O Signo e a Revolução

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O Signo e a Revolução
O signo e a revolução
David Santos
Como efeito de despedida e sintoma de uma reflexão atualíssima, a última exposição
do ciclo de arte contemporânea “The Return of the Real” fica assinalada, desde logo,
por uma insinuante peça de néon que invade o espaço do átrio do Museu do NeoRealismo. “Revolution”, a palavra, resplandece a azul-turquesa, como signo de uma
intensa ambiguidade deceptiva, onde o sentido se esbate num caleidoscópio de ecos
e reminiscências. Será que comunica ainda um conceito político, uma vontade de
ação, um slogan, ou antes uma ideia de consumo, uma marca registada? Aliás, esta
questão é obrigatória e incontornável, pois a palavra “revolution”, com as letras
desenhadas a lâmpadas fluorescentes, remetendo assim para os painéis publicitários
do século passado, é ladeada não pelo “r” de marca registada, mas pelo seu
sucedâneo, esse “c” minúsculo inserido num pequeno circulo que “garante” os direitos
de autoria, como se a ideia de “revolução” pudesse ser atribuída a um só autor ou
proibida a sua propagação no tempo e no espaço.
O que um exímio manipulador de signos, como João Louro, nos propõe com esta
palavra simultaneamente flagrante, estranha e familiar, é a experiência de
interrogação sobre a sua aparente mas paradoxal irrelevância, o seu atual desgaste
ao nível do significado, apesar do contexto efervescente ditado pela crise económica
da Europa e do mundo ocidental. Será que a expressão “Revolution” se converteu ao
longo dos tempos num alvo macio e à mercê de interpretações apropriacionistas de
carácter duvidoso, transformando-se por fim num território verbal de exploração
exaustiva, displicente ou mesmo arbitrária? A resposta é complexa e exige uma
reflexão sem esperanças conclusivas. E se o artista parece aqui usar o mesmo
método de invasão e transformação abusiva dos significados de uma palavra como
“revolução” – para alguns ainda “poderosa”, mobilizadora ou, pelo menos, capaz atear
rastilhos – fá-lo com o objetivo de nos questionar, de despertar uma necessidade
específica, isto é, de nos confrontar com o desvio desse sentido fundador que hoje
balouça entre a inócua integração no sistema capitalista e o esgar de uma vontade de
ação concreta, determinada, como sempre acontece, pelo desencadear descontrolado
dos acontecimentos.
Porém, quando nos deixamos envolver pela “proposta” de “revolution” assumida por
João Louro, confirmamos sobretudo um jogo de sedução visual e marketing, e menos
o seu hipotético conteúdo original, de apelo à rebeldia ou à transformação política.
Apesar da palavra “revolution” não ter sido verdadeiramente obliterada, mantendo-se
completa na sua frontalidade comunicativa, promove de imediato uma decepção
inconveniente mais inevitável, isto é, um distanciamento difuso entre o significado e a
sua manifestação estética e objetual.
Por outro lado, a ambiguidade da palavra apresenta-se ou revela-se ainda em diversos
níveis. Repare-se como “revolution” assume a mesma grafia em duas das línguas
mais faladas no mundo ocidental (inglês e francês, neste último caso sofrendo apenas
uma acentuação diferenciada). Ou seja, a expressão internacional da palavra
provavelmente mais importante dos últimos duzentos anos, que evoca momentos tão
decisivos como a Revolução Francesa de 1789, paira hoje na constelação do nosso
universo comunicativo como uma figura de estilo sem rumo nem orientação mínima,
deixando-se equivaler em muitos aspetos à palavra qualquer, diluída na amálgama
informe da “sociedade do espetáculo” como alertou Guy Debord. Hoje, já quase não
sabemos qual o lugar e o sentido possível de uma palavra histórica como “revolução”,
quando foi usada e abusada em muitos outros contextos (ex: revolução sexual;
revolução cultural: revolução musical…) que lhe trouxeram inevitavelmente novos
significados, mas ao mesmo tempo também o sentimento de que a força da sua
invocação original entretanto se perdera com a sistematização desse exercício
parasita que envolve a maioria das palavras mais influentes.
É neste exercício de alteração deliberada dos diferentes níveis de significação que a
obra de João Louro, iniciada no princípio dos anos 90, tem vindo a desenvolver-se
com a acuidade e desassombro, procurando desestabilizar o sentido, as convenções
imagéticas e conceptuais, como estratégia de provocação sobre a passividade que
nos rodeia. No essencial, o trabalho de João Louro busca um observador capaz de
aprofundar o seu sentido crítico perante o mundo inebriante da comunicação de
massas e o seu tendencial efeito anestésico. Recorde-se que o próprio artista assume
a sua estratégia de intervenção pós-moderna como uma possibilidade apenas de
confronto com o real, de reequacionamento do lugar social da arte e da sua
receptividade. O título da exposição “Bind Runner – Artist Under Surveillance”,
apresentada em 2004 no CCB, remete precisamente para essa autoconsciência. Ou
seja, o artista sabe situar o alcance residual da comunicação artística, e com isso
procura trabalhar o paradoxo das pretensões do marketing, da política, da teoria e das
práticas sociais que nos caracterizam neste início de milénio. Basta lembrar que para
João Louro não se trata nunca de encarar a “imagem como um facto”, mas como “um
pacto” ou um “combate”, ao mesmo tempo que qualquer exercício de comunicação
ganha e perde significados no percurso que realiza, como “erreur de transcription”,
“lost in translation”, algo que transforma e reenvia outros efeitos, outros contornos de
significação. As surpresas que daí advêm recolocam esta arte no domínio da reflexão
sobre os cruzamentos entre palavra e imagem, símbolo e signo, significado e
significante. Muitas séries de trabalhos, produzidas pelo artista desde os anos 90 até
hoje confirmam este aspeto central, desde os desvios de sentido e significado de uma
série de palavras do nosso dicionário (série “História do Crime”, 1995, ex: “ELITE, s.f.
(fr. élite). 1. Med. Enfermidade comum aos habitantes de uma região”), passando
pelas literárias pinturas “Bridges, Ways and Crossroads” (2002) ou ainda pela
“filosófica subversão” de placas de informação de trânsito, na série “Dead End” (200102), para terminar nas muitas variantes da série “Bind Image”, iniciada em 2003 e que
tem na atual exposição uma das suas mais recentes adaptações. Em todos esses
trabalhos, João Louro perscruta a capacidade de confrontação, de matriz
duchampiana, que existe entre o significado original das palavras e a sua
reconfiguração perante outras associações iconográficas, ou mesmo perante o vazio
monocromático que nos devolve, a nós receptores, a responsabilidade imagética da
própria arte.
Sob o título de um lema soixante-huitarde, Sous le Trottoir la Plage, a presente
exposição explora visualmente os dilemas gráficos da palavra “revolução”, o seu uso
titubeante, indiscriminado e quase indecoroso. Como se de um modo subterrâneo se
erguesse uma vontade inaudita de revolver a ação, de voltar a uma situação de
conflito aberto entre poderosos e oprimidos. Resta saber se as palavras, apesar do
seu uso e desgaste significacional, podem ainda manter-se como veículos de
comunicação e sentido. De Platão a Nietzsche, de Freud a Wittgenstein, de Foucault a
Derrida ou Chomsky, outra coisa não fez a filosofia do que buscar uma confiança na
linguagem verbal, uma base que pudesse traduzir um ponto de partida para edificar as
relações entre o saber e a humanidade. Ora, o que João Louro nos revela é, antes de
mais, a complexidade do roteiro dos significados e a sua estridente manipulação na
atualidade, produzida afinal por todos os intervenientes autorizados, isto é, os poderes
públicos e privados, os detentores do “laborioso” domínio económico-financeiro e
outros protagonistas que exercem o controlo, ou a sua ilusão, sobre a máquina
significante que nos envolve.
Nesse sentido, o artista recorta e volta a colar aqui novos sentidos em torno da palavra
“revolução”, sugerindo ainda, para lá do néon da entrada do museu, um efeito
“explosivo” a partir de uma particular leitura, letra a letra, com o trabalho “Se juntar as
letras certas faço magia”, 2012. São dez pequenas obras em papel onde o alfabeto se
repete de cada vez e de onde é retirada (pintada a vermelho) apenas uma letra
diferente em cada uma dessas peças. Ao juntar-se todos os alfabetos pode ler-se a
palavra “Revolution”. Como a revelação da leitura soletrada, progressivamente
silabada pelas crianças, Louro parece querer dizer-nos que repetindo o seu exercício
de descoberta e leitura podemos finalmente recuperar o seu sentido primeiro e mais
fecundo.
“One Ride with Yankee Papa 13”, 2012, é título específico de quatro trabalhos da série
“Blind Image” que resultam agora justapostos, constituindo um mosaico compósito,
muito formal e sedutor em termos estéticos. Porém, as legendas, que antes apareciam
nas próprias imagens pictóricas, surgem desta vez mais discretas, em tabela,
promovendo todavia o mesmo efeito de cruzamento radical com a monocromia, pois
remetem para a descrição de violentas fotografias de guerra (Vietnam) publicadas
numa revista de época. O significado das palavras que em tabela se revela exerce
assim, mais uma vez, um poder de condução do sentido, de reenvio à imagem que
nos reflete o corpo dos visitantes ou o espaço da galeria. Nesse turbilhão de imagens
que o nosso cérebro desenvolve a partir das poderosas legendas, perdemos o prazer
estético que a exuberante monocromia pictórica nos comunicava. Isto é, somos
levados à “decepção” da imagem pelo poder descritivo das palavras e dos seus
significados sobre uma violência que não se vê em termos visuais, mas que se
desenha em termos imagéticos no enquadramento “pós-pictórico” desse conjunto. Por
isso, poderemos continuar a afirmar que estas pinturas são cegas, como o título
sugere desde o início, ou fornecem antes as pistas para a nossa capacidade de
decisão crítica perante o jogo e o combate significacional que nos propõe?
Já “Utopia” (1995), apresenta um conjunto constituído por oito obras, colagens em
pequeno formato, onde se cruza uma panóplia de logótipos com elegantes grafias da
palavra utopia, denunciando, uma vez mais, a sua adaptação, proposta aqui pelo
artista, ao mundo da publicidade. Apesar de produzidos em 1995 para a “Bienal da
Utopia” (Cascais), estes trabalhos nunca chegaram a ser apresentados, aparecendo
agora numa parede verde e inclinada que formata a sala de arte contemporânea de
um modo inesperado.
Por último, João Louro grafitou uma das paredes da galeria com grandes letras que
esmagam o espetador, tanto pela sua escala como pelos escorridos de pintura
revelados na sua dimensão informe e aparentemente inadequada ao espaço
museológico. O que aí se lê é, afinal, a mensagem que dá título à exposição: “Sous le
Trottoir la Plage”, um dos slogans mais reproduzidos durante as convulsões do Maio
de 68, em Paris. Na sua tradução para língua portuguesa, “sob o pavimento, a praia”,
podemos adivinhar mais uma vez o sentido deceptivo e ambíguo proposto por João
Louro.
Recordemos então que, no final da década de 60, muitas ruas do centro de Paris eram
ainda pavimentadas com paralelepípedos de face cúbica, unidos uns aos outros
apenas por uma fina camada de areia. Vendo aí os jovens contestatários uma
promessa de praia, soterrada sob o pavimento: “Sous les pavés, la plage”. Com essa
apropriação metafórica procurava-se sublinhar que a praia está em todo o lado, aos
nossos pés, debaixo das edificações da civilização. Por outro lado, a praia era a
expressão mais lúdica, não-hierárquica e insurrecional, à mercê dos revoltosos que
respondessem ao apelo de retirar o pavimento para ocupar esse espaço antes
subterrâneo e agora revelado no seu potencial lúdico e socializante. Não esqueçamos,
porém, que o pavimento representava aí, precisamente, a França gaullista e tédio
asfixiante dessa época.
Nesse contexto, muitos outras palavras de ordem andaram de boca em boca: “É
proibido proibir”, “A imaginação no poder”, “O sonho é realidade”, “Numa sociedade
que aboliu todas as aventuras, a única aventura que resta é abolir a sociedade”, “A
revolução é incrível porque é real”, “Vamos banir o aplauso, o espetáculo está por toda
parte”, ou “Trabalhadores de todo o mundo, divirtam-se”. O objetivo dessa marcha de
contestação era então unir contestação radical e criatividade, o que levou à ruptura
com espaços convencionais de oposição (o Partido Comunista fancês e os
Sindicatos). O que os estudantes do Maio de 68 exigiam sobretudo era a definição de
novas formas de organização política e de ação coletiva. O espírito coletivo desses
tempos era o de suprimir a separação e as fronteiras entre as esferas do “trabalho” e
do “lazer”, da “vida” e da “arte”, para dar relevo a uma nova ideia de liberdade,
autonomia pessoal e internacionalismo.
O que ficou desse espírito ou o que se perdeu na sua constante transformação até aos
nossos dias é algo que João Louro devolve a uma receptividade responsável e
necessariamente mais consciente da função da arte mas também da sociedade e de
cada um de nós nestes “tempos sombrios”, parafraseando aqui uma expressão de
Hannah Arendt que volta ressoar na nossa contemporaneidade.

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