MEDEIA

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MEDEIA
SIG revista de psicanálise
ARTIGO
MEDEIA: A FEITICEIRA DO ÓDIO
MEDEIA: THE WITCH OF HATE
Ana Maria Oliveira da Luz1
Resumo: A autora aborda o mito Medeia como pretexto para desenvolver e refletir sobre alguns temas e conceitos psicanalíticos. Relata o mito bem como
informa sobre as obras que perpassaram o mundo expondo esta tragédia grega.
E 'tece' comentários a partir do clímax desta lenda - o infanticídio.
Palavras-chave: Abandono, Vingança, Castração, Tanatos, Infanticídio.
Abstract: The author approaches the Medea myth as an excuse to develop and
reflect on some issues and psychoanalytic concepts. Reports the myth as wells
as reports on the works that have permeated the world exposing this Greek
tragedy. And 'weaves' comments from the climax of this legend - infanticide.
Keywords: Abandonment, Revenge, Castration, Thanatos, Infanticide.
-"Ah! Como sou infeliz! Sofrimentos cruéis! Ai de mim! Ai de mim! Por
que não posso morrer?" (Eurípedes, 431 a.C/2011).
-"Ai de mim! Sofro, desventurada, sofro, e não posso conter os meus gritos
de dor. Malditas crianças de mãe odiosa, morram com seu pai! Que toda a
nossa casa pereça!" (EURÍPEDES, 431 a.C2011).
É a voz de uma mulher. Que mulher será essa que traz na tragicidade das
suas palavras e do seu existir tamanha dor e tamanho ódio?!
Escuto estes sons afetivos, fico atraída e sigo na direção deles.
Atravesso o tempo. E me deparo com o feminino chamado Medeia - de
Eurípedes. Medeia a temível feiticeira, filha de Eetes (Aietes), rei da Cólquida,
neta de Hélio, o Sol, que assombrou e desnudou ao mundo as suas paixões
humanas: carregada de amor e ódio, a um só tempo, mata os filhos que teve
com o marido. Infanticida.
1
Psicanalista, Membro
Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro CPRJ. Especialista em
Psicologia Clínica pela
PUC-RJ. Especialista em
Saúde Mental pelo IPUB-RJ.
E é neste contexto de um sujeito de ações desmesuradas que emerge o
desafio d'eu me aproximar dessa 'hybris' psíquica e com a ajuda de algumas
ferramentas psicanalíticas tentar alinhavar algumas ideias e reflexões. Mas antes
de abordar o trabalho em si, gostaria de esclarecer alguns pontos sobre o trágico
poeta Eurípedes, relatar o mito Medeia e explicitar a noção, 'hybris'.
"Hybris é um termo grego que significa o desafio, o crime de excesso e do
ultraje. Traduz-se num comportamento de provocação aos deuses e à ordem
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estabelecida. A hybris revela um sentimento de arrogância, de soberba e de
orgulho, que leva os heróis da tragédia à insubmissão e à violação das leis dos
deuses, da pólis (cidade), da família ou da natureza. O conflito que nasce da
hybris desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos
que modifica a ação e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca catástrofe. O desencadear da ação dá-nos conta do sofrimento (pathos) que se intensifica (clímax) e conduz ao desenlace. O sofrimento
age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para
purificar as paixões (catarse)" (www.infopedia.pt/$hybris).
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Eurípedes, o trágico poeta grego, nasceu em Salamina, ou Atenas, em torno
de 484 a.C. e, uma curiosidade, cultivava o hábito de meditar em completo isolamento no interior de uma gruta em frente ao mar. Escreveu 92 (noventa e duas)
peças de teatro, privilegiando as mulheres em personagens intensamente humanos, verdadeiras heroínas, e muitas vezes ressaltando o caráter tempestuoso de
suas paixões como Medeia escrita em 431 a.C. (EURÍPEDES, 431 a.C/2011).
Um pouco mais sobre o mito Medeia.
O enredo de Medeia constitui um entrelaçamento de lendas da profícua
mitologia grega. Uma pequena sinopse dessa lenda, penso,ajudará melhor a sua
compreensão.
"A tônica da peça é o ódio sobre-humano em que se transforma o amor de
Medeia por Jasão, quando este a repudiou para se casar com a filha do rei da
terra que os acolhera. A essa terrível humilhação seguiu-se outra que precipitou
a decisão de Medeia: Creonte, o rei, pai da nova noiva de Jasão, decretou a
expulsão de Medeia e de seus filhos de Corinto.
Medeia era conhecida nas lendas da Antiguidade por seus poderes mágicos extraordinários. Sua terra, a Cólquida de onde Jasão a trouxera, era famosa
pelas aptidões sobrenaturais de seus habitantes, hábeis feiticeiros e conhecedores de todos os segredos de magia.
A peça evolui de uma Medeia abatida, deprimida pelo repúdio do marido,
esposa traída que definhava no leito e nem sequer levantava os olhos, aparentemente conformada com a sorte, para uma mulher animada por um terrível desejo de vingança e extermínio, que não se detinha sequer no infanticídio, como
vindita extrema para aniquilamento total do marido perjuro. O amor ciumento
de Medeia em sua evolução para o ódio assassino, seu orgulho ferido (por que,
também, não fazermos alusão a uma ferida narcísica?), sua ferocidade, sua astúcia são "pintadas por Eurípedes com mão de mestre" (EURÍPEDES, 431 a.C/2011).
O infanticídio, aborto de um projeto de imortalização, lembrança deformada de ritos iniciáticos ou de crime passional, torna-se um ato pulverizante e 'bárbaro' que fez com que o nome de Medeia fosse mal acolhido desde a Antiguidade. De 'princesa'/ 'feiticeira' à exilada/estrangeira, pertencente ao mundo dos errantes, torna-se um sujeito vindo de um alhures inquietante (BRUNEL, 1998).
Talvez se por um lado há um repúdio à história de Medeia por parte dos
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expectadores/ leitores, por outro lado, quem sabe, fascina a mesma platéia pelo
caráter "monstruoso" contextualizado no plano das antinomias bárbara/civilizada, estrangeira/autóctone (BRUNEL, 1998).
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Ratifico o sucesso da fascinação por Medeia pelo histórico de alguns poemas, literaturas, óperas, filmes e peças teatrais escritas em variadas versões através dos tempos até os dias de hoje.
Medeia - presente em fragmentos de poemas épicos gregos, como os
Corintíacos de Eumelo (século VII a.C.), que se referem ao poder soberano da
feiticeira sobre Corinto, [...] - é citada por Hesíodo (Teogonia V. 992-1002) no
rapto da heroína por Jasão em Cólquida, sua chegada em Iolcos e o nascimento
do Medo (filho que Medeia teve com Egeu após praticar o filicídio).
Com a Quarta Pítica, o poeta Píndaro iria dar a imagem definitiva de uma
Medeia dotada do dom da profecia, estrangeira versada no conhecimento das
drogas ("pamphármacos xeína"), apaixonada por Jasão, figura capital na busca
do Tosão (Velocino de Ouro), arrebatada da Cólquida pelo Argonauta, e assassina de Pélias.
Os trágicos gregos deveriam apresentar diferentes aspectos do mito através
das peças das quais subsistem alguns fragmentos: Ésquilo, em As Amas de
Dionísio, evoca Medeia rejuvenescendo Híades; Sófocles, com As Colquidianas,
sublinha o papel da bruxa que ajuda Jasão [...], oferecendo-lhe o ungüento de
Prometeu e matando Absirto (irmão de Medeia); já em Os Rizotomos (As Feiticeiras), ele iria referir-se à morte de Pélias depois da colheita das ervas necessárias ao rejuvenescimento.
Eurípedes em Pelíades - outra tragédia grega - deveria fixar-se no caráter
hipócrita e maléfico da feiticeira [...]. Bem diferente é a figura da jovem mágica,
[...], desenvolvida nos livros III e IV do poema épico de Apolônio de Rodes, Os
Argonáuticos (séculos III e IV a.C.).
Na literatura latina, as tragédias de Ênio (Medeia em Corinto e Medeia no
exílio), de Pacúvio (Medos), e de Áccio que se inspirou em Apolônio, atestam,
nos séculos II e I a.C., um período de emergência do mito.
Ovídio, na Oitava Bucólica (v.43-49), Livro II das Metamorfoses. E na
Heróide XII, Ovídio retrata a dor de Medeia quando Jasão a abandona por causa
de Creusa (Glauce).
Medeia de Sêneca [...] é uma alma extraordinária, cuja grandeza monstruosa
é representativa do sublime invertido e ligada aos tratados morais dos estóicos.
No primeiro século depois de Cristo: Os Argonáuticos de Valério Flaccus;
e o poema Medeia (século V) de Dracônico.
Na literatura medieval do século XII ao XIV: Medeia torna-se personagem
episódico dos Romances de Tróia. Benoît de Sainte More, o flamengo Jacques
van Maerlant, o italiano Guido delle Colonne e o inglês John Lydgate remontarão a Ovídio para evocar a imagem da princesa apaixonada [...].Além de citada
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em O Inferno de Dante (XIII,v.86-98) , nas coleções ibéricas (Cancioneiro Geral,
de Garcia de Resende), em Los infiernos de amor do poeta espanhol Santillana ,
na Égloga Andres do português Francisco de Sá, em De Mulierbes claris (Mulheres famosas) de Boccaccio" (BRUNEL, 1998).
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Falei em filmes acima e gostaria de citar dois cineastas que levaram Medeia
para as telas de cinema: Pier Paolo Pasolini ("Medea"/1969). E aponto uma curiosidade - este filme chegou ao Brasil com o título "Medeia: a feiticeira do amor".
Pasolini se inspirou na obra clássica de Eurípedes e apresentou a oscilação de
uma Medeia entre o humano e o divino, o maldito e o sagrado, o perdoável e o
injustificável.
Lars Von Trier, ("Medea"/1988), lança um olhar para o funcionamento psíquico da mente de uma mulher perturbada e as suas conseqüência ao ser abandonada e desprezada pelo seu marido.
Enfim, ainda há inúmeras Obras produzidas sobre Medeia - mito enigmático, estarrecedor e atraente que caminhou através dos séculos e continua a caminhar, navegando por mares, rompendo fronteiras, 'pisando' em tantos continentes para quem quiser abordá-la ou mesmo interrogá-la.
Interessante ressaltar que Medeia iria ter desdobramentos, em nossos dias,
com a peça Gota d'água (1975), dos brasileiros Paulo Pontes e Chico Buarque
de Holanda. Esta peça é uma transposição da aventura de Medeia para as favelas (BRUNEL, 1998).
Atualizo Medeia. E associo o mal estar causado pelo tema de Eurípedes ao
texto de Freud "O Mal - Estar na Civilização". Nele, o pai da psicanálise ressalta
que "o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: (1) da degenerescência
do nosso próprio corpo; (2) do mundo externo, que pode voltar-se contra nós
com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; (3) e finalmente de nossos
relacionamentos com os outros homens" (FREUD, 1930/1976, p.49). Este último, talvez o mais penoso para o sujeito.
Trago Junito Brandão e faço um paralelo ao segundo ponto de sofrimento
referido acima. Diz ele: Medeia não é apenas a esposa sanguinária e vingativa,
mas as forças cegas e irracionais da natureza (BRANDÃO, 1984). Forças cegas,
forças pulsionais, sujeito do desejo. E, aqui, impossível não buscar a clínica, a
nossa escuta, aos que nos procuram com os seus sofrimentos, com sua Angústia
e emoldurá-la. Pois há vários destinos para a angústia e um deles pode ser a
expressão do desejo do sujeito encontrar representantes/representações para a
sua vida pulsional, muitas vezes devastadora e perigosa e que sem eles se exprimiriam no ato e destruição (François Perrier, in BIRRAUX, 1992).
E, quanto às forças vingativas (Tanatos) de Medeia, pesquiso o livro "Lembra-te De Que Sou Medeia" de Isabelle Stengers e esta autora coloca "que talvez
seja melhor introduzir no lugar de vingança, [...] o termo grego, pânico. Quando
Medeia compreende que Jasão vai abandoná-la, que a história deles, dolorosa e
criminosa, vai ser apagada sem deixar outros vestígios a não ser aqueles, intoleráveis, de sua própria memória, ela é invadida por um verdadeiro pânico. [...].Esses
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empreendimentos, para ela, eram os laços gloriosos que proclamavam um amor
na medida do seu ser. E, de repente, o mundo se torna vazio, a memória amiga
debochada, obscena. Medeia, a mulher, sabe que vai morrer, por causa disso, se
não chamar a Outra" (STENGERS, 2000). Ou seja, a irracional, a estrangeira, a
desconhecida. Enfim a desmesurada. Diz Medeia: "para quem procura a minha
morte posso ser cruel" (STENGERS, 2000).
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E privilegio - ao enigma da Medeia pulsional - a terceira questão que Freud
(1930/1976) aborda sobre o sentimento penoso das relações entre os sujeitos.
No caso de Medeia essas relações foram vividas de modo tão exacerbado que
despertou afetos no limite do habitualmente aceitável no humano. Para melhor
compreender sua reação paroxística vamos tentar nos acercar do perfil da sua
subjetividade.
Medeia é apresentada como revestida de onipotência. É mulher plena de
poderes, parece completa. Como veremos mais adiante em algumas ocasiões
elidia o masculino mais próximo de si que obstaculizava os seus movimentos.
Ora, a pergunta que fica então é: como uma mulher que se apresenta como
tão inteira vai se ligar a um homem, considerando que a aproximação masculino/feminino em princípio se dá pelo regime da falta?
Penso ser pontual colocar e explicitar então alguns antecedentes de Medeia antes da eclosão da tragédia - infanticídio.
"Jasão, ao atingir a maioridade, teria direito ao trono de Iolcos. Enquanto o
pai, Áison, o preparava para o reinado entregou o poder a um primo, Pélias,
que, chegada a hora de passar o trono a Jasão, recusou-se a fazê-lo e desterrou
Áison. [...]. Jasão, algum tempo depois, apresentou-se a Pélias e ousadamente
lhe exigiu de volta o reino usurpado. A decisão e a popularidade de Jasão intimidaram Pélias que, lembrou a Jasão que Aietes (Eetes), rei da Cólquida, tratara
desumanamente Frixo, parente de ambos, e o matara para apoderar-se do
Velocino de Ouro (pele de um carneiro prodigioso, alado, com lã de ouro).
Pélias alegou que já era idoso para empreender, ele próprio, a viagem punitiva e
exortou Jasão a fazê-lo, prometendo-lhe o trono caso ele regressasse vitorioso.
A expedição embarcou na nau Argo. [...]. À chegada dos "Argonautas", Aietes
(Eetes) que, segundo a lenda era filho do Sol, prometeu entregar-lhes o Velocino
de Ouro se Jasão pudesse realizar, em um mesmo dia, quatro proezas consideradas impossíveis. [...]. Mas, Hera, deusa mulher de Zeus, que simpatizava com
Jasão, teria feito com que Medeia [...] ficasse perdidamente apaixonada por Jasão
e prometesse, se este jurasse casar com ela e lhe ser eternamente fiel, ajudá-lo a
vencer, com seus poderes mágicos todas as provas sobre-humanas.
Os "Argonautas" reembarcam na Argo. Jasão ia levar consigo, além do
Velocino e Ouro, a apaixonada Medeia. Aietes (Eetes), ao tomar conhecimento
da fuga da filha e da proteção que esta dera a Jasão através dos seus poderes
mágicos, mandou seu filho Absirtes em perseguição aos fugitivos. Medeia matou seu irmão, e esquartejou o cadáver, espalhando-lhe os membros pelo caminho para desnortear o pai quando este viesse também em sua perseguição.
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O regresso dos "Argonautas" a Iolcos foi celebrado com grandes festas, às
quais o pai de Jasão, Áison, não poderia comparecer por causa de sua avançada
idade. Medeia, com seus remédios mágicos, devolveu-lhe a juventude. Pélias, o
usurpador da coroa de Iolcos, também quis ser rejuvenescido, mas Medeia,
instigada por Jasão, deu às filhas do rei, para aplicação no pai, uma receita,
propositadamente errada, que o matou (EURÍPEDES, 431 a.C/2011).
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A revolta da população de Iolcos contra Medeia e Jasão foi tão forte que os
dois tiveram de fugir para Corinto, onde viveram em perfeita união durante dez
anos. Nessa altura, porém, Jasão apaixonou-se por Glauce (Creusa), filha do rei
de Corinto (Creonte), e repudiou Medeia para poder casar com seu novo amor
(EURÍPEDES, 431 a.C/2011).
A partir do desfecho que Medeia realiza frente ao abandono infligido por
Jasão, farei alguns comentários a seguir.
Quem era Medeia? A mulher poderosa, ícone do feminino, e, que, como
supracitado, já era sanguinária - mata o irmão, para não atrapalhar a sua empreitada com Jasão e, incitada, mata o rei Pélias, o usurpador do trono de Jasão.
Medeia era (e é) um grito, um berro, um clamor atroz que ecoava e que
ecoa aos ventos, e, estes, nos trazendo o estarrecimento face a sua imagem do
caos e das forças maléficas. Às trágicas forças e a sua intensa radicalidade Medeia 'impõe' questionamentos e reflexões que se vivenciam como vida.
E, também, chama a atenção a sua posição frente ao masculino. Parece que
é matando, esquartejando e elidindo um masculino que a sua onipotência estaria ''a salvo', digamos assim.
Onipotência! Uma particularidade, que acredito ser pontual, deste mito/
mulher - Medeia, com a sua ''sede' de ter o domínio frente ao mundo do homem/
masculino, na prática da sua imortalização, tenta gerar seus filhos sem o recurso
do sêmen masculino, mas sim, através de beberagens (magias). Beberagens, estas,
que eram prioridades do universo dos homens arcaicos gregos.
Uma pausa para introduzir alguma literatura psicanalítica e associá-la ao
relato do meu trabalho.
Utilizo-me de ideias sobre temas referentes ao campo dos afetos e conceitos
psicanalíticos a partir, também, do livro Ressentimento de Maria Rita Kehl (2004).
O objetivo é refletir sobre o 'Efeito Medeia' e, desse modo, abordar a marca do
abandono experienciada por ela e que poderia tê-la lançado numa posição melancólica, vitimizada, com uma ferida narcísica 'eterna' favorecendo a esta 'feiticeira' tornar-se 'presa' de um profundo ressentimento. Mas o ressentimento em
Medeia foi um lampejo e se dissipou numa velocidade de um relâmpago.
Por que afirmo isto? Pois segundo Kehl, o ressentimento é cronificar o sujeito numa posição passiva, invejosa e destrutiva à distância. Desta posição,
como bem sabemos, se afasta Medeia, já que ela é afetada pelas forças irracionais da pulsão de morte (Tanatos).
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Sendo assim, não há mais realidade, afeto, laços e sim, apenas, o desencadear de um ódio que se materializa numa atitude de uma vingança cruel - mata
os filhos. Dessa maneira, reforço que a atitude de Medeia ao contrário de ressentimento foi uma atitude de "coragem vingativa" (KEHL, 2004).
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Examinemos agora a forma dessa vingança: ela mata os filhos de Jasão e
não os seus filhos, pois já não os possuía. Medeia não era mais nem mulher,
nem mãe e sim a feiticeira do ódio. Tratava-se, desse modo, de infligir a Jasão o
castigo da castração, e seguindo Brunel (1998), a sua imortalização através da
descendência. E Medeia, neta do Sol, sem sombras, deixa-se ver na face do seu
crime. Medeia, mais uma vez, age no tom de uma barbárie, libertando a estrangeira, ou seja, "a parte obscura de nós mesmos" (ROUDINESCO, 2008).
Ora, este movimento ensandecido, o de castrar, pois é disso que se trata, o
ex-marido nos dá uma 'pista' de como Medeia vivenciou o abandono - em espelho. Em espelho! E, dessa forma, podemos propor a ideia de que foi desta maneira que Medeia viveu/sentiu a sua separação: significou para si parte da perda do
seu corpo.
Faço um retrocesso na história e retomo ao ponto em que Medeia é
enfeitiçada pela paixão do amor (Eros) e se une a Jasão (um masculino). Volto à
pergunta: Por que este tipo de mulher se une a Jasão? Para triunfo de sua posição
de magia. Brilhando e ajudando a ele a vencer provas e conquistar o Velocino
de Ouro e tendo como garantias de que Jasão e o seu olhar apaixonado estariam
ligados a ela, fusionados fielmente e 'para sempre'.
Jasão ao buscar a sua liberdade se apaixona por Glauce (Creusa), filha do
rei Creonte. Medeia não hesita. Mata Glauce através de um plano de contornos
demoníacos. E Creonte vem a falecer ao assistir à morte de sua filha.
Podemos pensar, então, que Medeia é uma imagem desenraizada que nos
afeta, que nos invade com seus sentimentos de fúria, desembocando eles em
ações involucradas por crimes.
Retorno ao momento em que o olhar de Jasão se desprende do 'mundo' de
Medeia e se dirige atraído para outro 'mundo'- o de Glauce. Este é o ponto!
Jasão rompe com este ponto perverso, doentio e de servidão, e, quem sabe, de
uma dívida impagável. O pacto fusional se desfaz. E a desfusão é a gota d'água
que 'toca' Medeia em sua fúria assassina e, por conta disso, parece, comete o
infanticídio. Da ilusão de completude à desilusão (princípio da realidade).
Inimaginável e insuportável para Medeia sentir na carne o 'bisturi' da castração,
da separação, da dor e do existir.
Mas a incompletude se fez. A experiência da castração se presentificou.
Este lugar Medeia repudiava. Impensável tê-lo na sua circulação psíquica, pois
para Medeia ter um masculino ao seu lado se constituía num acréscimo (um
'pedacinho') de sua carne. Sua inteireza dependia de Jasão ser um pedaço seu.
O abandono de Jasão infligiu à Medeia mais do que um lugar de mulher
abandonada. Deslocou-a para o lugar de uma mulher castrada na sua completude.
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O mundo de Medeia se esvaziou, desmoronou e com ele todas as certezas
construídas por ela.
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Quem era ela? Mais uma vez estrangeira no seu próprio território. O território da castração. Terras nunca dantes visitadas por Medeia. Terras sem magias,
sem feitiços e sem deuses.
A uma Medeia mutilada, a outra Medeia implode.
E como se reinventar neste 'novo' lugar? Seria através do filicídio?
O trabalho termina. Eurípedes já escreveu Medeia. Esta peça já foi representada, cantada e poetizada. Mas as cortinas não se cerram...
Vislumbro uma questão a qual se afina com Escobar, in Stengers (2000): "A
perplexidade de Penteu (rei de Tebas e morto por Dionísio) frente a Dionísio
(deus grego dos ciclos vitais, das festas, das insânias) - é homem, é mulher? - é a
mesma perplexidade de todos nós frente a Medeia, o choro, o pânico, (o abandono, a castração- acréscimos meus) e o horror de Jasão".
Medeia - é homem, é mulher? Quem é Medeia, agora?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIRRAUX, A. A fobia, estrutura originária do pensamento
pensamento. Rio de Janeiro, 1992.
BRANDÃO, J. Teatro grego: tragédia e comédia
comédia. Petrópolis: Vozes, 1984.
BRUNEL, P. Dicionário de mitos literários
literários. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1998.
EURÍPEDES. Medeia
Medeia. São Paulo: Martin Claret, 2011. (Obra originalmente escrita em 431 a.C)
FREUD, S. A História do Movimento Psicanalítico. In _______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v.14. (Trabalho original publicado em 1914).
___________. O Mal-estar na civilização. In _______. Edição
dição standard brasileira das
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.21.
obras psicológicas completas de Sigmund Freud
(Trabalho original publicado em 1930).
Hybris-infopédia. Disponível em www.infopedia.pt/$hybris. Acessado: 05 abril 2013.
KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo - SP: Casa do Psicólogo, 2004.
ROUDINESCO, E. A Parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos
perversos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
STENGERS, I. Lembra-te de que sou Medeia
Medeia. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000.
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