cartografar final 13 10

Transcrição

cartografar final 13 10
CARTOGRAFANDO A MENTE
Leonardo Bonilha
[email protected]
Pós-doutorando em Neurociência Cognitiva
Universidade de Nottingham, Inglaterra
Se a mente humana fosse simples o suficiente para ser entendida, nós seríamos simples o
suficiente para entendê-la.
Emerson Pugh
Em uma noite serena, um viajante passa ao lado de uma casa em que viveu no
passado. Nessa casa ele foi realmente feliz ao desfrutar do amor sincero de uma mulher
que há muito tempo o deixou. Ao olhar pela janela ele vê a figura de um homem que
contempla o vazio e aperta os punhos pela dor que o consome. Quando a lua ilumina a
sala e a figura do homem que nela está, o viajante é tomado pelo horror ao reconhecer sua
própria face. Ainda turvo pelo medo que aquela figura lhe causa, o viajante não consegue
evitar o intenso ciúme daquele homem que, embora cópia de si mesmo, ousa imitar a dor
que ele próprio sofreu naquele exato lugar muito tempo atrás.
Essa é a história do poema Der Doppelgänger de Heinrich Heine, que foi
adaptada para música por Franz Schubert. Em alemão, doppelgänger significa cópia
autônoma e independente. Segundo a tradição, todos possuem seu doppelgänger, que
permanece invisível a maior parte do tempo. Quem no entanto tiver a infelicidade de ver
seu doppelgänger saberá que seu fim está próximo. De fato, dias antes de morrer, a
Rainha Elizabeth I da Inglaterra afirmou ter visto sua própria imagem deitada em seu
leito de morte, pálida e imóvel. Por esse motivo, quando a imperatriz russa Catarina II, a
Grande, viu sua imagem caminhando em sua direção, não quis arriscar e ordenou
imediatamente que seus guardas atirassem na figura e dessem cabo dela. Durante os
séculos XVIII e XIX as obras românticas, com sua afeição pelo sobrenatural,
intensamente exploraram o mito do doppelgänger, e não é surpresa que os famosos
: A Mente Humana # 3, outubro de 2004
escritores Johann Wolfgang von Goethe e Percy Bysshe Shelley afirmaram terem visto
suas cópias.
Ver sua cópia, no entanto, não é privilégio dos poetas românticos. Um número
surpreendentemente grande de pessoas afirma conseguir ver seu próprio corpo de um
ponto de vista externo. Isso tem um nome “médico”: autoscopia. A autoscopia é
relativamente similar a experiências extracorpóreas relatadas por indivíduos que se
recuperaram do estado moribundo, o que em inglês se define pelo acrônimo OBE de outof-body experience. Ambos os fenômenos ainda são considerados pertencentes ao
espectro clarividente e, por muito tempo, foram os principais trunfos da defesa de que a
mente e os processos gerados pelo cérebro são duas coisas independentes. Algo como
dizer que todo mundo possui uma parte consciente etérea e independente que,
eventualmente, pode se liberar do corpo e vagar por aí.
Em março deste ano, um grupo de pesquisadores suíços liderado pelo Dr.
Margitta Seeck publicou um artigo em que a questão foi investigada cientificamente
(Brain 127:243-58). O grupo estudou um pequeno conjunto de pacientes que em comum
relatavam experiências autoscópicas e extracorpóreas,
porém apresentavam diferentes tipos de doenças
neurológicas. De forma a investigar se havia um
denominador comum ao problema, ou seja, se tais
experiências podiam ser determinadas pela disfunção
de alguma área cerebral específica, foram utilizadas
diferentes ferramentas para mapear o cérebro desses
pacientes. Combinando a análise de imagens de
grande resolução da anatomia do cérebro obtidas
pela
Ressonância
Magnética,
com
registros
Figura 1: A junção têmporo-parietal é
realçada em laranja.
funcionais provenientes da eletroencefalografia, foi
possível determinar em cada paciente qual área se encontrava alterada. Interessantemente,
ao se sobreporem os mapas das lesões, uma região do cérebro denominada junção
têmporo-parietal (figura 1) estava presente em quase todos os casos. A junção têmporoparietal é notadamente responsável pela integração de várias sensações (táteis, visuais e
de posicionamento do corpo) que constantemente chegam ao cérebro, “montando” a
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forma pela qual se entende o mundo e o posicionamento do corpo em relação ao que está
ao redor. O mal funcionamento dessa região pode, portanto, acarretar o desacoplamento
da percepção inconsciente do corpo e da sua representação no espaço. Quando as
sensações táteis, de equilíbrio e visuais não coincidem entre si, a compreensão da
localização do corpo e do que é pessoal ou extrapessoal se perde, e tem-se a origem da
intrigante sensação autoscópica ou extracorpórea.
Com esse artigo, mais uma evidência se acumula de que mente e pensamento são
de fato a mesma coisa. Pouca gente ainda acredita que mente, pensamento e cérebro
sejam coisas independentes. Tudo, as memórias da infância, o medo de avião, a pressa, a
necessidade do cafezinho, as crenças supernaturais, é de uma forma ou de outra
codificado e formado pelo cérebro. Nós somos o que o cérebro de cada um de nós gera, e
nós entendemos o mundo da maneira como o cérebro consegue perceber o que está ao
nosso redor, sobretudo de acordo com a forma pela qual o cérebro consegue extrair
informações do que nos cerca.
Muitos são os “mistérios” que ainda permanecem insolúveis sobre como o
cérebro funciona. Porém, a grande quantidade de novas ferramentas de que atualmente se
dispõe tem tornado a investigação dos fenômenos associados à mente e ao pensamento
cada vez mais interessante e produtiva. E esse assunto é abordado de maneira muito
agradável no livro “Mapping the Mind”, da jornalista médica Rita Carter (no Brasil
publicado sob o título “Livro de Ouro da Mente”, pela editora Ediouro).
O livro tem como principal mérito manter-se fiel à idéia expressa por Albert
Einstein na frase: “Você não entende um ponto realmente, a não ser que consiga explicálo à sua avó”. Escrito de maneira leve e ricamente ilustrado, o texto aborda de forma clara
uma série de assuntos complexos acerca de cérebro e mente, sem se distanciar do rigor
científico. Uma série de pontos naturalmente interessantes como memória, estados
afetivos, dependência química e disfunções neurológicas são virtuosamente discutidos. A
história do mito do doppelgänger não está presente no livro, mas um sem-número de
fenômenos semelhantes, igualmente ou mais interessantres, é discutido e explicado sob a
luz do conhecimento neurológico e científico. Vários cientistas famosos no campo da
neurociência contribuem com pequenos artigos que são intercalados no texto. Neles são
expressos diferentes pontos de vista sobre os assuntos discutidos. Notadamente, isso
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enriquece o texto e dá espaço a interessantes discussões como, por exemplo, se o autismo
não é uma condição neurológica em que as características do cérebro masculino são
potencializadas ao extremo.
Como a própria autora coloca na introdução, no entanto, o cérebro humano tem
sido lento em revelar seus segredos. Embora a compreensão de uma série de fenômenos
antes obscuros hoje seja corriqueira, como a história do doppelgänger ilustra, muito
pouco ainda se sabe de uma série de pontos-chave relativos a como o cérebro trabalha.
Da mesma maneira, ainda não está certo quais serão as contribuições sociais e
terapêuticas das descobertas da atualidade. A autora consegue tecer uma rede lógica de
possíveis benefícios do esforço atual em “cartografar” o cérebro e suas funções. Mais do
que isso, ao apresentar as diversas ferramentas utilizadas atualmente na investigação das
questões da neurociência e suas limitações, a autora consegue seduzir o leitor para os
próximos passos a serem tomados pelo vasto campo da neurociência cognitiva.
Consequentemente, como um bom livro de divulgação científica, a obra se
mantém fiel a uma outra idéia também expressa por Einstein, dessa vez na frase: “A
teoria científica deve ser o mais simples possível, porém não mais simples além disso”.
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