Fronteiras de Sentido e os Sentidos da Fronteira

Transcrição

Fronteiras de Sentido e os Sentidos da Fronteira
AFIRMANDO DIFERENÇAS:
O PAPEL DO ÍNDIO PRINCIPAL NO COTIDIANO DOS ALDEAMENTOS INDÍGENAS
(1653-1673)
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FERNANDO ROQUE FERNANDES*
Os meados do século XVII se mostraram momentos de intensos debates sobre a questão da
mão de obra indígena, identificados a partir da promulgação do Alvará de 10 de novembro de 1647, que
versava sobre a liberdade dos índios e a regulamentação de seus salários1 e a de 09 de abril de 1655 que
passava a administração temporal dos aldeamentos missionários aos jesuítas e apontavam os casos em
que o cativeiro de índios e as “guerras justas” poderiam ser legítimas 2. Outras fontes também são
indicativos dessa questão, como a vasta correspondência desenvolvida pela Companhia de Jesus e os
documentos referentes a administração colonial3. Neste período também ocorreram intensos conflitos
entre as forças políticas deste espaço. Marcia Eliane Alves de Souza e Mello observa que, houveram
intensos debates sobre a estrutura administrativa que se estabeleceria na colônia. De acordo com
Mello, forças nativas, leigas e religiosas, chocavam-se por vezes na defesa de seus interesses
*
Discente do Programa de Pos-Graduaçao em Historia da UFAM. E-mail: [email protected]
“Lei por que Sua Majestade mandou que os índios do Maranhão sejam livres, e que não haja administradores nem
administração neles. Antes possam livremente servir e trabalhar com quem lhes bem estiver e melhor lhes pagar seu
trabalho. Lisboa, 10 de Novembro de 1647”. In Anais da Biblioteca Nacional. Livro Grosso do Maranhão – Vol. 66, 1ª parte.
Divisão de Obras raras e publicações. (pág.17-18)
2 “Lei que se passou pelo secretário de Estado em 9 de Abril de 1655 sobre os índios do Maranhão”. In Anais da Biblioteca
Nacional. Livro Grosso do Maranhão – Vol. 66, 1ª parte. Divisão de Obras raras e publicações. (pág. 25-28).
3 Algumas dessas fontes já se encontram digitalizadas e a disposição de pesquisadores. Arquivos digitalizados pelo Projeto
Resgate do AHU podem ser encontrados em diversos arquivos espalhados pelo Brasil. As cartas escritas por Antônio Vieira,
já transcritas, foram digitalizadas pelo Projeto Brasiliana USP e estão disponíveis para download no endereço eletrônico:
www.brasilianausp.com.br.
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Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, nº 5, 2014, p. 211-222.
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particulares e dos projetos políticos, desenvolvidos pela Coroa portuguesa, para serem implementados
na Colônia.
Se nos anos de 1640 as alianças com as lideranças indígenas eram fundamentais para a
reconquista do território, nos anos posteriores à reconquista, essas alianças foram inevitáveis para a
consolidação do projeto colonizador. No entanto, as lideranças indígenas souberam se aproveitar das
necessidades da metrópole e se posicionaram a partir dos mecanismos disponibilizados pela própria
Coroa, para se articularem frente ao avanço português. As resistências que queremos identificar em
nossa pesquisa são diferentes daquelas propostas pela historiografia, que as manifestavam pelas fugas,
suicídios e deserções.
Nossa proposta é analisar as lideranças indígenas que se fizeram presentes na história
colonial e que foram protagonistas de diversos acontecimentos que se mostraram necessários ao
estabelecimento de uma realidade específica da região amazônica neste período. Nesta colônia se
desenvolveram relações sociais distintas das de outras colônias europeias, levando à criação de um
conjunto legislativo específico, que atendesse às suas realidades e as necessidades de seus diversos
grupos sociais.
Independente da finalidade com a qual, os diferentes grupos colonizadores se estabeleceram
neste lugar, esta colônia se modelou no calor das descobertas e tornou-se palco de intensos conflitos,
que se originaram da luta entre colonizadores e indígenas, entre os próprios nativos, entre colonos
leigos e missionários e entre as próprias ordens religiosas entre si. Esses conflitos giravam em torno da
administração do contingente nativo e seus diversos interesses relacionados à vida espiritual e
material dos mesmos. (FREIRE, 2005)
A Coroa portuguesa, bem como as lideranças ocidentais4, criou diversos mecanismos para
enquadrar as lideranças indígenas dentro de sua lógica administrativa. Na verdade, esse aspecto da
Coroa portuguesa refletia a consciência da necessidade de se manter alianças com as populações
nativas para concretizar diversos interesses colonizadores dentre os quais podemos citar: a instituição
das fronteiras coloniais, a criação de um contingente militar capaz de defender o território em nome da
Coroa, a utilização desse contingente populacional como mão de obra na economia extrativista e o êxito
no processo de evangelização que era aliado aos interesses mercantis, um dos principais objetivos dos
reis católicos.
Conforme observa Maria Regina Celestino de Almeida, o que estava em jogo, nessa teia de
relações sociais, não era o grau de permanências e mudanças dos costumes indígenas nas aldeias, mas
os possíveis significados de novos elementos para os índios. O que precisamos observar é como os
processos de mudanças e permanências eram vividos e reelaborados pelos diferentes grupos
existentes no cotidiano colonial. Almeida também observou que em se tratando de grupos étnicos em
posição subalterna, a cultura deve ser entendida como uma luta constante para não compartilhar
significados (ALMEIDA, 2013). No entanto, é preciso observar que dependendo do que estava em jogo,
o compartilhamento de significados poderia tornar-se algo necessário à manutenção dos espaços de
atuação política das diversas etnias presentes nos espaços de missionação.
No período em que as Capitanias do Maranhão e Grão-Pará estavam sendo tomadas pelos
holandeses, havia um fator que fazia com que portugueses e muitas das etnias indígenas fortalecessem
a política das alianças, com a finalidade de defenderem o território. Luiz Felipe Baêta Neves observou
que as alianças desenvolvidas por portugueses e grupos nativos de língua Tupi tiveram, em muitos
casos, articulações dos grupos nativos que viam, nos portugueses, potenciais aliados na luta contra seus
Denominamos de lideranças ocidentais, os representantes enviados pela Coroa portuguesa para desenvolverem funções
administrativas e religiosas na colônia. Essas lideranças desempenhavam funções políticas na representação de
governadores, capitães-mores, missionários, etc.
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inimigos milenares, que também eram da terra (NEVES, 1978). Aliar-se a portugueses ou holandeses
era também uma estratégia de combate que deveria criar vínculos simbólicos para que a política das
alianças tivesse êxito na colônia. Não foram raros os casamentos entre europeus e nativas ou a
conversão à religiosidade cristã, fosse ela católica ou protestante, em troca de favores militares e
políticos. Também não era incomum a política de elevação da importância política de algumas
lideranças indígenas e a concessão de mercês e patentes militares para consagrar os acordos políticos.
A valorização dos guerreiros tribais foi outra das trocas de significados dentro da grade de relações
cotidianas que se fizeram necessárias às efetivas permanências culturais.
As lideranças ocidentais criaram laços com os índios para conseguirem principalmente aliados
militares e mão de obra. A Igreja mantinha alianças com as lideranças indígenas para alcançar novos
fiéis. Os índios principais se apropriavam de elementos da cultura ocidental, como por exemplo, cargos
militares, criados pela Coroa, para utilizá-los em benefício próprio e de suas etnias. Ao fazer tais coisas,
essas lideranças se apropriavam de elementos de outros campos semânticos, reinterpretando
significados à sua maneira, e materializando, através de suas práticas, um elemento criado para ter
outro significado. É nesse sentido que podemos entender as práticas como materialização das
representações.
Usos: estratégias e táticas.
Analisando a colonização espanhola, Michel de Certeau observou que, o que estava em jogo na
construção dos espaços coloniais, não eram as apropriações ou os empréstimos culturais e sim, os usos
que se faziam de elementos da estratégia do forte para criar novas possibilidades de subversão, novas
táticas, pelos que eram tidos como fracos. Nas palavras de Certeau:
...o espetacular sucesso da colonização espanhola no seio das etnias indígenas, foi alterado pelo
uso que dela se fazia: mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes esses indígenas
usavam as leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas pela força ou pela
sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. (CERTEAU, 1998)
Ao considerar o cotidiano um espaço de práticas sociais, Certeau (1998) observou que os usos
que os indivíduos faziam de determinados elementos simbólicos, poderiam ser fundamentais para a
manutenção das relações com o outro. Podemos observar que em todas as relações sociais, existem
mecanismos utilizados para limitar os espaços de ação dos indivíduos e que, dessas mesmas relações,
surgem leis que propõem uma normatização capaz de regular a vida em sociedade. Esses mecanismos
de controle, como a legislação, são ferramentas úteis à normatização da vida cotidiana.
Limitados pela regra de quem normatizava a sociedade, os indivíduos em condições
periféricas precisavam agir de forma inovadora e identificar potenciais fragilidades dentro da lógica
social estabelecida. Às ferramentas utilizadas pelos grupos dominantes, para limitar o espaço de ação
dos grupos menos favorecidos, Certeau denominou de estratégias. Em suas próprias palavras:
...chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível
a partir do momento em que um sujeito de querer e poder... pode ser isolado. A estratégia
postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se
podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças... (CERTEAU, 1998: 97)
A estratégia proposta pelo colonizador partia de um modelo pré-estabelecido pela Corte, no
entanto, a experiência adquirida no dia a dia com os nativos era que lhes permitiam desenvolverem
mecanismos de repressão mais severos. Mas antes que o colonizador pudesse adquirir esta
experiência, era o nativo quem tinha a oportunidade de criar novas possibilidades de permanência.
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Antes mesmo que o colonizador pudesse repensar suas práticas, o nativo já havia feito sua releitura da
situação, podendo assim, agir nas lacunas que lhes eram oportunizadas.
No caso das lideranças indígenas, a originalidade estava na possibilidade de manipularem
suas posições, dentro do espaço colonial, de forma criativa. Resistindo politicamente a partir da lógica
de poder na qual, foram enquadradas. Participar ativamente das relações econômicas, defender
fronteiras e se aproveitar da oportunidade de fazer alianças, permitia-lhes destacarem-se de uma
forma original nesse novo cotidiano. Suas posições sociais fortaleciam a representação sobre as suas
funções neste jogo e possibilitava a estes indivíduos agirem com criatividade e destreza a partir de suas
táticas.
A tática dos oprimidos era anterior à releitura das práticas do opressor. Isto lhes permitia
ganharem tempo para agirem na manutenção de suas tradições e criar novos meios de retardar uma
inserção cultural mais severa, por parte daqueles que acreditavam subjuga-los. Na verdade, os
opressores lhes proporcionavam os meios para que eles pudessem permanecer, mesmo que em
posição subalterna dentro da lógica social.
A Colônia também era espaço das apropriações do modo de pensar europeu pelo nativo que
se utilizava dessa visão de mundo para se desvencilhar dos laços que minavam sua liberdade nesse
incerto projeto colonial. Ocorreram casos em que, os indígenas, fizeram uso de meios legislativos para
protestarem perante a lei portuguesa acerca de sua autoridade e emancipação nos espaços coloniais
(CARVALHO JÚNIOR, 2007) e (MELLO, 2006). Em meados do século XVII, inúmeras foram as
concessões feitas pela Coroa em reconhecimento pelos serviços prestados pelas lideranças que lutaram
contra a invasão holandesa em defesa da Colônia. Os casos que serão tratados em nosso trabalho
refletem aquilo que Certeau denominou de táticas. Acerca desta característica o autor comenta:
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...chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então
nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar
senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a
lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa
posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo
de visão do inimigo”, como dizia Von Bullow, e no espaço por ele controlado. (CERTEAU, 1998:
100)
Para que a tática fosse possível, era preciso que o indivíduo em condição subalterna
consumisse os elementos que lhes eram impostos ou oferecidos, e os ressignificassem nos modelos de
sua representação, reformulando-os através da atribuição de novos significados que se materializam
através das práticas sociais.
Ao perceberem o engano pelo qual eram cooptados, os indígenas certamente desencadearam
inúmeras subversões, frente ao que lhes era proposto, bem como desenvolveram diversas táticas para
alcançarem a liberdade. Fugas, suicídios, rebeliões, abortos, assassinatos de suas lideranças,
articulações sutis, conversões superficiais, migrações internas, ausências físicas e espirituais nos
aldeamentos. Eis algumas das subversões propostas pelos indígenas dentro dos espaços coloniais.
Carvalho Júnior comenta que: “...as fugas e a migração interna eram práticas comuns depois de
descobertos os verdadeiros interesses dos que os faziam “cristãos” (CARVALHO JÚNIOR, 2007: 146). Estes
indivíduos em condição subalterna faziam vários usos que eram diversos, daqueles propostos pelas
relações de imposição: rejeitavam, transformavam e, na maioria das vezes, subvertiam tais usos dos
colonizadores e utilizavam esses mesmos mecanismos de controle, em benefício próprio. Nos próprios
dizeres de Certeau:
...subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformando-as (isto acontecia
também) – mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de regras, costumes ou convicções
estranhas à colonização da qual não podiam fugir. Eles metaforizaram a ordem dominante:
faziam-na funcionar em outro registro. Permaneciam outros no sistema que assimilavam e que
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os assimilava exteriormente. Modificando-o sem deixá-lo. Procedimentos de consumo
conservavam a sua diferença no próprio espaço organizado pelo ocupante. (CERTEAU, 1998:
94-95)
Acreditamos que as lideranças indígenas criaram novas possibilidades de existência a partir
das brechas que conseguiram identificar no imbricado jogo político. No entanto, este jogo tornou-se tão
complexo que, por diversos momentos, a realidade inverteu-se, refletindo a ineficiência da estrutura
política europeia face às possibilidades de usos que dela se podia fazer, dentro da realidade colonial
amazônica. Esse aspecto demonstrava, em diversos momentos, que os colonizadores ficaram à mercê
do jogo político das lideranças indígenas. O consumo constante das estratégias do opressor pelo
oprimido propiciou usos diversos e táticas criativas. A ideia de resistência, nesse caso, deve ser
entendida como um conjunto de práticas sociais que inverteram por diversas vezes as relações de
poder estabelecida pelo colonizador, dando margem para o protagonismo indígena na construção da
nova realidade amazônica.
As resistências:
Apesar das formas de resistência indicadas tradicionalmente, de acordo com Almir Diniz de
Carvalho Júnior, o que houve, certamente, foram “resistências políticas” e não culturais no sentido de
uma unidade. Essas resistências foram fruto de uma nova configuração cultural da qual também fazia
parte a “cultura europeia”. Se houve, em algum momento, limitação na implantação dessa cultura, foi
porque ela foi apropriada e reconfigurada e não contrastada por uma unidade tradicional universal que
não existia. Aliás, se houve posteriormente “unidade” ela foi produto da cultura europeia reconfigurada
no contraste com as múltiplas culturas anteriores, da própria região. Por outro lado, apesar da
diversidade existente entre as diversas etnias indígenas no mundo colonial, existia ainda uma unidade
construída a partir do contato com os europeus, que era, justamente, o contraste dessas sociedades
nativas a partir de uma visão ocidental. (CARVALHO JÚNIOR, 2005)
De acordo com José Ribamar Bessa Freire, é incorreto dizer que os grupos indígenas não
resistiram de diversas formas, à imposição colonizadora, mas é que a sua resistência não pôde
prevalecer definitivamente contra tamanha desigualdade de condições em que se encontravam frente
às estratégias de que se utilizaram os portugueses para subjugá-los.5 Aliás, sem a ajuda dos nativos,
com suas técnicas e conhecimento do lugar, dificilmente os colonos, leigos e/ou missionários,
conseguiriam desestabilizar milhões de indígenas em sua própria região e forçar um processo de
reconfiguração do espaço amazônico.
O que não podemos deixar de levar em consideração é o fato de que apesar de o europeu ter
conseguido certo êxito no processo de dominação colonial da Amazônia, esse processo não ocorreu de
forma passiva e diretamente ligada à questão da escravidão ou da religiosidade, mas foi, nas palavras
de Vitor Leonard “...muito mais contagiante e cooptador do que as análises reducionistas nos faziam crer”
(LEONARDI, 1999)., ou como observou, Maria Regina Celestino de Almeida quando percebeu que os
usos feitos dos elementos da cultura europeia pelos indígenas, aconteceram a partir daquilo que eles
propunham como usos e não das representações que os europeus atribuíam aos seus objetos. Conforme
observa Almeida, os índios queriam sim se apropriar dos costumes trazidos pelos colonizadores, mas
...quando os índios se recusaram a trocar os prisioneiros de guerras intertribais por objetos, como aconteceu com os Tapajós e
os Omáguas, segundo atestam os padres Acunã e Samuel Fritz, os resgates deixavam de ser uma operação de troca para se
transforarem numa operação de guerra. Os portugueses, no dizer de Vieira, metiam a “pistola no peito dos índios”, invadiam
suas aldeias queimando as malocas e prendendo todos aqueles índios que encontravam. (FREIRE, 2005: 43).
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também queriam poder vive-los a seu próprio modo (ALMEIDA, 2003). É claro que as rejeições e
transformações aconteciam, o caso é que elas eram, em alguns casos, previsíveis ou perceptíveis. Mas é,
de fato, a partir das apropriações criativas e oportunistas (usos) que podemos identificar os indivíduos
subalternos como agentes dos espaços cotidianos. O que deve ficar claro a partir de tais observações é a
manipulação pelos grupos subalterna, dos elementos que eram dispostos à eles pelos grupos
opressores.
A inserção política: o cargo de principalado.
Ao ser estabelecido na América portuguesa, o processo colonização também abriu espaço pra
a necessidade de criação de novos cargos, para legitimar antigas funções. Como exemplo, citamos o
cargo de principalado que, nas palavras de Carvalho Júnior, foi a legitimação de uma função já
desempenhada pelos principais na colônia, observe:
O principalado, cargo administrativo colonial instituído pela Coroa portuguesa com base em
antigas estruturas de poder das sociedades ameríndias, como lembra Ângela Domingues, surge
no discurso jurídico como um cargo a serviço da sociedade colonial exercido exclusivamente
por ameríndios. Era transmissível hereditariamente e sua legitimidade dependia da concessão
de carta patente passada pelo monarca ou sob suas ordens. Para exercê-lo o aspirante deveria
apresentar bons serviços, fidelidade e a obediência necessárias tanto dele como
de seus ascendentes. O principalado da segunda metade do século XVIII, com o qual trabalha
Domingues, diferenciava-se da chefia reconhecida pela comunidade e exercida de maneira
informal...[]...a institucionalização deste cargo, ainda que já apresentasse um esboço inicial, era
antes um reconhecimento posterior do poder colonial de uma função já existente. Portanto, a
formalização instituía-se para aqueles que já exerciam o poder em suas comunidades de
origem. Eram aliados, antes de serem vassalos. 6
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Ao considerar a necessidade de se posicionarem politicamente, frente ao cotidiano permeado
de interesses diversos, essas lideranças indígenas, acabaram por ocupar o lugar a que tinham direito
como representantes políticos na nova ordem colonial que se estabelecia. De Acordo com Rafael Ale
Rocha, podemos considerar três tipos de lideranças indígenas para o Estado do Maranhão no século
XVII, de acordo com as características de suas nomeações, conforme observamos a seguir em trecho de
sua Tese sobre a elite militar no Estado do Maranhão no século XVII:
No caso dos índios do Maranhão, pelo menos três formas de liderança indígena estavam
presentes: os que eram nomeados pelos próprios principais e recebiam ou não provisões
legitimadoras, isto é, dependia da vontade do nomeado; os principais que recebiam provisões
dos governadores; e, por fim, aqueles que possuíam diplomas régios (as provisões). (ROCHA,
2013: 185)
Em muitos casos, o cargo de principal era passado de pai para filho, mas em muitos outros, era
passado àqueles que faziam jus ao cargo. Podemos observar a transmissão do cargo de principal, que
ocorria dentro dos aldeamentos indígenas, analisando o fragmento do Regulamento das Aldeias,
desenvolvido pelo padre Antônio Vieira a partir de sua experiência na Amazônia portuguesa entre os
anos de 1653 e 1661. Sobre a herança do cargo e as eleições dos principais, Vieira observou que:
Quando o legítimo principal da aldeia morrer, tendo legítimo filho de capacidade e idade, lhe
sucede o governo, sem mais outra diligência; mas não havendo filho, ou não sendo capaz, o
6
Vale a ressalva de que o significado de tal status e a sua representação, eram distintas entre as culturas e que cada lógica
política das diversas etnias nativas, entendiam de forma particular, o significado das lideranças de suas aldeias. Nesse
sentido, observa-se que ocorreu uma tentativa de articular politicas entre portugueses e nativos, talvez bem sucedida, na
pretensão de desenvolver alianças mais sólidas junto a estas lideranças, que desempenhavam um papel original de
administração de seus subordinados. (CARVALHO JÙNIOR, 2005: 217-218).
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estilo é que o padre, que tem cuidado da aldeia, consulte com os maiores, quem tem
merecimento para ser principal; e esse se propõe ao governador para que mande passar
provisão. (LEITE, 1991: 113)
Observando as relações que se estabeleciam no cotidiano colonial, Vieira percebeu como as
relações entre as lideranças indígenas e as outras lideranças da colônia, era muito frágil e ao mesmo
tempo complexa. A eleição dos principais dos aldeamentos missionários não era algo fácil de decidir,
conforme observamos neste parágrafo do Regulamento das Aldeias. Para diminuir as discussões em
torno de novos principais, nos casos em que os que estavam no poder vinham a óbito, Vieira sugeriu
que se passe a responsabilidade para o filho legítimo. Não qualquer filho do principal, mas àquele que
tivesse a capacidade de governar seus pares e cumprir as normas do aldeamento e servir de exemplo
aos demais7. Vale ressaltar que a escolha do filho legítimo do principal para ocupar o seu lugar, não
estava somente relacionado à questões de sangue. Na verdade, a substituição por seu filho é fruto de
uma decisão dos próprios missionários, que tinham profundo interesse em que os filhos dos principais,
educados em uma pedagogia jesuítica, fossem os próximos a governarem seus pares. O caso era que
escolher seu filho para ficar em seu lugar, não era somente uma forma de facilitar ou legitimar a
autoridade do principal. Mas era muito mais interessante que o governo fosse feito por alguém
interessado, também, nas questões religiosas e, principalmente, permitisse a manutenção do trabalho
dos missionários, sem grandes mudanças que, por outro lado, poderiam ocorrer se outro principal
visse a substituir o falecido.
Nos casos em que não houvesse filho ou que este não fosse digno de substituir o principal já
defunto, deveria haver deliberação entre os índios de maior idade para a escolha de novo principal.
Entre homens e mulheres residentes nos aldeamentos, havia eleição para a escolha dos candidatos ao
cargo de principal. Feitas as deliberações, os nomes indicados, eram levados ao conhecimento do
governador ou capitão-mor e este passava ou não a provisão do cargo para o dito principal.
Observe que a escolha dos principais envolvia diferentes grupos na colônia e cada um desses
grupos tinha profundo interesse em que os principais escolhidos fossem capazes de defender seus
interesses. Por conta dessas intenções, acabavam por escolherem, aqueles principais que conseguiam
se articular com diferentes grupos sociais. Havia um complicado jogo de interesses a serem defendidos.
Somente as lideranças que conseguiam se articular através da arregimentação de mão de obra,
facilitação do processo de catequese e representação dos seus pares perante as lideranças coloniais,
eram que conseguiam permanecer neste imbricado jogo de plenos interesses. Muitas vezes, o cargo de
principal era passado de pai para filho e nem por isso, a autoridade do novo principal era logo
legitimada. Não foram raras as vezes em que candidatos e mesmo aqueles que já desempenhavam a
função de principais de suas nações, enviaram solicitações ao Conselho Ultramarino para que este
passasse provisão de suas funções em reconhecimento de seus cargos e pela legitimidade de seus
atributos.
Em Consulta do Conselho Ultramarino, redigida no dia 3 de outubro de 1648, consta que o
índio Antônio da Costa, principal da aldeia de Cojupe, solicitava que fosse reconhecido pela Coroa
portuguesa, através da concessão de mercês, pelos serviços que prestou em defesa dos interesses da
Coroa em suas possessões ultramarinas, como principal da nação Tabajara. Para que houvesse
fundamento em suas solicitações, Antônio da Costa pediu para que se levasse em consideração, não
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Analisando a política indigenista implementada por Marquês de Pombal no Rio de Janeiro, Luís Rafael Araújo Corrêa,
considerou que havia alguns pressupostos para que os índios principais atuassem não só como administradores de mão de
obra, mas que também servissem de exemplo para os índios submetidos à sua autoridade. Não um modelo de liderança
nativa, mas um moldado para se portar como verdadeiro vassalo da Coroa. Portanto deveria ser moldado de acordo com os
comportamentos europeus para que servisse como padrão aos demais. Para saber um pouco mais sobre este assunto ler:
(CORRÊA, 2013: 147-162).
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somente os serviços prestados por ele em defesa dos territórios lusos, mas também o fato de ser filho
de antigo índio principal da Nação Tabajara, batizado como Marcos da Costa, que havia servido durante
muitos anos a Corte portuguesa e que havia sido grande defensor dos interesses de D. João IV, havendo
lutado bravamente contra os holandeses. Infelizmente, Marcos da Costa tinha vindo a óbito por ter sido
devorado por um tubarão enquanto fugia de uma embarcação holandesa da qual havia fugido, junto
com seu filho, Antônio da Costa e outros seis portugueses que com eles estavam. Para que seus pedidos
fossem atendidos e para que fosse legitimada, por Provisão Real a função que já desempenhava na
colônia, este principal desenvolveu um interessante argumento para o registro do Conselho. Segue
trecho de sua Consulta:
Antônio da Costa, índio principal da Nação Tabajara do Estado do Maranhão, filho do principal
Marcos da Costa, fez petição a Vossa Majestade neste Conselho em que alega haver servido no
mesmo Estado, na guerra e expulsão dos holandeses com muito zelo e fidelidade, servindo de
exemplo aos de sua nação para o imitarem, obrigando-os também com suas práticas e
procedimentos. Tudo em ordem aos serviços de Vossa Majestade, procurando mantimentos
para o sustento dos vassalos de Vossa Majestade e impedindo aos inimigos. Sendo prisioneiro
destes com o dito seu pai, donde fugiram com grande risco de suas vidas, perdendo-a nesta
ocasião, o dito seu pai, havendo-a arriscado por muitas vezes no serviço de Vossa Majestade,
no decurso de muitos anos, achando-se em todas as ocasiões de guerra que se ofereceram
naquele Estado. Matando, ferindo e fazendo fugir a muitos dos seus inimigos, com satisfação e
valor, fazendo o mesmo ele, Antônio da Costa, acompanhando sempre ao dito seu pai, como
constava nas certidões que ofereciam. E porque nem ele, nem o dito seu pai, receberam, até
agora, mercê de Vossa Majestade. Em satisfação destes honrados serviços, Vossa Majestade foi
servido promete-los por conta sua aos moradores daquele Estado, pois serviram na guerra e
expulsão dos holandeses. 8
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Todas as considerações sobre honras e feitos de duas gerações, dele e de seu pai, foram
citadas como uma das diversas estratégias encontradas por estas lideranças indígenas para se
inserirem nos trâmites políticos coloniais. A própria forma apropriada por esta liderança para se
inserir na trama politica já era uma tática fundamental à sua sobrevivência neste espaço. Não que
Antônio da Costa ainda não fizesse parte deste jogo de interesses, nem porque queria somente uma
provisão que simbolizasse suas honrarias. Mas porque a legitimação dessas lideranças através de
concessões de provisões e cartas-patente das ordens militares, por exemplo, lhes permitiam inseriremse em outra chave identitária. Ao serem reconhecidos, através dos trâmites burocráticos,
materializados através de mercês e honrarias, essas lideranças alcançavam o status de lideranças
indígenas colônias e passavam a gozar de certos privilégios que, conforme Almeida, antes das
concessões de mercês por parte da coroa, eram estas de direito apenas da nobreza portuguesa.
(ALMEIDA, 2013)
Para Antônio da Costa, essa petição era uma ferramenta que, ao alcançar seus objetivos,
elevava-o a posição de principalado e a partir daí, ele passaria a ser reconhecido como uma liderança
política potencial, pois seria legitimado pela coroa. Por enquanto, os anseios de Antônio da Costa,
voltam-se somente para a oficialização de uma função que já desempenhava. Mas para que isso
acontecesse, para que seus pares o reconhecessem e nele vissem o exemplo de quem cuidava dos
interesses da coroa, deveria ser cravejado de pompas, para que assim pudesse arregimentar mais
vassalos à Real Coroa. Por conta disso, sua petição fio escrita da seguinte forma:
Pede a Vossa Majestade, prostrado a seus reais pés, lhe faça mercê do dito cargo de principal
da nação Tabajara que ele e seu pai serviram, de propriedade, para ele e seus descendentes, e
do Hábito de Cristo que o dito seu pai tinha, com a tença que Vossa Majestade for servido. Paga
8
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. João IV], sobre as mercês pedidas pelo índio principal da nação Tabajara,
Antônio da Costa, da aldeia de Cojupe, no Estado do Maranhão. AHU_ACL_CU_009, Cx. 3, D. 268 – Maranhão.
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Afirmando Diferenças
nos direitos reais do Maranhão ou Pará, para se vestir e armar e com isso luzir nos serviços de
Vossa Majestade, para que os demais índios, se encaminhem em seus Reais serviços. 9
Nem sempre, as lideranças indígenas que requeriam, junto ao Conselho, o reconhecimento
por serviços prestados, eram atendidas. Pois antes que houvesse um parecer sobre essas petições. O
próprio Conselho solicitava que pessoas que habitavam a região, evidenciassem o que os índios
principais afirmavam serem atos verdadeiros. Sempre que uma solicitação de mercês era feita ao
Conselho, todas as lideranças coloniais eram envolvidas no desenvolvimento do processo.
Governadores, capitães-mores e missionários, deveriam atuar como investigadores e deveria averiguar
se o que diziam estas lideranças ou candidatos aos cargos de principais era verdade. Antes do parecer
do Conselho, todas as informações constantes nas Consultas deveriam ser averiguadas. Conforme
podemos observar, sobre a petição de Antônio da Costa:
Da Petição deste índio se pediu informação à Luis de Magalhães, que Vossa Majestade tem
nomeado por Governador do Maranhão. Este diz que, tomando notícias de pessoas práticas,
daquele Estado e as demais que julgou por conveniente, achou-se verdadeiro tudo o que
Antônio da Costa se refere em sua petição e que seu pai, Marcos da Costa, defunto, serviu a
Vossa Majestade com satisfação e, em todas as conquistas dele, servindo de língua e de guia
aos portugueses com grande lealdade. Que quando os holandeses ocuparam a cidade de São
Luís, do mesmo Estado, a defenderam, o dito Marcos da Costa e seu filho, Antônio da Costa,
com muito valor, animando aos de sua nação a que fizessem o mesmo. Que o inimigo os levou
prisioneiros para Pernambuco, mas que passando ao Ceará, se lançaram ao mar e fugiram a
nado, levando em sua companhia seis portugueses que também iam prisioneiros. Que ao
passar de um rio tragou um marazo [tubarão?] a Marcos da Costa, ficando seu filho só, com seis
portugueses [e] com grande falta de mantimentos, que ele lhes granjeou por sua indústria até
os trazer, com grande trabalho, para a cidade de São Luís, onde o dito Antônio da Costa tornou
logo a continuar os serviços de Vossa Majestade contra os holandeses. Animando e
persuadindo ao gentio, seu natural, para que pelejasse com valor, até que, com esforço, fossem
lançados fora daquele Estado... 10
A Consulta também deixou escapar que Antônio da Costa, naquele momento, não estava no
Maranhão, mas que havia se dirigido à Corte, em Lisboa, para requerer pessoalmente, as mercês às
quais julgava serem suas por direito. Ainda percebendo que deveriam ser enunciados todos os detalhes
de seus serviços como vassalo do rei, o Conselho destacou mais de uma vez as principais contribuições
deste índio. É provável que, percebendo as valorosas contribuições deste principal, tanto o governador
do Maranhão Luís de Magalhães, quanto o conselho Ultramarino, julgaram como fundamentais,
destacar de forma minuciosa, a importância deste indivíduo no cenário colonial, mencionando
inclusive, que seu pai, Marcos da Costa, era detentor do Hábito de Cristo e que havia servido à Coroa
por muitos anos. Continua o resultado das investigações sobre seus feitos e contribuições da seguinte
forma:
...que por morte de Marcos da Costa, ficou governando a aldeia de Cojupe por principal dela e
da nação Tabajara, o dito seu filho Antônio da Costa, procedendo com muita satisfação e
fidelidade, até que se partiu para esta Corte que ao defunto Marcos da Costa se havia feito
mercê do Hábito de Cristo, de que gosava... 11
Considerando ainda o resultado da investigação e levantamento de testemunhos feito no
Estado do Maranhão, enunciadas as informações, seguiram-se as sugestões do Conselho para a
solicitação de mercês, feita por Antônio da Costa:
...e é de parecer que Vossa Majestade, como rei e senhor, faça mercê ao dito Antônio da Costa
por seus serviços e de seu pai, de mandar que, no vestido, se lhe dê aqui o Hábito de Cristo e de
lhe mandarem passar provisão da aldeia de Cojupe, para si e para seus descendentes e de
AHU_ACL_CU_009, Cx. 3, D. 268 – Maranhão. Op. cit.
AHU_ACL_CU_009, Cx. 3, D.268 – Maranhão. Op. cit.
11 Idem.
9
10
Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.
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Fernando Roque Fernandes
principal de toda a Nação Tabajara. E que se lhe dê um vestido para que vá luzido diante de
seus naturais, pois vai da real presença de Vossa Majestade. Porque será de grande utilidade à
Fazenda Real animar, com isso, ao gentio do sertão a que desça e se empregue no serviço de
Vossa Majestade, o que virá, também, a ser de muito proveito aos moradores. 12
O próprio Conselho Ultramarino reconhecia a importância de se legitimar a autoridade das
lideranças indígenas que se destacavam, em defesa dos interesses lusos. O trecho anterior da petição de
Antônio da Costa, ainda não era o parecer do Conselho, mas uma sugestão de quem reconhecia que as
lideranças indígenas, desempenhavam um papel significativo em muitos aspectos da colonização.
Tanto que ao sugerir a concessão das mercês solicitadas pelo principal, o Conselho destacava as
utilidades que essas concessões agregariam ao empreendimento colonial. Quando consideravam os
feitos de Marcos da Costa e de Antônio da Costa, reconheciam o prestígio que essas lideranças tinham
com os de sua nação e com os colonos, que foram interrogados, pelo governador Luis de Magalhães,
sobre se era verdade tudo quanto o principal havia afirmado. No caso de Antônio da Costa, seu
prestígio e de seu pai, ultrapassavam os limites de suas aldeias, sendo reconhecidos também, pelas
“pessoas práticas” do Estado do Maranhão.
Finalmente, o parecer do conselho sobre as petições feitas por Antônio da Costa que, além de
seguirem as considerações anteriores, ainda fez outras mercês ao principal, conforme se observa a
seguir:
Ao Conselho parece mesmo, o que aponta o governador Luis de Magalhães... e se faz
necessário, para que possa ir mais animado e contente da presença de Vossa Majestade, se lhe
faça Vossa Majestade ainda, mais mercê de um vestido para a sua mulher e, de vinte mil
empregados em coisas miúdas. Como ele e sua mulher já estão na velhice, também se lhes
passe terra. 13
220
Conforme podemos observar, o reconhecimento das lideranças indígenas do Estado do
Maranhão e Grão Pará, passavam por todo um processo que começava na iniciativa das próprias
lideranças indígenas e se desenvolvia sobre um complexo jogo de informações que culminariam em
concessões ou não das mercês solicitadas. O jogo político colonial poderia se refletir nas imbricadas
relações que envolviam desde as lideranças coloniais, representadas pelo governador, capitão-mor e
missionários, até o Conselho Ultramarino na Corte portuguesa.
As petições voltadas para o reconhecimento que essas lideranças indígenas acreditavam
serem merecedoras refletia, a compreensão de seu lugar social e as recompensas a que tinham direito.
Conforme podemos observar, Antônio da Costa foi para a Corte a fim de solicitar suas mercês. Isso não
fazia parte somente dos jogos de interesses que envolviam diversos indivíduos e situações. Estava
voltada principalmente para a compreensão do papel desempenhado pelos índios principais. As
provisões legitimavam a função desempenhada por essas lideranças e identificavam o papel dos
principais na estrutura política da colônia. Esses índios observaram as oportunidades de inserção
política e a partir das articulações políticas com outras lideranças colônias, construíram suas
identidades.
Ser principal significava atuar em diversas frentes. A política, o militarismo e a economia, bem
como o âmbito social, eram seus espaços de atuação. Por vezes, as lideranças indígenas tinham a
responsabilidade de atuar como intermediários. Em meados do século XVII, entre as principais
atribuições dessas lideranças estavam: atuar em defesa das possessões portuguesas, ajudar e muitas
vezes encabeçar movimentos de resgates e guerras justas, administrar a distribuição da mão de obra
indispensável a manutenção da economia colonial, facilitar o processo de catequese e agir em defesa
12
13
Idem.
AHU_ACL_CU_009, Cx. 3, D.268 – Maranhão. Op. cit.
Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.
Afirmando Diferenças
dos interesses de seus pares e, por outro lado, estas lideranças eram forjadas para defender os
interesses da Coroa.
A política de alianças desenvolvida pela coroa portuguesa e apropriada pelas lideranças
indígenas, acabaram por transformar essas lideranças em autoridades coloniais que passaram a
desempenhar funções políticas e acumular cargos que refletiam seu prestígio no mundo colonial. O
cargo ou função de principalado atribuído à diversas lideranças indígenas, acabara por servir de
passaporte para o jogo político da estrutura colonial. Muitas dessas lideranças já desempenhavam suas
funções políticas e administrativas, relacionadas ao contingente indígena, muito antes de receberem os
títulos. Conforme observamos, o enquadramento na função de principalado era apenas uma
oficialização de uma função que se tornou uma realidade no Estado do Maranhão e Grão-Pará, a partir
da implementação da estrutura política da Colônia. (CARVALHO JÚNIOR, 2007)
Estando legitimado pela Coroa portuguesa, Antônio da Costa retornaria para o Estado do
Maranhão sob o título de Índio Principal da Nação Tabajara e Cavaleiro da Ordem de Cristo. Agora seus
status de liderança tinha sido consolidado. Havia se enquadrado em outra categoria identitária. Como
liderança indígena colonial, Antônio da Costa iria utilizar os prestígios recebidos como reconhecimento
pelos serviços prestados, na guerra contra os holandeses, no serviço e manutenção das relações
coloniais. Mas como liderança indígena, com influência política nos meandros administrativos, iria
atuar principalmente em defesa dos índios coloniais.
Considerações finais:
Acreditamos que o fortalecimento da autoridade indígena dentro na Colônia impactou
profundamente na distribuição de mão de obra aos colonos, acarretando na expulsão dos jesuítas em
1661. Mas seria possível esta característica ser o ponto chave para intensos conflitos entre colonos e
indígenas nesse período?
Na verdade, a tentativa de se cooptar as lideranças indígenas se mostrou falha a partir do
momento em que as relações de dependência se transformaram em realidades. O que se esperava era
que o encanto pela cultura ocidental fizesse dos índios, marionetes a serem manipuladas pelos
colonizadores, no entanto o que ocorreu foi uma ampla dependência por parte do colonizador
português em relação ao índio.
Os choques entre portugueses e holandeses deixava transparecer que era inevitável a
utilização do contingente indígena para a defesa das terras conquistadas. Portugueses e holandeses
faziam alianças com etnias indígenas e ambos necessitavam desta força militar para alcançar suas
pretensões, mas as duas nações não esperavam que as lideranças indígenas também estivessem
ganhando espaço através de políticas de aliança. Muitas das lideranças indígenas, vendo que
precisavam se articular com os europeus para continuarem fazendo parte desse novo mundo que se
desenvolvia a sua volta, aproveitaram os conflitos iminentes para se posicionarem de forma estratégica
dentro da nova ordem colonial e se apropriaram de elementos da própria cultura ocidental que os
enquadrou, utilizando os mesmos mecanismos de controle colonial para se libertarem das amarras que
limitavam suas ações.
Observe, que a Coroa portuguesa via os nativos de sua Colônia como seus vassalos, mas a
apropriação tática da legislação pelos indivíduos que deveriam ser regulados por ela, utilizando-a como
uma ferramenta que possibilitasse novos espaços de atuação, acabou sendo observado como algo
fundamental para a compreensão do protagonismo indígena. Os esforços em defesas das possessões
coloniais possibilitaram espaços de inserção política, as quais, lhes permitiram se libertar das amarras
Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.
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Fernando Roque Fernandes
existenciais. A mobilidade social era uma das principais características das lideranças indígenas no
período colonial e essas lideranças conseguiram se articular de diversas formas, frente as estratégias
criadas para limitar seus espaços de atuação. As lideranças indígenas coloniais fizeram o que foi preciso
para encontrar seus espaços de liberdade.
Acreditamos que as lideranças indígenas defenderam suas diferenças e se utilizaram das
articulações políticas dos próprios europeus, das quais tiveram acesso, para legitimar sua autoridade
dentro da máquina burocrática portuguesa. E mesmo sendo ofuscados pela historiografia tradicional,
acabaram por deixar seus rastros nas entrelinhas dos registros coloniais.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de
Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
FREIRE, José Ribamar Bessa (Org.). Amazônia Colonial (1616–1798). 4ª ed. Manaus: Metro Cúbico, 2005.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
LEONARDI, Victor. A Idade do Brasil. Ministério da Educação. Brasília DF, 1999.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769).
Tese de Doutorado em História. Campinas, SP: UNICAMP, 2005.
ROCHA, Rafael Ale. A elite militar no Estado do Maranhão: poder hierarquia e comunidades indígenas (1640-1684).
Tese de Doutorado em História. Niterói, RJ: UFF, 2013.
222
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. “Líderes Indígenas no mundo cristão colonial”. Canoa do Tempo, Manaus, nº1 –
jan./dez. 2007.
CORRÊA, Luís Rafael Araújo. “O primeiro que devia servir de exemplo aos demais”: as lideranças indígenas frente
aos pressupostos assimilacionistas da política indigenista no Rio de Janeiro (1758-1798). Revista de História
da UEG, Anápolis, v.2, n. 2, p. 147-162, jul./dez. 2013.
MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e “Para servir a quem quiser”: apelações de liberdade dos índios na Amazônia
Portuguesa. In: SAMPAIO, Patrícia Maria Melo (Org.). Rastros da memória: histórias e trajetórias das
populações indígenas na Amazônia. Manaus; EDUA, 2006.
Resumo: Nossa proposta está relacionada ao papel desempenhado pelas lideranças indígenas, especificamente ao
processo de transformação das atribuições que eram desenvolvidas por tais personagens. Para tanto, se faz
necessário verificar o cotidiano dos aldeamentos e das influências de tais indivíduos dentro da lógica colonial
estabelecida. Ao lançarmos nosso olhar sobre tais lideranças, estamos nos posicionando em uma área de pesquisa
que se quer fundamental no resgate da memória dessas sociedades e que tem se mostrado bastante promissora.
Denominada de “protagonismo indígena”, tal abordagem tem como finalidade, destacar a importância que as
sociedades indígenas tiveram no processo de reconfiguração da região onde estavam localizadas e suas implicações
dentro de novas realidades.
Palavras-chave: Aldeamento, Índios, Principais.
Abstract: Our proposal is related the role played by indigenous leaders, specifically the transformation of the duties
that were performed by characters such process. For this purpose, it is necessary to check the daily life of the
aldeamentos and the influences of such individuals within the established colonial logic. When we launch our eye on
these leaders, we are positioning ourselves in an area of research that is both critical in rescuing the memory of
those companies and it has been quite promising. By highlighting the "indigenous leadership", this approach aims to
emphasize the importance that indigenous societies were in the process of reconfiguration of the region where they
were located and their implications within new realities.
Keywords: indigenous villages, Indians, Indigenous Leaders
Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.