tribunal penal internacional para ruanda: origem, concepção e

Transcrição

tribunal penal internacional para ruanda: origem, concepção e
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA: ORIGEM, CONCEPÇÃO E
RESULTADOS
__________________________________________________________
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL FOR RWUANDA: ORIGIN,
CONCEPTION AND RESULTS
RESUMO: O presente trabalho utilizarse-á de uma análise revisional e
bibliográfica para verificar o contexto
histórico que originou o massacre em
Ruanda, os motivos que levaram aos
demais países não impedi-lo, bem como
analisar o Tribunal Penal Internacional
para Ruanda e os resultados obtidos
nos julgamentos ali realizados.
ABSTRACT: This work will be used in a
revisional and literature review to verify
the historical context that led to the
massacre in Rwanda, the reasons why
the other countries do not prevent it, as
well as analyzing Tribunal Penal
International for Rwanda and the results
obtained in the trials made there.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos;
Teoria do Poder; Massacre de Ruanda;
Tribunal Penal Internacional para
Ruanda.
KEYWORDS: Human Rights; Theory of
Power; Rwandan genocide;
International Criminal Tribunal for
Rwanda.
Sumário
1 Histórico do conflito e motivos que levaram à omissão internacional; 1.1 Breve
histórico sobre a região e o conflito; 1.2 A omissão internacional: explicação histórica
e relacionada ao poder; 2 Os Tribunais Penais Internacionais: concepção, objetivos
e críticas; 3 Os julgamentos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR); 3.1
Processo número ICTR-96-4. Acusado Jean Paul Akayesu; 3.2 Processo número
ICTR-97-23. Acusado: Jean Kibanda; 3.3 Processos número ICTR-98-41 e ICTR-0056. Acusados Théoneste Bagosora, Gratien Kabiligi, Anatole Nsengiyumva, Aloys
Ntabakuze,
Augustin
Bizimungu,
Augustim
Ndindiliyimana,
François-Xavier
Nzuwonemeye e Innocent Sagahutu; 3.4 Processo número ICTR-99-52. Acusados:
Jean-Bosco Barayagwiza e Ferdinand Nahimana (Rádio e Televisão Libre des Mille
Collines) e Hassan Ngeze (Revista Kangura)
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015
Introdução
O presente trabalho objetiva verificar os motivos históricos e relacionados à
teoria do poder que levaram a comunidade internacional permitir o massacre
realizado em Ruanda, bem como quais foram às medidas adotadas após as
atrocidades terem sido cometidas.
Para tanto, o trabalho será dividido em três partes. Na primeira, analisar-se-á
o histórico do conflito e os motivos que levaram toda comunidade internacional não
tomar uma postura ativa na sua solução. Já na segunda, será verificada a
concepção e da necessidade do Tribunal Internacional para Ruanda, ao passo que
na terceira serão vistos alguns dos julgamentos que ali foram realizados.
A relevância da pesquisa encontra-se em verificar os massacres realizados
em Ruanda em contraposição ao direito à paz, consagrado dentro do processo
dinamogênico, seja na terceira ou quinta dimensão/geração, bem como em verificar
como o poder é necessário para efetivar os direitos humanos.
Ademais, importante verificar que o massacre em questão, muito embora
não seja tão mencionado e explorado na literatura, foi responsável pela morte de
mais de oitocentas mil pessoas em um período de apenas cem dias, o que coloca o
caso como um dos maiores massacres da história da humanidade.
Procurando realizar uma análise do acontecimento em questão, o presente
trabalho valeu-se do método bibliográfico e revisional para verificar tudo o que aqui
foi proposto.
1 Histórico do conflito e motivos que levaram à omissão internacional
O presente capítulo buscará analisar, em duas partes, o histórico do conflito
da região de Ruanda para, posteriormente, verificar quais motivos levaram à
comunidade internacional não tomar uma atitude enérgica para evitar o massacre
que ocorreu em 1994.
1.1 Breve histórico sobre a região e o conflito
Até o início do processo de colonização, a África era dividida em diversas
tribos, sem se constituir em nações no sentido politico do termo, ou seja, não
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possuíam povo, soberania e território de forma organizada. A estrutura tribal era
dividida em clãs e o governo era monárquico.
A maior parte das tribos estava fixada na chamada África Subsaariana, em
regiões de savana, onde as aldeias surgiam em terrenos cuja possibilidade de caça
e agricultura fosse mais viável.
Havia certa mobilidade tribal, e, desta forma, em alguns casos, pequenos
estados foram formados, em uma incipiente organização política. Também se
verifica certa atividade comercial, principalmente de gêneros agropecuários. A posse
de terras era coletiva, e os lotes eram distribuídos pelo então monarca.
Não raro existiam guerras entre as tribos ali existentes. Como em todo
sistema dessa natureza, aqueles que perdiam a guerra ou eram dizimados, ou eram
capturados para servir de escravos aos vencedores.
Posteriormente, a busca por novas terras, a necessidade da descoberta de
novos postos de produção e de consumo, bem como o desejo de encontrar novas
rotas para o Oriente fez com que os europeus, no início do século XIV, chegassem à
África.
Com o processo de colonização das Américas, os europeus supriram a
necessidade de mão-de-obra buscando em território africano trabalhadores
escravos. Em especial no Brasil, a justificativa era a de que os índios não se
submetiam a trabalhos forçados, além de serem malemolentes e preguiçosos.
Assim, estabeleceu-se o comércio de escravos. Os europeus iam à África e
lá, em contato com chefes tribais governantes de tribos vencedoras em guerras,
traziam para o continente americano os perdedores dessas guerras. Os chefes
tribais recebiam como pagamento produtos de muito pouco valor, como aguardente
e tabaco.
Já no século XVIII, A Europa viu surgir o capitalismo industrial, que teve
como marco a Revolução Industrial inglesa, o que trouxe o desejo por novos
mercados de consumo e, por conseguinte, levou ao fim da escravatura.
Apenas no princípio do Século XIX, os territórios asiático e africano foram
incluídos no processo de expansão capitalista industrial. Teve origem, então, o
neocolonialismo do continente africano. O início da partilha da África foi a
Conferência de Berlim, em 1884, que instituiu normas para a divisão e ocupação da
África.
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Os únicos países que não foram colonizados foram a Etiópia e a Libéria, que
havia sido recentemente formada por escravos libertos dos Estados Unidos da
América.
Da mesma forma que anteriormente, tal partilha não respeitou as
características étnicas, sociais, e culturais de cada tribo; assim, tribos aliadas foram
separadas, e tribos inimigas foram agrupadas, o que gerou, e em alguns casos,
intensificou, inúmeros conflitos.
Todo esse processo atingiu diretamente Ruanda. Antes da colonização,
Ruanda era uma monarquia centralizada, governada pela Tribo Tutsi. Além da tribo
Tutsi existiam as tribos Hutu e Batwa. A tribo Tutsi era a menos numerosa de
Ruanda, e ainda o é.
Em 1899, durante o neocolonialismo decorrente do processo de expansão
capitalista industrial europeu, Ruanda foi conquistada e colonizada pela Alemanha.
O país ficou sob o domínio alemão até o término da Primeira Guerra Mundial. Com o
término da guerra, e consequentemente, com a derrota alemã, Ruanda passou para
o domínio belga, o que influenciou nos conflitos na região.
Ressalte-se que tanto alemães quanto belgas mantiveram os tutsis em
posições de destaque e de governo durante o período colonial, bem como
incentivaram a política de separação entre tutsis e hutus.
O imperialismo belga, contudo, necessitando de um esquema racial definido
para manter sua dominação, estabeleceu artificialmente uma “etnia tutsi” para servir
de base de apoio à sua dominação contra a maioria hutu. Como reflexos desse
artificialismo racial, na época, todo ruandês que tivesse mais dez vacas e um nariz
europeu era considerado um tutsi; além disso, os hutus que ascendiam socialmente
e acumulassem riquezas eram considerados tutsis em suas carteiras de identidade.
Em 1959, ocorreu o primeiro levante em Ruanda. Os hutus, que já estavam
organizados em partidos, protestaram contra a nomeação do rei Kigeli V, que subiu
ao trono após a morte de seu irmão Mutara III. O rei Kigeli foi expulso, e os hutus
ascenderam ao poder, representados pelo partido PARMEHUTU (Partido do
Movimento pela Emancipação Hutu).
Com a tomada do poder pelos hutus, Ruanda se tornou independente da
Bélgica. Além disso, os hutus começaram a matar milhares de tutsis. O que se
seguiu foi um verdadeiro massacre; centenas de milhares de tutsis foram mortos, e
cerca de dois milhões deles se exilaram.
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Nos anos que se seguiram após a independência existiram diversas
tentativas de invasão a Ruanda, perpetradas por guerrilheiros tutsis que
permaneciam no exílio. Em todas elas, o resultado era o massacre das forças
rebeldes e a consequente debandada dos derrotados sobreviventes.
Refugiados tutsis, aliados a alguns dissidentes hutus, formaram a
denominada FRENTE POPULAR RUANDESA (FPR). Em 1990, os militantes da
FPR invadiram Ruanda pela fronteira com a Uganda. Teve início uma guerra civil
que durou até o ano de 1993, quando foi selado um acordo de paz, denominado
Acordo de Arusha. Nessa ocasião, a ONU enviou uma frágil missão de paz,
denominada UNAMIR (UN Assistance Mission for Rwanda), encarregada de
acompanhar a desmilitarização do país, e de garantir o cumprimento do Acordo.
Entretanto, tal acordo representou na verdade a derrota dos revoltosos da
FPR, que eram em sua maioria, tutsis. Os revoltosos derrotados organizaram-se em
grupos guerrilheiros, e por isso, foram perseguidos e massacrados pelos
governantes.
O exército ruandês, apoiado pelo governo, treinou uma milícia composta por
hutus, denominada INTERAHAMWE, cujo objetivo principal era perseguir os tutsis.
Em verdade, o governo ruandês atribuía às mazelas sofridas pelo país aos tutsis, e
foi então, estabelecido o objetivo de exterminar com essa etnia.
O estopim de um novo (e maior) massacre ocorreu no dia 06 de abril de
1994, quando o avião em que estavam os presidentes de Ruanda, Juvenal
Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi derrubado em um
atentado. Imediatamente, a responsabilidade recaiu sobre os tutsis.
Em decorrência do atentado, teve início uma perseguição violenta aos tutsis,
perpetrada pelo governo. Além das forças governamentais, membros da população
hutu colaboraram diretamente para que os tutsis fossem massacrados, seja pelo
fornecimento ao governo de nomes e endereços de opositores, seja participando
diretamente da matança. Milhares de mulheres foram violentadas antes de serem
mortas.
O saldo foi de cerca mais de oitocentos mil mortos, em sua maioria de tutsis,
em aproximadamente cem dias de massacre, que só terminou após a FPR assumir
o poder.
Ao ali chegar, os europeus não respeitaram a estrutura social e econômica
que estava formada; dividiram os povos ali existentes, agrupando, em alguns casos,
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tribos inimigas em um mesmo território. Após a dominação, os europeus
implantaram o comércio de suas mercadorias nas áreas conquistadas.
Atualmente, em virtude de tais processos, Ruanda é um dos países mais
pobres do mundo, com uma área de 26.338 quilômetros quadrados, e 11, 78
milhões de habitantes. Faz fronteira com Uganda ao Norte, Tanzânia ao Leste,
Burundi ao Sul, e República Democrática do Congo a Oeste, possuindo um PIB de
7.521 bilhões de dólares. (BANCO MUNDIAL, 2013).
1.2 A omissão internacional: explicação histórica e relacionada ao poder
Não é apenas do histórico até aqui traçado que se percebe que tragédia era
anunciada. Em março de 1994, ou seja, um mês antes do atentado orquestrado em
face do presidente Habyarimana, o jornal Kangura, financiado pela esposa do
presidente, Agathe Habyarimana,, anunciava em uma de suas reportagens que
algum atentado estava sendo tramado para abril. (ARAUJO, 2012, p. 48)
Como se ainda não bastasse, no plano internacional, três meses antes do
atentado em questão, Kofi Annan, sub-secretário geral para operações de
manutenção da paz no período e, posteriormente, secretário-geral da Organização
da Nações Unidas, havia sido informado dos preparativos que estavam sendo
realizados:
Kofi Annan soube três meses antes dos preparativos para a chacina
que seguiria em Ruanda, segundo Fernando Sousa, jornalista do
periódico Do Público. Annan obteve a informação por meio de seu
assistente adjunto Iqbal Riza, que recebeu um fax datado de 11 de
janeiro de 1994 do chefe da Missão de Assistência das Nações
Unidas para o Ruanda (Unamir), o general Romeo Dallaire, que
informava estar em curso a organização de um planejamento
sumário dos tutsis. (ARAUJO, 2012, p. 50)
Além da Organização das Nações Unidas, os Estados Unidos da América e
a França, o primeiro a maior potência econômica do planeta no período e o segundo
aliado histórico de Ruanda, também sabiam da possibilidade do massacre em
questão. (GOUREVITCH, 2000, p. 106 – 108)
Neste sentido, importante ressaltar as gerações/dimensões dos direitos
humanos enquanto instrumento consagrador do direito à paz. Sobre os direitos
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consagrados em cada momento histórico, pondera Willis Santiago Guerra Filho
(2003, p. 39 - 40):
A primeira geração é aquela em que aparecem as chamadas
liberdades públicas, direitos de liberdade (Freiheitsrecthe), que são
direitos e garantias a que o Estado omita-se de interferir em uma
esfera intangível. Com a segunda geração surgem direitos sociais a
prestações pelo Estado (Leistungsrechte), para suprir a carência da
coletividade. Já na terceira geração concebem-se direitos cujo sujeito
não é mais o indivíduo nem a coletividade, mas sim o gênero
humano, como o caso do direito à higidez do meio ambiente e do
direito dos povos ao desenvolvimento.
Dentro do processo dinamogênico1 de surgimento dos direitos humanos,
quando se vislumbra a necessidade de proteção do gênero humano, exige-se que o
direito
à
paz
seja
consagrado
e
garantido,
dentro
da
própria
terceira
dimensão/geração, sob um ponto de vista solidário, uma vez que caberia para toda
comunidade internacional maneiras de efetivá-lo.
Contudo, apesar de tal consagração dentro da concepção solidária, o direito
à paz ainda não se efetivou, o que levou a Paulo Bonavides (2006) defender a
necessidade
de
consagrá-lo
como
uma
dimensão/geração
própria
(quinta
dimensão/geração) para ressaltar sua importância e necessidade de efetivação.
Mais do que classificá-lo em uma das gerações/dimensões, importante é
perceber que tal direito humano já é uma exigência consagrada e é basilar para a
consagração da dignidade da pessoa humana.
Desta forma, partindo-se da concepção de que tanto nacionalmente quanto
internacionalmente (ONU e grandes potências) já se sabia da iminência do
massacre em Ruanda, bem como da existência de um já consolidado entendimento
sobre o direito à paz, surge-se um questionamento: o que explicaria o assassinato
do presidente Habyarimana e o massacre posteriormente realizado?
As explicações podem ser realizadas tanto sob o ponto de vista histórico
quanto em relação à teoria do poder, a qual também é imprescindível para que os
direitos humanos sejam realizados.
Sob o ponto e vista histórico, pode-se afirmar que, em primeiro lugar, a
França era um grande aliado do governo ruandês. Já em relação aos Estados
1
Processo este que compreende a luta constante, em face dos detentores do poder, para que sejam
reconhecidos e efetivados os direitos humanos. (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010)
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Unidos da América, uma intervenção militar ocorrida na Somália, pouco tempo
antes, dá tônica da omissão:
Eles tentaram uma intervenção [na Somália], mas entram no país sem
um conhecimento profundo do que acontece, muito por conta de uma
certa arrogância militar. [...] Eles tinham a ideia de que aquilo ia durar
três meses, iam sair de lá com uma vitória completa. Um filme que
retrata bem isso é 'Falcão negro em perigo'. Eles foram fazer uma
operação no centro da capital e um dos helicópteros caiu. O episódio foi
televisionado e a comunidade americana ficou chocada. Tudo caiu em
cima do [ex-presidente Bill] Clinton. Logo depois disso ficou decidido que
eles só interviriam se houvesse extremo interesse, porque ficar fazendo
missão de paz só pela questão de direitos humanos não interessava,
porque a vida de um soldado americano é muito mais importante. Então
quando eles entram no Oriente Médio, por exemplo, é porque existe um
interesse efetivo lá, é legitimada a morte de um soldado, ainda que
cause grande problemática (ARAUJO, 2014).
Contudo, isso não explica os fatos pelos quais os motivos que levaram os
demais países não intervirem no conflito, o que apenas pode ser explicado pela
teoria o poder.
Os direitos humanos devem ser concebidos como uma forma de limitação do
poder Estatal, o qual necessita da força para sua concretização. (SILVEIRA;
ROCASOLANO, 2010) Contudo, Ruanda, bem como a minoria ética massacrada,
sob o ponto de vista do poder, é um não possuem grande relevância econômica no
cenário nacional. Desta forma, dentro da comunidade internacional, não houve
interesse em envolver-se na questão.
Tudo o aqui traçado ajudar entender os motivos pelos quais a UNAMIR
(United Nations Assistance Mission for Rwuanda), com recursos limitados, pouco
contingente e mandato reduzido, apesar de constituída e atuante na região, não foi
capaz de impedir o massacre em análise.
2. Os Tribunais Penais Internacionais: concepção, objetivos e críticas
Em que pesem que atualmente exista um tribunal permanente, ainda assim,
importante ressaltar sobre os tribunais temporários que foram criados, uma vez que
foram
os
responsáveis
pela
demonstração
da
viabilidade
dos
tribunais
internacionais. Os tribunais temporários existem pela premência na apuração de
fatos tidos por criminosos na esfera internacional faziam a adoção de sistemas
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precários visando apurar os responsáveis pelas atrocidades, conforme veremos a
seguir.
Por exemplo, terminado o conflito (2ª Guerra Mundial), os vencedores 2
decidiram julgar os líderes das nações derrotadas com a criação de inéditos
tribunais para apuração dos crimes de guerra. Os primeiros a serem criados foram
os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, ambos com o objetivo de julgar criminosos
da Segunda Guerra Mundial.
A sede escolhida para os julgamentos dos alemães3 foi a cidade de
Nuremberg, na Alemanha4 que nos anos anteriores à guerra havia sido palco dos
maiores comícios nazistas, os discursos de Hitler.
Outro tribunal instituído à época foi o tribunal de Tóquio5, com o fito de apurar
os crimes cometidos pelos lideres japoneses durante a guerra. Esse Tribunal seguiu
os mesmos parâmetros do Tribunal de Nuremberg, ou seja, também criado para
julgar crimes cometidos na 2ª Guerra Mundial.
Portanto, tribunais completamente provisórios (ad hoc), criados para julgar
fatos específicos que ocorreram e que trouxeram grande repercussão na esfera
internacional. Nessa ordem, a criação dos tribunais ad hoc, ocorreu como meio de
justificar ao mundo, punições aos algozes da humanidade naqueles fatos.
Importante consignar, a doutrina costuma desmerecer a criação desses
tribunais. Criados após o fato criminoso e especificamente para julgar aqueles casos
2
Embora, de certa forma, num primeiro momento atendessem às pressões públicas ante as
atrocidades cometidas nos referidos países, a posteriori, e sob o crivo de uma análise mais detida da
forma e do enfrentamento das questões via tribunais ad doc, difundiu um vazio humanitário
angustiante na atitude dos vencedores sobre os vencidos.
3
O Tribunal de Nuremberg - surgiu ao final da 2ª Grande Guerra. Após diversos debates sobre a
responsabilização dos alemães pelas bárbaras atrocidades cometidas naquele período. A França, os
Estados Unidos da América, o Reino Unido e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
assinaram em Londres, em 8 de agosto de 1945, o ato constitutivo do Tribunal Penal Militar, para
processar e punir os criminosos da guerra. Apurados 13 julgamentos entre 1945 e 1947. Os juízes
são norte-americanos, britânicos, franceses e soviéticos. Dos 177 alemães indiciados, 25 são
condenados à morte, 20 à prisão perpétua e 97 a penas mais curtas de prisão. São absolvidos 35.
4
Entrementes, a busca pelo julgamento dos responsáveis contribuiu para a descoberta dos campos
de concentração e extermínio em diversos locais.
5
Tribunal Militar de Tóquio - Fundado por uma proclamação do General MacArthur, cuja corte era
composta por Austrália, Canadá, China, EUA, Filipinas, França Grã-Bretanha, Holanda, Índia, Nova
Zelândia e URSS. Julgou ao todo 25 acusados. O Chefe da Acusação era norte-americano. Cada réu
teve um advogado norte-americano e um japonês. Mostra-se, notoriamente um tribunal viciado em
termos jurídicos, portanto ilegal e notadamente de exceção. O Japão visando socorrer seus pares,
promulgou uma lei chamando para si a responsabilidade pelo julgamento dos criminosos, pretendia
com isso abrigar-se no princípio de que uma pessoa não pode ser julgada mais de uma vez pelo
mesmo crime (non bis in idem), entretanto, não obteve o resultado esperado.
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em questão. Logo, seriam tribunais de exceção, maculando os princípios basilares
de Direito Penal. Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 55 - 56) aduz:
[...] uma lei penal incriminadora somente pode ser aplicada a um fato
concreto, caso tenha tido origem antes da prática da conduta para a
qual se destina. Como estipulam o texto constitucional e o art. 1° do
Código Penal, 'Não há crime sem lei anterior que o defina', nem
tampouco pena 'sem prévia cominação legal'. De nada adiantaria
adotarmos o princípio da legalidade, sem a correspondente
anterioridade, pois criar uma lei, após o cometimento do fato, seria
totalmente inútil para a segurança que a norma penal deve
representar a todos os seus destinatários. O indivíduo somente está
protegido contra abusos do Estado, caso possa ter certeza de que
leis penais são aplicáveis para o futuro, a partir de sua criação, não
retroagindo para abranger condutas já realizadas.
Portanto o princípio da anterioridade, estabelece que ninguém pode ser
condenado se praticou um ato, e que nesse momento, tal ato não era considerado
crime e somente depois passou a ser considerado tipificado como conduta
criminosa.
Já o princípio da legalidade6, o qual dá validade à segurança jurídica, outro
instituto de extrema relevância que também não foi respeitado pelos tribunais
temporários de Nuremberg e Tóquio (ad hoc).
Eneida Orbage de Brito Taquari observa acerca da não aplicação de
princípios do Direito Penal ao Tribunal de Nuremberg:
O princípio da Responsabilidade Penal Individual, da Culpabilidade e
da Obediência ao Devido Processo Penal, os Princípios da Reserva
Penal e do Juiz Natural não foram obedecidos, porque os crimes
apesar de previstos em convenções internacionais, não possuíam os
preceitos primário e secundário, logo não descrevia a conduta
humana e o resultado pretendido, como também não previa a
sanção, se a privativa da liberdade, restritivas de direito ou
pecuniária. Quanto ao Juiz Natural era inexistente, porque os leigos
que funcionavam como juízes não possuíam competência para
conhecer da matéria, apreciá-la e ao depois julgar procedente ou não
a acusação. (TAQUARY, 2004, p. 99).
Mais recentemente foi criado o Tribunal ad hoc para a ex-Iugoslávia7, tinha
6
Importante verificar, neste caso, que o próprio Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi instituído pela
resolução nº 955 do Conselho de Segurança da ONU, a qual fixou algumas das competências e crimes que
seriam analisados.
7
Tribunais para a ex-Iugoslávia - O objetivo era investigar as sérias violações ao Direito Humanitário
Internacional, cometidas no Território da antiga Iugoslávia, desde 1991, incluindo assassinato em massa,
detenção sistemática e organizada, estupro de mulheres e a prática de limpeza étnica, ou seja, aquela com o
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por objetivo investigar as sérias violações ao Direito Humanitário Internacional,
cometidas no Território da antiga Iugoslávia. Destaca-se também, recentemente, a
criação do Tribunal Penal para Ruanda8 (1994).
Apesar do reconhecido valor histórico e desenvolvimentista no trato a
efetivação dos direitos humanos, a criação dos Tribunais Penais Internacionais 9 ad
hoc para Nuremberg (Alemanha – 1945), Tóquio(1945), ex-Iugoslávia10 (em 1993), e
Ruanda11 (em 1994), comportaram muitas críticas12. Não devemos nos esquecer
que a criação, instalação, funcionamento e consequências dos Tribunais ad hoc,
suscitam, até os dias atuais, questionamentos quanto a sua legitimidade, sua
natureza de exceção, procedimentos e à sua eficácia.
Os Tribunais de exceção (ad hoc) violam o sistema de direitos, garantias
individuais e fundamentais individuais. Contudo, ainda que precários sob tal
concepção, representaram um importante passo para o processo de formalização e
reconhecimento dos Direitos Humanos na esfera mundial. Muito embora tenham
suas críticas reconhecidas pelos protetores dos direitos humanos, representaram
avanços13 na conquista de um Tribunal Penal Internacional permanente, atendendo
aos anseios e interesses da comunidade internacional.
Ademais, importante ressaltar que esses tribunais desapareceram ou
desaparecerão14 após efetuar todos os julgamentos dos responsáveis pelos crimes
cometidos.
Tais ideias repercutiram para que houvesse a criação do Tribunal Penal
objetivo de exterminar determinado povo.
8
Tribunal para Ruanda (TPIR) – Ruanda - País da África Oriental que se tornou independente em 1962. Sua
população é composta por basicamente por duas etnias principais: Os hutus, mais ou menos (80 %) da população
e os tutsis com um pouco menos de (20%). A relação entre ambas etnias sempre foi conflituosa, no limite da
suportabilidade. A disputa por ideologia política, econômica e social sempre foi aparente. A problemática
culminou com a morte de aproximadamente 800 mil pessoas.
9
Apresentamos os tribunais ad hoc princípais. Realizados e atuando in loco, em diferentes partes do mundo.
10
Tribunal ad hoc para a ex-Iugoslávia – instituído para julgar as pessoas responsáveis por violações graves do
direito internacional humanitário cometidas na ex-Iugoslávia (a partir de 1991).
11
Tribunal ad hoc para Ruanda – criado para julgar as pessoas responsáveis por graves crimes cometidos
durante os conflitos armados internos em Ruanda (no decorrer de 1994), onde aproximadamente 800 mil pessoas
foram mortas no confronto entre as etnias Tutsis e Hutus, reafirmando assim o consagrado princípio da
responsabilidade penal individual por violações aos direitos humanos.
12
A história contada pelos vencedores. A comunidade de Direitos Humanos questiona a cruel decisão dos
americanos quanto aos destinos de Hiroshima e Nagasaki, dizimadas pela bomba atômica.
13
Os tribunais ad hoc, registraram algumas questões importantes, a ONU baseou-se em Nuremberg e decidiu
que a responsabilidade sobre os crimes praticados não prescreve, mesmo que internamente houver limite fixado
por lei. Os julgamentos nos tribunais de exceção, deram origem às regras sobre experimentos (experiências)
realizados em seres humanos.
14
Em agosto de 2015 ocorrerá o último julgamento no Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Em seguida,
será também extinto, como os demais tribunais ad hoc.
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Internacional (TPI). Importante ressaltar que, desde 1948, se discutia na
Organização das Nações Unidas sobre a criação de um tribunal penal internacional
de caráter permanente em virtude das atrocidades ocorridas na Segunda Guerra
Mundial, as quais apontavam para necessidade de um órgão capaz de punir os
crimes de lesa-humanidade.
Jorge Bacelar Gouveia aponta a evolução do Direito Penal Internacional em
cinco fases15. Observa-se, a evolução histórica do Direito Internacional Penal, na
forma apresentada pelo autor, passa num primeiro momento pelo direito
consuetudinário, expondo condutas criminosas, cuja punição ocorria no âmbito dos
Estados, e não por organismos internacionais. Num segundo momento, por uma
afirmação circunstancial (substantiva e processual), essa fase correspondeu a
criação dos primeiros Tribunais ad hoc (Nuremberg e Tóquio) e a definição de outros
crimes internacionais por meio dos tratados. A terceira fase seria a afirmação
substantiva geral, onde ocorreram a celebração de tratados internacionais sobre
crimes de relevância internacional e humanitária. Outra fase compreenderia a
afirmação pontual e processual (Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para
Ruanda), bem como de outros tribunais internacionalizados dentro do âmbito de
Estados. Por fim a última fase, da afirmação Global, substantiva e processual, com a
criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) (GOUVEIA, 2008, p. 105 – 106).
Compreensível que as experiências e o desenvolvimento das fases
mencionadas propiciaram e possibilitaram a criação do Tribunal Penal Internacional.
No decorrer da história, vários sistemas para garantir a proteção do indivíduo foram
utilizados. O indivíduo desponta como sujeito de Direito Internacional em sua
subjetividade, não só ativa, mas principalmente na acepção passiva perante os
tribunais internacionais de direitos humanos (TRINDADE, 2013, p. 30). Esse
desiderato atende ao desenvolvimento do ideal de justiça almejado pela doutrina de
direito internacional.
15
a) Afirmação costumeira geral, que foi a criação consuetudinária de crimes internacionais e a
autorização para seu julgamento pelas juridições dos Estados; b) Afirmação circunstancial,
substantiva e processual, que compreende a criação dos primeiros Tribunais penais internacionais de
Nuremberg e de Tóquio e a definição de outros crimes internacionais por meio dos tratados; c)
Afirmação substantiva geral: a celebração de alguns relevantes tratados internacionais sobre crimes
internacionais sobre crimes de monta; d) Afirmação pontual e processual, com a criação dos Tribunais
penais internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda e de tribunais internacionalizados
que funcionam dentro do âmbito de Estados; e) Afirmação Global, substantiva e processual, que
culminou com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) pelo Estatuto de Roma. Muito dessa
fase foi resultado da experiência da criação, na fase anterior, dos tribunais ad hoc para Ruanda e
para a ex-Iugoslávia.
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015
A criação de um tribunal Penal Internacional, busca a preservação do ideal de
um ordenamento jurídico internacional em que violadores graves dos direitos
humanos sejam julgados e penalizados, não deixando sem sanção os agressores
dos direitos humanos, dos crimes de lesa-humanidade.
O Tribunal Penal Internacional foi criado pelo Estatuto de Roma em 1998.
Uma conferência de plenipotenciários (representantes dos Estados) se formou e foi
aprovado por 120 representantes dos Estados. A Corte foi então criada, porém
entrou em vigor em 01/07/2002 após a 60ª ratificação. O Tribunal Penal Internacional
vem se destacando no cenário mundial. No Brasil, o Estatuto de Roma já foi
incorporado pelo Decreto 4388/2002.
O Tribunal Penal Internacional está apto a julgar crimes que ocorrerem após a
entrada em vigor do Estatuto de Roma. Perfeitamente em consonância aos
princípios da Anterioridade e Legalidade, haja vista que sua criação anterior aos
fatos que apurará, com as cominações legais previamente dispostas.
A Corte julga os crimes16 de guerra, genocídio, agressão e crimes contra a
humanidade. Observa-se que há descrição pormenorizada dos tipos penais
(descreve cada uma das condutas). Possui atualmente 18 Juízes (esse número
pode ser elevado) e também o Gabinete do Procurador, que tem poderes de
investigação, recebe denúncias e elabora a ação penal.
O Tribunal Penal Internacional tem jurisdição universal, internacional e
permanente. Portanto, tem caráter de durabilidade, definitivo, estável (não é ad hoc).
Criado para existir sempre, para perdurar no tempo.
Submete-se ao princípio da complementaridade, ou seja, significa que o
Tribunal Penal Internacional é complementar as legislações dos Estados, isto é,
complementar a jurisdição, subsidiária a ela. Assim, o Estado que ratificou o tratado
de Roma, deverá julgar o crime. Entretanto se o Estado se omitir, ou julgar de modo
displicente (por razões políticas ou de poderio econômico), apenas para afastar a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional, a Corte deverá atuar para que o culpado
16
Crime de Genocídio - artigo 5º(I) (a), do Estatuto de Roma. Exemplo: o genocídio ocorrido em
Ruanda onde ocorreu o massacre de mais de 800.000 pessoas do povo tutsi;
Crime de Guerra - artigo 8º, do Estatuto de Roma. Caracterizado por violação grave das normas
aplicáveis no contexto de conflitos armados e dar ensejo a responsabilidades criminais individuais;
Crime de Agressão - artigo 8º, do mesmo Estatuto – possui relação com as normas aplicáveis antes
do início do conflito;
Crimes contra a humanidade - artigo 7º do Estatuto de Roma. A norma em questão prevê que
configuram crimes contra a humanidade, dentre outros: (a) Homicídio; (b) Extermínio; (d) Deportação
ou transferência forçada de uma população; (f) Tortura; e (i) Desaparecimento forçado de pessoas.
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pelo delito não fique sem punição.
Cumpre observar, o Estatuto de Roma é um tratado de direitos humanos, e,
consta da Carta Fundamental (art. 5º, § 4º)17 portanto foi incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro como norma supralegal, ou seja, aquela que está
logo abaixo da Constituição Federal, porém acima da lei ordinária.
Por fim, a criação do Tribunal Penal Internacional, significou evolução 18 na
sistemática de apuração de crimes internacionais, mormente aqueles mais
relevantes para a humanidade.
Analisados os conceitos de tribunais temporários, suas críticas benefícios,
bem como o fato de que eles resultaram na concepção de um Tribunal Penal
Internacional de caráter permanente, adiante serão verificados alguns dos casos
julgados no Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR)
3 Os julgamentos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR)
Neste capítulo abordaremos de forma seletiva a jurisprudência do Tribunal
Penal Internacional para Ruanda, buscando compreender a operacionalização
desse órgão no âmbito da problematização proposta na presente pesquisa.
O estudo da racionalidade da instituição e da atuação prática do TPIR expõe
a tragédia em suas entranhas ao mesmo tempo em que evidencia a letargia da
comunidade internacional na época que antecedeu o sangrento episódio.
Optamos por evidenciar, em amostragem seletiva, entre os setenta e um
procedimentos em que o TPIR atuou, o tratamento conferido a quatro processos
paradigmáticos, levando-se em conta especialmente a posição estrategicamente
relevante ocupada dos sujeitos acusados no contexto dos violentos acontecimentos
em Ruanda.
Para tanto, nos debruçaremos sobre os processos publicados na íntegra no
portal
eletrônico
oficial
do
Tribunal
Penal
Internacional
para
Ruanda
(http://www.unictr.org/en/cases).
17
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
18
Outro avanço importante na criação dos Tribunais (Nuremberg, Tóquio, Ex-Iugoslávia e Ruanda) contribuiu
foi com a ideia de limitação da soberania nacional, agindo de forma complementar em caso de falha ou omissão
nos sistemas internos.
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Num primeiro momento, trataremos do primeiro caso processado e julgado
pelo TPIR, por ser o precursor de todos os outros processos, inaugurando os
parâmetros conceituais daquela Corte sobre genocídio e crimes contra a
humanidade.
Em seguida, abordaremos os processos que levaram a julgamento as altas
autoridades políticas de Ruanda à época do ápice da violência em Ruanda.
Num terceiro momento, o foco das pesquisas será o processo e julgamento
das autoridades militares responsabilizadas pela execução dos crimes e violações
ocorridas no ano de 1994, em Ruanda.
Finalmente, análise da jurisprudência do TPIR por amostragem de casos se
voltará na direção do processo que levou a julgamento três ruandeses hutus que
disseminaram, através de meios de comunicação de massa, propagandas
instigadoras de violência.
Extrair-se-á dos processos estudados, a previsibilidade do dramático
desfecho do conflito que há anos vinha sendo costurado aos olhos da comunidade
internacional, afirmando assim a questão central debatida na presente pesquisa.
3.1 Processo número ICTR-96-4. Acusado Jean Paul Akayesu
Akayesu, burgomestre da comuna de Taba, foi indiciado em 13 de fevereiro
de 1996, sendo-lhe imputada a prática de genocídio (assassinato de dois mil tutsis)
e crimes contra a humanidade (assassinato, tortura e estupro).
As investigações indicaram que Akayesu comandava a força policial cujos
integrantes praticaram estupros em série, torturas e assassinatos contra tutsis de
Taba, havendo testemunhos de que muitos desses atos teriam sido praticados nos
prédios das repartições públicas chefiadas pelo acusado.
O indiciamento foi aceito em 16 de fevereiro de 1996.
No curso do processo sessenta e três testemunhas foram ouvidas e ao cabo
de sessenta dias o julgamento foi proferido, condenando-se o acusado a prisão
perpétua.
Segundo Luiz Augusto Módolo de Paula (2011), por inaugurar toda uma
sequencia de processos, neste primeiro caso toda a história do conflito foi
reconstruída, havendo intensa produção de prova pericial e testemunhal que retratou
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015
de forma generalizada o contexto da guerra civil de Ruanda até o desfecho trágico
que levou ao extermínio de cerca de mais de oitocentas mil pessoas.
Neste processo, ficou definido o que se poderia entender, para o caso
Ruanda, o que seria genocídio, estabelecendo-se o necessário dolo específico de
exterminar no todo ou em parte um grupo étnico, reconhecendo-se os tutsis como
tal. Essa concepção orientaria todos os demais processos que sucederam o caso
Akayesu.
Da mesma maneira, determinou-se a ideia de crimes contra a humanidade
no contexto dos eventos violentos de Ruanda, definindo-os como ataques
disseminados e sistemáticos aos cidadãos de etnia tutsi, conceito que também
apoiaria o julgamento de todos os demais acusados nos processos seguintes.
Curioso o entendimento fixado pela Câmara de Julgamento do caso
Akayesu, segundo o qual os atos de abuso sexual praticados no contexto da
violência generalizada que vitimou as mulheres tutsis deveriam ser entendidos como
uma variante de genocídio, por resultar na destruição física e mentalmente dessas
pessoas e, consequentemente, do próprio provo tutsi, conforme consta no parágrafo
508 do Processo ICTR-96-4:
Além disso, a Câmara observa que as medidas destinadas a impedir
nascimentos no seio do grupo pode ser física, mas também pode ser
mental. Por exemplo, o estupro pode ser uma medida destinada a
evitar o nascimento, quando a pessoa violada se recusa
subsequentemente a procriar, da mesma forma que os membros de
um grupo podem ser conduzidos, através de ameaças ou
traumatismo, e não para procriar.
Assim é que o Processo ICTR-96-4 (caso Akayesu) definiu conceitos que
serviriam como parâmetros definidores para os processos seguintes, além de
reconstruir o contexto generalizado dos trágicos acontecimentos de Ruanda,
expondo circunstâncias até então não registradas oficialmente e reunindo
informações que apoiariam os julgamentos subsequentes.
3.2 Processo número ICTR-97-23. Acusado: Jean Kambanda
Jean Kambanda assumiu o comando de Ruanda após a queda do avião em
que estava o Presidente da República, permanecendo a frente da cúpula do governo
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015
durante o ápice da violência generalizada que resultou no extermínio de cerca de
oitocentos mil cidadãos de etnia tutsi.
Kambanda foi indiciado em 16 de outubro de 1997, condenado a prisão
perpétua em 4 de setembro de 1998, tendo recorrido da condenação que foi
confirmada pela Câmera de Apelação em 19 de outubro de 2000.
A condenação do líder máximo de um país transmite a mensagem de que
ninguém pode estar imune a punição, sobretudo quando se trata de crime contra a
humanidade.
Jean Kambanda tinha sob seu comando todos os órgãos de força de
Ruanda e usou a sua autoridade para tornar possível a implementação de um plano
de extermínio da etnia tutsi que visava garantir a hegemonia dos hutus.
Destaca-se neste caso a circunstância de o acusado ter confessado os seus
crimes como resultado de um acordo com a promotoria. Esta confissão e este
acordo foram considerados válidos pela Câmara de Julgamento mas, curiosamente,
não foi considerada na sentença que impôs a pena máxima sem reconhecimento de
qualquer atenuante.
Além do primeiro-ministro Jean Kambanda, Casimir Bizimungu (Ministro da
Saúde), Justin Mugenzi (Ministro do Comércio e Indústria), Jérôme Bicamumpaka
(Ministro de Assustos Exteriores e Cooperação) e Prosper Mugiraneza (Ministro do
Serviço Público), também foram processados e condenados pelo TPIR (processo
número ICTR-99-50), apontados como mentores da violência generalizada que
resultou na tragédia ruandesa.
Nas investigações que resultaram na condenação dessas autoridades, ficou
evidenciada que as mortes de centenas de milhares de cidadãos tutsis e hutus
moderados, configuraram o desfecho de uma estratégia inteligentemente costurada
pelo partido político que pretendia a hegemonia definitiva no poder em Ruanda.
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3.3 Processos número ICTR-98-41 e ICTR-00-56. Acusados: Théoneste
Bagosora, Gratien Kabiligi, Anatole Nsengiyumva, Aloys Ntabakuze, Augustin
Bizimungu,
Augustim
Ndindiliyimana,
François-Xavier
Nzuwonemeye
e
Innocent Sagahutu
Detentores das mais altas patentes das forças militares de Ruanda, esses
acusados foram apontados como sendo os comandantes diretos dos massacres que
ocorreram ao longo do ano de 1994.
Théoneste Bagosora destacou-se por ser o mandante da morte de inúmeras
autoridades, além de sete soldados belgas que estavam a serviço da ONU em
Ruanda.
Esses oficiais teriam participado do planejamento que objetivava o
extermínio da etnia tutsi e a hegemonia dos hutus.
A condenação de generais de patente máxima transmite a mensagem de
que a hierarquia militar não se sobrepõe aos valores humanos e que não há escusa
para aqueles que cumpram ordens que venham a resultar em atentados contra a
humanidade.
Da leitura dos processos que analisou a responsabilidade desses oficiais,
expõe-se um conluio entre autoridades civis e militares num plano de extermínio que
foi gestado ao longo de um período demorado, sob as vistas inertes de toda a
comunidade internacional.
3.4. Processo número ICTR-99-52. Acusados: Jean-Bosco Barayagwiza e
Ferdinand Nahimana (Rádio e Televisão Libre des Mille Collines) e Hassan
Ngeze (Revista Kangura)
Responsabilizados por disseminar uma campanha de ódio contra os tutsis,
utilizando-se dos dois veículos midiáticos mais populares em Ruanda.
Durante as investigações que resultaram no processo e condenação dos
acusados, comprovou-se a influência do partido político do governo de Ruanda na
rádio, na televisão e na revista.
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Reiteradamente, propagandas que estimulavam o extermínio das “baratas”
(termo pejorativo dado aos tutsis pelos hutus) eram veiculadas nesses meios de
comunicação.
Através de longo período de veiculação de propagandas que utilizavam
linguagem estrategicamente construída, foi introduzida e incentivada a ideia de
extermínio e ódio contra a etnia tutsi, formando assim, entre os hutus, um senso
comum de violência que culminou em um clima apropriado para o desfecho extremo
de 1994.
Conclui-se, portanto, pela análise da Jurisprudência do TPIR, que os
processos que levaram a condenação de autoridades, comandantes militares e
integrantes dos principais veículos de comunicação, revelam uma aliança
estratégica que visava o desfecho trágico de 1994, previsível e evitável, se a
comunidade internacional estivesse honestamente comprometida com os ideais
humanos.
Conclusão
O presente trabalho objetivou verificar a responsabilidade internacional em
relação às violações do direito humanitário em Ruanda em virtude do massacre
acontecido em 1994 e os motivos da inexistência de qualquer atitude mais enérgica
da comunidade internacional para evita-lo, apesar de informados de tal
possibilidade, bem como o que foi feito posteriormente para responsabilizar os
agentes que cometeram tais atrocidades.
O primeiro capítulo procurou analisar o histórico do conflito, bem como os
motivos que levaram à comunidade internacional em não interferir com veemência
na região.
Já o segundo capítulo verificou os Tribunais Internacionais, bem como toda
a estrutura do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, analisando-se os motivos
que levaram para que houvesse uma violação dos princípios da vedação aos
tribunais de exceção e da anterioridade penal na sua constituição.
Em relação ao terceiro capítulo, buscou-se verificar o resultado dos
julgamentos realizados no Tribunal Penal Internacional para Ruanda.
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015
Da análise em questão, conclui-se que fatos históricos, bem como a
irrelevância econômica de Ruanda, levaram à inexistência de qualquer medida
enérgica da comunidade internacional para evitar o conflito em 1994. Contudo, em
que pese tal questão, nota-se que, posteriormente, a comunidade internacional
despertou para toda a problemática ao realizar a instauração do Tribunal Penal
Internacional para Ruanda e julgando os crimes cometidos.
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Artigo aprovado em 21/06/2015 : Recebido em 24/05/2015
Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo, S. B. do Campo, v.1, n.21, jan./jun. 2015

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