«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores e

Transcrição

«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores e
 Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia
Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.
«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz
leitores e desconcerta tradutores
Maria Rosa Adanjo Correia – [email protected]
CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias)
Grupo de Investigação 2 - Literaturas e culturas Africanas
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Resumo
Baseando-se fundamentalmente na norma do português europeu (PE), Mia
Couto cria um discurso «novo», construindo, “des-construindo” e “reconstruindo” palavras. A partir do romance A Varanda do Frangipani, é
realizado um estudo dos processos de inovação lexical inerentes ao estilo
coutiano, em particular sobre a amálgama, onde se afirmam com maior
incidência as «escrevivências e brincriações» do autor, talvez aquelas que
levantam maiores obstáculos no processamento tradutório. Prefixação,
sufixação, composição convertem-se em jogos que usa com destreza para
incorporar diferentes categorias gramaticais, susceptíveis de variação
morfológica e matizes semânticos.
Abstract
Based mainly on European Portuguese (EP) norm, Mia Couto creates a
"new" speech, building, "de-building" and "re-building" words. Based on the
novel Under the Frangipani, we propose some interpretation of lexical
innovation processes inherent to Mia Couto’s style. We deal particularly
with amalgamation, in which the author’s “escrevivências brincriações”
have highest incidence, perhaps those who raise the greatest obstacles to
translational processing. Affixation, suffixation, composition turn into
games that deftly uses to incorporate different grammatical categories,
which can present morphological variation and semantic nuances.
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Mia Couto trouxe à língua a frescura da invenção e o contacto com o fantástico
caldeirão em que ela é falada e escrita por muitas e variadas gentes.
José Saramago
Sou um poeta que conta histórias. A prosa é o espaço onde a minha poesia se realiza.
Mas também é verdade que os formatos convencionais do romance (e menos o do
conto) devem ser questionados. As coisas que queremos dizer pedem formatos próprios.
Não existe um modelo que sirva. Não existe uma língua pronta a ser servida.
Mia Couto
A massificação do uso do Português nos novos países de língua
oficial portuguesa proporcionou a formação de variedades locais,
permitindo assim aos escritores um conjunto variado de opções: ou
escrever nas línguas nacionais, ou escrever em português padrão (PE
- português europeu), ou efetuar combinações lexicais e morfosintáticas entre o PE e as línguas nacionais, ou ainda criar, com base
nos conhecimentos das diversas línguas, um discurso literário
próprio.
No caso de Moçambique os autores “inseridos num sistema
primariamente gerado numa tradição literária portuguesa em
contexto de semiose colonial, movidos por um desejo de afirmar uma
identidade própria, produzem estratégias textuais que representam
uma atitude de ruptura com essa referência” (Matusse 1998). Em Mia
Couto a rutura realiza-se igualmente nível dos próprios cânones que
a política oficial impôs, mantendo-se fiel à essência da criação
literária e recusando a temática revolucionária do «homem novo»,
desde a publicação de Raiz de Orvalho “Pode-se falar da revolução
sem falar de política no sentido explícito do termo [...] era preciso
afirmar o EU, não contra o NÓS, mas a favor dum colectivo mais
verdadeiro” (Laban 1998). Mia Couto afirma-se assim, desde o início,
um autor independente distante da formatação estandardizada pelo
Estado nos tempos subsequentes à Independência Nacional.
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A dimensão humana tal como a invenção de uma linguagem sui
generis profundamente criativa, na esteira de Luandino Vieira,
Guimarães Rosa e Manoel de Barros, fruto de uma «brincriação» para
“experimentar os limites da própria língua e a transgredir no sentido de
criar um espaço de magia” (Laban 1998: 995-1040) desencadeou um
conjunto de procedimentos narrativos e discursivos, estimulando
uma adesão afetiva, misto de fascínio, sedução e de prazer, nos seus
leitores, levando-nos a ler e reler as suas estórias e romances.
No entanto, é importante frisar, que não é somente, a
«brincrição» linguística que o leitor procura e o atrai, é também, e
sobretudo, a «escrevivência» das temáticas, da criatividade das
situações onde nos são revelados quadros do quotidiano das
populações moçambicanas, ligando-as à ancestralidade, aos seus
dramas, carências, alegrias, fantasias e crenças com um realismo
simultaneamente rigoroso e mágico. É o olhar de denúncia,
focalizado nas vicissitudes e nos condicionalismos sociopolíticos, é a
relação afeiçoada aos seres, às pessoas, principalmente as mais fracas
como os «velhos» e as crianças, as mulheres e a condição feminina, a
defesa do homem anónimo, a denúncia do status quo, como podemos,
por exemplo, constatar em A Varanda do Frangipani, apenas para
indicar a obra de referência para esta comunicação. É ainda o humor
subtil da análise perspicaz de quem ama o que faz e sabe do que fala.
Basta ler ou ouvir as intervenções de Mia Couto sobre os mais
diversos temas da actualidade política nacional e internacional para
se compreender que o escritor não se limita à sua arte de escrever e
que os leitores não são «seduzidos» apenas pela «brincriação
vocabular».
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Em A Varanda do Frangipani conta, sob a forma de metáfora, a
História de Moçambique, como afirmou Luis Sepulveda na
contracapa da edição italiana “Un poeta capace di fare della storia del
suo paese, il Mozambico, una grande metafora: la metafora della
speranza e della magia come antagoniste di una realtà sinistra.”
(Parma 2002), através de uma linguagem intrinsecamente poética,
como ilustração de uma literatura “mestiça” corroborada por
Maryvonne Lapouge-Pettorelli a tradutora francesa, na contracapa da
edição francesa. “…ce récit fantastique poétique et souvent drôle
illustre toute la puissance d’évocation d’une littérature métissée, dans
son inspiration comme dans sa langue” (Paris 2000), a estrutura
aproxima-se das narrativas tradicionais africanas, onde as
personagens, narradoras da sua própria trama, se inter-relacionam
com a narrativa principal, num discurso predominante oralizante:
Navaia ao falar com o inspector adverte-o: “o senhor se aumente de
muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente” (p. 28).
Quer a escolha dos temas quer a forma de escrita são, segundo
o autor, fruto da sua situação de
…ser de fronteira, situado entre vários territórios (…)
contrabandista entre dois mundos (…) que tem algo de
conflituoso, pensei que tinha que inventar um outro personagem
dentro de mim e que criar uma língua para mim próprio, mas
hoje penso que já não é uma questão particular minha. Todo o
escritor é posto perante o mesmo problema, todo o escritor
inventa uma língua que é a sua, ele pode não transgredir a norma
gramatical, pode ser obediente em relação às regras de trânsito
da língua mas no fundo tem que introduzir qualquer coisa que
faça essa ruptura com a língua funcional que é a língua do
quotidiano. Para falar do que quero tenho muitas vezes de buscar
a palavra que não existe, fui empurrado para isso, porque vim da
poesia. A desobediência que a poesia encoraja em nós ajudou-me
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muito para que pudesse pensar a forma de minha escrita.
Também me ajudou muito a influência de Luandino Vieira e
mais tarde no meu segundo livro de contos, do Guimarães Rosa,
do Manoel de Barros (Jornal A Capital, Lisboa, 27/05/2000, Sou
um contrabandista entre dois mundos, Entrevista de Mia Couto a
Luísa Jeremias).
A devolução do conto às suas origens, incorporando-o na
oralidade ancestral de Moçambique, passa, entre outras estratégias,
pela linguagem coloquial, encaixilhando-a na estética tradicional
africana em diálogo oral/escrito. no caso de A Varanda do Frangipani,
por exemplo, encontramos a reprodução da atmosfera criada pelo
griot quando se dirigia ao seu auditório, a encenação criada pelo
inspector Izidine Naíta: “Depois do jantar, se sentaria junto à fogueira
a escutar o testemunho de cada um” (p. 25). Os velhos, por sua vez,
falam em tom imperativo, usando aforismos, e provérbios, próprios
dessa oralidade. Navaia, o primeiro a ser interrogado, estabelece
simbolicamente a relação que se repetirá com as restantes
personagens: uma atitude de não submissão ao domínio, da figura do
inspector, enviado da capital, e é ele, Navaia, investido do poder que
a idade lhe confere, portador da sabedoria ancestral, comportando-se
como um griot, que ordena a Izidine Naíta o que fazer:
Enquanto ouvir meus relatos você se guarde quieto. O silêncio é
que fabrica as janelas por onde o mundo se transparenta. Não
escreva, deixe esse caderno chão. Se comporte como água no
vidro. Quem é gota sempre pinga, quem é cacimbo se evapora.
Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha que aqui
vivemos muito oralmente. (p. 28)
Numa entrevista a Maria Leonor Nunes, referida por Luís
Filipe Leitão Pires na sua dissertação de Mestrado, Mia Couto
confessa “Quando eu mexia nas palavras, queria que elas
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funcionassem para dizer uma coisa. Não era apenas uma operação
estética, linguística, mas uma maneira de quebrar um muro para
mostrar que, do outro lado, havia uma outra luz” (Pires 2007: 50),
constata-se então que a inovação lexical coutiana é fruto de um
aturado trabalho criativo baseado nas regras de formação da palavras
em português europeu (doravante PE), dando luz a novas palavras,
que evocam mundos mágicos, míticos, fantásticos e surrealistas: os
neologismos lexicais, constituídos por processos de composição,
derivação e amálgama.
O estilo inovador de Mia Couto introduz-se com uma série de
termos e expressões, só encontradas a nível do inimaginável, a sua
imensa capacidade de invenção, patente, na recriação de um real
fantástico e mágico e, por exemplo, na concepção dos nomes das
personagens (Luarmina, Agualberto - Mar me quer; Esmerado Fabião,
Amadalena - O Fio das Missangas; Tia Admirança, João Loucomotiva Um Rio Chamado Tempo uma Casa Chamada Terra; Temporina,
Chupanga - O Último Voo do Flamingo; Andaré Tchuvisco - Vinte e
Zinco...).
Dentre as inovações lexicais sobressaem as amálgamas,
processo inexistente no português de Moçambique (doravante PM),
do mesmo modo que a ocorrência de associações resultantes dos
processos de composição e derivação ser muito dispersa no PM:
A novidade de Mia Couto consiste na sua associação a novas
bases, mesmo em casos em que o Português já dispõe de um
termo equivalente, como no caso das palavras ciumoso (vs
ciumento) ou sofrência (vs sofrimento). Contrastando a
linguagem de Mia Couto com o PM, verifica-se […] que, embora
nesta variedade do Português possam encontrar-se associações
lexicais igualmente prescritas pela norma europeia, o seu carácter
disperso e pouco frequente, não permite considerar que os
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neologismos presentes na obra de Mia Couto reproduzem termos
já em circulação no discurso desta comunidade linguística.
Assim, embora tanto no PM como nos textos de Mia Couto a
renovação lexical seja obtida por rearranjos de material lexical
disponível, a linguagem do escritor distingue-se da variedade
moçambicana do Português pela produtividade dos processos
lexicais utilizados: a nível da comunidade, a insegurança
linguística que caracteriza os locutores de L2s parece bloquear o
uso sistemático destas estratégias de produção do sentido, ao
passo que na obra de MC estas constituem um dos recursos mais
típicos da sua linguagem literária (Gonçalves 1997).
Como nas obras anteriores, o estilo de Mia Couto, em A Varanda
do Frangipani, prossegue a sua prosa poética no compromisso entre a
magia e o real, pretendendo revelar “uma realidade que só pode ser
contada através de certo sentido mágico e de certa transgressão de
fronteiras, entre o verso e a prosa, a escrita e a oralidade. E a poesia
ajuda a fazer essa desmontagem.” (Martins 2002).
Fixemo-nos, então, na amálgama lexical, o processo de inovação
lexical de Mia Couto mais produtivo e mais problemático no que
respeita à interpretação e, consequentemente à tradução. Não nos
parece estranho, portanto, que haja dificuldade em traduzir, por
exemplo, e apenas para apontar algumas das amálgamas presentes
em A Varanda do Frangipani: ATARANTONTO, ATRAPALHAÇO,
CAMBALINHANTE,
CREPUSCALADA,
DESENCRISPAR,
DEVASTIDÃO,
ESCORREGATINHOSA,
ESPARRAMORTO,
ESTREMEXE, FRAQUELEZA, INESPARADO, INFLAMEJAR,
INUTENSÍLIO, LIQUIDESFEITA, MAISTRAVEZ, SALPINGAR,
TREMEXER, TRISTONTO… e que talvez muita desta riqueza
vocabular se perca nas traduções que são feitas das obras deste autor.
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Como podemos verificar a formação de uma palavra
amalgamada permite o alargamento do significado e um percurso
para variadas interpretações, pois as combinações são contingentes e
não se descortina qualquer regra.
Vejamos quais as soluções encontradas por Maryvonne
Lapouge-Pettorelli, David Brookshaw e Roberto Mulinacci,
respetivamente, a tradutora francesa e os tradutores inglês e italiano.
Nunca é demais ter presente que traduzir é adaptar a língua-fonte à
língua-alvo, implicando continuamente a negociação, uma vez que
“ao traduzir nunca se diz a mesma coisa. A interpretação que antecede
todas as traduções tem de estabelecer quantas e quais das possíveis
consequências ilativas que o termo sugere poderão ser limadas. Sem
nunca se ter completamente a certeza de não ter perdido um reflexo
ultravioleta, ou uma ilusão infravermelha” (Eco 2005: 95).
Dentre o grande número de possibilidades foram eleitas
algumas amálgamas que nos pareceram exemplares em virtude da
problemática da sua tradução, dependente das interpretações e/ou
dos contextos.
ATARANTONTO
atarantado + tonto (adjetivo + adjetivo) > = atarantonto (adjetivo)
Original
Corri ao quarto de Izidine e o chamei. – Depressa, venha por aqui! Eles já
aí estão.O homem, primeiro, me desconfiou, atarantonto.– Quem é
você?(p. 148)
Francês
L’homme commença, embarrassé, par se méfier. (p. 194)
Inglês
At first, the fellow was suspicious of me, confused and
bewildered. (p. 146)
Italiano
L’uomo, dapprima, ha diffidato di me, smarrintontito. (p. 146)
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O significado de “atarantonto” é redundante, visto atarantado e
tonto comungarem a área semântica. Em francês temos apenas um
adjetivo equivalente à amálgama; em inglês dois adjetivos
redundantes; em italiano uma amálgama smarrintontito (smarrito +
intontito), o que foi confirmado pelo tradutor.
TRISTONTO
triste + tonto (adjetivo + adjetivo) = tristonto (adjetivo)
Original
Até que engravidei. [...]. Não quis dizer a ninguém [...] Mas para meu
espanto, Ernestina me visitou um desses dias E me perguntou: – Quando
será? Eu nem sabia responder [...] Me abri, honesta como um diário de
adolescente. E lhe disse:– Vou tirar esta criança. [...] Ela simplesmente se
ajoelhou e encostou a palma da mão no meu ventre. [...] Depois,
tristonta, ela implorou: – Me entregue esse menino. (pp. 132-3)
Francês
Ensuite, tristéperdue, elle implora ... (p. 174)
Inglês
Then, frantic with sadness, she begged... (p. 129)
Italiano
Poi, tristontita, mi implorò(p. 131)
No caso de “tristonto” os dois adjetivos são de áreas semânticas
diversas e as traduções refletem várias formas: as traduções francesa
e italiana refletem a amálgama do original, respetivamente,
“tristéperdu” (triste + éperdu) e “tristontito” (triste + intontito),
confirmado pelo tradutor italiano. O inglês optou por dois adjetivos.
De sublinhar que em italiano temos “tontito”, como no original,
quer em ataratanto quer em tristonto, o que não aconteceu nas outras
traduções.
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ATRAPALHAÇO
atrapalhado (adjetivo)+
atrapalhaço (adjetivo)
palhaço
(adjetivo
e
substantivo)
=
Original
De necessitado eu passava a necessário. Por isso me covavam o cemitério,
bem fundo no quintal da fortaleza. Quando percebi até fiquei atrapalhaço.
(p. 14)
Francês
Lorsque je m’en aperçus, je restai quasi sans contenance (p. 14)
Inglês
When I realised what was happening, I didn’t know what to do.
(p. 4)
Italiano
Quando mi ne resi conto, rimasi impagliacciato (p. 12)
A tradução francesa e a inglesa parafraseiam e retém apenas o
sentido de “atrapalhado”. O tradutor italiano criou uma amálgama:
impagliare + pagliaccio, retendo também o sentido de “atrapalhado”
(confirmado pelo tradutor).
CREPUSCALADO
crepúsculo (substantivo) + calado (adjetivo) = crepuscalado (adjetivo)
Original
Sobrei ali, crepuscalada, sem saber o que pensar. A quem eu, afinal,
haveria de obedecer ? [...] Confusa, incapaz de tomar decisão fui dando
andamento à minha barriga. (p. 135)
Francês
Je restai là, crépusculaire, sans savoir que penser (p. 176)
Inglês
I was left there, puzzled, at a loss to know what to think. (p. 132)
Italiano
Rimasi lì, crepuscolarmuta, senza sapere cosa pensare. (p. 133)
O autor transfere o sentido de crepúsculo, momento em que as
formas não são claras, devido à claridade ténue e difusa, para o
pensamento da personagem, que está confusa ao mesmo tempo que
se mantém calada por não saber o que fazer. As traduções francesa e
inglesa omitem o sentido relativo a “calada” O tradutor italiano
reproduziu a amálgama.
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ESCORREGATINHOSO
escorregar (verbo ) + gatinhoso (adjetivo) = escorregatinhoso
(adjetivo)
Original
Há muito tempo, antes de vir para este asilo, fui enviada para um campo
de reeducação. Me desterraram nesse campo acusada de namoradeira,
escorregatinhosa em homens e garrafas. [...] Nesse campo eu cumpria a
sentença eu me degradava a custo de sexo, bebida e seringa (p. 130)
Francês
J’ai été déportai dans ce camp parce qu’on m’accusait d’être une
fille facile toujours en train de courir, chatte en chaleur, derrière
les hommes et d’aimer la bouteille. (p. 171)
Inglês
They carted me off to this camp charged with being a loose
woman, as fast and slippery with men as with a bottle. (p. 126)
Italiano
Mi esiliarono in questo campo con l’accusa di essere una civetta,
scivologattinosa su uomini e bottiglie. (p. 128)
“Escorregatinhosa” classificando Marta como uma mulher
alcoólica e leviana, que nos é sugerido por “escorregar”, polissémico
em PE, [escorregar (Dic. A.C.1502) – cair, deslizar; (nível familiar)
cometer um erro ou uma falha, um deslize] e a imagem “gatinhosa”.
“Gatinhoso” palavra inexistente em PE, derivada de “gatinho” com o
sufixo derivacional -osa, criação do autor. A tradução inglesa
reproduziu só o primeiro sentido com uma paráfrase, a francesa com
uma paráfrase considera os dois significados. No caso da tradução
italiana temos uma amálgama que contempla os dois significados
“scivolosa comme una donna cha fa la gattina” (Nota del Traduttore).
Esta amálgama, em nosso entender, constitui um exemplo
típico da problemática relativa à interpretação: «gatinhosa»”, sugerenos a imagem de uma gata em cio, que se rasteja, sendo esta a
interpretação de Cavacas (1999: 108), Laban (1999: 500), no entanto,
vimos que Marta afirmou que se “degradava a custo de sexo, bebida”,
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sendo legítimo interpretar como «tinhosa» a segunda parte da
amálgama, como aconteceu na tradução catalã “acusada de coqueta,
de relliscatinyosa en homes i ampollas” (El balcó del Frangipani, p.130,
(1997, Andorra, Limits, Heredia, Goretti Lopez). Ou ainda o caso da
tradução croata (pod stablom frangipanija, 2003, Zagreb, Vitrail) cuja
tradutora, Tanja Tarbuk teve dificuldade em encontrar uma
equivalência, como esclareceu por e-mail:
Acerca do termo escorregatinhosa, devo dizer-te que foi
impossível traduzir para croata com tal sentido e conotações que
tem em português. A palavra croata que eu usei "lijepila sam se"
tem significado de estar colado e escorrer, mas com conota coes
de andar atrás dos homens (ou mulheres) ou exagerar com as
bebidas…
ESPARRAMORTO
esparramado (adjetivo ) + morto (adjetivo) = esparramorto (adjetivo)
Original
O certo é que os do helicóptero deram com o corpo de Excelêncio
esparramorto nas rochas da barreira. Viram-no quando o aparelho se
aproximava da fortaleza. (pp. 23-24)
Francês
Le sûr est que ceux de l’hélicoptère étaient tombés sur le corps de
Vasto Excelêncio, étendu-mort sur les rochers de la falaise (p. 28)
Inglês
What was certain was that the helicopter crew had found
Excellency’s body sprawled across the rocks below the front
rampart.(p. 15)
Italiano
La cosa certa è che quelli dell’elicottero si erano imbattuti nel
corpo di Excelêncio sparpamorto sugli scogli della barriera. (p. 21)
Nesta amálgama encontramos em francês uma palavra
derivada por justaposição, considerando os dois significados, em
inglês um verbo regido por preposição e em italiano uma amálgama,
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mas em todas as traduções depara-se-nos a imagem que Mia Couto
pretendeu expressar.
INEBRILHANTE
inebriante (adjetivo) + brilhante (adjetivo) = inebrilhante (adjetivo)
Original
A enfermeira dava corpo à visitadora de minhas noites na cubata. [...]
Marta me recordava essa visão inebrilhante. Como um bicho
subterrâneo, a lembrança me cavava no peito um outro coração. (p. 124)
Francês
Marta me remémorait cette vision enivrillante. (p. 163)
Inglês
Marta reminded me of this figment of my imagination,
intoxicating and brilliant
Italiano
Marta mi ricordava questa visione, inebrillante. (p. 121)
A tradução inglesa aplica duas palavras para exprimir os dois
sentidos da amálgama original. As traduções italiana e francesa
realizaram, tal como o original, amálgamas:
INESPARADO
inesperado (adjetivo ) + parado (adjetivo) = inesparado (adjetivo)
Original
Aquilo me arranhou, fossem palavras proferidas por garganta de bicho. O
mulato prosseguiu, sempre me abestinhando: Não tenha medo, velho
rezingão. Amanhã já vou daqui embora. Fiquei surpreso, inesparado: o
sacana nos deixava, assim? E de que maneira ele se retirava? Não
acredita? (p. 52)
Francês
Stupéfait, je restai coi: le salopard nous tirait la révérence comme
ça, sans crier gare? ... (p. 69)
Inglês
I was surprised, taken aback the scoundrel was leaving us just like
that? (p. 47)
Italiano
Rimasi sorpreso, impreparato: quella canaglia, così, ci lasciava? ...
(p. 50)
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Em «inesparado» o neologismo criado é sinónimo de
«especado» - parado devido à surpresa. Assim, verifica-se que
«inesparado» é redundância de «surpreso». Em todas as traduções é
adotada a redundância.
INFLAMEJAR
inflamar (verbo) + flamejar (verbo) = (verbo) inflamejar
Original
- Estou quase para morrer, Nhonhoso. [...] Estremeci ao escutar estas
palavras. Aquele branco tinha sido tão companheiro dos últimos anos que
eu me inimaginaca sem a existência dele.[...] Mas não eram apenas
receios que me assaltaram. Eu estava triste de inflamejar os olhos (pp.
65-6)
Francês
J’étais triste à en avoir les yeux qui me brûlaient. (p. 8)
Inglês
I was so sad, my eyes became inflamed. (p. 61)
Italiano
Io ero triste da far infiammeggiare gli occhi. (p. 64)
Em francês e inglês os tradutores preferiram o sentido de
inflamar. O tradutor italiano fez uma amálgamana: Infiammare +
fiammeggiare.
Nesta amálgama coutiana observa-se ainda uma interpretação
controversa dos elementos que a compõem, embora não
questionemos a escolha inflamar+flamejar, assim como Celina
Martins, esta autora avança também “como segunda alternativa de
leitura o novo verbo também funde «inflar» e «flamejar»” (Martins
2006: 200), observámos ainda a perspetiva de in+flamejar, tratandose, assim, de uma palavra derivada. (Freitas 2005: 322).
LIQUIDESFEITO
líquido (substantivo) + desfeito (adjetivo) = liquidesfeito
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Original
Aquilo que o fugitivo acreditava serem ondas, de repente, se
solidificavam, empedernidas. E os penedos se dissolviam liquidesfeitos.
(p.44)
Francês
Et les rochers, se dissolvant, s’étaient liquéfiés. (p.57)
Inglês
And the great boulders dissolved into liquid. (p.39)
Italiano
E gli scogli si dissolvevano, liquefatti.(p.42)
Original
Meu leito é, por essa razão, uma banheira. [...] me deito e começo a
transpirando até às farturas, a carne se traduzindo em suores. Escorro,
liquidesfeita. Nunca houve quem assistisse até ao final quando eu me
desvanecia, transparente, na banheira. (p.85)
Francês
Et je me liquéfie, liquidéfaite. (p.114)
Inglês
I drain away into a liquidescence. (p.79)
Italiano
Scorro, liquidisfatta. (p.101)
O neologismo criado é uma redundância, as duas palavras
pertencem à mesma área semântica.
No primeiro caso as três traduções são literais ignorando a
amálgama do significante, enquanto que na segunda situação todos
criaram
uma
amálgama:
liquide+faite;
liquide+essence;
liquido+disfatta.
Conclusão
Ler Mia Couto, é simultaneamente, aprender a conhecer outras
formas de viver e pensar, desfrutar de uma estória que nos conduz ao
outro lado do mundo, que nos transporta para outras vivências, e é
também apreendermos novas formas de transmitir realidades
surpreendentes, é imergir na magia dos ambientes onde se movem as
suas personagens e poder mergulhar nas profundezas da
ancestralidade afro-moçambicana conduzidos pela escrevivência
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coutiana, comungando num processo lúdico de desmontagem de
novas palavras, homenageando o seu criador numa brincriação
também nossa.
Traduzir Mia Couto é ser o leitor privilegiado, que procura
rasgar o «espartilhado» de duas fidelidades: à fonte e ao alvo; é
também ousar “brincriar”, incentivando os leitores da «outra» cultura
a sentiram também eles estranheza e prazer num texto que os
exortará a decifrar novas formas de dizer e a viajar para outras
latitudes.
Sabemos que a cultura de chegada irá condicionar a
“configuração” do texto traduzido, enquanto produto, que os
tradutores terão todo o interesse em adaptar o trabalho para a
receção, sem que para isso «olvidem» o seu vínculo ao texto de
origem mantendo alguma das suas características intrínsecas, como
adverte Gideon Toury: “...la posición (función) [futura] de una
traducción dentro de la cultura receptora […] debería considerarse
como factor que condiciona en gran manera la configuración misma
del producto, en cuánto a modelos subyacentes, representación
lingüística, o ambos (Toury 2004: 48).
Se refletirmos na forma de como estes tradutores resolveram os
problemas levantados pelo estilo inovador de Mia Couto,
fundamentalmente no que concerne às amálgamas, constatamos que
não houve uniformidade, nem poderia haver, na resolução desses
mesmos problemas. Podemos, no entanto, subsumir as opções destes
tradutores no depoimento de Mulinacci ao afirmar
Seria uma pena perder [o] aspecto fascinante da sua obra,
normalizando-o numa tradução meramente comunicativa - isto é,
visando reproduzir o significado das palavras a fim de permitir
apenas a compreensão do texto -, em lugar de tentar valorizá-lo
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através de uma tradução também evocativa, ou seja, capaz de
sugerir no leitor as ressonâncias ocultas da escrita. […] [trata-se
de] um desafio difícil de vencer, porque, a língua italiana não
permite liberdades dessas, ou, digamos assim, permite-as, mas
sob pena da incompreensão, a ponto de ser preferível, talvez,
equivalências semânticas embora não estilísticas. Será, porém,
que eu gosto dos desafios ou que simplesmente sou um
imprudente, mas não podia aceitar um italiano padrão para dar
voz - no sentido literal! - a um mundo que se encontra fora dos
nossos padrões culturais e das nossas categorias de pensamento.
Por outras palavras, dei-me conta da impossibilidade de dizer o
outro através do mesmo e por isso escolhi esta língua impura,
repleta de expressões neológicas que - sei bem - são uma aposta,
para além de uma invenção absoluta. E, sobretudo, é lícito
sacrificar a forma em nome do conteúdo, quando é evidente que
aquela forma de-forma os nossos conteúdos mentais para
recombiná-los em formas novas, as quais constituem, afinal, o
autêntico conteúdo romanesco, para além da história/estória que
ali se vai contando? […] O que, pelo contrário, tem importância a
meu ver é porém justamente a capacidade do texto traduzido de
reproduzir a ambiguidade do texto original, se é verdade, que
um leitor de língua materna tem provavelmente as mesmas
dúvidas - para a compreensão perfeita do termo - de um leitor
italiano, espanhol ou francês. Não é importante, afinal, que o
tradutor interprete o texto mais do que é lícito e sobretudo ele
não deve substituir o autor na tentativa de esclarecer o que o
autor deixou implícito. (Excertos de carta de Roberto Mulinacci a
Rosa Adanjo Correia 2002: Bolonha).
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