Ligia Falavigna Martelli

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Ligia Falavigna Martelli
Ligia Falavigna Martelli
PROFT em Revista
ISBN 978-85-65097-00-0
Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2013
Vol. 1, Nº 3 março de 2014
A TRADUÇÃO DO HUMOR: ANÁLISE CRÍTICA DE
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO DILBERT
RESUMO
Ligia Falavigna Martelli
Universidade Sagrado Coração –
Bauru - SP
Considerando que o elemento de maior importância nas histórias em
quadrinhos seja o humor, este artigo discute seu funcionamento e a
dificuldade em manter-se a mesma equivalência humorística no
processo tradutório de forma a atingir igualmente seus leitores na
língua de chegada. Objetiva-se analisar a manutenção do humor na
tradução de histórias em quadrinhos do livro The Dilbert Future:
thriving on Stupidity in the 21st Century, do cartunista norte-americano
Scott Adams. A análise foi feita com quadrinhos que obtiveram
resultados considerados negativos e também positivos em relação à
tradução do humor. Serviram de base para esta reflexão estudos de
Guimarães (2003), Rosas (2002), Agra (2007), entre outros voltados
para questões tradutológicas em geral, questões linguístico‐culturais,
tradução de humor e histórias em quadrinhos.
Palavras-Chave: Humor. Tradução. Histórias em quadrinhos.
Dilbert.
ABSTRACT Considering that humor is the most important
element in comic strips, this article discusses its functioning and
the difficulty to maintain the same humoristic equivalence in the
translation process in order to equally affect the target language
readers. It aims at analyzing humor maintenance in the
translation of comic strips present in the book The Dilbert Future:
Thriving on Stupidity in the 21st Century, by American cartoonist
Scott Adams. The analysis was carried out with comic strips
which had negative as well as positive results regarding the
translation of humor. This reflection was based on studies
focusing translation general issues, linguistic and cultural issues,
translation of humor and comic strips.
Keywords: Humour. Translation. Comic strips. Dilbert.
Ligia Falavigna Martelli
Contato:
[email protected]
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INTRODUÇÃO
Sabendo-se que os aspectos envolvidos na tradução do humor, assim como suas
dificuldades, são inúmeros, este trabalho justifica-se por abordá-los com foco naqueles que
aparecem mais frequentemente em histórias em quadrinhos, tais como questões de
traduzibilidade e adaptações linguístico-culturais.
Com o principal objetivo de analisar o humor traduzido nas HQs do livro O Futuro Dilbert: como prosperar com a estupidez do século XXI, de 1997, (tradução do original The Dilbert
Future: thriving on Stupidity in the 21st Century), de autoria do cartunista norte-americano Scott
Adams, este estudo busca, também, caracterizar o fenômeno tradutório desse gênero de texto,
identificando, em especial, algumas técnicas de tradução mais adequadas à reconstrução do humor na língua-alvo, já que, muitas vezes, um enunciado humorístico não produz o mesmo efeito
de humor quando traduzido.
Para contemplar os objetivos acima propostos, serão respondidas as seguintes perguntas:
1) Quais as dificuldades de manutenção do humor na tradução das HQs1 analisadas? 2) Quais
estratégias podem ser utilizadas na reconstrução desse humor?
Dilbert, que é o personagem principal das HQs que levam seu nome, e que compõem o
objeto de estudo desta pesquisa, tem 30 anos, é engenheiro e trabalha em uma empresa de alta
tecnologia. Criação de Scott Adams, cartunista norte-americano nascido em 1957, em Nova
York. Teve sua inspiração para a criação do personagem a partir de 1989, em seu trabalho como
economista na empresa Pacific Bell, de 1986 a 1995, por sua experiência em burocracia e na generalidade dos problemas encontrados na vida empresarial.
Por ter sido vítima de demissão por downsizing - uma das técnicas da administração contemporânea que tem por objetivo a eliminação da burocracia corporativa desnecessária2 - encontrou uma forma de vingança quando criou as histórias de Dilbert, já que satirizam, geralmente de
maneira sarcástica, a vida dos negócios. Por esse motivo, Dilbert, prefere os computadores às
pessoas, trabalha fechado em cubículos, veste roupas sem graça e tem uma barriguinha que revela as longas horas de trabalho sedentário.
Dilbert teve também um desenho animado com duração de duas temporadas. No Brasil,
era exibido pela extinta Fox Kids. Hoje, suas HQs aparecem em cerca de 2000 jornais e revistas
de mais de 65 países, 25 línguas e possui seu próprio site (www.dilbert.com).3
A escolha do livro e do personagem foi feita por se tratar de um exemplo de HQs que reúne tom humorístico ao mesmo tempo em que ilustra situações sociais, o que seduz o leitor pelo
conjunto visual e linguístico, e pelo motivo de o personagem ser um exemplo conhecido de HQs.
Os quadrinhos estão presentes em todo o livro, ilustrando-o do início ao fim; porém, por questões
metodológicas, optou-se pela análise de apenas cinco HQs.
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: CONCEITOS E DEFINIÇÕES.
Por oferecer uma infinidade de elementos para análise, as HQs são caracterizadas como
uma área interdisciplinar, pois em sua produção encontram-se os mais diversos
desenvolvimentos comunicativos, que, por sua vez, são atrelados a elementos linguísticos,
1
2
Será utilizada, a partir de agora, a sigla HQ para Histórias em Quadrinhos.
Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Downsizing>. Acesso em: 02 out. 2012.
3
Disponível em: <http://www.dilbert.com/about/> e <http://en.wikipedia.org/wiki/Scott_Adams>. Acesso em: 12
set. 2012.
A Tradução do Humor: Análise Crítica de Histórias em Quadrinhos do Dilbert
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psicológicos, comportamentais, sociais e, principalmente, cognitivos e culturais. Melo (1985, p.
168) conceitua a HQ como: “Narrativa composta por imagens que se sucedem, complementada
por textos (balões)”.
Silveira (2003, p. 122), afirma que:
Os quadrinhos têm personagens e elenco fixos, narrativa sequencial em quadros numa
ordem de tempo em que um fato se desenrola por meio de legendas e balões com texto
pertinente à imagem de cada quadrinho. A história pode desenvolver-se numa tira, numa
página ou em duas, ou em várias páginas (revista ou álbum). É óbvio que para uma
história ser em quadrinhos, ela precisa ter, no mínimo, dois quadrinhos (ou cenas). A tira
diária é uma exceção, pois, às vezes, a história pode ser muito bem contada em 1
quadrinho (o espaço da própria tira), mas isso não a torna um cartum, apesar da
proximidade.
As HQs constituem um meio de comunicação de massa que agrega dois códigos distintos
para a transmissão de uma mensagem. O primeiro é o linguístico, que se faz presente nas
palavras utilizadas em elementos narrativos, na expressão dos diversos personagens e na
representação dos diversos sons; e o segundo é o pictórico, constituído pela representação de
pessoas, objetos, meio ambiente, ideias abstratas etc.
Além desses dois códigos, as HQs desenvolveram também diversos elementos que lhes
são hoje característicos de sua linguagem. Como afirma Eguti (1999), temos os grafemas, os
sinais diacríticos, os ideogramas e os sinais de pontuação, que são muito utilizados, ao lado dos
balões, que, por sua vez, além de servirem de contorno aos diálogos, expressam ideias, emoções
e sentimentos por meio dos mais diversos tipos de traçado.
Tais elementos visuais (imagens) e verbais (texto) que compõem as HQs estabelecem
uma relação complementar. Essa relação entre imagem e texto pode variar, segundo Cagnin
(1975), da história ilustrada (em que a arte apenas retrata o que é descrito pelas palavras),
passando pelas histórias nas quais os dois elementos têm a mesma importância, até as que têm
predominância das imagens (cabendo ao texto apenas complementá-la) e as histórias “mudas”
(com a ausência total do registro verbal).
Guimarães (2003) delimita os principais elementos desse gênero textual. O primeiro é o
próprio desenho, com sua função narrativa, ou seja, sua tentativa de representar um movimento,
incluindo o cinético (linhas de ação que indicam o movimento dos personagens ou a trajetória de
objetos em ação); o segundo, o encadeamento de diversas imagens, procurando representar uma
ação que se desenrola num período mais longo (isto é, uma realidade visual cujo espaço
tridimensional é representado numa superfície plana e dinâmica, enquanto se encena o
movimento por intermédio de uma sequência de imagens estáticas); o terceiro, a utilização de
texto escrito como aspecto de representação da dimensão sonora (ou de um pensamento), no
meio da imagem, próximo ao personagem que o emite (ou atribuído a um narrador); e o quarto, o
uso de onomatopeia, que, para o mesmo autor, é a representação gráfica da adaptação — para os
fonemas da língua falada — de sons da natureza não reproduzidos pelo aparelho vocal humano.
Ainda de acordo com Guimarães (op. cit.), prevalece nas HQs a integração do texto escrito à
imagem (pictórica). Já Eguti (1999) recomenda a leitura da HQ como um só visual, percebendose que a imagem predomina sobre o texto, muito embora o conceito de história narrada seja
ampliado e desenvolvido pelas palavras, as quais, tanto por seu significado quanto por seu
aspecto gráfico e visual, complementam a arquitetura da composição de cada quadro.
Aprofundando um pouco mais as características das HQs, é pertinente comentar os
elementos que formam sua “semântica” – conforme denominação feita por Eco (1979, p. 145) e
classificação feita por Santos (2003). Nessa classificação, requadro é a moldura que circunda os
desenhos e textos de cada quadrinho ou vinheta. O balão é onde se insere a fala ou pensamento
do personagem. O apêndice que sai do balão em direção à sua cabeça, e indica quem está
falando, é chamado de rabicho. Há vários tipos de balões. O de cochicho é formado por linhas
pontilhadas; o de pensamento é caracterizado por linhas onduladas e pela ausência de rabicho
(que é substituído por bolinhas que se dirigem ao personagem). O splash é formado por linhas
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angulares que denunciam o estado emocional do personagem. O uníssono é formado por vários
rabichos que saem do balão, mostrando que diversos personagens emitem a mesma fala,
simultaneamente, os intercalados demonstram que a fala de um personagem foi emitida em
intervalos de tempo, com pausa entre eles etc. O recordatório é um painel encontrado no interior
da vinheta onde são colocados os textos da narração, de transição de tempo e espaço. A
onomatopeia é uma representação de ruídos por meio de palavras que podem se iconizar e ser
considerada, ao mesmo tempo, signo verbal e iconográfico. A metáfora visual é um signo que
ganha conotação e características diferentes quando usadas em HQs, como usar símbolos no
lugar de uma fala escrita, assim como outros elementos icônicos.
Dadas a conceituação e as principais características das HQs, serão abordadas, a seguir,
questões relativas à manutenção do humor no processo tradutório desse gênero.
ASPECTOS GERAIS DA TRADUÇÃO DE HUMOR
Os profissionais de tradução têm a responsabilidade de transportar para outras línguas
textos de diversas culturas e autores variados, com sentidos construídos dentro de determinados
contextos, cenários e épocas, sendo indispensável ter cautela ao transpor termos, para não alterar
sentidos. Essa preocupação é constante quando o assunto é tradução de humor.
Ser cuidadoso ao fazer uma tradução de humor, alterar termos e não sentidos, não quer
dizer que o tradutor vá oferecer mais ou menos informação que o autor do texto de partida; o tradutor oferecerá outra informação e de outra maneira, para que seja atingido o objetivo principal
do texto; no caso do humor, a comicidade. Às vezes, a comicidade pode tornar-se um problema
tradutório gerado pela não-equivalência palavra-por-palavra nos níveis lexicais e gramaticais, já
que a equivalência em tradução é influenciada e problematizada por diversos fatores linguísticos
e culturais, tais como os dialetos, trocadilhos, palavras polissêmicas ou ambíguas, gírias, piadas
“internas”, termos e expressões particulares de um determinado país, linguajar informal, e outros
elementos que representam um desafio particular para o tradutor. Rosas (2002, p.89) argumenta
que:
A tradução de um texto humorístico, (...) apresenta problemas quando: a) não há
compartilhamento de referências culturais entre os membros das duas línguas-culturas
envolvidas e b) não há correspondência, em algum nível linguístico (sintático,
morfológico, fonético, semântico, pragmático), entre as estruturas dessas línguasculturas.
Tais problemas são afetados também por outros fatores, como a não-correspondência
cômica, que Rosas (op. cit., p.42) explicita que o que é engraçado para um grupo ou para um
falante pode não ser para outro(s). E que, além disso, o tempo pode alterar a definição daquilo
que um mesmo grupo ou falante considera engraçado e, independentemente de quaisquer outros
possíveis fatores, bastaria que não houvesse conhecimento compartilhado ou que houvesse uma
saturação – caso da piada “gasta”- para que o riso não ocorresse.
Todas essas variáveis estão ligadas a uma realidade histórico-cultural e são condicionadas
por normas sociais e de uso linguístico, sujeitas a constantes alterações nas diferentes
comunidades e em diferentes momentos. Estão ligadas, segundo Natale (1999, p. 392),
Ao fenômeno do riso e também à visão de cada um sobre determinado fato, que é
relativo, sobretudo acerca das causas do riso, pois o que é cômico ou risível para um
pode não ser para outro, dependendo do momento e de outras variantes.
A tradução é uma tarefa que demanda competência linguística e cultural, interação com
outras áreas, postura ética do tradutor para com o leitor-alvo e, neste contexto, principalmente
para que haja a manutenção do humor, pode haver, muitas vezes, dúvidas por parte do tradutor
enquanto traduz, e do receptor do texto enquanto lê. Pelo motivo de certas piadas só funcionarem
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no interior de uma língua ou de línguas estreitamente aparentadas, Raskin (1985, p.103) comenta
quatro maneiras eficazes de transmitir o humor:
1.
2.
3.
4.
Relação: Diga apenas o que for pertinente à piada.
Qualidade: Diga apenas o que for compatível com o universo da piada.
Quantidade: Dê a informação que for estritamente necessária à piada.
Modo: Conte a piada com eficiência.
A substituição de cada item da língua de partida pelo equivalente mais adequado na
língua de chegada é, muitas vezes, a melhor alternativa a ser usada na tradução de termos e
expressões do texto original. A equivalência implica reproduzir a mesma situação no original,
mas usando palavras diferentes, principalmente para a tradução de expressões idiomáticas.
Traduzir bem não se trata em traduzir palavra-por-palavra, mas de fazer uma tradução que
conserve ritmo, lógica, moral etc. O tradutor pode criar rimas, combinações que não existam no
texto de origem e conservar as ideias principais do texto original, para que o foco da tradução
não se perca e não apenas seja voltado para os significados, mas também, para os sentidos. Nesse
contexto, destaca-se que:
(…) muitos dicionários bilíngues trazem somente as definições, as quais servem apenas
para elucidar o que elas querem dizer, mas não ajudam em nada o tradutor, que deve
colocar no seu texto expressões de igual valor idiomático, para que o texto não perca sua
característica estilística. (CAMACHO, 2008, p. 43-44)
Traduzir um texto humorístico implica especialmente os domínios em que os sistemas
linguístico-culturais não apresentam correspondências, encontrar equivalentes nacionais,
maleabilidade dos sistemas de chegada e do público visado, para que não possa haver graus de
estranheza, já que pode-se observar que nem tudo o que é gramaticalmente possível na língua é
igualmente natural para um falante nativo. Para isso, a opção do tradutor, frequentemente, é
tender para a assimilação do texto de partida, percepção necessária para que possa identificar o
que o autor queria expressar; caso contrário, como dizem Camargo e Steinberg (1990, p. 01):
“(...) o interlocutor certamente não entenderia o sentido da tradução e poderia até pensar que
desconhecemos tanto o inglês quanto o português”. Também nessa perspectiva, ressalta Monllor
(1999, p. 27-28):
Indispensável a competência linguística do tradutor, tanto em relação à língua original
como em relação à língua meta; mas também é indispensável a competência ideológica
que lhe permita ver e compreender a mensagem que o refrão transmite, o contexto social
e cultural em que este tem origem e do qual se serve.
Quando não há um idiomatismo prontamente correspondente na língua receptora, um
pequeno ajuste na expressão da língua-fonte pode torná-la aceitável na língua receptora. Sobre
esse assunto, destaca Baker (1992, p. 68):
Um idiomatismo ou expressão fixa pode não ter nenhum equivalente na língua-alvo. A
forma que a língua escolhe para expressar, ou não expressar, vários significados não
pode ser prevista e apenas ocasionalmente corresponde à forma que outra língua escolhe
para expressar o mesmo significado. Um idioma pode expressá-lo por meio de uma
única palavra, outro pode expressá-lo por meio de uma expressão fixa transparente, um
terceiro pode expressá-lo por meio de um idiomatismo, e assim por diante. Portanto, não
é realista esperar encontrar com certeza idiomatismos e expressões equivalentes na
língua-alvo.
Não são em todas as ocasiões que se usam adaptações e se consegue atingir um grau
satisfatório igual na tradução em relação ao original. Pode-se deparar com faltas de equivalência
que se manifestam em vários níveis, como citam Xatara e Rios (2007), de formas simples ou
complexas, conotativas ou denotativas, idiomáticas ou não, fazendo com que pensem que esses
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casos de não-equivalência sejam provenientes da ausência de conhecimentos sólidos sobre o
léxico, sintaxe e morfologia da língua de partida, sem saber que alguns fraseologismos e
provérbios nem com adaptações seriam usuais em outro país. Portanto, se certas condições
comunicativas de uma nação de um lado remetem à identidade profunda de seu povo, de outro
constituem domínio linguístico que levanta inúmeros obstáculos para o tradutor.
A estratégia mais correta quando certo termo gera dúvidas não é ignorá-lo, fazendo,
assim, com que invertam ou deturpem o sentido denotativo do texto original, nem optar por uma
palavra que deixe o contexto sem sentido, o que quer dizer que certas palavras deixam a
linguagem artificial, e embora sejam palavras da língua portuguesa, não parecem estar escritas
em português, o que influencia negativamente na qualidade da tradução. Muitos fatores dão
origem a isso, como, por exemplo, a falta de conhecimento do tradutor sobre as possibilidades
criativas do idioma de chegada ou do texto-fonte. Portanto, para que uma tradução tenha êxito,
devem ser levados em conta fatores como o conhecimento dos idiomas presentes, o contexto, o
autor, o gênero do texto, o leitor, a técnica utilizada, e como Lessa (2008) cita, a capacidade de
adaptação e liberdade de criação, que muitas vezes tem que ser usada em relação ao texto
original, entre outras variáveis já citadas neste artigo.
Em relação aos provérbios, Berman (2007) acredita que traduzi-los seja sempre encontrar
o seu correspondente. O autor defende que procurar equivalentes não significa apenas estabelecer
um sentido invariante que se expressaria nos diferentes provérbios de língua-a-língua, mas, sim,
se recusar a introduzir na língua para a qual se traduz a estranheza do provérbio original. Diz,
ainda, que a tradução é uma transmissão de sentido que, ao mesmo tempo, deve tornar este
sentido mais claro, limpá-lo das obscuridades inerentes à estranheza da língua estrangeira e ser
lida com o mesmo interesse e prazer que a leitura do original terá proporcionado.
Independentemente da tipologia textual a ser traduzida, o tradutor deve ter a cautela de
não ler uma frase sequer sem ter em mente o contexto do texto-alvo, levando em consideração
elementos como o assunto do texto, o leitor-alvo, e a intenção do autor. Bassnet (1991) afirma
que o tradutor, em sendo o autor do texto-alvo, tem uma responsabilidade moral muito clara para
com o leitor.
Sobre a tradução do humor, Brezolin (1997) afirma que o humor é, de fato, traduzível,
desde que sejam levadas em conta algumas situações, como: um bom domínio da língua por
parte do tradutor, para que ele possa perceber onde ocorre o rompimento das regras linguísticas,
que são, em determinados casos, o ponto de partida do chiste; capacidade de interpretação e
compreensão do conteúdo da piada, e um olhar atento às necessidades do público-alvo, evitando
um texto muito voltado aos padrões linguísticos do idioma original. O que realmente importa é a
capacidade de funcionamento da tradução, e não a fidelidade nessa transferência. Assim, de
acordo com Bergson (2001, p. 92), “obtém-se efeito cômico transpondo para outro tom a
expressão natural de uma ideia”. Eguti (1999) diz que: “O vocabulário utilizado deve ser
adequado às personagens, de forma a conferir-lhes a veracidade e a naturalidade da
conversação”.
Finalmente, ressaltam Brezolin (1997, p. 18-19) e Chiaro (2004, p. 37), respectivamente:
Em suma, o que torna viável a tradução de uma piada (e outros tipos de texto) é
necessariamente nossa concepção de tradução – concepção essa que, além de prever as
várias interpretações de cada leitor, aceita o recurso de recriação como a única saída
para alguns casos – um texto humorístico que ocorre em nível fonológico, por exemplo.
É claro que o humor verbal, assim como a poesia, é traduzível. O conceito de nãotraduzibilidade refere-se mais à complexidade da tarefa e da ausência de equivalência
formal do que à impossibilidade em si da tradução.
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ADAPTAÇÕES
LINGUÍSTICO-CULTURAIS
NA
TRADUÇÃO
DE
HUMOR:
CONSIDERAÇÕES E ESTRATÉGIAS
Acerca da tradução do humor e as diferenças culturais entre um texto humorístico na
língua de partida e na língua de chegada, Lessa (2008) afirma que sem o conhecimento
linguístico e cultural, capacidade de adaptação e liberdade de recriação, não há estratégia que
viabilize a meta principal do humor, que é o riso. Para tanto, serão analisadas mais
profundamente as duas faces que devem ser percorridas pelo tradutor: a face da língua e a face da
cultura.
Segundo Agra (2007), a concepção da realidade e constituição que um povo adota
interfere em sua vida cotidiana por moldar seus valores e costumes. Os significados revelados
por uma cultura são construídos socialmente e, para a compreensão da construção de sentido na
interpretação de contextos e cenários formados por pessoas e costumes de línguas diversas,
torna-se necessário, inicialmente, ter como base a concepção de que uma língua natural é um
sistema de representação do mundo em um contexto, sendo que esse contexto só tem sentido em
um determinado cenário que revela uma determinada cultura.
Uma tradução só terá sucesso, portanto, com o necessário conhecimento da língua pelo
tradutor e com seu envolvimento cultural, tanto com a cultura do autor quanto com a cultura de
seu público.
Para Nascimento (1999, p. 58),
Lê-se o texto no idioma de partida e procura-se transpor o jogo plural de seus signos
para o idioma de chegada. A tradução literária é simultaneamente fiel e traidora, justo
porque repousa na fidelidade/traição básica da própria leitura. (...) O que há, na verdade,
são leitores e tradutores mais ou menos talentosos, capazes de materializar o quase
impraticável: ler-traduzir o texto dentro de certos limites e, ao mesmo tempo, ativar a
pluralidade inesgotável de suas significações. (...) O ato de tradução não diz
propriamente respeito nem ao original nem ao texto traduzido, ele parece entre um e
outro. Nesse “meio” (...) em que reina, a tradução não é dotada de um ser próprio; sua
“natureza”, se assim é possível dizer, ela toma de empréstimo ora ao original, ora à sua
versão em outro idioma. O tradutor-intérprete está sempre no transe entre um texto e
outro. Razão pela qual a possibilidade de reproposição dos signos de base que o original
oferece se torna ilimitada.
Como sugere Nascimento (op. cit.), traduzir é interpretar. A adequação de um texto a uma
situação e a uma cultura com esses ajustes, que, na maioria dos casos não podem ser medidos
nem avaliados pelo uso de gramáticas e dicionários, se dificulta, pelo fato de, em alguns casos,
faltar correspondências estruturais do texto que será traduzido, fazendo com que a busca de uma
equivalência só se torne possível através da substituição, adaptação, compensação, explicação
interna, nota de rodapé, etc.
Sobre a “nota de rodapé”, por exemplo, Tagnin (1992, p. 08) comenta:
(...) Quando empregar notas explicativas? Grosso modo, seria quando, sem elas, uma
das funções do texto ficaria afetada na tradução. A função interpessoal estaria
prejudicada se algo impedisse a empatia do leitor com o autor/texto. A função
ideacional, se o leitor não pudesse apreender o conteúdo exato do texto.
Apesar de a tradução poder não ser equivalente na língua de chegada, é difícil uma piada
ou HQ apresentar uma nota de rodapé explicativa, algo indesejável na tradução de um texto
humorístico, já que se tornaria antieconômico, negativo e sem graça, mas, em último caso,
necessário.
Segundo Queiroz (2007), por grande parte do humor expresso em uma língua ser baseado
em aspectos culturais de onde é falada, mesmo tendo um excelente domínio do idioma, é
possível que certas nuances do humor passem despercebidas. Se dentro de uma cultura já existe a
possibilidade de uma piada falhar, a situação é ainda mais delicada quando se trata de culturas
distintas. É nesse momento que entrará em cena a função do tradutor enquanto mediador,
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adaptador e recriador do discurso humorístico, o tradutor que deverá recriar o texto a partir de
elementos da cultura de chegada, às vezes alterando um nome próprio ou realizando uma
substituição de uma nacionalidade, por exemplo, fazendo, assim, com que possa ser determinante
na compreensão, ou em uma melhor caracterização no humor. Para isso, o tradutor deve
compreender como o humor funciona numa dada cultura, num dado contexto, e ter bom senso ao
traduzir, para que essa piada não perca o efeito cômico ao ser traduzida para outra língua.
Em outras palavras, ao invés de tratar a traduzibilidade como um potencial estático,
parece mais útil ver a tradução como uma atividade, realizada por indivíduos inseridos
num ambiente sociocultural e, em grande parte, condicionados por esse ambiente.
(TOURY 1997, p.261-291)
Considerando o leitor como uma ferramenta essencial na atividade de produção de
sentido, é imprescindível levar em conta que cada leitor é único, vive em diferentes meios, tem
sua própria bagagem cultural, sua carga de conhecimentos prévios, possui áreas de interesses
distintos, entre outros aspectos. Esses elementos, sem dúvida, influenciam na sua visão de mundo
e, consequentemente, na sua leitura e compreensão de textos. Vale ressaltar, por exemplo, as
diferenças existentes entre indivíduos de cada cultura, como diferentes classes sociais, idade,
sexo, dentre outros aspectos, que podem responder de maneira divergente a uma dada piada ou
HQ. Se dentro dos limites territoriais de uma língua já existe a possibilidade de respostas
diversas, essa variante é ainda maior quando se ultrapassam as barreiras linguístico‐culturais, e
quanto mais distantes estiverem as informações a serem processadas do nosso contexto, mais
difícil será a sua recuperação, podendo haver ocorrência de erros tradutórios, os quais podem ser
atribuídos à dificuldade de estabelecer relações coerentes entre o texto a ser traduzido e o nosso
conhecimento de mundo.
Niedzielski (1989, p. 02) faz um comentário que ajuda a exemplificar a explicação
interna:
O senso de humor depende de vários fatores sociais e mesmo individuais. Vez que cada
comunidade cultural organiza seu próprio sistema de valores, costumes e
comportamentos de modo distinto do de qualquer outra comunidade, as normas e
incongruências humorísticas variam de cultura para cultura. Na verdade, a percepção e a
expressão do humor são determinadas pela lógica coletiva de uma dada comunidade e
pela lógica particular, dela derivada, que possui cada membro dessa comunidade.
Percebe‐se, pois, que piadas que apelam para recursos fonológicos são praticamente
intraduzíveis, uma vez que dependem de fatores puramente linguísticos, como homografias ou
homofonias inerentes a uma língua e que raramente possuem equivalência em outras.
Aqueles que consideram a tradução inaceitável se apoiam na questão de que muitas vezes
não há semelhança do texto traduzido com o texto original, principalmente nesse gênero textual;
sem saber que a tradução nunca é o original. E os tradutores não devem ter essa pretensão,
principalmente por se tratarem de sistemas linguísticos diferentes, culturas diferentes. Da mesma
forma, não há uma tradução exata e única, pois se trata de leituras diferentes.
Como sabe muito bem todo tradutor, as línguas tendem a ser muito diferentes em termos
de sua estrutura semântica: uma palavra polissêmica na língua de partida pode não ser
polissêmica, ou ser de uma forma diferente, na língua de chegada; pode haver na línguaalvo palavras que sejam referencialmente sinônimas de uma palavra da língua de
partida, mas que tenham significados emotivos ou estilísticos radicalmente diferentes; e
assim por diante. (ALEXIEVA, 1997, p. 137-154).
Nessa perspectiva, a abordagem proposta por Alves, Magalhães e Pagano (2000) são as
estratégias de busca de subsídios internos, que são a memória e os mecanismos inferenciais. Esse
apoio interno a que os autores se referem dar-se-á por meio do conhecimento de mundo conhecimento enciclopédico e bagagem cultural - e o conhecimento procedimental – que
significa utilizar o que já é conhecido.
Encerra-se essa discussão com Jiang (2000) que, em sua reflexão sobre a relação entre
cultura e linguagem, utiliza a metáfora do iceberg para simbolizá-las, sendo que a parte visível e
menor representa a linguagem e a parte maior e submersa representa a cultura.
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ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Para a análise e discussão dos dados deste artigo, foram escolhidas cinco HQs do livro O
Futuro Dilbert: como prosperar com a estupidez do século XXI, com tradução do original (The
Dilbert Future: thriving on Stupidity in the 21st Century), de autoria do cartunista norteamericano Scott Adams. Primeiramente, as HQs traduzidas serão comparadas com as originais
em inglês, tendo como categoria de análise os recursos utilizados pelo tradutor. A análise se
apoia nos estudos sobre os aspectos considerados, bem como as estratégias utilizadas na tradução
de humor, verificando-se se houve a manutenção do humor para a língua de chegada. Em
seguida, serão sugeridas alternativas de tradução para as HQs que forem consideradas
inadequadas do ponto de vista da manutenção de sua comicidade na língua portuguesa.
Serão examinados os possíveis efeitos de sentido para ambas as línguas, inglesa e
portuguesa, de acordo com a equivalência e entendimento perante o contexto, se houve, entre
outros aspectos, boa escolha lexical, equivalência gramatical, adaptação cultural e boa relação
imagem e texto.
Na sequência, será feita a análise e discussão da primeira sequência de HQs:
Excerto 01
HQ original:
HQ traduzida:
Analisando linguisticamente o primeiro quadrinho, a tradução para a sentença “I’d hate to
have my credit card number floating arounding out there” foi “Odeio ter o número do meu cartão
de crédito vagando por aí”, o que sugere que Dilbert já possua o número do cartão de crédito na
Internet. Isso de fato não ocorre por sua seguinte declaração no início da HQ: “I would never buy
something over the Internet” (“Jamais compraria alguma coisa pela Internet”). O verbo modal
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“would” deveria ser traduzido e a sentença ficaria mais correta se alterada para “Odiaria ter o
número do meu cartão de crédito vagando por aí”.
Já no último quadrinho, segundo a aluna-pesquisadora, ocorre a não-correspondência de
humor desta HQ. A expressão “Common sense” foi traduzida como “Não é sensato”. Além dessa
sentença não ter uma boa comicidade neste contexto, de acordo com o Dicionário Michaelis
online 4 ela significa “Bom senso”, “Juízo” e também “Senso comum”, cujo significado adequase mais a esta situação, e que a palavra “Sensato” não contempla. Portanto, como o termo
“Sensato” não atende ao significado nem ao humor trazido pela expressão “Common sense”
dentro do contexto dado, uma melhor adaptação seria “Mas nem todos pensam assim”, já que
Dilbert estava discutindo a falta de segurança em compras virtuais na Internet e a garçonete
utilizou seu cartão de crédito em uma situação presencial para comprar um casaco e joias.
Utilizando-se a frase “Mas nem todos pensam assim”, retoma-se a ideia final da história,
não havendo necessidade de utilizar a expressão “Bottom line” – que aparece no início do
quadrinho - traduzida como “Conclusão”, a qual a aluna-pesquisadora sugere que seja omitida
para que o humor seja causado de uma maneira mais eficiente.
De acordo com autores como Aragão (2008), o efeito humorístico das HQs se manifesta
tanto na linguagem verbal como na visual, as quais trabalham conjuntamente na produção de
sentidos. Ao contrário do texto, a imagem não pode ser alterada pelo tradutor, limitando sua
criatividade no momento de encontrar um correspondente na língua de chegada. Desse modo, a
sugestão de tradução para o último quadrinho seria “...mas nem todos pensam assim.” para que o
texto corresponda melhor à imagem, completando-a na construção da mensagem.
Em seguida, será analisado o segundo excerto:
Excerto 02
HQ original:
HQ traduzida:
Nesses quadrinhos do segundo excerto, o assunto tratado pelo chefe do personagem
Dilbert é o sucesso atingido pela empresa por lucros obtidos e aumento no valor das ações. Após
4
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php>. Acesso em: 10 out. 2012.
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o detalhamento sobre a situação positiva na empresa, o chefe se contradiz ao dizer que não
haverá aumento salarial para os funcionários por ser um ano “difícil” e, em seguida, cita “United
Way”, traduzida por “Campanha da Fraternidade”, para ser inserida entre os dois itens que
causam contradição, sugerindo, supostamente, que gerará gastos empresariais.
Essa HQ, diferentemente das outras quatro aqui analisadas, atingiu, segundo a alunapesquisadora, um grau satisfatório na tradução do humor, pois nota-se que o tradutor preocupouse com o efeito humorístico utilizando uma adaptação que se ajustou mais facilmente à realidade
cultural do leitor de chegada, pelo fato de no último quadrinho, a expressão “United Way” - que
é um grupo internacional de voluntários que trabalham para o desenvolvimento social e saudável
das comunidades, através da mobilização de talentos e recursos de indivíduos, empresas e
instituições, recebendo doações e voluntários5, - ter sido adaptada para “Campanha da
Fraternidade” - que é uma campanha realizada anualmente e desperta solidariedade para com a
sociedade em relação a um problema social, que diverge a cada ano de campanha e busca
caminhos de solução6. - O chefe tinha a intenção de comover os funcionários inserindo este tipo
de “gasto” na lista de gastos empresariais, isentando-se, assim, de aumentar os salários e
desviando o “foco” dos lucros altos, como se estivesse ajudando uma entidade.
Dessa maneira, essa tira torna-se um modelo eficaz de tradução, uma vez que o
desempenho interpretativo do tradutor atuou de forma a adequar socialmente e culturalmente os
elementos que constituem a realidade de seu alvo, em busca de tornar manifesto ao leitor um
efeito contextual equivalente e criativo. Em seguida, passaremos para a análise do excerto de
número 03.
Excerto 03
HQ original:
HQ traduzida:
5
6
Disponível em: <http://www.unitedwaybrasil.org.br/>. Acesso em: 01 nov. 2012.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Campanha_da_Fraternidade>. Acesso em: 02 nov. 2012.
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Esta HQ, de acordo com a aluna-pesquisadora, poderia ter criado um efeito de humor
maior se não houvesse a omissão do verbo “baked”, que, no primeiro quadrinho, aparece na
sentença: “Look, Ratbert. An entire computer has been baked into one silicon chip”, que foi
traduzida como: “Olhe, Ratbert. Um computador inteiro dentro de um chip”. O verbo “Bake”,
segundo o Dicionário online Michaelis tem os seguintes significados, “Ato de cozer”, “Assar”,
que remetem à ideia de algo comestível; por esse motivo, no segundo quadrinho Ratbert engole o
chip e no último quadrinho Dilbert o repreende por esta atitude.
Quando é feita a análise da HQ traduzida, pode não haver um entendimento claro por
parte dos leitores, por não entenderem a atitude de Ratbert pela omissão do verbo que rege a
sentença, e de Dilbert no último quadrinho afirmando que ele comeu o computador. É preciso
haver um casamento entre desenho e assunto abordado. Conforme Cagnin (1975), há, aqui, uma
falta de relação entre imagem e texto.
Uma sugestão que se encaixaria melhor por fazer a alusão da figura ao texto, mantendo-se
a ideia de algo comestível, seria, no primeiro quadrinho: “Olhe, Ratbert, um computador inteiro
comprimido em um chip.”. No lugar do verbo “comeu”, do último quadrinho, a alunapesquisadora optou por “Você engoliu o meu computador”, por ser uma palavra mais adequada
para a ingestão de um comprimido.
Prosseguiremos a análise, a seguir, com o excerto 04:
Excerto 04
HQ original:
HQ traduzida:
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No quarto excerto desta análise, a situação ilustrada pela HQ é do personagem Dilbert e
seu colega de trabalho atormentando um vendedor e fazendo com que ele realize provas
esportivas no ambiente escritural para testá-lo. No terceiro quadrinho desta sequência, aparece a
expressão “Ven-duh”, criada pelo cartunista Scott Adams, que não atingiu o humor de maneira
equivalente na tradução, mas que pode ser criado com uma adaptação criativa. Traduzida como
“Cara”, a expressão não teve a conotação negativa do texto original e demonstrada pela figura.
“Ven-duh” se refere, informalmente, ao vendedor (em inglês = vendor), que obedece a todas as
ordens que lhe são dadas, e que é subestimado pelos colegas de trabalho. Essa expressão, que é a
principal característica cômica da HQ 04, faz alusão à expressão “Dãr”, também informalmente
utilizada no Brasil, e que tem uma carga semântica pejorativa, de alguém bobo, tolo, desprovido
de inteligência etc. Uma substituição criativa no lugar de “Cara” seria “Vende-dãr”. Assim,
mantém-se a ideia do humor pretendido na língua original, alterando a frase para: “Você chama
isso de brochura? Como posso pensar em comprar produtos de um “Vende-dãr” como você?”.
No último quadrinho da HQ, relacionaremos a figura com a tradução trazida para a
palavra “course”, que, segundo o Dicionário Michaelis online, tem o significado de “progresso”,
“trajetória”, “percurso” etc., além de “curso”, como foi traduzida. Para fazer alusão à modalidade
esportiva mostrada pela figura, essa palavra melhor se encaixaria ao contexto se trocada por
“percurso”, fazendo assim, com que não haja ambiguidade de sentido, já que os colegas estavam
testando o vendedor em uma prova física.
Alterando a tradução para uma versão que se preocupa mais com as referências visuais, a
HQ adaptada ficaria assim: “Seu concorrente completou o percurso de desafio do vendedor em
37 segundos”, para suprir a falta de adequação do texto à imagem. Como sugere Cagnin (1975):
“Todos os recursos têm um propósito, estão ali para dar ao leitor uma mensagem, completar e/ou
contribuir para o entendimento da mesma no texto.”.
A seguir, será realizada a última análise, referente ao excerto de número 05:
Excerto 05
HQ original:
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HQ traduzida:
Sobre o quinto e último quadrinho, foi identificado um exemplo de erro causado por uma
tradução que não foi correspondente à original. A palavra “Fortunately”, que, segundo o
Dicionário Michaelis online, tem o significado de “Felizmente”, “Por sorte” etc, foi traduzida na
HQ como “Infelizmente”, o que comprometeu e inverteu o sentido pretendido pela HQ original.
A não-comicidade se deu no último quadrinho, em que a tradução foi alterada de maneira
inadequada em relação à obra original, principalmente porque, se fosse traduzida literalmente,
manteria o efeito humorístico na língua de chegada.
A sugestão de alteração da aluna-pesquisadora vai para este terceiro e último quadrinho,
alterando-se a palavra “Infelizmente” por “Felizmente”, que modifica todo o sentido, deixando-o
com um poder de comicidade maior. O que com a tradução anterior dava ideia de
arrependimento por parte do funcionário da empresa por ter tomado certas atitudes sem antes
consultar seu chefe, com a alteração, passa a representar que o funcionário sabia o que era para
ser feito e, principalmente, o que estava realizando, mesmo sem consultar um agente superior,
por se considerar absoluto e “espertalhão”, que fez com que tomasse as devidas providências
antes de todos, inclusive de seu chefe.
Encerrada a análise e discussão dos dados nas HQs do Dilbert, serão realizadas, a seguir,
as considerações finais deste artigo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos cinco excertos anteriormente analisados, pôde-se notar que o tradutor nem sempre se
preocupou em adaptar as questões linguístico-culturais para o leitor de língua portuguesa. Em
ocasiões em que o mais adequado era ter traduzido literalmente, foram feitas adaptações de uma
maneira que deturpou o real sentido e, também, por conta da omissão de palavras que
proporcionavam comicidade ao texto, comprometeu-se a compreensão e o humor na língua de
chegada. Pelo fato de a maioria das HQs traduzidas terem obtido uma resposta humorística
negativa em relação à HQ original, este artigo evidencia as dificuldades no processo da tradução
no contexto humorístico em relação, entre outros fatores, às questões linguístico/culturais,
contextuais e de relação entre imagem e texto.
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Os resultados obtidos na análise permitem afirmar que o objetivo principal da tradução
humorística é que a satisfação interpretativa do leitor do texto original seja semelhante no texto
traduzido. Portanto, o maior desafio do tradutor é encontrar equivalentes que substituam de forma adequada o que foi transmitido no enunciado original, de forma que cause, em seu novo público, um efeito contextual equivalente, e que a mensagem da tradução provoque, em seu leitor,
efeito e entretenimento humorísticos semelhantes.
Para que o humor funcione num sistema linguístico diferente daquele para o qual foi
construído, muito mais que tentativas de transferências de significados, são necessárias
estratégias que reconstruam o humor na língua-alvo, mesmo com a presença de significados nãotransferíveis em função de uma série de fatores, como a ausência de elementos na língua- alvo.
Conclui-se, portanto, que a principal tarefa do tradutor é encontrar soluções de recriação do
humor, como a identificação de elementos na língua-alvo que funcionem de forma semelhante
aos elementos responsáveis pela comicidade na língua de partida.
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