Rupturas e permanências históricas da assistência à

Transcrição

Rupturas e permanências históricas da assistência à
CYNARA RODRIGUES SOARES SILVA
Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco em
Montes Claros/MG
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROS
Dezembro/2012
12
CYNARA RODRIGUES SOARES SILVA
Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco em
Montes Claros/MG
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Montes Claros,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em História.
Área de concentração: História Social
Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e
Gênero
Orientadora: Profª Drª Regina Célia Lima
Caleiro
Co-orientador: Profº Drº Ildenilson Meireles
Barbosa
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROS
Dezembro/2012
13
S586r
Silva, Cynara Rodrigues Soares.
Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco em
Montes Claros/MG [manuscrito] / Cynara Rodrigues Soares Silva. – 2012.
166 f.
Bibliografia: f. 155-162.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2012.
Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Lima Caleiro.
1. História social. 2. Loucura - Saúde mental. 3. Instituições de saúde. 4.
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) – Montes Claros (MG). I. Caleiro,
Regina Célia Lima. II. Universidade Estadual de Montes Claros. III. Título.
Catalogação Biblioteca Central Professor Antônio Jorge
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CYNARA RODRIGUES SOARES SILVA
Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco em
Montes Claros/MG
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________________
Professora Drª Regina Célia Lima Caleiro - Orientadora (UNIMONTES)
________________________________________________________________
Professora Dra Betânia Gonçalves Figueiredo (UFMG)
_________________________________________________________________
Professora Drª Jeaneth Xavier de Araújo (UNIMONTES)
Data:_____/_____/_____
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROS
Dezembro/2012
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AGRADECIMENTOS
Nesses quase dois anos de mestrado encontrei pessoas que ajudaram a transformar
o percurso desta pesquisa em algo suave, sem as asperezas que ele pode provocar. Com
essas pessoas compartilhei discussões, debates e situações muito agradáveis.
Então, agradeço...
Aos meus pais e minha irmã pelo incentivo, que converteu dúvidas em
possibilidades.
À Profª Drª Regina Célia Lima Caleiro, o seu acolhimento e o modo como me
orientou nesta dissertação só fortaleceram meu encantamento pela História.
Ao co-orientador Profº Drº Ildenilson Meireles Barbosa, os seus apontamentos e
questões sobre o estudo estabeleceram desafios que ultrapassaram as minhas propostas
de pensamento e isso fez o trabalho ficar ainda mais interessante.
Aos professores do PPGH/UNIMONTES, principalmente, os que tornaram mais
viva esta investigação: Profª Drª Cláudia Maia, Profª Drª Jeaneth Araújo, Profª Drª
Helen Pimentel.
Aos colegas de turma, agradeço a todos. Todavia, como em todo grupo há os que
se aproximam por alguma afinidade em comum... Susi, Fred, Anna Isabel, Karine e
Jonathan muito obrigada!
À equipe do CAPS II de Montes Claros, especialmente, o acolhimento de Márcia
Ribeiro, Lucienne Vaz, Aldenise Athayde, Cida Souza, Alex Figueiredo, Marciana
Barbosa e Valéria Cantídio.
À Profª Drª Betânia Gonçalves Figueiredo por ter aceitado compor a banca para
defesa desta pesquisa.
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Dois loucos no bairro
Um passa os dias
chutando postes para ver se
acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.
Paulo Leminski
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RESUMO
Esta dissertação teve como objetivo analisar as rupturas e as permanências históricas da
assistência à saúde ao louco em Montes Claros/MG. Trata-se de um estudo histórico
que seguiu pressupostos teórico-metodológicos qualitativos, que se orientou a partir de
contribuições de Michel Foucault. Montes Claros foi o cenário de pesquisa por
apresentar características em sua rede de assistência à saúde mental que nos permite
pensar a respeito do “lugar” destinado ao louco com a presença de um hospital
psiquiátrico e do serviço substitutivo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O
corpus documental para o desenvolvimento desta pesquisa se constituiu de fontes
impressas e fontes orais. As fontes impressas foram documentos oficiais, livros e
crônicas sobre o cenário de pesquisa e um caderno de atas de um dos sujeitos de
pesquisa, cujo conteúdo se refere às reuniões de idealização e implementação do CAPS,
tais como às reuniões da equipe do serviço substitutivo já em funcionamento. As fontes
orais se constituíram de um conjunto de cinco entrevistas semi-estruturadas realizadas
com os profissionais que trabalham no CAPS e/ou que participaram da idealização e
implementação deste serviço em Montes Claros, quais sejam: três psicólogas, uma
assistente social, um técnico de enfermagem. A análise dos dados foi realizada por meio
da técnica da análise do discurso. Os resultados revelaram que a instituição do CAPS,
apesar de considerado, pelos sujeitos de pesquisa, um marco de ruptura, não garantiu a
superação do hospital psiquiátrico e de algumas de suas condutas. O que foi percebido
com a investigação é que o hospital psiquiátrico continuou a integrar a rede de atenção à
saúde mental, mesmo com a atuação do serviço substitutivo. Desse modo, ambos
prestavam assistência resultando numa percepção de “velhos” hábitos e “novas” práticas
no contexto da saúde mental na cidade. A análise das fontes demonstrou, ainda, o tênue
limite que se estabeleceu entre a prática manicomial e a da atenção psicossocial, que
realmente, possuem discursos distintos, mas que quando implementados podem ser
percebidas algumas semelhanças, como a evidente tentativa de controle do louco.
PALAVRAS-CHAVE: História Social; Loucura; Saúde Mental; Instituições de Saúde;
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
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ABSTRACT
This thesis aims analyze the historical continuities and ruptures of health care to
madman in Montes Claros/MG. this is a historical study that followed the theoricalmethodological quality, which is directed from contributions of Michel Foucault.
Montes Claros was the setting for presenting search features in its network of mental
health care that allows us to think about “place” for the madman with the presence of a
psychiatric hospital and the substitute service, the Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS). The documentary corpus for the development of this research consisted of
printed sources and oral sources. The printed sources were official documents, books
and essays about the city and a notebook minutes of one of research subjects, whose
content refers to meetings of idealization and implementation of CAPS, such as team
meetings substitutive service already in operation. The oral sources consisted of a set of
five semi-structured interviews conducted with professionals working in CAPS and/or
participated in the ideation and implementation of this service in Montes Claros,
namely: three psychologists, a social worker, a technician nursing. Data analysis was
performed using the technique of discourse analysis. The results revealed that the
introduction of CAPS, though considered by the study subjects, a landmark break, not
guaranteed overcoming the mental hospital and some of their behaviors. What was
perceived to research is that the psychiatric hospital continued to integrate the network
of mental health care, even with the performance of substitute service. Thus, both
providing assistance resulting in a perception of “old” habits and “new” practices in the
context of mental health in the city. The analysis of the sources has also shown the
tenuous boundary established between the practice of psychosocial care and hospice,
which actually have different speeches, but when implemented some similarities can be
seen as a clear attempt to control of the madman.
KEYWORDS: Social History; Madness, Mental Health Care; Health Care; Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS).
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LISTA DE SIGLAS
ABP
Associação Brasileira de Psiquiatria
APS
Atenção Primária à Saúde
CAPS
Centro de Atenção Psicossocial
CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CERSAM
Centros de Referência em Saúde Mental
CHPB
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena
DINSAM
Divisão Nacional de Saúde Mental
EACS
Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde
ESF
Estratégia de Saúde da Família
FBH
Federação Brasileira de Hospitais
HUCF
Hospital Universitário Clemente de Faria
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INPS
Instituto Nacional de Previdência Social
MTSM
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
NAPS
Núcleo de Atenção Psicossocial
REME
Movimento de Renovação Médica
SNDM
Serviço Nacional de Doenças Mentais
SUDENE
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
SUS
Sistema Único de Saúde
UNIMONTES
Universidade Estadual de Montes Claros
20
LISTA DE TABELA
Tabela 1 - Caracterização dos sujeitos da pesquisa “Rupturas e permanências
históricas da assistência à saúde ao louco em Montes Claros/MG”......................... 106
21
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................
23
CAPÍTULO 1 – A CASA DOS LOUCOS... O JARDIM DAS ESPÉCIES............................ 32
1.1 Internar para sanear: encontrando um “lar” para a loucura.............................................
32
1.2 Hospital Geral: um santuário para a loucura...................................................................
35
1.3 Alma versus Corpo: o estatuto médico da loucura..........................................................
42
1.4 O hospício: depósito de loucos........................................................................................
48
CAPÍTULO 2 – A MEDICINA, O ORDENAMENTO SOCIAL E A EXCLUSÃO DOS
LOUCOS......................................................................................................................................
55
2.1 A medicina no Brasil: uma disciplina ordenadora........................................................... 55
2.2 Medicina social: verdade e ordem familiar...................................................................... 59
2.3 Hospitais brasileiros: um esboço histórico......................................................................
63
2.4 Hospícios para os loucos brasileiros................................................................................ 68
2.5 A assistência aos loucos em Minas Gerais......................................................................
73
2.6 Montes Claros e a loucura: e agora? O que fazer com “eles”?........................................ 82
2.7 O percurso por um hospital neuropsiquiátrico em Montes Claros..................................
CAPÍTULO 3 – ABAIXO OS MANICÔMIOS! VIVA A REFORMA PSIQUIÁTRICA!..
86
91
3.1 Os urubus e os loucos: a “carniça” que despedaçou os hospícios brasileiros.................. 91
3.2 Do tratamento da doença mental para a promoção da saúde mental...............................
95
3.3 Repensar a loucura: a Reforma Psiquiátrica no Brasil....................................................
99
3.4 A rede substitutiva: desmontam-se os manicômios e constroem-se os CAPS................
103
3.5 Os CAPS: um novo pensar, uma nova prática, uma nova “tensão”?............................... 108
3.6 Montes Claros e a Reforma Psiquiátrica.......................................................................... 109
22
CAPÍTULO 4 – O CAPS: REPRESENTANTE DA RUPTURA DO CUIDADO COM O
EM MONTES CLAROS?........................................................................................................... 117
4.1 A implantação do CAPS: o início de uma ruptura........................................................... 120
4.2 O CAPS e os preceitos manicomiais: uma sobreposição entre permanência e ruptura... 134
4.3 O CAPS: um dispositivo sem voz.................................................................................... 147
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................... 161
FONTES.......................................................................................................................................
164
REFERÊNCIAS........................................................................................................................... 166
ANEXOS....................................................................................................................................... 174
23
INTRODUÇÃO
A loucura, que desperta fascínio e encanta pela excentricidade, instiga a reflexões
sobre a lógica de sua construção, sobre o discurso de verdade que culminou com a
produção do louco, um tipo de “fantoche defeituoso” do ser humano. O louco é um
indivíduo capaz de provocar os diversos sentimentos, do medo à pena, ele apareceu
como necessário para o entendimento daquilo que exemplifica o anormal, o diferente, o
patológico, o que não se deve ser.
Mas, a loucura não é sempre obscura. Quem de nós não se lembra de um louco
bonzinho, que andava sem rumo por aí, fazia-nos rir com seus delírios e alucinações,
que ora o aproximava da divindade, ora do inferno? Pensar a loucura significa tentar
penetrar num saber invisível, que Foucault (2010), afirma que o louco tem.
No transcorrer da história, cada época organiza seu ponto de vista sobre a loucura,
mas o que a evidencia é que a mesma é surpreendente, única, tem muitas faces. É
polissêmica e se faz concreta no sofrimento psíquico do indivíduo e de como é
percebida e terapeuticamente tratada pelos “normais”.
Segundo Pessoti (1996), os termos pelos quais se procura dar uma definição da
loucura são, explícita ou implicitamente, sempre relacionais, designa-se louco o
indivíduo cuja maneira de ser é relativa a uma outra maneira de ser. E esta não é uma
maneira de ser qualquer, mas a maneira normal de ser. Será sempre em relação a uma
ordem de “normalidade”, “racionalidade” ou “saúde” que a loucura é concebida nos
quadros da “anormalidade”, “irracionalidade” ou “doença”.
A noção de indivíduo “normal” emergiu a partir da intenção de regular a
diversidade da existência e de fixar um exemplo para a normalidade. Daí surge a ideia
de sujeito universal orientada pela prática discursiva da Europa ocidental de que o
indivíduo ideal é homem, branco, burguês e católico, que teve seu apogeu no século
XIX e respalda a eminência de uma elite moralista em detrimento daqueles que se
diferiam do proposto, como os loucos.
Assim, as noções moralistas do capitalismo, da religião e a produção de discursos
de autoridade, como da ciência médica, desenvolveram um ordenamento social que
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enquadrou as pessoas em uma espécie de regimento que estabeleceu as regras do bem
viver e definiu quem criteriosamente é “normal”.
Com relação aos códigos morais, Thomson (2002) declara que são produtos de
seus ambientes, resultado de uma mistura de pressões econômicas, psicológicas e
políticas, que uma vez criados passam a influenciar as pressões que os geraram. Às
vezes a influência é intensificadora, às vezes é reativa.
Um subproduto do elitismo moral é a intolerância e a perseguição. Existem
fatores no treinamento moral que tendem a sugerir que os que seguem os códigos são
eleitos, o povo escolhido, a raça superior e todos os outros são desgarrados. Quando o
treinamento moral se excede ocorre à indução a um complexo de superioridade que
pode tornar-se supercrítico e mesmo violento aos que infringem o ordenamento
proposto (THOMSON, 2002).
Nesse contexto, de margem de tolerância baseado na normatividade, ocorre a
rejeição da loucura e a exclusão é requerida. Foucault destaca dois momentos de captura
da loucura, primeiro através do internamento e, posteriormente, por meio da relação
médico-paciente.
A loucura se torna objeto de saber a partir das formações discursivas do século
XVII, como da psicopatologia. A doença mental foi constituída pelo conjunto do que foi
dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam, recortavam, descreviam,
explicavam, contavam seus desenvolvimentos, indicavam suas diversas correlações,
julgavam-na e, eventualmente, emprestavam-lhe a palavra, articulando, em seu nome,
discursos que deviam passar por seus (FOUCAULT, 2005).
Essa é a situação do louco, indivíduo que não é “igual” ao protótipo de sujeito
universal e, portanto, é submetido ao enquadramento moral, que se materializa na
hospitalização, no internamento. A premissa de desrazoado ofereceu ao louco um lugar
de afastamento, de reclusão, inclusive de si próprio, pois até mesmo aquilo que parecia
ser exclusivamente seu, o corpo, foi subvertido à noção de representante real do
desatino que deveria ficar sob a custódia e cuidados dos detentores da razão.
A psiquiatria, no século XIX, se torna uma especialidade médica que se dedica
aos cuidados dos “anormais” da mente. Costa (1987) recapitula os três discursos
estratégicos da psiquiatria, em que se debate a loucura, e que, segundo o autor,
envolvem uma rede de desumanidade, de ignonímia onde está o doente mental. Essa
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situação absolutamente abastarda e sórdida é a situação do brasileiro que teve a
infelicidade de ser portador dos três "pês": "pobre, psicótico e preto".
O primeiro tipo de discurso é o organicista que, aparentemente, surge como o
mais conservador, o mais reacionário, o mais massacrante. O discurso organicista tem
como local de sua produção o asilo, procura seguir a regra ou pelo menos a tradição
científica do pensamento médico e tem como objetivo o corpo sem vida, o cadáver.
Fazem-se dissecações, abrem-se cérebros para ver exatamente o que se passa lá dentro.
O segundo tipo de discurso é o que Costa (1987) denomina de preventivista.
Aquele que em vez de reduzir o indivíduo ao corpo, reduz o indivíduo a massa. São os
loucos que perambulam, que estão aí pela cidade, que são improdutivos, que não
trabalham, que na linguagem preconceituosa dos anos 1920 e 1930, eram negros e
mestiços abastardados, conseqüentemente, com problemas mentais e inaptos
socialmente pelo fato de pertencerem a uma raça inferior. Essa população informe cuja
cor era exclusivamente aquela "não branca", que não tinha fisionomia nem feição,
constituía um perigo para os antecessores, os pais fundadores da psiquiatria brasileira.
Enfim, o terceiro tipo de discurso, que pode também ser intitulado de discurso
psicoterápico, se inicia no Brasil quando surge a prática da medicina mental privada,
concomitante com os primeiros consultórios. Então a teoria é outra, não mais a teoria da
castração e prevenção da proliferação de mestiços. O discurso visa agora à família e à
normalização; visa à classe média e a definição de seu perfil social. A industrialização
do Ocidente e de sua periferia produziu efeitos de subjetivação, um dos quais foi a
fabricação do intimismo psicológico. As teorias psicoterápicas respondiam a essa
necessidade de moralização das camadas urbanas, em seus setores mais abastados. Aos
pobres, a prevenção; aos ricos ou remediados, a psicoterapia. Nos manuais
psicoterápicos da época, o que se vê é um misto de vagos princípios cristãos postos a
serviço do individualismo burguês mais descarado (COSTA, 1987).
Contudo, a história dos serviços de saúde mental pode ser dividida em três
períodos, o primeiro caracterizado pela ascensão do asilo, datado aproximadamente
entre 1880 e 1950; o segundo é reconhecido pelo declínio do asilo, ocorrido,
prioritariamente em países da Europa e Estados Unidos, na década de 1950; o terceiro,
iniciado nos anos 1980, denominado originalmente de balancing mental health care, foi
determinado pela ênfase nos cuidados comunitários e pelo equilíbrio entre as
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intervenções de promoção e de assistência em saúde mental. Essas intervenções são
consideradas partes complementares e necessárias para se alcançar bons resultados na
saúde mental da população (VIDAL, BANDEIRA, GONTIJO, 2007).
No percurso dos serviços de saúde mental supracitado, foi proposto ao louco
lugares em que sua insanidade pudesse ser compreendida, enclausurada, esquadrinhada,
expurgada, mantendo a ideia de que o louco precisa de um espaço que seja seu.
No sentido de desfazer a construção do asilamento por meio do internamento
crônico com vistas ao respeito, à subjetividade e a diversidade dos usuários surgem as
propostas de reestruturação da atenção à saúde mental através da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, iniciada na década de 1970. A ideia primordial é a estruturação de uma rede
de atenção de cunho comunitário, que esteja incorporada aos mecanismos de saúde,
sociais, culturais e jurídicos, cujo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é o principal
representante do movimento de mudança da assistência ao indivíduo em sofrimento
mental.
A transferência do foco do cuidado do manicômio para os CAPS nos convida a
refletir a respeito das rupturas e permanências na formação de um status institucional
para o louco. A partir desse período, o debate que diz respeito à assistência em saúde
mental se torna ainda mais instigante quando o paralelo entre a insensatez dos
manicômios e os prodígios almejados com as propostas de um “novo” modo de pensar e
uma “nova” prática com a loucura concentradas nos CAPS se encontra em uma espécie
de esteio onde se sustenta as perspectivas da Atenção à Saúde Mental.
Nesse aspecto, o município de Montes Claros, situado no norte de Minas Gerais,
apresenta características em sua rede de assistência à saúde mental que nos permite
pensar a respeito do “lugar” destinado ao louco. Inicialmente, na primeira metade do
século XX, os desrazoados, não aceitos socialmente, percebidos como entraves ao
desenvolvimento socioeconômico, eram enviados por meio do trem de ferro aos
Hospitais Psiquiátricos Raul Soares na capital mineira e de Barbacena; posteriormente,
nos anos de 1960, a cidade inaugurou seu próprio hospício, não atendia aos pobres, pois
não era público, desse modo, o trem continuou desvelando o destino de muitos
“doidos”.
Em meados da década de 1980 e, mais especificamente, a partir da década de
1990, se inicia uma expansão nos serviços de saúde mental em Montes Claros e o
27
Hospital Psiquiátrico começa a atender o público em geral (quem tem ou não tem
dinheiro). O Hospital Regional Clemente de Faria (HUCF) vinculado à Universidade
Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) dispõe de leitos para internação
psiquiátrica, além da inauguração dos CAPS, um para sofrimento mental e outro para
acompanhamento de usuários de álcool e outras drogas.
Em Montes Claros se percebe a existência das diversas possibilidades de
assistência institucional da saúde para o louco, este cenário onde se encontram a “velha”
e a “nova” prática em saúde mental instigou o problema de pesquisa deste estudo: quais
são as rupturas e as permanências históricas da assistência à saúde ao louco em Montes
Claros? Este questionamento norteou o desenvolvimento deste trabalho e permitiu
delinear o seguinte objetivo geral: analisar as rupturas e as permanências históricas da
assistência à saúde ao louco em Montes Claros/MG.
O que despertou o interesse para realização deste trabalho foi o meu encontro com
a loucura, que se deu por meio da enfermagem1. Como enfermeira, atendi usuários em
sofrimento mental, tive contato com as suas experiências individuais, escutei suas
famílias e me deparei com o seu contexto social e cultural. Muitas vezes me vi imersa
no mistério surpreendente da irreverência de ser louco num mundo onde ser “normal” é
regra. Dessa maneira, comecei a me interessar em compreender como a loucura
percorreu a história, como o louco conseguiu manter um status de indivíduo a ser
segregado num lugar que seja seu.
Entrar nesse mundo recôndito da loucura é fascinante, especialmente, quando se
tem como navegador uma ciência como a história, que de modo singular nos impulsiona
a questionamentos a respeito do espírito do homem, bem como representa uma forma de
compreender o mundo. Ser pesquisadora da história é corte, é agonia, mas é, acima de
tudo, divertido. Como declara Marc Bloch (2001, p. 43), “[...] todas as ciências são
interessantes. Mas todo cientista só encontra uma única cuja prática o diverte”.
Considerando a máxima de Le Goff (2003, p. 32), de que “toda história deve ser
uma história social”, o que procurei fazer foi uma história do cotidiano, uma história
social que identificasse as fissuras e as continuidades ao longo das ideias, propostas e
1
Esse encontro com a loucura se deu mais especificamente através da Residência Multiprofissional em
Saúde da Família pelo HUCF/UNIMONTES, na qual havia o ambulatório de saúde Mental, que instigava
o atendimento, tal como o estudo dos casos dos usuários em sofrimento mental.
28
implementações de serviços e práticas que se dedicaram ao cuidado institucional de
saúde com o louco em Montes Claros.
Acredito que ao tentar escrever essa história nos aproximamos da loucura partindo
do pressuposto de que ela pertence a uma sociedade que ainda a segrega. Entretanto,
consideramos a possibilidade da ocorrência de rupturas, que de algum modo mantém o
louco no circuito dos debates sociais, culturais, políticos e, principalmente, da saúde.
Espera-se com essa pesquisa oferecer subsídios que viabilizem uma reflexão acerca do
tratamento dispensado ao louco no campo das instituições de saúde bem como repensar
a discussão a respeito da manutenção do status histórico do louco, mesmo diante das
propostas de seu entendimento como sujeito no mundo, na perspectiva do serviço
substitutivo.
De acordo com Michel Foucault (2006a), cujos preceitos teóricos norteiam essa
pesquisa, fazer uma história da loucura quer dizer, então, fazer um estudo estrutural do
conjunto histórico – noções, instituições, medidas jurídicas e policiais, conceitos
científicos – que mantém cativa uma loucura da qual o estado selvagem jamais poderá
ser restituído nele próprio.
O corpus documental para o desenvolvimento desta pesquisa se constituiu de
fontes impressas e fontes orais. As fontes impressas2 foram documentos oficiais
provenientes da Câmara Municipal de Montes Claros, tais como projetos de leis, leis e
requerimentos; livros e crônicas dos memorialistas montes-clarenses Hermes Augusto
de Paula e Ruth Tupinambá Graça também se constituíram em fontes; caderno de atas
de um dos sujeitos de pesquisa, cujo conteúdo se refere às reuniões de idealização,
implementação do CAPS, tais como às reuniões da equipe do serviço substitutivo já em
funcionamento; e Relatórios dos Presidentes da Província de Minas Gerais datados de
1830 a 1930 provenientes do Center for Research Libraries.
As fontes orais se constituíram de um conjunto de cinco entrevistas3 semiestruturadas realizadas com os profissionais que trabalham no CAPS e/ou que
2
3
Em anexo a descrição das fontes impressas.
As entrevistas foram registradas com o auxílio de um gravador, considerando que seu uso oferece ao
pesquisador a certeza de que terá reprodução fiel e na íntegra da fala, evitando, assim, riscos de
interpretações equivocadas. Após a gravação, as entrevistas foram transcritas na íntegra e codificadas para
preservar a identidade dos sujeitos participantes do estudo.
29
participaram da idealização e implementação deste serviço em Montes Claros, quais
sejam: três psicólogas, uma assistente social, um técnico de enfermagem4.
Com base nos pressupostos teórico–metodológicos qualitativos para o
desenvolvimento desta investigação, a entrevista semi-estruturada é um recurso
importante, vista como um encontro social. Este instrumento para coleta de dados tem a
vantagem essencial de que são os atores sociais mesmos que proporcionam os dados
relativos às suas condutas, opiniões, desejos e expectativas, coisas que pela própria
natureza é impossível perceber de fora. Ninguém melhor que a própria pessoa envolvida
para falar sobre aquilo que pensa e sente do que tem experimentado (LEOPARDI,
2002).
Conforme Orlandi (2002), a construção do corpus não se faz separada dos
procedimentos de análise. Decidir o que faz parte dele já é decidir acerca das
propriedades discursivas, uma vez que o objeto da análise deve mostrar como um
discurso funciona produzindo efeitos de sentidos. O interesse é na produção discursiva a
respeito do lugar de tratamento do louco, isto é, sobre o lugar que é destinado para a sua
assistência, para o seu tratamento em Montes Claros.
Se pensarmos que, de fato, o trabalho histórico consiste em estabelecer
acontecimentos, basta aplicar aos documentos um método que deles os faça sair (LE
GOFF, 2003). Nesse caso, o método de análise do corpus documental proposto neste
estudo é a análise de discurso, que é entendida como uma proposta crítica que busca
problematizar as formas de reflexões estabelecidas. Na análise do discurso a linguagem
é a mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. A linguagem,
aqui, é percebida como necessária, não é instrumento, mas é ação que transforma
(ORLANDI, 2002).
Ainda nesta perspectiva metodológica, deve-se considerar que a história mudou
sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não
interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim
trabalhá-lo no interior e elaborá-lo. Ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte
4
Cuidados éticos foram providenciados na medida em que o Projeto desta pesquisa foi encaminhado ao
Comitê de Ética em Pesquisa da UNIMONTES para apreciação e recebeu um parecer favorável em 17 de
junho de 2011, cujo número do Parecer Consubstanciado é 2799/11 (Anexo A). Os entrevistados que
aceitaram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo B),
assinados também pela pesquisadora e orientadora.
30
em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica
elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a
história, uma matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens
fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros; ela procura definir,
no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT,
2005) 5.
À luz da trajetória metodológica descrita, o desenvolvimento desta dissertação se
constitui nos seguintes capítulos. O primeiro trata da organização institucional para os
loucos, perpassando pela noção da internação como modo de expurgação dos
“anormais” da sociedade, o que transforma o Hospital Geral e, posteriormente, os
hospícios em verdadeiros lares para os insensatos. O discurso que autoriza o louco
como ser inapto à vida social se constitui a partir das ideias médicas que procuraram
definir etiologicamente a “doença mental” e, então, o esboço do “lugar” para o
desrazoado se delineia e é transformado em local terapêutico.
O segundo capítulo propõe o entendimento da medicina e do ordenamento social
no Brasil, o que marca o princípio do pensamento psiquiátrico no país e, por
conseguinte, o surgimento das instituições dedicadas aos loucos. Aqui o discurso
médico começa a atuar não somente no hospital, a sociedade se constitui a partir e com
ele, esse discurso empreendia participação nos espaços sociais, políticos e econômicos
do país. Esse percurso nos encaminha à compreensão mais clara da atenção aos loucos
em Minas Gerais, bem como às construções sociais, culturais e políticas da loucura em
Montes Claros.
A discussão explicitada no terceiro capítulo questiona a posição do manicômio
enquanto local de “cuidado” ao louco, culminando com a Reforma Psiquiátrica
Brasileira que convida a um “novo” modo de pensar e fazer a saúde mental, por meio
dos serviços substitutivos e fortalecimento do contexto comunitário onde está inserido o
indivíduo em sofrimento mental. Todavia, o “novo”, representado pelos CAPS, trouxe
5
“O documento não é feito para servir de prova, mas para ser um objeto mágico, um talismã. Não é
produzido para ser dedicado aos homens, mas aos deuses” (LE GOFF, 2003, p. 45). A história é o que
transforma os documentos em monumentos e que, onde se decifravam traços deixados pelos homens,
onde se deixava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, há uma amálgama de elementos que têm
de ser isolados, agrupados, tomados eficazes, postos em relação, integrados em conjuntos (LE GOFF,
2003).
31
consigo tensões, que parecem ser potencializadas quando convive com os “velhos”
hábitos da noção de tratamento da loucura.
Com essa questão nos encaminhamos para o quarto e último capítulo com a
intenção de compreender como são percebidas as rupturas e permanências históricas do
cuidado institucional de saúde com o louco em Montes Claros pelos atores sociais que
fazem parte desse cotidiano da loucura. As entrevistas foram analisadas neste momento
da investigação com o intuito de nos aproximarmos do objetivo da pesquisa através da
experiência do vivido pelos profissionais que ainda trabalham e/ou participaram da
idealização e implementação do CAPS II6 no município.
6
Um CAPS I deve ser criado em municípios entre 20.000 e 70.000 habitantes; um CAPS II pode ser
criado em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes, cujo horário de funcionamento é
das 8 às 18 horas, de segunda à sexta-feira (BRASIL, 2004). Em Montes Claros existe somente um CAPS
II, apesar da população de 361.915 pessoas, segundo o senso do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2010. Neste caso, como a população está acima dos 200.000 habitantes, a indicação
do Ministério da Saúde do Brasil (BRASIL, 2004) é para a criação de um CAPS III, que funciona 24
horas, todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados. Tal como, um CAPSi, específico
para acompanhamento de crianças e adolescentes em sofrimento mental, com indicação para funcionar de
segunda à sexta-feira de 8 às 18 horas. No caso do CAPSad, para atendimento de usuários de álcool e
outras drogas, a população do município deve ser maior que 100.000 habitantes, funciona de segunda à
sexta-feira, de 8 às 18 horas e pode transformar-se em CAPSad III, seguindo as normas de funcionamento
do CAPS III para pessoas em sofrimento mental. Em Montes Claros, tem um CAPSad, que não se
constitui em cenário desta pesquisa, que se interessa pela assistência às pessoas com sofrimento mental,
não considerando o uso de substâncias psicoativas.
32
Capítulo 1
A CASA DOS LOUCOS...
O JARDIM DAS ESPÉCIES
1.1 INTERNAR PARA SANEAR: encontrando “um lar” para a loucura
A loucura foi um fenômeno que a medicina demorou a se apropriar. De acordo
com Foucault (2010), foi necessário um longo período de latência de quase dois séculos
para que fosse considerada sucessora da lepra nos medos seculares, culminando com as
ideias reativas de divisão, de exclusão e de purificação apresentadas de maneira bem
evidente com a modernidade. O louco se insinuou em um lugar social garantido tanto na
Grécia Antiga quanto na Idade Média, ele fazia parte do contexto do logos,
intermediando um diálogo entre homens e deuses. Neste período não havia uma
distinção entre razão e loucura, que triangulava com o logos e o mito.
A transformação do lugar social do louco se inicia a partir do século XVII na
Europa, onde a positividade da situação de louco foi perdida a partir do Renascimento,
que determinou a ruptura radical entre a racionalidade e a loucura, com exclusão desta
última do circuito da razão.
A correlação histórica entre o louco, a medicina psiquiátrica e o interior do espaço
asilar, ancoram a compreensão do contexto da grande internação da loucura. Destaca–se
que antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada e era,
essencialmente, considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da
idade clássica, a loucura era vista como pertencendo aos sonhos do mundo; podia viver
no meio desses devaneios e só seria separada no caso de tomar formas extremas e
perigosas (FOUCAULT, 2008).
O advento do hospital foi essencial para mudança de percepção da loucura, da
emergência de sua natureza social e moral, respectivamente. A instituição hospitalar,
enquanto entidade caritativa, influenciou de modo importante a constituição de uma
sociedade “limpa” dos inaptos. A medicalização do hospital colaborou com a
construção de um saber médico que disciplinaria os desrazoados, transformando-os em
doentes mentais (FOUCAULT, 2008).
33
Jean-Jacques Rousseau (2011) não estava pensando nos loucos ao declarar, no
livro Do contrato social, de 1762, que o homem nasce livre, e por toda parte vive
acorrentado. Entretanto, em seu tempo, a nenhum outro grupo esse grito se ajustava
melhor. No século XVIII, trancavam–se os loucos em prisões, casas de correção, asilos
e hospícios. Atribuía–se a insanidade ao pecado e as atividades do diabo, como também
a retenção de excreções do corpo, distúrbios emocionais, dieta ruim e falta de sono entre
outras causas. Ignorância, superstição e condenação moral dominavam o tratamento do
insano (ROSEN, 2006).
Para Foucault (2010), não se esperou o século XVII para “fechar” os loucos, mas
foi nessa época que se começou a “interná–los”, misturando–os a toda uma população
com a qual se lhes reconhecia algum parentesco, especialmente, aqueles envolvidos na
grande proscrição da ociosidade. E o autor ratifica que o surgimento do Hospital Geral
foi de fundamental importância para definição de um novo “lugar social” para o louco e
a loucura na sociedade ocidental.
Concomitante ao primeiro Hospital Geral criado em Paris em 1656 foram
fundadas outras casas de internamento, onde a loucura encontrou seu lugar entre
diferentes figuras. Como as workhouses, na Inglaterra, outros estabelecimentos, cujas
funções, longe de estarem associadas à ideia de tratamento, voltavam–se para a tarefa de
recolher, alojar e alimentar os pobres. As casas de internamento sinalizavam um novo
tipo de sensibilidade com relação à miséria e aos deveres de assistência, uma outra
forma de reação aos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, assim
como uma nova ética do trabalho e um novo ideal de cidade.
A partir da criação do Hospital Geral e das casas de correção, internar se tornou
prática comum, uma ação de cunho social e “assunto de polícia”. Eram internados os
devassos, os dissipadores, os filhos pródigos, os blasfemadores, os homens que a
sociedade “tentou se desfazer” e os libertinos. A internação traça, através dessas
aproximações e dessas estranhas cumplicidades, o perfil de sua experiência própria com
desatino (FOUCAULT, 2010).
Com essa população extremamente heterogênea que as casas de internamento
abrigavam, ao longo desses anos, foi se constituindo um tipo de sensibilidade social que
isolou essas pessoas no interior dos hospitais, provocando uma ressignificação dos
34
velhos rituais de isolamento dos leprosos, com ênfase à cronificação do distanciamento
social dos inaptos.
Desse modo, a internação supõe organizar não só uma inovadora maneira de lidar
com a miséria como também instaura outro tipo de relação do homem com aquilo que
pode haver de inumano em sua existência, de insuportável à sua experiência de ser
humano no contexto das relações sociais.
A característica relacionada ao mecanismo social do internamento atuou de modo
amplo, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho
burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. A
hipótese foucaultiana supõe que o sentido do internamento se esgota numa obscura
finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos
ou nocivos, culminando com a eliminação dos “a–sociais” de forma espontânea.
Considerando que a internação é uma criação institucional própria ao século
XVII, ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação
com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e de
precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um
evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da
pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar–se no grupo;
no momento em que começa a inserir–se no contexto dos problemas da cidade
(FOUCAULT, 2010).
A exclusão vai constituindo suas personagens, transformando rostos comuns à
paisagem social em figuras bizarras, desfazendo familiaridades e suscitando o
estrangeiro ali onde ninguém o pressentia. Esses rostos são a partir de então lançados
para fora do horizonte humano. Com a disseminação da miséria, inclusive no campo,
percebeu-se que tal condição não é fruto apenas do erro e da falta e a internação começa
a ser questionada quanto a sua eficácia (KODA, 2002).
O desemprego vai, assim, se distanciando das sanções morais. A indigência passa
a ser compreendida como fenômeno econômico, o pobre torna–se necessário para a
riqueza do Estado, medida também por sua população e força de trabalho. Com a
Revolução Francesa ocorrem amplas transformações na organização e no tipo de
contrato social. Então, o internamento passa a ser um erro econômico ao inutilizar
35
dentro de seus muros grande quantidade de mão de obra necessária à industrialização
nascente (KODA, 2002).
No entanto, a loucura continua a ser um problema que se diferencia da pobreza, a
ela cabe uma assistência que permita a neutralização que o temor suscita. Portanto, a
loucura permanece dentro do campo da exclusão, merece ser vigiada. Tendo em vista
que a liberdade do ser humano está no pleno exercício da razão, a essência da loucura
será assim ausência de liberdade, alienação, doença (KODA, 2002).
Com um lugar próprio mediado pela internação, a loucura se coloca no lugar de
objeto a ser conhecido, os ideais revolucionários franceses definiram novas medidas
para a relação com a loucura. Assim, a psiquiatria emerge como resposta a uma
problemática social colocada pela rearticulação da dinâmica social que marca o
nascimento do sistema capitalista.
No começo do século XIX, a prática do internamento coincidiu com o momento
em que a loucura foi percebida menos com relação ao erro do que com relação à
conduta regular e normal. Momento em que aparece não mais como julgamento
perturbado, mas como desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de
tomar decisões e de ser livre. Enfim, em vez de se inscrever no eixo verdade–erro–
consciência, se inscreve no eixo paixão–vontade–liberdade, eixo este traduzido pelas
premissas do hospício (FOUCAULT, 2008).
1.2 HOSPITAL GERAL: um santuário para a loucura
O hospital se tornou ponto norteador para a compreensão da loucura na
perspectiva do isolamento, da exclusão, da doença e da terapêutica. Entretanto, foi por
meio de um extenso processo que a instituição hospitalar se transformou em instituição
médica. Antes do processo de medicalização do hospital, a loucura e os loucos tinham
múltiplos significados: de demônios a endeusados, de comédia e tragédia, de erro e
verdade. Múltiplos e plurais eram também os seus lugares e espaços: ruas e guetos,
asilos, prisões e igrejas (AMARANTE, 2007).
A palavra hospital é de raiz latina (Hospitalis) e de origem relativamente recente.
Vem de hospes, que significa hóspedes, porque antigamente nessas casas de assistência
36
eram recebidos peregrinos, pobres e enfermos. O termo hospital tem, atualmente, a
mesma acepção de nosocomium, de fonte grega, cuja tradução é tratar dos doentes.
Outros vocábulos constituíram–se para corresponder aos vários aspectos da obra de
assistência: asilo para pobres, asilo para crianças, orfanato, hospital para mulheres,
refúgio para viajantes e estrangeiros, asilo para velhos, asilo para incuráveis (CAMPOS,
1965).
Segundo Rosen (2006), um dos valores básicos que motivaram o surgimento dos
hospitais foram os ensinamentos de Paulo, o Apostolo, que pregava a fé, a esperança e a
caridade, sendo esta última característica possuidora do destaque em importância. A
partir do século IV é possível se observar a construção de muitas outras instituições
fundadas com a finalidade caritativa, posteriores ao pioneiro hospital criado por São
Basílio, em Cesaréia, na Capadócia, entre os anos 369–372.
No Concílio de Orleans, ocorrido em 549, o Hôtel Dieu de Lyon, criado em 542,
era destinado a receber pobres, órfãos e peregrinos. Vários “hospitais” para escolares e
peregrinos foram criados em Paris, como o Hospital de São Nicolau do Louvre, em
1187; o Hospital do Santo Sepulcro, em 1326, para receber peregrinos de Jerusalém; o
Hospital de Santa Catarina, para abrigar por apenas três dias os desabrigados
(CAMPOS, 1965).
Campos (1965) acredita que o hospital tem uma origem muito anterior à era cristã
e que o cristianismo impulsionou e desvendou novos horizontes aos serviços de
assistência, sob as mais variadas formas, uma vez que o autor rememora os templos de
Saturno como primórdios da escola médica que existiram muitos séculos antes de
Cristo.
Nesses tempos remotos, mesmo depois do cristianismo, a prática da medicina
fundia–se com o fazer religioso. Esta circunstância ocorreu com o paganismo, o
politeísmo, o cristianismo e o maometanismo, como exemplos. Os hospitais
confundiam–se com os santuários que se erigiam na vizinhança dos mosteiros sob
inspiração e direção religiosa. As seitas religiosas determinavam que ao lado da igreja,
das habitações religiosas, se construíssem enfermarias ou organizações de assistência
aos enfermos (CAMPOS, 1965).
Houve, inclusive, um Concílio em 811, o de Aquisgrana, que traçou regras para
construção de um hospital. O edifício deveria ser colocado na vizinhança da catedral e
37
dos conventos, cada sala teria um altar. As camas dos enfermos seriam dispostas
segundo uma posição capaz de permitir a observação dos ofícios divinos. Exigia–se
uma grande importância para capela e reserva de espaço para enterramento dos
benfeitores e administradores da obra. E, assim enfermarias e dispensários,
estabelecimentos onde se dispensa cuidados gratuitos a enfermos pobres, foram se
multiplicando (CAMPOS, 1965).
Nesta época, o termo hospital era impreciso em relação ao conceito atual, não se
tratava de uma instituição médica. No medievo, especialmente no século XIII, após
influência da escola de Salerno, a “cívita hipocrática” (cidade hipocrática), os hospitais
começaram a passar das mãos das autoridades eclesiásticas para das municipalidades.
Com a Renascença, as organizações hospitalares foram, cada vez mais, adquirindo o
caráter municipal. Era a consequência do movimento que a partir do século XVIII
começou a subtrair os hospitais da influência monástica medieval (CAMPOS, 1965).
O progresso da ciência foi, naturalmente, determinando o aperfeiçoamento
gradual dessas casas de assistência. Principalmente a cirurgia tomou bom impulso, não
apenas devido aos conhecimentos anatômicos, como, também, pelo abandono da
obediência ao Édito da Igreja, de 1163, que proibia ao clero a realização de operações
que derramassem sangue (CAMPOS, 1965).
Rosen (2006) aponta algumas razões para o declínio do hospital cristão medieval.
Inicialmente, com o florescimento das cidades e o enriquecimento da burguesia
mercantil, os municípios tenderam a desempenhar um papel mais ativo na assistência,
substituindo de algum modo a Igreja ou, pelo menos, complementando suas obras de
caridade. Os hospitais e demais estabelecimentos de assistência, pela escassez dos seus
meios e, sobretudo, pela sua atitude em relação aos pobres, considerados como parte
integrante e indispensável do Reino de Deus, não estavam em condições de dar uma
resposta aos novos problemas que resultam das mudanças demográficas, econômicas,
sociais, políticas, ideológicas e culturais do ocidente, entre o fim da Idade Média e o
início da Reforma.
Contudo, no século XVII, surgiu uma nova modalidade de hospitais, que não são
mais exclusivamente filantrópicos, trata-se do Hospital Geral, criado a partir de 1656.
Com o processo de transferência de responsabilidade para o município, as instituições
38
hospitalares passaram a cumprir uma função de ordem social e política muito mais
explícita, como afirma Foucault (2010).
À primeira vista na França, percebe-se apenas uma reforma, uma reorganização
administrativa, em que diversos estabelecimentos já existentes são agrupados sob uma
administração única: a Salpêtrière. Trata-se de recolher, alojar, alimentar aqueles que se
apresentavam de espontânea vontade, ou aqueles que eram encaminhados pela
autoridade real ou judiciária (FOUCAULT, 2010).
A criação do Hospital Geral teve como objetivo a supressão da mendicância, a
limpeza moral da cidade, a preservação da legitimidade da razão. De modo que o
hospital não tem o aspecto de um simples refúgio para aqueles que a velhice, a
enfermidade ou a doença impedem de trabalhar, sem o aspecto de um atelier de trabalho
forçado, mas antes o de uma instituição moral encarregada de castigar, de coerção da
“falha” moral que não merece o tribunal dos homens e que não poderia ser corrigida
apenas pela severidade da penitência. O Hospital Geral tem um estatuto ético e é desse
encargo moral que se reveste seus diretores e lhes é atribuído todo o aparelho jurídico e
moral da repressão.
Michel Foucault, ao escrever o texto o Nascimento do Hospital no livro
Microfísica do Poder (2008), propõe que a atuação do hospital, antes do século XVIII,
era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres e enfatiza: “instituição de
assistência, como também de separação e exclusão” (FOUCAULT, 2008, p. 101). O
pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e
de possível contágio, é perigoso. Por essas razões o hospital deve estar presente tanto
para recolhê–lo, quanto para proteger os outros.
Nesse contexto, o hospital, constituído como uma estrutura semijurídica e como
uma entidade administrativa, associa-se aos poderes constituídos e dos tribunais, que
decide, julga e executa, é uma instância monárquica, que não se assemelha a uma ideia
médica (FOUCAULT, 2008).
Na perspectiva foucaultiana, o hospital não era, até o século XVIII, um
instrumento terapêutico para a medicina, uma vez que o personagem principal naquele
cenário não era o doente que precisava curar-se, mas o pobre que estava morrendo. A
função essencial do hospital era assistir material e espiritualmente o pobre, a quem se
devia dar os últimos cuidados e o último sacramento.
39
Dizia-se naquele período, que o hospital era um morredouro, um lugar para
morrer. As pessoas que se dedicavam ao trabalho na instituição hospitalar não exerciam
suas funções, fundamentalmente, objetivando a cura do doente, mas intentavam
conseguir sua própria salvação. Esses trabalhadores exerciam função caritativa, seja
religiosa ou leiga, vislumbrando salvação eterna, função de transição entre a vida e a
morte, de salvação espiritual mais do que material, aliada à função de separação dos
indivíduos perigosos para saúde geral da população (FOUCAULT, 2008).
O hospital permanece com essas características até o começo do século XVIII e o
Hospital Geral, lugar de internamento, é ainda em meados do século XVII, uma espécie
de instrumento misto de exclusão, assistência e transformação espiritual. Em que a
função médica não aparece e onde se justapõem e se misturam doentes, loucos,
devassos, prostitutas, dentre outros tipos a serem segregados da participação no meio
social (FOUCAULT, 2008).
Foucault (2008) argumenta que a medicina dos séculos XVII e XVIII era
profundamente individualista, hipótese que sustenta a ausência do médico no espaço
hospitalar. A qualificação do médico ocorria ao término de uma iniciação assegurada
pela própria corporação que compreendia conhecimento de textos e transmissão de
receitas mais ou menos secretas ou públicas. Dessa forma, a experiência hospitalar
estava excluída da formação ritual do médico. A idéia de uma longa série de
observações no interior do hospital, em que se poderia registrar as constâncias, as
generalidades, os elementos particulares, estava excluída da prática da medicina.
Quanto à doença, o médico organizava sua intervenção em torno da noção de
crise. Este era o momento em que afloravam, no doente, a natureza sadia do indivíduo e
o mal que o atacava. Portanto, na luta entre natureza e doença, o médico deveria
observar os sinais, prever a evolução. Foucault (2008, p. 102–103) afirma que:
A cura era um jogo entre a natureza, a doença e o médico. Nesta luta o
médico desempenhava o papel de prognosticador, árbitro e aliado da
natureza contra a doença. Essa idéia de teatro, de batalha, de luta em que
consistia a cura só podia se desenvolver em forma de relação individual
entre o médico e o doente.
Por conseguinte, percebe–se que nada na prática médica permitia a organização de
um saber hospitalar, como também nada na organização do hospital permitia
40
intervenção da medicina. As séries hospital e medicina permaneceram independentes
até meados do século XVIII (FOUCAULT, 2008).
Partamos desta evidência, a de que o hospital com intervenção médica é algo
relativamente recente, para compreendermos sua criação como nova tecnologia
terapêutica. Estudiosos da história dos hospitais afirmam que no final do século XVIII
surgiram os primeiros inquéritos sobre o papel do próprio hospital na ação da cura. O
primeiro fator de transformação do hospital não foi a busca de uma ação positiva sobre
o doente e a doença, mas a anulação negativa da instituição, isto é, transformar a
instituição hospitalar em um lugar terapeuticamente adequado.
Comissões foram criadas com a finalidade de emitir relatórios sobre as
instituições, e suas conclusões serviram durante mais de um século de guia para todas as
construções e organizações hospitalares. Pode–se incluir a série de visitas efetuadas por
John Howard em leprosários, prisões e hospitais de toda a Europa, o texto de Pierre–
Jean–Georges Cabanis, Observations sur Hôpitaux e, principalmente, os inquéritos
sobre a situação dos hospitais na França feitos pela comissão liderada pelo cirurgião
Jacques René Tenon.
Os relatórios dessa última comissão serviram como base para publicação das
Memóires sur lês Hôpitaux de Paris, publicada em 1788, que se tornou uma espécie de
guia para as investigações sobre as condições dos hospitais no século XVIII e também
um dos mais importantes documentos para a elaboração de projetos de salas de cirurgia,
enfermarias para parturientes, casas de alienados dentre outros. Para se ter uma idéia da
descrição de Tenon a respeito dos hospitais de Paris, especialmente, sobre o Hospital
Dieu, Ouyama (2006, p. 56) descreve em sua tese de doutoramento um trecho de
Memóires sur lês Hôpitaux de Paris (1788):
Os membros da comissão viram os mortos juntos com os vivos; salas de
estreitos corredores, onde o ar se corrompe por falta de renovação e a luz
penetra apenas debilmente e carregada de vapores úmidos; os convalescentes
misturados nas mesmas salas com os doentes, os moribundos e os mortos; a
sala de alienadas contígua à dos infelizes que sofrem as mais cruéis
operações e que não se pode esperar nenhum repouso tão próximo a esses
dementes, cujos gritos frenéticos se ouvem dia e noite. A sarna está
generalizada e é permanente no Hôtel Dieu; os cirurgiões, os religiosos e os
enfermeiros contraem–na ao cuidar dos enfermos ou ao manusear os lençóis.
Os doentes curados levam a sarna até sua família e, por isso, o Hôtel Dieu é
uma fonte inesgotável de doença, de onde ela se espalha por Paris (TENON
apud OUYAMA 2006, p. 56).
41
A partir de então constata-se uma grande transição, na qual o hospital de caridade
sofria uma metamorfose e começava assumir funções mais sociais e políticas. Amarante
(2007) relata que foram nestas instituições que muitos médicos foram atuar no sentido
de humanizá–las e adequá–las ao novo espírito moderno, principalmente, após a
Revolução Francesa, e acabaram por transformá–las em instituições médicas por
excelência.
A intervenção médica no espaço hospitalar, que anteriormente era eventual e
paroxística, passaria a ser regular e constante: o saber sobre o hospital permitiria ao
médico agrupar as doenças e, assim, observá–las de uma forma diferente, no dia a dia,
em seu curso e evolução. Constituiu–se, desse modo, um saber sobre as doenças que,
informado pelo modelo epistemológico das ciências naturais, ainda não tinha sido
possível construir (AMARANTE, 2007).
Em consonância com o lema Igualdade, Liberdade e Fraternidade, que guiou o
ideal revolucionário, todos os espaços deveriam ser democratizados. Foi dessa maneira
que os hospitais passaram a ser objetos de profundas mudanças. Inicialmente, foram
libertados vários internos que ali estavam em decorrência do poder autoritário do Antigo
Regime. Posteriormente, novas instituições assistenciais foram criadas pelo estado
republicano (orfanatos, reformatórios, casas de correção, escolas normais, centros de
reabilitação), evidenciando a característica da disciplina como técnica de gestão dos
homens nestes espaços (AMARANTE, 2007).
A disciplina como técnica de poder, de acordo com a interpretação foucaultiana,
não foi inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante
o século XVIII. Trata–se, essencialmente, de uma arte na distribuição espacial dos
indivíduos; daí o exercício de um controle sobre o desenvolvimento de uma ação com
vistas a um resultado produtivo. No caso do louco, indivíduo inapto na execução de
atividades, o enquadramento do seu corpo parece indicar um modo de correção de sua
inabilidade.
Nesse contexto, ressalta–se uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos,
como emblematizada pelo Panóptipo de Bentham, com sua estrutura que permite um
registro contínuo de tudo o que ocorre na instituição. Não obstante, esta descrição se
equivale aos pressupostos da instituição hospitalar medicalizada.
42
O hospital se torna, a um só tempo, espaço de exame, assemelhando–se a um
laboratório de pesquisas que permite um novo contato empírico com a doença e os
doentes; espaço de tratamento, enquadramento das doenças e doentes, disciplina do
corpo terapêutico e das tecnologias terapêuticas; e espaço de reprodução do saber
médico, fazendo funcionar o hospital-escola, a residência médica, tornando um espaço
privilegiado de ensino e aprendizagem (AMARANTE, 2007).
O indivíduo e a população são dados simultaneamente como objetos de saber e
alvos de intervenção da medicina, graças à tecnologia hospitalar. Contudo, a medicina
que se forma no século XVIII é tanto uma medicina do indivíduo quanto da população,
onde a loucura se enquadra com perfeição (FOUCAULT, 2008).
1.3 ALMA VERSUS CORPO: o estatuto médico da loucura
Ao longo da história da humanidade a loucura nem sempre foi compreendida
como doença mental e, consequentemente, como objeto de domínio médico. Noronha
(2000) sugere que as transformações econômicas das sociedades ocidentais pode
explicar a substituição das noções de energúmeno e cativo, criadas respectivamente
pelos gregos e pelos latinos na Antiguidade, pela de possuído pelo demônio,
desenvolvida pelos cristãos na Idade Média e a de alienado, surgida na Modernidade.
A medicina demorou a se apropriar da loucura por meio de um saber de tipo
médico que a considerava como doença mental. E uma prática para curá–la por um
tratamento físico e moral só se constituiu em determinado momento da história,
exigindo, por conseguinte, um tipo específico de medicina para tratá–la, que é
justamente a psiquiatria (FOUCAULT, 2010).
A investigação das causas da patologia mental nas sociedades ocidentais
subsidiou a construção de discursos que demonstraram ser capazes de explicitar como
as contradições da economia capitalista influenciaram no engendramento das
personalidades individuais, de tal modo, que algumas delas se tornaram incompatíveis
com a vida comum e se transformaram em doenças.
A idéia paradoxal de concidadãos tidos como estrangeiros em sua própria pátria
passou a se dar a partir do século XVIII, com os regimes de verdade da burguesia, da
43
Igreja, da medicina e do jurídico, que instituíram regras morais para o bem viver. Foi
quando o indivíduo diferente, definido como anormal, se viu despojado dos direitos
pelos quais as sociedades ocidentais modernas estabeleceram.
Neste cenário, o anormal precisava de uma denominação mais precisa e de
preferência científica, foi quando a loucura se tornou, definitivamente, um objeto de
saber, cuja etiologia era um enigma a se desvendar.
O pensamento médico dos séculos XVII e XVIII admitia de bom grado uma
relação quase imediata entre a loucura e o mundo: era a crença da influência da lua, a
convicção geralmente difundida de que o clima podia ter ação direta sobre a natureza e
a qualidade dos espíritos animais e, deste modo, sobre o sistema nervoso, a imaginação,
as paixões e, enfim, sobre todas as doenças da alma (FOUCAULT, 2010).
Nesta época o pensamento e a prática da medicina não têm unidade ou pelo menos
a coerência que se reconhece nela atualmente. A cura, preocupação clássica da
medicina, se organiza segundo princípios que são, numa certa medida, particulares, que
a teoria médica, a análise fisiológica e a própria observação dos sintomas nem sempre
controlam com exatidão (FOUCAULT, 2010).
Durante a segunda metade do século XVIII, a desrazão, gradativamente, vai
perdendo espaço e a alienação ocupa, naquele momento, o lugar como critério de
distinção do louco diante da ordem social. Este percurso prático/discursivo tem na
instituição da doença mental o objeto fundante do saber da psiquiatria (AMARANTE,
2007).
A partir da Revolução Francesa e da ascensão da razão como matriz do
pensamento iluminista no século XVIII, a loucura, como a maioria dos invalidados
socialmente, que compunham a população dos hospitais, se tornou um problema para
nova ordem burguesa que surgia. Foram na captura da verdade pela razão e pela
emergência de uma ordem social, política e econômica, que a loucura e as instituições
sociais foram absorvidas pela ciência, obtendo outro destino (ANAYA, 2004).
Amarante (1996) acredita que a psiquiatria nasce de uma reforma que converge
para constituição do paradigma psiquiátrico. Uma vez, que como ocorreu com sua
disciplina mãe, a medicina, a psiquiatria nasce a partir das reformas das instituições
sociais em espaço de cura, no período da Revolução Francesa do século XVIII.
44
A reforma hospitalar que permite o nascimento da psiquiatria como a primeira
especialidade da ciência médica no final do século XVIII, nomeada anteriormente
“Medicina Mental”, propiciou a instituição de uma natureza médica para a loucura,
adequando–a as noções de conserto, reparo e correção, configurando um conjunto de
saberes e práticas sobre o objeto construído “doença mental” (AMARANTE, 1996).
Para corroborar com a idéia de como a instituição hospitalar, nesse momento, se
transformou em instrumento terapêutico para loucura, observemos a descrição de Tenon
na publicação Memóires sur lês Hôpitaux de Paris, 1788 apud Ouyama (2006, p. 5):
Um hospital é de certa forma, um instrumento que facilita a cura; porém
existe uma diferença entre um hospital de febris e feridos e um hospital de
loucos curáveis; o primeiro oferece um meio de tratar com maiores ou
menores vantagens, em função de ser mais ou menos distribuído, ao passo
que o segundo tem, ele próprio, a função de remédio.
Nesse sentido, a idéia naturalizada de que tanto a psiquiatria enquanto saber,
quanto a doença mental enquanto objeto de conhecimento sempre existiram se torna um
equívoco, evidenciado por Foucault (2010). O autor sugere que a percepção da loucura
como doença mental ocorreu a partir de uma ruptura com o pensamento clássico do
século XVII. Então, a loucura sem especificidade própria, até esse momento, era diluída
e associada a um grupo homogêneo de tipos morais, inválidos e excluídos socialmente,
internados nas casas de correção e nos Hospitais Gerais.
A captura da loucura pela medicina, a segregação dos anormais com o intuito de
normalizar a sociedade, de acordo com a proposta de ordenamento social baseado no
estereótipo do sujeito tido como universal (masculino, branco, católico, burguês),
sugere uma discussão sobre a posição que o corpo do louco ocupa no contexto da
projeção do desatino enquanto algo impróprio, desabilitado a viver no contexto dos
“normais”.
A imediata associação que se pensa em fazer, nesse caso, é a procura da etiologia
da loucura com evidência para o dualismo entre corpo e alma. Afinal, a loucura é
produto da carne, que subversiva, não obedece aos comandos da nobre alma? Ou, é um
produto da alma, que corrompida já não pode mais coordenar o corpo, que se torna
incapaz de conviver com os demais?
45
De acordo com Foucault (2010), em si mesma e despojada das intenções
polêmicas que oculta, esta superposição – corpo e alma – é significativa. Pois ela não
pertence à problemática médica do século XVIII; mistura-se ao problema sentidocérebro, periferia-centro, compatível com a reflexão dos médicos, uma análise crítica
que repousa sobre a dissociação entre a alma e o corpo.
Dia virá em que, para os próprios médicos, o problema da origem, da
determinação causal, da sede da loucura assumirá valores materialistas ou não. Esses
valores foram reconhecidos no século XIX, quando foram possíveis uma psiquiatria
espiritualista e uma psiquiatria materialista, uma concepção da loucura que a reduz ao
corpo e uma outra que a deixa valer no elemento imaterial da alma (FOUCAULT,
2010).
O problema contido no cerne dessas indagações, essencialmente, doença do corpo
ou das paixões, iria legitimar o modo como a psiquiatria interviria doravante sobre a
loucura. Tratava–se, portanto, de uma decisão teórica, mas também de ordem prática
que iria orientar a terapêutica da disciplina nascente. O principal desafio da psiquiatria
do século XIX era como se legitimar enquanto ciência e, mais especificamente, como
um ramo autônomo no interior da medicina.
Aqueles que acreditavam que a loucura era uma enfermidade física utilizavam
como terapêutica sangrias, purgações, vesicatórios, outros ridicularizavam essa
interpretação, e considerando a alienação uma afecção da alma, aderiram aos métodos
morais.
Philippe Pinel foi o primeiro grande teórico e o clínico de destaque da loucura,
defendia a ideia desta ser proveniente de um distúrbio das paixões. Apesar de parte de
sua fama se dever ao fato de ter organizado uma reforma administrativa em Bicêtre e
Salpêtrière, onde respectivamente, se internavam homens e mulheres, ele continua a ser
um notório médico enciclopedista e o último em uma linha de médicos que se
empenhou em empregar na medicina o método classificatório das ciências naturais. Em
1801, Pinel publicou o clássico Traité Médico–Philosophique sur L’Aliénation Mentale,
em que apresentou seu sistema de tratamento moral e seus resultados.
O fato célebre que imediatamente associa o louco à figura de Pinel é a libertação
dos alienados de Bicêtre, em que a decisão do médico de tirar as correntes dos
prisioneiros da cela foi uma atitude em detrimento à ideia de Georges Couthon, político
46
francês, que visitava o hospital a procura de suspeitos. O confronto entre o filantropo
sábio e firme político é descrito por Foucault (2010, p. 460):
Pinel levou–o logo para a sessão dos agitados, onde a visão dos alojamentos
impressionou–o de modo penoso. Quis interrogar todos os doentes. Da
maioria deles, recolheu apenas injúrias e palavras grosseiras. Era inútil
prolongar por mais tempo o inquérito. Virando–se para Pinel: “Cidadão, será
que você mesmo não é um louco, por querer libertar semelhantes animais?”
Pinel respondeu com calma: “Cidadão tenho certeza de que esses alienados
são tão intratáveis somente porque são privados de ar e liberdade”. – “Pois
bem, faça como quiser, mas receio que você acabará sendo vítima de sua
própria presunção”. E com isso Couthon é conduzido à sua viatura. Sua
partida foi um alívio; o grande filantropo logo pôs mãos a obra.
A constituição de uma ciência da alienação mental se define como a grande
inovação de Pinel, que, na verdade, procedia com um simples decalque do método
classificatório que estava sendo empregado na medicina do século XVIII.
O médico atuou como herdeiro do método das ciências naturais, baseando–se na
atitude científica que consiste no fato de observar o curso natural dos distúrbios
mórbidos, assegurando–se de que o mesmo não foi perturbado por nenhuma
interferência estranha ao objeto de estudo, ou seja, que não sofreu deformação. A
consequência prática dessa orientação na medicina mental é de dirigir a atenção para os
sintomas, os sinais exteriores, em contraposição à busca da sede no organismo, por
meio da abertura de cadáveres, prática da medicina anatomopatológica.
Pinel fundou a clínica psiquiátrica considerando a loucura como um distúrbio das
paixões, sendo os excessos e as atitudes desmedidas, responsáveis pela alienação
mental. Como acreditava que a loucura era isenta de causas físicas, e que sua etiologia
era de cunho moral, Pinel institui o método do tratamento moral com o objetivo de
restabelecer a razão parcialmente perdida do louco, educando–o através do castigo e da
punição. Com isso, ao libertar os loucos das correntes dos porões dos hospitais, Pinel os
mantêm excluídos da paisagem social, criando uma instituição própria que se constitui
na terapêutica da alienação: o asilo, o manicômio (ANAYA, 2004).
Foucault (2010) aponta para a ratificação do gesto de exclusão da loucura quando
se constrói o pensamento moderno. Pode-se dizer que a loucura passou por dois tipos de
seqüestros, subseqüentes, o primeiro foi o grande internamento e o segundo a
dominação da loucura pela medicina, por meio da relação médico–paciente. A loucura,
47
amplamente, entendida como ausência da razão, ou desrazão, coloca–se no caminho da
dúvida, do sonho e do erro. Logo é excluída do projeto da ciência moderna, em que a
liberdade é reivindicada como direito comum a todos os homens.
Essa hipótese se sustenta no fato de que se o louco não é manifesto em seu ser e se
ele é indubitável, é porque é outro. Estrangeiro em seu próprio mundo, não poderia ser
admitido como sujeito da razão e da vontade. Em decorrência de sua alienação, não
seria capaz de reconhecer as regras sociais e se inserir na condição de cidadão
(FOUCAULT, 2010). Portanto, para Birman (1992), diante dessa circunstância, o louco,
na perspectiva pineliana, deveria ser submetido ao “sequestro” asilar, com finalidades
terapêuticas, para que pelo processo de desalienação, pudesse recuperar a sua condição
de sujeito do contrato social.
O grande legado de Pinel foi a invenção da tecnologia asilar e do reconhecimento
do louco como um alienado, isto é, como um doente da razão. E foi com as práticas da
internação e do isolamento que Pinel encontrou os meios necessários para teorizar sobre
o conceito do que seria a loucura, configurando–a no que denominou de alienação
mental e posteriormente doença mental.
A psiquiatria, que hoje se conhece, teve, portanto, sua história iniciada com Pinel
(1745–1826), culminando as pregações de Paracelso (1493–1541) e de Weyner (1515–
1588), subtraindo a loucura dos domínios do divino e do diabólico, levando–a, em
definitivo, para a área médica.
Seguiu–se o intenso período descritivo dos psiquiatras franceses, o próprio Pinel,
Jean-Étienne Esquirol (1771–1840), Bénédict Morel (1809–1873) e Jacques Joseph
Valentin Magnan (1835–1916) e, não menos marcante, o período classificatório dos
psiquiatras saxônicos, como Emil Kraepelin (1856–1926), Eugen Bleuler (1837–1939),
que constituíram o alicerce para o aparecimento daqueles que a consolidaram e a
consubstanciaram como verdadeira ciência médica: Sigmund Freud (1856–1939), Adolf
Mayer (1866–1950) e Karl Jaspers (1883–1969) (MORETZSOHN, 1989).
Desse modo, a psiquiatria constituiu–se num duplo movimento de liberação e
sujeição da loucura: liberação da desumanidade e violência das casas de internamento,
com a constituição de um asilo de caráter médico, exclusivo para o tratamento da
loucura; sujeição enquanto redução desta ao estatuto de objeto. A figura do alienista
encarna essa nova forma de relação entre a sociedade e loucura; doravante, o médico
48
legitimado na perícia de seu saber, estabelecerá a tutela do doente mental (KODA,
2002).
1.4 O HOSPÍCIO: depósito de loucos
O desenvolvimento dos hospícios caminhou ao lado da ascensão dos Hospitais
Gerais e dispensários, especialmente, com as propostas reformistas de humanização das
comissões que visitavam as instituições hospitalares. Mais profunda e de longo alcance
se mostrou a influência do Retiro, fundado em York, em 1792, pela Sociedade de
Amigos. Seu projeto nasceu da mente de William Tuke (1732–1822), um quacre,
negociante de chá e café, instigado à ação pelas más condições do Asilo de York, uma
instituição para insanos, fundada em 1777 (ROSEN, 2006).
Tuke inaugurou o Retiro em 1796, com o objetivo de provar que a bondade era
superior ao confinamento, e introduziu um regime fundado no senso comum e no
cristianismo, cuja estrutura tinha capacidade de atender trinta pacientes. Envidavam–se
todos os esforços para oferecer um ambiente familiar aos pacientes, propiciando
alimentação, ar fresco, exercícios e atividades que substituíam a brutalidade, as
correntes e a inanição (ROSEN, 2006).
Um ano depois de Tuke conceber seu plano, Pinel, sob circunstâncias dramáticas,
em meio à turbulência da revolução e aos alarmes de guerra, deu um passo semelhante,
como vimos no subcapítulo anterior. Philippe Pinel foi nomeado, em 1793, médico do
Hospital Bicêtre, em Paris, onde se confinavam homens e foram alcançados triunfos
encorajadores. Três anos depois ele se tornou médico da Salpêtrière, o segundo maior
hospício de Paris, onde se internavam mulheres, introduziu um regime similar ao de
Bicêtre e demonstrou o valor do tratamento humano para o doente mental (ROSEN,
2006).
A obra de Pinel representa o primeiro e mais importante passo histórico para a
medicalização do hospital, respaldada por uma tecnologia de saber e intervenção sobre a
loucura e o espaço hospitalar, cuja representatividade se traduz pela constituição da
primeira nosografia, pela organização do espaço asilar e pela imposição de uma relação
terapêutica (o tratamento moral). Com isso, a instituição hospitalar sofreu a sua primeira
49
reforma com a fundação da psiquiatria e do hospital psiquiátrico, transformando-se em
instituição médica, não mais social e filantrópica, e a loucura foi apropriada pelo
discurso e prática dos médicos.
O termo asilo é denominado por Pessotti (1996) como aquelas instituições em que
se internavam loucos, com ou sem companhia de outros doentes. Como em Salpêtrière e
Bicêtre na França, que continuaram mesmo após a reforma de Pinel a ser chamadas de
asile. O mesmo termo era utilizado pelos ingleses para definir as casas de loucos ou
madhouse.
O termo hospício aparece na Europa para designar instituições filantrópicas sem
nenhum propósito psiquiátrico, edifícios administrados como parte de Hospitais Gerais.
Havia também o hospício somente para loucos, que da mesma forma não dava
tratamento médico, tendo como função alimentar, abrigar e separá–los dos demais
doentes e marginalizados sociais. Será com o surgimento dos manicômios no século
XIX que esta instituição para loucos irá se caracterizar por acolher somente doentes
mentais e dar–lhes tratamento médico sistemático e especializado (ANAYA, 2002).
O manicômio se tornou parte essencial do tratamento da loucura com Pinel e seus
discípulos, sendo um “instrumento de cura” e não apenas a proteção e o
enclausuramento. Jean-Étiene Esquirol, por meio de preceitos pinelianos, buscou
sistematizar as bases do modelo da psiquiatria iniciadas pelo seu mestre, como se
observa no trecho abaixo descrito por Pessotti (1996):
O internamento de um louco deve tender a dar nova direção às suas idéias e
aos seus afetos e a impedir qualquer desordem, qualquer distúrbio do qual
ele possa ser a causa, e para impedir o mal que ele possa fazer a si mesmo e
aos outros, se for deixado em liberdade. Assegurando–lhe novas impressões,
livrando–se de seus hábitos e mudando seu modo de vida, chega–se aquilo
que se destina o isolamento (ESQUIROL, 1838 apud PESSOTTI, 1996, p.
135).
Um hospício deveria ser organizado para alcançar seus objetivos de permitir a
descoberta da verdade sobre a doença mental, o que possibilitava desvendar no
indivíduo os sinais e sintomas que pudessem mascará–la, confundi–la, dar–lhe formas
aberrantes, alimentá–la e também estimulá–la. Para Foucault (2008), o hospital é um
lugar de desvelamento e de confronto, cujo modelo foi dado por Esquirol. A loucura,
50
vontade perturbada, paixão pervertida, deve neste lugar encontrar uma vontade reta e
paixões ortodoxas.
A proposta do manicômio na perspectiva de Esquirol deixa evidente a ideia de
local apropriado de cura, onde internamento e tratamento eram indissociáveis:
O projeto de um hospício de alienados não é de modo algum, uma coisa
indiferente e que pode confiar apenas aos arquitetos, o objetivo de um
hospital ordinário é tornar mais fáceis e mais econômicos os cuidados
dedicados aos indigentes doentes. O hospital de alienados é um instrumento
de cura (ESQUIROL, 1838 apud PESSOTTI, 1996, p.168).
O conjunto de estratégias desenvolvidas por Pinel são identificadas por Castel
(1978) como uma das principais operações que fundaram a prática asilar. A “tecnologia
pineliana” consistia em uma estratégia baseada na ordem, caracterizando–se pelo
isolamento, pela organização do espaço asilar e pela relação de autoridade do médico
sobre o alienado.
Assim se estabelece a função muito curiosa do hospital psiquiátrico do século
XIX: lugar de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de
doenças são divididas em compartimentos, cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas
também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional
onde se trata de vitória e de submissão, na perspectiva foucaultiana.
Esse local possui um ator detentor da verdade, o grande médico do asilo, que é ao
mesmo tempo aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê–la, na
realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. As técnicas ou
procedimentos efetuados no asilo do século XIX se baseavam no isolamento,
interrogatório particular ou público e tratamentos punitivos (FOUCAULT, 2008).
Dentre as ações terapêuticas destacam-se a ducha, as pregações morais, os
encorajamentos ou repreensões, a disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório; ocorriam
ainda situações de recompensa, relações preferenciais entre o médico e alguns de seus
doentes, relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão
entre doente e médico. Tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o
“mestre da loucura”, aquele que a faz manifestar em sua verdade quando ela se esconde,
quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve
depois de tê-la sabidamente desencadeado (FOUCAULT, 2008).
51
Amarante (2007) declara que o isolamento foi um princípio importante para a
constituição do conhecimento científico sobre a loucura e para sua administração. Por
um lado, possibilitou a observação específica do objeto a ser estudado, pois, uma vez
isolado, o objeto poderia ser bem observado como pré–condição para o sucesso das
etapas do método científico experimental. Por outro, isolava–se para tratar e devolver a
“razão” ao louco, uma vez que as causas da loucura estavam no meio social, o
isolamento era fundamental enquanto instrumento terapêutico. A partir desse momento
a internação assumiu o caráter médico e se justificou por outras razões: o louco passou a
ser isolado porque era um alienado, um doente.
E a internação em um estabelecimento “especial” foi determinante na constituição
do status da doença mental, uma vez incapaz do contrato social, o louco deveria ser
tutelado. De acordo com Bezerra (1992, p.118):
A criação da categoria doença mental traria consigo, portanto, como uma
marca congênita, o movimento de exclusão. Através dela, a psiquiatria teria
oferecido solução racional ao dilema da sociedade burguesa emergente:
como conciliar os preceitos de liberdade e igualdade com os processos reais
de exclusão – os loucos não são iguais, nem livres; são aliens, alienados.
A organização do espaço asilar inseriu os alienados em uma rede ordenada de
lugares, de ocupações, de hierarquias, distribuindo–se conforme o caráter, as variedades
e diversos períodos e graus de loucura, o que supõe a possibilidade de alcançar o mais
profundo conhecimento de seu processo. E reside nesta organização institucional o fato
que diferencia o asilo do hospital, pois o primeiro se transforma, assim, no próprio
remédio.
Para Foucault (2006b) a organização do hospício demonstra uma ordem, pela qual
os corpos não são mais que superfícies a atravessar e volumes a trabalhar, uma ordem
que é como uma grande nervura de prescrições, de sorte que os corpos sejam assim
parasitados e atravessados pela ordem. Pinel apud Foucault (2006b, p. 4) relata sobre a
manutenção da ordem no hospício como método fundamental para tratamento do doente
mental:
Não há por que se espantar muito com a importância extrema que dou à
manutenção da calma e da ordem num hospício de alienados, e às qualidades
físicas e morais que essa vigilância requer, uma vez que essa é uma das
bases fundamentais do tratamento da mania e que sem ela não obtemos nem
observações exatas, nem uma cura permanente, não importando quanto se
52
insista, de resto, com os medicamentos mais elogiados (PINEL, 1801 apud
FOUCAULT 2006b, p. 4).
Com a estrutura organizacional descrita há um favorecimento do próprio saber
médico, já que, sem essa disciplina, sem essa ordem, sem esse esquema prescritivo de
regularidades não é possível ter uma observação exata. A condição do olhar médico, sua
neutralidade, a possibilidade de ele ter acesso ao objeto, em outras palavras, a própria
relação de objetividade, constitutiva do saber médico e critério da sua validade, tem por
condição efetiva de possibilidade certa relação de ordem, certa distribuição do tempo,
do espaço, dos indivíduos (FOUCAULT, 2004).
A ordem, a disciplina e a hierarquia convergem para um tratamento adequado, na
perspectiva pineliana, pois considerada a loucura um distúrbio das paixões, uma
contradição na razão, esta só poderia ser restituída ao louco através de sua
interiorização. Isso só poderá ser dado pela relação de autoridade do médico sobre o
doente, através do que Castel (1978) chama de uma relação entre o pólo razão e um
pólo não–razão. Isto é, da relação de força entre o médico, que se configurava em
autoridade máxima e o alienado, seu subordinado, por meio do que Pinel denominou de
“tratamento moral”.
Foucault (2004, p.7) sugere que o poder não pertence ao médico, mas se encontra
nas relações, na reciprocidade, no sistema de diferenças...
Mas esse poder médico, claro, não é o único poder que se exerce; porque, no
asilo como em toda parte, o poder nunca é aquilo que alguém detém,
tampouco é o que emana de alguém. O poder não pertence nem a alguém
nem, aliás, a um grupo; só há poder porque há dispersão, intermediações,
redes, apoios recíprocos, diferenças de potencial, defasagens, etc. É nesse
sistema de diferenças, que será preciso analisar, que o poder pode se pôr em
funcionamento (FOUCAULT, 2004, p.7).
O essencial, na perspectiva foucaultiana, é que no asilo fundado na época de
Pinel, o internamento não representa a “medicalização” de um espaço social de
exclusão; mas a confusão no interior de um regime moral único, cujas técnicas tinham,
algumas, um caráter de precaução social, e outras um caráter de estratégia médica.
O “tratamento moral” fez do asilo um lugar “especial”, um modelo assistencial–
custodial, baseado na vigilância, na ordem e na disciplina. Uma instituição correcional,
denominada por Goffman (1961, p. 22) como instituição total, que o autor define como
53
“um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização
formal [...] Em nossa sociedade, são as estufas para mudar pessoas; cada um é um
experimento natural do que se pode fazer do eu”.
A característica de “fechamento” desse tipo de instituição é a marca de seu caráter
total, simbolizada pela barreira da relação social com o mundo externo. Seus aspectos
centrais são definidos pelas rupturas com a circulação social, com a convivência de
outras pessoas, com outros níveis de hierarquia e com a autonomia de decisão dos
planos de sua vida. Nesse sentido, Goffman (1961) demonstra que esse tipo de
instituição tem como efeito o desculturamento e a mortificação do eu, incapacitando o
interno para enfrentar certos aspectos da vida civil, caso volte ao mundo exterior, e para
mudar progressivamente as crenças que tem a respeito de si e dos outros, tornando–o
cada vez mais inapto.
Ao constituir um espaço específico para loucura e para o desenvolvimento do
saber psiquiátrico, o ato de Pinel é, desde o primeiro momento, louvado e criticado. As
principais críticas dirigem–se ao caráter fechado e autoritário da instituição e terminam
por consolidar um primeiro modelo de reforma à tradição pineliana, qual seja, o das
colônias de alienados. Tal modelo tem por objetivo reformular o caráter fechado do
asilo pineliano, ao trabalhar em regime de portas abertas, de não restrição ou maior
liberdade (AMARANTE, 2003).
Ocorreu que no final do século XVIII se percebia que nem todos os doentes se
curavam e a proposta de isolamento não resolvia todos os problemas do desvio.
Procura–se redefinir mais cuidadosamente a sua população, dispor de técnicas e
objetivos mais científicos. Foi, portanto, no século XIX que o positivismo alcançou,
através da anatomoclínica, uma definição mais objetiva para doença mental, enquanto
patologia.
Nesse contexto se esboça uma predominância do pensamento ligado à doutrina
organicista7, em que o apego aos tratamentos físicos resultou das dificuldades práticas
do “tratamento moral” e as urgências determinadas pela superpopulação dos
manicômios. O desenvolvimento da anatomia patológica influenciou fortemente o
7
No último quarto do século XIX, a doutrina organicista se torna praticamente hegemônica, fundada
numa floração, jamais vista antes, de pesquisas anatomopatológicas, terapêuticas e farmacológicas
(PESSOTI, 1996).
54
pensamento da psiquiatria da época, fazendo com que os alienistas buscassem causas
orgânicas da loucura e desenvolvessem, consequentemente, procedimentos terapêuticos
físicos e medicamentosos.
Na tentativa de aproximação do modelo anatomopatológico, a causa moral da
loucura tornou–se um obstáculo; vários debates foram travados entre os alienistas,
revirando o saber psiquiátrico, mas nem assim a psiquiatria conseguiu se livrar dessa
concepção. Isso pode ser percebido com a doutrina das degenerações, pensada em 1857,
pelo psiquiatra Bénédict Augustin Morel, que incluía noções de defeito, degeneração,
anormalidade
e
periculosidade
manifestadas
por
personalidades
psicopáticas,
apresentando interdependência entre o moral e o orgânico, baseando–se nos conceitos
de predisposição de Valentin Magnan, psiquiatra francês, e com princípio nosológico de
Emil Kraepelin, psiquiatra alemão (ANAYA, 2002).
Todavia, mudou–se a forma de se pensar acerca das causas da loucura, mas o
manicômio se perpetuou, agora de forma ainda mais violenta, justificada por um aparato
teórico. O manicômio deixou de ser um instrumento de cura e passou a ser local de
depósitos de diferentes formas de loucura, onde se impuseram diversos atos de
violência, em nome da ciência.
As colônias atualizam, então, o compromisso da psiquiatria emergente com a
realidade do contexto social e histórico da modernidade, baseada no que Juliano
Moreira chamou de a “ilusão de liberdade” (AMARANTE 2003). Na prática, o modelo
das colônias serve para ampliar a importância social e política da psiquiatria, e
neutralizar parte das críticas feitas ao hospício tradicional. No decorrer dos anos as
colônias, em que pese seu princípio de liberdade e de reforma da instituição asilar
clássica, não se diferenciam dos asilos pinelianos.
A definição da loucura como doença mental e a estruturação do manicômio, um
lugar onde o desatino pôde, finalmente, ser confinado, destrinchado, segregado dos
normais, ratificou a medicina como instituidora de um regime de verdade, que não tem
ação somente em unidades de saúde, mas na estrutura e no desenvolvimento da
sociedade, com vistas à normalização dos indivíduos, situação a ser explanada no
próximo capítulo.
55
Capítulo 2
A MEDICINA, O ORDENAMENTO SOCIAL E A
EXCLUSÃO DOS LOUCOS
2.1 A MEDICINA NO BRASIL: uma disciplina ordenadora
Para se analisar o surgimento da psiquiatria no Brasil e, por conseguinte, as
instituições que se ocupavam com os loucos, faz–se necessário, inicialmente,
compreender a forma como se deu a organização do discurso médico brasileiro, bem
como sua prática fundante ainda na época colonial.
Nos séculos XVIII até meados do século XIX não havia um padrão considerado
ideal e principalmente aceito pela população referente à presença dos médicos
acadêmicos. Ao contrário, o hábito de recorrer ao médico nos momentos de
desequilíbrio da saúde é bem mais recente. Esta forma de delegar ao outro, preparado
em espaços acadêmicos formais, a competência para avaliar o estado de saúde do seu
corpo foi forjada, junto à população brasileira, ao longo do século XIX, especialmente a
partir da segunda metade (FIGUEIREDO, 2005).
A ausência de profissionais formados nas academias, em diversas regiões do país,
ao longo dos séculos XVIII e XIX, não poderia ser sentida como lacuna por parte da
população ou como algo que deveria ser preenchido para o bem geral da comunidade. A
população estava habituada a lidar com a inexistência deste profissional. Esta era a regra
e essa experiência não era vivenciada necessariamente como falta por parte da
população (FIGUEIREDO, 2005).
De acordo com Machado et al. (1978), a demanda pela presença do médico,
durante todo o período colonial, pelos moradores de cidades e vilas era reivindicada por
meio de cartas enviadas ao rei de Portugal, manifestando as dificuldades. O autor
destaca que o médico era um personagem que figurava entre os reis e seus vassalos
através da presença da doença e da morte, que podia ajudar a conservar a vida dos
súditos.
Os médicos eram profissionais escassos, uma vez que não era permitido o ensino
superior nas colônias e porque eles demonstravam desinteresse em vir para o Brasil,
território longe dos medicamentos, que estavam na Europa, não conheciam a flora local
56
e as vantagens profissionais eram poucas. Apesar desses entraves, os médicos, para se
estabelecerem na colônia, tinham de passar por uma seleção, com o seguinte percurso: o
médico era solicitado pela população e o mesmo era enviado por uma instância máxima
e última do rei, a partir de uma diligência sobre a experiência, conduta, idade e local de
estudos daquele que poderá ser indicado (MACHADO et al., 1978).
Os médicos que atuavam no Brasil eram quase todos formados em Coimbra, a
graduação de médicos nesta faculdade iniciou–se em 1288, quando o Papa Nicolau IV
ordenou o direito da mesma de conceder o grau de Licenciatura em Artes, Direito
Canônico ou Civil e de Medicina. Nesse período, o ensino médico era feito numa
cadeira denominada Física, então, os primeiros médicos portugueses também eram
conhecidos como Físicos. A partir do século XVI, o ensino médico contava com um
curso de cinco anos de duração, o método de ensino era rudimentar, consistia na leitura
de textos de Hipócrates, Galeno, Avicena, dentre outros (OUYAMA, 2006).
Foi com a reforma de Marquês de Pombal8 que o ensino médico se tornou mais
científico, sendo ministradas aulas de anatomia, dissecação, observação em hospitais.
Assim, o curso de medicina formava três níveis de profissionais na área: Licenciados,
ou seja, aqueles que concluíam um curso de formação básica na Faculdade de Coimbra;
os Bacharéis, que cursavam cinco anos e ao final elaboravam suas conclusões magnas; e
os Doutores, com cinco anos de duração e defesa da tese (OUYAMA, 2006).
Ressalta–se que havia um lugar à parte na arte de curar as doenças que era
desempenhado pelos Cirurgiões, encarregados de pequenas operações, com a
prerrogativa de exercer esse ofício nos locais onde não houvesse um médico. A sua
formação não era universitária, eles se habilitavam na prática, freqüentando as
atividades de um médico formado, com posterior avaliação em um exame perfunctório,
recebiam uma carta de Cirurgiões–Barbeiros (MACHADO et al., 1978).
Uma preocupação nesse período era a fiscalização do exercício das atividades
médicas. O procedimento de fiscalização dos profissionais da medicina cabia a um
órgão específico da administração portuguesa, a Fisicatura. Esse dispositivo político e
administrativo foi criado por D. João VI e depois aperfeiçoada por D. Afonso.
8
Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, mais conhecido como Marquês de Pombal, ao
assumir o cargo de Ministro da Fazenda do rei D. José I, em 2 de agosto de 1750, no lugar de Azevedo
Coutinho, empreendeu reformas em todas as áreas da sociedade portuguesa: políticas, administrativas,
econômicas, culturais e educacionais (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2006).
57
Em 1488, as Ordenações do reino determinavam que a Fisicatura tivesse a
atribuição de criar as funções de Físico–Mor, com a prerrogativa geral de controle da
medicina, com a fiscalização do cumprimento dos regulamentos sanitários e de conferir
as cartas de licenciamento para as práticas médicas; e as funções de Cirurgião–Mor, que
controlava as questões relativas às cirurgias, desde a outorga da licença de cirurgião e
cirurgião–barbeiro até os seus locais de atuação, restritos aos espaços onde não tinham
médicos. O cirurgião–barbeiro ocupava um cargo mais baixo, além de barbear e cortar
cabelo, cabia a ele o emprego de ventosas, sarjaduras e extrações de dentes, atividades
consideradas de menor importância, para as quais bastava certa habilidade manual
(MACHADO et al., 1978).
No Brasil, em meados do século XVIII o Conselho Ultramarino decidira que as
atribuições de Fisicatura exercidas nas colônias deveriam ser realizadas por delegados
formados pela Universidade de Coimbra. Em 1782, foram substituídos, os cargos de
Físico–Mor e Cirurgião–Mor, por um órgão administrativo denominado ProtoMedicato, com funções similares à extinta Fisicatura e que também funcionava na
colônia por meio de delegados (OUYAMA, 2006).
Em 22 de janeiro de 1810, já a família real instalada no Brasil, o príncipe regente
D. João VI, estabeleceu o Alvará no qual o Brasil recebia a denominação de Estado do
Brasil e o Juiz Comissionário, delegado do Físico–Mor, seria encarregado de fiscalizar
o exercício da medicina, com o direito de conceder licença aos cirurgiões–barbeiros que
prestassem exames perante a junta organizada por ele. Estas cartas de licença eram
provisórias e garantiram o exercício de médicos brasileiros até o surgimento das
Academias de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro (MACHADO et al., 1978).
Outra função importante na prática de curar era a do Boticário, cuja arte consistia
em manipular receitas, algumas manuscritas, mas a maioria contida nos manuais. De
acordo com Marques (1998), os Boticários eram encarregados do fornecimento de
remédios prescritos pelos médicos. Porém, na prática, apesar de não possuírem
aprendizado em medicina e tampouco terem curso acadêmico, eles acabavam
monopolizando os remédios, passando também a indicá–los.
A formação do Boticário se dava em um período de observação e aprendizado em
boticas e depois prestavam exames perante a Fisicatura que concedia, segundo
aprovação do candidato, habilitação para instalar sua própria Botica. O progresso do
58
conhecimento na área dos medicamentos levou à formulação da profissão farmacêutica
e as reformas do Marques de Pombal foram responsáveis pela oficialização do ensino,
criando uma cadeira de Matéria Médica e Farmacêutica. No século XVIII, D. Maria I
ordenou e uniformizou as práticas criando, em 1794, a Farmacopéia Geral para o Reino
e Domínios de Portugal (MARQUES, 1998).
Com a instalação da corte portuguesa no Brasil, a medicina amplia sua
perspectiva acadêmica. A criação do ensino cirúrgico é agora colocada como útil ao
“restabelecimento da saúde do povo”, um dos principais objetivos monárquicos, sendo
para tanto necessário promover a cultura e progresso dos estudos médicos. A saúde
torna–se objetivo central.
Como mencionado, anteriormente, o número de médicos diplomados até o século
XIX era mínimo, em nenhum momento chega a dez, durante os séculos XVII e XVIII.
A atuação de curadores, jesuítas, pajés era ampla, escapando quase que totalmente ao
controle da Fisicatura. Esta, por outro lado, possibilita a legalização da situação de
elementos não formados, como os cirurgiões práticos, que tenham servido por alguns
anos nos Hospitais das Santas Casas de Misericórdia ou acompanhado algum médico,
através de uma carta ou atestado, caso fossem aprovados em exames prestados ao Físico
ou Cirurgião mores. Licença dos práticos ou empíricos que continua a ser considerada
mesmo depois da criação do ensino cirúrgico no Brasil (MACHADO et al., 1978).
Com o objetivo de melhorar a qualidade da atividade do cirurgião, assegurando a
qualidade do aprendizado, pouco a pouco o Príncipe Regente amplia o ensino cirúrgico
no país. Ainda em 1808 foi criada na Bahia uma Escola de Cirurgia, atendendo à
proposta de José Correia Picanço, Cirurgião–mor do Reino e do Conselho do Príncipe.
Nesta Escola, onde deveria funcionar o Hospital Militar, constam como matérias a
cirurgia, a anatomia, a arte obstetrícia, constituindo um curso de quatro anos. No Rio de
Janeiro em 1809, D. João cria a cadeira de medicina clínica teórica a ser ministrada no
Hospital Militar e da Marinha. Segundo o Príncipe Regente, há necessidade de formar
cirurgiões com princípios de medicina que tenham possibilidade de tratar mais
convenientemente os doentes. Constam do plano desta cadeira: princípios elementares
da matéria médica e farmacêutica, polícia médica, higiene geral, particular, terapêutica
(MACHADO et al., 1978).
59
Assim, tanto no caso do Rio de Janeiro quanto da Bahia, o ensino médico teve
suas origens nos Hospitais Militares, ao passo que os cursos de Medicina e Cirurgia
ganharam mais consistência com a transferência do ensino médico para as Santas Casas
de Misericórdia. Em 1832, finalmente são criadas as Faculdades de Medicina do Rio de
Janeiro e da Bahia.
2.2 MEDICINA SOCIAL: verdade e ordem familiar
A evidência dos loucos em território brasileiro data de tempos remotos, mas a sua
presença só se tornou amplamente divulgada quando se pretendeu reestruturar o espaço
social com a chegada da família real no Brasil. Nesse momento, procurou-se
implementar no país um projeto de modernização ao estilo europeu e elevar a capital do
país, o Rio de Janeiro naquela época, aos moldes das grandes capitais européias. Para
tanto era necessário começar eliminando tudo aquilo que trazia a ideia de atraso e
negava os princípios da nova ordem a ser estabelecida, promovendo a higiene da cidade
e a disciplinarização da sociedade. As noções de higiene, disciplina e medicalização da
sociedade se constituíram em alvos para ação do saber médico.
Os poucos médicos, que residiam no Brasil, no final do século XVIII, não
atuavam somente nos hospitais, empreendiam participação nos espaços sociais, políticos
e econômicos do país. Machado et al. (1978) descrevem a participação do saber da
medicina na constituição estrutural e organizacional das cidades, fazendo parte do
projeto de urbanização desvelando a cidade como um todo articulado e organizado.
Imbuídos pela expectativa de desvendar as causas das doenças, os médicos redigiam
pareceres, que criticavam dentre outras coisas: a direção de algumas ruas, por impedir a
circulação do ar; o tipo de construção das casas, por dificultar a renovação do ar; as
águas estagnadas, por exaltarem “pestíferos vapores” e a imundície das praias, praças e
casas por alterar, corromper e degenerar o ar, tornando–o mais capaz de produzir
enfermidades.
Antes mesmo dos arquitetos, urbanistas, demógrafos, pedagogos, psicólogos,
sociólogos e assistentes sociais, os médicos impuseram à casa e à família, consideradas
como desequilibradas pelo desenvolvimento urbano, seu modelo de organização social.
60
Em suas considerações higiênicas sobre as habitações, em 1845, o médico Pedro José de
Almeida, procurava determinar a escolha do lugar da casa (se em planície, montanhas,
colinas, florestas, praias, vizinhanças de rios e águas correntes, etc.); a técnica de
construção (qualidade do terreno, materiais, dentre outros); a disposição das peças da
habitação (andares, assoalhos, paredes, telhado, etc.); e outras propostas de habitação
ideal (COSTA, 1999).
Os pareceres, porém, não se restringiam ao aspecto urbanístico, estendendo–se ao
domínio da alimentação pensada tanto em relação à corrupção do ar da cidade (mercado
de peixes, armazéns de carne seca, etc.) quanto como elemento que, ingerido, poderá ser
prejudicial ou benéfico à saúde. Era preciso escolher bem os alimentos: por exemplo,
desaconselhava–se o peixe, por ser de fácil corrupção, e as “misturas estimulantes”. E
embora este aspecto não esteja envolvido, apresenta–se o alimento como principal
esteio da saúde (MACHADO et al., 1978).
Portanto, Cunha (1986) declara que no período imperial foi possível encontrar
médicos no papel de consultores, assessores, conselheiros e, não raramente, críticos da
administração no que diz respeito às questões de saúde pública, entrincheirados em
entidades civis e corporativas, como a Academia Imperial de Medicina, que opinava e
interferia nos mais variados temas referentes à vida urbana, sem esconder sua vocação
política. “A cidade se agita”, constatavam os médicos, que complementavam que o
poder público mostrava–se incapaz de enfrentar seus desafios.
Machado et al. (1978) citam as características que eram elencadas pelo discurso
médico como possíveis “danificadores da saúde”: a vida sedentária, debochada, a
quietação extrema dos indivíduos, a opulência, que introduziu o luxo, e o luxo a
depravação; a prostituição, considerada uma consequência indefectível do ócio e da
riqueza adquirida sem trabalho e fomentada pelo modelo familiar dos escravos, são
alguns dos exemplos de atitudes que as pessoas de bem deviam evitar.
As propostas para se evitar as causas morais das doenças foram: evitar a
vadiagem, conservando ocupados os indivíduos de ambos os sexos, e mesmo enviar
para o campo famílias que vivem em promiscuidade, isto é, que não têm condições
econômicas de viver na cidade, porque comem, moram, dormem e respiram
pessimamente (MACHADO et al., 1978).
61
Percebe–se que os médicos, neste período, sentem a existência de uma
exterioridade entre suas funções propriamente terapêuticas e os encargos políticos e
administrativos, no que se refere à saúde como um todo. A medicina não parece ser
vista como aconteceu explicitamente com a medicina social no século XIX, como uma
prática política específica, como um poder especializado que deve assumir a
responsabilidade dos indivíduos e da população atuando sobre as condições naturais e
sociais da cidade.
No Brasil nasceu um tipo específico de medicina que pode ser chamada de
medicina social pela maneira como tematizou a questão da saúde da população e
procurou intervir na sociedade de maneira global. O século XIX assinala para o país o
início de um processo de transformação política e econômica que atinge igualmente o
âmbito da medicina, inaugurando duas de suas características como têm–se
intensificado cada vez mais: a penetração da medicina na sociedade, que incorpora o
meio urbano como alvo da reflexão e da prática médicas, e a situação da medicina como
apoio científico indispensável ao exercício de poder do Estado (MACHADO et al.,
1978).
Essa transformação do objetivo da medicina significa fundamentalmente um
deslocamento da doença para a saúde. O “médico político” deve dificultar ou impedir o
aparecimento da doença, lutando, ao nível de suas causas, contra tudo o que na
sociedade pode interferir no bem–estar físico e moral. O médico tornou–se um cientista
social integrando à sua lógica a estatística, a geografia, a demografia, a topografia, a
história. Pois, se a sociedade, por sua desorganização e mau funcionamento, é causa de
doença, a medicina deve refletir e atuar sobre seus componentes naturais, urbanísticos e
institucionais visando a neutralizar todo perigo possível. Nasce o controle das
virtualidades; nasce a periculosidade e com ela a prevenção (MACHADO et al., 1978).
O médico se torna um planejador urbano, uma vez que as transformações da
cidade estiveram a partir de então ligadas à questão da saúde; torna–se, enfim, analista
de instituições: transforma o hospital, que antes era um órgão de assistência aos pobres,
em uma máquina de curar; cria o hospício como enclausuramento disciplinar do louco,
tornando-o doente mental; inaugura o espaço da clínica, condenando formas alternativas
de cura; oferece um modelo de mudança à prisão e de formação à escola (MACHADO
et al., 1978).
62
Destaca–se que no início do século XIX se articularam ensino da medicina e
higiene pública, dois objetos que a partir de então estiveram sempre relacionados.
Todavia, ainda não existia neste período um projeto coerente e organizado de medicina
social, mas práticas médicas heterogêneas que em sua essência se misturaram e, mais
fundamentalmente, se confrontaram neste momento de transformações. Ao mesmo
tempo em que se formula, especialmente em 1809, com a criação da Provedoria de
Saúde, um plano de polícia médica, com o controle simultâneo da saúde pública e do
exercício da profissão, que aparece explicitamente como causa de morbidade e
mortalidade, a Fisicatura é incapaz de comandar a realização desta característica básica
da medicina social. Com o fim da Fisicatura e da Provedoria de Saúde, o encargo da
higiene pública passa para as Câmaras Municipais (MACHADO et al., 1978).
A medicina a partir do século XIX em tudo intervém e começa a não mais ter
fronteiras; é a compreensão de que o perigo urbano não pode ser destruído unicamente
pela promulgação de leis ou por uma ação lacunar, fragmentária, de repressão aos
abusos, mas exige a criação de uma nova tecnologia de poder capaz de controlar os
indivíduos e as populações tornando–os produtivos ao mesmo tempo que inofensivos.
Essa medicalização da sociedade não poderia ocorrer sem a instituição da figura
normalizada do médico, através, sobretudo, da criação de faculdades, e produzir a
personagem desviante do charlatão para a qual exigirá a repressão do Estado
(MACHADO et al., 1978).
A medicina social, com seu novo tipo de racionalidade, é parte integrante de um
novo tipo de Estado. Evidencia–se não uma neutralidade científica, mas sim uma
política científica, porque foi formulada por especialistas que pertencem ao aparelho do
Estado. Surge, então, a necessidade de produção de um novo tipo de indivíduo e de
população necessários a existência de uma sociedade capitalista, antes mesmo do
aparecimento de grandes transformações industriais, intrinsecamente, ligadas ao novo
tipo de medicina que pela primeira vez equaciona uma relação de causalidade entre os
termos saúde e sociedade (MACHADO et al., 1978).
Para que se aprofunde no estatuto próprio da problemática da saúde até o século
XIX, não se pode limitar à investigação deste poder médico encarregado de fiscalizar o
exercício da medicina, cirurgia e farmácia que foi a Fisicatura e ou da ação das Câmaras
Municipais no que diz respeito ao funcionamento da cidade combatendo a sujeira,
63
podridão e o perigo da peste, bem como as propostas de ordenação familiar e das
cidades. Uma outra instituição deve ainda ser analisada quando se põe a questão da
função social da medicina e se pretende distinguir o tipo de organização e
funcionamento dos cuidados de saúde como existem no Brasil, essa instituição é o
hospital.
2.3 HOSPITAIS BRASILEIROS: um esboço histórico
Os historiadores dos hospitais divergem com relação às datas de nascimento
dessas instituições no Brasil. Todavia, Machado et al. (1978) defendem a possibilidade
da existência de um elo entre o hospital colonial e sua maturidade, que ao ser alcançada,
o transformou em um hospital moderno.
O projeto de criação de um hospital desencadeia um discurso abrangente sobre a
vida da população, o trabalho e a defesa no Brasil. O hospital articula–se com os
problemas mais gerais que enfrenta o governo da cidade. O ensino médico é um dos
aspectos dessa ofensiva a que se propõe o governo, ofensiva que tem por objetivo geral
combater os desmandos e o ócio de uma população sem trabalho.
Iniciou–se uma crítica à formação tradicional do cirurgião e o hospital foi
proposto como lugar de ensino regularmente distribuído por disciplinas específicas,
conforme sugere carta do Desembargador Ouvidor Geral de Pernambuco, Antônio Luis
Pereira da Cunha ao Rei, de 20 de julho de 1798:
Os enfermos extremos e a sociedade pública participarão de um grande
melhoramento estabelecendo-se no hospital uma cadeira de anatomia, e mais
lições de cirurgia, donde saiam cirurgiões menos funestos e homicidas, dos
que forma o método vulgar dos estudos do país. [...] A anatomia não se
aprende bem por estampas, ainda as melhores que cá chegam; o estudo dos
cirurgiões do país se limita a pouca a má lição caseira e acompanham alguns
tempos um cirurgião formado pelo método exposto, e a quem o delegado do
Proto–Medicato deu licença para matar impunemente. Vossa Excelência
prevê bem que horrível carniceira se aparelha a um povo curado pela maior
parte por semelhantes professores: e como os naturais do país por falta de
meios ou de inclinação não possam ir estudar no Reino, a instituição da
cadeira será o único meio de atalhar a tantos males, porque os sangradores
dos navios, que por aqui se deixam ficar, são tão maus como os cirurgiões da
terra (CUNHA, 1798 apud MACHADO et al., 1978, p.131).
64
A importância da figura do médico dentro dos hospitais, como sujeito de saber, é
uma exigência funcional do estabelecimento hospitalar. O candidato, instruído em
disciplinas específicas por médico e cirurgião competentes, será examinado por aqueles
que o acompanharam no processo de aprendizagem.
No final do século XVIII, explicita–se o projeto de reformulação da função
hospitalar. O hospital é uma instância pública que, operando sobre uma dada população,
garante os interesses da administração colonial na área do trabalho e da defesa.
Inscrição, pois, da doença em uma perspectiva social mais ampla. A doença acompanha
a pobreza, o ócio, o vício e o crime, características de cidades sem trabalho, entregues
ao luxo ilusório que a escravidão possibilita (MACHADO et al., 1978).
O hospital não tem mais uma exclusiva missão humanitária e religiosa, se
transforma em instrumento político, instrumento de governo. Ao se articular com um
conjunto de fatores sociais, sua eficácia, seja ao nível administrativo e financeiro, seja
ao nível da cura e do ensino médico, começa a ser questionada. Questionamento que
não encontra, no momento, condições para que se traduza em medidas efetivas de
transformação. Neste sentido, o hospital militar é o objetivo mais próximo dos
interesses imediatos da administração, que procura efetivar a estratégia geral de controle
hierarquizado e centralizado segundo um modelo militar de governo (MACHADO et
al., 1978).
Na verdade, não se pode encontrar nenhuma semelhança entre o tratamento dos
doentes nos hospitais coloniais e o que, a partir do século XIX, passou–se a esperar de
um hospital, ainda que se não efetivamente ministrado, ao menos preconizado como
adequado. A prevista evolução perpassa pela superação de características que se
assemelham às de uma criança em processo de crescimento: ausência de limpeza, de
organização e eficiência (MACHADO et al., 1978).
O serviço de hospitalização da época colonial é, fundamentalmente, uma atividade
assistencial, destinada, sobretudo, aos doentes pobres. Assistência promovida por
ordens religiosas e, principalmente, pelas Santas Casas de Misericórdia, fundadas por
irmandades de leigos que se encarregavam também da administração. Mas não somente
os doentes pobres se beneficiavam dos serviços dos hospitais da Misericórdia. Também
os forasteiros e, principalmente, os soldados e marinheiros eram ali internados por não
lhes ser reservados nenhum outro estabelecimento (MACHADO et al., 1978).
65
O hospital no período colonial não era medicalizado, a presença do médico era
inconstante e sua vigilância sobre os doentes estava fora das preocupações, não se
interessava em acompanhar a marcha das moléstias. A ausência de medicalização dos
hospitais se evidencia no número reduzido de médicos e cirurgiões, que compunha as
equipes. Machado et al. (1978, p.59) confirmam isso ao declarar que:
O serviço hospitalar da Santa Casa do Rio de Janeiro limitava–se no começo
do século XVIII a apenas dois médicos, um cirurgião e um enfermeiro
auxiliado por um ajudante e mais dois escravos, para uma população de mais
ou menos duzentos e cinqüenta doentes (MACHADO et al., 1978, p.59).
A assistência dos enfermos na colônia era competência e tarefa dos religiosos: são
eles os “enfermeiros” dos hospitais, cujos pacientes referenciados eram os pobres e os
soldados. A exigência da visibilidade do altar desvela a função religiosa do hospital
colonial: ele se organiza, em seu espaço e funcionamento, de maneira a preparar, pela
religião, uma boa morte. Esta função religiosa do hospital colonial encontra sua melhor
personificação na figura do “capelão da agonia”, padre encarregado da assistência
espiritual dos enfermos, e que tinha como obrigação percorrer dia e noite as enfermarias
do hospital para acompanhá–los na morte. E a administração hospitalar é feita pelos
irmãos da Misericórdia, eleitos provedores e tesoureiros.
Sem uma organização metódica, os hospitais desfrutavam de má reputação no
tratamento ofertado, eram considerados abafados, com poucos profissionais e o
mobiliário escasso (na falta de camas, as esteiras eram utilizadas) e, portanto, sua
eficácia era questionada. Essa situação se agravava quando surgia uma peste, como na
ocasião da epidemia de varíola em Salvador, em 1779 (MACHADO et al., 1978).
Embora esteiras e doenças se amontoem no espaço hospitalar colonial, uma certa
ordem preside a distribuição de suas enfermarias. Destaca–se que não é um critério
médico que as divide e nomeia. Por exemplo, os 180 doentes foram distribuídos em seis
enfermarias no hospital de Salvador, classificadas por critérios heterogêneos:
enfermarias das febres, de azougue, das chagas, dos convalescentes, das mulheres e dos
incuráveis (MACHADO et al., 1978).
No mesmo hospital da Bahia, no século XVIII, são adicionadas acomodações
destinadas aos loucos, as chamadas “casinhas de doudos”. Sabe–se que estas
acomodações não constituíam espaço de tratamento, mas lugar de encerramento, de
66
reclusão. Junto aos loucos, ambos nivelados na mesma inferioridade social,
acomodavam–se os carregadores de caixões de defunto, o que mostra que necessidades
de ordem médica, tratamento e cura das moléstias não presidiam a organização do
espaço hospitalar (MACHADO et al., 1978).
O aspecto social é, portanto, o que melhor caracteriza a atividade hospitalar nos
séculos XVII e XVIII. Por outro lado, esta assistência, seja ela exercida por instituições
religiosas leigas ou eclesiásticas, será sempre de origem privada. A manutenção dos
hospitais dependia da caridade dos habitantes, por intermédio de doação ou esmolas
recolhidas nas ruas da cidade, do rendimento das tumbas e das arrecadações dos dízimos
concedidos pelo Rei. A administração pública não participava na criação de hospitais, a
ação do governo limitava–se às recomendações dos Regimentos dos Governadores
Gerais, oferecendo uma inconstante proteção financeira. A assistência hospitalar
colonial se caracterizou por ser menos uma assistência à doença que à miséria,
situando–se em uma ação caritativa mais ampla que inclui crianças abandonadas,
indigentes e prisioneiros (MACHADO et al., 1978).
A percepção caritativa dos hospitais não se sustentou sozinha nos séculos XIX e
XX, Amélio (1965) declarou que o hospital, como entidade moderna, merece especial
cuidado com a organização econômico-financeira. Para fazer caridade, o hospital
moderno não podia mais esperar só boa vontade pública, nem viver só de subvenções e
de rendas patrimoniais, que já não bastavam ao custeio sempre crescente e cada vez
mais caro nas instituições hospitalares. No fragmento descrito abaixo, Campos (1965, p.
187), se refere ao cuidado que o hospital deve ter com o desajustado social, evitando em
suas ações demonstrar tal situação, e revela também a importância de se pensar a
respeito do custeio da instituição hospitalar:
Não há leito gratuito; há doente gratuito. O custeio de todos os leitos já está
previsto no orçamento e corresponde a certa despesa. O tratamento dado ao
indigente deve ser o mesmo da classe média. O leito do indigente ou do
desajustado social deve ser pago pela caridade, pela filantropia, pela
contribuição social e dos governos: municipal, estadual ou federal. Não deve
haver característica aviltante, que assinale a condição humilde ou miserável
do doente (CAMPOS, 1965, p. 187).
Dentre as internações de cunho social destacam-se as dos loucos, que na
expressão da sua insanidade, na singularidade da desrazão, causa também uma
67
desordem social, por isso demandam uma contenção nos hospícios, que se transformam
numa espécie de hospital especialista em confinar os doentes mentais e significam a
evolução do hospital geral para esses casos. O relato a seguir evidencia a justificativa
para internação dos desrazoados:
Os pacientes afetados de doenças mentais e nervosas se muitas vezes não
necessitam internação, podendo tratar-se ambulatoriamente, outras vezes a
internação torna-se obrigatória devido aos perigos que pode acarretar a
conservação em liberdade de certos pacientes e pelos desatinos que podem
cometer (AMÉLIO, 1965, p 263).
Uma outra modalidade de instituição hospitalar criada para atender as demandas
relativas aos loucos no Brasil, no final do século XIX e início do XX, foi o chamado
hospital-colônia. A relevância desses hospitais especializados é elevada a método
terapêutico adequado, que permite ao “doido” produzir, sob supervisão médica,
culminando com a noção da cura pelo trabalho. Amélio (1965, p. 263) sugere como
deveriam ser construídas as instalações das instituições que receberiam os doentes
mentais:
A hospitalização dos mentais é feita com vantagens em hospitais-colônias e
aí muitos deles se dedicam as tarefas várias sob a orientação e assistência de
médicos especialistas. O trabalho constitui mesmo em certos casos uma
modalidade de terapêutica, a laborterapia. As colônias de psicopatas devem
ser instaladas e equipadas convenientemente de maneira a poder
proporcionar o tratamento e assistência necessários. Convém frisar aqui a
necessidade de separar os casos agudos em pavilhões ou seções especiais, o
que geralmente é feito, com técnica especial, enquanto esse período da
enfermidade durar. Em outros casos impõe-se o isolamento por
intercorrência de processos contagiosos. Para atender a esses casos, isto é,
mentais agudos e contagiosos, o hospital ou colônia deverá estar aparelhado
convenientemente. No caso de mentais agudos deverão ficar em seções ou
pavilhão especialmente preparado para esse fim. Essa seção ou pavilhão
deve ter portas características e instalações especiais. Assim é que as janelas
não devem ser as comumente usadas, bem como as portas. O leito deve ser
fixado, inteiriço, bem como todas as peças e instalações devem ser de tal
maneira instaladas e com material de tal natureza que não possa ser
fragmentado e utilizado como instrumento de agressão. O hospital deverá
dispor de pessoal especializado e facilidades para o emprego da moderna
terapêutica, pela malária, eletrochoque, cardiazol, insulina, etc. A vigilância
deve ser rigorosa e permanente, resultando disso a necessidade de grande
número de funcionários, para poder atender ao serviço (AMÉLIO, 1965, p.
263).
68
Contudo, percebe–se que a evolução dos hospitais no Brasil caminhou,
concomitantemente, com as questões políticas, sociais, econômicas do país e,
principalmente, as referências científicas internacionais que chegavam para as
academias médicas e o conhecimento produzido pela medicina brasileira. Nesse
contexto, os profissionais médicos foram os responsáveis pela transformação do
hospital caritativo em medicalizado, segmentado por doenças e especialidades, com
finalidade disciplinar, de normalização, que culminou com a ideia de confinamento da
loucura.
2.4 HOSPÍCIOS PARA OS LOUCOS BRASILEIROS
Na França, a criação dos hospícios foi o resultado de um processo político de
reformulação da figura do louco – e do indigente, transformado em cidadão – através da
criação de instituições democráticas e liberais que, se caracterizam por reinscrever o
louco num espaço de internamento, agora o fazem através da produção do seu estatuto
de doente. No Brasil, por outro lado, a criação do hospício foi o resultado de acordos
realizados entre as elites como forma de reforçar o poder imperial que se encontrava
enfraquecido após a conturbada fase da Regência (TEIXEIRA, 1997).
Em 1841, D. Pedro II determinou a criação, no Rio de Janeiro, de um hospício
destinado ao tratamento de alienados. Primeiro hospital de doentes mentais do Brasil,
que inaugurou uma nova fase da problemática da loucura e do louco no nosso país,
culminando com o nascimento da psiquiatria brasileira. A criação do Hospício de Pedro
II foi viabilizada a partir do decreto nº 82 de 18 de julho de 1841, o qual por ocasião da
maioridade de D. Pedro, dizia que:
Desejando assinalar o fausto dia de Minha Sagração com a criação de um
estabelecimento de pública beneficência: Hei por bem fundar um Hospital
destinado privativamente para tratamento de alienados, com a denominação
de - Hospício de Pedro Segundo -, o qual ficará anexo ao Hospital da Santa
Casa da Misericórdia desta Corte, debaixo da Minha Imperial Proteção.
Aplicando desde já para principio da sua fundação o produto das subscrições
promovidas por uma Comissão da Praça do Comércio, e pelo Provedor da
sobredita Santa Casa, além das quantias com que Eu Houver por bem
contribuir. (BRASIL, Decreto nº 82, de 18 de julho de 1841 apud ALVES,
2010).
69
Ponto inicial de um processo, a criação do hospício insere–se na transformação
mais ampla que atinge a medicina enquanto saber e técnica de intervenção. Considerado
sob esse aspecto, o hospício é um resultado; representa um momento de vitória em uma
luta que não só antecede, mas prepara sua realização e confere à psiquiatria um lugar
entre os instrumentos utilizados pela medicina (MACHADO et al., 1978).
Nessa perspectiva, tem-se como princípio básico um duplo afastamento do louco
do meio urbano e social, quer fosse pelo distanciamento ou pela reclusão, em defesa do
modelo do isolamento. A escolha da Praia Vermelha, local onde se construiria o
Hospício de Pedro II, foi em função de ser um local afastado do centro urbano, assevera
Soares Jorge (1997). Com isso, ficava evidente a prática de exclusão, tão presente nas
diversas maneiras de lidar com as formas de loucura:
Exclusão, eis aí, numa só palavra, a tendência central da assistência
psiquiátrica brasileira, desde seus primórdios até os dias de hoje, o grande e
sólido tronco de uma árvore que, se deu e perdeu ramos ao longo de sua vida
e ao sabor das imposições dos diversos momentos históricos, jamais fletiu ao
ataque de seus contestadores e reformadores (RESENDE, 2000, p.36).
Cunha (1986) complementa afirmando que o produto das concepções organicistas
do século XIX e da teoria da degeneração que presidem seu nascimento, a psiquiatria
brasileira desenvolve–se dentro de um marco institucional ainda pré–terapêutico.
Preocupada, especialmente, com os “meio loucos”, voltada para questão da degeneração
em sua dimensão social, esta psiquiatria precisava, no entanto, enfrentar
simultaneamente um fator anterior – a exclusão. Era preciso abarcar as funções
originárias que conduziram historicamente à gênese do saber psiquiátrico, ou seja, com
a “razão” combater o desatino, promovendo a elevação da ordem científica, da ordem
social, criando o lugar da loucura e separando–a da esfera dos fenômenos comuns da
vida cotidiana.
A partir de então, os doentes mentais foram todos reunidos no Hospício D. Pedro
II, cuja direção era confiada aos religiosos da Santa Casa de Misericórdia. Somente a
partir de 1881, data da criação da cadeira de “Doenças Nervosas e Mentais”, que um
médico generalista, Nuno de Andrade, assume a direção do estabelecimento (COSTA,
1981).
70
Quanto à admissão dos alienados, ficava estabelecido que os mesmos poderiam
ser recebidos em quatro categorias, indigentes (não pagantes), pensionistas de 1a classe,
2a classe ou 3a classe, pelas quais seriam pagas cotas diárias de acordo com a classe.
Em sua inauguração o hospício estava apto a receber 150 pacientes, mas este número
cresceria com o fim das obras em 1854, passando a sua capacidade para 300 alienados
(150 homens e 150 mulheres). Esta cifra só seria estendida na década de 1870 com
novas obras de ampliação do edifício, que aumentariam a capacidade de recebimento de
pacientes homens para cerca de 240 alienados (GONÇALVES; EDLER, 2009).
Os doentes, antes albergados na Santa Casa, foram alojados em uma casa próxima
ao terreno onde seria construído o hospital, a direção da Santa Casa nomeou o Dr. Cruz
Jobim, professor de medicina legal e diretor da Faculdade de Medicina, médico do
estabelecimento. O hospício foi inaugurado oficialmente a cinco de dezembro de 1852,
prosseguindo os trabalhos de construção até 1855, quando a lotação foi ampliada de 140
doentes (data da inauguração) para 350. Em 1886, Nuno de Andrade é substituído por
João Carlos Teixeira Brandão, que foi o primeiro médico psiquiatra a ocupar aquele
posto. Neste momento, inicia–se o ensino regular de psiquiatria aos médicos
generalistas (UCHÔA, 1981).
Além do Hospício de Alienados Pedro II, durante o Segundo Reinado foram ainda
criadas instituições que se denominavam “exclusivas para alienados” em São Paulo,
Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará. Como se descreve abaixo,
conforme informações de Oda; Dalgalarrondo (2005):

São Paulo (1852): Hospício Provisório de Alienados de São Paulo (Rua São
João);

Pernambuco (1864): Hospício de Alienados de Recife-Olinda (da Visitação de
Santa Isabel);

Pará (1873): Hospício Provisório de Alienados (Belém, próximo ao Hospício dos
Lázaros);

Bahia (1874): Asilo de Alienados São João de Deus (Salvador);

Rio Grande do Sul (1884): Hospício de Alienados São Pedro (Porto Alegre);

Ceará (1886): Asilo de Alienados São Vicente de Paulo (Fortaleza).
Ressalta-se que nesses hospícios não havia presença significativa de médicos.
Com
algum
custo,
esses
profissionais
conseguiram
deslocar
as
poderosas
71
administrações leigas das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que prestavam
serviços nesses locais, tanto na antiga Corte, como nas províncias, instalando-se na
direção dessas instituições asilares, reafirmando a ideia de que não era o tratamento que
estava em foco, mas primeiro a exclusão.
As configurações administrativas do Hospício começaram a mudar com a posse
de João Carlos Teixeira Brandão como diretor da instituição do Rio de Janeiro, em
1887. A partir deste momento as questões referentes à medicina mental ganharam mais
espaço dentro e fora da instituição e o papel do médico passou do âmbito exclusivo da
assistência terapêutica para o da gestão científica do espaço. Todavia, tais modificações
só foram plenamente efetivadas após a Proclamação da República, o Hospício Pedro II
foi separado da Santa Casa de Misericórdia recebendo a denominação de “Hospital
Nacional de Alienados” (MACHADO et al., 1978).
No final do século XIX a teoria da degenerescência9, que se aproximara do asilo
de modo mais radical, como espaço de incurabilidade, depósito de seres inutilizados
pela degeneração, começou a ser questionada. A vitória do organicismo nesse período,
em certo sentido, refundou o espaço terapêutico do asilo, mas definido de outra
maneira: a medicina mental não incluía, para estes, as tarefas de “assistência”, e no
hospício, plenamente medicalizado, já não cabiam as intenções de assistir, tratar e
consolar que haviam ocupado muitas das atenções do alienismo no século XIX
(CUNHA, 1986).
Com isso, o hospício torna–se uma instituição duvidosa. Morel, teórico da
degeneração, já indicava seus limites em uma “profilaxia defensiva” e apontava em
direção a outras práticas capazes de lançarem–se para além de seus muros, nas
tecnologias que ele designou como “profilaxia preservadora” (CUNHA, 1986).
Enquanto, no século XIX, a terapia deve-se impor por meio de medidas fortes de
repressão, no século XX, o doente deve ter a ilusão de liberdade, que o tranqüiliza,
deixando-o menos rebelde e mais suscetível à ordem disciplinar, algo que a terapia visa
9
O Traité des Dégénérescences, de Benedict-Augustin Morel, publicado em 1857, expõe uma teoria da
hereditariedade dos transtornos mentais que teria grande influência no pensamento psiquiátrico até o
início do século XX. Segundo sua proposição, fortemente impregnada de uma perspectiva religiosa
católica, o homem teria sido criado, perfeito, por Deus. A degeneração, correlativa do pecado original,
consistiria na transmissão à descendência das taras, vícios e traços mórbidos adquiridos pelos
antecessores. À medida que esses estigmas fossem sendo transmitidos através das gerações, seus efeitos
tenderiam a se acentuar, levando à completa desnaturação daquela linhagem, chegando até sua extinção
pela esterilidade. Em decorrência dessa teoria, muitos projetos de intervenção social de cunho higienista
foram desenvolvidos, de modo a impedir a propagação da degeneração da raça (PEREIRA, 2008).
72
fundamentalmente, reforçando a relação da psiquiatria com a idéia de homem normal,
trabalhador tranqüilo, força produtiva10.
No final do século XIX, já na sua última década em 1899, o Governo de Campos
Sales impôs drásticas reduções orçamentárias à assistência psiquiátrica, que começa a se
degradar. O que culminou, em 1902, na elaboração de um inquérito levado ao
conhecimento no Governo de Rodrigues Alves revela que o Hospital Nacional é
simplesmente uma casa para detenção de loucos, onde não há tratamento conveniente,
disciplina ou qualquer tipo de fiscalizações (COSTA, 1981).
Como resposta, Rodrigues Alves decidiu reformular a assistência psiquiátrica e
nomeia o psiquiatra Juliano Moreira como novo diretor do Hospital Nacional. Assim, a
psiquiatria ganhou novo ímpeto, e sob a influência de Moreira, em 1903, foi
promulgada a primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados (COSTA, 1981).
No início do século XX, portanto, o discurso teórico remeteu tanto à composição
de um quadro classificatório dos tipos de doença mental, que constitui a racionalidade
supostamente médica, à qual a elaboração teórica procura se integrar cada vez mais,
quanto ao discurso social da psiquiatria, ao tema da assistência que, perpassada pela
exigência de uma legitimação legal e de novas modalidades de assistência asilar e não
asilar, o que permite compreender suas condições históricas de possibilidade
(PORTOCARRERO, 2005).
Entre os dois há uma nova forma de articulação que caracteriza a psiquiatria
brasileira do início do século XX. Esta novidade se esclarece quando a psiquiatria se
dirige ao problema da assistência ao alienado substituindo a classificação baseada em
Esquirol (1816-1818), para quem a loucura era, ainda, distúrbio das funções racionais,
intelectuais, como para seu mestre Pinel, pelo modelo de Kraepelin, que caracteriza a
loucura como uma nosologia da qual se destaca duas peculiaridades: o caráter
hereditário e evolutivo. Desse modo se observa, de um lado, a análise da teoria, baseada
no novo modelo introduzido no Brasil por Juliano Moreira e, de outro, a da assistência
psiquiátrica do início do século XX, considerando a reforma do hospício, a criação de
10
Essa abordagem é muito importante no decorrer desta pesquisa, para pensarmos as evidências das
rupturas e das permanências da assistência à saúde ao louco em Montes Claros, na perspectiva da
assistência não asilar, a partir da Reforma Psiquiátrica e construção dos Centros de Atenção Psicossociais
(CAPS).
73
colônias agrícolas e a proposta de reformatórios, relacionando-as com um Programa de
Higiene Mental (PORTOCARRERO, 2005).
Com Juliano Moreira, a problematização da psiquiatria na sociedade brasileira se
apresenta, sobretudo, nos termos do que está em desenvolvimento na Europa quanto às
concepções psiquiátricas que devem ser instituídas na prática asilar. A argumentação
fundamental não é mais um trabalho de imposição da idéia de criação de um espaço
especial,
arquitetonicamente
terapêutico,
para
o
alienado,
como
aconteceu
anteriormente; pois o louco já havia sido retirado, tanto quanto possível, das prisões e
das enfermarias das Santas Casas da Misericórdia, e não perambulava mais pela cidade
desde o início do funcionamento.
Trata-se, no novo modelo, de uma prática terapêutica e preventiva ampliada. A
partir da última década do século XIX, a psiquiatria dirige-se ao indivíduo em todas as
suas manifestações psíquicas patológicas, procurando saná-las nas suas causas mais
remotas. Estabelece-se o princípio de causalidade, incluindo-se, entre as causas,
diversos estados mentais considerados sãos, patológicos em potencial, que passam a ser
medicamente concebidos como anormalidades (PORTOCARRERO, 2005).
Juliano Moreira classifica tanto a anormalidade como deficiência mental quanto a
alienação propriamente na categoria de estados psicopáticos. Introduz-se, desta forma, a
concepção de anormalidade como psicopatia, que justifica medicamente diversas
medidas de ordem prática, representativas da formação do novo sistema de assistência
psiquiátrico brasileiro, vigente a partir de 1900. Esta concepção estabelece uma
metamorfose na psiquiatria brasileira, tanto no nível do saber como da prática,
evidenciada pela categoria de personalidades psicopáticas, que explicita a noção médica
de anormalidade e mantém a noção da segregação dos “anormais” como solução para o
problema dos alienados. Tudo isso se tornou possível a partir da instituição do hospício
no Brasil (PORTOCARRERO, 2005).
2.5 A ASSISTÊNCIA AOS LOUCOS EM MINAS GERAIS
A psiquiatria mineira não faz exceção à dos demais estados do Brasil, teve seu
início em sólidas bases hospitalares numa integração considerada até hoje necessária e
74
amplamente recomendável, mesmo diante do inegável desenvolvimento da terapêutica
psiquiátrica contemporânea (MORETZSONH, 1989).
Moretzsonh (1989) defende a hipótese de que no estado mineiro a assistência aos
alienados pode ser definida ou classificada conforme os seguintes períodos: “Antigo”,
anterior à criação da Assistência Psiquiátrica em Barbacena, antes de 1900; “Medieval”,
cuja característica preponderante é a asilar, representada pelo Hospital Colônia de
Barbacena, em 1903; “Renascentista”, de cunho hospitalar, reproduzido pelo Instituto
Raul Soares; “Moderno”, exemplificado pela Casa de Saúde, como a Casa de Saúde
Santa Clara, em 1937; “Contemporâneo”, com prática de assistência ambulatorial,
caracterizada pela introdução das drogas psicotrópicas e dos conceitos psicanalíticos,
em 1960.
De acordo com Magro Filho (1992), o século XIX marca efetivamente o início
das discussões sobre a loucura nas outras províncias, enquanto os mineiros se
preocupavam principalmente com o regulamento do exercício das profissões de
medicina, farmácia e controle das epidemias. Em documentos da época, essencialmente,
Relatórios da Província proferidos pelos Presidentes de Províncias, pode-se encontrar
relatos que fazem referência à abertura de farmácias; à concessão de licença a médicos;
à análise do estado sanitário da província; ao combate a epidemias de febre amarela e
“bexiga”; ao controle dos leigos e curandeiros e multas aos que exercessem a prática da
medicina. Como se evidencia nos trechos abaixo referentes aos Relatórios da Província
de Minas Gerais de 1840 e 1869:
Além da moléstia contagiosa das bexigas que, como em alguns anos
antecedentes desenvolvendo–se em diversos pontos da Província, e mesmo
nesta Capital, onde ainda hoje se sentem os seus efeitos, nenhuma outra
manifestou–se de maneira que se fizessem necessárias quaisquer
providências das Autoridades durante o tempo que decorreu de encerramento
da última Sessão da Assembléia (MINAS GERAIS, 1840).
O serviço de vacinação e o exercício da medicina e cirurgia estão na verdade
em circunstâncias pouco satisfatórias, sendo ineficazes as leis existentes,
porque são embaraçadas pela ignorância do povo, pelas distancias,
condescendência congênita do país e pela impunidade dos abusos (MINAS
GERAIS, 1869).
Devido à extensão do problema das epidemias e de acordo com a concepção de
polícia sanitária vigente na época, as ações sanitárias no Império reforçavam sua
75
característica de controle social; se o controle das endemias era entregue ao Serviço de
Higiene da Província, a questão da doença mental era entregue diretamente à Polícia.
Ambos os setores, controle das epidemias e doença mental, se subordinavam a um
mesmo órgão público, ou seja, à Secretaria do Interior, criada pela Lei número 06, de 18
de outubro de 1891. Desse modo, a Inspetoria de Higiene Pública cuidava do controle
das doenças e a Polícia se limitava a recolher os alienados às cadeias (MAGRO FILHO,
1992).
Portanto, para os loucos existiam as seguintes alternativas em Minas Gerais:
permanecer em sua casa, mantido longe dos familiares, trancados em um cômodo, isso
para famílias com recursos ou, não receber nenhum tratamento, no caso daqueles que
eram pobres e ficavam jogados nas ruas, entregues à própria sorte e, ainda, ser
encaminhado aos anexos para loucos existentes nas Santas Casas de Misericórdia
(MAGRO FILHO, 1992).
A Santa Casa de Misericórdia foi fundada em Minas Gerais no século XVIII, e
apesar desta Província ser conhecidamente rica a instituição atravessou tempos de
intensa pobreza, tendo mesmo sofrido largos períodos de interrupção em seu
funcionamento, o que acometia a assistência à saúde mental:
Posto que em Relatórios anteriores se achem circunstanciadas notícias acerca
dos Hospitais de Caridade existentes nesta Província entendo que é um
dever, e que vou de acordo com vossos sentimentos, e desejos, informando–
vos ainda hoje do estado de cada um d‟esses Pios Estabelecimentos, tanto
mais digno da solicitude da Assembléia, quanto são escassos os meios de
que podem dispor para preencher os importantes fins de sua instituição
(MINAS GERAIS, 1837).
As Casas de Misericórdia acolhiam pacientes portadores de várias doenças e
algumas recebiam alienados em anexos próprios para esse fim. O Hospital de São João
Del Rei tinha em anexo uma enfermaria para acolhimento dos loucos. Neste “Hospício
em anexo à Casa de Caridade”, diagnósticos psiquiátricos foram formulados, inclusive o
de monomania, conceito postulado por Esquirol, que foi publicado em Des Maladies
Mentales considerées sous les rapports medical, hygiénique et medico–legal. O trecho
abaixo retirado do Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Minas
Gerais na 2ª sessão ordinária do ano de 1854 corrobora com o explicitado:
76
Entre as enfermidades sobressai a da alienação mental; foram tratados 45
indivíduos atacados d‟essa fatal enfermidade, sendo 5 do sexo masculino e
10 do feminino, classificando os profissionais as diferentes espécies que
ocorreram, em mania, monomania, demência, e idiotismo; sendo maníacos
7, monomaníacos 2, dementes 4 e idiotas 2.
A mesma trata de fazer acomodações próprias para receber estes infelizes, e
calcula que dependerá na sua construção 3:000$000. Lembra mais a criação
de um recolhimento de expostos, e informa que para dirigi–lo procura obter
5 irmãs de caridade (MINAS GERIAS, 1854).
São João Del Rei teria tido a primazia da assistência psiquiátrica em Minas
Gerais, uma vez que essa assistência foi pioneira no Brasil, pois o movimento dos
médicos no Rio de Janeiro veio posteriormente. Em um periódico do Departamento de
Psicopatas do Estado de São Paulo, de 1972, Ronaldo Simões Coelho defende a idéia de
que Minas Gerais teve a primeira unidade psiquiátrica em Hospital Geral do Brasil,
como descreve o trecho abaixo:
Marco notável foi a existência durante cerca de cem anos, de uma enfermaria
para doentes mentais, ao lado da enfermaria de febres, de lepra, e de outras
especialidades médicas daquela ocasião. Trata–se da primeira unidade
psiquiátrica em um hospital que temos notícia. Estes são os primeiros
indícios de que os primeiros cuidados especiais com o doente mental no
Brasil se realizava aí, fato ainda não registrado na história da psiquiatria
brasileira. Este pequeno hospício foi mantido até 1918, quando se
desmancharam as últimas celas para loucos, na ocasião da construção do
Pavilhão Almeida Magalhães [...] Em 1848 foram entregues fundos públicos
à Santa Casa de Misericórdia, para que esta se encarregasse da custodia dos
enfermos mentais. Nessa observação traz a primazia para São João Del Rei,
isto é, para Minas Gerais (COELHO, 1972).
Em Diamantina, o anexo para loucos da Santa Casa funcionou de 1888 a 1906,
quando a verba a ele destinada foi extinta. A primeira lei que faz referência aos
alienados no Estado é a Lei número 50 de 30 de junho de 1893, que dispunha sobre a
concessão de auxílio às administrações dos Hospitais de São João Del Rei e
Diamantina. Existiu também o Decreto número 587, de 26 de agosto de 1892, onde se
incluía, além das duas cidades mencionadas, os municípios de Ponte Nova e Itabira para
receberem auxílio para as despesas com os alienados (MAGRO FILHO, 1992).
Uma outra alternativa para os mineiros loucos era ser enviados ao Hospício
Nacional de Alienados no Rio de Janeiro. Inicialmente, isso era viabilizado através de
ofícios, em que se solicitava a sua admissão, sem que houvesse um contrato entre o
77
Estado de Minas Gerais e a Diretoria de Assistência Médico–Legal, responsável pelo
Hospício. Em verdade, existe pelo menos um relato de que desde 1892 o Estado mineiro
despendia recursos com esse modelo de internação (MAGRO FILHO, 1992).
Mas, constantemente, o Hospício do Rio de Janeiro se encontrava superlotado,
razão pela qual solicitava a remoção dos doentes de volta ao lugar de origem, devido a
ausência de um contrato de prestação de serviços. Magro Filho (1992) declara que em
1894 encontravam–se no Hospício Nacional onze doentes mineiros e neste mesmo ano
foram admitidos mais cinco, totalizando dezesseis pacientes. No início de 1895, eram
22 pacientes, sendo que oito faleceram, dois tiveram alta e um “retirou–se”,
permanecendo, então, onze pessoas em tratamento oriundas de Minas Gerais. O
fragmento abaixo é parte do Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial
de Minas Gerais em 1870 e evidencia a preocupação das autoridades políticas mineiras
com a situação dos loucos:
Não terminarei este artigo sem chamar vossa atenção para uma das
necessidades mais palpitantes que sofre atualmente este importante
estabelecimento (Santa Casa de Misericórdia da capital mineira), que aliás
tão bons serviços presta, não só à humanidade desvalida, como à
administração da Província, pois é nela que são tratadas as praças enfermas
do corpo policial e da guarda nacional destacada.
Falo da construção de uma enfermaria de alienados. É verdade que há
poucos anos construiu–se ali uma casa para tratamento de enfermos desta
ordem, mas ou por má construção ou por causa dos estragos que lhe tem
feito os infelizes nela recolhidos, o certo é que ela se acha e ameaçando a
vida dos doentes que lá se acham.
O governo tem ultimamente se visto em sérios embaraços, porque instado
por diversas autoridades para fazer retirar das respectivas povoações alguns
alienados que cometem distúrbios e até ameaçam a vida de seus semelhantes
nada tem podido fazer, porque não tem conseguido a sua entrada no
Hospício Dom Pedro 2º, onde o número de alienados avulta e excede já o
que pode comportar o edifício e nem fazem-nos para esta capital onde não
podem ser tratados convenientemente.
Peço–vos, pois, que decreteis um auxílio eficaz para a reconstrução desse
edifício, com o que prestareis grande serviço a Província (MINAS GERAIS,
1870).
Em 1896, a Secretaria do Interior opinou favoravelmente por um convênio entre
Minas e o Hospício Nacional sugerido pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Consta que em 1900 eram reservados 25 leitos a alienados mineiros no Hospício
Nacional. O convênio dentre outras coisas expressava o seguinte:
78
A Assistência de Alienados mandará receber na Estação Central da Estrada
de Ferro ou qualquer outro ponto da capital federal, no dia e a hora que
forem previamente indicados os loucos, cujo tratamento lhe houver de
confiar o Governo de Minas Gerais [...] (MAGRO FILHO, 1992, p. 22).
Uma série de problemas começaram a ocorrer e serviram de justificativa para o
Governo tentar resolver a questão dos loucos. A primeira questão dizia respeito ao
convênio com o Hospício Nacional, que ressentia de melhores instalações e sua situação
agravava–se pelo fato de receber pacientes em excesso, o que levou a administração a
limitar o número de internações e, no caso, a não querer renovar o contrato com Minas
Gerais, que com os 25 leitos não supria mais sua necessidade (MAGRO FILHO, 1992).
Um segundo fator eram os gastos considerados altos para manutenção da
internação de alienados na Santa Casa de São João Del Rei. Então, foi apresentado à
Câmara Estadual, no ano de 1900, o Projeto número 49, realizado pela Comissão de
Saúde Pública, propondo criação da Assistência aos Alienados em Minas Gerais
(MAGRO FILHO, 1992).
Nesse momento, pensava-se na defesa do louco, mas também se preocupava com
os perigos deste à sociedade, preocupação essa muito comum no início do século XX.
Desse modo, a criação de um hospício era uma medida preservadora da sociedade. A
aprovação pelos deputados mineiros do projeto de criação de um hospício marca a
transferência da atenção aos alienados da iniciativa filantrópica, as Santas Casas de
Misericórdia, para o Estado. Este teve que intervir, uma vez que a Lei pronunciou a
incapacidade civil e irresponsabilidade do alienado.
O Projeto de criação da Assistência a Alienados e depois sua regulamentação
através do Decreto 1579, de 21 de fevereiro de 1903, foi elaborado pelo médico e
senador Joaquim Dutra, que designou a cidade de Barbacena como local para ser
instalada a Assistência aos Alienados (MAGRO FILHO, 1992).
A criação do Hospital Psiquiátrico de Barbacena representa dois movimentos
paradoxais: em nível estadual, significou centralizar os recursos em um só local, em um
único hospital, pois antes eram aplicados em várias Santas Casas; por outro lado, em
nível nacional, o próprio Estado passou a arcar com seus problemas sanitários, o que
vinha de encontro com a postura descentralizadora do governo republicano.
Scliar (2011) defende que a história da construção do hospício de Barbacena é
interessante, na medida em que no começo do século XX, a cidade pleiteava se tornar a
79
capital de Minas Gerais. Perdeu para Belo Horizonte, mas, como costumava ocorrer em
nosso país, os políticos trataram de providenciar algum tipo de compensação para os
barbacenenses.
Ora, naquela época grandes hospícios estavam sendo construídos em vários locais
do país (o São Pedro de Porto Alegre, tinha sido inaugurado alguns anos antes). Era a
fase do alienismo: a psiquiatria não tinha muito a fazer pelos pacientes fora dos
manicômios, e por causa disso e pela defesa da sociedade, os internava em instituições
gigantescas. Barbacena ganhou, então, o seu hospício. Foi construído numa fazenda que
havia pertencido a Joaquim Silvério dos Reis, o traidor da Inconfidência Mineira, que
recebera a propriedade como prêmio pelo “serviço prestado” (SCLIAR, 2011).
Para Magro Filho (1992), a localização do hospício na cidade de Barbacena está
ligada à dinâmica da singular política mineira, da qual faz parte a designação do Dr.
Joaquim Dutra para chefiar a Assistência. Este foi um médico natural de São João
Nepomuceno e clinicou tanto em Barbacena quanto em Leopoldina, exerceu constantes
atividades políticas. Em 1902, Dr. Dutra esteve em visita aos hospícios do Rio de
Janeiro e de São Paulo, em busca de modelos para a Assistência a ser implantada em
Minas Gerais. Por fim, baseou–se em dois grandes hospícios: o Hospício Pedro II, no
Rio de Janeiro e o Hospital Franco da Rocha (Juqueri), em São Paulo.
No ano de 1906, a estrutura do Hospício de Barbacena foi considerada
insuficiente, começou a ideia de ampliação do espaço, enfatizado a questão sanitária e
tomando como base o censo dos pacientes referente ao ano 1905. A declaração abaixo
retirada de uma Mensagem da Província de Minas Gerais proferida em 1906 corrobora
com o intuito de reestruturação do Hospital Psiquiátrico de Barbacena:
Já é insuficiente para atender as necessidades do Estado a Assistência a
Alienados existente em Barbacena, que já não comporta mais enfermos. O
atual prédio que serve de hospício, precisa sofrer profundas modificações
[...] Deixa muito a desejar a instalação sanitária ali existente [...] Durante o
ano de 1905, a despesa com manutenção da Assistência atingiu a
93:447$969, tendo estado em tratamento 304 enfermos, sendo 84 mulheres e
220 homens [...] Aumentada a capacidade do edifício e realizados os
melhoramentos projetados, a Assistência a Alienados tornar–se–á um
estabelecimento de primeira ordem (MINAS GERAIS, 1906).
Quanto à vertente terapêutica, defendia–se a ideia da correção da anormalidade
pelo trabalho. Labor este viabilizado por um ambiente sadio, uma vez que a doença
80
mental, neste momento histórico, compreendida como causa orgânica (por exemplo,
como consequência da sífilis), tinha que se enquadrar aos aspectos morais vigentes.
Magro Filho (1992) acredita que, nessa perspectiva, recriava–se no hospício o que se
queria ver praticado do lado de fora, no todo da sociedade.
A ideia de que seria necessário aumentar o trabalho no interior da Colônia segue
ano a ano. Cumpria, portanto, à Colônia, essencialmente, duas finalidades: “suavizar”,
por meio do trabalho, o sofrimento dos pacientes e “suavizar”, por meio do trabalho dos
pacientes, os sofrimentos econômicos do Estado. Na Assistência aos Alienados...
As moléstias mentais, filha das desordens físicas, intelectuais ou morais,
consistindo no predomínio da subjetividade desordenada sobre a realidade
objetiva, não se curam pelo constrangimento dos reclusos e, sim, pelos, além
dos meios terapêuticos, principalmente pelos remédios morais, consistentes
na instituição do trabalho, que educa e fixa a atenção do doente,
diminuindo–lhe o mundo das falsas visões que o assediam e aumenta–lhe,
cada vez mais, a sujeição ao mundo exterior, até que se possível, o equilíbrio
se restabeleça (MINAS GERAIS, 1907, p. 42).
Com relação aos diagnósticos, ocorria a predominância de alcoolismo e
“degeneração” entre os homens indigentes (de 1915 a 1920), enquanto a psicose
maníaco–depressiva era mais diagnosticada entre os pensionistas de ambos os sexos (de
1903 a 1917) e as mulheres indigentes (de 1907 a 1917). Ressaltam–se ainda os altos
índices de mortalidade, cuja causa principal entre os indigentes de ambos os sexos foi a
diarréia, entre 1915 e 1920 foram 192 óbitos de homens e 184 de mulheres (MAGRO
FILHO, 1992).
O Hospício de Barbacena recebia críticas relativas à sua estrutura, que apesar das
reformas, ainda não suportava a quantidade de loucos que demandavam internação, e
também referentes ao tipo de tratamento ofertado, que para alguns, não seria adequado
ao que a psiquiatria da época preconizava:
Um estudo mais demorado e com melhores elementos dessa importante
seção da assistência pública, [...] convenceu–me de que as medidas isoladas,
que assinalei à vossa atenção [...] não resolvem satisfatoriamente esse
encargo moral e humanitário da administração. O que existe organizado e
funcionando [...] é um grande passo do Estado para a proteção dos doentes
mentais e, sobretudo, da sociedade, deixou há muito tempo de corresponder
as exigências da nossa cultura, pelo antagonismo aos princípios mais
correntes da psiquiatria [...] Não tem, sequer, capacidade para o número
81
crescente de loucos de todo gênero, cuja guarda incumbe ao poder público
(MINAS GERAIS, 1920, p. 50).
Associada à preocupação do contingente de internos que superava as previstas
para o hospital de alienados de Barbacena, nesse momento, as autoridades pensaram em
uma proposta de reorganização dos serviços prestados aos loucos. Então, as unidades de
atendimentos aos doentes mentais começaram a refletir a noção de que era necessária
não somente uma estrutura adequada, mas, também, profissionais adequados, o cuidado
da loucura foi visto como algo complexo:
A remodelação destes serviços é vazada em moldes complemente novos,
abrangendo o problema médico-social do alienado em sua complexidade.
Em rápido esforço é o seguinte o plano geral da reforma geral. Em Belo
Horizonte criar-se-á o Instituto Neuropsiquiátrico, principal função
consistirá em preparar os alienistas, acrescida da vantagem de proporcionar
recursos à nossa Faculdade de Medicina para o ensino desta especialização
clínica [...] pois um dos sérios entraves à organização de um serviço eficiente
de assistência aos alienados reside na carência de profissionais que se
dediquem à clínica psiquiátrica [...] Já se acha ultimada a construção dos
edifícios destinados ao Instituto de Neuropsiquiátrico com capacidade para
120 pessoas (MINAS GERAIS, 1922, p. 43).
Contudo, com o objetivo de diminuir a superlotação do Hospício de Barbacena e
ao mesmo tempo dotar a capital mineira de um Hospital Psiquiátrico, foi criado, em
1922, o Instituto Raul Soares, projetado com instalações consideradas excelentes para a
época. Essa instituição tinha o objetivo de atender mais casos de neurologia do que
propriamente a uma demanda especificamente psiquiátrica. No entanto, não foi
exatamente desse modo que aconteceu, visto que a procura maior ao Instituto foi para
pacientes psiquiátricos (MAGRO FILHO, 1992).
Posteriormente, foram criados hospitais públicos psiquiátricos em Oliveira, em
1924; o manicômio judiciário de Barbacena em 1929; o hospital de Neuropsiquiatria
Infantil, em 1947 e o Hospital Galba Veloso, em 1962, os dois últimos em Belo
Horizonte, sem contar as inúmeras clínicas particulares que foram se constituindo
paralelamente com finalidades puramente comerciais. Entretanto, os hospitais públicos
ficavam com a maior capacidade de internação, lembrando que o Hospital de Barbacena
já realizava internação de pacientes particulares contribuintes (MAGRO FILHO, 1992).
82
Os hospitais se concentravam nas regiões central e sul do Estado. Dessa maneira,
as outras regiões se utilizavam de transportes disponíveis para encaminhamento dos
alienados para tratamento, enquanto a maioria ainda era um “problema da polícia”. A
malha ferroviária em expansão facilitou essa transferência aproximando os doentes
mentais dos hospitais de referência.
2.6 MONTES CLAROS E A LOUCURA: e agora? O que fazer com “eles”?
A cidade de Montes Claros, norte de Minas Gerais, apresenta uma história pouco
peculiar com relação à loucura, trata-se do famigerado discurso que se atrela a ideia de
avanço cultural, social e, principalmente, econômico, que justificou o escorraçamento
dos loucos. A modernização dessa cidade oferece uma noção de sociedade constituída
por indivíduos adequados, o que incentiva a migração “forçada” dos “anormais”, “asociais” para lugares que sejam próprios para acolherem sua loucura. Com isso,
paulatinamente, coexistiram dois tipos de cárceres institucionais para os desrazoados: a
cadeia pública e o manicômio, este último garantido pelos Hospitais de Barbacena e
Raul Soares.
Claro que essa situação não é exclusiva de Montes Claros, uma vez, que de acordo
com Cunha (1986), em se tratando de ambiente novo, paisagem inquietante, a cidade
não deixa de fascinar seus habitantes. Metáforas (orgânicas ou mecânicas) a partir do
século XIX estavam sempre calcadas numa representação monstruosa da cidade
presente na sensibilidade dessa época, remetendo à visão das multidões, pessoas sem
rosto e sem destino, de cujo interior brota uma anônima ameaça. A autora acredita que
tais figurações do imaginário social referem-se ao fato de que, transformado pela
industrialização, o espaço urbano se torna um espaço físico e social totalmente
diferente.
Com a industrialização, as cidades se transformam também em um território de
concentração do enorme contingente humano de despossuídos no entorno das fábricas.
O desafio de administrar estas multidões constituiu fator decisivo e iniciou um intenso
esforço para disciplinarização urbana, o que caracterizou a história européia do século
XIX. Todavia, às margens da sociedade do trabalho cresce toda uma fauna empenhada
83
em fraudar e resistir às disciplinas e que logo se torna objeto de saber específico, como
formas de intervenção inicialmente oscilantes entre a criminologia e o alienismo
(CUNHA, 1986).
Destaca-se, nesse contexto, a fabricação do próprio ser humano como indivíduo
social, por meio de regras e normas. Com a produção de sanções e coerções que agem
no sentido de assegurar a validade da instituição da sociedade, fazem por isso ainda a
adesão, o apoio, o consenso, a legitimidade, a crença, mas, sobretudo, a modelagem, o
que permite a constituição do indivíduo adequadamente social (CASTORIADIS, 1987).
Montes Claros experimentou a probabilidade de constituição do indivíduo
montes-clarense respaldada pela modernização e a industrialização, ambos formando
um discurso de “avanço social” baseado no que acontecia em outras regiões do Estado
mineiro. Ressalta-se que até a década de 1950 a evolução econômica e industrial foi
discreta. De qualquer modo, a prática asilar já oferecia relevantes sinais de importância
para o capitalismo e a questão da cidade realmente engendra novos meios e formas de
pensar a loucura que encontram no alienismo um instrumento privilegiado.
Com a perspectiva de industrialização e de modernização da cidade pólo do norte
de Minas, na primeira metade do século XX, houve um aumento no número de
migrantes vindos, principalmente, das cidades vizinhas e do nordeste brasileiro em
busca de melhores condições de vida. Nesse momento, a eugenia e a teoria da
degenerescência, que defendiam a ideia de que a loucura era uma doença de pobres,
negros e seus descendentes, acirrava a noção de “limpeza” social.
Como exemplo do problema da migração e a vinda dos doidos para Montes
Claros, Paula (1982, p. 263) declara que „„os doidos vagabundos, tipos populares nas
ruas da cidade, são problemas eternos. De Xica Boi a João Doido, há uma série enorme.
Alguns, filhos da terra; a maioria, das vizinhanças, da Bahia e do Nordeste‟‟.
Enquanto os responsáveis pela ordem social não tinham ações eficazes, surgia um
novo profissional denominado „„condutor de loucos‟‟, o Sebastião Soares ou
simplesmente Sebastião Peba era quem exercia essa função, ele era seleiro e tocava
bumbo na Banda Euterpe Montes-clarense. De acordo com Paula (1982, p. 263) „„o
Sebastião prestou excelentes serviços à cidade nessa sua nova profissão [...] sempre
tranquilo, controlava os doidos e os entregava ao destino satisfatoriamente‟‟.
84
Fato que se assemelha ao modo como se formava o número de passageiros da
daquilo descrito por Foucault como Nau dos Loucos. De acordo com Foucault (2010),
as Naus de Loucos tiveram uma existência concreta nas sociedades européias dos
séculos XIV, XV e XVI. Esse costume estava ligado à prática comum do
“escorraçamento” do louco. Por meio dessa prática os loucos eram expulsos de suas
cidades, algumas vezes sob pedradas ou bastonadas, ou simplesmente deixados a vagar
pelos campos, outras vezes, ainda, eram entregues a marinheiros ou mercadores para
que fossem levados para longe de sua vila de origem:
[...] em Frankfurt, em 1399, encarregaram-se marinheiros de livrar a cidade
de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um
criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. [...] Freqüentemente
as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos
(FOUCAULT, 2010, p. 9).
Em Montes Claros a Nau dos Loucos se transfigurou na imagem de modernidade,
eficiência e robustez do trem de ferro. Scliar (2011) declara que era no chamado “trem
dos loucos”, equivalente à “nau dos insensatos”, que percorria os rios da Europa
levando malucos para os hospícios, que os desvairados mineiros traduziam a ideia mais
pura da rejeição, inchando, por exemplo, o manicômio de Barbacena, cuja população
nosocomial chegou a cinco mil pessoas.
A transferência dos loucos para os Hospitais Raul Soares e de Barbacena foi
viabilizada de “modo eficiente” pelo trem de ferro, inaugurado em Montes Claros em 1º
de setembro de 1926. O trem chega à cidade com a perspectiva de promover o
cosmopolismo, o desenvolvimento comercial, mudanças na educação, nas relações
sócio-culturais, na vida do sertanejo e concretizava o sonho da elite local, sendo
reconhecido como verdadeiro propulsor do progresso (REIS, 2005).
A população de Montes Claros que crescia com a chegada do trem de ferro e suas
implicações, começou a inchar na década de 40 com a seca no Nordeste. A cidade, que
se expandia sem um planejamento urbano, de forma desordenada, tornou-se alvo de um
projeto de desenvolvimento idealizado. Este crescimento populacional trouxe consigo
conseqüências como: desemprego, mendicância, violência e miséria que se misturaram
com o diagnóstico da loucura na população pobre (MACHADO, 2009).
85
As fontes apontam serem os anos de 1940 um marco relevante para compreensão
dos cuidados reservados aos loucos em Montes Claros. A tolerância com o diferente,
com o louco antes desse período, foi descrita pela memorialista Graça (2007) da
seguinte maneira:
Até os anos 40 ou talvez mais um pouco a nossa Montes Claros, Princesa do
Sertão, era realmente uma princesa muito pacata, livre dos ladrões,
assassinos e tarados, não se falava em seqüestros, estupros e violências [...]
Apareciam, apenas, de vez em quando, doidos mansos inofensivos, que ao
descansarem, atormentados muitas vezes pelas crianças que maldosamente
atiravam-lhes pedras arreliando só para ver dizerem palavrões.
De acordo com Paula (1982), o Centro de Saúde de Montes Claros, antes da
década de 1940, mantinha uma vigilância constante. Os doidos mais agressivos eram
recolhidos à cadeia pública e aguardavam a vinda de uma viatura apropriada, fornecida
pelo Estado. Os „„doidos mansos‟‟ eram conduzidos por guardas sanitários de trem de
ferro, sem maiores problemas. O destino era o Hospital Raul Soares, em Belo
Horizonte, ou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena. O autor cita o caso de um “louco de
rua” encaminhado para Barbacena:
Santo é dos nossos dias. Morreu no decorrer de 1950 em Barbacena,
no Hospital de Psicopatas. [...] Apesar de aparência calma, Santo era
malcriadão, respondia a todos que o provocavam, com espírito e com
malícia. Respostas na maioria das vezes imprópria para menores
(PAULA, 2007, p. 127).
A Divisão de Assistência Médico-Social do Departamento Estadual de Saúde se
responsabilizava pelas transferências e encaminhamentos dos alienados, principalmente
após 1940, como fica evidenciado em um memorando, de 21 de agosto de 1942,
endereçado ao prefeito de Montes Claros Alpheu de Quadros pelo Dr. Galba Veloso,
que nesse período, era o Diretor do Instituto Raul Soares: “Venho comunicar-lhe que o
louco indigente João Rodrigues Monção aqui internado desde 1 do corrente, seguiu hoje
para o Hospital Colônia da cidade de Barbacena” (DIVISÃO DE ASSISTÊNCIA
MÉDICO-SOCIAL DO DEPARTAMENTO ESTADUAL DE SAÚDE, BELO
HORIZONTE, 1942).
86
Essa situação se potencializa após 1950, a partir do aumento populacional,
especialmente, com a instalação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE). Na década de 1960, a modernização, via SUDENE, promoveu
transformações estruturais na região. O poder público local, como nas décadas
anteriores, continuava a encarar os imigrantes miseráveis como perigo para a cidade.
Essas pessoas chegavam a Montes Claros com o sonho de se empregarem nas indústrias
financiadas pela SUDENE. Mas, sem capacitação para o trabalho industrial, engrossava
as fileiras dos já existentes (CALEIRO; CELESTINO, 2012).
O Estado se empenha em enquadrar os alienados na normatização médico-social
preconizada. Sustentado em uma promessa de saúde do corpo social, o internamento
nos hospícios contrapunha-se à temível imagem da desordem urbana, da sujeira, da
subversão dos valores mais caros às elites pela imposição de uma versão higiênica,
disciplinada, pacífica e capaz de restaurar no próprio mundo do desatino a imagem da
ordem almejada (WEYLER, 2006).
Cunha (1990) ressalta que o pensamento alienista se apresentava voltado para a
profilaxia do meio urbano, pois a cidade, para os alienistas, aparecia como um ambiente
ideal para cultura de germes deflagradores de uma verdadeira epidemia social. Se, desse
ponto de vista teórico, degenerados sempre existiram (pois é da natureza da „ciência‟
adotar sempre pontos de vista supra-históricos), na cidade, portanto, se tornaria possível
que eles se escondessem e se multiplicassem sem controle. O meio urbano esconderia
multidões anônimas de degenerados em seus becos, vielas, nas casas das meretrizes,
sempre solidárias com a imoralidade, nos botequins e cabarés, nas habitações coletivas e
insalubres, nas multidões de pobres laboriosos, cuja fronteira com os degenerados seria
teórica e praticamente imperceptível.
2.7 O PERCURSO POR UM HOSPITAL NEUROPSIQUIÁTRICO EM
MONTES CLAROS
Diante da percepção de Montes Claros com características ordenadoras e de
desenvolvimento em plena transformação na década de 1950, os moradores são
influenciados, neste contexto de organização social, a manter a “normalidade” e garantir
87
sua posição de ingresso no fluxo do processo social, como sugere Nobert Elias (1994)
quando discute a posição do indivíduo na constituição da sociedade no livro A
sociedade dos indivíduos.
Essa demanda transforma a normatização em objetivo constante de manutenção
da ordem. Todavia, a situação de transporte dos loucos pelo trem de ferro, bem como os
altos índices de mortalidade dos internos, sobretudo, no Hospital de Barbacena, se
tornaram assuntos de indignação e são explorados pela imprensa montes-clarense11, o
que culmina com a reivindicação de um hospital psiquiátrico que atenda a cidade e a
região.
Em 1952, por determinação do governo do Estado, em cooperação com o Serviço
Nacional de Doenças Mentais (SNDM) do Departamento Nacional de Saúde do
Ministério da Educação e Saúde, é autorizada a construção de um Hospital Regional
Psiquiátrico com sede neste município para atendimento de todo o norte de Minas. A
expectativa era a construção de um hospital com 500 leitos e possibilidade de ampliação
para 1.500, para uma população estimada de 800 mil habitantes, desafogando a Colônia
de Barbacena e o já famoso Raul Soares (MENDONÇA, 2009).
Um dos incentivadores da construção desse hospital em Montes Claros foi o
médico psiquiatra Dr. Áflio Mendes de Aguiar, que Moretzsohn (1989) descreve como
um homem de ação, que desiludido com o empenho do governo na empreitada, inicia
um percurso para edificação de uma unidade de psiquiatria particular.
A decepção do Dr. Áflio se apóia no fato de as propostas não saírem do âmbito do
projeto, do planejamento. Observe como exemplo o Projeto de Lei, sem número, do
prefeito Enéas Mineiro de Souza de 24 de agosto de 1951, que propõe a abertura de
crédito para a aquisição e doação de terreno destinado ao Hospital Regional de
Psiquiatria de Montes Claros, ancorando-se em medidas positivas do Estado mineiro,
como se pode ver no fragmento abaixo do documento:
Como deve ser de conhecimento dessa Câmara, o Exmo. Sr., encaminhou à
Assembléia Legislativa uma mensagem na qual compromete a iniciar a
11
O jornal impresso era o principal representante da imprensa de Montes Claros naquela época,
tais como: Gazeta do Norte, que noticiou sobre os loucos, especialmente, de 1950-1960; Diário
de Montes Claros, que publicou reportagens a respeito das mazelas dos loucos entre os anos de
1960-1980; e o Jornal do Norte, que de 1980 a 1989, apresentou notícias sobre os loucos
montes-clarenses (CELESTINO, 2007).
88
construção do Hospital Colônia Regional desta cidade, conforme publicação
feita no “Minas Gerais” de 19 de junho do corrente ano, cuja verba já se
acha autorizada no “Minas Gerais” de 17 de agosto do corrente (PROJETO
DE LEI S/Nº, MONTES CLAROS, 1951).
Segundo Paula (1982), a construção começou animada, mas foi esmorecendo
pouco a pouco até parou; e o dinheiro acabou, consumido por outras obras da prefeitura.
O Estado não forneceu mais dinheiro e o município também não, resultando em ruínas
das futuras instalações do hospital.
Em 1959, um requerimento foi encaminhado ao prefeito Alfeu Gonçalves de
Quadros, cujo assunto era a viabilização da continuidade das obras do Hospital
Neuropsiquiátrico:
A Câmara Municipal de Montes Claros, em sua sessão de ontem, a
requerimento do vereador Dr. Áflio Mendes de Aguiar, aprovou por
unanimidade, indicar a Va. Excia. a necessidade de ser dirigido um ofício
por parte dessa municipalidade ao Exmo. Sr. Secretário de Viação e Obras
do Estado, solicitando de S. Excia. autorizar imediato licitamento da
concorrência pública para construção do Hospital Psiquiátrico de Montes
Claros, cujo andamento das obras está na dependência dessa medida
(MONTES CLAROS, REQUERIMENTO Nº 79/59, 1959).
O sofrimento dos loucos nos trens, seu destino no hospício, somados aos
percalços na construção do hospital montes-clarense continuavam como manchetes
debatidas e reivindicadas pela imprensa local:
Entre julho e agosto de 1964 o diário (Diário de Montes Claros) estampou:
“ministro promete prosseguir hospital Neuro-Psiquiátrico, plano ministerial
inclui hospital psiquiátrico; câmara vai pedir o reinício das obras do hospital
psiquiátrico local” [...] “Somente Montes Claros interna na capital trinta de
seus loucos por mês sem contabilizar adjacências”. Corroborando a
afirmação, a edição do dia 20 de setembro anuncia “seguiram ontem para
Barbacena 10 loucos”, com a devida divulgação dos nomes dos
„embarcados‟ (CELESTINO, 2007, p. 44).
Diante da demora do governo em assumir efetivamente a organização do serviço
especializado em alienados na cidade, o Dr. Áflio inaugura a primeira instituição
psiquiátrica em Montes Claros em novembro de 1964, com nome de Hospital Santa
Catarina. A iniciativa é ironizada por Paula (1982, p. 247): “O nosso colega Áflio
Mendes, mesmo inconformado, montou um pequeno hospital particular – Hospital
89
Santa Catarina – dotando a cidade de assistência neuropsicológica; e ficou rico. Bem
feito”.
O Hospital Santa Catarina, como estabelecimento particular, não atendia aos
pobres e, nesse sentido, o problema dos loucos permanecia insolúvel, pois o nó
essencial era os loucos pobres, o seu número cada vez maior e o desconforto que
causavam socialmente.
Dessa maneira, o problema da assistência aos alienados se constituía ainda em
elemento de importante discussão e o debate permanecia nas mãos dos formuladores
dos discursos de autoridade, que definiam e sustentavam as noções de normalidade,
anormalidade, patológico, a-social, do erro, do infrator: a medicina e o jurídico...
Fineza convocar o Juiz de Direito, o Promotor de Justiça, Prefeito eleito,
Presidentes Regionais de Medicina e outras autoridades a seu critério para
tomar parte da reunião dos médicos que irão daqui tratar do Problema de
assistência de doentes mentais a realizar-se nessa cidade dia 28 do corrente
às 8 horas (BELO HORIZONTE, RADIOGRAMA, 25/11/1970).
Diante da ineficácia “social” do Hospital Santa Catarina e do afastamento do Dr.
Áflio Mendes da medicina, em 1976 um grupo de psiquiatras assumiu esta instituição,
cujo nome passou a ser Prontomente: Clínica Psiquiátrica de Repouso. Inicialmente, só
internava pelo convênio Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) ou pelo
Funrural, além dos pacientes particulares (MACHADO, 2009). Os loucos pobres eram
ainda encaminhados para os hospitais psiquiátricos de Barbacena e Raul Soares, essa
alternativa perdura até a década de 1980.
Outro estabelecimento de saúde em Montes Claros que surge como fator
importante para questão da psiquiatria é o Hospital Universitário Clemente de Faria
(HUCF). Machado (2009) lembra que o HUCF, especializado em Tisiologia, tornou-se
Hospital Geral, atendendo diversas especialidades, inclusive pacientes psiquiátricos,
passando a ser uma referência nesta área no município e região. Nos anos 1970, já tinha
grande abrangência, mais tarde, em 1990, este hospital foi cedido à Universidade
Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), sendo intitulado Hospital Universitário
Clemente de Faria. O início das atividades da psiquiatria no HUCF foi marcado por um
diferencial: havia apenas uma ala, que recebia pacientes de ambos os sexos, de todas as
idades, portanto o número de leitos era insuficiente. A princípio o hospital internava
90
apenas pacientes com hanseníase, depois passou a internar os tuberculosos e os
pacientes psicóticos, para os quais era referência.
Essa ordem de admissão de indivíduos com doenças infecto-contagiosas para
admissão de loucos, remete ao percurso proposto para internação pelo hospital geral
como procuramos mostrar no primeiro capítulo. Nesse momento, a loucura já está
capturada pelo saber médico, apropriada pela noção da exclusão como outro modo de
comunhão possível entre os seus e longe dos normais. Montes Claros, até meados da
década de 1980, defende a ideia do “escorraçamento” dos loucos do seu território diante
da insuficiência de seus serviços de assistência à saúde.
91
Capítulo 3
ABAIXO OS MANICÔMIOS!
VIVA A REFORMA PSIQUIÁTRICA!
3.1 OS URUBUS E OS LOUCOS: a “carniça” que despedaçou os hospícios
brasileiros
Até a década de 1980 o modelo asilar predominou no Brasil como ideal para
tratamento dos loucos. O internamento caracterizou a construção de um indivíduo
coisificado, objetivado no seu novo contexto de sociabilidade, em que deveria, diante de
sua desorganização mental e corpórea, se enquadrar nas normas manicomiais, cujos
asilamento e distanciamento dos “normais” o transforma em “lixo humano”.
Frayze-Pereira (1984) declara que, com efeito, crer numa loucura localizada no
indivíduo e emprestar ao louco uma vestimenta que o transfigura em monstro não só
tende a retirar-lhe o estatuto de humanidade, como também a nos fazer esquecer que
algo se diz através da loucura.
O processo de homogeneização proposto pelo modo de produção capitalista
ignora ou nega a dinâmica do ser humano em seu devir histórico; neste processo a
constituição do indivíduo se realiza na dialética homem-natureza, e ele se objetiva
mediado pela atividade, segundo afirma Gradella Júnior (2002). Nessa perspectiva, os
que não se identificavam através de qualquer atividade produtiva não “serviam” à
sociedade, eram institucionalizados, isso se tornou fato corrente no Brasil.
Franco Basaglia foi um dos psiquiatras idealizadores da Reforma Psiquiátrica na
Itália, na década de 1970, e que serviu de esboço para o movimento reformista
brasileiro. Ele defende que as instituições em geral, por reproduzirem as formas de
relações sociais predominantes, necessariamente, contribuíram para o processo de
alienação e despersonalização do louco, através da violência e da exclusão, que estão na
base das relações que se estabelecem na sociedade capitalista. Umas das características
das instituições, segundo o psiquiatra, é a nítida divisão entre os que têm o poder e os
que não têm poder, possibilitando uma relação de opressão e violência entre quem
detém o poder sobre aqueles que não o têm (BASAGLIA, 1985). Nesse sentido,
92
prevalece o médico, com todo o seu poder sobre o louco, que é desprovido de qualquer
potencialidade defensiva.
Basaglia é um importante autor para a reflexão a respeito da Reforma Psiquiátrica
no Brasil. Apesar disso, nos posicionamos de acordo com a perspectiva foucaultiana no
concernente a noção de poder12. Quanto ao questionamento com relação à posição do
louco e a personificação da loucura no contexto de sua constituição objetivada diante da
produção médica da verdade, como não próprio ao convívio com os normais, Foucault
acredita que isso não é algo novo e que deu início ainda no final do século XIX:
Em todo caso, me parece que todos os grandes abalos que sacudiram a
psiquiatria desde o fim do século XIX, essencialmente colocaram em
questão o poder do médico. Seu poder e o efeito que produzia sobre o
doente, mais ainda que seu saber e a verdade daquilo que dizia sobre a
doença. Digamos mais exatamente que de Bernheim a Laing ou a Basaglia, o
que foi questionado é a maneira pela qual o poder do médico estava
implicado na verdade daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual
a verdade podia ser fabricada e comprometida pelo seu poder. Cooper disse:
"a violência está no cerne do nosso problema". E Basaglia: "a característica
destas instituições (escola, usina, hospital) é uma separação decidida entre
aqueles que têm o poder e aqueles que não o têm". Todas as grandes
reformas, não só da prática psiquiátrica, mas do pensamento psiquiátrico, se
situam em torno desta relação de poder; são tentativas de deslocar a relação,
mascará−la, eliminá−la e anulá−la (FOUCAULT, 2008, p. 124).
Corpos nus, estendidos, amontoados no chão frio de cimento. Rostos descarnados,
envelhecidos, embotados com olhares vazios. Memórias e consciências ausentes,
perdidas em algum recanto obscuro da mente. São representantes dos restos humanos,
apenas vestígios do indivíduo. As imagens chocantes de pacientes psiquiátricos
flagrados em pleno abandono nos pavilhões, corredores e quartos de manicômios
brasileiros estarreceram o país nas décadas de 1970 e 1980, quando a imprensa começou
12
Foucault (2010) defende que o poder não é uma coisa, nem uma propriedade, ele não está localizado
somente no governo ou no Estado ou pertence a alguém. Para ele o poder é uma rede de relações. Isso
ajuda a explicar porque a loucura só existe em uma sociedade, pois em todos os lugares, como no
manicômio e na relação médico – doente há relações de poder. A questão que se coloca em discussão
neste subcapítulo é a manifestação do poder associado à punição, ao castigo que acontecia nas instituições
totais, onde o poder não se esconde, não se mascara, pode se manifestar em seu estado bruto e suas
formas mais excessivas. Deste modo, ele se justifica como um poder moral, que por meio da vigilância e
do controle atua em nome do bem e da ordem.
93
a revelar a barbaridade por trás dos muros daquelas solenes e venerandas instituições.
Um escândalo! (DELGADO, 2001).
Delgado (2001) acredita que corpos e almas são mutilados por um tratamento
baseado na corrupção violenta da afetividade, da personalidade, da identidade e da
saúde física dos internos. Lobotomia, choques elétricos, espancamentos, sedação,
camisas-de-força,
overdose
de
antipsicotrópicos
de
efeitos
irreversíveis,
encarceramento, abusos. O horror, comparável, mantidas as proporções, a um cenário de
holocausto, denunciou a verdade sobre os “campos de concentração” brasileiros, como
bem definiu Austregésilo Carrano, uma de suas vítimas, que relatou sua tragédia pessoal
em Canto dos Malditos13. E havia mais: as internações silenciosas, noturnas,
verdadeiros seqüestros que confinavam os indesejados, os inconvenientes, os diferentes,
os miseráveis, sem qualquer direito de defesa. Uma vez no interior das muralhas, vidas
esquecidas, desprezadas, sem nenhuma esperança, cuja única saída era a morte.
Um dos principais exemplares do depósito da produção degradante do tratamento
ofertado à loucura ocorreu em Minas Gerais, no hospício de Barbacena. Lugar de
desembarque de muitos montes-clarenses desrazoados, ou não, levados pelo trem de
ferro, que foram entregues ao destino obscuro da cronicidade da internação associandose aos demais provenientes de outras regiões Minas Gerais e do país. O governo do
Estado mineiro já assumia, em 1926, o quão ruim estavam as instalações da instituição:
O Asilo–Colônia em Barbacena, bastante ampliado, recebe doentes crônicos
incuráveis e os convalescentes suscetíveis de terapêutica pelo trabalho [...]
Existe ali, ainda, o velho Asilo Central, composto de antiquados pavilhões
anti-higiênicos, chegados a completa ruína (MINAS GERAIS, 1926, p. 220).
Na década de 1950, a situação do manicômio começa a mudar. E para pior.
Além dos pacientes provenientes de outras cidades mineiras e outros estados do país,
havia a triagem de pacientes dos hospitais Raul Soares e Galba Veloso. Quem
completava 11 dias de internação e não voltava para casa, era encaminhado a
Barbacena. Toda semana, saía de Belo Horizonte um ônibus lotado, o famoso “Lelé
Tur”. Em geral, eram pessoas que perdiam os vínculos social e familiar, estavam
13
Trata-se de um livro escrito no final dos anos de 1970, é um relato autobiográfico, na qual Carrano
conta sua trajetória pessoal depois que foi internado em um hospital psiquiátrico pelo pai, que descobriu
que o filho era usuário de maconha.
94
abandonadas e que encontravam nos hospitais psiquiátricos o último refúgio. Mas, havia
também os doentes crônicos, que as famílias afirmavam não ter condições de cuidar e
eram até coniventes com a internação (AMORIM et al., 2006). Abaixo um exemplo de
um caso de um interno no hospício de Barbacena citado por Amorim et al. (2006, p.
61):
O lavrador Rafael Izaías de Queiroz não chegou a comer bosta para acabar
com a fome ou a beber urina para matar a sede. Morreu antes, cinco dias
depois de ser internado, em 1º de agosto de 1966. Tinha 29 anos, e era de
Vale do Rio Branco, próximo a Barbacena. Rafael foi encaminhado ao
hospício por determinação do delegado da cidade de Paula Cândido. Não
consta nos registros o diagnóstico de sua doença. Assim como Rafael, vários
morreram depois de dias, semanas ou meses da internação, o que reforça o
rótulo de o hospital de Barbacena ter sido o Auschwitz brasileiro.
Os mortos de Barbacena tornaram-se mais conhecidos do que os internos. O ano
de 1966 foi um dos que contabilizaram maior número de mortes, 1.253. Média de quase
quatro por dia. Naquele ano, morreram 800 homens e 453 mulheres. Os meses de
março, maio, julho e dezembro foram os mais terríveis, com, respectivamente, 120, 121,
119 e 123 óbitos. O ano seguinte seria menos terrível, mas ainda com um número
assustador: 657 mortos. Há registros, cadernos e mais cadernos, com a contagem dos
cadáveres, pessoas que hoje são lembradas apenas nas páginas amarelas, quase tomadas
pelas traças (AMORIM et al., 2006).
“Símbolo da morte, tal o seu gosto pela carniça, o urubu foi durante décadas um
fantasma que assombrou a cidade mineira de Barbacena” (ARCO E FLEXA, 1998, p.
01). Deste modo ácido, Arco e Flexa (1998) complementa que essa não é apenas uma
imagem, mas fato real. Entre o início da década de 1930 e o começo dos anos 1980, os
arredores do pequeno município eram sobrevoados diariamente por grupos de urubus,
atraídos pelas emanações pútridas exaladas do manicômio, oficialmente denominado
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). Criado em 1903 para ser um dos
primeiros hospícios do Brasil, dentro do modelo vigente na época de hospital-colônia
para doentes mentais, seus muros testemunharam um massacre, no sentido mais preciso
do termo.
Barbacena é somente um exemplo, uma vez que a mesma terapêutica era
empregada em praticamente todos os manicômios do Brasil. No período de 1930 até
1980 as autoridades de saúde e judiciais brasileiras reforçaram o discurso de autoridade,
95
na qual elevaram a internação, o enclausuramento, à melhor alternativa terapêutica para
loucura, o que ofereceu à sociedade o respaldo necessário para exclusão dos anormais.
Mas, dia chegou em que a transformação de um indivíduo em objeto intratável aos
sentidos humanos estimulou uma reflexão a respeito das propostas de cuidado com
louco, era o movimento da Reforma Psiquiátrica. E um animal tão asqueroso quanto o
urubu pode representar a sordidez e a imundície dos manicômios, funcionando esta
metáfora como instigadora a um questionamento necessário no cenário descrito: louco
tem subjetividade?
Castel (1978), na sua obra intitulada A ordem psiquiátrica: a idade do ouro do
alienismo, declara que tendo surgido na França, após a Revolução Francesa, a
psiquiatria instituiu-se sobre o pano de fundo de uma nova sociedade contratual. Nesta
sociedade, o louco é uma nódoa. Insensato, ele não é sujeito de direito; irresponsável,
não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de servir, não entra no circuito
regulado das trocas. Portanto, sob essa percepção o louco não tem subjetividade.
Por outro lado, como veremos mais detidamente adiante, especialmente, no quarto
capítulo, as ideias da Reforma Psiquiátrica surgiram com o intuito de trazer o louco para
o campo da subjetividade, da cidadania, da dignidade, mas algumas noções insistem em
perdurar mesmo com as propostas de mudanças, como as de controle e vigilância.
Pinto; Ferreira (2010) indicam que oferecer uma vida do lado de fora do hospício
não representa a solução de todos os problemas; da mesma forma que o gesto
emblemático de Pinel de libertação das correntes; ele conduz a toda uma gama de novos
problemas. O controle, a vigilância, a própria exclusão, tudo contribui para a inscrição
do louco numa espécie de no man´s land social, na medida em que há pouca
disponibilidade em nossas formas de vida coletiva para a acolher sua experiência.
3.2 DO TRATAMENTO DA DOENÇA MENTAL PARA A PROMOÇÃO DA
SAÚDE MENTAL
O modelo psiquiátrico clássico, analisado nos primeiro e segundo capítulos deste
estudo, abordado enquanto saber e prática que envolve a loucura numa trama de
exclusão e rejeição social, se faz importante para compreendermos como se formou uma
96
nova consciência do cuidar da loucura a partir do caminho contrário ao manicomial, o
da proposta do serviço substitutivo, cujo interesse é retomar a noção de sujeito da
loucura, do ser louco, do cuidar do louco.
A situação desprezível em que se encontravam os loucos internados nas
instituições psiquiátricas provocou um movimento intitulado Reforma Psiquiátrica. Para
Amarante (2003), o exercício de reconstituição do percurso reformista apresenta-se
conectado tanto à possibilidade de revisão dos principais referenciais teóricos que
influenciam e/ou possibilitam a emergência deste movimento, quanto à reatualização da
perspectiva histórico-crítico sobre os paradigmas fundantes do saber/prática
psiquiátricos.
Birman; Costa (1994) defendem a hipótese de que a psiquiatria clássica veio
desenvolvendo uma crise tanto teórica quanto prática, detonada principalmente pelo fato
de ocorrer uma radical mudança no seu objeto, que deixa de ser o tratamento da doença
mental para ser a promoção da saúde mental. É certamente no contexto desta crise que
surgem as novas experiências, as novas psiquiatrias e as “invenções” substitutivas ao
modelo asilar.
O começo da reflexão sobre o sistema asilar da loucura aponta para o tema da
liberdade, da possibilidade do louco circular, ir e vir no contexto social, uma vez que,
conforme os reformistas, existe a lógica de um poder que submete, que aprisiona o
desrazoado numa ciência – a psiquiatria – e num lugar, o manicômio.
De acordo com Basaglia (2005) a indignação que culmina com a mortificação e a
liberdade do “espaço fechado” pode ser percebido a partir de 1925, por meio de um
manifesto que artistas franceses assinavam “la révolution surréaliste”, dirigidos aos
diretores dos manicômios e que terminava assim:
Amanhã de manhã, na hora da visita, quando, sem nenhum dicionário,
tentarem se comunicar com esses homens, queiram lembrar e reconhecer
que, diante deles, os senhores têm uma única superioridade: a força
(BASAGLIA, 2005, p. 23).
Quarenta anos depois – como grande parte dos países europeus, atrelados a uma
lei antiga, ainda indecisa entre assistência e segurança, piedade e medo – a situação não
mudou muito: limites forçados, burocracia e autoritarismo regem a vida dos internados,
97
em nome dos quais Pinel já reclamara clamorosamente o direito à liberdade
(BASAGLIA, 2005).
Mas a liberdade de que Pinel falava tinha sido concedida num espaço fechado e
deixada nas mãos do legislador e do médico, que a deviam dosar e tutelar. Por isso,
mais de dois séculos após aquela espetacular ruptura dos grilhões, o ritmo da vida dos
asilos ainda é marcado por regras forçadas e mortificações, exigindo uma solução
urgente, com fórmulas que finalmente levem em conta o homem no seu livre situar-se
no mundo (BASAGLIA, 2005).
Alguns países, como Inglaterra, França, Estados Unidos da América e Itália,
promoveram discussões, iniciadas na década de 1950, a respeito das mudanças
necessárias à psiquiatria clássica. Os debates se pautavam na crítica ao modelo
manicomial e apresentavam, em seu cerne, o questionamento de práticas psiquiátricas
tradicionais caracterizadas pela violência física e simbólica, as quais cerceavam os
pacientes de possibilidades de exercer sua subjetividade. O espaço institucional era
essencialmente marcado pela impossibilidade de qualquer tipo de manifestação, não se
preocupando em promover a melhora do quadro clínico do indivíduo, baseando-se,
antes de tudo, no isolamento que rechaçava a vida social do paciente (MACHADO,
POMBO, 2010).
Concomitante às diversas críticas ao sistema manicomial, estes movimentos
apresentavam em comum a elaboração e a implementação de novas formas de
abordagem do adoecer psíquico que atentassem ao respeito, à diversidade e à
subjetividade de indivíduos em sofrimento mental (MACHADO, POMBO, 2010).
Luz (1994) destaca que várias foram as propostas e experiências desenvolvidas
por movimentos de Reforma Psiquiátrica em diversos países. A partir da Segunda
Guerra Mundial, surgem também variadas experiências de movimentos reformistas,
dentre os quais destacam-se:
 Comunidades Terapêuticas, no período de 1959, na Inglaterra, cujo principal
representante é o psiquiatria sul-africano radicado no Reino Unido Maxwell Jones.
Fundamenta-se na lógica da humanização, da “aprendizagem social”, reeducação e
reinserção social. As principais contribuições são a construção de um espaço de
convivência e de escuta das crises e conflitos dos clientes, todavia, não se conseguiu
superar a exclusão social;
98
 Psicoterapia Institucional, idealizada na França em 1952 por François
Tosquelles, com grande influência da psicanálise, questionava o hospital psiquiátrico
como lugar de exclusão e de verticalidade da relação médico-paciente. Sua meta era
tratar as características doentias da instituição;
 Psiquiatria de Setor, pensada em 1960 pelo psiquiatra Lucien Bonnafé, na
França, insere novas instituições intermediarias na rede de cuidados com a saúde
mental, como ambulatórios, serviços de urgência e hospitais para internações breves. A
ideia primordial era oferecer um conjunto completo de serviços que amparasse o doente
desde a prevenção até a reabilitação, com o objetivo de resgatar o caráter terapêutico da
psiquiatria, ao mesmo tempo em que contestava o asilo como espaço de cura. Desse
modo, surge uma nova clientela: “os normais”;
 Psiquiatria Preventiva e Comunitária, modelo criado em 1960 nos Estados
Unidos por Gerald Kaplan, seus pressupostos básicos repousavam na crença de que
seria possível prevenir todas as doenças mentais, uma vez que poderiam ser detectadas
precocemente. Para tanto, foram construídos centros de saúde mental comunitários que
ofereciam atendimento de emergência, hospitalização parcial e integral, ambulatório e
educação para a comunidade. Esse conjunto de práticas assemelha-se aquelas adotadas
pela psiquiatria de setor francesa;
 Antipsiquiatria, referida na década de 1960, defendida por David Cooper e
Ronald David Laing, propõe uma desnaturalização do binômio loucura e doença mental,
fortalecendo uma abordagem para além da causalidade da loucura;
 Psiquiatria Democrática Italiana ou Psiquiatria Territorial, esta experiência
ocorreu em Trieste, uma cidade do norte da Itália, no início dos anos 70. Seu
empreendedor foi Franco Basaglia que, a partir da sua experiência em Gorizia, passa em
Trieste a propor o desmonte do hospital psiquiátrico, tendo como contrapartida a
construção de novos espaços e modos de lidar com a loucura. Nos seus primeiros anos
de trabalho, Basaglia apropriou-se dos princípios da Comunidade Terapêutica e da
Psicoterapia Institucional, mas ultrapassou estas, ao realizar transformações que
superaram as transformações administrativas (AMARANTE, 2007).
Estas propostas se amparavam em uma abordagem voltada ao aspecto social,
incentivando a participação e envolvimento da comunidade no processo de cura e a
desconstrução de aspectos negativos ligados à experiência da loucura. Este tipo de
99
prática também criticava o modelo social excludente e inseria nesta discussão a defesa
da cidadania e da autonomia deste grupo, considerando-os como sujeitos políticos e
participativos (MACHADO, POMBO, 2010).
O processo de Reforma Psiquiátrica, em nível global, não segue um padrão
homogêneo. Os modelos assistenciais exibem tanto variações locais como diferenças
entre os diversos países. Essa variabilidade relaciona-se com peculiaridades na extensão
territorial, na população, na cultura, na estrutura política e econômica e nos sistemas de
saúde e assistência social de cada país (VIDAL; BANDEIRA; GONTIJO, 2007).
Apesar das diferenças, a filosofia da Reforma Psiquiátrica tem sido fundamentada
nos princípios básicos dos cuidados na comunidade: desinstitucionalização e diminuição
dos leitos hospitalares, desenvolvimento de programas e serviços alternativos,
integração com serviços comunitários e demais serviços de saúde e acesso à medicação
(VIDAL; BANDEIRA; GONTIJO, 2007).
3.3 REPENSAR A LOUCURA: a Reforma Psiquiátrica no Brasil
Os primeiros delineamentos da Reforma Psiquiátrica brasileira iniciaram-se na
década de 1970, principalmente na segunda metade, com a emergência de críticas ao
caráter privatizante da política de saúde governamental e a ineficiência da assistência
pública em saúde. Surgiram, também, denúncias de fraude no sistema de financiamento
dos serviços e, de maior importância, as denúncias de abandono e maus-tratos que
ocorriam nos hospitais psiquiátricos do país (VIDAL; BANDEIRA; GONTIJO, 2007).
Sob a influência dos movimentos reformistas que ocorriam na Europa e nos
Estados Unidos, vários setores da sociedade civil brasileira foram mobilizados em favor
da luta pelos direitos dos pacientes. A reflexão sobre a loucura passou a integrar o
quadro de discussões das universidades, dos meios intelectuais e dos profissionais de
instituições psiquiátricas, envolvendo, posteriormente, outros setores da sociedade
(VIDAL; BANDEIRA; GONTIJO, 2007).
100
O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, nos anos 1970, é
contemporâneo da eclosão do movimento sanitário14, em favor da mudança dos
modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, eqüidade
na oferta dos serviços e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de
saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado (BRASIL, 2005).
Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica
brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças
pela superação da violência asilar, especialmente, com a sensibilização do pós-guerra.
Fundado na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um
lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos
usuários em sofrimento mental, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior
do que a sanção de novas leis e normas e maior do que o conjunto de mudanças nas
políticas governamentais e nos serviços de saúde (BRASIL, 2005).
No Brasil, com a constituição do Movimento da Reforma Psiquiátrica, formado,
principalmente, pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM),
representado em suas várias expressões: os Núcleos Estaduais de Saúde Mental
(CEBES), as Comissões de Saúde Mental dos Sindicatos Médicos, o Movimento de
Renovação Médica (REME), a Rede de Alternativas à Psiquiatria. Outros atores
relevantes nas discussões são a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a Federação
Brasileira de Hospitais (FBH), as indústrias farmacêuticas, as Universidades e o Estado
por meio do Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência Social
(KODA, 2002).
O estopim para o desencadeamento da Reforma ocorre a partir da denominada
crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério da Saúde
responsável pelas políticas de saúde mental. Devido a precariedade das condições de
trabalho e ao abandono em que se encontravam os pacientes, os profissionais das quatro
unidades da DINSAM, localizadas no Rio de Janeiro, entraram em greve em 1978. Em
função disso, 260 estagiários e profissionais foram demitidos. Dessa maneira, as
14
O movimento sanitário iniciou na década de 1970 em favor da mudança dos modelos de atenção e
gestão nas práticas de saúde no Brasil, em defesa da saúde coletiva, eqüidade na oferta dos serviços, e
protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de
tecnologias de cuidado (BRASIL, 2005).
101
condições desumanas existentes nos hospitais psiquiátricos foram levadas a público,
como destaque da imprensa (KODA, 2002).
Assim nasce o MTSM, cujo objetivo é constituir-se em um espaço de luta não
institucional, em um lócus de debate e encaminhamento de propostas de transformação
da assistência psiquiátrica, que aglutina informações, organiza encontros, reúne
trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como entidades e setores mais
amplos da sociedade (AMARANTE, 1998).
Esse Movimento assumiu o relevante papel de produzir o debate público sobre a
questão psiquiátrica, denunciando as condições de vida no interior dos manicômios, a
cronificação, reclusão e discriminação dos doentes mentais, as péssimas condições de
trabalho dos profissionais e a privatização da assistência psiquiátrica por parte da
Previdência Social. A violência das instituições psiquiátricas foi apresentada à
sociedade civil: cenas impressionantes dos grandes manicômios do Brasil, como o
Juqueri, no Estado de São Paulo; a Colônia Juliano Moreira, no Estado do Rio de
Janeiro; e o Hospital de Barbacena, no Estado de Minas Gerais, foram veiculadas pelos
meios de comunicação (NICÁCIO, 2003).
Iniciou-se naquele período a sistematização dos questionamentos sobre os saberes
e as práticas psiquiátricas e a construção do pensamento crítico foi fundamentada,
sobretudo, nas obras de Michel Foucault, Erving Goffman, Robert Castel e Franco
Basaglia. Em 1978, a presença de alguns desses autores no Rio de Janeiro propiciou o
intercâmbio com a Rede de Alternativas à Psiquiatria, movimento internacional de
crítica às instituições psiquiátricas fundado, em 1975 em Bruxelas (NICÁCIO, 2003).
Com a realização do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978,
ocorre o início de uma discussão política que não se limita ao campo da saúde mental,
estendendo-se para o debate sobre o regime político nacional, que na época era a
Ditadura Militar (NICÁCIO, 2003).
Destaca-se, neste processo, a vinda ao Brasil de Franco Basaglia, Felix Guattari,
Robert Castel e Erving Goffman para o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos
e Instituições no Rio de Janeiro. Em 1979 ocorre, em São Paulo, o I Encontro Nacional
do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, cujas discussões centraram na
necessidade de um estreitamento mais articulado com outros movimentos sociais, e em
Belo Horizonte, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria que, afinado com o MTSM,
102
propõe a realização de trabalhos “alternativos” de assistência psiquiátrica (NICÁCIO,
2003).
Com essa disponibilidade é que, durante o congresso mineiro, Basaglia foi visitar
alguns manicômios do Estado. Esse momento é lembrado por Barreto (1999, p.193) ao
se referir às declarações de Basaglia, que impressionado com a opressão e a violência às
quais os internados eram submetidos, referiu-se ao Hospital Galba Veloso como “Casa
de Torturas” e ao Centro Hospitalar de Barbacena como “Campo de Concentração”.
Várias denúncias pela imprensa foram feitas, na época, sobre os hospitais psiquiátricos
públicos e privados. As entrevistas de Basaglia à imprensa repercutiram intensamente
(ANAYA, 2004).
O Secretário de Estado da Saúde, na ocasião, Eduardo Levindo Coelho, resolveu
abrir à imprensa todos os hospitais psiquiátricos de Minas, culminando em uma série de
reportagens de Hiram Firmino, no jornal Estado de Minas, intituladas Nos Porões da
Loucura e no curta-metragem do cineasta Helvécio Ratton, Em Nome da Razão,
potencializando os movimentos em curso, onde a questão psiquiátrica passava a se
tornar uma questão social e política (ANAYA, 2004).
O ano de 1987 se destaca pela realização de dois eventos importantes: a I
Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do MTSM, em
Bauru/SP. Este segundo evento vai registrar a presença de associações de usuários e
familiares, como a “Loucos pela Vida”, de São Paulo, e a Sociedade de Serviços Gerais
para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA), do Rio de Janeiro, entre outras.
Com a participação de novas associações, passa a se constituir em um movimento mais
amplo, na medida em que não apenas trabalhadores, mas outros atores se incorporam à
luta pela transformação das políticas e práticas psiquiátricas (LUCHMANN;
RODRIGUES, 2007).
Esse momento marca uma renovação teórica e política do MTSM, através de um
processo de distanciamento do movimento em relação ao Estado e de aproximação com
as entidades de usuários e familiares que passaram a participar das discussões. Instala-se
o lema do movimento: Por uma Sociedade sem Manicômios. Este lema sinaliza um
movimento orientado para a discussão da questão da loucura para além do limite
assistencial, concretizando a criação de uma utopia que passa a demarcar um espaço de
103
crítica à realidade do “campo” da saúde mental, principalmente do tratamento dado aos
loucos (LUCHMANN; RODRIGUES, 2007).
Tendo em vista uma significativa aproximação dos usuários e dos familiares, é
criado, neste II Congresso, o Manifesto de Bauru que constitui-se como uma espécie de
documento de fundação do movimento antimanicomial que marca a afirmação do laço
social entre os profissionais com a sociedade para o enfrentamento da questão da
loucura e suas formas de tratamento (LUCHMANN; RODRIGUES, 2007).
A partir deste manifesto, surge a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial
que, segundo Lobosque (2001), significa: Movimento não como um partido, uma nova
instituição ou entidade, mas um modo político peculiar de organização da sociedade em
prol de uma causa; Nacional, não como algo que ocorre isoladamente num determinado
ponto do país, e sim um conjunto de práticas vigentes em pontos mais diversos do
território; Luta, não como uma solicitação, mas um enfrentamento, não um consenso,
mas algo que põe em questão poderes e privilégios; Antimanicomial, como uma posição
clara então escolhida, juntamente com a palavra de ordem indispensável a um combate
político, e que desde então nos reúne: por uma sociedade sem manicômios.
3.4 A REDE SUBSTITUTIVA: desmontam–se os manicômios, constroem–se os
CAPS
O desmantelamento dos manicômios pressupõe a construção de algo que o
substitua e surge a noção de rede substitutiva na saúde mental, cuja ideia não se fixa em
uma única instituição que se dedique aos cuidados com os loucos, mas em um conjunto
de estruturas e equipes que possam prestar assistência ao usuário em sofrimento mental
no contexto comunitário.
O documento do Ministério da Saúde do Brasil, intitulado Relatório de Gestão
2003–2006 (BRASIL, 2007), declara que a articulação de uma rede de atenção à saúde
mental de base comunitária é um dos principais desafios da gestão em saúde nos três
níveis da federação (municipal, estadual e federal). Segundo o relatório, somente uma
rede, com seu potencial de construção coletiva de soluções, é capaz de fazer face à
complexidade das demandas e de garantir a resolutividade e a promoção de autonomia e
104
cidadania às pessoas com transtornos mentais. Nesse sentido, a rede de saúde mental é
complexa, diversificada, de base territorial, e deve constituir-se como um conjunto vivo
e concreto de referências para o usuário dos serviços.
Os principais avanços conquistados na construção de uma atenção em rede e de
base comunitária em saúde mental no SUS, segundo Brasil (2007) são:
 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), na qual nos ateremos adiante na
discussão. Trata-se de um serviço comunitário que tem como papel cuidar de pessoas
que sofrem com transtornos mentais, em especial os transtornos severos e persistentes,
no seu território de abrangência.
 As Residências Terapêuticas, que são descritas como o processo responsável de
trabalho terapêutico com as pessoas que estão saindo do hospital psiquiátrico, pelo
respeito a cada caso e a readaptação à vida em sociedade;
 Os Ambulatórios de Saúde Mental, que prestam assistência psiquiátrica e
psicológica às pessoas em sofrimento mental menor (cerca de 9% da população de todas
as faixas etárias);
 Os Centros de Convivência e Cultura são dispositivos altamente potentes e
efetivos na inclusão social dos indivíduos em sofrimento mental;
 As Equipes Matriciais de Referência são profissionais que formam uma equipe
de saúde mental que promove apoio às equipes da Atenção Primária a Saúde15;
 Os Hospitais Dia, estes serviços estão em processo de superação pelos CAPS.
O processo de intervenção realizado pela Secretaria Municipal de Saúde de
Santos (SP) no hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta, local de maus tratos e
mortes de pacientes, em 1989, teve repercussão nacional e demonstrou de forma
inequívoca a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente
substitutiva ao hospital psiquiátrico, conforme defende Brasil (2005) no documento
Reforma Psiquiátrica e políticas de saúde mental no Brasil.
Neste período, são implantados no município de Santos Núcleos de Atenção
Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, são criadas cooperativas, residências para
15
A Atenção Primária à Saúde (APS) enquanto ciência constitui-se como o primeiro contato de
indivíduos, famílias e comunidades com o sistema de saúde. Tem o papel centralizador de organização,
coordenação e responsabilização dentro de um sistema de saúde. No Brasil, a Estratégia Saúde da Família
(ESF) é o principal representante da APS.
105
os egressos do hospital e associações. A experiência do município de Santos se tornou
um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Esta foi a primeira
demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo
apenas uma retórica, era possível e exeqüível (BRASIL, 2005).
Também no ano de 1989 dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do
deputado Paulo Delgado (Partido dos Trabalhadores/MG), que propõe a regulamentação
dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos
manicômios no país. Trata-se do início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica
nos campos legislativo e normativo. Com a Constituição de 1988, é definido o Sistema
Único de Saúde (SUS), formado pela articulação entre as gestões federal, estadual e
municipal, sob o poder de controle social, exercido através dos “Conselhos
Comunitários de Saúde”, representados pelo Conselho Municipal de Saúde e as
Conferências Nacionais de Saúde (BRASIL, 2004).
A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei
Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que
determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada
de atenção à saúde mental. É a partir deste período que a política do Ministério da
Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma
Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos. É na década de 90, marcada
pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas 16 e pela
realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor
no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de
atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e
as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos
(BRASIL, 2004).
16
Documento que marca as reformas na atenção à saúde mental nas Américas, ocorrido em Caracas na
Venezuela. Aprovada por aclamação pela Conferência, em sua última sessão de trabalho no dia 14 de
novembro de 1990. Os princípios e os valores que conformam a Declaração de Caracas - o respeito pelos
direitos das pessoas com doenças mentais e o reconhecimento da importância dos cuidados na
comunidade - constituíram a principal inspiração de todos os que desde então se comprometeram a
melhorar a saúde mental das populações nos países da América Latina e Caribe. Os dois grandes
objetivos que seus signatários se comprometeram a promover - a superação do modelo do hospital
psiquiátrico e a luta contra todos os abusos e a exclusão de que são vítimas as pessoas com problemas de
saúde mental - foram adotados como as grandes metas mobilizadoras de todos os movimentos de reforma
de saúde mental ocorridos na América Latina e Caribe, a partir de 1990 (BRASIL, 2004).
106
Neste momento, o processo de expansão dos CAPS e NAPS é descontínuo. As
novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os
novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento
para os CAPS e NAPS. Do mesmo modo, as normas para fiscalização e classificação
dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de
leitos. Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de
93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos
hospitais psiquiátricos (NICÁCIO, 2003).
Os CAPS, assim como os NAPS, os CERSAMs (Centros de Referência em Saúde
Mental) e outros tipos de serviços substitutivos que têm surgido no país são, atualmente,
regulamentados pela Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede
do SUS. Essa portaria reconheceu e ampliou o funcionamento e a complexidade dos
CAPS, que têm a missão de dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com
transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados
clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo
hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da
inclusão social dos usuários e de suas famílias17 (BRASIL, 2004).
Em meio a construção de uma rede que permita a desconstrução do manicômio, os
CAPS surgem como destaques para um percurso seguro de desinstitucionalização, o
primeiro foi criado na cidade de São Paulo, em 1987 (NICÁCIO, 2003).
Brasil (2005) defende que um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou Núcleo
de Atenção Psicossocial é um serviço de saúde aberto e comunitário do SUS. Ele é um
lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais,
psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência
justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário,
personalizado e promotor de vida.
O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de
abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários
pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços
17
A reabilitação psicossocial e suas prerrogativas serão analisadas em interface com as fontes que
constituirão o próximo capítulo desta dissertação, o que permitirá compreender o contexto da
implementação do exercício da cidadania e da inclusão social dos loucos.
107
familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser
substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005).
Conforme o documento Reforma Psiquiátrica e políticas de saúde mental no
Brasil (2005), os CAPS visam:
 Prestar atendimento em regime de atenção diária;
 Gerenciar os projetos terapêuticos oferecendo cuidado clínico eficiente e
personalizado;
 Promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais que
envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas
de enfrentamento dos problemas. Os CAPS também têm a responsabilidade de
organizar a rede de serviços de saúde mental de seu território;
 Dar suporte e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica, ESF
(Estratégia de Saúde da Família), EACS (Estratégia de Agentes Comunitários de
Saúde);
 Regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental de sua área;
 Coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de unidades
hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território;
 Manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que utilizam
medicamentos para a saúde mental.
Os CAPS devem contar com espaço próprio e adequadamente preparado para
atender à sua demanda específica, sendo capazes de oferecer um ambiente continente e
estruturado. Deverão contar, no mínimo, com os seguintes recursos físicos: consultórios
para atividades individuais (consultas, entrevistas, terapias); salas para atividades
grupais; espaço de convivência; oficinas; refeitório (o CAPS deve ter capacidade para
oferecer refeições de acordo com o tempo de permanência de cada paciente na unidade);
sanitários; área externa para oficinas, recreação e esportes (BRASIL, 2005).
As práticas realizadas nos CAPS se caracterizam, segundo Brasil (2005), por
ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos
desses serviços, muitas vezes, ultrapassam a própria estrutura física, em busca da rede
de suporte social, potencializadora de suas ações, preocupando-se com o sujeito e sua
singularidade, sua história, sua cultura e sua vida quotidiana.
108
3.5 OS CAPS: um novo pensar, uma nova prática, uma nova “tensão”?
Para Merhy (2007) as experimentações de construção dos CAPS têm sido muito
produtivas para gerar processos antimanicomiais e, mais, têm de fato melhorado a vida
de milhares de usuários destes serviços. O autor afirma que dentre as várias missões que
eles comportam, há algumas que têm mostrado a superioridade efetiva destes tipos de
equipamentos diante do que a psiquiatria clássica e os manicômios construíram, nestes
últimos séculos.
Merhy (2007) resume as intenções dos CAPS como: direito do usuário de ir e vir;
direito do usuário em desejar o cuidado; oferta de acolhimento na crise; atendimento
clínico individual e coletivo dos usuários, nas suas complexas necessidades; construção
de vínculos e referências, para eles e seus “cuidadores/familiares” ou equivalentes;
geração de alívios nos demandantes; produção de lógica substitutiva em rede;
matriciamento com outras complexidades do sistema de saúde; geração e oportunização
de redes de reabilitação psicossociais inclusivas.
Percebe–se que o autor enfatiza a questão do direito do usuário como mérito da
ideia da desinstitucionalização e construção da rede substitutiva. Há de se considerar
que o fato dos CAPS se respaldarem nessa pauta de intenções eles se encontram no
“olho do furacão” antimanicomial. Por isso, tornam-se lugares de manifestações de
grandes conflitos e desafios, pois são dispositivos efetivos de tensão entre “novas”
práticas e “velhos” hábitos (MERHY, 2007).
Como exemplo real dessa situação pode ser citada a declaração da Associação
Brasileira de Psiquiatria no seu Impresso Especial Psiquiatria Hoje (2011, p. 13), cujo
texto declara que:
Faltam políticas claras que definam as características de hospitais e leitos
psiquiátricos de curta e longa duração e de emergências psiquiátricas nos
hospitais gerais. Além disso, os leitos em hospitais gerais são insuficientes
para atender os casos mais graves e severos [...] A chamada política
“substitutiva” dos hospitais psiquiátricos pelos CAPS não funciona.
Adotaram essa estratégia argumentando, em muitos casos com razão,
embora sem boa intenção, que as grandes unidades ofereciam uma
assistência precária. Mas ao invés de investir para recuperar essa estrutura,
se utilizaram de problemas de má gestão e falta de recursos para condenar
um instrumento terapêutico de eficácia comprovada e associar a psiquiatria e
os psiquiatras às péssimas condições detectadas. Os CAPS, uma ferramenta
109
de eficiência ainda não comprovada, são tecnicamente incapazes de atender
as necessidades nos casos mais graves.
Em contrapartida, Amarante (2009) acredita que a desinstitucionalização na
tradição basagliana passou a designar as múltiplas formas de tratar o sujeito em sua
existência e em relação com as condições concretas de vida. Nesta tradição, a clínica
deixaria de ser o isolamento terapêutico ou o tratamento moral pinelianos, para tornarse criação de possibilidades, produção de sociabilidades e subjetividades. O sujeito da
experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, antes incapaz de obra ou
de voz, torna-se sujeito, e não objeto de saber.
O eixo desse debate parte do pressuposto dos CAPS serem novos mecanismos e
culminarem em novas práticas do trabalho na saúde mental, o que o sujeita a dúvidas e
experimentações. Merhy (2007) sugere que seria muito interessante que tornassem isso
um elemento positivo, como marcador contra os que possam imaginar que o CAPS já é
o lugar das certezas antimanicomiais.
Esta última postura, das certezas, carrega consigo um grande perigo. Estar no
“olho do furacão” é atiçar um inimigo poderoso: o conjunto dos que se constituíram e
constituem o mundo manicomial. Desse modo, ter uma postura de que na constituição
dos CAPS devemos seguir modelos fechados ou receitas, é eliminar a interessante
multiplicidade deste e não aproveitar um fazer coletivo solidário e experimental
(MERHY, 2007).
Com isso, abre–se o flanco para que aquele inimigo poderoso seja o referencial
crítico, fazendo da crítica um lugar da negação e não um campo instigante de
cooperação, reflexão, auto–análise e ressignificação das práticas; que, antes de tudo, se
propõem produzir em novas vidas desejantes, novos sentidos para a inclusão social,
onde antes só se realizava a exclusão e a interdição de desejos, este é o ponto de vista de
Merhy (2007) em relação ao impasse da eficácia, eficiência e resolutividade dos CAPS.
3.6 MONTES CLAROS E A REFORMA PSIQUIÁTRICA
A Reforma Psiquiátrica alavancou um novo modo de pensar e uma nova prática
na assistência à saúde mental no Brasil a partir da década de 1970, mas como
110
característica inerente ao que é original, a ideia de introduzir novidades não alcança a
todos de maneira homogênea.
Montes Claros inicia um processo de “reestruturação dos serviços de saúde
mental” na década de 1980, conforme descreve Mendonça (2009, p.64), em sua
dissertação intitulada Reforma Psiquiátrica em Montes Claros: uma perspectiva
histórica.
De acordo com a autora, a primeira atividade a ser implantada nessa época, com
vistas a uma organização dos serviços de saúde mental em Montes Claros, foi um
treinamento para médicos e auxiliares de saúde do Centro Regional de Saúde (CRS),
unidade administrativa, descentralizada da Secretaria Estadual de Saúde, cuja
denominação atual é Gerência Regional de Saúde (GRS). A intenção era capacitar os
profissionais para o atendimento do usuário em sofrimento mental.
Em 1985 foi organizado o Plano Operativo para a Estruturação do Programa
Integrado de Saúde Mental no município, estruturado como um projeto propriamente
dito. A construção desse Plano se respalda pela precariedade, à época, das ações de
saúde prestadas nos serviços de Atenção Primária à Saúde, no âmbito da saúde mental,
além da inexistência de uma articulação entre as instituições prestadoras de serviços de
saúde. Além disso, sendo Montes Claros cidade-pólo, recebia um grande fluxo de
pessoas e não dispunha de serviços de saúde que pudessem atendê-las de forma
satisfatória. Outro fator de relevância são as críticas sobre a assistência hospitalar de
caráter asilar e cronificador. Mendonça (2009) declara que foi previsto a implantação
de um Núcleo de Assistência à Saúde Mental ao final do Plano Operativo; todavia,
novamente o pessoal foi treinado, mas o núcleo não foi estruturado na prática.
A importância desse planejamento em direção a uma nova perspectiva do cuidado
com o louco através da capacitação de servidores da saúde é incontestável, bem como a
proposta de fortalecimento dos Centros de Saúde como porta de entrada do Sistema
Único de Saúde (SUS). Esse ato, inclusive, demonstra coerência da gestão que será
ratificado nos anos 1990 com a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde
(PACS) e Programa Saúde da Família (PSF), que atualmente são classificados como
estratégias da Atenção Primária à Saúde.
Entretanto, ainda impregnada pelo modelo psiquiátrico clássico, a comunidade
praticamente não se envolveu nos planos de ações para as novas atitudes no cuidado
111
com os desrazoados, por outro lado, os profissionais “psi” (psicologia, psiquiatria e
psicanálise) receberam treinamentos e foram incentivados a participarem ativamente do
processo de reestruturação da atenção à saúde mental em Montes Claros, mantendo-se
como principais produtores das verdades na constituição do sujeito, na construção de
objetos e saberes, promovendo, ainda, a localização da loucura na sociedade.
A organização dos serviços de saúde mental permanece em pauta na cidade e, em
1996, foi inaugurada uma nova unidade, a Policlínica Dr. Hélio Sales, que oferece
serviço de saúde mental sob gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
A equipe de profissionais da Policlínica era constituída por sete psicólogos (três
da SMS, e quatro do CRS), uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma
fonoaudióloga, um professor de ioga, dois psiquiatras, técnicos de enfermagem, agentes
administrativos e zeladoria. Além disso, todos os doze Centros de Saúde que não
dispunham de psicólogos passam a contar com esse profissional. Mendonça (2009, p.
73) ressalta o objetivo da assistência oferecida pela Policlínica:
A idéia era a de tratar, na nova unidade, os casos considerados graves e
orientar para os Centros de Saúde os casos menos graves. As atividades
desenvolvidas na unidade, além do atendimento psicoterápico e do
atendimento psiquiátrico, previam oficinas terapêuticas e atividades físicas.
Até o ano de 2000, o serviço de saúde mental de Montes Claros funcionou como
um ambulatório. Em 2001, os projetos de unidades mais especializadas, no caso da
saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS II para tratamento de
transtorno mental e CAPS ad para tratamento da dependência de álcool e outras drogas
– começam a ser implantados (MENDONÇA, 2009).
De acordo com Mendonça (2009), o credenciamento desses serviços CAPS II e
CAPS ad ocorreu em 2003 e 2004, respectivamente, quando a população passa a
reconhecer esses locais como unidades para tratamento dos casos mais graves e os
quinze Centros de Saúde iniciam uma organização de sua demanda vislumbrando o
ambulatório de saúde mental como referência.
Em um ato de ousadia, como defende Mendonça (2009), em março de 2002, a
Coordenação de Saúde Mental decide centralizar as autorizações para internação no
ambulatório de saúde mental. A partir daquele momento, todo e qualquer usuário de
Montes Claros ou cidades vizinhas que tivesse indicação para internação, seria,
112
obrigatoriamente, avaliado pelo serviço de saúde mental do município. À equipe do
CAPS competia decidir sobre o cuidado adequado aquele usuário diante de seu quadro
de saúde clínico e psíquico o que podia demandar internação hospitalar ou não.
Tal situação traduz o quanto a internação psiquiátrica mantinha seu valor supremo
diante de um caso de loucura em Montes Claros, mesmo com o município contando
com uma equipe de saúde mental estruturada, a contenção exclusiva do internamento
conota uma ideia de proteção...
Muitas vezes, a decisão pela não internação contrariava familiares e outros
profissionais de saúde, pois, a lógica asilar ainda predominava na assistência
ao doente mental. Essa experiência provocou uma redução de 40% no
número de internações e um novo movimento na unidade, aumentando ainda
mais a sua complexidade, já que o serviço passa a atender pacientes em
crise, exigindo da equipe muito mais coesão (MENDONÇA, 2009, p. 74).
Diante da manutenção do internamento como critério de escolha na terapêutica
para o indivíduo em sofrimento mental e preocupada com a qualidade da assistência
oferecida nos hospitais, a Política Nacional de Saúde Mental tem como uma das suas
principais diretrizes a reestruturação da assistência hospitalar psiquiátrica, objetivando
uma redução gradual, pactuada e programada dos leitos psiquiátricos de baixa qualidade
assistencial (BRASIL, 2002).
Esta
reestruturação
da
assistência
hospitalar
psiquiátrica
acontece
concomitantemente a expansão de uma rede de atenção aberta e inserida na
comunidade. Ao mesmo tempo em que leitos de baixa qualidade são fechados, um
processo responsável de desinstitucionalização de pacientes longamente internados
passa a ter início, com a implantação de Residências Terapêuticas e a inclusão de
beneficiários no Programa de Volta para Casa. Simultaneamente, uma rede aberta e
diversificada de atenção à saúde mental deve ser implantada, CAPS, Centros de
Convivência e Cultura, ações de saúde mental na atenção básica e programas de
inclusão social pelo trabalho (BRASIL, 2002).
Desse modo, o documento Psiquiatria e Programa de reestruturação da
Assistência Psiquiátrica (BRASIL 2002), afirma que a redução de leitos psiquiátricos
no país segue um determinado ritmo, que deve andar junto com a expansão dos serviços
comunitários de atenção à saúde mental. Esta redução gradual, pactuada e programada
de leitos é realizada através de dois mecanismos, simultaneamente: Programa Nacional
113
de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/Psiquiatria (PT GM 251, de 31 de
janeiro de 2002) e Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar no SUS
(PRH)–PT GM 52, de 20 de janeiro de 2004.
Em 2002, Montes Claros recebeu a visita da comissão responsável pela
classificação avaliativa das instituições de saúde do município referente ao
PNASH/Psiquiatria. Este Programa realizou vistorias em todos os hospitais
psiquiátricos públicos e conveniados ao SUS em 2002 e 2003/2004 e 2006/2007. Os
resultados dos processos avaliativos indicam os hospitais que apresentam sérios
problemas na qualidade de assistência.
Os problemas mais comuns referem-se ao projeto terapêutico dos usuários e da
instituição, aos aspectos gerais da assistência (longo tempo de permanência, número
alto de pacientes longamente internados) e aos aspectos gerais dos usuários (limpeza,
calçados e roupas, entre outros). Este instrumento gera uma pontuação que, cruzada
com o número de leitos do hospital, permite classificar os hospitais psiquiátricos em
quatro grupos diferenciados: aqueles de boa qualidade de assistência; os de qualidade
suficiente; aqueles que precisam de adequações e devem sofrer revistoria; e aqueles de
baixa qualidade, encaminhados para o descredenciamento pelo Ministério da Saúde,
com os cuidados necessários para evitar desassistência à população (BRASIL, 2002).
A primeira atuação do Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais
Psiquiátricos (PNASH), em 2002, avaliou 168 unidades hospitalares das 234 existentes
no Brasil. O único hospital psiquiátrico da região Norte de Minas, o hospital
Prontomente, referência para internações na região e algumas cidades do Sul da Bahia,
foi avaliado e considerado pelo PNASH como inadequado. Em 2003, ocorre a segunda
avaliação, em Minas Gerais, dos 12 hospitais reavaliados, dois não conseguiram a
pontuação necessária (61%) para continuar funcionando, o que levou o Programa a
recomendar o seu descredenciamento, um desses hospitais era o Prontomente
(MENDONÇA, 2009).
Esse resultado foi homologado pelo Estado de Minas Gerais por meio do
documento abaixo:
A Comissão Intergestores Bipartite do Sistema Único de Saúde do Estado de
Minas Gerais - CIBSUS- MG, no uso de suas atribuições e considerando:
114
- a Portaria MS/SAS n° 150, de 18 de junho de 2003, que homologou o
resultado da reavaliação dos hospitais psiquiátricos;
- que no Estado de Minas Gerais dois hospitais (Sanatório Barbacena e
Organização Psiquiátrica Ltda.Casa de Saúde Santa Catarina (Hospital
Prontomente), dos 12 reavaliados, não conseguiram a pontuação necessária
(61%), devendo ter o seu credenciamento suspenso pelo Ministério da
Saúde;
- que os gestores estadual e municipais deverão desenvolver ações para que
o descredenciamento seja colocado em prática sem causar desassistência ao
portador de sofrimento mental;
- que a substituição da internação psiquiátrica se dará, preferencialmente, por
atenção em serviços extra-hospitalares, conforme o estabelecido pela
Portaria GM N° 251, de 31 de janeiro de 2002, que instituiu o PNASH Psiquiatria;
- que as ações para a desativação dos leitos psiquiátricos têm que contar com
os diversos parceiros sociais implicados na atenção à saúde, com vistas a um
resultado satisfatório na implantação de um novo modelo de assistência em
saúde mental, quais sejam: Ministério Público, Conselhos Estadual e
Municipais de Saúde, setores de desenvolvimento social e cultura, outros
setores públicos e a sociedade civil organizada, que deverão estar presentes
nesta mudança de lógica assistencial.
- a aprovação “ad referendum” da CIB-MG, após analise de sua Secretaria
Técnica em reunião na data de 25/08/2003, conforme disposto no artigo 5º,
parágrafo 1º do regimento interno da CIB-MG (MINAS GERAIS, 2003).
A seguir, é descrito um trecho do Relatório de Gestão 2003-2006 da Saúde
Mental no SUS, em que há uma breve exposição da situação de cada uma das
instituições que estão em processo de fechamento, referentes ao PNASH 2002 e
2003/2004 e a respeito da instituição montes-clarense relata:
Hospital Prontomente – Montes Claros (MG) PNASH 2002
• Foi criada uma Comissão Estadual de Acompanhamento da Intervenção
com representantes da Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Estadual de
Saúde, Ministério da Saúde, representantes do Conselho Estadual de Saúde e
do Fórum Mineiro de Saúde Mental.
• Representantes do Ministério da Saúde estiveram no município no decorrer
de 2005 para prestar assessoria no sentido da ampliação de leitos para álcool
e drogas no hospital universitário e para a criação de leitos em um hospital
geral.
• A Secretaria Estadual de Saúde repassou verbas para a reforma da
enfermaria de psiquiatria no Hospital Geral da UNIMONTES no final de
2006, porém, como houve mudança na gestão municipal, a questão do
fechamento do Hospital Prontomente deve ser retomada em 2007.
• O pedido de intervenção judicial, feito pelo Ministério da Saúde, foi
negado em várias instâncias. O processo ainda corre na justiça. A SES/MG e
a Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros devem, com o apoio do
Ministério da Saúde, tomar as providências para o fechamento definitivo
deste hospital (BRASIL, 2007, p. 30).
115
Por outro lado, o prefeito de Montes Claros em 2008, temendo desassistência aos
pacientes em sofrimento mental, encaminha à Câmara Municipal o Ofício nº:
PJ/049/2.008, cujo assunto trata do seguinte Projeto de Lei nº 3.946, de 28 de maio de
2008:
Temos a honra de encaminhar a V. Exa o incluso Projeto de Lei que autoriza
o Poder Executivo Municipal repassar recursos financeiros e firmar convênio
com a Organização Psiquiátrica- Prontomente, mediante subvenção, visando
assegurar a assistência Hospitalar aos pacientes portadores de transtornos
mentais e dependentes químicos, uma vez que, não há no Município
estrutura substitutiva para os leitos de internamento hospitalar da Instituição
o que impossibilita o encerramento das atividades prestadas pela
Organização Psiquiátrica – Prontomente.
Na certeza de que o Projeto de Lei é relevante, acreditamos que V. Exa. e os
seus pares certamente o aprovarão na íntegra.
Neste ensejo, renovamos ao nobre Presidente e aos demais ilustres
vereadores nossos protestos de estima e consideração.
Cordialmente,
Athos Avelino Pereira
Prefeito Municipal
Exmo. Sr. Coriolando da Soledade Ribeiro Afonso
DD. Presidente da Câmara Municipal (MONTES CLAROS, 2012).
Mendonça (2009) complementa que temendo uma desassistência, somando-se a
incapacidade do serviço de saúde mental em assumir totalmente o atendimento dos
casos que necessitassem de internação, a solução encontrada foi o estabelecimento de
um Termo de Ajuste de Conduta entre o hospital e a Secretaria Municipal de Saúde de
Montes Claros. Além disso, houve uma redução de 120 (cento e vinte) para 60
(sessenta) leitos conveniados ao SUS, o que levou a equipe a ser ainda mais criteriosa
ao encaminhar os pacientes para internação. Na época, de acordo com dados do
Ministério da Saúde, as internações diminuíram de 1350 (mil trezentos e cinqüenta), em
2002, para 919 (novecentos e dezenove), em 2003, confirmando uma redução de 31,9%.
O quadro da assistência hospitalar desde essa época, não se alterou. Como não houve
uma
alteração
significativa
dos
serviços
extra-hospitalares,
mesmo
sendo
descredenciado pelo SUS, o hospital psiquiátrico continuou funcionando com os seus
60 leitos até 201218.
A manutenção do hospital psiquiátrico, apesar da indicação para o seu fechamento
definitivo, tanto pelo Ministério da Saúde quanto pela Secretaria de Saúde do Estado de
18
Neste ano de 2012, o Prontomente está em processo definitivo de fechamento.
116
Minas Gerais, incita uma reflexão sobre como se pode classificar essa trajetória da
assistência em saúde mental em Montes Claros, que tem na internação no hospital
psiquiátrico uma alternativa real de assistência, apesar da estruturação do serviço
substitutivo com destaque para o CAPS.
Dessa maneira, as mudanças e as possibilidades de “novas” práticas na assistência
à saúde mental em Montes Claros podem ser percebidas como um sinal de demarcação,
em que se assinala a necessidade de reflexão, mas não determina algo que promoveu
rompimento na noção clássica de loucura e do modo de cuidá-la, o que nos leva a
pensar numa sobreposição entre permanências e rupturas, diante dos “velhos” hábitos e
das “novas” práticas referentes à assistência à saúde do louco no município.
No capítulo a seguir trataremos como as pessoas que vivenciaram o movimento da
Reforma Psiquiátrica em Montes Claros, com a idealização e implementação do CAPS,
significam as rupturas e as permanências históricas com o cuidado com o louco na
cidade.
117
Capítulo 4
O CAPS: REPRESENTANTE DA RUPTURA DO
CUIDADO COM O LOUCO EM
MONTES CLAROS?
No capítulo anterior o CAPS foi apontado como o representante institucional da
Reforma Psiquiátrica, apresentado nas perspectivas do serviço substitutivo e da atenção
psicossocial em detrimento ao hospital psiquiátrico e suas premissas manicomiais.
Entretanto, foi também no contexto desta análise que se evidenciou a permanência de
“velhos” hábitos no cuidado com o louco, com a manutenção do hospital psiquiátrico
em Montes Claros.
Neste capítulo, o objetivo é compreender como as pessoas que vivenciaram o
processo de construção do CAPS significam as rupturas e permanências históricas da
assistência à saúde ao louco no município. A história da vida cotidiana, a escolha das
pessoas comuns, suas estratégias, sua capacidade de explorar as inconsistências ou
incoerências dos sistemas sociais e políticos para encontrar brechas, através das quais
possam se introduzir ou frestas em que consigam sobreviver encontra o seu lugar na
nova história (DIAZ, 2008).
O CAPS é o cenário desta parte da investigação, o lugar de fala dos sujeitos da
pesquisa, que são profissionais que trabalham e/ou participaram da elaboração das
ideias de implantação deste serviço em Montes Claros.
Foram entrevistadas três psicólogas, uma assistente social, um técnico de
enfermagem19. Destes, somente uma psicóloga não exerce mais função no serviço
substitutivo. Sua escuta foi importante, uma vez que foi ela e outra colega que foram
apresentadas à estrutura que se tornaria o CAPS e teve a responsabilidade de iniciar sua
organização junto com a equipe que começou a se formar. A questão norteadora da
entrevista semi-estrutura foi: fale sobre as rupturas e permanências históricas da saúde
mental em Montes Claros.
19 Os nomes dos s
ujeitos do estudo foram substituídos pela letra E seguida por um número que se refere a ordem em que foram
entrevistados, seguindo preceitos éticos.
118
A seguir pode ser visualizada a Tabela 1, na qual informa: a profissão dos sujeitos
de pesquisa, o período de exercício profissional no serviço substitutivo e se trabalhou
em hospital psiquiátrico, de acordo com o respectivo código de identificação do
entrevistado.
TABELA 1: Caracterização dos sujeitos da pesquisa “Rupturas e permanências
históricas da assistência à saúde ao louco em Montes Claros/MG”.
Código de
identificação dos
sujeitos de pesquisa
Profissão
Período do exercício
profissional no CAPS II
de Montes Claros
Exercício da função em
hospital psiquiátrico
E1
Assistente
social
1996-hoje
Trabalhou no
Prontomente
E2
Psicóloga
1999-hoje
Não trabalhou em
hospital psiquiátrico
E3
Psicóloga
1996-hoje
Trabalhou no
Prontomente
E4
Técnico de
enfermagem
1996-hoje
Trabalhou no
Prontomente
E5
Psicóloga
1996-2007
Não trabalhou em
hospital psiquiátrico
FONTE: Ficha de caracterização dos sujeitos de pesquisa, 2012 (Anexo C).
A coleta dos dados orais, analisados neste quarto capítulo, foi viabilizada em
encontro com os sujeitos de pesquisa no CAPS, onde ocorreu um primeiro contato de
apresentação da pesquisadora. Neste momento, a mesma explicou os critérios da seleção
para compor a amostra da investigação, os objetivos da pesquisa, a solicitação para
realização da mesma no órgão de competência e os cumprimentos com os preceitos
éticos, o que permitiu uma aproximação entre pesquisador–pesquisado para que se
pudesse proceder com as entrevistas.
Outra fonte utilizada foi um caderno de atas que faz parte do acervo pessoal de
uma das entrevistadas, onde ela anotou as informações das reuniões referentes à
organização e implementação do CAPS, bem como as primeiras reuniões da equipe que
compunha o serviço substitutivo já em funcionamento. As datas das atas são:
25/10/2002; 01/11/2002; 08/11/2002; 22/11/02; 17/01/2003; 14/03/2003; 21/03/2003;
28/03/2003; 01/04/2003; 04/04/2003. Ao fim de cada ata havia as assinaturas dos
119
profissionais participantes das reuniões e suas as categorias profissionais eram: cinco
psicólogas, um psiquiatra, uma enfermeira, uma terapeuta ocupacional, um terapeuta
corporal, uma assistente social e uma professora de educação artística. Destes
permanecem trabalhando no CAPS duas psicólogas e a assistente social, que são
sujeitos deste estudo.
O interesse aqui é a história narrada em sua densidade na descrição dos fatos,
Orlandi (2002) destaca que não há discurso que não se relacione com outros, assim os
sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam e, assim,
se constroem os dizeres futuros.
Destaca-se que para construção desta dissertação considerou-se a premissa
sustentada por Maia (2007), de que para o historiador analista do discurso, os dados
lingüísticos não podem ser tratados como reflexo de “opiniões” ou sentimentos
subjacentes das pessoas, como um “espelho da mente” ou como uma ferramenta usada
para se ter acesso aos pensamentos das pessoas, ainda que todo dizer seja carregado de
intencionalidade, propósito e interesse. Os discursos foram entendidos em suas
condições de produção, ou seja, na situação/circunstância em que se faz uma
enunciação. Afinal, as palavras significam pela história e pela língua.
Com as narrativas e na imbricação dos discursos dos entrevistados associados às
anotações do caderno de atas, certas regularidades se evidenciaram, o que permitiu o
agrupamento das seguintes temáticas, que compõem os três subcapítulos que se seguem:
o processo de idealização, organização e implementação do CAPS, caracterizando o
início de uma ruptura com assistência ao louco em Montes Claros, na perspectiva da
sociedade de controle; a participação do CAPS como serviço substitutivo constituindo
uma rede de assistência com a presença ativa do hospital psiquiátrico, desvelando a
sobreposição entre permanências e rupturas; e a situação de estagnação das propostas,
ideias e ações no concernente ao movimento da Reforma Psiquiátrica no município, que
deu início ao CAPS.
120
4.1 A IMPLANTAÇÃO DO CAPS: o início de uma ruptura
O percurso de construção do CAPS aparece de modo regular nos discursos dos
sujeitos de pesquisa como o marco de corte com a perspectiva histórica da loucura em
Montes Claros, como expressa E1: “Quando foi o ano de 2002 começou a implantação,
a mudança, o CAPS [...]”.
A idealização do CAPS, a elaboração do processo de trabalho do “novo” serviço
de atenção ao louco e sua implementação serão analisados neste subcapítulo em
interface com a ideia do louco e da loucura na perspectiva das formas de
despsiquiatrização na sociedade de controle.
O processo de idealização do CAPS iniciou-se com a reunião de pessoas que
trabalhavam no serviço de saúde mental no município e que tinham um interesse em
comum: promover a implantação do serviço substitutivo. Os relatos a seguir descrevem
como se deu o agrupamento dessas pessoas:
Naquela época (2002) o secretário de saúde (nome do secretário de saúde)
nos chamou (a entrevistada e uma colega psicóloga) e disse assim: “vem cá.
Vamos ali comigo”. Colocou a gente dentro do carro, nos levou para a porta
da Policlínica Hélio Sales e falou; “esse andar daqui de debaixo é para
vocês”, foi assim. Então ele entregou aquela parte de baixo do prédio para
nós e falou: “agora organizem o serviço”. Na parte de cima vão ficar as
especialidades e a parte debaixo vai ficar a saúde mental. Então, a gente
começou, para nós foi um presente, porque ele viu que a gente queria fazer
alguma coisa. E5
Quando o CAPS começou as pessoas eram selecionadas, entrevistadas,
apostou-se nessa equipe, nós fomos preparados para esse momento e com
apoio total da coordenação [...] E1
Foi uma questão de desejo de estar aqui, foi nos dado a possibilidade de
dizer “não quero CAPS, eu quero continuar meu trabalho”. Eu trabalhava na
época com oncologia e geriatria, podia ter continuado, foi nos dado a
oportunidade numa reunião com a coordenação, que foram pessoas muito
importantes naquele momento, eles conseguiram que o secretário de saúde
viesse aqui conversar com psicólogo, enfermeiro, médicos, para saber como
que era esse negócio da lei 10.21620. E2
20
Lei no 10.216, de seis de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (MINAS GERAIS, 2006).
121
De acordo com Merhy (2007), apostar alto como ocorreu no grupo de Montes
Claros, é crer na fabricação de novos coletivos de trabalhadores de saúde, no campo da
saúde mental, que consigam com os seus atos vivos, tecnológicos e micropolíticos do
trabalho em saúde, produzir mais vida e interditar a produção da morte manicomial, em
qualquer lugar que ela ocorra.
Com a formação do grupo inicial, que se constituía de psicólogos, psiquiatras e
assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional, professora de educação artística e
terapeuta corporal iniciaram reuniões que foram intituladas de “Reunião de Implantação
e Organização do CAPS”. As atas dessas reuniões foram anotadas por E2 e seus
conteúdos foram mudando conforme a ideia do CAPS foi se materializando.
No começo o grupo tratava das questões relativas ao momento de transição –
transformação da Policlínica Hélio Sales em CAPS – depois ocorreram discussões a
respeito da organização e do modo de funcionamento. E, já na última reunião que consta
no caderno de atas, esta foi denominada “Reunião da Equipe do CAPS”, nesse momento
o serviço substitutivo é realidade em Montes Claros.
A data da primeira reunião que consta no caderno de E2 é 25 de outubro de 2002,
cujo conteúdo é descrito em tópicos e remete ao processo inicial de idealização do
CAPS em Montes Claros, como se observa abaixo:
Reunião de Implantação do CAPS
25/10/02 Policlínica Hélio Sales
Nome da Coordenadora:
 Momento de transição–rompimento, perdas...
 Carga terapêutica negativa com relação à coordenação de Saúde Mental.
 Toda mudança tem resistências.
 Envolvimento de vários setores.
 CAPS álcool e drogas.
 CAPS infância e adolescência.
 O serviço não é mais o modelo da Atenção Básica. Implica em
mudanças no horário de atendimentos.
 Modificação da nossa prática (perfil do profissional).
 Concurso em janeiro/2003.
O trecho acima leva a uma análise a respeito das consequentes mudanças
provenientes da implantação do CAPS, que se traduzem em perdas, rompimentos e
resistências. As perdas podem ser analisadas, de acordo com as falas dos entrevistados,
quando relatam ter deixado um outro trabalho consolidado com o intuito de construir a
122
novidade e enfrentar esse desafio, saindo da zona de conforto da manutenção da “velha”
prática. Os rompimentos são enaltecidos com as promessas inovadoras do serviço
substitutivo, que promete a vida com cidadania, sendo esse o maior símbolo da
resistência contra a assistência da psiquiatria clássica.
Tais circunstâncias se envolvem na trama da atenção psicossocial, que respalda as
diretrizes do CAPS, em detrimento à assistência ofertada pelo hospital psiquiátrico. Na
proposição do paradigma psicossocial, o indivíduo é considerado uma pessoa em
sofrimento psíquico e pertencente a um grupo social (família e/ou comunidade), em que
são consideradas as dimensões biopsicossocioculturais na atenção em saúde mental
(WETZEL et al., 2011).
Por sua vez, como tratamos no segundo capítulo deste estudo, o paradigma
manicomial da psiquiatria tradicional entende o seu objeto de trabalho configurado na
doença e reconhece o espaço do hospital psiquiátrico como a única instituição
terapêutica. Portanto, observa-se que o objeto da atenção no campo da saúde mental no
serviço substitutivo deixa de ser a doença e passa a ser a existência-sofrimento do
sujeito e a sua relação com o corpo social. Nesse processo dinâmico, entende-se que a
mudança de objeto de intervenção dos profissionais de saúde mental requer
transformações em seu processo de trabalho (WETZEL et al., 2011).
Na possibilidade de atender o louco no âmbito comunitário, que no contexto do
CAPS se tornou sujeito em relação, a clínica, isto é, o tipo de atendimento prestado pela
equipe do serviço substitutivo é denominado pelos entrevistados como: “clínica do um a
um” ou “clínica do caso a caso”:
Por isso que é a clínica do um a um respeitando a singularidade de cada um.
E1
Eu fico vendo que é no caso a caso que as coisas acontecem mesmo em
saúde mental [...] Então, assim eu vejo que é no caso a caso mesmo, porque
assim tem casos que a gente consegue ter clareza de que estar aqui no CAPS
é a condição que está sendo ofertada aqui é que realmente estão fazendo bem
ao paciente. E2
A “clínica do um a um” ou a “clínica do caso a caso” retira o louco do circuito
massificador dos dispositivos disciplinares e o trazem para individualidade, mais
123
adequado à sociedade de controle. Essa alteração faz parte do “novo” modo do processo
de trabalho na saúde mental.
Deleuze (1992) propõe a existência de uma sociedade de controle para além das
sociedades disciplinares, na qual o apoderamento dos corpos aqui passa a ser exercido
ao ar livre e de modo contínuo, como em certas formas de despsiquiatrização, como o
CAPS.
"Controle" é o nome que Willian Burroughs propõe para designar o novo monstro,
e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilo também analisa as
formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que
operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções
farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que
elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o
regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as
liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de
confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam
marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de
controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar,
mas buscar novas armas (DELEUZE, 1992).
Neste sentido, de monitoração e de controle dos indivíduos e da população, se
encontra um termo cunhado por Foucault (2000), o biopoder. Foucault tentava
descriminá-lo do regime que o havia precedido, denominado de soberania. Cabia ao
governo soberano a prerrogativa de matar, de maneira espetacular, os que ameaçassem
seu poderio e deixar viverem os demais. Já, com o biopoder, a preocupação é outra, não
cabe ao governo fazer morrer, mas, sobretudo, fazer viver, isto é, cuidar da população,
da espécie, dos processos biológicos, otimizar a vida. Assim, se antes o poder consistia
num mecanismo de subtração ou extorsão, seja da riqueza, do trabalho, do corpo, do
sangue, culminando com o privilégio de suprimir a própria vida, o biopoder passa agora
a funcionar na base da incitação, do reforço e da vigilância, visando a otimização das
forças vitais que ele submete (PELBART, 2009).
Pelbart (2009) acredita que os mecanismos diversos pelos quais esses poderes se
exercem são anônimos, esparramados, flexíveis, rizomáticos. O próprio poder se tornou
“pós-moderno”, ondulante, acentrado, reticular, molecular. Com isso ele incide sobre
124
nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar e até mesmo de criar. Se
antes se imaginava ter espaços preservados da ingerência direta dos poderes (o corpo, o
inconsciente, a subjetividade), e tinha-se a ilusão de preservar em relação a eles alguma
autonomia, hoje, a vida parece integralmente submetida a tais mecanismos de
modulação da existência, mecanismos de controle e monitoramento. Para resumi-lo em
uma frase: “o poder já não se exerce de fora, nem de cima, mas como que por dentro,
pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo” (PELBART, 2009, p. 25). Não se está
mais às voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo; trata-se de um poder
imanente, produtivo. Esse biopoder não visa barrar a vida, mas encarregar-se dela,
intensificá-la e otimizá-la.
Diante das falas dos entrevistados e das anotações no caderno de atas evidenciouse uma preocupação da equipe com a organização do serviço a ser implantado, que
como algo inovador deveria seguir normas, que influenciariam o processo de trabalho.
A descrição a seguir informa desde os horários de atendimento ao público, tanto no
Ambulatório quanto no CAPS, perpassa pela indicação do modo de atendimento clínico,
até a definição de como os plantões deveriam ser repassados entre os colegas de
trabalho:
Reunião de Implantação do CAPS
25/10/02
Nome da coordenadora
Ambulatório
7:00 às 19:00 hs–2ª a 6ª feiras.
 Psicólogos: acolhimento e triagem.
7:00 às 11:00–11:00 às 15:00–15:00 às 19:00 hs.
 Acabar com a psicoterapia.
 Não existe mais o plantão de 3 hs.
 O grupo deverá normatizar o serviço.
 Tem que ter psiquiatra nos dois horários.
 4 urgências; 6 retornos; duas 1ª consultas [...]
CAPS
4 horas: 8:00 às 12:00 hs.
12:00 às 18:00 hs.
 Equipe técnica:
1 psiquiatra.
1 enfermeiro.
4 profissionais de nível superior.
125
1 técnico administrativo.
Técnico educacional–monitores.
Limpeza: 1 manhã/ 1 à tarde
 Passagem de plantão VERBAL.
 O usuário não pode estar sozinho.
 CAPS somente para pacientes de Montes Claros.
Para E2 a organização do processo de trabalho no CAPS era necessária,
principalmente, por se tratar de um serviço público:
Todo mundo estava muito mobilizado e a gente tinha autonomia, como era
um serviço complexo, porque é complexo trabalhar no CAPS, organizar um
CAPS é muito difícil, todos os profissionais que estavam envolvidos é difícil
agregar, normatizar, é serviço público, você sabe como é norma no serviço
público, então para você colocar norma, foi construído isso. E2
O estabelecimento das normas de funcionamento do serviço indicava uma
tentativa da equipe responder às críticas de que o CAPS nascia como dispositivo
incipiente para o cuidado com o louco. Exatamente, neste sentido, de compreender o
contexto das críticas ao CAPS, bem como delimitar riscos e desafios na sua
implantação, surgiram questionamentos referentes ao âmbito social em que se
implantou o “novo” dispositivo de assistência ao louco em Montes Claros. Para tanto,
retomemos o quarto tópico do primeiro trecho da ata descrito anteriormente, onde está
escrito: “Envolvimento de vários setores”, na qual apontava a influência intersetorial na
idealização do serviço substitutivo. As falas dos entrevistados descrevem como ocorreu
esse envolvimento:
O período de se pensar numa instituição que não fosse o Prontomente para
cuidar do louco foi uma época que a gente tinha que, literalmente, brigar
com vários setores da sociedade, a começar pelos hospitais, os próprios
gestores, as famílias, todo mundo. E como, historicamente, não se sabe o que
fazer com o louco, a gente tinha que bancar essa ruptura, esse histórico de
que a saída era a hospitalização. E2
O CAPS veio com muita dificuldade, nós passamos por muita dificuldade de
aceitação mesmo da sociedade, como uma proposta revolucionária, que iria
incomodar familiares, incomodar a sociedade, porque o CAPS propunha que
os pacientes, que internavam constantemente no hospital, já não precisavam
mais, porque existia um lugar substituto a isso [...] E3
126
O desafio era mostrar que a internação não era mais o recurso terapêutico de
escolha no tratamento da loucura, que a ideia era aproximar o louco do contexto social e
cultural da sociedade, mas parece ter sido essa ruptura difícil de acontecer, considerando
que no imaginário das pessoas a internação, representante terapêutico do modelo
psiquiátrico hegemônico, ainda era o modo mais adequado de tratamento, ou
simplesmente, era o “lugar do louco”.
Destaca-se que alguns profissionais que participaram da idealização do CAPS
trabalhavam no hospital psiquiátrico de Montes Claros concomitantemente, o que para
uma entrevistada foi um desafio importante, já que esta instituição era um dos setores
que tinha um potencial de influência significativo na implementação do serviço
substitutivo:
Na época não tinha Linha Guia21, mas tinham as leis e a gente estudava,
vontade de melhorar e, em contrapartida, eu estava aqui com esta visão de
Reforma, de melhoria, de dar atenção mais adequada para os pacientes, com
aquele afã de melhorar e trabalhava no Prontomente, isso era um conflito
para mim. Porque a gente era, literalmente, execrado, porque o Prontomente
tinha uma birra com a gente, porque tinha internação no Prontomente pelo
SUS e tinha uma lista de espera e eles controlavam as vagas pelo SUS, mas
para o paciente ser internado pelo SUS ele precisava pagar uma consulta,
que onerava muito as famílias, as famílias não tinham condições de fazer
isso, e era uma dificuldade, então internava quem o hospital queria, sem
critério algum, aí com a Reforma veio aquele momento dramático, de muito
embate e muitos de nós fomos ameaçados, ligavam no CAPS nos
ameaçando, falava que a gente não sabia o que a gente estava fazendo, foi
um momento muito pesado. E1
Saliente-se que, nos anos sessenta, segundo Cerqueira (1984), houve uma
modificação no perfil nosológico da clientela dos hospitais psiquiátricos, surgindo uma
proporção expressiva de pacientes neuróticos e alcoolistas, patologias, cuja necessidade
de internação psiquiátrica é, no mínimo, questionável. O autor afirma que a empresa de
saúde visa o lucro e só o lucro, este é o seu papel. Em psiquiatria há um monopólio da
assistência curativa individual através do leito hospitalar exatamente por ser a opção
mais rendosa.
21
Conteúdos editoriais que tem por finalidade determinar, normatizar, padronizar ou regular ações ou
procedimentos. Incluem-se aqueles que tem por objetivo guiar, instruir ou orientar sobre a execução de
ações (MINAS GERAIS, 2006).
127
Para Yasui (2006), o campo da saúde mental é um lugar de conflitos e disputas.
Lugar do encontro do singular e do social, do eu e do outro. É, também, o lugar de
confronto: das idéias de liberdade, autonomia e solidariedade contra o controle e a
segregação, da inclusão e da exclusão, da afirmação da cidadania e de sua negação.
Portanto, campo de lutas políticas e ideológicas que envolvem militância,
protagonismos, negociações, articulações, pactuações. Assim, a Reforma Psiquiátrica é
um movimento político e o processo de sua construção não pode ser desvinculado da
luta pela transformação da sociedade.
Ao longo do discurso da atenção psicossocial, a sociedade entra na arena do
debate como lugar a ser restituído ao louco, como espaço que ele não frequenta desde
que foi capturado pela internação manicomial. Mas, como o louco se desvencilhou da
sociedade se o manicômio foi um dos seus dispositivos institucionais de
disciplinarização e controle?
Ancoro-me para responder tal questionamento em Foucault, mais precisamente na
obra Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (2006a), em que
o autor afirma que a loucura só existe em uma sociedade.
Na perspectiva foucaultiana, a loucura não pode ser encontrada em estado
selvagem. A loucura só existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas da
sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a capturam. Assim,
conforme exploramos no primeiro capítulo desta investigação, pode-se dizer que na
Idade Média e depois no Renascimento, a loucura está presente no horizonte social
como um fato estético ou cotidiano. Depois no século XVII, a partir da internação, a
loucura atravessa um período de silêncio, de exclusão. Ela perdeu essa função de
manifestação, de revelação que ela tinha na época, a loucura se tornou derrisória,
mentirosa.
Enfim, o século XX se apossa da loucura e a reduz a um fenômeno natural, ligada
à verdade do mundo. Desse ato de posse positivista, pode-se pensar a idealização dos
dispositivos de assistência ao louco a partir da Reforma Psiquiátrica, como o CAPS, que
derivam, por um lado, a filantropia desdenhosa manifestada por toda psiquiatria com
respeito ao louco e, por outro, o grande protesto lírico encontrado na poesia22 e que é
22
Um dos exemplos citados por Foucault com relação à poesia sobre a loucura neste período é Antonin
Artaud, nascido na França em 1896. Foi poeta, pintor, escritor, ator e dramaturgo. Acusado de ser um
agitador e de vagabundagem na Irlanda, é preso e enviado, num barco, pela polícia de volta para a França.
128
um esforço para tornar a dar à experiência da loucura uma profundidade e um poder de
revelação que haviam sido aniquilados pela internação (FOUCAULT, 2006a).
A reinserção do louco na sociedade parte do pressuposto da alteração de doente
mental para sujeito em sofrimento mental, que promove um entendimento mais
suavizado do cuidado com o louco e da noção de loucura, pois a instituição total se
desconstrói para a emergência do serviço substitutivo de cunho comunitário, que
promete trazer o louco para a sociedade.
Esta ideia se equivale à proposta de Foucault (2010) de “humanização”, quando o
autor trata da questão do desaparecimento do suplício, defendendo que hoje existe a
tendência a desconsiderá-lo a favor de um corpo dócil adquirido por meio de um
controle e disciplinarização conquistados através de dispositivos mais amenos. Os
relatos a seguir demonstram que os profissionais do CAPS destacaram a humanização
como mecanismo essencial na organização do seu processo de trabalho e o interesse era
mostrar para a sociedade que o CAPS oferecia uma prática diferenciada:
Eu acho que depois da Reforma, eu vou falar da Reforma para cá, porque
antes também não adianta muito falar, porque era uma covardia. Da Reforma
para cá o que melhorou foi a humanização do sujeito nas clínicas e no
hospital depois da Reforma, a humanização também teve que acontecer,
porque era uma coisa que não tinha jeito de não acontecer. Todo mundo
gritava isso aí que tinha que humanizar e tal [...] Humanizar é um melhor
trato com o paciente, valorizar a questão da fala do paciente, até mesmo a
questão da higiene do paciente, banho e de escovar, são essas coisas que o
paciente às vezes não tem e a gente deixa passar despercebido. Ele é doido,
então vamos deixar do jeito que está aí mesmo, de ter que escovar os dentes,
de ter uma palestra, da alimentação. Isso que eu acho que melhorou. E4
A gente bancava e tentava ofertar outra modalidade de assistência, que desse
a esse sujeito suporte, não estou falando no sentido poético da coisa não,
sabe? Estou falando de ofertar para ele um tratamento diferente e
diferenciado, por causa da questão da humanização, assim por termos uma
equipe grande e multiprofissional, com a clínica dos muitos, então a gente
tinha como amparar até as nossas próprias dificuldades com relação a estar
iniciando um processo novo, e a gente era respaldado para fazer isso, eu
acho que esse era um grande diferencial, era onde a gente tinha acesso a tudo
que podia nos ajudar, a todas as ferramentas disponíveis [...] E2
Um incidente ocorrido durante a viagem fez com que ele fosse, a partir de 1937, internado como louco
em estabelecimentos psiquiátricos. Artaud escreveu em 18 de maio de 1943: “Vejo na sua proposta de me
trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão.
Mas tem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui. Já faz quinze dias que pedi ao Dr.
Latrimolière que me deixasse tomar banho todos os dias para me manter limpo [...]” (TEIXEIRA A.,
1999, p. 189).
129
Seguindo essa linha de pensamento referente à humanização, havia outras duas
coisas que deveriam ser “devolvidas” ao louco, na perspectiva do processo de trabalho
da equipe do CAPS: a dignidade e a cidadania. Estas designam laços sociais e políticos
do ser humano e impossíveis ao louco internado, fulminado pela interdição. Isso pode
ser percebido através dos discursos dos sujeitos da pesquisa, que creditam ao CAPS a
responsabilidade de restituir a dignidade e a cidadania ao louco:
Tinha paciente que chegava aqui no CAPS destruído e a gente conseguia
devolver um mínimo de dignidade a esse paciente. Tem o caso da paciente
que chegou aqui estraçalhada, ficou aqui mais de um ano destruída, não era
psicótica, mas ela conseguiu ser erguer, ela está saudável, está trabalhando,
essa semana ela estava na fila para pegar remédio e virou para uma pessoa
na fila e falou assim “eu cheguei aqui sem identidade, o CAPS me devolveu
minha identidade”. E1
O que me deixou feliz também foi uma entrevista que foi feita com uma
paciente e foi perguntado para ela se ela sentia que as pessoas se afastavam
dela quando sabiam que ela é portadora de sofrimento mental, ela disse “já
aconteceu isso, mas hoje não acontece mais não, hoje eu sou tratada igual
todo mundo” e isso me emocionou demais, ela é uma cidadã, que era alijada
de todo e qualquer processo social, então ela começa a participar dessa vida
como cidadã, até prestar serviços, ela fala “eu vou para fila, eu não fico nela,
eu posso passar na frente, eu não sei porque que eu posso, mas eu posso
passar e eu passo”, aproveita então. Escutar que ela passou a circular pelas
ruas, se sentindo uma pessoa que poderia, que tinha direitos, como outro
cidadão qualquer. E3
A resposta do movimento reformista é que a reinserção social visa, antes de tudo,
permitir uma ocupação cidadã por parte dos loucos do seu lugar na sociedade. Assim, a
reabilitação psicossocial seria um operador da produção de cidadania. Porém, é
importante ressaltar que a cidadania a ser construída obedece ao princípio da
racionalidade moderna, no quadrante do princípio da igualdade de direitos e do
cumprimento de deveres. A idéia de se restituir o que falta ao louco pode trazer o risco
de inscrever esse sujeito no âmbito da negatividade, leia-se na seara do defeito (PINTO;
FERREIRA, 2010).
Ao longo dos séculos, várias práticas tentaram curar o louco, de forma a restituirlhe a ratio, no afã de igualá-lo aos demais cidadãos. As tentativas de encerrar o louco no
lugar da igualdade proporcionaram o registro no que Birman (1992) chama de
pedagogia da sociabilidade.
130
Para que tanto a dignidade quanto a cidadania fossem apresentadas aos pacientes,
a equipe do CAPS defende a instituição como local de reinserção social, que deve ter
significado para os usuários, os familiares e a sociedade. Então, o trabalho surge como
possível respaldo para as ações terapêuticas por meio das oficinas, como fica
evidenciado no trecho da ata de primeiro de novembro de 2002:
Reunião de Implantação e Organização do CAPS
1/11/02-Policlínica Hélio Sales
[...]
Oficinas:
1. Horta/jardinagem;
2. Música: deverá ser desmembrada: violão, banda, coral, etc;
3. Teatro;
4. Tapeçaria;
5. Bordado: vagonite, ponto cruz, crochê;
6. Papel: caixas, papel jornal, flores;
7. Pintura: uma oficina livre, desenho, giz de cera, lápis de cor; pintura de
quadros;
8. Letras: leitura, produção de texto;
9. Madeira: marcenaria, escultura;
10. Cerâmica;
11. Costura;
12. Culinária;
13. Expressão corporal;
14. Projeção jogos;
15. Salão de beleza;
16. Projetos: organização dos eventos a serem apresentados pelos pacientes:
passeios, apresentações, datas comemorativas, exposições, etc; envolve
várias oficinas.
Como foi analisado no subcapítulo “Alma versus corpo; o estatuto médico da
loucura”, no primeiro capítulo desta dissertação, a terapêutica para loucura pelo trabalho
surgiu no século XVIII. Pinel, pai da Psiquiatria, via a doença como um desequilíbrio
das paixões, entendendo que sua cura consistia em trazer o alienado de volta à realidade,
dominar seus impulsos e afastar suas ilusões. Por isso, objetivando uma reeducação da
mente alienada, ele defendia a adoção de um tratamento moral articulado a um trabalho
terapêutico (AMARANTE, 1996). Pode-se dizer que o médico francês deu ao uso do
trabalho uma nova conotação. A psiquiatria transformou o trabalho em terapêutica,
fazendo surgir uma associação entre o ato de trabalhar e a saúde.
Os pesquisadores Azevedo; Miranda (2011) acreditam que no processo
psicossocial dos CAPS, as oficinas terapêuticas são entendidas como um instrumento de
reabilitação, em que a arte pode ser expressa dos diversos modos. A arte, nesse
131
contexto, segundo os autores, é capaz de produzir subjetividades, catalisar afetos,
engendrar territórios desconhecidos e/ou inexplorados. Ainda que haja indefinição por
parte dos profissionais da área da saúde mental quanto às formas de compreensão da
relação entre arte e terapia, o seu valor na reabilitação está na possibilidade do usuário
trabalhar e descobrir suas potencialidades para conquistar espaços sociais.
Barros et al. (2001) investigando as práticas implementadas em serviços de
assistência em saúde mental, atentam para o fato de que as oficinas são referidas como
espaços articulados à reinserção social e ao exercício da cidadania, ressaltando que as
oficinas dizem respeito ao campo social e político.
O “fazer alguma coisa que seja produtivo” parece ser um indicativo de que o
indivíduo está pronto para a sociedade. De acordo com Foucault (2006a), de um modo
geral, os domínios das atividades humanas podem ser divididos em quatro categorias:
trabalho ou produção econômica; sexualidade, família, quer dizer, reprodução da
sociedade; linguagem, fala; e atividades lúdicas, como jogos e festas.
Em todas as sociedades há pessoas que têm comportamentos diferentes dos das
outras, escapando às regras comumente definidas nesses quatro domínios, em suma, são
os denominados indivíduos marginais. Como por exemplo, os políticos e os
eclesiásticos, quando controlam o trabalho dos outros ou servem de intermediários com
a força sobrenatural, não trabalham diretamente e não concernem ao circuito de
produção. Outro exemplo emblemático, o caso dos índios da América do Norte, sabe-se
que existem homossexuais e travestis, cabe dizer que eles ocupam uma posição
marginal na reprodução social (FOUCAULT, 2006a).
De qualquer forma, aqueles que são excluídos diferem de um domínio a outro,
mas pode acontecer de a mesma pessoa ser excluída de todos os domínios: é o louco.
Em todas as sociedades, ou quase todas, o louco é excluído de todas as coisas e,
segundo o caso, ele se vê recebendo um status religioso, mágico, lúdico ou patológico
(FOUCAULT, 2006a).
Na Idade Média e no Renascimento, era permitido aos loucos existir no seio da
sociedade. O que se chamava o idiota da cidade, não se casava, não participava dos
jogos, era alimentado e sustentado pelos outros. Ele vagava de cidade em cidade, às
vezes entrava para o exército, se fazia de mascate, mas quando tornava muito excitado e
132
perigoso, os outros construíam uma pequena casa fora da cidade e o prendiam
provisoriamente (FOUCAULT, 2006a).
Nos hospitais psiquiátricos modernos, tratamentos pelo trabalho se praticam com
frequência. A lógica que embasa essa prática é evidente. Se a inaptidão ao trabalho é o
primeiro critério da loucura, basta que se aprenda a trabalhar no hospital para curar a
loucura. Pode-se dizer que o louco é um avatar de nossas sociedades capitalistas, e
parece que, no fundo, o status do louco não varia nada entre as sociedades primitivas e
as sociedades avançadas, isso demonstra o primitivismo de nossa sociedade, “nossa
sociedade continua excluindo os loucos”, defende Foucault (2006a, p. 267).
Pelbart (1993) realiza uma crítica relevante sobre o Hospital Dia23 como mais um
dispositivo disciplinar e que aqui trazemos para incrementar a análise da situação do
CAPS na perspectiva de constituir-se em mais um dispositivo de controle da sociedade.
Para o autor, um Hospital Dia ou um serviço público experimental (que nesta pesquisa
se equivale ao CAPS) podem ser muita coisa; mas, entre outras coisas, pode vir a ser
um dispositivo institucional a mais para a normatização social. A humanização, nesse
contexto, que traz em seu bojo a cidadania e a dignidade, funciona como um dispositivo
de ação normativa, em que tornar o louco gente, cidadão, indica ser o caminho mais
adequado para o seu cuidado e que deixa a equipe de profissionais da saúde mental com
menos ou nenhuma culpa pelo passado manicomial de expurgação do louco.
O trecho abaixo é da reunião ocorrida em primeiro de novembro de 2002, na qual
a equipe define a organização do processo de trabalho do CAPS, delimitando as normas
de funcionamento da instituição, com ênfase para as ações de vigilância do paciente:






23
Reunião de Implantação e Organização do CAPS
01/11/02
Policlínica Hélio Sales
Oficinas com número limitado de pacientes (25/30).
Registrar as atividades do paciente no CAPS diariamente.
Entrada pelo ambulatório da psiquiatria.
A equipe deverá avaliar o caso.
Processo dinâmico.
No cartão do paciente deverá estar registrado CAPS e o horário que ele
permanecerá aqui.
O Hospital Dia foi um serviço inicialmente planejado para funcionar dentro de uma rede hierarquizada
de ações, tendo como finalidade ser intermediário entre a rede básica e a internação integral, um tipo de
acompanhamento “pós-crise” e de preparação para a volta ao convívio social, portanto, um lugar de
passagem, para um tratamento de curta duração (BICHARA; PALMIERI, 2007).
133








O CAPS não é lar abrigado e não é assistencialista.
Todos da equipe têm que ter conhecimento do caso do paciente.
Tanto a alta quanto a entrada exige uma discussão da equipe caso a caso.
Mínimo para estada no CAPS: 1 vez por mês.
Não permitir a saída do paciente do CAPS.
Discutir com a equipe e com o próprio paciente esta situação: por que quer
sair? Não tem interesse? Não precisa mais do serviço? Alta?
Registrar a ausência do paciente.
No caso de ausências frequentes o serviço social e/ou auxiliar de
enfermagem deverá entrar em contato.
Esse trecho demonstra que a noção de observação constante do louco,
procedimento dos Hospitais Gerais e dos manicômios a partir do século XVII,
permanece como instrumento necessário de controle, ainda que o CAPS seja
considerado um serviço aberto em detrimento da instituição total.
Na perspectiva de Pelbart (1993), a ideia de controle societal parece óbvio, vago,
primário, e, no entanto nada mais perigoso. Estes novos serviços lembram às vezes a
Nau dos Insensatos que Foucault descreve no início de sua História da Loucura (2010),
mas que ao invés de vagar à deriva das águas, como na Renascença, aportou em solo
urbano, com todas as promessas e riscos que isso implica. Uma nau atracada, um pouco
como as barcas-casa nos canais de Amsterdã, um tantinho flutuantes, mas já sedentárias,
numa indecisão saborosa entre o fluxo do rio e a fixidez da cidade.
Ressalta-se que a autora desta investigação acredita, que como defendem Pinto;
Ferreira (2010), esta discussão não se trata de conduzir tudo a apatia de quem julga tudo
ruim, afinal, como relata Foucault (1995, p. 256), “nem tudo é ruim, mas tudo é
perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então
sempre temos algo a fazer.”
Problematizar a Reforma, mapear os novos riscos trazidos no seu bojo não visa
inviabilizá-la, jogá-la na vala comum das antigas práticas psiquiátricas que a tornaria
equivalente ao asilo. Trata-se antes de tudo de uma tentativa de reforçá-la, de retomar a
sua força crítica; pensá-la não como um processo acabado que devemos nos regozijar e
comemorar. Mas que qualquer comemoração só é válida no alerta constante dos seus
novos riscos. Ou mesmo dos antigos, como na reabilitação dos mecanismos asilares no
alargamento dos seus dispositivos. É isso que intentamos levantar em relação a um
dispositivo específico bastante presente: o CAPS (PINTO; FERREIRA, 2010).
134
A discussão até aqui realizada neste subcapítulo, cuja abordagem se remeteu a
análise da idealização, da organização e da implantação do CAPS em Montes Claros,
nos informa que a organização deste serviço incluiu pensar a estrutura física e
principalmente, o modo de lidar com o louco na sociedade de controle, influenciando na
elaboração do processo de trabalho da equipe CAPS. A análise das fontes demonstrou o
tênue limite que se estabeleceu entre a prática manicomial e a da atenção psicossocial,
que realmente, possuem discursos distintos, mas que quando implementados podem ser
percebidas algumas semelhanças, como a evidente tentativa de controle do louco, por
meio do discurso amenizado de restituição da cidadania e da dignidade. Desse modo,
pode-se pensar na sobreposição dos modelos em ação: o da psiquiatria tradicional e o da
atenção psicossocial.
O usuário em crise que se recusa a ir ao serviço; a família que exige internação em
um hospital psiquiátrico de seu ente; o morador de rua que incomoda os vizinhos; o
usuário que estabelece uma relação de dependência com o serviço. Estes são exemplos
de situações que são desafios cotidianos que a equipe do CAPS encontra e nas quais se
apresenta a tensão permanente entre um modelo hegemônico de cuidados que já se
conhece e um outro que se pretende construir, algo que discutiremos no próximo
subcapítulo (YASUI, 2006).
4.2 O CAPS E OS PRECEITOS MANICOMIAIS: uma sobreposição entre
permanência e ruptura
Apresentamos no texto anterior as ideias de organização e implementação do
CAPS em Montes Claros. A partir de agora, propomos uma discussão acerca da
participação do serviço substitutivo, já instituído no cenário da assistência ao louco na
rede de atenção à saúde mental no município, que como vimos, possui um hospital
psiquiátrico atuante, o que fortalece o embate entre a “nova” prática e os “velhos”
hábitos.
A apresentação da novidade do serviço substitutivo à cidade fez emergir suspeitas
de sua eficácia, afinal, deixar o louco circular, ir e vir, entrar e sair da instituição, isso
pode funcionar?
135
As ações do CAPS trouxeram a tona essa pergunta, dentre outras, o que promoveu
debates com as principais instâncias que se ocupam com o louco desde que a loucura se
tornou objeto de saber a partir das formações discursivas do século XVII, que a
transformaram em acidente patológico, em anormalidade, em algo perigoso, quais
sejam: a psiquiatria, a família e o jurídico.
Os discursos dos sujeitos de pesquisa revelaram como foi o enfrentamento da
equipe do CAPS com toda essa situação, descrevendo fatos que envolvem as três
instâncias. Os entrevistados contam histórias de pacientes que eles retiraram do
manicômio, que foram “devolvidos” às famílias, que “incluíram” na sociedade, que
“devolveram” a dignidade... São histórias de vidas que implicam as “glórias” e os
desafios da equipe do serviço substitutivo, que como abordamos no Capítulo 3 desta
pesquisa, coloca o CAPS no “olho do furacão” com as tensões que provoca, segundo
propõe Merhy (2007).
Abaixo serão descritas quatro dessas histórias, brevemente narradas por E1, que
viabilizará uma análise, dentre outras, a respeito das atitudes das famílias em relação às
práticas do CAPS, que inicia suas atividades baseando-se nas propostas pensadas no
processo de idealização de sua organização, em que foca na substituição do
internamento pelo serviço aberto e comunitário:
Têm pacientes que moraram anos no hospital, tem um paciente aqui, que a
gente teve uma briga com a família, eles ligavam na minha casa para
ameaçar, ele ficou 19 anos internado veio a Reforma e tiramos ele de lá, hoje
não é um paciente que vai ter vida produtiva, laboral, ele tomou tanto ECT24,
que cozinhou os miolos, grosseiramente falando, um dia nós fomos fazer um
passeio, foi tomar um lanche na rua e ele falou assim: “prefiro coca-cola”.
Todo mundo chorou, porque para quem não falava nada, falar hoje eu quero
isso, foi de uma emoção [...]
Nós tivemos uma paciente que foi internada aos 12 anos no Rio de Janeiro e
ela veio para nós aos 67 anos, essa família quase chamou a polícia para
gente, a família quis execrar, matar a gente de ódio, ela já era uma senhora
24
A eletroconvulsoterapia (ECT) é um procedimento que consiste na indução de crises convulsivas por
meio da passagem de uma corrente elétrica pelo cérebro. Trata-se do único tratamento biológico do
século XIX que segue sendo empregado nos dias atuais. A essência desta técnica é atribuída a Ladhaus
Von Meduna, que, em 1885, guiado pela sua teoria do antagonismo biológico entre esquizofrenia e
epilepsia, descreveu benefícios terapêuticos da convulsão induzida por cânfora. Posteriormente, com o
intuito de superar os problemas técnicos do tratamento por convulsão farmacológica, Ugo Cerletti e Lucio
Bini, em 1938, foram os pioneiros no uso de estímulo elétrico para induzir convulsões terapêuticas em
pacientes com psicoses graves. O método foi batizado como "eletrochoque" e popularizado como ECT
(MOSER et al., 2005).
136
da terceira idade, não se criaram laços naquela família, a família ficou super
resistente para recebê-la, não recebeu e ela ficou na Residência
Terapêutica25·. Era a única mulher que ficou na Residência Terapêutica até
hoje, lá tinham três homens e a receberam com o maior carinho, porque a
família não recebeu, eles chegavam e falavam assim: “leva para você, leva
para sua casa”. E essa paciente ela vinha para o CAPS e quando chegava à
tarde, umas três horas, ela chorava, ela gritava e agente não entendia, até que
nós descobrimos, essa era a hora do ECT no manicômio, ela era
extremamente institucionalizada, ela ficou dos 12 anos até 67 anos. Ela foi
internada nessa idade, porque ela perdeu a mãe no parto e aí ela foi criada
pelos tios, eu acho que ela era uma menina rebelde, respondona e ela sem os
pais, o pai logo morreu também e a tia não teve muito (a entrevistada pensa)
não quis trabalho! E daí ela foi para escola e foi parar no manicômio e ficou
todo esse tempo.
Tem um paciente que saiu do Prontomente, ele ficou 15 anos internado, ele
entendia que lá era a casa dele, nós conversamos com a família para ele ficar
com eles até que a Residência Terapêutica ficasse pronta e a família falou
que não podia. Aí nós fizemos um acordo com o Prontomente, que ele
passasse o dia no CAPS e dormisse no hospital, o hospital concordou até que
se criasse a Residência Terapêutica. E essa pessoa que estava super
resistente com o contato com outras pessoas conseguiu criar laços, abriu
cadernetas na vizinhança, arrumou uma namorada.
Tivemos uma outra paciente só que essa nós conseguimos trabalhar com a
família para recebê-la, assim, engolido e até hoje a gente tem um pouco de
dificuldade com essa família, mas a paciente está bem, hoje ela vem só para
consulta e vai embora. E1
A descrição dos fatos reflete um tom de orgulho da entrevistada, afinal, o objetivo
estava se cumprindo, menos quatro loucos nos manicômios. Todavia, pode-se pensar
que no quesito inclusão os avanços não foram muito eficazes, as famílias não aceitaram
muito bem os desconhecidos egressos de hospitais psiquiátricos. Eram estranhos
acostumados a uma rotina, que parecia bastante diferente ao cotidiano habitual dos
grupos familiares brasileiros, ECT todos os dias por volta das 15 horas não se tratava
exatamente do encontro esperado pela família para esse horário!
As quatro histórias apontam para o fato da família ser uma incentivadora ao
internamento ou a manutenção dele. Na verdade, o sistema familiar não aceita de bom
grado um integrante que possa de algum modo infringir os códigos morais que o
compõem. Há ainda um outro problema em se ter um louco em casa, em família, o
trabalho que ele dá.
25
Os Serviços Residenciais Terapêuticos (também conhecidos por Residências Terapêuticas) são uma
modalidade substitutiva de atendimento que se destina a abrigar pacientes egressos de longas internações
em instituições psiquiátricas (FASSHEBER; VIDAL, 2007).
137
A seguir os entrevistados significam a internação como um “comodismo” para as
famílias:
Mas até hoje aqueles pacientes antigos do CAPS a família sabe e percebe
que ele melhora aqui, mas no primeiro atendimento a solicitação é de
internação, agora, apareceram dois casos, um quer mandar para Barbacena e
um quer mandar para Belo Horizonte, agora, atual. Tem um caso que o
paciente fica em um chiqueirinho aí a madrasta ela falou “eu posso assim, de
outro modo não posso cuidar, ele me dá muito trabalho”. Mas ele não dá
trabalho! E1
O preconceito ainda permanece, ainda existem pessoas que acreditam que a
melhor opção mesmo é segregar. Mas, isso sempre vai existir ao longo dos
anos, porque vai ter sempre um, por comodismo, como eu tenho um familiar
que falava de um paciente, ele morreu: “você fica aí pregando desse jeito,
porque você não tem ele lá na sua casa. Vai conviver com um doido dentro
da sua casa agredindo e batendo em todo mundo.” A gente também precisa
olhar esse lado desta família que sofre demais com tudo isso, sem,
entretanto, deixar de mostrar para eles que existem outras possibilidades [...]
E3
“Ninguém aguenta uma pessoa delirante dentro de casa”, essa é uma afirmação do
escritor, poeta brasileiro Ferreira Gullar, trata-se de uma entrevista concedida à revista
Época em 20 de maio de 2009 (SEGATO et al., 2009). Nesta reportagem, o poeta fala
de sua experiência com os filhos que possuem diagnóstico de esquizofrenia (um
transtorno mental), sendo um mais novo, que faleceu em 1992 de cirrose hepática e
outro mais velho, que na época da matéria tinha 50 anos e morava há cinco em um sítio
em Pernambuco. Abaixo está descrito um trecho desta entrevista:
ÉPOCA: O doente precisa ficar vigiado dentro de casa?
Gullar: Ninguém aguenta uma pessoa em estado de delírio dentro de casa. Só
se ninguém trabalhar, todo mundo ficar em volta do doente. E se for uma
pessoa agressiva? Tem que internar. Nenhum pai e nenhuma mãe internam
seus filhos contentes da vida, achando que se livraram. Não estou dizendo
que a lei foi feita para perseguir as pessoas. Não vou imaginar uma coisa
dessas. Ela foi feita com boa intenção. Mas de boa intenção o inferno está
cheio (SEGATO et al., 2009).
Ferreira Gullar demonstra através de um poema que a internação, sob sua
percepção, é sim necessária, mesmo que um de seus filhos goste do vento no rosto:
Internação
Ele entrava em surto
138
E o pai o levava de
carro para a clínica
ali no Humaitá numa
tarde atravessada
de brisas e falou
(depois de meses trancado no fundo escuro de sua alma)
pai, o vento no rosto é sonho, sabia? (FERREIRA GULLAR, 1999).
Os apelos dos familiares montes-clarenses pelo internamento surgiram nas falas
dos sujeitos de pesquisa, apesar das tentativas da equipe do CAPS de orientar e incluir o
grupo familiar no acompanhamento do paciente no contexto psicossocial. E entra em
cena o jurídico, com o seu papel de fazer valer a justiça e a ordem social, respaldando a
família na persistência do tratamento pela internação:
Do promotor eu já sou amiga (risos e ironia)! E olha que esse ano ele não me
chamou ainda, mas o promotor que eu tenho contato é uma pessoa super
aberta, ele entende o novo, uma vez ele saiu e veio visitar a Residência
Terapêutica e ele escuta, isso faz diferença. Eu acho que a justiça com esse
promotor em especial eu não tenho queixas. E eu acho engraçado esse
negócio da justiça, porque a gente é bombardeado na maioria das vezes
questionando a internação, a família procura a justiça mesmo e a gente não
denuncia. Por exemplo, o caso do cárcere em Nova Esperança quem
denunciou não foi a gente, nesse percurso todo eu denunciei uma vez, que a
família estava espancando aí eu levei para fazer corpo de delito, não que eu
queira ser conivente, não é isso, eu tento conversar e tento sensibilizar o
sujeito. Para promotoria eu nunca levei, mas tem hora que dá vontade de
levar, porque você é levado tantas vezes, eu tenho dificuldade com isso, sou
muito maternal [...] Ainda hoje, no século XXI, tem um preconceito enorme,
mas é coisa que ainda vai durar por muito tempo, as pessoas querem
segregar mesmo, separar mesmo, eu já vi cada cárcere privado de chorar. A
família fala: “não ele fica melhor assim”. Ninguém pode saber que na
família tem um doido. A família pensa assim “o doido é meu”, mas não
cuida, fala assim: “é o melhor que eu posso fazer”, eu conheci uma família
que deixava o menino preso em um quarto, igual um inseto e que tinha um
lugar de colocar o prato e ele só saía para vir ao CAPS, e ele só vinha porque
o técnico do CAPS tirava ele deste cubículo dele e trazia para cá e depois
voltava com ele para lá e trancava. E1
Naquela época a gente tinha que estar convencendo a família e o judiciário
mesmo, quando a família procurava para falar de Dona Maria que estava
tirando a roupa na rua, ou, então o filho que espancou o pai e aí a família vai
procurar a justiça [...] Então, era muito assim um embate de convencimento
e a gente estava muito convencido de que este era o caminho, a equipe na
época estava muito motivada para dizer: “olha é isso mesmo”. Então, a
família chegava aqui e falava: “eu vou trazer a televisão para denunciar,
chamar a polícia, você não sabe como é ter um doido dentro de casa
quebrando tudo.” Isso a gente ouvia frequentemente. E2
139
O cárcere e o internamento no hospital psiquiátrico fazem parte do que Foucault
(2006a) chama de status do louco. A única diferença é que, do século XVII ao século
XIX, o direito de exigir a internação de um louco pertencia à família, pois era, a
princípio, a família que excluía os loucos. A partir do século XIX essa prerrogativa se
perdeu progressivamente e foi concedida aos médicos. Para internar um louco, exigia-se
um atestado médico e, uma vez internado, o louco via-se privado de toda a
responsabilidade e de todo direito como membro da família, ele perdia inclusive a sua
cidadania, ele era encerrado pela interdição. Neste momento, poder-se-ia dizer que o
direito prevaleceu sobre a medicina para dotar o louco de um status marginal.
O CAPS assume a função de “desinternar”, que como em um “ato heróico” retira
o louco da miséria e do terror manicomial. Apesar disso, como vimos, há quem deseje a
internação, talvez não como um lugar adequado para o tratamento, mas como um
espaço que adquiriu um status de ser próprio ao louco, aquele é “o lugar do louco”,
onde ele pode delirar e alucinar sem incomodar a ordem.
O CAPS se implantou em Montes Claros com a intenção de atender aos pacientes
que estavam até o ano de 2002 sob as alternativas de se submeter aos cuidados do
hospital psiquiátrico do município ou ser “preso” em algum “quartinho” no fundo do
quintal. Os entrevistados trazem a tona questões relativas ao tipo de cuidado ofertado
por esse hospital e a não aplicação da resolução da avaliação do Programa Nacional de
Avaliação dos Serviços Hospitalares-PNASH/Psiquiatria (PNASH)26 de 2002, o que
evidencia que a experiência do CAPS não garante a superação do hospital psiquiátrico,
como se observa abaixo:
O PNASH foi lá no Prontomente fazer a avaliação e colocou a gente abaixo
de zero, tudo que eles perguntavam, não tinha nada, foi horrível. A avaliação
foi péssima e deram ao Prontomente nove meses para se organizar, nesses
nove meses nada aconteceu, nada foi feito continuou tudo do mesmo jeito, aí
houve o descredenciamento do Prontomente e aí a prefeitura entra e resolveu
pagar uma quantia mensal para o Prontomente [...] por 60 leitos, 30
masculinos e 30 femininos [...] E é isso que nós nos perguntamos, por que
pagar isso para uma qualidade que a gente sabe que é deficitária? Depois de
um tempo o Prontomente melhorou, assim, né? Limpou, pintou, grades tem
em toda a estrutura, colocou azulejos nos banheiros, aí ele foi ficando
melhor, o ECT foi proibido, porque eu cansei de ver nos prontuários dos
26
Assunto analisado no subcapítulo “Montes Claros e a Reforma Psiquiátrica” que constitui o terceiro
capítulo desta dissertação, em que há uma abordagem sobre a vistoria do Programa Nacional de
Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/Psiquiatria, que ocorreu em Montes Claros em 2002.
140
pacientes com esparadrapo: ECT tantas vezes. E via a filinha lá, tinha a fila
da hora do ECT, eu nunca vi, não é a minha praia [...] E1
Por muito tempo ficava aquilo de que a ideia era a extinção do manicômio,
era o que a lei preconizava, seria isso, e aqui a gente via que a coisa não
caminhava para esse desfecho, por mais que o PNASH tivesse dado a sua
impressão, as coisas não funcionavam, eu acho que isso começou um ranço
histórico de que o caminho era aquele lá mesmo. Uma questão médica
envolvida nesse circuito aqui na cidade e eu sei que continuamos, não estou
falando que era para fechar, de jeito nenhum, mas continuou funcionando do
jeito que funcionava. E2
Os discursos dos entrevistados somados a análise realizada até este momento
nesta dissertação, demonstra uma radicalidade da diferença entre os dois modelos, da
psiquiatria tradicional e do serviço substitutivo, o que aponta ter produzido grupos
políticos organizados que desenvolvem ações estratégicas, agregam interesses e
produzem demandas para as diferentes instâncias responsáveis pela saúde, a fim de
conseguirem respostas que, de preferência, tornem hegemônicas suas teses e suas ações
(PRAZERES; MIRANDA, 2005).
As falas descritas a seguir demonstram o quanto o embate entre as equipes do
CAPS e do Prontomente era veemente, produzindo um distanciamento ainda maior do
que aquele proposto somente pela clínica diferenciada:
O embate com o Prontomente foi muito ruim, na época da implantação do
CAPS, a gente rompeu, nós não nos frequentamos e o que ficou foi uma rixa,
ficou parecendo que o CAPS queria usurpar o direito deles. E ao contrário a
gente queria parceria, a gente sabe que às vezes a gente precisa do hospital
psiquiátrico. E1
Tivemos embates com diretor de hospital, do único hospital psiquiátrico
daqui de Montes Claros, isso lhes incomodou profundamente [...] E3
A situação de atrito entre o hospital e o CAPS se acirra quando o serviço
substitutivo assume o controle pelas vagas de internação, pois ele se torna efetivamente
e com respaldo legal, a porta de entrada na saúde mental:
E aí tiraram as AIH (Autorização de Internação Hospitalar) do hospital e nós
ficamos com as AIH e aí foi outro conflito, que de certo modo existe até
hoje, eles falavam “como que um profissional não médico vai decidir ou não
para o internamento?”. E na época nós ficamos preocupados com os
respectivos Conselhos das profissões, né? No começo, nós tivemos esse
141
receio, mas (nome da coordenadora da Saúde Mental no município na época)
ela bancou isso com uma finesse incrível e até hoje nós encaminhamos para
a internação e foi outro embate, os médicos caíram de cima da gente. Eu
estava nos dois pólos, eu estava no Prontomente e estava aqui, mas eu
conseguia ver claramente as duas realidades, eu vivia em conflito, o que que
eu ia fazer, sabe? Por várias vezes meu chefe (do Prontomente) chegava e
falava assim: “eu quero que você interne fulano. Faça o favor de fazer o
encaminhamento, aí.” E eu podia negar e podia não negar, o poder estava
comigo e eu via coisas assombrosas no Prontomente, sabe? E tudo o que a
gente estava lutando contra, o que a gente queria destruir, a gente queria um
serviço que tivesse suavidade, ouvir os familiares, ouvir as pessoas, trabalhar
com as famílias, esse era o interesse do nosso trabalho. E1
Então, assim, para você ter uma ideia uma das brigas que tinha era que a lei
diz que a equipe técnica que está no acolhimento, pois os leitos saíram da
regulação e vieram para o CAPS, a porta de entrada era o CAPS, então a
gente regulava as AIH, então com isso houve um rombo, pois era uma AIH
altíssima, era caríssima a AIH de saúde mental para internação de transtorno
mental. Então, só aí, começa um embate, mexe com toda a estrutura que ela
já vinha há um século. O que aconteceu, a gente tinha um embate com estas
pessoas e elas questionavam que só quem podia saber se o paciente
precisava ir para o hospital ou não era o médico, não era coisa para
psicólogo, enfermeiro, assistente social e terapeuta ocupacional, não! Mas a
lei dizia que a equipe técnica era treinada para avaliar, naquela época não era
acolhimento externo, era triagem. Então, a gente fazia a triagem e aí estava o
grande lance, porque a gente entrava muito mais capacitado, com técnica
muito mais apropriada, então a gente não mandava internar mulher que
brigou o marido, não. E2
Esses relatos traduzem o quanto o discurso de verdade da medicina perdura em
nossa sociedade como no início de sua elaboração no século XVIII. Foucault (2008)
explica que a medicina na sociedade funciona como uma prática individual face a face,
de diálogo médico-doença e protegidos por segredo. Uma das grandes funções da
medicina na sociedade é a de manter, reconduzir e dar suporte a todas as diferenças,
todas as segregações, todas as exclusões que podem existir.
Portanto, numa análise direta dos discursos dos sujeitos de pesquisa, não caberia
ao não médico definir alguma coisa, mas sim seguir a ordem hierárquica natural do
poder-saber, na perspectiva da relação de poder entre aquele que sabe e aquele que não
sabe instituído pela medicina.
Após o século XVIII é função da medicina psíquica, psiquiatria, psicopatologia,
neurologia tomar, por exemplo, as rédeas da religião e transformar o pecado em doença.
Manter os tabus da moral. Quando alguma moral é atacada a medicina se coloca na
linha de frente para contra ofensiva, a medicina age como uma guardiã da moral.
142
Definir o que é normal ou não, o que é lícito ou ilícito, o que é crime ou não, o que é
charlatanismo e prática perniciosa, trata-se de uma ação judiciária a ser exercida pela
medicina (FOUCAULT, 2008).
A ordem disciplinar cura e, ao mesmo tempo, reproduz o poder do médico. Os
requisitos disciplinares vieram antes da construção de um saber médico, o qual se vale
do poder assimétrico e ilimitado do psiquiatra. Este deve impor-se como personagem
central e superior de uma hierarquia que vai do médico ao serviçal, a quem cabe a lida
diária com os doentes. Os serviçais devem fingir que aceitam o jogo da loucura e
fornecer relatórios aos serviçais que fazem a vigilância e aos médicos. Nesses lugares e
através dessas práticas, o louco é dobrado e submetido ao poder psiquiátrico
(FOUCAULT, 2008).
O indivíduo foi efetivamente construído por meio de tecnologias de poder e de
registros de saber. Considerando que o CAPS é um “novo” registro de saber, quando E1
cita o poder como alguma coisa que ela detém e que faz o uso dele como quiser na
perspectiva da internação de um paciente no hospital psiquiátrico, seria um novo modo
de estratégia de poder ou uma continuação do poder psiquiátrico?
Antes, faz-se necessário relembrar a premissa foucaultiana de que o poder médico,
claro, não é o único poder que se exerce; porque, no asilo como em toda a parte, o poder
nunca é aquilo que alguém detém, tampouco é o que emana de alguém. O poder não
pertence nem a alguém nem, aliás, a um grupo; só há poder porque há dispersão,
intermediações, redes, apoios recíprocos, diferenças de potencial, defasagens. É nesse
sistema de diferenças, que é preciso analisar, que o poder pode se pôr em
funcionamento (FOUCAULT, 2004).
A luta pela captura do louco e por domar sua loucura parece indicar a manutenção
do poder psiquiátrico e ter se tornado algo importante em Montes Claros, a proposta de
não encerramento do louco no hospital pode ser substituída pela noção de
acompanhamento de perto pela equipe do serviço substitutivo, utilizando de
mecanismos da “velha” prática psiquiátrica, como o interrogatório e a medicação, por
exemplo, além da possibilidade real de encaminhar o paciente ao hospital psiquiátrico
quando considerar necessário.
143
Outra questão relacionada à regulação das AIH pela equipe do CAPS é a
dificuldade do serviço substitutivo em romper com lógica de encaminhamento para o
hospital psiquiátrico. Os relatos abaixo falam sobre esses encaminhamentos:
A gente colocava lá dentro aqueles pacientes que a gente via que já foram
tentadas as possibilidades e alternativas aqui dentro do CAPS [...] Não gosto
de dizer que não tem que ter hospital, não deve ser assim, não. Ele é
necessário sim, tem momentos que a gente não dá conta. Claro que com um
CAPS III27 isso aí iria mudar muito, mas a gente não prescinde do hospital,
porque a gente não tem um CAPS III. E2
De uma certa forma encaminhar para o hospital psiquiátrico é incoerente,
mas é que a gente precisa, tem hora que não tem como não encaminhar para
internação. E o hospital que a gente tem psiquiátrico é o Prontomente, além
dele a gente tem alguns leitos, que são 12 leitos no Hospital Universitário
(HU), que é um hospital geral, onde eles não recebem pacientes agitados,
porque o paciente que fica andando de um lado para o outro, tirando o soro
dos outros, então para encaminhar para o HU a gente tem que fazer uma
seleção, o paciente quase estável. Vai, geralmente, para lá paciente de álcool
e drogas, que dá para aguentar, os outros pacientes agitados, que realmente
precisaria de um lugar, nesse caso substituindo o hospital psiquiátrico, teria
de vir para o CAPS III, para ocupar esse espaço, que a gente garantia,
Montes Claros seguraria os nossos pacientes, né? [...] Não foi acostumar não
e nem acomodar, foi falta de opção mesmo. E3
Wetzel et al. (2011) declaram que essa questão é séria quando se defende que,
como prioridade, os CAPS deveriam atender usuários com transtornos severos. Corre-se
o risco de os CAPS assumirem o papel intermediário entre o hospital psiquiátrico e a
comunidade, antes ocupado pelos ambulatórios de psiquiatria. Na evidência de sinais e
sintomas agudos da loucura, os usuários são encaminhados para o hospital psiquiátrico.
Essa prática é perigosa, no momento em que se reproduz o paradigma biomédico
(centrado no hospital e no médico psiquiatra), o que fortalece a ideia de que o hospital
psiquiátrico seria o único local para a intervenção sobre a loucura.
Os discursos analisados apontam para o CAPS como sendo esse local de
intermediação da internação e identificando-o como porta de entrada do serviço de
saúde mental para todas as ações relacionadas ao louco, tais como: acolher, avaliar,
interrogar, ouvir a família, restituir a cidadania, devolver a dignidade e se necessário
27
O CAPS III pode ser implantado em municípios com população acima de 200.000 habitantes. Funciona
24 horas, diariamente, também nos feriados e finais de semana (BRASIL, 2004).
144
encaminhar ao hospital psiquiátrico, tudo isso seguindo os preceitos da humanização.
Essas são algumas das ações do serviço apresentados nesta investigação por meio das
fontes, o que instiga a uma reflexão a respeito do CAPS como uma instituição
centralizadora de ações no concernente ao louco.
Compartilhar os cuidados com o louco com outras instituições por meio da
intersetorialidade surge como importante revitalizador do trabalho da saúde mental,
conforme sugere Yasui (2006). O autor acredita que o envolvimento de outros setores
reveste-se de especial importância e de argumento fundamental para se pensar o CAPS
como estratégia e não como um serviço isolado.
Atribuir a responsabilidade da organização da rede de cuidados não significa dizer
que a totalidade das tarefas deva ser executada pelo serviço. A organização de um
CAPS que assume isoladamente a responsabilidade de “dar conta” de toda a demanda e
toda a complexidade da vida do sujeito é muito semelhante à proposta pretensiosa e
autoritária do Hospital Psiquiátrico. Um CAPS, assim, transforma-se em mais uma
instituição total. O processo de organização do trabalho deve seguir a lógica do
território, entendido aqui, também, como o desafio da intersetorialidade, que pode ser
considerado como uma espécie de vacina contra a tendência onipotente dos serviços que
querem cercar a vida do usuário de todos os lados, tornando-o um usuário-dependente
de CAPS (YASUI, 2006).
As falas dos entrevistados trazem um alerta sobre a possibilidade da
transformação do serviço substitutivo em “minimacômios”:
E aí a gente tem que pensar se a gente não está formando minimanicômios
com pacientes que nós cronificamos, com o intuito de não segregar, mas
com o intuito de acolher, mas eu acho que isso não é benéfico, para alguns
pacientes eu acho que o CAPS foi ruim. Engraçado a gente tem uma
paciente anti-CAPS, ela é da época de 1996 (quando ainda era uma
ambulatório de saúde mental), não conseguimos desvincular essa paciente do
serviço, ela vem e volta, vem e volta, ela queixava o tempo todo “aí que eu
não dou conta, minha família não sei o que”, aí ela vinha todo dia e ficava
até a hora do almoço, não almoçava, olha como a gente trabalha mal! Levava
a comida dela para comer em casa. Aí em junho ela foi atropelada e quebrou
a perna e a bacia, aí ela não podia vir ao CAPS, então fui visitá-la, como
você acha que eu e encontrei? Ótima! Tirando o problema da perna e da
bacia, mas a questão psíquica estava ótima. Cheguei aqui e comentei com a
equipe: CAPS faz mal também! Tem um mês e meio que ela não vem aqui,
nós estamos dispensando a medicação para ela tomar em casa, está tomando
de modo irregular, a filha diz que ela toma do jeito que ela quer e como é
bipolar, você sabe como é bipolar, né? Ela está ótima, por isso que é a
145
clínica do um a um respeitando a singularidade de cada um. A gente quer
abraçar todo mundo e às vezes a gente acha que está fazendo o bem, mas não
está. E1
Quando a gente ouve outras instâncias eu fico vendo que o discurso parece
que eles são dispersos com relação à saúde mental, por mais que a gente
saiba que existe o PSF (Programa Saúde da Família), que tem um
profissional de saúde mental em todos os Centros de Saúde, eu acho que não
há que funcione. E não sei se há uma rede que funcione. E não sei se isso só
acontece em Montes Claros ou se é um dado talvez estadual ou nacional, não
sei, mas essa rede é muito frágil, essa fragilidade não permite que nós que
estamos aqui no CAPS, não tem como, bem grosseiramente falando, para
que a gente possa confiar para entregar nossos meninos daqui. Então, a gente
segura o paciente aqui por muito tempo por receio de como ele será
acompanhado pela rede, é errado, como é trabalhoso colocar a família,
sociedade aceitando aquela pessoa, a gente fica com medo de desestabilizar
ele, a gente pode pensar que isso é um erro, um equívoco, mas é um
equívoco focado num certo zelo e aí a gente esbarra no nosso desejo de ter a
pessoa bem tratada. Aqui do jeito que a gente pode a gente está vendo, a
gente está olhando [...] A ideia que a gente tem é que aqui ele está mais perto
para gente amparar alguma coisa, quer dizer zelo pela medicação, pelo fazer,
a gente aqui está vendo, é paternalista, é, me incomoda muito, mas eu tenho
dificuldade dessa coisa da rede, o paciente pode ficar solto e paciente de
saúde mental não pode ficar solto [...] E2
Os entrevistados reagem como os sujeitos de pesquisa do estudo de Pande;
Amarante (2011), intitulado Desafios para os Centros de Atenção Psicossocial como
serviços substitutivos: a nova cronicidade em questão. Nas quais, acreditam que o
CAPS pode produzir uma nova cronicidade, ainda que comporte características distintas
dos pacientes institucionalizados dos hospícios. Entendem que a maior diferença são os
ideais de cuidado, que, longe das práticas cruéis dos manicômios, conservam os
usuários no serviço para protegê-los. Reconhecem uma crítica social ao potencial
cronificador do CAPS, reagindo com um misto de concordância e desagrado, uma vez
que pontuam a qualidade do serviço e a intenção em oferecer atenção e cuidado
(PANDE; AMARANTE, 2011).
Tal situação pode ser explicada pela mudança da atenção à saúde mental, em que
a cura foi substituída pelo cuidado e a equipe assume para si o objetivo de aumentar a
autonomia do louco, incluindo-o na sociedade, como cidadão. Mas, a exacerbação da
noção de cuidado infantiliza o louco, o faz criança sob a percepção da equipe, como a
denominação de paciente para E2: “nossos meninos”.
Yasui (2006, p. 135) alega ter ouvido, certa vez, um usuário afirmar irritado, a
respeito de um CAPS que ele frequentava: “Isto aqui parece uma creche para doido!”
146
Sobre esse tema Foucault (2010) afirma que a loucura encontra-se inserida no sistema
de valores e das repressões morais. Ela está encerrada num sistema punitivo onde o
louco, minorizado, encontra-se incontestavelmente aparentado com a criança, e onde a
loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro.
O desencontro que ocorre nesta reprodução de condutas submete o usuário e o
trabalhador a um lugar de sujeição, de produção de subjetividades enquadradas,
conformadas e bem-comportadas. Produção de afetos tristes. Renúncia à potencialidade
criativa, ao desejo, à autonomia. Não há CAPS aqui, apenas mais um serviço de saúde
mental organizado segundo a mesma lógica hegemônica (YASUI, 2006).
Ainda que tocados pelos ideais da reforma psiquiátrica, as equipes dos serviços de
saúde mental podem reproduzir a institucionalização e afirmar a instituição total, de
modo que os desejos de manicômio atravessem o tecido social e estão presentes no
cotidiano das práticas no campo da saúde mental (PANDE; AMARANTE, 2011).
Inegavelmente, a reabilitação psicossocial pode possibilitar transformações na
vida dos sujeitos em sofrimento psíquico. A questão que se apresenta é que as práticas
reabilitadoras podem ser tão violentas quanto o antigo hospício. Castel (1978) mostra
que nos manicômios prevalecia a violência física, porém, o que se pode ter atualmente é
um outro tipo de violência: a simbólica. Ela pode aprisionar o indivíduo, mantendo o
seu status quo, reforçando o caráter excludente do tratamento. Isto pode estar presente
através de um preceito técnico, calcado no simples treinamento dos pacientes para as
atividades da vida diária (PINTO; FERREIRA, 2010).
O CAPS começou suas atividades em Montes Claros com a convicção de que era
realmente necessário um dispositivo de enfrentamento ao hospital psiquiátrico. As
fontes evidenciaram que o cotidiano da equipe se baseava em implementar as premissas
da atenção psicossocial, com a defesa de uma “nova liberdade” ao louco, que tenha
como produtos a dignidade e a cidadania.
Todavia, a internação aparece na pesquisa como uma reivindicação, pois há nela
um sentido que vai além da terapêutica e alcança a noção de status, daquilo que é
próprio do louco. Essa situação afetou a equipe, que tentou reverter a situação na
perspectiva da família, mas enquanto “supervisores” da loucura continuaram a internar
os loucos, quando consideravam necessário, bem como procediam com a execução de
ações de controle do paciente, que ainda promoviam o cerceamento da subjetividade do
147
louco, se solidificando como um dos exemplos de continuidade do poder psiquiátrico.
Portanto, as fontes demonstram que o CAPS não se transformou em um dispositivo
efetivo em desconstruir as relações manicomiais, culminando com uma sobreposição
entre permanências e rupturas.
Diante de suas “glórias” e desafios a equipe do CAPS se percebe ao longo do
tempo perdendo a sua força de construção e sua atitude de “luta” na ruptura com o
contexto social e cultural estruturado em torno do modelo hegemônico de atenção ao
louco que existia em Montes Claros. A noção de ruptura invocada pelos sujeitos de
pesquisa, o sentimento de apatia, os rumos do movimento da Reforma Psiquiátrica no
município são assuntos que serão tratados na análise a seguir.
4.3 O CAPS: um dispositivo sem voz...
“E fico achando que a saúde mental é minha cachaça, o que me atrai tanto nesta
clínica de dejetos?” Essa pergunta, que expressa um desconforto enigmático de E1, abre
o caminho para discussão desta parte da pesquisa, cujo cerne enfoca a estagnação das
ações do CAPS e o receio da equipe quanto à possibilidade de desconstrução do que foi
idealizado e implementado com relação às mudanças concernentes ao louco em Montes
Claros.
Abordamos neste quarto capítulo o quanto o CAPS é considerado pelos sujeitos
de pesquisa o representante da ruptura do cuidado com o louco no município, como ele
se constituiu numa instituição capaz de colaborar efetivamente para uma revisão da
noção de loucura no contexto social e, claro, a sua proposta de intervenção terapêutica
calcada pela atenção psicossocial.
A partir dessa percepção dos entrevistados foi possível uma análise a respeito do
serviço substitutivo, como mais um dispositivo de controle, que perpetua a ideia de
status do louco, garantindo um lugar próprio para ele. O CAPS, nesse sentido, indica
ainda não ter encontrado um lugar em terra para atracar em segurança com suas
diretrizes, pois ainda não dá conta de se desvencilhar das premissas manicomiais, que
continua a reproduzir, mas agora a céu aberto.
148
Como algo “novo” e provocador de tensões, as premissas do CAPS, instigaram a
equipe a desconstruir a noção de indivíduo objetivado pelo modelo clássico da
psiquiatria asilar através de suas práticas “humanizadoras”. Todavia, Montes Claros
parece não ter oferecido subsídios para a manutenção das ações ousadas do início da
criação do dispositivo institucional. Por isso, os entrevistados demonstram orgulho do
passado e comparam o serviço substitutivo à cachaça, que vicia, que dá gratificação
imediata e traz lembranças, que são narradas com uma tristeza nostálgica, típica dos
alcoolistas.
Pitta (2011, p. 4580), por sua vez, acredita que a estabilização da Reforma
Psiquiátrica é um fenômeno nacional e questiona: “Após anos de resistência cívica e
vitórias acumuladas estaria a Reforma Psiquiátrica Brasileira dando sinais de exaustão?”
A autora declara que foram décadas de crescimento de um movimento social desigual,
constante e jamais visto no Brasil e no mundo em torno da luta por direitos
fundamentais “dos loucos de todo o gênero”.
Nessa última década muitas de suas bandeiras de luta se tornaram realidade no
país. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT), o Auxílio de Reabilitação Psicossocial “De volta pra casa”,
expandiram, significativamente, a possibilidade de desinstitucionalização responsável
de pessoas submetidas a longos períodos de internações psiquiátricas, ao tempo que se
assistiu a uma redução expressiva de leitos em hospitais psiquiátricos, particularmente
nos estados do sudeste e nordeste brasileiro. Paralelamente se solidifica um modelo de
atenção psiquiátrico baseado na comunidade e não centrado no hospital como a escolha
da política pública de saúde mental no país (PITTA, 2011).
O registro abaixo é de E2, que ratifica que o CAPS de Montes Claros fez a
diferença, mudou o paradigma, provocou uma ruptura com relação ao louco e a loucura,
tudo isso no início de seu funcionamento:
Então, quer dizer as coisas caminharam muito, a gente tinha pacientes que
moravam dentro do hospital, a gente tinha famílias que entendiam como
forma de tratamento a internação, e vai ter isso ainda por muito tempo, até
que a gente possa criar um serviço que faça a diferença, o que aconteceu no
início. A gente mostrou que tinha um serviço que fazia a diferença, por isso
é que começou a ser aceito e tinha a coordenação por trás, então ou aceitava
ou não tinha jeito, não tinha mais internação como era na grande maioria das
149
vezes. Então, eu acho que houve uma ruptura, uma mudança de paradigma,
isso com certeza. E2
Há nesse trecho um assunto muito interessante para o debate que se instaura a
partir do objetivo desta pesquisa: a questão da ruptura. Afinal, como se deu uma ruptura
com a implantação do CAPS na medida em que se observa, segundo a análise deste
estudo, a permanência de preceitos manicomiais?
O termo ruptura é um daqueles que se podem aplicar em zonas muito diferentes e
variadas. Assim, fala-se da ruptura de uma artéria, da ruptura de um eixo, da ruptura de
um equilíbrio, da ruptura de um tom, da ruptura de um casamento, da ruptura de um
contrato, etc. Contudo, independentemente do plano em que se coloca, o sentido, afora
umas certas nuances, permanece em si mesmo como que inalterável. Quer dizer que, em
qualquer destes casos, e muitos outros poderiam ser citados, o conteúdo que se quer
exprimir lógica e linguisticamente tem que ver com uma ideia-sentido que lhes é
comum. De tal modo que, quando é utilizada a palavra ruptura, pretende-se transmitir
uma ideia que, tocando a de superação, mutação, descontinuidade, revolução, corte,
tem, no entanto, uma especificidade peculiar (JANEIRA, 1972).
Os períodos de transição ajudam a clarificar a interdependência estabelecida entre
ruptura e permanência. Em tais períodos, é experimentada a sensação de viver em dois
mundos simultâneos. Trata-se da transição entre o que já foi e o que ainda não é. Aquilo
que se encontra em processo de superação, se opõe e resiste ao novo que se anuncia. Ao
mesmo tempo, é a partir das “velhas” práticas com o louco que são engendradas as
condições necessárias para a sua superação. Na superação, por sua vez, o que é
superado não é eliminado de uma vez por todas, mas conservado no processo de
transformação. Por isso é tão difícil assinalar sobre um eixo cronológico a data precisa
em que se processou uma determinada ruptura (DUARTE, 2006).
Janeira (1972) adverte que embora toda a ruptura seja de certo modo uma
superação, nem toda superação pode ou deve ser tida como uma ruptura. Na verdade,
superar contém, ainda que de modo leve, uma conotação de permanência do que se
ultrapassa: superar é não só, mas também conter.
Portanto, o CAPS em Montes Claros tem como pano de fundo o hospital
psiquiátrico e toda a construção social e cultural que se estruturou a sua volta,
construção essa que se solidificou ao longo do tempo. Neste caso, o processo de ruptura
150
imprime uma ideia-sentido de descontinuidade, que por sua vez está ligada a uma
realidade menos irruptiva e menos articulada à intervenção de um poder fraturante,
trata-se de uma ação mais suavizada de alcance da ruptura (JANEIRA, 1972).
E2, a entrevistada citada logo acima, que destaca a certeza da ruptura com a
assistência ao louco em Montes Claros, explica a seguir como a Reforma Psiquiátrica é
um processo, que apresenta ao longo de seu percurso elementos que permitiram uma
“descaracterização da história” da saúde mental no município:
A gente foi referência para o norte de Minas, inclusive no estado, porque
Montes Claros é pioneiro numa série de questões da saúde mental, numa
série de questões. Então eu fico pensando que eu acho que faltou muitos
elementos para que a gente pudesse pensar assim: não a Reforma aconteceu.
Nós estamos conseguindo descaracterizar uma história de assistência em
saúde mental e construindo outra, embora tenha méritos, eu acho que tem
algumas coisas que a gente não conseguiu avançar. É tanto que a gente entra
em pânico quando fala que não vamos ter Prontomente por um tempo,
porque a gente não tem uma permanência noturna, que a gente sabe que tem
pacientes que não adiantam ir para casa, porque a família não dá conta, a
sociedade não dá conta. Então tem que ter um lugar pelo menos para que a
gente possa fazer um tratamento mais efetivo seja medicamentoso seja o que
for, uma contenção mesmo. E um CAPS III, eu acho que seria muito salutar
para essa questão, sabe? E2
As novas propostas advindas do serviço substitutivo e de seus preceitos
antimanicomiais, as conquistas alcançadas pelo próprio movimento reformista vão
acrescentando a demandas já tão complexas que existiam, e isso retrata, exatamente, a
sobreposição entre a permanência e a ruptura.
O fato do CAPS não ter se tornado a instituição responsável pela efetiva
desconstrução dos preceitos da psiquiatria tradicional, tendo que conviver com ela, pode
ter colaborado para o sentimento de “tempo bom aquele que passou” da “luta”
empreendida no começo da Reforma Psiquiátrica em Montes Claros. Os relatos a seguir
demonstram um certo saudosismo dos entrevistados com relação aos feitos da equipe do
CAPS no seu início e já indicam as angústias referentes à “estabilização” das ações:
Eu acho que nós tivemos um momento áureo, de construções lindas, todo
mundo engajado, todo mundo falando a mesma linguagem, com apoio, com
respaldo, eu acho que nós fomos realmente felizes, as coisas começaram a
ser construídas aqui [...] Eu acho que nós construímos tanto e que hoje
estamos um pouco sem gás, mas a gente não pode perder essa vontade de
151
continuar na luta. E fico achando que a saúde mental é minha cachaça, eu
tenho dificuldade em dar um tempo [...] E1
O CAPS era soberano às suas decisões e tinha respaldo para exercer uma
clínica do possível, então eu acho que isso nos levou para um lugar muito
legal, que de repente sumiu! [...] Então, assim, a Reforma teve uma impulsão
muito grande no início, como realmente foi e que depois isso tudo se
estabilizou [...] E2
Eu penso hoje que valeu a pena, sabe? Eu acredito que hoje a gente deu uma
parada, parece que esfriou um pouco o movimento, não sei se é esfriar ou se
a gente ficou um pouco desmotivado, mas a gente vê coisas muito boas que
aconteceram ao longo desse tempo, a gente conseguiu ver pacientes que
eram moradores do hospital, hoje eles tem suas residências [...] Hoje Montes
Claros está passando por um momento de parada mesmo, talvez fosse
importante a gente pensar nisso, o que é que acontece? O que tem acontecido
que começou a cair numa certa desmotivação em relação ao serviço? Não sei
se cansaço dos profissionais, geralmente, são os mesmos, a gente hoje no
CAPS da turma que começou comigo, só tem mais duas. Somos duas
psicólogas e uma assistente social de 96 para cá. E3
Após o período caracterizado como produtivo, os entrevistados afirmam que o
CAPS “parou”, “estabilizou” as ações e atitudes que eram rotina no seu início. As
queixas que surgiram nas falas dos sujeitos de pesquisa são, especialmente, a falta de
apoio da coordenação de saúde mental; a constituição da “nova” equipe de profissionais
do serviço, que não possuem qualificação e engajamento para continuar a “luta”; a
estrutura física da instituição, dentre outras. Os trechos a seguir corroboram com essa
descrição:
Quando o CAPS começou as pessoas eram selecionadas, entrevistadas [...]
Então, a gente recebe colega que é como se estivesse vindo pagar uma
penitência, as pessoas não estão vindo por escolha, eu acho que saúde mental
é uma coisa tão particular, que você tem que gostar, porque ficar aqui dentro
é difícil, você não sabe o que te espera, quantas vezes eu já apanhei aqui,
levei tapa na cara, puxão de cabelo, empurrão, isso faz parte do nosso
trabalho, não que eu goste, mas é um risco que a gente corre. Agora eu acho
que essas pessoas vieram porque não tinham outra opção [...] Quando vão
ser feitas as comemorações ou você banca do seu bolso ou não faz, a gente
tem uma prática de comemorar festa junina, natal, mas tinha um respaldo,
hoje a gente não tem nada, se a gente quiser fazer, agente faz, a gente banca
e a gente cansa. Eu tenho que sair, mas é aí que eu volto na clínica dos
dejetos, por mais que eu critique, porque eu estou começando a me
movimentar agora, porque eu passei uma fase só na queixação e a queixa ao
invés de mobilizar para caminhar, ela não faz isso [...] E1
152
Então a gente vê que as coisas pararam, olha o nosso espaço físico, não tem
pintura, para limpar é uma coisa, então assim, já veio gestor aqui e já viu
isso. Já fez até comentário: “eu não sei como os meus colegas trabalham
nessas condições”, isso foi dito aqui para vários profissionais que estavam
no momento e a í a gente vê que tem alguma coisa aí que não está andando.
E aí começa a gerar aquela angústia no profissional, será que eu tinha que
está com o mesmo gás lá de trás e fica esse dilema, a gente sozinho não
consegue não, por vontade, por desejo, não consegue. Desejo é para estar
aqui, mas para mudar determinadas coisas, só esta transferência com a saúde
mental não é possível, vai minando, você vai a um lugar conseguir alguma
coisa, aí não, às vezes tem umas medidas, que você pergunta: para que serve
esse tipo de medida? Para nada, não está nem sabendo para que serve, então
isso tudo eu acho que vai minando, mas a gente continua firma e forte,
querendo e esperando [...] E a coordenação nos empoderava, dava até
palanque para gente falar, foi um momento de muito embate com todas essas
instâncias, mas foi um momento que a gente pode lutar, sustentar uma ética,
um desejo, foi muito satisfatório, o saudosismo acho que vem daí, sabe? [...]
Então, no início a gente tinha o poder público, tinha uma coordenação de
saúde mental no município de Montes Claros que nos respaldava em todos
os aspectos, quer dizer assim: “Lute mesmo, porque vale a pena!” Então,
tudo isso fez aquele profissional que estava aqui naquele momento guerreiro
mesmo [...] A gente fica saudosista dessa época, a gente não tinha hora, não
tinha hora para reunião, tinha um desejo de enfrentamento, porque a gente
acredita, não só acreditava, que é melhor aqui. E2
Dentre muitas coisas interessantes e acertos que os trabalhadores realizaram,
Merhy (2007) percebe muitas dificuldades que eles têm para entenderem e resolverem
várias questões que estão envolvidas no seu exigente cotidiano, no qual se cruzam
distintas e importantes intencionalidades. Entre elas: de um lado, a existência de um
cotidiano fortemente habitado por intensas demandas de cuidado, que usuários, muito
múltiplos e, facilmente, em estados de crises, têm sobre a equipe; e, do outro, pela
presença marcante de um imaginário do trabalhador, de que o seu agir clínico é
suficientemente ampliado e a sua rede de relações intra e intersetorial, para além da
clínica, é suficientemente inclusiva, que com os seus fazeres, o louco não vai ficar nem
mais enlouquecido e nem excluído.
Caminhar nestas linhas tem colocado, sobre o ombro dos trabalhadores, “pesos”
importantes para o seu agir e que geram práticas árduas, que os fazem experimentar, o
tempo todo, sensações tensas e polares, como as de potência e impotência, construindo
no coletivo de trabalhadores situações bem paradoxais, nas quais cobram de si e do
conjunto posicionamentos profissionais e estados de ânimos muito difíceis de serem
153
mantidos, durante todo o tempo do trabalho; particularmente, para aqueles que ofertam
seu trabalho vivo para vivificar o sentido da vida no outro (MERHY, 2007).
O CAPS como dispositivo para proteção da vida surge como mais uma faceta do
serviço substitutivo, que de certo modo, se atrela a noção de instituição de controle e
constitui toda uma rede de atenção à saúde de modo normatizado, com legislação
própria. O CAPS deixa de ser reivindicação de “militância” e passa a integrar o
conjunto de instituições médicas com intuito de proteger a vida dos indivíduos.
Como analisamos no terceiro capítulo desta investigação, a Reforma Psiquiátrica
se respaldou em princípios de militância, como uma “luta” realmente motivada pelo
horror das intervenções manicomiais com o louco. Bem, não que esse terror não exista
mais, mas o contexto é outro, a noção de segregação mudou, o ECT foi regulado, o
psiquiatra teve que se haver com a equipe multiprofissional, a sociedade teve que
repensar, ainda que sem muitos efeitos, a ideia de louco como personagem que
personifica a loucura. Por conseguinte, a “luta” agora é por quê? E para quem? A
instituição legitimada pelo Estado, a partir das reivindicações da Reforma Psiquiátrica
passou a existir, era o CAPS, continuar “brigando” pelo o quê?
Nesse aspecto, Alarcon (2005) explica que a Reforma Psiquiátrica, uma vez
vitoriosa em sua luta contra a dominação política e na crítica contra as pretensões
epistemológicas do discurso psiquiátrico, começa a dar sinais de fastio, a querer se
acomodar na suavidade de suas certezas.
Para os entrevistados há um incômodo com essa situação de falta de movimento, o
que sob a percepção deles pode indicar uma desconstrução e um receio do retorno ao
que era antes de suas conquistas:
O que me deixa entristecida é que10 anos depois da criação do CAPS o tanto
que a gente está retrocedendo isso me deixa extremamente triste, o tanto que
a gente fez e está deixando perder, a impressão que eu tenho é que vai, vai,
vai e esbarra em tanta dificuldade, isso me desmotiva [...] Então, eu acho que
a gente teve uma ascensão e agora a gente está em um declínio, eu acho que
está havendo uma desconstrução, eu fico triste não é possível que esteja
repetindo! E1
Se a gente pensar hoje, muita coisa ficou para trás, eu acho que a coisa tinha
que ter avançado, ter sido mais bem conduzido, para que a gente pudesse
continuar lutando pelas mesmas coisas e por outras. Agora você precisa de
alguma coisa e a resposta é: não pode ter e não tem ninguém para lutar [...]
154
Eu acho que houve a desconstrução de alguma coisa, que foi muito caro,
difícil de conseguir e que de repente (silêncio) E2
E3 discorda que a desconstrução já exista, mas defende que ela esteja em curso
para acontecer de fato:
Eu penso que se a gente não tomar cuidado vai acontecer a desconstrução
mesmo, até agora as coisas estão paradas, o fato de estar parado e a gente
estar acostumado numa dinâmica muito grande nos angustia muito.
Desconstrução assim literalmente, não penso, não vou ser tão radical assim
não, mas se a gente não tomar cuidado está caminhando para isso, isso é
muito triste (choro). A gente pensar assim que alguma coisa que foi criado,
não foi da nossa cabeça, houve alguém que pensou e veio e colocou uma
proposta, a gente acreditou nisso, acreditou que era viável o
acompanhamento do portador de sofrimento mental, fora do hospital, do
modelo asilar, que a gente sabe do tanto mal que faz e é muito triste a gente
pensar nessa possibilidade e retomar tudo, quando vejo acontecendo muitas
internações então eu fico pensando o que está acontecendo? E3
As questões políticas do município são citadas como principais fatores
intervenientes na não manutenção da “luta” pelo cuidado com o louco em Montes
Claros:
Nós ficamos reféns das questões políticas, essa administração não se
preocupou com a saúde mental, a gente não tem voz nenhuma. E1
Isso reflete a questão política, mas falta uma série de coisas,
responsabilidade política, a equipe é boa, muito boa [...] A vontade política,
nada funciona sem ela, se não tiver uma sensibilidade para algumas causas,
as coisas empacam. E a gente precisa muito de uma coordenação de saúde
mental que possa estar dando sustentação para que as coisas funcionem,
aquele poder de convencimento sabe? Eu estou falando como quem está cá
embaixo. Quando você está lá em cima é que você vai saber que as coisas
não são assim dessa maneira, mas as coisas já foram mais possíveis. Eu acho
que talvez o poder de convencimento, uma forma, eu não sei te explicar, mas
eu acho que isso deu uma retrocedida [...] E2
As influências que ajudaram para essa situação não sei se é a política, a
questão política pode ter interferido, existe alguma coisa aí, os nossos
profissionais estão aqui, mas eles não estão envolvidos como estávamos lá
atrás, como te disse para ir para debaixo de uma tenda, eu acho que hoje se
fosse preciso isso, ninguém ia não, ninguém ia não [...] Basicamente isso, eu
permaneço aqui com a função de psicóloga, muda a política, muda tudo, mas
isso não tem problema estou aqui porque acredito neste serviço, vale a pena
cuidar destas pessoas, porque há muito tempo, eu escutei isso e é encontrar
uma flor no lixo. É encontrar uma flor no lixo. E3
155
Esses depoimentos levam a uma reflexão de como a Reforma Psiquiátrica perdeu
o sentido, o significado de movimento e se transformou em política pública de atenção
ao louco. Desse modo, os atores que figuravam em uma “luta” contra um adversário
particular, o manicômio e seus “mantenedores”, perderam terreno, não há mais o que
combater, afinal, tudo aquilo que os reformistas defendiam se transformaram em leis ou
em preceitos do governo do Estado.
De acordo com Luzio; Yasui (2010), a institucionalização da Reforma
Psiquiátrica transformou o Ministério da Saúde em seu principal ator e indutor-chefe
dos ritmos e dos rumos do processo. Parece não haver mais espaço para experiências
que não sigam os parâmetros estabelecidos nas portarias, que, ironicamente, têm como
inspiração as experiências do CAPS e dos NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial)28,
as quais trazem a marca da invenção e da criação que se construíram e obtiveram seu
reconhecimento antes dessas regulações.
Por exemplo, se a Portaria 224/92 incentivou a criação de diversas unidades
assistenciais espalhadas pelo país - muitas com o nome de NAPS ou de CAPS - que
acabaram por se transformar em sinônimos de unidades assistenciais de vanguarda, a
Portaria 336/02, em função da mudança no financiamento, está contribuindo para a
ampliação do número de CAPS em um ritmo muito mais veloz. No período de 1992 a
2001 o número de serviços credenciados como NAPS/CAPS subiu de 22 para 295,
enquanto o número de CAPS credenciados até o ano de 2.006 atingiu a marca de 1.011
(LUZIO; YASUI, 2010).
Essa velocidade pode induzir a um perigoso e crucial equívoco: o CAPS ser
considerado e implantado como mais um serviço de saúde mental, isto é, uma unidade
isolada, em que se executam em nível ambulatorial ações próprias de profissionais
(LUZIO; YASUI, 2010).
E isso corrobora com a análise realizada no subcapítulo anterior com relação ao
CAPS centralizar as ações referentes ao louco, uma vez que as leis, bem como os
próprios profissionais, o tem transformado em um espaço isolado de atendimento e mais
um lugar de manutenção do status do louco.
Abaixo E1 descreve como se sente diante da “perda da autonomia” como
militante pelo louco e pela loucura:
28
Uma modalidade de serviço substitutivo.
156
Eu queria conseguir voltar a ter essa energia para eu não ficar tão saudosista,
a gente fica nos alimentado com o que passou. A gente no começo tinha
apoio, a gente era dono das coisas, a gente tinha muito mais respeito, eu acho
que de uns tempos para cá até isso se foi, a gente fica refém de outras coisas,
é nisso que eu fico pensando, eu converso até com o meu analista sobre isso,
eu queria sair desta apatia, mas não estou conseguindo, eu acho que eu estou
acomodando, por mais que a gente está estudando, a gente está procurando
aperfeiçoar, mas eu acho que está faltando autonomia é como a poesia:
"Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam nas flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada”
Você conhece essa poesia? Estou assim, quase deixando arrancar a voz da
minha garganta. E1
Diante disso, estaria o movimento da Reforma Psiquiátrica sendo fagocitado pela
força democratizante de gestões de Municípios, Estados e União? Esta pergunta é
respondida por Pitta (2011), que afirma que ao incorporar as clássicas bandeiras do
movimento da luta antimanicomial, como o fechamento dos manicômios e o aumento
da acessibilidade ao cuidado mental comunitário, os governos democráticos a teriam
esvaziado dos seus lemas mais mobilizadores.
Afinal, o cuidado com a vida do indivíduo se tornou dever do Estado ainda no
século XVIII. Foucault (2006c) explica que isso faz parte da tecnologia política dos
indivíduos, ele cita a obra System einer vollständigem medicinischen Polizey, "Sistema
de uma polícia médica geral", de 1779, do médico alemão Johann Peter Frank, pioneiro
da medicina social, como sendo o primeiro grande programa de saúde pública para o
Estado moderno. Frank, conforme Foucault (2006c), indica, com riqueza de detalhes, o
que uma administração deve fazer para garantir o abastecimento geral, uma moradia
decente, a saúde pública, sem esquecer as instituições médicas necessárias à boa saúde
da população, em suma, para proteger a vida dos indivíduos.
157
Entretanto, outro aspecto a se considerar seria se os militantes reformistas
estariam se consumindo em batalhas fratricidas, fragmentados em grupos e facções que
se anulam na ação política comum que deveria fazer avançar a Reforma, deixando frágil
o movimento que foi o motor de mudanças na legislação, nas políticas públicas, na
tentativa de enfrentamento do estigma da loucura na sociedade (PITTA, 2011).
Um dos maiores símbolos do movimento da Reforma Psiquiátrica é o 18 de maio,
o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Durante o II Congresso Nacional de
Trabalhadores de Saúde Mental, conhecido como Congresso de Bauru por ter sido
realizado naquela cidade do estado de São Paulo, em 1987, surgiu a idéia de instituir o
Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Originalmente, a comemoração foi prevista para
o dia 13 de maio devido à data de aprovação da Lei número 180 na Itália, que modificou
o paradigma de atenção à saúde mental naquele país, mas nesta data no Brasil se celebra
a Abolição da Escravatura, assim, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial passou a ser
festejado no dia 18 de maio. O movimento ampliou-se no sentido de ultrapassar sua
natureza exclusivamente técnico-científica, tornando-se movimento social pelas
transformações no campo da saúde mental (BOTTI; SANGIOVANNI, 2008).
A equipe do CAPS de Montes Claros ratifica seu desânimo ao declarar que não vê
motivos para celebração do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o 18 de maio:
A gente está deixando as coisas se perderem, olha o que aconteceu com o 18
de maio, esse ano a gente se negou a sair, mostrar o quê? Hoje sair na rua e
mostrar um serviço falido? Que é a situação hoje do nosso serviço, que está
se mantendo, que como eu te falei no um a um a gente está fazendo a
diferença, as coisas foram muitos melhores, hoje eu acho que a gente está
morto e a gente tem que sair deste lugar, continuar fazendo a diferença. E1
Hoje inclusive a gente saia às ruas no 18 de maio para fazer o portador de
sofrimento mental ter voz na sociedade, hoje você vê que as formas de
manifestação desta data são diferentes, eu mesma não me senti a vontade de
fazer isso este ano, como que eu vou sair para dizer abaixo hospital
psiquiátrico se eu estou precisando dele? Então, cadê a efetivação realmente
do serviço substitutivo da forma que ele tem que ser? E3
Os relatos acima demonstram em que medida a Reforma Psiquiátrica perdeu o
“fôlego”, deixou escapar a capacidade de revoltar-se, de provocar agitação; a queixação
surgiu como ato principal, como resultado da sujeição das ideias e proposições
158
reformistas às premissas daquele que é responsável por toda a população, pela vida dos
indivíduos: o Estado.
Vale à pena retomar o Congresso de Bauru e seu produto final, uma carta, na qual
ficaram claros os objetivos do começo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A Carta de
Bauru, primeiro manifesto oficial dos trabalhadores em saúde mental por uma sociedade
sem manicômios foi escrita em 1987 e trazemos aqui para auxiliar na análise dos
discursos dos sujeitos desta pesquisa. Visto que, as queixas dos entrevistados vão de
encontro às reivindicações expressas no manifesto, especialmente, quando “lutaram”
por uma “independência” e “organização livre dos trabalhadores”. Abaixo a carta na
íntegra:
Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na
primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos
manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso
Nacional dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um
novo momento na luta contra a exclusão e a discriminação.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da
exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos
direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos
claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais
trabalhamos.
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os
mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O
compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com
o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos
mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas,
nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros,
homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos
doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por
seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.
Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma
articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos
Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao
movimento popular e sindical.
Contra a mercantilização da doença!
Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária
privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular;
pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos
trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia
Nacional de Luta Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios!
Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em
Saúde Mental (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES EM SAÚDE
MENTAL, 1987).
159
Os manifestantes consideraram aquele movimento, em 1987, como marcador de
uma ruptura, partindo do pressuposto de recusar-se a continuar à atenção ao louco do
jeito que estava. Os entrevistados desta investigação levantaram alguns problemas, das
quais reclamaram atitudes, mas não há o “mesmo gás” do início, deste modo a palavra
de ordem é esperar. Relembremos E2, que declara que apesar dos entraves no trabalho
com o louco em Montes Claros, “continua firma e forte, querendo e esperando [...]”.
Foucault (2006c) declara que as insurreições pertencem à história. Mas, de certa
forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou
todo um povo diz: “não obedeço mais”, e joga na cara de um poder que ele considera
injusto o risco de sua vida – esse movimento parece, para o autor, irredutível. Porque
nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível: Varsóvia terá sempre seu
gueto sublevado e seus esgotos povoados de insurrectos. E porque o homem que se
rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio
da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, realmente,
preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer.
Os sujeitos de pesquisa parecem que não querem assumir esse risco de não
obedecer, então, continuam as queixas...
Quando começou a gente tinha tanta coisa, até oficina de culinária, fizemos
uma horta, era linda, e agora ganhamos tudo de novo, mas temos que preparar
o terreno, o mato estava cheio aqui fora, esses tempos entrou um bicho numa
parte do carro e comeu a fiação do carro, cobra já apareceu aqui. Ganhamos
uma assessoria desse órgão do Estado, a Emater, a única coisa que nos pediu
foi limpar o terreno, capinar, então a nossa horta foi embora, ninguém veio
capinar, a gente tinha horta funcionando, dava dinheiro, aí é a hora que o povo
fala assim “você fica vivendo do passado”, eu penso assim deu tão certo no
passado, porque que a gente não pode repetir agora? Nós pensamos em fazer
uma oficina de pintura, pintar as paredes, mas não pode, porque tem que ter as
cores da administração. Nisso que eu acho que a gente é tolhido, tem a ideia,
vai querer fazer, mas não pode. Não podemos fazer a horta, não podemos
fazer a oficina de pintura, então vamos tentar pintar só por fora, fazer um
grafite, também não pode. Isso nos desmobiliza, mas ninguém quer largar, eu
bem velhinha e quero estar aqui. E1
Foucault (2006c, p. 77) ressalta que ninguém tem o direito de dizer: “revoltem-se
por mim, trata-se da libertação final de todo homem”. O autor afirma não concordar
com aquele que dissesse: “Inútil se insurgir, sempre será a mesma coisa”. Não se impõe
a lei a quem arrisca a vida diante de um poder. Há ou não motivo para revoltar?
160
Insurgir-se, é um fato; é por isso que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a
de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento.
Um delinquente arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco não suporta
mais estar preso e decaído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso não torna o
primeiro inocente, não cura o outro e não garante ao terceiro os dias prometidos.
Ninguém, aliás, é obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é obrigado a achar que
aquelas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam da essência do
verdadeiro. Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo o que se obstina em
fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o que elas querem dizer.
Questão de moral? Talvez. Questão de realidade, certamente. Todas as desilusões da
história de nada valem: é por existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a
forma da evolução, mas justamente a da história (FOUCAULT, 2006c).
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A apropriação do conhecimento advindo deste estudo, embora aproximativa e
inacabada, mostrou-se relevante por suscitar reflexões acerca do status histórico do
louco, sobre a lógica que faz desse indivíduo objeto de saber submetido às formações
discursivas desde o século XVII. E que, apesar das mudanças empreendidas com a
Reforma Psiquiátrica, a loucura continua a ser mantida refém de instituições de saúde e
de seus profissionais.
A cidade de Montes Claros demonstrou ser um cenário onde foi possível
identificar a assistência ao louco na perspectiva do hospital psiquiátrico e do serviço
substitutivo, o CAPS. Nesse município, a convivência dos “velhos” hábitos com as
“novas” práticas foi um achado importante, que nos encaminhou à análise das rupturas e
das permanências históricas da assistência à saúde ao louco.
As rupturas, nesta investigação, foram entendidas como descontinuidades, uma
vez que não provocaram rompimentos com as permanências, mas promoveram fissuras
que no mínimo levaram a um deslocamento da noção de loucura. Ou seja, mesmo com
as continuidades, as mudanças propostas com o movimento reformista montes-clarense,
a partir de 1996, deram um sentido de necessidade de repensar a loucura e a situação do
louco.
Para o desenvolvimento deste estudo foram levantadas as evidências das rupturas
e aquelas relativas às permanências, o que viabilizou a análise dos dados tematicamente.
Para tanto foram buscadas nas palavras os sentidos capazes de dar luz ao objeto deste
estudo, dentro de uma intricada rede de discursos, que analisados em conjunto
resultaram na aproximação da resposta para o problema da pesquisa.
Dentre as rupturas analisadas no corpo desta dissertação se destacaram: o fato da
reunião dos profissionais, que formaram uma equipe multiprofissional para idealizar,
organizar e implementar o serviço que promoveu um embate com modelo hospitalar
psiquiátrico; a adoção de uma clínica que se fundamentou na singularidade do
indivíduo, retirando o louco da massificação; a intersetorialidade surge como fator
necessário para prática do CAPS; e, o que gerou uma descontinuidade mais
significativa, a interdição da modalidade de internação de longa permanência.
162
Por outro lado, as permanências figuraram como pano de fundo durante toda a
pesquisa, sendo interessante destacar o fato da prática do CAPS ter em seu bojo alguns
preceitos manicomiais, que eram combatidos pelo movimento da Reforma Psiquiátrica,
quais sejam: a vigilância constante dos usuários por meio da observação mediada pelas
normas do serviço; o CAPS, apesar de ser um serviço de cunho comunitário, promove
um controle a céu aberto; a execução de uma pedagogia da sociabilidade sustentada na
ideia de fazer o louco produzir, baseada na possibilidade de “devolvê-lo” a dignidade e
a cidadania; o serviço substitutivo como intermediador das internações psiquiátricas
emerge como uma permanência da noção hospitalocêntrica, em que o médico e o
hospital são considerados os mais adequados para o tratamento do louco, assim o CAPS
colabora efetivamente com a manutenção de uma conduta que repudia em seus
preceitos.
Ressalta-se que durante todo o trabalho não foi possível desvencilhar rupturas de
permanências na análise das figuras recortadas dos discursos. Como foi o caso da
clínica que valoriza a singularidade, ora ela retira o louco do circuito massificador, mas
a individualização facilita o seu controle, o que fortalece a permanência da vigilância.
Esse é um modo de exemplificar o quanto as características manicomiais continuam a
exercer força sobre o louco, com outra nomenclatura e com cara de “humanizada”.
A análise do corpus documental apontou que a instituição do CAPS, em Montes
Claros, apesar de considerada, pelos sujeitos de pesquisa, um marco de ruptura, não
garantiu a superação do hospital psiquiátrico e de algumas de suas condutas. O que foi
percebido com a investigação é que o hospital psiquiátrico continuou a integrar a rede
de atenção à saúde mental, mesmo com a atuação do serviço substitutivo. Desse modo,
ambos prestavam assistência resultando numa percepção de “velhos” hábitos e “novas”
práticas no contexto da saúde mental na cidade.
Ao longo deste trabalho percebemos que o louco diante da sua diferença surge
como indivíduo a ser segregado em um lugar que seja seu. Um espaço onde ele possa
deixar a sua loucura extravasar, onde pouco ou nenhum “trabalho” dá aos outros, até
porque como louco ele não deve perceber as minúcias do ambiente que passou a habitar,
aceitando de modo resignado sua condição.
Foi possível entender o quanto para sociedade é difícil agregar o “anormal” no seu
cotidiano, quando ela cerca a loucura por todos os lados através do controle e da
163
vigilância daqueles que infringem ou que não se enquadram na normatização proposta.
Isso parece perverso, mas trata-se de uma exigência sine qua non numa sociedade de
controle, que vislumbra cada vez mais otimizar a vida e fazer viver.
As instituições de saúde são lugares onde a vigilância e a observação são
procedimentos complementares e que fazem parte da conduta dos profissionais:
observar o doente, observar a doença, observar a evolução da patologia, observar a ação
do medicamento, observar a cura... Aqui a loucura tem uma posição de destaque, com
os delírios, as alucinações, as catatonias, a saída é observar, para tentar entender, mas,
principalmente, para não deixar escapar.
A loucura está presa à instituição e aos profissionais de saúde, mesmo que com o
movimento reformista a noção de institucionalização tenha se deslocado do asilamento
no manicômio para a possibilidade do ir e vir no CAPS, o louco continua tendo um
lugar só seu, mesmo porque a sociedade continua excluindo-o.
De acordo com a análise dos documentos e das narrativas dos entrevistados, a
situação de sobreposição entre o “velho” e o “novo” provocou desconfortos na equipe
que vivenciou o início “áureo” e continuou o trabalho no CAPS. Os desconfortos foram
expressos por meio de queixas, que trouxeram à tona as faltas.
Faltam profissionais que desejem lutar pela saúde mental; faltam ações políticas
efetivas; falta um CAPS III; a voz se faz ausente, visto que foi roubada; procedeu-se
com condutas que infringem as premissas reformistas, como encaminhar o louco para
internação em hospital psiquiátrico e o erro se potencializou quando esse
estabelecimento deveria estar fechado, por não atender as diretrizes para atendimento ao
paciente... e daí, diante de tanta falta, vem a culpa!
Acredito ser interessante notar que todas essas faltas só foram citadas porque as
“glórias” existiram, porque teve um rompimento na linha da história que demarcou um
lugar de mudança para loucura. Os atores sociais que empreenderam esse movimento
foram agentes históricos, que tem no seu cotidiano, exatamente, essa marca histórica e
não a marca do tempo.
Por isso, penso ser de grande importância este tipo de pesquisa, que valoriza um
tema como a loucura, que no seu mundo cheio enigmas garante muitas questões, que
ajudam a entender as construções sociais, as relações de poder, a constituição dos
indivíduos, o que para o historiador (a) significa a possibilidade de inserir-se no social.
164
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http://www.crl.edu/brazil/provincial/minas_gerais Acesso em: de março de 2011 à
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Relatório da Província de Minas Gerais 1869;
Relatório da Província de Minas Gerais 1837;
Relatório da Província de Minas Gerais 1854;
Relatório da Província de Minas Gerais 1870;
Relatório da Província de Minas Gerais 1906;
Relatório da Província de Minas Gerais 1907;
165
Relatório da Província de Minas Gerais 1920;
Relatório da Província de Minas Gerais 1922;
Relatório da Província de Minas Gerais 1926.
 A Câmara Municipal de Montes Claros forneceu os seguintes documentos:
Memorando da Divisão de Assistência Médico-Social do Departamento Estadual de
Saúde, de 21/08/1942, assinado pelo Dr Galba Veloso e encaminhado ao Prefeito de
Montes Claros;
Projeto de Lei s/n, Montes Claros, 24/08/1951;
Requerimento nº 79/59, Montes Claros, 1979;
Radiograma, Belo Horizonte, 25/11/70;
Projeto de Lei nº 3946 de 28/05/2008.
166
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174
ANEXOS
175
176
ANEXO B
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO
EM PESQUISA
Título da pesquisa: Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco
em Montes Claros/MG
Instituição promotora: Mestrado em História Social UNIMONTES
Patrocinador: Não se aplica.
Pesquisadora: Cynara Rodrigues Soares Silva
Orientadora Responsável: Profª Drª Regina Célia Lima Caleiro
Atenção: Antes de aceitar participar desta pesquisa, é importante que você leia e
compreenda a seguinte explicação sobre os procedimentos propostos. Esta declaração
descreve o objetivo, metodologia/procedimentos, benefícios, riscos, desconfortos e
precauções do estudo. Também descreve os procedimentos alternativos que estão
disponíveis a você e o seu direito de sair do estudo a qualquer momento. Nenhuma
garantia ou promessa pode ser feita sobre os resultados do estudo.
1-Objetivo: Analisar as rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao
louco em Montes Claros/MG.
2-Metodologia/procedimentos: Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva, de
cunho histórico. Os sujeitos do estudo serão servidores do CAPS II (TM) de Montes
Claros/MG e usuários. A coleta de dados será realizada por meio da entrevista semiestruturada, que será gravada para garantir maior fidelidade e veracidade das
informações. Posteriormente os depoimentos serão transcritos na íntegra analisados
através da análise do discurso. Serão também utilizadas fontes documentais.
3- Justificativa: Espera–se com este estudo oferecer subsídios que permita a reflexão
da loucura sob a concepção das possibilidades proporcionadas pela invenção de serviço
substitutivo (CAPS) inscritos no complexo processo de desconstrução de saberes,
instituições, valores e cultura.
4-Benefícios: Acredita–se que procurar desvelar o processo de constituição do CAPS
em Montes Claros/MG permitirá a compreensão do caminho percorrido por este
município no contexto da desospitalização, bem como entender o usuário portador de
sofrimento mental percebido nesta “nova” prática na perspectiva da saúde mental.
5-Desconfortos e riscos: possibilidade de constrangimento com a entrevista.
6-Danos: É garantida a manutenção da integridade física, psíquica e social dos
participantes, ficando estes isentos de quaisquer riscos, danos ou agravos conseqüentes
deste estudo.
7- Metodologia/procedimentos alternativos disponíveis: Não se aplica.
8-Confidencialidade das informações: Será mantido o sigilo quanto à identificação
dos participantes. As informações/opiniões emitidas serão tratadas anonimamente no
conjunto dos entrevistados e serão utilizadas apenas para fins de pesquisa.
9- Compensação/indenização: A participação é voluntária; não haverá nenhuma
remuneração pela participação.
10-Outras informações pertinentes: Será garantida ao participante a liberdade de
recusar ou retirar o consentimento sem penalização em qualquer etapa da pesquisa.
11- Consentimento:
Li e entendi as informações precedentes. Tive oportunidade de fazer perguntas e
todas as minhas dúvidas foram respondidas a contento. Este formulário está sendo
assinado voluntariamente por mim, indicando meu consentimento para participar nesta
177
pesquisa, até que eu decida o contrário. Receberei uma cópia assinada deste
consentimento.
______________________
Nome do participante
________________________
Assinatura do participante
___/____/____
Data
_____________________
Nome da testemunha
_____________________________
Assinatura da testemunha
____/___/___
Data
_____________________
Nome da pesquisadora
__________________________
Assinatura pesquisadora
___/____/____
Data
_____________________
___________________________
____/___/___
Nome da orientadora da pesquisa Assinatura da orientadora da pesquisa
Data
Endereço da pesquisadora: Cynara Rodrigues Soares Silva. Rua: Bário, 227 - Edgar
Pereira: CEP: 39.400-167. Montes Claros – MG. Fone: (38) 3223-3390 (38) 8422-2743
Endereço da Orientadora: Profª Drª Regina Célia Lima Caleiro. Rua: Rivadávio
Lucas Mendes, 296 – Morada do Sol: CEP: 39.400. Montes Claros – MG. Fone:
(38)3213-4221
178
ANEXO C
CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA:
“Rupturas e permanências históricas da assistência à saúde ao louco
em Montes Claros/MG”
DATA DE NASCIMENTO: _______/______/______
FUNÇÃO EXERCIDA NO CAPS II (TM):___________________________________
DATA DE INÍCIO DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO NO CAPS II (TM): ___/___/____
FORMAÇÃO ACADÊMICA:
GRADUAÇÃO:_________________________________________________________
ESPECIALIZAÇÃO:_____________________________________________________
INSTITUIÇÕES ONDE JÁ TRABALHOU OU AINDA TRABALHA (EXCETO O
CAPS):
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
OBSERVAÇÕES:_______________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
MONTES CLAROS, ______/_______/______

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