canta esse mundo de beleza, que vinha ao nosso mundo. 221 222 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A crítica de Foscolo Não se pode chamar Foscolo de renovador da crítica italiana do século XIX, não é a ele que cabe este título, porque Foscolo não é um filósofo do Romantismo, porque ele não abraçou os ideais da estética romântica. O verdadeiro criador da crítica romântica italiana é, em vez, Francesco De Sanctis, grandíssimo crítico. Um homem que teve uma repercussão enorme também fora da Itália e que viveu entre 1817 e 1883. A ele devemos a famosa História da Literatura Italiana, os ensaios Saggi, as monografias de Giacomo Leopardi e Francesco Petrarca, que renovaram a crítica italiana. Embora não caiba a Foscolo o título de renovador da crítica italiana, não podemos colocá-lo perto dos outros críticos anteriores ao século XIX, porque há uma grande diferença de valor, de gosto, de sensibilidade, de seriedade entre a crítica de Foscolo e a anterior a ele. A crítica anterior a Foscolo na Itália não ia além da biografia do escritor. E quando a crítica se interessava pela obra d’arte, não ia além do formalismo da obra d’arte. Antes, era ligada a um gosto literário que deixava a obra no seu sentido universal, completamente indiferente à sensibilidade do leitor. Não procurava o tema de inspiração. A crítica não sabia individuar o interior de uma obra d’arte. Foscolo tem sobretudo esta qualidade. Sendo um poeta que considera a obra d’arte como sentimento, alma, avizinha-se aos grandes poetas italianos, procurando-os como coerência. Na obra d’arte, procura o homem, não distingue o escritor do homem, quer que a obra d’arte, seja uma provação do homem, é uma responsabilidade humana de quem escreve. Quem escreve um poema não é um escritor no sentido de literato, mas que se empenha na obra d’arte como se fosse sua mensagem. Então é notável esse progresso que a crítica faz com Foscolo, porque é o crítico de certos poetas e de certos períodos, como Dante, Petrarca e Boccaccio, e sobretudo dos primeiros vinte anos da literatura do século XIX, e depois, de um grupo de escritores dramáticos. Por isso mesmo sua necessidade de procurar em Dante o homem, em Petrarca o anunciador, em Boccaccio o poeta que descreveu o nosso apego à existência, daí o fato de ele procurar nos poetas dos primeiros vinte anos do século XIX, em que viveu, e o fato de viver procurando sobretudo em outros períodos, nos dramáticos, tudo isso significa alguma coisa na figura de Foscolo. Em suma, quer que a obra d’arte seja a imagem do homem. Quais os limites da crítica de Foscolo nesse sentido? Todos nós queremos hoje que a obra d’arte seja a imagem do homem. Faltaria isso, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que o poeta escreve uma coisa e age de outro modo. Queremos que o que o poeta diz seja sua fé, sua luta, que os ideais não sejam ideais de eloquência, de retórica. Não, a obra d’arte deve ser a imagem do que intimamente ele sente e acredita. Mas chega isso para que ela seja uma obra d’arte? Além de o conteúdo ser verdadeiro e coerente, além dessa moralidade, há algo que a distingue de qualquer outra produção, isto é, a imagem, a forma, essa síntese, essa unidade de ritmo e de sentir, que é a conquista do Romantismo. A obra d’arte deve sair do sentimento, da sinceridade, de uma exigência moral, deve ser uma coisa necessária, deve ter um caráter universal. Não deve ser uma imitação, reprodução literária, lírica, de um sentimento; o que faz um poeta não é somente isso, mas ele deve fazer com que essa visão da realidade se transfigure numa realidade fantástica. Então essa estética romântica, essa concepção de unidade, de conteúdo e de linguagem, pela qual o conteúdo vale tanto quanto a expressão, aí Foscolo é deficiente, pois não tem a clareza de De Sanctis e de Croce. Obras críticas: Discorso sul testo della Commedia di Dante: Foscolo procura a coerência da sorte de Dante, que era um homem indignado com uma realidade medíocre, e da sua insatisfação, a imagem era a Divina Comédia; Saggi sul Petrarca; Saggio storico sul testo del Decamerone; Saggio sulla letteratura italiana; Della nuova scuola drammatica in Italia. Vida de Foscolo Nasceu numa ilha famosa, Zante ou Zacinto, que é aquela a que dedica o soneto A Zacinto. Seu pai era de Veneza e se chamava Andrea. Sua mãe era grega, Diamantina Spathis. Foscolo teve uma irmã, que se chamava Rubina, e dois irmãos, Giovanni e Diogini. Ugo, afinal de contas, não nasceu na Itália, mas numa ilha do mar Jônio. Mas como é que é italiano? Porque a ilha pertencia à república de Veneza. Estudou num primeiro momento na ilha onde nasceu, e mais tarde foi estudar em Spalato. Desde os primeiros anos, conhecia o grego e o latim perfeitamente. Em 1788, isto é, quando tinha dez anos, o pai dele morreu, e então Foscolo, com sua família, se transferiu para Veneza. Depois das escolas secundárias, Foscolo frequentou a Universidade de Pádua. Em Ultime lettere ele é imaginado como um estudante que teve de interromper seus estudos porque, em 1797, Napoleão faz um acordo 223 224 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos com a Áustria, cedendo Veneza e, em compensação, recebendo Milão. Esta troca foi uma decepção aos ideais juvenis dele. É interessante saber qual a sua educação e orientação cultural. Sempre na educação dele se observam esses dois fatos: Foscolo é o poeta que concilia na sua formação o antigo e o moderno, o passado e o contemporâneo, o Classicismo e o Romantismo. Sempre baseado nesse idealismo de poetas gregos, latinos e românticos. Não é o homem que se fecha na biblioteca, que se afasta da realidade contemporânea, mas também não esquece o Classicismo. Há sempre nele essa unidade que é o realizar de uma força contrária, uma de caráter formal, de tradição, e a outra, em vez, romântica, contemporânea. Assim é que Foscolo conheceu os poetas e prosadores da literatura grega e latina e todos os contemporâneos a ele, não somente na Itália, mas também na Inglaterra, França, Alemanha, entre outros. Foscolo, além de ser um estudioso, era um homem de ação, um homem corajoso, que amou profundamente viver. Essa é a expressão do Romantismo, do seu anseio de viver. Ele apreciou a vida e, se dela se afastou, é porque a queria melhor do que na realidade era. Sempre teve o anseio de agir, de realizar ações. A vida, além de oferecer-lhe a possibilidade de ser escritor, também lhe ofereceu a de atuar. Duas coisas são notáveis nele: o amor e a ação. É um dos poetas bonitos fisicamente: pescoço comprido, cabelos vermelhos, magro, de rosto pálido. Por isso, amou e imensamente foi amado: dezenove foram as moças enamoradas de Foscolo, num sentido idealíssimo. É preciso ler o Epistolario dele para saber quais eram os sentimentos, a amizade que ele sentia; ele gostava, tinha prazer em viver junto a moços e encorajá-los, tudo isto no meio da mocidade. Essas cartas são as coisas mais bonitas da literatura italiana. Ele fala sobre a inocência, a intimidade, a sinceridade. Dois nomes famosos que ele amou foram Luigia Pallavicini e Antonietta Fagnani Arese. A ação para ele significa sobretudo heroísmo: foi militar combatente, tomou parte como voluntário em guerras, foi ferido duas vezes, em Cento e em Trebbia. Então isso demonstra não um homem fechado na sua solidão, mas um homem que procurava reviver a realidade. Ele teve uma coragem extraordinária e, enquanto Napoleão era um de seus ideais, teve expressão de admiração extraordinária por ele, escrevendo uma ode a Napoleão, mas quando traiu Veneza, com a mesma coragem Foscolo publicou a traição de Napoleão. Em 1815, Foscolo vai ao exílio, porque, depois da batalha de Waterloo, Napoleão sendo derrotado, volta à Itália setentrional, voltando a Áustria a dominar em Milão, até 1918. Então, diante da volta dos Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos austríacos, diante do inconformismo, Foscolo vai ao exílio, e assim, um dos maiores políticos, que é Giuseppe Mazzini,67 disse que um poeta ensinou aos italianos a rua da dignidade: afastar-se da terra para não ceder a dignidade, preferindo a miséria do que viver insatisfeito na terra. Esteve primeiro na Suíça e, depois, na França. Conheceu uma moça inglesa e dela teve uma filha, que era Floriana. Mais tarde, também abandonou a França e foi viver na Inglaterra, em Londres. Lá Foscolo viveu dando aulas, escrevendo ensaios, traduzindo, e pôde a um certo momento ter uma certa facilidade monetária, era quase rico, dispunha de uma certa quantidade de dinheiro. Mas se há um poeta que nunca apreciou dinheiro, pela sua generosidade e seu vício, pois era amador de cavalos, por essas razões, por falta de equilíbrio, constrói uma casa grande e acaba cheio de dívidas, numa pobreza esquálida. É triste, porque um poeta tão idealista não devia conhecer também a pobreza, com sua amargura e insatisfação. Apesar disso, comprometeu até sua filha, pois a herança da mãe, ele a esbanjou. Em 1827, Foscolo morreu, num lugarejo perto de Londres. Em 1871, isto é, depois da unificação italiana, quando Roma voltou a ser a capital da Itália, em vinte de setembro de 1870, o governo fez tudo para que o corpo dele voltasse à Itália, com as maiores honras. Esse homem, expressão altíssima do Romantismo italiano e europeu, com sua sensibilidade, foi trazido à Itália, e seu corpo está hoje na Igreja de Santa Croce, de quem foi o maior exaltador. Num canto de Santa Croce, repousa já ao lado dos grandes. Giacomo Leopardi (1789-1837) Onde é que nós achamos os motivos, as razões humanas, culturais, psicológicas, íntimas, da participação de Leopardi no movimento romântico? Quais são os motivos pelos quais Leopardi deve ser enquadrado na atmosfera espiritual da literatura italiana do século XIX? Mais ou menos podemos dizer que as razões e os motivos da participação de Leopardi no Romantismo europeu são os mesmos de Foscolo, isto é, também em Leopardi, também na sua poesia, na sua prosa, no seu pensamento, no seu epistolário, sempre nas suas obras se vê um drama, um choque, uma contradição, um contraste, de onde surge 67 Patriota italiano (1805-1872). 225 226 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sua afirmação lírica. Esta se distingue da afirmação lírica de Foscolo, porque em Foscolo há de interessante e de singular o seguinte: este homem, partindo de uma atitude profundamente pessimista, de uma atitude cética, como ele o manifesta, como ele o diz e descreve nas Ultime lettere di Iacopo Ortis, dessa atitude de negação, chega em vez a uma afirmação de caráter humano e religioso altíssima. Foscolo, que começa negando a existência, chega a dizer, em 1807, que a existência tem sua razão de ser, que o homem deve viver e que o dever na vida se realiza atuando grandes ideais, que até ideais não são, porque Foscolo não chega a afirmá-los como ideais, mas como ilusões. Apesar de tudo isso, de serem nada mais que ilusões, Foscolo chega a afirmar que não precisa morrer, que o homem não deve eliminar a existência, mas empenhá-la na realização dos ideais. Mas depois, Leopardi não tem esse dinâmico otimismo. O drama nele não encontra uma solução. Nunca chega a uma fé diante da existência. Sua poesia, por essa razão justamente mais sublime, menos apostólica, menos oratória, por essa razão, ela, no seu desenvolver, dá a impressão de um afastamento da realidade. Enquanto em Foscolo o poeta escrevendo suas obras vai se avizinhando da realidade e sentindo o dever de um homem de ser um ator da realidade, o real para Leopardi é tão medíocre, tão modesto, que seu idealismo o leva a afastar-se dele, pondo-se diante dos fenômenos do mundo com uma atitude de contemplação, de espectador, de homem que só olha. Poder-se-ia pensar num grande filósofo dessa idade, que desperta as mais íntimas sensações: quando se fala em Leopardi, pensa-se em Schoppenhauer, que afirmou que o cristianismo venceu porque era a filosofia do pessimismo, que disse que o homem só nasceu porque o nascimento é um pecado original, porque são tantas as amarguras na existência, que só poderia ser como um castigo. A vida é vontade de viver e por isso é luta, é agressão, e na sua manifestação representa cada um de nós, que é a vontade de viver. A diferença, porém, entre essa amargura desesperada de Schoppenhauer e a amargura de Leopardi está no seguinte: Schoppenhauer deseja que o homem supere a própria individualidade, porque, matando a vontade, mata o todo, e assim acaba o mundo, a existência acaba no nada. Se nós matarmos a vontade, que quer dizer querer viver, o que existe? Não existe a luta, o progresso, o mundo para, e ele olha isso com satisfação. Mas em Leopardi há uma profunda insatisfação diante da insuficiência da realidade. Ele não fica satisfeito em afirmar que o mundo é pequeno e a realidade, inferior às nossas aspirações. Ele queria que o mundo fosse mais puro, elegante, e então Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ele se afasta da realidade. Ele faz isso por um excesso de idealismo, e não por ceticismo. Num diálogo de Francesco De Sanctis intitulado Schoppenhauer e Leopardi, foi dito que, se Schoppenhauer entrasse na Itália com suas ideias de pessimismo, o primeiro a parar as pernas de Schoppenhauer seria Leopardi, o seu irmão, que, embora tenha uma concepção amarga e triste da realidade, sofre por isso e gostaria que fosse diferente, que fosse tão bonito como os nossos ideais, um mundo que poderia ser o mundo dos ideais. E, como diz também Schoppenhauer, que poderia ser feito não de fenômenos, isto é, de aparências, de enganos, mas de realidade absoluta, como são justamente os ideais de Platão, que vivem numa esfera longe do mundo e que ele chama de Hiperurânio, dos nossos ideais e ideias na sua absoluta realidade, assim como é o Deus do cristianismo. Esta é a desolada e sublime poesia de Leopardi. Esse contraste dessa visão amarga da realidade, cheia de lágrimas, que não se satisfaz com isso, que gostaria que fosse diferente, que, para vencer sobre a realidade, se afasta dela, colocando-se nessa visão ideal do que verdadeiramente é o perfeito e que o mundo deveria ser, se não fosse como é. Então, sua poesia é tipicamente lírica e moderna, e é essa a razão pela qual, se Foscolo teve a importância que teve, exaltando princípios e ideais que levaram a mocidade italiana às grandes guerras, se é o cantor da beleza, da poesia, Leopardi não é somente um que fica no âmbito nacional, mas um que fica num âmbito das impressões mais puras e límpidas. Foi mais apreciado, num primeiro momento, no estrangeiro do que na Itália. Em que consiste a poesia de Leopardi? É feita de breves líricas e são poucas as obras volumosas de Leopardi. Não é muito grande a produção literária de Leopardi. As obras representam só as suas líricas, sua poesia, essas coisas breves, em que ele se subjetiviza numa esperança, numa lembrança. Então, quem é que dá força às suas poesias? De onde sai essa tonalidade de amargo e de doce, de graves e de agudos, de desespero e de esperança, de passado e de futuro, que constitui o organismo de Leopardi? Sai dos estados de alma, onde a contradição filosófica e emotiva não sabe encontrar uma solução. Quer dizer que o drama dele é este: uma contradição que determina, de momento em momento, na mocidade ou mais tarde, uma emoção, uma psicologia; é o que de mais romântico possa existir, porque nunca Leopardi escreveu uma poesia na base da lógica, raciocinando, é sempre um canto de um estado de alma que ele exclusivamente representa para si mesmo, numa confissão submissa, 227 228 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos numa confissão que não tinha testemunhas, num colóquio sem pudor e com infinito pudor. Sem pudor, porque diz tudo que sente, e com pudor, porque o diz com uma nobreza extraordinariamente grande. Então, é a contradição que determina em Leopardi um particular estado de alma, um particular estado de espírito, que provocam essas expressões e revelações líricas que são as suas poesias, que começam com o ano de 1817 até 1827, uns poucos dias, umas poucas horas, uns minutos antes que morresse. Uma de suas poesias foi ditada minutos antes de morrer. Esse contraste, esse drama, em que consiste? Nessa insatisfação tipicamente romântica e tipicamente nossa, também nessa insatisfação que faz com que a gente não fique satisfeita com a realidade. Há continuamente em cada um de nós, e sobretudo nos sensíveis como Schoppenhauer, Leopardi, Goethe, Shakespeare, Dante, essas grandíssimas expressões, há algo de intimamente polêmico com a realidade, no meio da qual agem. Surge um pretexto que pode ser religioso, político, musical, entre outros. Qual era seu problema? Descobrir por que vivemos. Qual a razão da existência? Por que viemos e por que devemos fazer o que devemos fazer? Se a gente raciocina sobre tudo isso, a gente se desespera, como aconteceu com Tolstoi. Essas perguntas são de uma tragicidade extraordinária, essas perguntas demonstram o drama das pessoas. O problema é esse: qual a razão da existência, por que devemos sofrer, a dor é uma necessidade? Como é que a dor sai da perfeição, que a dor é algo consciente ou é algo fatal, misterioso? Qual a razão dessas lutas, dessas guerras, dessas epidemias, desse perigo eterno do homem? O que faz a gente viver? Por que tudo isso? Essa é a vida, esse é o melhor dos mundos? Leibnitz dizia que o mundo é formado de indivíduos no melhor dos mundos. Há essa perfeição? Podemos ficar satisfeitos com o mundo como é? Leopardi era também de uma cultura extraordinária. Em 1809, quando tinha onze anos, já escrevia tragédias e traduzia obras gregas e latinas; com quinze, escreveu uma obra, Storia dell’ astronomia; em 1815, com dezessete anos, escreveu um enorme livro, que dedicou a seu pai: Saggio sopra gli errori popolari degli antichi. Depois de 1812, com catorze anos, já sabia francês, latim, hebraico, alemão, inglês e espanhol. E durante sete anos, que ele chama de esperadíssimos, fechou-se Leopardi na biblioteca de seu pai, de 1810 a 1817, e noite e dia estudou todos os livros, o que foi a razão da sua enfermidade física, de uma corcunda e de sua vista, que lhe proibia absolutamente de ler. A cultura de Leopardi era uma cultura essencialmente baseada Bruno Enei Início da década de 1950 Autor: Não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei Década de 1930 Autor: Não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei Década de 1930 Autor: Não identificado Acervo: Ricardo Enei Da esquerda para a direita, Giuliana Enei, Maria Enei e Ricardo Enei Década de 1950 Autor: Não identificado Acervo: Casa da Memória Bruno Enei e Maria Enei Início da década de 1940 Autor: Não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei (à direita) No exército italiano Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória Bruno Enei No exército italiano Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei (centro) No exército italiano Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei (terceiro da direita para a esquerda) No exército italiano Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei (segundo da direita para a esquerda), em uma reunião de amigos na Itália. Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei na Itália Década de 1940 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Bruno Enei em sua juventude na Itália Década de 1930 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Da esquerda para a direita, Elias J. Curi, Bruno Enei e Barros Junior, em jantar oferecido na casa do cônsul Carlos Masini, em Ponta Grossa. Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória No mesmo jantar, Bruno Enei com Carlos Masini Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória No mesmo jantar, da esquerda para a direita, Albari Guimarães, N.I., Bruno Enei e Jovanni Masini. Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória Ainda no mesmo jantar, da esquerda para a direita, Bruno Enei, Camila Concesi, Maria Enei e Margherita Masini. Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória Prof. Bruno discursando, como paraninfo, por ocasião da formatura dos bacharéis em Letras Neo-Latinas, no Clube Guaíra, em 8/12/1958. Autor: não identificado Acervo: Sigrid Renaux Cerimônia de formatura dos licenciados em Letras de 1959. Da esquerda para a direita, Prof. Meira de Angelis, N.I., Prof. Faris Michaele, Prof. Paschoal Salles Rosa, Prof. Leonidas Justus, Manoel Machuca e Prof. Robert Karel Bowles. Autor: Não identificado Acervo: Sigrid Renaux Evento no Colégio Estadual Regente Feijó com a presença do e Bruno e Maria Enei, sentados, à esquerda. Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Ricardo Enei descerrando a foto em homenagem ao seu pai na Biblioteca Pública Municipal Professor Bruno Enei, em Ponta Grossa. Década de 1960 Autor: não identificado Acervo: Ricardo Enei Discurso do professor Bruno Enei em evento cultural Década de 1950 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória Bruno Enei em entrevista concedida ao Canal 12 de Curitiba Década de 1960 Autor: não identificado Acervo: Casa da Memória Formatura dos licenciados em Letras Neo-latinas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, em 1959, com Sigrid Renaux recebendo diploma de licenciada e o Prof. Bruno Enei em pé, à direita. Autor: não identificado Acervo: Sigrid Renaux Sigrid Renaux recebendo medalha de ouro do Rotary Club Ponta Grossa, das mãos do Sr. Elício Mezzomo, em 8/12/1958, com o Prof. Bruno Enei aparecendo de costas (primeiro à esquerda). Autor: não identificado Acervo: Sigrid Renaux Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos nos princípios do Iluminismo, no Racionalismo; pôs então a razão acima de tudo, e explicando a natureza pela razão, como se isso fosse possível. Além disso, aquela cultura não lhe fazia ver o que o Romantismo afirmava, não lhe fazia ver uma mobilidade da natureza, uma lei de progresso, de desenvolvimento da realidade. Diante da natureza e da realidade, Leopardi via uma imobilidade, uma irracionalidade, um mecanicismo sem razão e fim. Leopardi precisou da filosofia romântica de Kant e, mais tarde, do atualismo de Gentile e Croce para entender que a realidade tem sua lógica e a natureza, sua razão de ser. Leopardi via esse contraste enorme entre os inícios de sua alma, querendo e realizando ideais, e uma realidade imóvel. De um lado, uma realidade sem fim e sem razão; do outro, uma realidade querendo-se realizar, mas contradita eternamente pela realidade. Esse é o drama da existência, dos que sofrem, como Pascal e Montaigne, que se torturavam com problemas de espírito. Por esses motivos, pela densidade, pela variação de temas, pela capacidade de observação que tinha e que lhe permitia ver sua amargura e sua visão triste da realidade, sempre realizada, sempre inata, por essa razão Leopardi se torna uma das vozes mais puras do idealismo europeu. Vida de Leopardi Nasceu numa cidade pequena, Recanati, do interior italiano. Existem duas: uma perto do mar Adriático, e à direita fica a vila de Gigli. Mais longe, existe a cidadezinha que está entre o mar e os Apeninos, na região de Marche. E no centro de uma praça está o palácio de Leopardi. É uma cidade sem cultura, muito acanhada, habitada por operários, fechada entre os Apeninos, onde Leopardi de amigos não tinha senão a natureza: os montes, o mar e o monte do “Infinito”. O resto, a população, odiou-o profundamente. Por isso que, numa poesia, Le ricordanze (1829), ele lembra esse lugar e diz palavras amargas, o que é raro nele. Aqui é amargo por ser excessivamente objetivo. Quando nasceu, pertencia a região ao Estado da Igreja. Significa que aquela região, junto à Úmbria e ao Lácio, vivia abaixo de princípios políticos que não eram alheios àquela atitude dogmática da Igreja. Não podemos falar de ideias liberais, abertas. Esta foi a atitude de Leopardi, a não ser depois de 1817, por umas amizades e leitores ele abandonou esses princípios dogmáticos, cantando as novas de liberdade. 241 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 242 Seu pai era Monaldo, um homem de ótimo coração: um pai meigo, gentil, mas não prático, cheio de cultura clássica. Escrevia e era profundamente ortodoxo, quer no sentido da fé católica, quer na política. Sua mãe chamava-se Adelaide Antici e era de origem romana. Tanto o pai como a mãe eram marqueses, pertenciam à nobreza e eram ricos, mas as poucas qualidades econômicas do pai prejudicaram a situação econômica de Leopardi. A administração cabia à mãe, que era severa, rígida, mas boa de coração, e essa influência manifestou-se sobre o caráter dela, a quem faltava essa sensibilidade que é própria da mãe. Muitos poetas sentem-se ligados à mãe, sobretudo os que pela mãe aprenderam a pintura, a música, etc. Mas a de Leopardi era austera e pouco aberta à compreensão de um filho tão genial e cheio de preocupações. Foi o primeiro dos oito filhos. Sua infância é o período de sua alegria, felicidade, seu entusiasmo e apego à vida. Sua precocidade o ligou à realidade desde os primeiros anos de vida. Sentiu o prazer de viver, da amizade, do amor, dos campos, das pessoas, da leitura, da imaginação, que mais tarde será o tarlo68 que acabará ruindo sua alma e que jogará uma sombra no seu espírito. Mas a infância é quanto de mais bonito possa haver em sua vida. Bastaria lembrar versos como “Quanti imagini...”. Uma infância extraordinariamente bonita, que é porque Leopardi também realiza o que ele lia. Na sua infância ele representa aos seus irmãos, fazendo defesas na forma de Cícero, ou representando Brutus, ou os gregos, ou como Demóstenes. Tudo que aprendia se tornava realidade: ele se fazia levar num carrinho, representando Milcíades, entre outros. Porém, sua felicidade também tem o limite, que é a infância. Porque, logo depois dos primeiros doze anos, começaram a aparecer as consequências de um desesperado estudo, que deformaram seus olhos, suas costas e seu físico. Leopardi vê seu corpo deformar-se cada vez mais, vê seu corpo tão inferior às suas qualidades e anseios espirituais. Até 1812, os primeiros catorze anos foram no campo dos estudos, guiados por dois padres: D. Giuseppe Torres e D. Sebastiano Sanchini, e já com catorze anos ele tinha traduzido obras gregas e latinas e escrito dramas. De 1812 a 1815, é o período de formação da cultura dele. Começa quando se torna independente, quando se torna autodidata, não precisa mais de mestres, trabalha sozinho. E seus interesses num primeiro momento são filológicos. Por isso, começa a estudar o latim, o grego, francês, alemão, espanhol, hebraico. E lia todos e escrevia no 68 Caruncho. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos original. Então esse início de saber, de conhecer tudo, não somente na literatura, mas no campo da ciência. Então começaram a sair os primeiros frutos desse gênio. Em 1814, escreveu uma Storia dell’astronomia; em 1815, sobre os erros dos antigos. Seus primeiros interesses são de caráter filológico: quer conhecer as línguas, a natureza, quer fazer uma cultura imensa, porque pensa que poderá conhecer o mistério da existência, o segredo do mecanismo da realidade humana e sobrenatural, tem o desejo de conhecer o porquê da existência. Para isso, servia-lhe imensamente a biblioteca do pai. Dormia na biblioteca. Dias inteiros escrevia, resumindo, fazendo dicionários. Em Lo Zibaldone, recolhe todos os pensamentos e impressões, considerações sobre obras que leu e que deixaram uma impressão em sua alma. Até 1816, sua cultura tem um alvo exclusivo: a erudição. Mas em 1816 Leopardi sente o cansaço da erudição, sente o nojo do saber, sente que o saber não tem valor quantitativamente, mas qualitativamente. Não é necessário saber tudo, mas o problema é o ordenar, o criar um modo de ver a realidade, é o descrever a si mesmo e fazer o exame da própria consciência, e então Leopardi sente que deve tornar-se escritor e poeta e procurar os meios de expressão de linguagem para exprimir tudo: suas amarguras e insatisfações. Então, 1816 é o ano da conversão, em que abandona a erudição e se põe no campo da literatura e filosofia. Estuda os filósofos, para poder criar um sistema dele, para sentir e ordenar a realidade e os problemas dos homens e ao mesmo tempo conhecer aquele modo de exprimir toda sua sensibilidade. Começa a estudar os escritores do Romantismo e depois, do século XVII, e depois, do século XV, os trecentistas, e depois, a literatura contemporânea. Aí sente Leopardi ser escritor, e começa suas primeiras atividades. E, interessante, é um poeta tipicamente lírico, não poderia ser outra coisa senão um lírico, um poeta que é expressão de atitudes íntimas, ligadas à sua consciência e sensibilidade. Nunca acharemos descrições, coisas que fiquem fora dele. Ele é a projeção de sua interioridade. É lírico o poeta cuja poesia é exclusivamente imagem, projeção melódica do que sente, fora de qualquer tradição e disciplina. Apesar disso, Leopardi não começou como poeta lírico, mas justamente com essa conversão que transformou suas ideias políticas, religiosas e morais, começou exultando, sofrendo, cantando sobre o problema italiano. E aí temos as poesias patrióticas (1818-1819). Além dessa conversão, essas poesias são devidas a Pietro Giordani, um homem que via em Leopardi o cantor dos problemas civis e patrióticos italianos, porque era filho de condes e vivia no Estado Pontifício. Incitou-o a escrever poesia de caráter político. Mas Leopardi 243 244 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos depois abandona tudo isso e se vai fechando cada vez mais diante de sua intimidade, exprimindo sua amargura e infinitos anseios do infinito, que é próprio de sua poesia. Temos os Primeiros idílios (1819-1921). O primeiro período se reduz a um ano: 1822-1823. Leopardi num primeiro momento acreditava que sua infelicidade e insatisfação dependessem do lugar onde morava. Achava-o mesquinho, e como ele fosse morar em Milão, Florença, Bolonha, ele pensava que talvez fosse mais feliz, podia amar, apreciar e criar aquele desejo imenso que era próprio e instintivo, o desejo de fama, de imortalidade transcendente, mas num sentido romano: nome nominis, como Dante. Então aconteceu que Leopardi queria absolutamente sair da cidade. Mas a sua administração era regida pela mãe, que não tinha a compreensão de aderir ao desejo do filho. Leopardi tentou até sair de noite e foi surpreendido no telhado procurando sair para Roma, sair daquele lugarejo e ir a um lugar onde houvesse amor pelo saber. Mas só meses mais tarde, diante das exigências suas, é que foi-lhe permitido ir a Roma, junto aos parentes da mãe, os marchesi. Foi uma viagem desastrosa, pois eram horrorosas as estradas daquela época. Com exceção da Igreja, achou Roma uma imensa decepção. Sua decepção, amargura e desespero foram sem possibilidade de redenção. Disse que Roma era grande demais para os romanos. As mulheres eram bonitas, mas não havia delicadeza, uma interioridade, naquele pomar feminino que é próprio de Roma, cheia da flora que é a primavera; não há nada de outonal que mais se avizinhasse disso. Não gostou dos romanos, que eram todos empertigados e mentirosos, ele que procurava o entusiasmo. E os homens de cultura o decepcionaram, pois só viviam para um ordenado, e um bajulando o outro. Foi a maior decepção dele. Uma coisa somente o perturbou profundamente e o fez chorar, que descreve numa carta a seu irmão: é aquele carvalho rígido de ferro, abaixo de cujas sombras viveu Torquato Tasso, que é tão vizinho de Leopardi. Esse Tasso triste, que joga uma sombra na literatura do século XVI, com suas preocupações, que acaba louco, esse Tasso que é objeto de tanta poesia, esse foi o único que penetrou na alma de Leopardi, que faz com que veja nele um seu ideal irmão. Leopardi volta à sua cidade. Escreve uma poesia, Alla sua donna, que não existe, é só dele, de sua fantasia, e com essa poesia jura não escrever mais poesia porque sente que está esgotada a esperança, que não há razão para crer, que a felicidade humana depende de viver, de nascer onde o homem nasce já infeliz, porque nasceu. Então essa Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos felicidade fecha o cantar de suas amarguras e entra numa fase de pensamento, prosa e poesia de caráter filosófico. Chegamos ao período em que está com vinte e sete anos. Já é autor, poeta; volta então a Recanati, em 1823, e fica até 1825. Neste período já temos muitas obras importantíssimas, como as “poesias patrióticas”,69 os “primeiros idílios”,70 as “poesias filosóficas”, Lo Zibaldone, Operette morali, etc. Agora vem o período que vai de 1825 a 1828, durante o qual Leopardi pela segunda vez abandona Recanati. Em 1825, teve o convite de um editor de Milão para cuidar da publicação das Orações de Cícero e do Canzoniere de Petrarca, que se usa muito na Itália. Abandona sua querida terra de esperanças e ilusões e ao mesmo tempo odiada, porque a achava pequena. Recanati é o símbolo do que é a realidade para cada um de nós: temos que viver na realidade, odiando-a e amando-a, primeiro quando se a considera sob um ponto de vista contrário a nós e segundo quando se a considera sob um ponto de vista ideal. Leopardi vai a Milão, mas, com o clima frio, muda-se, vai morar em Bolonha e vive quase isolado, e o dinheiro que recebe de Stella é pouco, e deve viver então com aulas particulares, que se dão às pessoas que não têm vontade de trabalhar. Então essa amargura desse homem de gênio. De Bolonha passou para Florença, em 1827. Viveu em Florença, onde teve oportunidade de conhecer um ambiente de primeiro plano, pois lá viviam Manzoni e N. Masseo, e, sobretudo, muitos êxules da Itália meridional, que tinham saído por razões de caráter político. Leopardi viveu perto de um general notável, Pietro Colletta, de Pepoli, e sobretudo de um moço muito superficial, mas bonito, galã, honesto, que tinha todas as qualidades que Leopardi não tinha e que criaram uma extraordinária simpatia para com esse moço, que é Antonio Ranieri. De Florença, foi viver uns meses em Pisa, onde o clima é mais temperado, o céu, mais límpido, o ambiente mais cordial que existe na Itália. Houve uma colaboração entre os estudantes e homens de cultura e, ao mesmo tempo, de contraste, de competição, aí existe um colégio do qual saíram muitos nomes famosos. Então, neste ambiente ele viveu uns meses, e aqui neste clima espiritual e fisicamente bonito ele sentiu voltar suas forças físicas, sua esperança, o otimismo, o apego à vida, e aí saíram duas das suas maiores poesias: A Silvia e Il rissorgimento, em que exulta o ressurgimento de seu corpo. Entre outras, All’Italia e Sopra il monumento di Dante, que são classificadas como “canções” por Francesco Flora. 70 I primi idilli: L’infinito, Alla luna, La sera del dì di festa, Il sogno, La vita solitaria. 69 245 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 246 No fim desse ano, Leopardi volta a Recanati, volta a este lugar querido e odiado, doce e amargo, e aí começa com essas condições físicas renovadas e condições espirituais melhores, sente o desejo de escrever poesias, e então surgem as melhores: I seconde idilli.71 Em Recanati vive durante 1828-1830. Temos a segunda primavera de sua poesia, que é justamente a que constitui o grupo dos segundos idílios. Em 1830, Leopardi, que gostava de viver em Florença, em Pisa, não obteve de seu pai o dinheiro para viver longe de sua família. E disso ele se queixava em suas cartas. Mas houve um homem em Florença, aquele general Pietro Colletta, que fingiu lhe dar um cargo, um ordenado que um editor pagaria para a edição de uma obra que se chamaria Escritores Italianos do Século XIV. Leopardi aceita. Entretanto, não era verdade. Leopardi não tinha nenhum convite. Era, em vez, um grupo de amigos, e sobretudo esse general, que era admirador seu, que de seu bolso oferecia um ordenado, com a promessa que o devolveria no dia em que os editores o tivessem pagado. Leopardi abandona definitivamente Recanati, porque irá diretamente a Napoli, onde falece. Em Florença aconteceu uma das coisas mais delicadas. Leopardi até agora tinha sido um solitário, esperando e desejando ser compreendido e amado. Sentiu que a vida é exclusivamente afeto, intimidade, colóquio, num plano de nobreza e confissão, não tanto entre um homem e outro, mas sobretudo entre um homem e uma mulher, entre dois espíritos que se entendem, que vejam a vida do mesmo modo. Mas até agora considerava que a mulher fosse um conceito do homem e nunca uma realidade, pensava que uma mulher ideal como a gente gostaria de ter é mais uma abstração do nosso desejo do que uma realidade; em vez, pela primeira vez, Leopardi nesse período teve a oportunidade de conhecer uma moça real, que teve uma íntima simpatia para com ele. E ele se iludiu pela primeira e última vez, amando essa mulher, num plano nobre, espiritual, de entusiasmo, de delicadeza, que não vale a pena analisar, tão delicado que é, que Leopardi dá a impressão de que fala do amor e não de uma mulher. Essa mulher se chama Fanny Targioni, mas era casada com um médico, Torati. É evidente que esta emoção não ia além de simpatia para com Leopardi, com o desejo de confortá-lo. Mas ele pensou que essa mulher pudesse transformar esse sentido de amor nela numa realidade. Mas a decepção não podia faltar, e assim temos um grupo de poesias ligadas a esse amor real: Il pensiero dominante, Amore e morte, Consalvo, Aspasia e A se stesso. A Silvia, Le ricordanze, La quiete dopo la tempesta, Il sabato del villaggio, Canto notturno di un pastore errante dell’Asia, compostos entre 1828 e 1830. 71 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos É um drama que se fecha com um desespero incrível, e com essa última, quando fala a si mesmo, convida seu coração a não mais sentir, porque cada amor se transforma num engano. Esse período é o que vai de 1830 a 1833. Em 1833, Antonio Ranieri volta para Napoli, rico, nobre, e convida Leopardi a viver com ele. Leopardi, sabendo que Napoli é uma cidade feliz, cheia de belezas incontáveis, que há um senso de vida otimístico, que o clima é sereno, vai viver com ele os últimos quatro anos de sua vida, até 1827. Aqui escreveu poesias sublimes, com Il tramonto della luna e Alla mestra, e outras amargas e irônicas, e em 1837 ele morria, depois de ditar nos últimos instantes a última estrofe daquela extraordinária poesia que é Il tramonto della luna. Morre em 1837, e como aquele período era o da cólera em Napoli, seu amigo escondeu seu corpo numa igreja numa estrada que vai a Pozzuoli, a Igreja de San Vitale. Embora agora a Itália tenha feito um monumento a ele. É uma vida em que nada podemos colher que nos faça ver um Leopardi igual a um Dante, nunca houve na vida dele uma participação direta na realidade, é um poeta in medias res, é um lírico que vive pensando, sofrendo, meditando, cujo mundo está na sua alma ferida desde os primeiros anos de sua vida, nesta sua visão de idealismo e pessimismo, o que fecha seu espírito a qualquer reconciliação. Se se quisesse dizer alguma coisa sobre sua poesia, em conjunto deve-se dizer que é em escala descendente, de que da primeira à última poesia é um afastar-se doloroso da vida, que se fecha no mundo das ilusões, das esperanças empalidecidas, mas nunca um apego à vida. Ele disse que queria escrever um romance chamado História de uma alma, em que só falaria do complexo mundo da subconsciência humana, daquelas imagens que são os ideais de nossa alma. Essas ilusões de simpatia e de ideias, esse conjunto que é a insensibilidade humana, isso lhe ofereceria os motivos de sua história, que não seria do nome, da religião, mas de sentimentos reais, de aspirações, daquele fluido, daquele mover-se que fica muitas vezes como inconsciente em nosso íntimo. A nossa existência não depende do que acontece fora da fé, que vem do íntimo. Mas ele não escreveu esse romance. Mas qual é a história da alma de Leopardi? São suas obras, porque nenhuma delas fica fora de sua alma. Todas elas representam um ato de sua sensibilidade, do seu tormento, do seu viver íntimo interior. Quais são essas obras? Leopardi, que é o maior lírico da literatura italiana do século XIX, teve muitas qualidades para ser também filósofo. Sua lírica não é descritiva, mas muito penetrante, de sínteses, de análises baseadas numa 247 248 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos consciência, numa cultura. Ele é de uma genialidade tão viva, tão atuante, que se pode dizer que tenha elementos para ser brilhante, oferecendo-se também como filósofo. Podemos até falar de uma filosofia leopardiana. Mas falta-lhe aquela objetividade que se exige da verdadeira filosofia. Seu pensamento é muito pessoal, subjetivo, incongruente, não é uma linha, mas é cheia de contrastes, de influências diferentes, é real e, por isso, é mais emotiva do que objetiva. Quando se lê Dante justamente porque suas afirmações têm valor de universalidade e de necessidade, os de Leopardi são sempre a sua vida pessoal. Mas, de qualquer modo, isto se dá numa visão filosófica da realidade viva. Sua consciência filosófica se baseia no seguinte: na sua mocidade, afirma o positivo, um apostolado de caráter cético; o homem procura a verdade, mas é impossível a ele alcançar a verdade. Ela consiste para Leopardi em saber qual é a origem do mundo, qual é o fim do mundo e por que existe o mundo. Entretanto, para o intelecto humano que tem esse problema, por que existe tudo isso, para que serve, quando acabará, tudo isso se resolvia com a fé. Antes de aceitar uma religião tradicional, ele se choca com esse problema, e através da Filosofia falou que é impossível ao intelecto humano alcançar a razão da existência. Nós observamos que os acidentes do mundo, o homem, o trabalho, a dor, nada mais são do que fenômenos. Mas há esses fenômenos? A coisa em si que é? Por quê? Quando? Como? Isso é o que a razão humana queria possuir. Então, ao homem é negada a verdade. Há uma outra afirmação importante que constitui um alicerce: Leopardi tem também uma convicção materialista da realidade e da natureza. Leopardi não vê uma finalidade na realidade humana, na natureza. Por que existe o dia e a noite, por que o homem nasce e morre, por que trabalha e sofre, para que servem as estrelas? Não poderia ser de outro modo? Se cada um de nós se pesasse, esse problema é só a religião que o resolve. Através de todas as correntes filosóficas atuais, todas essas formas são aleatórias e não alcançam-se as razões da vida, a razão do ser. Leopardi não via nenhuma razão na existência, não pode admitir uma finalidade. Então a razão do ceticismo e do materialismo no pensamento leopardiano. Com esses dois sentimentos a priori, olha a realidade e, através de uma conclusão de caráter empirista, ele nota e observa que no mundo o homem não pode ser feliz e que a vida é infelicidade, é essa sua conclusão. É triste, é uma afirmação gravíssima. Sua aspiração é a de ser feliz, mas ele não alcançará a felicidade. Então essa negação da felicidade como uma realidade. Só pode ser ilusão, nunca é uma realidade. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Mas, de qualquer modo, não é fácil afirmar-se que o mundo é infelicidade. O sábado é mais bonito do que o domingo. A felicidade é algo que é bonita na véspera. A realidade é sempre inferior ao ideal e, como o ideal não se enquadra nunca na realidade, não se pode ser feliz. Mas qual é a razão disso? De quem é a culpa da infelicidade humana? Ela é atribuída à nossa razão. Ela depende da razão, do intelecto humano. O homem quer procurar o que ele não pode alcançar. O homem quer defender a intimidade e a existência eterna e absoluta da realidade, e isso ele não pode colher. É negado à razão humana. Então, a infelicidade está no homem, nesse desejo de ir além do fruto proibido, como se ele pudesse ir além do horizonte. Mas por que a razão humana quer alcançar isso? Mas por que ela quer isso? Quem é que deu a ela esse desejo de querer conhecer a realidade humana? Ela se propõe a alcançar o quid das coisas. Então, atribuiu a culpa essencial à natureza, que num primeiro momento aparece benigna, gentil e cordial, que é uma verdadeira mãe, dando ilusões, sonhos, esperanças, essa natureza é mascarada, porque mais tarde a gente percebe que ela quer que a razão procure algo que não alcançará. E de mãe se transforma em madrasta. É o canto noturno de um pastor. A culpa é da natureza, que quer que o homem seja feliz e que a razão procure as razões das coisas; é ela que proíbe ao homem de ser feliz. Esse destino misterioso, essa força transcendente do homem, é ela que domina a vida humana e quer que o homem deseje, sabendo que esse desejo nunca se tornará realidade. Com todas essas concepções, elas não fazem com que Leopardi seja um poeta que jogue na alma da gente o frio, porque ele estimula o amor, estimula o que é belo e bonito. Ou estamos pela mediocridade da existência, ou pelos ideais. É esse excessivo amor pelo ideal que faz com que Leopardi despreze a existência. Sua poesia é toda uma saudade dos ideais que a gente sonhou na infância, porque o que gostaríamos, de ser felizes, é o que sonhamos na infância. Pusemos em evidência a base do ceticismo, que será como alicerce de sua literatura. O materialismo leopardiano, considerando a realidade e a natureza sem um fim, sem uma razão. Aquela observação leopardiana que, por não poder o homem alcançar a verdade, a vida é infelicidade. O seu problema é saber quem se responsabiliza por essa infelicidade: num primeiro momento, é a razão, que se põe como objetiva, como uma coisa impossível, isto é, a razão humana é responsável pela felicidade que procura a coisa em si, sendo isso impossível. Mas dissemos mais tarde que Leopardi, voltando sobre essa definição de causa, vê que a razão procura a verdade, o porquê das coisas, vê que, se o homem deseja a 249 250 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos felicidade, toda a felicidade absoluta, isso não é devido a ela por si, mas à natureza humana. É ela que leva o homem a um desejo de felicidade absoluta, que faz com que o homem não se satisfaça com uma felicidade relativa. É ela que torna infeliz o homem, porque provoca a razão além dos seus limites. Então, essa natureza, que num primeiro momento parecia como uma boa mãe, que ofereceu como possibilidade de felicidade a fantasia, agora se torna madrasta. Esse pensamento amargo, doloroso, sem solução é a base de toda a literatura leopardiana, em prosa e em poesia. É essa visão clara da realidade e da vida humana, é essa convicção clara, lúcida, sem ilusões, que vai afastando continuamente Leopardi de qualquer desejo de viver. Chega a um momento em que é imobilidade, inerzia, não se queixa do conteúdo da vida, não se queixará mais da infelicidade da vida, do conteúdo de infelicidade que a vida oferece a cada um de nós. Por isso é que a vida é insuportável, que não tem uma razão de ser, que não alcança nem a realização dos nossos anseios, sem oferecer algo que possa fazer com que o homem se justifique. O fato de o homem viver é a sua infelicidade. Isso Leopardi chama de noia, isto é, o tedium vitae. O cansaço e o tédio, não porque a vida seja decepção, porque seja dor, porque seja dificuldades, mas porque a vida é, pelo que ela é. A gente não sabe por que é. A vida não oferece nenhuma realidade, não oferece uma dor que não seja tragicamente dolorosa. A dor muitas vezes é mais na nossa imaginação do que na realidade. Às vezes sofre mais porque persegue com a fraqueza a dor, do que doloroso por si. Mas muitas vezes é uma ilusão. A vida não tem nada de substancial, de definitivo. O mundo, a existência, não têm nada que os justifique. Um poeta que se põe numa posição tão extremista, como seria possível para ele resolver seu problema? Leopardi nunca tem esse desejo de negar-se, matando-se. Sempre sentiu essa necessidade de matar-se, mas nunca o fez. Sempre teve uma reação, e isso é o aspecto heroico, pois, sem fé, sem iluminação, só poderia liquidar-se, mas nunca o fez. Primeiro conceito: Leopardi apresenta, na sua amarga poesia, não um aspecto cético, como poderíamos pensar, mas apresenta uma solução heroica. Qual é ela? Que, na humanidade, somos todos dominados pelo mesmo destino, por uma única realidade misteriosa: a dor. Então, os homens constituem um exército, em que cada um de nós tem o seu lugar de soldado, que não é o que luta matando outro soldado, mas o que luta no sentido de solidariedade entre eles. A batalha dos homens não é de ofensiva, de morte, diante dos Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos outros, mas é uma batalha de amor, de solidariedade, de irmandade entre eles. São os homens que lutam contra a dor, que se confortam, suportando a existência. Há na sua filosofia e prosa uma tentativa heroica de solução, uma proposta, uma mensagem: não promete a felicidade, nem o cosmopolitismo, uma paz eterna e duradoura, mas promete o compromisso que cada um de nós deve ter, no sentido de auxiliar-se reciprocamente. Surge o conceito do amor através da cruz. Schoppenhauer disse que o cristianismo ganhou sobre o paganismo porque, enquanto este pregava como se fosse uma coisa alcançada, aquele pregou como se fosse infelicidade. É, portanto, mais perto da alma humana. O cristianismo compensou esse pessimismo com a promessa de uma vida fora da humanidade. É um dos pontos fundamentais. Nas últimas operette, em que há um diálogo entre Porfírio e Plotino,72 entende-se essa tese. Suas afirmações são amargas, mas idealísticas e nobres. Quando Porfírio diz a Plotino que a vida é uma negação de tudo, é uma incapacidade de atingir tudo, quer matar-se. Mas Plotino diz que não, pois a morte quer dizer aumentar a dor na existência humana, é uma realidade a menos na dor, e sentiríamos a falta da pessoa que morre. E não poderíamos consolá-la, porque ela não existe mais, e isso faz com que Porfírio desista de suicidar-se. Segundo conceito: Leopardi teve a grande virtude, rara nos homens infelizes, de ser poeta, de ser um escritor, de forma que, toda vez que a sua filosofia lhe apresentava uma realidade, um perfil, um motivo de amargura e de negação da existência e o levava a uma tentativa de suicídio, nesses momentos ele se realizava como poeta. Veja-se o imenso valor da poesia. Sabendo que tem o seu valor, é o sangue do seu sangue, é uma mensagem. Poesia vem do grego: poiéo (fazer). Então, é uma construção, é uma ação que os maiores poetas contemporâneos fazem, que a poesia é catarse, purificação. Se estamos amargurados e podemos jogar isso fora, numa cor, numa nota, numa poesia, ele está a salvo, porque teria aquele pathos de onde sai a poesia. É uma mensagem, uma necessidade. É tão natural como a maternidade. E num sentido ideal de teoreticidade, é poeta aquele que sabe realizar aquilo que intimamente o torna desesperado. Em geral, a maior poesia é o fruto de uma insatisfação. Então, assim se explica a sua poesia. A ação de Leopardi foram suas obras. Esse homem solitário, que sempre mais se vai afastando da realidade, porque sente-a inferior aos seus ideais e ilusões, achou na 72 Dialogo di Plotino e di Porfirio. 251 252 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos poesia sua idealidade ideal. Como os grandes, esses homens que tiveram essa divinitas, essa capacidade superior de poder realizar. Obras de Leopardi Lo Zibaldone É um conjunto de quatro mil e quinhentas páginas, escritas pelo próprio punho, com uma letra pequena, que se pode ver em Recanati, nas mesas da biblioteca, escritas entre 1817 e 1832. Então, Lo Zibaldone é o conjunto de quinze anos de meditação e de leitura. Hoje este título (esse conjunto de pensamentos, críticas, esboços) conserva-se assim. Leva este nome, mas já foi tentado mudá-lo quando foi publicado pela primeira vez, porque ele não tinha nenhuma intenção de publicar esta obra, pois ela era simplesmente uma obra sua, uma espécie de regressione de seus estudos, tinha caráter exclusivamente pessoal. Mas quando morreu, foi nomeada uma comissão de grandes estudiosos, e o chefe era Giosuè Carducci, para preparar a obra para o centenário do nascimento de Leopardi. Por isso foi publicada entre 1838 e 1900. Então teve um título diferente. Chamou-se Pensieri di varia filosofia e bella letteratura, mas não era um título leopardiano, mas de estudiosos. Hoje em dia os poetas costumam chamar obras como essa de “diário”. Vai-se escrevendo tudo que se sente e pensa, falando de Deus ou de uma banalidade. Vai-se escrevendo, vai-se jogando e tem o valor de ser de uma sensibilidade extraordinária. Tem-se ciúme de mostrá-lo. É o diário que cada um faz por si, pondo em evidência sua interioridade, que não se acredita em não dever dizer, por orgulho, inocência ou pureza, aquilo que não se aprecia. No diário se vê o que diversamente parece ser. Assim é Le Confessioni de Santo Agostinho, aquilo que Rousseau chamou Les Confessions e Heine chamou de Tagebuch. Benvenuto Cellini escreveu sua autobiografia. Essa é a importância das confissões. Leopardi faz isso no Zibaldone. Não podemos estudar nenhuma obra sem conhecer esta. Leopardi, citando capítulos, páginas em línguas diferentes, programas de estudo, diz que escreveu uma obra assim para estabelecer um programa de trabalho. Ele constrói, apesar de toda sua amargura. É o espelho de cada um de nós. São as aquarelas e os instantâneos de nossa vida. Essa obra é de uma importância extraordinária. Ele se apresenta em toda sua generosidade, pureza, beleza, humanidade, nesse trabalho contínuo, de Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos noite e de dia, nessa perseverança, nessa coerência entre o ler e o agir, lá vamos vendo de onde sai, por que saiu, qual a razão dessa poesia, porque não precisa pensar, mas lembrar que uma obra, se sai, é porque deve sair, ou num plano histórico ou autobiográfico. Sua segunda obra é Operette morali. Houve um período na sua vida, depois de 1823, em que Leopardi sentiu-se tão abatido, tão triste, tão sem inspiração, sem fantasia, sem imaginação, que ele prometeu não escrever mais, porque a poesia é o fruto da fantasia, é a imagem de um otimismo, ainda que num período de infelicidade. Não se pode ser poeta, é difícil escrever-se uma obra, negando. Sempre deve ter uma afirmação. E uma afirmação de fé, de uma crença no futuro, numa realidade ideal. É aquilo de fechar-se pelo gosto da infelicidade, de uma angústia, mas não é num plano lírico, pois qualquer poesia, porquanto dolorosa, é sempre cheia de entusiasmo. Há esse vigor na poesia. Por mais triste que possa ser, até Schoppenhauer num certo momento tem necessidade de exaltar o santo, o homem que é capaz de dominar a vontade. Mas se o homem pudesse dominar a vontade de viver, seria um santo. Ele resolve seu pessimismo. Com Goethe, Shakespeare e Dante é a mesma coisa. Se a gente lê o Inferno, lê apenas um terço da obra. Leopardi tem a necessidade de cair numa ilusão. Se não percebe esse refúgio, a vida seria uma negação de tudo. Leopardi num certo momento sentiu que tinha se esgotado naquela sua inspiração. Começou a escrever em prosa. Suas obras são de uma beleza extraordinária. São isoladas, solitárias, que ficaram sem continuação. Tudo pode ter uma explicação histórica. Estudar Boccaccio em relação a Dante ou Petrarca; estudar Manzoni em relação aos prosadores da Renascença. Mas não se vê em d’Annunzio e em Verri uma continuação da prosa de Leopardi. Como ele está sozinho na poesia, assim fica sozinho aquele enamoramento que tem por Fanny, assim como fica a ginestra73 no mundo do Vesúvio. Em suma, sua prosa é uma ação que não foi seguida, porque ela é algo de altamente clássico, de altamente fantástico, cheia de imagens, não tem nada de popular, de vivo, no sentido da espontaneidade, é enamorado. É interessante porque é elaborada, porque é esquisitamente clássica, é cheia de ilusões, de sonhos, de imaginações, cheia de imagens. Lê-se aquilo e tem-se uma impressão de uma peregrina singularidade, extraordinária. Parece mais uma página de filosofia do que poesia. Aquele ritmo é a poesia dele, num certo período. Podemos fazer uma observação de caráter estético, que é: não se deve fazer uma diferença 73 Giesta (arbusto, flor). 253 254 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos entre prosa e poesia, porque, quando a prosa e a poesia são imagem, os dois modos de expressão se encontram em um único plano. Há prosas muito mais poéticas do que poesias. Esse ritmo solitário de violino chorando, meditando, desejando, isso é o caráter de Le operette morali. Foram escritas quando Leopardi tinha vinte e três anos, em 1834. São compostas de vinte e quatro prosas. A primeira é Storia del genero umano e a última é Dialogo di Plotino e di Porfirio. Essas prosas se movem entre uma primeira operetta, que deve ser considerada como uma introdução, em que Leopardi examinou a história do gênero humano. E, mais ou menos, os resultados são: A história da civilização humana nada mais é do que a prova de uma crescente infelicidade humana. Se quisermos ver em que consiste a infelicidade humana, é só ver a história da civilização humana. No início, quando tudo era pequeno, quando não se sabia nada das estrelas, e tudo era plano, a humanidade foi feliz. Depois, começou a ser infeliz. Acaba com Porfirio e Plotino, que é o diálogo em que surge essa tese de uma mensagem prática da poesia, que, apesar de tudo, em nome da dor é que os homens devem viver. O suicídio é um acréscimo da dor; não se deve ser tão egoísta diminuindo a própria dor, suicidando-se, e aumentar a dor dos outros. Cento undici pensieri É um grupo de pensamentos da última fase leopardiana, quando vive em Napoli. São justamente cento e onze pensamentos, que foram publicados póstumos e justamente no ano de 1845. Os temas, os motivos desses pensamentos são os mesmos das outras obras de Leopardi; ficam sempre como expressão do seu pessimismo, da sua concepção mecanicista da vida e da sua sensibilidade e delicadeza, que é sobretudo evidente nos Canti. Esta obra, diante das outras, apresenta uma restrição: é um certo cansaço, uma certa repetição dos motivos, uma negligência, um certo desinteresse humano no que ele diz. É um grupo de pensamentos que não representam o melhor de Leopardi. L’Epistolario É uma outra obra importantíssima para conhecer a alma leopardiana. É um conjunto de novecentas cartas, que Leopardi escreveu ao seu irmão Carlo, à sua irmã Paulina, a parentes como Pepoli, ao pai, à sua mãe Antici e a Antonio Ranieri, Tomase, Colletta, aos seus amigos, respondendo ou dirigindo-se a eles. Estas cartas têm uma importância extraordinária, porque nunca o epistolário italiano foi tão íntimo, tão Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos delicado como este. Nunca se fala de coisas exteriores à sua alma, de acontecimentos e de contingências reais, da vida de todos os dias. São, sobretudo, a expressão daquela infelicidade, daquela comoção e gosto de confessar-se à alma. Como se se tratasse de um colóquio, quando, em vez, tem-se a impressão de que é um solilóquio. Elas são importantes para entender quanta sensibilidade dominava a alma deste gigante de amargura, de dor, de idealismo. São cartas em que prevalecem sobretudo estes sentimentos: um desejo clássico, quase pagão, de ser conhecido pela honra, fama, glória; um desejo de ser amado, quer no sentido romântico, como no da amizade. Essa imploração em todas suas cartas, este repetir das expressões dolorosas, desesperadas, de uma pessoa incompreendida, que vive na solidão e que quer que alguém lhe escreva, a amizade, o amor, a glória, e esses lances, essas confissões de idealismo, são a parte vibrante das cartas de Leopardi. É muito difícil que um moço não se sinta comovido, que não se sinta pequeno diante dessas expressões, que nunca são improvisadas, mas cheias de uma sensibilidade, de uma pureza e sinceridade extraordinárias. Fazem estas cartas pensar em homens como Torquato Tasso, que deve se considerar como o irmão ideal de Leopardi. Fazem pensar em Petrarca, que está bem perto da personalidade leopardiana. São cartas que deixam em quem as lê um sentimento de ternura, de solidariedade extraordinária. Enobrecem, purificam o leitor. E para mostrar um contraste, um verdadeiro contraste, esquisito, na personalidade dele, queremos, logo depois de ter ilustrado o Epistolario, mostrar que Leopardi foi também um poeta de obras satíricas. Mas um poeta dominado pela dor, como era Leopardi, um poeta cheio de aspirações altíssimas, desconfiado diante da possibilidade real de qualquer idealismo, um poeta que viveu exclusivamente na sua intimidade, numa esfera completamente teorética, espiritual, ideal, assim aristocrática, assim transcendente, assim superior, com seus problemas de universalidade, de necessidade, cuja poesia é sempre a expressão de coisas ideais, de sentimentos, que nada tinham que fazer com a realidade e que nunca são uma reação prática à realidade e sim uma projeção real de modo a ser sonhado, um poeta assim dificilmente poderia ter a mesma capacidade, altura, no campo da sátira, do humorismo. Para que um poeta seja satírico, para que possa manejar bem o humorismo, a ironia, esses meios que podemos chamar inferiores diante da grande arte, precisaria que Leopardi soubesse odiar, jogar-se na realidade; e então a sátira leopardiana é excessivamente amarga para que possa ter um valor. O humorismo é excessivamente preto, desesperado, para que possa despertar um sorriso. Sempre se vê que as sátiras não 255 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 256 são os meios melhores para exprimir sua alma, mas, em vez, a lírica e a prosa. Nunca a sátira, nunca esse jogar, esse desprezo de acontecimentos contemporâneos à vida do poeta. Nunca Leopardi será o poeta que poderá transformar a realidade política, social, econômica da idade em que viveu, fazendo sobre os personagens essas sátiras, fazendo ironias e humorismo. Ele fica sempre au dessus de la mêlée.74 Sempre o problema do conformismo italiano é o motivo de sua sátira. Três obras devem ser lembradas nesse sentido: I nuovi credenti Trata-se de uma sátira contra o idealismo do século XIX. Esses que acreditam no progresso, numa paz a vir, na solidariedade, na espiritualidade humana, esses levianos idealistas do século XIX. Entretanto, sabemos que Leopardi era profundamente idealista. E soa mal saber que lança essas sátiras contra o espiritualismo do século XIX. Palinodia al marchese Gino Capponi É um termo grego, isto é, retratação. É uma espécie de carta em verso em que Leopardi num primeiro momento imagina retratar-se, isto é, negar os conceitos, os sentimentos e os ideais na base dos quais até agora cantou e viveu, mostrando, em vez, cantar os ideais dos outros. Mas, na segunda parte, volta a afirmar seus conceitos eternos e seus ideais. É uma falsa retratação, durante a qual joga seu humorismo sobre os ideais e as crenças do século XIX. Paralipomeni della Batracomiomachia Em grego quer dizer conclusão fixa; ao que se acrescenta batraco: rã; e mios: ratos; machia: batalha. Imagina-se atribuir a tradição a Homero, uma obra de caráter satírico, em que cantaria a guerra entre as rãs e os ratos. Qual é a conclusão dessa batalha? O poeta, referindo-se a Homero, chega a usar este título descrevendo a situação particular da Itália contemporânea ao escritor. Quem seriam os batráquios, os ratos? Seriam os liberais e os racionais do século XIX. Os liberais seriam os ratos que fogem, que nunca alcançam seus ideais. Os batráquios seriam os reacionários, contrários à liberdade e independência italiana. Eles ganharam em 1820, 1821 e 1823, com aquelas mortes de que tanto fala Pellico.75 E o poeta até acrescenta um terceiro animal, que é i granchi,76 Acima da contestação. Silvio Pellico (1789-1854), dramaturgo e poeta. 76 Caranguejos. 74 75 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos representados pelos austríacos, e que eram aliados das rãs. É em oito cantos em oitava rima. Essas são as obras menores. Falaremos em vez agora da parte mais viva, mais eterna, mais inicial de sua personalidade. Devíamos nos construir sobre sua poesia e líricas, que são traduzidas em todo mundo e que colocaram justamente Leopardi num plano altíssimo, não somente na literatura romântica italiana, mas também na romântica universal. Essas poesias vão de 1818 a 1837. Durante uns dezenove anos, Leopardi escreveu mais ou menos quarenta e um cantos importantes: I Canti. São melodias, expressões melódicas de uma amargura, sinceridade, sensibilidade, que são a projeção rítmica de sua existência ideal, íntima. Os primeiros impressionam porque são três cantos de caráter patriótico. E nós, que sempre afirmamos que Leopardi é essencialmente um lírico, ficamos maravilhados ao falar sobre assuntos que ficam fora de sua alma. Mas ele os faz sob inspiração do seu amigo Giordani, que encorajou Leopardi a ser escritor, e ele viu em Leopardi, pela sua nobreza, o poeta que mais tarde poderia ter sido o poeta do ressurgimento italiano. Ele estimulou Leopardi. E daí saíram três grandes líricas, que, apesar de serem inferiores, são, porém, sempre expressão de uma sensibilidade, de uma pureza de língua extraordinária. São elas: All’Italia, Sopra il monumento di Dante, Ad Angelo Mai. Mas podemos perguntar, como já se perguntou Francesco De Sanctis, será que o ritmo é completamente alheio à alma, aos interesses de inspiração leopardiana? Não o é, porque Leopardi, já em 1818 a 1819, já nessa idade, com vinte e um anos, tinha a sua visão filosófica da vida. E já tinha construído seu pessimismo. E tinha ido além, para ver que não só ele é uma prova da infelicidade humana, mas também os outros indivíduos, até as nações. Se a Itália não tivesse sido a escrava dividida, sem um anseio qualquer de liberdade, independência, talvez ele não se tivesse inspirado na Itália. Ele via a Itália como uma irmã de seu próprio destino. É esse aspecto de amargura, que existe também nos outros homens e que prova a universal infelicidade humana, o que provam suas três poesias. Mas, logo depois temos o primeiro grupo da lírica leopardiana, que se conclui em 1821, constituída por um grupo de poesias chamadas I primi idili: L’infinito, La sera del dì di festa, Alla luna,77 Il sogno, La vita solitaria. Essas cinco poesias tiveram um nome particular. Aqui temos a originalidade de sua poesia, porque idílio é um termo velho, secular, já existente na literatura grega e romana, e queria dizer 77 Esses três poemas foram analisados em aula. 257 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 258 poesia bucólica, campestre, descrição dos campos, da paz, o mundo da natureza serena. Em Leopardi, porém, I primi idili não têm um valor descritivo, um sentido bucólico, não é uma expressão da satisfação em forma de lazer, como em geral é a poesia descritiva e bucólica. É, em vez, uma poesia cheia de meditação, de sensibilidade, de sentimento. As comoções, as esperanças leopardianas se realizam fora, através de uma paisagem da natureza, que não existe inteiramente nelas, mas como uma imagem delas: A Lua não é algo de fora e exterior do poeta, mas é a imagem de sua alma. O infinito é a imagem de uma aspiração, do infinito que existe na sua interioridade. E assim com os outros poemas, são sentimentos, estados de alma, que só se poderiam realizar servindo-se de elementos da natureza subjetivizados, como imagens de uma subjetiva visão da realidade. Le poesie filosofiche Alla sua donna (1823), Ad un vincitor di pallone, Nelle nozze della sorella Paolina, Alla primavera, e Bruto minore. São as poesias em que Leopardi abandona a finalidade melódica, que é própria dos primeiros idílios. Aqui ele é mais desesperado e mais áspero e essencial. Aqui o substantivo predomina sobre o adjetivo, os verbos estão no presente, mais do que no perfeito. É uma constatação, não uma lembrança, é uma poesia amarga, sem esperança, em que não há a consolação dos primeiros idílios. Depois de 1812, escreveu A Silvia e Il risorgimento. Mas interessa lembrar que, quando voltou dessa viagem, depois de ter vivido em Milão, Bolonha, Florença e Pádua, ele volta a Recanati, depois desses anos de afastamento. Em 1829, ele volta a uma felicidade de expressão que cria um grupo de poesias maravilhosas, de uma beleza que eternamente a gente continua lendo e procura penetrar no fundo, descobrindo mensagens sempre novas: Il passero solitário, Il sabato del villaggio, La quiete doppo la tempesta, Canto notturno di un pastore errante dell’Asia. Uma das mais bonitas é Le ricordanze. Há também aquele grupo de poesias de amor para Fanny, que são cinco: Il pensiero dominante,78 Amore e morte, Consalvo, Aspasia, A se stesso. Agora duas poesias do período napolitano: Il tramonto della luna, cujas últimas estrofes foram ditadas antes de morrer, e La ginestra. 78 Analisado em aula. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A Silvia e Il sabato del villaggio, de Leopardi, com tradução de Bruno Enei A Silvia Silvia, rimembri ancora quel tempo della tua vita mortale, quando beltà splendea negli occhi tuoi ridenti e fuggitivi, e tu, lieta e pensosa, il limitare di gioventù salivi? Sonavan le quiete stanze, e le vie d’intorno, al tuo perpetuo canto, allor che all’opre femminili intenta sedevi, assai contenta di quel vago avvenir che in mente avevi. Era il maggio odoroso: e tu solevi così menare il giorno. Io gli studi leggiadri talor lasciando e le sudate carte, ove il tempo mio primo e di me si spendea la miglior parte, d’in su i veroni del paterno ostello porgea gli orecchi al suon della tua voce, ed alla man veloce che percorrea la faticosa tela. Mirava il ciel sereno, le vie dorate e gli orti, e quinci il mar da lungi, e quindi il monte. Lingua mortal non dice quel ch’io sentiva in seno. Che pensieri soavi, che speranze, che cori, o Silvia mia! Quale allor ci apparia la vita umana e il fato! Quando sovviemmi di contanta speme, un affetto mi preme acerbo e sconsolato, 259 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 260 e tornami a doler di mia sventura. O natura, o natura, perché non rendi poi quel che prometti allor? perché di tanto inganni i figli tuoi? Tu pria che l’erbe inaridisse il verno, da chiuso morbo combattuta e vinta, perivi, o tenerella. E non vedevi il fior degli anni tuoi; non ti molceva il core la dolce lode or delle negre chiome, or degli sguardi innamorati e schivi; né teco le compagne ai dì festivi ragionavan d’amore. Anche perìa fra poco la speranza mia dolce: agli anni miei anche negaro i fati la giovanezza. Ahi come, come passata sei, cara compagna dell’età mia nova, mia lacrimata speme! Questo è quel mondo? questi i diletti, l’amor, l’opre, gli eventi, onde cotanto ragionammo insieme? questa la sorte dell’umane genti? All’apparir del vero tu, misera, cadesti: e con la mano la fredda morte ed una tomba ignuda mostravi di lontano. A Sílvia Sílvia, relembras ainda aquele tempo da tua vida mortal, quando a beleza resplandecia nos olhos teus risonhos e fugitivos, e tu, feliz e pensativa, o limiar da juventude subias? Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Soavam os tranquilos aposentos, e as ruas nas vizinhanças, ao teu perpétuo canto, quando aos trabalhos femininos cuidadosa sentavas, muito contente daquele vago futuro que tinhas em mente. Era o maio perfumoso: e tu costumavas assim passar o dia. Eu os estudos elegantes às vezes deixando e os suados papéis, onde o tempo meu primeiro e de mim se gastava a melhor parte, de sobre os balcões do paterno refúgio aguçava os ouvidos ao som da tua voz, e à mão ligeira que percorria a fatigante tela. Olhava o céu sereno, as ruas douradas e as hortas, e aqui o mar longe, e acolá o monte. Língua mortal não diz o que eu sentia no coração. Que pensamentos suaves, que esperanças, que corações, ó minha Sílvia! Como então nos aparecia a vida humana e o destino! Quando me lembro de tantas esperanças, um sentimento me aflige amargo e inconsolável, e volto a maldizer minha desventura. Ó natureza, ó natureza, por que não dás pois aquilo que prometes então? por que tanto enganas os filhos teus? Tu antes que as ervas secasse o inverno, por fechada doença combatida e derrotada, perecias, ó tenrazinha. E não vias a flor dos anos teus; não te acariciava o coração o doce louvor ou dos negros cabelos, 261 262 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ou dos olhares enamorados e puros; nem contigo as companheiras nos dias festivos falavam de amor. Também morria logo depois a minha doce esperança: aos meus anos também negaram os fatos a juventude. Ai, como, como passaste, querida companheira da minha jovem idade, minha esperança tanto chorada! é este aquele mundo? estes os prazeres, o amor, ações, os acontecimentos, dos quais tanto falamos juntos? Esta a sorte dos seres humanos? Ao aparecer da verdade [a morte] tu, mísera, caíste: e com a mão a fria morte e uma tumba desnuda mostravas de longe. Il sabato del villaggio La donzelletta vien dalla campagna, in sul calar del sole, col suo fascio dell’erba; e reca in mano un mazzolin di rose e di viole, onde, siccome suole, ornare ella si appresta dimani, al dì di festa, il petto e il crine. Siede con le vicine su la scala a filar la vecchierella, incontro là dove si perde il giorno; e novellando vien del suo buon tempo, quando ai dì della festa ella si ornava, ed ancor sana e snella solea danzar la sera intra di quei ch’ebbe compagni nell’età più bella. già tutta l’aria imbruna, torna azzuro il sereno, e tornan l’ombre giù da’ colli e da’ tetti, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos al biancheggiar della recente luna. Or la squilla dà segno della festa che viene; ed a quel suon diresti che il cor si riconforta. I fanciulli gridando su la piazzuola in frotta, e qua e là saltando, fanno un lieto romore; e intanto riede alla sua parca mensa, fischiando, il zappatore, e seco pensa al dì del suo riposo. Poi quando intorno è spenta ogni altra face, e tutto l’altro tace, odi il martel picchiare, odi la sega del legnaiuol, che veglia nella chiusa bottega alla lucerna, e s’affretta, e s’adopra di fornir l’opra anzi il chiarir dell’alba. Questo di sette è il più gradito giorno, pien di speme e di gioia: diman tristezza e noia recheran l’ore, ed al travaglio usato ciascuno in suo pensier farà ritorno. Garzoncello scherzoso, cotesta età fiorita è come un giorno d’allegrezza pieno, giorno chiaro, sereno, che precorre alla festa di tua vita. Godi, fanciullo mio; stato soave, stagion lieta è cotesta. Altro dirti non vo’; ma la tua festa ch’anco tardi a venir non ti sia grave. O sábado da vila A donzelazinha vem do campo, no pôr-do-sol, 263 264 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos com seu feixe de erva; e traz na mão um buquê de rosas e de violetas, com as quais, como se costuma, ornar ela se prepara amanhã, ao dia de festa, o peito e o cabelo. Senta com as vizinhas sobre a escada a fiar a velhinha, de frente para lá onde se põe o dia; e contando vem do seu bom tempo, quando no dia da festa ela se enfeitava, e ainda sadia e ágil costumava dançar a noite inteira com aqueles que teve companheiros da idade mais bela. Já todo o ar escurecido, torna azul o sereno, e voltam as sombras já pelas colinas e pelos telhados, ao branquejar da recente lua. Ou, a sineta dá o sinal da festa que vem; e àquele som dirias que o coração se abre. Os guris gritando na pracinha em grupo, e aqui e ali saltando, fazem um alegre rumor; e entretanto volta à sua parca mesa, assobiando, o lavrador, e consigo pensa no dia do seu repouso. Depois quando em volta apagou-se todo facho (lume), e todo o resto cala, ouve o martelo bater, ouve a serra do lenhador, que trabalha na fechada oficina sob a candeia, e se apressa, e se ocupa de fornecer o trabalho antes do clarear da aurora. Este dia sete é o dia mais agradável, cheio de esperança e de alegria: amanhã a tristeza e o aborrecimento trarão as horas, e ao trabalho usual cada um no seu pensamento voltará. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Rapazinho brincalhão, esta idade florida é como um dia de alegria cheio, dia claro, sereno, que precursa à festa da tua vida. Divirta-se, meu rapaz; estado suave, estação feliz é esta. Outra coisa não te vou dizer; mas a tua festa ainda que tardes a chegar, não te seja funesta. Alessandro Manzoni (1785-1873) Dos dois escritores que fizemos até agora, Alessandro Manzoni é certamente o que mais pertence ao Romantismo. Foscolo e Leopardi devem ser considerados românticos, mas nesses dois escritores há ainda uma exigência tão viva, tão essencial, um respeito assim profundo pela linguagem clássica, pura, pela expressão greco-romana, pela perfeição da linguagem, que podemos dizer que são românticos, como psicologia, como tema e motivos da psicologia, mas esse respeito para com a língua e certas restrições de suas culturas, mais ligadas ao século XVIII, fazem com que esses dois não sejam mesmo expoentes essenciais do Romantismo italiano. Em vez, Manzoni é o corifeu, é o líder do Romantismo italiano, porque ele resolve os problemas da consciência romântica. Ele canta motivos de sensibilidade romântica e os resolve e os exprime romanticamente, isto é, na base da filosofia de atitude e de espiritualidade românticas. Então, Manzoni deve ser colocado ao centro do Romantismo italiano, como o expoente mais popular, mais representativo de toda essa espiritualidade, que é já presente em Foscolo e Leopardi. O ponto de saída da arte de Manzoni, os motivos e os temas da literatura manzoniana, são os mesmos que cantaram Foscolo e Leopardi. Mas a solução é que é diferente, a atitude é diferente. Também Manzoni se põe o problema da dor, também considera a vida como amargura, também para ele há um dualismo, um dissídio, um contraste entre o ideal e o real, entre o ser e o não-ser, entre a existência e o devenir; também para Manzoni os nossos íntimos sentimentos nem sempre descem numa realidade real. E isso 265 266 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos cria em nós melancolia, tristeza, pessimismo. Também Manzoni era pessimista como Foscolo e Leopardi. Porém, o pessimismo de Manzoni se resolve romanticamente, religiosamente, na base, isto é, de uma visão religiosa do problema do homem, da História, da realidade, uma visão religiosa que coloca tudo isso num plano de solução, num plano de explicação, de compreensão. Porque o problema de Foscolo e Leopardi era justamente explicar a razão da dor: qual é a finalidade da natureza, da realidade, das amarguras e das dores? Em Manzoni há uma explicação dessa dor. Não se procura, como em Foscolo, resolver a existência da dor através de uma ilusão confortadora. Não se procura, como em Leopardi, afastando-se, numa atitude quase estoica, da realidade da vida. Manzoni sabe que existe a dor, mas sabe também achar uma razão religiosa da dor. A dor é um elemento positivo da vida, não é uma coisa mecânica, fatalística, naturalística, não é um castigo, uma condenação. Para Manzoni, além de não ser isso, a dor é um prêmio, um presente, uma certidão que prova que quem sofre é querido pelos deuses. Quando a dor nos visita é porque Deus está ao teu lado, e, num certo sentido, a dor é a presença da divindade. Quer dizer que a vida, longe de ser aquele triunfo de felicidade, que era a ilusão de Foscolo e Leopardi, é, em vez, e deve ser, uma espécie de crise, que redime, que transforma, que se justifica, que até se deseja, se pede, se implora. Quem não sofre é porque não vive. E quem sofre certamente se purifica através da dor. A dor então é providencial, é esta a grande descoberta romântica de Manzoni. Ela tem uma finalidade, um alvo, que são a elevação, a educação, a humanização dos nossos espíritos. Naturalmente, para se chegar a uma compreensão da dor, nesse sentido, só é possível através de uma convicção religiosa. Então, o que de notável há no romantismo de Manzoni é seu aspecto religioso. É ainda mais evidente do que o de Foscolo, porque a religiosidade manzoniana é a própria religião tradicional, isto é, o cristianismo e o catolicismo, que Manzoni não recebe repentinamente, que não recebe passivamente, mas que ele transforma, subjetivando, e que é cheia de influências realísticas, nacionalistas e francesas. Um cristianismo e catolicismo não passivo, não tradicional, não dogmático, mas cheio daquele pathos, de humanidade contemporânea, moderna, que era feita das dúvidas e da insatisfação dos românticos. Manzoni então cantará não somente o problema, se existe ou não existe uma História humana. Os homens fazem guerra, matam-se, odeiam-se, mas qual é a finalidade disso? Dizem que a História não tem uma espiritualidade, mas Manzoni não se põe esse problema, se Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos existe ou não um significado da realidade humana, se nós temos uma razão de ser. Seu problema é dizer: qual é a razão de ser, qual é a lei que cria a História, quem se agita no íntimo da História, da realidade, quem é que está dentro, escondido, e parece alheio, mas está presente, está ao lado de qualquer nossa ação? Manzoni vai dizer que, ao lado de qualquer ação, no íntimo da História, da natureza, há uma providência que regula, que ganhará, que não está ligada ao tempo, mas está ligada à vitória, à conquista final, a um resultado último e infalível, que, apesar das aparências, a natureza vai se transformando e melhorando como uma finalidade, que a humanidade, com suas lutas e limitações, a humanidade melhora e progride, e a conquista final é aquela do bem, da luz, do progresso, é a da moral, da ética. Essa conquista se cria com o tempo. Aparentemente, parece que ganham a violência, a vingança, o ódio, mas com o tempo vê-se que é a verdade que se supera e se afirma. Há um otimismo pessimista em Manzoni, isto é, sempre considera a realidade sob um ponto de vista amargo, que não é fim, pois o pessimismo é iluminado por uma fé. É importante que a presença desses ideais seja uma presença transcendental, dentro das coisas. Apesar de Manzoni viver em fé, apesar de adquirir uma transcendência de um ser que fora do mundo é o dono do perdão, ele vê essa atuação desse ser transcendente na própria realidade do mundo em que vivemos. Aqui mesmo há o inferno e paraíso, onde aparentemente parece que o inferno ganha, mas, em vez, através dos séculos vemos que a virtude, o amor triunfam. Isso se vê nas suas obras e nas duas tragédias, e no romance, e em I promessi sposi, em que descreve a perseguição de dois coitados operários, que apesar de serem perseguidos pelos potentes e pelo clero, apesar disso já aqui no mundo ganharão a parada, sendo felizes, ao passo que os que os perseguem serão os punidos, os castigados, quer pela peste ou pelo arrependimento, que os faz reconhecer a injustiça feita aos dois. É uma obra muito bonita, pela qual Manzoni vive ainda hoje; justamente hoje, depois de Nietzsche, Schoppenhauer e a literatura de Zola, de Verga,79 excessivamente negativa, mais disposta a demolir que a construir, depois de Freud, que procurou fazer com que o homem conhecesse o seu subconsciente, que é necessário voltar a um homem como Manzoni, para achar-se a síntese dessas afirmações, achando uma razão de ser. Manzoni tem essa função, por isso é o líder do Romantismo 79 Giovanni Verga (1840-1922), maior expoente da corrente literária do verismo. 267 268 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos italiano. Sua palavra em política, em religião, em prosa, é sempre num equilíbrio, numa ponderação conciliadora entre os dois aspectos da vida, um positivo e o outro positivo e tristemente real. Mas Manzoni acha essa síntese que faltou aos que foram românticos apenas como ciência. Sua vida, que tem uma importância enorme na história da literatura europeia, foi sem ações, sem heroísmos bravios, sem gigantismo. Sua virtude foi a moderação, a dignidade, uma seriedade quase fechada e serena de homem sábio, tipo Sócrates, observando e equilibradamente considerando as coisas de estudo, os fatos a que assistiu e os acontecimentos históricos, sendo a historiografia uma das disciplinas que mais ama: primeiro, pela realidade dos acontecimentos grandiosos, que pode pessoalmente ver; segundo, pelo imenso amor para a História, essa maravilhosa ciência humana, que canta o nosso passado, o dos nossos avós e as coisas da realidade da vida. Se a História se apresenta como uma espécie de conditio sine qua non, que provocará a verdade de sua convicção, justamente a História passada mostrará que sua convicção é justa, que sua fé é concreta, que é uma convicção profunda, real, afetiva, cheia de testemunhos. De forma que, se para falar de Foscolo, poderíamos até não dizer nada da vida dele e também nada da vida de Leopardi, aqui se torna necessário imediatamente entrar na biografia dele, sua educação, o ambiente em que viveu. Tendo nascido em 1785 e falecido em 1873, ele viveu a beleza de oitenta e oito anos. Quase um século de vida, durante o qual aconteceram coisas enormes na Europa. Em 1785, quando nasce, faltam quatro anos para a Revolução Francesa, que explode em 1879. Assistiu menino a ela. Depois, a todas as guerras napoleônicas, às vitórias dele, desse homem que representa justamente o conceito democrático do homem, que, com sua força e inteligência, é capaz de chegar aonde chegam só os reis. Depois, assistiu em 1895, aos vinte anos, ao fim de Napoleão, ao Congresso de Viena, que queria que a Europa, depois de uma revolução daquelas, voltasse aos princípios e modos de viver anteriores à Revolução Francesa. E por isso as guerras, as intervenções dos países e até da Igreja contra os movimentos liberais da Europa. E Manzoni assistiu a todos os movimentos contra o Congresso de Viena: as lutas de Portugal, Espanha, Grécia, Países Baixos, Alemanha, Itália, México, Argentina, Bolívia, Brasil, com suas lutas de independência. Depois, assistiu à caída do rei Luiz XVIII e à subida de Luís Felipe d’Orléans, em 1831, em que temos o movimento liberal da França. Entretanto, todo aquele movimento da Itália, em 1848, 1849, 1859, 1861, em que a Itália se liberta da Áustria, ele, profundamente católico, vê com uma imensa satisfação que a capital da Itália passa Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a Roma, e o papa perde o Estado Pontifício. Ele, feliz dessa unidade, nomeado senador. Então Manzoni, durante esses oitenta e oito anos, teve a possibilidade de ver um panorama histórico denso e emotivo. Morre em 1873, quando na Europa e no mundo começa uma história muito mais violenta e injusta, a guerra do colonialismo, do imperialismo, que levará às conquistas na Ásia e África, e às Guerras de 1915 a 1918 e de 1939 a 1945. Então, Manzoni pôde ver tudo isso. Ele não viveu desassossegadamente porque seu pai era economicamente rico, era nobre: Pietro Manzoni. Era um homem muito medíocre, que se interessava por agricultura, morava na vila de Brusuglio, pouco afeiçoado à família. Sua mãe era de uma delicadeza extraordinária, de uma educação, serenidade, vivacidade, fieldade a toda prova. E isso demonstra quanto essa mulher sofreu e foi útil a Alessandro. A família de sua mãe é de gente muito culta: seu pai até hoje é lido com interesse, Cesare Beccaria,80 que era um iluminista milanês que escreveu Dei delitti e delle penne. Não há juiz que não a conheça, pois é a primeira obra revolucionária em que, em nome da razão, queria que não houvesse a condenação de morte. Deve haver uma reeducação, uma transformação, um auxílio. Sua mãe chamava-se Giulia Beccaria, e Manzoni nasceu a 7 de março de 1785. Vida de Manzoni Na sua vida podemos colher três momentos fundamentais: Primeiro momento Aquele que vai de seu nascimento até sua ida para a França, isto é, o período de vinte anos, de 1785 a 1805. Estes são os anos durante os quais ele viveu num ambiente familiar, muito poeta, tranquilo, em que a falta de solidariedade, de afeto, de delicadeza e compreensão entre os pais o faz perceber a falta de uma vibração que une uma família. Havia uma certa incompreensão entre o pai e a mãe, entre um homem mais prático, dedicado à agricultura, e a mãe, que vinha de um ambiente de alta intelectualidade, sendo filho de Cesare Beccaria, em torno do qual há um círculo de cultura racionalista e iluminista, que é a distinção mais importante da cultura milanesa do século XVIII. Ela era sensível, íntima, conhecedora da música, religiosa, acompanha a cultura e é quem mais influencia o filho, e sofreu essa indiferença de ambiente em que se formou 80 (1738-1794) 269 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 270 Alessandro. Por essa incompreensão entre o casal, Alessandro Manzoni teve que estudar em colégio de padres, e num primeiro momento foi estudar numa cidadezinha da Lombardia, Merate, e depois em Lugano. A primeira educação dele foi dirigida pelos padres Somaschi81 que, desde o século XVI, na Itália, desde a Contrarreforma, se interessavam pela educação dos meninos, pela cultura da infância, como ainda hoje. Mas o interesse dessas escolas era de caráter católico, em que a cultura tem um valor objetivo e dogmático de obediência. Não é livre, subjetiva, em que se procura as próprias intimidades, as próprias inquietações. É mansa, meiga, tranquila, em geral de caráter humanístico. Prevalece o estudo do latim, do grego e dos clássicos italianos. Ela se confirmou nos ambientes. Manzoni formou uma cultura notável, embora não fosse fechada no Romantismo. Mais tarde, foi estudar no Colégio Longone, em Milão, dirigido pelos padres Barnabiti. Em 1800, Manzoni deixa o colégio, esses colégios onde tinha feito esses estudos de línguas clássicas, de onde sai com uma cultura notável, mas exclusivamente objetiva, sem uma personalidade, sem endereço, sem uma perspectiva pessoal dos problemas da vida. Sua mãe vivia desde 1792 separada do marido, e vivia em Paris, junto a um nobre italiano, Carlo Imbonati. Por incapacidade de viver naquele ambiente, Manzoni achou-se, logo que sai do colégio, só, sem o pai, e ele, como era rico, com quinze anos então conheceu a vida, o jogo, o vício, porque nesta sua primeira mocidade há um momento de relaxamento moral, de desorientação espiritual, não soube frear a tempo esses primeiros abraços e convites do vício e corrupção. Mas uma coisa bonita é que nesse período já é escritor precoce, e teve uma puxada de orelha de três grandíssimos escritores italianos: Vincenzo Monti, o grande clássico, Vincenzo Cuoco, um historiador vichiano,82 e Francesco Lomonaco, um patriota vichiano. Foram os que salvaram Manzoni de uma dispersão que teria sido fatal e inevitável, diante de um moço rico e culto, se não houvesse esse convite à seriedade e à cultura. Foi nesse campo que ele entrou. Colhemos a oportunidade para dizer o grande, o imenso valor que tem a amizade. Manzoni é, entre os poetas italianos, um daqueles que teve essa imensa sorte: em momentos críticos de sua vida, sempre em certos momentos, teve essa beleza do conforto, da proteção, do estímulo, da solidariedade dos amigos, num sentido nobre, elevado, não o que fica tranquilo, que cede, mas que sabe colaborar com as nossas deficiências. 81 82 Ordem dos religiosos somascos. Da escola de Giambattista Vico. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Esse período vai até 1805. Já tinha escrito muitas coisas, como a poesia In morte di Carlo Imbonati. Morre o amigo da mãe, e o filho de Giulia é quem escreve uma poesia de louvor, de apoteose. Ele escreveu uma poesia extraordinariamente bonita para sua idade. Imagina que Carlo Imbonati, morrendo, lhe aparece em sonho, dizendo-lhe o valor da existência, a finalidade da existência, a coerência entre o dizer e o fazer, o valor da verdade, a necessidade do dever. Explica coisas para Manzoni que não são de Imbonati, mas do próprio Manzoni, que as atribui a esse homem amigo de sua mãe. Já em 1805, isto é, com vinte anos, Manzoni já tinha uma consciência humana, um programa de homem que se tornará também um programa de escritor, baseado numa visão ética da realidade e que mais tarde será também uma visão lírica da realidade. Já tem um rumo, de onde nunca fugirá. Nisso iguala a Goethe, esses homens fiéis, puros, firmes. Segundo momento Em 1805 começa outro período, que vai até 1810. São cinco anos de uma intensidade extraordinária, em que acontece justamente o contrário do que tinha acontecido nos anos anteriores. Se estudou em colégios, se tinha aprendido uma cultura objetiva, agora, de 1805 a 1810, viverá uma cultura revolucionária, racionalista, a cultura dos famosos salões da França. Viverá essa cultura anárquica, psicologicamente no revés. Ele viverá uma cultura que também catolicamente é heterodoxa, que não obedece a uma igreja, a um totalitarismo político, livre, espontânea, procurando sempre realizar-se num sentido pessoal. E isso cria uma crise formidável em sua alma. Perde num certo sentido sua serenidade, aquele conforto que sempre se encontra no conformismo. Perde isso para adquirir um requinte de experiência, de cultura, uma descoberta de atitudes psicológicas, se não tivesse vivido durante cinco anos num ambiente de alto requinte em Paris. Manzoni deve muito a homens como Claude Fauriel,83 um grande crítico, marido da viúva de Condorcet, filósofo francês, e a irmã desta viúva era casada com o filósofo ideólogo Cabanis.84 Na casa deste e daquele havia um ambiente de cultura: os moços da esquerda, inquietos, se reúnem para discutir problemas, livros, problemas filosóficos, música. Há um diálogo de interesse espiritual. Manzoni, moço, aprendeu todas essas orientações novas. E importante é ainda que, sendo um moço, ele se enamora pela primeira 83 84 Claude Fauriel (1772-1844): historiador, linguista e crítico. Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808). 271 272 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos vez, que foi de uma delicadeza extrema, de uma fineza íntima, de uma moça que se chamava Enrichetta Blondel. Suíça, filha de um banqueiro em Genebra, tocava maravilhosamente piano e muitas obras de Manzoni foram escritas enquanto sua mulher tocava piano. Uma das maiores e mais famosas obras da Europa, escrita em honra a Napoleão, foi escrita em poucas horas, acompanhado no piano pela mulher. Quanto ele devia a essa moça. Ela não era católica, era calvinista, uma mulher que sentiu sempre uma insatisfação religiosa. Tinha sempre anseios, dúvidas, crises espirituais, por um desejo de ser boa, de ajudar aos outros, certas dúvidas do Além, do castigo divino, que influenciavam sua riqueza espiritual. Ela discutia muitas vezes com um padre católico, Eustacchio Degole, que não somente sabia abençoar. Era um daqueles que tinha suas dúvidas, que além da crença há uma necessidade de convencer-se dos problemas, e ela com ele foi falando até que, em 1808, Enrichetta Blondel converteu-se ao catolicismo. Abandonou o calvinismo e sentiu maiores confortos na religião romana. Mas seu casamento com Manzoni foi no rito calvinista. E Manzoni, em vez, que tinha tido uma educação profundamente católica nos colégios, ele, diante da cultura francesa, vai perdendo seu catolicismo. Não vai mais à igreja. Então ele está ficando não anticatólico, mas acatólico. Não acredita, é apático diante de sua fé. Mas, com sua sensibilidade, vive com suas dúvidas, com esse desejo de uma orientação religiosa diante do exemplo da mulher, nos diálogos com o padre e com outro padre, Luigi Tosi. Manzoni em 1810 volta a ser um católico praticante. Até os últimos anos de sua vida, num modo profundamente persuasivo, simples, emulado, como sentindo que a religião para ele é um descanso, algo que nunca deveria ser objeto de crítica, de dúvida, sobre a qual possa construir suas obras de literatura. Em 1810, renova o casamento, casando-se na Igreja Católica. E este ano é justamente o ano em que Manzoni mesmo chamou de ano da conversão. Isso tem uma importância enorme na personalidade, na vida e obra dele. Se até 1810 suas obras são coisas honestas, sérias, sempre um homem direito, correto, cheio de ideais nobres, agora todos esses ideais, sentimentos, todos esses motivos são sempre iluminados por um conflito religioso, por uma atmosfera de altíssima religiosidade. Depois de 1810, não há obra em que não haja uma afirmação de caráter religioso, em que não se sinta que todas suas obras sempre têm um fundo profundamente vivo, religiosamente vivo. Então nós devemos dividir suas atividades literárias anteriores ao ano de 1810 das obras que virão depois de 1810. As anteriores são notáveis, mas são as de um leigo: ideais altíssimos, nobres, de progresso, de liberdade, mas são ideais que falham de calor, de uma convicção religiosa. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Depois de 1810, em vez, não haverá sentimento humano que não seja investido por uma religião. Achou uma razão de sua literatura, pondo a humanidade e a religião numa única unidade. Ainda hoje qualquer um de nós sente que a vida é a negação da religião. Parece que há uma contradição entre os ideais do Evangelho e os da vida. A vida é matar, é potência, mas os princípios religiosos dizem o contrário. Mas em Manzoni se chega a essa grande unidade, a vida e a religião, com a religião ditando o modo de viver. Não devia existir um contraste. Então, tudo seria resolvido num plano de unidade. Nós tínhamos chegado ao ano de 1810. Este ano para Manzoni é um ponto firme na sua orientação, na sua educação, na sua espiritualidade, na sua educação, na sua atividade de homem e de escritor. Sua conversão religiosa é o futuro alicerce de toda sua produção literária, de sua atividade de cidadão e de homem. A religião alimenta, transforma, sublima aqueles ideais anteriores, vendo-os não mais somente como motivos imanentes, terrenos, de cultura, de civilização, mas como verdadeiros imperativos religiosos da cristandade e, assim, brotavam sucessivamente as obras dele. Realizam-se numa solidão serena de pensamento de um homem, isto é, que não se joga na vida como se quisesse transformar a realidade na base de novos ideais, que representam a sua consciência e alma. Ele, em vez, se afasta, e nessa solidão objetiva, tranquila, íntima, de pensador, meditando sobre os acontecimentos contemporâneos e anteriores, com essa meditação ele realiza aquela grande produção literária. Terceiro momento Poucos acontecimentos nos interessam da vida dele depois de 1810. Poderíamos lembrar que, em 1825, Manzoni conheceu um grande filósofo italiano, católico, mas seguidor de Kant. É Antonio Rosmini,85 criador do movimento religioso italiano. A amizade com Rosmini deu aos seus pensamentos essa base filosófica. Em 1825, temos também outra conversão, a filosófica, isto é, Manzoni abandona completamente as influências culturais do Racionalismo e Iluminismo da psicologia francesa e, em vez, vê na filosofia e interpretação rosminiana de Kant um apoio lógico para a defesa dos seus ideais cristãos. Uma outra data é o ano de 1827. Manzoni já tinha escrito seu grande romance, seu imortal I promessi sposi, mas em 1827 ele sentiu a necessidade de corrigir, de melhorar a linguagem, o vocabulário do seu romance, e como era lombardo, de Milão, sua linguagem não era 85 (1797-1855) 273 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 274 a de Dante, Petrarca e Boccaccio, não era toscana, e Manzoni sentiu a necessidade de um banho na região da Toscana, de corrigir seu romance, indo morar em 1827 em Florença, onde, em contato com os clubes, os jornais, os homens de cultura, corrigiu seu romance. Sua moradia lá servirá “para dar uma outra limpada no seu romance, nas águas do rio Arno”. Aí é que conhece Leopardi. Uma outra data é 1848. Foi o ano, para a Europa, das grandes revoluções, dos grandes acontecimentos. Na França, acaba a monarquia de Francisco d’Orléans e começa a República. E na Itália começa a primeira guerra de independência. Em Milão, o povo se organiza e reage contra os austríacos, e conseguiram durante cinco dias tirar de Milão o exército austríaco. Aí se organiza um governo provisório, que convida o rei Carlo Alberto para ajudar o povo a expulsar os austríacos. O filho de Manzoni86 tinha sido autorizado pelo pai para tomar parte nesses combates e foi preso e feito refém dos austríacos. Não foi fuzilado porque, quando o governo de Milão o convidou a assinar a carta com que convidara Carlo Alberto, Manzoni não teve nenhuma dúvida, e assinou como cidadão, foi digno, apesar de saber das consequências do filho, sabendo que poderia significar a carta o início de sua independência. Outra data é a de 1855. Manzoni teve uma doença quase mortal. Então, já conhecido na Europa, foi visitado pelo arquiduque Ranieri da Áustria, mas quando o carro parou diante de sua casa, seu doméstico foi pedir se podia ser recebido, Manzoni refutou recebê-lo, dizendo que nunca como escritor, poeta e cidadão italiano poderia receber a visita de um homem que representa o governo estrangeiro na Itália. Em 1861, pela honestidade, seriedade, religiosidade de suas obras, o governo italiano que unificou a Itália em 1861 nomeia Manzoni senador do reino italiano, e ele toma parte na primeira assembleia do senado italiano, depois de séculos, em Torino. Em 1865, devemos lembrar que foi justamente Manzoni que, embora católico, não hesitou em se declarar contrário ao poder temporal da Igreja, apoiando a ideia de que a capital do Reino Italiano fosse Roma no momento em que ela fosse finalmente reunificada com o resto da Itália. Por este motivo, em 1864 Manzoni tinha aprovado a transferência da capital da Itália de Torino a Florença; justificou o seu voto dizendo que apoiava Florença como capital porque isto significava que logo a capital seria Roma. Em 1870, quando, depois de 20 de setembro de 1870, as tropas italianas alcançaram Roma e a declararam capital da Itália, ele foi condecorado cidadão de Roma. Em 1873, todo o povo italiano comemora a sua morte, com oitenta e oito anos. 86 Pietro. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Obras de Manzoni As anteriores ao ano de 1810 não têm uma grande importância, de forma que serão apenas citadas: Del trionfo della libertà, escrita em 1801; Adda, é um carme bucólico, à imitação de poesia, dedicada a Vincenzo Monti; I quattro sermoni, discursos de caráter ético-moral; In morte di Carlo Imbonati (1805); L’Urania. Estas obras dificilmente demonstram literatura que não seja italiana, não são as obras que nos dão as ideias da personalidade, da importância, da significação da presença de Manzoni na história literária italiana e universal. Manzoni, até 1810, é um liberal, um racionalista, um progressista que exalta os ideais de liberdade no campo político e religioso, que saía de uma cultura não religiosa, mais progressista. Em vez, o que interessa para definir bem o perfil humano da poesia dele são as obras posteriores ao ano de 1810: Gli inni sacri (1815-1822); Le tragedie: Il Conte di Carmagnola (1820), dedicada a Claude Fauriel, e L’Adelchi, dedicada a Enrichetta Blondel, em 1822; Le liriche; I promessi sposi, que é sua obra-prima. Antes de mais nada, para poder entender bem a dialética da produção literária de Manzoni, é preciso ter presente o seguinte: Manzoni é um poeta cuja religiosidade o leva a ver dialeticamente na realidade, nos acontecimentos históricos anteriores ou contemporâneos, a ver a presença divina de Deus. Manzoni é o poeta que não vê a justiça, a honestidade, a verdade, a divindade somente colocada fora do mundo, ele considera, procura, vê a solução da realidade na própria realidade. Isso é muito confortador, bonito, pois representa a concepção romântica da existência da vida, porque é verdade, a vida é moral, é luta, é angústia, como diziam os românticos desesperados. Para Manzoni, que possuía uma fé, uma convicção, tudo isso não é um castigo, não é negativo, mas é afirmativo, positivo. O mal tem uma razão de ser na realidade. O mal tem uma razão de ser porque é algo de providencial, não é fatal. Nasce nas coisas, mas não nasce por um gosto sádico de levar o homem a essa angústia. Surge por um desejo de transformar, de iluminar, de melhorar o homem. Se não houvesse a dor, não haveria um progresso na realidade. Se não houvesse esse aspecto negativo, não haveria o seu contrário, isto é, a bondade, que é uma superação da dor. A luz é uma superação da escuridão, a bondade, da maldade. O homem mau não é definitivamente mau. O pessimismo negava uma solução à realidade, não podia encontrar uma dialética do mal. Mas Manzoni, através de sua cultura e religião, encontra uma solução ao seu pessimismo. Manzoni não nega o pessimismo. Também, como 275 276 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos os outros românticos, se põe diante da realidade com uma perspectiva pessimística, mas se resolve numa crença, porque vê na realidade uma dialética lógica, providencial, divina. Sua obra notável será aquela em que podemos ver, contemporaneamente presentes, um dentro do outro, esses dois motivos de pensamento, da genialidade de Manzoni. Será universalmente grande a obra de Manzoni, em que, ao lado do mal está o bem e ao lado dos ruins, os bons, ao lado da escuridão silente da descrença, a crença, ao lado da vítima, o perseguidor, ao lado do vencido, o vencedor, ao lado do vencedor, o vencido. Teremos verdadeiramente a obra maior de Manzoni quando houve essa superação. E essa obra, que encontrará essa harmonia clássico-grega da realidade, no seu contraste, criando uma melodia de som e não essa paz calma, culminante, será representada pelo seu romance I promessi sposi. É a obra mais significativa do século XVIII na Itália. Impõe moral, bem, Deus, não-Deus, heróis, vencidos e vencedores, chegando a recolher essas notas diferentes numa sinfonia que é a explicação da realidade. Esse destino não é implacável. Há uma dialética, que é possível, no I promessi sposi. Antes, porém, Manzoni já tinha escrito obras sobre a nova sugestão religiosa, porém essas duas ou três obras anteriores são em que considera somente um dos aspectos da vida: ou o mal ou o bem, ou a injustiça ou a justiça, ou a realidade com seus defeitos, ou a idealidade com suas ilusões. De forma que essas obras anteriores, embora notáveis, são um pouco unilaterais, porque se limitam a ver um perfil da realidade, um aspecto dela. Falta-lhes essa visão compreensiva geral da harmonia da realidade. Gli inni sacri Manzoni como homem, com seu entusiasmo que achou uma fé, começou um programa de trabalho. Foi o seu primeiro. Propôs-se a escrever doze hinos sacros, celebrando as maiores festividades do rito católico: Natal, Pentecostes, Todos os Santos, Finados, etc. Porém, Manzoni não escreveu os doze, somente cinco. Desses cinco, quatro foram publicados no ano fatídico de 1815: enquanto os plenipotenciários das várias potências europeias se encontram em Viena e procuravam ter principalmente a Europa enfraquecida pela potência napoleônica, por um novo sistema político, Manzoni lançava um conjunto de ideias, uma mensagem religiosa muito inferior a uma mensagem política. O último hino de Manzoni foi publicado em 1822, e é o mais bonito. São eles: Il Natale, La Passione, La Pentecoste, Il Nome di Maria, La Ressurrezione. Desses cinco, o terceiro foi publicado em 1822. Aqui, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos embora Manzoni se refira a fatos dogmáticos dessas festas, como o Natal milagroso, a Virgem, embora se refira a dogmas da Igreja, embora os ligue às festas sacras, repete coisas que são muito beáticas, pois são mais de fé que líricas; nesses hinos sacros, é tanta a atitude humana deles, que vemos como o cristianismo interessa a Manzoni, sobretudo do ponto de vista da ética humana. Esse Cristo que nasce num estábulo, reverenciado por reis, acompanhado por milagres da natureza, é o símbolo da miséria humana, da pobreza humana. É um ser humano também, como todos os outros, como os pobres. Esse que sobe para a cruz é o símbolo da via crucis de todos os erros humanos, que se levantam, é o drama de cada um de nós. Essa Virgem é o símbolo de todas as mães que sofrem pela nobreza dos filhos, pelos ideais que esquentam a alma da mocidade, que preocupa a mãe, que considera seu filho Deus, ao mesmo tempo em que sofre pelo ideal. La Ressurrezione é cheio dessa confiança, da possibilidade do homem de livrar-se. O hino mais importante é La Pentecoste. É o hino em que exalta um dos momentos mais bonitos do ano católico, com que se celebra a descida do Espírito Santo no espírito dos apóstolos, cinquenta dias depois da Páscoa. Aquele hino em que a Igreja exalta a figura do Espírito Santo, que representa a força no homem, faz luz no escuro, é o conforto de uma divindade presente. Exalta-se a descida não restrita apenas aos apóstolos, mas invoca que o Espírito Santo continue descendo em todos os momentos e idades, praticando a inocência da infância, protegendo o sorriso da mocidade, dando conforto, sustentando a fraqueza dos velhos, que, fechando os olhos, esperam um mundo melhor do que aquele “chi sperando muor”.87 Essa necessidade de um Deus presente no meio dos homens, como uma chave de conforto, é uma visão triste da realidade humana, uma imploração trágica da nossa fraqueza e da necessidade da presença de alguém construtivo e tranquilo. Representam os hinos o aspecto otimístico, religioso, ideal de Manzoni; cantam um mundo fora da realidade. São os motivos da cristandade. Não temos ainda a grande concreta poesia manzoniana, que é o resultado de dois fatores em contraste, sintetizando-se. Le tragedie Manzoni escreveu duas tragédias, uma publicada em 1820 e outra em 1822. A primeira é intitulada Il Conte di Carmagnola e é dedicada a seu amigo Claude Fauriel. A segunda é L’Adelchi e é dedicada a Enrichetta 87 “quem esperando morre” 277 278 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Blondel. As duas tragédias são escritas em versos hendecassílabos soltos, divididos em cinco atos, e não obedecem às regras clássicas aristotélicas de unidade de tempo, de lugar e personagem. São tragédias renovadoras, que ficam fora da tradição clássica, não obedecem aos princípios fundamentais da tragédia clássica. São duas tragédias profundamente românticas. Uma inovação importante há na tragédia manzoniana, que poderia lembrar o aspecto da tragédia clássica, assimilada e subjetivizada por Manzoni, que é o coro. Mas tem um sentido diverso, subjetivo, pessoal. O conteúdo é de caráter histórico, porque sempre Manzoni, nas suas obras fundamentais, se põe no centro, no coração da História. Sua poesia nunca é uma poesia de imaginação, de fantasia, é sempre uma reflexão, um pensamento, uma crítica, uma lirização, uma transfiguração de um exame da realidade mais humana, que é justamente a realidade histórica. Il Conte di Carmagnola, sua primeira tragédia, em 1820, é inferior à segunda. Ela abrange um período de tempo que vai de 1425 a 1432, quer dizer, sete anos. É um acontecimento histórico que durou esse período, baseado num acontecimento do ano de 1428, que foi o ano da batalha de Maclodio. O conde de Carmagnola é um daqueles aventureiros, capitães de ventura, tão comuns na história da Renascença e do Humanismo. Esse homem generoso, leal, corajoso, estava a serviço do duque de Milão, que era Filippo Visconti. O conde tinha ganhado fortes adversários, grandes batalhas, mas mais tarde, por um contraste entre a generosidade e a astúcia dos homens políticos, deixou o ducado de Milão e foi servir na república de Veneza. Em 1425 a 32 há uma guerra entre Milão e Veneza, que se decide na formosa planície Maclodio. Aqui o conde venceu os adversários de Milão, derrotou seus antigos companheiros de armas e foi generoso com os vencidos: mandou em liberdade os chefes do exército milanês, pois ele de propósito não queria humilhá-los e aproveitar essa vitória. Por isso, o conde foi acusado por Veneza de traidor e foi condenado à morte, sendo decapitado. É uma tragédia triste, amarga, em que domina a injustiça, a frieza, a política, a astúcia, em que é vencida a lealdade, a honestidade, a generosidade. Então há esse contraste entre um caráter generoso, idealista, inocente e, em vez, Veneza fria, astuta, maquiavélica, e ganha Veneza. As conclusões são pessimistas, é uma voz sem otimismo da realidade. L’Adelchi, a outra tragédia, é aumentada ainda por um profundo sentimento íntimo humano. Também os acontecimentos que a inspiram são um fato histórico, cuja duração é de três anos, entre 1772 e 1774. É a guerra entre Carlos Magno, aliado do papa, e os longobardos, comandados por Desidério, que tinha usurpado as terras da Igreja. Carlos Magno se oferece como defensor dos direitos da Igreja. Num primeiro momento, Manzoni Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos descreve a bravura dos longobardos, e Carlos Magno teria perdido a batalha se uma intervenção divina não tivesse indicado a ele como dirigir os longobardos nos Alpes (Le Chiuse), e ele os vence. Isto seria muito importante se não houvesse outros motivos de pôr em evidência. Os motivos são determinados pelas figuras dos dois personagens do exército longobardo: Ermengarda e Adelchi. São irmãos, filhos de Desidério. Mas sofrem uma luta interior, extraordinariamente grande, humana. Eles são a tragédia, e é pelos acontecimentos que eles atravessam que a tragédia se torna altíssima expressão de poesia. Ermengarda, loira, filha de um dos maiores reis, de um povo forte, já estabelecido na Itália, essa rainha, essa moça se torna mulher de Carlos Magno. Para evitar a guerra com Desidério, Carlos Magno casa por razões políticas com Ermengarda. Mas para ela não tinha sido um motivo político, mas um motivo humano, ela era uma admiradora desse rei intrépido na Europa lendária, pelas gestas, pelas suas atitudes diante da Igreja. Ela o amava. Mas quando Carlos Magno move guerra a Desidério, ele a manda embora, devolvendo-a a seu pai. Esta ofensa a uma mulher, a uma rainha, que vive de saudade, de amor, daquele ambiente de prestígio, esse motivo é o drama de Ermengarda, inesquecível, que aumenta este pathos, donde se move a tragédia de Manzoni. Ermengarda acabará morrendo no convento de Breschia, e seus últimos momentos são dignos de um Shakespeare, porque Manzoni descreve a luta da alma de Ermengarda, entre o Céu e a Terra, entre Deus e Carlos Magno, ela que quer esquecer e não pode esquecer, que sabe que deverá morrer e esquecer o fato de ter sido mulher dele, de ainda sentir um imenso amor por ele, e, ao mesmo tempo, como religiosa, quer viver com a imagem de Deus, com essa visão celestial que se abre a ela. Adelchi é devoto, religioso, cavalheiresco, mas não condivide a política do pai. Mas, por ser filho, deve combater contra uma igreja em que acredita, contra um Carlos Magno que é marido de sua irmã. É um contraste que se desenvolve e que também o leva a morrer. Temos então essas duas figuras fundamentais. L’Adelchi é uma das obras mais delicadas, é a obra mais significativa antes de I promessi sposi. Nas duas tragédias há de notável também i cori. Nós temos nelas três coros: um está no segundo ato de Il Conte di Carmagnola e dois estão no terceiro e quarto atos de L’Adelchi. O valor dos coros é o seguinte: o coro na literatura grega era aquela parte em que se apresentava um personagem apresentando o drama. Chamava a atenção da assistência para o drama que iria ser apresentado. O coro grego tinha a importância de resumir brevemente os acontecimentos da tragédia, 279 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 280 de modo que o público pudesse encontrar facilmente a tragédia. Em Manzoni, o coro não tem esse sentido de apresentação; é, em vez, o ângulo particular reservado ao autor, o momento em que Manzoni suspende os acontecimentos históricos para intervir, ele próprio, como um personagem ideal, interpretando particularmente os acontecimentos até então descritos. O poeta entra pessoalmente numa narração objetiva. Isso é importantíssimo, porque, tirando os coros, as tragédias manzonianas seriam históricas, narrações objetivas, elas não precisam modificar os fatos, são verdadeiras páginas da História, documentadas. Mas quando Manzoni as subjetiviza? Quando nos coros intervém com suas ideias políticas e religiosas, e ele, sobrepondo a essa documentação histórica, entra com seu sentimento, alma, atitude, sua visão cristã, interpretando os acontecimentos narrados. Assim, no segundo ato de Il Conte di Carmagnola, temos o famoso coro La battaglia di maschere, em que Manzoni interpreta a mesquinhez dessas guerras intestinas entre irmãos e irmãos, concluindo que isso apenas significa um enfraquecer das forças italianas e permitir que os estrangeiros entrassem na Itália. Justamente depois desse período é que a Itália começou a ser dos outros. Então, essa visão subjetiva de acontecimentos históricos é notável, porque aqui, no coro, Manzoni diz essas coisas na véspera da guerra com as quais a Itália procura sua independência. Elas iluminam, dão coragem. Nos outros dois atos, os dois coros são um de caráter político e o outro de caráter religioso. O primeiro está no segundo ato de L’Adelchi: uma descrição da guerra entre Carlos Magno e Desidério. O exército de Desidério é representado como fugitivo diante da força de Carlos Magno e os italianos são como assistentes dessa batalha, que se iludem, que pensam ter o direito de aspirar que a vitória signifique a liberdade e independência italianas. Manzoni chama os italianos à realidade, dizendo que a liberdade e a independência são sempre coisas que se devem conquistar com o próprio heroísmo, valor e coragem. Devem abandonar as ilusões, que, depois das mortes e sacrifícios dos soldados, deve tirar-se essa ilusão de que Carlos Magno possa dar de presente a Itália que eles aspiram obter. Manzoni quer que os italianos se preparem, se não querem voltar a trabalhar nos campos italianos, que no momento estão molhados de suor. O outro coro, no quarto ato88 de L’Adelchi, é a descrição da morte de Ermengarda. É uma das páginas mais bonitas da literatura italiana, para entender o espírito da poesia anterior a I promessi sposi. Ermengarda se encontra circundada por freiras e desejaria que aquelas 88 Parte da Scena I do Ato IV foi analisada em aula. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos rezas e confissões pudessem destacar a alma de um passado belíssimo, quando era mulher de Carlos Magno. Mas seu pensamento volta sempre lá, lembrando Carlos Magno, com essa dor, com os cabelos compridos, seus guerreiros, seu marido, aquele castelo onde acompanhava as paisagens serenas da França, onde se sentia circundada pelas damas da corte. Em sua alma conflita um desejo imenso de esquecer, para viver um futuro em que se abra a possibilidade de uma felicidade sem tragédia, que é a do Além, e que só pode esquecer vendo o Aquém. É algo de providencial: la provida sventura. O destino de Ermengarda é justamente esse, aquele de continuamente pedir a Deus de poder esquecer a Terra, o amor de Carlos Magno e, ao mesmo tempo, de nunca obter por Deus essa concessão, porque, não concedendo isso, ela teria merecido a felicidade do Além. Sua dor é algo que Deus coloca à disposição do homem, para que morresse a felicidade. Os coros representam o segundo aspecto da produção literária de Manzoni. Se os hinos representam a parte otimística, uma visão religiosa da vida, os ideais de Manzoni, as tragédias são apenas uma visão amarga do que a realidade é sem a descida do Espírito Santo, pelo que ela é sem nenhuma presença divina. A realidade, a História, são só mal, injustiça, punição de inocentes. Se os hinos sacros representam o aspecto otimístico, as tragédias são o aspecto pessimista. E acharemos as obras-primas quando os hinos sacros estarão presentes às tragédias e vice-versa, quando os dois motivos estarão unidos numa unidade conjunta, como acontece em I promessi sposi. Depois das tragédias e de I promessi sposi, Manzoni escreveu um grupo de líricas: Il proclame di Rimini, mas as mais importantes são Il cinque maggio e aquela intitulada Marzo 1821. A de 5 de maio é a da morte de Napoleão. Depois de um certo período, Manzoni, acompanhado ao piano por Enrichetta Blondel, teve uma inspiração e interpreta a figura de Napoleão como um símbolo do que é a realidade. Napoleão nesta poesia surge como símbolo, como um mito, ele representa o que a humanidade é nesta vida, isto é, Napoleão que surge, que triunfa, que vence, que é derrotado, que sofre, primeiro pela derrota em 1815 e depois porque é exilado em Elba e em Santa Helena; é o símbolo do que acontece a cada um de nós. A vida reserva tristeza e felicidade a cada um de nós. Esta insatisfação leva o homem até o último momento, em que aparece um ser superior aos homens, isto é, Deus, que sonha consolar o homem em razão da sua infelicidade. Então, sua figura é extraordinariamente significativa. Napoleão não é visto sob um ponto de vista político, econômico, como um revolucionário ou um reacionário, um irreal imperador, mas como um símbolo, como um 281 282 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos homem que é o ecce homo da visão da realidade de Nazaré. Napoleão, com seu domínio na Europa, podia ser a expressão absoluta do que é o destino da humanidade. Napoleão é o homem que, apesar de ter vencido, de ter infinitamente engrandecido a França, ele é insatisfeito até o último momento, e que só se torna risonho porque a visão de um império maior, de um mundo maior se abre ante ele, que é o mundo do Além. O que o conforta é o prêmio de sua infelicidade. Outra poesia é Marzo 1821. Nesta data há em Milão uma revolta popular que dura cinco dias, uma rebelião em que os milaneses procuraram rebelar-se aos austríacos. Há uma conspiração na Itália setentrional, mas não teve nenhuma força, porque a intervenção da Santa Aliança constrangia os chefes liberais a sair da Itália. Um é Silvio Pellico, outro é Piero Maroncelli, que, como Byron, foi morrer na Grécia. Em 1825-1827, Manzoni descreve sua esperança, que na base dela o povo alcance sua independência. Mas a reação foi tão forte, que o movimento foi sufocado ao nascer. Não foi publicada esta obra. Mas, em 1848, quando verdadeiramente o povo milanês e não mais uma conspiração se organizou para tirar Milão dos austríacos, então Manzoni publicou esta poesia. I promessi sposi É um romance histórico que se refere a acontecimentos históricos vividos na Lombardia entre 1628 e 1630 (ano da peste). Por isso, deve-se dizer que Manzoni baseou-se naquele gênero de romances históricos que foi iniciado por Walter Scott. Qual é a diferença entre o conteúdo histórico do romance de Walter Scott e o conteúdo histórico do romance de Manzoni? É o seguinte: a história no romance de Walter Scott tem mais um caráter de simpatia, de imaginação, de informação, de curiosidade. Num certo sentido, o romance de Walter Scott tem o sentido de instruir, de educar o leitor sobre os acontecimentos apresentados de uma forma simples, é mera curiosidade. Em vez, em Manzoni a História tem uma função de documentação. Não é curiosidade; é, em vez, uma prova da realidade, da verdade, do seu idealismo, de sua fé, de sua concepção. Não é uma narração, uma exposição. Tem um caráter interpretativo, não se interessa tanto dos nomes, de datas, dos acontecimentos históricos, mas, em vez, da lógica interna, humana, espiritual dos acontecimentos históricos. É uma interpretação subjetiva e religiosa da História, é um testemunho do seu pensamento de justiça, de verdade, da realidade da sua visão da vida. Este romance teve sua primeira edição entre 1821 e 1823. E Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos nessa edição que foi publicada não faz muito tempo, não foi publicada durante a vida dele, nem logo depois de sua morte, mas ultimamente. Essa última edição tinha o título Gli sposi promessi. Foi mais tarde publicada pelos filólogos, nesses últimos anos, para mostrar ao leitor e estudiosos a imensa diferença entre a redação do primeiro e do segundo. No segundo, começa por mudar o título do romance. Não é mais Gli sposi promessi, mas I promessi sposi. Essa edição foi publicada pela primeira vez entre 1825 e 1857. Em 1827 é que acabou de sair a primeira edição desse segundo romance manzoniano. Mas a definitiva edição, conforme nós hoje a podemos ler, foi publicada muito mais tarde, isto é, entre 1840 e1842. Então deve estar claro: num primeiro momento, Manzoni escreveu um romance: Gli sposi promessi (1821-1823). Nunca foi publicado por ele. Mais tarde, mudou o nome e ficou I promessi Sposi. A primeira edição desse segundo romance foi entre 1825 e 1827, porém a edição definitiva deste segundo é entre 1840 e 1842. Deve-se lembrar o seguinte: primeiro, Manzoni, em 1827, foi residir por um certo período em Florença, porque ele, como lombardo e defensor de uma teoria de unidade da língua, como defensor e líder do Romantismo italiano, não sabia separar o problema político do literário. Um povo é politicamente unido quando é linguisticamente unido. A prova de sua unidade política. Se no século XIX a Itália anseia sua unidade política, também, justamente pelas teorias do Romantismo, deveria ansiar uma unidade linguística. Qual deveria ser a língua italiana igual para todos os escritores? Apenas a língua modulada sobre o dialeto toscano, que se lembrasse de Dante, Petrarca e Boccaccio, que se lembrasse da língua de que se serviu o Humanismo e a Renascença; é a língua florentina. Manzoni, cheio de lombardismo, de dialeto, foi corrigir, limpar sua linguagem, indo morar em Florença, onde foi “sciacquare i suoi panni in Arno”.89 É um motivo de caráter linguístico. O romance que escreveu entre 1821 e 1823 é um romance exterior, psicologicamente cheio de motivos queridos pelos românticos, como, por exemplo, o sensualismo, a corrupção no clero, a figura demoníaca dos ricos, dos potentes, dos poderosos, o crime, o delito; esses temas aí são os mais descritos, os que mais enchem as páginas, onde prevalecem e dominam. Com a estadia de Manzoni em Florença e com uma meditação sobre esse romance, Manzoni tirou todas essas imitações psicológicas de Foi enxaguar as roupas no Arno, no sentido de que ele foi limpar a sua linguagem dos dialetismos lombardos em Florença, considerada o berço da língua italiana. 89 283 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 284 um romantismo comum e deu ao seu romance aquela transparência, aquela clareza, aquela convicção que são próprios desse romance imenso italiano, que é o único grande romance italiano, com esse caráter de objetividade, de intimidade, de solenidade e de austeridade. Então, a correção de 1827 não é somente uma de linguagem, é também uma de conteúdo, de tonalidade. É uma correção de sentimentos, é uma catarse, uma purificação de tons que fazem um Manzoni profundamente religioso e não excessivo, pois ele elimina os exageros e põe seu romance como uma página de história. I promessi sposi90 narra o seguinte, referindo-se a um fato histórico, a um acontecimento real, verdadeiro, acontecido na Lombardia quando essa região pertencia à dominação espanhola, sobretudo aos dois anos que vão de 1628 a 1630: dois jovens pobres, que não têm nada de extraordinário, comuns, anônimos, amam-se profundamente, amam-se tanto que estavam prometidos noivos e se encontram na iminência de se casar. Nada de mais natural, alegre, estoico, do que o estado de alma de Lucia e Renzo. Então, são dois moços pobres, de uma zona da Lombardia, que é Lecco. Lá eles vivem. Mas esse casamento, que era uma aspiração tão grande, profunda e legítima, esse casamento é hostilizado por dois elementos: duma parte, pelo clero, e de outra, pela burguesia. Há um rico senhor, Don Rodrigo, que, por uma simples aposta, luta, promete e garante que esse casamento não se realizará. E um padre fraco, covarde, Don Abbondio, dá mão forte a Don Rodrigo, fazendo tudo para enganar esses dois, que não poderão, embora já vestidos para a igreja, casar-se. Acontece uma infinidade de coisas, que se entrelaçam, como a guerra famosa dos Trinta Anos. Lucia vai num primeiro momento a Monza, onde fica num monastério, onde conhece uma freira corrupta. Renzo vai a Milão, onde toma parte em guerras revolucionárias, com uma boa-fé que não lhe poupa de conhecer a cadeia. De Bérgamo, volta a Milão, e acontecem uma infinidade de vicissitudes, depois das quais eles poderão realizar o sonho de dois anos atrás, e quem os casará será o padre que num primeiro momento tinha impedido, com frases latinas, tinha enganado esses dois, que, decepcionados, se afastaram. Don Abbondio os casará. O romance se fecha com uma discussão histórica de acontecimentos militares importantíssimos: o assédio de Casale Monferrato e, sobretudo, com uma das páginas da Europa em que Manzoni descreve a peste de Milão em 1830. Com a descida dos lanzichenecchi91 acontece uma peste que ceifa milhares de vítimas em Milão. Vem o roubo, o abandono das leis, a 90 91 O Capítulo XXXIII (Chiusura) foi analisado em aula. Soldados mercenários. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos violência, e temos páginas maravilhosas, como a em que descreve a mãe que leva sua menina morta. Manzoni num certo momento concentra sua descrição sobre o lazzaretto.92 Lá, no meio de doentes, havia figuras que Renzo conhecia. Uma dessas figuras é Don Rodrigo, que se encontra nos últimos momentos de vida, e é justamente o padre Cristoforo, o contrário de Don Abbondio, que pede a Renzo perdoá-lo. Consumido, cansado, ele convida Renzo a perdoar Don Rodrigo, então ele entrou nos corredores e vê um homem no chão e perdoa ao seu perseguidor. E depois, continua olhando no lazzaretto e encontra sua Lucia, que ajudava as enfermeiras. E Renzo volta aos antigos sentimentos de amor, de dedicação à sua nobre Lucia. Lucia revela a Renzo um acontecimento particular, que deixará Renzo perplexo: ela, numa noite de terror, quando tinha sido roubada do convento de Monza por um outro senhor, naquela noite ela faz um voto à Virgem, que, se ela a salvar da violência, das preocupações que ela tem, se isso acontecer, ela promete sua pureza, promete renunciar ao casamento. Faz esse voto, que é uma das páginas maravilhosas, e conta isso a Renzo, que fica perplexo e vai contar ao padre Cristoforo. Este, com sua inocência, pureza, lutador, diz que Lucia não podia fazer esse voto, de que já havia empenhado sua palavra, pois já era noiva de Renzo. Não podia dispor disso se já era comprometida. Não se pode fazer o voto sobre algo que já está prometido. A Igreja quer que os homens casem. Pois então a palavra dela não podia ser negada por nenhuma outra razão. De forma que o próprio padre dissolve o voto de Lucia. Então, Renzo e Lucia serão casados por Don Abbondio, que conheceu a peste, que sofreu, que reconhece os erros humanos de sua covardia. Outros acontecimentos vêm. O famoso, monstruoso, valente senhor, L’Innominato, converte-se à religião cristã, pois um dia recebeu uma carta de Don Rodrigo, dizendo que uma moça no convento devia ser roubada; era só falar com a freira, que era corrupta; essa moça fará um plano de modo que Lucia seja vítima do rapto de L’Innominato. Um dia, a monja indica uma estrada onde possa passear, e assim que Lucia lá vai, um carro a leva ao castelo de L’Innominato, que a fecha e começa a vê-la. Vê o candor daquele rosto, a sensibilidade daquela moça, sua religiosidade. Fica preocupado ao ver que ela não tem medo, porque é boa, é pura, e então começa a pôr o problema de Deus, da contingência da violência, que dura até enquanto vivemos. Se eu sou forte, será que depois não haverá um mais forte do que eu, mais tarde? Ele chega a admitir a existência de Deus. Diante do problema da injustiça divina, 92 Lazareto, estabelecimento que abriga pessoas portadoras de doenças contagiosas. 285 286 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos L’Innominato sente uma crise espiritual extraordinária, bonita, profunda, feita de perguntas imensas, raras, e ele se lembrava dessa delicadeza, desse olhar puro, e sente um soar de sinos, e olha na rua, na estrada, e vê gente vestida de cores diferentes, mulheres com os cabelos amarrados e vestidos coloridos e cantando pela estrada. Como existe tanta alegria num período de perseguição? E aí aquela velha diz a ele que é pelo fato de que um cardeal, um parente de San Carlo ia visitar as paróquias em torno do seu castelo. E ele pede para falar com o cardeal. Um defendendo a fé, a razão, e outro, em vez, violento, cruel, com homicídios sem número na sua consciência. Há um choque enorme com Don Rodrigo, rindo e sempre sendo um mesquinho. É muito mais fácil entender-se com grandes com dignidade do que com mesquinhos. Põe seu castelo à disposição, que vira um hospital. A vitória de Renzo está perto. Ao lado dele tem a figura do padre Cristoforo, é um moço de origem rica e nobre, que um dia, passeando na calçada, encontra um nobre espanhol que o desafia. Veio um duelo, e o padre matou seu adversário, e esse choque criou uma crise espiritual: ele fez voto de padre e entrou no clero. Foi sempre violento, honesto, firme, mas pela justiça, pelos ideais cristãos. Será o cavalheiro de Renzo e Lucia. Acabará como um vil no lazareto de Milão. Acaba de um modo maravilhoso esse romance: Lucia muda seu voto, prometendo que seu primeiro filho se chamaria com o nome da Virgem Maria. Renzo e Lucia estavam lembrando o drama, as vicissitudes, e Renzo diz: “Quanto sofremos!”. E Lucia, que nunca fez nada de mal. Conclusão: o mal é devido às nossas ações, mas muitas vezes vem por si. Mas, de qualquer modo, sejamos responsáveis ou não, venha o mal sem nossa sensibilidade, mas serve para reconciliar os homens com Deus e ter mais fé na verdade. Esse drama de Renzo e Lucia se fecha com uma conclusão otimista. A vida é amargura, covardia, inimizade, mas devagar, com a presença de Deus, o mal vai caindo, vão caindo os obstáculos, e o que triunfa é o amor, a família, a verdade. É uma obra cheia de sugestões religiosas, humanas, políticas. Conceito de Manzoni sobre a arte: ela deve ter por finalidade a utilidade, por meio o interessante, por objeto a História, isto é, a verdade. Então, três são para Manzoni os elementos que constituem a obra d’arte: primeiro, a verdade – precisa ser honesta, verdadeira, objetiva, histórica, real, não imaginativa, fantástica; deve ser a realidade; segundo: deve ser narrada num modo interessante, que o leitor se interesse por aquilo, que o leitor sinta interesse pelo que lê; terceiro: deve ter como finalidade uma atitude moral, deve educar, ensinar uma coisa. A obra d’arte é tudo isso, mas é tudo isso e ainda mais, porque, para ser obra d’arte, deve ser Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos também imagem lírica a linguagem do poeta, uma transfiguração, num plano lírico, do que é interessante, verdadeiro e útil. A crítica literária e a estética de Francesco De Sanctis Francesco De Sanctis nasceu em Morra Irpino, em 28 de março de 1817. Aos nove anos, foi a Napoli, onde estudou. Morreu em vinte de dezembro de 1883. A crítica literária de De Sanctis é uma das mais firmes expressões conscientes do Romantismo. Representa no espírito europeu e, sobretudo, italiano, a revolução de pôr-se diante da arte, da poesia, da prosa, com a atitude que ele é, no campo da crítica, como consequência do Romantismo. Ele não só valorizou o Romantismo, a espontaneidade e criação, mas também o modo de ler e criticar a obra de arte. Antes, a crítica baseada na erudição dava apenas notícias sobre um gênero, sobre um homem, etc. Não eram ensaios de valor, de julgamento literário, de criação. Além dessa crítica, havia outra, que era formalista, consequência do Humanismo e da Renascença, em que tanto se valorizou a expressão, e em que o crítico, diante de uma obra de arte, procurava a eloquência do autor e seus cânones aristotélicos. Há uma outra atitude crítica antes de De Sanctis, que deriva da filosofia alemã que veio com Hegel, que tinha um conceito de arte que o levava a considerá-la como um meio de exprimir as ideias, e nada mais era que a forma bonita de expressar-se, que são as convicções e princípios, que nada mais são que a efêmera filosofia da criatura. É uma visão universal da realidade, da natureza, e a obra de arte nada mais é que um meio de exprimir as ideias. Ele chegou a dizer que, depois da época romântica, a arte desapareceria, eliminada pela Filosofia, havendo aí uma sublimação do conceito de arte e também uma ilógica condenação da obra de arte sujeita a desaparecer. Nisso, Hegel lembra Platão, mas é um artista, e De Sanctis, num primeiro momento, é um discípulo de Hegel, mas o seu conceito é substituir a estética das ideias de Hegel pela estética da forma. Hegel tinha uma definição de arte que se pode chamar definição de ideias, e sua estética é essencialmente ideológica. A obra de arte é um meio contingente das ideias, ao passo que De Sanctis tem a estética da forma, que é a obra d’arte. Não é moral em forma de pregação, não é conteúdo, não é linguagem. Portanto, primeiro: o seu caráter não é moralidade; 287 288 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos segundo: não é conteúdo; terceiro: não é a linguagem, pois, se assim fosse, a linguagem existiria antes da obra de arte, que canta e exprime o conteúdo; a linguagem e a moral ficam fora do julgamento da obra de arte, e sua primeira característica é o sentimento. Quem escreve, o faz por uma necessidade que não podia deixar de aparecer, sabendo realizar o sentimento humano, a paixão, a ilusão. A obra de arte tem suas regras dentro de si. A força de um livro está na capacidade construtiva do sentimento que inspirou o autor. O sentimento não é ceticismo, mas cheio de amargura, com otimismo. De Sanctis é o crítico que soube ver numa síntese os dois elementos que parecem constituir a obra de arte: sentimento e linguagem. A obra de arte é a forma em que o sentimento acha suas palavras. As palavras de todos tomam os sentimentos do autor, o que é o seu caráter fundamental. A forma é um conceito concreto, um alcance, uma conquista do sentimento que se torna palavra, e a palavra é a expressão do sentimento. O poeta cria suas palavras, chegando-se a dizer: linguagem de Dante, linguagem de Ariosto, de Petrarca, e assim por diante, que não é a linguagem italiana, mas a linguagem individual de cada um deles. As palavras não têm sentido psicológico. De Sanctis, colocando como base o sentimento, diz que o sentimento da arte é a imagem do homem. Não existe dualismo entre o poeta e o homem. O poeta é um retrato do que ele é como homem, como é liricamente, como é humanamente. A sua lírica não é literatura, é um manifesto da sua imagem, é o homem que cria seu mundo rico. A obra de arte é baseada no sentimento, é a literatura de um povo, é a história lírica da alma, das vibrações de um povo, que o escritor transmite através desta obra de arte. Obras: Storia della letteratura italiana, Saggi critici, Studio su Giacomo Leopardi, Saggio critico sul Petrarca, L’Autobiografia. Francesco De Sanctis foi ministro da Educação (1861-1876), vivendo em contato direto com os estudantes, ajudando-os a solucionar seus problemas escolares, dando-lhes conselhos. Giosuè Carducci e o Romantismo O Romantismo italiano, como todo o Romantismo europeu, num certo momento do seu desenvolvimento em poesia, filosofia, crítica, história e religião, entre outros, apresenta aspectos de decadência, indecisão, morbidez, incerteza ideológica, ética e lógica, que pode Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos representar uma crise. Até que foi uma expressão da dor, do desequilíbrio entre real e ideal, até que quis manifestar o nosso anseio de humanizar-se da realidade, teve um grande sentido, que prova que o conceito da dor é um conceito afirmativo, porque, sabendo justificar a energia que a dor produz, perde-se o hábito de conformar-se: leva o homem a despersonalizar-se e procurar a razão de sua existência. Pelo conceito romântico será encontrada a satisfação, e esse é o aspecto dinâmico, real do Romantismo. Mas quando o sentimento é sentimentalismo, amargura, dúvida, desejo de luz, que torna-se procura transcendente de um argumento incapaz de ser colhido, quando a energia torna-se morbidez, que é le mal du siècle, ele torna-se moda, imitação, linguagem, e perde sua vibração, personalidade, e é mecânico, o que leva qualquer poeta a brincar com os problemas do homem, porque entenderam os pontos firmes do Romantismo e aquelas leis se tornaram mecânicas. Depois de 1848, foi sempre maior a decadência desse Romantismo, que teve sua grande importância e vitalidade na primeira metade do século XIX, e foi muito importante que até politicamente a Itália alcançou seus ideais; e onde aparecem a poesia de Foscolo, a da dor de Leopardi, a poesia amarga mas heroica de Manzoni, aparecem também os filósofos Antonio Rosmini e Giuseppe Mazzini. Esta poesia tornou-se depois lacrimosa, com umas manifestações de abolição, perversidade, produzindo obras sem pudor, acentuando o mal, cantando a renúncia da vida, a vida enclausurada, a exaltação ao suicídio, a hipocrisia, a falsidade, tudo com uma inferioridade passiva, no sentido de resignação, de conformismo, que é a negação do Romantismo, que é o ato heroico diante da dor. Quem não se lembra de Zacinto? A poesia em que aparece a dor, mas com heroísmo. Mas neste [Romantismo], começa-se a perceber essa incapacidade, essa falta de gigantismo heroico, como em Giuseppe Mazzini. Este [Romantismo] é cético. Tudo isso é que individualiza a caída do Romantismo. Em 1870, aparece um movimento moral e filosófico, o Positivismo; em literatura, o Realismo e em crítica, a crítica histórica, que criou uma crítica filológica, antes que chegasse em filosofia, com o verismo. Já na Itália, houve uma reação ao Romantismo, não contra o primeiro Romantismo, mas ao que dizia que a vida é dor. Será uma reação a essa doença romântica, à expressão dos últimos românticos, que diziam que a literatura deveria ser popular. Desses últimos escritores, o maior que representa sua idade e que fez polêmica com seu corpo e alma, cultura, atividade de poeta, mestre e político, que soube incorporar em si a missão antirromântica, é Giosuè Carducci, que na mocidade viu 289 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 290 as coisas melhores do verdadeiro Romantismo: os grandes políticos, os mestres que foram os seus mestres, viveu os momentos dos pais e, depois de 1862, tomou uma atitude conscientemente polêmica, antirromântica, embora se sentisse romântico, mas sadio, numa literatura sublime. Ele não nega a função popular e educadora que o Romantismo atribuiu à poesia, mas é contra a morbidez, diante dessa linguagem excessivamente fácil, e pôs em evidência a linguagem clássica, cheia de cultura. Havia os poetas chamados Salicci piangenti, bêbedos, desleixados, que se opunham a Carducci; eles procuravam amar na imoralidade, e tal eram suas obras. A excelência da poesia carducciana, sua dialética, seu desenvolvimento, é baseada em dois pontos de saída. Por um lado, vê-se uma cultura vasta, profunda, que não é assimilada pela inspiração, que mais tarde ele dará à poesia, que não se torna orgânica. Por outro lado, é um conjunto de desdém, paixão, sentimentos apaixonados, que não sabem dispor-se na poesia e prosa no ritmo que lhe é próprio. Mas o valor está em alcançar-se esse equilíbrio entre cultura e inspiração, e que o Carducci das primeiras obras se redime nas últimas, para que aquele equilíbrio e firmeza não sejam negados e que são, na cultura, inspiração e paixão. Carducci parece um imitador dos clássicos, depois, um revolucionário, e num terceiro momento, essa cultura, que se tornou viva, é a paixão serena. Além disso, particularmente na Itália, teve outros sentidos. Ele significou uma volta à tradição clássica, que lembra Dante, Petrarca, Parini, Alfieri, Foscolo. A exaltação, a testemunha poética, o calvário político da primeira metade do século XIX e ainda trinta anos de ensino universitário num dos maiores centros culturais da Europa – Bolonha –, fizeram de Carducci um verdadeiro homem de valor, que, como professor de literatura italiana, criou professores, como Guido Mazzoni e Vittorio Rossi, que mais tarde educaram jovens na sã literatura que Carducci ensinou. Carducci nasceu em 1835, numa pequena cidade da Toscana, Valdicastello, perto de Pietrasanta, na região de Versilia. Aí, o clima não era dos mais saudáveis, por infiltração do mar (maremma), tornando-a um verdadeiro pântano. Seu pai era médico, sendo chamado medico condotto.93 Ao lado de sua profissão, ele possuía cultura com tendência socialista, amante da pátria. Deu ao seu filho os primeiros anos de estudo, educando-o com solidariedade para com o povo e com ideais patrióticos, e isto mais tarde transpareceu nos escritos de Carducci. 93 Médico municipal. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Até 1849, Carducci viveu em sua terra natal com a família e chegou a conhecer o ambiente popular, com a liberdade da infância, sem qualquer outra educação a não ser a que seu pai lhe dava, tornando-se um menino vivo e inteligente, livre das mentiras sociais. No dia 2 de novembro, há concurso para o magistério, havendo poucos lugares, cinco ou seis. Este concurso é baseado numa prova sobre o concurso secundário e ele fica interno no colégio. Depois de quatro anos, tem direito ao curso de aperfeiçoamento, com as línguas à escolha: alemão, inglês, francês. Transferiu-se para Florença com a família, em 1849, onde estudou num colégio religioso, Scolopi, até 1853, quando fez o concurso para a Scuola Normale Superiore di Pisa, que era uma instituição napoleônica, visto ter Napoleão desapropriado os cavaleiros de Malta de sua propriedade, transformando-a num colégio para moças que fossem fazer a escola normal, e junto da qual está a Universidade de Pisa, onde Galileu Galilei deu aula. Nela entrou Carducci, sendo seu exame sobre Manzoni, que ainda se vê na biblioteca. Em 1856, defendeu tese, formando-se em literatura italiana. Ensinou no ginásio de San Miniato por um ano, indo depois a Florença. Corrigiu alguns clássicos para o editor Barbera. Foi depois professor no Liceu de Pistoia, sendo daí chamado pelo ministro da Educação, Terenzio Mamiani, à cátedra de Eloquência e depois de Literatura Italiana na Universidade de Bologna, de 1873/74 até 1905, sendo obrigado a deixá-la por paralisia. Em 1876, foi deputado por Lugo, sendo republicano de 1862 a 1870. Quando moço, era extremista, não por política, economia, e sim porque Mazzini foi o fundador do conceito republicano, influiu no seu espírito, e ele achou que só o republicanismo possuía progresso, idealismo, e que isto fosse necessário aos italianos. Mas em 1870, quando surgiram as ideias marxistas, ele à frente defendeu a monarquia, que, segundo ele, podia manter a ordem, não vendo, como os italianos, possibilidades no marxismo. Em 1890, foi nomeado pelo rei italiano como senador. Carducci, um verdadeiro lutador, educador, professor, poeta, cidadão italiano no real sentido de italianidade, conservou a cátedra até 1905, deixando-a por motivos de saúde. O governo deu-lhe uma pensão. Em 1906, por sua fama, cultura, exemplo de vida honrada, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro na Itália. Em 1907, ele morreu. Carducci era um enamorado dos fatos históricos, estudando-os com amor. Ele achava que as várias cidades da Itália deviam formar uma só unidade. Em suas obras notam-se as pesquisas e lembranças históricas. 291 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 292 Obras de Carducci Nos últimos anos de sua vida, Giosuè Carducci reuniu suas obras em grupos. São seis os volumes de poesia: Juvenilia, Levia gravia, Giambi ed epodi, Rime nuove, Odi barbare e Rime e ritmi.94 Suas obras em prosa são: Studio su Ludovico Ariosto, Studio su Torquato Tasso, Studio su Parini minore, Studio su Parini maggiore, Cavalleria e Umanesimo, Dello svolgimento della letteratura nazionale, Discorsi parlamentari, Ça ira.95 Aquele conjunto de volumes de poesias foi feito na linha de um desenvolvimento poético consciente, saindo do seu início até suas últimas produções numa sucessão de valor, de ideal, que representam uma fase da sua personalidade. Juvenilia é o conjunto de suas produções da mocidade, que Carducci, nos seus últimos anos, recolheu, de 1854 em diante, numa ordem cronológica e ideal. São as poesias da primeira mocidade, em que há a prova de cultura e do gosto histórico de Carducci. Não têm por si grande valor de altíssima poesia, mas testemunham o gosto clássico e, ao mesmo tempo, uma atitude polêmica a respeito da linguagem, expressão dos últimos românticos. É a expressão da consciência, da luta de Carducci à linguagem fácil e superficial. É uma preparação cultural, desejo de voltar ao Classicismo, à língua austera. Esta obra, junto com Levia gravia, que é o segundo volume, são obras que se parecem, porque as exigências são as mesmas: cultura, classicismo, polêmica contra os românticos, desejo de achar uma linguagem que não seja só expressão de desabafo. Nelas Carducci põe em evidência sua atitude hostil contra o Romantismo e adota formas clássicas pagãs. As duas obras têm um aspecto positivo e negativo. O positivo é a procura de uma linguagem mais atuante, sóbria, elaborada. O defeito é que as duas obras ficam num plano de imitação, de estudioso e literato. Ele ainda é um moço que está se preparando através de grandes poetas da Antiguidade, imitando Dante, o Humanismo e a Renascença, que põem em evidência o Carducci literato, um discípulo, um pedante imitador dos clássicos. Giambi ed epodi:96 são poesias satíricas, de protesto, polêmica, Poemas de Carducci lidos em sala de aula: Giuseppe Mazzini (de Giambi ed epodi), Il sonetto, Virgilio, Traversando la Maremma Toscana, Davanti San Guido (de Rime nuove). 95 Em Francesco Flora, esta última obra consta como sendo um volume de sonetos. 96 A escolha do título Giambi ed epodi revela, segundo a crítica, a intenção de Carducci de fazer uma poesia polêmica, assim como “giambo” e “epodo” eram, na antiguidade 94 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ódio e amor, paixão. Carducci em geral age e atua contra a realidade contemporânea da Itália. A poesia não é de paixão, mas de amor, isto é, reevocação de grandes figuras. Epodi: há também os momentos da História, com o choque entre velho e novo, que brilharam pelos idealismos. Lendo-se esta obra, vê-se que todas as poesias são precedidas de um Inno a Satana. Esta obra foi escrita em 1867. Carducci idealiza Satana como o inquieto, insatisfeito, dinâmico, que simboliza o progresso, com desejo de renovar, superar. Nesta obra, aparece o Carducci homem, na sua apaixonada unilateralidade, porque é um livro de poesias de ódio, ou amor, de sátira, ironia; aparece o Carducci unilateral, porque não sabe transformar no equilíbrio próprio da poesia, sem saber se transfigurar no lado humano; é uma atitude pessoal do homem que ainda não se transformou em poeta. É de grande importância se pusermos em comparação os três volumes. Nos dois primeiros, caracterizados por uma atitude literária, faltava-lhes originalidade espontânea, e no terceiro falta o valor. Nos dois primeiros falta a personalidade e no terceiro falta a literatura, e só tem o homem com os seus desesperos, falta o valor, a transfiguração, que o leitor sente que os sentimentos se transformam em imagem: o homem. Quando o homem se torna literato e quando o literato se torna homem, a poesia se torna paixão e a paixão é a expressão da poesia. Rime nuove são as poesias escritas depois de 1880, e elas se distinguem das outras recolhidas. Estas “poesias novas” contêm os dois elementos da personalidade: homem e poeta, poeta e homem; o clássico e o apaixonado e o apaixonado e o clássico. Os três primeiros saberão sugerir uma síntese, e teremos então, com Rime nuove, o melhor Carducci, com poesias reais, objetivas, com paisagens ou poesias de vibrantes sentimentos. O autêntico Carducci soube frear a paixão numa forma clássica, e o Classicismo não é imitação, mas imagem do seu sentir. Odi barbare Há nesta obra um sentido de respeito ao Classicismo, porque as “poesias bárbaras”, de perfeição extraordinária, lembram versos de Virgílio, Horácio, que são a mais alta expressão. Carducci sente-se muito indigno de ser continuador e realizador de um novo classicismo, com canções sáficas, arcaicas, de poetas gregos e latinos na métrica de Safo e Alceu. grega e latina, composições poéticas didático-satíricas. Carducci exalta nessas poesias os grandes ideiais de liberdade e de justiça, o desprezo pelos arranjos políticos, e a polêmica contra o poder do papa. 293 294 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Rime e ritmi Nesta obra está esgotada sua inspiração consciente do meio expressivo, e quase que domina o mecanismo. Até o nome exprime certo artifício, é quase um clichê, tornando-se formalismo. São poesias classicamente elegantes e linguisticamente perfeitas, mas não podem deixar-nos uma impressão quanto é síntese viva, pois nelas prevalece o formalismo. Prevalece o professor, é a didática dos seis volumes de sua produção poética, é sua decadência, ele é conscientemente dono de um modo de se exprimir. O que ele aí canta é um conjunto de ideias de imanência, existência, do nosso viver, lutar, deveres na realidade, de atuar, agir. Carducci não é um místico da Idade Média, mas um poeta que considera a vida um momento límpido em que nos cabe agir e trabalhar pela pátria, pelo progresso, com solidariedade e compreensão, lembrando a filosofia pagã. Ele tem grande polêmica com o cristianismo, pois espiritualmente ele é pagão e, como Machiavelli, acha o cristianismo uma renúncia, e o trabalho, como alegria. Sua poesia é sadia, porque doentes eram os últimos poetas, então ele lançava a pagã mensagem da vida. Raro haver nele melancolia, noite, suas poesias sempre se projetam ao meridiano, em que se projeta Pan. O passado nunca é motivo de saudade ou passiva admiração e sim de estímulo; por isso, ele evoca os grandes momentos históricos, por exemplo, a Revolução Francesa, momentos históricos esses sempre cheios de heroísmos. A crítica de Carducci Carducci, além de professor na Universidade de Bologna, foi também crítico. Num certo sentido, representou uma atitude diferente, por completo, de De Sanctis. Carducci não era crítico, porque não tinha qualidade de filósofo, era um homem sadio e não um profundo conhecedor da misteriosa intimidade de onde sai a obra de arte. Sua crítica é poética, sua habilidade é saber com suas páginas fazer raciocinar, reviver poeticamente de quem fala, mas não tem o valor de síntese de De Sanctis; ele fica num plano exterior, não de interpretação. A crítica interpreta e não imita, ela deve colher, definir por que é escritor, onde é sincero e onde não, onde é absoluto e onde não é. O crítico colhe a ideia e a define, o poeta sente e na base exprime, e o crítico vê. Carducci é poeta e não crítico. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A LITERATURA DO DECADENTISMO Antes de falarmos em Pascoli, falaremos num movimento em que ele se acha enquadrado, bem como outros, até Gabriele d’Annunzio. É o Decadentismo, que é uma atmosfera completamente diferente, nova, que representa uma consciência diferente da consciência romântica, uma técnica temática que é um conjunto de temas distantes da temática romântica. Esse movimento literário, ético, histórico verificou-se entre o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX. Este movimento leva o nome de Decadentismo e, quando nele se fala, está-se bem longe de julgar que seja a decadência da literatura, de desvalorizar esse movimento, não é desprezo, não entendemos que a literatura seja fraca, inferior, baixa, sem sentido, mas, ao contrário, o Decadentismo, apesar das insuficiências, é uma grande afirmação literária. Como qualquer movimento ao longo da História, fica ligado ao Romantismo e é a sua superação. Desenvolver-se-á e tornar-se-á mais exigente e consciente a certas exigências psicológicas do Romantismo. No seu desenvolvimento e formação na Itália, França, Alemanha, é a negação do Romantismo, sobretudo com dois motivos: um de caráter moral e outro, literário. O Decadentismo é um movimento que representa um complexo de inquietação no campo ético e moral, e, no campo literário, representa um conjunto de procuras técnicas formais. Devemos considerar os dois aspectos: no ético e moral há uma desconfiança nos ideais e a impossibilidade humana de crer nos ideais, na validade dos ideais; este é o sentido antirromântico. O Romantismo foi uma literatura eloquente, fácil, brilhante, emotiva, sobre a exaltação, os ideais de toda a espécie, que é baseada na apologia dos ideais. Com o Decadentismo, não se acredita mais nos ideais fora da consciência. O ideal é inquietação de não poder acreditar nos ideais, e o poeta chega a dizer que é impossível acreditar neles, e então cria-se uma literatura baseada no subconsciente, na fisiologia, na confusão entre corpo e consciência, e penetra na profundidade do homem. Não se cantam mais os ideais abstratos, mas diz-se, amarga e honestamente, o que somos intimamente, o que é obscuro, o que se fecha na nossa infinidade. A literatura do Decadentismo é quase diabólica. Analisa objetiva e amargamente o espírito, o que somos pelo que somos e não pelo que deveríamos ser, com instinto quase animal, paixão, instinto. Não há ideal 295 296 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos fora do homem e nem é possível que haja num plano de idealismo ao individualismo, em que o poeta canta suas atitudes diante do mundo, suas reações, seus ideais, e no campo literário representa um conjunto de aspirações temáticas revolucionárias. Não há mais o romance, o poema longo, a canção, o madrigal, o clássico hendecassílabo, a métrica técnica. Os versos são livres, sem rima, breves e longos, com uso de palavras novas, pontuação irregular, com suspensão, interrogação, exclamação; recorre-se a alegorias, símbolos, o poeta fecha-se em si, criando uma palavra, um símbolo. Quem lê Leopardi, Foscolo, Manzoni e depois lê d’Annunzio, Pascoli ou os contemporâneos acha que isso não é poesia, pois não tem métrica, mas seguem seu instinto, sua paixão. Nota-se ainda no Decadentismo muita estética, que é uma atitude em que se vê alguns poetas insatisfeitos com a palavra, com o verso e com as ações que eles cantam, e o que mais apresenta isto é Gabriele d’Annunzio. Um outro caráter é o do superhomem. Muitos poetas do Romantismo queriam superar a mediocridade humana, o ceticismo, a incompreensão do mundo, jogando a própria existência na ação, querendo ser um superhomem. Esta é a filosofia de Nietzsche. Houve poetas que encontraram no Decadentismo o refúgio a uma declaração de angústia, melancolia, desespero, suave decepção utopista, com anseio de futuro, de compreensão, e que cantaram simplesmente esse mistério que é a vida, a consciência humana, a maldade dos homens, muitas vezes culpados do mistério da existência, objetivando-se na natureza, fazendo às vezes parte integrante da mesma, interpretando os animais, árvores. São os poetas com desejo de comunhão, porque se sentem sós, odiados, sem solidariedade, e um desses poetas é Giovanni Pascoli, que fala com melancolia num átimo opaco do mal – fechando-se na natureza, em que os animais são mais humildes e humanos que os homens. É o poeta que condena o egoísmo, a maldade, a violência, que dividem os homens. Tudo isto forma a literatura do Decadentismo. Giovanni Pascoli (1855-1912) Nasceu em San Mauro, uma cidade da Romagna, em 31 de dezembro de 1855. Seu pai chamava-se Ruggiero; era administrador de uma fazenda do príncipe Torlonia. Em 10 de agosto de 1867, quando Pascoli contava com doze anos, seu pai, que voltava do mercado onde Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos fora fazer negócios, foi assassinado, tomando dois tiros vindos não se sabe de onde. Ruggiero cai então de sua égua tordilha, e não pode levar até sua casa, a seus filhos que o esperavam, “le due bambole”.97 O infortúnio irreparável projetou uma sombra de dor indelével na alma do pequeno Giovanni. No ano seguinte, isto é, em 1868, morreu uma irmã, a mais velha, de dezoito anos; sua mãe, consumida pela dor, pela morte de seu marido. A família ficou sem meios, vivendo em dificuldades, num ambiente de hostilidade. Por outro lado, muitas pessoas interessavam-se pelas crianças e pelo caso, em descobrir o assassino de Ruggiero, sobre o qual havia muitas suspeitas. Pascoli estudou no colégio Scolopi, em Urbino, onde escreveu uma poesia, L’Acquilone, na qual lembra a morte de um menino que foi seu colega de quarto. Fez depois a universidade em Bolonha e depois Pisa, fazendo o mesmo curso de Carducci. Mas, antes de formar-se, interrompeu seus estudos, em 1879, tomando parte em movimentos anárquicos e socialistas, isto tudo pela sua atitude amarga diante da vida e dos fatos graves que teve em sua vida. Em 1879, houve o primeiro atentado contra a vida do rei Umberto I (que mais tarde foi morto), por um anárquico chamado Giovanni Passannante. E como Pascoli fazia parte deste movimento, foi preso e, quando julgado inocente e libertado, voltou aos estudos e formou-se em Letras, iniciando sua carreira de professor em cursos secundários em Matera, Massa e Livorno. Em 1895, começou a ensinar em curso superior, sendo professor de gramática latina e grega em Messina, Sicília e Toscana, ensinando também na Universidade de Bologna; e, em 1903, foi a Pisa, de onde foi chamado, em 1907, para substituir Carducci na cadeira de Literatura Italiana, na Universidade de Bologna, vivendo ele até 6 de abril de 1912, quando morreu em Castelvecchio di Barga. Pascoli levou uma vida de trabalho, de meditação, e os acontecimentos levaram-no a uma atitude de misantropia, de afastamento da vida citadina e social, que, mesmo sendo ele professor em Bolonha, vivia em Castelvecchio, numa vida contemplativa, mas à qual faltava aquela religiosidade de Manzoni. A solidão, com amargura, sem compreensão, respeito, fez com que ele se fechasse nos estudos, na contemplação da natureza, o que transparece em suas poesias. Ele chega até a imitar o canto dos pássaros, o vento batendo nesta ou naquela árvore; esta habilidade e conhecimento de Pascoli tem valor científico, pois ele possui uma atitude cósmica. 97 As duas bonecas. 297 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 298 Obras de Pascoli Pascoli dedicou-se a quatro antologias, que foram usadas até pouco tempo na Itália: Sul limitare (Ao limiar), poesias fáceis; Flor da fiore (Flor entre flores). Estas duas são em italiano. Epos (Épico), de caráter épico; Lyra (Lírico), de caráter lírico. Estas duas últimas são em latim. Pascoli revelou-se um grande poeta, e seu primeiro volume de versos foi escrito em 1891, e se chama Myricae. Seguem: Canti di Castelvecchio (1903), Primi poemetti (1904), Primi conviviali (1904), Odi ed inni (1906) e Poemi del Risorgimento (1913).98 Mas Pascoli não ficou só aí, pois foi também um grande poeta em latim, compondo Carmina, versos constantemente premiados em Amsterdã, que foram reunidos em dois volumes depois da morte do poeta. Pascoli crítico Como Carducci, Pascoli foi também crítico. Fez seus estudos sobre o grande e conhecidíssimo poeta Dante Alighieri, do qual deixou três livros de crítica: Minerva oscura (1898); La mirabile visione (1902); Sotto il velame (1900). Em algumas páginas em prosa e em algumas poesias Pascoli mostra seu conceito sobre poesia. Ele diz que dentro de cada indivíduo há um fanciullino,99 que é o contrário do que somos, que faz com que a gente se transforme. E é por este fanciullino que nasce a poesia. Exteriormente é-se uma coisa, e interiormente é-se o que se queria ser, o que dá uma atitude e vida interior, completamente diferentes das exteriores. Esse natural (o menino) escondido em nós é a característica da ingenuidade e curiosidade, e os maiores poetas, como Homero, Dante, foram ingênuos e curiosos, o que é uma manifestação subjetiva desse anjo interior que, em certos momentos de inspiração, faz calar o homem exterior e ressalta sua linguagem, em revelação dos segredos da natureza. A teoria de Pascoli, com seu fanciullino, não nos leva a concluir que ele tivesse um conceito muito sadio da poesia, que aí não é fruto e imagem da fantasia. Mas é um conceito importante, porque está de Poemas lidos em sala de aula: X agosto, Arano (de Myricae); La quercia caduta (de Primi poemetti); La cavalla storna (de Canti di Castelvecchio). 99 Menininho, diminutivo de fanciullo. 98 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos acordo com o Decadentismo, onde a poesia é um instinto que leva o poeta a uma atitude de irracionalidade e misticismo. Qualquer escritor do Decadentismo interpreta os acontecimentos como explosões do seu íntimo, ao mesmo tempo é expressão de um misticismo, isto é, o homem se confunde com a natureza, não a domando com a razão e lógica, e sim, domina interpretando os acontecimentos, como explosões do Racionalismo. O poeta parece estar inspirado, a razão dominada pelo instinto subconsciente, e ele então explode fisiologicamente, mais que espiritualmente. Pascoli foi perfeitamente coerente na poesia. Como crítico, ele lê interpretando até nas entrelinhas, o que se nota quando de suas críticas sobre Dante, pois que a Divina Comédia é bela por outros motivos, e que ele viu e interpretou a seu modo, chegando a julgar Dante como uma “deusa obscura”. Gabriele d’Annunzio (1863-1938) É um assunto muito complicado os temas da poesia de d’Annunzio, o sentido de sua obra na Itália e na Europa, enquadrá-lo como líder representativo de todo o movimento literário que se chama Decadentismo, enquadrá-lo como linha filosófica e psicológica, que está ligado aos filósofos da segunda metade do século XIX e, sobretudo, a Nietzsche. Mas tudo isso será mais tarde, em seguida à biografia dele, que é o ponto de saída para examinar melhor a literatura contemporânea italiana. D’Annunzio fecha um período da história da literatura europeia, da história da literatura italiana. É a última expressão de um superomismo,100 de uma atitude sensualista, um apego físico-otimístico diante da vida, que mais tarde, em vez, desaparece na literatura europeia. Com d’Annunzio, embora haja nesse poeta a consciência melancólica do tempo roendo as nossas energias, embora haja nele a consciência da contingência do prazer, embora haja nele um delicado esforço de colocar num plano ideal qualquer experiência sensual, filosófica, romântica, amorosa, embora tudo isso, d’Annunzio é a expressão mais musical, a expressão mais otimista, mais inebriante de toda uma imersão no átimo, na vida, no momento, na existência. Em d’Annunzio a arte é a continuação de uma atitude na vida, 100 Termo italiano que vem do pensamento filosófico de Nietzsche sobre o super-homem. 299 300 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a vida é a atuação do programa de sensibilidade, de prazer, de otimismo que ele cantará na sua poesia. O heroísmo da vida de d’Annunzio, o sensualismo, a ebriedade de sua vida, a felicidade com que ele soube sorver todos os instantes dos seus setenta e cinco anos de vida, de uma forma de vida no amor, esse heroísmo na leitura ou poesia, na amizade ou na melancolia, na meditação, tudo isso é a prova de uma atitude existencialista de felicidade e de paganismo, de forma que, como nós acabamos de falar sobre Carducci e Pascoli e estamos falando de d’Annunzio, não seria errado fazer uma pequena comparação entre esses três. Em Carducci nós encontramos um paganismo de caráter histórico, de caráter civil, isto é, Carducci, que não é um cristão, que não é um renunciatário, que é, em vez, um homem que combina com o Romantismo, sentindo na vida uma razão de ser, acreditando na possibilidade de um progresso, alargando, acreditando que a vida tenha seus imperativos e nossa necessidade seja de atuar certos deveres como homem e cidadão, a poesia dele é uma grande expressão de paganismo, entendendo-se por paganismo uma visão da vida que não tem a preocupação do Além, uma visão da vida fechada na própria vida, pela vida, na vida. Sem ligar, sem fazer depender esta vida de uma outra vida, este mundo de um outro mundo; a vida é o nosso teatro de ação, o mundo em que nós nos realizamos, o lugar onde o homem atua, faz um sentido de progresso, de liberdade, de dever. Nós somos na vida lutadores, e nossas lutas são num sentido de progresso a respeito de nossas famílias, da sociedade, do país, da humanidade a que pertencemos. É um pagão sadio, clássico, cuja poesia inspira a nobres ideais positivos, construtivos, e é por isso que, conforme a afirmação em que dizia que o paganismo de Carducci é um paganismo histórico, isto é, ligado à História, se forma na História e a História nada mais é que a fenomenologia da História, o registro das nossas ações, que possui uma lógica que é a confirmação de um progresso que se vai realizando, que os homens têm o dever de realizar. Carducci tem um gosto pelo trabalho, pela luz, pela honestidade, uma serenidade operosa. É por isso que muitos poetas e críticos não o apreciam, porque é demais sereno, não tem melancolia, nem é lúgubre, o que se procurava na poesia, e os franceses do século XIX diziam, sobretudo Gide, que os bons sentimentos não fazem literatura, mas que esta sai dos maus sentimentos. Os artistas devem procurar ângulos escuros de nossa alma. É demagogia. Sabemos que o poeta procura o amargo de nossas contradições, de nossa dúvida, é uma ambiguidade em que há algo de demoníaco. D’Annunzio é claro como o meio-dia. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Diante da realidade, qual é o poeta que vem depois? Que é Pascoli? Sua atitude diante da realidade é de resignação, emulada de aceitação, é passiva, desesperada, mas docemente desesperada diante de uma injustiça, que não dá nenhuma esperança de redimir-se; o mundo é mesmo este átimo épico de amor. A culpa é do próprio homem. Então, Pascoli, diante da realidade, assume essa atitude passiva, humilde, resignada, vai-se afastando, vai ser o intérprete de uma natureza vegetal ou animal, interpondo as árvores, a vida dos pássaros, que parece uma vida mais inocente, ainda que irracional. D’Annunzio, em vez, diante da vida, é também de uma atitude de paganismo, mas não de um paganismo histórico como o de Carducci, não de resignação e aceitação como de Pascoli, mas é a atitude de um sensual, um irracionalista, um superhomem, querendo transformar, modificar a realidade, substituir a realidade. Percebe-se a influência de Nietzsche sobre d’Annunzio, que é o criador dessa teoria de uma alma, da vida espiritual, uma vida über,101 acima daquela medíocre de todos os dias, que não é feita de horizontalidades, mas que é uma eterna inspiração de aristocracia, de absoluto, e daí nasceu essa concepção de superhomem que levará ao conceito de supernação, über Alles.102 Há essa força primitiva, essa analogia que se expande em todos os aspectos da vida. Quer no heroísmo, quer no amor, na cultura, na música, na poesia, ele procura dominar, transformar, renovar. Esse é um dos aspectos do Decadentismo. Essa irracionalidade, que não sabe ver na História uma dialética progressiva, mediando. Para d’Annunzio, tudo consiste numa realização da própria subjetividade, do próprio eu, que não é moral, que não é ética, religiosa, física, mas “eu”, analogia irracional. Por todas essas coisas, então, se conhece a literatura contemporânea. Devemos concordar que, depois de d’Annunzio, a literatura se transforma profundamente, porque, depois de 1928 e já antes, desde 1915 e através de todos os anos, em 1936, as guerras na África, e em 1938, onde é iminente a guerra mais trágica, e mais tarde, tudo que aconteceu até nossos dias, muitos ideais do Romantismo e ilusões do Romantismo, muitos sonhos do Romantismo, de nossa vontade de viver, de nosso gosto de viver, muitas ilusões foram caindo, e a literatura então se torna muito mais amarga, triste, sentia a necessidade de abandonar essa musicalidade de prazer, essa atitude de serenismo, esse gosto de mundanismo, sentia a necessidade de afirmar quão intimamente nossos 101 102 Termo em alemão que significa “acima”. Expressão em alemão que significa “acima de tudo”. 301 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 302 instintos são ruins, quanto de absurdo há na vida, de falso, de hipócrita, de equívoco, quanto há em cada um de nós na sociedade, nas instituições. Então saiu essa literatura, que se afirma sobretudo com um grande escritor, que viveu entre 1912 e 1935, Kirkegaard, e outros do Existencialismo, como Sartre, Remo Cantoni,103 que criaram essa literatura amarga, dolorosa, que abandona a rima, a tradição, que se joga dentro da alma, procurando, como aqui no Brasil, as nossas contradições, a nossa insatisfação. Não há em nossa literatura uma convicção profunda que justifique a razão de ser da nossa existência. Quem lê poetas como Camus, Ungaretti ou Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, vê que há uma profunda amargura e que esses poetas não se sabem conformar com o existir, falta neles uma razão de existência. A única razão é a ilusão, e não uma verdadeira razão. Morreu alguma coisa na alma humana, há uma crise na cultura atual, e essa crise começa com d’Annunzio. É o último que joga lá sua maravilhosa eloquência, sua extraordinária maravilha. Hoje ninguém escreve coisas bonitas. É tão amargo o futuro, é tão triste o presente, nossa alma é tão despida de luzes, que não se pode ouvir se chove sobre as folhas, só esse desejo de jogar-se na natureza, de passivamente aceitar uma chuva. Hoje não se justifica uma poesia dessas. É bonita para a psicologia, para o panorama humano em que d’Annunzio viveu. Vejam como se deve colocar d’Annunzio: Nasceu numa região chamada Abruzzi, onde existe uma cidade chamada Pescara. É uma das regiões mais folclóricas da Itália. É um povo de instintos ainda primitivos, feito de pastores, montes, selvas, montanhas, águas, e a agricultura não é ainda moderna; e essa região, famosa pelos seus rebanhos de ovelhas, é um mundo quase mítico, de gente muito sóbria e, ao mesmo tempo, simples, cheia de paixões, de instintos quase ferinos. É aqui que d’Annunzio viveu a sua primeira infância, fazendo as escolas elementares. Saiu de Pescara, sempre, porém, lembrando e levando consigo a tradição humana, espiritual de sua terra. Na sua vida devemos dividir esses setenta e cinco anos em quatro períodos fundamentais: Primeiro período (1863-1910) São quarenta e sete anos de vida, e são os mais importantes para quem deseja conhecer a vida dele. É o período em que ele faz seus estudos ginasiais e secundários num colégio da Toscana, na cidade de Prato, no colégio Cicognini. E é importante notar, ainda menino ele 103 (1914-1978) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos era de uma cultura extraordinária; e além de ser menino, era a sua uma cultura de requinte, pelo fato que d’Annunzio procurava, por sua conta, ler escritores raríssimos do mundo grego-latino, oriental, ou então, escritores novíssimos do período em que viveu. Com catorze ou quinze anos, lia essas obras, com uma memória prodigiosa, sabendo grego, latim e outras línguas, sendo muito bonito; ele tinha uma facilidade de entusiasmar e gozava infinitamente, sentia-se feliz com o estudo, tinha gosto por essas leituras, vivia para a leitura. E vivia literariamente o que ele lia. Era um perfeito leitor, um dos que sentem o estudo como uma forma de realizar-se, sem o tormento, a angústia de problemas morais ou religiosos, mas vivendo das imaginações de um mundo irreal, de expressão de poesia, de prosa. Tanto assim que a primeira obra de d’Annunzio é intitulada Primo vere, escrita em 1879 e publicada no mesmo ano, isto é, quando tinha dezesseis anos. É um conjunto de poesias de valor extraordinário, onde já se percebia o grande d’Annunzio de mais tarde. Então, essa sua seriedade nos estudos. Uma segunda coisa no período é o fato de que, logo que acabou o ginásio, ele foi se inscrever em Letras, em Roma. E como era muito bonito, elegante, cultíssimo, conhecido, criou em torno de si uma simpatia extraordinária. Começou a frequentar os artistas que se reuniam em frente ao jornal Capitan Fracassa e frequentava também os serões de um editor famoso, Sommaruga,104 onde conheceu todos os artistas. Abriram-se para d’Annunzio as portas da aristocracia romana. Roma está no coração da Itália, numa zona nem fria nem quente. É uma cidade cheia de tradição, de vestígios, de relíquias, de restos de um mundo caído, então é testemunha da força que o tempo tem de ruir, de destruir. Ao mesmo tempo, é cheia de uma sã ambiguidade, de um gosto são de viver, que consiste numa facilidade que os italianos têm de viver, no centro da Igreja, etc. A cidade está cheia de monumentos, de praças, águas e fontes que jorram, árvores e águas abundantes, que provam uma natureza cheia, outonal, e neste ambiente vivia d’Annunzio, perfeitamente. Uma alma mais delicada que d’Annunzio, que é Leopardi, disse que tinha nojo de lá. Mas d’Annunzio tinha essa primavera, essas mulheres firmes, fortes, bonitas, sadias, essa aristocracia meio corrupta, essa hipocrisia bonita, era o mundo de d’Annunzio, no meio dos artistas e poetas, o mundo em que se ia formando. Esse ambiente teve uma importância enorme na sua educação. Nesse período teve a oportunidade de fazer uma viagem à 104 Angelo Sommaruga. 303 304 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Grécia. Em Atenas, no Pireu, vendo o mundo daqueles poetas, o gosto daquela arquitetura, daquele helenismo, de que estava impregnado até nos últimos momentos de sua produção literária, essa clareza de linguagem grega, transforma a inspiração de d’Annunzio, serve para sua educação literária. Um outro ponto importante até 1910 é o seguinte: d’Annunzio faz uma viagem ao Oriente. A possibilidade para um homem, com todas estas tentações, com seus instintos para a vida, para a felicidade, para o amor, esse homem num mundo sensual, que é o mundo oriental, de fantasia, de luar, aquela música no mundo persa, em suma, ele lá se aprofunda, torna-se consciente do que ele será. Outra coisa: ele teve neste período, com trinta e seis ou trinta e sete anos, a possibilidade de conhecer uma das maiores artistas de então, Eleonora Duse, uma das maiores atrizes no mundo dramático, que o apreciou imensamente, tornando-se amiga dele, e a ela deve d’Annunzio sua experiência, sua intimidade teatral. Se mais tarde ele escreveu tragédias, ele as deve à sua intimidade com Eleonora Duse, que lhe forneceu tudo e o introduziu no segredo do teatro. Por fim, o seguinte: d’Annunzio foi também, neste período, deputado no Parlamento italiano. Este homem, que amou, que viveu, também tinha suas ambições, seus programas num plano de luta política. No Parlamento representou num primeiro momento o partido da extrema-direita. É a conservação, o status quo. Num certo momento, enojado pela mesquinhez de todos os dias, porque não havia nada de heroico, então esse desejo de pôr o pé fora de casa, d’Annunzio sai da direita e vai à esquerda, do lado dos comunistas, lançando então o primeiro programa de uma Itália militarmente forte, heroica, que não é grande mas que deve a d’Annunzio essa educação que vai de 1915 a 1938 e que levou a Itália a um conjunto de derrotas, traindo sua missão na História, que é de cultura e não de militarismo. Eleonora Duse, com a influência e o sentido de amizade, essa mulher que, depois de Sarah Bernhardt, entusiasmou a Europa, soube encantar os teatros ingleses, franceses, alemães, e foi aplaudidíssima no Rio em 1921; era tão feia quanto bonita. Na Inglaterra, um jornalista entrou no seu camarim após ter representado Ibsen e ficou decepcionado diante dela, que era modesta, que era tão vivaz no palco, e ela percebeu isso e disse a ele “Eu só sou bonita quando quero”. Uma vez, na França, representando Dumas, o presidente da República Faure foi congratulá-la, e ela desculpa-se, dizendo de sua dificuldade de representar não em italiano, e ele lhe disse que “Não tinha percebido que falara em italiano”. Sua música, seu modo de exprimir-se iam além da compreensão da Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos língua. Foi extraordinária sua influência sobre d’Annunzio, pois o levou a ser um grande teatrólogo. Segundo período (1910-1915) Em 1910, d’Annunzio já era rico, conhecido, famoso, admirado, seguido sobretudo pela mocidade na Itália, que condividiu as atitudes de d’Annunzio. Para uma mocidade que infelizmente não estava satisfeita com a Itália pequena de então e via nele, nesse poeta sensibilíssimo, naturalístico, irracional, uma esperança, uma possibilidade de uma Itália diferente, sobretudo os nacionalistas italianos, os que sonhavam com uma Itália maior, mais poderosa, essa mocidade sonhadora de uma Roma, de um império além do mar, essa mocidade via nele o mestre, o paradigma. E como com poucos poetas, sua vida era seguida passo a passo, não somente porque a mocidade o lia com entusiasmo e participação extraordinária, mas sobretudo porque conheceram, acompanharam os pormenores da vida humana de d’Annunzio, dos seus amores, viagens, extravagâncias; ele levava consigo setenta malas, quarenta ternos, um homem que eletrizava a mocidade de então. No meio de tudo isso, gastava dinheiro, e muitos seus amigos aproveitavam sua liberalidade, e teve uma crise econômica em 1910, tanto assim que começaram a penhorar sua casa e edições e recorreram à justiça, pelas dívidas que ele ou seus amigos contraíam. A sua vila, com seus funcionários e empregados, aumentava cada vez mais suas dívidas. Num momento, a vila onde morava na cidade de Settignano, que se chama Capponcina, na mesma cidade onde morava Eleonora Duse, essa vila foi sequestrada, e então d’Annunzio resolveu abandonar a Itália. E então temos o segundo período, de 1910 a 1915, durante os quais d’Annunzio, não por ideologia e princípios de moral, mas por orgulho, protesto e vaidade, colocou-se em exílio e foi viver na França, num lugar famoso na costa do mar, Arcachon, na vila Saint-Dominique, e muitas vezes ia a Paris, continuando sua vida liberal, obtendo dinheiro da alta aristocracia, fazendo-se antecipar o dinheiro sobre obras, indo aos maiores hotéis sem dinheiro, não respeitando os limites que cada um tem que respeitar. Para ele, o que é sua restrição, a moral, não é uma moral comum a todos. Há uma particular para os homens de gênio, para o superhomem. Ele se considerava fora e acima dos seres. Todos devemos obedecer a certos limites, mas o homem de gênio, que é admirado, que representa na vida uma expressão poética altíssima, fica fora de qualquer controle moral. De forma que d’Annunzio viveu assim, mas sempre com uma capacidade extraordinária de produzir, tanto assim que na França 305 306 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos escreveu em italiano, mas escreveu também três obras num francês muito bonito. São as seguintes: Saint Sébastien (musicada por Debussy), La Pisanelle (ou La Mort Parfumée) e Le Chèvrefeuille. Na França, d’Annunzio começou também uma outra atividade, a entrar com a sua poesia a cantar temas heroicos e a exultar a força, a violência, a guerra, a potência, e ele sempre falava de uma França e Itália latinas, do mundo latino, da cultura latina, quer dizer que, neste período (1910-1915), a Itália estava empenhada numa guerra na Líbia, contra a Turquia, estamos também na véspera de uma grande guerra mundial, a de 1914-1918. D’Annunzio então quase cheira no ar esta atmosfera de sangue, de potência, de ódio, de coragem; então ele começa uma exaltação, com o mesmo vigor que exultava a vibração, o corpo, com a mesma força e a mesma facilidade de expressão ele começa a lançar esse grupo à força, à coragem, ao viver perigosamente, ou ao vivere inimitabile: na paz assim, no ar assim, na guerra assim. Ser o paradigma do heroísmo. Muitas obras testemunhavam isso. Uma canção a Umberto Cagni, que foi ao Polo Norte e aos desertos e sacrificou-se por isso; e também outras poesias, como Canzoni della gesta d’Oltremare. Então começou a escrever essas obras. As edições, o entusiasmo da mocidade italiana e francesa foi maior, tanto que d’Annunzio começou a ter importância até no governo italiano, que via nele uma ótima oportunidade para criar uma atmosfera de iniciativa italiana e, de fato, em 1915 d’Annunzio abandona a França e volta à Itália. Já havia sido declarada a I Guerra Mundial. Numa cidade italiana historicamente importante que se chama Quarto, perto de Gênova, aconteceu um grande fato: que Garibaldi, em 1860, escondido, perseguido pelas autoridades, tentou com mil homens uma das coisas mais famosas de sua carreira, de libertar a Sicília dos Bourbons. Foi uma iniciativa triunfante para ele, pois teve a força de destruir o império fortíssimo que dominava a Espanha e a Itália meridional. D’Annunzio começou a unir a Itália, escolheu Quarto, de onde Garibaldi tinha saído, e lá fez uma oração, La sagra dei mille, exaltando essa vitória de Garibaldi. Deu um valor enorme e pôs isso num plano quase místico, de modo que todos os homens desejavam que a Itália entrasse na guerra, e a 24 de maio de 1915 entrou na guerra ao lado da França, deixando seiscentos mil mortos e feridos, que acabou com o Vittorio veneto. Esse é o segundo período de sua vida. Terceiro período (1915-1921) É o período de d’Annunzio em que, poeta de certos ideais, se torna Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos o herói de certos ideais. Abandona escrever para fazer o que ele cantou. Há isso em sua figura, isto é, d’Annunzio sempre pensou que a vida devesse ser a realização de sua poesia, de sua insatisfação, considerando a poesia a continuação fantástica de sua vida real. Ela ligava o que fazia na vida. Entre 1915 e 1921, temos uma continuação dos acontecimentos heroicos, das coisas particulares extraordinárias nesse poeta. Temos a encarnação de heroísmo que canta tudo: faz ainda La beffa di Buccari. Voando sobre Viena, lança um manifesto para desistirem da guerra. Durante a guerra, foi da Infantaria, da Marinha e da Aviação. Em 1916, voando, perdeu o olho direito. Teve o reconhecimento não somente italiano, mas de todos os aliados, dos Estados Unidos, da França, e foi condecorado com cinco medalhas de prata e uma de ouro, além de condecorações extraordinárias. Foi uma figura, um paradigma de força e heroísmo. Mas outra coisa está em evidência. Em 1918, o ano da paz, acabou a guerra. A Itália devia ocupar uma cidade do norte, que se chama Fiume, mas a paz não foi favorável a esse direito do povo italiano, de modo que Fiume não foi anexada à Itália. Então, d’Annunzio, com outro ato heroico, faz uma marcha, que se chama La marcha di Ronchi, e ocupou esta cidade de 1919 até dezembro de 1920, quando, diante do sangue dos italianos, ele renunciou a ocupar Fiume. Este é o terceiro período. Quarto período (1921-1938) É o período de ritiro, da solidão, o seu último período. Se o primeiro, de 1863-1910, é o juvenil, da força, da ascensão, do arrojar-se, se o período de 1910-1915 é o do exílio, da vaidade, se o de 1915-1921 é o período heroico, militar, corajoso, o último, em vez, de 1921-1938, é o período de reconhecimento, da satisfação. Não de aposentadoria, mas de satisfação, o homem que se sente satisfeito de ter-se realizado como homem e como poeta. Ser amado, conhecido, imitado, lido, criando um modo, uma atitude poética que se chama Decadentismo. Em 1921, d’Annunzio vai viver numa cidadezinha, que é Gardone Riviera, e lá se fixa numa maravilhosa vila, Cargnacco, recolhendo os seus inéditos, dando ordem à sua epistolografia, escrevendo em prosa, fazendo-se sentir de vez em quando, dando julgamento sobre admoestações italianas, francesas, alemãs, russas, e, afinal, pondo-se ao lado do governo italiano totalitário, pondo-se ao lado do fascismo, que se deve considerar um produto de d’Annunzio. A ele a Itália deve sua intervenção na guerra de 1915-1918, e também essa consequência violenta, conquistadora, colonial, autoritária, 307 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 308 que foi o fascismo de 1922 a 1945. Esse período trágico e triste da Itália, a ele se deve isso. Todos os nacionalistas juraram isso. Em 1924, a sociedade das nações reconheceu os direitos da Itália sobre Fiume; então permitiu que a Itália a anexasse outra vez. Em compensação, por esse fato, o rei da Itália, Vittorio Emanuele III, deu a d’Annunzio, em reconhecimento do que tinha feito em 1919, o título de príncipe de Montenevoso, e essa vila que d’Annunzio ocupou desde 1921, Cargnacco, foi por ele batizada com o nome vaidoso, nietzschiano de Vittoriale degli Italiani, onde se considera a vitória italiana de 1915-1918. No dia 10 de março de 1938, na véspera do segundo drama trágico do mundo e, sobretudo, da Europa e Itália, d’Annunzio improvisamente morreu na sua mesa de estudo, e talvez foi um bem para a Itália. Sua vida foi esta. Ele viveu setenta e cinco anos, quando ainda eram vivos Carducci e Pascoli. Influenciou toda a literatura italiana do século XIX e boa parte do século XX. Mais tarde, só mais tarde é que os escritores moços, as gerações moças terão a força, o desejo, o anseio de jogar embora a eloquência e retórica, a sensibilidade, a morbosidade de d’Annunzio, para procurar, em vez, uma nudez de espírito muito mais angustiada, muito mais amarga, o que tinha sido sufocado durante todo esse tempo, primeiro pela poesia dionisíaca de d’Annunzio, e, mais tarde, sufocado pela disciplina violenta do fascismo, que é um filho de d’Annunzio. Só mais tarde surgirá o Crepuscularismo, do pôr-do-sol, que é uma reação a essa grandiosidade; o Hermetismo, com Ungaretti; e só mais tarde surgirá, ainda ligado a d’Annunzio, o Futurismo, com Marinetti. Essa é a figura de d’Annunzio. Obras de d’Annunzio Falando das obras dele, devemos eliminar de citar as inumeráveis obras dele, porque em poesia e prosa escreveu centenas de volumes. Sua obra foi publicada completa agora, e não acaba nunca. Mas deveremos, examinando sua produção literária, olhar, observar sobre certos temas e sobre certas obras que representam o melhor daquela época. A primeira fase da produção poética de d’Annunzio, o primeiro momento da dialética poética de d’Annunzio, é representada por obras já citadas: Primo vere (1879) e duas outras: Canto novo105 (1882) e Terra vergine. Este é o primeiro momento. 105 Desta obra, foi analisado em aula o poema O falce di luna calante. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Depois teremos o segundo momento, de cansaço diante da realidade e uma certa tristeza, e a procura de escrever uma obra que seja a expressão de ideais: San Pantaleone (novela), Intermezzo di rime, Il piacere, Il trionfo della morte (romance), Giovanni Episcopo (romance), L’innocente (romance), L’isotteo e la chimera106 (poesia), Elegie romane (poesia), Poema paradisiaco107 (poema, o mais famoso). O terceiro período é o da influência de Nietzsche: Il fuoco (famoso), Le vergini delle rocce, Forse che sì forse che no, La gloria (tragédia), La figlia di Iorio (tragédia), Francesca da Rimini (tragédia), La gioconda (tragédia), Laudi del cielo, del mare, della terra e degli eroi. Desse período, a obra poética que talvez seja a mais importante é esta, que contém quatro livros: Maia, Elettra, Alcyone, Merope. Quarto período: Contemplazione della morte, Notturno, Le faville del maglio, Il venturiero senza ventura, Il compagno dagli occhi senza cigli, Cento e cento e cento e cento pagine del libro segreto. Publicada três anos antes de morrer, esta é a última obra dele. Foi a imagem de toda uma sensibilidade. Hoje nós não podemos pensar e sentir como ele o fez, mas ninguém pode pôr em dúvida que tudo que cantou era não somente subjetivo e pessoal, mas era geral, era um momento de história da humanidade. De 1860 a 1915, houve na Europa um período de tranquilidade, de riqueza, de burguesia, e então a noia108 não era devida a uma insignificância da vida, mas era querer mais do que a vida oferecia, mais diversões, procurar a inimitabilidade de sensações, diversões mais raras, mais peregrinas, mais requintadas, é o período do Decadentismo. É preciso ler esse poeta para observar o seguinte: d’Annunzio começa imitando Carducci. Carducci é o escritor pagão e clássico, isto é, um poeta que não quer nada com aquela doença psicológica do último Romantismo e que, reagindo àquelas neblinas emotivas, procurou na forma um mundo solar de luz, de confiança, e renovou com sua poesia uma esperança na vida, uma justificação da existência, e sua poesia foi uma exaltação da paixão, do entusiasmo, das atuações humanas. Foi um poeta sadio, no seu equilíbrio. Então, é claro que d’Annunzio começa sua atividade aos dezesseis anos, imitando esse poeta vivamente de sua idade, e que ele conheceu, e que por muitos aspectos ficava perto de d’Annunzio, poeta carnal, irracional, disposto a sentir a vida, a exaltar a vida. Se a gente lê uma poesia de d’Annunzio, sente-se as palavras, os versos anteriores Desta obra, foi analisado em aula o poema I seminatori. Desta obra, foi analisado em aula o poema O Giovinezza!. 108 Enfado, tédio. 106 107 309 310 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de Carducci. Mas começa a ver essa guerra, sente a coragem, o fascínio do mar, do céu, das árvores, da natureza. Esse é o ponto de saída de d’Annunzio: imitação de Carducci, de um naturalismo pagão, de um classicismo, de uma língua de requinte. Depois vem Canto novo, publicada em Roma. É a obra em que se manifesta sua personalidade clara, já se revela livre da imitação de Carducci, uma obra em que d’Annunzio é tão pessoal que os poetas que ele imita, a quem ele atinge, são todos eles de tal forma subjetivados que, mesmo quando cita versos de Dante, Petrarca, poetas gregos, latinos, até frases inteiras, vê-se sua personalidade: ele transforma o vocabulário. D’Annunzio pega todas as formas métricas da tradição e as transforma para sua exigência, como o soneto, a canção, o madrigal, tudo ele torna seu. É uma assimilação criadora, porém, não vítima. É a obra afirmativa da personalidade de d’Annunzio, é a obra em que já se vê em que consiste sua poesia: consiste nessa sensibilidade agudíssima de receber e de imprimir qualquer sensação, qualquer vibração. Há em Canto novo essa capacidade de d’Annunzio de quase despersonalizar-se, para tornar-se aquela sensação que o move. Ele se transforma naquilo. E isso alcança ainda com uma musicalidade, devida à estudadíssima diligência com que ele sabe colocar as palavras. Coloca-as no verso abandonando qualquer tradição, entrelaçando versos curtos e longos, numa linguagem que parece falada e que é o resultado de uma lima extraordinária; ele alcança esse ritmo, essa descida de palavras, de versos que se unem um ao outro, numa paisagem, numa caminhada, numa sucessão quase mozartiana, uma atrás da outra, uma imagem atrás da outra, fluindo, até concluir, e sai só quando desperta, mas quase se perde seguindo seus versos. Canto novo foi a obra que definitivamente confirma o valor de d’Annunzio, foi a obra que o consagrou poeta, que fez com que ele se sentisse o intérprete de toda a espiritualidade de então. Em 1882, d’Annunzio publicou um conjunto de novelas, de cantos, que tem o nome de Terra vergine. Esses cantos em prosa são cantos que falam de paisagens, de tradições, de mitos, de figuras, de amores, de tragédias de sua terra natal, Abruzzi, primitiva, arcaica, cheia ainda de mitologia, de superstições, forte, mas bruta, ao mesmo tempo generosa, rústica; é um mundo de sombra, um primórdio de paixões, de grande amor e de grande ódio, em suma, ele vê em Abruzzi algo que o toca de perto. Então, também aqui, uma notável afirmação da personalidade de d’Annunzio. Mas depois de 1883, depois desse primeiro desabafo sensual, vibrativo, vibrante como uma corda tocada pelos sons, depois desse seu palpitar diante das impressões da natureza, do passado, das coisas, das Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos relíquias, depois de tudo isso, une a vida ao homem físico, ao homem como sensibilidade, como tato, como olho, ouvido, nariz, olfato. Em suma, essa manifestação naturalista de d’Annunzio irracional, cheio de um fascínio extraordinário, porque tudo nele vibra com a natureza, é poesia de olfato, de ouvido, em que se reflete todo o encanto da natureza. Depois de tudo isso, d’Annunzio se sente como cansado, sente-se insatisfeito, sente que isso é pouco, que afinal de contas será um parêntese da vida esse hino à vida, que a finalidade da vida, a teologia da vida não é um hino ao prazer; ele sente que surge uma crise pela qual ele deve empenhar também sua capacidade de poeta, em cantar ideais mais construtivos, mais humanos, mais puros, mais íntimos. Há uma fase de melancolia, de languidez, de cansaço, há uma tentativa de renúncia, há um anseio de purificação. D’Annunzio gostaria de empenhar a sua vitalidade num sentido moral, pragmático, humano. Ele então começa a ler escritores, a sentir exigências novas ao ler escritores novos. Dois russos exercem influência sobre ele: Dostoievski e Tolstoi. Essas obras criam nele um desejo novo de religiosidade, de humanidade, de preocupação, então ele começa a escrever as obras do segundo período. D’Annunzio não chega a levar esse seu anseio num plano religioso, ele não alcança verdadeiramente superar seu sensualismo, ele está fatalmente ligado a essa mensagem sensual; nunca ele se liberta do que ele foi em Canto novo; por isso, não há neste segundo período da produção literária de d’Annunzio uma mensagem nova, uma crise espiritual verdadeira, uma afirmação religiosa, um idealismo humano. Há só uma procura, uma análise, e essa procura e análise e insatisfação, que nascem de uma ansiedade interior, tudo isso não vai além de um estetismo. Que quer dizer? Que todas as aspirações se realizam no desejo de ser um escritor do amor, ou como literatura, ou pela literatura. Amando a bonita linguagem, a expressão, os livros raros, as posições singulares, em suma, tornar-se um literato aristocrático, tipo alexandrino. O homem que representa isso é o protagonista do romance Il piacere: Andreas Pirelli, que é a autobiografia de d’Annunzio. Esse homem declara que sua cidade é Roma, que seu mundo é o livro, com este cansaço, com este prazer e desejo de sair do prazer, essa ilusão de humanidade, de bondade, de dostoievskismo e de tolstoísmo, fica num plano de estetismo sem solução. São páginas maravilhosas, porque a expressão que usa d’Annunzio na prosa é a expressão de um sol caindo, de langor, de cansaço, bonito, flébil, baixo, correndo, analisando essa situação de anseio, em umbra, luminoso, consciente, é um falar em bemol, tão 311 312 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos limpo, em baixo tom de fluido, períodos languíssimos, cai-se dentro daquilo e esquece-se toda a vida, inebriando-se naquela. É o langor de uma agonia com prazer, não com desespero. Não há nada de tragédia e resolução em d’Annunzio, e também esse som não é metastasismo. É a mesma coisa em todas as poesias desse período, sobretudo em Elegie romane. La pioggia nel pineto, de d’Annunzio, com tradução e comentário de Bruno Enei La pioggia nel pineto Taci. Su le soglie del bosco non odo parole che dici umane; ma odo parole più nuove che parlano gocciole e foglie lontane. Ascolta. Piove dalle nuvole sparse. Piove su le tamerici salmastre ed arse, piove su i pini scagliosi ed irti, piove su i mirti divini, su le ginestre fulgenti di fiori accolti, su i ginepri folti di coccole aulenti, piove su i nostri volti silvani, piove su le nostre mani ignude, su i nostri vestimenti leggieri, su i freschi pensieri Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos che l’anima schiude novella, su la favola bella che ieri t’illuse, che oggi m’illude, o Ermione. Odi? La pioggia cade su la solitaria verdura con un crepitio che dura e varia nell’aria secondo le fronde più rade, men rade. Ascolta. Risponde al pianto il canto delle cicale che il pianto australe non impaura, né il ciel cinerino. E il pino ha un suono, e il mirto altro suono, e il ginepro altro ancora, stromenti diversi sotto innumerevoli dita. E immersi noi siam nello spirto silvestre, d’arborea vita viventi; e il tuo volto ebro è molle di pioggia come una foglia, e le tue chiome auliscono come le chiare ginestre, o creatura terrestre che hai nome Ermione. Ascolta, ascolta. L’accordo delle aeree cicale 313 314 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a poco a poco più sordo si fa sotto il pianto che cresce; ma un canto vi si mesce più roco che di laggiù sale, dall’umida ombra remota. Più sordo e più fioco s’allenta, si spegne. Sola una nota ancor trema, si spegne, risorge, trema, si spegne. Non s’ode voce del mare. Or s’ode su tutta la fronda crosciare l’argentea pioggia che monda, il croscio che varia secondo la fronda più folta, men folta. Ascolta. La figlia dell’aria è muta; ma la figlia del limo lontana, la rana, canta nell’ombra più fonda, chi sa dove, chi sa dove! E piove su le tue ciglia, Ermione. Piove su le tue ciglia nere sì che par tu pianga ma di piacere; non bianca ma quasi fatta virente, par da scorza tu esca. E tutta la vita è in noi fresca aulente, il cuor nel petto è come pesca intatta, tra le pàlpebre gli occhi Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos son come polle tra l’erbe, i denti negli alvèoli son come mandorle acerbe. E andiam di fratta in fratta, or congiunti or disciolti (e il verde vigor rude ci allaccia i mallèoli c’intrica i ginocchi) chi sa dove, chi sa dove! E piove su i nostri volti silvani, piove su le nostre mani ignude, su i nostri vestimenti leggieri, su i freschi pensieri che l’anima schiude novella, su la favola bella che ieri m’illuse, che oggi t’illude, o Ermione. A chuva no pinheiral Cala. Sobre os limiares do bosque não ouço palavras que (se) diga humanas; mas ouço palavras mais estranhas (alheias) que dizem as gotas e as folhas distantes. Escuta. Chove das nuvens esparsas. Chove sobre as tamargueiras salobras e secas, chove sobre os pinheiros escamosos e hirtos, chove sobre os mirtos 315 316 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos divinos, sobre as giestas fulgentes de flores agrupadas, sobre as genebras espessas de bolinhas perfumadas, chove sobre os nossos rostos silvestres, chove sobre as nossas mãos despidas, sobre as nossas vestimentas leves, sobre os pensamentos juvenis que a alma brota regenerada, sobre a ilusão bonita que ontem te iludiu, que hoje me ilude, ó Ermione. Ouves? A chuva cai sobre a solitária relva com uma crepitação que resiste e se modifica no ar conforme as folhas mais escassas, ou menos escassas. Escuta. Responde ao pranto o canto das cigarras que o pranto austral não amedronta, nem o céu cinzento. E o pinheiro tem um som, e o mirto outro som, e a genebra outro ainda, instrumentos diversos sob inumeráveis dedos. E mergulhados nós estamos no espírito silvestre, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos vivendo vida (igual às) árvores; e o teu vulto transfigurado está molhado da chuva como uma folha, e os teus cabelos resplandecem como as claras giestas, ó criatura terrestre que tens o nome Ermione. Escuta, escuta. O acordo das cigarras aéreas pouco a pouco mais surdo se torna sob o pranto que cresce; mas um canto a esse se mescla mais rouco que de lá sobe, da úmida sombra longínqua. Mais surdo e mais apagado afrouxa-se, apaga-se. Só uma nota ainda treme, apaga-se, ressurge, treme, apaga-se. Não se ouve a voz do mar. Agora se ouve sobre todas as folhas desabar a chuva argêntea que purifica, o estampido que varia segundo (conforme) a folha mais densa, menos densa. Escuta. A filha do ar está muda; mas a filha do lodo longínqua, a rã, canta na sombra mais funda, quem sabe onde, quem sabe onde! 317 318 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E chove sobre tuas sobrancelhas Ermione. Chove sobre teus cílios escuros que parece tu chorares mas de prazer; não branca mas quase feita verdejante, pareces da casca tu saíres. E toda a vida é em nós fresco fragrante, o coração no peito é como pesca virgem (não colhida) entre as pálpebras os olhos são como nascentes entre a relva, os dentes nos alvéolos são como amêndoas azedas. E andamos de bosque em bosque, ou juntos ou soltos (e o verde vigor rude nos enleia os tornozelos nos emaranha os joelhos) quem sabe onde, quem sabe onde! E chove sobre os nossos vultos silvestres, chove sobre as nossas mãos despidas, sobre as nossas vestimentas leves, sobre os pensamentos juvenis que a alma brota regenerada, sobre a ilusão bonita que ontem me iludia, que hoje te ilude, ó Ermione. Análise de La pioggia nel pineto D’Annunzio é um sensitivo, um sensual, um lânguido, um mórbido. Sentia todos os momentos de sua vida. Vivia todos os instantes de sua vida e deixava que a natureza agisse sobre ele, física e espiritualmente. É a última expressão de uma atitude sensualista, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de um apego físico otimístico que mais tarde desaparece na literatura europeia. Mesmo com seu conhecimento melancólico da fugacidade do tempo, consumindo nossas forças, mesmo com seu conhecimento da incerteza e contingência dos prazeres, mesmo idealizando a sensualidade, a filosofia, o romântico, o amor, ele é a expressão mais otimista, melodiosa, inebriante de uma imersão no momento, na vida, na existência, no átimo. Para ele a arte é a continuação de uma atitude na vida, que é atuação, sensibilidade, prazer, panglossianismo, cantados em sua poesia. E para provar essa sua atitude existencialista de felicidade, de paganismo, basta ver sua vida cheia de heroísmo, de amor, a ebriedade, a felicidade com que gozou seus anos de vida. Há em d’Annunzio esse paganismo sensual, irracionalista, que quer transformar, renovar, tanto no heroísmo, no amor, na cultura, na música, na poesia. Tudo consiste numa realização da própria subjetividade, do próprio eu irracional. É um dos aspectos do Decadentismo. La pioggia nel pineto: chove lá fora. Chove sobre a paisagem e sobre a alma de d’Annunzio. Não é uma chuva triste, cinzenta, prenunciada por raios e trovões, assustadora, não é um temporal que confrange o coração e abate a natureza. É em vez uma chuva brilhante, prata líquida, alegre, que cobre tudo de prata líquida, é uma chuva de verão, esperada e recebida com prazer pela natureza e pelos homens. É uma chuva tão penetrante e renovadora que molha até os pensamentos e lava as ilusões humanas. A chuva é um outro aspecto da vida, o de renovação. Assim que penetra nos limiares do bosque, é como se o véu da fantasia e dos sonhos se erguesse diante dele, pois ele entrou no bosque das ilusões com sua Ermione. E chove. E a chuva faz com que o poeta e Ermione se confundam com a selva, participando da alma do bosque que haure e absorve os brilhantes líquidos que as nuvens esparsas cascateiam sobre eles. Ela os torna estáticos e transfigura Ermione, transfigura sua vida humana como em êxtase. O único contato de d’Annunzio espiritual com ela são as palavras: odi, taci, ascolta. Depois só o contacto físico, natural, como das plantas. Aí é que começam a entender o cicio das folhas e plantas. E a chuva cai. Não só sobre as plantas secas e hirtas, mas também sobre as flores bonitas, também sobre dois seres humanos que quase não o são mais, também sobre seus pensamentos silvestres. E essa chuva de verão é forte, revigorante, regenerante. Tudo rejuvenesce, até a alma. D’Annunzio imagina uma paisagem de verão, sob a chuva, um bosque em que todos os seres tomam par, e nessa dança da chuva, as folhas e as plantas emitem sons diversos, tocadas por dedos infinitos. D’Annunzio é tão sensual que quer transformar-se também 319 320 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos em ser silvestre para poder, não pensando, apenas sentir o cair das gotas da chuva sobre si. E seu solilóquio é apenas respondido por uma voz não humana. E a chuva, que era fina e rara ao penetrarem no bosque, aumenta e, soberana, faz calar os súditos aéreos, e só a rã interfere na sua melodia. Não há sílabas pesadas na poesia. É tudo leve, flagrante, imaterial, é uma sinfonia silvestre. Há uma continuidade de cenas, uma variedade de motivos, um eterno movimento cadenciado pela chuva, emoldurado pela chuva. D’Annunzio, apaixonado, ouve o cantar das plantas. À sua passagem e aos seus ouvidos até os sons da rã e da cigarra se transformam em música. Ele e Ermione não falam, mergulhados no espírito silvestre, vivendo a vida verde do pinheiral. Não há passado nem futuro, apenas o presente com a chuva. D’Annunzio para de pensar, esquece seus problemas espirituais, para sentir apenas, só sentindo as emoções físicas e espirituais da chuva. Esta poesia possui uma beleza que está toda na vaga, na torrente musical que segue os movimentos das frondes e o murmurar das gotas na floresta. Das gotas raras, das nuvens soltas e dispersas. E há um avançar contínuo da chuva e dos dois amantes no pinheiral. Há um eterno trio: a água, a floresta e os dois seres humanos. A chuva se torna mais viva, grossa, densa, crepitando sobre as plantas e delas extraindo uma maravilhosa e variada sinfonia. É um gozar silencioso da natureza, com o pranto que vem do alto. Emudecem as vozes do bosque e seus rumores, emudece o mar para ouvir o murmúrio fluente do pranto festivo de verão. E ambos, passeando pelas veredas do pinheiral gotejante e fragrante, ora enlaçados ora apartados, identificam-se com a natureza virente e esqueceriam o seu estado humano para inebriar-se na alma do bosque, não fosse o pensamento rápido a sutilmente picá-los de que seu amor não durará para sempre. O valor desta poesia está todo no ritmo, na musicalidade das palavras, como a chuva, que adquirem um valor, uma sensibilidade e se tornam quase vibrações naturalísticas. Para d’Annunzio, as sílabas, além do significado ideal, têm uma virtude sugestiva e comovida (agitada) nos seus sons compostos. Diz adiante que, na língua italiana, os escritores têm elementos musicais tão variados e tão eficazes para poder competir com a grande orquestra wagneriana no sugerir o que somente a música pode sugerir à alma moderna. E por tanger a poesia com sua vitalidade, deve vencer também as construções de palavras quais arabescos sonoros, como se fossem objetos, animais e mulheres. Na sua arte mais humana, d’Annunzio Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos destrói e dispersa também o perigo do som que agrada como uma seiva ou um contato: nasce assim a música individual da La pioggia nel pineto. Sua música é uma harmonia sabedora de uma consciência terrestre, mas quer ser temporal e fugitiva. Música do momento, da sensação solitária, do puro fenômeno, não em razão de uma harmonia universal humanamente medida em números, da qual tome significado e à qual por sua vez não outorga. O seu tempo é uma série de instantes iluminados, não quer ser o curso do tempo. A sua poesia é a transposição artística da física, não da História. Sua capacidade está toda no consumir o terrestre da memória: em purificá-la do peso do tempo; e a profundeza do tom estará na mais alta moral com que esta destruição e libertação do objeto estará acabada. Para ele a vida é sentido, “una sostanza buona da fiutare, da palpare, da mangiare”.109 E inicia descrevendo as palavras estranhas que dizem as gotinhas e folhas longínquas, fala da chuva que cai sobre as tamargueiras verdes mas secas, sobre os pinheiros escamosos, sobre os mirtos sagrados de Vênus, sobre as giestas em ramalhetes, sobre as genebras perfumadas como os cabelos de Ermione, sobre seus vultos silvestres (como as árvores da floresta: são da mesma substância silvestre, pois do começo ao fim o poeta esquece as palavras humanas). Mesmo não falando, ambos sentem a chuva sobre seus pensamentos frescos que desabrocham da alma deles, sentindo a frescura daquela chuva revigoradora, como a sente a alma regenerada. E o crepitar da chuva é cadenciado e modificado no ar pelas folhas mais densas ou menos densas. E as cigarras, indiferentes ao pranto austral, cantam, acompanhadas pelos instrumentos agrestes tocados por dedos inumeráveis. E vivem a vida das árvores, imersos no espírito da selva, e o vulto de Ermione foi transfigurado pela chuva como a folha prateada. Mas aos poucos ensurdecem as cigarras, e agora um novo canto une-se ao da chuva. O canto das filhas do ar é substituído pelo canto da filha do úmido: a rã. E ainda uma gota como em Gonçalves Dias: “a folha luzente do orvalho nitente a gota retrai: vacila, palpita; mais grossa, hesita, e treme e cai”. E a chuva de pequeninos brilhantes pingos se transforma em grossas gotas de prata e não se sabe onde canta a rã. E a chuva sobre os cílios de Ermione parecem gotas de alegria, e ela parece quase verde sob as vestes molhadas; torna-se fragrante a vida e as três comparações entre a pesca, as nascentes e as amêndoas, essa naturalização do humano: o coração, os olhos e os dentes. E eles, como a rã, estão quem sabe onde na floresta, perdidos, emaranhados 109 “uma substância boa de cheirar, de apalpar, de comer.” 321 322 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos pelas veredas rudes, caminhando ao longo de suas ilusões molhadas, unidos pela sua mútua paixão, que apenas os ilude, mas que não mais os iludirá. Há nesta poesia a absorção da natureza sobre o homem. A negação do homem que se confunde com a natureza e se torna uma vibração dela. É perigosa, cheia de morbosidade, de uma vibração excessivamente física, mas de uma eficácia extraordinária, lembrando no campo da música um grande artista que também soube, na velocidade de notas e cores, colher os elementos da natureza, valorizando-a sem preocupar-se com as reações humanas, que é Debussy. Não há problema espiritual, é uma transfiguração do imediato, da sensação do instante. A LITERATURA ITALIANA APÓS D’ANNUNZIO Uma afirmação como esta naturalmente significa que d’Annunzio representa o cume, o ponto final de uma orientação, de uma atitude, de uma forma de poesia. Embora d’Annunzio seja originalíssimo, novíssimo, personalíssimo, há porém muitas restrições para se fazer, querendo colocá-lo no plano de uma literatura contemporânea. Deve-se dizer que a literatura italiana com Carducci, com Pascoli e com d’Annunzio conclui um período. Deve-se também dizer, então, que é depois de Carducci, Pascoli e d’Annunzio que se pode verdadeiramente pesquisar, analisar, estudar todo um período de obras poéticas e de prosa, de ensaios, de viagens, para poder aí encontrar o que de novo se vai apresentando na história da literatura italiana. Se a gente procurar então nesse fundo, nesses últimos anos de d’Annunzio, se a gente procurar lá, vê-se que há endereços novos, exigências novas, atitudes novas, linguagem completamente nova, há toda uma polêmica, uma surda polêmica no sentido de renovar a literatura italiana, tirando-se dos esquemas da poesia heroica de Carducci, procurando desenvolver certos aspectos da poesia de Pascoli e aproveitando certas sugestões da poesia de d’Annunzio. Esse movimento aí, velho e novo, de um velho que vai decaindo e de um novo que ainda não se afirma, esse movimento se deve chamar como de transição na literatura italiana; é o momento Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos do adeus, do destaque num sentido de conteúdo e num sentido de expressão de linguagem. Como sempre, não podemos dizer que a poesia contemporânea italiana surge de um momento para o outro. É evidente que essa nova literatura italiana, ao seu início, se apresenta com caráter, sugestões, imitações dos maiores poetas, os mais recentes, assim como é evidente que, justamente por uma leitura mais tardia e mais consciente, a gente pode ver como, embora haja sugestões, imitações, há porém algo que distingue essa literatura e que esse algo que distingue uma literatura nova da velha, com o andar dos anos, estará sempre tornando-se mais consciente, tomando forma definitiva. Vamos ver, por exemplo: podia a literatura italiana contemporânea esquecer completamente d’Annunzio? Podia esquecer completamente Pascoli? Carducci? Não. Não poderia. Em nenhum país ou lugar é possível abandonar o passado definitivamente, pelo menos nos primeiros passos. O que deve a literatura italiana a Carducci? Ele, nos seus últimos anos, no seu último volume de poesias Rime e ritmi, revela uma atitude que não é comum na sua poesia anterior. É de sentimentalismo, de preocupação, de angústia humana. Carducci de Rime e ritmi, embora seja um poeta estandartizado, mostra no seu íntimo o anseio por uma outra poesia. O Carducci de Rime e ritmi estava saturado de cantar heróis, de cantar a pátria, de exaltar grandes movimentos de luta na História. Parece que ele se dobra mais em si como homem, como indivíduo. Há um certo pessimismo na poesia de Carducci velho, e essa poesia triste é ainda mais significativa justamente porque quem a exprime é um velho, um homem de experiência, de glória, este velho que o mundo vai acordando e que percebe que, além da pátria, há em nosso íntimo algo que não se satisfaz completamente com esses mitos. Então a poesia contemporânea deverá muito a esse Carducci angustiado e imenso dos últimos tempos. Por isso se explica que na literatura contemporânea há escritores que devem tudo a Carducci, para não citar Bartolini110 e Papini, que se conservam exclusivamente ligados a Carducci. Então, em Carducci, do qual a literatura contemporânea italiana quer afastar-se e que, ao mesmo tempo, em vez, continua pegando dele uns aspectos que se julga merecer de continuação. A poesia de Pascoli é amarga, sentimental, decepcionada, de derrota. O Pascoli se afasta do mundo dos homens, os julga ruins, 110 Luigi Bartolini (1892-1963). 323 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 324 não por um destino, por fatalidade, mas porque eles é que são ruins e querem ser ruins. São os homens os carpidores da maldade, deste “átimo épico do mal”. Pascoli se afasta e se fecha numa sentimentalidade, numa decepção, numa procura de desvendar o mistério do mundo que lhe foge. Entretanto, além disso, Pascoli é o poeta de uma linguagem completamente nova, cheia de alegorias, de ilusões, é uma poesia muito racional, muito consciente. A poesia de Pascoli é uma em que parece que certas concepções de arte para ele não valem mais, não vale mais aquela questão de dizer que arte é fantasia, é invenção, é uma serena visão, um mundo de palavras e ritmos. Para Pascoli, a poesia é um menino que no coração vai procurando o que ele sentia quando era menino. É um procurar nesse mundo misterioso, com a voz da infância, controlando nossas sensações, é uma poesia fria, racional, consciente, clara, breve, rápida, sem desabafos, isto é, é evidente, dizendo assim, que está se pondo em evidência os caracteres da literatura contemporânea, que deve muito a Pascoli, porque é cheio, como os outros contemporâneos, de hermetismo, de racionalismo, de consciência de poeta no momento em que escreve, de um seu refletir fora e acima de fantasia, é comovido, angustiado, vigile,111 controlado. Então, Pascoli não podia morrer, ele devia ficar presente, ele tem muitas coisas a dizer a uma nova literatura. D’Annunzio é talvez o que mais está presente, embora seja o que está mais longe. Ele está mais longe de Carducci e Pascoli e, entretanto, por outros certos aspectos, é o que está mais presente na literatura contemporânea. O que cai de d’Annunzio? O gigante, o titanismo, o heroísmo, o superhomem, cai aquela retórica do indivíduo colocando-se acima dos outros, aquela retórica de indivíduo inebriando-se de ideais singulares, excessivos, grandes, essa ebriedade de d’Annunzio vai completamente caindo. Porém, no d’Annunzio de Poema paradisiaco, de Noturno, Alcyone, há também tanta melancolia, há também tanta insatisfação, há também um esforço de eliminar a palavra – tanto assim que nos últimos anos, em 1935, em Cento e cento e cento e cento pagine del libro segreto, d’Annunzio afirma coisas que parecem de hoje quando diz que na poesia possui um grande valor a pontuação, porque significa silêncio, que representa as palavras. O homem sempre honesto afirma que, se a literatura italiana devesse renovar-se, deveria renovar-se tornando-se bárbara, abandonando o helenismo, uma beleza fria, por 111 Vigilante. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos uma palavra mais espontânea, mais árida; tudo isso é evidente na poesia contemporânea, sobretudo no Hermetismo com Ungaretti e Quasimodo. Também d’Annunzio não podia ser esquecido, ele está presente na literatura contemporânea italiana. Mas não são somente estes três que renovarão a literatura. Há uma influência extraordinária solicitando a renovação. Há todo um conjunto de intuições, de anseios, de visões interiores solicitando a literatura italiana a abandonar a mentalidade do século XIX, dos ideais do Romantismo, e quem são eles? São os filósofos, são os poetas, os prosadores, uma influência dos escritores franceses sobre a literatura italiana. Nos alemães, uma grandíssima importância têm Nietzsche e Schoppenhauer. Nos franceses, Malarmé, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud. O alemão Hölderlin (Hyperion), um poeta quase como louco, cheio da possibilidade futura na Alemanha. Também um grande poeta exilado na Noruega, Kirkegaard (1813-1855), que construiu a sua fé, sua visão e convicção num plano religioso de puríssima religiosidade, considerando como uma coisa a situar-se, como presença, como existência; esse escritor é justamente o fundador de um movimento filosófico que é muito forte (1938-1945), é o fundador do Existencialismo (Sartre, Camus, franceses; Jaspers, alemão; Cantoni,112 italiano). Tudo isso transforma completamente, desorienta a alma dos italianos. Aquela alma de italianos escrevendo sobre certos ideais, certas formas, certas instituições, sobre uma certa obra especial. Surge uma poesia baseada na própria individualidade interior, no próprio sofrimento, decepção, surge uma necessidade de colher os temas da poesia na própria alma, na própria monade,113 então essa imensa revelação do conteúdo e da linguagem. Um escritor diz que “a literatura contemporânea italiana, afinal de contas, se afasta de Carducci, Pascoli e d’Annunzio e surge por eles e por todo um conjunto de obras literárias europeias, abaixando de uma oitava o tom da poesia de d’Annunzio”. Quer dizer que precisava tornar-se mais humilde, mais essencial, mais íntima. A primeira coisa que foi tentada por essa literatura eloquente foi reduzir de uma oitava o tom da poesia de d’Annunzio, que era muito otimista, precisava pôr a surdina e se tornaria mais simples, mais cheia de desconfiança e mais penetrante, mais íntima, mais imagem 112 113 Alberto Cantoni (1841-1904). Mônada. 325 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 326 de um drama interior. Toda a literatura contemporânea italiana, assim como a europeia, é uma literatura nesse sentido: sóbria, simples, sem eloquência, amarga, tudo isso reduzindo a sintaxe, suprimindo certas formas de poesia antiga, tirando, por exemplo, a métrica, abandonando o soneto, fixando a lógica, isto é, o poeta de hoje não escreve construindo uma poesia nas suas várias passagens lógicas, como Leopardi e Foscolo, que escrevem com uma lógica, construindo uma tese, demonstrando um assunto, querendo defender um ponto de vista. A poesia contemporânea não tem essa ordem, é um conjunto de imagens e não de raciocínio. A gente vê que é uma sucessão de alegorias, de imagens, uma chamando a outra. Há um frangimento114 completo da sintaxe tradicional. Aqui é o momento em que o poeta se realiza fora da lógica, é um certo modo ilógico, porque sua lógica é, em vez, a alma, o sentimento de sua amargura, que o inspira no momento e não controla esse anseio como um raciocínio à base de uma filosofia, uma reflexão abstrata, quase mais sugerindo do que demonstrando. É mais uma sugestão do que uma verdadeira exposição, não demonstrando, mas somente apresentando. Querem que o autor entre naquele complexo sentimental emotivo da poesia. O que é que cai? Justamente as ideias feitas, as convencionais, dado que existia na base de uma filosofia abstratamente otimista. Tudo isso cai. Surge a dúvida, a crise sobre a possibilidade de ter ideais, surge a impossibilidade do absoluto valor da religião, do Estado, da sociedade, da justiça. Não é verdade que há progresso na História, isso não é motivo de poesia. Toda aquela bagagem que foi da literatura romântica, que foi a época dos ideais da liberdade, da igualdade, tudo isso cai. Há uma crise sobre os valores tradicionais. E quais são os novos motivos? São a própria intimidade, as insatisfações nunca satisfeitas, são o nosso problema de viver, de existir, a nossa melancolia, não há poesia descritiva, é sempre uma pesquisa interior, uma pregação de angústia, raramente esta poesia contemporânea é expressão de otimismo, raramente há na poesia contemporânea momentos de euforia, até o sorriso é uma expressão amarga, é uma coisa que se olha com desconfiança, parece quase uma burla: será verdade? Há uma desconfiança enorme, não se acredita muito na amizade, no pudor, num programa, cada um de nós exilados, porque não há uma fé que nos enquadre, há uma procura imensa de liberdade. Todos os poetas são expressão de uma liberdade, isto é, 114 Quebra. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sonham com uma bela e nova realidade e, ao verem essa vida de todos os dias, o desgosto, essa rotina que a vida exige de cada um de nós, começam a odiá-la e sentir-se diferentes, livres, e surge um problema: que fazer com minha liberdade? Há necessidade na literatura contemporânea, há esse imenso imperativo de anexar essa liberdade vácua, pois, sem razão, não significa nada. É preciso achar uma razão de existir, nem que seja, por exemplo, morrer na Espanha, combater na China, algo que empenhe a vida, que não me deixe abstrato. Há uma procura de fé na literatura contemporânea. Está-se procurando uma poesia cética, fria, amarga, mas é amarga porque, não tendo mais confiança em nada do que foi, do que houve, está pesquisando as nossas emoções, os nossos equívocos individuais e sociais, para ver se é possível aparecer uma razão de viver. Tudo isso não havia em Pascoli, Carducci e d’Annunzio. A literatura revive completamente e sai de um plano nacional para ser uma expressão num plano mais vasto, europeu e mundial, porque a crise não é somente francesa, italiana, inglesa, alemã (Kafka), americana (Hemingway), norueguesa, etc., é universal, em todos os países, até na Rússia há essa decepção, esse empenho, e é por isso que todos eles estão assim afastados das autoridades constituídas, sentem ser odiados, sentem que não podem colaborar com a mentira. Poemas de Giuseppe Ungaretti, Guido Gozzano e Antonia Pozzi, com tradução e análise de Bruno Enei Non gridate più (Giuseppe Ungaretti, 1888-1970) Cessate di uccidere i morti, non gridate più, non gridate se li volete ancora udire, se sperate di non perire. Hanno l’impercettibile sussurro, non fanno più rumore del crescere dell’erba, lieta dove non passa l’uomo. 327 328 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Não gritai mais Cessai de matar os mortos, não gritai mais, não gritai se os quereis ainda ouvir, se esperais de não perecer. Têm o imperceptível sussurro, não fazem mais rumor do que a erva que cresce, feliz onde não passa o homem. Análise De uma delicadeza extraordinária. Trata-se do problema dos que viveram e que não vivem mais. Sobretudo dos homens que na guerra 1915-1918 morreram, matados pelos homens, diante do olhar deste poeta, que foi combatente nessa guerra, quer na Champagne, quer no dorso dos Alpes italianos. Esse homem viu essa mocidade triste, decepcionada, cheia de ideais e de anseios, cair abaixo do chumbo inútil da guerra, abaixo das chagas que a baioneta sabe abrir no coração dos moços que viveram longe das próprias famílias, das noivas, que naquele então brotava na própria alma. Depois da guerra, apesar de ter um milhão e meio de feridos, depois de uma devastação que nenhuma doença cria e que o homem com a guerra soube criar, em dezenove de dezembro de 1921, na Itália, que foi uma das nações que venceram, na França, Inglaterra, Estados Unidos e no império central da Alemanha, Áustria, Hungria, em todo esse mundo europeu havia queixas dos insatisfeitos, dos homens de governo querendo uma coisa, os derrotados não se conformando com a paz, um dizendo ter direito, em suma, continuava em certo sentido, a matar os mortos. Então o poeta grita exasperado, angustiado, ele convida os vivos a ter dó dos mortos que não precisam ser mais matados, porque já morreram. Se não gritarem em cima desses ignotos soldados, sem mais os afetos dos pais, sem luz do Sol, convida a um silêncio, se os vivos ainda acreditam que a vida ainda mereça ser vivida. Se nos homens existe ainda o pudor, que não seja melhor perire. A voz dos mortos que convida a ter confiança na vida, a voz deles é uma voz muito silenciosa, delicada, imperceptível e... [sem continuação]. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Nostalgia (Giuseppe Ungaretti) Quando la notte è a svanire poco prima di primavera e di rado qualcuno passa. Su Parigi s’addensa un oscuro colore di pianto. In un canto di ponte contemplo l’illimitato silenzio di una ragazza tenue. Le nostre malattie si fondono. E come portati via si rimane. Nostalgia Quando a noite está a se esvaecer um pouco antes da primavera e de quando em quando alguém passa. Sobre Paris se acumula uma cor obscura (como) de pranto. Em um ângulo da ponte contemplo o silêncio sem limites de uma moça delicada. 329 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 330 As nossas doenças se unem. E embora levados embora ficamos lá. Análise Esta poesia adquire um valor muito mais pictórico do que poderia ser uma poesia sobre Roma. Estas linhas tão sutis, tão delicadas, não seriam próprias para Roma. Roma é meio-dia, uma cidade abundante, generosa. Paris é aristocrática, num sentido de decadência, de dança íntima, de melancolia, de sentimentalismo. Uma mocidade febril, melancólica, de perfis. O poeta imagina um anoitecer em Paris, onde ele se formou, como Picasso; é uma cidade de uma cultura, de requinte, então parece que até a natureza de Paris se reflete no cair do Sol, quando Paris se apresenta não límpida, mas quase cinzenta, quase de chumbo. Uma neblina vai deformando as coisas, cinzenta, melancólica, triste, de sonho, de modo que as pontes, as casas se transfiguram. O poeta então saindo nesse pôrdo-sol, em que a neblina do Sena, esse rio que tem séculos de história, de tragédia, de suicídios, manda essa neblina que cria um ambiente sem fundo, sem arredores, só se vê baixo e ele vê uma mocinha de seus 18 anos, enamorada talvez, decepcionada, ansiosa, com um drama humano, uma esperança, então ela se perde, vai lá, longe, pensando, com seu rosto gentil parado, que se esfuma como a neblina. Ela talvez com seus problemas, com um momento de intimidade, que a própria noite cria na alma dela, por reflexo. Ele se vê nela e diz: as nossas duas doenças se fundem numa só, que é a da paisagem que torna Paris melancólica e nós nos olhamos fundidos numa mesma doença e nos sentimos levados embora sonhando. Cada um por si, quem sabe onde pensam de atingir, alguém, será que se realizará um ou outro, aquela moça esperando ou desiludida? Ele porque sabe a vida. São levados embora pela doença da alma. Entretanto estão parados, imóveis. Noia (Giuseppe Ungaretti) Anche questa notte passerà. Questa solitudine in giro titubante ombra dei fili tranviari Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sull’umido asfalto. Guardo le teste dei brumisti nel mezzo sonno tentennare. Tédio Também esta noite passará. Esta solidão intorno (eu vejo) titubeante sombra dos fios dos bondes sobre o úmido asfalto (que se reflete). Eu olho as cabeças dos cocheiros no meio sono balançar. L’assenza (Guido Gozzano, 1883-1916) Un bacio. Ed è lungi. Dispare giù in fondo, là dove si perde la strada boschiva che pare un gran corridoio nel verde. Risalgo qui dove dianzi vestiva il bell’abito grigio: rivedo l’uncino, i romanzi ed ogni sottile vestigio... Mi piego al balcone. Abbandono la gota sopra la ringhiera. E non sono triste. Non sono più triste. Ritorna stasera. E intorno declina l’estate. E sopra un geranio vermiglio, fremendo le ali caudate si libra un enorme Papilio... L’azzurro infinito del giorno è come una seta ben tesa; ma sulla serena distesa la luna già pensa al ritorno. 331 332 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Lo stagno risplende. Si tace la rana. Ma guizza un bagliore d’acceso smeraldo, di brace azzurra: il martin pescatore... E non son triste. Ma sono stupito se guardo il giardino... stupito di che? Non mi sono sentito mai tanto bambino... Stupito di che? Delle cose. I fiori mi paiono strani: ci sono pur sempre le rose, ci sono pur sempre i gerani... A ausência Um beijo. E já está longe. Desaparece já lá embaixo, lá onde se perde a estrada bosquiva que parece um grande corredor no verde. Subo aqui onde um pouco antes ela vestia o seu belo traje cinzento: [E tudo me fala dela]. revejo a agulha, os romances e todos os sutis vestígios dela... Debruço-me sob o balcão. Abandono agora o rosto sobre o parapeito (numa atitude de melancolia). E não estou triste. Não estou mais triste. Retorna esta noite. E em volta declina o verão. E sobre um gerânio vermelho fremindo as suas asas pintadas se equilibra uma enorme borboleta... O azul infinito do dia é como uma seda bem esticada; mas na serena extensão da tela a Lua já pensa ao seu retorno. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O banhado resplandece. A rã se cala. Mas (neste momento) pula um lusco-fusco de uma acesa esmeralda, de braços azuis: o martim-pescador... E não estou triste. Mas estou surpreso olhando o jardim... surpreso do quê? Nunca me senti tão criança... Admirado de quê? Das coisas. As flores me parecem estranhas: há ainda sempre rosas, há apesar de tudo sempre gerânios... (Apesar das tristezas e da melancolia da vida).115 Pudore (Antonia Pozzi, 1912-1938)116 Se qualcuna delle mie parole ti piace e tu me lo dici sia pur solo con gli occhi io mi spalanco in un riso beato ma tremo come una mamma piccola giovane che perfino arrossisce se un passante le dice che il suo bambino è bello. Análise Um mãe moça que ouvisse um passante na rua e estivesse com seu menininho e alguém dissesse que bonito, ela ficaria quase vermelha de pudor. E assim é ela. Se você elogia meus versos, minhas palavras, Entre parênteses, comentários do professor Bruno enquanto fazia a tradução do poema. 116 Se alguma das minhas palavras / te agrada / e tu mo dizes / mesmo que seja somente com os olhos / eu me escancaro / em um riso beato / mas tremo / como uma pequena jovem mãe / que até mesmo enrubesce / se um passante lhe diz / que seu filho é belo. 115 333 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 334 isso me dá um prazer imenso, eu me abro toda de felicidade e logo depois me sinto triste, não gosto de ser bajulada. É a poesia mesmo. Não diga nada. Ouça só. É de uma feminilidade extraordinária. Chega quase a uma conclusão, que diante da poesia, não há explicação, comentário. Há uma atitude quase mística, silenciosa. É bonito numa moça como essa, falando de poesia e sendo moça.117 Nas aulas seguintes ainda foram analisados os seguintes poemas: Fra terra ed astri, de Domenico Gnoli (1838-1915); Io ti voglio fabbricare un capanno, de Angiolo Silvio Novaro (1866-1938); La Sagra di Santa Gorizia (trecho), de Vittorio Locchi (1889-1917); Che è che vaga nell’aria?, de Marino Moretti (1885-1979); La caccia all’usignolo, de Corrado Govoni (1884-1965); e Lo sconosciuto, de Aldo Palazzeschi (1885-1974). 117 ESCRITOS DE BRUNO ENEI Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Personagens dantescas Justiniano118 Bruno Enei Palcos de personagens, então, e púlpitos de poesia. Para Justiniano também e para seu hino, que alto se derrama do Céu de Mercúrio, para descer eterno na poesia, para se abaixar entre os homens na ... aiuola che ci fa tanto feroci como uma exortação e um ideal que as lutas lutadas e os antagonismos inconciliáveis nunca, porém, saberão completamente sufocar, justamente porque exortação e ideal de todos os tempos e de todos os homens. Aqui, neste apego à realidade e à vida, neste permanecer sempre dentro da história, neste inserir-se no dever ser, aqui se vê outro aspecto da grandeza e vitalidade da poesia de Dante. O Poeta mais sublimemente visionário é também o mais sã e coerentemente concreto e positivo. Nunca ele fala a esmo; nunca sua página fica avulsa e centrífuga. Há, no seu Poema, uma simetria que sempre o sustenta, uma construção que nunca se enfraquece, uma razão poética que a cada passo enlaça, torna a chamar, unifica. Neste sentido, a documentação é interminável: os círculos, as molduras e os Céus, a dor, a esperança e a felicidade; a treva, a aurora e o dia; o corpo, a sombra e a alma; a imprecação, a bênção e a contemplação; a Justiça, a Misericórdia e o Amor; a realidade, a lembrança e o futuro; as cantigas, o canto e o terceto. Mesma coisa para o contrapasso e os temas de poesia. Vejamos, por exemplo, o canto de Justiniano. Também como colocação, ele lembra o sexto do Inferno e o sexto do Purgatório. Deles, é, antes, a continuação ideal e a definitiva conclusão. No VI do Inferno, um Florentino, Ciacco, fala das ruínas de Florença; no sexto do Purgatório, o encontro dos dois Do ponto de vista das normas ortográficas, o texto relativo às aulas de Bruno Enei, como pôde ser observado, segue a reforma ortográfica que entrou em vigor no início de 2009. Assim, para efeito de clareza, coerência e uniformidade, todos os textos constantes nos três títulos que se seguem − “Escritos de Bruno Enei”, “Pronunciamentos de Bruno Enei” e “Escritos sobre Bruno Enei” −, que reuniam diferentes ortografias, também foram adaptados. 118 337 338 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos lombardos, Sordello e Virgilio, determina a invetiva à Itália; no sexto do Paraíso, Justiniano celebra o Império. Nos três cantos, então, o tema é o mesmo: político. Mas no Inferno o olho não sai de Florença; no Purgatório a amargura do Poeta já percebe a unidade e a paz de um povo concorde no interno de sua nação; no Paraíso, não é mais Florença ou Itália que interessam, mas o mundo. Ciacco, Sordello, Justiniano; Florença, Itália, Universo; o município, a nação, o império. É mesmo uma trilogia, três tempos de uma sinfonia que se conclui no Céu. Se, além disso, perguntarmos o porquê do longo discurso de Justiniano, ainda mais claramente saltam aos olhos a necessidade e a legitimidade histórica do trecho. Dante pede muito pouco a Justiniano, e pede com menor calor que a Piccarda. Aqui, também, se trata de perguntas, digamos, pretextos. “Quem tu és? Por que tu moras nesse segundo grau celeste?” “... non so chi tu se’, né perché aggi, Anima degna, il grado de la spera Che si vela ai mortai con altrui raggi;” As duas perguntas ficam relegadas no fim do quinto, ao limiar do grandioso canto sexto, como as de Dante a Ugolino ficaram no fim do XXXII do Inferno, ao limiar do trágico trigésimo terceiro canto. Justiniano podia responder às pressas. Podia dizer: “Sou Justiniano. Estou aqui porque desejei a glória”. Não, a Divina Comédia não é crônica, não é apresentação ou anágrafe. A resposta de Justiniano ocupará um canto inteiro, sem pausa, sem interrupção; através de uma rapidez de voos e imagens, através de uma intensidade de cores e de sentimentos, através de uma alternativa de admiração e de penetração que, no fim, põem diante dos olhos do leitor a grandeza veneranda e poderosa da doutrina político-religiosa de Dante, o qual, na entidade imperial, funde as duas civilizações romanas: aquela pagã e guerreira de César, aquela cristã e humana de Cristo; une dois homens num só: Enéas e Paulo em si mesmo. Roma assim continua, sua civilização ressurge e torna a viver na história, o império não se esgota no sentido político e na cadeia de conquistas, porque aquela política e aquelas conquistas tinham um alvo: unir politicamente o mundo na véspera de uma nova unidade e para que fosse mesmo possível essa nova unidade. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Assim, o império formado por Justiniano parece o forte e nobre “caboclo” fazendo, com sua foice, a “picada” para a história futura, para seu continuador, para quem, superando-o, vai para frente, numa ação mais profunda e humana sim, mas impossível sem a primeira. Estes conceitos pertencem a Dante; foram sua fé, o antídoto no esforço de vencer a polêmica daquela idade tão triste, a prova da positiva assimilação em Dante das duas civilizações de Roma e do Cristianismo e, no fim, o documento mais autêntico para definirmos Dante como o primeiro e genial Poeta, que, criando nova literatura, se liga, porém, à grande da antiguidade e a continua e renova. São conceitos de Dante, mas quem os exprime, desta vez, é um imperador, um imperador em pessoa. Tem a celebração um caráter oficial. E se torna consagração; uma consagração imperial e celeste. (Gazeta do Povo, de Curitiba, 30/9/1951) A propósito de “Uma Interpretação das Américas” Bruno Enei Acabo de ler um livro que, embora cultural e espiritualmente europeu, não é, porém, paradoxal definir “americaníssimo”. Trata-se de “Uma Interpretação das Américas”, de Bento Munhoz da Rocha Netto, Editora José Olímpio, 1948; um livro que é americano pela sua teleologia e pela “europeidade”: pela aspiração profunda e quase amargurada, pelo anseio vibrante e preocupado com que o autor – olhos voltados para o mundo – padece, vive e propõe uma consciente e humana unidade das Américas; e, por outro lado, pelo senso alto e nobre da civilização europeia, de uma “europeidade” que é bem outra coisa de que “europeísmo”, justamente porque se trata de uma visão essencial, interior e “americana” da melhor Europa, da Europa não como “ser” mas como “dever ser”: uma Europa que será tal quando será “América”, a América de todos e para todos. É um livro historicamente sintomático e significativo. As gerações da primeira década do século XX, a que o autor pertence, cresceram num terreno histórico complexo e severo, durante 339 340 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos o qual os ideais de outrora desfizeram-se e corromperam-se, trazendo à superfície os mitos e os “slogans” de hoje. Nós vimos o princípio de nacionalidade transformar-se em nacionalismo, conhecemos os sobreviventes das trincheiras cinzentas e obsessionantes de 1918, o enroscar-se desesperado e violento do Estado em torno do nazismo e do fascismo da trágica guerra de 1939. Assistimos agora, aliás, feita de provocações, de nervos, de pancadas e réplicas –, com que os dois povos-guias e seus respectivos satélites – ora relutantes e ora resolutos – procuram friamente convencer-se da necessidade de um terceiro e atômico choque. Rimos, afinal, pouco e padecemos muito mais; muito mais quer pelas causas econômico-sociais que determinaram a atual situação e quer outrossim – e talvez mais – pelo idealismo emotivo de nossa mocidade e educação, que não sabe explicar tantas crueldades e animalidades, já acontecidas e perfiladas no horizonte, em que devagar parecem tramontar as belas estrelas de primeira grandeza de tanta espiritualidade dos séculos idos. Daí a capacidade verdadeiramente particular com que sabe o autor colher e individuar o que há de traído e de decadente nas coisas da Europa, daí a firmeza no frisar o que de melhor naquela civilização, no intuir os perigos do americanismo (como, em geral, de todos os “ismos”) e em discriminar as peculiaridades físico-humanas dos povos europeus, quer do grupo latino, quer do anglo-saxônico. Daí o horror do autor pela guerra, o temor de que se crie uma mentalidade de violência, de imposição e de “quantidade”. Daí o frequente recurso aos grandes valores da comum civilização e do inesgotável cristianismo. Daí o apelo vibrante e sincero para uma “unidade”, para uma irmandade espiritual e ideal das Américas, baseada sobre os alicerces duma cultura, cujos imperativos valem universalmente. Daí, enfim, o tom, a seriedade, a espontaneidade vivida, a religiosidade pensativa e persuasiva deste livro que, longe de ser a aula de um ilustre sociólogo, ou a doutrina de um político de renome, se torna a expressão de longo solilóquio, o credo de um homem e a declaração de fé de um “americano”, do americano de amanhã, que nada mais deveria ser senão “o bom europeu destas alturas do século XX”. Quem meditou sobre as ruínas, sobre as causas e mesmo sobre a “forma mentis” da última guerra sente que os problemas, mais que resolvidos, foram exasperados e adiados. Sente, sobretudo, que falta no mundo contemporâneo uma força mediadora entre tese e antítese. Estão cansados os europeus. A Rússia e os Estados Unidos são frequentemente unilaterais. Uma verdadeira universalidade que resolve, além e acima do egoísmo e do “particolare”, como teria dito Machiavelli, não pode Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos surgir senão pelo retorno afetuoso e cordial aos padrões ideológicos e éticos da civilização europeia, entendido esse adjetivo não tanto em sua acepção geográfico-fisiológica, quanto na filosófico-religiosa. Estamos numa volta da história. Chegou a hora das Américas, ou, melhor, da América; da América europeia na sua origem inglesa, europeia na sua origem latina. Trata-se de criar nova realidade, que, pela dinâmica das ideias, embora ligada a uma série de princípios europeus, não será nem inglesa nem latina, porque deverá ser, só tem razão de ser, se for “americana”. Isso não esquecendo, entretanto, que “sem a cultura europeia, a América seria tudo menos América”, como afirma o autor, auspiciando uma América-civilização ou uma civilização americana em que Canadá, Brasil e os demais países além e aquém do Rio Grande não sejam pedaços e aglomerados, mas sim expressões de humanidade de um sentir não fechado mas aberto, não hierárquico mas igual, não político mas espiritual, pronto a tornar-se nota e coro de todos, numa ressurreição de valores, de fé, de ética e de solidariedade em que a sociologia e a economia, e seus múltiplos aspectos de capitalismo, nacionalismo e proletarismo, seriam parte e não todo. A história aguarda, então, uma dúplice missão das Américas: o amálgama espiritual de seus povos internamente, e um programa de civilização para todos: uma e outra coisa evitando a tentação da força, retomando e desenvolvendo o que de melhor e de eterno souberam formular e alcançar o pensamento e a alma europeia a respeito do homem, da sociedade, dos deveres, dos direitos e de sua personalidade que é outra que não o individualismo. Há uma terra de ninguém entre o leste e o oeste, entre Estados Unidos e Rússia. Cabe à América ocupá-la, à América sem demarcação, sem a linha Rio Grande. Sua parte meridional, revendo, retemperando e dinamizando o seu metafismo apaixonado e intransigente, e o Norte, espiritualizando, essencializando e religiocizando o seu relativismo hedonístico, e às vezes confiado, acharão os alicerces de uma civilização viva, de uma razão de vida verdadeiramente histórica, de uma missão universal que a humanidade vai procurando, e que espera e faz votos de achar neste nosso continente, sendo ele, desde então, muito mais do que uma mítica Atlântida dourada de povos cansados e o refúgio dos que conheceram a tempestade, o cadinho silencioso e fatal, transformando, fundindo, irmanando – no trabalho, na serenidade e na fé – qualquer e todos que aqui aportaram, talvez ignaros de que aquela “Provvidenza Storica” de G. B. Vico, aqui mesmo vai levando povos e costumes e experiências para essa civilização de amanhã. Esta, em geral, a tese do livro. 341 342 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Um exame mais minucioso das passagens e do conteúdo de suas páginas nos poria diante de um conjunto de problemas e de concepções particulares, que o autor afirma e desenvolve com lúcida segurança e concreta visão, dando a essa obra uma razão de ser transcendente ao puro e simples cientifismo, levantando-a, assim, e isolando-a numa esfera superior. Não é por isso absolutamente indispensável neste momento demorar-se sobre conceitos particulares. Com esses, aliás, se torna também difícil não concordar quando se crê nos valores do espírito e do “humus” ético-humano da cultura europeia. O que sobretudo prende é o particular estado de alma movendo o livro e transformando-o numa admoestação e num apelo, em torno do que a íntima exigência religiosa, a visão ética e humana dos problemas e a superior concepção de uma democracia em função qualitativa e universal, criam uma atmosfera de inspiração ideal e de nobreza. E é também um livro corajoso, quer pela franqueza com que define os limites e as deformações da civilização europeia e de seus povos, e ainda pelo temor com que o ânimo segue a ascensão histórica dos Estados Unidos, que o autor quer não tanto “Potência” quanto Ente de civilização, de progresso e de história. Acolá, no alto das Américas, os Estados Unidos; aqui, no baixo das Américas, o Brasil: duas federações na hora da “universalidade”, as quais parecem “as pessoas” a quem a História quer confiar, e está sempre mais claramente confiando a missão de formular – nos pressupostos da melhor Europa – o evangelho civil e democrático de uma melhor humanidade. Há, pois, muito a fazer! No terreno da cultura, da indústria, da agricultura, das ciências, do trabalho, das relações entre os povos. Tudo está aí para ser construído, com o olhar para o futuro, cada um se tornando cada vez mais americano, individualmente e cotidianamente. Quem está enamorado não espera que os outros se enamorem. Deveria ser, sobretudo no Brasil, uma contenda sobre um plano de solidariedade, de colaboração, de liberdade em que o ponto de chegada seria a perda do individualismo de cada um e a aquisição da personalidade de todos. Centros de cultura, intercâmbios, congressos... Isso tudo é sugerido pelo livro de Bento Munhoz da Rocha. É seu aspecto prático, a aplicação. Quisemos aludir a isso a fim de que, na sua atualidade e realização, se sinta quanto esse livro se torna uma singular contribuição no momento difícil de nossa vida contemporânea, sendo justamente uma crítica, uma proposta e uma interpretação das coisas de nossa idade, que a documentação bibliográfica, o realismo e as citações testemunham como resultado de severa e nobre meditação. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos É uma “interpretação” enfim, que os Europeus da Europa não deveriam ignorar, assim como – embora poucos – não ignoramos e soubemos compreender – no imediato anteguerra de 1939 – os alarmes, as interpretações e os “avertissements” de Benedetto Croce, de Adolfo Omodeo e de Thomas Mann. (Gazeta do Povo, de Curitiba, 23/3/1952) Leonardo da Vinci Bruno Enei Com particulares solenidades e festejos, a Itália, a França, a Inglaterra, a América do Norte e do Sul, celebraram ontem, 15 de abril, o quinto centenário do nascimento de Leonardo da Vinci. No Rio de Janeiro a comemoração foi feita pelo mesmo Governo, e, na Capital do Paraná, foi ela patrocinada pelo Secretário da Educação do Estado, Dr. Newton Carneiro. Os meios intelectuais do mundo, pois, foram mobilizados por esse acontecimento. Não é fácil dizer brevemente quem foi, quem é Leonardo; que representou e que representa ele hoje para nossa sensibilidade moderna. Precisar-nos-ia evocar a idade, o ambiente literário, artístico e científico que ele direta ou indiretamente viveu, lembrando os pintores, os escultores, os arquitetos e poetas que, no então, em poucos decênios iluminaram Itália e Europa de pintura, de escultura, de liberdade e de objetividade, de afoiteza e de coragem, de experiências e de leis. É o tempo em que os livros se tornam a natureza dos filólogos, assim como a natureza se torna o livro dos cientistas. Tudo acaba de ser diletante, provisório, improvisado. Tudo se torna clássico. O alvo de todos é a perfeição, o absoluto. Tudo se torna ciência: de qualquer atividade e aspecto de atividade e gênero e subespécie estabelecem-se o código, as leis, os fundamentos. É o tempo em que, ademais, foi possível dar aos homens, além dos oceanos, terras desconhecidas, julgadas absolutamente inexistentes, como esta nossa América, onde agora vivemos e trabalhamos, augurando uma civilização mais serena, uma operosidade mais humana, uma educação mais vasta que não conheça as tristezas dos choques e o abatimento do rancor. Assim, teríamos uma ideia do que foi a atmosfera vigorosa e serena, confiada e heroica, indagadora e ordenadora, bela e límpida e 343 344 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos gentil de músicas, de poesias e de arte, precedendo e seguindo, entre a segunda metade do século XV e a primeira do século XVI, os anos de 1452-1519 que representam os dois pontos extremos da vida de Leonardo; deste filho genial e rebelde, sacerdote de uma religião da vida a quem nunca falhou, místico e extasiado adorador da natureza, a qual, justamente através da análise, da observação e da indagação mais minuciosa e mais teimosa, lhe se torna um templo de leis inderrogáveis, uma construção viva de conceitos e de lógica, e um edifício de harmonia. Para compreendê-lo, três aspectos de sua personalidade devem ser particularmente frisados: sua autonomia, sua ânsia do infinito, sua atitude criadora. Muitos seus admiradores, querendo louvá-lo, limitaram e alteraram a personalidade de Leonardo. Fizeram dele uma figura sublimemente fabulosa e romantesca; como, de fato, ele é, mas num plano superior e absoluto, que é aquele onde a admiração dos pósteros coloca – comovida e reverente – seus “egrégios” e protagonistas. Chamaram-no, de vez em vez, poeta, filósofo e humanista, empírico, empirista e positivista, cientista e artista. Definiram-no um “enciclopedismo”; isso pode, talvez, fazer pensar mais a uma “quantidade” do que a uma “qualidade”. A eternidade de Leonardo fica muito mais em alto de sua “poliedricidade” e do seu “enciclopedismo”, Não obstante a desmedida e assombrosa documentação de suas pesquisas, de seus interesses e de seus resultados, Leonardo não é Leonardo por um juízo de “quantidade”, Leonardo é Leonardo por uma visual de “qualidade”. Ele é uma “categoria”, um momento do nosso espírito, o da “praticidade”, o da realização, que – saindo da esfera teorética da contemplação e da especulação, desce esta contemplação a esta especulação numa realidade, numa criatura e numa criação, para, depois, como a abelha da flor à colmeia e da colmeia à flor – remontar e sublimar-se na esfera do absoluto puro e teorético. Chamá-lo “teórico altíssimo” não é, pois, tudo; assim como não é igualmente tudo chamá-lo “mago da prática”, ou seja, “sublime pintor”. O tom aristocrático e inconfundível de sua solitária personalidade está naquele recolhimento soberano e atento do sábio contemplando e seguindo o fenômeno para prender-lhe e determinar-lhe as leis, e naquela atitude maravilhada e iluminada da posse, da aplicação, da matemática certeza criativa. Para Dante saber é amar, para Leonardo saber é criar. Faltava à civilização humanístico-renascimental um gênio Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos com estas peculiaridades prometeicas. Não podia não surgir no século das descobertas, no século das navegações, da Escola de Sagres e de Colombo. Assim, Leonardo, perto da poesia grande de Ariosto e da altíssima ideologia de Machiavelli, veio completá-lo. E é mesmo por ele, por este solitário e incansável especulador e atuante, que o humanismo tem hoje uma sua historicidade e uma razão de ser além dos campos, inegavelmente sublimes, das letras e da arte e da teoria. Pensando em Leonardo, divisamos Galileu, compreendemos Alexandre Volta; pensamos numa tradição de solene e religiosa ciência; numa parábola que inicia com ele e que, irradiando e enobrecendo o homem e o mundo, se continua e se desenvolve com Pasteur, com Guglielmo Marconi, com Edison, com Fermi, com Einstein. Do “olho” de Leonardo ao átomo e à hidrogeniana linha da ciência e de suas realizações não houve interrupção de continuidade. Por isso, não é ele nem propriamente literato nem filósofo. Nada mais é a palavra nele senão aproximação e momento: uma espécie de nota para não esquecer, uma espécie de plano para construir. Sua característica é, na arte, a cor; na ciência, um instrumento: em ambos os casos, um sensível. E se ele é humanista, é-o não no sentido mais comum; mas naquele, mais vivo e mais nosso, de homem; que com a palavra-cor e com a linguagem-instrumento, nunca esqueceu a humanidade, a vida interior, a universalidade. Neste sentido ele é bem latino e moderno! Neste sentido, ele é bem nosso contemporâneo: um nobre e superior contemporâneo de quem falamos mais como falaríamos de um amigo, de uma pessoa querida e ausente (da qual não sabemos, nem podemos fazer a menos), do que de um homem que já foi. Para o mundo todo, não só para a Itália, ele ontem não somente nasceu, mas ele vive. (Tapejara – Órgão do Centro Cultural Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano III, n. 9, 1953, p. 3) Da inutilidade da literatura Bruno Enei À pergunta – assaz banal, em verdade – sobre a utilidade da literatura, poder-se-ia responder com uma observação muito divulgada e 345 346 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos comum, que é hoje de uma clareza insofismável, após o fervor filosófico do século XIX, em que muitas abstrações e antinomias e pseudoconceitos e transcendências no campo da estética, da lógica, e da economia e da ética acabaram definitivamente de existir. Hoje todos sabem que, em senso absoluto, nada é verdadeiramente inútil. Hoje todos sabem que o termo inutilidade tem um valor exclusivamente relativo e empírico. Até o mal não é inútil porque é inevitável, e em nós. Bem e mal, eu e não-eu, objeto e sujeito, tese e antítese, são conceitos, por si, abstratos, fora de uma sua mediação representando a realidade. Se a vida não é mais um idílio e uma procura da felicidade, e é, pelo contrário, um drama, esse drama acabaria de ser tal sem os elementos imanentes do próprio drama, que são justamente o bem e o mal, o útil e o inútil, o eu e o não-eu, numa dialética constante e real, cuja resultante é o progresso, o vir a ser, as quedas e os triunfos dessa nossa vida que, neste mundo, não sabe e não pode ver um fim que significaria o fim justamente da história, que é a nossa imagem, a epifania do nosso agir terreno. É por isso que G. Vico, analisando o indivíduo como indivíduo, já no século XVIII, afirmar que uns nossos defeitos e vícios, condenáveis individualmente, num plano mais humano e universal da sociedade se tornam, ao invés, virtudes e qualidades. Todo homem é, por exemplo, violento, avarento, cobiçoso, – dizia G. Vico: e a violência do egoísmo, a avidez do interesse, a fome da ambição são coisas condenáveis, individualmente. Entretanto, são justamente esses três defeitos naturais do homem que, no campo social, criaram a milícia, o comércio e a direção política, a quem devemos a força, a riqueza e a sapiência dos estados e das nações. Nada é, pois, inútil. E, sobretudo, nada do que é inevitável pode ser evitado. O que é necessário não pode ser contingente, pela lei da contradição que não o permitiria. Tem que acontecer. Tem que existir. Tem que ser. Ora, a literatura é uma dessas coisas que não pode ser inútil justamente porque é inevitável. Não se pode não ser poeta. A poesia é uma categoria do nosso espírito, é uma fatalidade natural, uma necessidade humana, um sinal divino. A arte ignora obstáculos. Nem a ditadura pode calar-lhe a boca. E o seu canto supera os silêncios de mil séculos. Os gregos, que condenaram filosoficamente a arte, foram poetas sublimes. Os romanos, todos debruçados para as utilidades e as realidades da vida prática, deram Lucrécio, Catulo, Virgílio e Horácio. E é inconcebível a Alemanha sem Goethe, a Inglaterra sem Shakespeare, a Itália sem Dante, a Espanha sem Cervantes, Portugal sem Camões. A França sem V. Hugo. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos É inconcebível uma humanidade sem arte: sem poesia, sem música, sem pintura, sem as várias formas de arte. Há quem negue isso? Seria como imaginar o mundo sem o céu, o céu sem as estrelas, as estrelas sem a luz. Seria como afirmar que o pensamento humano pode ser não-necessário. Seria como imaginar o absurdo de uma humanidade sem sentimento, sem sensibilidade, sem emoção, que são justamente os alicerces inelimináveis da arte. A arte é essa companheira angelical e autônoma seguindo o homem, cantando as suas tristezas e as suas esperanças, as suas dúvidas e os seus acertos, os seus acontecimentos e os seus anseios. Cantando-os e preconizando-os, muitas vezes. Não, a arte não pode ser inútil. Ela é, aliás, tão vital, tão essencial na vida de um povo que chega até a ser o termômetro do valor, da energia, da possibilidade espiritual e humana de um povo. Um povo pobre de poesia é como o olho sem luz. A sua literatura é a vibração, o seu poder de vibração, a sua capacidade de nobreza. É verdade, sim, que as coisas materiais ferem mais rapidamente os olhos, mas o que fica, mais tarde, é a poesia, a arte, a literatura. E, observando bem, ver-se-á que até o poderio material é escasso lá onde a poesia não for grande. A palavra utilidade ou inutilidade é um termo que pertence à filosofia prática: e a arte, além do mais, fica fora da terminologia prática. Útil ou inútil poderá ser um objeto: mas a arte não é um objeto. A arte é um produto do espírito: e nada que o espírito cria é inútil, pelo simples fato que o cria e enquanto o cria. É verdade que tanta literatura que anda por aí não presta. Como tanta música, tanta pintura, tanta poesia não prestam. Mas essa é outra questão, que será objeto de outros artigos. O que aqui interessava era responder à pergunta que me foi feita alguns dias atrás. Uma pergunta banal, de espíritos evangelicamente pobres, que os anos, os reveses da vida, a insatisfação e o mau humor puderam tornar fatalmente cínicos e indiferentes: à margem dos problemas, da vida, do futuro, que sempre precisam, como a arte, de sinceridade, de entusiasmo, de inspiração, de crença nos valores do homem. A arte é outra coisa. Por cima de tudo isso ela – como dizia Dante – se ne va beata: vai para a frente, feliz e serena, comovendo, despertando, educando, humanizando. (Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 15/8/1954; Revista Uniletras, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, n. 6, 1984, p. 22-24) 347 348 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Necessità di un ritorno Bruno Enei Nessuno ignora la legittimità delle molteplici ragioni che, specialmente in questi ultimi tempi, hanno sempre più portato il Brasile ad avvicinarsi agli Stati Uniti. La produzione del caffè, di cui gli Stati Uniti sono attualmente il migliore mercato, il potere acquisitivo del dollaro, il commercio, il giuoco internazionale d’importazione e di esportazione, il fattore politico, economico e ideologico, l’ultima guerra e la presenza del Brasile in Europa a fianco delle Nazioni Unite, la necessità degli aiuti americani per lo sviluppo e l’attuazione di un vasto programma di carattere agricolo e industriale, che valga a portare il Brasile su un piano di sempre maggiore efficienza e produttività, sono gli aspetti pratici più evidenti di una situazione che non si può mettere in dubbio. C’è poi un fattore storico di capitale importanza: l’aspirazione degli americani ad una intesa di carattere continentale, non nel senso di coalizione di potenze in atteggiamento di minaccia, ma in quello di una solidarietà di popoli e di interessi che, non fosse altro, la stessa tendenza attuale in altre parti del mondo ha reso più cosciente, più concreta, più urgente. Non si trata tanto, si badi bene, di una “America agli Americani ” nel significato − alquanto angusto oggi e anacronistico − di Monroe, ma di una America che sente e deve sentire di essere veramente America in qualsiasi punto e parte del suo vastissimo territorio. Una America unita, aperta, uguale; una immensa federazione di Stati uguali e distinti nelle loro tradizioni, nelle loro culture e caratteristiche, senza rinuncie e senza abdicazioni, ma in spirito di comprensione e di amore, in nome di una reciprocità di progresso e di interessi. In Brasile − questo Paese di 50.000.000 di abitanti, con un territorio grande quanto l’Europa, con immense risorce naturali quasi inesplorate che stanno lí a chiedere la mano dell’uomo e la solidarietà della tecnica e del capitale − non poteva rimanere insensibile a questo imperativo americano di unità internazionale. Ha, perciò, lavorato e lavora in questo senso. Non si può dire che non stia sulla strada buona, anche se spesso è dato osservare un certo equivoco e fraintendimento in questo ideale di intesa e di unità americana, evidenti soprattutto in quella certa posizione di superiorità e di distacco in cui gli Stati Uniti − data la sua potenza e il suo prestigio − vengono a trovarsi. Ma molti, la parte migliore, distinguono perfettamente tra Stati Uniti e Unità Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Americana, e sanno perfettamente che l’unità americana è una cosa e gli Stati Uniti un’altra. C’è, del resto, tutta una letteratura ormai che spiega e chiarisce i vari aspetti e le diverse posizioni ideologiche di questa delicata a annosa questione. Basterà ricordare qui, fra gli altri, i nomi di Manuel Bonfim, Gilberto Freyre, Keyserling, Waldo Frank, Haya de la Torre, Alceu Amoroso Lima, Pedro Calmon, Monteiro Lobato, Bento Munhoz da Rocha Netto, Faris Michaele. Che cosa ci ha guadagnato finora il Brasile? Molto e poco. Alle volte, nulla. Certamente, gli Stati Uniti hanno dato quello che potevano. Non possono dare quello che nessuno può dare. Ha esportato, ha importato, ha imprestato. Molte cose qui parlano degli Stati Uniti: automobili, benzina, ghiacciaie, trattori, costruzioni, industrie, organizzazioni, esercito, aviazione, ecc. Nel campo tecnico e commerciale, nel gusto dell’attività pratica dei negozi, in certi campi della vita scolastica e parlamentare, la presenza degli Stati Uniti è chiara, decisiva. Tutto ciò ha giovato al Brasile. Nessuno lo può onestamente negare. Sarebbe sciocco negarlo. Ma il Brasile non può importare quello che deve lui stesso fare, quello che solamente a lui spetta di fare, con una sua interpretazione originale e autonoma, con la propria anima, con la propria educazione, se − in seno all’America − vuol essere qualcuno, come deve cercare di esserlo: “qualcuno” e non “qualunque”, come si usava dire in Italia durante il periodo in cui, nell’immediato dopoguerra, imperava la parola, veramente negativa e scoraggiante, di un Giannini. Per essere “qualcuno”, il progresso materiale, la evoluzione tecnica, l’apparenza artificiale e gli ultimi resultati di moda non bastano. Ci vuole altro. Ci vuole altro per colmare il divario tra metropoli e interiore, tra città e borghi, tra popolo e borghesia. Ci vuole altro per superare quel gusto “alessandrino” della “chácara”, del frutteto con una bella casa per il riposo del sabato e della domenica e arrivare a un sentimento dell’agricoltura, a una persuasione di produzione che metta l’accento sulla produzione e non sull’edonismo e sul proritto: arricchire arricchendo. Oggi, si sa, gli Stati di tutto il mondo sono sollecitati da una eccessiva e unilaterale preoccupazione di carattere politico. Tutto è fatto in funzione politica. Se ci si preparasse a vivere, faremmo altre cose che non facciamo perché ci preoccupiamo col morire e col difenderci. E, invero, la situazione internazionale non è poi tanto critica e disperata, come parrebbe in un primo momento. C’è ancora speranza. C’è possibilità di una comprensione, di una distensione che faccia 349 350 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos in modo che il danaro sia più “democratico” e il comunismo meno “russo”. Si può ancora discutere. Si pensa. Perciò il Brasile, pensando alla sua America, dovrà tornare di più a pensare a se stesso, che è poi il modo di pensare più concretamente all’America. E allora affronterà più intensamente i suoi problemi interni, i suoi problemi di popolo, di produzione, di educazione, di cultura, di civiltà. E sentirà che il carro deve stare dietro ai buoi. Sentirà che l’Europa − non l’Europa con l’elmetto, non l’Europa totalitaria − ma l’Europa della cultura, dell’arte, della scienza ha ancora una parola da dire: proprio l’Europa “dei vinti”: la Francia, l’Italia, la Germania. Dobbiamo riprendere contatto con quelle idee, con quella universalità, con quei valori. Non basta fare, dobbiamo credere. Conosciamo davvero la vera Italia, la vera Francia, la vera Germania? L’Italia, la Francia e la Germania senza “Napoleoni” e napoleonismi? L’Italia di De Amicis, di Papini, di Pitigrilli, di D’Annunzio non basta. L’Italia dell’Umanismo e del Rinascimento, quella di Parini e di Alfieri, quella di Mazzini e di Cavour la conosciamo davvero? Questo ci aiuterebbe assai a conoscere noi stessi, il nostro popolo, i nostri difetti, le nostre virtù, i nostri bisogni, il nostro da fare. E ne verrebbe fuori un lavoro lento, raccolto, silenzioso, persuasivo. Ne verrebbero fuori la nostra personalità, la nostra coscienza, la coscienza della nostra funzione storica, del nostro imperativo umano e civile di popolo neo-latino. A fianco degli Stati Uniti, al centro del movimento americano, io sento, io desidero, io riconosco la necessità di questo ritorno. (Tapejara – Órgão do Centro Cultural Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano IV, n. 5, 1954, p. 15) Gêneros literários Bruno Enei É mesmo, este assunto, uma coisa velha e superada? Será mesmo que, não digo, todos, mas, ao menos os que se interessam de crítica e de poesia, estejam profundamente convencidos das razões lógicas e estéticas pelas quais uma obra de arte é sempre uma obra de arte, simplesmente porque obra de arte? Pela sua forma, isto é, pela inspiração Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que a sustenta, pela lei que a governa, pela sua individualidade estética, independentemente da sua dependência a um precedente literário, a um modelo, a uma lei, a um gênero. Quantos “aristotelismos” ainda! Quantos “ipse dixit” ainda! Quantas inúteis e abstratas saudades de Homero, como mestre do Poema épico; de Sófocles, como mestre da Tragédia; de Cícero, como mestre da Oratória, de Horácio lírico, de T. Lívio historiador, etc., etc.! Parece de estar ainda nos tempos da disputa entre românticos e clássicos. Lê-se um poeta, e pensa-se noutro, ouve-se Bach e lembrase Corelli, olha-se Picasso e corre-se aos artistas do século XV. Fazse justamente como aqueles dois neófitos (de que fala Silvio Pellico naquele seu breve mas imortal “Concialiatore”, publicado em Milão entre 3 de setembro de 1818 e 17 de outubro de 1819), os quais – tendo abraçada a religião do evangelho – disputavam se Zoroastro e Confúcio fossem verdadeiros cristãos, sem minimamente pensar que se Zoroastro é Zoroastro e Confúcio é Confúcio; é claro que o cristianismo é o cristianismo, não podendo ser nem Zoroastro nem Confúcio, nem tantas outras coisas, de ontem e de hoje, que acreditam de ser – sempre por uma razão de apego ao gênero – uma continuação ou identidade. Matou-se assim, e continua-se da mesma forma – a matar a liberdade da arte, aquela liberdade que já A. Verri – no seu jornal “Il Caffé” – chamou de “deusa do engenho”. Tirania que obrigou T. Tasso a escrever a sua melancólica e idílica “Gerusalemme Liberata” só às condições que admitisse que o seu Godofredo fosse “o intelecto”, os seus Rinaldo, Tancredi e demais heróis as “várias potências da alma”, os soldados “o corpo”, e Armida, Ermínia e as demais infelizes encantadoras do seu mundo “as tentações diabólicas”. E assim foi perdoado. E, mais ou menos, assim foi perdoado Corneille. Mas, sabe-se que Voltaire, também pelo inconformismo ao Classicismo, pela sua Henriade de 1723, foi insultado, surrado e exilado. E que dizer das acrobacias a que a alegoria – essa irmã reacionária do gênero e do conteúdo – obrigou a fantasia veneranda e bonita de tantos poetas, inclusive Dante Alighieri, o poeta que tanta gente lembra mais porque alegorizou a selva, a loba, a onça, e o leão do que porque cantou Ulisses e seu desejo de conhecer, Brunetto e a sua saudade de professor, Francesca e o seu amor? Precisamos ainda libertar a arte; dar-lhe a sua autonomia, a sua divindade, a sua necessidade, tirando-lhe qualquer sombra de heteronomia, de conformismo, de escravidão (hoje é o 13 de maio) ao conteúdo, à alegoria, ao gênero, à classificação; à árida e abstrata classificação que nenhum outro valor poderá ter senão aquele, como 351 352 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos dizia já Croce, empírico e escolar de memorização e de pura indicação. Precisamos ainda libertar a arte, não da imitação e do passado (Ninguém começa e pode começar do nada, e é até fácil constatar como todos os maiores começaram imitando e refazendo-se a um “precedente”, mas dos “a priori” da retórica e da má fé dos que – fechando o mais no menos – não admitem inovações, proíbem – ou querem proibir – à fantasia de criar, e agridem o presente e o futuro jogando-os, arbitrariamente, no passado, como se o passado quisesse dizer tradição e imobilidade e não, como é lógico, progresso e experiência de uma humanidade progredindo e experimentando. Arbitrariamente, porque o passado, esse nosso venerável passado humano e histórico, protesta e reage, ensina e ilumina, condenando sempre a imitação e o modelo, escarnecendo sempre e tendo por nada, o conformismo e o gênero, declarando-nos e provando-nos continuamente que nenhum de seus grandes homens foi nunca grande porque imitou e conformou-se a este ou aquele preceito da retórica, criando cada um deles a sua própria lei e a sua própria originalidade de continuação e de valor. O gênero! Ponho-me diante desta realidade brasileira de hoje, e sinto. Sinto coisas tristes e luminosas. Sinto amarguras e comoções, olhando e lendo, pensando e sonhando. Esse Rio de Janeiro tão pequeno diante de um Brasil tão grande; essa gente emudecida e fixa que parece aguardar; essa mocidade séria demais e contemporaneamente sem orientação; esses alunos crentes no “jeito” e, entretanto, bons, inteligentes, vivos como não conheci outros em tantos anos de magistério; o deserto e o “chauvinismo”; essa “babel” dos jornais; esse eterno “falar mal” ad personam, tão pouco alicerçado nas ideias e na boa fé, num ideal de progresso e de riqueza comum e geral; tudo isso agita, ponhamos a fantasia do artista, que pensa numa expressão, no alívio, na eficácia, na liberdade da arte. Será que esse artista terá que pensar em Homero, em Sófocles, em Cícero? Será que esse artista terá que pensar nas leis de Aristóteles, da “Ars Poetica” e em Quintiliano? Será que esse artista terá que pensar na Comédia, na Sátira, na Lírica, nas estandardizações, fixando a língua, o metro, a quantidade, a unidade, o tempo; a prótase e o epílogo, a invocação e a dedicatória? E quando é que ele pensará, então, à sua inspiração, àquela sua inspiração que está lá dentro de sua alma, ansiosa de sair à luz como as personagens de Pirandello? A humanidade não se repete nunca. E, tanto menos, na arte. Se isso acontecer, poderá haver mediocridade somente, e, até, popularidade, mas nunca grandeza. Homero, modelo do poema épico! Entretanto, a mesma Odisseia é a contradição da Ilíada. A arte não tem gênero, não tem tipo, não tem Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos espécie, não tem classificação: coisas que Croce deixava para as ciências e as matemáticas. A arte responde sempre a uma inspiração, a um sentimento vivo e concreto, a um imperativo de atualidade e de contemporaneidade. Notaram já, os meus leitores, que nenhum grande poeta ficou alheio ao tempo em que viveu, que a obra deles cantou sempre o presente, e foi uma meditação, uma polêmica, uma idealização, uma apresentação – na forma e na substância – da própria idade, do próprio viver? A arte é sempre criação, na linguagem e no conteúdo. E tantos gêneros há quantas são as obras de arte. Infinitos gêneros, isto é, porque infinita, assim é de se esperar tendo confiança no homem, é a série da poesia, diante da qual devemos ver quanto e como ela é mesmo original e nova, compreendendo-lhe a novidade, justificando-lhe a originalidade, legitimando-lhe a liberdade, reconhecendo-lhe o direito de arte, não na base de um conformismo, mas da sua originalidade, da sua honestidade, da sua realidade. Conta-se que quando foi feito conhecer o ferro aos selvagens americanos, os seus donos quiseram examinar logo se ele fosse ouro ou prata. Como não fosse nem um nem outro, aqueles donos – imaginem com quanta boa fé – decretaram que o ferro não era um metal legítimo. Então, os jovens americanos quiseram propor que fosse o ferro examinado só como coisa útil. Abre-te, céu: foram eles sonoramente batidos a fim de que ficassem sabendo que sempre há-se a perguntar se uma coisa é igual a outra, e nunca se pode ser útil e boa em si. É uma anedota que cabe bem ao nosso caso; o caso do gênero, o caso de tudo aquilo que a dogmática da retórica e da insensibilidade soube criar contra a inovação, o progresso e a novidade, qualquer que fosse ou se chamasse. E não quero já dizer que tudo isso não seja hoje claro e pacífico. É sim, até para os que admitem e aceitam essas verdades, com todas as inevitáveis contorções e restrições que a “forma mentis” lhes impõe. Mas, entretanto, quanta gente fica ainda “cheirando mal” diante da poesia contemporânea; Picasso aqui e acolá, Carlos Drummond de Andrade e Ungaretti, este ou aquele poeta moderno. Além das ambiguidades dos sim e dos não, além das restrições dos porém e dos mas, é no campo prático, no terreno quotidiano do ensino e das conversações que a gente percebe quanto a categoria do gênero seja dura a morrer, abdicando a seus velhos e soberbos direitos de um tempo. E, assim, vai, também esse “gênero” – juntamente a tantas outras coisas velhas e inúteis (“oh gran bontà dei cavalleri antichi”, exclamaria Ariosto) sobre essas águas da vida, que móveis e dinâmicas deveriam também ser. Vai; vai pesando e impedindo, negando e distinguindo, concedendo e repelindo, mas – o que é inegável – também o rio vai, e 353 354 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a humanidade progride e continua; amando até e respeitando esses seus parasitos, embora com a consciência que muito mais fácil e rápida seria, sem eles, a sua dura e eterna arrancada. (Diário do Paraná, de Curitiba, 22/5/1955) Impressões do Rio (I) Colóquio com Carlos Drummond de Andrade Bruno Enei De pé, ao centro da Sala do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, num ambiente aéreo em que os outros grupos – atendidos pela incansável gentileza de José Simeão Leal – se iam sempre mais distanciados, alheios e avulsos, encontrei-me com a poesia, com a sensibilidade rápida e lúcida da nossa alma moderna. Esqueci o ambiente: duas almas de frente, sem coreografia, sem retórica, sem paisagem, como justamente acontece na lírica moderna onde a adesão do espírito afasta a eloquência, e a imagem se torna cristalina, essencial, pura realidade de uma angústia, de um anseio, de uma ausência. Não houve cerimônias. Foi tudo pesquisa e vígil solidariedade, grande desejo de compreender, de aproveitar do raro perfume da flor rara do nosso imenso deserto contemporâneo. As perguntas e as respostas se sucediam reciprocamente, se sobrepunham numa simultaneidade sem apêndices inúteis. A poesia moderna não tem mais nada que fazer com o século XIX. Foi além: como sentimento e como forma. Os ideais não mais são mitos e metas objetivos e imóveis: o amor, a beleza, a pátria, a imortalidade, a glória e a felicidade desapareceram do céu alto de Platão. Tornaram-se quase mentiras, menos que amargas ilusões, deixando uma saudade, uma persuasão, uma atitude de recolhimento que procura, na nossa interioridade mais subconsciente, os movimentos irracionais, o tédio mais cansado, a verdade mais científica, mais sincera. A poesia quer hoje saber o que somos; por que, como, quando somos. Não sabe obedecer. Não quer persuadir. O poeta procura conhecer-se, e revelar-se, construindo o seu mundo individual de apego, de crença; de desconfiança, de austeridade. E a forma, a célebre forma oratória e eloquente, toda construída numa arquitetura lógica de sintaxe, de Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos orações principais e secundárias; aquela forma vibrante ou melancólica levando o poeta e o leitor num mundo ideal de hinos ou de lamentações, aquela forma deixou a sua “demagogia” para tornar-se linguagem de imagem, essencialidade de ritmo; pura concentração sem resíduos de proselitismos, sem preocupações de hermenêutica. A linguagem árida e fugaz de uma sugestão, de um pressentimento (D’altri diluvi una colomba ascolto), de uma ironia (Odo la primavera nei rami neri indolenziti), de uma analogia: Tornano in alto ad ardere le favole, Cadranno colle foglie al primo vento Ma venga un altro soffio, Ritornerà scintillamento nuovo, A poesia libertou-se da canção, do madrigal, do soneto, do verso, da sílaba. Não mede, escande imagens, e as coloca no ritmo puro de uma visão consciente. Não há mais “meios”, e a poética é a própria poesia, com seus espaços brancos, com suas pausas, com seu controle crítico, com suas colocações fônicas. Herança e superação: através Baudelaire, Verlaine, Rimbaud; através Novalis e Hölderlin; através Leopardi, Pascoli e D’Annunzio. – Minha formação foi solitária e irregular. Vim perdendo melancolicamente a fé, e conheci o marxismo. Não é possível fechar-se num dogma de obediência e de ortodoxia, e continuar sendo poeta. E justamente diz De Robertis que “a poesia nos vinga de não sermos deus. Deus é conhecimento imediato, universal, perfeito; e a poesia é o esforço de avizinhar-se a esse conhecimento, com a dor de nunca nos vermos chegar. Esta dor faz com que os poetas escrevam”. – Não tenho. Não tenho, embora a procure, uma definição da arte. As esquerdas condenam a nossa arte, e querem que ela não esqueça o leitor e o povo. Mas eu não me preocupo com a comunicação. A mensagem é sempre uma automensagem. E o gênio que cria não é o intérprete do gosto que lê. – Não tenho uma filosofia. Leio Nietzsche enquanto poeta. Procuro Schopenhauer nas revelações líricas de suas penetrações interiores. Conheço Croce pela sua “Estética”. Acho, acho que esse filósofo é quem mais se tem aproximado de uma definição satisfatória da poesia, entendida como lírica, como imagem, como linguagem, distinguindo sempre a poesia pura da “non-poesia”. Para o poeta moderno a filosofia é mais um elemento moral, um “meio”; um meio para que ele seja sempre mais o pesquisador atento de suas profundezas, o ouvidor 355 356 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos impassível de seu diálogo interior, o analisador honesto do que somos, do que queremos ser, do que deveríamos ser, do que, talvez, nunca seremos, senão como anseio, como dor da consciência prévia de uma fatal impossibilidade. Hegel, que confundiu a poesia com a filosofia, afirmou o fim da poesia no panlogismo. Mas a verdade é que a poesia começa agora o seu verdadeiro caminho, sem deviações, para o mundo do incônscio, procurando conhecer o homem, após ter conhecido a natureza. – E me diga, pode-se afirmar que a prosa de Graciliano e a sua poesia iniciam uma nova linguagem no Brasil? – Sim, há essa tendência. Está no espírito, na psicologia, na individualidade da nossa caracterização; mas já faz muito tempo que se procura no Brasil novos rumos. Bandeira, Machado, Andrade... – E essa linguagem fechada, difícil, tantas vezes incompreensível? Mas, todos os poetas são, ao aparecer, difíceis. E é natural, legítimo. Dante é fácil? E Rimbaud? E Foscolo? E Leopardi? A poesia é uma eterna renovação, uma dramática não-imitação. Precisa tirar da cabeça que a poesia deva ser filosofia, oratória, moralismo. Precisa convencer-se de que a poesia deve ser unicamente poesia. E precisa dobrar-se em si mesmo, recolher-se, escutar-se; sinceramente, humildemente; numa sugestão, numa impressão, como num colóquio de revelações, de fulgurações, onde a compreensão exige colaboração, onde a falta das passagens lógicas é substituída por um ritmo de imagens que sugerem, desvendam, iluminam. Há, como em toda poesia de todas as épocas, há tanta não-poesia na poesia contemporânea. Há muitos equívocos, muitas obscuridades, mas vale a pena penetrá-los porque se trata, afinal, do nosso mundo moderno, do nosso drama. Vale a pena estudar, procurar, analisar porque atrás de tudo aquilo vibram sempre sentimentos, perfilam-se sempre homens, inquietações, anseios; todo aquele conjunto de emoções, de aspirações, de inconformações que forma a sensibilidade moderna. Essa sensibilidade de lucidez, de transparências, de felicidades diferentes, de equilíbrios de requinte. E acho que não houve despedida, porque o pensamento continua e “penetra profundamente no reino das palavras”. (O Dia, de Curitiba, 14/10/1956) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Impressões do Rio (II) Apartes e sugestões Bruno Enei No ambiente universitário do Rio, nem sempre, após a palestra, se dá – ritualmente – por encerrada “a sessão”. O diálogo continua, muitas vezes, num círculo de amigável franqueza e de bela espontaneidade. Não é o autógrafo que interessa, e sim o endereço. Fazem objeções. Perguntam: em francês, em italiano; sem receios, sem recalques. Não me parece que eles fizessem isso pela primeira vez. Há intimidade entre professores e alunos, entre docente e discente. Há cordialidade e colaboração. Não posso afirmar se há lá interesse para o magistério, mas tenho a impressão de que a cultura, em geral, e a poesia, em particular, são problemas sentidos com entusiasmo. A mocidade ainda crê na poesia: na dos outros e na própria. E isso, hoje, num mundo de “sai você e entro eu”, não é pouca coisa. Após uma aula sobre Giovanni Papini, não foi por nada fácil para eu documentar as limitações e restrições que – criticamente – se devem fazer ao extravagante e barulhento autor de “Stoncature”, de “Cog”, de “Il Diavolo”. Topara eu com uma inteligente e irredutível “papiniana”. Tratava-se de uma luta entre crítica e psicologia. E fiquei gostando daquela defesa, inicialmente intransigente como o meu ataque, e, depois, mais acessível e serena como, aliás, se ia também tornando a minha unilateralidade. Tive mais sorte com Giuseppe Ungaretti. Ficamos todos de acordo, numa convicção profunda de que a poesia moderna tem recursos verdadeiramente notáveis. Uma delicadeza “velina”, “árida”, humana, penetrando na alma, procurando-a, querendo desesperadamente revelá-la e satisfazê-la. Após uma palestra sobre a poesia de G. G. Belli, dois padres – incredibile dictu – usaram palavras de grande elogio. Entre outras coisas, disseram, aqueles bons e cultos sacerdotes, que Belli é verdadeiramente um grande poeta, e que a serenidade crítica do conferencista fora notável. Louvando a minha habilidade, o meu equilíbrio! Pensei no Concurso para a cátedra de Língua e de Literatura Italiana na Universidade do Paraná. Que ironia, que comoção! Compreendi porque, às vezes, até beijar a mão fica bem. Na Universidade do Distrito Federal, foi uma moça – Maria Carolina Figueiredo – quem me fez a entrega da flâmula que hoje está 357 358 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos aqui, estimulando e lembrando, ao lado destas estantes. Aquele inesperado e delicado “a solo”, aquele polido perfil, aquela pronúncia linda, responsável, em que as palavras pareciam cor e fios de fumaças, aquele ambiente cordial e tenso me inspiraram, como resposta e agradecimento, uma sugestão em forma de fábula e de saudade. – Há em Pisa, na praça dos “Cavalieri” de Malta, ao lado da “Torre” que Dante indicou como o lugar da última e trágica dor do encontro de Ugolino com os filhos inocentes, bem perto da Universidade onde Galileu “vide” os céus e Giacomo Leopardi cantou “A Silvia”, há, em Pisa, um antigo Palácio. Napoleão transformou-o num Colégio: o colégio da mocidade que se dedicaria ao magistério da Matemática, da Física, das Letras. Um diretor, um secretário. Uma vastíssima biblioteca. Cursos internos e especialização. Uma ampla sala de refeições. Um lindo quarto para cada um. O moço vem das escolas secundárias. Inscreve-se na Universidade. Sente a beleza, a necessidade, a coragem do magistério. No dia 2 de novembro de cada ano, há concurso e seleção para entrar lá dentro. Venceu? Então, nada mais cabe ao vencedor senão estudar, escrever, frequentar as aulas na Universidade e os Cursos internos, pedir livros, avizinhar os mestres, discutir, criticar, educar-se, tornando-se um “cavalheiro” do ensino, um homem. Tudo é pago, tudo é fácil, numa atmosfera aberta e sadia de liberdade, de discussões, de experiências. E as garantias de permanência são os exames na Universidade (todos na primeira época e com uma média de notas nunca inferior a 24/30) e as provas internas obrigatórias sobre assuntos especializados de filosofia, de filologia, de ciências, de matemática, etc. Acabados os estudos, há um curso de um ano de aperfeiçoamento: pode ser lá mesmo ou, então, no estrangeiro; na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha. Daí saíram, entre outros numerosos, Giosuè Carducci, Pasquale Villari, Alessandro D’Ancona, Ulisse Dini, Giovanni Gentile, Attilio Momigliano, Luigi Russo, Enrico Fermi... Daí saíram, mais recentemente, Aldo Capitini e Walter Bini, Carlos Ludovico Ragghianti e Carlo Varese, e outros que, durante a ditadura fascista, souberam lutar e morrer, e outros que ocupam hoje as mais ilustres Cátedras Universitárias, cargos de alta responsabilidade no Governo, no Parlamento. Daí saíram cientistas, como Fermi e Pontecorvo, que o mundo admira. – Como? Os senhores se maravilham? Não acreditam? Pois, é assim mesmo. O Estado não é bobo. Procura a qualidade. E paga, pois, o tempo de teus estudos. Você deve somente estudar, sem outra preocupação que aquela de um estudo sério, organizado, crítico, consciente, sem restrição, sem credo, livre, seu. Mas, a assistência ainda mais riu quando – com toda naturalidade Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos – tirei em campo os oficiais e os soldados, fazendo notar que, no campo da cultura e do ensino, a guerra é até mais constante; diuturna e profunda; esclarecendo, derrubando mitos, preparando uma atmosfera de discussão, de dialética, de persuasão livre. – No alto da Tijuca – – Na Cascatinha – – Onde for: no Rio, em São Paulo, no Paraná. Sonho com isso desde que aqui voltei, desde que acreditei nos moços, nos inocentes, nos que ainda não foram infeccionados pela realidade, pela indiferença. Sonho sempre com isso, para que a mocidade se concentre e pense. Tenha tempo de pensar sem aperto de horários, que a levem de um trabalho a outro, de uma ocupação à outra, num cansaço física e espiritualmente visível; para que se possa finalmente criar um ambiente “sine curis”, onde o estudo seja, como os latinos queriam, verdadeiramente “otium”, vida solitária e recolhimento, “specula” de idealidades e de realidades, de presente e de passado, e trabalho “sine lassitudine”, como dizia Leonardo: discutindo, lendo, citando autores, tornando as palavras ideias e as ideias profundas convicções. Porque dói, dói no coração ver tantas energias sem direção, tanta sensibilidade sem guia, tanta possibilidade sem apoio, tanto desperdício sem proveito, tantas almas capazes de dar e que, entretanto, crescem como que esquecidas, quase ignoradas, sozinhas, num autodidatismo naturalístico e pernóstico; aumentando, assim, ainda mais, o número, deveras não pequeno, de pecados do nosso Brasil. (O Dia, de Curitiba, 28/10/1956) Cristóforo Colombo e sua época Comemorando o dia 12 de outubro Bruno Enei Após tanta vasta bibliografia crítica em torno da Idade Média e de seus inúmeros aspectos, não serei justamente eu – aqui e em tão breve tempo – quem irá negar a função histórica daqueles longos séculos que vão da caída do Império Romano, em 476, à descoberta da América, em 1942. A Idade Média foi uma necessidade. Teve a sua razão de ser, domando a barbárie e salvando o patrimônio 359 360 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos imenso da antiga civilização. A realizar este desenho providencial, a história teve de servir-se da “curtais”, da propagação do cristianismo pelas armas, do mito do Sacro Império Romano, do feudalismo, da inquisição, elementos estes assaz discutíveis hoje, mas racionais e únicos então. Em torno da igreja, surgiram as aldeias, as escolas. Entretanto, a cultura daquela idade, baseada em enciclopédias e em “Summas”, nem sempre foi crítica e construtora; a economia, palaciana, feudal, corporativística, foi fechada e sem respiro; o homem, isolado nas cortes; e a Europa, alheia ao mundo dos povos bárbaros, insensível à Ásia. Houve como que indiferença e medo diante da beleza encantadora e dos mistérios fascinantes da Natureza. Foi, do ponto de vista da ciência, a idade do empirismo e de uma unidade sem distinções, em que uma existência hierárquica e piramidal do saber paralisava a pesquisa objetiva e a análise, a espiritualidade “gótica” afastava os homens da vida e de seus problemas, assim como lançava para o céu as suas torres agudas. Era sobretudo o além que preocupava. Mas já, no século XIII, a alma meiga e nobremente humana de S. Francisco de Assis, saudando a natureza e reconhecendo em seus elementos todos – na água, no fogo, no ar, no vento, até na morte – os nossos irmãos e os mesmos felizes e inocentes filhos de um único Pai, criador mais do que juiz, generoso mais do que severo; já, no século XIV, a exaltação de Ulisses e de uma ética de atividades e de heroísmos imanentes à vida, na poesia imortal de Dante Alighieri; já, no mesmo século, a lírica saudosa e gentil de Francesco Petrarca, cantando melancolicamente a beleza de Laura, o encanto da natureza e a brevidade da vida num anseio de glória, de imortalidade e de saber; já, nesse mesmo século XIV, a prosa aberta e franca de Giovanni Boccaccio, reconhecendo, sem mais receio nenhum, o valor da inteligência, a força irreprimível do amor, a potência da família, da sociedade, dos estados; já esses homens sentiam e anunciavam a necessidade de uma civilização e de uma cultura mais arejada, mas livre, mais revolucionária, mais imanente e intrínseca aos problemas do homem e de sua vida aqui, na terra, onde ele é chamado a realizar-se como sabedoria e ação. Veio, pois, o humanismo. E a vida mudou-se completamente. O empirismo tornou-se ciência; ciência dividindo-se na própria autonomia, nos próprios campos, nas próprias leis e finalidades. O problema da física foi a natureza, da medicina o corpo, da filosofia a lógica, da moral o dever, da estética a arte, da astronomia os céus, das ciências naturais os elementos, da química a propriedade das combinações e decomposições. Foi a idade da beleza e da racionalidade, da arte e da ciência, da crítica e da ação. A cultura tornou-se internacional. Surgiram as Academias e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos as grandes Universidades. A imprensa e a bússola puseram-nos diante do mundo antigo para conhecê-lo no seu valor objetivo e real, diante da natureza ignorada para descobri-la, para povoá-la, para conhecer-lhe as leis, criando os transportes marítimos, aéreos. Surgiu a política como ciência no pensamento de Machiavelli. Surgiram o comércio, a indústria, o capitalismo com seus bancos, com suas firmas e sociedades, com seus mercados, com suas necessidades de matérias primas. Surgiu o jogo dramático e empenhativo do empréstimo, do depósito, da concorrência, da importação e da exportação. E a riqueza se reduziu. O dinheiro circulou. Os palácios, as igrejas, as estradas, as cidades tornaram-se belíssimas pelas artes e pelas inovações. É insuficiente a afirmação de que o humanismo foi um fenômeno unicamente literário e artístico. É insuficiente a afirmação de que o humanismo foi um fenômeno unicamente italiano. O humanismo foi uma revolução geral, uma concepção nova, renovação completa do espírito; uma nova visão da realidade e da vida na base de uma confiança sem limites no homem, em suas qualidades e possibilidades de realização e de criação. E, embora teorizando na Itália e lá primeiramente pensado e estudado, foi ele, contudo, um movimento de caráter essencialmente europeu, espanhol, português, francês, alemão, inglês. Nesse ambiente largo e aberto, nessa atmosfera de beleza e de ciência, nessa espiritualidade de confiança e de imanência, é que nós devemos colocar a figura de Cristóforo Colombo, se queremos compreender o sentido histórico, científico, concreto e humano de seu empreendimento. A Europa não era mais suficiente. A história do mundo não podia ser mais fechada e circunscrita à história da Europa. Outras exigências, outras forças, outras necessidades; a cultura, a ciência, a arte, o comércio, a indústria, o capitalismo pediam outros panoramas, outros continentes, outros povos, outra humanidade. O mundo não podia mais continuar a ser assim pequeno, a Europa já chegara à Islândia e ao Atlântico e à Ásia; quando os povos além do Reno e do Danúbio se tornaram já cristãos; quando os Otomanos ocuparam já o Mediterrâneo oriental, e a potência atlântica da Espanha era uma admoestação; quando já eram fortes e ameaçadores os Estados Nacionais. E se as viagens de Polo até Pequim em 1271-1275, em 1292-1295 podem ser consideradas como os antecedentes românticos de Colombo, é porém a satisfação dos descobrimentos durante o século XV que constitui a garantia científica e real do seu sucesso. Portugal, Henrique o Navegador (1394-1460), Madeiras em 1418, Açores em 1437, Cabo Verde em 1460, o Golfo de Guiné em 1469, Bartolomeu Diaz e o Cabo da Boa Esperança 361 362 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos em 1485... são as etapas gloriosas dessa epopeia, são as notas solenes da grande sinfonia da coragem e da nova Ilíada do mundo moderno, de que Cristóforo Colombo foi um dos protagonistas e Camões o seu inspirado cantor. O problema era chegar ao Oriente pelo Ocidente. Pouca importância teria saber quem iria realizar a grande façanha, quem a teria prestigiada. Colombo, inspirado por Toscanelli, pensava que “interfinem Hispaniae et principium Indiae mare parvum et navigabille est in paucis diebus”. E tentou, em 3 de agosto. E, em 12 de outubro do mesmo ano de 1492 – vencido o misterioso Atlântico – S. Salvador unia-se à Europa. Era a América? Era a Índia? Não merecem agora uma análise esses problemas. Naquele momento, acabara não somente a Idade Média, e começava a Idade Moderna; acabara não somente a história do mundo como sendo unicamente a história da Europa, e começava a história de todos os povos, de todas as experiências, de toda a humanidade; a história geral, a terra total; a história coral e a terra universal dos homens que trabalham, que estudam, que esperam, que sofrem para um mundo melhor. Saudemos Colombo, saudemos esse dia: são símbolos de uma nova fase da vida, são índices de novas perspectivas, de novos anseios; são momentos de civilização e da nossa nobreza humana; alicerces da democracia, da atividade inquieta e construtora da nossa vida moderna. (O Filósofo – Órgão de Divulgação do Diretório Acadêmico Dr. Joaquim de Paula Xavier, ano II, n. 3, Ponta Grossa, outubro-novembro de 1956, p. 2) Esperanças da crítica Bruno Enei Foi a vida de ontem; entretanto, estamos hoje bem longe das formas enfáticas e exuberantes dos últimos anos serenos e despreocupados do século XIX; daquelas também dos anos que – já no século XX – precederam a primeira guerra. Até os interesses espirituais que dominaram o panorama humano dos vinte anos, entre a primeira e a segunda conflagração, ficaram já longe e apagados nesta nossa intensa e ávida interioridade atual. Nem o “otimismo” dionisíaco de D’Annunzio, nem a “mística” coral da força e da obediência coletiva. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos As ilusões vieram-se tornando, cada vez mais, um anseio amargo e exigente; os ideais antigos um mero devaneio sem apego; o otimismo retirou-se numa atitude circunspecta e prudente; a intimidade revelou-se num contraste difícil de confissão e de pudor, de ciúme e de abandono; e o “modus vivendi et cogitandi” procurou mais e mais a linha hermética e sutil, sem concessão; avarenta na expressão e sugestiva no tono e no ritmo. À paixão veio substituindo-se uma delicadeza gentil e esquiva à euforia, uma atitude de desconfiança sedenta; à exclamação, o silêncio atônito e a pergunta monossilábica; à maravilha, a firmação, ao programa, o propósito em ato. E cresceu, tornou-se mais íntima a dor: amadurecendo os nossos espíritos, trazendo mais perto essa realidade penosa, despindo as coisas e a alma, exigindo razões difíceis, criando dúvidas profundas, solicitando soluções; lançando-nos, enfim, num isolamento dramático e interior, para a procura e a pesquisa dentro da “mônada” fechada e ciumenta onde cada um elabora por si a sua persuasão. Assim, a fé inquebrantável que já caracterizou outros tempos; o sentimento que já empolgou outras idades; a razão que já tornou abstratamente otimistas tantas gerações do “siècle de lumière” cederam hoje o lugar à crítica. É ela atualmente quem nos domina. É ela a nossa essência, a nossa definição; o nosso martírio nobre e a nossa única esperança. Crítica é hoje sinônimo de humanidade e equivalência do pensamento. A própria filosofia, após Descartes, e, sobretudo, após Kant, ao seu nome vetusto e tradicional prefere aquele, mais exigente e mais expressivo, de crítica. A crítica é, pois, a alma inquieta e responsável de nossa idade. E não apenas na dúvida ela perfila a sua presença dolorida; não apenas na insatisfação ela agita a sua angústia ávida; não apenas no tédio se retrai desconfiada. Mas até mesmo uma nossa expressão de maravilha, o nosso consenso, a promessa têm sempre o sabor vígil de um controle, adquirindo a feição gentil e discreta da crítica. Crítico e consciente é hoje até o entusiasmo: esse “lirismo” comovido da humana adesão que ilumina, muitas vezes, os olhos que contemplam e acompanham a natureza e a vida. A retórica – essa filha tardia e cativante da decadência e da transição – tem-nos cansado demais. Não nos convence. Fala sem acreditar. É céptica, e não sabe que os seus ouvintes pessimistas e delicados não mais a toleram. Vai hoje a humanidade procurando novamente o equilíbrio difícil, como já na Idade Média, na Renascença, no século XIX. Procura ela o equilíbrio, que é convicção atingida, consciência firme, responsabilidade e empenho. Procura ela ansiosa a sua razão de ser, a sua síntese, a sua 363 364 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos “revelação”; como u’a mensagem que, saindo da história, nos afaste do passado alheio e dê consistência operosa ao nosso presente. Estamos procurando a nossa mediação, aquela certeza lógica e emotiva que nos lance liricamente, mais uma vez, no caminho da vida e das realizações. Por isso, fala-se hoje quase sempre em análise, em crítica. Em autocrítica; justamente como, em outros tempos, se falava em “examen conscientiae”, em cultura, em apostolado. A melancolia, a dúvida, o protesto foram já – conjunta ou isoladamente, as expressões da crise espiritual. A nossa expressão peculiar é a crítica. Daí, esse nosso perfil fugidio e alarmado, nervoso e afetuoso, árido e emotivo de hoje, que fica tão longe daquela gravidade sublime e ascética de Dante Alighieri, daquele idílio sonhador e satisfeito de Ariosto, daquela loquacidade apostólica de Victor Hugo. É só observar os nossos escritores. A poesia, a pintura, a arquitetura, a música têm sempre aquele perfil íntimo e solitário de um solilóquio, de uma elaboração científica e pensada, de um organismo complexo e sutil, como fosse a imagem de uma proposta ou o desenho de um problema. Sem descrição, sem moldura; numa cristalização essencial e exclusivamente lírica. É Camus ou Sartre; Ungaretti ou Montale; Carlos Drummond de Andrade ou Graciliano; Picasso ou Morandi. É o cinema ou a arquitetura; cada um, a seu modo, concedendo sempre menos ao passado, censurando o que não queremos ser, edificando o que somos. Que é, pois, crítica? E qual é a sua função? Parece inútil dizer que a crítica nada tem que fazer com a psicologia, com o complexo, com o preconceito, com a prevenção, com o mexerico. A crítica é sempre elemento objetivo e sereno, construtivo e dinâmico. Nunca envilece, nem nega, nem destrói pela sua própria natureza e pela sua intrínseca finalidade realizadora. Não é uma força que, por sua essência, se ponha contra ou a favor, como se fosse um árbitro alheio. É, pelo contrário, energia e vigilância que procuram a validade e a atualidade, a universalidade e a necessidade de uma obra ou de um princípio ou de uma afirmação com a serena análise que é expressão do idealismo e do interesse interior. Crítica é teoria e é prática: como teoria, ela é o próprio pensamento; e, como prática, ela é atitude ética. O que significaria, então, pensar, se não fosse também criticar? Como é possível pensar sem criticar? Pensar, sempre é síntese; e, como tal, sempre é seleção, escolha, adesão objetiva. Pensamento e crítica são atividades; atividades afirmativas, colocando algo de novo na realidade, sugerindo e promovendo algo de fértil e de fecundo no plano da história, no ramo do espírito. Deixar as coisas como estão é que não é pensar. Porque, quem pensa – se verdadeiramente pensa – só pode construir. Pensar é incessante construir. E o nosso “modo” de pensar hoje, o nosso modo de construir é a crítica, essa expressão de um interesse interior Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que nos avizinha da realidade e da vida. É essa a função da crítica. Uma função de análise, de alta e responsável separação entre o que está morto e o que está vivo, entre passado e presente, entre sinceridade e mentira, entre honestidade e hipocrisia, entre retórica e necessidade. Muitos ainda dos velhos hábitos vegetam na superfície da história. A tradição e a inércia sustentam-nos e toleram-nos por amor de “quieto vivere”. Mas a nossa sensibilidade reage salutarmente, numa atitude de “nausée”, de insatisfação e de desgosto. Quer ela a sua imagem, a sua idealidade; e procura-a na polêmica, na distinção, numa mediação que só à crítica cabe conseguir. E o nosso senso crítico de hoje tem, não há dúvida, as suas esperanças. Nessa sua intrínseca identidade de pensamento e de análise a crítica não significa necessariamente “crítica de”, “crítica contra”. Ela tem autonomia de vida, independentemente de um mundo que lhe esteja ou não para a frente como um obstáculo a ser superado. Ela possui uma dialética imanente na própria vida interior e individual do pensamento que – enquanto pensa – sempre elabora e analisa, sempre medeia e critica; e – enquanto critica – pensa; construindo sempre, em termos de humanidade e de valor. A sua polêmica é, pois, exterior, muitas vezes, somente porque se dirige ao passado e à realidade; mas é sobretudo aquela interior, no processo do espírito, que conta e vale; dando à crítica o seu sentido de necessidade. Aquela polêmica interior, imanente ao pensamento, é o essencial; aquela polêmica entre o subconsciente e o consciente, entre o instinto e o ideal, cuja síntese é a nossa dialética e a nossa construção. Assim, através da crítica, uma outra unidade se realiza: aquela entre a razão que vê e julga e o sentimento que acende e acredita. De modo que, bem longe de pensarmos que a crítica queira dizer negação, acabamos mesmo acreditando na sua função altamente positiva e construtiva. Não devemos temê-la, mas exigi-la, considerando-a como o único meio que a nossa “forma mentis” possui hoje para continuar no seu dever de construir os novos valores da história, as nossas razões da vida, os nossos ideais de ação, a nossa persuasão: valores, razões, ideais e persuasão que não repetem e não imitam, como o pensamento – se pensamento é – nunca é repetição e imitação. Nessa aurora a surgir sobre as ruínas da crítica, estão as nossas atuais esperanças; amarguradas por uma realidade que é sempre o “limite” do ideal, e sustentadas pelo anseio e pela fé que a própria crítica desperta na inquietação confiante de cada dia. (Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 6/10/1957) 365 366 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Literatura na Princesa dos Campos Gerais Bruno Enei No primeiro lustro de uma existência útil, nosso diário não poderia deixar de completar os trabalhos organizados pelo seu corpo de redatores, sem oferecer aos amantes da literatura, obras dos poetas princesinos que nos orgulham sobremaneira e projetam Ponta Grossa no cenário nacional das letras. Para muitos a surpresa encantará ao conhecerem pela vez primeira a alma sensível de nosso povo, congregada pelos pensamentos poéticos de Sigrid Lange, ou de Álvaro Augusto Cunha Rocha, ou de Edipo Ribas, esse maravilhoso trio que tão bem sabe lapidar a palavra e, burilando-a, apresentá-la como um sonho, ou como a vida sem forma. A par da nossa preocupação em confeccionar a página “Literatura na Princesa dos Campos Gerais”, outra nos acudia qual foi a de rebuscar em nossos meios intelectuais uma figura de real representação cognoscitiva e por isso, com autoridade, nos descrevesse a alma do poeta. Daí não vacilarmos ao escolher Bruno Enei para levar a bom termo tal delicado mister. É a indefinida, a tenra transparência que justifica a sugestão da poesia de Sigrid Lange. Visão, pressentimento, anseio perfilam-se em distâncias íntimas, refletem-se em penumbras tênues, somem-se no silêncio pensativo dos enlevos. E é a distância própria do espírito, a sua penumbra, o seu silêncio palpitante e vibrátil; lá onde o mundo inesquecível da espontaneidade e da liberdade vai se delineando com carinho e tremor, com esperança e melancolia. Sábado, véspera da vida; quando prevalecem – sem dominar – a idealidade, a transfiguração, a impressão; quando a Nausica de Homero percebe em Ulisses o seu sonho e a Silvia de Tasso, na límpida fonte que a reflete, tem a consciência da sua realidade. Aqui, não o episódio, mas como que a configuração e o presságio de uma ausência querida, onde a natureza – como uma tela – se torna desabitada e só. Tua sombra não mais o luar acompanha, nem a aurora teus sonhos adormecidos veste, e na praia, as tuas pegadas as ondas apagaram. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em outro poema, a luz e a noite parecem os termos de uma referência humana, de uma alternativa espiritual: Eu quero dormir naquelas montanhas azuis lá longe, ter por travesseiro as estrelas brilhantes, e a noite a envolver-me, infinita. E o morrer? Essa aparição pálida e muda que não deixa de visitar a aurora da vida? O mundo e o céu – porque se sentiriam vácuos – parecem solidários: Mas chegará o dia, eu sei, em que as estrelas se transformarão em lágrimas e lavarão a terra e a noite ficará eternamente branca quando eu não existir mais. Um dos pontos verdadeiramente altos desta poesia é “Beleza”: Beleza é distância. São as primaveras mortas e as que ainda não nasceram São nuvens, mares de ondas brancas em praia azul. São os silêncios verdes nas ilhas do pensamento. ou o voo longínquo de um pássaro seguindo o sol. Distância é beleza. É aí sobretudo evidente o valor da palavra como “res”, como elemento concreto e distante de uma pureza meditativa e idílica, vivendo e inebriando-se de uma paisagem criada pelo sentimento, confirmada pela natureza. Não há problemas. Não há, nem pode haver problemas e reações e protestos. É um mundo de espera, antes das coisas. Por isso, até aqui, essa linguagem delicada e aérea de sinais e de desenhos límpidos e tênues onde a transparência é sinceridade e a luz é o calor íntimo de uma geometria emotiva. Mas, qual não é a grata surpresa que outros poemas nos trazem, onde a técnica e o tema revelam compreensões novas, interesses profundos, 367 368 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos interrogações, insatisfações, conclusões de uma meditação mais grave? Ainda aqui, o ritmo conserva a sua vívida simplicidade. É ainda o solilóquio de um espírito que se vai fazendo. A cultura, a reminiscência literária, o aval alheio, a genericidade também não ousam turvar o pudor e a autenticidade de um empenho consciente, de uma personalidade que só conhece a sinceridade e a honestidade da primeira pessoa: meu, tenho, galgo, minha mão, eu. Assim, “Marítimo” é já uma sequência de constatações inelutáveis, insistentes, insidiosas: conclusões colocadas lá, como dado de fato. E o espírito, assustado e descorado, a lançar suas apelações até quando, embora sobre a areia, vislumbra a miragem de uma esperança: Peixes submersos no espaço. E meus sonhos? Barcos destroçados nos montes marítimos E minha ilha? Risos gravados nas ondas sonoras. E minha juventude? Rochedos rolados nas marés douradas. E meus ideais? Mas a fênix austral brilha sobre a areia. E este sentido cósmico, assim fatalmente peremptório e aceito que nos dá o poema “Abstrato”? Lembranças incônscias, certezas dedutivas! Nos abismos hiantes da memória voluteiam lúridos fantasmas: lembranças não invisas de outras eras. No poema seguinte, a ternura familiar para com a terra de nossa existência se expande com o sabor de uma tentação superada, com o carinho de uma declaração afetiva. Miragens e fábulas de eterna felicidade, mundos abstratos (que Debussy colocava longínquos e submersos), Éden, Arcádia, que a imaginação supõe, mas que não convencem definitivamente e não valem a “aldeia” contingente e real do nosso sonho, da nossa ação, da nossa dor quotidiana. Quase se aceitaria, mas o coração volta saudoso e fiel: Tenho visões de catedrais distantes, de lagos profundos entre montanhas brancas, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e de cidades eternas. Mas subitamente atravesso o riacho e galgo às pressas minha colina de verão, ao ouvir o badalar dos sinos de minha pequena aldeia. Aqui, uma pausa: a conclusão de uma jornada. O epílogo que se confunde com o novo prólogo. Há já um passado e um futuro que o presente constata e determina. Um sendo então, de relatividade, apesar de tudo; um balanço que não desestima, ainda que evitando a euforia; a consciência, enfim, que a vida tem outras experiências, outras aventuras, outras responsabilidades que o drama de cada um não deixa de querer, de provocar, de consumar, vivendo-as como alegria e tempestade. Peguei o pôr-do-sol das conchas em minha mão; pétalas do mar e da areia, cristais de areia. Peguei pérolas, pequenos mistérios das conchas do mar. Mas ainda não cheguei nas praias submarinas por onde as ondas passaram. É esta a poesia atual de Sigrid Lange: uma poesia que, cada vez mais, adquire sugestões e significados através de uma alegoria que é própria das coisas; através de um simbolismo sem arbitrariedade, sem esforço. __________________ A uma realidade ininterrupta e agressiva, sem espaço de aventura em sua contingência convulsa, sem brilho e sem folga em seu tecido sucessivo e compacto, Álvaro Augusto Cunha Rocha resiste com a “réplica” de sua poesia. E é palavra de evasão e de encontro, de fôlego e de enleio, de nostalgia e de propósito. Como um dique martelado contra a ameaça opaca e invadente; abrigo e suporte de quem algo perdeu, mas não renuncia, e fica como que à espera: observando, denunciando, lançando – vez por outra a prudente esperança e a pálida certeza de uma possibilidade, de uma vinda, ainda que não de um retorno. 369 370 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Se o presente, justamente porque presente, logra as instâncias, ele é que, então, leva o poeta para a intimidade e a solidão, buscando aí sentido, carinho, repouso. Repouso e energia. Socorre assim o passado, que é o ponto em que o presente se nos torna humano e saudoso, digno de referência, e evocação, de apego, como acontecimento que foi, como acontecimento que não é mais, e não se repete: malogro de uma parte de nós. A presença do passado, pois, contra a presença do presente: aquela, como autenticidade emotiva; esta como fatalidade insatisfatória. E o confronto alma-realidade, aspiração-contradição; com o pesar pela incompreensão, e a insistência sem renúncia. Assim, quer a sua poesia ser a revelação de uma interioridade que não se pode abjurar. É o sinal de um enlevo que ainda nos empenha e seduz. É tentativa, às vezes, estremecida e inútil de uma desculpa por não poder aceitar, por não querer mergulhar. Nada mais, e também nada menos: por uma questão, sobretudo, de honra, de respeito, de apego humano. Como perdido numa realidade que, por certo, não empolga, e que, entretanto, não elimina o patrimônio de idealidades e de intuições que a inocência sonha e acaricia solicitando, o poeta pronuncia a sua prece: que se lhe dê um lugar, que se lhe reconheça o seu no diálogo e no monólogo. Não o direito, mas a honesta afirmação que também existimos. Retirando-a do presente despido e lúcido: e o resto é noite, Noite só A eloquência se coloca então no passado; e o ilumina, e o multiplica, e o suspende numa altura sem mais alcance: Não precisou nem noite de São João para que eu o soltasse. Bastou a minha infância, nas asas da qual ele subiu alto, alto. Tão alto que se pendurou numa estrela. Aliás, é essa a condição: buscando ...sempre um remédio na mesma obstinada esperança de um tempo em simples tempo exaurido. E mil vezes, assim, ter nascido; ferindo-se ...contra o inesperado gesto vil, urbano, sem sentido. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E mil vezes, assim, ter morrido; descobrindo ...sempre no vasto espaço, que algum vago amor está crescendo. E mil vidas, assim, ir vivendo. E se “Balão” é a sublimação afetiva de um tempo “exaurido”, se “Condição” é atuante obstinação entre surpresas e constatações irremediáveis, “Cidade Marítima” é o poema em que improvisamente descem as luzes, e a existência parece “calcinar-se” numa sobrevivência sem motivo e sem esperança, concluída e inconcludente: Do sonho longamente ressentido, parto e cumpro o destino circular da inconsequência. Um ponto final sem “depois”? É sempre possível ao espírito renascer e recomeçar. O seu destino é eterno “prelúdio”: A terra, o pão, as semeaduras, a água das madrugadas o imenso amor dos homens e mulheres verdadeiros – límpidas fontes da árvore da vida estuante e difusa – clamam Que teu arco se faça pura lâmina na carne, e que o sangue mais íntimo, incontaminado e recôndito, jorre e cresça no desagravo do poema É um augúrio, como se vê, o augúrio da persistência, de uma réplica dentro da vida, embora com aquela prudência, com aquela disposição da consciência que não aceita mais a confiança fácil e não se deixa tentar pela euforia. O augúrio de quem, após a “nausée”, apesar de tudo, retoma, decidido e disposto, a sua “crux” e se encaminha pelos eternos andaimes da vida. Poesia que se caracteriza pela precisão, pela nitidez de uma inteligência que se controla e se precavê. Poesia que, por uma exigência de coerência interior, não faz concessão e se coloca, vítrea e responsável, num plano precioso e elaborado de desenho íntimo, de inspiração custosa e acariciada, mas não gratuita. A generosidade, o abandono, a espontaneidade da transfiguração parecem ainda prematuros e inoportunos numa disposição prevalentemente preocupada com a introspecção 371 372 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos autobiográfica, com a procura da palavra e com o seu valor de propriedade e de língua. Escritor, antes de mais nada. Sensibilidade delicada, gentil, circunspecta, onde a mensagem se manifesta na identificação com a honestidade do artesão que apura com escrúpulo e que aí encontra parte da solução e do conforto. Entretanto, é poesia que cresce, tornando, a cada momento, mais humano e autêntico o seu “travo de sal”. __________________ Em Edipo Ribas, a poesia quer ser a conclusão e a apoteose de uma experiência. A dúvida, o amor, o carinho, a paixão, o pundonor são sentimentos e atitudes que – de imediato – na poesia se tornam épicos, transfigurados por uma solidariedade de cavalheiro e de trovador: sentindo, crendo, empenhando-se humanamente naquilo que diz. Poeta da sensação improvisa, vária, contraditória, revivida sempre numa tonalidade maior. Há nele uma atmosfera longínqua e profunda de austeridade e de afirmação, e a delicadeza e a dignidade de uma homenagem. Sempre essa força magnífica que prorrompe. A poesia é a dádiva descontínua e sincera da sua comoção, a forma atuante de uma gratidão. Consequentemente, o seu dicionário é baseado na eloquência do período, no respiro de uma estrofe, no conjunto do poema. Não é a palavra por si, mas a frase; e o seu ritmo, a sua disposição: Com este amor de altos destinos como longínquo voo de pássaros de fogo, rubros como ígneos pensamentos de amor, rumo ao transcendente roteiro das auroras. E os síngulos termos querem ser pausas e concentrações intensas e apaixonadas de cor: fogo, aurora, morrendo amargo, morrendo quente, grandíloquos versos, madrugadas ternura. Isso explica “Súplica”, onde não precisamente a volúpia e o senso ditam as expressões, mas as expressões recorrem ao senso e à volúpia para declarar, evidenciar, convencer. Labaredas de ardência emotiva e galharda. Sobretudo em sua primeira parte, “Reflexão” é um “ex-abrupto” impetuoso e apaixonado de crise, onde a meditação improvisa se faz angústia à busca de uma resposta, abertura, sem reticência, de um drama, interrogação que procura convencer-se: Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ...... E esta ânsia de infinito? E a alvorada de um sexto sentido que lhe inclina a ver a vida de outro ponto? É alvorada e programa: A necessidade compulsória de ser bom, tolerante, compreensivo com os que sofrem mágoas e desenganos, frustrações e injustiças É essa generosidade, essa nobreza de sentir, essa impressão imediata que se deixa apreciar, que revela uma personalidade com suas inquietações e suas dúvidas e seus idealismos. Um de seus mais altos poemas chega ao indefinido da transfiguração: como se a escultura cedesse o lugar à pintura, e a realidade ao sonho. Não é a presença, mas um anseio como que visitante a eliminar a distância, a restabelecer a unidade conservando a solidão: Não te perturbes, querida, pois é minha alma de poeta que te visita...... Momento gentil, sem pausa do primeiro ao último verso; como um andar de melancolia, como um sopro de carinho. “Chirú Mena” é uma concessão, um exercício de simpatia. Mas, também nesta estampa gaúcha os “olhos andarengos”, “as tristezas gaudérias”, a saudade da “querência” procuram a interioridade do vingador de Sílvia. É deste fundo sadio e independente que se desprendem melancolias, insatisfações, anseios, amor. E a poesia é o seu momento solene e pessoal de gala e de rigor. (Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 5/6/1959) O Humanismo e a Renascença Bruno Enei Já nas “Laudi” de Francesco de Assisi, é possível colher uma atitude de compreensão e de amor para com o mundo e suas criaturas. 373 374 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Há, na poesia dele, como que natural necessidade de aproximação e de reconciliação entre os seres e os elementos que constituem o conjunto da realidade e da vida. Ele é o primeiro poeta que reconhece, canta e postula uma unidade e uma harmonia entre todos e tudo, como aspectos sagrados de uma mesma criação divina, a qual justifica tudo, e tudo santifica e iguala num plano de beleza, de irmandade, de ação e de alegria. A vida é e pode ser um hino de gratidão e de alento. Mais tarde, no século XIV, essa atitude “francescana” torna-se mais leiga, mais complexa, mais totalitária e consequencial. É Dante Alighieri pondo o homem diante de suas responsabilidades e julgando-o “sub specie aeternitatis”; revelando, condenando, exaltando o que ele aqui – na terra – como homem, como cidadão, como pai, como filho, como inteligência e capacidade, deixou de fazer podendo fazer, ou fez não o devendo. Dante é poeta do homem vivo e ativo, do seu destino, responsável do seu destino e do conteúdo de sua vida terrena, que deve ser marcado de amor, de atitude, de ação. Em Petrarca, essa atitude humana torna-se ainda mais lírica e mais íntima, chegando mesmo ao tom de uma confissão, de um desabafo de anseios, de desejos e de disposições psicológicas que prescindem ou seriam dispostas a prescindir de qualquer preocupação metafísica. É a vida por si, a glória, o amor, a beleza, a ternura que brotam improvisamente no seu canto de homem melancolicamente sensível e enlevado diante das possibilidades das sugestões e da plenitude de uma existência nobre e vivida com intensidade e pureza. E Giovanni Boccaccio é o narrador objetivo e sereno da existência. Não há já mais nele a preocupação de um julgamento transcendente. Não há já mais a presença de uma crise, a melancolia de uma dúvida, a perplexidade de um dissídio. Ele é o cantor da vida em seu idealismo imanente: juventude, amor, inteligência, amizade, compreensão, liberalidade. As novelas de seu “Decameron” são a documentação lírica e a consagração secular e multíciple de valores históricos e humanos, de razões e finalidades pelas quais a vida é bela em si e por si, valendo a pena de vivê-la na sua nobreza de sentimentos e de realizações. Assim, é possível constatar – do século XIII em diante – a presença de sentimentos, de motivos e de ideais que não são idênticos e que, cada vez mais, revelam uma transformação espiritual, uma sensibilidade nova e uma nova concepção da vida em “fieri”; enriquecendo-se, dia a dia, de autor em autor, de obra em obra, exigências, de clareza e de convicção. A educação vai perdendo a sua rigidez e a sua unilateralidade. A cultura tende a abandonar o abstratismo e o dogmatismo. A religião e a ética se abrem, tornando-se sensíveis a outros deveres e a outros valores. A literatura sente e canta temas, motivos e aspectos novos do indivíduo e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos do homem livre, independente, cônscio de si e de suas possibilidades. Os gêneros literários multiplicam-se significativamente, criando a historiografia, a epistolografia, a biografia, a dramática, a oratória, o idílio, a alegoria, o poema. Também a música, a pintura, a escultura, a arquitetura se renovam profundamente e procuram – no mundo clássico e alhures – técnicas, sugestões e ousadias de perspectivas, de formas e de cores que, daí em diante, serão capazes de produzir aquele milagre de beleza e de perfeição que é o patrimônio artístico dos séculos XV, XVI e XVII da Europa e da Itália, em particular. Paralelamente, deslumbra-se – em toda sua riqueza e significação, na sua objetividade e energia – o mundo pleno e orgânico da Grécia e de Roma. Aquelas obras, aqueles pensadores, aqueles poetas tornar-se-ão o modelo, o alvo e o elemento de uma competição, de um empenho, de uma referência em quanto se procura igualar e superar, estabelecendo os “cânones” de uma beleza nova e diferente, de uma forma própria e particular, de uma perfeição subjetiva e original, ligada à própria inspiração e à própria visão da vida e de seus problemas. Diante do deslumbramento, surge a aventura como possibilidade inesgotável de experiências, de heroísmo, de sugestões afastando a tentação da mediocridade, tonificando o alento, colocando o espírito num ritmo de elevado “platonismo” que leva o homem para os mares, para as terras, para o desconhecido, fazendo com que tudo se torne descoberto na ciência, na consciência, na análise, na crítica, na formulação da lei e do princípio que explicam e dominam a fenomenicidade. Atrás e dentro desse elance, o realismo e as exigências práticas do comércio, da indústria, da política, da nação como potência e supremacia após os universalismos da Idade Média. A “fortuna”, o “acaso”, o “fato” perdem seu sentido e abandonam seus troncos desprestigiados. O homem toma posse de seu mundo. O espírito e o universo, a realidade e a idealidade compõem-se na unidade de um monômio, feito de equilíbrio e de lucidez. E tudo se torna história do homem: a história da sua inteligência, da sua ética, da sua aventura, do seu sonho, do seu empreendimento. A história da sua atuação e de seu encanto dentro e diante do espetáculo da natureza e da possibilidade do existir. A impressão facilita e amplia a difusão da nova espiritualidade. A pólvora inicia o drama da ambição e da imposição. A política define a sua autonomia, pretendendo separar-se da ética em obediência aos direitos da atividade econômica e utilitária. A jurisprudência recomeça o exame da sociedade e da sociabilidade. O sentimento religioso mortifica-se sob o impacto exuberante e unilateral do primeiro entusiasmo. Entretanto, uma ética de equilíbrio, de dignidade, de atuação, de 375 376 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos responsabilidade, de qualidade, de honestidade satisfaz e caracteriza os espíritos melhores. Por outro lado, o apego à vida, à sua beleza de luz e de oportunidades absolutas desperta formas generalizadas de hedonismo e de epicurismo, em cujo seio aparecem frequentemente o fastio e a desilusão: premissas sintomáticas da necessidade de uma futura revisão, em sentido religioso, a qual caberá ao Romantismo, promovendo-a e atuando-a após longa e difícil crise. O Humanismo e a Renascença são a expressão cultural e filosófica da transformação espiritual que se descortina ao longo dos séculos XIII e XIV. Quando todo esse lento e constante movimento espiritual adquire consciência de si, objetivando-se na convicção e na fé inabalável sobre as autênticas possibilidades da razão humana resolvida a tudo reorganizar dentro de um plano crítico e científico de pesquisas e de realizações, surgem então o Humanismo e a Renascença: o primeiro, como fase propedêutica de uma cultura e de uma erudição cujo interesse são justamente o “homem” e as “humanae litterae”; o segundo, como afirmação da nova espiritualidade, celebrando a sua conquista na filosofia, nas artes, nas ciências naturais e jurídicas, na matemática. O século XV é a idade do Humanismo. O século XVI é a idade da Renascença; aquele significa a conclusão da Idade Média, este o início da Idade Moderna. O centro do movimento foi a Itália, ainda que algumas tendências a particulares exigências surjam, posteriormente, como longínqua consequência e já sob a influência de sucessivos estímulos, como o naturalismo, o empirismo, o racionalismo e o iluminismo, os quais todos assumem em caráter mais polêmico e drástico diante da realidade social, religiosa, política e econômica dos séculos XVII e XVIII, quando o triunfo da razão coincide com a sua derrota, preparando – sentimentalmente – o caminho do Romantismo e o início da Idade Contemporânea. O movimento não foi uniforme e geral. Nem podia ter caráter popular. São as grandes cidades da Itália, sedes antigas e tradicionais de cultura e de ciência, que hospedaram os primeiros humanistas: Firenze, Roma, Milano, Napoli, Bologna, Mantova, Urbino, Ferrara. São as grandes e muníficas Cortes das recentes e potentes Senhorias que amparam e promovem as artes e o pensamento: os Medici em Florença, os Papas em Roma, os Visconti em Milão, os Aragonesi em Nápoles, os Gonzaga em Mântua, os Della Rovere em Urbino, os Estensi em Ferrari. Em poucas décadas, a Itália e a Europa se transformam em uma imensa e sublime galeria de pinturas, de esculturas, de palácios, de músicas, de poetas e prosadores que organizam bibliotecas, que Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos promovem recepções, que animam as discussões, os salões e as academias. A tentação de citar nomes e obras é apenas dominada pela consideração de que serão a leitura e o estudo dos síngulos poetas e das síngulas obras que poderão testemunhar e documentar as afirmações emitidas e os conceitos de caráter geral de uma apresentação preliminar e introdutiva, como a presente. Resta dizer que não seria exata nem suficiente uma definição do Humanismo e da Renascença que não considerasse a ampla e importantíssima produção literária em língua latina. Bastaria, para isso, ter presente que a determinação de usar a língua italiana nos tratados e, em geral, nas obras de caráter mais propriamente filosófico e científico surge na metade do século XV, quando o Humanismo floresce e atua em plenitude de sua energia e de seus propósitos. Pelo que se refere à produção literária em língua italiana, deve-se, desde já, advertir que – à parte as matizes e a peculiaridade dos síngulos escritores – apresenta-se ela com uma fisionomia e tonalidade que a distinguem terminantemente da Literatura da Idade Média. A literatura italiana do Humanismo e da Renascença sente-se, em geral, alheia às preocupações de caráter moral ou religioso ou político. Não é essa a sua razão e o seu motivo. Não a gravidade e a perplexidade, mas a disposição contemplativa da natureza e do homem e uma atitude pura e ingênua movem a palavra, dando-lhe um ritmo sereno e risonho de admiração, de gáudio, de solidariedade. As coisas aparecem em si, por si, livres, como é livre a sensibilidade do artista. É como que um canto de descoberta, de surpresa inesperada e improvisa: uma visão. A visão de um mundo que não é mais antigo e rotineiro porque a “renascença” do espírito lhe oferece uma primavera de distinções, de autonomias, de essencialidades. Le donne, i cavalieri, l’armi, gli amori, le audaci imprese io canto. Assim, coisas. Nada mais do que coisas; sem alegoria, sem símbolo, sem metáfora, colhidas e vividas como notas de uma melodia, como elementos de um ritmo, como sinais de uma unidade: a melodia, o ritmo, a unidade da vida, da natureza, do ser e de seu devenir. Um mito e uma fábula dentro dos quais os homens vivem o sonho de beleza, o gosto de existir, a fixação de uma íntima esperança, a fantástica proteção do idealismo e da ternura dos momentos de encantamento. Por isso, a linguagem é sempre leve e diáfana, a frase breve e delicada, o ritmo 377 378 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos claro e gentil. Entretanto, nada há de místico ou de primitivo nesta simplicidade. O idílio é uma aspiração. E porque é uma aspiração, a consciência vígil do escritor transforma-o improvisa e frequentemente em elegia. O idílio é a confissão e a configuração de um desejo, da vontade de abandono entre as luzes e as sombras de uma natureza remota e idealizada. E a elegia é o retorno em si, a consciência da brevidade e da inconsistência do sonho sonhado. Assim, uma nota de melancolia vela e dissimula a contemplação risonha. Parece que a inteligência não seja tudo, que a cultura não resolve, que algo ausente reclame a sua presença e a sua crença: um criador, um Deus, que explique e justifique e ampare, assim como acontecera anteriormente durante os quinze séculos de cristianismo que a cultura não poderia mais destruir ou ignorar como religião e consolo. Quant’è bella giovinezza, che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sia di doman non c’è certezza. Assim se exprime Lorenzo de’ Medici: com o enlevo e o desencanto de uma contemplação e de uma consciência. E ao redor de Lodovico Ariosto – a expressão mais alta da lírica nova – e ao redor de Niccolò Machiavelli – expressão mais realística do novo pensamento – vive a plêiade numerosa e excelente dos artistas, dos escritores, dos pensadores que o Humanismo e a Renascença deram à Itália, colocando a sua literatura no plano altíssimo que ela soube conservar durante os séculos XV e XVI. (Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 11/8/1962) Carta a Sigrid Renaux Gentilíssima Da. Sigrid Queira perdoar o atraso desta carta. Maria nem sempre sabe ser clara e pontual em suas obrigações. Mas corro “ai ripari.” Os versos de Dante que Eliot cita pertencem ao “Purgatório”, canto XXI, vv. 133-139: Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Ed ei surgendo: “Or puoi la quantitate comprender dell’amor ch’a te mi scalda, quand’io dismonto nostra vanitate, trattando l’ombre come cosa salda.” Erguendo-se ele: “Tanto me extasia o amor – disse – em que por ti me acendo, que da nossa vaidade me esquecia, tratar sombras, quais corpos, pretendendo”. Estamos no quinto “girone” do Purgatório: onde se purificam os “avari e prodighi”. Entre eles Stazio (Publius Papinius, 50-26 p-C). Stazio não é porém, como o seu companheiro de pena, papa Adriano V0, um avarento. Pelo contrário, é um liberal. Pecou por prodigalidade. Afinal, trata-se de poeta e não de um burócrate. Os cantos desse quinto “girone” vão do XIX ao XXII. Muitas coisas acontecem aí. Muitas personagens se movem. Mas, o que, sobretudo, empolga e enternece é a atmosfera de recolhimento e de recordação que tudo envolve e enaltece. Um mundo solitário de compreensão e humildade, de arrependimento e de dignidade. Seres que parecem terem renascido, novos e livres de quaisquer de nossas pequenas e comuns falhas de vaidade, de bazófia, de superioridade, de autossuficiência. Meu Deus, meu Deus, como é tudo muito estúpido no homem da terra! E como é difícil não ser assim! E como agora a gente sente que seria tão bom se fosse diferente! E um senso de gratidão a Deus domina os espíritos daquele lugar, enquanto continuam ouvindo exemplos de pobreza exaltada, de generosidade premiada, de avareza punida. Condenação do vício e louvor da virtude contrária. Assim vão purificando-se. No meio de tudo isso, o estrondo de um terremoto. É o sinal que uma alma acaba de purificar-se e recebe as energias para subir. Trata-se justamente da alma de Stazio; do gentil, delicado, afetuoso, lúcido, puríssimo Stazio. Sem saber quem são aqueles peregrinos, explica e fala, acompanhando Dante e Virgílio. E, a um certo momento, apresenta-se: Stazio la gente ancor di là mi noma: Cantai di Tebe... (Purg. XXI, v. 91:102) Só a Virgílio atribui, pois, o valor de sua poesia, a razão dele ser o poeta que foi, que não esquece – embora purificado – de ter sido. Por isso: 379 380 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E per esser vivuto di là quando visse Virgilio, assentirei un sole più che non deggio al mio uscir di bando. O belo é que Stazio não sabe que Virgílio está ali. Não sabe que está falando com Dante e que Virgílio o está ouvindo! Na terra, quando a gente está ausente... É tão difícil não ceder à tentação de insinuações... Diante dessa situação, Dante sorri, comovido e extasiado. Dá quase a impressão de não ser capaz de conter-se. Mas Virgílio autoriza-o a falar. Então, no ímpeto característico de suas melhores páginas de afeto, de generosidade e de entusiasmo, Dante revela a Stazio a presença de Virgílio, de Virgílio, naturalmente, só espírito; desse Virgílio a quem Dante também, na terra e no além, na poesia e na purificação, tanto deve. A revelação de Dante surpreende Stazio, despertando-lhe toda a sensibilidade e delicadeza de ser humano e de poeta. Inclina-se para frente, como que querendo abraçar os pés de Virgílio. Como se isso fosse possível. Como justamente se faria na terra. Mas Virgílio nega-se: ... Frate, Non far, chè tu se’ ombra e ombra vedi. Então, Stazio se levanta e justifica o seu ato, revelando a sua devoção e atribuindo-o à sua gratidão ao poeta de Eneas, ao “guia” de inumeráveis gerações de jovens que na poesia de Virgílio encontraram o estímulo, o exemplo e a confiança para tornarem-se poetas e para acreditar nos valores do espírito. E isso acontece onde afinal não deveria acontecer: no Purgatório, mundo onde os valores terrenos, por altos que sejam, deveriam ser esquecidos. Não acontece na terra, onde deveria ser natural e normal lembrar e exaltar, acima da mediocridade e da banalidade, os valores e as idealidades da nossa vibração interior. Aqueles versos, pois, lembrados por Eliot são a expressão de um carinho profundo, de um apego absoluto que, em um momento de euforia, já no além, chegam a fazer com que o devedor e admirador esqueça a atual condição do puro espírito, usando uma forma que é tão terrena e humana, tão gentil e delicada como se se tratasse ainda de realidade corpórea e de substância física. Uma página, em suma, da nossa mais delicada, da nossa mais ideal e inesquecível humanidade: aquela humanidade que Dante sublima e santifica também no além, onde a gente desse grande e eterno poeta se apresenta nas formas nobres e dignas que deveríamos evidenciar na terra. Eliot, entretanto, é um Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos daqueles que não espera de morrer para ser melhor, para ser gentil, idealista. Coloca Dante na terra e aqui procura de atuá-lo. Sei que a Sra. não precisava de todas essas explicações. Mas não soube conter-me. Quis, mais ou menos, recriar a situação, para que mais evidente e íntima lhe se evidenciasse a delicadeza, a humanidade, a cultura de Eliot. Foi ele lá, na Divina Comedia, procurar um dos momentos mais sublimes da gratidão, da admiração e da ternura. A gratidão em nome do espírito, da poesia, da idealidade; da manifestação de um apego a quem nos deu a alegria e a nobreza das idealidades e dos sentimentos eternos. Uma palavra de exaltação à poesia! Parece quase irônico, minha gentil Senhora, parece quase irônico isso hoje, quando a poesia é a criatura suspeita e a inteligência algo que, para se conservar autêntica, precisa novamente procurar o silêncio, as catacumbas e os... “botões”. Que linda lição nos dá Eliot, lembrando esse trecho de Dante... justamente quando, como dizia Petrarca, “povera e nuda vai, filosofia”! Dante! Esse mundo de pensamentos e de emoções, essa fonte irresistível de ternura e de nobreza, de aristocracia e de espiritualidade! Sim, penso em Goethe, em Novalis e em Hoelderlin. Duplamente: porque sei que a Sra. os aprecia e porque, como Catão, voltei na minha velhice a estudar o alemão, com o pastor João Pedro Bruekheimer, em um curso de extensão universitária que eu mesmo, como Diretor do Departamento de Letras, organizei para despertar a mocidade e esta nossa atmosfera de mediocridade e de gratuidade. Assim, nas IVas feiras, sou aluno de alemão e, no sábado, professor de Língua e Literatura Italiana: um outro Curso que também organizei. E vamos indo muito bem. Temos 70 alunos no Curso de Alemão, 140 no de Italiano. Aliás, tenho aula às 16,30. Por isso, despeço-me. Devo ainda “neun Zätze bilden”. Leben sie wohl, pois, meine Dame Renaux; leben Sie wohl. Daqui a pouco iremos cantar: Alle Vögel sind schon da, alle Vögel… Não posso, não devo ficar atrás de Maria, que estuda alemão com afinco e com o propósito de superar-me. Recomendações ao Dr. Renaux e a seus filhos. Ponta Grossa, 22 de junho de 1966 381 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 382 Impressões de um leitor contemporâneo119 Bruno Enei O que, sem tergiversação, distingue e caracteriza a poesia contemporânea face ao passado, ainda que na sua livre e imprescindível peculiaridade, é a consciência lúcida e difusa do que ela deve ser, do que ela não mais pode ser. E isso, naturalmente, não de improviso e nem em um só tempo. Entretanto, após a inevitável fase de transição, nenhuma saudade seria já concebível e nenhum retorno e concessão compreensíveis. Há hoje efetivamente, no mundo da poesia, um passado e um presente inconfundíveis. E não é a superioridade dos resultados, mas o próprio ponto de saída, o próprio modo de conceber a arte que estabelece e exige essa distinção. Como os rios, também a arte contemporânea teve que abrir o seu caminho, escavando, sem adaptação e conformismo, o leito por onde só poderia encontrar saída a plenitude de sua humana presença. E o seu leito seria sua própria plenitude, a coerente consequência e a válida testemunha dessa plenitude; incontível – como acontece – por meios e recursos que não sejam os seus próprios. Em obediência a esse seu austero e doloroso destino de albatroz, teve o poeta contemporâneo, na infinita e legítima liberdade da sua natureza criadora, de fazer “tabula rasa” em torno de si para poder, então, trazer até nós, sem mais exegese e muleta, apenas a objetiva indicação, a evidência lírica, o elemento concreto de contemplações, de confirmações, de conclusões, de pressentimento, de ternura. Trata-se assim de um mundo que não se está descrevendo ou ornamentando como se fosse preexistente e extrínseco (paisagens, acontecimentos, instituições), mas, pelo contrário, de um mundo que se está construindo e criando; imagem de uma inquietação, realidade de um anseio, símbolo de uma emoção a serviço de si mesma. Assim, como a formulação de uma lei científica descobre, fixa e revela o mistério do fenômeno que, até então, ignorávamos; da mesma forma, o poeta hodierno descobre, fixa e revela a visão subjetiva e humana da sua meditação e idealidade. É por isso que o seu melhor acento evita o canto, se concebido como adição e reforço. Na sua própria liricidade, faz-se objetivo, essencial, sutil como um conceito; humilde e sublime como uma inelutável e religiosa contribuição; ingênuo e emotivo como uma revelação. Este texto incorpora várias correções que o professor Bruno fez nas margens da página do jornal. O próprio título, “Impressões de um Leitor Contemporâneo”, saiu errado no jornal, que omitiu a palavra “Contemporâneo”. 119 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Não se trata mais – é preciso insistir nisso – de uma “saborosa” idealização, de um cativante “embelezamento”, de uma genial restauração, que da habilidade eloquente e ornada do poeta era a única coisa que cada um de nós estava acostumado, por um hábito de séculos, a aguardar e exigir. Não é mais assim. A palavra não é vazia e neutra. Idealmente, não existe no dicionário que a pode registrar. Acabou de ser retórica e ornamento. A cor, a nota musical, a palavra hoje, na verdade, existem somente, em termos de arte, no momento em que se tornam e em quanto forem imagem, identificação lírica, representação de um sentimento, idealidade. São “res” e não “flatus”: atitudes, responsabilidade, conhecimento lírico e fantástico. É esta natureza teorética e construtiva que se deve hoje sentir e colher na poesia contemporânea. Ela não é mais lazer, não é mais prazer. Tem a seriedade, a austeridade, a necessidade da síntese. É uma síntese, embora na sua forma peculiar de lírica e de fantasia. Essa poesia sai, e não por sua culpa, do nada. Ninguém pode dizer de possuí-la. Nenhuma ideia abstrata, nenhum mito, nenhum cálculo ou conveniência a absorve ou devora ou humilha ou intimida. Cansada de frustrações; impaciente de todas e quaisquer concessões hegelianas; possuída de imenso afeto por esta débil e delicada semente humana, que em nós está ao léu e desamparada; preocupada com o que – após as amargas experiências de ontem – poderá ainda vir a acontecer; certa – como em Plotino e em Marsílio – do que de belo e de superior seria possível; amargurada pelo que é e convicta do que poderia não ser; a poesia contemporânea não renuncia, todavia, à esperança e à sugestão e – a seu modo – procura iluminar, comover e estimular com a seriedade e a beleza da sua presença e autenticidade. É por isso que, cada vez mais, torna-se inconcebível e gratuita a pretensão daqueles que se obstinam em procurar na poesia contemporânea os ensinamentos e os vestígios do passado, surpresos e perplexos porque, no lugar da rima e da métrica, dos tropos e dos gêneros, da sintaxe e das regras encontram versos brancos, liberdade, analogias, obsessões, pausas, contrações, valores fônicos e evocativos... Não por polêmicas, evidentemente, mas porque a poesia está trabalhando, construindo e criando – o que não poderia não acontecer – os meios inexistentes e adequados para a sua realização expressiva. Sem esse mínimo de considerações preliminares, não é possível compreender a poesia contemporânea. Kafka, Sartre, Camus, Ungaretti, Quasimodo, Montale; Rilke e o modernismo brasileiro, Guimarães Rosa e Drummond de Andrade e o próprio Manuel Bandeira perderiam inevitavelmente o sentido e o valor que possuem. 383 384 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Para a intelecção e a apreciação da poesia contemporânea, seria já um bom começo lembrar-se das palavras de um crítico de renome: “A poesia nos vinga de não sermos deus. Deus é conhecimento imediato, universal, perfeito; a poesia é o esforço de avizinhar-se a este conhecimento, com a amargura de nunca poder a ele chegar. É esta dor que leva os poetas de hoje a escrever”. (Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 4/12/1966) A dor da poesia contemporânea Bruno Enei É, pois, a dor que leva o poeta de hoje a escrever; isto é, não é uma disposição literária mas uma atitude. Entretanto, não sobre ela escreve o poeta, sobre ela em si ou dele – indivíduo; mas pela dor, pela sua essência humana de inquietação, de indagação, de providência. E, logo, de alento. Sim, de alento, porque se trata, direta ou indiretamente, de uma revelação em que se faz um processo à razão (já iniciado, aliás, com Kierkegaard); não se quer, todavia, negar que uma ordem humana não deve sempre e legitimamente ser uma ordem de razão. O mundo – a nossa presença aqui, sobretudo – tem que ter sempre a sua teleologia. E é porque a temos que a poesia, na verdade, quer chamar à sua responsabilidade a razão: essa árida, temerária, oportunística razão que – por ter, desde o século XV, podido fácil e inevitavelmente atingir tantos e sucessivos triunfos – acredita certo o seu rumo unilateral e acaba tornando-se eufórica, abstrata, arbitrária ao ponto de abandonar o homem e de reduzi-lo a aparência, a função, a quantidade para – então – pensar de poder dispor da história, como se a história fosse a história dela e não dele, o homem; que é quem só explica e pode explicar ambas: razão e história. Um tempo – começa por Petrarca – a dor era frequentemente um prazer: nobre cômodo, privilegiado pretexto de sonhos, saudades, descrições. Acrescente-se ainda mais alguma coisa: erudição, casticismo, imaginação. Pronto: de um modo geral, estava feito um poeta. Oh, então, o encanto do idílio e da bucólica, quando os calmos poentes, as risonhas auroras, os límpidos rios, os longínquos bosques, o céu azul serviam de encosto ao devaneio! Hoje, a poesia – a melhor e mais autêntica poesia – cada uma a seu modo e dentro da exigência que a move, repele isso tudo, relegando-o, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ao máximo, ao romantismo, e, na verdade, nem ao melhor. Ela tornou-se íntima, pudica, êxil ao ponto que muitos – surdos ou interessados – não a distinguem ou a acusam de pessimista ou de derrotista e até de fácil e simples que qualquer um faria, antepondo-lhe assim a velha retórica de um tempo e as grandes defesas e os alados panegíricos. Entretanto, a sua austeridade, a sua transparência, a sua essencialidade deve-as a poesia contemporânea ao sentimento da dor que a sustenta e move; uma dor que é frustração e melancolia; angústia e anseio, temor e esperança, constatação e sonho, tédio e empolgamento, estado de alma ferido e atraído por uma perspectiva de humana “existencialidade” que – removidos os obstáculos – seria possível e irresistível – aqui e agora – como única e sublime salvação, como início novo de competição, de diálogo, de espiritualidade descoberta na beira do abismo. Assim, após o romantismo, a dor teve sempre mais claramente duas funções fundamentais: tirar à literatura a sua origem “literária” (que, na verdade, não lhe foi nunca própria) e dar ao poeta a consciência e a validez de um dever, de uma responsabilidade, de um risco que – sendo em nome da verdade – vale a pena enfrentar. Sem a compreensão desse afeto íntimo do poeta pelo sujeito, sem a admissão da legitimidade dessa solidariedade que repele o culto da palavra em si e que o imerge na sua visão para que da clareza “lógica e fantástica” se faça, fatalmente, o termo concreto que a revela, ninguém pode sinceramente entender ou comover-se diante de uma página sequer da arte contemporânea, sentindo-lhe o aperto, a delicadeza, a disposição para o sorriso e a cordialidade. (Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 11/12/1966) Breve introdução ao estudo da estética Bruno Enei O caminho de Platão a hoje, percorrido pela Ciência estética, tem sido dos mais lentos. Não obstante o fato de uma multíciple e quase interminável bibliografia de caráter crítico e literário, que não seria difícil de alegar como prova do interesse que a arte sempre mereceu, não se pode negar que houve tropeços, desvios e incertezas de toda sorte no estudo do fato artístico. Maximamente, no sentido doutrinário e especulativo, que é 385 386 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos o que interessa. A literatura, por assim dizer, estética não teve, desde o início, a idoneidade para estabelecer princípios metodológicos, para formular os limites e as peculiaridades do novo campo de indagação. Não teve a consciência lúcida e firme que lhe permitisse individuar e caracterizar a natureza particular dos novos problemas, das diferentes exigências e objetivos. Um semelhante trabalho exigiria não somente um conceito maduro e profundo do espírito, como também − e sobretudo − a instância lógica da necessidade de uma distinção intrínseca ao processo espiritual, sem o que não seria possível edificar a nova ciência. Ao lado do momento lógico, econômico e ético do espírito, já, de certa forma, individualizados e admitidos, precisava − como afirma Benedetto Croce − reconhecer e postular a existência de um outro momento, igualmente distinto e necessário: o momento fantástico. Condição do fenômeno artístico. Com isto, seria clara a visão global do espírito, único e absoluto responsável, na sua dialética e unidade, de toda a realidade humana na sua identidade e distinção. A afirmação da autonomia e da distinção no momento fantástico seria, pois, a imprescindível condição para o nascimento efetivo e o sucessivo desenvolvimento de uma doutrina estética. Ora, inicialmente, e durante muitos séculos, esta distinção na vida do espírito não houve. E, ainda menos, poderia ser sentida e satisfeita a outra e mais decisiva exigência de descobrir e reconhecer a particular natureza da fantasia, como última e autônoma possibilidade do espírito. Daí o avanço demorado, incerto e inadequado, sobretudo até o século XVI, dos estudos literários e críticos. Não há ainda, é a opinião de Croce, uma ciência estética. É sobretudo a retórica que inspira aquela produção, empenhada em leis, normas e modelos formais de beleza e de perfeição, como objetivos únicos da obra de arte e, afinal, como única exigência, também. À parte os pormenores e detalhes, será sempre possível, assim, compendiar em três pontos fundamentais todo o pensamento que o Classicismo, a Idade Média e a Renascença nos consignaram em torno do problema da arte: uma concepção rigorística, considerando-a deleite, e, por isso mesmo, indigna da esfera nobre do espírito e da “República”; uma concepção pedagógica, reabilitando-a, na sua função de agradar e de educar; uma concepção formalística, elevando-a a um plano de abstrata beleza e de olímpica finalidade. Em suma, a arte-hetera, a arte-instrumento, a arte-marfim. E nada mais, ou pouco mais e sempre em termos de pressentimento, de isoladas intuições nesta ou naquela idade, deste ou daquele escritor. Precisa, mais ou menos, chegar aos nossos dias para que seja evidente a convicção profunda e consciente da particular Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos natureza da arte; da sua inconfundível essência que – como síntese lírica independente de todos e de quaisquer patrocínios, garantindo-se por si mesma, librada na absoluta validez da imagem. Ao lado daqueles três pontos fundamentais do pensamento estético, podem ser citados nomes e conceitos: Platão com a sua atitude de censura e, ao mesmo tempo, de trepidação por essa inferior e irresistível “cópia da ideia”, que é arte; Aristóteles, com o realismo de seu conceito de arte como mimese e catarse; Plotino, dando à arte o sentido de um grau no itinerário da ascese espiritual; Lucrécio, Quintiliano; Horácio, sobretudo, com aquele seu típico binômio de cidadão romano exigindo da arte o equilíbrio de beleza e de utilidade (“utile-dulci”); a Idade Média, com sua interpretação alegórica da obra de arte (“sotto ’l velame delli versi strani”); Bembo, Castelvetro, e na mesma linha, embora um pouco mais tarde – Boileau, com o conjunto de regras, de preceitos, de modelos e de medidas que a literatura ocidental conservaria, mais ou menos, até o Romantismo. É com o século XVII que o pensamento estético, acelerando o passo, inaugura uma nova e mais fecunda fase de sua gestação. E convém notar, não sem agrado e complacência, que é sobretudo em nome dos elementos emotivos e fantásticos do espírito, em nome da insatisfação e de um inconformismo perante a rigidez e o formalismo particularmente da segunda metade do século XVI, que os problemas e as conclusões da não ainda nascida Teoria estética começam, daí por diante, a serem vividos e pensados com uma intensidade singular, tomando, por isso mesmo, um rumo sempre mais claro e mais certo. Pertencem justamente ao século XVII as interessantes e fecundas indagações que, sobre a fantasia em relação ao intelecto, sobre o gênio em relação ao gosto, sobre o sentimento e o raciocínio, a metáfora e o símbolo, estão ligadas aos nomes de Baltazar Gracián, de Lope de Vega, de Sforza-Pallavicino, de Bacon, de Dubos e de tantos outros, aos quais devemos intuições e reflexões que decididamente hão de contribuir a orientar e a encorajar atenção dos estudiosos no sentido de procurar em outros campos e setores da vida espiritual a origem própria e única da arte. E, em pleno racionalismo, no meio das incertezas e decaídas de um Leibniz e de um Wolf, quanto não significa para o nascimento da Ciência estética a posição alcançada por Giambattista Vico (1668-1744)! É, de fato, Vico quem coloca a arte como momento apaixonado e emotivo da dialética espiritual entre o senso que não intui (“senza avvertire”) e a razão que reflete com pensamento puro (“riflette con mente pura”). Em continuação, devem ser lembrados Baumgarten (1714-1762), o criador do termo “estética” como Ciência da “sensação” artística, e Kant e Hegel. Em plena idade romântica, merece ainda destaque a posição de um Francesco de Sanctis (1817-1883). Deve-se a ele a definição da 387 388 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos arte como “forma”: síntese de sentimento e expressão, imagem que – contra a afirmação hegeliana – é válida por si, sem limites de tempo, de condições históricas ou da ameaça de civilizações de níveis superiores. Fecundíssimo de intuições e de prosseguimentos foi todo o século XIX, quer para o bem e quer para o mal da Estética. Filósofos, críticos, artistas deram uma contribuição que constitui o material e a condição histórica sobre os quais a Estética mais recente, e mesmo a contemporânea, atua ainda as suas pesquisas e experiências. E, se não propriamente no sentido de uma posição de não imerecido privilégio e de admissível superioridade, a título, ao menos, de conclusão e de chegada aos nossos dias, devemos aqui – em seguida e como encerramento – fazer menção do pensamento estético de Benedetto Croce (1866-1952), a quem se deve, como reação ao positivismo e ao idealismo abstrato, uma meditação estética constante e copiosa de meio século. Com este filósofo, a Teoria estética chega a conclusões e a resultados que – como ponto de saída – não é mais possível ignorar ou desconsiderar. A sua identificação de intuição e de expressão abre o campo a consensos e a dissensos que constituem a história viva e presente da Ciência estética, já adulta e madura de experiências e de meditações, que são fiadoras de novas e ulteriores conquistas no sentido de uma sempre melhor, mais essencial e íntima compreensão do fenômeno artístico. Atualmente, a Estética chegou à condição de maturidade e de certeza crítica que lhe permite considerar definitivos ou suscetíveis unicamente de desenvolvimento e de progresso alguns resultados e algumas conclusões fundamentais. Assim, não é mais possível, em sede de raciocínio e de lógica, recolocar em dúvida a peculiar natureza da fantasia como momento artístico do espírito; não é mais possível recolocar em dúvida a autonomia e teoreticidade da intuição lírica; não é mais possível recolocar em dúvida o valor da obra de arte como imagem e síntese, a sua idealidade, a sua autêntica razão de ser que a distingue e a dispensa da proteção e do amparo de todas e quaisquer intervenções alheias, ainda que efetuadas sob a alegação deste ou daquele conteúdo, desta ou daquela exigência do pensamento, de ética, de economia e política. A arte é em si mesma, na infinita liberdade de sua inspiração e realidade. Daqui, para frente; no sentido de continuar a caracterização da arte, a sua emancipação, a sua necessidade e razão. Ela é o momento em que o espírito se concentra na imagem, como síntese de idealidade e de expressão. Negar as conquistas atuais, pô-las em dúvida, tergiversar, significa voltar atrás, recair no cipoal anterior do empirismo estético, da confusão lógica, do mau gosto. Não é lícito voltar atrás. Mas não é concedido parar e não ir para a frente, formulando os novos problemas e resolvendo as exigências que Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a vida – a vida do espírito, naturalmente – não renuncia nunca a propor e a confiar à nossa meditação e ao nosso carinho. Assim, a título mais de sugestão do que de outra coisa, eis aqui, agora, em termos apenas de aceno e de alusão, algumas questões e aspectos da estética sobre os quais reputo interessante chamar a atenção, sobretudo dos estudantes do Curso de Letras de nossas Faculdades. Caber-lhes-á, em um futuro muito próximo, cuidar da formação e da educação dos jovens. Uma orientação clara e correta da Teoria da Literatura e da arte é, nesse sentido, um dos recursos mais eficientes e fecundos, justamente porque promove a leitura, estimula a crítica, favorece o contacto com a humanidade e a história. O lugar da arte na vida do espírito Embora com o objetivo de filosoficamente garantir-lhe a distinção e a autonomia, não se pode dizer que seja próprio e adequado o lugar geralmente reservado, na vida do espírito, à faculdade responsável pela atividade artística. A concepção da fantasia colocada ali, logo no início do espírito, em uma atitude de precedência, como condição de sua ingenuidade, não pode convencer. Dá a impressão de não ter ainda penetrado na intimidade do lar comum. Já na órbita espiritual, parece ficar à margem, isolando-se em uma esplêndida atitude de castidade e de beleza que não pode ser tudo. Uma aérea aparição no vestíbulo de um mundo, um início, um sonho, a “aurora” do dia humano, somente daí por diante operoso e verdadeiramente construtivo: é, deve mesmo ser só isso a arte? Não. Cabe à fantasia tarefa mais essencial e íntima. Ela é a feição inspirada, a forma inconfundível em que se transfigura e concentra o espírito sempre e toda vez que – acima e como reação à precariedade e deficiência de uma situação e de um “estado” interno ou externo, psicológico ou histórico, a essência vibrátil e anelante do homem, o induz a levantar-se sobre a realidade, em uma atitude de insatisfação, de pressentimento, de contemplação. Direta ou indiretamente, a fantasia – por conseguinte, a arte – é sempre denúncia e superação. Não fuga ou evasão, mas indicação lírica, canto da idealidade ou em contraposição à realidade. Estado de alma como consequência e em oposição a um estado real, em senso o mais lato. Não conheço arte estática e realística. É uma ilusão. Sem a melancolia de uma ausência e sem o empolgamento de uma contemplação a arte não pode nunca atingir o seu mais alto destino de imagem e de forma. O que falta, o de que carece, o que não está e parece além, o que deveria ser, o que pode até ter sido e que, entretanto, não é: é isso justamente que a fantasia cabe intuir e exprimir. É esse o mundo cuja imagem a fantasia determina e apresenta. Não é gratuita. Juntamente 389 390 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos com conforto, traz o estímulo e o enlevo da idealidade. Não, note-se bem, idealização, mas idealidade. A fantasia não embeleza o que existe, procura superá-lo. Ela sabe que a realidade, toda e qualquer realidade, pelo simples fato de sê-lo, é sempre precariedade e inadequação. Sabe que a realidade, por isso mesmo, acabará por tornar-se impedimento, tédio, angústia. Sabe que, apesar das aparências, o homem é mais Dom Quixote do que Sancho. Sabe que o drama humano é esse fazer e desfazer contínuo, onde o ideal nasce não antes, mas após o real, do real, assim como para Dante nasce: .......... , a guisa di rampollo a piè del vero il dubbio (“em forma de broto ao pé da verdade a dúvida”) Se, pois convém mesmo, na vida do espírito, estabelecer para a fantasia um lugar determinado, será este não o vestibular idílico e desinteressado do mundo humano, mas antes a última e decisiva força a quem – após os acontecimentos – possa fazer e faz apelamento o espírito para sonhar e ver, nos termos de expressão, a beleza sugestiva e ideal daquilo que à realidade falta. Não, pois, pelo fato que a fantasia precede, mas porque se adianta, não porque esteja na frente mas porque se antecipa. A ingenuidade da fantasia não é privilégio mas conquista, não é ignorância mas encantamento perante o que vê. No processo espiritual a arte é sempre a eterna e inconfundível portadora de uma imagem. E essa imagem não é senão a superação fantástica do que é, a antecipação lírica do que deveria ser. Intuição e expressão Evidentemente, a arte é intuição. Esse termo embora discutido, não deixa de definir, com bastante clareza e propriedade, a essência teorética e ideal do fenômeno artístico. Entretanto, a identificação se tem prestado a equívocos e a tergiversações. Não é, propriamente, o risco latente de um retorno inoportuno ao velho e sempre insuficiente dualismo de conteúdo e de forma, aquilo que, neste momento, preocupa. Nem é a tão comum e sintomática atitude de comprazimento e de verbosidade perante determinadas e não desinteressadas “expressões”, próprias de outras idades e ligadas a temas hoje em dia pacíficos, de fácil compreensão e talvez, por isso mesmo, motivo de “saboroso” deleite. O que, na verdade, é inadmissível é o empobrecimento gratuito de elemento fundamental e decisivo da síntese artística – a intuição – em vantagem do outro – a expressão – e o Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos consequente deslize e a unilateral valorização do fato expressivo como se ele independesse do fato intuitivo. A expressão, por si só, não pode acabar por ser tudo. Ainda mais se por simples tabela, como acaba, enfim, por acontecer, aí mesmo, onde tanta supremacia se lhe dá. Claro que, sem expressão, não há intuição. A identificação vale; mas é justamente porque vale que, a meu ver é a expressão que para ser tal tem que ser nada mais do que a própria intuição. É sempre a intuição que deve aparecer e manifestar-se, que não deixará de aparecer e de manifestar – se for efetivamente intuição. Dizer que a expressão deve coincidir com a intuição significa deixar ainda uma remota possibilidade para a suposição da existência material e separada de dois elementos, a intuição e a expressão, que – em sede teorética – não é admissível, se é verdade que a arte não é adequação e equacionamento, mas propriamente intuição e visão. Nada mais. É a intuição que se cria e se faz a sua própria expressão. A expressão tem de ser a própria intuição. Não veste ornamento, mas a intuição. Se não o for, toda vez que não o for, quer dizer que a responsabilidade da impressão de dissonância, de mentira, de oportunismo, de concessão, de insuficiência que a produção pseudoartística costuma despertar tem que cair, e cai, sobre a intuição. Por um motivo ou por outro, é, nesses casos, a intuição que falhou, deixando de ser intuição. É a intuição que é síntese, imanente a si mesma, dentro de seu próprio processo interno, no momento em que se analisa e tem a consciência de si que procura, de intrínseca e ideal, tornar-se extrínseca e real. Também a intuição é todo o espírito de um determinado momento e por uma determinada exigência. E a expressão é essa sua presença inteira e sublime. Nós distinguimos esta ou aquela forma artística, uma escola, uma época. Isso, entretanto, deve acontecer, e é legítimo que acontece, somente porque estamos ou deveríamos estar distinguindo esta ou aquela intuição de um artista, de uma escola, de uma época. É muito justo que apreciemos a expressão, mas unicamente porque é a própria intuição. Assim, dizer que em um escritor pode haver “falsidade de expressão”, e, ao mesmo tempo, “sinceridade de efusão” é um enorme contrassenso. Falsa, nesse caso, não é a expressão, mas evidentemente, a efusão. Flaubert, que chegou a dizer que “de la forme naît l’idée”, teve uma desmentida recente quando Lukács, com o único intuito de defender e de dignificar a expressão, teve a oportunidade de afirmar que “toda forma estética é a forma de um conteúdo determinado”. Isto que aqui, a este respeito, se quis dizer, outro motivo não tem se não o de convidar o leitor e o crítico a uma maior, mais aberta e compre ensiva atenção do fato intuitivo que, realizando-se em sua expressão, traz consigo toda a intensidade ideal e subjetiva de um artista, de uma idade, de uma exigência humana. De modo que, se um sentimento de ternura 391 392 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e de contentamento prende-nos e acompanha-nos na presença e no con tacto com a obra de arte, deverá ser “intimizado” e dignificado por ser especialmente atribuído e outorgado não propriamente à expressão mas à intuição, como a única força espiritual a que de direito aquele sentimento cabe e pertence. Teoreticidade e idealidade da arte A arte é por essência, atividade teorética e ideal: teorética porque contemplativa e, a seu modo, cognoscitiva; ideal porque imagem de um estado de alma. São essas as razões, para mim, de delicada e íntima impressão de improviso, de solitário, de superior, que em sua tácita objetividade, caracteriza a arte e que ela sempre desperta e promana em torno da página, do quadro, do ritmo. É o momento em que o espírito se afasta, insatisfeito e anelante, da realidade empírica para denunciá-la e superá-la na luz de um sonho, de uma visão, de um enlevo. É o mundo das aspirações que se vão concentrando e tornando realidade e imagem. É a tristeza que condena e acusa não só as insuficiências como também a precariedade e não quer, apesar de tudo, desesperar; é a solidão procurando solidariedade e diálogo; é o entusiasmo arrancando da humanidade, onde se agita, a existência e a realidade de valores, de “divinidades”, de razões de encantamento e de estímulo. E a imagem é tudo; crença e testemunho, evidência e descoberta: “substantia rerum sperandarum et argumentum rerum parventium”. Não conceitos, porque a esta altura o espírito não procura definições; não utilidades que a poesia ignora como tais; não mesmo normas e costumes de ética, que só, logo após, poderão achar motivo de renovação e de adesão. Agora, é o “a solo” de um estado de alma, da idealidade, da contemplação: “io nel pensier mi fingo” (eu no pensamento me represento, como dizia Leopardi). Conhecimento, sim, evidência, revelação constatando e preanunciando. Mas não na forma de uma pedagogia e de uma polêmica e sim na forma de uma imagem: presença lírica da idealidade. E essa idealidade é mais a indefinida, embora viva e precisa sugestão de uma esperança e de uma aspiração do que a mensagem exata e racional de um programa e de uma solução para sempre. A poesia nasce e renasce sempre: “debemur morti nos nostraque”. E se, pois, é sobre o passado ou sobre o presente íntimo ou externo que ela surge como procura de outrem o seu amanhã está aberto a fim de que livres sejam os artesãos de coisas e acontecimentos para as suas construções e novas afirmações de humanidade e de paz, de compreensão, de edificação e de espiritualidade. Um mundo de subjetividade e de universalidade. É a poética e a poesia de um homem, a mensagem e a transfiguração do “vidente”, a palavra e a essência de Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos um “dever ser”, de um “paradiso” como aspiração e pathos: “Et j’ai vu quelquefois ce que l’homme a cru voir.” É essa a bela, lúcida, construtiva, superior luta do poeta: homem e soldado. Preso a uma convicção, “le front plein d’éminences”, despe e constrói, entre gando ao canto a sua contribuição, à imagem e ao ritmo, com a certeza de estar assim agindo, com a convicção de que será para sempre claro e válido o mundo lírico que a realidade de ontem lhe inspirou, que a realidade de hoje deve exigir. É o espírito, todo o espírito concentrado ali, como no seu último recurso, na sua última instância. Precisa liber tar-se, sei que é difícil libertar-se da incorrigível procura de hedonismo a qualquer custo e de qualquer modo, da morbidez que corrompe tudo e tudo transforma em utilidade e defesa. A poesia, antes de ser catarse, como queria Aristóteles, porque purifica, é, a priori, purificação e magna nimidade, porque teoreticidade e idealidade, salto fora do real, despren dimento em nome de uma ternura e de um empolgamento. É por isso que ela é participação, posição na vida, onde só pode haver motivo para o canto do poeta. A poesia que não é lazer, mas empenho; que não é gratuidade, mas necessidade; que não é capricho e técnica, mas desco berta e atitude, sensível a tudo o que a vida deve significar, como apego, nobreza, lealdade, solidariedade, beleza, convívio: “C’est la Rédemption! C’est l’amour! C’est l’amour!” Li, em um escritor contemporâneo, este conceito: “A poesia vinga-nos de não sermos deus. Deus é conhecimento imediato, universal, perfeito. A poesia é o esforço de aproximar-se a esse conhecimento divino, com a amargura de nunca poder atingi-lo. É essa amargura que leva os poetas a escrever”. E é de Cassiano Ricardo esta significativa intuição da arte, colocada “nessa dolorosa viagem entre a consciência e o mito”. Parece-me supérfluo, após essas citações, tecer aqui outras e ulteriores reflexões sobre a essência teorética e ideal da arte, como vigilante, eterno destino. A arte e a crítica A idealidade não é abstração. Ela tem a sua realidade. E é justamente por isso que a arte é forma concreta e real. É a realidade intuitiva e lírica da idealidade. A palavra do poeta não é o simples vocábulo, assim como a tela não é a exposta tinta da loja e o ritmo a nota do alfabeto musical. A imagem é sempre a realidade de um estado de alma, que conhece sentimento; é a sua “paisagem”, como também foi definida. Não é, pois, um acréscimo, uma soma. É a inspiração do artista 393 394 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que cria e decide do modo e da forma da aparição e da presença do seu fantasma poético. Não é arbítrio. Assim como não é fácil. O tempo em que se falava em espontaneidade e facilidade de expressão está longe. Na verdade, não existiu nunca. E quando a leveza e transparência aparecem como “forma” deve-se isso a conquista. E a prova mais insuspeita do trabalho e da atenção do poeta está nas “correções” que ele pratica em seus textos e que seria de suma importância que o crítico sempre pudesse consultar e conhecer. Assim, se a delicada sensibilidade de um Manoel Bandeira e de outros tão bem sabe sublimar e valorizar os refazimentos da poesia brasileira, outros críticos e estudiosos sabem o preço de uma imagem de Ariosto ou de Leopardi, de Goethe ou de Rilke, de Beethoven e de Van Gogh. Leonardo, que costumava a si mesmo dizer “Sine lassitudine”, é lembrado pela impaciente e grave resposta com que um dia rebateu as insinuações do superior do “Convento delle Grazie”. Dizia: “Muitas vezes os grandes talentos, justamente quando menos trabalham, é que mais criam e acertam.” Perfeitamente de acordo, pois, com o poeta romano: “Mediocribus esse poetis non dii, non homines, non concessere columnae.” Mas, qual seria mesmo a razão dessa reprovação da mediocridade artística? A idealidade exige a sua realidade. Sem essa condição, não é. Não é porque não é um fato naturalístico, mas humano. Ela deve aparecer, ser, ser viva e presente na sua inconfundível subjetividade e razão. E isso requer, evidentemente, preparação, cultura, sensibilidade, auscultação de parte do artista. Miguel Ângelo, na sua infinita bondade e humildade, atribuía a forma já ao próprio mármore. A figura estaria ali, oculta e feita. Ao artista cabia o trabalho paciente e cuidadoso do artesão que afasta o invólucro e o revestimento. A ilusão, repleta, além do mais, de um profundo senso de religiosidade, é muito instrutiva. O invólucro e o revestimento, entretanto, que escondem e velam as imagens dos poetas, são, na verdade, do próprio artista, do homem. São as falhas do artista-homem, os seus limites e a sua incoerência, não sempre e não somente de caráter formal; as falhas, os limites e as incoerências que, antes de serem de caráter estético, eram de caráter humano e moral. A intuição continua estando oculta, incerta, irrealizada porque não é ela mesmo, em todo o seu esplendor, na sua necessidade e autenticidade. É então, a intuição que não havia razão de ser, repetição, ambiguidade, ausência de teoreticidade e de idealidade, superfluidade. Aparência e não arte. É, muitas vezes, a intuição traída e tergiversada, sufocada nos ambages do farisaísmo de todas as espécies, da retórica, da pusilanimidade, da concessão. Entre as suas outras tarefas, cabe à crítica esse trabalho de exame e de garantia, de autenticidade, como já foi feito, no início do humanismo, quando a crítica era exigência do texto. Aqui, não se tratará Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de um trabalho de filologia, mas de certeza e convicção, de prova e de revelação da autenticidade da intuição, declarando-se que ela está mesmo, toda e só na página do artista, na sua nudez, que é, também, a sua absoluta realidade. À crítica cabe a responsabilidade de descobrir na intuição os defeitos e as deficiências da expressão, como defeitos e deficiências da intuição. E não será a obscuridade, nunca gratuita, não será a heterodoxia ou transgressão, sempre aparentes, que hão de poder barrar o caminho da crítica. Ela deverá acabar constatando que aquela obscuridade nada mais é do que a peregrinidade e novidade de uma presença rara, como é sempre a verdadeira arte; que aquela heterodoxia e transgressão nada mais são do que uma mais necessária, essencial autenticidade. Chegado ao fim deste trabalho – esboço de aulas de Teoria da Literatura, e, agora, colaboração ao primeiro número da Revista da Faculdade a quem devo a alegria e a melancolia da vida do magistério, não sei fugir à tentação (que é, também, um modo de homenagem e gratidão), de citar as palavras com que Benedetto Croce houve por bem um dia estimular os jovens da Universidade de Houston, no Texas, dedicando-lhes o “Breviário de Estética” por ocasião da fundação daquela Faculdade. No prefácio, aquele filósofo dizia: “A Estética, melhor que qualquer disciplina filosófica, serve como introdução ao ensino da filosofia, não havendo outra matéria que desperte tão depressa o interesse e a reflexão dos jovens, como a arte e a poesia.” Dando-nos a visão da idealidade, o ritmo e a imagem ao que de mais íntimo e delicado vibra em nós, a Estética dá-nos também a nobreza, a esperança, o estímulo, o dever de sermos e de virmos a ser como seres espirituais e humanos. A arte é aquele sublime “áporo” de Carlos Drummond: Eis que o labirinto (oh razão, mistério) presto se desata: em verde, sozinha, antieuclideana, uma orquídea forma-se . E a “orquídea” será a poesia que se “revela”, e é também uma humanidade mais humana e espiritual que a poesia tem a finalidade de promover e indicar. (Revista Minerva – Anuário da Faculdade Estadual de Filosofia,Ciências e Letras de Ponta Grossa, n. 1, 1967, p. 20-27) 395 396 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Duas notas sobre estética Bruno Enei A Estética nos séculos XV e XVI Com os séculos XV e XVI entramos na Idade Moderna. O Humanismo no século XV e a Renascença no século XVI significaram a superação da Idade Média e uma nova visão da realidade e dos problemas da vida, baseada numa concepção mais profunda e positiva do homem e de suas possibilidades criadoras. Muitos preconceitos de caráter ético-filosófico, muitos princípios e dogmas perdem a própria validez perante uma crítica e uma cultura severa e objetiva. Sobretudo, uma confiança sem limites na capacidade do homem e a afirmação de sua autonomia e do valor absoluto de sua imanência e de sua atuação terrena abrem um crédito insólito à sua espiritualidade, colocando-a ao centro da nossa história e da nossa responsabilidade. Tudo se modifica, tudo se transforma, tudo se renova sob um estímulo de esperança e de confiança que parecem um desabafo generoso e constante após uma longa mortificação, finalmente superada. As ciências, as matemáticas, a Filosofia, a Física e a Política estabelecem, cada uma, as regras e o campo de suas pesquisas e conquistas. Enquanto isso, a arte (a pintura, a escultura, a arquitetura, a literatura e a música) transforma a Europa em um mundo incomparável de beleza e de milagre. Contudo, no campo da Estética propriamente dita, também nos séculos XV e XVI as novidades são bem poucas. Não há terreno para isso. Sim, a realidade é criação do nosso espírito e tudo o que acontece é a sua fenomenologia; mas a natureza autônoma e fantástica da arte é um problema que ainda não surge e não pode surgir. Continuam as antigas ideias. Repetem-se as velhas afirmações. Aceitam-se as posições e conclusões da investigação greco-latina e da Idade Média. De propriamente novo não há senão um esforço geral de aperfeiçoamento e de sistematização no sentido retórico e formal. Estabelecer as regras, definir os princípios, indicar os gêneros, fazer classificações, propor modelos, distinguir dialetos e línguas, sugerir ou condenar instrumentos de expressão numa hierarquia rígida e inflexível, isso tudo foi objeto de estudo e de pesquisa, cuja seriedade é documentada pelos numerosos e alentados tratados de Retórica, de Gramática, de Oratória, de Eloquência e de Estilística desses dois séculos. Na Itália e no estrangeiro, são inúmeros os escritores e as obras nesse sentido. Mas o problema da arte fica em superfície. Não é resolvido. Não poderia ser Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos resolvido, posto, como era, em termos de formalismo e de expressão como aparência e revestimento de algo. O meio expressivo em arte não pode ser meio e objeto de investigação, independentemente de sua causa sentimental e de sua origem emotiva e fantástica. A arte é síntese, síntese de forma e de conteúdo, de sentimento e de expressão. Por si só, falar em expressão não tem sentido. A Estética dos séculos XV e XVI não sentiu o fenômeno artístico como criação, como lírica, como síntese; por isso ficou, em geral, nas posições anteriores. Não progrediu substancialmente, embora aqui e acolá, neste ou naquele particular, e sobretudo na imitação, haja atitudes e conclusões que deixam adivinhar dúvidas, pressentimentos e insatisfações dignos de considerações para o futuro da Ciência estética. Mas, até o século XVIII, uma ciência que se interessa pela arte, na sua natureza fantástica e autônoma, não existe. Da Grécia ao século XVIII as afirmações não divergem substancialmente. Os problemas são os mesmos e as mesmas soluções. A arte não é nem conteúdo nem forma, nem ideia nem instrumento. Não é um ou outro elemento. É síntese, criação fantástica de uma realidade que não é sem ser, ao mesmo tempo, sentimento e expressão. Ora, estudando a Estética, da origem do pensamento ocidental na Grécia do século V a.C. até o século XVIII, o que se observa é justamente sempre a mesma posição. Os gregos, os latinos e a Idade Média parecem insistir mais sobre o conteúdo da obra de arte, e o Humanismo e a Renascença parecem insistir mais sobre a forma da obra de arte. Mas o resultado é o mesmo. Procurando os primeiros uma razão pedagógica que justifique a obra de arte e estabelecendo os outros as regras e os princípios de uma perfeição exterior e formal, é que revelam ambos, justamente por isso, uma incompreensão da obra de arte que explica o motivo pelo qual a Estética, como ciência do belo, tardaria ainda a nascer. Aqui também, após estas breves mas necessárias explicações, inútil se tornaria citar textos e conceitos da Estética dos séculos XV e XVI. Contudo, a título de exemplo e como elemento de ilustração, eis algumas definições. 1. A teoria mística de Plotino viu o seu prestígio aumentado em um clima de extraordinário fervor platônico. Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Leon Battista Alberti, no século XV, Pietro Bembo, Baldassare Castiglione e outros no século XVI escreveram longos tratados sobre o belo e o amor, sobre o belo e Deus. E, sob os estímulos dos escritores italianos, o mesmo fizeram os pensadores da França, da Alemanha, da Espanha e da Europa; 2. A teoria pedagógica da obra de arte vigorou plenamente 397 398 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos na Itália e na Europa, sendo seus defensores poetas e escritores como Campanella e Tasso, Tassoni e Scaligero, Le Bossu e La Menardière; 3. A teoria didascálica era tão em apreço que, como foi observado, aquela idade não considerou o gênero didascálico justamente porque toda a poesia seria didascálica; 4. Até os grandes e sumos artistas afirmam conceitos de objetividade, de perfeição, com modelos e medidas inaceitáveis hoje. A História da Estética e a contribuição de Giambattista Vico (1668-1744) É a história da obra de arte que ficou ignorada durante longos séculos. Da antiguidade clássica até a Idade Média e a Renascença, não são a origem, a causa e a função do fenômeno artístico que constituem o objeto da pesquisa. Após Platão e a sua condenação, o problema estético sofreu uma grave pausa. E o que prende unicamente a atenção é uma procura de transação e de justificação que, apesar de tudo, aceitem a obra de arte e façam com que haja uma reconciliação, reconhecendo para ela uma existência subordinada de transmissão e de edificação em nome da Filosofia, da Moral, da Utilidade. Daí, o binômio utile – dulci que explicou a obra de arte até o século XVIII. A Antiguidade não conseguiu ver profundamente a essência do espírito. Não soube colher-lhe a sua natureza unitária e dialética, constituída de momentos ideais entre si, distintos e autônomos e todos igualmente válidos e eternos. Já o dissemos outra vez: a Antiguidade clássica, e com ela a Idade Média e a Renascença, não souberam ver entre a sensibilidade e a inteligência uma outra forma soberana e independente de conhecimento. A imaginação e a fantasia não são faculdades e momentos do espírito. Simples graus intermediários, nada mais são do que um mais ou menos, uma função provisória e contingente, um recurso e um expediente, e não uma categoria e uma essência. Assim, a obra de arte se tornou objeto da Filosofia, de uma filosofia que era conhecimento, análise, definição do espírito e de sua atividade. Foram a Eloquência, a Gramática, a Retórica e a Estilística que se apossaram da obra de arte, estudando-a em uma perspectiva exterior e superficial de formalismos, de regras, de leis, de preceitos e de gêneros que, não se interessando nunca pelo aspecto decisivo e essencial (a sua natureza teorética e autônoma), fizeram com que o problema da arte ficasse sem uma solução satisfatória e lógica até o século XVIII. No século XVIII encontramos Giambattista Vico (1668-1744). Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos A sua posição diante da obra de arte constitui-se em uma autêntica revelação. É o início de uma nova definição do espírito e de uma nova compreensão do fenômeno artístico. Não é ainda Vico o verdadeiro fundador da Estética como ciência e teoria da intuição artística, mas é a ele que se deve a descoberta da Fantasia, como de um momento do espírito, de uma forma particular e autônoma, a quem fica ligada a criação da obra de arte. Em uma dúplice polêmica que – em oposição à Estética clássica – coloca a arte acima dos formalismos apriorísticos, e que – em oposição ao racionalismo cartesiano – descobre a mais complexa e profunda natureza de nossa espiritualidade, Giambattista Vico é o primeiro a decididamente afirmar que entre o senso e o intelecto, no homem, há uma outra faculdade: a faculdade fantástica que transforma e sublima e transfigura e realiza, em termos de expressão, os nossos sentimentos e as nossas paixões. Gli uomini prima sentono senza avvertire; poi avvertono con animo perturbato e commosso; quindi riflettono con mente pura. É esta a dignità, a afirmação fundamental da Ciência Nova de Vico. Nasce assim a filosofia do espírito. E a sua primeira afirmação é que o espírito é sucessivamente senso, fantasia e filosofia; senso da infância, fantasia da mocidade, filosofia da velhice do homem. É através dessas três etapas que se processa a nossa biografia ideal. É através desses três momentos que se realiza a nossa história humana. É a essas três diferentes faculdades espirituais que se deve a nossa atuação individual. E, como as nações nada mais são do que famílias e composições de indivíduos, também na vida, na biografia, na história e na atuação das nações há três fases, três épocas, três momentos: a fase do senso (idade dos deuses), a fase da fantasia (idade dos heróis), a fase da filosofia (idade da civilização). O homem de Vico é isso. E a sua atuação explica-se assim. Sobe e desce. Desce e sobe em um descendo e crescendo quase mecânico e analógico. É este o ponto fraco da filosofia de Vico, do fundador do historicismo. E é, de fato, essa sua teoria dos cursos e recursos históricos que revela os limites da descoberta. A distinção entre senso, fantasia e razão é ideal e não material, é dialética e não cronológica, é contemporânea e não sucessiva, de modo que o senso não cede lugar à fantasia, a fantasia, desaparecendo, não se destrói com a presença da razão, mas uma categoria vive sempre ao lado da outra, sendo sempre cada uma distinta e autônoma dentro de uma realidade que é sempre uma e toda. Vico parece não ter sabido intuir claramente o processo espiritual em sua passagem de uma forma a outra, como diferença essencialmente qualitativa e não quantitativa. Mas o passo 399 400 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos para diante representado por seu pensamento é decisivo. Vico aponta uma faculdade nova, descobre uma causa ignorada, individua um momento essencial da vida de espírito. Doravante, não haverá mais motivos lógicos para condenar a obra de arte como hedonismo ou para admiti-la exclusivamente porque é intermediária e subordinada a algo que lhe empresta autoridade e dignidade. Vico redime a arte e lhe reconhece toda a autonomia e significância. Após a condenação severa de Platão, é este o grande e primeiro reconhecimento da beleza, do valor, da autonomia, da teoreticidade da obra de arte. Platão condena-a porque nascia como testemunha da parte baixa e sexual de nossa espiritualidade. Vico exalta-a e sublima-a justamente porque é a ela, à arte – consequência fantástica do espírito – que cabe apresentar, em termos de expressão e de imagem, as nossas paixões, as nossas emoções, os nossos sentimentos. A arte – forma teorética e autônoma do espírito, intuição lírica e visão – redime assim e santifica, se houvesse necessidade, a nossa personalidade, a nossa sensibilidade, aquela parte enfim, irracional mas imanente e intrínseca ao nosso espírito, que representa o ponto de sua origem, a razão de sua existência, a matéria-prima de suas transfigurações. Essa paixonalidade e, aliás, essa sensibilidade, esse fundo irracional, são igualmente elementos constitutivos do espírito (o qual não seria se não fosse isso também) e são, além do mais, a conditio sine qua non da arte, que só aqui – na sensibilidade e na fantasia – encontra a razão de sua teoreticidade e de sua autonomia. A fantasia – essa faculdade descoberta por Vico – é a energia criadora que sopra, como um Deus, sobre as nossas paixões e as purifica e as vivifica e as torna serenas e luminosas como estrelas que brilham em um firmamento sem mais nuvem ou mancha: puras, cristalinas, formadas, sugestivas como pontos de um sonho, como sinais de uma aurora, como ritmos de visões onde o sentimento é a própria expressão e a expressão é o próprio sentimento, num encontro e numa síntese simultânea e con creta que é a intuição, a expressão em que a fantasia transformou, dando-lhe forma, essa nova realidade espiritual, que se distingue das outras realidades do espírito pela sua essência puramente fantástica. (Revista Uniletras, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, n. 10, 1988, p. 119-123) PRONUNCIAMENTOS DE BRUNO ENEI Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos O Conceito da filosofia moderna relativamente ao homem120 Bruno Enei Para nós – professores e alunos da Faculdade Estadual de Letras de Ponta Grossa121 – a abertura deste ano escolar possui destaque especial. Pela boa vontade e zelo dos alunos, pelo preparo e pela seriedade dos professores, pelo empenho das mais altas autoridades do governo do Paraná, esta nossa querida escola, após seu recente reconhecimento federal, de cabeça erguida e com energia juvenil, acaba agora de fazer ingresso – pares inter pares – no número das escolas superiores, onde se educa e se forma a mocidade que amanhã terá a ventura e o orgulho de dirigir o país: este nosso Brasil que vai, cada vez mais, “queimando as etapas” e apressando o passo para ocupar – não somente perante as outras nações americanas, mas mesmo perante o mundo – um lugar de destaque na vida econômica, política, cultural e moral desta nossa idade contemporânea. Nossa ufania é legítima; legítima e grande sobretudo ao pensarmos que, junto de nós e conosco, num vínculo profundo de solidariedade e de idealismo, duas outras Faculdades estão para nascer122 com o propósito de colaborar – nos campos severos da ciência – para que Ponta Grossa se torne um centro de estudiosos e de profissionais; os estudiosos e os profissionais que o Paraná aguarda e pretende, a fim de que sua marcha seja verdadeiramente firme, profunda e sólida em cada setor, e, junto ao econômico e ao financeiro, também, e sobretudo, naquele espiritual, que é o que mais conta, se é verdade – como é verdade – que a vida de um Trata-se do texto integral da aula proferida pelo Professor Bruno Enei (19081967), na noite de 4 de março de 1953, por ocasião da abertura do ano letivo. O original, datilografado, e sem título, chegou às nossas mãos graças aos préstimos da Professora Maria Vilma Rodrigues Nadal, que o resgatou nos arquivos da biblioteca da Universidade Federal do Paraná. Procuramos respeitar ao máximo a forma deixada pelo autor, limitando-nos às necessárias atualizações ortográficas e de pontuação e a eventuais reparos no que se refere a casos óbvios de italianismos, incompatíveis com a clareza da expressão vernácula, dada a menor familiaridade que tinha ainda, naqueles anos, o saudoso Mestre com o português. (SMZ) 121 Em verdade, A Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa, criada por Decreto Estadual de 8 de novembro de 1949 e reconhecida federalmente por Decreto de 10 de fevereiro de 1953. (SMZ) 122 Em verdade, a Faculdade Estadual de Farmácia e Odontologia de Ponta Grossa, criada por lei de 16 de novembro de 1952. (SMZ) 120 403 404 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos povo, seu valor e significado na História não dependem propriamente de elementos estatísticos, das dimensões e riquezas e balanços, mas sim da tonalidade, da sensibilidade, da cultura e do vigor espiritual com que souber ele sentir e enfrentar e conceber e organizar e melhorar a vida nas suas formas de viver. E o momento em que vivemos é dos mais difíceis: para nós, para os outros, para a humanidade. Estamos vivendo anos duros, em que os problemas se sobrepõem e se multiplicam e se atropelam e exigem soluções e providências. Muitas velhas coisas subsistem com tenacidade, e com tenacidade impedem o livre movimento da História: coisas velhas no campo social, no campo da economia e naquele fundamental do espírito; na esfera limitada do indivíduo e naquela mais vasta e mais am pla da humanidade. E muitas coisas novas (novas somente porque ainda não realizadas, apesar de antigas quanto aos nossos ideais e anseios) solicitam do nosso espírito uma ação corajosa e concreta. Inútil e demasiado longo traçar aqui o panorama espesso e emaranhado das coisas que tornam difícil e dramática nossa marcha para a frente; sobretudo após esta última guerra, em que, pelo menos, um grande inimigo da humanidade – o imperialismo – deveria para sempre ter acabado de existir, por ser coisa anacrônica e estéril numa idade em que, cada vez mais, percebemos que não é a quantidade mas a qualidade, não o domínio mas a solidariedade, não o ódio mas o acordo que poderá salvar o mundo e recolocá-lo no rumo das melhores tradições e dos mais legítimos anseios. Para nós que vivemos numa Faculdade de Letras (onde trabalham educadores que – educando – se educam, e educandos que – formando-se – se tornarão educadores), o que mais nos admira e surpreende, nesta realidade contemporânea, é esse choque surdo e ameaçador dos dois máximos sistemas de economia; é esse dúplice perigo da sufocação da liberdade em nome da justiça ou da justiça em nome da liberdade; é esse temor que a liberdade seja somente um nome, assim como a justiça seja somente um pretexto; é esse pesar que a democracia possa ser ou tornar-se injusta, assim como a justiça possa ser ou tornar-se iliberal. O que mais move o nosso coração de educadores e de educandos é o egoísmo fechado e irritado, o ceticismo indiferente e surdo, o transigir, a insensibilidade, o oportunismo e os demais aspectos decadentes da espiritualidade contemporânea, assim insensível perante os grandes e eternos problemas das verdadeiras finalidades da vida e do viver. Julguei-me profundamente honrado pela incumbência de inaugurar este ano escolar. Mas, diante das considerações acima Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos mencionadas e diante das outras que continuadamente vieram surgindo sob o estímulo da responsabilidade que eu, aceitando o convite, assumia, uma justificável perplexidade invadiu minha alma nestes dias, sobretudo pelo que se refere à escolha do assunto desta palestra inaugural. Poderia falar sobre um escritor italiano, para ficar na minha cadeira. Mas o que significaria? Que conexão com a vida presente poderia ter uma palestra sobre assuntos abstratos de literatura, de poesia pura ou de história da filosofia? Resolvi, então, tratar brevemente dum assunto que, de qualquer forma, apresentasse em si, contemporaneamente, assim o caráter de uma aula, como um nexo e liame com a vida presente. A escola, aliás, é vida; não sendo nem preparação nem outra coisa a não ser a vida e o viver, é um presente que é tanto passado quanto futuro, que é presente porque é passado e será futuro. Assim, pareceu-me melhor dissertar aqui sobre o conceito da filosofia moderna relativamente ao homem, às suas faculdades e aos seus deveres. Ao falar sobre o homem e apresentando-o aqui como o sente e o considera a filosofia mais clássica e mais concreta, julgo cumprir dois precípuos deveres meus: o de levar a escola para a vida, a fim de que lhe perceba sempre as vibrações e os problemas sem nunca dela se afastar, e o de trazer o homem para a escola, a fim de que seja ele o seu problema e o seu alvo como constante pesquisa teorética e como quotidiano trabalho moral. Cabe à escola, principalmente e, talvez, unicamente cabe à escola brasileira, formar homens; homens que sejam homens e não máquinas ou seres apáticos e agnósticos; homens que saiam da escola com uma sadia visão social e nacional de unidade e de dignidade, que saiam da escola com uma visão consciente e responsável da liberdade e do público bem. Assim desejava Fichte que fosse a escola alemã quando, no início do século XIX, aquela nação, entre 1808 e 1813, alcançava sua autonomia política e cultural, libertando-se da França napoleônica. __________________ O primeiro grande caráter distintivo da filosofia moderna é a concretização, fugindo das considerações genéricas e abstratas que, de vez em vez, foram próprias às metafísicas, aos dualismos e aos racionalismos de toda espécie. Nós hoje – após Kant e Fichte, após Hegel e Gentile e Croce – embora continuando-as e lembrando-as todas, ficamos muito afastados 405 406 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos da, embora grande, filosofia grega e daquela menor dos romanos, ficamos afastados de todos aqueles mitos e pseudo-conceitos, aos quais, afinal, numa forma ou noutra, podem ser reconduzidos, e se reconduzem, os postulados do pensamento filosófico pré-kantiano. Hoje, a filosofia colocou-se decididamente sobre um plano de imanência, de absoluta imanência, tornando a trazer ao homem, e no homem unicamente procurando, e nele vendo-lhes o criador e o gerador, quaisquer leis, qualquer categoria, qualquer função, todos os deveres e os direitos, todas as causas e os efeitos; tudo humanizando e subjetivando: até a natureza, esta natureza externa e objetiva que somente nos é estranha na sua materialidade, porque, no restante, ela é nós mesmos, de nós e por nós vivendo e transformando-se e enriquecendo-se como pensamento pensado, como, isto é, história do homem. Filosofia, pois, hoje significa pensar; um pensar que não consiste mesmo no colocar-se perante uma realidade diferente e preexistente, mas sim fazer e criticar, realizando a nós mesmos! Um pensar e nada mais. Tudo hoje torna a ser trazido para o espírito humano, para esta nossa humanidade que é particular e universal, contingente e eterna, relativa e absoluta, conforme se considere o indivíduo ou o homem, o ser ou o vir a ser, o passado ou o futuro, o fato ou o dever ser. Tudo torna hoje a ser trazido para o espírito humano: as categorias, o céu, a História e quaisquer outros elementos que, anteriormente, pertenciam ao espírito como seus atributos e hoje são o espírito; o espírito como atividade, como energia, como forma a priori gerando, fazendo-se e realizando-se; criando, ininterruptamente, a História; a História que, pois, nada mais é senão a fenomenologia do espírito, a sua epifania, a sua realidade, a documentação sempre viva e estimuladora e fecunda do que foi pensado e atuado. Está aqui a razão pela qual, de um século para cá, tornou-se a filosofia mais concreta e mais humana: mais concreta, abandonando as utopias e as nuvens para, cada vez mais, avizinhar-se da realidade e da verdade; mais humana, aqui também, abandonando as hipóteses, as imaginações e os axiomas para a crítica e a análise, as quais a levaram a encontrar no homem o todo e as partes, a origem e as causas de qualquer acontecimento. E daí é que veio o desenvolvimento gradual e crescente das ciências naturais, das ciências humanas, das ciências morais: elas todas – cada uma no próprio campo e com os próprios objetivos – procurando o homem, estudando o homem, analisando-o, pesquisando-o e perguntando-lhe o que ele é e o que deve ele ser, por que ele foi e é assim, como ele será ou poderá ser. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E a rainha de todas estas ciências é a filosofia, uma filosofia que não é mais uma ciência porque trazia consigo a aparência do sistema definitivo e imóvel, mas filosofia porque é, como deve ser, pensamento concreto e universal, porque é, como deve ser, julgamento particular e absoluto, de vez em vez formulando as questões e os problemas e resolvendo-os conforme as circunstâncias e os tempos e as exigências e necessidades, para depois, mais tarde, voltar novamente a formulá-los e resolvê-los conforme as novas circunstâncias e tempos e exigências e necessidades, numa contínua e ininterrupta e necessária “problemática” em que cada coisa do espírito, justamente como cada caso e acontecimento da vida, é eterno ser e não ser, é eterno acontecimento e ideal, eterna realidade e dever ser. E esta filosofia liga-se sobretudo ao movimento, à sensibilidade e ao processo da espiritualidade humanística e renascimental, àquele movimento filológico e cultural italiano dos séculos XV e XVI que, mais tarde, se passou aos vários países da Europa, criando, na Inglaterra, a filosofia do empirismo de Bacon, e, na França, a filosofia racionalística de Descartes, para depois voltar novamente à Itália, e aí, através de Giambattista Vico e da segunda metade do século XVIII, através de Francesco de Sanctis e da arte e da ideologia romântica do século XIX, chegou até Giovanni Gentile e Benedetto Croce: filósofo, o primeiro, do atualismo; filósofo, o segundo, do historicismo e da dialética do espírito. É justamente através dos desenvolvimentos e dos esclarecimentos de toda esta filosofia vindos dos séculos XV e XVI que nós chegamos às afirmações julgadas hoje até simples e naturais e absolutamente comuns e quase indiscutíveis, e que, ao contrário, foram o resultado de um desmoronamento inexorável, de uma polêmica sem descanso, de uma análise paciente e vígil e severa. Foi assim, pois, que se chegou hoje a colocarmos ao centro de tudo o espírito por uma concepção que não é mais elegíaca ou hedonística, mas dramática e ativa, da vida; e essa vida sempre é e sempre vem a ser por aquela dialética espiritual que é a imagem da incansável e dinâmica circularidade do espírito, interpretado e concebido com energia. Para a filosofia moderna, então, o homem é essencialmente espírito, atividade a priori que, embora atuando e saciando-se no ato, nunca deixa de atuar e nunca se sacia suficientemente na constante procura de transformar e de viver o passado, trazendo-o ao presente que é a condição histórica e real do futuro. E o espírito é energia que atua em dois campos: dois campos distintos como forma e modo, mas, assim mesmo, sendo um ligado ao 407 408 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos outro, dependendo um de outro, e postulando o primeiro o segundo, e o segundo o primeiro, justamente como a letra A precede a letra B e como a letra B pressupõe a letra A; como o ontem prepara o hoje e o hoje confirma o ontem. Estes dois distintos campos do homem são o da esfera teorética e o da esfera prática: produto o primeiro daquilo que o espírito cria e atua como pensamento, produto o segundo daquilo que o espírito cria e atua como ação. É, pois, primeiramente, o homem pensamento e ação: e, como pensamento, age no campo teorético; como ação, opera ele no campo prático. E, como não é concebível uma teorética que fique abstrata e não se torne ação como pensamento, eis porque a esfera teorética desce e junta-se à esfera prática do espírito numa unidade que é a própria unidade do espírito. E, da mesma forma, como não é concebível uma praticidade que fique um fato ilógico e irracional e, afinal de contas, não se possa referir a um pensamento, eis porque a esfera prática volta e junta-se à esfera teorética do espírito numa unidade que é a própria unidade do espírito. Não pareça isso tudo um simples virtuosismo. O bom senso, o senso comum explica esse difícil raciocínio da árdua filosofia dizendo simplesmente – mas confirmando e concordando – que o homem pensa e age, e que uma coisa é pensar e outra agir, e que, não obstante a intrínseca diferença e distinção, nenhum homem pensa sem agir, embora todos compreendam e admitam que uma coisa é a ação do filósofo pensando e outra coisa é a ação do político agindo; ações as duas, ações, isto é, o pensamento do filósofo e o ato do político, mas uma diferente da outra, porque a primeira é “ação teorética” e a segunda é “ação prática”. __________________ A esta primeira afirmação da filosofia moderna em torno do espírito humano (e, então, mais simplesmente, em torno do homem e da humanidade), uma outra segue, igualmente substancial e necessária, que aqui logo se faz mister salientar. E é a seguinte. Teoricamente, o espírito atua sob dois aspectos distintos e iguais. O homem pensa e sente. Pensamento e sentimento, embora aspectos teoréticos do espírito, não são a mesma coisa; são, aliás, duas coisas diferentes e até contrárias. O pensamento é lógica, é julgamento, procura do universal. E quanto mais o pensamento for lógico, tanto mais será ele julgamento; quanto mais ele se universalizar, e do particular subir e se aproximar Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e alcançar o absoluto e a verdade, tanto mais ele, o pensamento, será pensamento; ao passo que o sentimento tanto mais será sentimento quanto mais ele for particular e concreto e pessoal e subjetivo, deste e não de todos. As duas coisas, então, pensamento e sentimento, são coisas distintas e diferentes. Daí, sempre permanecendo na esfera teorética, os dois aspectos teoréticos do espírito: o do pensamento ou da lógica e o do sentimento ou da fantasia; os dois aspectos teoréticos do espírito que, mais comumente, estamos acostumados a chamar com o nome de filosofia e de arte; sendo a filosofia nada mais que pensamento, expressão lógica do pensamento, e a arte nada mais que sentimento ou expressão lírica do sentimento. E todo homem pensa, e, por isso, todo homem é filósofo. E todo homem sente, e, por isso, todo homem é poeta. E o verdadeiro filósofo só é verdadeiramente filósofo porque possui – como quantidade mas não como qualidade – uma força de pensamento maior que a normal, assim como o verdadeiro poeta só é verdadeiramente poeta porque possui – como quantidade, mas não como qualidade – uma força de expressão maior que a normal. E não pode aqui haver outra alternativa, porque, se o filósofo fosse outra coisa que homem e pensador, não seria ele, então, compreendido e estudado e criticado pelos outros homens que, em maior ou menor quantidade, são também pensadores; assim como, se o poeta fosse outra coisa que homem e sentimento e linguagem, não seria ele, então, compreendido e estudado e admirado pelos outros homens que, em maior ou menor quantidade, são também sentimento e linguagem. E ao homem, como ser que pensa, cabe a origem de toda ideia, e em qualquer terreno; assim como ao homem, como ser que sente e se expressa, cabe a origem de toda arte, e em qualquer terreno e em qualquer forma. E pensar não quer dizer lembrar, saber, estudar; ou, pelo menos, não quer dizer somente isto, mas, sobretudo, saber dominar a presente realidade e julgar cada fato e achar cada razão conforme as exigências e necessidades da realidade e de cada um. Assim como ser artista não quer dizer desabafar-se, imitar ou ser arbitrariamente esquisito, mas realizar – na cor ou na linha, no ritmo ou na linguagem – o próprio sentir e o sentir de todos, de forma que a leitura ou a visão nos deem e nos renovem aquele fantasma do poeta e façam com que possamos reviver aquele sentimento e aquela imagem do poeta na sua eterna presença e no seu eterno brotar e reflorescer. E, como o homem sempre pensou, eis porque podemos falar numa história da filosofia, que nos traz o pensamento pensado dos homens que na Grécia ou em Roma, na Alemanha ou na França, na 409 410 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Inglaterra ou na Península Ibérica, na Europa ou na Ásia, antes ou depois da Idade Cristã, ontem ou amanhã, trabalharam e sofreram na procura de uma concepção da vida e de uma solução lógica dos problemas sempre novos dos homens. E, como o homem sempre sentiu, eis porque podemos falar numa história da arte, e da arte nas suas diferentes formas, literária, pictórica, musical etc., que nos traz a arte realizada pelos homens que, aqui ou alhures, com Homero ou com Dante, com Goethe ou com Shakespeare, com Camões ou com Castro Alves, sentiram, e este sentimento transformaram na expressão límpida e serena da eterna e melancólica beleza. Hoje, não é mais suficiente – e, aliás, nunca o foi – hoje não é mais suficiente viverem solitários e esquivos para serem chamados filósofos. E o poeta não é poeta pela sua cabeleira ao vento ou porque improvisa ou sabe fazer rir ou brinca com os versos, com as palavras e faz acrósticos e sonetos. O primeiro, isto é, o filósofo, torna-se grande quando está em meio à realidade e sabe vê-la e julgá-la, colhendo-lhe a causa e o absoluto. E o segundo, isto é, o poeta, é verdadeiramente poeta não quando faz política ou oratória, bajulações ou brincadeiras, mas sim quando transforma seu sentimento numa imagem, numa imagem que é aquele mesmo sentimento particular do poeta que se tornou transmissível e humano e universal. Filósofo que não é filósofo quando ele quiser ou procurar tornar-se poeta, assim como o poeta não é poeta quando ele quiser ou procurar tornar-se filósofo. Ambas as coisas, embora pertençam à esfera teorética do espírito, são diferentes e distintas justamente porque, como o caminho do filósofo está na direção do absoluto, assim aquele do poeta está no contrário, rumo ao particular. De forma que, quanto mais absoluto for o pensamento, tanto mais será ele filosófico, assim como, quanto mais lírico for o sentimento, tanto mais será ele poético. Haveria mister de dizer mais, mas não é possível. Seja, nesta altura, suficiente observar como, pois, é coisa verdadeiramente difícil ser filósofo ou poeta, e como bem pequena é a roda de uns e de outros nesta nossa Terra que não possui deveras tantos filósofos e poetas quantas são as estrelas que embelezam os nosso céus. Destarte, a ciência do filósofo é a lógica, o pensar por absoluto; assim como a ciência do poeta é a estética, a doutrina da beleza. Foi desta forma, com esta distinção franca, com esta absoluta independência e autonomia do pensamento e da arte, da ideia e da imagem, da filosofia e da expressão, que nós pudemos chegar – após tantos erros e tantas aberrações, e até de homens célebres como Platão e Cícero, como Quintiliano e Dante Alighieri e Descartes e outros – a dar à arte sua Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos verdadeira definição de absoluta liberdade e de absoluta independência, libertando-a, de uma vez para sempre, de todo híbrido conúbio, quer com a filosofia, quer com a moral e a economia, porque a arte não é nem filosofia, nem economia, nem sequer moral, não é conhecimento lógico nem finalidade prática e nem sequer educação, justamente porque é arte, pura fantasia e imagem, ou, para dizê-lo com um termo clássico e claro, é forma, isto é, síntese de conteúdo e de expressão, em que conta não o que o poeta diz, mas o como diz, e, melhor ainda, o como ele canta: porque a poesia é mesmo um canto íntimo e silencioso, real e ideal, que nos penetra e nos prende, levando-nos para o mundo de realidades e de idealismos do reino arcano e sublime da beleza, que é o reino do nosso mais profundo, mais verdadeiro e mais puro sentir. __________________ Na esfera prática, da mesma forma, o espírito atua sob dois aspectos distintos e iguais. Pode o homem agir, e age, por um fim de utilidade. Pode o homem agir, e age, por um dever. E, aqui também, a primeira coisa não é a segunda, e a segunda não é a primeira, embora as duas representem o aspecto prático do nosso espírito. Não acho que se faça mister gastar muitas palavras para explicar estes dois aspectos do homem prático. Como em cada momento do dia, e perante um problema ou um fato, nós constantemente pensamos e sentimos, ou deveríamos pensar e sentir, assim, da mesma forma, em cada momento do dia, e perante uma causa e uma ação, nós constantemente agimos e tomamos uma atitude, ou deveríamos agir e tomar uma atitude. Para um fim de lucro e de vitória, age o comerciante tratando de seus negócios ou o político realizando seus planos. Para um fim prático e mediato age o estudante procurando estudar e ser promovido, assim como, sempre por um fim prático e mediato, age o banqueiro procurando dobrar suas ações e investir seus capitais. E assim age o trabalhador e o homem comum procurando melhorar sua moradia e o tom de sua vida. Quem assim procede (e, mais ou menos, todos necessariamente assim procedemos, porque nosso espírito é tudo isso e não pode não ser tudo isso, e, como pensa e sente, assim também age, e age por um fim de utilidade ou para um dever), quem assim procede é movido pelo aspecto econômico-político do nosso espírito. O qual espírito, pois, além de ser, como vimos no campo teorético, lógica e fantasia, é agora, também, no campo prático, economia e política. Há mais. Há homens (os heróis que exaltamos, os apóstolos que admiramos, os santos que tomamos por exemplo e modelo): esses seres 411 412 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que às próprias ações dão um estímulo mais puro e virginal, imprimindo-lhes um conteúdo mais desinteressado e eterno. São estes os homens que agem por uma lei moral, por um imperativo ético, por um dever universal e absoluto: como Sócrates aceitando a condenação porque é um dever a obediência às leis, como Cristo aceitando a cruz por um dever de resgate, como todos os que, ontem e hoje, por um mais alto teor de vida, por uma mais alta essência de vida, por um profundo anseio de civilização, de amor e de bem, não ficaram aguardando que todos, indistintamente todos – o que é um absurdo – acreditassem em seus ideais e modos de viver, mas logo, e como que sozinhos, aqueles ideais e aquele costume de vida individualmente atuaram, vivendo-os como dever. Quem assim procede (e, mais ou menos, todos necessariamente assim procedemos, porque nosso espírito é tudo isso e não pode não ser tudo isso, e, como pensa e sente e age por um fim de utilidade, assim também age por um dever), quem assim procede é movido pelo aspecto ético e moral de nosso espírito. O qual espírito, pois, além de ser, como vimos no campo teorético, lógica e fantasia, é agora, no campo prático, economia e mora1. E, como a lógica e a estética eram as ciências do espírito teorético que pensa e sente, assim a economia e a ética são as ciências do espírito prático que age e cumpre. E, como na esfera teorética do espírito humano era possível uma história do pensamento ou da filosofia justamente porque o homem pensa, e uma história da arte justamente porque o homem sente, assim também, na esfera prática do espírito humano é possível uma história da economia ou da política justamente porque o homem age por um fim de utilidade, e uma história da moral justamente porque o homem age por um dever. __________________ É este o homem, o homem conforme a filosofia moderna. Ele é, pois, tudo; tudo o que ele é, nada de menos do que ele necessariamente é, nada de mais do que ele necessariamente deve ser. E ele, necessariamente, é, como vimos, atividade teorética e atividade prática; atividade teorética, atuando-se e exaurindo-se como pensamento e arte; atividade prática, atuando-se e exaurindo-se como economia e moral. Fora destas duas esferas do espírito, ou teorética ou prática, e fora das quatro formas da lógica, da estética, da economia ou da moral, não há mais nada; mais nada resta do que o homem ou pensa como lógica, ou sente como fantasia, ou age como economia e política ou cumpre como moral. E tudo, tudo o que o homem pensa e sente e age e cumpre pertence àquelas duas esferas e atua-se numa daquelas quatro formas. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos De maneira que tudo cabe ao espírito e ao homem e tudo procede dele. E nada lhe é estranho, porque nada fica fora dele, e também tudo o que parecer estar-lhe fora ou ser-lhe diferente, na verdade está fora ou é diferente só na aparência, porque efetivamente ou pertence ou pertencerá ao espírito, ao espírito do homem particular e contingente ou do homem na sua universalidade e eternidade, do homem de ontem ou de amanhã; o que, numa esfera que não seja a do egoísmo, tanto faz, porque, como tudo vive, tudo também se extingue, e, como tudo se extingue, tudo também vive, num viver e num morrer em que o que conta não é o indivíduo físico mas a humanidade, que em nós e por nós vive e morre sem nunca definitivamente morrer e viver. E aqui cabe uma última observação antes de concluir esta breve exposição, Como tive já a oportunidade de dizer, relativamente à teorética e à prática do espírito, das quais, embora distintas e diferentes, uma é outra e vice-versa, justamente porque não tem sentido uma teorética que não seja prática ou uma prática que não seja teorética, assim digo agora que o homem é, de vez em vez, filósofo e poeta, economista e moralista, mas pode ele ser, e o é, contemporaneamente, uma e outra coisa, porque é inconcebível, mesmo pela unidade e contemporaneidade do espírito, é inconcebível um filósofo que um pouco não seja também poeta e economista e moralista; é inconcebível um poeta que um pouco não seja também filósofo e economista e moralista; é inconcebível um economista que um pouco não seja também filósofo e poeta e moralista; é inconcebível, enfim, um moralista que um pouco não seja também filósofo e poeta e economista. O que é visível em qualquer página de fi losofia, em qualquer verso de poeta, em qualquer ação de economista e em qualquer ato de moralista. Poder-se-ia desejar até que assim não fosse; mas é absurdo que assim não seja justamente porque é simplesmente natural que assim deva ser. Nesta distinção e autonomia das formas do espírito, nós não falamos de separação e de hiato e de hierarquia, no sentido tradicional de espaço, de tempo e de qualidade. Aqui, uma forma do espírito equivale a outra, uma forma do espírito fica aqui distinta e autônoma perante a outra, mas, embora assim, constituem elas todas, num plano igual e paralelo, o espírito, que é unidade, absoluta unidade a priori. Assim é que a distinção de que aqui falamos não é uma distinção material e empírica, mas ideal e dialética. Penetrando uma na outra e embora distinguindo-se uma da outra, as quatro formas do espírito são os quatro momentos da nossa humanidade que pensa, que sente, que atua e que cumpre; são as quatro provas da circularidade eterna e dinâmica da nossa vida interior: 413 414 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos do nosso pensamento que é espírito, do nosso sentir que é espírito, do nosso atuar que é espírito, do nosso cumprir que é espírito. Para conhecermos o homem (o que constituía um imperativo desde os tempos de Sócrates), a filosofia moderna tem deixado de lado as altas esferas, as sublimidades, os voos abstratos e inconsistentes das metafísicas e das magias para avizinhar-se do homem, analisando-o e estudando-o na sua essência interior, na sua capacidade humana. E o encontrou e conseguiu. É ele o que ele é, o que dissemos que ele é, o que, enfim, todos sabíamos o que fosse. É, pois, deste ponto que devemos agora mover e continuar, diante do homem e de seus trabalhos, diante do seu pensar e sentir, diante do seu atuar e cumprir, para melhor compreendermos, historicamente, o que e por que o homem assim pensou e sentiu e atuou e cumpriu, para melhor compreendermos, ativamente, o que e por que nós devemos hoje assim pensar e sentir e assim agir e cumprir, no conjunto de passado e de presente, de análise e de ação, de pesquisa e de fazer, que constituem justamente a concreta contemporaneidade e a insuprimível organicidade do homem de ontem e de amanhã, do homem vivente como indivíduo real que morre e do homem vivente como momento ideal da humanidade que continua. Devemos ir para a frente: sempre sabendo mais e mais procurando saber logicamente, sempre sentindo mais e mais procurando sentir esteticamente, sempre agindo mais e mais procurando agir economicamente, sempre cumprindo mais e mais procurando cumprir eticamente. Esta filosofia tem servido para despertar o homem, para libertá-lo das esperas, das místicas, do acaso, das incertezas, da melancolia e do idílio, da apatia e da indiferença. Tem servido para despertar e abrir os olhos ao homem, chamando-o a si mesmo e à sua interioridade. Tem servido para fazê-lo compreender o quanto a vida é séria e dura e repleta de lógica, também quando ela parece ilógica, como na guerra, no delito, no erro, nas calamidades e nas dores: coisas estas todas que só existem porque possuem uma razão de existir: uma razão que é humana, e, pois, porque humanas, não podem elas não existir, sendo necessárias e às vezes até benéficas e providenciais. Tem servido a estimular o senso da responsabilidade e nos tornou, sobretudo, críticos. É esta, de fato, a idade da crítica, da análise, da distinção, da indagação: no campo das ciências que progridem e descobrem, nas doutrinas humanas que nos acostumaram a considerar e a meditar. A palavra de hoje é justamente a crítica; e isso não quer dizer que devemos dizer mal ou destruir, mas antes construir observando, analisando, julgando, vendo o pró e o contra Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos das coisas, justificando e compreendendo um acontecimento ou um pensamento ou uma obra de arte. E temos diante de nossos olhos a história da filosofia, da arte, da economia e da moral não apenas para lhes conhecermos os acontecimentos e a cronologia e as curiosidades e os lados mortos e inúteis, mas sobretudo para que possamos nos tornar sempre melhores pensadores e melhores conhecedores de poesia, sempre melhores homens econômicos e políticos, sempre mais atuadores de uma lei moral. Homens simples e puros do dever, adoradores do verdadeiro Deus, fiéis ao verdadeiro Deus que, como seu filho, desce em nós e em nós age e cumpre, pensa e sente. Neste sentido, também a religião pertence ao espírito. É natural, é patente que ela pertença ao espírito. Pertence ao espírito como lógica porque a religião é essencialmente concepção da realidade, da vida e dos seus problemas. Pertence ao espírito como ética porque a religião é, por outro lado, essencialmente costume de vida, alto e sublime dever, maneira ética e moral de viver à luz de um princípio que é, ao mesmo tempo, lógico e ético. É claro que colocar-se desta forma perante o homem significa também e justamente colocar-se perante a realidade, a natureza, os problemas da terra, do céu, das ciências e da vida; significa também e justamente colocar-se diante da História: a história de ontem que deve ficar nos alicerces do hoje justamente como o hoje deve tornar-se o alicerce do amanhã, num círculo que não é volta ou regresso ou réplica ou mecanismo repetindo-se ou imitando, mas dialética e experiência do espírito, do Espírito com o E maiúsculo, porque se trata do espírito de cada um de nós como indivíduo e de cada um de nós como humanidade, de cada um de nós em que o conceito de humanidade desce na concretização da individualidade, e de cada um de nós em que a individualidade, além do tempo e do contingente, se sublima e se ergue no conceito de humanidade. E a História é tudo. É o que verdadeiramente vale, porque é ela que recolhe o quanto e o como o homem pensou e sentiu e agiu e cumpriu, é ela que nos apresenta a experiência e nos sugere o quanto e o como hoje, no presente, perante os fatos particulares e os particulares fenômenos, nós devemos pensar e sentir e agir e cumprir. __________________ É verdade que ao olharmos a realidade presente parece que – nos homens e nas coisas, no seio de cada país e no mundo – tudo seja bem pobre e quase triste e mesquinho e miserável. 415 416 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos É verdade que ao olharmos para nós e em torno de nós parece que tudo esteja perdido e que, em qualquer campo, tudo seja quase irracional e ilógico, numa confusão individual e anárquica em que cada um e todos só parecem adorar ao deus Belzebu, num desejo de superar os outros, de enriquecer e dominar com a insensibilidade do egoísmo e com a materialidade do animal. Mas não é assim. Não é assim, quer porque a realidade nunca foi e nunca será perfeitamente a imagem do ideal, quer porque, se é verdade que tudo anda mal, é essa uma razão a mais para que nós hoje digamos o que o homem é e o que deve ele ser, tanto mais numa Faculdade de Letras, na abertura de suas aulas, cujo objetivo fundamental deve justamente ser o de estudar o homem, de formar o homem e de transformar em homem. Não há, aliás, escuridão completa. E Deus vive sempre e nunca o pode o homem esquecer e sufocar completamente. ln interiore hominis est veritas, dizia Santo Agostinho. E na alma do homem está também, como teorética e como prática, o que é bom. E esse bom sairá, tem que sair. Devemos fazer com que saia. E sairá, quanto mais o homem conhecer, lendo, estudando, observando, sentindo, agindo e cumprindo. Este homem da filosofia moderna assim considerado é um passo para a frente e um início, justamente porque – embora seja sempre absoluto o que é absoluto – nada é histórica e realmente definitivo sistemático. Não se afaz ao homem, como homem, o lema de um curioso escritor alemão que uma vez disse: “Escrevo o meu sistema filosófico e depois caso”. O homem, verdadeiramente homem, nunca acaba de escrever o próprio sistema filosófico, porque continuadamente o escreve e o atualiza. Este homem da filosofia moderna é o homem como ideal, como é e deveria ser. Mas ele seria abstrato e irreal se não fosse ou não procurasse ser história, isto é, realidade. Este homem é o guri que vai às carteiras da escola primária; é o jovem sentado nas salas das escolas secundárias; é o homem que acompanha, consciente e sério, as aulas dos cursos universitários. É o homem do trabalho dos campos e do das cidades. É o professor e o pai de família, É o velho que conhece a vida e a observa de olhos meigos e bons. É o cidadão com sua vida particular e com sua vida coletiva e social no seio da nação. Somos nós aqui reunidos: professores e alunos. E faço votos que uns e outros, durante este ano escolar, saibamos e possamos sempre mais ser dignos deste homem da filosofia moderna; deste homem que pensa e constrói uma fé baseada na razão, que sente e se forma um gosto baseado na crítica, que age e alcança seu bem-estar e Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos sua tranquilidade honesta, que cumpre e deixa um patrimônio de valores e de ideais que a História recolhe para transmitir, amanhã e sempre, às gerações vindouras. Faço votos que esta jovem e querida Faculdade Estadual contribua para a criação deste verdadeiro homem. Tanto melhor para esta alta e límpida Ponta Grossa. Tanto melhor para este Paraná promissor que aguarda da nossa Faculdade seus mestres e homens de amanhã. Tanto melhor para este nosso Brasil que precisa de homens vivos, francos, serenos, firmes e iluminados. Tanto melhor para o mundo e para a História: esta criatura silenciosa e angélica que nos segue e acompanha e não nos deixa e não nos esquece, registrando sempre, em cada momento da vida e em qualquer lugar da Terra, as pulsações do nosso pensar, as vibrações do nosso sentir, o calor de nosso agir e a nobreza do nosso cumprir. Abre-se, pois, assim, o nosso ano escolar. Para todos faço votos que ele seja feliz e fecundo: fecundo de vida interior e feliz daquela felicidade que surge espontânea para os homens de boa vontade. Ponta Grossa (Paraná), 4 de março de 1953, Salão Nobre da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras. (Revista Uniletras, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, n. 12, 1990, p. 5-17) À margem da história Bruno Enei Ao iniciarmos a “Semana Euclidiana”, em nome da Diretoria do Centro Cultural “Euclides da Cunha”, tenho a satisfação, como primeiro conferencista deste ano, de cumprir o dever de apresentar aos Senhores Diretores desta Rádio Clube Pontagrossense os mais intensos agradecimentos pela cooperação compreensiva e patriótica que sempre nos proporcionaram em nossas atividades cívicas e culturais. Em qualquer livro que se o procure, sob qualquer ponto de vista que se o estude e considere, Euclides da Cunha deixa sempre no leitor a impressão bem clara e firme da sua inconfundível personalidade de escritor e de homem. 417 418 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Por um lado, a fundamental e singela unidade dos temas que movem e articulam “Os Sertões”, “À margem da História”, “Contrastes e Confrontos”, “Peru versus Bolívia”, é uma prova e a confirmação de um particular mundo afetivo de inspirações e de interesses perante os quais a alma de Euclides encontra a razão essencial e “eletiva” de suas melhores vibrações de estudioso e de pensador. Por outro lado, a tonalidade – entre profética e apostólica – com que ele escreve e pensa, o realismo objetivo de seu descrever e deduzir, a solidariedade larga de suas conclusões geológico-humanas, a contemporaneidade espontânea de seus dualismos natureza-homem, paisagem-alma, mitologia-história, barbárie-civilização, selva-rio, trabalho-escravidão, primitivismo-técnica, superstição-religião induzem-nos logo para uma apreciação de Euclides que vai bem além de uma consideração individual e no-lo colocam num particular plano representativo e numa particular posição histórica no quadro da Literatura Brasileira. Estas duas conclusões fundamentais surgem naturais e legítimas ao largo da leitura das páginas euclidianas. E quase toda página de seus livros nos proporciona a confirmação e o motivo desta sua unidade de inspiração e deste seu lugar de destaque na história literária do Brasil. __________________ Euclides da Cunha não é somente um grande Euclides da Cunha. Ele é ainda um grande ponto firme – e não apenas de chegada como também de saída – na evolução histórica de nossa literatura; se é verdade, como é verdade, que a literatura de um povo deve ser expressão de original sentir, de nacionalidade, de problemas, de personalidade de temas e de inspiração. Neste sentido, apesar de seus limites de linguagem, de pensamento e de atualidade (máxime perante umas soluções e sugestões de caráter mais propriamente prático), Euclides da Cunha acaba com aquela literatura colonial e imperial, toda, mais ou menos, impregnada de remoinhos alheios e europeiamente estandardizada nos moldes e nos acentos de um subjetivismo melancólico, de um lirismo inconsciente, de uma exaltação superficial, de um individualismo sem história, sem pátria e quase anárquico; indiferente, como é ele, a um concreto acolhimento – na personalidade egoística do escritor – de algo que possa constituir e ser a voz e a alma de nossa sensibilidade de povo e de nação. Euclides da Cunha acaba sobretudo com aquele descritivismo pelo descritivismo e com aqueles rimários fáceis e arbitrários de todos os amores, de todos os cumprimentos e bajulações da literatura encomiástica. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Não quero dizer que a nossa literatura comece mesmo por ele; mas percebe-se bem claramente que é Euclides da Cunha quem, com o realismo e a humanidade de sua inspiração, continua e aprofunda o nosso renovamento romântico, dando-lhe uma orientação popular e nacional, um sentido firme, um rumo vital, a injeção de um sadio fermento de brasilianidade, entendida ela como problema, como espiritualidade, como sociedade, como história. Percebe-se isto não apenas nos seus livros mais conhecidos e citados, como também no seu breve mas íntimo epistolário para com os amigos e os pais. Percebe-se isto, ainda, na sua breve mas significativa atividade de poeta. Há no seu epistolário uma larga veia de carinho e de cordialidade, assim como há em seus versos um desejo ardente de renovação, uma exigência de temas novos, uma necessidade de afastar os esquemas acadêmicos do convencionalismo e da rima para dar livre desabafo a um sentimento espontâneo de humanidade, a um real anseio de socialidade, de progresso, de marcha para frente à busca de nós próprios, de uma nossa língua, de uma nossa alma, de uma nossa expressão que seja unicamente nossa. Eis a sua protestação: Detesto francamente estes mestres cruéis que esmagam uma ideia sob quebrados pés... que vestem um pensamento torto, encarquilhado e perro como um correto frack no dorso de um corcunda. Eis a sua definição do escritor: Oh! Sim, quando a paixão o nosso ser inunda e ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito como dos ribeirões o borbulhoso leito parar – é sublevar medir – é deformar. E eis sua confissão: Não tenho ainda vinte anos e sou um velho poeta. A dor e os desenganos sagraram-me mui cedo. A minha juventude É como uma manhã de Londres, fria e rude. 419 420 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E se quisermos achar a origem remota daquela capacidade escultórea de Euclides, tão presente nas páginas de sua prosa, devemos ler os sonetos “Dantão”, “Marat”, “Robespierre” e “Saint-Just”. __________________ Isso me parece o essencial da personalidade artística e histórica de Euclides da Cunha. Há nele uma razão de escrever. Um motivo constante e necessário o agita. E um anseio o empenha. Uma seriedade o move e não lhe permite de ficar tranquilo e indiferente perante o que vê e escreve. Há uma fé nele. E a fé, a inspiração, a solidariedade são os caracteres essenciais do escritor, a quem o escrever não se apresenta como um exercício e um lazer, antes como uma missão, como um empenho moral, como um grito de protestação e um ato de coerência entre a vida e ideal, entre livro e existência, entre pensamento e ação. Possui este escritor uma mente nutrida e competente conhecendo os problemas, vivendo-os, analisando as situações e sabendo ler entre os complicados enredos da multiforme realidade da vida, do indivíduo e da sociedade. E possui ainda Euclides um coração que sente, que enternece e torna-se solidário por uma atitude enérgica e revolucionária, apontando a necessidade de uma solução e o rumo de uma redenção, sem receios e sem medo perante a realidade que é obstáculo e reprovação. A realidade pode ser a que for: mas Euc1ides não a contempla com o olhar estranho e superior do literato, não a descreve com o gosto cínico e indiferente do escritor verista satisfeito de escrever o que é. Aquela realidade ofende sua mente experta e rasga sua sensibilidade de cidadão. Ele a aponta como um honesto promotor público, a condena como um probo juiz e sugere e indica a solução como um patriota ardente. Euclides da Cunha não é um revoltado. Euc1ides é um apaixonado. E justamente porque é um apaixonado, eu tenho minhas dúvidas a respeito de seu “positivismo”, de que muito falam os críticos de Euclides, como Veríssimo, Ribeiro e Rondon. O positivismo acaba dando à nossa cabeça o gosto pelas definições, pelas classificações, pelas abstrações áridas que parece digam muito e afinal nada dizem. Ora, em quais de suas páginas Euclides se revela abstrato, classificador e árido? O positivismo acaba apagando a vida e tirando das coisas a alma. E eu me pergunto se há uma página em que Euclides não faça justamente o contrário, procurando a vida até nas coisas amargas e mortas, projetando um ideal e um “vir a ser” também lá onde tudo é cruel e inhumano. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Na luz de um ideal, ele descreve uma realidade. Mas a medida do gênio artístico de Euclides não está naquela realidade escrita, e sim na perspectiva ideal em que fica ela encarada, no anseio com que a sofre, no desejo de superá-la, de cancelá-la, apresentando-a como uma lenda; uma lenda remota após a qual deveria seguir a história que é reforma, progresso, solução, solidariedade, esforço dominando a natureza e melhorando-a para que possa o homem viver e os homens – donos e fazendeiros uns, operários e trabalhadores outros – possam conviver numa compreensão recíproca para a fundação, para o rápido desenvolvimento de um povo que deve tornar-se nação, de um País que deve tornar-se Estado, de um território imenso que deve racionalizar-se, humanizar-se, abandonando para sempre o “status quo” da colônia e do império para tornar-se progressista, liberal e republicano. Euclides é um homem novo: o verdadeiro brasileiro procurando renovar os homens e criando brasileiros. Leiam-se atentamente, em silêncio, sem retórica suas páginas. Ver-se-á quanta dor há em suas páginas. E quanta amargura no coração deste escritor-engenheiro; o que vale quanto dizer escritor-construtor. __________________ O livro de que deveria eu sobretudo falar é “À margem da história”: um conjunto de artigos e ensaios que podem estar vizinhos, ainda que “Viação sul-americana”, “Martin Garcia”, “O primado do Pacífico”, “Da Independência à República”, “Estrelas indecifráveis” pareçam artigos mais ou menos alheios e estranhos. Mas apraz-me expor aqui minhas impressões imediatas; máxime uma impressão que justamente o título daquele livro me sugere. Na verdade, o mundo de Euclides da Cunha é sempre um mundo “à margem da história”. E é mesmo daqui que deriva aquele não sei que de arcaico e de nervoso, de épico e de remoto, pesando e cristalizando-se no vocabulário duro, invulgar e maciço de seus livros. Tudo no melhor Euclides fica ainda à margem da história; tudo, isto é, fica aquém da história porque não é ainda história, não possui ainda movimento, não tem consciência. Ele, cidadão até os primeiros anos do século XX, possuidor de uma sensibilidade rara; nutrido de cultura e ardente de ação como o futuro homem do ano de Dois Mil, vê-se em torno de si uma realidade cinzenta e imóvel, quase selvagem, primitiva: mais do que selvagem e primitiva porque os homens civis aí trouxeram a escravidão, reduzindo o trabalho, a dívida, rasgando a família, incentivando o ódio e a traição, a avidez e a cobiça, numa confusão de sacro e de profano, de ignorância 421 422 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos e maquiavelismo, de irresponsabilidade e de crueldade, de cínico e de anárquico. Tudo é aqui “à margem da história”. Leiam-se as páginas do primeiro artigo: “Impressões gerais”. Parece viver num mundo ainda inexplorado. Num mundo de lenda. O que é a natureza amazônica? “Ao revés da admiração ou do entusiasmo provoca um desapontamento. Em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como do mar”. E o que se torna o cientista? “Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógrafo”. E o homem? “O homem ali é ainda um intruso impertinente. A volubilidade do rio contagia o homem.A adaptação exercita-se pelo nomadismo”. Leiam-se as páginas onde Euclides descreve a entrada de Manaus. É um quadro grandioso de dor e de realidade, de amargura e de protestação: “Na entrada de Manaus existe a belíssima ilha de Marapatá – e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos. Um lazareto de almas. Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência. E uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável. E o que, realmente, nas paragens exuberantes das héveas e costiloas, o aguarda a mais criminosa organização do trabalho. De feito, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: ele é o homem que trabalha para escravizar-se”. Euclides não descreve. O homem é quem lhe interessa: o homem e o seu drama fatal. O drama do pai que deixa a família no Ceará, e torna-se seringueiro, depois manso, depois freguês, depois escravo, depois hóspede ignoto e perdido. “Não o ligam sequer à terra”, grita Euclides, e aquela terra rica o que era. E o homem embrutece. Leia-se o outro artigo: “Rios em abandono”. Que impressão dolorosa diante destas páginas em que Euclides descreve a biografia dos rios nascendo, deslizando e morrendo com os homens; justamente quando parece que a Natureza aí os semeou para que fossem as estradas dos homens e para que os homens deles soubessem aproveitar com raciocínio. Quanto é amargo esse parasitismo do homem! Podemos dizer a mesma coisa para os outros artigos: “Um clima caluniado” é um severo estudo de sociologia e de antropologia; Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos “Os caucheros” é uma página amarga de crueldade e de destruição em que os homens aparecem reduzidos a “gafanhotos” da natureza e de si próprios; “Judas-Ahsverus” é o trágico espetáculo de uma autoironia e de uma autocaricatura que nos leva aos cenários das bólgias de Dante Alighieri; “Brasileiros” é o esboço de raros brasileiros em que revive a alma bandeirante construindo e agindo rumo ao leste; “Trans-acreana” é um concreto programa de solução e de redenção. Estes sete artigos parecem os sete momentos de um drama, o drama de uma natureza deforme e de uma humanidade imóvel. Nos últimos dois artigos, “Brasileiros” e “Trans-acreana”, surge uma luz, surgem o esforço solitário de construção de um núcleo de pioneiros e a vontade firme de um Profeta, de Euclides: a “vox clamantis in deserto”, desejoso de levar aquele mundo primitivo e bravo para o seio da história, sugerindo estradas e casas, bonificações e reformas, contratos e providências, justiça e civismo. __________________ Este livro tem-me feito uma grande impressão: uma impressão mais profunda e mais íntima do que aque1a que tenho recebido ao ler Monteiro Lobato e outros. A realidade de Monteiro Lobato é menos remota. A sua inspiração é mais política, mais polêmica, mais barulhenta. Euclides é mais bíblico, mais humano, mais essencial. Nunca há nele ostentação, gozo e snobismo: as qualidades negativas dos que presumem. Este livro tem-me feito uma grande impressão, sobretudo porque me parece que ele contenha um estímulo e uma sugestão que nos cabe recolher e pôr em prática. O estímulo, a sugestão e o dever de nos comportar hoje como se comportou ontem Euclides: lutando, tendo coragem, estudando, pondo-nos diante da realidade humana e social do Brasi1 com atitude de responsabilidade, esforçando-nos, em cada momento, de afastá-lo sempre mais da “margem da história”, empenhando-nos, em cada momento, de levá-lo para a história: o que nada mais quer dizer se não que devemos seriamente trabalhar; pacientemente, corajosamente nos esforçar para o bem estar, para o progresso, para a espiritualidade de nossa Pátria, que será o que nós formos e soubermos ser. (Tapejara – Órgão do Centro Cultural Euclides da Cunha, Ponta Grossa, ano III, n. 11, 1953, p. 13) 423 424 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Saudação à turma de bacharéis “Bruno Enei” Pela sua majestade e pelo seu significado, esta cerimônia de hoje traz à minha lembrança épocas remotas e solenes que o lirismo de mil poetas e a página luminosa e humana de romances imortais souberam transformar num mito de pureza e de generosidade, pondo-as num plano altíssimo de épica, de apostolado e de abnegação. Esta cerimônia de hoje traz à minha lembrança a idade dos cavalheiros e dos paladinos do Rei Arthur e de Carlos Magno; a idade justamente das investiduras: quando a defesa da fé, a proteção ao desamparado, a tutela feminina, a vocação e o talento de dedicar-se – alma e corpo – a um princípio e a um ideal de nobreza e de magnanimidade recebiam solenemente uma consagração que, perante a Corte e os grandes sacerdotes, se concretizava na entrega de uma espada cintilante, ou na oferta de um indômito cavalo em arreios, ou numa couraça impenetrável. Após disso, começavam, então, aqueles “uncti Domini” a sua vida de viagens e de peregrinações, de lutas e de audácias, de aventuras e de heroísmos de que a França e Itália, a Ásia e a Europa foram o esplêndido teatro, e as Canções de Gesta e os Poemas da Távola Redonda e do Ciclo Carolíngio são ainda as imagens imortais e comovidas. Mas a humanidade foi indo; foi indo, arrancando do seu caminho essa arcaica necessidade da valentia individual para fazer frente à injustiça e à arbitrariedade. Deu ao indivíduo outros direitos e outros deveres; deu às viagens e às peregrinações, às lutas e às audácias, às aventuras e aos heroísmos outro conteúdo; um conteúdo mais humano, mais interior e essencial. E, entre os outros imperativos, aquele de iluminar, de educar, de esclarecer; de transformar a luz em calor, a ciência em amor, o saber em ideais, o conhecimento em hábito moral, em uma atividade civil, procurando fazer com que o menino se torne homem e o homem mais homem. Veio a escola: esta palestra de cavalheiros, esse quartel de paladinos, esse templo de sacerdotes. E vós, e nós somos esses cavalheiros de hoje, os paladinos de carteira vazia mas de coração magnânimo, os sacerdotes pregando e crendo nos valores da vida, nas luzes do progresso, na realidade de um amanhã melhor. __________________ Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Estais aqui, meus afilhados. E este é o ambiente em que recebereis solenemente o diploma de bacharel. Essas vossas becas – austeras como veste talar – esses vossos mestres – em atitude de alegria e de gravidade –, essas autoridades civis, militares e religiosas – dando um caráter público e nacional –, os vossos pais, os vossos amigos, os vossos concidadãos aqui presentes, essa Banda do 13.o R. I., que o exmo. Sr. General da 5.a D. I. pôs gentilmente à disposição para que as notas brilhantes e cristalinas do Hino Nacional levassem os nossos pensamentos à Pátria Brasileira, representam todos a moldura singular e digna desta “ordenação” acadêmica e universitária, que, pela terceira vez, se repete aqui, nesta cidade princesina, alta nas suas colinas, aberta nos seus horizontes, risonha de ar e de luz. Daqui a uns instantes, num juramento sagrado e numa comoção profunda, Estevam Zeve Coimbra – digno diretor da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa – vos proclamará professores. Estareis, então, como aqueles cavalheiros antigos e aqueles paladinos, prontos a zarpar. __________________ “Ite et praedicate”: é o grito do Evangelho. E vós ireis e pregareis: e eu já vos vejo disseminados por esse Paraná adentro, criando centros de vida espiritual, no meio da mocidade ainda informe que vos aguarda como massas astrais, como galáxias a quem a vossa palavra deverá dar a individualidade e a personalidade da educação. Ireis: e queira Deus que chegue logo o momento em que a escola seja o problema mais vivo do Brasil! Queira Deus que chegue logo o momento em que se torne a escola a instituição a quem o Brasil se empenhe de dedicar o seu carinho mais íntimo e o seu cuidado mais legítimo para que possa o professor – também perante a sociedade – sentir-se prática e economicamente, o que ele sabe de ser e de valer idealmente, no plano moral e educacional, onde se coloca a sua obra quotidiana e heroica a quem todos, indistintamente todos os outros – médicos, engenheiros, advogados e militares, funcionários e burocratas – devem todos o tudo que eles são. E saia uma Reforma adequada do ensino; e sejam os programas, os vencimentos, as garantias, as aposentadorias, as relações entre escola e família, entre professor e aluno, entre prova e nota; os concursos e os demais aspectos da escola e do magistério objetos de uma revisão sem retórica e de uma reestruturação sem diletantismos, na sólida certeza de que a escola é tudo na vida de um país, tudo e acima de tudo, porque a indústria e a economia, a honestidade e o civismo, a brasilidade e a unidade de um e de todos vêm depois; e são efeitos e não 425 426 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos causas, corolários e não princípios, filhos e não pais sendo a escola quem verdadeiramente cria e aperfeiçoa. Tantos alunos a mais e tantos “Gregórios” a menos. __________________ Ireis e pregareis. Mas... que pregareis? Antes de mais nada, como vosso Patrono que sou, peço-vos o seguinte: Matai o cepticismo É aquela doença fatal que cria o desprendimento para com tudo e para com qualquer coisa: não interessa saber, interessa passar; não há aspiração mas somente aguardamento dos anos que mecanicamente deverão bem passar e suceder-se. A incompreensão, o enjoo, o tédio esvazia tudo e deixa tudo sem uma razão, sem uma necessidade, numa espécie de naturalismo providencial em que se perde a noção da responsabilidade e o gosto de agir. Tudo vai para a frente não indo, tudo passa sem passar, “panta rei”, como dizia o filósofo grego: tudo escorre sem nada deixar na alma a não ser a inveja, o ódio, a antipatia, o ciúme, a hipocrisia, a bajulação, a megalomania. Matai o cepticismo na escola: ele ainda é o “câncer moral” da mocidade. E criai o entusiasmo, a fé, o interesse, o fervor, conforme a psicologia de cada um, crendo em que direis, fazendo com que vossas aulas não sejam dádivas e esmolas cansadas e soberbas mas sangue do vosso sangue, sentimentos da vossa sensibilidade, ideais do vosso coração e seleção da vossa crítica e do vosso esforço intelectual. Matai o mecanicismo Nada na vida é igual. Nada é uniforme. A vida é um eterno e dialético “vir a ser”: de cume em cume, de conquista em conquista, de assimilação em assimilação. Renovai-vos continuamente se quereis renovar. E a vossa aula seja um grito; uma declaração de fé que ignore a rotina e o programa. Nunca uma mesma aula seja a mesma aula. E o aluno não repita, mas elabore, mas diga na luz do seu sentir, na ordem de sua intelecção, na lógica da sua exigência individual. Matai o mecanicismo e criai a crítica. Matai a gramática E não falo só desse “sujeito” que – coitado – pode contemporaneamente ser simples e composto, abstrato e concreto, expresso e oculto, agente e complexo. Não falo só desse “predicado”, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ele também expresso e oculto, simples e composto, parcial e total, e não sei o que mais. Não falo desses “adjuntos” e desses “complementos circunstanciais” que, quando são adjuntos se tornam complementos, e quando são complementos se tornam adjuntos, segurando o aluno numa casuística de termos e de arbitrariedades sem fim. Falo de todas as “gramáticas”. Porque todas as disciplinas têm uma gramática. Na história, essa gramática se chama cronologia pela cronologia, fato pelo fato, nome pelo nome; na geografia, essa gramática se chama comprimento, medida, nomenclatura; na filosofia, essa gramática se chama silogismo, definição, resumo; nas línguas, essa gramática se chama colocação de pronomes, frases modelos, estandardização. Matai tudo isso, até que tudo seja feito como fim e não como meio. O fim é a cultura, é a educação, é a personalidade, é o homem na sua espiritualidade e na sua formação. O resto, tudo o resto é meio e instrumento. Que errem, meus afilhados, que errem quanto quiserem os vossos alunos; mas que falem, que digam, que se exprimam, que se abram, que demonstrem de interessar-se e de ler, que demonstrem que sabem distinguir, que criticam, que se estão formando e educando. Não é a elegância que conta, mas sim a propriedade. Um dia eles irão procurar a “gramática” – assim como eu estou fazendo –, mas, se – como um tapa na cara – dareis, agora, àquelas almas só gramática e sempre gramática – não há dúvida – acabareis matando a sensibilidade, o desejo de exprimir, a alegria de dizer a própria opinião: e tudo ficará genérico, monótono, insignificante, retórico, repetido na base de modelos e de preconceitos. Tudo ficará “suficiência” e “maior”; só maior, infelizmente. Matai a gramática, e dizei continuamente a vós mesmos e aos vossos alunos o que é humanamente a história, a geografia, a literatura. Ler e ler, discutir e discutir, analisar e analisar por um processo crítico e consciente de cada instante para ter um panorama vivo e real do estudo, da vida deste nosso mundo que, apesar de tudo, é um mundo humano. Matai o ponto Não há ponto. Uma aula não é um ponto. Um assunto não é um ponto. Um acontecimento não se fecha num ponto. Ponto, questão e perguntas: nada de tudo isso, meus afilhados. A cultura é sempre, em qualquer classe e em qualquer idade, elaboração. Não se trata de repetir. A escola não é repetição. Aquele determinado problema deverá ser exposto numa lógica pessoal, numa ordem subjetiva, numa coloração própria. Não somos autômatos. __________________ 427 428 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos E chega de... matar. Nós devemos amar e respeitar. Devemos ser amados e respeitados numa atmosfera de cordialidade, de compreensão e de reciprocidade. Isso não quer dizer nota dez ou nota nove. A nota é um sinal empírico e prático; e nem sempre diz o que nós pensamos do aluno como homem. E, se for possível, procuramos dar notas não ao aluno como discente, mas ao moço como homem. E fazei com que esses moços-homens sejam mesmo homens-moços: isto é, abertos, sem aprumos, confidenciais, leais, respeitosos, sem ar de suficiências e de concessões. Até cumprimentando; sim, até cumprimentando nas ruas da vida, onde somos homens perante homens, sem esperar que o professor cumprimente primeiro e tenha quase medo de que ele – o aluno – não responderá ou dirá aquele “sim senhor” que é uma gota fria e o início de uma separação sem mais jeito nenhum. Fazei com que os alunos sintam a sublime comoção e o legítimo orgulho de olhar e de cumprimentar o seu professor. Que eles também – muitos dos quais amanhã serão, talvez, nossos colegas – não nos odeiem, não nos denigrem, não nos mortifiquem, sobretudo porque fomos amigos e bons. Amai essa mocidade. Empolgai-a. Esse é o nosso primeiro e fundamental dever. Empolgar por uma comoção íntima, quase religiosa, por ideais altos e públicos, fazendo com que aquelas almas – em simplicidade, no equilíbrio e no senso dos outros – vibrem e batam, como vibra e bate uma sinfonia de afeto e de sinceridade. Diversamente, quantas hóstias jogadas aos porcos, e quantas bolotas aos anjos, como dizia um grande poeta! Empolgai essa mocidade bonita do Brasil, erguendo-lhe a cabeça, acendendo-lhe os olhos, tirando-lhe o cansaço e a desconfiança, inculcando-lhe o orgulho de ser verdadeiramente “moça”. Subireis na cátedra: mas saibais que hoje só empiricamente há distinção entre cátedra e banco, entre professor e aluno, entre homem e moço. A escola é verdadeiramente escola na sua unidade de intentos, de interesses, de propósitos, de autoeducação: uma unidade de trabalho, de operosidade, de responsabilidade pública e civil. Porque, trabalhadores, trabalhadores do Brasil, somos todos, e em qualquer lugar do organismo nacional e em qualquer momento da vida. E a escola é trabalho. Trabalho e dor. Eu li uma vez que um grande professor de uma Universidade da Europa pedia ao Ministério da Educação do seu país um ano de licença. Aquele professor baseava o seu pedido na singular declaração de que se sentia cansado, e percebia que assim ele não teria nada de novo a dizer aos seus alunos. Esse professor, nada menos, era um Prêmio Nobel de Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Literatura. E o pedido foi deferido. Imaginem, meus afilhados! Até esse escrúpulo, até essa preocupação de sentir que, além da aula disto ou daquilo, cabe-nos dar algo de sempre novo, de humano, de espiritual, fazendo com que até a mesma palavra se transforme e adquira matizes e colorações diferentes durante uma aula. A escola é justamente isso. A cultura é justamente esta sensibilidade imaculada e ardente que a rotina não deve ofuscar. Não desanimai. A vida do professor é dura: é economicamente, praticamente, socialmente dura. É dura até entre os próprios professores. Recebereis incompreensões e facadas. A “via crucis” levou Jesus Cristo à sua e à nossa redenção. E tudo que no mundo for nobre, essencial, verdadeiro nunca vencerá fácil. Fácil é o triunfo do mal e do vício. Fácil é a piada. Mas é um triunfo transeunte e momentâneo. A educação fica. A escola fica. Até o professor ruim fica; e os seus defeitos acabam, às vezes, educando. O problema não é queixar-se: o problema é ir para frente, é melhorar-se e melhorar, educar e educar-se. A escola não é o mundo frio e jurídico dos romanos. Não lhe cabe o lema: “Do ut des”. Por isso, nos momentos difíceis e críticos que todos conhecemos, perguntai a vós mesmos: “Mas... e o Brasil?, o Brasil está verdadeiramente satisfeito comigo? Dou mesmo eu alguma coisa à minha Pátria? Sirvo a algo?” Se, por acaso, a resposta for negativa, uma contração fria e dolorosa arrepiará as vossas costas e atrás das orelhas. E não há dinheiro em dia que sare essa amargura. Não há amargura maior do que essa para o professor com a consciência do professor que sabe que a escola não é engano e tapeação. __________________ Eu tenho confiança em vós. Conheço-vos um por um. Sei as dificuldades, as qualidades, as aspirações de cada um de vós. Tenho confiança em vós. Sei que fareis bem. Quero que façais bem. Fareis bem porque é o Brasil que quer isso junto à sociedade, às famílias, aos vossos pais, aos pais dos meninos brasileiros. Fareis bem porque é esta Faculdade Estadual moça que o quer. Sem a vossa operosidade, ela não tem razão de ser. Não significa nada. Não tem uma necessidade, embora saibamos todos que ela é já – e o será mais – um centro vivo e fecundo de estudos e de cultura, uma exigência do Paraná, uma glória de Ponta Grossa, e dos professores, a quem esta nossa Faculdade dá brilho e lustro, um lustro e um brilho que não são, não, particulares e estranhos, mas citadinos e públicos no mais alto sentido. Os convites desta cerimônia chegaram até o longínquo Amazonas. E hoje, em Manaus, aqueles brasileiros sabem 429 430 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos que Ponta Grossa é a sede de uma Faculdade, de duas Faculdades e, talvez, de uma terceira e de uma quarta Faculdade, dando-lhe todas essas Faculdades o título prestigioso de Cidade Universitária. __________________ E, agora, despeço-me. Não sei por que me elegestes Patrono. Não sou nada. Não tenho nada. Querem até dizer que nem brasileiro eu sou: eu que nasci na minha Barra Bonita e que tantos anos fiquei longe de meus avós e de meus pais, que aqui estão sepultados, para sentir mais profunda a vontade de agir e de servir esta terra que a nós cabe pôr na história e na vanguarda do progresso e da nobreza sem o otimismo de um instante e sim no trabalho de todo dia, sem milagres e escatologias, mas agindo e fazendo: pondo uma pedra em cima da outra, como todos fazem e fizeram desde que o mundo é mundo. Mas quisestes nomear-me Patrono. E estou aqui. Estou aqui, não só para pedir promessas; mas ainda para fazer promessas. E duas, sobretudo: 10 – Acompanhar-vos-ei onde for, com o carinho e a amizade de quem costuma encravar-se a um amigo como a comoção se prega no âmago de nossas interioridades; 2o – Não vos trairei. Continuarei sendo o que bondosamente quisestes ver em mim. E procurarei de melhorar-me. Procurarei de melhorar-me porque isso é justamente a escola: um melhorar contínuo, um melhorar-se sem trégua, um melhorar que é igualmente dos alunos e dos professores, sendo a vida uma eterna escola e a escola uma eterna vida que, para todos – alunos e professores – nada mais é senão constante melhorar: educação de cada instante e de sempre. (Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, 16/12/1954) ESCRITOS SOBRE BRUNO ENEI Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Novo Docente-Livre da Universidade Homenageado o professor Bruno Enei por sua atuação no recente concurso As pessoas presentes – O discurso de saudação – Agradecimento do prestigioso educador Como foi noticiado, realizou-se, na noite de sexta-feira última, o jantar de homenagem ao Professor Bruno Enei, que lhe ofereceram amigos e colegas, por sua atuação no recente concurso, para cátedra de Língua e Literatura Italiana, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná, em que lhe foi conferido o titulo de Docente-livre. Emprestaram solidariedade à manifestação, que teve lugar no restaurante “Côte d’Azur”, o sr. Nivon Weigert, secretário de Estado dos Negócios do Governo, o sr. Francesco Parenti, Cônsul-Geral da Itália, no Paraná e Santa Catarina, o sr. Abílio Holzmann, chefe do Serviço de Imprensa do Governo, o professor Mario Araujo, diretor do Colégio Estadual Regente Feijó, de Ponta Grossa, os professores Milton Carneiro, Wilson Martins, Temístocles Linhares, Brasil Pinheiro Machado e José Loureiro Fernandes, da Universidade do Paraná, os drs. Reginaldo Werneck Lopes, J. R. Vieira Neto, Eloy da Cunha Costa, Álvaro Augusto Cunha Rocha, Gastão Lopes Borio, os srs. Paolo Parenti, João Alves dos Reis e os Profs. Faris Michaele, os jornalistas Ray Feijó, Fernando Pessoa Ferreira, Orlando Soares Carbonar, Aristeu Berger, Sebastião França, Glauco Sá Brito, Daquino Borges e Eduardo Rocha Virmond. DISCURSOS No final do jantar, o Professor Wilson Martins, em nome dos presentes, saudou o homenageado. Em segundo, falou o professor Mario Araujo, interpretando o pensamento dos colegas do Professor Bruno Enei, em Ponta Grossa, em cuja Faculdade de Filosofia é catedrático interino de Italiano. O novo Docente-livre da Universidade do Paraná, comovido, expressou os seus agradecimentos pelas demonstrações de apreço que lhe eram tributadas ressaltando o sentido de estímulo e de encorajamento que encontra na solidariedade dos seus amigos, para a obra contínua exigida pela educação da juventude. Antes de encerrar-se a reunião, o sr. Francesco Parenti, Cônsul-Geral da Itália, manifestou a satisfação com que participava dela, homenageando as qualidades 433 434 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos de educador de cidadão evidenciadas pelo Professor Enei, durante as provas do concurso para a cátedra da Faculdade de Filosofia. A SAUDAÇÃO É o seguinte o teor do discurso pronunciado, na ocasião, pelo Professor Wilson Martins: Mais do que alegria, a sua livre-docência, meu caro Bruno Enei, me causou espantos. Digo “espantos”, no plural, porque são dois, e contraditórios. [trecho apagado] todas as provas do seu concurso, tendo admirado a inteligência e a coragem com que as enfrentou, tendo mesmo me surpreendido – eu, que já o conhecia – com os seus esmagadores conhecimentos de Literatura Italiana e com a sua cultura geral – eu me espanto de que lhe tenham dado apenas o segundo lugar. Muitas das notas que lhe atribuíram não corresponderam às suas provas: e quando as notas não correspondem ao valor das provas, parece-me que a explicação só pode caber nesta alternativa: houve, por parte dos que as atribuíram, ou ignorância ou má fé. Também pode ocorrer que a conjunção seja outra, e que a má fé se alie à ignorância para produzir esse resultado monstruoso que é o desconhecimento da categoria de um candidato. Ignorância ou má fé, ou ainda: ignorância e má fé, são, segundo parece, elementos estranhos a um concurso universitário e contra os quais ninguém terá armas eficientes. O próprio Benedetto Croce, o próprio Flora, o próprio Momigliano, seu antigo mestre, não teriam provavelmente obtido, nessas condições, resultados melhores. Mas, se assim é, e aqui entra o meu segundo espanto − contraditório, e, contudo, complementar do primeiro: se assim é, não deixa de ser espantoso que você tenha conquistado essa livre-docência que hoje é sua. Se se tratava de eliminá-lo, surpreende que não o hajam eliminado, e se os seus conhecimentos não bastaram para obter alguma coisa mais do que a livre-docência, não [trecho apagado] para que tenham sido suficientes para ela. Porque, como se viu, não houve, no caso, uma exata avaliação do seu valor – não o valor estimativo e gratuito das opiniões pessoais e caprichosas, mas o valor efetivo e objetivo, demonstrado em exames de natureza cientifica; e, se não houve uma exata avaliação do seu valor, o resultado seria sempre arbitrário, e tanto seria possível reconhecer-lhe uma livre-docência, como nada. A injustiça seria a mesma e da mesma gravidade a ofensa cometida contra a Inteligência. Dessa forma, meu caro Bruno Enei, esta reunião não é, para mim, um jantar de regozijo, mas um banquete funerário: o banquete funerário de algumas esperanças e de algumas ilusões. Na minha ingenuidade, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos eu acreditava que um concurso fosse um concurso e esperava que os concursos se realizassem como concursos. Assim se vão as ilusões e as esperanças da juventude; e assim se aprendem as lições de coisas. Deplorei o espetáculo proporcionado por alguns dos seus examinadores, mas admirei e respeitei o candidato. E, se até agora falei, como suponho, em meu nome pessoal, estou certo de que falarei, daqui por diante, em nome de todos os presentes. Admiramos e respeitamos o candidato e nele saudamos, agora, afetuosamente, o Homem e o intelectual. O homem, que não se deixou abater por um ambiente declaradamente hostil, que não cedeu um milímetro das suas convicções por qualquer baixa consideração de interesses; e o intelectual que, naquela atmosfera [trecho apagado] sem piedade, soube garantir a flama do espírito e assegurar a continuidade das grandes tradições universitárias. Quisemos testemunhar-lhe publicamente a nossa admiração e a nossa amizade: quisemos dizer-lhe nesta noite que, como sempre tem acontecido na história da inteligência, os que pretenderam diminuí-lo é que saíram diminuídos, porque não há maior demonstração de irrecuperável mesquinhez do que o ódio impotente e visível contra a superioridade, qualquer que ela seja. (O Dia, de Curitiba, 22/7/1956) Afirma o professor Bruno Enei: Profundo interesse cultural da mocidade universitária carioca Entrevista com o ilustre intelectual paranaense – Entusiasmo pela gente moça que conheceu no Rio – Pronunciou nove aulas e conferências – Escassa difusão da cultura italiana – Público sem preconceitos – Cordialidade para com os visitantes – Entrevista com Carlos Drummond de Andrade Regressando domingo último da Capital Federal, onde, a convite da Universidade do Brasil e da Universidade do Distrito Federal, pronunciou uma série de nove aulas e conferências, o professor Bruno Enei 435 436 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos foi procurado pela reportagem de “O DIA”, que obteve suas impressões, colhidas durante esse breve contato com os meios culturais cariocas. O livre-docente de Língua e Literatura Italiana da Faculdade de Filosofia da Universidade do Paraná revelou, nas entrelinhas de suas declarações a respeito do que viu e sentiu no ambiente universitário que acaba de visitar, um sincero entusiasmo pela nova geração de intelectuais cariocas. A mocidade estudiosa do Rio conquistou Bruno Enei, brasileiro de formação italiana, que voltando a se fixar em sua terra natal acaba de descobri-la, no que tem de mais expressivo e prometedor. INTERCÂMBIO CULTURAL Iniciando nossa conversa, o professor fez questão de referir-se à colaboração do Secretário da Educação, decisiva para concretizar sua viagem ao Rio. Referiu-se ao sr. Vidal Vanhoni, destacando os esforços que vem envidando no sentido de um maior intercâmbio cultural entre o Paraná e os demais centros brasileiros fazendo com que sejam conhecidos, fora dos limites do Estado, os nossos legítimos valores intelectuais. As palavras são nossas: o professor é incorrigivelmente modesto. Fica, entretanto, registrado o seu agradecimento. CORDIALIDADE – Qual sua mais forte impressão (favorável) trazida de sua recente viagem? – Tive muitas impressões fortes e favoráveis. Uma delas do clima de simpática cordialidade entre professores e alunos, nas duas grandes universidades cariocas. As relações entre discípulos e mestres são as de amigos em estudo: ambos procuram o mesmo fim e é mútuo o interesse em discutir problemas de cultura. Impressão igualmente admirável causou-me o interesse da mocidade universitária pelo estudo das culturas europeias, principalmente a francesa. É um interesse que não se contenta em explorar superfícies, mas aprofunda-se no espírito humano dos outros povos, com a mentalidade que considera uma língua mais como humanidade do que como finalidade, pois, atrás das palavras eles veem sempre almas. PÚBLICO SEM PRECONCEITOS – Aliás, esses jovens estudantes, que constituíram a maioria presente às aulas e conferências que pronunciei, são um público inteligente e destituído de falsos preconceitos formais. Formulam questões objetivas e corajosas, após as palestras, estabelecendo francos debates, substanciosamente esclarecedores. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos ESTUDO DO ITALIANO – O ensino da língua e da cultura italiana é feito, na Universidade do Brasil, pela catedrática Aída Sirene Bianchini e por três assistentes. E na Universidade do Distrito Federal, pela notável professora catedrática Marcella Mortara, de quem tive oportunidade de assistir magníficas aulas, orientadas pela mesma mentalidade humanística a que já me referi, e que me parece o verdadeiro caminho para o estudo sério de qualquer língua. Evidencia-se que, no Brasil, há um quase total desconhecimento do idioma e do pensamento italiano, ao contrário do que sucede em relação à cultura francesa, tradicionalmente difundida neste País. Dois fatores parecem-me responsáveis por esse estado de coisas: em primeiro lugar a falta de uma política de difusão cultural por parte do governo italiano. E, em segundo, o fato de não figurar o italiano entre as línguas incluídas no currículo secundário. Em consequência, o conhecimento que se tem no Brasil do espírito da Itália não vai além do relativo contacto com a música popular daquele país. – Mesmo entre os meios mais esclarecidos, salta-se de Dante para D’Annunzio, ignorando que, entre os dois, existem vários séculos de pensamento, arte e ciência. A maioria dos que se julgam atualizados com a literatura italiana pararam em Papini, quando se sabe que o recém- falecido filósofo foi o expoente de um período de decadência há muito ultrapassado. E desconhecem um Ungaretti, um Quasimodo, um Montale, um Levi e outros, representes do que há de melhor na literatura de nossos dias. ENTREVISTA COM DRUMMOND Encerrando a entrevista, acrescentou o professor Bruno Enei: – Durante os escassos dias de minha permanência no Rio, respirei uma atmosfera de encantadora simpatia. É comovente a naturalidade e cordialidade com que é recebido o visitante. Tive a satisfação de ver, entre os que assistiram minhas aulas e conferências, personalidades do valor de Josué de Castro e Roberto Alvim Correia, ilustre ensaísta e catedrático de literatura francesa da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Também tive ocasião de palestrar com o crítico Brito Broca, com Simeão Leal, o incansável divulgador da cultura brasileira e incentivador da gente moça, com o admirável educador Carneiro Leão, e fui apresentado a Carlos Drummond de Andrade, com quem conversei por longos minutos, conseguindo uma entrevista que, desde já, ponho ao dispor de seu jornal. Esteve também presente a uma de minhas conferências o poeta Tasso da Silveira, figura muito estimada nos meios estudantis da Capital 437 438 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Federal, que, sem embargo de sua saúde abalada, deu-me o prazer de seu comparecimento. Entre a gente mais jovem, Afonso Feliz de Souza, poeta de talento e pessoa extremamente simpática. E três moças: Pina Martinelli, aluna da Universidade Católica, Marly Santos Oliveira, que estreará em livro brevemente, com um volume de poemas editado pela “Livros de Portugal”, e Piera Brizzi, jovem pianista, que apresentará tese para conclusão de seu curso na Universidade de Roma, sobre o tema “Folclore musical brasileiro”, em dezembro próximo. Enfim, foi essa uma experiência de aprendizado: aprendi a confiar no futuro da cultura brasileira. Tenho agora motivos para acreditar no desenvolvimento intelectual de minha Pátria, fundado nos alicerces sólidos e sobretudo lúcidos que essa admirável geração está construindo. (O Dia, de Curitiba, 3/10/1956) Professor Bruno Enei – Um homem dentro da vida Guaracy Paraná Vieira O HOMEM O professor, jornalista, crítico literário e ex-partigiano, Sr. Bruno Enei, é filho do casal Dna. Natalina e Sr. Natale Enei (este de saudosa memória), tendo nascido em Barra Bonita, Estado de S. Paulo, no dia 8 de junho de 1908. DENTRO DA VIDA O menino Bruno Enei era o mais velho de seis irmãos, filhos de um casal de lavradores, originário da região de Marche, na Itália, imigrados para o Brasil no dia do casamento. Estudou na Escola Pública de sua cidade natal – Barra Bonita – onde concluiu o curso primário. Em 1919, logo após o término da I Grande Guerra, seus pais desejaram volver à Itália e para lá viajaram acompanhados dos filhos. Porém o ambiente de após-guerra, com suas misérias, o céu nublado de novembro, o panorama da pátria castigada pela hecatombe chocaram profundamente o espírito de Natale Enei. Três meses após retornavam, definitivamente, ao Brasil. Mas, haviam tomado uma resolução: Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos deixariam um filho estudando na Itália. O escolhido foi Bruno, o mais velho. Enquanto a família regressava à pátria brasileira, o brasileirinho Bruno Enei, com apenas 11 anos de idade, ficava na Europa, ainda conturbada pelo flagelo do após-guerra. Assim o menino solitário, elo de ligação entre as duas pátrias de seus pais, entrava dentro da vida, para a difícil caminhada de uma nobre profissão. O ESTUDANTE Bruno Enei iniciou seus estudos como interno no Seminário da cidade de Ferno, pois como estrangeiro que era não podia frequentar curso mantido pelo governo. Posteriormente, transferiu-se para a cidade de Gubbio, onde fez o ginásio e colegial, concluindo o curso secundário em 1932. Contrariando a vontade de seus pais – que o desejavam médico, ingressou na Universidade de Pisa, no curso de Letras e Filosofia, pois sua vocação, seu grande ideal, era transferir-se para a Universidade de Florença, a fim de cursar um ano para defender tese e obter o grau de Doutor. Diplomou-se em 1936. O PROFESSOR Em 1937, fez concurso de títulos e provas para a Cadeira de Letras (Italiano, Latim e Grego) no Ginásio de Gubbio. Aprovado, iniciou a concretização de seu sonho – ser professor. Posteriormente, fez novo concurso de títulos e provas para lecionar Italiano e Latim no Liceu de Perugia (curso colegial). Fez novo concurso e ingressou como Professor de Italiano e História no Instituto Magistrale Superiore de San Genesio. Outro concurso levou-o à Cátedra de Italiano na Universidade para Estrangeiros em Perugia. Nesta Universidade conheceu a aluna brasileira (paranaense) a professora Eny Caldeira, que recebera uma bolsa de estudos e cursava o Curso Especial de Montessori, naquela Faculdade. Esse encontro seria um acontecimento de invulgar relevância para o seu retorno ao Brasil. Com ela passou a aprender o português, pois nos longos anos de ausência, num meio estrangeiro, o menino havia esquecido o idioma natal. Já alimentava o desejo de retornar ao Brasil, ansioso por integrar-se no processo de desenvolvimento cultural da sua pátria, distante, mas nunca esquecida. A infância passada em Barra Bonita, as cantigas de roda, aquela ampla liberdade, a família, permaneciam na sua alma sensível e amorosa. O RETORNO Em janeiro de 1951, após renunciar aos seus cargos e títulos – inclusive o direito à cidadania italiana, se assim o desejasse – perante 439 440 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos a Embaixada Brasileira, legalizada a sua situação, embarcou para o Brasil com a alma plena de esperança e do desejo de reintegrar-se, definitivamente, na sua pátria. Iniciando suas atividades, em São Paulo, realizou uma série de palestras no Instituto Brasil-Itália, onde travou amizade com o escritor e jornalista Paulo Duarte, Diretor da Revista “Anhembi”, da qual se tornaria assíduo colaborador. Posteriormente, veio para Curitiba, onde através da amizade de Eny Caldeira, integrou-se no meio cultural curitibano, tendo conseguido colocação no Consulado Italiano. Trabalhou na Sociedade Dante Alighieri e ministrou um Curso de Extensão na Universidade do Paraná. Em 1952, revalidou o curso primário no Colégio Estadual Regente Feijó, em nossa cidade. Na Universidade do Rio Grande do Sul revalidou o Curso de Bacharel e Licenciado, regularizou sua situação perante as leis do ensino no Brasil. Ainda neste mesmo ano, o Governador Bento Munhoz da Rocha Netto, nomeou-o como Prof. Suplementarista (Latim) no Colégio Estadual Regente Feijó. Posteriormente foi nomeado Catedrático Interino de Teoria da Literatura, na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa. Em 1955 fez concurso de títulos e provas na Secretaria de Educação e Cultura, para a Cátedra de Latim. Aprovado em 10 lugar, foi nomeado para o Ginásio de Palmeira. Um ano depois foi transferido para Ponta Grossa. Em 1956, fez concurso de títulos e provas na Universidade do Paraná, para a Cátedra de Italiano, conseguindo a Livre Docência. Quando residiu em Curitiba, lecionou no Instituto de Belas Artes. ATIVIDADE CULTURAL Publicou, em 1954, o livro “La Poesia de Giuseppe Gioachino Belli”. Quando na Itália, verteu para o italiano o livro de Bento Munhoz da Rocha Netto – “Uma Interpretação das Américas”. Tem realizado várias conferências, destacando-se as que pronunciou na Faculdade Nacional de Filosofia, sobre “Estética e Crítica Literária” e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Guanabara, versando sobre “Crítica Literária em Relação à Literatura Italiana”. É sócio do Centro Cultural “Euclides da Cunha”. JORNALISTA Na Itália foi Diretor do “Il Corriere de Perugia”, órgão do Comitê de Libertação (movimento de resistência), ligado à 8a. Armada Britânica, e colaborou na Revista Literária de Firenze. No Brasil colaborou no “Estado de São Paulo”, “Gazeta do Povo”, “O Estado do Paraná”, “Jornal da Manhã” e “Diário dos Campos”, na revista Anhembi. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos PARTIGIANO Bruno Enei sempre acalentou na alma o sol da liberdade. Quando a Itália entrou no conflito mundial, ao lado do nazismo, ele transferiuse para a França e integrou-se no Movimento de Resistência (Maqui), participando de inúmeras ações, tendo sido ferido por duas vezes, na França e nos Alpes. Retornou à Itália e filiou-se aos “Partigiani”, dirigido pela Armada Britânica, através da “Allied Commision Patriots Branch”. No posto de Major comandou o II Batalhão “Aldo Bologni” de 1942 a 1945, tomando parte em todas as guerrilhas e emboscadas visando debilitar as tropas nazi- fascistas. Entre essas ações destacase: a Ação Armada sobre Triestina; ocupação da cidade de Pietraluga; ataque às tropas alemãs na rodovia de Camporeggiano; libertação da cidade de Gubbio, além de inúmeras passagens entre as linhas inimigas, para fornecer informações aos aliados. Era o brasileiro anônimo, lutando paralelamente com as Forças Expedicionárias Brasileiras, contra o inimigo comum, contra o jugo opressor do nazi-fascismo. A FAMÍLIA Casou-se, em 10 de agosto de 1939, na cidade de Gubbio, com a Srta. Maria Biancarelli, professora formada em Letras Clássicas, pela Universidade de Roma, hoje brasileira naturalizada, lecionando no Colégio Regente Feijó e na Faculdade de Filosofia. Do consórcio nasceram os filhos Juliana e Ricardo (aluno do 20 ano científico no Regente Feijó), ambos registrados como brasileiros na Embaixada Brasileira na Itália. MAIOR ALEGRIA Considera sua maior alegria a oportunidade de dedicar-se à juventude no trabalho da educação, contribuindo para a formação da personalidade intelectual das gerações novas. Trazer para a juventude do Brasil a sua experiência, o sentimento vivo de liberdade colhido num ambiente de lutas, vibrar com esse anseio de cultura e desenvolvimento que sente nos seus alunos, esse desejo de integrar-se na formação deste país que tem para sua alma de idealista um dos maiores júbilos, compensando todos os sacrifícios, as lutas da longa jornada, longe da Pátria e da família. Dar algo de si pela juventude ávida de saber, considera a maior contribuição que um homem possa almejar oferecer à coletividade. O QUE APRECIA E O QUE PENSA Aprecia a literatura italiana e entusiasma-se com o conhecimento da pujante literatura brasileira contemporânea. Beethoven, Bach e 441 442 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Mozart, na música clássica, são seus preferidos. Pintura expressionista, com algumas restrições, merece sua apreciação. Gosta de cinema e teatro. Canto coral é a expressão vocal que mais lhe agrada. É filiado à filosofia de Benedetto Croce. É um otimista quanto ao entusiasmo da geração jovem brasileira, a quem cabe argamassar as bases de uma cultura pujante e uma pátria grandiosa. Acriação de uma opinião pública liberal, progressista, construtiva, positiva, aponta como o principal problema brasileiro, capaz de ser solucionado através da Escola, desenvolvendo com seriedade, coragem e patriotismo, a cultura do povo, tarefa que a mocidade terá sobre seus ombros. O Brasil não é apenas um país, é um continente, e seu povo deve preparar-se para pensar sempre nesse sentido da grandiosidade que lhe cabe estruturar. E nessa imensa e nobre tarefa o professor encontra campo vasto e propício para realizar e cumprir sua missão. Este o homem que fomos encontrar dentro da vida. Realizado seu ideal de ser professor, mas cada vez mais exigente consigo mesmo no dever de realizar sua parcela de trabalho na construção deste sentimento de brasilidade, que empolga todos os bons brasileiros. Não ambiciona outra glória que não seja a de servir, coerente com o lema do Rotary Internacional (é membro do Rotary Clube de Ponta Grossa – classificação: – Educação – Ensino Superior – Filosofia). Modesto e retraído, cuidando de sua tarefa mais do que de obrigações sociais, apesar de ser sócio das principais agremiações recreativas, filantrópicas e esportivas, integra-se na vida da comunidade pelo seu trabalho diuturno, abençoado pela estima espontânea e calorosa de seus alunos, filhos de sua alma idealista. Veio de origem humilde. Traçou caminho difícil em terra estranha, enquanto seus familiares, no aconchego do lar, integravam-se na vida de suas comunidades. Seu roteiro e seu exemplo marcam uma diretriz para os que estudam e almejam realizar algo em favor do bem comum. Mestre e cidadão, situa-se na vida como estímulo às gerações novas, que tanto terão que lutar pela grandeza e soberania da Pátria. (Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 26/4/1964) Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Le celebrazioni dantesche a Ponta Grossa Il corso “Lectura Dantis” a cura del prof. Enei Nell’auditorio della “Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa” (Stato del Paraná) il 22 maggio ha havuto luogo la cerimonia inaugurale del “Curso de extensão universitaria – Lectura Dantis”, promosso dal “Departamento de Letras” dello stesso Ateneo. É una nobile iniziativa che onora e dimostra l’alto grado di cultura della città chiamata “Princeza dos Campos”, ed una dimostrazione eloquente dei vincoli che uniscono attraverso la lira poetica la Patria di Olavo Bilac e quella di Dante. Il corso “Lectura Dantis” é stato affidato al Prof. Bruno Enei, cattedratico di indiscusso valore, profondo ed appassionato conoscitore e cultore della letteratura italiana, che con la sua parola affascinante, per oltre un’ora há tenuto avvinto l’auditorio, che non gli ha risparmiato applausi fervorosi e felicitazioni. Sensa dubbio, l’iniziativa Pontagrossense costituisce una delle più importanti manifestazioni che sotto il cielo della Croce del Sud si svolgono in omaggio al settimo Centenario del Sommo Poeta e che cosí sia é dimostrato dall’alto consenso e dalla attenzione di cui il Corso é stato oggetto da parte delle Autorità dello Stato del Paraná. Sul palco, addobbato con loAuri-verde ed il Tricolore, troneggiava il profilo del Sommo Poeta, e al tavolo d’onore presero posto il Dr. Lauro Rego Barros, Segretario dell’Educazione e Cultura del Paraná, S. E. Rev. Don Geraldo Pellanda, Vescovo di Ponta Grossa, il dr. José Craveiro Bittencourt de Sá, Direttore della Facoltà Statale di Filosofia, Scienza e Lettere di Ponta Grossa, Dr. J. Dantas, Direttore dell’Università di Diritto, Dr. Jaime Gusmão, Direttore della Facoltà Statale di Farmacia e Odontologia, Prof.a Donna Lourdes Zanardini Camargo, Superintendente di Insegnamento Superiore del Paraná, Prof. Amadeu Puppi, Deputato statale, Plauto Miró Guimarães, Vice Prefetto, rappresentante del Prefetto di Ponta Grossa. Nell’auditorio direttori delle Scuole primarie e secondarie, rappresentanti dei Direttori accademici, del Rotary Club, del Lyon Club, Associazone Commerciale, della Stampa parlata e scritta, il Presidente della Società “Dante Alighieri” di Ponta Grossa, ed um folto publico. É con vivo rammarico e disappunto che gl’Italiani presenti dovettero constatare la assenza del Console Generale d’Italia, che, invitato, non inviò neppure un suo modesto rappresentante. 443 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos 444 Il Corso si concluderà il 15 dicembre. Le iscrizioni che già raggiungono 207 partecipanti, sono gratuite e agli alunni saranno forniti diplomi di frequenza. (Tribuna Italiana, de São Paulo, 5/6/1965) Da minha vedeta Bruno Enei – A personificação da cultura Raul Rodrigues Gomes Criaturas vêm a este mundo com um poder tal de centripetismo espiritual cuja explicação real só encontro nas reencarnações ou vidas sucessivas. Bruno Enei pertencia a esse grupo. Por onde ele passou aqui, no estrangeiro, por várias instituições na Itália onde elaborou os fundamentos de sua profunda cultura humanística deixou um como rastro intérmino de simpatia. Desde quando tivemos o primeiro encontro, me lhe prendi por uma admiração e uma grande estima. Estima e apreço principalmente pela sua cultura, cultura verdadeira posto não ostentar o ouropel do enciclopedismo. Como criatura de sangue italiano, uma das pátrias de cultura ocidental de maior profundidade, ela contrastava em nosso meio com as fulgurações fáceis de sabedorrença, assentada em catálogo ou enciclopédias. Por isso impressionava quando ensinava ou quando realizava conferências ou cursos. Sua síntese biográfica é de grande significação: Nascido em São Paulo, partiu para a Europa aos 11 anos. Lá fez o curso ginasial, o colegial, ciências e letras e línguas. E submeteu-se a vários concursos e chegou à cátedra universitária. Um encontro com Eni Caldeira numa cidade italiana decidiu de seu destino: o retorno ao Brasil. Esteve em seu Estado Natal, depois transportou-se para o Paraná. Aqui fez a via da cruz para ingressar no magistério secundário – e, curioso, teve de revalidar o ginasial para abrir caminho no ensino. Fixou-se em Ponta Grossa, onde ensinou no Regente Feijó e na Faculdade de Ciências e Letras. Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Em Curitiba concorreu à cadeira de italiano na Universidade do Paraná – porém, ali, ele doutor por Universidade da península, obteve apenas a livre docência! Quando uma cultura de sua altitude deveria conquistar a cátedra de italiano, quase sua língua materna, exibindo o volume e rol de títulos. Entre nós, raríssimos os capazes de o superarem nisso. Porém não há estranhar essa sua derrota. No Brasil concurso ainda é influenciado por forças que fazem e tramam o que querem e na forma de interesses suspeitos. Derrotado em cotejo em que esse epílogo jamais se faria em qualquer parte do mundo – falo dos centros de alto nível de sabedoria e ciência –, regressa a Ponta Grossa, cujas instituições de ensino ilustrou até o final abrupto de sua existência totalmente dedicada à educação. Culto, sociável, corajoso de opinião, mestre por vocação e capacidade didáticas, os círculos educacionais de Ponta Grossa – professores de todos os graus, egressos das escolas, intelectuais e profissionais todos lhe queriam profundamente. Deixou várias obras publicadas. E deve contar com vasta bagagem a ser postumamente publicada. Orador, jornalista, prosador, sobre tudo mestre insigne, dado seu mérito, sua desencarnação abriu um vácuo no magistério secundário e superior da Princesa dos Campos dificilmente preenchível. Por isso, seu desaparecimento, absolutamente inesperado, lançou a cidade inteira em luto e desolação. Poucos dias antes de sua partida para o além, encontramo-nos aqui em Curitiba. Jovial, adorável na sua conversa de sotaque um tanto italianado, mas aberto às grandes ideias, sua conversa, como noutras vezes, até aqui em meu lar fascinava-me sempre e eu desejara tornar infindável o nosso diálogo, diálogo em que como nas lições de Platão mais aprendia eu do que emitia qualquer conhecimento. Na manhã em que num nosso matutino li a notícia de seu traspasse, recebi tremendo impacto emocional. Pois senti, senti profundamente seu desaparecimento posto homens de seu elevado quilate não são muito comuns. Nascido para postular na didática – não estranhem esse conceito aí expresso – pois apostolando, ele não ensinava apenas normativamente, educava, guiava, abria para os cérebros juvenis horizontes infinitos, desses horizontes que não encontram, lá mesmo longe o azul da serrania para lhes barrar a visibilidade e o avanço rumo dele, aliás o inatingível mas sempre para a cultura uma ânsia insaciável de conquista. 445 446 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Estas palavras compõem apenas o espaço de um artigo de jornal e não era possível na sua angustia exprimir todo o meu preito à sua personalidade ímpar de confrade, e de amigo, e sobretudo de homem como de Goethe em Weimar disse Napoleão. (Diário Popular, de Curitiba, 14/1/1967) Bruno Enei Álvaro Augusto Cunha Rocha Da parte da Professora Sigrid Renaux, da Universidade Federal do Paraná, recebo três pastas de cartolina contendo anotações de aulas tomadas taquigraficamente, e depois datilografadas por ela, quando aluna do Professor Bruno Enei, na disciplina de Literatura Italiana do Curso de Línguas Neolatinas da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa. A remessa desse material, assim organizado e tão providencialmente conservado pela aluna atenta e aplicada – hoje mestre e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, com especializações na área em Montpellier e Oxford – destina-se a fazer-me conhecer o texto, enquanto indaga sobre a viabilidade de sua publicação pela UEPG mediante proposta do Departamento de Letras. Um contacto ainda que apressado com essas lições devolve-nos, a cada passo da leitura, e a despeito de transcorridas duas décadas e meia dos apontamentos – um Bruno Enei integralmente “real”, na plenitude do modo de ser interessado, entusiasta e estimulante que, em vida, na cátedra como fora dela, tanto o caracterizou. Ao longo das considerações expendidas a respeito das escolas e autores estudados – destinadas à análise do jogo dialético de influências e à identificação dos diferentes processos de criação literária – e aí, portanto, as reflexões do professor sobre a linguagem, o tempo, as aspirações, as transfigurações místicas, o peso histórico e social – há sempre, reverberando por estas páginas, a poderosa e instigante “atualidade” do Mestre. Exatamente como se ele estivesse de fato “entre nós”, nítido e intenso, aqui e agora. Uma atualidade crepitante como o seu próprio espírito solar – quando os seus critérios, Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos seus juízos de valor e sugestões evidenciam-se intactos com o decurso de tempo. E não apenas válidos, mas valiosos; necessários mesmo na colocação de problemas de capital importância no contexto das preocupações culturais mais frequentes destes últimos vinte e cinco anos. Uma atualidade hoje comovedora, que nos serve no presente com a mesma claridade e a mesma força do passado – e que agora sabemos provir menos daquele seu notório e inquestionável “domínio da matéria” do que da sensibilidade agudíssima, que também o distinguia. Sensibilidade e coragem, paixão e liberdade, ato e palavra, lucidez e sonho, esperança e crítica (a propósito, um de seus mais brilhantes trabalhos de maturidade, escrito e publicado em Ponta Grossa, denominava-se, muito significativamente, “Esperanças da Crítica”...; “Jornal da Manhã”, PG., 6-10-57, p. 3), – eis aí algumas das “polarizações” mais constantes do humanismo de Bruno Enei. Aquele humanismo (aplicado aqui o vocábulo na acepção estrita de atitude do espírito em prol do homem como valor) que nele foi indissociável de uma rigorosa vocação de coerência pessoal. Vocação sempre presente, perpassando-lhe a “práxis” do cotidiano mais singelo com a força de uma exigência; capaz por isso mesmo de fazê-lo frequentemente pouco compreendido pela generalidade menos perquiridora, ou mais complacente consigo mesma, ou envolvida com escalas de valores que não incluíam o “autêntico” e o “legítimo” como aspirações de um possível sentido – não necessariamente “da”, mas “para” a existência... Ministradas entre 1956 e 1958, estas aulas de Literatura Italiana coincidem, sobretudo na sua etapa inicial, com uma das melhores fases de nosso convívio com o “casal Enei”. Habituáramo-nos a escutar música juntos, na casa deles, aos sábados à tarde. Entre um e outro dos festejados e sempre bem-vindos cafezinhos da esposa, Dona Maria – uma competentíssima e suave professora de grego – ficávamos horas inteiras repassando peças antológicas. Naquela época estávamos preferindo o barroco ao romântico e a música de câmara à sinfônica. Como honrosa exceção havia sempre Beethoven com suas sonatas para piano nas soberbas interpretações de Bakaus, Wilhelm Kempff e Schnabel. De suas sinfonias, a Sétima e a Nona; desta última, um destaque obrigatório para o quarto movimento, precisamente – oh glória e brio – o trecho marcado pela entrada do tenor... Entre um e outro cafezinho, ou ao virar a face do disco para se prosseguir na série apaixonante das Sonatas para Flauta e Cravo de Bach; ou entre duas de “As Quatro Estações” de Vivaldi – 447 448 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos desenvolvíamos ideias que reencontro agora, expressas ou subjacentes, nos textos organizados pela Professora Sigrid Renaux. E o que mais emociona: revestidas das mesmas palavras candentes e precisas que caracterizavam o “discurso” do amigo desaparecido. Em 1956 o crítico e professor Wilson Martins, da Universidade de Nova Iorque, numa saudação a Bruno Enei, referia-se, literalmente, a seus “esmagadores” conhecimentos (“O Dia”, Ctba., 22-07-56). De Dante a Leopardi, como de Petrarca a Ungaretti ou de Boccaccio a D’Annunzio – a mesma grande massa de informações e as referências críticas que transcendem de muito a área de especialização, para se projetarem, com igual fundamentalidade e brilho, pelos domínios, sobretudo, da Filosofia e da História. Todos que conheceram Bruno Enei sabem do interesse que devotava às pessoas e aos projetos e propósitos que lhe revelavam; ao universo das intenções melhores e às atitudes do empenho; aos sonhos, principalmente, que gravitavam à volta. Era a sua forma de viver multiplamente: nele, creio, a única possível; era o seu perpétuo mergulho “no outro”; a sua constante busca; certamente o meio e o modo, que lhe eram naturais, de penetrar a vida e buscar-se a si mesmo; o seu descobrir-se nunca definitivo nos passos do milagre, ciência e consciência sempre a caminho. A ele, sobretudo por seu feitio participante e a índole “antiacadêmica” por excelência, cabe-lhe a acepção de “cultura” proclamada por Jean-Paul Sartre numa entrevista concedida na Argélia, por volta de 1948, – depois muito difundida e prestigiada pela geração que floresceu naquela década, particularmente influenciada pelo grande pensador francês: “Cultura é a consciência em evolução permanente, que o homem tem de si mesmo, do seu trabalho e do mundo que o cerca”. Hoje, passados dezesseis anos de sua morte e com a perspectiva aberta pelo tempo que se alonga do ponto onde ele nos deixou, tornam-se especialmente expressivas as iniciativas dedicadas à sua marcante lembrança. A Bruno e Maria Enei, o Departamento de Letras da Universidade local tem prestado homenagens muito significativas e brilhantes (cf. UNILETRAS, UEPG, ns. 1 e 4) – e, certamente, dará acolhida oficial – posto que, acolhida afetiva já demonstrou – a ideia de publicação destas aulas de Literatura Italiana. É claro que além da homenagem que se prestará ao colega imenso, a edição irá servir amplamente, como bem observa em carta a Professora Sigrid Renaux – “a futuras gerações de estudantes”. Devo finalmente registrar nestas notas que a iniciativa da pretendida publicação está coincidindo, prazerosamente, com projeto Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos em tramitação na Câmara Municipal de Ponta Grossa pelo qual se quer instituir, como promoção anual, em nossa comunidade, uma semana de atividades culturais variadas, que levará o nome “Semana da Cultura Bruno e Maria Enei”. Trata-se, sem dúvida, de providência oportuna e justa, capaz de preservar eficazmente a memória sentimental e histórica de duas das mais extraordinárias figuras (intelectuais e humanas) que esta cidade já abrigou. (Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 5/11/1983) Perfis da cidade Crônica de Vieira Filho Os Vereadores José Ruiter Cordeiro e Manoel Osório Taques, numa feliz iniciativa, propuseram aos seus pares a instituição da semana da cultura “BRUNO E MARIA ENEI”, proposição essa que já foi transformada em lei que tomou o n.o 3.589, de 8 de novembro de 1983. Essa lei, cujo objetivo além da difusão da cultura em todas suas manifestações, traz na sua intenção espiritual o desejo de prestar justa e oportuna homenagem póstuma a um casal de Mestres cuja passagem entre nós se constituiu num exemplo permanente de saber, sensibilidade, humanismo e beleza estética raramente encontrado no seio de uma comunidade por mais evoluída que ela pretenda ser. O Professor Bruno Enei e sua esposa Professora Maria Biancarelli Enei, ele nascido no Brasil mas com sua formação na Itália, onde conheceu a jovem Professora Maria Biancarelli e com ela casou, vindo posteriormente residir no Brasil, escolheram Ponta Grossa como a cidade dos seus corações, integrando o corpo docente da então Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras, onde escreveram uma das mais brilhantes folhas de serviço à causa do ensino e mais particularmente na vivência permanente da difusão cultural, oferecendo, além do invulgar saber que os caracterizava, toda a potencialidade de humanismo que ressumava de seus espíritos de escol. Embora o paralelo de saber que os notabilizou, o Professor Bruno Enei, na exuberância de seu poder de comunicação e da formação de uma mentalidade voltada para a pesquisa e para as profundas indagações no campo do saber e do ensino, formou escola na comunidade que com ele 449 450 Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos conviveu, na condição de colegas e principalmente entre os que tiveram a ventura de serem seus alunos, como estudantes de Literatura. Contudo, o destaque alcançado em nível nacional pelo insigne e saudoso Mestre foi acompanhado pela dedicada esposa e colega, partícipe de toda sua glória de mentor da juventude de nossa terra no campo espinhoso e nobre do ensino. Hoje, quando o tempo poderia apagar a memória desses dois luminares do magistério, muito embora a Biblioteca Pública Municipal seja honrada com o nome do Professor Bruno Enei, eis que a iniciativa dos ilustres edis José Ruiter Cordeiro e Manoel Osório Taques criando a “Semana de Cultura Bruno e Maria Enei” vem perpetuar suas lembranças, aliando seus saudosos nomes a uma promoção que irá envolver inúmeros órgãos oficiais, entidades culturais e artísticas, representativas da comunidade, além do entrosamento de estudantes do 10, 2o e 30 graus, numa atividade que por certo conquistará renome no panorama artístico-cultural do Estado. Todos os anos, na terceira semana do mês de março, de segunda-feira a domingo uma programação de eventos culturais e artísticos estará congregando nosso povo como participante ou como assistente, numa tarefa de magna importância coordenada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura, homenageando de forma condigna os dois saudosos mestres e dignificando suas memórias nesse esforço comunitário de dar prosseguimento aos ideais que impulsionaram suas atividades quando vivendo entre nós. Se ambos já estavam imortalizados pela sua própria condição de espíritos e pelo labor realizado, por certo estarão sempre presentes nas gerações que forem se sucedendo, beneficiadas pelas luzes que tal promoção lhes proporcionará, sob a égide espiritual de Bruno e Maria Enei, que dessa forma material estarão presentes entre nós, cultivando na juventude a messe de saber e bondade que esparziram às mancheias pelo roteiro bendito de suas existências exemplares de apóstolos da cultura. Merecem nosso aplauso os dois valorosos vereadores, pois que interpretaram com muita fidelidade e concretizaram de maneira positiva uma homenagem que toda a comunidade princesina almejava tributar à memória dos Professores Bruno e Maria Enei. (Diário dos Campos, de Ponta Grossa, 25/11/1983) ORGANIZADORES Bruno Enei Aulas de Literatura italiana e Desafios Críticos Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux Carioca, ponta-grossense, radicada em Curitiba, Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux é licenciada em Letras Neo-Latinas (UEPG/PR) e Anglo-Germânicas (PUC/PR), mestre em Estudos Anglo-Americanos e doutor em Literatura Norte-Americana e Inglesa (USP), com pós-doutorado pela Universidade de Chicago. Realizou também cursos nas universidades de Montpellier, Oxford, Lancaster e Cambridge. Bolsista da Comissão Fulbright/CAPES, do Conselho Britânico e do Governo Canadense. Professora titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada). Leciona atualmente no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Além de traduções de contos e artigos, publicou mais de cem artigos e ensaios de crítica literária, principalmente sobre poetas, romancistas e dramaturgos de língua inglesa, em capítulos de livros, revistas nacionais e estrangeiras e em anais de congressos no Brasil e no exterior. Livros publicados: A Volta do Parafuso: uma leitura icônico-simbólica do conto de Henry James (Curitiba: Editora da UFPR, 1992) The Turn of the Screw: a semiotic reading (New York: Peter Lang, 1993) Do mar e de outras coisas (Curitiba: O Formigueiro, 1979) Azuis (Curitiba: ed. do autor, 2006) Outros azuis (Governo do Paraná, Secretaria de Estado da Cultura, 2009) Hein Leonard Bowles Nascido em Haarlem, na Holanda, é ponta-grossense desde 1959. Professor titular aposentado de Língua Inglesa da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), cuja editora chefiou por vários anos, continua a trabalhar com a revisão de textos e a publicação de livros, agora como editor-chefe da Todapalavra Editora. Durante todo esse período de atuação como editor, tem se dedicado, com especial interesse, à publicação de obras que dizem respeito a Ponta Grossa e à região dos Campos Gerais. Mestre pela UFSC e doutor pela USP, sua área de pesquisa principal é a da linguagem metafórica convencional, tema de seu livro Arqueologia da Raiva e do Entusiasmo (EdUEPG, 2005). Também publicou o livro Jacu rabudo: a linguagem coloquial em Ponta Grossa (Todapalavra Editora, 2009). 453 Bruno Enei: Aulas de Literatura Italiana e Desafios Críticos foi organizado por Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux e Hein Leonard Bowles e editado por TODAPALAVRA Editora, em Ponta Grossa, Paraná, no ano de 2010. Dados técnicos ISBN: 978-85-62450-07-5 Formato fechado: 160x230 mm Fontes utilizadas: Times New Roman, Copperplate Gothic Bold e Copperplate Gothic light, corpos 8; 9; 10; 11; 12; 14;18 e 23 Revisão por Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux e Hein Leonard Bowles Capa Élio Chaves Desenhos sobre obra de Ricardo Enei Projeto gráfico Élio Chaves Desenhos ([email protected]) Impressão por Gráfica Pallotti Tiragem: 800 exemplares Miolo: com 452 páginas em papel pólen 90 g/m2 e couchê 90 g/m2 Folha de guarda: impressão 1x0 em cor azul Impressão 1x1 em cor preta Capa dura revestida em papel couchê fosco 80 g/m2 Acabamento: Laminação fosca, verniz localizado, costurado e colado, impressão 4x0 (policromia)