Crítica de teatro: `História de família`

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Crítica de teatro: `História de família`
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11/07 às 15h29 - Atualizada em 11/07 às 15h36
Crítica de teatro: 'História de
família'
Jornal do BrasilAna Lucia Vieira de Andrade
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Uma das companhias de maior prestígio da cena carioca contemporânea, o
grupo Amok Teatro, vem buscando, desde 2008, com sua Trilogia da
Guerra, trazer aos palcos de nossa cidade espetáculos que propõem
reflexões sobre as sociedades que vivenciam grandes conflitos
bélicos. EmO Dragão (2008), por exemplo, talvez a peça mais marcante da
referida trilogia, o tema era o embate entre palestinos e
israelenses. Em Kabul (2010), a matéria principal era o Afeganistão e sua
estrutura político- religiosa. Agora, em 2012, o grupo se volta sobre o
desmantelamento da Iuguslávia nos anos de 1990 e sobre a barbárie que se
instalou na região dos Balcãs nesse período. Ao contrário de investigar as
tensões a partir de um enfoque que privilegie o olhar direto sobre a luta
armada e a atuação dos políticos que a engendraram, o grupo prefere
voltar-se para o universo mais íntimo da família, analisando a guerra a
partir de suas consequências mais nefastas a esse núcleo social
básico. Assim, é a perda de valores essenciais ao convívio humano o
objeto de interesse primário de Histórias de Família, a última peça da
Trilogia, atualmente em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do
Brasil.
A partir do texto premiado de uma jovem dramaturga sérvia ainda pouco
conhecida no Brasil, Biljana Srbljanovic, opositora ao regime de Milosevic,
a encenação propõe um jogo entre quatro personagens que, diante de uma
plateia de bonecas, brincam de retratar a vida em família num contexto de
convulsão política e social imposta pela guerra. Com isso, desvenda-se
certo modelo abusivo, patriarcal, que concebe a existência a partir da
misoginia, do ódio e do desprezo ao Outro. Percebe-se claramente aí o
olhar de autora, que procura abordar, a partir do enfoque da mulher,
temas como o trabalho feminino dentro e fora do lar, o abuso da força
masculina, o excesso de brutalidade no tratamento aos filhos e
esposas. Enfim, preocupações que, talvez, não tivessem recebido
abordagem tão densa e penetrante se não resultassem de vivências
próximas às da própria artista.
Evitando estereótipos mais comuns, que tendem a abordar o papel da
mulher nas sociedades ortodoxas simplesmente a partir de sua vitimação,
Srbljanovic trabalha também com a ambiguidade que matiza melhor o vai
e vem entre aquele que pune e o que é punido.
Ainda que as famílias recriadas apareçam em contextos diversos dentro do
mesmo conflito, que uma fique na miséria material e que a outra prospere
a partir dessa mesma pobreza, a falta de solidariedade dá o tom de toda
aquela existência. A desagregação que o ambiente da guerra provoca faz
desaparecer qualquer possibilidade de afeto. É tocante a cena em que a
mulher lava as bandeiras sujas de sangue, sem conseguir tirar-lhes o
vermelho marcante, já espalhado no avental que usa. Ao final, quase
todos morrem, sobrando apenas as lembranças do horror para os que
ficam.
A dupla Ana Texeira e Stephane Brodt, responsável pela adaptação e
direção, realiza um trabalho primoroso, que extrai o melhor do texto e do
elenco, do qual Brodt também faz parte. A força do desempenho dos
intérpretes é tamanha que o público sente-se literalmente transportado
para aquele estranho e, ao mesmo tempo, tão conhecido universo. Bruce
Araújo, Christiane Góis, Rosana Barros e Stephane Brodt oferecem ao
público uma das imagens mais perfeitamente desenhadas do autoritarismo
e da irracionalidade de um determinado tipo poder.
Cenário e figurino contribuem para o bom resultado do todo, explorando os
contrastes e criando uma cena em que a plasticidade se coloca
organicamente a serviço dos intérpretes.
Histórias de Família é um espetáculo que merece ser visto. Apesar de não
propor uma análise aprofundada dos conflitos em termos
marcroestruturais, acerta ao abdicar dessa postura em prol do
esmiuçamento das relações de poder dentro do espaço familiar, pois é a
partir desse núcleo que se criam e se projetam as grandes estruturas.
Mais um acerto na trajetória de uma de nossas melhores companhias.

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