«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores e
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«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores e
Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012. «Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores e desconcerta tradutores Maria Rosa Adanjo Correia – [email protected] CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias) Grupo de Investigação 2 - Literaturas e culturas Africanas Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Resumo Baseando-se fundamentalmente na norma do português europeu (PE), Mia Couto cria um discurso «novo», construindo, “des-construindo” e “reconstruindo” palavras. A partir do romance A Varanda do Frangipani, é realizado um estudo dos processos de inovação lexical inerentes ao estilo coutiano, em particular sobre a amálgama, onde se afirmam com maior incidência as «escrevivências e brincriações» do autor, talvez aquelas que levantam maiores obstáculos no processamento tradutório. Prefixação, sufixação, composição convertem-se em jogos que usa com destreza para incorporar diferentes categorias gramaticais, susceptíveis de variação morfológica e matizes semânticos. Abstract Based mainly on European Portuguese (EP) norm, Mia Couto creates a "new" speech, building, "de-building" and "re-building" words. Based on the novel Under the Frangipani, we propose some interpretation of lexical innovation processes inherent to Mia Couto’s style. We deal particularly with amalgamation, in which the author’s “escrevivências brincriações” have highest incidence, perhaps those who raise the greatest obstacles to translational processing. Affixation, suffixation, composition turn into games that deftly uses to incorporate different grammatical categories, which can present morphological variation and semantic nuances. Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 74 Mia Couto trouxe à língua a frescura da invenção e o contacto com o fantástico caldeirão em que ela é falada e escrita por muitas e variadas gentes. José Saramago Sou um poeta que conta histórias. A prosa é o espaço onde a minha poesia se realiza. Mas também é verdade que os formatos convencionais do romance (e menos o do conto) devem ser questionados. As coisas que queremos dizer pedem formatos próprios. Não existe um modelo que sirva. Não existe uma língua pronta a ser servida. Mia Couto A massificação do uso do Português nos novos países de língua oficial portuguesa proporcionou a formação de variedades locais, permitindo assim aos escritores um conjunto variado de opções: ou escrever nas línguas nacionais, ou escrever em português padrão (PE - português europeu), ou efetuar combinações lexicais e morfosintáticas entre o PE e as línguas nacionais, ou ainda criar, com base nos conhecimentos das diversas línguas, um discurso literário próprio. No caso de Moçambique os autores “inseridos num sistema primariamente gerado numa tradição literária portuguesa em contexto de semiose colonial, movidos por um desejo de afirmar uma identidade própria, produzem estratégias textuais que representam uma atitude de ruptura com essa referência” (Matusse 1998). Em Mia Couto a rutura realiza-se igualmente nível dos próprios cânones que a política oficial impôs, mantendo-se fiel à essência da criação literária e recusando a temática revolucionária do «homem novo», desde a publicação de Raiz de Orvalho “Pode-se falar da revolução sem falar de política no sentido explícito do termo [...] era preciso afirmar o EU, não contra o NÓS, mas a favor dum colectivo mais verdadeiro” (Laban 1998). Mia Couto afirma-se assim, desde o início, um autor independente distante da formatação estandardizada pelo Estado nos tempos subsequentes à Independência Nacional. Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 75 A dimensão humana tal como a invenção de uma linguagem sui generis profundamente criativa, na esteira de Luandino Vieira, Guimarães Rosa e Manoel de Barros, fruto de uma «brincriação» para “experimentar os limites da própria língua e a transgredir no sentido de criar um espaço de magia” (Laban 1998: 995-1040) desencadeou um conjunto de procedimentos narrativos e discursivos, estimulando uma adesão afetiva, misto de fascínio, sedução e de prazer, nos seus leitores, levando-nos a ler e reler as suas estórias e romances. No entanto, é importante frisar, que não é somente, a «brincrição» linguística que o leitor procura e o atrai, é também, e sobretudo, a «escrevivência» das temáticas, da criatividade das situações onde nos são revelados quadros do quotidiano das populações moçambicanas, ligando-as à ancestralidade, aos seus dramas, carências, alegrias, fantasias e crenças com um realismo simultaneamente rigoroso e mágico. É o olhar de denúncia, focalizado nas vicissitudes e nos condicionalismos sociopolíticos, é a relação afeiçoada aos seres, às pessoas, principalmente as mais fracas como os «velhos» e as crianças, as mulheres e a condição feminina, a defesa do homem anónimo, a denúncia do status quo, como podemos, por exemplo, constatar em A Varanda do Frangipani, apenas para indicar a obra de referência para esta comunicação. É ainda o humor subtil da análise perspicaz de quem ama o que faz e sabe do que fala. Basta ler ou ouvir as intervenções de Mia Couto sobre os mais diversos temas da actualidade política nacional e internacional para se compreender que o escritor não se limita à sua arte de escrever e que os leitores não são «seduzidos» apenas pela «brincriação vocabular». Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 76 Em A Varanda do Frangipani conta, sob a forma de metáfora, a História de Moçambique, como afirmou Luis Sepulveda na contracapa da edição italiana “Un poeta capace di fare della storia del suo paese, il Mozambico, una grande metafora: la metafora della speranza e della magia come antagoniste di una realtà sinistra.” (Parma 2002), através de uma linguagem intrinsecamente poética, como ilustração de uma literatura “mestiça” corroborada por Maryvonne Lapouge-Pettorelli a tradutora francesa, na contracapa da edição francesa. “…ce récit fantastique poétique et souvent drôle illustre toute la puissance d’évocation d’une littérature métissée, dans son inspiration comme dans sa langue” (Paris 2000), a estrutura aproxima-se das narrativas tradicionais africanas, onde as personagens, narradoras da sua própria trama, se inter-relacionam com a narrativa principal, num discurso predominante oralizante: Navaia ao falar com o inspector adverte-o: “o senhor se aumente de muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente” (p. 28). Quer a escolha dos temas quer a forma de escrita são, segundo o autor, fruto da sua situação de …ser de fronteira, situado entre vários territórios (…) contrabandista entre dois mundos (…) que tem algo de conflituoso, pensei que tinha que inventar um outro personagem dentro de mim e que criar uma língua para mim próprio, mas hoje penso que já não é uma questão particular minha. Todo o escritor é posto perante o mesmo problema, todo o escritor inventa uma língua que é a sua, ele pode não transgredir a norma gramatical, pode ser obediente em relação às regras de trânsito da língua mas no fundo tem que introduzir qualquer coisa que faça essa ruptura com a língua funcional que é a língua do quotidiano. Para falar do que quero tenho muitas vezes de buscar a palavra que não existe, fui empurrado para isso, porque vim da poesia. A desobediência que a poesia encoraja em nós ajudou-me Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 77 muito para que pudesse pensar a forma de minha escrita. Também me ajudou muito a influência de Luandino Vieira e mais tarde no meu segundo livro de contos, do Guimarães Rosa, do Manoel de Barros (Jornal A Capital, Lisboa, 27/05/2000, Sou um contrabandista entre dois mundos, Entrevista de Mia Couto a Luísa Jeremias). A devolução do conto às suas origens, incorporando-o na oralidade ancestral de Moçambique, passa, entre outras estratégias, pela linguagem coloquial, encaixilhando-a na estética tradicional africana em diálogo oral/escrito. no caso de A Varanda do Frangipani, por exemplo, encontramos a reprodução da atmosfera criada pelo griot quando se dirigia ao seu auditório, a encenação criada pelo inspector Izidine Naíta: “Depois do jantar, se sentaria junto à fogueira a escutar o testemunho de cada um” (p. 25). Os velhos, por sua vez, falam em tom imperativo, usando aforismos, e provérbios, próprios dessa oralidade. Navaia, o primeiro a ser interrogado, estabelece simbolicamente a relação que se repetirá com as restantes personagens: uma atitude de não submissão ao domínio, da figura do inspector, enviado da capital, e é ele, Navaia, investido do poder que a idade lhe confere, portador da sabedoria ancestral, comportando-se como um griot, que ordena a Izidine Naíta o que fazer: Enquanto ouvir meus relatos você se guarde quieto. O silêncio é que fabrica as janelas por onde o mundo se transparenta. Não escreva, deixe esse caderno chão. Se comporte como água no vidro. Quem é gota sempre pinga, quem é cacimbo se evapora. Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha que aqui vivemos muito oralmente. (p. 28) Numa entrevista a Maria Leonor Nunes, referida por Luís Filipe Leitão Pires na sua dissertação de Mestrado, Mia Couto confessa “Quando eu mexia nas palavras, queria que elas Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 78 funcionassem para dizer uma coisa. Não era apenas uma operação estética, linguística, mas uma maneira de quebrar um muro para mostrar que, do outro lado, havia uma outra luz” (Pires 2007: 50), constata-se então que a inovação lexical coutiana é fruto de um aturado trabalho criativo baseado nas regras de formação da palavras em português europeu (doravante PE), dando luz a novas palavras, que evocam mundos mágicos, míticos, fantásticos e surrealistas: os neologismos lexicais, constituídos por processos de composição, derivação e amálgama. O estilo inovador de Mia Couto introduz-se com uma série de termos e expressões, só encontradas a nível do inimaginável, a sua imensa capacidade de invenção, patente, na recriação de um real fantástico e mágico e, por exemplo, na concepção dos nomes das personagens (Luarmina, Agualberto - Mar me quer; Esmerado Fabião, Amadalena - O Fio das Missangas; Tia Admirança, João Loucomotiva Um Rio Chamado Tempo uma Casa Chamada Terra; Temporina, Chupanga - O Último Voo do Flamingo; Andaré Tchuvisco - Vinte e Zinco...). Dentre as inovações lexicais sobressaem as amálgamas, processo inexistente no português de Moçambique (doravante PM), do mesmo modo que a ocorrência de associações resultantes dos processos de composição e derivação ser muito dispersa no PM: A novidade de Mia Couto consiste na sua associação a novas bases, mesmo em casos em que o Português já dispõe de um termo equivalente, como no caso das palavras ciumoso (vs ciumento) ou sofrência (vs sofrimento). Contrastando a linguagem de Mia Couto com o PM, verifica-se […] que, embora nesta variedade do Português possam encontrar-se associações lexicais igualmente prescritas pela norma europeia, o seu carácter disperso e pouco frequente, não permite considerar que os Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 79 neologismos presentes na obra de Mia Couto reproduzem termos já em circulação no discurso desta comunidade linguística. Assim, embora tanto no PM como nos textos de Mia Couto a renovação lexical seja obtida por rearranjos de material lexical disponível, a linguagem do escritor distingue-se da variedade moçambicana do Português pela produtividade dos processos lexicais utilizados: a nível da comunidade, a insegurança linguística que caracteriza os locutores de L2s parece bloquear o uso sistemático destas estratégias de produção do sentido, ao passo que na obra de MC estas constituem um dos recursos mais típicos da sua linguagem literária (Gonçalves 1997). Como nas obras anteriores, o estilo de Mia Couto, em A Varanda do Frangipani, prossegue a sua prosa poética no compromisso entre a magia e o real, pretendendo revelar “uma realidade que só pode ser contada através de certo sentido mágico e de certa transgressão de fronteiras, entre o verso e a prosa, a escrita e a oralidade. E a poesia ajuda a fazer essa desmontagem.” (Martins 2002). Fixemo-nos, então, na amálgama lexical, o processo de inovação lexical de Mia Couto mais produtivo e mais problemático no que respeita à interpretação e, consequentemente à tradução. Não nos parece estranho, portanto, que haja dificuldade em traduzir, por exemplo, e apenas para apontar algumas das amálgamas presentes em A Varanda do Frangipani: ATARANTONTO, ATRAPALHAÇO, CAMBALINHANTE, CREPUSCALADA, DESENCRISPAR, DEVASTIDÃO, ESCORREGATINHOSA, ESPARRAMORTO, ESTREMEXE, FRAQUELEZA, INESPARADO, INFLAMEJAR, INUTENSÍLIO, LIQUIDESFEITA, MAISTRAVEZ, SALPINGAR, TREMEXER, TRISTONTO… e que talvez muita desta riqueza vocabular se perca nas traduções que são feitas das obras deste autor. Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 80 Como podemos verificar a formação de uma palavra amalgamada permite o alargamento do significado e um percurso para variadas interpretações, pois as combinações são contingentes e não se descortina qualquer regra. Vejamos quais as soluções encontradas por Maryvonne Lapouge-Pettorelli, David Brookshaw e Roberto Mulinacci, respetivamente, a tradutora francesa e os tradutores inglês e italiano. Nunca é demais ter presente que traduzir é adaptar a língua-fonte à língua-alvo, implicando continuamente a negociação, uma vez que “ao traduzir nunca se diz a mesma coisa. A interpretação que antecede todas as traduções tem de estabelecer quantas e quais das possíveis consequências ilativas que o termo sugere poderão ser limadas. Sem nunca se ter completamente a certeza de não ter perdido um reflexo ultravioleta, ou uma ilusão infravermelha” (Eco 2005: 95). Dentre o grande número de possibilidades foram eleitas algumas amálgamas que nos pareceram exemplares em virtude da problemática da sua tradução, dependente das interpretações e/ou dos contextos. ATARANTONTO atarantado + tonto (adjetivo + adjetivo) > = atarantonto (adjetivo) Original Corri ao quarto de Izidine e o chamei. – Depressa, venha por aqui! Eles já aí estão.O homem, primeiro, me desconfiou, atarantonto.– Quem é você?(p. 148) Francês L’homme commença, embarrassé, par se méfier. (p. 194) Inglês At first, the fellow was suspicious of me, confused and bewildered. (p. 146) Italiano L’uomo, dapprima, ha diffidato di me, smarrintontito. (p. 146) Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 81 O significado de “atarantonto” é redundante, visto atarantado e tonto comungarem a área semântica. Em francês temos apenas um adjetivo equivalente à amálgama; em inglês dois adjetivos redundantes; em italiano uma amálgama smarrintontito (smarrito + intontito), o que foi confirmado pelo tradutor. TRISTONTO triste + tonto (adjetivo + adjetivo) = tristonto (adjetivo) Original Até que engravidei. [...]. Não quis dizer a ninguém [...] Mas para meu espanto, Ernestina me visitou um desses dias E me perguntou: – Quando será? Eu nem sabia responder [...] Me abri, honesta como um diário de adolescente. E lhe disse:– Vou tirar esta criança. [...] Ela simplesmente se ajoelhou e encostou a palma da mão no meu ventre. [...] Depois, tristonta, ela implorou: – Me entregue esse menino. (pp. 132-3) Francês Ensuite, tristéperdue, elle implora ... (p. 174) Inglês Then, frantic with sadness, she begged... (p. 129) Italiano Poi, tristontita, mi implorò(p. 131) No caso de “tristonto” os dois adjetivos são de áreas semânticas diversas e as traduções refletem várias formas: as traduções francesa e italiana refletem a amálgama do original, respetivamente, “tristéperdu” (triste + éperdu) e “tristontito” (triste + intontito), confirmado pelo tradutor italiano. O inglês optou por dois adjetivos. De sublinhar que em italiano temos “tontito”, como no original, quer em ataratanto quer em tristonto, o que não aconteceu nas outras traduções. Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 82 ATRAPALHAÇO atrapalhado (adjetivo)+ atrapalhaço (adjetivo) palhaço (adjetivo e substantivo) = Original De necessitado eu passava a necessário. Por isso me covavam o cemitério, bem fundo no quintal da fortaleza. Quando percebi até fiquei atrapalhaço. (p. 14) Francês Lorsque je m’en aperçus, je restai quasi sans contenance (p. 14) Inglês When I realised what was happening, I didn’t know what to do. (p. 4) Italiano Quando mi ne resi conto, rimasi impagliacciato (p. 12) A tradução francesa e a inglesa parafraseiam e retém apenas o sentido de “atrapalhado”. O tradutor italiano criou uma amálgama: impagliare + pagliaccio, retendo também o sentido de “atrapalhado” (confirmado pelo tradutor). CREPUSCALADO crepúsculo (substantivo) + calado (adjetivo) = crepuscalado (adjetivo) Original Sobrei ali, crepuscalada, sem saber o que pensar. A quem eu, afinal, haveria de obedecer ? [...] Confusa, incapaz de tomar decisão fui dando andamento à minha barriga. (p. 135) Francês Je restai là, crépusculaire, sans savoir que penser (p. 176) Inglês I was left there, puzzled, at a loss to know what to think. (p. 132) Italiano Rimasi lì, crepuscolarmuta, senza sapere cosa pensare. (p. 133) O autor transfere o sentido de crepúsculo, momento em que as formas não são claras, devido à claridade ténue e difusa, para o pensamento da personagem, que está confusa ao mesmo tempo que se mantém calada por não saber o que fazer. As traduções francesa e inglesa omitem o sentido relativo a “calada” O tradutor italiano reproduziu a amálgama. Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 83 ESCORREGATINHOSO escorregar (verbo ) + gatinhoso (adjetivo) = escorregatinhoso (adjetivo) Original Há muito tempo, antes de vir para este asilo, fui enviada para um campo de reeducação. Me desterraram nesse campo acusada de namoradeira, escorregatinhosa em homens e garrafas. [...] Nesse campo eu cumpria a sentença eu me degradava a custo de sexo, bebida e seringa (p. 130) Francês J’ai été déportai dans ce camp parce qu’on m’accusait d’être une fille facile toujours en train de courir, chatte en chaleur, derrière les hommes et d’aimer la bouteille. (p. 171) Inglês They carted me off to this camp charged with being a loose woman, as fast and slippery with men as with a bottle. (p. 126) Italiano Mi esiliarono in questo campo con l’accusa di essere una civetta, scivologattinosa su uomini e bottiglie. (p. 128) “Escorregatinhosa” classificando Marta como uma mulher alcoólica e leviana, que nos é sugerido por “escorregar”, polissémico em PE, [escorregar (Dic. A.C.1502) – cair, deslizar; (nível familiar) cometer um erro ou uma falha, um deslize] e a imagem “gatinhosa”. “Gatinhoso” palavra inexistente em PE, derivada de “gatinho” com o sufixo derivacional -osa, criação do autor. A tradução inglesa reproduziu só o primeiro sentido com uma paráfrase, a francesa com uma paráfrase considera os dois significados. No caso da tradução italiana temos uma amálgama que contempla os dois significados “scivolosa comme una donna cha fa la gattina” (Nota del Traduttore). Esta amálgama, em nosso entender, constitui um exemplo típico da problemática relativa à interpretação: «gatinhosa»”, sugerenos a imagem de uma gata em cio, que se rasteja, sendo esta a interpretação de Cavacas (1999: 108), Laban (1999: 500), no entanto, vimos que Marta afirmou que se “degradava a custo de sexo, bebida”, Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 84 sendo legítimo interpretar como «tinhosa» a segunda parte da amálgama, como aconteceu na tradução catalã “acusada de coqueta, de relliscatinyosa en homes i ampollas” (El balcó del Frangipani, p.130, (1997, Andorra, Limits, Heredia, Goretti Lopez). Ou ainda o caso da tradução croata (pod stablom frangipanija, 2003, Zagreb, Vitrail) cuja tradutora, Tanja Tarbuk teve dificuldade em encontrar uma equivalência, como esclareceu por e-mail: Acerca do termo escorregatinhosa, devo dizer-te que foi impossível traduzir para croata com tal sentido e conotações que tem em português. A palavra croata que eu usei "lijepila sam se" tem significado de estar colado e escorrer, mas com conota coes de andar atrás dos homens (ou mulheres) ou exagerar com as bebidas… ESPARRAMORTO esparramado (adjetivo ) + morto (adjetivo) = esparramorto (adjetivo) Original O certo é que os do helicóptero deram com o corpo de Excelêncio esparramorto nas rochas da barreira. Viram-no quando o aparelho se aproximava da fortaleza. (pp. 23-24) Francês Le sûr est que ceux de l’hélicoptère étaient tombés sur le corps de Vasto Excelêncio, étendu-mort sur les rochers de la falaise (p. 28) Inglês What was certain was that the helicopter crew had found Excellency’s body sprawled across the rocks below the front rampart.(p. 15) Italiano La cosa certa è che quelli dell’elicottero si erano imbattuti nel corpo di Excelêncio sparpamorto sugli scogli della barriera. (p. 21) Nesta amálgama encontramos em francês uma palavra derivada por justaposição, considerando os dois significados, em inglês um verbo regido por preposição e em italiano uma amálgama, Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 85 mas em todas as traduções depara-se-nos a imagem que Mia Couto pretendeu expressar. INEBRILHANTE inebriante (adjetivo) + brilhante (adjetivo) = inebrilhante (adjetivo) Original A enfermeira dava corpo à visitadora de minhas noites na cubata. [...] Marta me recordava essa visão inebrilhante. Como um bicho subterrâneo, a lembrança me cavava no peito um outro coração. (p. 124) Francês Marta me remémorait cette vision enivrillante. (p. 163) Inglês Marta reminded me of this figment of my imagination, intoxicating and brilliant Italiano Marta mi ricordava questa visione, inebrillante. (p. 121) A tradução inglesa aplica duas palavras para exprimir os dois sentidos da amálgama original. As traduções italiana e francesa realizaram, tal como o original, amálgamas: INESPARADO inesperado (adjetivo ) + parado (adjetivo) = inesparado (adjetivo) Original Aquilo me arranhou, fossem palavras proferidas por garganta de bicho. O mulato prosseguiu, sempre me abestinhando: Não tenha medo, velho rezingão. Amanhã já vou daqui embora. Fiquei surpreso, inesparado: o sacana nos deixava, assim? E de que maneira ele se retirava? Não acredita? (p. 52) Francês Stupéfait, je restai coi: le salopard nous tirait la révérence comme ça, sans crier gare? ... (p. 69) Inglês I was surprised, taken aback the scoundrel was leaving us just like that? (p. 47) Italiano Rimasi sorpreso, impreparato: quella canaglia, così, ci lasciava? ... (p. 50) Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 86 Em «inesparado» o neologismo criado é sinónimo de «especado» - parado devido à surpresa. Assim, verifica-se que «inesparado» é redundância de «surpreso». Em todas as traduções é adotada a redundância. INFLAMEJAR inflamar (verbo) + flamejar (verbo) = (verbo) inflamejar Original - Estou quase para morrer, Nhonhoso. [...] Estremeci ao escutar estas palavras. Aquele branco tinha sido tão companheiro dos últimos anos que eu me inimaginaca sem a existência dele.[...] Mas não eram apenas receios que me assaltaram. Eu estava triste de inflamejar os olhos (pp. 65-6) Francês J’étais triste à en avoir les yeux qui me brûlaient. (p. 8) Inglês I was so sad, my eyes became inflamed. (p. 61) Italiano Io ero triste da far infiammeggiare gli occhi. (p. 64) Em francês e inglês os tradutores preferiram o sentido de inflamar. O tradutor italiano fez uma amálgamana: Infiammare + fiammeggiare. Nesta amálgama coutiana observa-se ainda uma interpretação controversa dos elementos que a compõem, embora não questionemos a escolha inflamar+flamejar, assim como Celina Martins, esta autora avança também “como segunda alternativa de leitura o novo verbo também funde «inflar» e «flamejar»” (Martins 2006: 200), observámos ainda a perspetiva de in+flamejar, tratandose, assim, de uma palavra derivada. (Freitas 2005: 322). LIQUIDESFEITO líquido (substantivo) + desfeito (adjetivo) = liquidesfeito Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 87 Original Aquilo que o fugitivo acreditava serem ondas, de repente, se solidificavam, empedernidas. E os penedos se dissolviam liquidesfeitos. (p.44) Francês Et les rochers, se dissolvant, s’étaient liquéfiés. (p.57) Inglês And the great boulders dissolved into liquid. (p.39) Italiano E gli scogli si dissolvevano, liquefatti.(p.42) Original Meu leito é, por essa razão, uma banheira. [...] me deito e começo a transpirando até às farturas, a carne se traduzindo em suores. Escorro, liquidesfeita. Nunca houve quem assistisse até ao final quando eu me desvanecia, transparente, na banheira. (p.85) Francês Et je me liquéfie, liquidéfaite. (p.114) Inglês I drain away into a liquidescence. (p.79) Italiano Scorro, liquidisfatta. (p.101) O neologismo criado é uma redundância, as duas palavras pertencem à mesma área semântica. No primeiro caso as três traduções são literais ignorando a amálgama do significante, enquanto que na segunda situação todos criaram uma amálgama: liquide+faite; liquide+essence; liquido+disfatta. Conclusão Ler Mia Couto, é simultaneamente, aprender a conhecer outras formas de viver e pensar, desfrutar de uma estória que nos conduz ao outro lado do mundo, que nos transporta para outras vivências, e é também apreendermos novas formas de transmitir realidades surpreendentes, é imergir na magia dos ambientes onde se movem as suas personagens e poder mergulhar nas profundezas da ancestralidade afro-moçambicana conduzidos pela escrevivência Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 88 coutiana, comungando num processo lúdico de desmontagem de novas palavras, homenageando o seu criador numa brincriação também nossa. Traduzir Mia Couto é ser o leitor privilegiado, que procura rasgar o «espartilhado» de duas fidelidades: à fonte e ao alvo; é também ousar “brincriar”, incentivando os leitores da «outra» cultura a sentiram também eles estranheza e prazer num texto que os exortará a decifrar novas formas de dizer e a viajar para outras latitudes. Sabemos que a cultura de chegada irá condicionar a “configuração” do texto traduzido, enquanto produto, que os tradutores terão todo o interesse em adaptar o trabalho para a receção, sem que para isso «olvidem» o seu vínculo ao texto de origem mantendo alguma das suas características intrínsecas, como adverte Gideon Toury: “...la posición (función) [futura] de una traducción dentro de la cultura receptora […] debería considerarse como factor que condiciona en gran manera la configuración misma del producto, en cuánto a modelos subyacentes, representación lingüística, o ambos (Toury 2004: 48). Se refletirmos na forma de como estes tradutores resolveram os problemas levantados pelo estilo inovador de Mia Couto, fundamentalmente no que concerne às amálgamas, constatamos que não houve uniformidade, nem poderia haver, na resolução desses mesmos problemas. Podemos, no entanto, subsumir as opções destes tradutores no depoimento de Mulinacci ao afirmar Seria uma pena perder [o] aspecto fascinante da sua obra, normalizando-o numa tradução meramente comunicativa - isto é, visando reproduzir o significado das palavras a fim de permitir apenas a compreensão do texto -, em lugar de tentar valorizá-lo Maria Rosa Adanjo Correia. “«Escrevivendo e brincriando» Mia Couto seduz leitores...” Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 74-92 89 através de uma tradução também evocativa, ou seja, capaz de sugerir no leitor as ressonâncias ocultas da escrita. […] [trata-se de] um desafio difícil de vencer, porque, a língua italiana não permite liberdades dessas, ou, digamos assim, permite-as, mas sob pena da incompreensão, a ponto de ser preferível, talvez, equivalências semânticas embora não estilísticas. Será, porém, que eu gosto dos desafios ou que simplesmente sou um imprudente, mas não podia aceitar um italiano padrão para dar voz - no sentido literal! - a um mundo que se encontra fora dos nossos padrões culturais e das nossas categorias de pensamento. Por outras palavras, dei-me conta da impossibilidade de dizer o outro através do mesmo e por isso escolhi esta língua impura, repleta de expressões neológicas que - sei bem - são uma aposta, para além de uma invenção absoluta. E, sobretudo, é lícito sacrificar a forma em nome do conteúdo, quando é evidente que aquela forma de-forma os nossos conteúdos mentais para recombiná-los em formas novas, as quais constituem, afinal, o autêntico conteúdo romanesco, para além da história/estória que ali se vai contando? […] O que, pelo contrário, tem importância a meu ver é porém justamente a capacidade do texto traduzido de reproduzir a ambiguidade do texto original, se é verdade, que um leitor de língua materna tem provavelmente as mesmas dúvidas - para a compreensão perfeita do termo - de um leitor italiano, espanhol ou francês. Não é importante, afinal, que o tradutor interprete o texto mais do que é lícito e sobretudo ele não deve substituir o autor na tentativa de esclarecer o que o autor deixou implícito. (Excertos de carta de Roberto Mulinacci a Rosa Adanjo Correia 2002: Bolonha). Bibliografia AAVV (1995). Dicionário Universal da Língua Portuguesa. Lisboa: Texto Editora. Cavacas, F. (1999). 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