Vol. 5 (1) - Mar-2006 - Revista Enfoques

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Vol. 5 (1) - Mar-2006 - Revista Enfoques
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Enfoques – Revista Eletrônica
dos alunos do Programa
de
Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia
PPGSA/IFCS/UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor:Aloísio Teixeira
Vice-Reitora: Sylvia Vargas
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CFCH/IFCS
Diretor: Franklin Trein
Vice-Diretor: Aquiles Guimarães
PPGSA – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Coordenadora: Bila Sorj
Vice-Coordenadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
ENFOQUES – ONLINE
Editores:
Ana Paula da Silva
Andréa Barbosa Osório
Renata de Sá Gonçalves
Rodrigo Rosistolato
Conselho Editorial
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Prof. Dr. Amir Geiger (UERJ)
Prof. Dr. André Botelho (UFRJ)
Profª Drª. Bila Sorj (IFCS/CFCH/UFRJ)
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Comissão de Publicação
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Simone Toji
Enfoques On-Line – revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos
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alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Organização:
Ana Paula da Silva
Andréa Barbosa Osório
Andréa Lucia da Silva de Paiva
Renata de Sá Gonçalves
Rodrigo Rosistolato
Revisão de textos: Malu Resende
(Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
____________________
ENFOQUES on-line: Revista Eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. - V.5, n.1
(mar.2006). - Rio de Janeiro: PPGSA, 2006.
Irregular.
ISSN 1678-1813
1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de
Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia.
Endereço para correspondência e assinatura:
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Revista dos alunos do PPGSA – Comissão Editorial
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Largo de São Francisco, nº 1, sala 420.
Centro – Rio de Janeiro – RJ – 20051-070
e-mail: [email protected]
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................6
COTIDIANO OPERÁRIO & COMPLEXO FABRIL: fábrica com vila operária em
Paracambi-RJ ...............................................................................................................7
REAÇÃO AO ESTIGMA: O rap em São Paulo............................................................21
HOMENS LIVRES, VIDAS SECAS: violência e latifúndio num romance de Graciliano
Ramos ........................................................................................................................46
PODER POLÍTICO E A TEORIA DA TROCA EM PIERRE CLASTRES......................73
CONFERÊNCIA DE ABERTURA da VII Jornada dos Alunos do Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia ................................................................... 95
PALESTRA proferida por João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e a
Antropologia.............................................................................................................. 104
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APRESENTAÇÃO
Este é o quinto número da Revista Enfoques on line – Revista dos alunos do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. A revista é apresentada em novo formato, mais prático e dinâmico,
para que alunos e profissionais possam ter acesso aos artigos com rapidez e
facilidade.
Nesta edição estamos publicando quatro artigos. Todos são frutos de pesquisas
recentes e contribuem para a intensificação do debate acerca de temas clássicos,
como trabalho, política, poder, violência e juventude.
Paulo Fernandes Keller procura compreender a vida cotidiana do operariado em um
“complexo fábrica com vila operária”. O autor trata de alguns aspectos da cultura
operária, principalmente religião e educação.
Marco Aurélio Paz Tella investiga um fenômeno cultural contemporâneo: o rap. O
autor aborda a consolidação do rap em São Paulo e propõe que esse movimento é
uma resistência a processos de estigmatização, menosprezo, discriminação e racismo,
além de uma forma de reconstrução do passado das populações negras visando ao
combate da “invisibilidade social”.
André Luis Campanha Demarchi discute a trajetória dos homens livres em meio à
violência e à miséria do Brasil rural. Para tal intento, analisa o romance Vidas Secas,
de Graciliano Ramos. O autor destaca no livro o agrarismo e o latifúndio como grandes
empecilhos para a consolidação dos processos de modernização no Brasil.
Adriana Cristina Repelevicz de Albernaz debate sobre o poder político e a teoria da
troca em Pierre Clastres. A autora apresenta a tese da disjunção entre poder político e
chefia
política
defendida
pelo
autor
e
procura
compará-la
à
teoria
da
troca/reciprocidade em Lévi-Strauss. Busca, fundamentalmente, as diferenças
existentes nas abordagens dos dois autores.
Além dos artigos, a revista Enfoques on line apresenta uma novidade. Estamos
publicando, na íntegra, a Conferência de Abertura da VII Jornada dos Alunos do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, realizada pela professora
Drª. Mirian Goldenberg. Nela, a autora fala sobre os bastidores da vida acadêmica de
forma clara e objetiva. A conferência é um convite à reflexão sobre os aspectos mais
humanos da vida intelectual. Por fim, publicamos um resumo da palestra proferida por
João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e a Antropologia, promovidos
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.
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COTIDIANO OPERÁRIO & COMPLEXO FABRIL: fábrica com vila operária em
Paracambi-RJ
Paulo Fernandes Keller1
RESUMO
Este artigo analisa de forma sucinta a vida cotidiana do operariado têxtil das fábricas
de tecidos da Cidade de Paracambi/RJ, entre o final do século XIX e a primeira
metade do século XX, no momento de “auge” do modelo “fábrica com vila operária”
nessa particular região fluminense.
O artigo busca compreender a vida cotidiana do operariado têxtil dentro do “complexo
fábrica com vila operária” - entendido como um complexo fabril e sociocultural,
desvendando aspectos (particularmente religião e educação) da cultura operária.
Sem dissimular a relação de dominação implícita nesta situação fabril, o trabalho
mostra de que forma tais relações se efetivaram no cotidiano operário. Mas alertando
para o fato de que se as vilas operárias eram propriedade dos industriais, elas também
eram o “lar dos operários”.
ABSTRACT
This paper analyzes briefly the everyday life of the textile workmen of the cloth
factories in the town of Paracambi, State of Rio de Janeiro, during the period of time
between the end of the XIX century and the first half of the XX century, a moment
which was the “height” of the “factories having workmen village” in this particular area
of the State of Rio de Janeiro.
The paper search comprehend the daily life activities of the textile workmen within the
“factory – workmen village complex” - here understood as a factory and socio-cultural
complex - revealing features (mainly religion and education) of the workmen’s culture.
Without disguising the implicit domination relationship
in this factory situation, the
paper shows the way in which such relationships became real in daily life and calls the
attention to the fact that although the workmen’s villages were properties of the industry
owners, they were also the “workmen’s homes”.
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Este trabalho pretende desenvolver de forma sucinta algumas questões referentes à
2
vida cotidiana do operariado nas fábricas de tecidos da cidade de Paracambi, estado
3
do Rio de Janeiro, no período de auge das fábricas com vila operária nessa particular
região fluminense, entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século
XX.
Busco investigar de que forma as partes orgânicas da cotidianidade se cruzam,
4
conforme sugere Heller , no contexto das fábricas com vila operária no sentido de
desvendar aspectos até então não aprofundados do mundo operário. Além da
heterogeneidade da vida cotidiana, Heller afirma que a sua hierarquia não é eterna e
imutável, mas se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas
econômico-sociais (1992:18).
Neste sentido, a cotidianidade nas fábricas com vila operária contém uma ordem
hierárquica específica e determinada historicamente pelo modo de produção
capitalista, no qual
a organização
do
trabalho ocupa posição central
na
5
heterogeneidade deste particular mundo do trabalho . A hierarquia da fábrica se
sobrepõe e organiza o mundo da vila operária, dando o sentido de sistema ao conjunto
das relações entre o mundo da fábrica (espaço de produção) e o mundo da vila
operária (espaço de reprodução). Os diversos aspectos do mundo operário que
formam a heterogeneidade das fábricas com vila operária - produção, religiosidade,
formas de consumo, lazer, educação - mantêm entre si formas de intercâmbio,
combinando-se hierarquicamente a partir de suas relações com a estrutura de poder
vigente que tem como sua figura central o diretor da fábrica. Leite Lopes, que estudou
wz
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um caso particular de fábrica com vila operária - o sistema paulista – no estado de
Pernambuco, demonstra a centralização na estrutura de relações subordinando as
demais atividades:
A denominação de “sistema Paulista” (...) aponta para uma estrutura de relações
que se estabelece, no caso da fábrica e da vila operária de Paulista, envolvendo
sob um mesmo controle centralizado a produção fabril, o domínio da moradia e
da cidade, a produção agrícola da retaguarda territorial da fábrica e a circulação
mercantil dos bens de consumo dos operários sob a forma de uma feira
administrada. Além disso, esta estrutura de relações sociais contém a promoção
e administração de atividades médicas, religiosas, recreativas, e também uma
numerosa milícia particular garantindo o “governo local de fato” da companhia
sobre estas múltiplas atividades (1988:21).
Minha investigação concentra-se na forma como o operariado viveu - cotidianamente 6
sua experiência nessa situação fabril. Se a classe operária é definida pela própria
classe (autofazer) quando esta vive sua experiência, só podemos entender a formação
social e cultural do operariado têxtil da cidade de Paracambi a partir da compreensão
de sua experiência histórica vivida no complexo fábrica com vila operária. Assim,
7
procuro investigar o modo de vida e as formas culturais do operariado têxtil desde a
sua inserção no complexo fábrica com vila operária.
Ele consiste:
1º . Em um complexo fabril: como uma forma particular de produção capitalista na qual
as vilas operárias surgem como solução para o problema habitacional da força de
8
trabalho, assim como uma forma de o patronato industrial exercer controle sobre a
classe trabalhadora;
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2º. Em um complexo sociocultural: como uma constelação de traços socioculturais
presentes nas fábricas com vila operária os quais se configuram nos aparatos
institucionais
10
e se intercambiam como expressão das relações sociais que se
estabelecem entre os membros da classe operária e entre a classe operária e o
patronato fabril, seja no espaço da fábrica (organização da produção), seja no espaço
da moradia (vila operária). Estando este último subordinado ao espaço da fábrica na
medida em que esta é a proprietária das casas dos operários, assim como dos
aparatos institucionais. Dessa forma, o operário têxtil, além de ser empregado, é
simultaneamente inquilino do imóvel que pertence à fábrica e usuário da rede de
serviços
11
(armazém, armarinho, posto de saúde, farmácia, escola, clube social,
capela) que funciona dentro do complexo fabril, transformando o que seria uma
simples relação patrão/empregado em um relacionamento complexo.
12
A característica conceitual está na fluidez das relações,
seja entre os agentes
sociais, com o operariado têxtil e o patronato fabril formando uma relação
simultaneamente de trabalho e pessoal (assim como familiar), seja entre os espaços
fabril e doméstico, na medida em que os agentes sociais circulam entre a fábrica e a
vila de acordo com a função específica de cada um deles na ordem hierárquica. Isto
sem esquecer do intercâmbio das relações que fluem entre cada aparato institucional
13
que integra a rede de serviços do espaço doméstico, não havendo um limite rígido
entre ambos.
Com efeito, as fábricas com vila operária tornam-se, a partir dessa perspectiva, um
complexo socioeconômico, cultural e político: a fábrica moderna com o trabalho
assalariado e sua “servidão burguesa”; o paternalismo industrial com formas
específicas de educação (a escola operária), de religiosidade (as capelas com o(a)
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padroeiro(a) dos operários e da fábrica), de consumo (o armarinho, o armazém etc.),
14
de lazer (o clube social, o futebol de várzea).
Sobre a fluidez das relações sociais do complexo, um operário da Fábrica de Tecidos
Maria Cândida relata como foi feito seu pedido de uma casa na vila:
Eram feitos diretamente com o gerente. Era um pedido verbal. Você chegava
perto dele e falava e ele atendia. Naquele tempo, não existia também
“carrancismo”, ele era um gerente que atendia você, tanto faz dentro da fábrica
como no pátio da fábrica, como aqui fora, em qualquer lugar que você
encontrasse com ele, ele atendia.
A vida cotidiana do operariado têxtil das fábricas de tecidos da cidade de Paracambi
(RJ) deve ser abordada através do complexo fábrica com vila operária tanto nas suas
15
formas específicas, em termos de educação nas escolas operárias , de consumo nos
armazéns e nos armarinhos etc., quanto investigando de que forma o operariado se
apropriou desses aparatos institucionais estabelecendo neles relações sociais próprias
dotadas de sentido.
A cotidianidade não constitui parte estanque do complexo fábrica com vila operária,
mas é uma abordagem que desvenda e aprofunda a própria noção de complexo.
Assim, volto a afirmar, a cotidianidade está inter-relacionada com a noção de
complexo, não sendo possível falar em complexo fabril sem investigar o cotidiano
operário e seus múltiplos significados.
As fábricas de tecidos de algodão implantadas na cidade de Paracambi, desde a
segunda metade do século XIX (primeiro a Companhia Têxtil Brasil Industrial, segundo
a Companhia Tecelagem Santa Luisa, que logo depois se transformou na Fábrica de
Tecidos Maria Cândida) podem ser enquadradas no padrão das fábricas com vila
operária. O período de implantação inicia-se no último quartel do século XIX, com o
16
momento de auge
desse tipo de complexo ocorrendo na primeira metade do século
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XX, até que se apresentam os primeiros sinais de declínio
17
desse sistema fabril nas
décadas de 1960/70.
A fábrica de tecidos de algodão da Companhia Têxtil Brasil Industrial foi estabelecida
inicialmente em 1870 na Fazenda Ribeirão dos Macacos junto à estação do mesmo
nome da estrada de Ferro D. Pedro II, cujos estatutos foram aprovados pelo Decreto
18
n.4552, de 23 de julho de 1870.
Segundo Suzigan, a Brasil Industrial foi a primeira
grande (e até o final da década de 1880 a maior) fábrica de tecidos de algodão do
Brasil (1986:134). A Companhia Tecelagem Santa Luísa foi instalada no povoado da
Cascata, Freguesia de S. Pedro e S. Paulo, Município de Itaguahy, em 1891. O
19
objetivo da Santa Luísa era a produção de sacos de aniagem sem costura. A Fábrica
de Tecidos Maria Cândida foi constituída em 03 e 04 de outubro de 1924, tendo seu
estabelecimento fabril no lugar denominado Cascata, em Paracamby, Município de
Itaguahy, onde anteriormente funcionou a Tecelagem Santa Luísa, incorporando os
20
bens e parte da estrutura produtiva da antiga fábrica de juta.
O surgimento dessas fábricas de tecidos se deu em meio a uma economia e a uma
cultura predominantemente agrária, constituindo um fator preponderante para a
formação de um complexo fabril que pudesse atender às necessidades básicas dos
operários, bem como de organização de um aparato institucional de “amparo” e de
enquadramento “físico e moral” dos trabalhadores,21 isto quer dizer que, com o
desenvolvimento de ambas as fábricas houve a necessidade de construir as
chamadas vilas operárias (conhecidas também como plano inglês), bem como as
redes de serviços coletivos que pudessem dar suporte aos operários e a seus
familiares, criando uma forma relativamente autônoma de organização social. No
processo de implantação da Cia. Brasil Industrial esta necessidade foi sentida pelos
diretores ao comentarem a escassez de operários e a disputa das empresas pelo
limitado pessoal disponível:
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(...) quando o operário, como em nosso caso acontece, tem de ser afastado de
sua moradia, para ir trabalhar em paragens destituídas de recursos, sendo que
sobremaneira se agravam as dificuldades.22
A vila operária, com suas casas e sua rede de serviços (capela, escola, armazém,
clube social, farmácia, cemitério, etc.), paradoxalmente, apresentava benefícios
sociais para o operariado têxtil ao mesmo tempo em que era constituída de elementos
legitimadores da dominação do patronato fabril. Contudo, os operários têxteis se
apropriaram destes aparatos institucionais, atribuindo significado e valor às relações e
ao modo de vida que foi construído cotidianamente no interior das capelas, nas salas
de aula das escolas e nas diversas formas de lazer. Comentando a influência do
Metodismo na Classe Operária Inglesa, Thompson (1988b:278) afirma que:
Nenhuma ideologia é inteiramente absorvida por seus partidários: na prática, ela
multiplica-se de diversas maneiras, sob o julgamento dos impulsos e da
experiência. Desta forma a comunidade da classe operária introduziu nas
capelas seus próprios valores de solidariedade, ajuda mútua e boa vizinhança.
No complexo fabril da Companhia Brasil Industrial, o mais importante na região, a
23
capela católica
é dedicada à Nossa Senhora da Conceição construída em
homenagem à padroeira da fábrica e dos seus operários. Estes se apropriarem do
catolicismo participando ativamente da construção da capela, estabelecendo relações
sociais em seu interior e atribuindo significado aos atos religiosos ali oficializados,
instituindo de forma autônoma seu padroeiro, São Jorge, no final da primeira metade
do século XX.
Segundo relato dos primeiros diretores da antiga Companhia, a capela foi construída
no final do século XIX por meio de uma iniciativa conjunta:
Tendo o gerente da fábrica, empregados e operários, promovido uma
subscripção entre si e procurado donativos para construção de uma pequena
capella, a Directoria concedeu a área do terreno necessária, para tão justo fim;
no dia 1º. de novembro foi lançada a pedra fundamental e inaugurada à 6 de
Maio de 1880, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. 24
No complexo fabril da Companhia Brasil Industrial havia, no mês de dezembro,
festejos anuais dedicados à santa padroeira com o patrocínio da Companhia Têxtil e
com grande participação do operariado local. Este folguedo era o maior da localidade
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que reunia toda a comunidade operária assim como a diretoria da fábrica e seus
convidados. A capela de Nossa Senhora da Conceição foi a primeira igreja local no
meio operário têxtil onde se realizavam os serviços religiosos quando não existia uma
Igreja Matriz na região. A presença católica no meio operário fabril tem marcas
profundas de continuidade com o antigo regime de economia patriarcal, muito bem
enfatizado pelo sociólogo francês Roger Bastide (1975:10):
O capitalista moderno manda rezar missas em sua fábrica do mesmo modo que
o senhor dos tempos coloniais mandava celebrá-las na capela de seu engenho.
O padre eleva a hóstia no meio das engrenagens, das bielas, das grandes rodas
que pararam por um momento, renovando entre operários brasileiros, italianos e
alemães, o gesto antigo do capelão oficiando entre senhores brancos e escravos
negros, perpetuando, em pleno século XX, o catolicismo familial do século XVII
(...).
25
O Dr. Junqueira , um dos diretores da fábrica Brasil Industrial no período de auge do
sistema, era comunicado de todos os detalhes da organização da festa da padroeira;
segundo sua antiga secretária, ele desejava que fosse feito:
(...) tudo pela fábrica, não tinha, não gostava que saísse lista pro operário
assinar, era tudo pela companhia, Ele achava que a padroeira era Nossa
Senhora, que achava que tinha por obrigação fazer uma festa pra ela, isso ouvia
muito ele dizer, não queria lista. A única coisa que ele pedia era uma prenda,
que ele achava que o operário devia dar um voto pra Nossa Senhora, então dar
uma prenda que quiser.
A prática religiosa do operariado têxtil e do patronato fabril e suas relações no
complexo fábrica com vila operária assumem um aspecto ambíguo e contraditório, na
medida em que tanto legitima a ordem estabelecida quanto são apropriadas pelos
operários tornando-se uma expressão de seus sentimentos e de sua cultura. Elas não
podem, desta forma, ser compreendidas como um simples instrumento de imposição
unilateral do patronato. Quando visitei a capela de N.S. da Conceição, durante meu
trabalho de campo no inicio da década de 1990, descobri a presença de uma imagem
26
sacra
de São Jorge, que ficava no interior da Capela perto da escada que conduzia
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ao coral, com uma placa com a seguinte inscrição: Homenagem ao São Jorge,
padroeiro dos operários da Cia. Brasil Industrial, organizada em primeiro de maio de
1945, por Jayme Barboza. Em entrevistas com antigos operários foi-me relatado que a
imagem tinha sido adquirida por um grupo de operários por intermédio da liderança de
Jayme Barboza, conhecido por Seu Dengo, organizador da festa anual do primeiro de
maio, quando se promovia uma procissão dedicada ao popular santo católico. Uma
antiga operária relatou que:
(...) ele fazia a missa dos operários, no dia primeiro de maio, tinha missa na
capela, depois saía à procissão, de manhã cedo,na parte da manhã, depois ele
fazia sorteio, antes dava um santinho a cada um, numerado, e arranjava
prêmios, e quando acabava aquela procissão, aí ia fazer sorteios, a gente ficava
com os santinhos pra ver quem tinha tirado, muita gente tirou muita coisa lá,(...).
Deve ser ressaltado que, apesar de existir uma padroeira oficial dos operários da
fábrica Brasil Industrial, a devoção por eles dedicada a São Jorge no dia Primeiro de
maio foi uma forma peculiar de apropriação da religiosidade católica, assumindo papel
ativo na expressão do seu sentimento e da sua cultura. Se a Festa Anual de Nossa
Senhora da Conceição tinha o patrocínio do patronato fabril e o apoio do operariado
local, a Festa do Primeiro de Maio, com a devoção a São Jorge, nasceu no meio
operariado sem interferência do patronato, através da cooperação e da liderança do
operário Jayme Barboza, um dos primeiros membros da Liga Católica local. É
interessante o fato de que somente em 1955 tenha ocorrido a instituição, pelo Papa
Pio XII, de São José Operário como protetor dos trabalhadores universais, com a
27
finalidade de dar um sentido cristão à festa do trabalho.
Sobre o intercâmbio entre o elemento religioso e o educacional no complexo, o relato
de Dona Francisca Silva, uma antiga operária da Companhia Brasil Industrial,
esclarece a participação das crianças da escola operária na procissão católica:
Ah, quando eu era pequena eu via a procissão, via aquela criançada toda com
aquelas bandeirinhas, com aquelas faixinhas, cantando; Ah meu Deus, que
vontade! Mas era só a criançada do colégio só que saía na procissão. Aí quando
se deu oportunidade eu já entrei na fábrica para poder estudar nesse colégio que
pertencia à fábrica, né? Logo naquele ano que eu entrei teve a festa de São
Sebastião e foi até a festa de São Sebastião, não sei o que que houve que não
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fizeram a festa de São Sebastião em janeiro. Quando foi no fim de fevereiro que
fizeram a festa de São Sebastião, e eu já estava trabalhando, já saí na
procissão, logo no começo, nas missas eu comecei a cantar nas missas (...)28
A procissão católica exercia uma atração sobre a menina operária, levando-a,
simultaneamente,
para
a
escola
operária
e
para
os
rituais
católicos,
e
conseqüentemente para o trabalho fabril. Como afirma Thompson, a classe operária
também vive sua experiência como sentimento. Outro aspecto do intercâmbio entre os
elementos religioso e educacional era o fato de as professoras das escolas operárias
serem simultaneamente catequistas das capelas das fábricas.
29
Apesar da forma sucinta, o presente trabalho procurou mostrar aspectos
da cultura
operária, particularmente do operariado têxtil nas fábricas com vila operária na cidade
de Paracambi. Sem dissimular, contudo, a relação de dominação implícita nesta
situação fabril, que tende a se perpetuar por ser parte fundamental da cultura local. O
trabalho buscou evidenciar de que forma tais relações ambíguas e contraditórias se
efetivaram no cotidiano dos operários, refletindo sobre a conexão e o intercâmbio
entre os aparatos institucionais e para o somatório dos sistemas distintos da
experiência - formas particulares da cultura da fábrica.
O paternalismo industrial presente nas fábricas com vila operária nessa região teve
por base tanto o oferecimento das casas e sua extensa rede de serviços quanto o
sentimento de pertença a uma “grande família” que as relações paternais vigentes
proporcionavam. Mas é preciso enfatizar, os operários têxteis apropriaram-se dos
aparatos institucionais (elementos do complexo fabril) neles colocando seus próprios
sentimentos. Se as fábricas com vila operária eram propriedade dos industriais têxteis,
as vilas eram o lar dos operários. Diferente da Grande Família Paternal, o sentido de
Lar dos Operários implica um espaço onde o operariado e suas famílias construíram,
cotidianamente, relações de amizade e de ajuda mútua, que não se confundiam com o
paternalismo fabril.
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ANEXOS
Foto 1 – Complexo Fabril
Foto 2 - Fábrica
Porto
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Foto 3 – Trabalhadores
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REAÇÃO AO ESTIGMA: O rap em São Paulo
Marco Aurélio Paz Tella30
RESUMO
O texto aborda um desdobramento da minha pesquisa de mestrado, na qual
desenvolvi um estudo sobre grupos de rap em São Paulo. Procuro analisar como o rap
responde
e
enfrenta
questões
como
“invisibilidade
social”,
estereótipos,
comportamentos discriminatórios, revertendo estigmas e produzindo elementos para a
construção de auto-estima positiva nos jovens afro-descendentes que moram em
distritos periféricos. Por meio de práticas culturais, produção musical e no contato de
bandas de rap com o público, o rap torna-se um instrumento para enfrentar as
diversas atitudes cotidianas de estigmatização, menosprezo, discriminação, racismo.
O artigo também analisa o papel do rap na reinvenção do passado para combater a
invisibilidade social.
PALAVRAS-CHAVE: Estigma, Racismo, Identidade, Desigualdade, Jovem.
ABSTRACT
This article informs about my post-graduation research, that was a study about rap
bands in São Paulo. I want to analyze how rap answers and faces questions like
“social invisibility”, stereotypes, discriminated behaviour, modifying stigma and
producing elements for the construction of positive self-respect for black young people
that lives in the peripherycal districts. Through cultural activities, music production and
the contact of rap band with the public, the rap becomes an instrument to face various
quotidian postures of social stigma, despise, discrimination, racism. The article also
analyzes the rap function in reinvention of the past to combat social invisibility.
KEYWORDS: Stigma, Racism, Identity, Unequally, Young People.
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1. O RAP: REAÇÃO AO ESTIGMA
Em entrevista concedida ao documentarista João Salles, em “Notícias de uma guerra
31
particular” , o chefe do departamento da Polícia Civil da Baixada Fluminense,
32
delegado Hélio Luz,
apresentando as várias facetas e os laços do crime organizado
e do tráfico de drogas em nossa sociedade, destacou a “invisibilidade social” como um
problema da sociedade contemporânea a ser enfrentado. A invisibilidade social não é
determinante, muito pelo contrário. Ela está articulada com outros fatores que indicam
a complexidade da violência nas grandes metrópoles.
A invisibilidade social, segundo Todorov (1996), atinge em cheio a autoconfiança, a
auto-imagem das pessoas. A criança e o jovem, ao crescerem em ambientes
desfavoráveis à sua socialização, podem comprometer seu amadurecimento e sua
formação enquanto sujeito. Ser foco de discriminação devido à origem social ou à cor
da pele e alvo de representações sociais e étnicas carregadas de estigmas inviabiliza
a construção de uma auto-imagem positiva da pessoa e do grupo ao qual pertence. A
criança e o jovem poderão perceber que eles e as pessoas que estão ao seu redor
são desvalorizados, desqualificados, menosprezados. A invisibilidade social, enquanto
problema pessoal que passa a ser social, “é ainda mais dolorosa do que a solidão
física, que pode ser resolvida ou amenizada por diversos meios; é viver entre os
outros sem deles receber qualquer manifestação” (Todorov, 1996:70).
De 20 anos para cá, a parcela da juventude negra que mora em distritos periféricos da
cidade de São Paulo vem escutando, consumindo e produzindo um estilo musical
33
chamado rap.
O marco zero para o desenvolvimento dessa nova cultura urbana de
rua em São Paulo foi a estação do metrô de São Bento, reconhecida pelos grupos e
pelas pessoas pertencentes ao hip-hop em todo o Brasil como o berço da cultura hiphop nacional. No início de 1989, mais precisamente no dia 25 de janeiro, aniversário
da cidade de São Paulo, foi criado o Movimento Hip-Hop Organizado, o “MH2O”. A
festa de lançamento ocorreu num show em homenagem à cidade de São Paulo, no
Parque Ibirapuera, no qual vários grupos de rap se apresentaram. Idealizado por
34
Milton Sales,
o objetivo do MH2O era difundir as artes do hip-hop para os bairros
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periféricos de São Paulo. A partir de sua criação, foram realizados inúmeros shows
nas ruas e em praças públicas, intensificando o aparecimento de diversos grupos de
rap que se espalharam pela metrópole.
35
Meu interesse na pesquisa de mestrado
foi investigar o rap (rhythm and poetry) na
cidade de São Paulo, estudando três grupos: Thaíde e DJ Hum, Racionais MC’s e o
DMN. Pesquisei, a partir da análise da biografia de cada grupo e de seus membros,
como eles utilizam a metrópole como inspiração e cenário para a produção deste estilo
musical. O objetivo foi verificar de que forma realizam uma apropriação do passado da
população negra e de símbolos internacionalizados da cultura negra. Também
observei o potencial que esses grupos de rap possuem para construir, em um contexto
de globalização cultural, referências de identificação – referências estas utilizadas por
uma parcela da juventude afro-descendente
36
da periferia da cidade de São Paulo que
utiliza o rap como um instrumento de contestação e de construção de novas
representações sobre a realidade social.
Percebi que o rap é utilizado como marca e instrumento por uma parcela de jovens
que mora em bairros periféricos, que se identifica com elementos culturais,
internacionalizados ou não, e é composta por afro-descendentes. A idéia central da
pesquisa foi a de que o fenômeno rap, por meio das letras e das práticas culturais, é
capaz de produzir uma leitura crítica da sociedade. Através da denúncia dos
problemas étnicos e sociais e da apropriação seletiva do passado (Halbwachs, 1990;
Pollak, 1989 e 1992) da população afro-descendente, o rap proporciona uma gama de
referenciais para essa juventude, que passa a se constituir, portanto, como grupo
diferenciado. Tais indicações questionam o imaginário social de nossa sociedade,
refletindo-se em novas identificações alicerçadas em três pilares: a cor da pele, a
origem social e o local onde moram. Isto se deve às raízes culturais do rap e também
ao fato de que seus primeiros adeptos pertenceram aos segmentos menos favorecidos
da sociedade.
Explorando as informações colhidas, apresento neste texto um deslocamento na
abordagem das letras de rap dos grupos citados acima, destacando temas que
classifiquei em duas variáveis: auto-imagem e autoconfiança. Estas variáveis estão
nas explicações sobre os problemas enfrentados no dia-a-dia pelos jovens nas
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periferias das grandes cidades, como o desconforto da desqualificação e da
invisibilidade social, sendo focos da abordagem a cor da pele, a origem social e o local
37
onde moram. Para isso, utilizo as entrevistas feitas com alguns integrantes
desses
grupos e as análises de algumas letras dos três grupos de rap, Thaíde e DJ Hum,
38
Racionais MC’s e DMN . A hipótese que levanto, ao abordar os temas acima citados,
é a de que os grupos de rap pretendem, em primeiro lugar, denunciar e, em segundo,
expor à sociedade os problemas sociais e étnicos específicos de uma parcela da
juventude afro-descendente que habita os bairros mais afastados e degradados da
cidade de São Paulo. Este estilo musical caracteriza-se por ser produzido e consumido
por jovens que moram nas regiões onde as tensões sociais e econômicas são
latentes, fato que se tornou base e ponto de partida para a produção artística dos
grupos de rap.
A seleção dos três grupos foi o resultado de observações realizadas em shows,
eventos e ouvindo os seus raps — não foi, entretanto, uma preferência pessoal,
apesar de admirá-los bastante. Os três grupos eleitos contribuíram, cada um ao seu
estilo, na formação de um discurso crítico, propositivo, que tem como característica
geral a valorização do orgulho da população afro-descendente e da área onde vivem,
denunciando os problemas que afetam essa população e dando ênfase a esse
segmento da periferia da cidade de São Paulo. A seguir, passo a fazer uma breve
apresentação de cada grupo.
O grupo Racionais MC’s é formado por Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay —
os dois primeiros da zona sul e os dois últimos da zona norte da cidade de São Paulo.
Desde o início da formação do grupo, na segunda metade da década de 1980,
impressiona pelo conteúdo de suas músicas que retratam, através das letras, o
cotidiano das pessoas que moram na periferia de São Paulo, principalmente da zona
sul da cidade, e denunciam a discriminação contra o jovem afro-descendente e a
miséria. Para o grupo, a miséria está diretamente ligada à violência e ao crime. Ao
mesmo tempo, as músicas relatam histórias, como a riqueza cultural da população
afro-descendente. "O nosso ideal é contar histórias negras que não são contadas nas
escolas”. Mano Brown continua:
Rap é o maior veículo de comunicação. Ele faz o que nenhum outro
veículo faz: conta a verdade como ela é, e aponta soluções. É
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direcionado ao povo negro, apesar de muitos brancos ouvirem. Mas
em sua essência é uma música negra, para negros. Diante do
contexto político, é a nossa história, é a nossa segunda escola,
porque a escola conta a história parcial e nós contamos a real.
Além de ser uma ferramenta de manifestação, o rap tem a característica de ser
propositivo, ou seja, contar histórias não contadas. O grupo passa a ter um papel
importante junto a uma parcela da juventude afro-descendente que mora na periferia.
Afirmam-se como porta-vozes:
É ainda Mano Brown que nos diz:
Eu acho que nós falamos as coisas (nas letras das músicas) que o
pessoal tem vontade de falar, mas não tem oportunidade de
expressar. Tipo, nós somos os porta-vozes do nosso público, que
sofre exatamente as coisas que a gente fala nas letras. Acreditamos
que o nosso público se identifica com a verdade das letras das
músicas. O crédito pelo trabalho vem naturalmente.
Algumas questões podem ser destacadas na entrevista de Mano Brown, como: a
intenção de atingir, em primeiro lugar, o grupo classificado por ele como “negro”;
considerar-se porta-voz ou veículo do público – o afro-descendente – que deseja
alcançar com suas letras. Estas duas questões legitimam-se porque, segundo Mano
Brown, suas explicações sobre os problemas sociais e étnicos da periferia são as
“verdadeiras”, desdenhando e criticando as representações sociais estigmatizadoras,
39
como também as razões sociológicas e antropológicas.
Thaíde e DJ Hum, considerados os rappers pioneiros da cultura hip-hop, gravaram os
dois primeiros raps na histórica coletânea “Hip-Hop Cultura de Rua”, produzida pela
gravadora Eldorado em 1988. Os raps compostos e lançados por Thaíde e DJ Hum
foram “Corpo Fechado” e “Homens da Lei”. A coletânea foi o primeiro lançamento em
40
disco do gênero. AA dupla tem sua origem no berço da cultura hip-hop nacional: São
Bento, a estação do metrô.
O produtor Milton Sales foi a pessoa que investiu na formação política dos grupos,
inclusive de Thaíde e DJ Hum. Foi no disco “Hip-Hop na Veia”, de 1990, que
apareceram músicas com conteúdos mais politizados. Foi também nesse mesmo ano
que o Racionais MC’s colocou no mercado o disco “Holocausto Urbano”. DJ Hum
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reconhece ter havido, naquele momento, uma influência dos ideais do líder afroamericano Malcom X e dos grupos Racionais MC’s e DMN, os quais são precursores
de um perfil do rap que tem como objetivo a apropriação do passado da população
afro-descendente. Uma característica da dupla, muitas vezes criticada por alguns que
fazem parte do meio hip-hop, é o discurso moderado. Apesar de ser um discurso
marcado pela crítica social e pelo preconceito racial, Thaíde diz: “[somos] crucificados
por não sermos mais radicais”. Por outro lado, a dupla polemiza com a cultura hip-hop,
principalmente criticando os grupos e o público por não exaltarem o grande herói da
população afro-descendente no Brasil: Zumbi dos Palmares. Na letra do rap “Afro41
Brasileiro”,
lançado em um single que leva o mesmo nome, o rapper critica o
movimento por usar em camisetas, bonés, buttons apenas inscrições de líderes norteamericanos, como Martin Luther King, Malcolm X, deixando de lado o herói Zumbi.
Thaíde fala da importância da população afro-descendente: “[é preciso] saber sobre
história mundial, mas se deveria dar mais atenção aos líderes que tivemos aqui, como
Zumbi. Todos falam nos black panthers, em black power, mas da história do país
42
parece que só se lembram da escravidão”.
Essas questões marcam diferenças com parte da cultura hip-hop, como o emprego da
expressão “afro-brasileiro”, usada para identificar aquele que tem orgulho da sua cor e
dessa cultura. Expressão diferente, por exemplo, é utilizada pelos Racionais: “Preto
Tipo A”. No entanto, essas variações não abalam a admiração que todo o movimento
– e fora do hip-hop também – possui pela dupla Thaíde e DJ Hum. Em seus shows,
antes de cantar “Afro-Brasileiro”, a dupla pede para o público levantar o braço, com a
mão fechada, e repetir frases contra a violência; pede também para que todos
busquem informação e que repitam que são e que têm orgulho de ser “afrobrasileiros”.
O grupo DMN foi formado em 1988, em Itaquera, zona leste de São Paulo. Os
integrantes da primeira formação do grupo são: Luís Fernando (L.F.), Slick e Max. Em
43
1989, Xis (Cohab 2,
Itaquera) foi convidado a integrar o grupo e, em 1990, Ely
(Cohab 2) completava o grupo. É essa a formação que L.F. considera como a original
do grupo. Na segunda metade da década de 1990, Markão II passa a fazer parte do
grupo e Xis sai do DMN para seguir carreira solo. O primeiro rap gravado pelo grupo
pertence à coletânea “Consciência Black II”, de 1990.
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O DMN foi o primeiro grupo de rap que introduziu na cultura hip-hop, por meio das
letras, as palavras e as expressões traduzidas do movimento e da cultura afroamericanos, polemizando com ideais defendidos pelos diversos setores do Movimento
44
Negro brasileiro. De acordo com Xis,
um dos vocalistas do grupo, o uso da palavra
“preto” no lugar de “negro” é proposital:
Antes de o filme Malcom X entrar em cartaz, a gente teve acesso ao
livro. Vimos que na tradução havia muita contradição entre as duas
palavras, preto e negro. Havia frases que ficavam fora de contexto.
Daí pensamos: branco é branco, vermelho é vermelho, amarelo é
amarelo. Por que negro? Raça só existe uma, que é a raça humana.
Então a palavra negro nos deixa no meio-termo, não cria uma
identidade e abre espaço para mulato, chocolate, moreno. Sabíamos
que íamos comprar uma briga boa com muita gente. Mesmo assim,
decidimos falar mais a palavra preto.
Neste discurso, Xis dá um exemplo de incorporação seletiva da herança cultural,
assumindo possíveis riscos de polemizar com grupos do Movimento Negro no Brasil. A
45
construção da consciência étnica, segundo L.F.,
teve um momento crucial: a leitura
do livro que conta a trajetória do líder islâmico norte-americano Malcom X. E é L.F.
que nos informa:
Quando eu li o livro do Malcom X, eu odiava branco, demorou muito, é
muita informação, você fica com muita coisa na cabeça. Sabe, é que
nem aquela coisa quando Malcom conheceu o Islã, é muita coisa, e
você fala: “onde eu tava que eu não conseguia ver aquelas coisas?”.
Outra influência que ele lembra, no início da carreira como rapper e também do grupo
DMN, foi a leitura de uma revista, chamada Realidade, em que os integrantes do DMN
46
conheceram o grupo político norte-americano black panthers.
A partir da leitura
dessa reportagem, sempre que eles sobem ao palco, erguem o braço direito com
quatro dedos abertos e saúdam a platéia dizendo “4P”, “Poder Para o Povo Preto”.
Segundo o idealizador, fundador, vocalista e “líder” do DMN, L.F., uma característica
marcante do grupo, desde o seu nascimento, é o discurso contestador.
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Ao ouvir e ao analisar os raps dos grupos apresentados acima, pude observar a
performance e a habilidade verbal dos MC's (Mestre de Cerimônia). Por meio da
oralidade, o MC conta memórias individuais, mas também memórias do grupo, do
bairro, das dificuldades dos jovens afro-descendentes que moram na periferia. Os
MC's abordam fatos do dia-a-dia – além de outros do passado – possibilitando a
identificação de parcela da população afro-descendente da periferia enquanto grupo.
47
O rap “Fim de Semana no Parque”,
do grupo Racionais MC’s, é um exemplo disto.
No entanto, percebi que o discurso tornou-se mais enfático quando o tema étnico foi
abordado. As narrativas chamam mais a atenção pela forma e pelo conteúdo. Já na
introdução do disco do Racionais MC’s, Edi Rock apresenta o novo trabalho:
1993, fudidamente voltando. Racionais, usando e abusando de nossa
liberdade de expressão, um dos poucos direitos que o jovem negro
ainda tem nesse país. Você está entrando no mundo da informação,
autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o Raio X do Brasil.
Seja bem-vindo!
Antes de iniciar a primeira música, “Fim de Semana no Parque”, Mano Brown dedica o
disco “a toda a comunidade pobre da zona sul”. Sendo assim, as músicas têm
endereço certo. Elas assinalam limites geográficos, relacionando esse espaço à sua
condição social. Depois da dedicatória, “Fim de Semana no Parque” é tocada. São
sete minutos e dez segundos narrando mais um fim de semana típico de janeiro. Mano
Brown retrata, a partir de um simples dia de verão, as contradições vivenciadas no
cotidiano da periferia, o abismo social existente entre as regiões mais centrais da
cidade e ela. Brown expõe os diferentes estilos de vida dos play-boys e dos jovens
dessa parte mais pobre de São Paulo. Descreve as áreas privadas, às quais o jovem
da periferia não tem acesso, como clubes, piscinas, quadras, cinemas. Logo após,
relata como são as ruas da zona sul:
Chegou fim-de-semana, todos querem diversão / Só alegria, nós
estamos no verão / Mês de janeiro, S.P., zona sul / Todo mundo à
vontade, calor, céu azul / (...) Um, dois, três, carros na calçada, / feliz
e agitada toda a playboyzada. As garagens abertas eles lavam os /
carros, desperdiçam a água, eles fazem a festa. / (...) De
verde/fluorescente, queimada, sorridente, / a mesma vaca loira
circulando como sempre. / Roda a banca dos playboys do Guarujá. /
(...) Me dê quatro bons motivos pra não ser / olha o meu povo nas
favelas e vai perceber. / Daqui eu vejo uma caranga do ano, / toda
µ&¶ ·¸¹Cº»„¼½¾a¿2½À ¾+»º1À Á;¿»º»=Â1¾Ã>¹»ÄÅ2·³¸1À »„ÆJº»AǾ¸Á2À È É)ÄÈ ¸1Ê˸º»½ÌÎÍ2Ï>ÏLÐÄ¿»LÌ9ÑLÒÓAÌÀ È}¿;Ô¹À ¸ÁSսʺ1À º¸ÁÖ
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equipada e um tiozinho guiando. / Com seus filhos ao lado, estão indo
ao parque. / Eufóricos brinquedos eletrônicos. Automaticamente / eu
imagino a molecada lá da área como é que tá. / Provavelmente
correndo pra lá e pra cá, jogando bola, / descalços nas ruas de terras.
Brincam do jeito que dá. / Gritando palavrão é o jeito deles. / Eles não
têm vídeo-game, às vezes nem televisão. / Mas todos eles têm o São
Cosme e um São Damião, a única proteção...
A intenção do rapper é tornar visíveis problemas sociais que afetam a população
pobre dos bairros periféricos da cidade de São Paulo, particularmente parte da
juventude afro-descendente dessas regiões. A partir da análise das letras dos grupos
acima citados, o rap caminha numa estrada onde há uma bifurcação: numa direção, o
objetivo do discurso do rapper é atingir os jovens afro-descendentes dos bairros
periféricos, chamando-os para a conscientização dos problemas sociais e étnicos
apresentados por eles através de suas letras; na outra direção, o rapper busca
reconhecimento e legitimação junto à sociedade:
Tornar visível uma situação particular, torná-la, como se diz, “digna de
atenção” pressupõe a ação de grupos socialmente interessados em
produzirem uma nova categoria de percepção do mundo social, a fim
de agirem sobre o mesmo (Lenoir, 1998:84).
Em ambas as direções, os grupos de rap tentam legitimar-se como veículos de
“expressões públicas”, tornando públicos os problemas cotidianos que atingem
pessoas e grupos moradores da periferia, transformando-os em problemas sociais
(Lenoir, 1998). O rap é o veículo desse processo e os rappers, os seus legítimos
porta-vozes, em função da sua origem social, por serem afro-descendentes e por
morarem na periferia da cidade. Certamente, se algum grupo de rap não apresentar no
currículo algum desses itens, sua legitimidade será prontamente questionada.
2. O ESTIGMATIZADO CONSTRUINDO REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Um aspecto importante analisado nas letras é a leitura realizada pelos grupos sobre os
fatos da nossa sociedade, sempre a partir do ponto de vista do estigmatizado, que
tanto pode ser o rapper, como um amigo ou um simples conhecido. Os MC's
vivenciam e exprimem o seu sentimento, mas também o de um segmento da
população que mora na periferia. Por isso, muitas vezes são chamados ou se
autodenominam de porta-vozes da periferia. O rap, como uma das artes da cultura do
hip-hop, organiza práticas e comportamentos sociais com o objetivo de expor e buscar
o reconhecimento público em relação aos problemas sociais que os afligem enquanto
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grupo. A auto-representação positiva da imagem de pessoas e de grupos afrodescendentes é recuperada pela valorização de temas que são tratados de forma
pejorativa pela sociedade. Os grupos de rap destacam problemas que têm origem nas
representações sociais impostas aos jovens afro-descendentes que moram em bairros
degradados, propondo a inversão dos estigmas referentes a determinadas questões,
operando uma “reclassificação simbólica de gerações socialmente desclassificadas”
(Lenoir, 1998:88). Nas minhas análises, percebo ser evidente o objetivo dos grupos de
reverterem o perverso processo de introjeção de elementos negativos na auto-imagem
do jovem afro-descendente da periferia e de eliminarem estigmas construídos pela
sociedade branca visando “enfraquecê-lo e desarmá-lo” (Elias, 2000:24).
Portanto, apesar dos graves problemas dos bairros periféricos, os três grupos de rap
pesquisados neste trabalho têm como proposta transformar em referências positivas
os estigmas atribuídos aos bairros periféricos e à população neles moradora,
eliminando conotações pejorativas construídas sobre esse grupo:
[...] Venha que hoje é sexta, eu vou chamar os refrigerantes e pra
quem gosta, cerveja/Vamos sentar aqui no chão, colocar o boxe do
lado e ouvir o som do GOG/Mano bem pesado, Câmbio Negro e
Racionais, meu irmão/Afinal, o que é bom tem que ser provado/Tanta
coisa boa e você aí parado, acuado, é por isso que insisto/Sou preto
atrevido gosto e gosto quando me chamam de macumbeiro/Toco
atabaque em rodas de capoeira, e toco direito/Minha cultura primeiro,
o meu orgulho é ser um negro verdadeiro afro-brasileiro/ Sabe quem
eu sou?
afro-brasileiro/ me diga quem é (4 vezes)/ Somos
descendentes de Zumbi/ Grande guerreiro.
48
A conseqüência da postura transmitida nas letras é o estabelecimento de um conflito
com as construções hegemônicas da representação social em relação aos locais onde
moram e àqueles que freqüentam nos momentos de lazer. Em outras palavras,
estabelece-se o conflito com as classificações estigmatizadas que atingem o seu
grupo social, representações sociais que sempre trataram esses bairros como áreas
onde estão os segmentos perigosos da sociedade, em que a violência e a imoralidade
são as principais formas de interlocução social. Nas análises de letras e de
entrevistas, registra-se que os grupos querem construir outras representações sociais
referentes à sua própria realidade, conforme os interesses ideológicos dos grupos de rap.
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A postura apresentada pelos grupos de rap quanto à mobilização, por meio das suas
letras e dos discursos nos shows, é a de evitar prováveis reflexos sobre os estigmas
impostos a essa fração estigmatizada, como o de “surtir um efeito paralisante nos
grupos” (Elias, 2000:27). Uma das formas usadas pelos rappers é a retaliação do
grupo dominante ou, como sugere Norbert Elias (2000), a contra-estigmatização.
Pode-se verificar isso quando, por exemplo, Mano Brown, na música “Fim de Semana
no Parque”, refere-se ao outro grupo como a “playboyzada”, ou diz “vários estilos,
vagabundas”, ou ainda “queimada sorridente,/a mesma vaca loira circulando como
sempre./Roda a banca dos playboys do Guarujá”. Essa retaliação faz parte da
constituição de fronteiras entre os diferentes grupos da sociedade e tem como objetivo
estabelecer “para si um estilo de vida comum e um conjunto de normas” com “certos
49
padrões e se orgulham disso” (Elias, 2000:25).
O que está em jogo é a construção
de elementos de identificação que serão fundamentais no fortalecimento da coesão do
grupo, excluindo características “ruins” atribuídas ao outro grupo (Elias, 2000:22).
Outro aspecto abordado é a identificação com a cultura de origem africana. Uma
estratégia desenvolvida pelos grupos de rap aqui selecionados são as menções feitas
ao passado dessa população que busca a afirmação de uma identidade afrodescendente através das referências ao passado, às histórias, às memórias (não)
contadas. Analisando as letras dos grupos estudados, verificamos que o rap realiza
uma apropriação original dessa cultura, diferente daquela que, por exemplo, o
Movimento Negro faz. Em parte, essa diferenciação é o resultado da tomada de posse
de um patrimônio histórico e simbólico internacionalizado. Foi estabelecida uma
maneira particular de contar histórias. A história produzida e reproduzida pelo status
quo no dia-a-dia, selecionando e projetando as informações que irão compor
representações sociais estigmatizadoras, irá sofrer resistência, porque outras
memórias são também produzidas em veículos não-oficiais, rememorando fatos do
cotidiano e também inventando acontecimentos do passado, com o objetivo de
fortalecerem tradições históricas.
A função de inventar tradições é ter “um conjunto de práticas, normalmente reguladas
por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica
visam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o
que implica automaticamente uma continuação em relação ao passado” (Hobsbawn,
1997:9) A utilização do conceito “invenção das tradições” é pertinente, já que a
proposta dos grupos de rap não é somente uma reconstrução ou um resgate da
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história ou da cultura afro-descendente. Acredito que os grupos analisados realizam
também uma recriação ou uma invenção original dessa cultura na cidade de São
Paulo. Recriar referências do passado tornou-se tarefa central para a reflexão sobre o
presente, a fim de que se construam perspectivas para o futuro:
Controlado pelo corpo e a mente/Sempre toda história, toda a nossa
história falha/A pele mais clara escreveu, julgou da sua forma/Com
suas palavras nos reduziu a nada/Deixaram as marcas, botaram as
mágoas no preto/Que não esquece o passado/Que enxerga o
50
presente [...].
Por meio das letras, os rappers inserem esse segmento da população numa noção de
tempo, em que passado, presente e futuro passam a fazer parte das representações
imaginárias desses grupos juvenis. A afirmação de uma identidade cultural afrodescendente pela recriação do passado possibilita a instrumentalização de parcela
dessa juventude para realizar releituras das relações sociais e étnicas em nossa
sociedade. A elaboração de novos símbolos e de novas referências culturais pode
proporcionar a esse segmento da sociedade a denúncia do projeto ideológico da
democracia racial, presente na formação do imaginário social.
As releituras e as memórias são operações dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer preservar como fonte de fortalecimento da coesão do grupo.
Segundo Pollak, “a memória integra tentativas mais ou menos de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e de fronteiras sociais e culturais entre coletividades de
tamanhos diferentes...” (Pollack, 1989:9). Além do recurso da contra-estigmatização, o
fortalecimento e a manutenção da coesão do grupo passa também pela promoção de
um passado comum, destacando-o como “diferença de grande peso, tanto para a
constituição interna de cada grupo quanto para a relação entre eles” (Elias, 2000:39).
Pollak dá continuidade ao seu raciocínio:
Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um
fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da
memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação
fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade (Pollack: 1992:204).
Ao realizar a ligação entre memória e identidade, o grupo utiliza etapas para a
construção de uma consciência étnica: (i) Sentimento de ter fronteiras físicas ou
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fronteiras de pertencimento ao grupo (coesão); (ii) Há a continuidade no tempo
(memória); (iii) Há o sentimento de coerência, ou seja, os diferentes elementos
constitutivos de um indivíduo são efetivamente unificados (identidade).
Não se importam com a real situação dos pretos, descaracterizados /
Esse é o grande motivo pra se considerar o verdadeiro preto / Isso
não é defeito é simplesmente honra / É necessário conhecer o
passado / Considere-se um verdadeiro preto / Há mais de
quatrocentos anos estamos atrasados / Totalmente mal-informados /
Os nossos livros de história foram embranquecidos / Porque estamos
estudando a verdadeira história / Em que todos conheçam a
verdadeira identidade / E entender o porquê do refrão / Considere-se
um verdadeiro preto!
51
A (re)construção “imaginária e a identidade étnica”, a compreensão e a exposição dos
problemas da periferia proporcionam conteúdos para uma interpretação crítica dos
grupos de rap a respeito da sociedade, os quais passam a questionar as referências
estigmatizadas do imaginário social. Conceituo o termo imaginário, utilizando-me de
Castoriadis:
Falamos de imaginário quando queremos falar de alguma coisa
“inventada” – quer se trate de uma invenção “absoluta” (“uma história
imaginada em todas as partes”), ou de algum deslizamento, de um
deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos
de outros significados, de outras significações que não suas
significações “normais” canônicas. Nos dois casos é evidente que o
imaginário se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar
(uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance) (Castoriadis,
1982:154).
Fica evidente que tais invenções servem para desqualificar e inferiorizar pessoas de
uma determinada etnia ou camada social. Esta “coisa”, citada por Castoriadis, é
construída e institucionalizada, estabelecendo-se como práticas e comportamentos
invariáveis (Hobsbawn, 1997).
Observando as letras dos grupos escolhidos, percebe-se a influência da cultura afroamericana, principalmente via videoclipes norte-americanos, veiculados desde o início
da década de 1980. Os rappers realizam uma bricolagem cultural, ou seja, sem um
plano
pré-concebido
(Levi-Strauss, 1976)) esses
grupos
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ressignificações das histórias norte-americanas de protesto social, introduzindo nelas
memórias do cotidiano da população afro-descendente das periferias e das favelas da
cidade de São Paulo.
O reflexo disso é a temática étnico/racial, que começou a receber um tratamento
especial e central por parte desses grupos. Por meio das imagens dos videoclipes, o
rap norte-americano entra definitivamente no consumo de música de uma parcela
significativa de jovens afro-descendentes, levando para eles ícones como Malcom X e
Martin Luther King e referências da cultura afro-americana, como o movimento black
power. É por meio desse material que eles se deparam com gestos, estilos de roupas,
símbolos, temas da resistência internacionalizados. Os jovens afro-descendentes não
entendiam o conteúdo das letras, no entanto, as imagens os seduziram. Os
videoclipes tiveram para eles um papel importante nas suas primeiras construções de
identificação, motivando-os a conhecerem tais símbolos.
O discurso enfático e politizado em relação à etnicidade fez parte, a partir desse
momento, do perfil do rap dos anos 90, e o grupo Nova York Public Enemy – citado
pelos integrantes dos grupos de rap analisados – foi a principal referência para muitos
outros em São Paulo. O reflexo disso foi o interesse de muitos grupos de rap recémcriados nos estudos, nas discussões e nas leituras sobre aqueles ícones que
apareciam nas cenas dos videoclipes. Em depoimentos, alguns colocam que as cenas
mostradas pelos videoclipes do Public Enemy os incentivaram a saber sobre os
símbolos e os líderes que ali apareciam. Essas referências internacionalizadas fizeram
com que muitos jovens ficassem motivados para conhecer também histórias — não
contadas — das lutas e das manifestações culturais da população afro-descendente
no Brasil: "Foi através dos livros americanos que descobrimos a nossa história. Isto
ajudou o hip-hop pra caramba na sua formação".
52
O discurso do rap paulistano ficou mais politizado com a apropriação e a valorização
de elementos da cultura afro-descendente, a qual caracterizou toda a cultura hip-hop
dos anos de 90, e influenciou a produção musical de vários grupos.
3. O PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO
Nas letras de rap há uma espécie de orientação, dirigida aos jovens afrodescendentes, de como reagir e enfrentar atos e comportamentos discriminatórios e
estigmatizadores. Elas resgatam elementos históricos afro-brasileiros e experiências
cotidianas percebidas por esses jovens. A privação social passa a ser entendida e
assumida não apenas aplicada aos indivíduos, mas a um segmento social étnico,
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estereotipado, racial, o qual tem como característica histórica a dominação, a
inferiorização, a exclusão, a hierarquização.
[As] desigualdades econômicas e a injustiça social não afetam apenas
pessoas, assentam sobre lógicas de discriminação ou de segregação
que definem os mais frágeis e os mais vulneráveis em termos culturais
geralmente fáceis de naturalizar (Wieviorkia, 2002:55).
Portanto, torna-se essencial desenvolver uma análise articulando aspectos culturais e
questões sociais. O contrário dessa proposta faz com que a análise fique deficiente. A
categorização da associação dos elementos culturais com exclusão social reflete-se
em uma imagem estigmatizada da sociedade sobre o grupo. Os estigmas são criações
sociais que se originam de atitudes carregadas de pré-conceitos de pessoas de um
grupo sobre o outro. Esse cenário torna-se propício à ampliação das diferenças,
reafirmando estereótipos que padronizam conceitos sobre um grupo, intensificando
comportamentos discriminatórios. As experiências cotidianas nos permitem acessos
fáceis aos estereótipos de determinados grupos, o que se dá por meio de expressões,
comentários aleatórios, piadas etc. Isto faz com que as representações sociais
estereotipadas sejam transmitidas e reproduzidas sem nenhuma espécie de reflexão
por parte daqueles que as verbalizam.
Para Fredricksom (2004) e Elias (2000), a construção e a permanência das
representações sociais estigmatizadas do grupo dominante sobre uma minoria ou
sobre outro grupo – no caso específico desse artigo, do branco sobre os afrodescendentes – fazem parte da correlação de forças em que os grupos dominantes
têm maior acesso ao poder, o que impede o acesso do outro. Os grupos dominantes
constroem uma auto-imagem com a qual se apresentam como “seguramente
superiores a outros grupos interdependentes [...], vêem-se como pessoas ‘melhores’
dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é
compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros” (Elias, 2000:19-20).
E será no cotidiano que os conflitos, as atitudes discriminatórias, preconceituosas e de
marginalização do outro enquanto grupo, reflexo dos processos de estigmatização,
acontecerão: “há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é ‘bom’ e que o
outro é ‘ruim’” (Elias, 2000:23).
Há uma associação de fato dos afro-descendentes – principalmente daqueles
segmentos mais pobres da sociedade – a um modo ou a um estilo de vida distante dos
padrões ditos normativos da sociedade brasileira. Essa associação, elaborada a partir
de estereótipos e estigmas construídos ao longo da história, passa, de modo geral,
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pela combinação de formas de lazer que se caracterizam pelo coletivismo, por práticas
religiosas diferenciadas, pela eficiência profissional, por determinados estilos de
músicas consumidos. Em outras palavras, os comportamentos considerados como
característicos das populações afro-descendentes são tratados de forma pejorativa,
sempre de maneira a desqualificá-los. No entanto, tais características atribuídas pela
sociedade aos afro-descendentes, além de fornecerem elementos para distinguir
segmentos sociais e étnicos na sociedade, passam a ser consideradas inerentes,
naturais, portanto permanentes e hereditárias, próprias daquele grupo. Inicia-se um
processo de racialização desse grupo – colocando ênfase no fenótipo. Os problemas
sociais, associados ao estigma que o grupo dominado carrega, corroboram para uma
relação cotidiana permeada de preconceitos e discriminações.
Características atribuídas são um conjunto de elementos que identificam e diferenciam
um grupo em relação àqueles que as imputam. Nesta perspectiva, os africanos e seus
descendentes tiveram a eles atribuídas algumas identificações. Em outras palavras, ao
afro-descendente foi imposto, ao longo da história, um conjunto de identificações
desqualificadoras, estigmatizadas, estereotipadas. Segundo Wieviorkia (2002), antes
mesmo de o grupo se aperceber enquanto um coletivo com identidade, a sociedade
impõe uma imagem às pessoas que dele fazem parte. Esta identidade imposta passa
pela associação da hierarquia social e da hierarquia racial representada no olhar da
sociedade sobre os afro-descendentes.
A inferiorização, a dominação, a exclusão não se aplicam apenas a
indivíduos enquanto tais. São ainda mais eficazes e temíveis pelo fato
de
encerrarem
os
indivíduos
em
categorias
coletivas
mais
susceptíveis que outras de serem subordinadas ou inferiorizadas
(Wieviorka, 2002:55).
A diferença é estabelecida antes mesmo da elaboração de uma consciência ou de
uma identidade desse grupo.
Entretanto, “ser de ascendência africana, pobre e até discriminado não basta, como
tal, para que uma pessoa negra reivindique algum tipo de identidade negra” (Sansone,
2003:22). A diferença coletiva e a construção do próprio grupo de uma identidade
cultural possibilitam aos seus membros manifestarem direitos no âmbito cultural e
social. Portanto, torna-se necessária a incorporação de elementos de identificação
pelas pessoas do grupo, combinando e exaltando valores que o demarcam, e não só
uma identidade estigmatizada, imposta pela sociedade. Por meio de tal processo, esse
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conjunto de pessoas pode organizar ações a partir do momento em que se vê diante
de desafios culturais e sociais.
Os jovens que se organizam, nas suas mais diferentes formas e intensidades,
apropriam-se de uma cultura de origem norte-americana, associando elementos afrobrasileiros e produzindo outros, tendo em vista a construção de uma diferença, o que
se reflete na afirmação da auto-imagem, dando sentido oposto aos elementos culturais
estigmatizados pela sociedade. A inversão dos estigmas pode ser encarada como
uma das principais características da cultura hip-hop. Nesse processo, o hip-hop
apresenta-se para o in-group e, posteriormente, para o out-group “não apenas na
perspectiva da privação, da exclusão, da desqualificação – mas também como
pessoas capazes de introduzir qualquer coisa de construtivo, de positivo, de
culturalmente valorizado e valorizável” (Wieviorka, 2002:150). A alteração dos
estigmas pode parecer um simples mecanismo de defesa, no entanto, é um processo
complexo que tem dupla ação – simultânea ou sucessiva. A primeira é a
transformação de si próprio, a quem desde a infância foram impostos valores de
rejeição, humilhação, desqualificação. A segunda é o embate com a imagem que ele e
seu grupo representam para a sociedade.
Os grupos de rap pesquisados acreditam e transmitem, por meio das músicas, idéias
de superação dessas questões, defendendo e promovendo o discurso de que os
problemas apresentados não são casos esporádicos, particulares, que afetam apenas
uma pessoa, mas atingem principalmente os jovens afro-descendentes que moram
nos distritos mais distantes. Em outras palavras, não são problemas individualizados,
mas devem ser tratados como questões do grupo, como problemas sociais. O
posicionamento político diante de tais fatos faz com que a luta não aconteça por meio
da violência, mas pela produção cultural que tem como conteúdo a crítica, a
contestação étnica e social, portanto, ideológica. O rap busca visibilidade, legitimidade
e reconhecimento social não só para o grupo, mas também para o sujeito que optou
por se identificar com os elementos culturais do hip-hop.
4. A BUSCA PELO RECONHECIMENTO SOCIAL
O desejo de construir uma imagem positiva para a sociedade, empenho do grupo em
obter reconhecimento público, torna-se incessante. A aceitação de uma pessoa por
outra ou outras é, segundo Todorov, o que caracteriza o ser humano e o diferencia de
outros seres vivos e dos animais.
O reconhecimento de nossa existência, condição preliminar de toda a
coexistência, é o oxigênio do homem: assim como o fato de respirar
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hoje não me concede o ar de amanhã, os reconhecimentos passados
não me são suficientes no presente (Todorov, 1996:69-70).
Podemos identificar dois aspectos importantes nas pessoas e nos grupos que estão
ligados à cultura hip-hop: por um lado, a possibilidade de passarem da invisibilidade
para o reconhecimento social dos seus problemas, como também das suas
qualidades; por outro lado, ao obterem visibilidade, de poderem romper com a imagem
estigmatizada que lhes foi imposta pela sociedade. Os dois aspectos podem refletir-se
de forma importantíssima nas vidas das pessoas que se identificam com a cultura hiphop. Os adolescentes e os jovens, ao incorporarem e ao adotarem esta cultura,
conseguem vencer o obstáculo da discriminação por causa da cor da pele, do estigma
imposto ao seu grupo pela sociedade, ou ainda o desprezo étnico e social, e se
tornarão mais seguros e confiantes do que aqueles que não passaram por tais etapas.
Eles defendem sua identidade de grupo sem hesitação, com convicção naquilo em
que acreditam.
Mesmo os dois aspectos colocados tendo sido apresentados separadamente, as
respostas dadas pelos grupos de rap os atingem igualmente. Em letras de rap como
“Afro-Brasileiro” de Thaíde e DJ Hum, do disco “Preste Atenção” de 1996, e “4P” do
disco “Cada Vez Mais Preto” de 1993, já citadas, a luta pelo reconhecimento passa
pelo resgate e pela produção da história e da memória coletiva dos afro-descendentes.
A contestação é a primeira manifestação. Por meio das letras e dos discursos
realizados nos shows, os rappers, nos intervalos das músicas, questionam a
autenticidade da história oficial – a dos vencedores, dos dominadores – principalmente
a forma como o africano e os seus descendentes são retratados e também como
deixam de ser citados. Para esse grupo, o acesso a uma cultura deve estar associado
a uma reivindicação do passado.
O próximo momento é a leitura e a releitura das histórias dos afro-descendentes,
mostrando um passado de segregação, discriminação, dor e sofrimento, mas também
de luta e resistência contra o grupo dominante. Destacam-se, então, marcos históricos
e líderes afro-descendentes. Para Wieviorka, “quando uma identidade coletiva
contesta e, a partir daí, reclama reconhecimento, é também precisamente para pôr em
causa o esquecimento ou a ignorância de que foi historicamente vítima” (2002:203).
Por mais inventada que essa história possa ser, cria-se um sentimento coletivista,
antes ausente, que tem na ascendência africana a sua maior referência. Tal processo
de reconstrução do passado relacionado com as condições do presente torna-se
fundamental à integração e à socialização desses jovens, principalmente no
fortalecimento de uma auto-imagem positiva. No rap “Afro-Brasileiro”, além da
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afirmação da identidade afro-descendente, do orgulho e do valor que dedica à cultura
afro-brasileira, o rapper pede a todos que assumam sua identidade, resgatando Zumbi
como o grande herói e guerreiro. Essa música é um exemplo de como o rap pode ser
um veículo de informação da cultura e do passado da população afro-descendente.
No rap “História do Brasil”, do mesmo disco “Preste Atenção”, Thaíde e DJ Hum
também falam das distorções feitas na história do Brasil sobre o passado e a cultura
da população afro-descendente, distorções feitas por aqueles que menosprezaram,
discriminaram, e ainda o fazem hoje, a história e a cultura desse grupo. A música
começa com a afirmação de que a cultura da população afro-descendente está
deteriorada, faz parte de uma "massa falida de uma antiga estrutura". Esta passagem
exemplifica a desqualificação e a desvalorização que Thaíde sente quando a
sociedade, de forma geral, olha para o afro-descendente.
Com a cultura hip-hop, em particular o rap, a conscientização étnica ganha novas
dimensões e o elemento enriquecedor para os jovens é a associação da identidade
étnica com a posição socioeconômica e com o lugar onde vivem: a periferia. As
identificações
"afro-descendente",
"pobre",
"periferia”
contribuem
para
uma
radicalização do discurso político-social, alicerçado em novas representações
imaginárias diferentes da cultura oficial:
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial; a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras;
nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a
cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo.
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.
53
Portanto, o hip-hop acrescenta ao discurso de resistência uma agressividade étnicosocial, denunciando, por meio das artes, a violência cultural e física que o jovem afrodescendente morador da periferia sofre.
Processos de identificação são os primeiros passos para muitos jovens enfrentarem
estigmas enquanto grupo de afro-descendentes pobres que mora na periferia. Pelo
menos para eles, sua invisibilidade social passa a ser golpeada, pois faz parte de um
coletivo que se preocupa com a formação de cada um dentro dos grupos. Estes
últimos têm tal posição como forte característica sua. Por meio das narrativas, os
grupos querem retratar a realidade de quem mora nessa área, partindo da sua própria
vivência e direcionando o discurso para o seu público-alvo: o jovem afro-descendente
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morador da periferia da cidade de São Paulo. O objetivo é construir, por intermédio da
música, uma consciência social e étnica. No seu repertório, é constante o convite que
fazem para a tomada de consciência desses jovens. Procurar informação, ter noção
do contexto em que vivem e orgulho de sua ascendência cultural e tentar reverter a
ausência da auto-estima são as suas metas: "a preta linda que não olha no espelho/
54
Tem vergonha do nariz, da boca, do cabelo".
Paralelo a esse engajamento étnico, as letras de rap proporcionam um novo olhar
sobre o cenário periférico no qual estão inseridas. Querem instrumentalizar o maior
número de jovens afro-descendentes para que estes tenham uma visão crítica da sua
realidade social; valorizar as pessoas e o próprio espaço onde moram; tentar reverter
os estigmas e a identidade impostos à periferia e aos seus moradores. Segundo
Pimenta, “no imaginário comum a periferia é sinônimo de tráfico de droga, violência,
criminalidade, prostituição, promiscuidade, pobreza, edificações em ruínas, lugar de
ócio e vadiagem, habitat de negros etc.” (Pimenta, 1998:36). Os grupos dominantes
constroem imagens dos outros enquanto grupo e, segundo Elias, “tendem a vivenciar
seus grupos outsiders (...) como desordeiros que desrespeitam as leis e as normas (as
leis e as normas dos estabelecidos)” (2000:29). O resultado pode ser danoso para
aqueles tachados como inferiores.
Os efeitos negativos desses personagens interiorizados logo se fazem
sentir no plano coletivo. Algumas minorias raciais têm a maior
dificuldade em escapar dessa engrenagem: são considerados
violentos e assim se tornam. A pobreza que os caracteriza gera o
desprezo dos outros, destruindo a autoconfiança, o que, por sua vez,
condena os membros dessa minoria a afundarem ainda mais na
pobreza – ou a recorrerem ao paliativo da violência (Todorov,
1996:149).
55
Exemplo de como o estigma é tratado em um rap está em “Um Homem na Estrada”.
Esta música conta a história de um ex-detento que tenta recomeçar a vida carregando
o estigma de ex-presidiário. O início da música narra o objetivo do homem em querer
nunca mais voltar ao mundo do crime, começando pelas suas lembranças de infância,
que tiveram na FEBEM o seu lado mais negativo.
Um homem na estrada recomeça sua vida, /sua finalidade, a sua
liberdade, /que foi perdida, subtraída e quer provar a si mesmo que
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realmente mudou, /que se recuperou e quer viver em paz/Não olhar
para traz, dizer ao crime nunca mais.
No entanto, explica a opção pelo crime, relatando as dificuldades que a população da
periferia tem de enfrentar, como a fome, a miséria, as moradias extremamente
precárias, traduzindo todo esse cenário em “um pedaço do inferno”. Novamente o rap
nos apresenta uma visão singular e política do fato, sendo o crime e a violência
determinados pela privação social. O rap associa a solução da violência às questões
sociais.
Da metade para o final da música, o líder do grupo, Mano Brown, cita um crime perto
da favela onde este homem mora. Logo incriminam a favela e o acusam, já que seu
antecedente o faz ser visto como um criminoso, estigma carregado pelos que ali
moram e pelos ex-detentos: “Assaltos na redondeza, levantaram suspeitas, /logo
acusaram uma favela para variar”.
O estigma que as áreas periféricas têm do ponto de vista social e geográfico é tratado
como doença pelo grupo, uma doença "incurável", portanto, “te chamarão pra sempre
de ex-presidiário”. Já no fim da música, o homem é morto pela polícia dentro do seu
barraco. Entretanto, o corpo é encontrado numa estrada da extrema zona sul da
capital de São Paulo.
Observando as diversas letras do grupo DMN, fica evidente a proposta de inversão
dos estigmas que muitos jovens afro-descendentes carregam através da busca da
autovalorização, do orgulho, da autoconfiança, da eliminação de sentimentos de
desvalorização e desqualificação:
Ao povo negro têm sido negados esses dois aspectos básicos, ao
longo dos anos, e isso tem dificultado a construção da própria
identidade com base na sua história e cultura. A classe dominante
impôs ao negro, desde o navio negreiro, uma identidade atribuída ao
sabor dos seus interesses. Até hoje os mecanismos utilizados por
essa classe buscam, de forma sutil, manter uma identidade atribuída
ao negro, a qual geralmente acaba sendo assumida internamente
(Chagas, 1996:31).
E é esta “identidade atribuída” que o DMN combate em diversas letras, atingindo
diretamente as bases da ideologia da “democracia racial” e do “Brasil cordial”:
Fui vítima como muitos/ Paga pau da lavagem cerebral de certos
grupos/ Quem olha bem, até hoje eu não sei/Não me valorizei, me
autoviolei (...) Certamente tinha em mente a definição/ De que tudo
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que era branco/ Era lindo e bom/ Ilusão, natural/ E todo preto
ignorante/ E que cai, fazer transparecer/ A todo instante a sua imagem
de integrado/ Mais um irmão, mais então, mais um otário.
Ao falar que foi “vítima como muitos”, o autor da letra remete-se às experiências
pessoais, nas quais muitos fatos que com ele aconteceram foram frutos dos
preconceitos e dos estereótipos existentes no imaginário da sociedade e comuns aos
outros jovens. Essas experiências são muito importantes para a criação de uma visão
crítica para muitos jovens.
O estigma tem a possibilidade de provocar nos estigmatizados uma reação antagônica
àquela existente no imaginário da sociedade:
O que se sabe é que os membros de uma categoria de estigma
particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos
membros derivam todos da mesma categoria, estando esses próprios
grupos sujeitos a uma organização que os engloba em maior ou
menor medida (Goffman, 1998:32).
Como diz o autor, como reação à estigmatização há uma “tendência” à aproximação
desses indivíduos estigmatizados, podendo constituir grupos. Saint-Maurice distingue
duas estratégias, a interior e a exterior, de se relacionar com as crenças e os valores
imputados ao seu grupo. A estratégia interior, que se refere estritamente ao indivíduo,
divide-se em algumas possibilidades, como: (i) conscientemente não levar em conta
as agressões sofridas; (ii) absorção dos estigmas, causando paralisia, aceitação da
inferioridade imputada; (iii) revolta transformada em agressividade. As estratégias
exteriores, tanto no âmbito individual como no coletivo, “podem ir da assimilação à
revalorização da sua singularidade”, tendo como probabilidade o desenvolvimento de
ações coletivas com o propósito de defender e valorizar o seu grupo (1997:30). O hiphop, como já foi discutido, enquanto coletivo quer legitimar-se como veículo
comunicador dos problemas sociais de parcela dos jovens afro-descendentes
moradores de bairros periféricos da cidade de São Paulo.
4. CONCLUSÃO
As leituras da sociedade realizadas pelos grupos de rap partem do ponto de vista do
grupo dominado. Os rappers vivenciam e exprimem o seu sentimento, mas também
querem materializar sentimentos de um segmento da população que mora na periferia.
É por isso que muitas vezes eles são chamados, ou se autodenominam, de portavozes da periferia.
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A valorização da imagem pessoal e do grupo passa pela inversão dos temas que são
tratados de forma negativa pela sociedade. Os grupos de rap propõem, por um lado, a
inversão dos valores sobre determinadas questões e, por outro lado, como nas
palavras de Norbert Elias (2000), o recurso da “contra-estigmatização” em relação ao
grupo dominante. Apesar dos graves problemas dos bairros periféricos, os três grupos
de rap pesquisados têm como proposta transformar em referências positivas os
estigmas de que esses bairros e a população que neles mora são vítimas. A
conseqüência dessa postura, transmitida nas letras, é o estabelecimento de um
conflito com as construções hegemônicas do imaginário do grupo dominante, que
sempre tratou esses bairros como áreas onde vivem os segmentos perigosos da
sociedade e onde a violência é a principal forma de interlocução social.
Acredito que as letras dos grupos de rap, por um lado, querem dar voz e
reconhecimento social a um segmento da sociedade, revertendo o sentimento de ser
ignorado, o que dá a impressão de paralisia, “aniquilamento” (Todorov, 1996:96); por
outro lado, rompem com visões estigmatizadoras, estabelecendo microconflitos com o
imaginário social oficializado, sempre buscando reconhecimento para o seu grupo,
para a sua cultura. A produção desse conflito estabelece novas formas de
representações para os jovens interpretarem determinados significados e símbolos e
eles instituem novos valores, afirmando uma maneira própria de representação
particular de um grupo, de uma organização, de uma comunidade. O rap é uma
manifestação que salvaguarda um comportamento crítico e propositivo dos problemas
sociais que afligem uma parcela significativa dos jovens afro-descendentes. Os
rappers constroem representações da sua própria realidade e de acordo com os
interesses e as ideologias dos grupos. Eles fazem de sua realidade social, local,
cultural e étnica o ponto de partida para rompimentos éticos, estéticos, simbólicos,
históricos e imaginários da sociedade.
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¶
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MÚSICAS UTILIZADAS
·
·
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·
“Um homem na estrada”, Raio X do Brasil, 1993, Racionais MC’s.
·
“Fim de Semana no Parque”, Raio X do Brasil, 1993, Racionais MC’s.
·
“Capítulo 4, Versículo 3”, Sobrevivendo no inferno, 1997, Racionais MC’s.
“História do Brasil”, do álbum Preste Atenção, de 1996, do grupo Thaíde e DJ
·
Hum.
·
“Afro-Brasileiro”, do álbum Preste Atenção, de 1996, do grupo Thaíde e DJ Hum.
·
“Lei da Rua”, do álbum Cada Vez mais Preto, de 1989, do grupo DMN.
·
“H. Aço”, do álbum H. Aço, de 2000, do grupo DMN.
"Considere-se um verdadeiro preto", do álbum Cada Vez mais Preto, de 1989, do
grupo DMN.
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HOMENS LIVRES, VIDAS SECAS: violência e latifúndio num romance de
Graciliano Ramos56
André Luis Campanha Demarchi57
Lá no sertão quem tem
Coragem pra suportar
Tem que viver pra ter
Coragem pra suportar
Ou então
Vai embora
Vai pra longe
E deixa tudo
Tudo que é nada
Nada pra viver
Nada pra dá
Coragem pra suportar
(Gilberto Gil, “Coragem pra suportar”)
RESUMO
O presente trabalho realiza uma análise do romance Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, relacionando-o com algumas teses do pensamento social brasileiro, mais
especificamente, as apresentadas por Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do
Brasil; e por Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Os homens livres na ordem
escravocrata. O estabelecimento destas relações nos permitiu dimensionar o papel da
violência e do latifúndio na formação social brasileira, bem como traçar um paralelo
entre personagens do romance e atores sociais presentes historicamente na
sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Violência, latifúndio, sociologia da literatura, pensamento social
brasileiro, homens livres.
ABSTRACT
The present paper accomplishes an analysis of the romance Vidas Secas, of
Graciliano Ramos, relating it with some theses of the brazilian social thought, precisely
the ones introduced by Oliveira Vianna, in Populações Meridionais do Brasil; and by
Maria Sylvia de Carvalho Franco, in Os homens livres na ordem escravocrata. The
relationships thus stablished allowed us to dimension the roles of violence and
latifundium in the brazilian social formation, as well as to trace a parallel between the
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characters of the romance and the social actors historically present in the Brazilian
society.
KEY WORDS: Violence, latifundium, sociology of literature, brazilian social thought,
free men.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende discutir, no âmbito da sociologia da literatura, o romance
Vidas Secas,58 de Graciliano Ramos, destacando a questão da trajetória dos “homens
livres” em meio à violência e à miséria do Brasil rural. Nota-se preliminarmente que a
constituição autoral e a trajetória dos personagens deste romance apresentam
aspectos que revelam, de forma esclarecedora, alguns dos argumentos apresentados
para entender o processo de modernização e integração social no Brasil. Este singular
livro de Graciliano Ramos apresenta o agrarismo e o latifúndio como os maiores
empecilhos para tal processo no país. Esta perspectiva também está colocada por
uma tradição de estudos brasileiros, da qual são representantes Oliveira Vianna,
Sérgio Buarque de Holanda, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Maria Isaura de
59
Queiroz.
São diferentes as modalidades possíveis de análise sociológica da literatura de ficção.
Dentre as que Antônio Cândido enumera em Literatura e sociedade, por exemplo, este
trabalho compartilha o desafio daquelas “que procuram verificar a medida em que as
obras representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos” (Cândido,
60
1980:10).
Assim, privilegiamos a análise dos elementos sociais presentes na obra,
em detrimento dos aspectos formais importantes que todo texto literário possui (Idem,
Ibidem:11). Para o desenvolvimento deste trabalho, no entanto, mais do que a idéia de
“contexto social” foi necessário pensar o “contexto intelectual” a ele relacionado e no
qual Vidas Secas se insere.
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Procuramos vincular o romance a análises do pensamento social e às sociológicas
propriamente ditas que nos permitissem dimensionar o papel do latifúndio e da
violência na formação social brasileira. Nesse sentido, mobilizamos para a discussão
do romance teses de Oliveira Vianna formuladas em Populações Meridionais do Brasil
– em especial, a do papel do latifúndio na formação da sociedade brasileira – bem
como as de Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Homens livres na ordem
escravocrata, sobre o papel da violência na orientação das condutas dos atores
sociais naquele contexto, atores estes nomeados pela autora como “homens livres”,
noção que pode ser assim enunciada: o trabalhador rural pobre que perambulou, e
ainda perambula, pelas terras do Brasil, em meio a relações de dominação pessoal e a
várias manifestações de violência. Esta é a principal questão deste estudo, tal como
foi também no romance de Graciliano Ramos. Deste modo, não nos debruçaremos
sobre as problemáticas das questões enfrentadas pelo fazendeiro ou pelo funcionário
público, outros possíveis candidatos à denominação de “homens livres” (Franco,
1983). Este trabalho está, portanto, centrado na análise das condições sociais vividas
pelos trabalhadores rurais pobres. Condições estas enfrentadas intensamente por
Fabiano e sua família em Vidas Secas.
Por fim, importante ressaltar que a violência é o fio que liga as partes do romance. Em
suas diversas manifestações e em suas dinâmicas dimensões, a violência está
presente no contexto de produção da obra Vidas Secas através da prisão de seu
autor; nas condições que propiciaram a não-fixidez e o caráter dispensável dos
homens livres na sociedade voltada para o mercado externo que se formava no Brasil;
no cotidiano desses homens, por meio de uma ordem costumeira aceita e sancionada
por eles e por seus semelhantes; na pessoalidade característica das instituições
brasileiras; na dominação pessoal, forma extrema de exploração e alienação do
trabalhador rural; por fim, na permanência da temática apresentada por Graciliano
Ramos na década de 1930, mas que continua sendo vivida por outros personagens e
atores sociais da realidade agrária e urbana brasileira.
2. VIDAS SECAS E O LATIFÚNDIO NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
Vidas Secas foi publicado em 1938. O contexto histórico e social de sua produção
remete à tumultuada década de 1930 no cenário político-cultural brasileiro. Esta
década foi marcada, no campo literário, pela emergência dos romances regionalistas
de Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, entre outros (Sussekind,
1984). No campo político foi a década da “revolução” que instaurou o governo
“antioligárquico” de Getúlio Vargas, seguido da ditadura do “Estado Novo” (19371945). No plano socioeconômico configurava-se o alvorecer das primeiras indústrias
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brasileiras, da formação de um proletariado e de uma classe média urbanos. É neste
contexto que se situa a produção de Vidas Secas.
Segundo Alfredo Bosi, podem ser consideradas as décadas de 30 e 40 como a “era do
romance brasileiro” (Bosi, 1994:388). Esse período foi marcado não só pela ficção de
cunho regionalista, mas também pela produção de obras de caráter cosmopolita e
psicológico. Utilizando o esquema proposto por Lucien Goldman em A sociologia do
romance, Alfredo Bosi apresenta quatro categorias para pensar o romance brasileiro
moderno de 1930 para cá, segundo o grau crescente de tensão entre o “herói” e seu
mundo. Para Bosi, a obra de Graciliano Ramos estaria enquadrada na categoria de
romances de tensão crítica, em que “o herói opõe-se e resiste agonicamente às
pressões da natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas o seu
mal-estar permanente” (BOSI, 1994:392).
61
Fabiano, o “herói” de Vidas Secas, expressa seus sentimentos diante da natureza e do
meio social justamente nesses termos. A brutalidade e o primitivismo do personagem
são, em alguns momentos, clareados por iluminadoras críticas ao latifúndio e à seca
nordestina, desvendando sua condição de miséria e pobreza. Uma das características
apontadas por Bosi a este tipo de literatura diz respeito ao lugar que os fatos
assumem no decorrer da narrativa, uma vez que “servem para revelar as grandes
lesões que a vida em sociedade produz no tecido da pessoa humana: logram, por
isso, alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profundas”
(Ibidem, Ibidem:393).
As marcas da seca e do meio social podem ser vistas como impressões sobre o
próprio corpo do personagem. As rachaduras da terra árida transplantam-se para o
corpo de Fabiano. Em seu pé encontram-se as mesmas “gretas fundas” que cobrem o
sertão seco. E é neste mesmo pé que o “soldado amarelo” pisa para demonstrar sua
autoridade, fazendo uso do aparato policial para imprimir sobre o corpo do vaqueiro as
injustiças sociais do contexto em que estava encravado como um pé espinhento de
mandacaru (ver o capítulo “O soldado amarelo”).
Antonio Cândido afirma que foi o Modernismo o responsável por abrir caminho para a
constituição deste tipo de narrativa de cunho social no Brasil. O autor apresenta as
contribuições e as aberturas efetuadas por este Movimento no cenário político-cultural
brasileiro.
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Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de
movimento das idéias, e não apenas das letras) corresponde à
tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e
sobretudo na culminância em que todos os seus frutos amadureceram
(1930-40), fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques
históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e
reforma social; o ardor de conhecer o país. A sua expansão coincidiu
com a radicalização posterior à crise de 1929, que marcou em todo o
mundo civilizado uma fase nova de inquietação social e ideológica. Em
conseqüência, manifestou-se uma ida ao povo, um V Narod, por toda a
parte e também aqui, onde foi o coroamento natural da pesquisa
localista, da redefinição cultural desencadeada em 1922. A alegria
turbulenta e iconoclástica dos modernistas preparou, no Brasil, os
caminhos para a arte interessada e a investigação histórico-sociológica
do decênio de 30 (Cândido, 1980:124).
Como se pode perceber, o autor não refere a influência do Modernismo apenas ao
campo das letras e das artes em geral. Ao contrário, tal movimento influenciou e abriu
caminho para um vasto desenvolvimento no que diz respeito ao ensaio históricosociológico brasileiro. As obras Casa grande & Senzala e Sobrados & Mucambos, de
Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Evolução Política do
Brasil, de Caio Prado Júnior; Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna,
foram produzidas no bojo do estabelecimento dos caminhos trilhados pelo
Modernismo tomado em seu sentido amplo. Estas obras têm em comum a
peculiaridade de se enquadrarem em um gênero singularmente brasileiro: o ensaio
literário-histórico-sociológico. Este gênero híbrido, que misturava a escrita literária livre
com a apreensão histórica e sociológica da realidade, foi um divisor de águas entre a
literatura propriamente dita e o estabelecimento e a institucionalização das ciências
sociais no país. Daí poderem ser percebidos, como faz Antônio Cândido, elementos do
modernismo em tais obras.
No entanto, Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, pode ser visto como
um caso à parte. Nesta obra, nota-se a crítica às interpretações que afirmavam a
existência de uma estruturação européia da sociedade brasileira. Desde o início, o
autor questiona, através de comparações entre o sistema feudal europeu e o sistema
colonial brasileiro, a pertinência de tal estruturação. Para ele, a mera transferência do
regime feudal europeu para a situação colonial brasileira não explicava as
especificidades e singularidades do país. Com a publicação datada de 1920, a obra,
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ao problematizar esta tese – a ineficiência dos modelos de explicação europeus para a
compreensão da realidade social brasileira, seja no plano político-social, seja no plano
estético – converge para uma agenda de pesquisa tanto para os artistas modernistas
quanto para alguns intelectuais do pensamento social brasileiro. Basta lembrar que a
Semana de Arte Moderna ocorreu em 1922, dois anos depois da publicação da
referida obra.
As idéias de Vianna, apesar dessa abertura, contêm, grosso modo, grande teor
conservador e autoritário. O autor propõe, ao final de seu livro, uma saída autoritária
como resolução para o deterioramento do espaço público na sociedade brasileira.
Através dos conceitos de anarquia branca e espírito de clã, Vianna demonstra como o
domínio público foi moldado e instrumentalizado a partir dos interesses dos grandes
proprietários de terra. O espaço público é privatizado pelos latifundiários com o intuito
de se utilizarem dos instrumentos públicos para permanecerem no poder através das
relações de favor existentes entre eles e seus dominados. A manutenção desse
ordenamento social representa a reprodução do mesmo (Vianna, 1952). Para o autor,
o embaralhamento entre o domínio público e o domínio privado deveria ser combatido.
Somente com uma distinção clara entre público e privado poderia florescer no Brasil
um Estado Nacional nos termos modernos. Como isto não ocorre, devido à situação
viciada em que se encontra aqui caracterizado o espaço público, Oliveira Vianna
afirma taxativo que o sentimento de uma comunidade nacional e a clara distinção
entre público e privado “só serão realizados pela ação lenta e contínua do Estado –
um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o
país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional” (Vianna, 1952:387).
Não é de se espantar que esta tese tenha sido apropriada e praticada pelo governo
getulista que se estabeleceu dez anos após a publicação do livro. Com o discurso de
instauração de um Estado forte e soberano, Getúlio Vargas subia ao poder
prometendo dar fim às oligarquias que se revezaram no governo do país durante toda
a “república velha”. Não é de se espantar também que, com esse discurso e com
essas práticas, se instaurasse no Brasil uma ditadura. Em 1937, respaldado pelas
teses de Oliveira Vianna e apoiado pelos políticos tradicionais das oligarquias que
dissera combater e pelo comando das Forças Armadas, Getúlio Vargas dissolve o
Congresso, cancela as eleições presidenciais e instaura no Brasil a ditadura do Estado
Novo. Como em toda ditadura, a do Estado Novo combatia, através da repressão
policialesca, as idéias e as práticas que não vinham ao encontro das normas
estabelecidas pelo Estado. A literatura e as artes, de maneira geral, são controladas
pelos poderes oficiais. Para retomar o contexto da produção de Vidas Secas, deve-se
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lembrar o fato de que em 1936 Graciliano Ramos é preso como subversivo, fica
praticamente um ano vagando por várias cadeias do país, até que é solto no ano
seguinte.
É interessante notar também que é com base nas teses de Oliveira Vianna que se
forma um governo capaz de efetuar, violentamente, a prisão de Graciliano Ramos
como subversivo. “Em Memórias do cárcere fica evidenciado pela voz do advogado
que a causa da prisão de Graciliano Ramos fora sua narrativa romanesca: com as leis
que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo” (Magalhães, 2001,
p.84). Isto demonstra como as idéias de um autor influenciam na obra e na vida de
outros. Estabelece-se assim um diálogo impossível entre um autor que forneceu as
bases teóricas para a formação de um governo autoritário e outro que, através de sua
literatura de alto valor social, combateu e criticou o Estado repressor que se formou.
62
Paradoxalmente, constata-se, como será mostrado logo à frente, que algumas idéias
de Oliveira Vianna podem ser utilizadas para o entendimento sociológico das relações
sociais vividas pelas personagens construídas por Graciliano Ramos em seu romance.
Desta forma, a despeito da conformação autoritária e propositiva de Populações
Meridionais do Brasil, pode-se fazer uso de seu valor sociológico para a compreensão
de alguns aspectos fundamentais da obra Vidas Secas de Graciliano Ramos.
Vidas Secas contém em sua estrutura narrativa uma forma cíclica. O autor narra a
63
saga de Fabiano, de sinha Vitória,
de seus dois filhos e da cachorra Baleia vagando
pelo sertão nordestino. A história tem como começo e desfecho essa situação social a
que foram relegados os “homens livres” no Brasil. O primeiro capítulo, intitulado
Mudança, apresenta ao leitor a condição itinerante, miserável e violenta em que se
encontram colocados os personagens. Andando pelo sertão, Fabiano e seu pequeno
grupo familiar procuram um lugar à sombra para descansarem da longa jornada em
meio sede, à fome e à aridez. Eis que encontram a sombra de um juazeiro e, logo à
sua frente, uma fazenda abandonada. O narrador conduz os personagens ao local que
representa, para uma corrente do pensamento social brasileiro, o lócus da produção e
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da reprodução das relações sociais que frearam durante séculos a modernização e a
integração social no país, bem como o responsável pela situação dispensável dos
“homens livres”: o latifúndio (Franco, 1983).
Pode-se argumentar, então, que o romance em questão não trata somente das
relações sociais impostas pela seca do sertão, mas apresenta, sobretudo em sua
estrutura narrativa, a configuração de indivíduos diante de um sistema de produção
baseado no latifúndio. Dito de outro modo, Vidas Secas é, ao contrário do que possa
imaginar um leitor desatento, um livro sobre as relações agrárias no Brasil. Apresenta
claramente um conjunto de relações sociais que demonstra a situação a que foi
destinada a sorte dos “homens livres”. A seguir, através das teses de Maria Sylvia de
Carvalho Franco e Oliveira Vianna, apresentar-se-ão as condições sociais que
conformaram a existência dispensável desses personagens singulares da história
social do Brasil também representadas em Vidas Secas.
Para Oliveira Vianna, a função simplificadora do latifúndio, somada à conformação de
uma mão-de-obra escrava produtora de mercadorias para o mercado externo, foi o elo
necessário à configuração da permanente não-fixidez das classes proletárias rurais. O
grande domínio territorial e sua independência econômica em relação ao meio urbano
produziram a simplificação e a precariedade a que foram relegados os centros
urbanos até o início do séc. XX. Além disso, determinou, segundo este autor, a
inexistência de classes comerciais, industriais e, ainda, de corporações urbanas, na
medida em que “na amplíssima área de latifúndios agrícolas, só os grandes senhorios
rurais existem. Fora deles, tudo é rudimentar, fragmentário, informe. São os grandes
domínios como que focos solares: vilas, indústria, comércio, tudo se ofusca diante de
sua claridade poderosa” (Vianna, 1952:181). Assim também ocorre quando o autor
analisa o latifúndio em relação aos grupos sociais que nele habitam. A mão-de-obra
escrava supre praticamente todas as necessidades produtivas do latifúndio, tanto no
que se refere à produção para o mercado, quanto à produção para subsistência do
próprio domínio territorial. Os trabalhadores livres ocupam, desta maneira, somente
alguns cargos especiais que o latifundiário lhes delega. No entanto, como a força
produtiva recai, sobretudo nas costas marcadas dos escravos, as relações de
interdependência e solidariedade existentes entre o operariado rural e seus patrões
“não tem nem permanência, nem estabilidade. São frágeis e frouxas. Não se
constituem solidamente” (Ibidem, Ibidem:182).
Maria Sylvia de Carvalho Franco define em seu estudo, de um modo semelhante ao
de Oliveira Vianna, as condições que permitiram a constituição dos “homens livres”.
Nota-se, porém, uma sutil diferença terminológica e conceitual determinada, talvez,
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pela institucionalização das ciências sociais no Brasil, ocorrida no período de tempo
que separa as duas obras e os dois autores. Segundo a autora:
Esta situação – a propriedade de grandes extensões ocupadas
parcialmente pela agricultura mercantil realizada por escravos –
possibilitou e consolidou a existência de homens destituídos da
propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse, e que não
foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes
dessa condição, dado que o peso da produção, significativa para o
sistema como um todo, não recaiu sobre seus ombros. Assim, numa
sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde
vagarosamente,
mas
progressivamente,
aumentam
os mercados,
paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados
que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se
proletarizaram. Formou-se antes uma “ralé” que cresceu e vagou ao
longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos
processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na
escravidão simultaneamente abria espaço para sua existência e os
deixava sem razão de ser (Franco, 1983:14).
Fabiano e sua família são representantes em potencial dessa “ralé” descrita pela
autora. A condição de desapropriados dos meios de produção, mas não de seu uso, é
vivida intensamente pelo personagem como uma situação que não permite fixidez em
parte alguma. Quando chega na tal fazenda abandonada, Fabiano sonha com a
possibilidade de criar vínculos com a terra.
Ia chover. Bem. A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao
curral, ele, Fabiano, seria vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de
badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos,
brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de
ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria
toda verde [...].
A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer
seria o dono daquele mundo (pp.15–17).
De fato, a fazenda renasceu com a chuva. O fazendeiro apareceu e depois de tentar
se desfazer do “pobre coitado” acabou aceitando-o como empregado. Fabiano, no
entanto, num lapso, toma consciência de sua condição transitória. Sabe que seu
destino é viver em terras alheias cuidando das coisas alheias. Não tem lugar seu, a
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não ser a provisória morada de que se apossara porque não tinha onde cair morto.
Além disso, como nada é seu, como só tem a posse e não a propriedade dos meios de
produção, Fabiano não se sente pertencente ao lugar onde está. Tem a consciência
de que logo, logo, outro entraria em seu lugar: “ao ser contratado, recebera o cavalo
de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair largaria
tudo ao vaqueiro que o substituísse” (p.25).
Não tinha a quem recorrer. Estavam, ele e sua família, isolados numa terra seca.
Sabia que seu destino já estava traçado.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele
era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu,
errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de
passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais,
tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro
que os tinha abrigado uma noite (p.20).
A condição dispensável e provisória na qual se encontram Fabiano e sua família não
ocorre somente porque seu patrão não depende deles. O próprio personagem, sem
lugar em toda a narrativa, também não depende, necessariamente, do proprietário
rural invisível. Sabia que podia vencer as dificuldades impostas pela seca e pelos
contornos sociais em que estava inserido. Sempre foi assim na sua permanente saga
pelo sertão, e assim continuaria
a ser. Diante
das frouxas relações de
interdependência que o ligavam provisoriamente àquele latifúndio e, por extensão, ao
seu proprietário, Fabiano orgulha-se de sua obrigatória autonomia: “isto para ele era
motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara
naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de
palha” (p.20).
Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma que a interdependência das relações
existentes entre o “trabalhador rural” e o proprietário de terra ocorre porque os
primeiros vivem sua condição social num sentido oposto ao dos setores da sociedade
que se organizaram para a produção mercantil. Segundo a autora, esta situação de
oposição ao predominantemente estabelecido relegou os “caipiras” a uma posição
marginal no interior da sociedade brasileira. Assim, há que se considerar que “a alta
mobilidade foi a marginalização sofrida por esses homens que fizeram do trânsito seu
estado natural, conservando-os efetivamente como andarilhos. Sem vínculos,
despojados, a nenhum lugar pertenceram e a toda parte se acomodaram” (Franco,
1983:32).
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Tanto Maria Sylvia de Carvalho Franco quanto Oliveira Vianna apontam para o fato de
que a situação de autonomia e alta mobilidade que caracteriza os homens livres é
determinada pela maneira como se configura o latifúndio. O grande domínio territorial,
em sua organização social, econômica e cultural, permitiu ao trabalhador rural um grau
elevado de autonomia, na medida em que possibilitava uma quase desnecessidade de
trabalhar, pois o grosso da produção, como já dito, era efetuado pelo braço escravo.
No entanto, contraditoriamente, a baixa produtividade dessa camada social estava
vinculada a uma situação miserável em que era produzido o “estritamente necessário
para garantir uma sobrevivência pautada em mínimos vitais” (Franco, 1983:33). Assim,
os trabalhadores rurais brasileiros podem garantir sua existência sem dependerem do
amparo patronal do fazendeiro. Em quaisquer lugares em que estejam têm a
possibilidade de garantir o mínimo necessário para viver, mesmo que em uma
situação de subsistência baseada na precariedade dos recursos necessários à
manutenção de sua pobre vida.
Desta forma, também para Oliveira Vianna, “o trabalhador rural que abandona o seu
lote está certo de que encontrará um outro no latifúndio vizinho. Daí a facilidade com
que se desloca, todas as vezes que do solar fazendeiro uma pressão mais forte e
disciplinar baixa sobre sua indolência ou sua altivez” (Vianna, 1952:180). Nota-se
então que os conflitos existentes entre o proprietário de terras e o trabalhador rural
são, na maioria dos casos, resolvidos com a fuga, o que demonstra mais uma vez a
flutuação e a instabilidade das relações de patronagem existentes no campo brasileiro.
Maria Sylvia de Carvalho Franco também aponta para este fato quando analisa as
formas de solidariedade existentes dentro do próprio grupo dos “caipiras”. Ao
demonstrar as condições adversas existentes na constituição do trabalho coletivo e
solidário no interior destes setores, constata que “até o presente observa-se que a
mobilidade lhes aparece como o único recurso contra condições adversas de
existência: problemas com o patrão, salário baixo, trabalho insalubre, desavenças,
desgostos resolvem-se ainda hoje com transferência de domicílio” (Franco, 1983:30).
Esse é o destino de Fabiano e de seu pequeno grupo. Depois de sentir-se expropriado
e roubado pelo patrão e, ainda, de pressentir a chegada da seca, resolve, juntamente
com sinha Vitória, deixar a fazenda que estava novamente morrendo. Partem mais
uma vez abandonando o que nada possuíam e o que já deviam.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido,
combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que
possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do
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amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe
restava jogar-se ao mundo, como negro fugido (p.123).
E assim, fecha-se o ciclo das vidas secas que perambulam pelo sertão em busca de
destino certo. Fabiano, em sua nova andança, discute com a mulher as poucas
possibilidades que possuem de se agarrarem a outra terra. Descartam a vida anterior,
querem algo novo. Querem mudar, educar os filhos, fixarem-se definitivamente. Qual
não é a surpresa do leitor quando descobre para onde estão indo os retirantes. Estão
indo rumo à cidade.
Uma grande cidade, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas,
aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos acabandose como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam
fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida
e civilizada, ficariam presos nela (p.134).
Como se pode perceber, o romance termina como inicia, fecha-se como um ciclo.
Começa com a chegada a um latifúndio abandonado pela morte efetuada pela seca, e
termina com a partida dos retirantes para a cidade, ou seja, abandonando o latifúndio
e seguindo, mais uma vez, seus rumos errantes e seu sonho de se fixarem
concretamente em um lugar. Estavam indo para a cidade e não eram nem os
primeiros nem os últimos, porque “o sertão continuaria a mandar gente para lá. O
sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os
dois meninos" (p.134).
3. FESTAS, CADEIAS E CONTAS: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA
Além da situação de “eterno” nomadismo que caracteriza a existência das camadas
menos favorecidas da realidade agrária brasileira, pode-se apresentar ainda a
violência como marca significativa dessa população, especialmente a violência legal e
a violência estabelecida como um código moralmente aceito no interior do próprio
grupo “caipira”. Este elemento socialmente construído está presente em praticamente
todo o sistema social em que estão imersos os “homens livres”. Nas relações de
trabalho, nas situações de lazer, na vida cotidiana, nas relações familiares e de
vizinhança, no próprio contato com o meio natural adverso, lá está a violência com sua
presença constante na vida desses indivíduos.
Em Vidas Secas, a violência está entranhada nas diversas dimensões que compõem a
vida social e a trajetória itinerante de Fabiano, sinha Vitória, os dois meninos e até da
cachorra Baleia. Na festa, no desafio do “soldado amarelo”, na cadeia, nas contas
“erradas” do patrão, na secura agreste do meio geográfico, ela aparece desenhada em
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sua multiplicidade de formas e sentidos. Ora como grande acontecimento narrativo
(como no caso da surra que Fabiano leva em praça pública), ora como pequeno
detalhe escondido nas entrelinhas do texto (como quando Fabiano, ao questionar-se
sobre sua humanidade, conclui com orgulho que é bicho), a violência está ali como
elemento constante na miserável vida dos retirantes da seca e do latifúndio. Neste
capítulo, demonstraremos, através de alguns trechos do romance, como a violência
aparece, travestida em múltiplos significados, nos diversos aspectos da vida dos
“homens livres” e, ainda, como aparece instituída como um código de conduta
praticado não só pelos homens livres, mas também pelos representantes da ordem
legal.
4. FESTA: O CÓDIGO DA VIOLÊNCIA À MOSTRA
O capítulo Festa apresenta, com grande eloqüência, a violência instituída como um
código de conduta dos caipiras. Fabiano e sua família vão à cidade para os festejos de
natal. Vestem-se adequadamente para a ocasião e seguem caminhando para a
pequena vila. Já nas primeiras linhas do capítulo, pode-se notar um dos elementos
que definem a violência enquanto norma social que deve ser seguida: a desconfiança.
Fabiano tinha comprado tecido e dado a sinha Terta para fazer a roupa dele e dos
filhos. No entanto, a mulher disse ao vaqueiro que o tecido era pouco. Este, por sua
vez fez-se de desentendido, achando que a velha lhe roubaria os retalhos.
Conseqüência: as roupas saíram curtas, estreitas e cheias de emendas.
Neste simples trecho, aparentemente nada violento, pode-se perceber um dos
elementos fundamentais para o entendimento das relações de violência entre os
“homens livres”. Este elemento é a miséria a que estes homens estão submetidos. Por
viver na condição de pobreza constante, Fabiano desconfia da velha. E não desconfia
só dela, pensa que todos os outros estão lhe passando para trás. A desconfiança de
Fabiano é o resultado não só da miséria, mas também da situação de “caipira” em
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contraste com os homens da cidade. Mal-arrumado em sua roupa estreita e curta em
conseqüência de sua pobreza, o personagem olha com desconfiança os homens que
o observam e os que o exploram.
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por
isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e
evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa.
Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão
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realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Todos lhe davam
prejuízo. O caixeiro, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro,
e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar na rua,
tropeçando (p.81).
A desconfiança, proveniente de sua condição miserável, é um traço marcante das
relações de violência tanto no interior quanto no exterior do grupo dos homens livres.
A partir dela pode-se iniciar uma briga ou alguma discussão com desfecho trágico. Se
a escassez dos recursos de sobrevivência serviu, em alguns casos, para estreitar os
laços de comunidade, na maioria das vezes foi um estímulo à competição e ao
conflito, resolvido sempre a partir de práticas violentas. Segundo Maria Sylvia de
Carvalho Franco, “a mesma, condição objetiva que leva a uma complementaridade
das relações de vizinhança – isto é, uma cultura fundada em mínimos vitais – conduz
também necessariamente a uma expansão das áreas de atrito e a um agravamento
das pendências daí resultantes” (Franco, 1983:26).
No entanto, como no caso aqui citado, Fabiano não desconfia de sinha Terta por ela
estar disputando com ele meios de subsistência. Ao contrário, o vaqueiro desconfia do
roubo de uns meros retalhos. Isto aponta para o fato de que a pobreza não é a única
força que move a violência dos caipiras. Em muitos momentos os conflitos são
atiçados por acontecimentos irrelevantes. Um olhar esquisito, uma palavra irônica,
uma risada, um gracejo, uns meros retalhos podem ser os ingredientes necessários ao
desandar de um processo violento.
Esses gestos insignificantes tornam-se carregados de tensão quando esbarram no
código de honra que define os sentimentos e as práticas do trabalhador rural pobre.
Tal código está baseado, sobretudo, na coragem, na afirmação e na defesa da própria
pessoa. Os homens livres desenvolveram uma práxis violenta ao unirem as
características das condições objetivas a que estavam submetidos (pobreza das
técnicas de exploração da natureza, limites estreitos das possibilidades de
aproveitamento do trabalho e a conseqüente escassez dos recursos de sobrevivência)
a uma subjetividade que tem como elementos tradicionalmente formados a coragem e
a honra.
Nas relações lúdicas, essa práxis torna-se mais evidente. Na festa, após um surto de
indignação e alguns copos de cachaça, Fabiano desafia todos os presentes,
demonstrando com sua conduta a coragem que deve ter um homem pobre. Pouco a
pouco ficou sem-vergonha.
- Festa é festa.
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Bebeu ainda mais uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas
desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira. Se topasse o
soldado amarelo, esbodegava com ele. Andou entre as barracas,
emproado, atirando coices no chão, insensível às esfoladuras dos pés.
Queria era desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não
ligava importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.
- Apareça um homem! Berrou (p.82).
Para a sorte do personagem, nenhum homem apareceu. Se tivesse aparecido algum,
seu destino poderia ser o mesmo dos inúmeros indivíduos mortos em situações
semelhantes narradas por Maria Sylvia de Carvalho Franco. Para esta autora, “o
significado da festa como contexto social que favorece as relações antagônicas tornase mais nítido quando se observa que ela é o cenário conveniente às afirmações de
supremacia e destemor: é a oportunidade para a realização de façanhas perante
audiência numerosa e que tem em alta conta o valor pessoal” (Franco, 1983:38). Notase, assim, que é na festa e nas relações lúdicas que a expressão dessa práxis violenta
torna-se mais evidente aos olhos do pesquisador. Ela é também um momento
privilegiado para se perceber que a violência enquanto código de conduta é
sancionada pelos outros membros da comunidade.
Em um acontecimento público como a festa, qualquer ofensa dirigida a alguém tem o
revide como única resposta socialmente aceita. Se a retribuição violenta não ocorrer
por parte do ofendido, este terá os seus atributos pessoais colocados em dúvida pelo
restante dos membros da comunidade. Nos termos deste código, um caipira ofendido
por outro não deve “baixar a crista” diante dos seus iguais. Depois de desferido o
primeiro golpe, o comportamento esperado pelos integrantes da comunidade é a
retribuição com um outro golpe por parte do ofendido. A violência está correlacionada
a um sistema de valores centrado na coragem pessoal. A bravura, o destemor, a
coragem e a honra são os elementos que compõem o quadro desse sistema
socialmente sancionado pelos demais integrantes da comunidade.
Em muitas ocasiões, depois de ter matado ou ferido gravemente seu inimigo, o
indivíduo permanece no local divertindo-se, sem a intervenção de qualquer outro
participante da festa. A opção de não tomar parte nos conflitos alheios ressalta o
caráter socialmente válido e aceito da violência como uma ordem costumeira. A
violência está, assim, legitimada como um código que rege as relações sociais
existentes no interior e no exterior do grupo caipira.
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Outros elementos vinculados a este código também podem ser percebidos. É o caso
dos instrumentos de trabalho utilizados pelo trabalhador rural que sempre
apresentaram uma conotação ambígua. A enxada, a foice, o machado, além de
servirem como instrumentos de trabalho, podem servir também como arma em uma
disputa contra algum inimigo (Coli, 2002:04). A mesma faca que pica o fumo,
proporcionando um dos raros momentos de prazer ao trabalhador, é freqüentemente
utilizada, violentamente, como instrumento de defesa e ataque. Em Vidas Secas,
Fabiano usa a mesma espingarda – que serviu para lhe garantir alimento
exterminando as arribações – para matar a tiros Baleia, cachorra que era quase um
“membro da família”.
A educação dos filhos também aparece como modo de reprodução deste código
violento. Os dois meninos filhos do casal são tratados a cocorotes e cascudos. Tanto
sinha Vitória quanto Fabiano reproduzem o código da violência na educação dos
filhos, pois têm que prepará-los para enfrentar o também violento mundo da seca e do
latifúndio. Ao chegarem à festa, os meninos demonstram que, apesar da curta idade,
já estão familiarizados com esse modo de conduta: “com certeza os homens iriam
brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as
barracas? Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de orelha” (p.78).
A violência na educação dos filhos é apresentada pela própria dificuldade de
comunicação de Fabiano. O personagem, por viver uma realidade na qual até sua voz
é reprimida, acaba por não saber lidar com as pessoas. Sua brutalidade é muitas
vezes direcionada aos meninos e à cachorra Baleia. A linguagem torna-se também um
meio de expressão deste código violento. A opressão sentida por Fabiano é expressa
em sua dificuldade de falar com os homens. Estes estão sempre a lhe roubar alguma
coisa. Preferia calar a se misturar com possíveis inimigos. Qualquer agrupamento de
pessoas é visto com desconfiança pelo personagem. Sua pobre educação e sua
linguagem bruta poderiam ser mal-interpretadas.
Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber
cachaça. Como havia muitas pessoas encostadas no balcão, recuou.
Não gostava de se ver no meio do povo. Falta de costume. Às vezes
dizia uma coisa sem intenção de ofender, entendiam outra, e lá viam
questões. Perigoso entrar na bodega (p.104).
O mesmo Fabiano que desafia todos na festa sente, em seguida, medo de entrar
numa bodega. O personagem conhecia o código da violência e atuava nele da
maneira como convinha. Se estava arreliado como na festa, desafiava e ofendia as
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pessoas. Se estava cabreiro, evitava-as. Sua linguagem de bruto poderia ser malentendida e a violência estancaria ali mesmo. Fabiano sabe que vive num mundo onde
a ordem costumeira está baseada na coragem e que “a capacidade de preservar a
própria pessoa contra qualquer violação aparece como a única maneira de ser:
conservar intocada a independência e ter a coragem necessária para defendê-la são
condições de que o caipira não pode abrir mão, sob pena de perder-se. A valentia
constitui-se, pois, como o valor maior de suas vidas” (Franco, 1983:59).
Em meio a esse código de conduta sancionado e legitimado por ele e por seus
semelhantes, Fabiano segue seu caminho. Mal sabe que encontrará à sua frente um
“soldado amarelo” que lhe mostrará que a violência não é privilégio dos homens
pobres e sem autoridade.
5. CADEIA: A PESSOALIDADE DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
No capítulo Cadeia, o narrador apresenta a violência das autoridades para com o
homem simples do sertão. Após chegar à cidade e comprar os mantimentos
necessários à sua pobre subsistência (feijão, sal, farinha e rapadura) e alguns outros
bens “dispensáveis” (querosene e um corte de chita vermelha para a mulher), Fabiano
é desafiado pelo “soldado amarelo” a jogar um trinta-e-um na bodega de seu Inácio.
Constrangido pela autoridade, procurava as palavras que sempre desapareciam
quando lidava com seres humanos. No final das contas, aceita o convite (ou a ordem?)
em meio ao embaralhamento de palavras contraditórias.
- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É
conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e
mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância,
mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia (p.29).
Fabiano entra acompanhado do soldado. Rapidamente perde o dinheiro que havia
reservado para as mercadorias “dispensáveis”. Sai do recinto furioso, trombudo.
Depois de pegar as mercadorias com seu Inácio, ganha a rua e fica matutando, à
sombra de um juazeiro, qual a desculpa que daria para a mulher por não ter comprado
o querosene e o pedaço de chita que ela tinha requisitado. De repente, recebe um
empurrão, estremece, mas continua matutando. Em seguida, outro empurrão. Vira-se,
era novamente o soldado a desafiá-lo agora para a briga. Neste momento da narrativa,
o narrador descreve em um parágrafo a vida cotidiana da cidadezinha do interior,
enfatizando as autoridades locais alheias ao desafio e à desavença que faiscavam
debaixo do juazeiro:
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A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação trepando
numa escada acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por
cima da torre da igreja; o Doutor Juiz de Direito foi brilhar na porta da
farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de
recibo debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo
cascas de fruta; seu Vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por
causa do sereno; Sinha Rita Louceira retirou-se (p.31).
Estavam ali presentes, na praça, todos os representantes das autoridades legítimas de
uma cidadezinha do interior do Brasil. O Juiz de Direito brilhava representando o poder
legal, a dimensão jurídica; o cobrador da prefeitura, a ordem econômica, e seus
reluzentes talões de cobrança a dívida, muitas vezes eterna, a que os trabalhadores
rurais estiveram algumas vezes submetidos; o seu Vigário, a Igreja que no Brasil
demorou (ou demora?) a se desvincular do poder dos grandes proprietários de terra.
Para completar, há de se lembrar também da presença do aparato policial
representado “solenemente” pelo soldado amarelo e seu destacamento. Com todas as
autoridades ali presentes, quem daria crédito às parcas e confusas palavras de um
miserável? Ninguém. E assim aconteceu. Fabiano, sem motivo razoável, foi surrado
em praça pública e depois atirado, com um safanão, “nas profundezas do cárcere”.
Notam-se nesta sucinta descrição da prisão e do espancamento de Fabiano pelo
menos duas manifestações da violência, além da clara e óbvia expressão da violência
física. A primeira diz respeito ao desafio. Maria Sylvia de Carvalho Franco já chamou a
atenção para o fato de que a situação de desafio faz “o elo entre diversão e agressão”
(Franco, 1983:39) num sistema social que tem a violência como código de honra. A
história narrada situa-se justamente entre estes dois aspectos. Num primeiro
momento, Fabiano é desafiado a jogar, em seguida, é desafiado a brigar pelo
representante da autoridade legal. O desafio pode ser compreendido como uma
técnica de controle social carregada de tensões, uma vez que Fabiano é colocado e
provocado, neste contexto, pela autoridade. O desafiado, vendo-se humilhado diante
de seus pares, ainda tenta esquivar-se da briga, porém, provocado ainda mais uma
vez, não resiste e ofende verbalmente o soldado.
Nota-se também o caráter totalmente pessoal da situação de desafio e,
conseqüentemente, da violência. Fabiano não foi desafiado, surrado e preso pelo
soldado amarelo e seu destacamento por infringir alguma lei ou atentar contra o
Estado. Foi desafiado simplesmente porque “tinha deixado a bodega sem se
despedir”. O soldado amarelo, usando de suas prerrogativas legais, impõe sua
autoridade enquanto membro do Estado para punir Fabiano porque ele “agiu de má fé”
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contra a sua pessoa. A violência toma, assim, um caráter estritamente pessoal e
apresenta-se como código de conduta incentivado pelo próprio representante do
Estado.
A segunda manifestação da violência, relacionada intimamente com a primeira, diz
respeito ao descaso com que se colocam em face da situação os membros do poder
institucional. O Juiz de Direito, o cobrador, o Vigário estão ali presentes e não fazem
nenhum esforço para intervir na situação. Nem poderiam, porque estão imersos num
conjunto de relações sociais que os distancia da vida do caipira. Como afirma Maria
Sylvia de Carvalho Franco, “o soldado, o padre, a autoridade pública estiveram
sempre referidos a instituições alheias ao mundo caipira” (Franco, 1983:32). Fabiano,
embora não tenha clareza dessa distância, quando está na cadeia sofrendo das
diversas violências a que foi submetido, reflete sobre esta questão:
E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo
fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O
soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava
na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia
consentir tão grande safadeza (p.35).
Fabiano vê com estranheza a personificação do Estado no soldado amarelo, mas
como também não consegue distingui-los, restringe-se ao estranhamento e ao vago
desejo de um governo justo, abstrato, perfeito (e distante). No entanto, está inserido
na dura realidade agrária brasileira na qual o Estado, não tão distante quanto imagina,
é dominado pelas relações pessoais e pelo clientelismo. A violência, marcada em seu
corpo a golpes de facão, é exercida por este Estado viciado em que se embaralham o
poder público e o privado, a autoridade e a pessoa, o governo e o mando. As
autoridades públicas ali presentes estão, provavelmente, vinculadas aos latifundiários,
grandes representantes do mandonismo local. A violência é apresentada, ao mesmo
tempo como institucional e pessoal, uma vez que estas dimensões não estão
claramente distinguidas na constituição e formação do Estado brasileiro.
Fabiano sofre, portanto, a violência exercida em suas duas dimensões, a pessoal e a
institucional. Não pode recorrer à instituição porque ela é governada com base nas
relações de pessoalidade. O soldado amarelo, fraco e ruim, além das grades, ou seja,
fraco e ruim enquanto pessoa, é sim membro de um governo que está longe de
representar seus interesses. É violentado porque é brasileiro pobre, sem poder nem
“conceito”, sujeito que “não pode ter questão” com autoridade porque as autoridades
estão a favor das elites agrárias e Fabiano está longe de pertencer a tal segmento.
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Resta ao personagem o desejo de um grito de ódio contra estas duas manifestações
de violência a que está sendo submetido. Desejo de fúria que demonstra, mais uma
vez, a exploração e o abandono a que estão sujeitos os seres nessa condição
dispensável.
Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao Doutor Juiz de
Direito, ao delegado, a seu Vigário e aos cobradores da prefeitura que ali
dentro [da cadeia] ninguém prestava para nada. Ele, os homens
acocorados, o bêbado, a mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só
servia para agüentar facão. Era o que ele queria dizer (p.39).
Apenas queria. Nem esse desejo pode realizar. Sua voz não chegaria ao ouvido de
tais autoridades. Sua voz estava destinada ao silêncio, sua boca estava fechada pela
violência a que estava submetido. Pelas regras do sertão, quem não tem não pode
falar. Quem é expropriado dos meios de produção, mas não de seu uso, tem que
calar, tem que ter coragem pra suportar ou então fugir.
6. CONTAS: A NEGAÇÃO DA DOMINAÇÃO PESSOAL
Cabe neste momento esclarecer alguns conceitos já utilizados no decorrer do trabalho,
mas não sistematicamente problematizados e explicitados. Estamos nos referindo ao
conceito de homens livres e ao conceito de liberdade que o acompanha. Nos termos
aqui propostos, sabe-se que os “homens livres” só são livres porque estão inseridos
numa relação de mercado. Esta liberdade significa uma habilitação ao direito de
propriedade e igualdade jurídica. No entanto, a igualdade, em seu sentido jurídico,
compreende apenas aspectos do direito formal, como regras e códigos estabelecidos.
Para um entendimento complexo deste conceito de liberdade, deve-se compreendê-lo,
sobretudo, em relação ao direito vivido pelos indivíduos no contexto social em que
estão inseridos. No caso aqui analisado, os indivíduos que se enfrentam na relação de
mercado estão inseridos em um contexto social no qual se configura um forte sistema
de dominação e violência.
Desta forma, tal conceito de liberdade – fundado no princípio da propriedade privada –
só terá valor sociológico se entendido de acordo com o sistema de dominação
estabelecido neste contexto social. O conceito de liberdade apresenta-se, nos termos
colocados por Maria Sylvia de Carvalho Franco, como uma “unidade contraditória”,
uma vez que contém em seu significado um aspecto de igualdade e um aspecto de
dominação. Reforça-se então que uma situação de igualdade não está desvinculada
de hierarquias, ao contrário, somente a análise destas duas dimensões do conceito de
liberdade permitirá a compreensão sociológica de tal fenômeno (Franco, 1983).
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No capítulo Contas, Fabiano sente na pele, ou melhor, na barriga e no bolso, a
exploração e a violência a que está submetido. A primeira forma de violência que se
apresenta é a condição, vivida pelo personagem, de não-proprietário dos meios de
produção. Como já foi demonstrado, esta característica é constitutiva do modo de vida
dos “homens livres” e de como se inserem no sistema social. Com seus precários
meios de subsistência – meia dúzia de pés de feijão e milho – Fabiano era obrigado a
recorrer ao bolso do patrão para satisfazer o restante de suas necessidades básicas.
Com isso, os bezerros e as cabras a que tinha direito na hora da partilha iam, pouco a
pouco, sendo marcados pelo ferro do latifundiário. Na hora de fazer as contas, quase
nada restava. Fabiano injuriava-se, ficava nervoso diante do “roubo” que estava
sofrendo, queria ir embora, abandonar a fazenda e seu proprietário. No entanto, ao
pensar na seca e nas dificuldades vividas até chegar ali, logo desistia. Necessitava,
mesmo que de maneira transitória, estar vinculado ao grande proprietário de terras.
Fabiano vivia em condições semelhantes à do tropeiro descrito por Maria Sylvia de
Carvalho Franco em seu já referido estudo. Segundo a autora,
O que importa ressaltar é o fato de que, para subsistir e alcançar os seus
objetivos, o tropeiro supõe a existência do senhor de terras. Embora
itinerante e submetido circunstancialmente a proprietários diferentes,
haverá sempre um senhor, sob cuja égide se encontrará e de cuja mercê
dependerá o êxito de seu trabalho (Franco, 1983:64).
Seus serviços estavam sempre delegados a outrem. Sua pessoa era, também,
propriedade de outro. Assim tinha sido com seu pai, com seu avô e assim permanecia
a situação diante dele. Apesar de ter consciência do valor de seu trabalho e da
condição violenta de exploração a que estava submetido, nada fazia. Permanecia
imóvel naquela condição de expropriação. A imobilidade que caracterizava Fabiano
naquele momento era necessária à contínua reprodução dos elementos sociais que
mantêm o latifúndio. Sem a constante exploração da mão-de-obra de sua categoria os
latifúndios não existiriam mais.
É interessante notar que em outro momento do texto Fabiano compara-se à bolandeira
de seu Tomás. A bolandeira é uma grande roda que transmite o movimento às mós do
engenho. Fabiano era o movimento que não fazia parar a estrutura das relações
sociais que o fixavam no latifúndio. As relações de poder no latifúndio eram tão
violentas que Fabiano se compara à engrenagem de um engenho. O latifúndio,
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mantém a estrutura das relações de exploração em um nível próximo do
humanamente insuportável, reproduzindo homens e mulheres da mesma
forma que reproduz animais, isto é, tentando tirar-lhes a capacidade de
serem seres sociais que refletem sobre a objetividade e procuram
respostas para seus males. Para manter essa situação é necessário o
constante uso da força, por isso o braço armado do latifúndio e um nível
de violência desmedida são fundamentais, tornando quaisquer reações
um risco de vida (Magalhães, 2001:84)
Desta forma, além da violência da expropriação dos meios de produção, há também a
violência da alienação a que estão sujeitos os indivíduos numa relação tão explícita de
dominação. Maria Sylvia de Carvalho Franco apresenta as relações de dominação
pessoal como uma situação em que a consciência política dos dominados ligada à sua
condição de exploração é mutilada pela pretensa igualdade, respaldada pelo
reconhecimento da pessoalidade dos indivíduos imersos nessa relação. Numa relação
de dominação pessoal, o reconhecimento da dimensão da pessoalidade se faz
necessária, porque é também necessária a manutenção de vínculos de aparente
nivelamento. No estudo da autora, esta questão fica clara quando se debruça na
análise das relações entre o grande proprietário de terras e o sitiante. Através do
mecanismo do compadrio, esses dois seres, tão hierarquicamente distantes, tornamse próximos, uma vez que “o compadrio é uma instituição que permite esta aparente
quebra das barreiras sociais entre as pessoas por ela ligadas” (Franco, 1983:78). No
entanto, por trás da aparente igualdade descortina-se o outro lado da relação, a
dominação pessoal que se exerce através de assistência prestada pelo fazendeiro ao
sitiante e da retribuição deste por meio da filiação política.
Sabe-se que este não é o caso de Fabiano, pois já demonstramos que sua situação
aproxima-se, com mais clareza, da posição do tropeiro. Porém, o contraste entre estes
dois tipos será útil para demonstrar alguns liames sociais existentes entre Fabiano e
seu patrão. Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma que as relações de dominação
pessoal entre o sitiante e o fazendeiro foram possíveis porque estavam calcadas numa
certa durabilidade de seus vínculos. Mantinham-se porque ambos eram proprietários
de terras e tinham seus interesses referidos a essa propriedade (Franco, 1983:81).
Como já foi mostrado, esta também não é a situação em que se encontra Fabiano e
sua família, ao contrário, estão destituídos de qualquer bem mais valioso e durável.
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Outra característica apontada pela autora na relação de dominação pessoal existente
entre o sitiante e o fazendeiro diz respeito à condição de asfixia da consciência política
a que está submetido o primeiro. A submissão ao poder do fazendeiro permite ao
sitiante uma visão muito parcelada da realidade social, o que o impede de se integrar
e de participar conscientemente da vida pública. A dominação pessoal concede a ele
ver “apenas os segmentos iluminados pela vontade dominadora” (Franco, 1983:83).
Assim, a mesma condição de pessoalidade que estabelece o vínculo entre esses dois
indivíduos é negada porque o sitiante está impedido – pelas relações de fidelidade e
lealdade estabelecidas entre ele e o fazendeiro – da possibilidade de uma existência e
de uma consciência política autônomas. Neste sentido,
a admissão do dependente como pessoa é essencial para sua integração
a uma ordem social que aniquila seus predicados de ser humano. Vê-se
por aí a brutalidade da alienação a que está exposto. Esta dominação
implantada através da lealdade, do respeito e da veneração estiola no
dependente até mesmo a consciência de suas condições mais imediatas
de existência social, visto que suas relações com o senhor apresentamse como um consenso e uma complementaridade, onde a proteção
natural do mais forte tem como retribuição honrosa o serviço, e resulta na
aceitação voluntária de uma autoridade que, consensualmente, é
exercida para o bem (Franco, 1983:88).
Na condição em que Fabiano se encontra, não há nos termos estabelecidos acima a
configuração de uma relação de dominação pessoal existente entre ele e seu patrão.
Apesar de estar subjugado ao punho do proprietário, Fabiano não o venera
cegamente, nem tem total desconhecimento de sua condição social. Ao contrário, tem
clareza de sua condição de expropriação e desconfia que há algo de errado nas
contas do patrão. Sente, com alguma potência, a dureza do tratamento ao qual o
latifundiário o submete e sabe que sua condição social não é nem um pouco igualável
a do grande proprietário de terras.
O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à
fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava,
o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural.
Descompunha
porque
podia
descompor,
e
Fabiano
ouvia
as
descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpavase e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada,
porque estava tudo em ordem e o amo só queria mostrar autoridade,
gritar que era dono. Quem tinha dúvida? (p.24).
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Fabiano não tinha dúvidas. Diferentemente do sitiante, caso extremo de dominação
pessoal, o vaqueiro tinha o conflito como dado claro e estabelecido em sua relação
com o patrão. Obedecia às ordens, mas por dentro sentia ódio. Chegava até a discutir
com o amo, mas diante da situação paupérrima em que se encontrava, “baixava a
crista” e desculpava-se. No capítulo dedicado a este personagem, o narrador põe em
questão, por diversas vezes, a existência da humanidade de Fabiano. Este se
compara em inúmeros momentos aos bichos de que toma conta. O personagem vive
intensamente este conflito. No decorrer da narrativa, vai tomando consciência da sua
condição de pessoa, de ser humano que sobrevive em extremada condição de
violência.
Maria Sylvia de Carvalho Franco compara a situação de alienação do sitiante a do
escravo. Segundo a autora, o primeiro, por viver num mundo formalmente livre, não
tem capacidade de perceber que sua vontade está presa a do superior, porque não
existem marcas objetivas do sistema de dominação a que está confinado. Neste
sentido, não há meios deste sujeito obter autoconsciência, pois entende o processo de
dominação como natural e espontâneo. Torna-se, portanto, uma criatura domesticada,
tendo como destino certo o imobilismo e o conformismo. Já o escravo, embora passe
por um processo extremado de negação de sua pessoa, na medida em que é
transformado em coisa, mera propriedade, está sujeito a uma condição de tamanha
violência que possibilita um vago desejo de liberdade. “Liberdade impossível, mas pelo
menos desejada, o que devolve ao escravo, embora apenas como projeção individual,
um sentido de humanidade” (Franco, 1983:88).
Fabiano, sente em sua relação com o fazendeiro esse vago sentimento de liberdade.
Em vários momentos do romance, ele se refere à sua pessoa como “negro fugido”.
Quando vai acertar o salário, o vaqueiro dirige as seguintes palavras para o patrão:
“Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada!
Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!” (p.98.).
A comparação com a situação de escravidão devolve a Fabiano a consciência de sua
condição de explorado e, em conseqüência, o sentimento de sua humanidade. Era
explorado, mas também era de carne e osso, tinha desejos, sentia vontade de fumar,
apreciava a beleza de sinhá Vitória em frente à trempe, com a saia de ramagens no
meio das pernas. O vaqueiro, apesar de estar inserido num contexto de dominação,
não o vivencia em toda a sua intensidade, ou seja, em toda a potencialidade de
alienação que a relação de dominação pessoal carrega em seu sentido. Como o
escravo, sente raiva, ódio, ira. Deseja sair daquela situação de exploração a que está
submetido.
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No entanto, o que há de mais violento nesse sistema é que a única escapatória para
sair da condição de submissão, de eterna exploração é a revolta de cada indivíduo,
rebelião solitária contra a ordem estabelecida. No máximo, o assassinato de um
coronel, uma tocaia armada para o soldado amarelo ou a entrada para o cangaço.
Nada disso, porém, transformaria efetivamente a realidade social a que esses
indivíduos estão submetidos. Fabiano preferiu a fuga. Não matou ninguém, não armou
tocaia, não entrou para o cangaço, não se reduziu ao que dele esperavam os
latifundiários. Realizou seu desejo humano de liberdade fugindo. Negou a dominação
pessoal, preferindo a violência da seca: pelo menos nesta poderia se virar.
7. OUTROS PERSONAGENS: A VIOLÊNCIA E A ANDANÇA PERMANECEM?
As condições sociais vividas por Fabiano e sua família no romance Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, não estão desvinculadas da realidade de outros trabalhadores
pobres do Brasil. Ao contrário, como demonstrado nas linhas acima, tal romance tem
como característica marcante seu duro tom de denúncia social. Seu êxito maior está
no fato de que denuncia a situação miserável e dispensável dos retirantes da seca
sem deixar de ter grande valor literário. Graciliano Ramos conseguiu unir em seu
romance o problema geográfico e social com a elevada qualidade artística.
No entanto, a questão que se coloca após a leitura que fizemos do romance é se seus
personagens ainda podem ser encontrados nos sertões e nas grandes cidades.
Seriam os personagens de Vidas Secas homólogos a outros personagens da
realidade agrária brasileira? Teriam os possíveis descendentes de Fabiano e sinha
Vitória
conseguido
negar
as
relações
de
dominação
pessoal,
presentes
constantemente nas relações agrárias do Brasil, a inércia e o imobilismo? Seriam eles
os antepassados dos que conseguiram se unir, apesar de todas as adversidades, nãosolidariedades, desconfianças e violências, e fundaram um Movimento (o MST) para
lutarem, com um mínimo de dignidade, pelos seus direitos de pequenos proprietários
rurais?
Como sabemos, a saga de Fabiano, de sinha Vitória e de seus dois filhos encerra-se
com eles caminhando rumo ao sonho da cidade grande. Nós nos perguntamos então
(extrapolando os limites do romance) qual teria sido o fim desses personagens nas
grandes cidades do sul? Teriam se tornado “mendigos”, “indigentes” como outras
figuras que perambulam de esquina em esquina nas grandes cidades e têm como
único bem o próprio corpo violentado pelas mazelas a que estão submetidos? Ou
teriam, ao contrário, “vencido na vida”, ao colocarem os “meninos na escola,
aprendendo coisas difíceis e necessárias” (p.134), conseguindo trabalho, moradia e
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saúde? Qual foi, enfim, o destino de Fabiano e de sua família? Teria sido o mesmo
desses outros personagens do campo e da cidade presentes em nosso cotidiano?
Para todas essas perguntas não temos resposta. Graciliano Ramos, com a precisão
de sua escritura, deixou-os no meio do caminho; e este trabalho, no sentido em que foi
proposto, buscou mapear tal caminho, levantando as questões sociais presentes no
romance. Entre a miséria tradicional do campo e as novas (im)possibilidades que a
cidade poderia lhes garantir, os personagens optaram pela segunda, mas na trama
textual, como na realidade, seu fim é estar sempre andando.
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8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
_________________, Ficção e confissão: ensaio sobre a obra de Graciliano
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PODER POLÍTICO E A TEORIA DA TROCA EM PIERRE CLASTRES
Adriana Cristina Repelevicz de Albernaz65
RESUMO
Pierre Clastres discute e amplia o conceito de poder político, apresentando um debate
que abrange formas de organização e concepção política diferentes da ocidental.
Apresento sua tese da disjunção entre poder político e chefia política nas sociedades
das Terras Baixas da América do Sul, que fundamenta uma visão geral da
organização social e conceitual dessas sociedades, com vistas a localizar e a
compreender sua influência e crítica à teoria da troca/reciprocidade de Lévi-Strauss.
Pretendo demonstrar as diferenças de foco entre estes dois autores e, ao retomar o
Ensaio Sobre a Dádiva... de Marcel Mauss, além de outros teóricos que o aprofundam,
poder continuar vendo coerência na tese de Pierre Clastres sobre estratégias
construídas por essas sociedades visando manter o político sob seu controle.
PALAVRAS-CHAVE: poder político, chefia política, sociedades indígenas, teoria da
troca, migrações Tupi-Guarani.
ABSTRACT
Pierre Clastres discusses and enlarge the political power’s concept, presenting a
debate that includes ways of political organizations and conceptions different from the
western. I present his thesis of separation between political power and political
leadership in the societies of Lowlands of South America, that founded a general view
of social and concept organization of these societies, aiming to locate and to
understand his influence and review of exchange’s theory of Lévi-Strauss. I intend to
show the differences of focus between these two authors, and that resuming The
Essay About the Gift… of Marcel Mauss, beyond of others theoretical that deepen their
knowledge about him, we can continue looking coherence in the Pierre Clastres’s
thesis, of strategies built up by these societies for keeping the political under its control.
KEY WORDS: political power, political leadership, indigenous societies, exchange’s
theory, Tupi-Guarani migration.
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1. INTRODUÇÃO
Neste texto
66
desenvolverei alguns pontos a respeito do trabalho do etnólogo francês
Pierre Clastres sobre as sociedades indígenas das TBAS (Terras Baixas da América
67
do Sul ). A discussão que apresento aqui gira em torno da crítica feita por Pierre
Clastres à teoria da troca/reciprocidade de Lévi-Strauss, que embora analise as
relações entre a chefia e a sociedade por meio deste viés, afirma que a teoria da
troca/reciprocidade não explica em todos os termos essas relações, porque elas não
são recíprocas.
Pierre Clastres traz à discussão etnológica, dados e reflexões tanto sobre os povos
nativos da floresta Amazônica, quanto sobre os grupos indígenas do sul e sudoeste do
68
Brasil, e sobre os Guayaki
do Paraguai. É assim um autor de grande importância
para a etnologia sul-americana pelo material etnográfico que apresenta e pela
discussão teórica a respeito dessas populações indígenas (com destaque para os
Guarani), continuando a ser referência na medida em que aborda temas centrais para
o conhecimento de tais populações, entre eles, a instituição da guerra e do
canibalismo, as relações de parentesco e os temas mitológicos e cosmológicos.
Entretanto, a discussão mais representativa de sua produção intelectual refere-se à
constituição do poder político nessas sociedades, o que faz segundo a tese da
disjunção entre poder político e chefia política e da opção feita por essas mesmas
sociedades de permanecerem sem um poder político coercitivo, autônomo e
centralizado, portanto, intencionalmente “contra o Estado”.
Sua tese contempla a explicação para os deslocamentos regidos pela procura da
Terra Sem Mal que, segundo ele, é um fenômeno anterior à chegada dos europeus.
Tais deslocamentos teriam sido provocados pelo crescimento demográfico autóctone,
especialmente dos grupos Tupi-Guarani. Conforme argumentou, esse crescimento
demográfico foi o responsável por uma incipiente centralização política entre os TupiGuarani. Porém, essas sociedades tinham como princípio estrutural uma organização
igualitária e democrática e seguiam, predominantemente, a orientação religiosa, pois
priorizavam a religião, a cosmologia ou, nos termos de Viveiros de Castro (1986), o
conceitual. Por esta razão, segundo Pierre Clastres, resistiam ao político como
instância coercitiva e centralizada, característica que os fez seguirem os profetas Karai
– profetas da selva que proclamavam as belas palavras – em busca de um lugar onde
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se manteriam de acordo com as boas formas de viver, em que as regras sociais
estariam abolidas, e não haveria sequer a distinção entre o humano e o divino.
Portanto, Pierre Clastres explica os deslocamentos das populações Tupi-Guarani,
anteriores à chegada dos europeus, através da resistência à política e da opção de
permanecerem guiados pelos ideais de igualdade e solidariedade presentes em sua
cosmologia.
2. SOCIEDADES “CONTRA O ESTADO”
Pierre Clastres defende que o fato de o poder político não se encontrar nas
sociedades das TBAS, conforme pensado e exercido no Ocidente - segundo uma
caracterização do poder político como o poder exercido pelo homem sobre outros
homens, através do Estado, legitimamente capaz de usar a força física (violência) para
o controle de conflitos e da manutenção da ordem – não justifica a afirmação de sua
inexistência. Pela concepção ocidental de Estado Moderno, conforme Max Weber, “há
de se entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho
administrativo leva avante (...) a pretensão do monopólio da legítima coerção física,
com vistas ao cumprimento das leis” (I, 53 apud Bobbio, 1995:956), ou seja, um poder
legitimamente coercitivo e coativo. Temos também constatado, desde as proposições
de Maquiavel e da análise racionalista de Weber, que a política e a moral no Ocidente
distanciam-se até a sua total separação, o que aparece claramente no discurso
político (o bem comum), que não se reflete na prática política motivada pelo interesse
de grupos (Cf. Verbetes: política e moral em Abbagnano, 2003).
Pierre Clastres afirma que para a consideração do poder político como universal (o
que para ele é possível, dado que o político é inerente ao social) é necessário uma
concepção que abarque a existência de um poder político não-coercitivo. Ressaltamos
que o autor não se refere a um significado que poderíamos chamar de “reduzido” de
poder político, como pensado pela filosofia política clássica e moderna e que o
relaciona diretamente a um governo centralizado (seja o de uma República ou o de um
Estado autoritário). Esta concepção está presente, por exemplo, na forma com que
69
Hobbes relaciona a passagem do “Estado de Natureza”
para o “Estado de Cultura”,
com a abdicação da autonomia e do poder pessoal em prol de um representante
responsável por manter a coesão social através da coação, compromissado em evitar
a “guerra de todos contra todos” (Bobbio, 1995:956).
O político é entendido aqui a partir do sentido amplo que deriva da palavra grega
“Politikós, que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é
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urbano, civil, público e até mesmo sociável e social” (Bobbio, 1995:954), portanto,
voltado para as relações públicas, exterior ao âmbito familiar e que representa grupos
(mesmo que sejam famílias ou linhagens, desde que estas formem grupos, o que
vemos na instituição Guarani da parentela. Cf. Pereira, 1999), e tendo como sentido
último uma proposta de “bem geral” para a sociedade. Afirma, então, que a política se
encontra universalmente dividida entre poder político coercitivo, nas sociedades com
Estado e históricas – as que são movidas pela idéia de busca incessante de
mudanças (Cf. Lévi-Strauss, 1996) – e não-coercitivo, nas sociedades sem Estado e
a-históricas – as que não são regidas pela idéia de busca de mudanças, mas sim pela
idéia da repetição e da concepção de um tempo cíclico (Cf. Lévi-Strauss, Idem).
Vemos que, ao contrário do que queria o modelo evolucionista, Pierre Clastres afirma
que o formato das sociedades das TBAS, com o poder descentralizado e com as
relações de troca que envolve, constitui-se em uma opção e não em uma
incompletude, ou em um estágio que precisaria ser superado para atingir, enfim, a
forma social adulta expressa como “Sociedades com Estado”. Joana Overing (1995)
desenvolve este ponto, relacionando a leitura evolucionista à concepção de história
linear que implica. Porém, esta autora questiona a caracterização de Pierre Clastres
das “sociedades sem Estado” como sociedades a-históricas, ou seja, estáticas, no
sentido de não serem movidas por inovações. Vemos que Clastres relaciona a idéia de
inovação (mudanças/história) ao poder coercitivo (Estado), por ser este poder
centralizado, na sociedade ocidental, que garante a aceitação e manutenção das
inovações, inclusive, com o uso legítimo da força física (violência) organizando e
legitimando as inovações. É claro que ele não está dialogando com autores
contemporâneos (pós-guerra fria) que fazem uma nova leitura do Estado Moderno, no
qual a sociedade civil, através de suas instituições – organizações comunitárias, Ongs,
sindicatos, movimento de minorias, étnicos e outros – participa de uma forma mais
direta da administração pública, o que exige uma definição de Estado que considere
essa descentralização e que admita o diálogo com a sociedade civil de uma forma
mais direta (Cf. Villa, 1999).
Mas voltemos à nossa questão: Joana Overing afirma que a concepção de ahistoricidade dessas sociedades indígenas faz parte também de uma visão
etnocêntrica ocidental, que tem em seu cerne o evolucionismo. Defende que a
afirmativa sobre a historicidade ou não de qualquer sociedade depende da visão de
história utilizada. Portanto, não é pelo fato de algumas sociedades não serem movidas
pela idéia de progresso linear e não se interessarem pelo relato de etapas evolutivas,
isto é, sem aparentemente terem uma “história cumulativa” (Lévi-Strauss, 1973), que
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se justifica a afirmativa de serem sociedades ou “povos sem história” (Overing,
1995:109). Desta forma, Overing propõe uma redefinição e ampliação do conceito de
história que possibilite abranger as concepções nativas indígenas sobre a passagem
do tempo, e suas formas de relatarem acontecimentos e eventos, compreendendo “o
modo complexo como os ameríndios vêem a relação entre história, tempo e processo
social” (:109).
Tendo como pressuposto que todas as sociedades têm a sua historicidade, entendida
aqui, segundo Márcio Goldman, como a “história que os homens fazem sem saber”
(1999:228), tratar-se-ia de saber qual a sua modalidade e o regime em casos
70
concretos.
Assim, abre-se a possibilidade de pensar a temporalidade também
relacionada à troca de dádivas (entre vizinhos, entre parentes distantes) tanto nas
relações pessoais (horizontais) na sociedade, como nas trocas entre a chefia e a
sociedade. No caso em questão, é necessária a atenção para a concepção de tempo
mítico e a idéia da abolição da reciprocidade que o movimento profético da Terra Sem
Mal proclamava, ou mesmo, das relações de troca com o sagrado através dos rituais
e, assim, a sua relação com a organização do tempo coletivo, por exemplo, nos rituais
de plantio e de colheita.
Entretanto, Pierre Clastres afirma que o político é a primeira instância de diferenciação
social, inaugurando o movimento e a história, sendo o econômico posterior a esta
primeira diferenciação. Porém, a mesma diferenciação, segundo Pierre Clastres, não
foi aceita pelos Tupi-Guarani, pois eles resistiram à incipiente centralização política,
em função, como já citamos, de suas características estruturais. Temos então que se
nas sociedades ocidentais, conforme a definição marxista, o motor da História é a “luta
de classes”, nas sociedades indígenas das TBAS, o motor seria a luta contra o Estado
(2003:234). Este sentido foi apreendido por John Manuel Monteiro (1992), quando
afirmou que a principal fonte de conflitos e o motor da história Guarani é a tensão e,
em certa medida, a imbricação entre tradição e mudança: tradição no sentido de que
essa sociedade prioriza a garantia da sociabilidade orquestrada pela religião; mudança
representada pelas migrações, movidas pelo discurso profético, sempre refratário ao
político (:482), dessa forma, mudança com vistas à permanência da tradição. Segundo
o questionamento de Pierre Clastres: “Que não se possa compreender o poder como
violência e sua forma última (o Estado centralizado) sem o conflito social é indiscutível.
Mas e quando se trata de sociedades sem conflitos, aquelas onde reina o “comunismo
primitivo?” (2003:40).
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Neste caso, Pierre Clastres trata de um sentido estrito de conflito entre forças sociais –
tal como concebido por Marx e Engels – como “motor da história”. Essas forças sociais
estão relacionadas ao desenvolvimento econômico ocidental, aos donos dos meios de
produção e aos que produzem (seus empregados), e não ao que diz respeito ao seu
aspecto mais amplo: o dos conflitos que os rituais indígenas encenam, como os
relativos à ordem cósmica e à concepção autóctone da existência humana, geralmente
interligados com conflitos entre parentes (marido e mulher / pais e filhos / sogros e
genros), ou de relações de amizade e inimizade – este último aspecto fundamental
para a compreensão da guerra ameríndia e das suas concepções de identidade e
diferença. Neste sentido, Clastres chama a atenção, no capítulo “Independência e
exogamia” (2003), para os modelos simplistas ligados às populações da floresta da
América do Sul que, como contraponto às populações andinas, foram caracterizadas
como mais homogêneos e transparentes do que realmente o são e, neste sentido,
talvez a noção de conflito como dinâmica interna possa ter uma outra conotação. Mas
a princípio é interessante notar a especificidade de tais sociedades que, como
veremos, ao mesmo tempo em que têm uma prática de guerra como forma de relação
com o exterior, internamente se protegem de um poder centralizado que possa estar
relacionado a qualquer tipo de violência na figura de seu chefe.
Nessas sociedades o poder político está, segundo Clastres, dissolvido no corpo social,
verdadeiro locus de sua autoridade, e não centralizado na figura do chefe como figura
autônoma e superior. O autor amplia, assim, a reflexão sobre a política a partir da tese
de sua disjunção em relação à instituição da chefia, tendo como preocupação central a
constituição política específica de algumas sociedades, pensadas segundo um modelo
estrutural da relação do grupo social com o poder político através da teoria da troca.
Esta discussão diz respeito à natureza do poder político e ao que garantiria a sua
existência em sociedades que apresentam uma chefia sem “substância” e impotente
(sem autoridade coercitiva), ou seja, “em que condições a vida social indígena pode
desenrolar-se fora das relações de poder coercitivo” (Goldman e Lima, 2003:10).
Problematiza então o modo como a sociedade e a política estão relacionadas quando
a primeira exerce um controle quase absoluto sobre a segunda, impedindo a sua
autonomização.
O argumento de Pierre Clastres baseia-se na constatação de uma resistência irrestrita
apresentada pelas populações ameríndias à instituição de um poder político autônomo
que se apresenta, de uma forma exemplar, no discurso profético da Terra Sem Mal e
nas migrações que o animaram – fenômenos entendidos como “estratégicos” para
impedirem a instalação de chefias políticas centralizadas e autônomas. Esse
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movimento profético teria surgido como conseqüência do crescimento demográfico da
população nativa das TBAS, o que poderia se tornar causa da constituição de um
poder centralizado, um Estado, nas palavras de Pierre Clastres. A resistência à
constituição do que entendemos como Estado se reflete, segundo Clastres, na
concepção indígena do Um (unidade) como símbolo da imperfeição, na medida em
que se contrapõe à dualidade, representação do ideal nativo que possibilita a
identidade (não-contradição) entre o eu e o outro, entre o homem e Deus (2003:1901). Afirma assim que o complexo religioso motivou as migrações à procura da Terra
Sem Mal, demonstrando como a cosmologia e a religião desenvolveram-se como
discurso de motivação para o deslocamento geográfico (Cf. Viveiros de Castro,
1986:104). Assim, deixaram o sedentarismo para tornarem-se nômades e, em certa
medida, anti-sociais, já que seus profetas proclamavam a abolição das regras de
casamento – Dêem suas mulheres a quem quiserem – do trabalho e da reciprocidade
(Clastres, P., 2003 e Clastres, H. 1978, e Viveiros de Castro, 1986). Vemos, então,
como nesse momento a sociedade torna-se um problema.
Pierre Clastres afirma a intencionalidade de tais sociedades em permanecerem sem
um poder político centralizado. Portanto, elas são consideradas “sociedades sem
Estado”, porque evitam formas de poder coercitivo e de divisão entre dominantes
(governante) e dominados (governados) e a relação do chefe com qualquer autoridade
coercitiva e autônoma, pois a autoridade tem seu locus na sociedade, o chefe sendo
apenas seu porta-voz e nunca aquele que emanaria um poder autônomo e superior.
Desta forma, a posição do chefe nessas sociedades estaria mais próxima daquilo que
nós entendemos como “Ministro das Relações Exteriores”, posto que representa a
sociedade como uma totalidade una em situações de guerra, diálogo e busca de
alianças com outros povos.
Ressaltamos que o autor apresenta as características principais da chefia política em
tais sociedades segundo a definição de Robert Lowie – três obrigações e um direito –
observando suas relações com a teoria da troca/reciprocidade e da comunicação de
Lévi-Strauss. Temos assim as seguintes características do chefe indígena: a
obrigação de ser generoso, doando seus bens à sociedade; a obrigação de ser
mediador em conflitos e fazedor da paz, através da capacidade oratória; a obrigação
de doar palavras (as que recebe dos deuses) e de fazê-las circular, sendo não só o
chefe considerado como a pessoa que fala, mas também a pessoa que tem o “dom”
da palavra e é tida como chefe; e o direito à poligamia, em alguns casos também
concebido aos xamãs e aos guerreiros de destaque, que são candidatos privilegiados
à chefia.
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3. AS SOCIEDADES DAS TBAS E A TEORIA DA TROCA/RECIPROCIDADE DE
LÉVI-STRAUSS E DA TROCA/DÁDIVA DE MARCEL MAUSS
O fundamento da análise clastriana das instituições políticas e de sua forma de
organização, principalmente no que se refere à relação entre a instituição da chefia e a
71
sociedade, é feita segundo os termos da teoria da troca/reciprocidade
do
estruturalista francês Lévi-Strauss (que foi seu professor). Clastres afirma que as
relações entre a sociedade e sua chefia política, nos contextos indígenas, envolvem os
três principais signos que, segundo Lévi-Strauss, são trocados, dão fundamento e
garantem as relações sociais em todas as sociedades: as mulheres, os bens e as
palavras. Porém, Pierre Clastres declara que nas relações de troca entre a chefia e a
sociedade nas TBAS, embora os três signos estejam contidos – concordando com
Lévi-Strauss – a reciprocidade deixa de existir, pois o que se troca não pode ser
considerado como signo que tem o objetivo de comunicar alguma coisa, mas são
apenas valores não-recíprocos, ou seja, o que se dá não é o mesmo que se recebe.
Esta mesma análise é feita por Clastres em relação às palavras dos cantos dos
guerreiros solitários Guayaki; o objetivo de expressá-las não é remeter uma
mensagem ou comunicar algo a alguém, pois o canto é solitário e o único receptor da
mensagem é aquele que a emite.
Pierre Clastres chama a atenção para o fato de o poder político encontrar-se
dissolvido nas sociedades das TBAS, assinalando vínculos entre parentesco e
articulações políticas. Isto se afirma, por exemplo, no capítulo “Independência e
exogamia”, quando aponta que é através da exogamia que esses grupos indígenas
constituem suas alianças políticas (2003:84). O autor problematiza a dissolução do
político, compreendendo-o também através da teoria da troca; porém, enfatiza o
caráter político das relações que Lévi-Strauss tratava como relações sociais de uma
forma mais geral.
O que sobretudo chama a atenção é constatar-se aí a dissolução gradual
do político que, na falta de descobri-lo onde se esperava encontrá-lo, se
crê perceber em todos os níveis das sociedades arcaicas. Tudo cai
desde então no campo do político, todos os subgrupos e unidades
(grupos de parentesco, classes de idade, unidades de produção, etc.)
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que constituem uma sociedade são investidos, com ou sem motivo, de
uma significação política, a qual acaba por abranger todo o espaço social
e por perder conseqüentemente sua especificidade. Pois, se o político
existe em toda a parte, ele não existe em lugar nenhum (2003:34-5).
Ele demonstra que o caso não é de inexistência de poder político nessas sociedades,
mas sim de uma diferenciação. Assim, os ameríndios, animados pelo gosto da
igualdade e pelo sentido de democracia, intuindo a íntima relação entre poder e
natureza que se manifestaria no desejo de dominação e na violência, negam ambos –
o poder e a natureza – constituindo-se de forma a se protegerem de um poder político
que seja autônomo e que fuja do controle da sociedade.
A instituição da chefia compõe-se, segundo Pierre Clastres, de um sub-sistema
separado e marginal em relação à sociedade, controlado e mantido por ela através
das relações de troca. Afirma, portanto, que na relação entre chefia e sociedade o
circuito da troca diferencia-se do que acontece no todo da sociedade, pois a
reciprocidade deixa de ali existir. A relação de troca entre chefia (tomando-se um
indivíduo isoladamente) e sociedade (como entidade global) consiste em uma relação
negativa e unidirecional, posto que as trocas são assimétricas e se dão em um sentido
único (bens e palavras do chefe para a sociedade, e mulheres da sociedade para o
chefe).
Dessa forma, Pierre Clastres parte da teoria da reciprocidade desenvolvida pelo
estruturalista francês Lévi-Strauss, que tem a troca de mulheres, bens e signos
lingüísticos como condição primeira, necessária e fundante da vida social, e acaba por
contestá-la como esfera de reciprocidade na relação entre o chefe e a sociedade.
Segue seu argumento:
Com efeito, é notável constatar que essa trindade de predicados – dom
oratório, generosidade, poligamia, ligados à pessoa do líder – concerne
aos mesmos elementos cujas trocas e circulações constituem a
sociedade como tal e sancionam a passagem da natureza para a cultura.
É inicialmente pelos três níveis fundamentais da troca de bens, de
mulheres e de palavras que se define a sociedade e é igualmente por
referência imediata a esses três tipos de “sinais” que se constitui a esfera
política das sociedades indígenas (Ibidem:55).
Ele evidencia, então, que nessas sociedades as funções relativas à guerra e à caça
(além da esfera religiosa) conferem aos seus atuantes de maior destaque um elevado
estatuto social e político (Idem:53), o que os torna candidatos à chefia política e lhes
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dá o direito à poligamia. Além disso, o próprio “conselho de anciões”, ao qual o chefe
deve submeter suas decisões e que o reconhece no papel de chefe, era composto
pelos guerreiros mais brilhantes. Nas suas palavras:
Ao permitir a poligamia aos seus mais eficazes fornecedores de alimento,
o grupo, hipotecando de alguma forma o futuro, lhes fornece
implicitamente a qualidade de líderes possíveis. É preciso, no entanto,
assinalar que esta poligamia, longe de ser igualitária, favorece sempre o
chefe efetivo do grupo (Idem:53).
Assim, para Pierre Clastres é impossível pensar em termos de reciprocidade nas
trocas entre chefia e sociedade, pois atesta não existir um circuito de trocas que
envolva os três elementos – mulheres, palavras e bens. Ser generoso é uma
obrigação do chefe; a fala é uma qualidade intrínseca e necessária à função (dever); e
as mulheres que recebe são o seu direito, considerando que a chefia geralmente é
72
passada patrilinearmente,
nunca restituída em termos equivalentes para a
sociedade. Dessa maneira, “a reinserção das filhas (do chefe) no ciclo de trocas
matrimoniais não compensa a poligamia do pai” (Clastres, 2003:56). Seria então mais
exato falar em doação de mulheres da sociedade para o chefe, da mesma forma em
bens e palavras do chefe para a sociedade, do que em troca, relação que caracteriza
o chefe como um servidor da sociedade, estando, em função dessa relação, sob o seu
controle. Nas suas palavras:
A cultura afirma a prevalência daquilo que a alicerça – a troca –
precisamente vendo no poder a negação desse fundamento, mas é
preciso, além disso, assinalar que essas culturas, ao privarem os
“signos” do seu valor de troca na região do poder, retiram das mulheres,
dos bens e das palavras justamente a sua função de signos a serem
trocados; e é então como puros valores que esses elementos são
aprendidos, pois a comunicação deixa de ser seu horizonte (2003:63).
Desta forma, há menos signos que comunicam alguma coisa do que valores
simplesmente, que não têm a reciprocidade em seu horizonte. Isto fica claro no
aspecto do dever através do qual o chefe indígena tem de doar palavras à sociedade e
que “são ditas para não serem ouvidas”. Portanto, se nas sociedades com Estado,
evidencia-se uma relação intrínseca entre a palavra, o Estado e o uso legítimo da
força, ou seja, palavra e poder, nas sociedades sem Estado, mesmo sendo a palavra o
espaço de excelência para a atuação política do chefe como mediador de conflitos e
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expositor da voz da coletividade e da sua cosmovisão, esta não está relacionada com
a força física. A fala é ritualizada e com ela celebram-se as normas de vida tradicional.
Mas é uma fala vazia de valor coercitivo, de autoridade, fala que não impõe,
simplesmente retoma as “boas formas viver”, isto é, expõe sobre como vivem e
sempre viveram – sobre o que é evidente. Configura-se como um discurso feito para
não ser ouvido: quando o chefe fala, as pessoas, embora reunidas próximas a ele,
falam e fazem outras coisas, e só se voltam em sua direção quando percebem que ele
está tentando impor sua vontade individual ou demonstrando um desejo de poder que
não condiz com as normas tradicionais de se conceber a política. Então, o “chefe que
quer bancar o chefe, é abandonado” (:172).
Essas sociedades mantêm o poder e a chefia separados através do uso da palavra: “O
dever de palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que ele deve à tribo,
é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra se torne um
homem de poder” (:172). Portanto, ela não comunica e sim retoma o que as pessoas
já sabem, porque vivem o que a fala transmite – o óbvio – sendo motivo de
estranhamento somente quando se desloca desse seu lugar de atuação, segundo o
ideal de sociabilidade ameríndio das TBAS.
A obra de Pierre Clastres destaca-se, segundo Bento Prado Júnior, referindo-se
especificamente ao ensaio “A Filosofia da Chefia Indígena” (Clastres, 2003), pela
forma como coloca “em xeque a transparência da troca e da comunicação como regra
de constituição da sociedade” (2004:09), estabelecendo um impasse no que se refere
à regra de reciprocidade. Aqui se denota uma relação de troca desigual, sendo que
aquilo que se recebe não se retribui nos mesmos termos, numa estratégia para manter
a sociedade igualitária. Aquele que teve a oportunidade de adquirir mais ou de
acumular qualquer tipo de bem ou valor, sendo um candidato privilegiado à chefia,
acaba por ter que redistribuir o que acumulou (Cf. Lanna, 2002, para a concepção do
chefe indígena como redistribuidor).
A crítica de Pierre Clastres demarca, portanto, um paradoxo em relação à teoria da
troca, na medida em que compreende a inexistência da reciprocidade no direito de
poligamia do chefe e na obrigação de doação de palavras e bens do chefe para a
sociedade. Porém esta análise pode tomar outro rumo se retomarmos Marcel Mauss
com a sua visão da troca/dádiva como um “fato social total”, assim como do
estabelecimento de alianças e de laços sociais através da dádiva (Cf. Caillé, 2002),
contemplando a possibilidade de a mensagem ser aí a afirmação do controle da chefia
pela
sociedade
e
da
submissão
da
primeira
à
segunda,
ocasionando
estabelecimento de uma relação hierárquica da sociedade sobre a chefia.
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Diante deste panorama, buscaremos recuperar, em termos gerais, a teoria da
troca/reciprocidade de Lévi-Strauss, para confrontá-la e problematizá-la a partir dos
pontos levantados por Pierre Clastres. Num segundo momento, tomaremos alguns
aspectos da análise da troca/dádiva de Marcel Mauss, pretendendo analisar as
relações entre chefia e sociedade nas TBAS a partir deste viés, por defender que a
abrangência de seu referencial analítico traz a possibilidade mais ampla, pois é mais
atenta ao contexto etnográfico, de compreensão das relações na esfera da política
dessas sociedades.
A intenção não é, porém, contestar a teoria da troca de Lévi-Strauss, mas apenas
compreendê-la e arriscar afirmar que, embora os temas tratados por Lévi-Strauss e
Clastres sejam muito próximos (parentesco, mitologia, organização social), os níveis
de análise são diferentes. O primeiro está particularmente preocupado com a lógica de
funcionamento da mente humana e com a estrutura e as regras relativas à troca como
um fenômeno da estrutura geral da reciprocidade (Lévi-Strauss, 1997:182) através de
suas diversas manifestações culturais. Já o segundo, mesmo que mantendo um
constante diálogo com seu professor, está nos colocando em contato com contextos
etnográficos específicos e particulares, atendo-se a eles ao mesmo tempo em que
propõe a ampliação do conceito de política a partir do estudo de casos específicos.
Vejamos: Lévi-Strauss defende que a sociedade é fundada em três níveis de
comunicação ou troca: a comunicação de mulheres entre os grupos, regulamentada
pelas regras de parentesco; a comunicação de bens e serviços, regulamentada pelas
regras econômicas; e a comunicação de mensagens, na qual teríamos as regras
lingüísticas (Dosse, 1993:35). Ele afirma que a análise dos fatos sociais não pode
prescindir da atenção à troca e do que esta comunica, assim como da questão das
relações entre os termos dentro de um sistema (e daí a contextualização, pois o
sentido é aprendido nessas relações) e da preeminência do inconsciente como lugar
de onde as regras sociais vem a cena, no sentido de que organiza de forma estrutural
(por exemplo, segundo os princípios de economia e de reciprocidade), os conteúdos
de cada experiência social.
No que se refere à estrutura da troca, ele aponta que muitas das relações nas quais
ela aparece são ou estão inconscientes, tanto na forma como no conteúdo (estímulos
à troca, assim como suas formas de atualização). Concorda neste sentido com Marcel
Mauss, que as obrigações de dar, receber e retribuir estão encobertas pela aparência
de voluntarismo (ou seja, a obrigação pode estar inconsciente), mas na verdade é esta
obrigação que garante a sistematicidade das relações sociais. Porém, enfatiza e
detém-se no aspecto das regras de reciprocidade, afirmando que a lógica, ou
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estrutura, da troca, é o fundamento de todas as relações sociais. Isto posto já na
proibição do incesto, passagem da natureza para a cultura que, como primeira regra
negativa e encontrada universalmente, faz com que os homens se obriguem a
elaborar esquemas de troca de suas mulheres, doando filhas e irmãs, mediante a
garantia de que receberão esposas e noras.
Ocupa-se, assim, tanto nas Estruturas Elementares do Parentesco (1982) como na
Introdução à Obra de Marcel Mauss (1950), do caráter de sistematicidade e de regras
que envolvem as trocas – o que distinguiria seu aspecto analítico, e que falta, segundo
sua leitura, na análise maussiana. Enfatiza, dessa maneira, o aspecto inconsciente da
reciprocidade (sua obrigatoriedade), através do qual temos a organização de todas as
relações sociais, ou seja, declara que a estrutura da troca segue operações lógicas
que garantem a sistematicidade das relações sociais. Nas palavras de Merleau-Ponty
sobre a estrutura tal qual pensada por Lévi-Strauss:
Os sujeitos que vivem em sociedade não têm necessariamente
conhecimento do princípio da troca, assim como o sujeito falante não
precisa, para falar, passar pela análise lingüística de sua língua. A
estrutura é, antes, praticada por eles como óbvia. Por assim dizer, ela os
“tem mais do que eles a ‘têm’” (Merleau-Ponty, 1968:196).
Parece possível afirmar (ver Caillé, 2002 e Godbout, 1992) que a crítica feita a Lévi73
Strauss de “simplificar” a análise de Marcel Mauss
deve-se ao fato de que ao
enfatizar o caráter de reciprocidade e ver a troca como um fenômeno geral da
estrutura
da
reciprocidade
(1982:182),
Lévi-Strauss
acaba
por
perder
as
especificidades dos três momentos envolvidos na troca/dádiva relativos aos seus
contextos socioculturais. Portanto, justamente o aspecto criticado por Lévi-Strauss na
análise maussiana, o de apresentar uma abordagem fenomenológica que prioriza a
teoria nativa em detrimento de uma abordagem analítica, ou de confundir estes dois
níveis, é onde se localiza a riqueza da abordagem de Marcel Mauss. Este autor, além
de separar os três momentos relativos à troca (dar, receber e retribuir), tem no caso do
hau (espírito da coisa) e da traditio romana abordagens que consideram a história e
explicam o elo que une homens e coisas, fazendo-as circular. Considera, assim, as
especificidades das relações que caracterizam essas relações, como Dom/Dádiva,
troca, empréstimo ou comércio, levando em conta que tais relações objetivam,
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sobretudo, a instituição de vínculos entre as pessoas. Desta maneira, estabelece a
possibilidade de pensar as relações sociais como criação de alianças (políticas,
religiosas, de parentesco ou econômicas. Cf. Lanna, 2000), ou de guerra que,
concebida como o contrário da aliança, não deixa de ser pensada como troca, no
caso, de rivalidades, tendo a vingança que a anima como uma outra face da
reciprocidade.
Contudo, a elaboração de Marcel Mauss da troca/dádiva como um “fato social total”,
ou seja, que movimenta a totalidade da vida social (aspectos econômicos, jurídicos,
religiosos, morfológicos e estéticos) nos dá elementos para que a unilateralidade ou
unidirecionalidade constatada por Pierre Clastres nas trocas entre a instituição da
chefia e da sociedade possa esclarecer-se. Para Mauss, esta instituição envolve não
só a troca de presentes, a aquisição de bens através de relações de compra e venda,
da troca de mulheres por meio das relações de parentesco e da troca de palavras,
mas também a troca de gentilezas, de generosidades, de festividades. Abarca até
mesmo as rivalidades ou, ainda, os
sentimentos de caridade que motivariam as
doações aos pobres (a esmola), que podem ser vistas como a tentativa do
estabelecimento de uma relação de troca com os Deuses (gratidão, penitência), tanto
quanto as relações sacrificiais de forma geral. Estas não são, portanto, relações que
têm o objetivo apenas de obtenção de bens ou de bons casamentos, mas também
buscam o aumento do prestígio, da influência, da cordialidade, ou mesmo do
estabelecimento de limites entre as relações, de diferenciações e de distinções.
Considerando-se assim, segundo Marcel Mauss, as três obrigações que dão caráter
de sistematicidade à troca/dádiva, não nos parece que o fato de o chefe receber mais
mulheres do que pode doar descaracterize a troca em si, na medida em que ele se
sobressai como doador de palavras e de bens, o que lhe confere influência perante o
grupo. Desta forma esta desigualdade se resolve dentro do próprio sistema de trocas
entre a chefia e a sociedade. Além disso, o chefe indígena possui um estatuto
diferenciado, baseado no prestígio por meio do qual é legitimado, ou seja, legitima sua
posição privilegiada na mediação de conflitos e na transmissão da tradição. Segundo
Pierre Clastres:
A mesma operação que instaura a esfera política proíbe o seu
deslocamento: é assim que a cultura utiliza contra o poder a própria
astúcia da natureza; é por isso que se nomeia chefe o homem no qual se
quebram a troca das mulheres, das palavras e dos bens (2003:61-62).
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Vemos então o artifício dessas sociedades para se manterem igualitárias, pois aqueles
que se destacam e têm alguma possibilidade de acúmulo tornam-se chefes e têm que
redistribuir à sociedade seus bens, tendo com isto o direito de possuírem mais de uma
mulher. O direito à poligamia, por outro lado, garante o controle da sociedade sobre
seu chefe, pois dando mais a sociedade mantém-se como pólo superior. Sem
esquecer que a poligamia aumenta a influência direta do chefe, dado que garante sua
inserção em um número maior de famílias através das alianças matrimoniais.
Reafirma-se desta forma que mesmo as relações de dom envolvem assimetria e
hierarquias, como colocado por Marcel Mauss e enfatizado por Pierre Bourdieu (1996).
Assim, o ato de dar cria diferenças ao mesmo tempo em que une sujeitos, ou seja,
produzindo assimetrias com vistas a superá-las. Nas palavras de Márnio TeixeiraPinto, quando afirma que a noção de “sistema” e de “totalidade” está subjacente ao
Ensaio Sobre a Dádiva de Marcel Mauss:
(...) o ato em si de oferecer coisas é ontologicamente determinante na
constituição de uma espécie de “Cogito Coletivo” que a troca expressaria
(Lefort, 1967). A troca, neste sentido, é instituinte de uma primeira
diferenciação: o Dom existe como algo para ser dado a um Outro, isto é,
como algo para Outro. Em outras palavras, o ato potencial da troca
inaugura ou consolida a diferença ontológica entre “Eu” e o “Outro”. Mas
o princípio da Dádiva vai mais além. Pela necessidade de ser retribuído,
o Dom articula um sistema (se um dá e o outro retribui, estão ambos
numa mesma relação): a troca (Teixeira-Pinto, 1992:164).
Quem dá firma-se na relação como dominante, e quem recebe, como dominado, por
ficar em dívida, vinculado à relação pela coisa recebida, até que a retribuição se
concretize, ou então que se aceite o pólo dominante como, por exemplo, o Estado ou
o Sagrado. Assim, nas sociedades das TBAS, conforme Pierre Clastres, existe uma
gradação de superioridade da sociedade sobre o chefe (quando empenha suas
mulheres).
Evidencia-se então a engenhosidade desse tipo de sociedade que, mesmo
considerando o chefe como detentor de prestígio, controla seu poder para que ele não
se torne autônomo, empenhando grande parte de seus valores, suas mulheres os
quais, não podendo ser retribuídos, fazem com que o chefe esteja permanentemente
em dívida com ela. Portanto, a função do chefe é antes caracterizada como a de um
servidor da sociedade, o que o aproxima da definição da “boa política”, guiado pelo
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sentido estrito de igualdade e de democracia que não contempla a separação entre
moral e política, entre governantes e governados, ou entre dominantes e dominados.
Estas seriam as características da chefia indígena enquanto um “lugar” da negação da
autoridade e do poder – atributos exclusivos da sociedade. Os bens trocados, embora
de forma unilateral e assimétrica, servem para fundamentar os vínculos entre a
sociedade e a chefia como uma instância “especial” desta mesma sociedade. Vê-se
assim uma relação clara entre a troca/dádiva com o estabelecimento de alianças, isto
é, “coisas” trocadas que servem antes ao vínculo (conforme se concebe como ele
deva ser) do que à finalidade da troca em si mesma. Assim, importa menos o chefe
não poder retribuir as mulheres que recebe do que o controle da sociedade sobre sua
atuação. Este é o tipo de vínculo que se quer manter.
Quando Pierre Clastres afirma a não-equivalência na troca de mulheres entre a chefia
e a sociedade não entra, em momento algum, na discussão sobre as regras e a
estrutura de parentesco, muito menos em um modelo que dê conta dessas
regulamentações. Mesmo quando debate a exogamia, focaliza a discussão no caráter
e na conceituação das unidades sociopolíticas ameríndias, ao invés de em um modelo
mais abrangente de parentesco, como faz Lévi-Strauss. Afirma que tais unidades
sociopolíticas constituem-se como demos exogamicos formados por várias famílias
extensas, cada qual ocupando uma casa grande. As famílias extensas, com
descendência bilateral e exogâmica, teriam uma tendência a se transformarem em
linhagens – refere-se aos grupos Tupi-Guarani e Tupinambá – em função da
residência unilocal. Dessa forma, atesta que quando a regra de residência é patrilocal
os parentes matrilineares, por ficarem cada vez mais distanciados, passam a ser
considerados menos do que os ascendentes que moram juntos, que são os do lado do
pai. Clastres constata como se constitui a tendência à patrilinearidade nessas
sociedades, aspecto fundamental para a passagem da chefia política, e antevê a
importância da residência na consideração do parentesco, que estudos etnológicos
contemporâneos nas sociedades das TBAS têm demonstrado.
Vemos então que a discussão de Pierre Clastres é sobretudo sobre a dinâmica e a
estática dos sistemas socioculturais relativas aos seus aspectos sociopolíticos, ou
seja, como estes se transformam, mesmo que seja para continuar com o mesmo corpo
conceitual, o que nos faz arriscar a afirmativa de que se trata da estática do sistema
de crenças e da dinâmica social. Para ele, a exogamia nessas sociedades “é o meio
da aliança política” (2003:82) e que pelo fato de cada família extensa ter o seu líder
próprio existe a garantia da permanência da descentralização da política, mantida pela
ação de forças centrífugas que têm como contraponto a ação de um chefe geral, o qual
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atua segundo forças centrípetas (Cf. Lima e Goldman, 2003:17-8). Clastres não se
preocupa com regras e modelos de parentesco como o faz Lévi-Strauss e, neste
sentido, diferencia-se deste mais do que o refuta.
Notamos assim uma diferença na consideração das transformações feita por estes
dois autores. Segundo a tese de Pierre Clastres, os Tupi-Guarani empreenderam uma
mudança de suas formas sociais quando deixaram de ser sedentários e passaram a
ser nômades, abandonando os antigos hábitos e explicitando a liberação das regras
relativas aos casamentos com o objetivo de não mudarem sua configuração ideológica
ou conceitual, ou seja, aquela que prevê que a organização social deve ser baseada
nos fundamentos cosmológicos de um poder não-coercitivo. Assim, deixaram de lado
suas regras sociais quando estas ensaiaram se particularizar, por desconfiarem e
temerem a especialização da esfera política, isto é, que o aumento demográfico viesse
a exigir a centralização política e seu desenvolvimento na forma de um poder
representativo e com capacidade de decisão autônoma e separada da sociedade.
Esta visão de uma mudança social, visando à permanência da primazia da
organização social baseada nos fundamentos religiosos e políticos não-coercitivos que
levaram às mudanças espaciais, parece opor-se simetricamente às transformações ou
aos grupos de transformações que se deram nos mitos sul-americanos, dos quais nos
fala Lévi-Strauss (1958, 1962, 1964). Sabemos que este autor trata de alterações da
ordem conceitual e mitológica, ou seja, inquirindo como os mitos se transformam para
continuarem a dizer coisas idênticas em contextos diferentes, enquanto que para os
Tupi-Guarani de Pierre Clastres a questão que se coloca é como a sociedade se
transforma (inclusive através de deslocamentos espaciais) para continuar com os
mesmos mitos.
Entretanto, a crítica feita por Pierre Clastres à teoria da troca levistrossiana refere-se
estritamente à análise da troca de mulheres como uma estrutura geral e abstrata, pois
afirma a inexistência de reciprocidade na relação entre o chefe ameríndio e a
sociedade, no caso, o fato de o chefe ameríndio receber mais mulheres (direito à
poligamia) do que possa retribuir. Arrisquei afirmar que em vez da inexistência da
reciprocidade entre a instituição da chefia e da sociedade haveria uma relação de
troca/dádiva que, mesmo os termos trocados sendo desiguais, garantiria, pelo estatuto
da relação, o controle da sociedade sobre a atuação do seu chefe. Considerando-se
que a sociedade doa a seu chefe parte de seus bens mais valiosos – as suas
mulheres – isto faz com que ele permaneça em constante dívida em relação a ela,
quer dizer, mesmo que os termos não sejam recíprocos, parece ser o sentimento de
reciprocidade que estabelece os termos (sua valoração) na relação em questão. Este
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estatuto é colocado por Mauss (1950) quando analisa a dívida, isto é, o sentir-se em
dívida até que a retribuição se realize, se esta for possível ou desejada.
4. O PARADIGMA DO DOM: APROFUNDAMENTOS DA ANÁLISE MAUSSIANA
SOBRE A TROCA
O também autor francês Alain Caillé, no livro Antropologia do Dom. O Terceiro
Paradigma (2002), propõe, como alternativa aos modelos holistas e ao individualismo
metodológico, o paradigma do dom, da política ou do simbolismo. Contrastando com
os modelos holistas que pensam as relações sociais a partir da ação e da coerção da
sociedade sobre o indivíduo, e com o modelo do individualismo metodológico que, no
extremo oposto, vê o indivíduo – guiado por seus desejos egoístas e por cálculos
racionalistas – como agente das ações sociais, este terceiro paradigma pensa as
relações sociais de uma forma horizontal. Portanto, o paradigma do dom reflete sobre
as motivações dessas relações, ou seja, “a partir do seu meio, horizontalmente, em
função do conjunto das inter-relações que ligam os indivíduos e os transformam em
atores propriamente sociais” (:19). Preocupa-se, desta forma, com as inter-relações
entre os indivíduos, e entre os indivíduos e as instituições, que se caracterizam por
oscilarem
entre
um
duplo
par
de
opostos:
liberdade/obrigatoriedade
e
interesse/generosidade (:42).
Afirma que apenas este terceiro paradigma considera a existência do homem em toda
a sua amplitude e possibilidade de estabelecer relações, conforme desenvolvido por
Marcel Mauss. Dessa maneira, temos que o primeiro paradigma (o holismo) reduz os
indivíduos a atores de roteiros dados em função de seus papéis sociais, quer dizer, às
obrigações e aos direitos prescritos pela sociedade, não considerando esse indivíduo
capaz da ação ou da decisão de dar, cabendo-lhe apenas desempenhar o seu papel
social. Da mesma forma, para o individualismo metodológico, que explica toda a ação
social através do cálculo racional que objetiva uma maior obtenção de lucro, o
indivíduo não seria capaz do desprendimento necessário ao ato de dar algo ao outro
e, assim, estabelecer relações que não objetivassem seu ganho pessoal (lucro). Em
contrapartida, Alain Caillé desenvolve, a partir deste terceiro paradigma, a análise do
Dom em diversos contextos sociais. Nas suas palavras:
O paradigma do Dom não pretende analisar como se gera o vínculo
social nem a partir da base – a partir dos indivíduos sempre separados –
nem a partir do alto – a partir de uma totalidade social sempre já aí
presente – mas de algum modo a partir do seu meio, horizontalmente,
em função do conjunto das inter-relações que ligam os indivíduos e os
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transformam em atores propriamente sociais. (...) [Este é] o Dom que as
sela, simboliza-as, garante-as e dá-lhes vida. Quer se trate de um Dom
inicial ou de um Dom refeito tantas vezes que nem mesmo pareça mais
um Dom, é dando que o indivíduo se declara concretamente disposto a
tomar parte no jogo da associação e da aliança e que solicita a
participação dos outros nesse mesmo jogo (Caillé, 2002:19).
Tendo por base este paradigma, ele afirma que no interior das relações familiares
existe o Dom-partilha, que se expande para as relações não-familiares quando as
sociedades são pacíficas. Já nas sociedades nas quais prevalecem a rivalidade e a
disputa, a prática é a do dom agonístico. Portanto, quando as relações se direcionam
para fora do âmbito familiar, em direção ao âmbito público ou político, o dom tende a
ser agonístico, marcando a presença da disputa por maior poder, influência e
prestígio.
A retomada e o aprofundamento do Dom como possibilidade de análise das relações
sociais em seus aspectos fenomenológicos e específicos é bastante interessante para
o estudo do poder político nas sociedades indígenas das TBAS, principalmente no que
se refere à relação que se estabelece entre dom, simbolismo e política, considerandose principalmente que a partir do dom certas relações sociais são firmadas, e que os
indivíduos se mantêm ligados pelo que é dado ou trocado (Cf. também Godbout,
1992:186-7). Assim, relações estabelecidas através do Dom configuram-se também
como relações políticas, ou seja, relações de aliança que têm como parâmetro valores
e intenções que transcendem os sujeitos que trocam, na medida em que envolvem
grupos, linhagens e, em termos genéricos, que tem a intenção de promover o bem
comum ou público. (Bobbio, 1995:954-5).
Assim, na medida em que o símbolo é concebido como aquilo que une significados,
que une um significante a um significado, ou ainda que representa o que está ausente,
todo Dom pode ser considerado como um símbolo, no sentido de que os objetos que
são doados, presenteados ou trocados têm o seu valor relacionado à história pessoal
de quem os fez ou a quem pertenceram (a traditio romana ou mesmo a noção de hau
de que trata M. Mauss), assim como à intencionalidade de significarem algo. Portanto,
da mesma forma que o símbolo, o dom une pessoas, histórias e significados – ou seja,
tradições – fazendo com que a “coisa” trocada ou dada (sejam palavras, gentilezas,
rivalidades, mulheres ou bens materiais, mas sempre significados, sempre símbolos)
organize, ou melhor, estruture o vínculo social entre as pessoas. Dessa maneira, tanto
o símbolo como o dom fundam relações. Dito de outra forma, sem a troca – mesmo
que sob a aparência de unilateralidade ou unidirecionalidade – não há relação social.
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A partir desta ótica é possível reafirmar a possibilidade de uma mensagem específica
contida no direito à poligamia dos chefes das sociedades das TBAS, que é mantê-lo
em dívida, fazendo com que permaneça sob o controle da sociedade, fato que legitima
que ela o afaste se o seu desejo de poder conduzi-lo a distanciar-se da forma como
concebem o fazer política.
Desta maneira, os indígenas das TBAS estabelecem relações com sua chefia para
que ela permaneça da forma como foi ou é idealizada, representando o modelo da
política não-coercitiva e da sociedade igualitária. Isto não significa que não existam
relações hierárquicas nas sociedades das TBAS. Ao contrário, elas estão presentes
nas relações de parentesco e naquelas que são estabelecidas pela troca/dádiva (como
foi demonstrado) e também no que diz respeito à primazia da esfera da religião
(sociedade) sobre a esfera política, que sustenta a superioridade da primeira sobre a
segunda.
Essas relações diferenciam-se da ideologia individualista racionalista e utilitária
ocidental, representada em últimos termos pelas relações comerciais e monetárias,
nas quais o vínculo social entre as partes contratantes serve à circulação e à obtenção
de lucros e em que a finalidade seria a “coisa” adquirida através de relações de
compra e venda, e seu acúmulo pensado como satisfação última do ser humano
(Caillé, 2002:142). As sociedades indígenas, conforme descritas por Pierre Clastres,
são contempladas, ao contrário, pela conceitualização de “economia do dom”, na qual
as relações sociais são regidas mais por valores simbólicos, como prestígio e
influência, e menos por trocas com o objetivo de acúmulo e pelo cálculo racional de
obtenção de lucro, o que caracteriza as economias do “toma-lá-dá-cá” (Boudieu,
1996).
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CONFERÊNCIA DE ABERTURA da VII Jornada dos Alunos do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Mirian Goldenberg74
Semana passada, em uma noite de insônia, fiquei pensando no que iria falar hoje para
vocês. Anna Paula Vencatto, em nome da comissão de organização da Jornada,
convidou-me dizendo que era para falar algo sobre pesquisa, pois supostamente sou
alguém que entende do tema, já que escrevi o livro “A Arte de Pesquisar”.
Primeiramente, pensei em levantar algumas questões para discutir com vocês, como:
1. A dificuldade de escolher um tema de pesquisa, pois muitos alunos não têm
um problema, uma questão ou um objetivo;
2. A escolha da metodologia, a partir do fato de que muita gente chega sem tema
e diz “o que eu quero é fazer pesquisa de campo, observação participante”,
sem nem mesmo saber sobre o que pretende pesquisar;
3. A teoria e os dados da pesquisa, já que muitas vezes a tese é um pacote de
citações de “teóricos” em que os dados aparecem apenas para ilustrar o que
eles já disseram;
4. Como fazer uma entrevista, pois muitos têm dificuldade para ouvir e colocam
na fala dos informantes, por meio das perguntas, o que já sabiam ou o que
queriam ouvir.
Abrindo parênteses: lembro de uma experiência de campo em São João Nepomuceno
em que Roberto DaMatta convidou uns oito alunos para fazerem uma pesquisa sobre
a amizade. Eu e outra aluna saíamos todos os dias cedinho para entrevistar as
pessoas da cidade, e os outros dormiam até tarde; depois, encontravam-se em um
barzinho e ficavam tomando cerveja e conversando com os freqüentadores. Naquele
momento, achei aquilo um absurdo. Hoje, reconheço que eles também fizeram uma
pesquisa excelente, bastante criativa (e com certeza mais prazerosa), porque
conversaram muito com os moradores da região e de um jeito bem mais descontraído
do que nós duas;
5. Pensei em contar algumas das minhas inúmeras experiências de campo que
me ensinaram coisas que não se aprendem nos livros, como os dilemas que
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vivi quando Rubem César me disse que eu deveria participar do ritual e tomar
o chá de ayuasca para escrever um trabalho de fim de curso sobre o Santo
Daime (e não apenas entrevistar seus adeptos, como eu estava planejando);
6. Por fim, pensei em discutir com vocês uma idéia de Roland Barthes de que
gosto muito e coloquei como epígrafe de “A arte de Pesquisar”. Ele diz que:
Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida
outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.
Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender,
de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento
impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que
atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora
de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo na própria
encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de
saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.
Depois de pensar nesses vários caminhos, lembrei-me, no meio da noite insone, de
uma frase que sempre digo para os meus alunos, frase que me acompanha e me
consola nas minhas dificuldades com o mundo acadêmico.
Muitos anos atrás, quando fazia o doutorado, li a autobiografia de Norbert Elias que
ainda não tinha sido publicada no Brasil. Neste livro, Elias dizia algo do tipo: “Se eu,
quando estava escrevendo minha tese de doutorado, soubesse que todo mundo sofre
ou sofreu o que eu estava sofrendo, eu teria sofrido um pouco menos. Só que
ninguém me disse isso”.
Então, pensei em tentar falar algo para diminuir o sofrimento que, com certeza, vocês
estão sentindo ou irão sentir um dia.
Desde que ingressei no mundo acadêmico, só conheci duas pessoas que não
sofreram no processo de escrever uma tese. Para não citar essas duas pessoas, que
são aqui do Rio, preferi um exemplo um pouco mais distante.
Howard Becker ao contar que, ao contrário de seus amigos, não sofreu muito para
concluir seu mestrado aos 21 anos e seu Phd aos 23, diz:
Mesmo entrando para o Departamento de Sociologia, eu não tinha
sérias intenções de me tornar sociólogo. Eu tinha a séria intenção de
me tornar um pianista de jazz. Trabalhava três ou quatro noites por
semana em bares e estudava piano horas seguidas, todos os dias. A
universidade era uma atividade de lazer, uma espécie de hobby. E isso
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teve um resultado interessante, porque eu não tinha nenhuma
ansiedade em relação aos estudos. Se me saísse bem, ótimo, se não,
não tinha importância. Todos os meus amigos se preocupavam,
sofriam, e eu não. Lembro que uma vez encontrei no campus Joseph
Gusfield... Ele estava carregando uma pilha enorme de livros de
psicologia social e eu perguntei para que era aquilo. Ele me disse que
estava estudando para a prova, e eu me espantei, porque todos nós
sabíamos que Herbert Blumer, o examinador da matéria, perguntava
sempre as mesmas coisas. Bastava estudar um pouco que já dava
para fazer a prova. E então Gusfield me disse: “Mas se eu quero ser
um grande sociólogo, tenho que ler tudo isto. É importante”. Eu só
estava preocupado com o suficiente para passar de ano, nunca liguei
para provas, nunca me preocupei com tese. Para mim, aquilo era uma
brincadeira. E assim consegui a minha titulação. Acho que consegui
tão depressa por isso, porque minha ansiedade estava no piano...
Escrevi minha tese de mestrado sobre os músicos de jazz e foi muito
fácil. Tudo o que eu tinha que fazer era manter um diário de campo
sobre o que acontecia comigo. Quando chegava em casa, de manhã,
fazia minhas anotações (p.3). (...) Tornei-me então o Dr. Becker [depois
de escrever a tese de doutorado] e me perguntei: e agora? Nessa
época eu ainda estava tocando piano, e essa era a atividade mais
importante para mim. Mas em dado momento comecei a pensar:
“Afinal, estudei todo esse tempo, e talvez deva admitir que as pessoas
com quem trabalho nos lugares onde toco piano não são tão
simpáticas assim, são meio mafiosas, meio criminosas. Talvez seja
melhor seguir o caminho acadêmico” (p.17) (...) Comecei a lecionar
realmente em 1965, na Northwestern, e tive todos aqueles problemas
terríveis de um professor iniciante, de preparar aulas... Eu não sabia
ensinar. Sabia fazer pesquisa, mas não ensinar. Foi horrível, mas de
alguma maneira sobrevivi (p. 18).
Diferentemente de Becker, sou daquelas pessoas que sofreram e sofrem o tempo
todo: para fazer os trabalhos de fim de curso, para escrever a tese, para defender a
tese, para conseguir a bolsa de recém-doutor, para fazer o concurso para professora
do IFCS e, quando pensei que finalmente iria relaxar, começaram os sofrimentos
infinitos: pedir a bolsa do CNPq, renovar a bolsa do CNPq, escrever os artigos que
têm que ser publicados em revistas qualis A, escrever os livros e esperar que as
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pessoas leiam e gostem, orientar alunos e não saber o que a banca vai dizer na
defesa (e, tenham certeza, o orientador é quem se sente mais vulnerável às críticas da
banca), apresentar trabalhos na ANPOCS, na ABA, fazer palestras, dar aulas na
graduação e na pós etc. Sou avaliada diariamente:
d
pelos alunos, que querem sair das aulas com a sensação de que ganharam
algo que justifique o fato de estarem aqui e não na praia;
d
pelos orientandos, que sempre vão descobrir alguma responsabilidade do
orientador nas dificuldades que enfrentam para concluir a tese;
d
pelos colegas, que vão dizer se fui ou não interessante nas colocações em
algum seminário ou congresso;
d
por mim mesma, que tenho medo de não estar dizendo nada de original e
brilhante.
Todos têm seus próprios fantasmas que assombram principalmente na hora de dormir.
Eu tenho muitos. Agora vocês entenderam a razão de minha insônia.
O que mais invejo em um colega – e não são poucos os que têm esta qualidade – é a
capacidade de dormirem pelo menos seis horas antes de uma conferência ou palestra.
Aqueles que dormem oito horas são meus exemplos de saúde mental. E até hoje,
depois de quase 12 anos no IFCS, ainda olho com admiração para os professores que
têm uma boa noite de sono antes de uma aula. O pior é que a insônia não é apenas
antes do evento ou da aula. Depois, a cabeça não pára pensando no que falei, no que
não falei, em que não fui tão bem, no comentário do outro. Minhas idéias mais
interessantes só surgem depois que o debate acabou, provavelmente quando já estou
deitada e deveria dormir. Fico matutando: “Naquela hora, eu deveria ter respondido
assim.”; “Como não pensei em dizer assado? É tão óbvio!”. E continuo com o debate
na minha cabeça, só que agora sem interlocutores e público. Se somarem o antes e o
depois, vocês vão perceber que são raras as noites de sono tranqüilo.
Aí chega o sábado, meia-noite, em que supostamente todos estão se divertindo e
relaxando, e estou no computador escrevendo algum artigo ou resenha para uma
revista. Penso: “Será que sou a única maluca que está trabalhando no sábado, a esta
hora?”. Acabo de ter esse pensamento e recebo um e-mail da Yvonne enviando-me
um texto que está escrevendo. Respondo: “Yvonne, será que somos as únicas
malucas que estão trabalhando a esta hora, no sábado?”. Ela imediatamente me
responde com outro e-mail (pois está proibida de me ligar depois das 10 horas para
não me provocar ainda mais insônia): “Acabei de falar com o Peter, que também está
escrevendo não sei o que para não sei onde”. Resumindo, somos uma comunidade de
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malucos, provavelmente insones, que passam fins de semana, feriados e férias
trabalhando. Que não relaxamos nunca, que vamos ao cinema e choramos muito ao
ver Hotel Ruanda, como eu e Yvonne, mas saímos e discutimos o filme usando o
conceito de indigenização da modernidade de Marshal Sahlins. Só para vocês terem
idéia, a única novela que me permiti assistir foi Laços de Família, pois tinha a
justificativa de estar dando um curso sobre família na pós-graduação com a Bila.
Depois, publiquei dois artigos sobre a novela para provar para mim mesma que não
estava vagabundeando.
No meu caso, tudo pode ser fonte de reflexão para as minhas questões que, como
vocês sabem, são as relações de gênero na cultura brasileira. Muito freqüentemente,
após uma palestra que dou, uma pessoa do público vem me fazer alguma pergunta e
eu inverto totalmente a situação e começo a entrevistá-la. É um vício. A Anna Paula
Vencato já percebeu isso em nossos intervalos de café, no meio das aulas, quando
começo a fazer um verdadeiro interrogatório para os alunos do curso.
Aliás, Anthony Giddens também fala de seu interesse pelos alunos ao contar por que
nunca pensou em abandonar a vida acadêmica, apesar de sua dificuldade para ser
nomeado para uma cátedra de sociologia em Cambridge:
Deixaram de promover-me em nove ocasiões, um recorde que só
recentemente foi quebrado por alguém (p.41). Apesar de minhas
dificuldades em Cambridge, sempre me senti satisfeito na vida
acadêmica estando em contato regular com os estudantes.
Perguntaram ao célebre teórico social francês Michel Foucault,
pouco antes de sua morte, como ele definiria a si mesmo, e ele
respondeu simplesmente: “como um professor”. Também é assim
que me vejo. Lecionar, especialmente para um público estudantil
tão diverso, tem sido um dos grandes prazeres de minha vida
(pp.40-41).
Marshal Sahlins, ao relatar a experiência do teach-in, nos anos 60, como uma forma
inovadora de protesto contra a guerra do Vietnã, também destaca a importância do
papel dos alunos na vida acadêmica. Ele diz:
Os dois [professores e alunos] se estimularam mutuamente: assim
como o compromisso do corpo docente aumentou em resposta à
dedicação
dos
alunos,
as
fileiras
dos
estudantes
engajados
aumentaram pela curiosa descoberta de que seus professores eram
seres humanos, dispostos a direcionar suas paixões acadêmicas e seu
ƒ„…†‡ˆ ƒ‰ Š ‹%ŒŽ%‘+Œ’-Œ.‹0“”Ž•‘4–—6‘7’˜9”—:–—™™š=‰›œA…žC‰œˆ…Ÿ saber para alguma coisa que estava acontecendo no mundo. Os teachin foram uma genuína experiência intelectual talvez porque, pela
primeira vez,
tanto
professores
quanto
estudantes
estivessem
discutindo, a sério e com respeito pelas opiniões uns dos outros, algo
que ambos tinham profundo interesse em compreender (p.280).
Se os alunos são um “dos grandes prazeres” da vida acadêmica, existem, no entanto,
muitos sofrimentos.
Como diz Pierre Bourdieu, compreender a própria trajetória é compreender o campo
com o qual e contra o qual cada um se fez. Ele diz: “o mundo intelectual, que se
pensa tão profundamente liberto das conveniências, sempre me pareceu habitado por
conformismos profundos, os quais agiram sobre mim como forças repulsivas” (p.128).
Ao revelar o sentimento de ambivalência que sempre sentiu perante o mundo
intelectual, diz que:
[...] essa tensão nunca se revelou a mim de maneira tão dramática
como por ocasião da aula inaugural no Collège de France, ou seja, no
momento de assumir um papel que eu tinha dificuldade para englobar
na idéia que eu fazia de mim. A preparação dessa aula levar-me-ia a
sentir uma concentração de todas as minhas contradições: o
sentimento de ser perfeitamente indigno, de não ter nada a dizer que
mereça ser dito diante daquele tribunal. Na certa, o único veredicto que
reconheço duplica-se por um sentimento de culpa em relação a meu
pai, que acabara de morrer... Embora saiba que ele teria ficado por
demais orgulhoso e feliz, estabeleço um liame mágico entre sua morte
e êxito, assim constituído em transgressão-traição. Noites de insônia
(pp.130-131).
Nessa aula inaugural, Bourdieu criticou, questionou, desafiou a própria Instituição. Ele
conta: “Esboço um movimento de parada brusca e de ir embora... vou até o fim na
corda bamba. Depois sinto um terrível mal-estar, ligado ao sentimento da gafe mais
do que da transgressão”. [Depois que concluí a aula], “falo a torto e a direito, em meio
ao relaxamento que se segue a uma enorme tensão, com o sentimento de ter sempre
de pagar um preço muito elevado por tudo” (p.132). É o próprio Bourdieu sentindo-se
um “peixe fora d’água”.
Mas é Bourdieu também que considera importante repartir essas dificuldades do
mundo acadêmico para poder superá-las. Assim ele nos fala:
¡¢£¤¥¦ ¡§ ¨ ©%ª«¬­®%¯+ª°-ª®.©0±²¬³¯4´µ­6¯7°¶9²µ­:´µ··¸=§¹º»A£¼C§º¦£½¾
Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades. Cada um
achará uma certa consolação no fato de descobrir que grande número das
dificuldades imputadas em especial à sua falta de habilidade ou à sua
incompetência são universalmente compartilhadas. Quanto mais a gente
se expõe, mais possibilidades existem de se tirar proveito da discussão e,
estou certo, mais benevolentes serão as críticas ou os conselhos (a melhor
maneira de “liquidar” os erros – e os receios que muitas vezes os
ocasionam – seria podermos rir-nos deles, todos ao mesmo tempo) (pp.
18-19).
Assim, termino com a frase de Norbert Elias que me inspirou. Como vocês sabem,
Elias, durante décadas, foi um verdadeiro outsider no mundo acadêmico. Somente
aos 57 anos conseguiu sua primeira posição estável como professor de sociologia. “O
processo civilizador” foi publicado em alemão em 1939, mas só foi descoberto
tardiamente, na década de 70, na França e na Inglaterra. Em “Norbert Elias por ele
mesmo”, escreveu:
Sabia que era um bom professor – já tinha a reputação entre
meus companheiros de estudos de possuir o dom de explicar
coisas complicadas com simplicidade. Gostava de ensinar. No
que diz respeito à pesquisa, dispunha apenas de minha tese de
doutorado para provar minha capacidade. E ela representava um
trabalho
duro.
Tinha
confiança
em
minhas
capacidades
intelectuais, e idéias não me faltavam. Mas o imenso trabalho
intelectual que minha tese exigiu me parecera dificílimo. Só bem
mais tarde fui pouco a pouco compreendendo que noventa por
cento dos jovens encontram dificuldade ao redigir seu primeiro
trabalho importante de pesquisa; e, às vezes, acontece o mesmo
com o segundo, o terceiro ou o décimo, quando se consegue
chegar aí. Teria agradecido se alguém me dissesse isso na
época. Evidentemente pensamos: “Sou o único a ter tais
dificuldades para escrever uma tese (ou outra coisa); para todos
os outros, isso se dá mais facilmente”. Mas ninguém disse nada.
É por isso que digo isso aqui. Essas dificuldades são
absolutamente normais. Sabia que a sorte estava do meu lado. O
trabalho jamais foi totalmente fácil para mim, mas eu era
perseverante e nunca o abandonei (pp.102-103).
¿ÀÁÂÃÄ ¿Å Æ Ç%ÈÉÊËÌ%Í+ÈÎ-ÈÌ.Ç0ÏÐÊÑÍ4ÒÓË6Í7ÎÔ9ÐÓË:ÒÓÕÕÖ=Å×ØÙAÁÚCÅØÄÁÛÜ
Aproveito o convite que a comissão de organização da Jornada me fez para dar este
recado em alto e bom som. Para que mais tarde não possam dizer, como Norbert
Elias, que nunca ninguém disse esta verdade para vocês.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Alzira Alves; VELHO, Gilberto; ESTRADA, Maria Ignez Duque. Uma
entrevista com Howard S. Becker. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5,
1990, p. 114-136.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GIDDENS, Anthony & PIERSON, Christopher. Conversas com Anthony Giddens.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
SAHLINS, Marshal. Cultura na prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
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PALESTRA proferida por João de Pina Cabral nos Encontros com a Sociologia e
a Antropologia
Apresentação
Com o objetivo de ampliar as discussões entre os profissionais da Ciência Humana, a
Revista Enfoques traz uma novidade. Trata-se da reprodução de alguns textos
apresentados nos Encontros de Sociologia e Antropologia, organizados pelo Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ), cujo objetivo é
proporcionar aos professores e aos alunos uma integração com profissionais de
diversos países, além de contribuir para aprofundar questões de abrangência social e
cultural.
Neste número, a Revista Enfoques traz alguns trechos do debate ocorridos durante a
75
exposição do antropólogo João de Pina Cabral,
que esteve no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGAS) no dia 23 de agosto de 2005, na
sala Evaristo de Moraes. Com a palestra intitulada “A Catedral das Palhotas: religião e
política no Moçambique tardo-colonial” o autor buscou mostrar como a religião, a
política, a arquitetura, a arte, a identidade étnica integram-se:
“[...] Na verdade, o que se passa com a definição do que é religião passa-se com a
definição do que é política, do que é economia, do que é simbolismo, passa-se com
todas as grandes categorias analíticas da antropologia. Ora, como dar volta à questão
definidora do que é religião? A solução que eu prefiro constitui-se em recusar toda e
qualquer fixação sobre as fronteiras categoriais, aquilo que os ingleses chamam de
categorical boundaries. [...] Assim, a atitude que proponho a vocês aqui é que ao invés
de seguirmos o percurso sociocêntrico já tão familiar, que parte de um núcleo
conceitual central que se presume ser estruturante e claramente determinável em
direção às margens que se presume que são [...], seja o contrário: que assumamos
que temos que abordar a religião a partir das margens, a partir da sua intrínseca
marginalidade, quer dizer, vendo-a como uma área de sociabilidade que nunca atinge
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absoluta completude, nunca é plenamente estruturada e é sempre integralmente
perpassada pelo resto da vida sociocultural. Se pensássemos que nos iria ser possível
determinar de forma transculturalmente válida o que é de fato religião, então seríamos
levados a procurar delimitar suas fronteiras definidoras. Só que esta esperança há
muito se desfez, como aliás em todas as outras grandes áreas da antropologia
clássica. Não nos resta, pois, mais do que abordar a religião a partir do ponto de vista
da sua marginalidade, da sua mutuabilidade e relacionalidade. Ora, mal aceitemos um
enfoque sobre as margens da religião, mais rapidamente nos convenceremos de que
não há realmente uma perspectiva melhor para o estudo da religião do que esta” (João
Pina Cabral – IFCS/PPGSA/2005).
Filho de um bispo anglicano em Moçambique, desde cedo Pina Cabral interessou-se
pelas relações entre europeus e africanos. Nesta palestra, o autor traz como objeto de
análise Moçambique, onde o campo da religião tardo–colonial funcionava como uma
margem etnicamente partilhada para lidar com os dilemas levantados pela
modernidade. Recorrendo ao trabalho de Amâncio d'Alpoim Guedes, mais conhecido
por Pancho, “um dos mais brilhantes arquitetos que jamais me foi dado conhecer”, o
autor mostra de que forma as viagens de campo em Moçambique o colocaram diante
das investigações sobre relações, religiosidade, concepções familiares e perspectivas
políticas, etnicidade, como veremos no texto a seguir.
Revista Enfoques
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ
Palestra
“Apesar de o gesto político inicial ter constituído um pouco mais do que um exercício
de diplomacia internacional, no decorrer dos anos 60 as atitudes foram evoluindo num
sentido de maior abertura internacional, e consideráveis mudanças foram também
ocorrendo nas coalizões políticas internas em Moçambique durante o período da
Guerra Fria. Uma guerra de guerrilha anti-colonial pró-Soviética estava em curso nas
fronteiras ao norte e a nordeste de Moçambique. No entanto, o impacto dessa guerra
sobre as populações urbanas em rápido crescimento era muito tênue. Assistiu-se a um
dos períodos de maior crescimento econômico na África Austral, que trouxe consigo
uma relativa prosperidade e abriu às populações rurais um maior contato com as
sociedades de consumo. Durante os anos 60 e na primeira metade dos anos 70 – a
isto eu chamo de período tardo-colonial – ocorreu também um surto de construção
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civil, o maior que o pobre país jamais teve, e que se liga ao nosso tema de hoje: a
arquitetura colegial modernista. [...] O período tardo-colonial levou também a uma
gradual mudança de atitudes da população branca e do Estado para com as
populações indígenas. O sistema de Higinato, que retirava o direito de cidadania à
maioria das populações negras, foi abolido [...]”.
“[...] em Moçambique muitas pessoas de classe média branca já estudavam na África
do Sul e, portanto, tinham acesso a formas modernas e eram altamente influenciadas
pelo Ensino Superior, o que não estava disponível em Portugal. Continuávamos com o
nosso retrógrado sistema universitário. Isto provocou um impacto muito grande sobre
Moçambique no mundo da língua portuguesa. Essa elite, com uma forte ligação com o
sistema universitário sul-africano, correspondia a uma espécie de vanguarda e isto se
nota ainda hoje. Mas não é sobre isto que eu vou falar. A política salazarista de reduzir
um pouco a opção cultural e intelectual em Moçambique por relação aos restantes
espaços do império. Dentro da lógica o que se estampava neste detalhe tão distante
que seu espaço sobre os outros territórios estariam formalizado. Em Angola não era
assim em Portugal, Cabo Verde e São Tomé não era assim, em Moçambique era
permitido as pessoas que tinham um papel encontrar o regime que tinham estado no
exílio entrar e residirem em Moçambique. Por exemplo, o meu professor de história,
durante o ensino secundário, tinha sido secretário geral no partido comunista, foi
preso, fugiu, seguiu para a Bulgária e depois negociou com o regime a possibilidade
de voltar, mas só para Moçambique. Houve muitas pessoas assim e, portanto, este foi
um impacto muito grande em Moçambique.”
“O arquiteto Pancho Guedes [...], nascido em 1925 em Lisboa, passou a sua infância
em Moçambique, onde seu pai era médico e prestava serviço. Tendo estudado
arquitetura na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, voltou para Lourenço
Marques em 1949. Iniciou a sua vida profissional como desenhista no gabinete de
arquitetura da Câmara Municipal da cidade. O seu primeiro trabalho (quem conhece
Moçambique se surpreenderá, pois é um fato) constitui hoje um marco identitário
central da cidade. Foi encarregado de redesenhar a fortaleza da cidade a partir da
ruína dos alicerces que constituem os restos ainda existentes do que tinha sido por
vários séculos a única presença portuguesa no sul de Moçambique, o sempre precário
Presídio de Lourenço Marques.”
Nas palavras de uma historiadora da arte africana, quando o movimento modernista
assumiu o controle na África Austral, alguns arquitetos, em especial Nornam Eaton,
Barrie Biermann e Amâncio d'Alpoim Pancho Guedes, concentraram-se na exploração
das possibilidades de uma adaptação regionalista às condições específicas locais do
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Estilo Internacional emergente. Uma parte central dessa procura foi um forte
engajamento com formas artísticas e artesanais e uma curiosidade sobre a cultura
tradicional africana. Guedes, em especial epitomisa essa explícita integração da arte
com a arquitetura. Ele não só aplica a arte a partir de vários meios à sua arquitetura,
como mais significativamente trata o próprio edifício como uma escultura.’ [...] Pancho
Guedes foi sempre um pensador e artista profundamente polêmico e prolixo, que
nunca se associou ao regime ditatorial e colonialista português. Contudo, no período
de pós-independência, as suas posições resolutamente liberais e opostas ao
autoritarismo soviético levaram-no a ter de sair do país e a aceitar o posto de
professor e de chefe do departamento de arquitetura na Universidade do
Witwatersrand em que se aposentou no início da década de 1990, indo viver em
Sintra, perto de Lisboa onde tem hoje um papel ativo como arquiteto e professor de
arquitetura.
“Falaremos agora um pouco das igrejas protestantes. Alguns dos seus projetos mais
inovadores foram realizados para as igrejas missionárias protestantes. [...] Com os
missionários protestantes de origem não-portuguesa, Pancho Guedes partilhava de
uma profunda preocupação com a questão da educação africana – questão tão
polêmica no âmbito do coronelismo salazarista, cujas atitudes sempre foram no
sentido de impedir a formação de uma elite africana com raízes regionais. [...] Diz-se
que este foi um dos temas mais polêmicos no período da virada das décadas de 50 e
60 e nas dissensões políticas que então marcaram o regime. Quando Henrique Galvão
se vira contra o salazarismo dizendo que Salazar queria manter no obscurantismo as
populações africanas, este foi um ponto retórico central. Aliás, nos panfletos que
Henrique Galvão publicou aqui no Brasil, nos anos 50 e 60, o enfoque do
obscurantismo era muito importante. Falo isto porque realmente a questão da
educação africana acabou por se revelar um grande tema polêmico naquela época,
mais ainda para Pancho que se recusava a ver a arquitetura como algo separado tanto
da arte quanto da vida cotidiana, e sentia ser urgente construir uma linguagem cultural
e artística que permitisse, por um lado, reduzir o sentimento de alienação da
população africana em relação ao seu passado diante da modernidade e, de outro
lado, reduzir o sentimento de deslocamento e de estranhamento que a população de
origem européia tinha quanto à inserção africana. Para Pancho, na época, a noção de
que as populações brancas viessem um dia a deixar de constituir parte integrante da
sociedade africana era tão impensável quanto a noção de que o colonialismo racista
se prolongaria interminavelmente. Lembrem-se de que estávamos no auge do período
modernista e que essa gente tinha a idéia de que a história iria se cumprir – aquela
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coisa que o Brasil também tem – mas a história não se cumpriu, apesar de eles
estarem convencidos de que sim. Portanto, se por um lado acreditavam que o futuro ia
ser a independência, por outro lado também estava muito longe de pensar que poderia
haver uma diminuição das porções brancas. [...] Para Pancho, como para Henrique
Galvão, como ainda para os líderes exilados dos movimentos independentistas
africanos, o lusotropicalismo oficial não constituía mais do que uma fachada hipócrita
e, sobretudo, cega em relação ao futuro. Para um modernista como Pancho, a
inevitabilidade de uma forma qualquer de libertação nacional e cultural num futuro
próximo estava fora de questão [...].”
[...] “Assim, a injustiça racial e a hipocrisia cultural e política que rodeavam [Pancho]
deixavam-no profundamente preocupado. Já queriam produzir inevitavelmente uma
temível herança de revolta e violência. Pancho criticava ferrenhamente os arquitetos e
os urbanistas que desenhavam na época a cidade de Lourenço Marques , que sempre
foi a sua cidade, e que se preocupavam em produzir uma cidade formal esteticamente
perfeita, esquecendo a realidade viva da crescente população africana. Eram cegos ao
inevitável devir da cidade. Em julho de 1963, publicou nos jornais um texto em que
acusava os urbanistas de venderem os verdadeiros futuros mascarados em sonhos.
Quem hoje visitar Maputo não poderá deixar de ficar impressionado com a força
visionária desta apreciação. Na época, a missão presbiteriana suíça, formalmente
fundada por Henri Junod, e a Diocese Anglicana dos Libombos, eram as duas
principais dominações protestantes. O impacto da sua evangelização nas populações
do sul de Moçambique resultou essencialmente de uma longa história de migração
laboral masculina para as minas do Transval e das Rodésias Norte e Sul, em que
houve a ocupação territorial portuguesa na década de 1890. Isto é importante explicar,
porque a historiografia do movimento pós-independência também não compreendeu o
fato e hoje há uma revisão desse enfoque.
Nas áreas do país em que eram ativas essas denominações, havia uma influência em
número de crentes bem superior à da igreja católica romana oficial, cujo impacto na
época ainda estava fortemente ligado à colonização portuguesa. [...] Os hospitais e os
postos de saúde que essas missões montaram nas zonas rurais do sul do país eram
uma marca da sua independência diante do Estado. Contudo, o que mais incomodava
os oficiais do regime eram as atividades de educação e catequese que essas missões
empreendiam, quando freqüentemente eram usadas as línguas nativas [...] Para os
setores da direita do regime anti-colonial, tratava-se de uma forma descarada de
propaganda “anti-portuguesa”. O exemplo máximo dessa atitude é o estudo do
protestantismo africano publicado pelo antropólogo José Júlio Gonçalves, com o qual
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ele obteve o seu doutoramento na Universidade Complutense de Madrid. Ele foi
funcionário do Ministério da Defesa, esteve associado à polícia política e mais tarde foi
professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarina (assim
passou a chamar-se a Escola de Estudos Coloniais após as reformas de Adriano
Moreira).”
“[...] O período Caetanista nos primeiros anos da década de 70 foi marcado por uma
série de iniciativas idealistas com forte visão futurista e que acabaram por ser
largamente derrotadas. A criação de universidades na África foi um desses grandes
esforços, cujo impacto em Moçambique é ainda hoje crescente. Outro que muito nos
interessa aqui foi o esforço liderado pelo último Governador Geral colonial Baltazar
Ribeiro de Sousa, no sentido de realizar uma aproximação com os movimentos
religiosos tradicionalmente opostos ao colonialismo português: as comunidades
muçulmanas, as igrejas protestantes tradicionais, mas deixando fora o islamismo, e os
setores emergentes da Igreja Católica Romana que, nesta altura, estava se firmando.
O governador e o próprio Marcello Caetano revelaram-se incapazes, porém, de
controlar as atividades repressivas da polícia secreta do regime (PIDE), dos setores
mais exaltados das Forças Armadas assim como dos ideólogos do regime (ferozes
inimigos da dissensão religiosa tais como José Júlio Gonçalves).”
“Nas tentativas de liberalização, eu insisto em destacar José Júlio Gonçalves. Ele
escreveu dois volumes sobre o protestantismo alemão. Esses volumes têm sido
recuperados, por quê? Porque as pessoas procuram dados, informações sobre o
protestantismo na África e só vão encontrá-las no livro de José Júlio Gonçalves.”
“Para pessoas como Pancho Guedes e os líderes religiosos protestantes da época,
contudo, a falência das políticas caetanistas representa o fim do seu muito acarinhado
sonho protonacionalista de uma evolução gradual e negociada visando
à
independência política e à libertação das populações africanas do jugo colonial.”
“Falemos agora um pouco sobre a igreja anglicana. A catedral anglicana de Maciene é
um velho e amplo edifício com telhado em folhas de zinco, ao estilo das igrejas
missionárias rurais que foram construídas na segunda metade do século XIX por toda
a África. A data de sua fundação é hoje desconhecida e o local de sua construção, por
ter sido muito anterior à implementação da administração portuguesa na década de
1890, não se integra facilmente na organização territorial moderna. Assim, tal como a
missão presbiteriana de Rikatla, fundada por Junod na mesma região, a catedral
anglicana está situada numa zona rural profunda, relativamente distante da cidade de
Xai-xai, que é a cidade mais próxima e é a capital da moderna Província de Gaza.”
124357698:1; < =>?@ABC>D>B=EF@GCHIACDJ FIA!HI#KK%L&;M)N+OP3Q-;N843/RS
“Apesar de ser suíço por nacionalidade, Junod era contrário aos interesses coloniais
portugueses e escreveu bastante sobre isso. Ele foi um participante ativo na cena
política da época, sempre favorecendo os interesses militares. A tradição de ódio e
suspeita, por parte dos portugueses, direcionada aos missionários anglófonos, queria
prolongar-se em Moçambique bem para além da Independência e foi inicialmente
formulada pelos principais integrantes da Expedição Militar que controlou Gaza e
muito, particularmente, pelo próprio Mouzinho, e largamente disseminada através da
difícil diplomacia com Junod. Em 1967, porém, os bispos da Província Anglicana da
África Austral, sentindo que o tempo para missões lideradas por estrangeiros estava
por terminar e que um certo nível de autonomia local tinha de ser constituído em
Moçambique, em interseção com as autoridades portuguesas e não contra elas,
decidiram nomear para a Diocese dos Libombos um bispo de língua e nacionalidade
portuguesas. Defendiam que tal pessoa estaria em melhor posição que um britânico
para reduzir os temores quanto às atividades portuguesas e para organizar a Diocese
com um grau maior de autonomia, preparando um candidato moçambicano para o
bispado. Esta decisão, francamente apoiada pela nova geração de bispos anglicanos
de origem africana, viria a provocar um importante no estertor do apartheid. Penso que
tanto o Bispo Zulu, que é menos conhecido internacionalmente, mas que teve um
papel de liderança entre os bispos anglicanos, assim como o bispo Tutu, que depois
como arcebispo se tornou uma grande figura internacional, causaram grande
desconforto nos meios missionários britânicos, os quais até então tinham controlado
tais relações. Não vou entrar aqui em detalhes, mas este desconforto continua ainda
hoje. [...] Vocês vêem que há desencontros, há compatibilidades equívocas que vão
acontecendo. A história é feita disso. O bispo escolhido foi o meu pai, Daniel de Pina
Cabral; ele era pastor evangélico e advogado comercial, oriundo de uma família
protestante do norte de Portugal e foi entronizado em Lisboa em 1967, obtendo o
bispado em 1976 [...].”
“O que estou tentando sugerir é que a possibilidade da mudança para a capital, com o
realinhamento de uma catedral que estava numa zona rural, porque correspondia a
um realinhamento anterior à implantação do colonialismo, pondo-a em Maputo,
constituía um problema político para as elites que tinham encontrado ali uma espécie
de meio para manifestarem alguma preponderância dentro de um regime colonial. No
regime colonial, trata-se de uma questão parecida com aquela da aristocracia do
proletariado, em que um grupo subalterno tem dentro dele alguém que consegue
negociar formas de posicionamento. É sobre isto que eu estou falando. Mas a velha
catedral estava urgentemente necessitada de reparação. Durante uma conversa
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informal, o bispo teria dito ao arquiteto que precisava reconstruir a catedral, mas que
não tinha dinheiro para tal. O próprio Pancho Guedes descreve como apresentou ao
Bispo, algumas semanas mais tarde, um plano de construção de uma nova catedral
com materiais disponíveis no local e técnicas arquitetônicas tradicionais, o que
reduziria os custos a quase nada. Este foi o plano que a princípio apresentou. Ele
assim o descreve: “quando era preciso construir alguma coisa, mas faltava dinheiro,
eu costumava optar por um modo de construção tradicional moçambicano, mas da
forma como é construída a maioria das casas moçambicanas – e quase toda a gente
sabe construí-las. Por todos os lados encontram-se pau, cana, lama e palha. Estão
disponíveis de graça ou por quase nada. No entanto, esse tipo de sugestão só era
aceito como último recurso. Os negros preferiam sempre uma 'casa de branco', tinham
vergonha de suas palhoças maravilhosas (não sei se vocês usam aqui a palavra
palhoça, usam?), perfeitamente adaptadas e econômicas. E, assim, ele o descreve:
‘Para a igreja anglicana situada no interior do mato, em Maciene, e que necessitava de
um novo edifício e não tinha dinheiro, eu busquei as formas tradicionais de construção
do vernáculo moçambicano’.“A Catedral de Palhotas celebra os componentes
tradicionais do 'Kraal', a aldeia e o curral, que é característico do sudeste da África. O
sinal da cruz é repetido quatro vezes nos canais das águas da chuva, nas paredes,
nas palhotas e no cruzamento das trilhas do mato." É característico de Pancho fazer
com que sua arquitetura ecoe na paisagem, criando coisas nela em virtude da
presença da arquitetura. Então, ele fala das quatro cruzes, uma das quais não está no
plano de Albuquerque; o que acontece é que as pessoas vêem e fazem trilhas – era
esta a idéia dele. A palhota central seria construída pela comunidade, enquanto as
palhotas menores seriam construídas por cada uma das famílias como se fossem
bancos de igrejas. A parte interior do muro tinha assentos e havia enormes cajueiros
(esféricos e verde-escuros) em cada um dos quatro cantos. Segundo Pancho Guedes,
esta é a maquete, e o bispo teria rejeitado o modelo porque preferia um estilo de
construção não-vernacular. Foi isto o que ele disse quando lhe perguntei: ‘mas então
por que meu pai rejeitou o modelo?’ Ele respondeu: ‘porque não gostava; queria a
construção de cimento’. Fui então perguntar ao meu pai e ele me disse que não se
lembra de todo de ver esse modelo, mas que se lembra de uma coisa: que o Pancho
estava demorando muito para fazer os planos de uma outra igreja e com a qual ele
estava mais preocupado, pois era o Centro Diocesano de São Cipriano em
Chamanculo e que, portanto, ele não teria dado atenção por causa disso.”
“O plano de Pancho Guedes para a sua Catedral de Palhotas nunca foi erguido, no
entanto, iria ter uma longa vida como um projeto não-construído. A intensa atividade
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de Pancho Guedes como professor de arquitetura – através desta maquete e como
promotor da integração entre arte, arquitetura e idiomas tradicionais da África Austral –
fez com que, em meados dos anos 70, o seu projeto, apesar de nunca ter sido mais do
que uma maquete, fosse apresentado repetidamente em artigos e livros de numerosas
exposições arquitetônicas. Por tudo o que representa das correntes arquitetônicas da
época e pela forma como integra uma série de preocupações com a arquitetura em
relação com a arte, com a arquitetura como local identitário e como afirmação sobre o
mundo vivido, o projeto merece ganhar a atenção que lhe daremos a seguir. [...] Por
trás dos projetos que o arquiteto desenhou de igrejas feitas com material das palhotas
há
uma
análise
sociológica
e
um
posicionamento
político.
Por
forma
a
compreendermos o que tal significa, temos que olhar brevemente para a capital da
colônia - a tão louvada Lourenço Marques, hoje Maputo.
“Categoricamente constituiu o caniço: um bairro de lata, construído com materiais e
técnicas de construção cada vez menos vernaculares[...] Numa tentativa de obstar a
instalação de formas de uso capião que dessem origem à posse definitiva da terra, os
urbanistas do período tardo-colonial engendraram a política de bloquear a construção
de estruturas de cimento no caniço. Como se pode bem imaginar, a população mais
pobre vê esse constrangimento como uma maneira de lhe retirar a possibilidade da
construção das tão privilegiadas casas de branco. Era como o caso das favelas, como
não se pudesse construir com tijolo nas favelas, mas só com madeira e pau.
“Em 1963, num dos seus gestos políticos mais arrojados, Pancho Guedes conseguiu
chamar a atenção do público branco e rico para as gravíssimas implicações que
poderiam advir do fato de verem como ficção que a outra cidade não existia. Em um
número de julho do periódico local, A Tribuna, o arquiteto publicou um manifesto
escrito num tom neo-surrealista, que era o seu tom característico, e que se chamou
‘Várias receitas para curar os males do caniço ou o manual do Vogal sem Mestre’. É
preciso perceber que o Vogal é um membro da Câmara, portanto, é o que aqui vocês
chamam de Vereador. Não é Vereador, é o membro da Câmara Municipal, e é sem
Mestre porque ele estava dizendo que eles eram ignorantes. A história deste
documento, tal como é hoje narrada pelo próprio autor, é bem interessante [...]. ‘A
cidade está doente’, diz ele, ‘ela está louca porque é esquizofrênica, recusa-se a
aceitar que não é uma, mas que são duas’.”
“A parte por ventura mais fascinante do manifesto é a solução que o arquiteto teria
dado de trazer o caniço para a cidade de cimento: construir habitações baratas para
os trabalhadores nos terrenos vazios ainda existentes nas zonas pantanosas, menos
no centro da cidade, e que tinham tido tratamento para água e que ficaram como zona
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não-urbanizada até a última década. Só agora é que vários capitalistas começavam a
ali construir edifícios. O que Pancho propunha era que lá se construísse, mesmo no
centro da cidade, que se começasse a construir para os trabalhadores. A sua idéia era
trazer para dentro da cidade a verdadeira vida urbana, uma vida que integrasse
pobres e ricos, negros e brancos em movimentos e em espaços comuns. Não resta
dúvida de que a solução era utópica e irrealizável, tendo em vista as atitudes
dominantes naquela época, mas o mais importante é que a formulação feita envolvia
um claro reconhecimento público da disparidade racial que estava sendo erigida
através de um planejamento urbanístico, quando apresentado como meramente
sanitário, estético e moderno, escondendo a enormidade do que estava para ser feito
por traz da sua aparente naturalidade.
Casinhas lindas e cidades-jardim, dizia Pancho Guedes, eram sonhos que produziam
pesadelos a curto prazo, mas em 1963 não havia como ouvi-lo. Para demonstrar que
havia outros trilhos que levariam a um mundo mais humano, a imaginação insaciável
do arquiteto foi produzindo uma série de planos, maquetes e técnicas de construção.
Para os presbiterianos, por exemplo, ele desenhou uma igreja de cimento sobre rodas.
É claro que eles preferiram fazer um negócio com a Câmara e construíram a igreja
sem as rodas, mas ela foi planejada para existir sobre as rodas de um trator. Os
planos eram fascinantes! Outra situação: numa missão, também na igreja
presbiteriana, havia um construtor que não sabia ler, então, Pancho desenvolveu todo
um método de construção para ler planos arquitetônicos para construtores iletrados.
Curiosamente, ele era também arquiteto de um dos principais bancos comerciais de
Angola e de Moçambique, e que tinha inúmeras agências nessas duas colônias.
Pancho sempre insistia em recorrer a materiais locais e a sinais estéticos que
ligassem os edifícios às tradições regionais. Fazia parte do seu acordo.”
“Então, eu concluo, a própria linguagem do desenho Pancho Guedes é uma
declaração de revolta e um manifesto permanente em favor de uma modernidade mais
humana. Ele não podia ou não queria ser missionário ou até crente, contudo, na área
da religião encontrou duas importantes portas para a sua criatividade. Ele conseguia
partilhar com esses missionários o desejo de construir edifícios economicamente
viáveis e apropriadamente aclimados, os quais podiam ser usados para ultrapassar as
formas inscritas de dominação que impediam a renegociação de uma sociabilidade
racializada.”
“O simbolismo das cabanas-palhotas, agregadas na Catedral de Palhotas, tem nele
inscrito uma sociologia utópica. Muitos outros dos seus edifícios públicos, religiosos ou
não, desenvolveram esta noção através da imagem da rua central”.
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“Eu quero insistir que se trata de uma idéia muito utópica, de uma idéia de socialidade,
em que o espaço cria a sociedade. Eu usava esta noção por meio da imagem da rua
central e do muro que passava através de todo o complexo arquitetônico, criando um
todo de integração mecânica e democrática.”
“Pancho Guedes encontra nas tradições religiosas uma linguagem simbólica que lhe
permite explorar a integração entre arte e arquitetura seguindo a sua fé modernista.
Ele deseja integrar a celebração do ser com a prática da co-identidade. Na Catedral de
Palhotas, ele quer incorporar a cruz que se repete quatro vezes ao simbolismo circular
do Kraal, que é o local de residência por excelência, associando-os a uma noção
panteística de radicação telúrica expressa através dos quatro cajueiros gigantes e dos
canais para a água da chuva, que em Gaza é tão rara quanto torrencial, e ainda com
as tais trilhas que depois se criariam em razão da catedral que lá está. Esta espécie
de recurso simbólico surgiu em muitos de seus edifícios e não só nos mais
especificamente religiosos como, por exemplo, no seu conhecido prédio de habitação
– 'Leão que ri' – muito famoso porque o plano constitui as formas simplificadas de um
homem e de uma mulher. No Centro Anglicano Chamanculo podemos ver hoje um dos
exemplos mais bem-sucedidos da transformação de um edifício em um texto
simbólico. Ali, para explorar a noção da natureza incomensurável do divino que
mistura o racional e o irracional, o possível e o impossível, ele criou um edifício que
integra repetidamente o círculo e o quadrado, sugerindo, através de uma polegada de
ângulos, a metáfora da quadratura do circulo. Para a igreja principal deste complexo
arquitetônico, o arquiteto e o bispo pediram a Malangatana para pintar dois painéis
representando a vida e o martírio de São Cipriano, um dos primeiros mártires cristãos
de origem africana.”
“A cidade de cimento não é unicamente uma idéia errônea dos brancos; ela há muito
tinha entrado nas mentes de toda a gente, brancos e negros.”

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