Esboço de sumário para a Revista Guavira nº 11

Transcrição

Esboço de sumário para a Revista Guavira nº 11
ISSN 1980-1858
GUAVIRA LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS/Campus de Três Lagoas
Guavira Letras
Três Lagoas
v.11
n.1
p. 1-198
ago./dez. 2010
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Reitora
Célia Maria da Silva Oliveira
Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini
Pró-Reitor de Pós-graduação
Dercir Pedro de Oliveira
Diretor do Campus de Três Lagoas
José Antônio Menoni
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras
Kelcilene Grácia Rodrigues
GUAVIRA LETRAS
Revista do Mestrado em Letras da UFMS
Conselho Editorial
Eneida Maria de Souza (UFMG)
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José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
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Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Comissão Editorial
Kelcilene Grácia Rodrigues
Rauer Ribeiro Rodrigues
Taísa Peres de Oliveira
Vitória Regina Spanghero Ferreira
Claudionor Messias da Silva (Apoio Técnico)
Diagramação
Comissão Editorial
© Copyrigth 2010 – os autores
Guavira Letras / Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 1 (2005)- . – Três Lagoas, MS.
Semestral
Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010)
Tema especial: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales
ISSN: 1980-1858
Organização deste volume: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales
Pareceristas deste número:
Alex Beigui (UFRN)
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado (UFMS/Três Lagoas)
Antonio Rodrigues Belon (UFMS/Três Lagoas)
Danglei de Castro Pereira (UEMS)
Éverton Barbosa Correia (UFMS/Três Lagoas)
Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
José Batista de Sales (UFMS/Três Lagoas)
Kelcilene Grácia Rodrigues (UFMS/Três Lagoas)
Luciano Justino (UEPB)
Luiz Eduardo Meneses de Oliveira (UFS)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/Corumbá)
Ravel Giordano Paz (UEG)
Ricardo de Souza Carvalho (USP)
Rosana Cristina Zanelatto dos Santos (UFMS/Campo Grande)
Sílvio Roberto de Oliveira (UNEB)
Wagner Corsino Enedino (UFMS/ Três Lagoas)
Todos os direitos reservados
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Programa de Pós-Graduação em Letras
Câmpus de Três Lagoas – Três Lagoas/MS
CEP: 79610-011
Fone: +55 (67) 3509-3425
Portal: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira
[email protected]
Guavira
no11
Sumário
O TEXTO POÉTICO: COMPARATIVISMO, FONTES PRIMÁRIAS E OUTRAS SEMIOSES
THE POETIC TEXT: COMPARATIVISM, PRIMARY SOURCES AND OTHERS SEMIOSIS
6
APRESENTAÇÃO
ARTIGOS/ ARTICLES
O poeta romântico e as velhinhas
The romantic poet and the litlle old ladies
Alexandre Bebiano de Almeida – USP
8-18
Gonçalves Dias, o índio e a liberdade
Gonçalves Dias, the indigenous and the liberty
Wilton José Marques – UFSCar
19-29
Cesário Verde e Pissarro: retratos da modernidade no século XIX
Cesário Verde and Pissarro: portraits of modernity in the nineteenth century
Célia Regina Lessa Aleixo – UEM
Thomas Bonnici – UEM
30-41
As viagens de Manuel Bandeira pela cidade de Ouro Preto
Manuel bandeira’s trips in the city of Ouro Preto
Ilca Vieira de Oliveira – UNIMONTES
42-51
A molecada, o menino, o poeta e o balão
The kids, the boy, the poet and the balloon
Wilson José Flores Júnior – UFRJ
52-60
Joaquim Cardozo, leitor de Manuel Bandeira
Joaquim Cardozo, reader of Manuel Bandeira
3verton Barbosa Correia – UFMS
61-70
O mito prometeico na trajetória de Murilo Mendes
The prometheus’ myth in the poetic trajectory by Murilo Mendes
Wanderlan da Silva Alves – UNESP/ São José do Rio Preto
Diego de Jesus Rosa Codinhoto – UNESP/ São José do Rio Preto
71-85
Drummond: biografia, realismo e modernidade
Drummond: biography, realism and modernity
Albertina Vicantini – PUC/GO
Maria Elizete de Azevedo Fayad – UEG
86-93
Os “Sete Poemas Portugueses”, de Ferreira Gullar: “portugueses”?
“Sete Poemas Portugueses”, by Ferreira Gullar: “portugueses”?
Odil José de Oliveira Filho – UNESP/Assis
94-101
Poesia de conflito nos anos 70: Paulo Leminski e os sinais excêntricos de seu neorromantismo
Poetry of conflict in the 70’s: Paulo Leminski and signs of his neoromantism
Robson Coelho Tinoco – UnB
102-119
Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre Raoul Ubac
Yves Bonnefoy and the image, with a note about Raoul Ubac
Pablo Simpson - Université de Yaoundé I
120-129
3|Página
Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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O casamento de texto e imagem nos primeiros livros de William Blake
The marriage of text and image in the first books of William Blake
Enéias Farias Tavares – UFSM
130-138
Poesia e pintura abstrata: a música das cores
Poetry and abstract painting: the music of colours
Jacineide Travassos – Universo
139-148
A poética do espetáculo
The poetics of spectacle
Suilei Monteiro Giavara – UNESP/Assis
Ana Maria Domingues de Oliveira – UNESP/Assis
149-160
Elementos da experiência nacional de expressão rural reinterpretados na forma literária
Elements of the experience of expression national rural reinterpreted in the literary form
Maria Suely da Costa – UEPB
161-172
RESENHAS/ REVIEWS
Fábulas farsas por André Teixeira Cordeiro – FAM/FCS
174-177
Objeto algum por Alexandre de Melo Andrade – FABAN
178-179
DISSERTAÇÕES/MASTER DISSERTATIONS
181-183
4|Página
Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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APRESENTAÇÃO
Com o número 11, a Revista Guavira vem contemplar a leitura de poemas por meio de
fontes primárias, quer tomemos o trabalho com cartas, diários, biografias, periódicos, ou
ainda, outras linguagens, a exemplo da pintura e da música. Sendo assim, o próprio
entendimento do fenômeno poético sofre alteração, na medida em que o texto passa a ser lido
em face de outra matriz discursiva, não necessariamente de natureza verbal. Por isso, é fácil
identificar neste volume a atualização do adágio clássico segundo o qual há um vínculo
intrínseco entre a poesia e a pintura. Aliás, em alguns casos, a apreciação do texto poético foi
feita em função do plano pictórico, como é o caso de artigos como “Cesário Verde e Pissarro:
retratos da modernidade no século XIX”, “Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre
Raoul Ubac”, “Poesia e pintura abstrata: a música das cores” ou “Texto e imagem nos
primeiros livros de Willian Blake”.
Por outro lado, é preciso ressaltar a incidência de cartas como suporte de apoio para a
leitura de poemas, o que foi quase uma constante na apresentação dos trabalhos. Isto tanto
pode ser aplicado a autores clássicos, como é o caso da leitura comparativa entre Victor Hugo
e Charles Baudelaire em “O poeta romântico e as velhinhas”; Ou ainda, a leitura de
Gonçalves Dias, que contextualiza a obra do nosso indianista no vivo diálogo com seus
contemporâneos no “Gonçalves Dias, o índio e a liberdade”; ou mesmo de autores pouco
conhecidos e que pedem revisão da historiografia literária como acontece com o artigo
“Joaquim Cardozo, leitor de Manuel Bandeira”.
A propósito, Manuel Bandeira foi o autor aqui mais freqüentado, fosse pelo filtro da
memória individual ou coletiva, como se identifica nos artigos “As viagens de Manuel
Bandeira pela cidade de Ouro Preto” ou “A molecada, o menino, o poeta e o balão”. Neste
particular, é preciso destacar o aparecimento da memória como chave de leitura de nossos
clássicos modernos, o que também se verifica nos artigos “O mito prometeico na trajetória de
Murilo Mendes” e “Drummond: biografia, realismo e modernidade”. Conviria destacar ainda
o aparecimento de poetas contemporâneos também permeáveis por indicações
memorialísticas que concorrem para a configuração do sujeito poético, como foi o caso de
Ferreira Gullar e de Paulo Leminski.
O volume incorporou artigos cujo recorte temático apontava para a dinamização da
leitura do fenômeno poético, fosse através da correlação entre retórica, imagem e
subjetividade poética, a exemplo do artigo “A poética do espetáculo” ou pela retomada da
discussão sobre nacionalidade através da cultura popular, tal como consta em “Elementos da
experiência nacional de expressão rural reinterpretados na forma literária.” Com isso,
franqueamos ao público uma amostragem de interpretações movidas por certa perspectiva de
leitura que se insinua como tendência nos estudos de poetas ou da poesia em geral, pelo que
nos sentimos gratos e parcialmente realizados.
Éverton Barbosa Correia
Kelcilene Grácia-Rodritgues
José Batista de Sales
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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ARTIGOS
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
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O POETA ROMÂNTICO E AS VELHINHAS
Alexandre Bebiano de ALMEIDA1
Où va-t-il ce navire ? Il va, de jour vêtu,
A l’avenir divin et pur, à la vertu,
A la science qu’on voit luire
A la mort des fléaux, à l’oubli généreux,
A l’abondance, au calme, au rire, à l’homme heureux.
Hugo, « Vingtième siècle »
Chaque jour vers l’enfer nous descendons d’un pas
Baudelaire, « Au lecteur »
RESUMO: Este artigo visa discutir as relações entre romantismo e modernidade mediante uma análise
comparativa de dois poemas: “Fantasmas”, de Hugo e “As Velhinhas”, de Baudelaire. A comparação tem como
objetivo abordar o legado romântico para a modernidade. Os dois poemas possuem um forte cunho narrativo e
participam do projeto romântico de revelar o papel importante desempenhado pelo poeta – e pela poesia – junto
às sociedades modernas. Mas, expostas as afinidades que unem esses poemas, examinaremos os elementos que
os diferenciam. Veremos assim que “As Velhinhas” parecem propor uma crítica a certas fantasias românticas
presentes no poema de Hugo.
PALAVRAS-CHAVE: Baudelaire. Hugo. Modernidade. Romantismo.
Introdução
A correspondência de Baudelaire pode guardar certas curiosidades. No mês de junho
de 1858, o poeta respondeu a uma crônica, “Os homens de amanhã”, publicado no Figaro
(1993, v. 1, p. 500-1).2 Neste artigo, um dos autores do jornal, Jean Rousseau, traça um retrato
virulento do poeta: para ele, Baudelaire seria a encarnação de Daniel Jovart, uma das
personagens do romance satírico Les Jeunes-Frances, de Théophile Gautier: a personagem
teria fugido das páginas de literatura para viver na realidade sob o nome de... Baudelaire.
Mas isso seria justamente “a imprudência” de seu plano de fuga: “ao escapar do livro de
Gautier, ele pensou somente em adotar um outro nome, quando somente adotando uma outra
carreira poderia anular as suspeitas sobre si” (ROUSSEAU, 1858, p. 3). À semelhança de seu
avatar, Baudelaire seria um desses jovens escrevinhadores de poucos escrúpulos, prontos para
realizar qualquer atitude para obter sucesso literário, até mesmo “o atentado à paz pública,
que acarretam de agora em diante, para os volumes condenáveis, a deportação perpétua desde
o cais Voltaire” (1858, p. 3).
Da carta-resposta de Baudelaire ao diretor do Figaro pode-se decerto deduzir o que
mais o teria incomodado neste retrato: ele era comparado aqui a um discípulo que faz pouco
de seus antigos mestres. Tal como diz Jean Rousseau: “Ele cresceu no seio do romantismo, é
a eles que deve tudo o que sabe. Mas o senhor Baudelaire passa agora sua vida a falar mal do
1
2
USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de
Letras Modernas. São Paulo – SP – Brasil – 05508-900 – E-mail: [email protected].
As traduções presentes no texto são de responsabilidade do autor.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
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romantismo”. De acordo com o cronista, Baudelaire teria respondido assim a alguém que
fazia referência ao autor das Contemplações: “Hugo! Quem é esse... Hugo? Será que alguém
conhece esse... Hugo?” (ROUSSEAU, 1858, p. 3). A declaração parece ferir o poeta das
Flores do mal; em sua carta, ele responde que esse comentário satírico não é somente uma
“prova de estupidez”, mas uma “monstruosidade” que sua boca jamais poderia pronunciar. E
conclui: “meu coração está pleno de reconhecimento e de amor para com os homens ilustres
que me acolheram com sua amizade e com seus conselhos” (1858, p. 4).
A carta de Baudelaire foi publicada no Figaro em 13 de junho de 1858, acompanhada
de uma réplica irônica de Jean Rousseau. Nesta, o cronista insistia que tinha ouvido ele
próprio as frases venenosas a respeito de Hugo e rogava ao autor das Flores do mal: “Que ele
procure bem nas suas lembranças. Ele pronunciou essas palavras memoráveis bem
publicamente, em pleno café ‘Le divan Pelletier’, há quatro anos” (1858, p. 4). Tudo somado,
a quem devemos dar crédito aqui? Ao cronista polemista de nítido caráter conservador? Ou
ao poeta de temperamento ambíguo? E pode-se lembrar que em sua correspondência
Baudelaire não hesita chamar Hugo de “néscio” e satirizar suas obras3, admitindo ainda que
conhece a “arte de mentir” no momento em que as resenha publicamente4.
Vamos encontrar novamente o nome de Hugo nas cartas de Baudelaire em setembro
de 1859, um ano após a polêmica no Figaro. Dessa vez, Baudelaire lhe pede um prefácio
para um livro sobre Gautier. A resposta de Hugo é conhecida e se tornará célebre: o poeta das
Flores do mal avança; ele realiza um passo adiante na literatura francesa; seus poemas criam
um “frisson novo” (HUGO, 2007, p. 297). É certo que a carta-prefácio pode ser considerada,
em boa parte, uma espécie de benevolência do artista maduro, do “grande homem”, para com
o estreante. Na carta de 1859, Baudelaire escreve a Hugo: “Senhor, preciso muito de você, e
invoco sua bondade. (...) Quero ser protegido. Publicarei humildemente o que o senhor se der
o trabalho de me escrever” (1993, v. 1, p. 596-7). Os propósitos desse pedido não devem soar
confusos para os estudiosos de hoje. O próprio Baudelaire explica ao editor de seu livro,
Poulet-Malassis, seu interesse: “Você compreende que essa carta, se ela for importante, pode
facilitar a venda do livro” (1993, v. 1, p. 604). As relações de favor entre o artista maduro e o
estreante tornam-se bem nítidas aqui; na abertura dessa carta, de 1º de setembro de 1859, o
poeta explica a seu editor que o autor das Contemplações não se negaria a redigir a nota,
porque Baudelaire não somente lhe tinha dedicado dois poemas, mas também havia escrito
um deles “à maneira de Hugo” 5.
A correspondência, bem como as relações que Baudelaire e Hugo mantiveram, foram
objeto de vários estudos6. No entanto, as relações literárias entre os dois autores podem
3
Em novembro de 1865, Baudelaire escreve a sua mãe, a senhora Aupick: “Caso você queira ler seu [de Hugo]
último volume (Canções de ruas e bosques), enviar-lhe-ei imediatamente. Como de hábito, enorme sucesso,
como venda. Frustração de todas as pessoas espirituosas após a sua leitura.” (1993, v. 2, p. 541, grifos do
próprio autor)
4
“Esse livro [Os Miseráveis] é imundo e inepto. A propósito dele, demonstrei que conhecia a arte de mentir.
Ele [Hugo] me escreveu uma carta absolutamente ridícula para me agradecer. Isso prova que um grande
homem pode ser um néscio” (BAUDELAIRE, 1993, v. 2, p. 541)
5
“Ele não pode, acredito, me recusá-la. Dediquei-lhe dois fantasmas parisienses, e a verdade é que no
segundo trecho tentei imitar seu estilo” (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 604)
6
Um resumo das relações entre os dois escritores se acha no verbete “Victor Hugo” do Dictionnaire
Baudelaire, de Claude Pichois e Jean-Paul Avice (2002, p. 227-233). As relações entre Baudelaire e Hugo
foram objeto de análises exaustivas de Léon Cellier (1970) e Micheline Rosenfeld (1981). Para a modernidade
dos dois poetas, pode-se consultar também Pierre Brunel (2004). Dentre os estudiosos brasileiros, podem-se
citar os trabalhos da professora Glória Carneiro do Amaral (2003; 2007), bem como a dissertação de mestrado
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
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Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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despertar inúmeras discussões. De que maneira compreender os elogios de Baudelaire à
poesia de Hugo? E pode-se lembrar um trecho das “Reflexões sobre alguns dos meus
contemporâneos”, de 1861: “Ignoro em que mundo Victor Hugo comeu previamente o
dicionário da língua que foi chamado a proclamar; mas vejo que o léxico francês, no
momento em que sai de sua boca, torna-se um mundo, um universo colorido, melodioso e
movente” (1975, v. 2, p. 133). Por outro lado, de que maneira compreender o desprezo
expresso por Baudelaire em seus Diários íntimos para com a poesia de Hugo? “Hugo Sacerdote mantém sempre a fronte inclinada; - inclinada demais para não ver nada, exceto seu
umbigo” (1975, v. 1, p. 665). Enfim, de que maneira compreender essas manifestações de
amor e desprezo de Baudelaire para com a poesia de Hugo? Neste artigo vamos tentar
explicar essas ambiguidades pelo contraditório legado que o romantismo deixa para a
modernidade, afinal, é o que admite Baudelaire em seu “Salão de 1859”: “O Romantismo é
uma graça, celeste ou infernal, a que devemos estigmas eternos” (1975, vol. 2, p. 645; citado
por PAIXÃO, 2010, p. 15).
Dois poemas
Para tornar mais claro esse problema, vamos comparar aqui dois poemas de Hugo e
Baudelaire: “Fantasmas” (1964, p. 666-671) e “As Velhinhas” (1975, p. 89-91). A escolha
dos poemas não é casual; “As Velhinhas” foram dedicadas a Hugo e seriam como que uma
“imitação” do estilo hugoano; Baudelaire admite isso na carta, de setembro de 1859, em que
lhe envia o manuscrito do poema7. Não existe aqui, é certo, uma referência expressa a
“Fantasmas”. Pode-se lembrar, contudo, que “As velhinhas” retomam torneios próprios ao
poema de Hugo (1975, v. 1, 1016):
Hélas ! que j’en ai vu mourir de jeunes filles !8 (Hugo)
Ah ! que j’en ai suivi de ce petites vieilles !9 (Baudelaire)
E até mesmo a organização sintática empregada em “Fantasmas” pode se repetir no
poema de Baudelaire:
de Grace Alves Paixão (2010); ambas as autoras insistem nos aspectos modernos da obra poética de Victor
Hugo, na esteira das análises de Jean-Pierre Richard (1970). A modernidade presente nas composições
românticas, especialmente na obra de Chateaubriand, foi também objeto de estudo de Maria Cecília de Moraes
Pinto (1992).
7
Em 15 de setembro de 1859, “As velhinhas” foi publicado, juntamente com os “Os sete velhos” [Les sept
vieillards], na Revue contemporaine, sob o título de Fantasmas parisienses. Nesta primeira publicação não
existe ainda a dedicatória a Hugo. Na carta de 23 (?) de setembro de 1859, endereçada a Hugo, Baudelaire lhe
oferece os manuscritos dos dois poemas e a dedicatória: “Os versos que anexo a esta carta estão presentes há
muito tempo na minha cabeça. O segundo trecho [“ As Velhinhas] foi feito com o propósito de imitá-lo (ria de
minha fatuidade, eu mesmo dou risada) após ter relido algumas peças de seus livros, em que uma caridade tão
magnífica se mistura a uma familiaridade tão tocante. (...)” (1993, v. 1, p. 598). As informações bibliográficas,
bem como as comparações entre os versos de “As Velhinhas” e “Os Fantasmas”, são de Claude Pichois (1975,
v. 1, 1016). As traduções em nota de pé de página atentam para o conteúdo literal, e não para a métrica ou a
sonoridade dos versos.
8
“Ai de mim! Como vi morrer tantas jovens!”
9
“Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!”
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(...) - L’une était rose et blanche ;
L’autre semblait (...) ;
L’autre, faible, appuyait (...),
(...)
Toutes fragiles fleurs, sitôt mortes que nées !10 (Hugo)
L’une, par sa patrie au malheur exercée,
L’autre (...),
L’autre (...),
Toutes auraient pu faire un fleuve avec leurs pleurs !11 (Baudelaire)
Os dois poemas são longos e possuem nítido cunho narrativo. “Fantasmas” se compõe
de 30 estrofes, todas compostas de 5 versos. Essas 30 estrofes compõe 6 segmentos de
dimensões desiguais: a primeira parte possui 3 estrofes; a segunda, 7; a terceira, 12; a
quarta, 2; a quinta, 4; e a última, 2. A estrofe possui uma regularidade métrica: ela se
compõe de quatro versos de doze sílabas, e um verso conclusivo de oito sílabas, respeitando
um sistema de rimas ABAAB. Eis aqui a estrofe inicial do poema:
Hélas ! que j´en ai vu mourir de jeunes filles!
C´est le destin. Il faut une proie au trépas.
Il faut que l´herbe tombe au tranchant des faucilles;
Il faut que dans le bal les folâtres quadrilles
Foulent des roses sous leurs pas.12
O esquema métrico, composto de quatro alexandrinos arrematados por um octossílabo,
assim como o esquema regular de rimas, garante uma sonoridade bem marcada e imprime à
estrofe certa unidade. Com efeito, os aspectos sonoros se refletem na unidade sintática da
estrofe, que não vai jamais se encavalgar sobre a seguinte. A única exceção à regra seria a
segunda estrofe do quinto segmento, na qual o poeta descreve a jovem despertando para a
festa dos mortos: neste momento, o poeta rompe, por meio da sintaxe de seus versos, a forte
unidade sugerida pelo esquema sonoro:
(...) Et si, dans la tombe où nous l´avons laissée,
Quelque fête des morts la réveilles glacée
Par une belle nuit d´hiver,
Un spectre, au rire affreux, à sa morne toilette
Préside au lieu de mère, et lui dit: Il est temps !13
O poema de Baudelaire é composto, por sua vez, de 21 estrofes, todas compostas de 4
10
“(...) – Uma era rosa e branca; / Outra parecia (...); / Outra, frágil, apoiava (...); / (...) Todas delicadas flores,
mortas tão logo nascidas!”
11
“Uma, entregue ao sofrimento por sua pátria; / Outra (...); / Outra (...); / Todas poderiam ter feito um rio com
suas lágrimas!”
12
“Ai de mim! Como vi morrer tantas jovens! / É o destino. É necessário uma vítima para a morte. / É
necessário que a erva morra no corte das foices; / É necessário que as quadrilhas festivas no baile / pisem as
rosas sob seus passos.”
13
“E se, na cova onde a deixamos, / Alguma festa dos mortos a desperta lívida / Durante uma bela noite de
inverno, // Um espectro, de riso tenebroso, sua monótona toalete / Conduz no lugar de mãe, e lhe diz: é
chegada a hora!”
10 | P á g i n a
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versos. Essas estrofes vão compor 4 segmentos de dimensões desiguais: a primeira parte
possui 9 estrofes; a segunda, 3; a terceira, 3; e a quarta, 6. À semelhança de “Fantasmas”, o
poema de Baudelaire possui uma clara organização métrica; a estrofe se compõe de quatro
versos alexandrinos, respeitando o sistema de rimas ABAB. Vejamos a inicial:
Dans les plis sinuex des vieilles capitales,
Où tout, même l´horreur, tourne aux enchantements,
Je guette, obéissant à mes humeurs fatales,
Des êtres singuliers, décrepits et chamants. 14
À semelhança de “Fantasmas”, a sonoridade desse poema é fortemente marcada pelo
esquema regular de versos e rimas, mas essa sonoridade não parece imprimir aqui nenhum
constrangimento à dicção ou à sintaxe do poeta, que parece experimentar mais liberdade em
sua composição: assim, não são poucas as estrofes que se encavalgam, oferecendo uma
tremenda liberdade de expressão para o eu - lírico:
Ils trottent, tous pareils à des marionnettes,
Se traînent, comme font les animaux blessés,
Ou dansent, sans vouloir danser, pauvres sonnettes
Où se pend un Démon sans pitié! Tout cassés
Qu´ils sont, ils ont des yeux perçants comme une vrille,
Luisants commes ces trous où l´eau dort dans la nuit ;15
Os dois poemas possuem, como já dissemos, um forte caráter narrativo. “Fantasmas”
começa com uma declaração que poderíamos aproximar da abertura de uma narrativa oral:
“Hélas ! que j´en ai vu mourir de jeunes filles ! / C´est le destin. (...)” [Ai de mim! Como
vi morrer tantas jovens! É o destino. (...)]. Podem-se reconhecer nesses versos que iniciam o
poema as entonações de um contador de histórias, as pausas de sua voz, mas também os
gestos que dramatizam a mensagem: “Que j´en ai vu mourir! – l´une était rose et blanche /
L´autre semblait ouïr de célestes accords ;” [Como vi tantas morrerem! – Uma era rosa e
branca; / Outra parecia escutar acordes celestiais]. Nesta abertura, o poeta declara não só
haver visto muitas jovens morrerem – “Doux fantômes!” [Doces fantasmas], mas também que
os fantasmas dessas jovens o acompanham: “c´est lá, quand je rêve dans l´ombre / qu´ils
viennent tour-à-tour m´entendre et me parler” [é neste momento, quando sonho sob a sombra /
que eles vêm, cada um por sua vez, me escutar e me falar]. Tomado por uma dessas
lembranças, o poeta decide contar a história de uma jovem espanhola que, ao receber uma
corrente de ar fria na saída de um baile, se adoenta e vem a falecer aos quinze anos de idade.
No segmento final, o poeta adota a voz do moralista com o propósito de apresentar o valor
edificante de sua narrativa:
Vous toutes qu`à ses jeux le bal riant convie,
Pensez à l´espagnole éteinte sans retour,
14
“Nas dobras sinuosas das velhas capitais, / Onde tudo, mesmo o horror, torna-se sedução, / Espiono,
obedecendo a meus fatais humores, / Seres singulares, decrépitos e encantadores.”
15
“Eles trotam, à maneira de marionetes; / Arrastam-se, como fazem os animais feridos; / Ou dançam, mesmo
sem querer dançar, pobres sinetas / onde se pende um Demônio impiedoso! Bem que desarticulados / como
são, possuem olhos agudos como uma verruma / Luzentes como esses buracos onde durante a noite a água
dorme;”
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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Jeunes filles! Joyeuse, et d´une main ravie
Elle allait moissonant les roses de la vie,
Beauté, plaisir, jeunesse, amour!16
Pode-se concluir que o poema seria o desenvolvimento de uma tópica retórica:
“lembra que és mortal”, e que ele não teme assim o tom didático. Nesta estrofe, o poeta adota
a voz do homem maduro para dirigir um apelo às jovens que se entregam aos prazeres dos
bailes: jovens, cuidai com zelo de vossa vidas, porque a indesejada das gentes pode chegar a
qualquer momento! Lembrai-vos, portanto, sempre da jovem espanhola: “Elle aimait trop le
bal, c’est ce qui l’a tuée” [Ela amava demais o baile, foi isso o que a matou].
O poema de Baudelaire descreve, não a condição das jovens em meio aos bailes
elegantes, mas a das senhoras idosas pela cidade de Paris. Não há aqui uma abertura de cunho
narrativo, à semelhança daquela que há nas estrofes iniciais do poema de Hugo. Isso não quer
dizer que o poeta de “As velhinhas” não se sirva da entonação para descrever sua história ou
que não se dirija diretamente a seu leitor: “Avez-vous observé que maints cercuils de vieilles /
Sont presque aussi petis que celui d´un enfant?” [Você já observou que a maioria dos caixões
das velhas / São quase tão pequenos quanto o de uma criança?]. Ocorre que a imaginação do
poeta não é despertada pela memória como acontecia em “Fantasmas” (“Alors je songe et je
me souviens...” [Então começo a sonhar e me lembro...], dizem os versos de Hugo), mas sim
pela visão concreta das senhoras idosas pelas ruas de Paris: “Ah! que j´en ai suivi de ces
petites vieilles !” [Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!], exclama o poema de Baudelaire.
Noutras palavras, os fantasmas não são mais seres mortos de que podemos contar histórias,
mas seres vivos com os quais nos deparamos todos os dias nas ruas da cidade.
Et lorsque j´entrevois un fantôme débile
Traversant de Paris le fourmillant tableau,
Il me semble toujours que cet être fragile
S´en va doucement vers un nouveau berceau;17
Pode-se dizer que a experiência do choque vivido nas grandes cidades se encontra de
certa maneira condensado nessa visão do poeta: “Toutes m´enivrent!” [Todas me
embriagam!].18 Este não esconde que goza de um prazer no momento em que acompanha
essas senhoras pelas ruas da cidade: “Je goûte à votre insu des plaisirs clandestins”
[Experimento, sem que saibais, prazeres clandestinos]. Graças à visão dessas senhoras, ele
pode gozar a experiência de se afastar de sua rotina e de seus próprios desejos, para reviver as
paixões dessas velhas mulheres:
Sombres ou lumineux, je vis vos jours perdus;
Mon coeur multiplié jouit de tous vos vices!
Mon âme resplendit de toutes vos vertus !19
16
“Vós todas que a seus jogos o baile sorridente convida / Lembrai-vos da espanhola que se extinguiu, sem
volta, / Jovens mulheres! Alegre, e com uma mão feliz, / Ela ia colhendo as rosas da vida, / Beleza, prazer,
juventude, amor!”
17
“E quando entrevejo um fantasma frágil / atravessando o formigante cenário de Paris, / parece-me sempre que
esse ser frágil / está partindo suavemente para um novo berço;”
18
Num ensaio que se tornou célebre, “Sur quelques thèmes baudelairiens”, Walter Benjamin (2000) chamava a
atenção para o papel que o choque e o excitamento desempenham na poesia de Baudelaire.
19
“Sombrios ou luminosos, vivo vossos dias perdidos; / Meu coração multiplicado goza de todos vossos vícios!
Minha alma resplandece de todas vossas virtudes!”
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Mas esse sentimento de compaixão não teme o emprego de palavras cruéis para
descrever a condição pobre dessas senhoras e tornar mais forte seu estado de precariedade:
Sous des jupons troués ou sous de froids tissus
Ils rampent, flagellés par les bises iniques,
Frémissant au fracas roulant des omnibus, 20
O mal anunciado a todo o momento pela visão dessas senhoras é o destino que os
cidadãos temem, aviltam e ignoram, visto que não há mais espaço no dia-a-dia da cidade para
essa gente deforme:
Peureuses, le dos bas, vous côtoyez les murs;
Et nul ne vous salue, étranges destinées !
Débris d´humanité pour l´éternité mûrs !21
Essas velhas senhoras seriam, nesse sentido, a mais pura expressão de um desajuste
entre os habitantes da cidade22: quem teria a coragem – ou a perversidade – de olhar frente a
frente esses fantasmas e saudar esses “seres singulares, decrépitos e encantadores”, a não ser o
poeta por meio de seus versos?
Conclusão
A leitura desses dois poemas pode esclarecer decerto as linhas de força que separam o
20
“Sob saias rotas ou frios tecidos / Elas rastejam, flageladas pelos ventos iníquos, / Estremecendo ao barulho
que rola dos ônibus,”
21
“Medrosas, a costa curvada, andais rente aos muros; / E ninguém vos saúda, estranhas destinadas! Restos de
humanidade prontos para a eternidade!”
22
Sem muita ginástica hermenêutica, o poema pode ser lido como uma alusão ao tratamento dispensado pelo
governo de Napoleão III às mulheres que perderam seus maridos ou filhos, exilados, deportados ou mortos
durante a Segunda República francesa. O tema forma um dos motivos dos poemas reunidos no livro-manifesto
de Hugo contra “Napoleão, o pequeno”: Os Castigos [Les châtiments], de 1852: “A cause de cet homme,
empereur éphémère, / Le fils n’a plus de père et l’enfant plus d’espoir, / La veuve à genoux pleure et
sanglotte, et la mère / N’est plus qu’un spectre assis sous un long voile noire” [Por causa desse homem,
imperador efêmero, / o filho não possui mais pai e a criança esperança, / A viúva, de joelhos, chora e geme, e
a mãe / é apenas um espectro sentado sob um longo véu escuro] (HUGO, 1967, v. II, p. 94). De resto, a
dedicatória a um dos mais importantes exilados constitui um elemento significativo para a compreensão de “As
Velhinhas”; um historiador contemporâneo, investigando a atividade política de Hugo durante o Império, pode
declarar: “Como julgar a dívida da República para com os Miseráveis? Ainda mais que, em virtude do próprio
exílio, a única menção ao nome de Hugo adquire neste momento um aspecto militante. Em 1865, as
conferências dadas por Dumas são suspensas porque ele tinha falado do exilado (...)”. (ROSA, 2004, p. 44) O
tema da anistia e do retorno dos exilados era evocado na carta em que Baudelaire envia o poema manuscrito a
Hugo. Em 15 de agosto de 1859, o Império havia decretado a anistia de seus adversários exilados, mas Hugo
responde, por meio de uma nota, que não voltaria para a França: “Fiel ao engajamento que tomei diante de
minha consciência, partilharei até o fim o exílio da liberdade. Quando a liberdade retornar, retornarei” (1993, v.
2, p. 1037). Na carta de setembro de 1859, Baudelaire elogia a postura de Hugo em face da política imperial:
“Quando sua nota chegou, ficamos consolados. Sabia que os poetas valem os Napoleões, e que Victor Hugo
não podia ser menor que Chateaubriand.” (1993, v. 2, p. 598, grifos do autor) Para Baudelaire crítico da
ideologia da burguesa e do governo estabelecido por Napoleão III, é possível consultar os livros de Richard
Burton (1991) e Dolf Oehler (1999).
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romantismo da modernidade. Os dois textos possuem, como já vimos, um forte caráter
narrativo, subordinando-se ao projeto romântico de descrever a cidade e seus contrastes: o
primeiro evoca a história de uma jovem que vem a falecer por causa de uma corrente de frio
na despedida de um baile, ao passo que o segundo descreve a vida das senhoras idosas por
Paris. Mas, se o poema de Hugo aborda o tema da juventude por meio da memória, o poema
de Baudelaire prefere representar diretamente a triste condição das velhinhas na cidade. E
mais: se o poema de Hugo adota o tom do moralista para compor seu poema de certo
conteúdo edificante, o poema de Baudelaire não teme adotar a perspectiva de um perverso
para acentuar os desajustes de nossa sociedade: “Ah! que j’en suivi de ces petites vieilles!”
[Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!]; “Toutes m’enivrent!” [Todas me embriagam!].
Tudo somado, pode-se concluir que “As velhinhas” não se limitam apenas a imitar
“Fantasmas”; o poema de Baudelaire parece realizar, mais propriamente, uma crítica velada a
certas fantasias românticas que marcam o poema de Hugo.23
Pode-se lembrar, nesse sentido, a conclusão de “Fantasmas”, especialmente os versos
em que o poeta se dirige aos jovens moças entusiasmadas pelos bailes e lhes recomenda
prudência, visto que a morte pode chegar a qualquer momento. O tom didático desses versos
se vincula a aspectos importantes do movimento romântico tal como ele foi concebido por
Hugo: esses versos mostram o comprometimento do poeta, empenhado nas questões sociais
de nossa sociedade. Assim é que, em meio a um poema onde o eu-lírico conta suas
lembranças de uma espanhola morta na flor da idade, há lugar para uma advertência às jovens
sobre os perigos dos bailes: “Elle aimait trop le bal, c’est ce qui l’a tuée.” [Ela amava demais
o baile, foi isso o que a matou]. Ora, o prosaísmo e mesmo a comicidade desses versos de
conteúdo “social”, uma espécie de campanha pública sobre os perigos dos bailes para as
jovens - não era decerto estranho a Baudelaire; é o que se pode deduzir de uma de suas
cartas, de 18 de fevereiro de 1860, na qual discute com o crítico e escritor Armand Fraisse um
artigo escrito por este sobre A Legenda dos séculos, de Hugo:
No artigo sobre Hugo, parece que você estava intimidado, incomodado. Você não
distinguiu de maneira clara a quantidade de beleza eterna que existe em Hugo das
superstições cômicas introduzidas nele pelos acontecimentos, isto é, a estupidez ou
sabedoria moderna, a fé no progresso, a salvação do gênero humano pelos balões
etc. (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 675) 24
23
O tema dos desvios – ou das traições – da imitação para com o original está presente na própria carta em que
Baudelaire reconhece “As Velhinhas” como uma cópia do estilo hugoano: “O segundo trecho [‘As Velhinhas’]
foi feito com o propósito de imitá-lo (ria de minha fatuidade, eu mesmo dou risada) (...). Algumas vezes vi nas
galerias de pintura miseráveis aprendizes que copiavam as obras dos mestres. Bem ou mal feitas, colocavam
algumas vezes em suas imitações, sem que eles próprios se dessem conta, alguma coisa de sua própria
natureza, grande ou trivial. Isso será talvez (talvez!) a licença para minha audácia.” (1993, v. 1, p. 598)
24
“A salvação do gênero humano pelos balões”: Baudelaire alude aqui ao poema “Vingtième siècle” [Século
Vinte], que faz parte do livro La Légende des siècles, de Hugo. Nesse longo poema (722 versos), composto de
dois segmentos intitulados “Pleine Mer” [Pleno mar] e “Plein ciel” [Pleno céu], Hugo faz um elogio do balão
dirigível, como símbolo do progresso alcançado por nossa sociedade. Eis aqui a última estrofe do poema: “Nef
magique et supreme ! (...) Elle a cette divine et chaste fonction / De composer là-haut l’unique nation, / À la
fois dernière et première, / De promener l’essor dans le rayonnement, / Et de faire planer, ivre de firmament,
/ La liberté dans la lumière.” [Nave mágica e suprema! (...) Ela possui esta divina e casta função / de compor
lá no alto a única nação, / a um só tempo última e primeira, / de conduzir o vôo pelos raios de sol, / e de
fazer planar, ébrio de firmamento, / a liberdade na luz.” (HUGO, 1950, p. 732)
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A citação demonstra o desacordo entre a sensibilidade romântica e a moderna. O
poema de Hugo seria por demais irregular: haveria uma mistura desordenada de elementos
poéticos (“a beleza eternal”) e prosaicos (“a estupidez ou sabedoria moderna”, “a fé no
progresso”, “a salvação do gênero humano” pelas campanhas públicas). Para Baudelaire, na
origem dessa irregularidade se acha a crença romântica de que a nossa sociedade avança para
um estado de bem-estar geral e de que a arte deve contribuir para essa marcha, uma crença
partilhada por Hugo e expressa muitas vezes por ele. Podemos lembrar as máximas do poeta
na célebre carta destinada a Baudelaire: “Os passos da Humanidade são os mesmos passos da
arte. Então, glória ao Progresso. Pelo progresso sofro neste momento e estou pronto para
morrer” (2007, p. 297). Ora, Baudelaire não pode acreditar que o progresso pode beneficiar a
expressão artística ou trazer bem-estar para a nossa sociedade; pelo contrário, ele supõe que a
crença no progresso seria a causa de muitos dos nossos males:
Deixo de lado a questão de saber se, tornando mais delicada a humanidade em
virtude dos novos prazeres que lhe oferece, o progresso indefinido não seria sua
mais engenhosa e sua mais cruel tortura; se, procedendo por uma obstinada negação
de si mesmo, o progresso não seria um modo de suicídio renovado incessantemente
e se, encerrado no círculo de fogo da lógica divina, não se assemelharia ao escorpião
que mata a si mesmo com seu terrível ferrão, o eterno desideratum que promove o
eterno desespero? (BAUDELAIRE, 1975, v. 2, p. 581)
Para concluir, digamos que, se Baudelaire admira no autor de “Fantasmas” a força do
trabalho poético25, bem como a presença de motivos atuais ou contemporâneos (a cidade, os
bailes, as jovens, a espiritualidade, para permanecermos no poema em tela26), ele considera
que a poesia de Hugo se acha por demais imbuída de utopia romântica, particularmente de
teoria social progressista27, a ponto de tornar seu poema, “Fantasmas”, como vimos, uma
espécie de campanha de saúde pública sobre os efeitos nocivos dos bailes para as jovens:
“Vous toutes qu`à ses jeux le bal riant convie, / Pensez à l´espagnole éteinte sans retour, /
Jeunes filles !” [Vós todas que a seus jogos o baile sorridente convida / lembrai-vos da
espanhola que se extinguiu, sem volta, / Jovens mulheres!]. Os aspectos edificantes e
ingênuos do poema se manifestam nesse momento em que dirige um apelo mórbido às jovens:
“lembrai que morrereis”, sob o pretexto de abordar um importante problema social, a saber, os
perigos dos bailes. Ora, os propósitos humanistas dessa poesia são o objeto de uma crítica
que não pode acreditar mais na boafé de leitores (e poetas), nem em uma comunhão de
sentimentos e interesses entre os indivíduos que compõem nossa sociedade28. Para
25
Desde seu “Salão de 1846”, Baudelaire observa o virtuosismo do poeta: “Victor Hugo deixa ver em todas as
suas composições, líricas e dramáticas, um sistema de alinhamento e de contrastes uniformes. A própria
excentricidade aparece nele sob formas simétricas. Ele conhece a fundo e emprega friamente todos os tons da
rima, todos os recursos da antítese, todas as artimanhas da aposição. Trata-se de um compositor de decadência
ou de transição, que se serve de seus instrumentos com uma destreza verdadeiramente admirável e curiosa.”
(1975, v. 2, p. 431)
26
No “Salão de 1846”, Baudelaire reconhece que um dos traços distintivos do romantismo é a incorporação de
temas atuais e modernos à forma artística: “Para mim, o romantismo é a expressão mais recente, a mais atual
do belo”. E conclui: “Quem diz romantismo, diz arte moderna, isto é, intimidade, espiritualidade, cor,
aspiração ao infinito, expressos por todos os meios que as artes possuem” (1975, v. 2, p. 420).
27
Para o papel que as teorias sociais progressistas desempenharam no romantismo, é possível consultar o
sugestivo livro de Elias Tomé Saliba: As Utopias românticas (1991).
28
A questão do papel moral das obras de arte – as criações artísticas devem conter uma função moralizante ou
pedagógica? – percorre a crítica de Baudelaire e merece aí tratamentos discordantes. A questão aparece em sua
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Baudelaire, o poeta moderno deve desconfiar da transparência da linguagem e, até mesmo,
dos indivíduos; assim, num dos projetos de prefácio para as Flores do mal, ele admite o papel
inútil que os argumentos sadios podem desempenhar de agora em diante: “aqueles que sabem
me adivinham, e para aqueles que não podem ou não querem compreender, acumularia
explicações sem nenhum resultado” (1975, v. 2, p. 182).
LE POETE ROMANTIQUE ET LES PETITES VIEILLES
RESUME: Cet article aborde les rapports entre le romantisme et la modernité par une comparaison entre deux
poèmes : « Fantômes », de Victor Hugo et « Les Petites vieilles », de Baudelaire. La comparaison vise
illuminer les questions relatives à l’héritage romantique dans la modernité. Les deux poèmes ont des aspects
narratifs et ils se soumettent au projet romantique de décrire la ville et ses questions sociales. Une fois exposées
les afinnités entre les deux poèmes, nous allons examiner les éléments qui les distinguent. Nous verrons ainsi
que le poème de Baudelaire semble faire une critique moderne à certains fantasmes romantiques qui marquent le
poème de Hugo.
MOTS-CLES : Baudelaire. Hugo. Romantisme. Modernite.
THE ROMANTIC POET AND THE LITLLE OLD LADIES
ABSTRACT: The text approaches the romanticism and the modernity by a comparison between two poems:
“Phantoms”, by Victor Hugo, and “The Little old ladies”, by Baudelaire. The comparison aims to illuminate the
romantic inheritance in modernity. Both poems have a narrative aspect and they follow the romantic project of
describing the city and its social questions. Once the affinities between both poems are explained, we are going
to examine the elements which distinguish them. We will see that the Baudelaire's poem seems to make a
modern critique of the romantic fantasies which mark Hugo's poem.
resenha de Madame Bovary, de 1857: “Muitos críticos disseram: esta obra (...) não contém uma só
personagem que represente a moral, que seja a voz da consciência do autor. Onde está a personagem
proverbial e legendária, encarregada de explicar a fábula e dirigir a inteligência do leitor? (...) Absurdo! (...) Uma obra de arte verdadeira não tem necessidade de requisitório. A lógica da obra basta para todas as
postulações morais, e cabe ao leitor tirar as conclusões da conclusão.” (1975, v. 2, p. 81-2). Em outro ensaio,
de 1851, “Os dramas e os romances honestos” [Les Drames et les romans honnêtes], Baudelaire realiza um
elogio dos romances de Balzac e declara que o artista deve descrever os costumes de nossa época sem meias
tintas, e cabe ao leitor tirar a moral dessa obra de arte: “De fato, é preciso pintar os vícios tais como eles são,
ou não vê-los. E se o leitor não conhece em si próprio um guia filosófico e religioso para acompanhá-lo na
leitura do livro, tanto pior para ele.” (1975, v. 2, p. 42) Pode-se concluir que Baudelaire não tolera uma
literatura cujo propósito seja moral ou edificante; assim, seu “Salão de 1846” ria “da literatura Marion de
Lorme, que consiste em pregar as virtudes dos assassinos e das prostitutas” (1975, v. 2, p. 42). Isso dito, o
prefácio para o livro de Pierre Dupont, Cantos e canções [Chants et chansons], de 1851, demonstra um ponto
de vista bem diferente sobre o tema; Baudelaire critica aqui “a pueril utopia defendida pela escola da ‘arte pela
arte’” (1975, v. 2, p. 27); realiza um elogio das canções populares e socialistas de Dupont, e associa a
expressão artística contemporânea a um conteúdo moral: “a arte se tornou desde agora inseparável da moral e
da utilidade” (1975, v. 2, p. 27). Um outro ponto de vista sobre o assunto aparece no ensaio sobre Victor Hugo
(“Reflexões sobre alguns de meus contemporâneos”, de 1861); neste ensaio, embora continue a reconhecer o
“moralismo” de Hugo, Baudelaire declara: “Não se trata aqui [na obra de Hugo] dessa moral pregadora que,
pelo seu ar pedante, pelo seu tom didático, pode arruinar os mais belos trechos de poesia, mas de uma moral
inspirada que desliza, invisível, para o interior do material poético, como os fluidos imponderáveis para toda a
máquina do mundo. A moral não entra nesta arte na qualidade de fim; ela se mistura e se confunde aqui com a
arte como a vida ela própria. O poeta é moralista sem querer, pela abundância e plenitude da natureza.” (1975,
v. 2, p. 137) O trecho ressoa como um claro exemplo do reconhecimento por Baudelaire da “beleza eterna que
existe em Hugo” (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 675).
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KEYWORDS: Baudelaire. Hugo. Romanticism. Modernity.
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GONÇALVES DIAS, O ÍNDIO E A LIBERDADE
Wilton José MARQUES29
RESUMO: O artigo faz uma leitura de “O canto do guerreiro”, de Antonio Gonçalves Dias. Essa leitura intenta
mostrar a existência de um diálogo entre a representação literária do índio brasileiro e o conceito de homem
natural de Jean Jacques Rousseau. Para além do viés nacionalista, tal diálogo explicita a consciência do poeta em
relação ao seu papel no Romantismo brasileiro e, ao mesmo tempo, confere um traço universal à sua obra
poética.
PALAVRAS-CHAVE: Gonçalves Dias. Indianismo, “O canto do guerreiro”.
O poeta e o indianismo
De maneira geral, o projeto literário do indianismo romântico preocupou-se, segundo
Antonio Candido, com a equiparação qualitativa entre o índio e o conquistador, “realçando ou
inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazê-lo ombrear com este – no
cavalheirismo, na generosidade, na poesia” (1981, p. 20). No caso de Gonçalves Dias, pode-se
dizer que o seu indianismo, parente próximo do medievalismo coimbrão, também faz parte do
todo ideológico que movia o Romantismo brasileiro, mas não era motivado apenas pela
necessidade de uma literatura nacional, era-o também pela preocupação etnográfica com os
destinos da população indígena. No final de 1849 e início de 1850, em artigo publicado em
duas partes nos primeiros números da revista Guanabara, em que comenta as Reflexões sobre
os anais históricos do Maranhão, obra de Bernardo Pereira de Berredo,30 Gonçalves Dias
assim define o índio: “Imprevidência, resignação e heroicidade, eis o índio. (...) Tudo isto é
índio, tudo isto é nosso; e tudo isto está como perdido para muitos anos”. (DIAS, 1849, p.29)
Além de explicitar o heroísmo indígena, o poeta condena tanto a sua escravidão quanto a sua
destruição:
Sim, a escravidão dos índios foi um grande erro, e a sua destruição foi e será uma
grande calamidade. Convinha que alguém nos revelasse até que ponto este erro foi
injusto e monstruoso, até onde chegaram essas calamidades no passado, até onde
chegarão no futuro: eis a história. (DIAS, 1849, p. 30)
Por fim, acreditando numa dívida histórica para com esses primeiros brasileiros,
Gonçalves Dias explicita a necessidade de se reconstruir, notadamente por meio da poesia, o
“mundo perdido” dos indígenas:
Convinha também que nos descrevesse os seus costumes, que nos instruísse nos seus
usos e na sua religião, que nos reconstruísse todo esse mundo perdido, que nos
iniciasse nos mistérios do passado como caminho do futuro, para que saibamos
29
(UFSCar) Universidade Federal de São Carlos - Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) Departamento de Letras (DL), São Carlos – SP – Brasil – 13565-905. E-mail: [email protected].
30
Bernardo Pereira de Berredo e Castro, fidalgo da Casa Real e Capitão de Cavalaria, foi o governador do
Maranhão entre 1718 e 1722. Segundo o historiador Mário M. Meireles, Berredo ficou mais conhecido como
autor dos Anais históricos do Estado do Maranhão do que propriamente como governador, uma vez que seu
governo foi caracterizado por desmandos e arbitrariedades. (MEIRELES, 1960, pp. 153-154)
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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donde viemos e para onde vamos, convinha enfim que o poeta se lembrasse de tudo
isso, porque tudo isto é poesia; a poesia é a vida do povo, como a política é o seu
organismo.
Que imenso trabalho não seria este! Mas também quantas lições para a política,
quantas verdades para a história; quantas belezas para a poesia. (DIAS, 1849, p. 30)
Se, por um lado, o tom engajado do trecho anterior demonstra as preocupações
etnográficas de Gonçalves Dias, por outro, deve-se ter em mente que o “imenso trabalho”, a
que o poeta se referiu e que efetivamente realizou, deu-se na esfera do poético e como tal
deve ser entendido. No entanto, apesar de Antonio Candido afirmar que:
o indianismo, longe de ficar desmerecido pela imprecisão etnográfica, vale
justamente pelo caráter convencional; pela possibilidade de enriquecer processos
literários europeus com um temário e imagens exóticas, incorporadas desse modo à
nossa sensibilidade [e que] o índio de Gonçalves Dias não é mais autêntico do que o
de Magalhães (...) pela circunstância de ser mais índio, mas por ser mais poético,
(1981, p. 85)
a preocupação etnográfica, no caso do poeta maranhense, não pode ser de todo desprezada,
pois a representação literária do índio gonçalvino é resultante do amalgamento de dois índios:
um “simbólico”, construído na esteira da tradição exótica da literatura européia, e outro
“real”, fruto das pesquisas de campo realizadas pelo poeta.
Além dessa relação dialética que, dependendo do poema, pode fazer com que a
balança da representação penda ora para um lado ora para outro, a novidade da poesia de
Gonçalves Dias pode ainda ser complementada pela mudança de perspectiva no tratamento da
voz indianista. Ao contrário das obras árcades de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, em que
os indígenas desempenham um papel secundário e de subserviência ao colonizador luso, um
outro traço original da poesia de Gonçalves Dias está na concessão de uma “voz poética”
própria ao índio, tendo em vista que o mesmo, por não ter sido contaminado pelos males da
civilização, é simbolicamente superior ao europeu. Sugerindo uma retomada do mito do bom
selvagem, essa nova poesia, afirma o crítico Luiz Roncari, “deveria ser feita da perspectiva
dos índios, já que ética e culturalmente estariam mais aptos a julgar o branco europeu que este
a eles”, e como o poeta possuía uma formação européia, o seu talento, complementa o crítico,
“residia na capacidade de colocar à disposição dessa nova visão tudo o que aprendera de
melhor: a cultura européia e sua tradição poética” (1995, p. 366).
Em outras palavras, a representação do indígena na produção poética de Gonçalves
Dias passa necessariamente pela compreensão do processo educativo de seu próprio olhar
sobre o Brasil. Ao estudo, às vezes in loco, da vida indiana, deve-se agregar dois outros
fatores essenciais para o entendimento do olhar gonçalvino: a viagem à Europa 31 e o
testemunho do viajante estrangeiro sobre o Brasil. Funcionando como duplo substrato, tanto a
31
É interessante notar como a prática do ir lá para poder entender o aqui funda uma tradição nas das letras
nacionais. Exemplo notável disso, que ocorre nos primórdios do Modernismo brasileiro, é o testemunho de
Paulo Prado no prefácio de Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, em que o autor de Retrato do Brasil
explica a gênese da poesia oswaldiana: “A poesia ‘pau-brasil’ é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um
inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa
viagem a Paris, do alto do atelier do Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria
terra. A volta à terra confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de
que o Brasil existia. Este fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo
novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’”. (PRADO in ANDRADE, 1990, p 57)
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primeira quanto o segundo atestam a influência do viés externo que, ao possibilitar o
estabelecimento de comparações entre realidades tão diversas, permitiu ao poeta entender que
o mal-estar da diferença em relação à Europa seria, na verdade, condição indispensável para a
fabulação da identidade local.
Demonstrando, por um lado, uma fina sintonia com o Romantismo europeu na medida
em que foi experiência paradigmática dos principais expoentes da literatura romântica
ocidental, a viagem permite o estabelecimento de comparações inevitáveis entre as diversas
realidades culturais, uma vez que: “afastados de nosso país – argumenta Chateaubriand em O
gênio do cristianismo – é que mais sentimos o instinto que mais nos prende” (1945, p.163).
No primeiro momento em que viveu em Portugal (1838-1845), Gonçalves Dias pôde perceber
que é no conhecimento da experiência do “outro” que se compreende o “eu”; é na imersão do
Romantismo europeu que o poeta descobre a necessidade de representação da cultura
americana. Em carta reveladora a Teófilo Leal, de março de 1844, Gonçalves Dias comunica
ao amigo o desejo de:
compor um Poema [Os Timbiras?] – é por agora – ‘a minha obra’. Quero fazer uma
cousa exclusivamente americana – exclusivamente nossa – e eu o farei talvez. Já que
todo o mundo hoje se mete a inovar – também eu pretendo inovar – inovarei –
criarei alguma cousa que, espero Deus, os nossos não esquecerão. (1964, p. 30)
Por outro lado, o testemunho do olhar estrangeiro tornou-se aval necessário para o
próprio conhecimento do Brasil. Comentando, por exemplo, uma famosa passagem do
“Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, em que Gonçalves de Magalhães recorre ao
testemunho insuspeito dos viajantes europeus sobre o Brasil, Flora Süssekind observa que, ao
contrário do que sugere o final do texto de Magalhães, isto é, que por meio do relato dos
estrangeiros as belezas do Brasil se tornaram conhecidas na Europa, as “páginas sublimes”
dos viajantes revelaram o país não apenas à Europa, mas principalmente aos poetas brasileiros
(1990, pp. 46-45). Por sua feita, Gonçalves Dias, ao balizar seu olhar na perspectiva de quem
olha de “fora”, pôde, a exemplo do estrangeiro, ver o Brasil como se fosse pela primeira vez.
Tal perspectiva se confirma quando o próprio poeta alerta o leitor numa nota de rodapé que
acompanha o poema “O canto do guerreiro” e que, por sua vez, serve como uma espécie de
guia de entendimento para os poemas indianistas: “Estes cantos, afirma Gonçalves Dias, para
serem compreendidos precisam ser confrontados com as relações de viagens, que nos
deixaram os primeiros descobridores do Brasil e os viajantes Portugueses, Franceses e
Alemães, que depois deles se seguiram” (1944, p.26).
A busca de um tema nacional
A despeito do intuito de “verdade observada” que marcaram a feitura dos vários livros
sobre o Brasil, nos quais se apoiou Gonçalves Dias para a elaboração de sua poesia indianista,
pode-se dizer que, de modo geral, a imagem do selvagem americano, atribuída ao olhar
estrangeiro, foi construída de maneira dúbia, oscilando entre o horror da barbárie de seus
costumes como a antropofagia, e a louvação exagerada de sua inocência e bondade naturais.
O próprio Caminha, no início de sua famosa carta a D. Manuel, afirma que “aqui não há de
por mais do que aquilo que vi e me pareceu” (1963, p. 28), refere-se à inocência dos nativos
em relação à nudez:
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A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons
narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de
encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso
são de grande inocência. (1963, p. 32)
Além dos testemunhos dos viajantes europeus, outra imagem do indígena americano,
que muito contribuirá para a sua própria disseminação no imaginário europeu, encontra-se nos
Ensaios (1580), de Montaigne. Sobretudo, em “Dos canibais”. Nesse texto, o pensador
francês além de, num primeiro momento, preocupar-se com a relativização do próprio
conceito de bárbaro – “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos
[americanos]; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”
(2000, p.195) –, num segundo momento, preocupa-se em explicitar a superioridade destes em
relação aos “civilizados”, conduzindo-os à esfera mitológica da idade do ouro:
Esses povos – afirma Montaigne – não me parecem, pois, merecer o qualificativo de
selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência
do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As
leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e
mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido
antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não
tenham ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos,
não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade de ouro,
e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita sobre a terra,
mas também as concepções e aspirações da filosofia (2000, p.196).
Essa primeira visão relativizada do índio, delineada por Montaigne, produzirá uma
grande influência no pensamento filosófico francês, atingindo seu apogeu notadamente na
obra de Rousseau. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens (1755), o filósofo iluminista afirma que o aparecimento da propriedade foi a causa
primordial da degradação do homem. Desse modo, contrastando com o civilizado, Rousseau
louva a vida do homem em seu estado natural já que ali ele poderá encontrar no “instinto”
todo o necessário para viver. Para o filósofo, a superioridade do homem natural reside
justamente no fato de este não ter sua existência condicionada por qualquer espécie de relação
moral, isto é, sendo um ser amoral, ele desconhece o que é ser bom ou mau, vivendo, por
conseqüência, num estado de mais felicidade, uma vez que conservaria consigo a
simplicidade do estado original. O grande legado da influência desse discurso de Rousseau foi
a definitiva instauração no universo literário ocidental do mito do selvagem livre e feliz. A sua
vida simples em permanente contato com a natureza confere-lhe uma superioridade própria
que se opõe à vida do homem civilizado, organizada em função da propriedade.
As repercussões das idéias de Rousseau foram profundas no imaginário romântico, e o
conceito do “bom selvagem” logo se disseminou na literatura, repercutindo de modo direto,
por exemplo, na obra de Chateaubriand. Além de realizar uma apologia estética e sentimental
da religiosidade cristã com o seu O gênio do cristianismo, Chateaubriand, com os livros Atala
e Les Natchez, acabou por dar vida própria ao indianismo. Referindo-se especificamente à
Atala, o crítico Antonio Salles Campos afirma que “o certo é que Atala marcou a entrada do
índio na grande literatura européia, e recriou o exotismo americano, introduzindo-lhe um
novo colorido e uma nova e vibrante sensibilidade” (1945, p.109). Chateaubriand contribuiu
decisivamente para conferir um status temático ao indianismo que, aceito e avalizado pelo
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Romantismo europeu, veio se adequar perfeitamente às necessidades de auto-afirmação da
literatura brasileira.
De Chateaubriand a Gonçalves Dias foi um pulo. Como primeiro indício dessa ligação
basta lembrar que a epígrafe que abre as “Poesias Americanas” nos Primeiros cantos - “Le
infortunes d´um obscur habitant des bois auraient-elles moins de droits à nos pleurs que celles
des autres hommens?” (DIAS, 1944, p.19) - foi retirada justamente de Les Natchez. Antônio
Salles Campos chega até mesmo a sugerir que esse livro do romântico francês foi “a faísca
esplêndida que acendeu as faculdades imaginativas do poeta brasileiro nas suas criações
indianistas” (1945, p.116). Insistindo nessa influência, o mesmo crítico afirma: “as ‘Poesias
Americanas’ (...) ligam-se ao Romantismo europeu por intermédio de Chateaubriand, mas
encontraram no Brasil o estímulo trazido pelo surto nacionalista que sucedeu à Independência,
com a conseqüente reabilitação do aborígine” (1945, p. 117).
O índio e a liberdade
Além de contribuir para o delineamento do instinto de nacionalidade na literatura
brasileira, a originalidade da poesia indianista de Gonçalves Dias é resultante não somente da
inversão de perspectiva da voz poética como também da adequação dos processos literários
europeus à sensibilidade local. Dessa forma, compreender como isso se deu inicialmente em
“O canto do guerreiro” é, na verdade, começar a compreender como o conceito de “bom
selvagem” dialoga com o herói indígena de Gonçalves Dias.
O canto do guerreiro32
I
Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
— Ouvi-me, Guerreiros,
— Ouvi meu cantar.
II
Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape33
Com mais valentia,
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me;
— Quem há, como eu sou?
III
32
33
Devido à importância das notas que acompanham o texto de Gonçalves Dias, resolvi reproduzi-las
integralmente (N.A.) e também, quando julguei necessário, acrescentei entre colchetes informações
complementares.
Tacape – arma ofensiva, espécie de maça contundente, usada na guerra e nos sacrifícios. (N.A.)
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Quem guia nos ares
A frecha implumada.
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
— Guerreiros, ouvi-me,
— Ouvi meu cantar.
IV
Quem tantos imigos34
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia,
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me:
— Quem há, como eu sou?
V
Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
— Quem há mais valente,
— Mais destro do que eu?
VI
Se as matas estrujo
Co’os sons do Boré35,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem , respondem
Aos sons do Boré!
— Quem é mais valente,
— Mais forte quem é?
VII
Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo,
E as matas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
34
Imigo – Segundo Manuel Bandeira, “geralmente se pensa que “imigo” é forma poética de “inimigo” com
síncope de ni; mas Leite de Vasconcelos ensina (Opúsculos, 1928, Vol. I, pg. 236) ‘que é palavra da prosa
antiga, formada pelo povo (a par de imiigo e imigo, como se vê em documentos antigos) e não pelos poetas’ ”.
35
Boré – instrumento músico de guerra, pouco menor que o Figli [instrumento de sopro, feito de metal com
bocal, chaves e tubos cônicos dobrado sobre si mesmo]; - dá apenas algumas notas, porém mais ásperas, e
talvez mais fortes, que as da trompa. (N.A.)
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São eles — guerreiros,
Que faço avançar.
VIII
E o Piaga36se ruge
No seu Maracá37,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.
IX.
E então se de novo
Eu toco o Boré,
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
— Guerreiros, dizei-me,
— Tão forte quem é? (DIAS, 1944, pp. 23-27)
Servindo-se da melhor tradição poética peninsular, Gonçalves Dias compõe “O canto
do guerreiro” em redondilha menor. A escolha desse verso de origem medieval atesta a
influência direta do Romantismo português na sua formação, pois, como se sabe, o resgate da
Idade Média constituiu-se num importante eixo programático do universo romântico luso. Em
Portugal, a revalorização da “medida velha”, que, até mesmo, culminou com a republicação,
na década de 1840, do Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, foi largamente difundida
tanto pelo jornal literário O panorama, dirigido por Alexandre Herculano, quanto pela revista
Crônica literária da nova academia dramática que contava entre seus colaboradores com
José Freire de Serpa Pimentel a quem, inclusive, Gonçalves Dias dedicou o poema “O vate”.
Além de usar a redondilha menor em seu texto, Gonçalves Dias organiza-o em nove
estrofes que, por sua vez, se dividem em seis estrofes de oito versos, uma de nove, uma de dez
e uma de doze versos. A variação do número dos versos nas estrofes de “O canto do
guerreiro”, assim como a variação da métrica em “O canto do piaga” e em “O canto do índio”,
é uma característica peculiar do poeta que, na verdade, procura sempre adequar o seu texto a
uma necessidade de expressão própria. Aliás, no prólogo que abre os Primeiros cantos,
Gonçalves Dias deixa isso claro ao afirmar que muitas de suas poesias “não têm uniformidade
nas estrofes, porque menosprezo regras de mera convenção; adaptei todos os ritmos da
36
Piagé – piaches – piayes ou piaga (que mais se conforma à nossa pronúncia), era ao mesmo tempo o Sacerdote
e o Médico, o Augure e o Cantor dos indígenas do Brasil e d’outras partes da América. (N.A.)
37
Maracá – entre os Índios, o instrumento sagrado, como o Psaltério entre os Helenos, ou o Órgão entre os
Cristãos; era uma cabaça crivada, cheia de pedras ou búzios, e atravessada por um hastil ornado de penas
multicolores, que lhe servia de cabo. O antigo viajante Roloux Baro [?] testemunha da veneração que os índios
lhe tributavam, chamava-a “Le diable porté dans une calebasse” – o diabo dentro d’uma cabaça. A esta palavra
vão alguns modernos buscar a etimologia da palavra – América. (N.A.)
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metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu
pretendia exprimir” (1944, p. 17).
Portanto, como se depreende das próprias palavras do poeta, será a sobrevalorização
do ritmo que explicará um dos segredos de sua poesia. E “o ritmo, ensina-nos Antonio
Candido, é uma realidade profunda da vida e da sociedade; quando o homem imprime ritmo à
sua palavra, para obter efeito estético, está criando um elemento que liga esta palavra ao
mundo natural e social” (1993, p. 45). Em “O canto do guerreiro”, tal ligação se mostra
perfeita, pois o tom envolvente do texto casa-se naturalmente com a reafirmação constante da
liderança do guerreiro. O complexo rítmico desse poema é dado pela predominância do
anapesto, isto é, uma seqüência ternária de sílabas composta por uma forte e duas fracas, e
que, para Manuel Bandeira, “é curioso notar que onde há movimento belicoso ou sentimento
de orgulho, indignação, revolta, surge freqüentemente o ritmo ternário do anapesto” que,
dessa feita, torna-se “em Gonçalves Dias a célula rítmica de toda a sua poesia de inspiração
indianista” (BANDEIRA in DIAS, 1998, p.57).
Ancorando-se no ritmo anapéstico, Gonçalves Dias confere voz a um guerreiro que
louva sua dupla capacidade de liderança e bravura em relação tanto aos seus pares quanto aos
seus inimigos. Desse modo e dominando o espaço que o circunda, isto é, “a floresta / Dos
ventos batida”, o eu-lírico, num primeiro instante, explicita pela voz plural da terceira pessoa
não apenas a sua própria condição de livre, conquistada e mantida se preciso o for pela guerra,
mas, amplificando o alcance de tal condição, estende-a a todos os guerreiros de sua tribo:
“Façanhas de bravos / Não geram escravos, / Que estimem a vida / Sem guerra e lidar”. Num
segundo momento, afirmando o seu status de líder, conclama os mesmos guerreiros a
escutarem seu canto: “— Ouvi-me, Guerreiros / — Ouvi meu cantar”. Aliás, esse
“chamamento” direto, sempre em primeira pessoa, que está presente em quase todas as
estrofes, excetuando a sétima e a oitava em que narra um combate, funciona no poema como
refrão, cuja função é a de justamente reafirmar constantemente a sua liderança.
Nas quatro estrofes seguintes, realçando a sua condição de líder, o eu-lírico, tomando
para si o discurso, lançando desafios por meio de perguntas abruptas aos guerreiros que o
escutam atentos e que, de antemão, sabem de sua valentia, descreve as suas destrezas, seja
para a guerra, “Valente na guerra / Quem há, como eu sou?”, situação extrema em que o seu
domínio do tacape mortal é superior ao de qualquer oponente, “Quem vibra o tacape / Com
mais valentia!”; seja para louvar a pontaria certeira de sua flecha, “Quem guia nos ares / A
frecha implumada (...) Onde eu a mandar?”; seja para cantar seus próprios feitos,
comprovados pelo grande número de inimigos abatidos, “Quem tantos imigos / Em guerras
preou? / Quem canta seus feitos / Com mais energia,”; seja para demonstrar que até mesmo os
animais têm medo de sua astúcia, já que reconhecem, assim como os inimigos, o seu caráter
superior, “A onça raivosa / Meus passos conhece, / O imigo estremece, / E a ave medrosa / Se
esconde no céu.”.
Após louvar as suas próprias habilidades, nas três estrofes seguintes, isto é, a sexta,
sétima e oitava, o eu-lírico procura salientar não somente as suas características de chefe
como também evidenciar a enorme influência que exerce sobre os seus guerreiros que, sempre
alertas para o combate, aguardam o seu sinal de comando. Pelo som do boré, sinal cifrado de
guerra, ele explicita a pronta resposta de seus homens, “Eis surgem, respondem / Aos sons do
Boré!”, que silenciosos avançam implacavelmente sobre os inimigos. A perfeita comunhão
entre os guerreiros e a natureza, “Lá vão pelas matas; / Não fazem ruído:”, é fator
determinante na surpresa do ataque, “São eles — guerreiros, /Que faço avançar”. E
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abençoados pelo Piaga que ruge o seu maracá, levam a morte cruel aos inimigos, “Nos ares
frechados, / Os campos juncados / De mortos são já”.
O poder do chefe sobre seus guerreiros é de tal maneira inquestionável que, na última
estrofe do poema, e a despeito de não estar ainda de todo saciada a sede de luta de seus
homens, “Que a raiva apagada / De todo não é!”, o combate é simplesmente interrompido. O
que determina isso é a vontade do chefe e, ao mesmo tempo em que os seus liderados recuam,
“Tal eles se escoam / Aos sons do Boré.”, ele se define superior, lançando uma pergunta que
tem uma resposta que todos já sabem: “— Guerreiros, dizei-me, / — Tão forte quem é?”.
A defesa da liberdade
Comparando a representação indianista entre os românticos e os árcades, Antonio
Candido (1981) vê nos últimos uma tendência de dar generalidade ao detalhe concreto,
enquanto nos primeiros o indianismo denota uma tendência para particularizar os grandes
temas, as grandes atitudes de que se nutriam a literatura ocidental, inserindo-as na
realidade local, tratando-as como próprias de uma tradição brasileira. Em “O canto do
guerreiro”, o “grande tema” predominante, imprescindível à afirmação local, é a defesa da
liberdade, como forma de legitimação do status de independência política em relação a
Portugal. No poema, o problema da liberdade aparece às avessas, isto é, através da
louvação do caráter belicoso do indígena, condição necessária para a manutenção e
representação da própria liberdade.
Ao lado do piaga (pajé), o guerreiro ocupa um lugar importante no imaginário
indígena. Enquanto o primeiro, observa o crítico Fritz Ackermann “é o representante do
mundo sobrenatural”, o segundo “é o representante do mundo físico” (1964, p.91). Ambos
têm suas funções demarcadas por ações que são reconhecidas e, sobretudo, respeitadas
pelos seus pares. Dentro dessa perspectiva, e a seu modo inserindo-se também no
movimento ideológico de contraposição ao colonizador, o caráter heróico de “O canto do
guerreiro” está garantido pela defesa intransigente da liberdade, que, por sua vez, é
validada tanto pela valentia do índio em relação aos inimigos quanto pela sua destreza na
caça, enfim, por uma coragem superior que é demonstrada por meio de atos que, ao longo
do poema, vão sendo de tal maneira intensificados que, ao fim e ao cabo, estão plenamente
entranhados na memória dos ouvintes.
Partindo-se aqui da crença de que a força poética de Gonçalves Dias é resultante de
sua capacidade de incorporar o detalhe local à perspectiva romântica européia, pode-se
creditar esse apego à liberdade, que permeia o eu-lírico de “O canto do guerreiro”, à
influência direta do mito do “bom selvagem”. Como se sabe, em Rousseau, a noção de
liberdade ocupa um lugar central no seu pensamento político-social; diferenciando o
homem dos animais, o filósofo francês, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, afirma que:
em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu
sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo
quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina
humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal,
enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por
instinto, e o outro, por um ato de liberdade, (...). A natureza manda em todos os
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se
livre para concordar ou resistir (2000, p.64).
Essa consciência de liberdade no “bom selvagem” rousseauniano para concordar ou
resistir é semelhante ao traço distintivo do caráter do selvagem explicitado por Gonçalves
Dias na caracterização do índio local. Num famoso estudo etnográfico, Brasil e Oceania, o
poeta afirma que “o traço distintivo do caráter do selvagem é o seu amor à independência,
e o tédio a todo e qualquer constrangimento. Liberdade e espaço, eis sua vida” (s.d.,
p.142). Nesse sentido, continua Gonçalves Dias, as qualidades que os selvagens mais
respeitavam em seus chefes eram a experiência e a coragem:
o mais velho era o mais ouvido, o mais corajoso o melhor obedecido. Os velhos
tinham uma autoridade constante, e os chefes guerreiros um poder temporário; mas
ainda eram igualmente respeitados um e outro, o velho pelo costume e o chefe pelo
temor. Distendido o arco, deposta a maça do combate, o primeiro dos guerreiros no
campo da batalha, era ainda o mais glorioso, o mais respeitado no ócio da paz
(IDEM, p. 142).
Em “O canto do guerreiro”, como o nome já o antecipa, há uma preocupação
generalizada de se explicitar o papel de liderança do guerreiro: “o chefe pelo temor”. Desse
modo, o eu-lírico procura, a todo o momento, destacar a sua coragem em relação aos inimigos
e aos seus pares, e assim, ao demarcar através de seu canto a sua destreza no manejo das
armas e a sua liderança na batalha, ele está, na verdade, transformando o seu caráter belicoso
num valor em si que, além de ser condição necessária à defesa da liberdade, premiava aqueles
que “afrontavam a morte, as privações e os trabalhos com indomável coragem”.38
Legitimado pelo refrão, a reafirmação constante da liderança do chefe guerreiro
valoriza a importância da guerra no imaginário indígena, já que o combate, observa ainda
Gonçalves Dias, “era (...) a maior e a mais enérgica de suas paixões, porque ia nela a
vingança” (IDEM, p. 149). Desse modo, para os indígenas, a guerra torna-se um modo
legítimo de defender a liberdade, e aqui, na verdade, Gonçalves Dias segue de perto a lição de
Montaigne, para quem os indígenas
fazem guerras de um modo mais generoso e ela é neles desculpável e bela na medida
em que pode ser desculpável e bela essa doença da humanidade, pois não tem entre
eles outra causa senão a inveja e a virtude. Não entram em conflito a fim de
conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade natural que
sem trabalhos e nem fadigas lhes fornece tudo de que necessitam e em tal
abundância que não teriam motivo para desejar ampliar suas terras. Têm ademais a
felicidade de limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades
naturais, tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo (2000, pp. 199-200).
38
No início de Brasil e Oceania, Gonçalves Dias escreve a respeito dos Tupis: “A renhida luta que em todas as
partes os Tupis sustentavam contra as tribos do interior, poderia provir de sua índole belicosa, – de suas
instituições que consideravam o mais guerreiro como o mais digno de louvor e estima, – reservando todos os
prêmios da vida futura para aqueles que sabiam afrontar a morte, as privações e os trabalhos com indomável
coragem. É este um ponto de contato que tem entre si todos os povos selvagens, e principalmente os da
América Meridional”. (s.d., p. 4)
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Em suma, ao destacar tanto o papel social do guerreiro quanto a importância da guerra
no mundo indígena, Gonçalves Dias, em seu poema, associa dialeticamente elementos
etnológicos à idéia do bom selvagem. Fundindo “real” e “simbólico”, o herói-guerreiro de
Gonçalves Dias torna-se, desse modo, superior ao colonizador, na medida em que as ações do
primeiro são pautadas, sobretudo, pela defesa da liberdade em si e não pelo interesse
econômico. Talvez isso explique o fato de que a fixação da imagem do herói “bom selvagem”
em “O canto do guerreiro” não se dê pela descrição física, mas por suas ações belicosas, isto
é, pela apresentação de “um personagem que se ergue demonstrando aptidão, por ele mesmo
exaltada, de cantar, com entusiasmo arrebatador, o hino de suas proezas” (ACKERMANN,
1964, p.91). Em tempos de independência política, a valorização da liberdade em “O canto do
guerreiro” ajustou-se ao discurso nacionalista, no entanto, ao prezar a sua condição de livre, o
líder guerreiro não apenas legitima a necessidade da guerra, mas, de certo modo, reaviva na
memória um importante aspecto da própria tradição indígena.
GONÇALVES DIAS, THE INDIGENOUS AND THE LIBERTY
ABSTRACT: This article presents a reading of the poem “O canto do guerreiro” written by Antonio Gonçalves
Dias. The aim is to show the existence of a dialogue between the literary‘representation of the
Brazilian‘indigenous and the concept of natural man, by Jean Jacques Rousseau. Going beyond a reading upon a
romantic nationalism view, such dialogue makes explicit the poet’ conscience of his hole in Brazilian
Romanticism and, at same time, gives a universal dimension to his poetic work.
KEYWORDS: Gonçalves Dias. Indianism. “O canto do guerreiro”.
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CESÁRIO VERDE E PISSARRO: RETRATOS
DA MODERNIDADE NO SÉCULO XIX
Celia Regina Lessa ALEIXO39
Prof. Dr. Thomas BONNICI40
RESUMO: Discute-se a imagem da modernidade retratada por Camille Pissarro, nos quadros Boulevard
Montmartre Tarde, Dia Chuvoso e Efeito Noturno e por Cesário Verde nos poemas Cristalizações e Num bairro
moderno. O objetivo desse ensaio é fazer um contraponto entre o olhar de Cesário sobre o homem e a mulher
operários na Portugal de seu tempo, exemplarmente retratados nos referidos poemas, e a visão de Pissarro sobre
a agitação dos bulevares parisienses, arquétipos da modernidade que então se instalava. A metodologia de
investigação baseia-se em textos teóricos que discutem a modernidade no século XIX, desenvolvidos por
Berman e Bresciani, bem como textos que analisam as correspondências entre poesia e pintura, desenvolvidos
por Joly, Praz, Bosi, Manguel, entre outros. Os resultados mostram que, tendo em mente o período de produção e
as transformações sociais que ocorriam na época, uma analogia entre as obras de Verde e Pissarro é
perfeitamente possível. Conclui-se que a singularidade das imagens que emanam das obras não está na
reprodução da realidade, mas em sua sugestão por meio das impressões dos dois artistas.
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Cesário Verde. Pissarro.
Introdução
A relação entre poesia e pintura tem sido objeto de interesse de estudiosos das artes há
séculos. Um percurso histórico na tentativa de encontrar as raízes de tal relação nos remete
aos séculos VI e V a.C., período em que se acredita ter vivido o poeta Simónides de Céos,
autor da máxima – ‘pintura é poesia muda e a poesia é pintura falante’. Esse paralelo é
reiterado por Platão na República e por Aristóteles que, em sua Poética, já falava das
afinidades entre as duas artes no que tange ao objeto de imitação, sendo os meios de imitação
utilizados, fator que as diferencia “a pintura usa as cores e as formas; a poesia usa a
linguagem, o ritmo e a harmonia” (AGUIAR e SILVA, 1990, p. 163).
A analogia entre poesia e pintura foi reformulada por vários autores ao longo da
história, ora colocando-as em pé de igualdade, ora tratando uma ou outra como forma de
expressão artística superior – visões bastante influenciadas pelas constantes transformações
sociais, econômicas e culturais, cujo reflexo no campo das artes é inegável. A compreensão de
como se dá essa analogia entre as duas artes já foi abordada por vários estudiosos.
A idéia de artes irmãs está tão enraizada na mente humana desde a antiguidade
remota que deve nela haver algo mais profundo que a mera especulação, algo que
apaixona e que se recusa a ser levianamente negligenciado. Poder-se-ia mesmo
dizer que, com sondar essa misteriosa relação, os homens julgam poder chegar mais
perto de todo o fenômeno da inspiração artística (PRAZ, 1982, p. 1).
39
UEM – Universidade Estadual de Maringá – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de
Letras – Maringá – Paraná - Brasil – CEP 87020-900 - [email protected]
40
UEM– Universidade Estadual de Maringá – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de
Letras – Maringá – Paraná - Brasil – CEP 87020-900 [email protected]
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Partindo do pressuposto que literatura e pintura possuem pontos de identificação, esse
ensaio propõe uma leitura das imagens da modernidade retratadas nos poemas Cristalizações
e Num bairro Moderno, de Cesário Verde e das pinturas Boulevard Montmartre Tarde, Dia
Chuvoso e Efeito Noturno, de Camille Pissarro. Ambos artistas vivenciaram as
transformações sociais e os conflitos decorrentes do triunfo do capitalismo no século XIX –
período em que a modernidade se desenvolveu a todo vapor.
O século XIX destacou-se pelas transformações e a expansão sem precedentes na
economia industrial e a conseqüente explosão demográfica nas cidades. As ruas tornaram-se
palco do espetáculo urbano, lugar das multidões, se transformando em um dos temas daquele
período – a rua é do povo, da massa, das multidões, do trabalho, da sobrevivência, dos
encontros, dos protestos, da política. Em Paris, o projeto de reurbanização e a implantação
dos bulevares cruzando de ponta a ponta o coração da velha Paris medieval transformou-se no
arquétipo da vida moderna. Em Portugal, apesar da revolução dos meios de transporte
(estradas de ferro, aquisição de locomotivas, navegação a vapor, etc.) a economia continuava
sustentada pela agricultura.
Nesse contexto, Cesário Verde e Pissarro conseguiram captar as conexões do
indivíduo moderno com o ambiente urbano em flagrantes de momentos da vida social, cada
qual apreendendo e representando em sua arte as transformações ocorridas nos ambientes
urbanos em Portugal e na França no século XIX. De um lado temos a visão do poeta que
consegue captar instantes fugidios da realidade do ambiente citadino de Lisboa, revelando-nos
a miséria, sofrimento e a dificuldade do homem em integrar-se àquele ambiente. Os versos de
Cesário são de tal modo rico em sons, ritmos, cores e sensações, que fazem emergir um
cenário típico de um quadro. De outro lado, Camille Pissarro, o pintor Impressionista,
ressaltando a modernidade, fascinado com as novas cidades e os amplos espaços dos
bulevares. O pintor retrata o cotidiano das ruas, um de seus principais temas, em busca de
novos ângulos, a fim de retratá-la em diferentes perspectivas.
Pissarro e Cesário lançaram seus olhares sobre as multidões nas ruas, captaram suas
impressões desse turbilhão da vida moderna e representaram os homens em seu cotidiano –
pincel e pena retratando as transformações sociais do século XIX.
Literatura e pintura: ecos da modernidade em artes irmãs
Cesário Verde (1855-1886) e Pissarro (1830-1903) viveram no período em que a
modernidade se estabelecia, criando no homem uma profunda dicotomia – as pessoas
compartilhavam o sentimento de viverem em uma era revolucionária, caracterizada pelo
desencadeamento de convulsões na vida pessoal, social e política e, ao mesmo tempo, ainda
se lembravam do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não é moderno
por inteiro.
As transformações espaciais que mudaram as zonas urbanas influenciaram
sobremaneira a vida dos cidadãos. O crescimento populacional misturou nas ruas homens e
mulheres movimentando-se num ir e vir ininterrupto em meio a uma multidão desconhecida.
Nesse panorama os bulevares parisienses, implantados por Georges Eugène Haussmann,
então no cargo de prefeito da cidade de Paris por um mandato de Napoleão III, são
considerados arquetípicos da modernidade. A obra revolucionária mudou o panorama da
cidade, visto as amplas avenidas permitirem uma melhora na circulação do tráfego, à custa do
deslocamento de milhares de pessoas, da destruição de edifícios antigos e de bairros inteiros.
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[os bulevares] estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os
níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas
construções. Pacificariam massas, empregando dezenas de trabalhadores [...] em
obras municipais de longo prazo, as quais por sua vez gerariam milhares de novos
empregos no setor privado (BERMAN, 1994, p. 146).
A construção de bulevares com seus postes de iluminação a gás mantinham a
movimentação de pessoas ininterruptamente, compondo um espetáculo inquietante no qual
“milhares de pessoas deslocando-se para o desempenho do ato cotidiano da vida das grandes
cidades compõem um espetáculo que, na época, incitou ao fascínio e ao terror” (BRESCIANI,
1994, p. 10).
Em meio ao intenso tráfego da cidade, o pedestre é o arquétipo do homem moderno,
sendo ambos, o espaço e o homem, fonte de ‘inspiração’ para o artista observador – revelando
conflitos e divisões de classe, transformando-se em palco de novos problemas sociais que
surgiam com a consolidação do capitalismo moderno. A inovação dos bulevares parisienses
não foi copiada em Portugal, conquanto as largas avenidas da capital francesa se tornaram
símbolos de uma época, arquétipo do crescimento desenfreado das cidades, da modernidade.
Embora Pissarro e Cesário tenham retratado ambientes diferentes, Paris e Lisboa
respectivamente, percebe-se que ambos abordaram, através de suas deambulações, um tema
maior, qual seja, o crescimento intenso das cidades europeias, transpondo para sua arte
flagrantes do cotidiano através de um olhar perspicaz sobre as transformações que então se
operavam nos ambientes urbanos.
A importância da maneira como esse panorama foi representado por Cesário e Pissarro
na poesia e na pintura ultrapassa o valor estético de suas obras. Ambos vivenciaram as
transformações urbanas em seus países representando, por meio de palavras e imagens, suas
impressões do real, levando-nos a perceber a estreita relação entre as duas artes.
Se a natureza e os frutos do acaso são passíveis de interpretação, de tradução em
palavras comuns, do vocabulário absolutamente artificial que construímos a partir de
vários sons e rabiscos, então talvez esses sons e rabiscos permitam, em troca, a
construção de um acaso ecoado e de uma natureza espelhada, um mundo paralelo de
palavras e imagens mediante o qual podemos reconhecer a experiência do mundo
que chamamos de real (MANGUEL, 2001, p. 22-23).
Bosi (1989) pondera a respeito do papel social da arte, haja vista tratar-se de uma
atividade do homem na tentativa de se relacionar com o mundo, em constante mutação, e
consigo mesmo. Fazer, conhecer e exprimir são, segundo o autor, os três momentos pelos
quais passam o processo artístico. A arte é fazer, na medida em que o homem transforma a
matéria fornecida pela natureza e pela cultura. É conhecimento na medida em que o modo de
compor de um artista é influenciado pelo período cultural em que vive, representando a
realidade através de técnicas existentes, podendo recriá-las, acrescentando-lhes sua
criatividade. É expressão – exteriorização de uma imagem criada e elaborada pelo artista.
Segundo o autor, “a expressão e o seu significado formam-se em um processo de mútuas
atrações. E os graus de transparência dessas relações são diversos. Raro é o fenômeno
evidente por si mesmo” (BOSI, 1989, p. 54).
Dessa forma, a análise de imagens e sentidos que emanam de um texto, seja ele um
poema ou uma pintura, não é reflexo direto da realidade que o circunda, como uma fotografia
que capta um dado momento registrando-o em imagem. Decifrar os possíveis significados de
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um texto literário ou de uma pintura não se reduz a um relato de impressões que possam
causar no leitor, faz-se necessário um estudo do contexto de produção da obra de arte,
obedecendo a critérios estabelecidos por críticos, fruto de exaustivos estudos sobre o assunto.
O reconhecimento de equivalentes de realidade na obra de arte implica em cautela por parte
do analista cujo trabalho consiste em “decifrar significações que a ‘naturalidade’ aparente das
mensagens visuais implica” (JOLY, 2001, p. 43).
Reduzir a experiência estética a um pensamento particular é um hábito preconceituoso,
pois contribui para separar o campo das artes do da ciência, sob a crença de que o hábito da
análise mata o prazer estético. Para Joly (2001) a análise pautada em critérios científicos é
trabalho que, apesar de demandar tempo e não poder ser feito com base em “achismos”, ajuda
na compreensão da obra.
Sua prática pode, a posteriori, aumentar o prazer estético e comunicativo das obras,
pois aguça o sentido da observação e o olhar, aumenta os conhecimentos e, desse
modo, permite captar mais informações (no sentido amplo do termo) na recepção
espontânea das obras (JOLY, 2001, p. 47).
Captar representações do real em arte é tarefa que exige espírito crítico, visto a
passagem do tempo ter exercido transformações que influenciaram, entre outras esferas
sociais, o campo das artes, não mais entendidas pelo princípio aristotélico de imitação da
natureza. O decifrar de possíveis significados daquilo que foi expresso em forma de arte, seja
por um escritor, seja por um pintor, em dado momento histórico é um processo mediado pela
palavra que “[...] transita, ora questionando, ora elucidando, e sempre recriando formas e
conteúdos para traduzir o ver e o sentir do artista, suscitados em uma determinada cultura e
relacionados a um período de sua história” (BORGES, 2009, p. 69).
Pissarro: impressões da modernidade
Um dos ícones da pintura Impressionista, Camille Pissarro nasceu em julho de 1830
nas Antilhas, no seio de uma família que se opunha ao seu dom artístico que desde cedo se
manifestara e que o levaria para a França onde seguiria a carreira de pintor. O contato com as
obras dos grandes mestres da pintura francesa da época (Delacroix, Coubert e Corot), ao
chegar à capital francesa em 1855, o influenciaria a abandonar os estudos nas escolas de arte
para pintar ao ar livre. Em 1866 estabeleceu-se com a família em Pontoise, uma aldeia perto
de Paris, onde pintava quase sempre ao ar livre, mostrando sua interpretação intuitiva às
vistas, colinas e prados que circundavam a região. Sua atividade artística o levou a ter
contato com outros jovens artistas de seu tempo, entre eles, Cézanne,Monet, Manet, Sisley,
Renoir e Degas, com os quais se reunia para discutirem suas atitudes acerca da pintura –
todos eles afastados do academicismo, mais tarde rotulados de pintores Impressionistas
A pintura Impressionista não se preocupa em representar na tela uma visão objetiva e
estática da realidade, pelo contrário, se propõe a representar o efeito que objetos do mundo
exterior despertam nos sentidos do artista, que se esforça para transpor para a tela sua visão
particular do mundo, em constante transformação, daí a maneira de representarem as formas
das coisas pela luz e não através de linhas definidas. Para Pissarro, o ideal Impressionista foi
uma opção definitiva em sua obra, uma causa – o despontar de uma nova civilização, a ser
pesquisada com o espírito de investigação, paciência e resolução. Em seus últimos anos de
vida, acometido por uma infecção crônica nos olhos, Pissarro pintou paisagens e vistas
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urbanas, abrigado do frio e do vento parisienses, da janela de um quarto que alugou, em
fevereiro de 1867, no Hôtel de Russie (esquina do Boulevard des Italiens com a Rue Drouot).
Da janela do quarto desse hotel ele produziu uma série de pinturas do Boulevard
Montmartre em diferentes fases do dia. Montmartre, bairro boêmio de Paris que, devido a sua
posição estratégica, foi centro de comandos militares, transformando-se, por volta de 1860,
num ponto de encontro importante de artistas e intelectuais. A vida noturna do local era
animada por bailarinas, modelos e pintores que se misturavam à multidão de habitantes no ir e
vir da vida cotidiana parisiense. Nas duas telas que analisamos nesse ensaio, Pissarro capta
instantes dessa multidão em movimento, onde diferentes tipos se misturam em meio à massa,
perdendo a nitidez de seus contornos – são as impressões de um artista sobre a vitalidade da
vida parisiense.
Boulevard Montmartre, Tarde, Dia Chuvoso
Boulevard Montmartre, Efeito Noturno
Além do dinamismo, as ruas de Paris atraíam Pissarro pela variação constante do
colorido, intensificado na tela Boulevard Montmartre, Tarde, Dia Chuvoso pelo véu brilhante
deixado pela chuva, numa gama variada de vibrações e modulações óticas. A agitação da
vida moderna é captada pelo pintor que retrata a massa de pessoas indo e vindo ao longo do
movimentado bulevar, que afunila no final da tela dando-nos a sensação da extensão e
infinitude daquela movimentação.
Os prédios padronizados da Paris reformada por Haussmann, as carruagens que, com a
pavimentação das ruas podiam se movimentar mais rapidamente, e a fumaça das fábricas,
misturada ao céu acinzentado do dia chuvoso, cercam a multidão de caminhantes em seu
cotidiano – retrato da incessante movimentação que a partir daquele período caracterizaria as
grandes cidades, sendo Paris o arquétipo da cidade moderna de então.
Na segunda tela, Boulevard Montmartre, Efeito Noturno, Pissarro pintou o mesmo
bulevar sob o efeito das luzes artificiais que iluminavam a cidade à noite. O jogo evocativo
das luzes mostra outra dimensão de Paris, iluminada pelos postes e prédios – centro da
boemia, reduto de artistas freqüentadores dos famosos cafés parisienses.
Nas duas telas Pissarro capta um instante daquela multidão em constante movimento,
registrando as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz (solar ou artificial) cuja
incidência modifica as cores da cidade, dando impressões diferentes durante o dia ou à noite.
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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As figuras não têm contornos nítidos e as sombras são luminosas e coloridas tal como é a
impressão visual que nos causam.
As cores e tonalidades utilizadas pelo pintor não são obtidas pela mistura das tintas na
paleta, ao contrário, são puras e dissociadas em pequenas pinceladas. É o observador que, ao
admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final – característica da
pintura Impressionista, a mistura de cores deixa de ser técnica para se óptica.
Ao pintar o mesmo cenário em diferentes momentos do dia, Pissarro consegue captar a
essência da modernidade, o turbilhão da vida na cidade que nunca dorme. A vida cotidiana é o
grande espetáculo cujos personagens (freqüentadores dos bulevares) variam conforme o
período do dia: o movimento dos trabalhadores povoa os bulevares durante o dia e à noite os
artistas, as prostitutas, os jogadores, entre outros notívagos, ocupam os cafés e os bulevares,
onde a vida cultural é intensa.
Figuras fugidias, indecifráveis para além de sua forma exterior, só se deixam
surpreender por um momento no cruzar de olhares que dificilmente voltarão a se
encontrar. Permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante desse viver
coletivo, ter suspensa a identidade individual, substituída pela condição de habitante
de um grande aglomerado urbano, ser parte de uma potência indiscernível e temida,
perder, enfim, parcela dos atributos humanos e assemelhar-se a espectros [...]
(BRESCIANI, 1994, p. 11).
Pissarro consegue retratar o ritmo frenético do bulevar em constante movimentação,
seja sob a luz do sol, seja sob a luz da lua e dos postes de iluminação. O olhar do pintor sobre
a multidão de pessoas que se esbarram sem se perceberem – qualquer semelhança com as
multidões das grandes cidades da contemporaneidade não é mera coincidência – nos dá uma
visão de quão importante é o papel da arte no entendimento das transformações sociais nas
diferentes épocas da história.
Cesário Verde: poesia-pintura
“A mim o que me rodeia é o que me preocupa” (Cesário Verde)
Cesário Verde foi o poeta caminhante a vagar pela cidade e pelo campo, “abrindo à
poesia as portas da vida, e nela entraram os ruídos, os cheiros e a linguagem das ruas
alargando o campo da poesia à representação pictórica das pessoas e coisas do cotidiano”
(COELHO, 1961, p. 51).
Nascido em Lisboa em 1855, José Joaquim Cesário Verde, filho de um comerciante
bem sucedido, fora preparado desde cedo para suceder o pai nos negócios da família,
debatendo-se entre a atividade comercial, que nunca abandonou, e sua irreprimível vocação
poética. Segundo Maria Ema Tarracha Ferreira, na introdução da versão portuguesa de O livro
de Cesário Verde, “esse dualismo entre o comerciante e o poeta, que o faria evitar os literatos,
por ser comerciante, e o isolava da classe comercial, por se sentir poeta talvez explique seu
caráter misantropo e o sentimento de solidão que permeia seus poemas”.
Apesar de refletir em sua poesia o perfeito domínio da língua portuguesa e uma
precisão vocabular riquíssima, Cesário não foi intelectual, nem literato, nem bacharel. Seu
gosto pelas Letras o levou, em 1873, ao ingresso no Curso Superior de Letras (o qual não
concluiu), onde fez uma sólida amizade com António de Silva Pinto e começou a publicar
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Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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poemas no Diário de Notícias e, posteriormente, em outros periódicos. Em 1881 participou
do “Grupo do Leão” (referência ao restaurante Leão de Ouro, onde se reuniam escritores e
pintores). Seu projeto de publicar um livro não foi levado a cabo durante seu curto período de
vida, sendo sua produção literária marcada pela incompreensão de seus contemporâneos e
pela crítica ácida de intelectuais de renome, como Ramalho Ortigão e Teófilo Braga, levandoo a declarar sua decepção frente ao não reconhecimento de seus escritos.
Cesário Verde morreu em 1866, aos 31 anos da mesma tuberculose que anos antes
tirara a vida de sua irmã e de seu irmão. No ano seguinte a sua morte António da Silva Pinto
publica O livro de Cesário Verde, reunindo os trinta e sete poemas deixados pelo poeta.
Além de ser reconhecido como precursor de várias tendências de vanguarda e do
Modernismo em Portugal, outro aspecto que torna a poesia de Cesário peculiar é a afinidade
que guarda com a pintura – ele é o “poeta pintor”, atento à vida cotidiana e comum de onde
colhia flagrantes do dia-a-dia, valorizando o simples e o prosaico, como acontece com a
pintura impressionista.
Coutinho (1990) faz algumas considerações acerca do chamado Impressionismo
literário, em contraponto com o Realismo:
A reprodução da realidade, de maneira impessoal, objetiva, exata, minuciosa,
constituía a norma realista; para o impressionista, a realidade ainda persiste como
foco de interesse, mas, ao contrário, o que pretende é registrar a impressão que a
realidade provoca no espírito do artista, no momento mesmo em que se dá a
impressão. O mais importante do Impressionismo é o instantâneo e único, tal como
aparece ao olho do observador. Não é o objeto, mas as sensações e emoções que ele
desperta, num dado instante, no espírito do observador, que é por ele reproduzido
caprichosa e vagamente (COUTINHO, 1990, p. 223).
A poesia de Cesário se adéqua a tal definição, na medida em que o poeta não se
propõe a reproduzir a realidade que o cerca, mas a sugerir, por meio de impressões, as
mudanças que marcaram a sociedade portuguesa de seu tempo. Num Bairro e Moderno
Cristalizações se configuram como painéis que retratam um aspecto marcante da
modernidade, na medida em que seus ‘protagonistas’ são trabalhadores em luta por
sobrevivência, numa sociedade capitalista em crescente expansão.
O poema Num Bairro Moderno datado de 1878, é ambientado em uma rua de Lisboa,
por onde um trabalhador caminha para seu emprego quando se depara com uma verdureira
franzina carregando seu cesto de legumes e verduras. Logo nas primeiras estrofes temos a
demarcação do tempo e do cenário: manhã de um dia ensolarado, num bairro cujas casas
refletem certo requinte e as ruas ares de modernidade:
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada
[...] Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
[...] Como é saudável ter seu aconchego,
E sua vida fácil! (VERDE, s/d, p.64, grifo nosso).
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A forma como o cenário é descrito parece assemelhar-se com uma pintura
impressionista, onde as cores claras predominam, reforçando a ideia de luminosidade típica
das manhãs ensolaradas, por onde olhar do caminhante nos conduz, partindo do ambiente
externo das ruas macadamizadas para o interior das habitações apalaçadas. O aconchego do
casario se contrapõe ao desconforto que o acomete, seja porque seu trabalho não o satisfaz,
seja porque sua condição não lhe permite usufruir de tal conforto.
A partir da quarta estrofe do poema o olhar do observador se afunila ainda mais, se
concentrando numa vendedora de legumes que ele passa a examinar. Essa figura feminina
não lhe chama a atenção pelos atrativos físicos, mas sim por sua fragilidade e condição social
– oprimida até mesmo pelo criado de uma das casas por onde passa:
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
[...] esguelhada, feia,
E pendurando seus bracinhos brancos
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces. (VERDE, s/d, p. 65, grifo nosso).
Através da escolha vocabular (‘rota, pequenina, azafamada, esguelhada, feia’) o poeta
nos transmite quão grande é o abismo entre as classes menos favorecidas, na figura da
vendedora, e a burguesia que habita o casario daquela vizinhança, cuja indiferença às classes
oprimidas é personificada pelo criado que a humilha. A verdureira com seu cesto de frutas e
legumes parece destoar daquele bairro moderno, marcando a oposição entre a simplicidade
das coisas do campo e o ambiente urbano.
Agora o observador vislumbra a figura feminina com seu pesado cesto de vegetais sob
o ponto de vista de um artista. Ele faz associações entre as formas e cores dos vegetais com
partes do corpo da mulher:
Se eu transformasse os simples vegetais,
[...] num ser humano que se mova e exista
Cheio de proporções carnais?!
[...] E eu recompunha por anatomia,
Um novo corpo orgânico,
[...] achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados
Azeitonas [...] são tranças dum cabelo [...]
Os nabos – ossos nus [...]
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos [...]
Um melão, que me lembrou um ventre [...]
Vi nos legumes carnes tentadoras [...]
Sangue na ginja escarlate
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras (VERDE, s/d, p. 65-66)
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Ao enxergar partes do corpo humano nos vegetais, o poeta parece fundir a imagem da
mulher com sua ocupação profissional - reflexo da importância que a sociedade dá à
aparência em detrimento da essência do ser humano – como se seu ofício de verdureira
eliminasse a mulher, tomando o lugar de sua alma, dispersa naquele ambiente burguês do qual
não fazia parte.
Esse momento em que o caminhante se pretende artista é interrompido pelo grito da
mulher a lhe pedir ajuda para erguer seu cesto, pedido que ele atende prontamente:
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude [...] (VERDE, s/d, p. 67)
Ao ajudar a mulher a levantar o pesado cesto, seu fardo diário, o observador se dá
conta das dificuldades que ela enfrenta com disposição, o que provoca uma mudança em seu
estado de espírito – outrora entediado a caminhar pelo bairro moderno marcado pela
superficialidade da ‘vida fácil’ e aconchegante da burguesia, ele percebe a grandeza daquela
‘personagem’ que, contrastada com seu corpo franzino, assume a grandeza de um gigante:
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita, [...]
E como as grossas pernas de um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras [...] (VERDE, s/d, p.68)
Ao lançar o olhar para uma vendedora de verduras que mistura fragilidade e grandeza,
em oposição à superficialidade da vida burguesa, Cesário opera uma mudança de perspectiva,
trazendo à tona desigualdades sociais, que antes não se constituíam em assunto para a poesia.
Nesse aspecto, há uma aproximação temática entre o poema Num Bairro Moderno e
Cristalizações publicado em 1879, no qual Cesário Verde focaliza a árdua vida dos
calceteiros (homens que trabalham na pavimentação das ruas) de Lisboa.
As marcas de tempo dadas pela passagem das estações do ano enfatizam quão pesado
e infindável é o trabalho daqueles que quebram as pedras que se constituirão em
paralelepípedos para pavimentar as ruas. O poema se abre com descrições que indicam ser
primavera: “Faz frio. Mas depois duns dias de aguaceiros,/ Vibra uma imensa claridade crua
[...] e o descoberto sol abafa e cria!/ A frialdade exige movimento; / E as poças de água como
em chão vidrento,/ Reflectem a molhada casaria” (VERDE, s/d, p.69).
Nesse contexto, o poeta focaliza os calceteiros que trabalham “De cócoras, em linha
[...] com lentidão, terrosos e grosseiros” (VERDE, s/d, p. 69), adjetivos que qualificam a
penosa situação em que se encontravam os trabalhadores em fila, cercados e oprimidos pela
fileira de casas que se estendem pela longa rua. Paralelamente ao trabalho dos calceteiros, o
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poeta aborda, na terceira estrofe, as peixeiras, que com seus gritos dão brilho aquele ambiente
terroso onde se encontram os calceteiros, também terrosos: “Disseminadas, gritam as
peixeiras;/ Luzem, aquecem na manhã bonita,/ Uns barracões de gente pobrezita” (VERDE,
s/d, p.70). O som alegre das peixeiras se contrapõe ao barulho ensurdecedor provocado pelo
bater do ferro nas pedras “Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!/ [...] E o ferro e a
pedra – que união sonora! – Retinem alto pelo espaço fora, [...] (VERDE, s/d, p. 70).
O verso que abre a quinta estrofe indica uma possível mudança nas condições do
tempo, que se poderia tomar como a transição da primavera para o verão: “Bom tempo. E os
rapagões, morosos, duros, baços,/ Cuja coluna nunca se endireita, Partem penedos; cruzam-se
estilhaços” (VERDE, s/d, p.70). A mudança do tempo não altera a rotina dos trabalhadores,
submetidos a horas extensivas de trabalho, numa rotina que nunca se altera.
A sétima e oitava estrofes também trazem marcas de tempo, através de descrições de
cenários típicos de outono, quando as árvores perdem as folhas “E nesse mês rude, que não
consente as flores, / as árvores despidas. Sóbrias cores!” e do inverno rigoroso, estação que
influencia sobremaneira a vida das pessoas. “Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande agente!
– Carros de mão, que chiam carregados, conduzem saibro, vagarosamente” (VERDE, s/d,
p.70-71). O objeto de trabalho toma o lugar do homem que com ele se confunde perdendo
sua essência humana – quem carrega os carros de mão que conduzem saibro e que chiam?
Na nona estrofe há uma sugestão de retorno à primavera, simbolizando as mudanças
cíclicas que ocorrem na natureza que, apesar de implicar em passagem de tempo e
conseqüente envelhecimento do homem, trazem para o eu - lírico ar de renovação:
[...] Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
[...] E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exato.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos [...] (VERDE, s/d, p. 70).
A alegria que se manifesta no estado de espírito do eu - lírico é interrompida quando
ele volta seu olhar para o rosto do trabalhador, até agora considerado na coletividade:
Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo! (VERDE, s/d, p. 71-72).
A diferença entre o trabalho do calceteiro e do mestre de obras é marcada pela
adjetivação a eles atribuída – o calceteiro é o burro de carga, desumanizado e zoomorfizado
pelo trabalho pesado, à semelhança do peso que os burros carregam no lombo, enquanto o
mestre de obras ‘gordo e lento’ faz o trabalho mais leve, obedecendo a injusta lógica imposta
pelas sociedades capitalistas.
Que vida tão custosa! Parece ser essa a exclamação do poeta Cesário a quem o que o
rodeia é o que o preocupa. A inclusão dos calceteiros na classe dos sofredores, cuja cruz é
simbolizada pelos suspensórios a cruzarem-lhe o peito e cujo único consolo está no vinho no
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qual se refugiam, é a forma por ele encontrada para denunciar as mazelas de uma sociedade
que marginaliza as classes menos abastadas:
“Povo! No pano cru rasgado das camisas/ Uma bandeira penso que transluz!/ Listrões
de vinho lançam-lhe divisas,/ E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!” (VERDE, s/d, p. 72).
A monotonia do cenário e a rudeza dos calceteiros é quebrada pela aparição de uma
atriz que surge bruscamente da escuridão da madrugada: “fina de feições, o queixo hostil,
distinto, furtiva a tiritar em suas peles de volta do teatro”, desviando por um momento o olhar
do observador que se volta novamente para os trabalhadores que a ela se opõem em aparência
e condição “bovinos, másculos, ossudos,/ Encaram-na sanguínea, brutamente[...]” (VERDE,
s/d, p. 73). Como uma tentação imposta àqueles homens brutos vindos de várias partes do
país para trabalhar na construção das ruas “[...] filhos das lezírias [...] / os das planícies [...] Os
das montanhas [...]” (VERDE, s/d, p. 72). A fina atriz atravessa a rua com seus “pezinhos de
cabra” (à semelhança de uma tentação do diabo), aguçando os sentidos daqueles homens
rudes a quem ela é indiferente.
O funcionário do comércio, a vendedora de verduras, os calceteiros, a peixeira, a atriz
de fino trato... tipos que surgem nos ambientes urbanos e que Cesário soube captar com seu
olhar de artista, compondo com eles sua poesia-pintura – cenas da modernidade do século
XIX.
Considerações finais
Concluímos, com base na análise das obras de Cesário Verde e Pissarro, que uma
analogia entre suas obras é perfeitamente possível se o leitor tem em mente o período de
produção e as transformações sociais que ocorriam na sociedade de então. As imagens que
emanam das obras dos dois artistas são singulares, não porque reproduzam uma realidade,
mas porque a sugerem por meio de suas impressões.
Fazer uma imagem é primeiro olhar, escolher, aprender. Não se trata da reprodução
de uma experiência visual, mas da reconstrução de uma estrutura modelo, que
tomará a forma de representação mais bem adaptada aos objetivos que
estabelecemos para nós (mapa geográfico, diagrama ou pintura ‘realista’,
‘impressionista’, etc. (JOLY, 1996, p. 60).
Pissarro e Cesário captaram instantes representativos de um meio urbano que se
transformava a todo instante. Embora ambos tenham retratado a cidade e suas ruas, arquétipos
da modernidade, a realidade de Lisboa onde Cesário se situa cria um ponto de observação
distinto daquele do centro da Europa (Paris) onde está Pissarro. O pintor poeta, da janela de
um quarto de hotel, lançou seu olhar sobre uma multidão que se aglomerava nas ruas,
enfatizando a coletividade, no seu ir e vir diário. Cesário, apesar de lançar seu olhar em tudo o
que lhe cerca, parece focalizar o que lhe incomoda e causa indignação – seus protagonistas (a
vendedora de verduras e os calceteiros) são figuras que surgem na modernidade com a
expansão das zonas urbanas, fazendo da poesia um instrumento para chamar a atenção para as
esferas sociais menos favorecidas.
Compreendemos que decifrar todos os possíveis significados de uma obra, seja poesia
ou pintura, seria por demais pretensioso, visto sabermos não ser possível esgotar significados,
nem mesmo por meio de uma análise minuciosa e exaustiva. Dessa forma, ao nos propormos
uma leitura da imagem da modernidade que emana dos textos de Pissarro e Cesário, estamos
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pautados no que Joly (2001) pondera ao afirmar que a interpretação de uma imagem não
significa dominar sua significação, porém apreender a sua mensagem ao desvendar o que nela
se encerra.
Um olhar crítico sobre os poemas de Cesário e as telas de Pissarro, nos leva a perceber
a intertextualidade que eles guardam entre si. O poeta pelo uso das figuras de linguagem e
adjetivações expressivas e o pintor com os recursos dos traços, da luz e das cores, construíram
paisagens típicas da modernidade do século XIX. Como negar tal correspondência?
CESÁRIO VERDE AND PISSARRO: PORTRAITS OF MODERNITY IN THE NINETEENTH CENTURY
ABSTRACT: This essay analizes the representation of modernity portrayed by Camille Pissarro, in the paintings
Boulevard Montmartre Tarde, Dia Chuvoso and Efeito Noturno and by Cesário Verde in the poems
Cristalizações and Num bairro moderno. The purpose of this essay is to compare Cesário’s view of the female
and male workers in Portugal, through the poems above mentioned, and Pissarro’s view of the excitement of the
Parisian boulevards, archetype of the modernity that was starting at the time. The methodology of analysis is
based on theoretical texts that discuss the modernity in the nineteenth century, written by Berman and Bresciani,
as well as texts that analize the relation between poetry and painting, developed by Joly, Praz, Bosi and
Manguel, among others. The results show that, having in mind the period both artists produced and the social
transformations happening at the time, an analogy between the work of Pissarro and Verde is totally possible.
We conclude that the images emanated from their work are singular, not because they reproduce the reality, but
by the way it is suggested through the impressions of both artists.
KEYWORDS: Modernity. Cesário Verde. Pissarro
REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, V. M. de. Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.
BECKET, W. The story of painting. United States: DK Publishing, 1994.
BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1982.
BORGES, M. C. F. A literatura e a imagem configuradas na arte clássica: análise do Rapto de Perséfone. Acta
Scientiarum, Maringá, v. 31, n.1, p.61-69, 2009.
BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, Sem Ano.
BRESCIANI, M. S. M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da
pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COELHO, J. P. Problemática da História Literária, 2.ed., 1961, São Paulo: Ática.
COUTINHO, A. Introdução à literatura no Brasil. 15.ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.
JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas:Papirus, 1996.
MANGUEL, A. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio.São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
OS IMPRESSIONISTAS: Camille Pissarro. São Paulo: Globo.
PRAZ, M. Literatura e artes visuais. São Paulo: Cultrix,1982.
VERDE, C. O livro de Cesário Verde. Porto Editora, s/d.
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AS VIAGENS DE MANUEL BANDEIRA PELA CIDADE DE OURO PRETO
Ilca Vieira de OLIVEIRA41
RESUMO: Este texto apresenta um estudo sobre as imagens da cidade de Ouro Preto nos poemas “Ouro Preto”
e “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de Lira dos cinqüenta anos (1940), “Minha Gente, salvemos
Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), e na crônica “Guignard”, de 26/10/1960, de Manuel Bandeira, observando
como o eu lírico viaja pela história e pela paisagem de Minas e, recria, poeticamente, as impressões que tem dos
espaços e dos monumentos artísticos e culturais dessa cidade barroca. Em nossa reflexão trataremos das imagens
da cidade a partir das viagens reais e imaginárias do poeta, por isso, tomaremos também como objeto de nossa
reflexão o texto Guia de Ouro Preto, de 1938.
PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira. Viagens. Ouro Preto. Cidades de Minas.
PATRIMÔNIO
Duas riquezas: Minas
e o vocábulo.
(Carlos Drummond de Andrade)
A viagem dos poetas modernistas às cidades de Minas como os “descobridores do
passado colonial” teve início em 1919 com o jovem Mário de Andrade em visita ao poeta
simbolista Alphonsus de Guimaraens, em Mariana. Nessa viagem, ele também manteve
contato com as construções antigas da cidade de Ouro Preto. Alphonsus de Guimaraens, em
carta ao seu filho João Alphonsus, faz o seguinte comentário sobre a visita que recebeu de
Mário:
Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S. Paulo, que veio
apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor em ciências filosóficas. Leu e
copiou várias poesias minhas (principalmente as francesas), e admirou o teu soneto
oferecido ao Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês,
todo o “Corvo”, de Poe. Viaja para fazer futuras conferências e visitou todos os
templos desta cidade. A verdade é que, para quem vive, como eu, isolado – uma
visita dessas deixa profunda impressão. (GUIMARAENS, apud GUIMARAENS
FILHO, 1995, p. 356)
Sobre essa visita, Mário de Andrade escreve um artigo publicado em A Cigarra, de
São Paulo, em agosto de 1920, que traz o olhar de um sujeito preocupado com a valorização
dos elementos artísticos e culturais do país, principalmente em se tratando da produção
literária, fazendo a seguinte indagação: “Não haverá no Brasil um editor que lhe agasalhe os
poemas, tirando-os da escuridão?” (ANDRADE, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.
358)42. Como se vê pela pergunta de Mário, o que faltava era a valorização e divulgação desse
poeta completamente desconhecido pelos brasileiros. Nesse sentido, Mário faz um apelo aos
41
UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes Claros - Centro de Ciências Humanas - Departamento de
Comunicação e Letras - Montes Claros - MG. Brasil – 39.400-470- [email protected] e
[email protected].
42
ANDRADE, Mário de., BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a
Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
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editores do país para que possam tirar da escuridão os poemas desse autor que se encontrava
distante dos grandes centros culturais do país, Rio de Janeiro e São Paulo, continuando com as
suas indagações da seguinte maneira: “Não existirá a piedade dum novo bandeirante que vá
descobrir nas Minas Gerais essa minas de diamantes castiços e lapidados, e deslumbre os da
nossa raça com tesoiros que Alphonsus guarda junto de si? Onde? quando o abre-te Sésamo
dessa gruta encantada?....” (ANDRADE, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 358, itálico
no texto original)
Mário foi o primeiro bandeirante modernista que veio explorar essa gruta encantada
que existe nas cidades barrocas. Em 1924, depois da Semana de Arte Moderna, com a viagem
da caravana dos paulistas Mário, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e do poeta francosuiço Blaise Cendrars a São João del Rei e Tiradentes, pode-se ver que outros bandeirantes
teriam se juntado a Mário na busca de metais preciosos. A arte dessas cidades de Minas
provocou um efeito em todo o grupo que, ao retornar para São Paulo, passou a se preocupar
com a valorização das cidades históricas e do patrimônio cultural do país. Como resultado da
descoberta do século 18 pelos modernistas paulistas, temos várias produções artísticas e
críticas como, por exemplo, a pintora Tarsila do Amaral que produziu desenhos inspirados na
plástica local e Oswald de Andrade que compôs vários poemas para Pau Brasil, de 1925.
Sobre a visita dos modernistas às cidades de Minas e a repercussão que ela teve para esses
intelectuais, o crítico Rui Mourão faz a seguinte exposição:
No retorno a São Paulo, a preocupação com a valorização das cidades históricas
passou a ser incluída nas linhas programáticas dos jovens revolucionários. Eles
identificavam, naquela arte de dois séculos atrás, a autenticidade de inventiva que
desejavam alcançar. Essa descoberta os inseria numa tradição. Com a retaguarda
daquela forma protegida, sentiam-se mais seguros e mais bem plantados. E o
trabalho para divulgar o patrimônio barroco e difundir informações sobre ele não
terminaria mais. Através de artigos e constantes referências, procurava-se trazer,
para o desfrute dos contemporâneos, valores que não podiam continuar ignorados,
exilados ou esquecidos no passado. Na obra de Francisco Lisboa e outros, brilhava a
chispa da genialidade. O acervo que as chamadas cidades históricas reuniam
representava prodigioso conjunto de arte que a cultura de tradição portuguesa
deixara nestas paragens. (MOURÃO, 1994. p. 39-40)
No início de 1919, ano em que Mário de Andrade esteve em Mariana para visitar o
poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, o poeta Manuel Bandeira – que também tem
papel importante na Semana de Arte Moderna e no modernismo brasileiro – encontrava-se em
Juiz de Fora e escreveu um artigo “A academia e Alphonsus de Guimaraens” para o Correio
de Minas, jornal daquela cidade, em 19 de janeiro, mostrando que seria uma honra a
Academia ter esse poeta como sucessor de Bilac. Mas essa não seria a vez de um escritor
mineiro ocupar a cadeira do poeta parnasiano, mas sim do escritor paulista Amadeu Amaral.
Muitos anos depois, em 1953, Bandeira ainda retoma a frustrada candidatura desse escritor à
Academia Brasileira de Letras e continua a defender esse poeta simbolista por reconhecer a
importância da sua poesia para a literatura brasileira, chegando a comparar a sua grandeza
poética à do escritor francês Mallarmé43.
43
O texto de Manuel Bandeira de 1953 chama-se “Alphonsus de Guimaraens”. Bandeira, em carta escrita para
Mário de Andrade com data de 12/10/1941, entre as notícias que dá ao amigo, pede um conselho sobre a
antologia dos simbolistas e pós-parnasianos que estava em fase de preparação para o Ministério de Educação.
Apresentamos fragmento do texto: “O Capanema mandou me chamar e reclamou a antologia dos simbolistas e
pós-parnasianos. Tenho que fazer! Dê-me um conselho: não acha que é pena misturar simbolistas e pós-
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O poeta Bandeira, ao longo de sua vida, manteve contato com vários intelectuais
mineiros, correspondendo-se com alguns deles por vários anos. Nota-se que suas viagens por
Minas não se restringiram às leituras da poética árcade e simbolista que demonstra conhecer
muito bem em seu exercício de crítico e poeta; elas são, de fato, viagens reais que o poeta fez
como pesquisador para conhecer e recolher informações para compor o livro-guia de Ouro
Preto. Em carta de 26/7/1937 para Mário de Andrade, o poeta Bandeira, quando retorna de
São Paulo para o Rio, informa ao amigo que a viagem de volta correu bem melhor que a de
ida e, no fim do relato, confessa: “Agora vou me atirar ao Guia de Ouro Preto. Estou com
preguiça e com medo. Mas com amor também. Amor e medo...” (ANDRADE; BANDEIRA,
2001, p. 638). Mário não faz nenhum comentário sobre essa carta que Bandeira a ele enviara,
pois, em toda a correspondência dos dois, não localizamos novas informações sobre a escrita
desse livro-guia44. As informações que encontramos sobre a atuação de Bandeira como sujeito
que teve acesso aos documentos históricos e artísticos de Ouro Preto estão presentes em sua
produção de ensaísta e cronista. Na crônica “Uma revista”, de 9/9/1937, o poeta revela o seu
lado crítico de investigador da história do passado colonial de Minas Gerais, com comentários
sobre o texto de abertura “Roteiro Lírico de Ouro Preto”, de Afonso Arinos de Melo e Franco,
publicado no boletim “Lanterna Verde, nº 5”. Após ler esse texto de abertura, Bandeira
ressalta que “informações preciosas” ali presentes mereciam ser revistas45.
parnasianos? Já li e reli com cuidado o Cruz e Sousa e estou seguro da minha escolha. Mas o Alphonsus de
Guimaraens me atrapalha: é mais difícil de apanhar e limitar numa seleção. Você quer me apontar o que lhe
parece melhor – o que lhe pareçam dez coisas que não devem ser esquecidas? P’ra comparar com o que
separei. Meu critério você conhece: não o mais belo ou forte ou perfeito. – Ou tudo junto equilibradamente”.
(ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 656). Em carta de 26/10/1941, Bandeira acusa recebimento da carta de
Mário do dia 17 e reclama que o amigo não o ajudou no pedido feito anteriormente. Vejamos o comentário de
Bandeira: “Mas estou safado de você não me ajudar no caso de Alphonsus de Guimaraens. Que diabo, você já
andou lendo e estudando e tomando apontamentos sobre o homem. Faça uma releitura rápida. Não é preciso ler
os sonetos, pois o que me está embaraçando são as poesias mais longas, não os sonetos, dos quais já fiz a
minha escolha. Insisto com você, porque fiz igual pedido ao Carlos Drummond e a resposta dele me atrapalhou
ainda mais: só em duas coisas (uma delas “Ismália”) concordamos”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 657)
Na correspondência dos dois, não encontramos essa carta do dia 17 que Bandeira responde a Mário. Com
certeza, o documento não foi localizado pelo organizador Marco Antonio de Moraes.
44
Em carta de 20/9/1937 para Mário, Bandeira dá notícias da viagem de Cândido Portinari para Minas: “Ontem
partiu o Candinho para Minas. Maria e Olga, Santa Rosa e Glorinha também foram. Candinho foi ver de perto
os trabalhos de minas e siderurgia para fazer um dos painéis do futuro Ministério. Passarão lá uma semana. Iam
a Sabará, Ouro Preto e Mariana. O Brodosquinho poderá fazer observações precisas sobre as pinturas de Ouro
Preto e Mariana”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 639-640) Entretanto, em toda a correspondência, não
existe mais nada sobre o trabalho realizado para a escrita desse guia sobre Ouro Preto.
45
Para esclarecer melhor a informação exposta, apresentamos fragmento da crônica de Manuel Bandeira.
Vejamos: “Arinos repete que o palácio da Penitenciária foi riscado por D. Luís da Cunha Meneses. Parece que
não. O Sr. Augusto de Lima Júnior, contaram-me, descobriu ultimamente em Portugal que o risco veio de lá.
Descobertas líquidas e que ainda não aparecem no “Roteiro” são que o risco do Carmo é obra de Manuel
Francisco Lisboa, arquiteto português, suposto pai do Aleijadinho, e que das mãos deste último são as talhas
dos altares laterais de São João e de Nossa Senhora da Piedade. Uma e outra coisa constam dos livros de
termos das liberações das mesas da Ordem do Carmo: a primeira no livro 1.º, pág. 107; a segunda no livro 2.º,
pág. 70. Devemos essas descobertas a pesquisas mandadas efetuar pelo Serviço de Defesa do Patrimônio
Artístico e Histórico, criado pelo Ministro Capanema e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Arinos me
acusa de leviano por eu achar meio sem graça os amores do Dr. Gonzaga com Maria Dorotéia. E me emprestou
o livro de Tomás Brandão, Marília de Dirceu, para eu mudar de idéia. Ainda não tive tempo de ler o livro, e por
isso continuo na minha leviandade de achar aqueles amores do ouvidor bordando vestidinhos para Marília um
caso daquilo que a neo-gnomonia chama “mozarlismo lacrimejante”. (ANDRADE; BANDEIRA, 1986, p. 234)
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Manuel Bandeira fez um trabalho intenso de pesquisa para o Serviço de Patrimônio,
em 1937-1938, para escrever o livro-guia da cidade, iniciando, assim, uma biografia de Ouro
Preto que encanta os seus leitores-viajantes, pois ao material recolhido pelo pesquisador,
comprometido com os fatos históricos, foi concedido tratamento “especial” na visão do
artista46. O estudo “Viagem a Ouro Preto”, de Lourival Gomes Machado, é um texto que traz
comentários sobre esse livro de Bandeira. Vejamos o texto a seguir:
Bandeira dispõe da paciência meticulosa do pesquisador honesto e pôde, assim,
reunir todos os dados úteis conhecidos em 1938, mas ninguém esquecerá que
Manuel Bandeira é dos grandes da poesia nacional e, desse modo, talvez mesmo sem
o querer, deixou filtrar, entre duas datas e localização de um altar, a gotinha de sua
infinita sensibilidade. O seu trabalho, com as ilustrações de Luís Jardim, nada tem
de baedeker cacete para ter tudo de passeio ameno, na melhor companhia deste
mundo. (MACHADO, 2003, p. 178-179)
Nesse estudo, o crítico descreve a sua experiência de viajante que em 1948 visita a
cidade de Ouro Preto, informando aos desavisados que desejam visitar a cidade pela primeira
vez e têm em mãos o Guia turístico de Bandeira que os passeios pela cidade não são tão
saborosos como explicita a sensibilidade desse poeta, principalmente porque a geografia da
cidade não ajuda o visitante que encontrará uma cidade barroca diante de si, com todos os
seus contrastes.
Diante de toda a discussão até aqui exposta, perguntamos-nos: por que motivo o
diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de
Andrade, pede ao poeta Manuel Bandeira para escrever um Guia de Ouro Preto? Como bem
sabemos, no contexto em que esse guia foi publicado, a cidade barroca de Ouro Preto passava
por um processo de “restauração” como objeto material, pois os intelectuais mineiros da
época estavam empenhados para que ela fosse reconhecida como Monumento Nacional, fato
esse, ocorrido em 1936, com o decreto de nº 756-A, assinado pelo presidente Getúlio Vargas.
Com tal ato público, a cidade Ouro Preto adquire o status de “cidade mítica”, “inventada”
pelo poder público. O poder público passa a investir na preservação do patrimônio histórico e
artístico do País e realiza vários projetos de “salvamento” dessas cidades históricas de Minas,
principalmente porque, segundo Rui Mourão, o Ministro Gustavo Capanema era entrosado
com os modernistas e tinha como chefe de Gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Rui Mourão ainda ressalta que, em 1937, esse ministro resolveu encomendar a Mário de
Andrade um projeto para a proteção do patrimônio histórico e artístico, trazendo-nos um
esclarecimento importante sobre essa época e o projeto de preservação dessas cidades:
O projeto de Mário, abrangente e arrojado, contemplava o universo inteiro dos bens
culturais. Na primeira fase de trabalho que se implantaria, porém, como se tornou
lugar comum observar, fez-se opção por cuidar preferencialmente dos monumentos
arquitetônicos e urbanísticos. Isso aconteceu porque o órgão criado, o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a direção de Rodrigo Mello Franco
de Andrade, dispondo de parcos recursos e insuficiente quadro de pessoal, não se
46
Em 1938, Bandeira é nomeado pelo Ministro Gustavo Capanema professor de Literatura do Colégio Pedro II e
membro do Conselho Consultivo do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com
ilustrações de Luís Jardim e Joanita Blank, o Guia de Ouro Preto teve a primeira edição sob a chancela do
Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1938. Manuel Bandeira elaborou o livro atendendo ao pedido
de Rodrigo M. F. de Andrade, diretor do SPHAN.
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achava em condições de abrir muitas frentes de trabalho. Deve ter pesado, também,
o fato de que a parte urbana das cidades históricas e as construções aí existentes
haviam sido o primeiro motivo de encantamento dos modernistas. Sobre elas é que
se concentrava, naqueles anos, o interesse de estudo e divulgação. (MOURÃO,
1994. p. 41-42)
O Guia de Ouro Preto está dentro desse projeto modernista de resgatar e divulgar os
monumentos históricos e artísticos do Brasil. O poeta-viajante se coloca na perspectiva de um
turista que, com a sua máquina, tenta fotografar a paisagem que se descortina diante de seus
olhos, percorrendo os espaços mais recônditos da cidade barroca e mergulha numa gruta
encantada.
O poeta, de posse de documentação sobre a cidade e seus monumentos, constrói uma
série de itinerários para o turista que deseja visitar a cidade. Esse itinerário, que começa pela
“História” de Ouro Preto, surgida com a chegada dos bandeirantes, também expõe
informações importantes, com várias descrições sobre a fundação da primitiva Vila Rica,
focalizando o período de construção de seus monumentos religiosos e civis até o instante em
que a cidade recebe o título de Monumento Nacional. No poema “Ouro Preto”, que abre o
livro Lira dos cinquenta anos (1940), Bandeira descreve, poeticamente, o instante da chegada
dos bandeirantes em busca de ouro e pedras preciosas, a exploração e opulência dos anos de
glória e a decadência da cidade:
Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto.
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)
Sobre esse livro, o crítico Jorge Miguel afirma: “Não se pode pretender estabelecer
uma característica aos poemas que compõem o 6º livro de Bandeira. Pode-se dizer que novas
experiências formais continuam” (MIGUEL, 1988, p. 44). Sobre o soneto “Ouro Preto”, diz
que esse “guarda a forma ainda tradicional, não só a rigidez dos 14 versos em dois quartetos e
dois tercetos, com a presença de versos alexandrinos (doze sílabas) (...) – soneto de abertura –
parece sugerir o retorno ao Parnasianismo”. (MIGUEL, 1988, p. 44-45) A partir do
comentário desse crítico, é importante esclarecermos aqui que, nesse momento de
composição, o poeta Bandeira mantivera contato estreito com a produção dos poetas do
século XVIII e a história de Ouro Preto. Com isso, o eu lírico faz uma pintura interior de Ouro
Preto e o que se revela diante dos olhos do leitor não é a paisagem montanhosa e o conjunto
arquitetônico com a sua opulência barroca, mas os contrastes da linguagem barroca que já
aparecem no primeiro verso, com o “ouro branco/ouro preto”, e o próprio adjetivo podre,
contrastando com o “ouro” que é um metal precioso, o que configura um tom irônico. A vogal
/o/, que nos lembra o oco e o vazio, ressoa por todos os versos do poema e remete-nos ao
vazio e às destruições das montanhas que foram exploradas de maneira desenfreada. A cidade
tem o seu momento de glória; com a extração dos metais preciosos, atinge a sua opulência,
mas terá a sua decadência por causa da ganância dos homens e dos altos impostos que eram
cobrados pela Coroa portuguesa.
De leitor do passado histórico da cidade no cap. 1, o poeta passa a descrever, no cap.
2, “As impressões dos viajantes estrangeiros” que apresentaram visões sobre Vila Rica no
século XIX, quais sejam: João Antônio Antonil, Jonh Mawe, Auguste Saint-Hilaire, Jonh
Luccock, Walsh, Georg Gardner, Castelnau, Milliet de Saint-Adolphe e Richard Francis
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Burton. É nessa parte do Guia de Ouro Preto que Bandeira resolve o seu impasse com Afonso
Arinos sobre as liras de Gonzaga, corrigindo informações equivocadas de viajantes sobre
Marília ao informar que ela não se casou. Vejamos: “Tomás Brandão restabeleceu a verdade
em sua obra Marília de Dirceu, provando ter havido confusão de Marília com sua irmã
Emerciana” (BANDEIRA, 2000, p. 31)47. O “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de
Lira dos cinquenta anos (1940), expressa uma diferença formal em relação ao soneto de
abertura do livro, “Ouro Preto”, que parece ainda trazer o “penumbrismo” que Norma
Goldstein (1983) estuda nos seus três primeiros livros: A cinza das horas (1917), Carnaval
(1919) e O ritmo dissoluto (1924). Nesse poema, Manuel Bandeira retoma o tema do amor tão
bem explorado pela lira árcade, contudo o próprio título do texto já provoca certa dissonância,
pois o haicai fora retirado de uma “falsa lira de Gonzaga”. Assim, o poeta nega o lirismo,
expondo uma antilira, mas não com a intensidade de quem combate, em Libertinagem, todas
as formas de lirismo que se encontram no poema “Poética”, no qual o eu combatente
expressa: “Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo bem comportado/Do lirismo
funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr.
diretor./Estou farto do lirismo namorador”. (BANDEIRA, 1986e, p. 98)
No cap. 3, “Ouro Preto, a cidade que não mudou”, Bandeira faz uma avaliação da
cidade e esclarece: “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta é São
José del-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável
encanto” (BANDEIRA, 2000, p. 34). Apesar desse comentário de abertura do capítulo,
Bandeira, na sequência de seu texto, trata da mudança sofrida pela cidade ao longo dos anos.
Com um olhar crítico de um biógrafo, não deixa de observar que o conjunto arquitetônico
sofreu alterações com o tempo, pois novas casas foram construídas com um estilo diferente do
colonial, é o neocolonial. No fim do capítulo, faz uma comparação de Ouro Preto com Olinda
e Salvador e assegura que essa cidade mineira não perdeu as feições do passado com o
progresso que tudo transforma. A visão que a voz narradora expõe da cidade no Guia não é a
mesma que a voz lírica expressa no soneto “Ouro Preto”, pois inicia o segundo quarteto com
indagações, explicitando um momento de reflexão:
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada...
Este escombro foi um solar... Cinzas e desgosto!
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)
A atitude contemplativa é perceptível no poema. E o poeta não precisa ter a mesma
visão do pesquisador a serviço do Estado, que cumpre o seu papel de preservar e divulgar os
monumentos históricos e artísticos. Nesse clima meditativo, o eu lírico interroga e, ao mesmo
tempo, já responde, reconhece que a cidade não possui o mesmo “esplendor de outrora”, a
riqueza do ouro branco e preto que se contrapõe aos elementos que metaforizam as ruínas e a
morte nos “templos que são fantasmas ao sol-posto”, nos “escombros” e nas “cinzas e
desgosto”, restando apenas o pó. O poeta Manuel Bandeira faz um mergulho na realidade,
refletindo, a partir dela, sobre a própria condição da cidade. Nesse aspecto, aprofunda o tema
47
Como podemos ver, no momento da escrita do Guia, Bandeira já demonstra outra visão em relação ao lirismo
de Gonzaga e, pelas informações que apresenta no texto, confirma a leitura do texto de Tomás Brandão sobre
Marília, sugerida por Afonso Arinos.
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da morte e da destruição, revelando que os monumentos que vão representar a memória
material e imaterial do nosso país estão ameaçadas pelo próprio tempo que tudo destrói,
estando a decadência e a morte ligadas à transitoriedade das coisas no tempo.
No cap. 4, “As duas grandes sombras de Vila Rica”, o poeta viaja para o passado com
um olhar que privilegia homens que fizeram parte da história de Ouro Preto, mas não tiveram
o mesmo lugar de destaque na história, por isso seleciona duas personagens que considera
mais relevantes, Tiradentes e Aleijadinho. Não se detém nos poetas letrados, tais como
Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga, porque esses já possuíam um lugar na
sociedade, ou seja, “eram homens requintados, letrados, a quem a vida corria fácil”, todavia
valoriza o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes) pelo seu papel na conspiração de
1789 e artista Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) pela sua importância cultural,
principalmente na construção de igrejas e esculturas. Como se vê, a morte é retomada através
da referência a essas “duas sombras”. No poema “Ouro Preto”, esses mortos são evocados nos
dois tercetos seguintes:
O bandeirante decaiu – é funcionário.
Último sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.
E avulta apenas, quando a noite de mansinho
Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,
– Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho!
(BANDEIRA, 1986a, p. 140)
No cap. 5, “Passeios a pé no Centro”, o poeta convida o turista a fazer um passeio
pelos bairros da cidade, deixando bem claro que cada bairro tem a sua beleza e a sua diferença
em relação ao outro, até mesmo pela sua própria história de fundação. A partir do instante em
que o passeio se inicia, o poeta vai percorrendo as ruas, as praças, as ladeiras, os largos e as
pontes. Nesse percurso a pé, vai entrando nas igrejas, nos palácios, nas casas de poetas e em
sobrados e hotéis. Com o seu olho-câmera, vai chamando a atenção do turista para os detalhes
das construções. Já no cap. 6, “Passeios de Automóvel”, o poeta sai do centro da cidade de
Ouro Preto e vai conhecer os bairros mais distantes, a mina de ouro de Passagem, Cachoeira
do Campo, Ouro Branco e Itatiaia, o Itacolomi e as cidades de Mariana e Congonhas do
Campo. Nos capítulos 7, “Monumentos Religiosos”, e 8, “Monumentos Civis” Bandeira
revela mais ainda a preocupação que tinham os modernistas em valorizar e divulgar os objetos
materiais e imateriais da cidade como um Monumento Nacional, pois os monumentos
religiosos e civis são representados, desde as suas construções, cada um sendo descrito como
objeto importante para cada cidade e também para o patrimônio histórico e artístico nacional.
E, para finalizar o seu Guia de Ouro Preto, Bandeira indica as “estradas” para os viajantes
que desejam conhecer essa cidade encantada. Em 1938, podia-se ir a Ouro Preto por estrada
de ferro ou por estrada de rodagem; hoje, somente por estrada de rodagem.
No poema “Minha gente, salvemos Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), o poeta Bandeira
descreve, de forma imagética e pictórica, o tema da destruição da cidade de Ouro Preto. Ao
fazer uma revisão sobre a poética de Bandeira, em 1986, o crítico Giovanni Pontiero faz o
seguinte comentário sobre Opus 10:
os poemas desta nova coletânea são caracterizados por uma maior simplicidade e
força de expressão. Movimentando-se livremente do epigrama satírico à grave
meditação, Bandeira agora parece capaz de transformar tudo ao seu redor em
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poesia, não importando o lugar-comum ou o trivial aparente. (PONTIERO, 1986, p.
206)
O poeta apresenta um cenário cotidiano de maneira meditava, faz uma reflexão sobre a
condição humana ao colocar em cena a cidade que se encontra em estado de destruição e
revela o elemento responsável pelos danos desse monumento-nacional, pedindo, na primeira
estrofe, ajuda: “As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro Preto./Ouro Preto, a avozinha,
vacila./Meus amigos, meus inimigos,/Salvemos Ouro Preto”. (BANDEIRA, 1986a, p. 197)
O poema apresenta elementos imagéticos e pictóricos, pois ele se constrói a partir da
memória do poeta que evoca eventos do passado ao mesmo tempo em que conjuga elementos
do coletivo. O tom lírico está expresso na subjetividade que o eu expõe à condição do outro,
entretanto explicita um tom memorialista, já que o passado histórico da cidade é retomado
através do tom narrativo que se configura na linguagem dos versos longos e nos
encadeamentos que existem em todas as estrofes.
O poeta, como um sujeito crítico e engajado, está comprometido com o mundo no qual
se encontra inserido, por isso não se revela como um simples “retratista” da cidademonumento, mas como quem medita sobre a condição da cidade que fora atingida pelas
“chuvas de verão” e pede ajuda a todos os “homens do Brasil”. No entanto, é com um tom
irônico que expõe o seu desejo salvacionista, criticando a sociedade brasileira que não se
importa com a conservação de Ouro Preto e com os pobres. Vejamos, nos versos a seguir, o
tom do sujeito diante do objeto de contemplação:
Bem sei que monumentos veneráveis
Não correm perigo.
Mas Ouro Preto não é só o Palácio dos Governadores,
A casa dos Contos,
A Casa da Câmara,
Os templos,
Os chafarizes,
Os nobres sobrados da Rua Direita.
Ouro Preto são também os casebres de taipa de sopapo
Aguentando-se uns aos outros ladeira abaixo,
O casario do Vira-Saia,
Que está vira-não-vira enxurro,
E é a isso que precisamos acudir urgentemente!
(BANDEIRA, 1986a, p. 198)
Ao transfigurar essa realidade cotidiana que é a da cidade que se encontra em estado
de destruição, o poeta expõe uma visão consciente e um sentimento de “antitotalitarismo e
antiburocratismo”. Giovanni Pontiero, ao discutir esses sentimentos perceptíveis na poética de
Bandeira, aponta que, nesse poema, existe uma “súplica desapaixonada pela conservação de
Ouro Preto e pelo amparo social às pessoas simples, cujas casas miseráveis são ameaçadas de
destruição pelas chuvas torrenciais” (PONTIERO, 1986, p. 211). Com base nesse comentário
do crítico, é importante ressaltarmos que, nesse momento de composição de Opus 10, o poeta
expressa a mesma visão crítica em relação à conservação da cidade, antes explorada no poema
“Ouro Preto” de Lira dos cinquenta anos, de 1940, o que parece revelar que, em 1952, o poeta
esteve bem mais afastado do seu objeto de contemplação.
No poema, os contrastes são explorados através de vários elementos metafóricos. De
um lado, há os “ricos do Brasil”, as “Grã-finas cariocas e paulistas” e, de outro, os pobres que
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
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vivem nos “casebres de taipa e sopapos”. O poeta, como alguém que medita sobre a condição
humana, conclama a todas as “Gentes de minha terra!” que “Salvemos Ouro Preto” e, com
essa voz lírica, mostra as contradições do Brasil.
Na crônica “Ouro Preto remoçada”, de 26/10/1960, Manuel Bandeira irá reproduzir
um acontecimento do cotidiano, a inauguração de uma nova sede de uma galeria de arte no
Rio de Janeiro, fazendo-se revelar, nessa narrativa, o que o escritor, embora atendo-se à
realidade, explicita uma visão opinativa sobre as pinturas da exposição. Esse poeta tece
elogios ao pintor Alberto da Veiga Guignard, mas a crônica não se resume somente a isso,
pois o escritor aproveita o momento para fazer uma reflexão sobre Ouro Preto que estava
sendo retratada na “exposição do esplêndido Guignard”. Nessa crônica, por ocasião da
exposição de Guignard, Manuel Bandeira ainda demonstra a sua preocupação com a
preservação do patrimônio de Minas:
Havia muito tempo que eu não via Guignard, Guignard de repente sumiu do Rio,
enfurnou em Minas, montando escola em Belo Horizonte, ensinando as mineirinhas
bonitas a pintar, (...) e quem mais ganhou com a presença de Guignard foi Ouro
Preto, que hoje está definitivamente tombada na obra do pintor (o tombamento
oficial não será talvez suficiente para poupar a velha cidade-monumento-nacional,
pois nem a zelosa DPHAN nem o clamor de alguns poucos interessados nas
relíquias do nosso passado histórico e artístico têm conseguido impedir que
continue a abalar a estrutura do casario a circulação do tráfego pesado).
(BANDEIRA, 1986c, p. 57)
E o poeta mostra-se um conhecedor profundo dos problemas do cotidiano ao opinar
sobre questões tão importantes que, muitas vezes, não são relevantes para a maioria das
pessoas. O tom irônico do poeta, no poema “Minha gente salvemos Ouro Preto”, não deixa de
existir nessa crônica, mas o poeta consegue fazer uma outra leitura da velha cidade histórica e,
a partir da pintura de Guignard, revela um tom lírico e nostálgico que vale ser citado na
conclusão do nosso texto:
Nesta exposição são numerosas as telas que fixam o encanto da paisagem ouropretana, e eu fiquei com inveja de Alfredo Lage, feliz possuidor de certo quadrinho
que me fez grandes saudades da Ladeira Vira-Saia. A Ouro Preto de Guignard não
é triste, Guignard remoça Ouro Preto, sem no entanto a descaracterizar. Gosto de
Ouro Preto de Guignard. (BANDEIRA, 1986c, p. 57)
MANUEL BANDEIRA'S TRIPS IN THE CITY OF OURO PRETO
ABSTRACT: This text presents a study on the images of the city of Ouro Preto in the poems "Ouro Preto" and
“Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, Lira dos cinqüenta anos (1940), “Minha Gente, salvemos Ouro
Preto”, from Opus 10 (1952), and chronicle "Guignard" from October 26th 1960, by Manuel Bandeira, observing
the way the lyrical I travels through history and landscapes of Minas Gerais and poetically recreates the
impressions he has of spaces, cultural and artistic monuments of this baroque city. In our work we will deal with
the images of the city from the real and imaginary travels of the poet. Therefore, we will also take as the object
of our reflection the work Guia de Ouro Preto, 1938.
KEYWORDS: Manuel Bandeira. Trips. Ouro Preto. Minas Gerais cities.
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REFERÊNCIAS
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ANDRADE, M. de; BANDEIRA, M. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. introdução
e notas de Marcos Antonio de Moraes. 2. ed. São Paulo: Edusp, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2001.
(Coleção Correspondência de Mário de Andrade, 1).
ANDRADE, M. de; BANDEIRA, M. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a Alphonsus
de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
ANDRADE, O. Pau Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2003.
BANDEIRA, M. Guia de Ouro Preto (1938). Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
_____________. Lira dos cinquenta anos (1940). Seleção e coordenação de texto de Carlos Drummond de
Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986a.
_____________. Opus 10 (1952). Seleção e coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1986b.
_____________. “Ouro Preto remoçada”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986c. p. 57-58.
_____________. “Uma revista”. In: Andorinha, Andorinha. Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986d. p. 233-234.
_____________. Libertinagem. Seleção e coordenação de texto de Carlos Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1986e.
GOLDSTEIN, N. S. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e outros poetas significativos. São
Paulo: Ática, 1983.
GUIMARAENS FILHO, A. de. Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1995.
MACHADO, L. G. Barroco mineiro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
MIGUEL, J. Coleção engenho e arte – Manuel Bandeira. São Paulo: Harbra, 1988.
MOURÃO, R. A nova realidade do museu. Ouro Preto: MinC; IPHAN; Museu da Inconfidência, 1994.
PONTIERO, G. Manuel Bandeira: revisão geral de sua obra. Seleção e coordenação de texto de Carlos
Drummond de Andrade. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
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A MOLECADA, O MENINO, O POETA E O BALÃO
Wilson José FLORES JR48.
RESUMO: O ritmo dissoluto é, como sublinha Manuel Bandeira, o primeiro dos livros que ele escreverá no
Curvelo, lugar onde o autor afirma ter “redescoberto os caminhos da infância”. Essa afirmação encontra eco nos
poemas reunidos no livro, alguns dos quais têm a infância como tema. Entre esses, destaca-se “Na rua do Sabão”
que expressa as adversidades que o menino José enfrenta para confeccionar e “dar vida” a seu balão. No poema,
uma combinação intricada de proximidade e distanciamento, identificação e distinção, celebração e melancolia
obrigam a repensar os sentidos que a expressão bandeiriana adquire em seus poemas, sobretudo no que tange a
certo consenso em torno da suposta “humildade”, vista como traço distintivo de seu estilo.
Palavras-chave: Poesia brasileira moderna. Manuel Bandeira. Infância.
O ritmo dissoluto é o primeiro livro que Manuel Bandeira comporá sob a “atmosfera
da Rua do Curvelo”, onde passou a morar após a morte do pai, em 1920, por influência de
Ribeiro Couto, também morador da rua. O trecho de Itinerário de Pasárgada no qual o poeta
faz referência à rua é um dos mais conhecidos do livro:
A Rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. Couto foi avisada testemunha disso e
sabe que o elemento de humilde quotidiano que começou desde então a se fazer
sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou,
muito simplesmente, do ambiente do Curvelo.
A morte de meu pai e a minha residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933
acabaram de amadurecer o poeta que sou. [...] Sem ele eu me sentia definitivamente
só. E era só que teria de enfrentar a pobreza e a morte. Quanto ao morro do Curvelo,
o meu apartamento, o andar mais alto de um casarão em ruína, era, pelo lado dos
fundos, posto de observação da pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da
frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei nem rei que
infestava minhas janelas [...]. Não sei se exagero dizendo que foi na Rua do Curvelo
que reaprendi os caminhos da infância. (BANDEIRA, 1966, p.63-64).
O trecho é bastante sugestivo, seja pelo relato tão despojadamente pessoal, quanto pelo
procedimento recorrente em Bandeira de vincular muito diretamente aspectos técnicos,
estruturais e temáticos de sua poesia a passagens de sua biografia. É certo, contudo, que no
mesmo Itinerário e em outros momentos de sua produção ele traçará toda uma linha de
reconhecimentos e influências que o vinculará ao cerne da tradição literária ocidental e da
literatura moderna49. Esse jogo de encobrimentos e desvelamentos, que ora expõe sem peias a
vida e ora reafirma o trabalho técnico do poeta, não constitui propriamente uma incoerência,
48
Doutorando - UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras - Departamento de
Ciência da Literatura - Rio de Janeiro - RJ - Brasil – 21941-901 - [email protected].
49
Como referência, considere-se a seguinte citação: “[...] Ribeiro Couto e eu sabíamos de cor diversas passagens
desses poemas, e creio talvez poder confessar ter sido Cendrars quem levantou em mim o gosto da poesia do
cotidiano” (EULÁLIO, 2001, p.460). Não se trata, obviamente, de discutir qual a mais “verdadeira” (se o
Curvelo, se Cendrars), nem em que medida o poeta estaria sendo “sincero” ou não. Também não é necessário
discutir se as afirmações se contradizem ou se complementam; a diferença de ênfase já é suficiente, pois o que
importa é notar que o modo como Bandeira representa a si mesmo e à sua formação enquanto poeta não é
unívoco; daí a necessidade de considerar suas declarações com o devido cuidado e distanciamento,
problematizando-as em face das questões colocadas pelos poemas.
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mas, sem dúvida, revela uma tensão dialeticamente fecunda que reponta em vários momentos
da produção bandeiriana.
Veja-se, por exemplo, o início da crônica “Trinca do Curvelo”:
No baralho, a trinca são três cartas de mesmo valor. A semântica da molecada
alargou o conteúdo da palavra e fê-la sinônima de baderna de bairro [...]. É o
conjunto da molecada do bairro, que a gente vê a todas as horas batendo bola na rua,
empinando pipas, estalando os tecos da buraca, abatendo os pardais a bodoque... (Às
vezes se atiram a distantes excursões donde regressam com uma jaca enorme.
Nesses dias, é, na rua, jaca por todo lado, uma orgia de jaca – enervante como todas
as orgias).
Mas há a trinca de rua: a trinca do Curvelo em oposição à trinca do Cassiano. Se
atendesse à nomenclatura atual, teria que dizer a trinca de Hermenegildo de Barros,
o que soa tão engraçado como antítese, aproximando a mais alta magistratura togada
desse mundozinho irresponsável dos piores malandros da terra...
Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo o homicídio com
premeditação, são capazes de tudo – até de partir as vidraças das minhas janelas!
Mentir é com eles. Contar vantagem nem se fala. Valentes até na hora de fugir. A
impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar assassinos, jogadores,
passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a
saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes. (BANDEIRA, 2006,
p.149).
Primeiramente, salta à vista a empatia do poeta pelos meninos, que, de tão enfática,
chega mesmo a resvalar em certo pieguismo (”Acabam lutando pela vida, só com saudade do
único tempo em que foram verdadeiramente felizes”). De qualquer modo, há um movimento
de identificação, no qual o cronista procura se colocar no lugar da “molecada do bairro”,
buscando, a partir de suas suposições e impressões, compreender seu comportamento. No
entanto, essa identificação não é simples nem imediata. Ao contrário, aparece repleta de
ambivalências (“mundozinho irresponsável”, “valentes até na hora de fugir” etc.). Tal como
ocorre no Itinerário, na crônica há algo da biografia que permanece velado; mas esse
encobrimento, apesar de perceptível, é ofuscado pela clareza e pelo aparente despojamento
com que outros elementos da mesma biografia são expressos50.
Nos trechos citados, o desejo de aderir imediatamente à vida e certo distanciamento
aristocrático parecem combinar-se, de forma que, mesmo sinceramente interessado pela vida
dos meninos, o cronista mantém-se distante, olhando-os de uma perspectiva que mistura, por
um lado, certa irritação de alguém, por assim dizer, “civilizado” frente à “barbárie” da
“horda” de moleques (“uma orgia de jaca – enervante como todas as orgias”; “salvo o
homicídio com premeditação, são capazes de tudo”) e, por outro, a benevolência (“Pois nada
disso...”) de quem se sente, em alguma medida, superior, podendo, por isso, olhar para tudo
50
Em um ensaio sobre as relações entre história, genealogia e subjetividade na poesia de João Cabral de Melo
Neto, Éverton Barbosa Correia afirma que “a história manipulada interessa na medida em que servir ao seu
discurso e se constituir como índice de sua condição de estar no mundo” 50. E mais, “deslocado de um lugar
que foi efetivamente seu, de experiências fundamentais que se esfumaram”, o poeta, “na medida em que esse
espaço esboroa”, irmana-se “ao exército de anônimos que perambulam pelas ruas” 50. Consideradas as devidas
peculiaridades de cada um dos poetas, o ponto de vista defendido pelo crítico oferece um campo fértil de
exploração das ambivalências constitutivas das subjetividades líricas em sua relação com a genealogia familiar,
por um lado, e a história brasileira, por outro, o que, no caso de Bandeira, permitiria repensar o sentido da
“humildade” bandeiriana e dos modos como a biografia, por assim dizer, ditada pelo poeta definiu a recepção
de sua obra. (CORREIA, 2008, p. 183-206).
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com um distanciamento meio bonachão, calcado numa pretensa compreensão da atitude dos
meninos, o que suaviza todo o quadro51.
A esse respeito ainda, considere-se um trecho da “Cronologia” da vida de Bandeira,
organizada por ele mesmo para a primeira edição de Estrela da vida inteira:
1896/1902
A família muda-se do Recife para o Rio, indo residir na travessa
Piauí, depois na rua Senador Furtado, depois em Laranjeiras.
Durante seis anos mora na casa de Laranjeiras. Não brinca com os
moleques da rua mas toma contato com esta e com a gente humilde
como uma espécie de intermediário entre sua e os fornecedores,
vendeiros, açougueiros, quitandeiros e padeiros. O futuro filólogo
Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis, é seu companheiro
de conversas sobre literatura. (BANDEIRA, 1993, p.19)
O autor sublinha que não brincava com “os moleques da rua”, expressão que, como se
sabe, continua soando muito problemática: é comumente usada para desqualificar, mas não
deixa de ser também um modo espontâneo, coloquial de se referir a meninos. Embora não
brincasse com os vizinhos, afirma que era uma espécie de intermediário entre a mãe, mais
resguardada e distante do universo popular à sua volta, e os trabalhadores cotidianos que
abasteciam a casa. É curioso observar que essa ideia é muito próxima do modo como o autor
às vezes se vê como poeta: um intermediário entre a literatura (a cultura erudita/letrada) e a
vida popular.
Além disso, há na figura do intermediário uma espécie de auto-elogio, uma vez que
sugere certa capacidade de realizar algo que, num país de longa tradição colonial e escravista,
baseada no mandonismo e no favor, toca o impossível e permanece sendo uma das aspirações
mais fortes e, ainda, um dos fracassos mais dolorosos seja da literatura, do pensamento social
ou da política de esquerda: aproximar-se do (às vezes fantasmagórico, às vezes onírico)
popular, criando uma ponte entre a riqueza e a pobreza, entre o poder e o povo, entre a cultura
erudita e a popular. Claro, ele era apenas intermediário entre a mãe e os vendedores, em
nenhum momento sugere que estivesse realizando alguma grande intervenção social. Mas a
escolha da cena e das palavras que a descrevem possuem certa ênfase, como que sugerindo
uma qualidade não ordinária, ou mais, especial e distintiva do modo de ser do poeta.
Há também um evidente contraste entre “os moleques da rua” e “o futuro filólogo
Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis” que era, esse sim, seu “companheiro de
conversas sobre literatura”. Bandeira não era como a molecada da vizinhança, uma vez que se
distingue deles tanto pelos costumes e tradição familiares quanto pelo contato e convívio com
gente culta, potencialmente importante, bem relacionada e interessada em literatura. A
distância entre o menino Manuel e os moleques não poderia ser maior; mas, como sempre,
não se pode negar o interesse e certa empatia do poeta pela “gente humilde”. Retomando o
que foi afirmado acima, num país onde a classe dominante sempre desfez das classes
populares, não deixa de ser um diferencial que conta a favor de Bandeira, ainda que o autor
faça questão de reafirmar seu lastro aristocrático.
51
Como já foi sugerido, a oscilação em questão liga-se a uma ambivalência ao mesmo tempo pessoal e histórica:
o esfacelamento do modo de vida patriarcal, o rebaixamento dessa experiência frente à “modernização” do
país, além de certo despeito aristocrático dos “destronados” convivendo intimamente com o gosto e as
esperanças do progresso (Cf. SCHWARZ, 1997). É claro que os desdobramentos das diversas implicações
dessa afirmação demandam um trabalho específico, que ainda está em desenvolvimento.
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Deste ponto de vista, a luminosidade do interesse e da empatia, sobretudo em meio tão
hostil e árido às aproximações entre classes como é o Brasil, bem como a própria dificuldade
dos leitores de Bandeira de “ir além” do que fez o poeta, parecem apontar para alguns motivos
que enfraqueceram a percepção das tensões e ambivalências que são constitutivas de seu
ponto de vista e que marcam profundamente alguns de seus poemas mais conhecidos, entre
eles, “Na rua do sabão”.
Na rua do sabão
Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!
O que custou arranjar aquele balãozinho de papel!
Quem fez foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.
Ei-lo agora que sobe, – pequena coisa tocante na escuridão do céu.
Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo e mudava de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!
Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam.
E foi subindo....
para longe....
serenamente...
Como se o enchesse o soprinho tísico do José.
Cai cai balão!
A molecada salteou-o com atiradeiras
assobios
apupos
pedradas.
Cai cai balão!
Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais.
Ele foi subindo...
muito serenamente...
para muito longe...
Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no mar, – nas águas puras do mar alto.
O primeiro elemento do poema é a citação dos versos iniciais de uma cantiga popular
junina conhecida por todos. A escolha – que também justifica o título – ajuda a construir
alguns dos elementos chave, recorrentes no poema. A começar pela atmosfera espontânea e
pela empatia que tende a produzir no leitor, também conhecedor da mesma cantiga, que pode
se sentir tentado a continuar a cantiga a partir dos versos citados ou a descobrir o que o poeta
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pretende com ela. Quanto à cantiga, considerando-se a ordem que aparece no poema, existem
duas variações devidamente documentadas52, cada uma conferindo aos versos escolhidos por
Bandeira uma coloração ligeiramente diferente:
Versão 1
Cai, cai balão
Cai, cai balão
Na rua do Sabão.
Não cai não, não cai não, não cai não
Cai aqui na minha mão.
Versão 2
Cai, cai balão
Cai, cai balão
Na rua do Sabão.
Não vou lá, não vou lá, não vou lá,
Tenho medo de apanhá.
A versão 1 soa mais ingênua, parece apenas dar voz ao desejo de uma criança que
gostaria de que o balão caísse ao alcance de sua mão. Nesse sentido, teria algo de conjuração,
tentando, por meio da repetição coordenada de ritmos e sons, trazer magicamente o balão para
perto. Embora seja cantada mais constantemente às vésperas e durante as festas juninas, a
cantiga é impregnada por certa melancolia de fundo; é alegre, cantada frequentemente em
grupo, mas soa solitária (uma criança desejando, de longe, um benefício do destino a lhe
presentear com o balão) ou rixosa (um grupo de crianças disputando o balão, ou considerando
o animismo que perfaz os versos, a preferência do balão.
Aliás, essa segunda possibilidade encontra na versão 2 uma certa confirmação: aquele
que canta está longe, entendeu onde o balão cairá, mas decidir não ir atrás dele porque tem
“medo de apanhá”. Certamente, não é novidade para ninguém que as crianças disputam, às
ingenuamente, às vezes violentamente, objetos como balões e pipas. E, frequentemente, não
há nessa disputa espaço para os menos “qualificados” que são facilmente superados pela
molecada mais acostumada à rua e a seus obstáculos: organizam-se melhor, sabem o melhor
caminho para chegar a algum lugar, sabem enfrentar muros, terrenos, mato etc.
Em uma análise do poema, o crítico Marcus Mazzari53 afirma que os versos iniciais,
na medida em que se repetem várias vezes, compõem leitmotiv do poema que, estranhamente,
“exprime a tendência contrária ao acontecimento que está sendo celebrado”: a insistência e a
vitória do José em fazer seu balão ganhar força e ascender ao céu. Derivando um pouco essa
observação, parece possível afirmar que essa repetição insistente configura o pano de fundo
onde as situações apreendidas no poema se desenvolvem como hostil ele mesmo, o que
confere o tom melancólico que atravessa o texto todo. Estamos longe da simples celebração e
da alegria da vitória portanto.
Considerando as versões em face do poema, a melancolia solitária é elemento
importante, mas, em Bandeira, ligeiramente deslocada: é atributo do menino que constrói e
solta o balão e não das crianças que acompanham a queda do objeto desejado. Mas a rixa é
52
MARQUES, 2003, p.113-114.
53
MAZZARI, 2002.
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direta e muito evidente, configurando no poema um dos modos como os conflitos se resolvem
entre os mais pobres em ambiente social onde impera o favor, como notou o crítico Edu
Teruki Otsuka a propósito de Memórias de um sargento de milícias.
Propondo uma releitura do romance de Manuel Antonio de Almeida, a partir de
considerações a respeito daquele que é o ensaio mais importante sobre o livro, a “Dialética da
malandragem”, de Antonio Candido, Otsuka considera que a leitura que se rotinizou após a
publicação da referida análise acabou por enfatizar a ideia de malandragem como uma espécie
“traço cultural do brasileiro”, deixando de lado as determinações histórico-sociais que seriam,
em seu ponto de vista, a “contribuição decisiva do ensaio de Candido para a crítica literária
materialista” 54. Tendo isso em mente, Edu Otsuka argumenta que
[...] além de transitarem livremente entre as esferas da ordem e da desordem, os
personagens apresentam, de maneira sistemática, comportamentos fortemente
marcados por traços mais ou menos assemelhados, como a maledicência, a
zombaria, o achincalhe, a rivalidade e sobretudo a vingança; assim, os
relacionamentos interpessoais que predominam no universo social da Memórias
configuram uma estrutura peculiar, sendo governados por uma inclinação geral,
comum aos personagens, a que se poderia chamar de espírito rixoso.55
Tal espírito se caracterizaria pela intenção de “sobrepor a própria pessoa aos outros”,
ainda que de modo apenas momentâneo. Nesse sentido, as situações de contenda que brotam
ao acaso na narrativa ofereceriam ocasião aos personagens para atingir “uma supremacia
qualquer” 56 (expressão que o autor empresta de Machado de Assis), numa “multiplicação de
disputas por picuinhas” 57. Por isso, “nas disputas vigentes nas Memórias, o objetivo
disputado parece menos importante do que o dano moral infligido ao oponente, de tal modo
que a satisfação não decorre tanto da eficácia em alcançar o objetivo, mas sim da capacidade
de humilhar o adversário” 58. Situando a discussão no quadro histórico do Brasil oitocentista,
no qual a estrutura social escravista “estabelecia distinções hierárquicas rígidas, em que a
afirmação da desigualdade se tornava um imperativo para a definição das posições sociais”,
uma vez que a inserção social “dependia menos da situação objetiva do que das relações
estabelecidas com algum proprietário ou outra instância de poder” 59. Assim, “na falta de
proteção de um poderoso”, a rixa representaria para os pobres a única possibilidade de
“afirmar uma supremacia (um pouco na realidade e muito na imaginação), em vista da
obtenção do sentimento de superioridade e de certo prestígio em relação aos demais” 60.
Voltando ao poema de Bandeira, é evidente que o quadro histórico não é o mesmo das
Memórias, mas é fato também que o progresso à brasileira se deu, em grande medida, a partir
de múltiplas formas de “reprodução moderna do atraso” 61, tanto que, ainda hoje, não deve
54
OTSUKA, 2007, p.107.
55
OTSUKA, 2007, p. 112.
56
OTSUKA, 2007, p. 113.
57
OTSUKA, 2007, p. 115.
58
OTSUKA, 2007, p. 118.
59
OTSUKA, 2007, p. 119.
60
OTSUKA, 2007, p. 121.
61
A expressão, como se sabe, é de Roberto Schwarz. Citando um conhecido comentário de Paulo Arantes ao
texto de Schwarz, “como não há transformação radical entre passado rural e presente urbano, onde se esperava
conflito e desintegração, há promiscuidade entre tradicional e o moderno que o prolonga” (ARANTES, 1992,
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
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soar estranho à maioria das pessoas o cenário de disputas e rixas descrito por Otsuka. A rixa,
enquanto tentativa de angariar uma superioridade imediata qualquer, é, por definição
destrutiva, pois tende a lançar-se contra tudo e todos que, próximos do sujeito, parecem
caminhar em direção a uma superação qualquer, seja a conquista de outra posição social, uma
realização que, à princípio, não seria para “gente como nós”, ou, ainda menor, para algo que
não seria “para você”. José compartilha com a molecada a mesma situação de pobreza, mas,
diferentemente dos meninos da rua do Sabão, é fraco e tísico. O balão, assim, é uma espécie
de acinte, de ousadia que precisa ser eliminada por aqueles que se sentem momentaneamente
destituídos de sua “superioridade”. Neste ponto, sem dúvida, o eu-lírico se solidariza com o
esforço do menino, identifica-se com ele, com suas dificuldades e com sua “ousadia”, vendo,
no quadro geral, um conjunto de adversidades que sufocam a iniciativa criadora.
A esse respeito, aliás, vale notar a diferença nas caracterizações do José e da
“molecada”. É fato que predicados como menino tísico, filho da lavandeira, “um que trabalha
na composição do jornal e tosse muito” não chegam a especificar o menino, que permanece
em grande medida indefinido, fazendo a voz lírica soar como a de um observador distanciado.
Mas é fato que a enunciação no presente traz o leitor para a cena e para seu espaço familiar: a
alguém da vizinhança, as indicações bastariam para especificar o menino.
No entanto, além disso, há um momento de explicitação bastante coloquial do nome
do menino acompanhado de um elemento muito sugestivo e nada ornamental: “como se o
enchesse o soprinho tísico do José”. O uso do diminutivo, do nome próprio antecedido de
artigo definido, além da menção de que sofria de tuberculose são índices de uma profunda
empatia da parte do poeta que admira os esforços do menino e torce por ele, não sendo
exagero imaginar certa identificação do poeta com o menino e dos objetos produzidos a custo
e com amor por cada um, o poema e o balão.
Essa identificação é reforçada pelo forte contraste que há entre a caracterização do
José e da “molecada da rua do Sabão”. Além de não ser apresentada nenhuma características
que pudesse identificá-los, são todos enfaixados pelo genérico e, como já dissemos,
costumeiramente pejorativo “molecada”. Surge como um bando, uma horda de pequenos
bárbaros, cujo único objetivo é destruir a possibilidade de sucesso de José e de seu balão.
Aqui não há nada que aproxime o sujeito lírico da molecada que surge ao longo do poema
como maldosa, hostil, cruel e potencialmente violenta, uma vez que sua ação não se limita a
gritar para o balão cair, mas desenvolve-se em “atiradeiras/ assobios/ apupos/ pedradas”. Ou
seja, não se limita ao espaço da fantasia mas converte-se em ação direta voltada à destruição.
Analisando a sonoridade do poema, Marcus Mazzari 62 nota que o movimento de
ascensão do balão é, “no âmbito da composição lírica”, “antecipado pelo ritmo dos versos
imediatamente anteriores, moldado em segmentos regidos por formas verbais em crescente
expansão, como se observa em ‘entesou’, ‘enfunou-se’ (expansão pelo acréscimo da partícula
reflexiva) e, por fim, terceiro e mais longo segmento rítmico do verso: ‘e arrancou das mãos
que o tenteavam’”. Além disso, o predomínio de sons anasalados nesses versos e as formas
verbais no perfeito criam um efeito de expansão, de movimento ascensional “em consonância
com as reticências, ou pontos de suspensão, que os configuram visualmente”.
p.56). Observando esse processo a partir do presente, há um instigante ensaio de André Bueno, recentemente
publicado, que discute o esgotamento e a derrota de certas ideias, aspirações e promessas criadas e projetadas
pela literatura, pelo pensamento social e mesmo pela política, sobretudo desde o final do séc. XIX até meados
do séc. XX, a respeito do futuro do Brasil (BUENO, 2009, p.7-37).
62
MAZZARI, 2002.
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A essas correspondências, em especial à “brandura do anasalamento”, “opõe-se
drasticamente a verticalização dos versos referentes à ‘molecada’”, nos quais dominam, “em
contraste com a brandura do anasalamento anterior, aliterações oclusivas” (/t/, /d/, /b/ e /p/),
reforçando no nível da sonoridade, como é “próprio a essas consoantes”, “a sensação de
choque”, de resistência à ascensão do balão. Aspecto sonoro que novamente predominará no
“verso seguinte – separado porém por nova ocorrência do leitmotiv ‘Cai cai balão!’ – também
apoiado em expressivas aliterações oclusivas e tendendo com toda a intencionalidade para a
fala prosaica” (“um senhor advertiu...”). Nos dois casos, o sentido sugerido seria o mesmo:
configurar as diversas resistências à ascensão do balão.
Aliás, afastando-se neste ponto da análise do crítico que tende a ler o poema em chave
conciliatória, é bastante significativo o surgimento quase non-sense, em meio às ações das
crianças, da intromissão brusca e deslocada da autoridade pública e da burocracia, com a
imagem do homem advertindo “que os balões são proibidos pelas posturas municipais”. A
regulação pública vem marcada apenas pela repressão e não pelo estabelecimento de um
espaço onde pudessem conviver as diferenças, como se poderia desejar ou supor. Mais do que
“ensinar” aos meninos as regras da vida em sociedade ou garantir o bem-estar coletivo, a fala
se reduz à castração que, sem o sentido que lhe conferiria o contexto civil, aparece como
deslocada, autoritária, apenas como um ato de “estraga prazer”, ou melhor, de despeito e
arrogância de classe 63. Configurando mais um dos sentidos e dos tipos de resistência que o
pequeno balão precisa superar em sua ascensão.
Voltando à análise de Mazzari, o crítico nota com precisão que a estrutura ternária da
cantiga é incorporada ao poema, fundando sua “unidade formal” e
“emoldurando também o referido jogo de contrastes. A ocorrência de tal estrutura
ternária, manifesta já no leitmotiv do "Cai cai balão", pode ser apontada ainda nos
versos que falam da ascensão do balão e da periclitante fase inicial, apresentando,
ambos os momentos, três verbos que contrastam os aspectos perfeito e imperfeito.
Também os semi-versos, organizados como que a sugerir, inclusive pelos pontos de
suspensão, o movimento horizontal-expansivo, estruturam-se, da mesma forma que
a verticalização brusca dos semi-versos "assobios / apupos / pedradas", em ritmo
ternário. E assim também o término da história, com a tríplice ocorrência do verbo
"caiu", primeiro pela negativa: "Não caiu na Rua do Sabão" e, em seguida, na
afirmação que se faz no verso de fecho. Mas também este apóia-se em três
segmentos, os quais vão atualizando com precisão crescente a notícia da queda do
balão, com o seu momento culminante no ondulamento rítmico marcado pelo
extraordinário contraste entre a abertura e alteamento do /a/ assonante "nas águas do
mar álto" e a vogal que se fecha e alonga na palavra (ligeiro obscurecimento na
claridade do verso) que traz por fim o sentido de pureza à narrativa lírica de
Bandeira: "Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto."
A retomada negativa do leitmotiv e o contraste entre a “abertura e alteamento”do /a/,
assonante em “nas águas puras do mar alto”, e o fechamento e alongamento do /u/ que, ao
mesmo tempo, obscurece o verso e traz “o sentido de pureza”, mais uma vez fazem surgir, em
meio à “claridade do verso”, um momento obscuro que, segundo o ponto de vista aqui
63
Apenas uma nota: o cultivo sistemático do ódio e de múltiplas formas de preconceito nas últimas eleições
presidenciais revela as alturas e a insanidade a que a arrogância de classe chega entre nós. A explicitação por
parte de alguns jovens na internet da barbárie encenada em parte da imprensa e das campanhas políticas só
tornou o fato óbvio e incontornável.
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defendido, liga-se à visão melancólica, não-triunfalista e também cindida e ambivalente que
define o ponto de vista do eu-lírico.
No entanto, nada disso impediu que o balão caísse nas “águas puras do mar alto”,
imagem evidentemente afirmativa de superação das limitações do menino. Posta em contexto,
contudo, à afirmação humanizadora contrapõe-se o risco iminente de desumanização, tanto
pela violência física quanto simbólica que se encenam.
Observando bem, o balão escapa por muito pouco. Trata-se de um momento
“mágico”, epifânico até, um pequeno “milagre” que afirma a capacidade de enfrentar diversos
tipos de adversidade e superá-las. Mas, dada sua excepcionalidade, é também um momento
frágil, pois aparece cercado de riscos, que poderiam, facilmente, ter levado ao fracasso a
investida do menino tísico. É uma imagem afirmativa, sem dúvida, mas fraturada em agônica
tensão. Tanto que não há qualquer triunfalismo, ao contrário. O tom do poema aproxima-se
muito mais de um otimismo melancólico do que de uma celebração de vitória. É um momento
fugaz, um flash, um instante luminoso captado pelo poeta e que anuncia possibilidades de
superação em sua fragilidade de circunstância passageira, pontual e, talvez, única, definindo
uma expressão particular que se condensa na forma literária.
Dessa forma, a tensão não se encerra completamente com a vitória momentânea do
menino, do balão e do poeta. Forçando um pouco a comparação, há algo aqui da rosa feia e
frágil de Drummond, que “furou o tédio, o asfalto e o ódio”. Trata-se, por assim, dizer, da
condensação lírica de um momento frágil de superação. Daí a melancolia que percorre os
versos, definindo-lhes o tom e contrapondo-se, como já foi dito, a qualquer efusão triunfalista
que o evento poderia inspirar. Na verdade, a própria distância que separa José e o eu-lírico
(“Caiu muito longe”) das “águas puras do mar alto” é outro índice desse mesmo sentimento.
Em síntese, não se trata de negar as possibilidades de superação, nem tampouco a
força humanizadora dos versos ou a ternura e simplicidade que deles emana. Trata-se, antes,
de afirmar que tais aspectos comportam um intrincado jogo de tensões, possibilidades e
ambivalências que os torna mais complexos e menos conciliatórios do que, em parte,
convencionou-se afirmar.
THE KIDS, THE BOY, THE POET AND THE BALLOON
ABSTRACT: O ritmo dissoluto is the first of the books written by Manuel Bandeira in Curvelo, where the author
claims to have “rediscovered the ways of childhood”. This statement is echoed in the poems collected in the
book, some of whom have childhood as a theme. Among these, there is "Na rua do Sabão" which expresses the
odds that the boy José for making faces and "give life" to his balloon. In the poem, an intricate combination of
closeness and distance, identification and distinction, celebration and melancholy conclusion to rethink the way
that the expression bandeiriana acquires in his poems, especially regarding the degree of consensus about the
supposed "humility", seen as a element that would define your style.
KEYWORDS: Brazilian modern poetry. Manuel Bandeira. Childhood.
REFERÊNCIAS
ARANTES, P. E. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo
Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
BANDEIRA, M. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac & Naif, 2006.
_________. Itinerário de Pasárgada. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.
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EULÁLIO, A. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. 2.ed. São Paulo: Imprensa Oficial: Edusp: Fapesp,
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MAZZARI, M. Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira. Revista de Estudos Avançados, vol.16, n.44.
São Paulo: IEA/USP, jan./abr. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142002000100016&script=sci_arttext. Acessado em 18 nov. 2010.
MELO E SOUZA, G; CANDIDO, A. Introdução. In BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. 4.ed. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 3-17.
OTSUKA, E. T. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um argento de milícias. Revista do
IEB, n.44, p. 106-124. São Paulo: IEB/USP, fev. 2007.
SCHWARZ, R. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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JOAQUIM CARDOZO, LEITOR DE MANUEL BANDEIRA
Éverton Barbosa CORREIA1
RESUMO: Embora Joaquim Cardozo tivesse sua produção poética reconhecida pelos seus pares, a exemplo do
que aconteceu com Drummond – que prefaciou um livro seu – e com João Cabral – que editou outro -, o seu
lugar na história literária permanece um tanto esfumado. Modernista tardio e tangencial, o poeta não chega a
compor a geração de 45, apesar de ter seu primeiro livro publicado em 1947. Lendo o poema “Luz na galeria”,
dedicado a Manuel Bandeira e publicado no livro Mundos paralelos (1970), intenta-se demonstrar como
Joaquim Cardozo se inscreve na tradição lírica moderna através do diálogo que estabelece com o outro
pernambucano, desde os anos 1920, quando publica seus primeiros poemas, cuja repercussão se estende por toda
sua obra. Como apoio à revisão historiográfica, será considerada a correspondência de Manuel Bandeira.
PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Cardozo. Manuel Bandeira. Poesia brasileira moderna. Historiografia literária.
Nos idos de 1925, Gilberto Freyre foi encarregado de organizar a edição centenária do
Diário de Pernambuco ainda muito moço, a considerar seu nascimento em 1900. Daí surgiu o
libelo intitulado Livro do Nordeste, haja vista que a publicação acabou tomando uma
proporção maior do que a esperada. Pois seu organizador reuniu em torno de si alguns nomes
que deram sustentação ao volume com colaborações luminosas, a exemplo das de Oliveira
Lima, de Vicente do Rego Monteiro e dos poetas que nos interessam mais imediatamente, que
são Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo. A informação se faz tanto mais curiosa quanto
mais considerarmos que àquela época o Nordeste ainda não estava formalizado e que o
volume serviu de índice para sua demarcação, uma vez que o limite estabelecido para a região
foi o das assinaturas daquele periódico encontradas. Conforme o exposto, um jornal passou a
ser o elemento de definição da geografia e não só veículo de informação a circular pelo seu
espaço. Além do mais, interessa lembrar que aqueles seus colaboradores automaticamente
passaram a subscrever o discurso regional, na medida em que colaboraram com o “Álbum do
Diário”, o que se aplica a Manuel Bandeira com o “Evocação do Recife” - feito de encomenda
para aquele evento literário – e também a Joaquim Cardozo que naquela circunstância figura
como crítico da poesia bandeiriana.
Naquela publicação, constam lado a lado o poema de Bandeira e a crítica de Cardozo,
intitulada: “Manuel Bandeira: um poeta pernambucano”. Como se vê, “pernambucano” então
soava como adjetivo de valoração e de emancipação, quando grupos reivindicavam uma
identificação mais específica e que ultrapassasse a vaga demarcação vigente de “Norte” para
tudo que estivesse ao norte da capital da república, situada no Rio de Janeiro. Cumpre ainda
lembrar que àquelas alturas Manuel Bandeira tinha publicado apenas Cinza das horas (1917),
Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924) e ainda não era, portanto, a celebridade que veio
se consagrar posteriormente por ocasião de sua entrada na Academia Brasileira de Letras e da
repercussão alcançada pelo movimento modernista.
Lembre-se, ainda, que os meios de comunicação eram bastante precários àquela época
e o próprio modernismo não tinha ainda se convertido em moda a ser seguida, estando à sua
testa Graça Aranha e Paulo Prado, os mais velhos e mais institucionalizados combatentes do
movimento, que até conseguiram adeptos em Pernambuco – a exemplo de Joaquim Inojosa -,
1
UFMS – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - Programa de Pós-Graduação em Letras – Três Lagoas
– MS – Brasil – 79603- 011. E-mail: [email protected]
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mas sem a força e sem a tonalidade que adquirira em São Paulo. A leitura de “Os sapos” na
Semana de Arte Moderna de 1922 não teve, portanto, o alcance que via de regra lhe é
imputado pelas histórias literárias, como refere com acuidade Nicolau Sevcenko (1992, p.
272-273), quando especifica:
“Chalaças, chufas e remoques à parte, os poetas não eram protagonistas do
espetáculo. [...] Assim, a grande projeção do festival foi, sem dúvida nenhuma, o
jovem maestro Villa-Lobos, prodígio da arte moderna brasileira. [...] Os anúncios
mesmo da Semana de Arte Moderna na imprensa destacavam sempre, em primeiro
lugar e associados, o nome dele e o de Guiomar Novaes.”
Quando, na verdade, a entrada dos poetas na Semana tenha se devido muito mais à
proximidade com Paulo Prado – filho do Conselheiro Antonio Prado, responsável pela
construção do Teatro Municipal -, que fazia das dependências daquele teatro um local de
encontro para seus convivas, quando não de reuniões do Partido Republicano Paulista. Diante
disso, é possível inferir que a poesia entrou na Semana, mais ou menos, como Pilatos no
Credo, o que rendeu protestos inclusive da própria Guiomar Novaes, alegando o caráter
exclusivista daquelas manifestações, que não consideravam a tradição que ela executava tão
bem, a exemplo de Chopin. Por outro lado, a despeito de Manuel Bandeira e Ribeiro Couto
um tanto tangencialmente fazerem parte do círculo apreciado por Paulo Prado e terem sido
convidados para participar da Semana, lá eles não pisaram. Da parte de Manuel Bandeira que
há muito havia saído de sua cidade natal e via sob suspeita a reunião daqueles rapazes ricos
(BANDEIRA, 2001a, p. 124), a quem Mário de Andrade se irmanara, havia ainda certa
desconfiança dos propósitos e da figura de Graça Aranha, a exemplo de quando diz: “O Graça
não é amigo de ninguém. É um organizador de grupos, e dentro dos grupos cabalista de
facções”. (BANDEIRA, 2001a, p. 138). Claro está que Graça Aranha figurava como um dos
principais pivôs do modernismo naquele momento, inclusive pelas boas relações que
mantinha com os Prado.
Se voltarmos aos idos de 1925, àquelas alturas Mário de Andrade já tinha se
convertido em amigo de Manuel Bandeira e cada um, a seu modo, mudado de posição em
relação ao modernismo. Ficando Mário mais para dentro e Bandeira mais para fora,
confidenciando ao amigo: “Essa história de modernismo está mesmo extremamente
aporrinhante. Sabe meu sentir íntimo? É que o grupo precisa ser espatifado porque não há
nele real espírito de camaradagem.” (BANDEIRA, 2001a, p. 208). A informação nos ajuda
sobretudo se pensarmos na escrita um tanto deslocada do poema “Evocação do Recife”, a
partir do qual Manuel Bandeira parecia se reconciliar com o seu passado, reintegrando-se à
paisagem recifense. Simultaneamente, o poema situava-o em contexto num momento em que
ele estava no limbo, longe de Recife, fora de São Paulo e ainda não integrado de todo à vida
literária fluminense, onde morava num apartamento sublocado. Se sua vivência no Rio de
Janeiro não lhe oferecia uma vida remediada, ao menos conferia ao poeta a veleidade de se
transformar num poeta nacional antes que a morte lhe batesse à porta. Mas como não podia
esperar muito, devido aos problemas de saúde que o acometiam, qual o problema em
colaborar com a publicação comemorativa? A princípio o poeta resistiu à idéia do proponente,
alegando haver uma distância razoável entre poesia e bolo de aniversário, mas acabou
cedendo ao capricho do organizador do Livro do Nordeste, para orgulho deste e felicidade
geral da nação (FONSECA, 2002, p. 56-57). Aparadas as arestas, o “Evocação do Recife” foi
publicado sob a encomenda de Gilberto Freyre, abrindo caminho para colaborações entre os
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dois recifenses e oferecendo a possibilidade de Joaquim Cardozo sistematizar a admiração
pelo seu confrade na crítica que o volume enfeixa.
A apreciação que Joaquim Cardozo faz no Livro do Nordeste da trinca de livros que
Bandeira tinha publicado até então se volta para aspectos que hoje podem soar
extemporâneos, mas se deve tão somente à efetividade discursiva que se constituía em
paralelo à produção poética. Se hoje podemos visualizar a imagem de Bandeira acabada em
todos os seus contornos, não era assim naquela época e, por isso, aquela crítica nos interessa
sobremodo, uma vez que oferece a obra do poeta em sua viva pulsação, bem como o olhar do
seu crítico de primeira hora. Ali (CARDOZO, 2007, p. 499-506) Cinza das horas já é visto
sob o escopo soturno de quem está esperando pela morte anunciada e a pique de acontecer;
em Carnaval vemos um palhaço sombrio que ao invés de festejar a vida, esconde-se por trás
de uma máscara cotidiana e sem remédio, que não encontra avesso e através do qual espelha
os outros que se fantasiam no carnaval; O ritmo dissoluto concorre para a derrisão a que a
vida está fadada e que já está inscrita nos objetos literários com que o poeta lida, seja um
poeta parnasiano ou Camões.
Segundo o crítico, em Cinza das horas o que se observa é uma poesia de angustiado,
cuja consolação sem termo não demora em se esfumar, tornando-o melancólico, a quem a
lembrança de menino atua como nota dominante, nem sempre satisfeita como impulso
alentador. Desamparado e esquecido, o poeta se volta com repugnância para o passado, onde
não há espaço para sua fala nem para sua companhia, fazendo-o odiar a solidão e o silêncio.
Daí resulta uma poesia difícil de se alegrar, aludindo à mágoa que o atormenta e que ele
carrega, convertida, por sua vez, numa relação pouco usual com a natureza.
Para o crítico, aquele já existente desejo de alegria ganha fôlego em Carnaval, onde é
identificável uma maior liberdade formal e também temática, com o arrefecimento de uma
visão material do amor em contraposição ao seu desalento. Em vez de fazer o carnaval de um
momento de explosão programada, o poeta deixa ao sabor do imprevisto as sensações mais
brutas e primitivas. Daí o seu caráter fragmentário e analítico, mediado pela complexidade do
cotidiano. Trata-se, portanto, de um carnaval da vida interior, onde a máscara dos outros é
iluminada pela sua face sombria, com um forte desejo ser alegre.
Seguindo o seu raciocino, em O ritmo dissoluto há a retomada do sentimento infantil,
já assinalado por ocasião de Cinza das horas, cujo retorno adquire outra feição, liberta de
amarras e infundindo nova sensibilidade. Projetado na sensibilidade infantil, o poeta se
permite deslocar o olhar dirigido e grave dos adultos, por isso, acaba atingindo um nível de
intimidade com as coisas de que fala, porque as explora com o olhar de quem está
descobrindo a natureza de cada uma delas através de um olhar táctil, que desloca o sentido das
coisas previsíveis e até se aproxima dos “Dadas”. Isso não descarta, todavia, um prazer
intelectual que é resultante de sua fina intuição, mas antes faz combinar o exercício de
intelecção com a surpresa virginal da descoberta que os seus olhos nos oferecem, como
depuração de uma super-infância que nos arrasta a um estado de supra-consciência.
Esta breve apresentação da crítica de Joaquim Cardozo visa à consideração do
primeiro registro de sua sistematização da leitura de Manuel Bandeira, levando em conta os
seus posteriores desdobramentos em versos. Diante disso, se ainda hoje uma apreciação
dessas nos causa certa surpresa, que dizer então lá pelos idos de 1925? Até mesmo o poeta
Manuel Bandeira ficou surpreso com o impacto que seus versos produziram e, por extensão,
muito agradecido pela crítica que Joaquim Cardozo lhe devotara, como consta em carta
endereçada a Gilberto Freyre logo após o recebimento do exemplar do Livro do Nordeste,
com o poema publicado junto à crítica de Cardozo.
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“passei toda a tarde com Mário metido no álbum do Diário. Feito menino que
ganhou um livro muito bonito. [...] Do texto só li o artigo de Joaquim Cardozo e
duas páginas sobre o seu século de vida social. [...] O artigo do Cardozo... Aquele
sacana me deixou o coração numa podreira. Me conte alguma coisa dele. É o mesmo
de quem você fala no capítulo da pintura? Você me faz o favor de dar a ele este
exemplar do meu livro? Gilberto, como vocês me trataram carinhosamente como
ficou bonita a colocação dos meus versos. Mário de Andrade achou muito bom o
estudo do Cardozo.” (BANDEIRA, 2008, p. 198-199)
Afora o que se possa depreender da relação entre o missivista e seu destinatário que se
desenvolve a partir daí - sob o olhar perscrutador de Mário de Andrade -, também fica
evidenciado que Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo não se conheciam. Trata-se, portanto,
de um caso raro de encontro entre duas dicções poéticas autênticas que se admiram e se
alimentam mutuamente. A admiração de Manuel Bandeira pela poesia de Joaquim Cardozo só
viria se revelar por ocasião da Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos
(1946). Naquela coleção constava uma quantidade de autores reconhecidos noutras áreas, tais
como: Afonso Arinos de Melo Franco, Aníbal Machado, Aurélio Buarque de Holanda, Di
Cavalcanti, Francisco de Assis Barbosa, Gilberto Freyre, Maria Clara Machado, Rodrigo
Melo Franco de Andrade e Tristão de Athayde. De igual modo, havia também uma série de
poetas inéditos, que se irmanavam a Joaquim Cardozo, a exemplo de Ismael Nery, Luís
Aranha, Odilo Costa Filho, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas e Pedro Nava. De Joaquim
Cardozo mesmo ali foram coligidos os seguintes poemas: “Velhas ruas”, “Olinda”, “Perdão”,
“Chuvas de Caju”, “Figuras do vento” e “Os anjos da paz”, ou seja, todos vieram a constar no
livro Poemas, lançado pela editora Agir no ano seguinte, com o prefácio de Carlos
Drummond de Andrade. Curioso mesmo é a explicação que o organizador do volume deixa
no seu prefácio, cuja amostragem vem a seguir:
“Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo
dicionário, bissexto só há o ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro
em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema
acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil. [...] Em suma, bissexto é todo
poeta que só entra em estado de graça de raro em raro [...] Poetas sem livros de
versos, bissextos pela escassez de sua produção: essa é a doutrina.” (BANDEIRA,
1946, p.5)
Em contrapartida e à revelia da explicação, os admiradores de Joaquim Cardozo que se
manifestaram por ocasião de publicação de sua Poesia completa e prosa (2007), fizeram
questão de marcar posição diante da classificação extemporânea que lhe fizera o seu confrade
Manuel Bandeira ao taxá-lo de bissexto. Ocorre que Bandeira não teve a intenção de diminuir
nenhum daqueles poetas ali reunidos, e sim dar alguma notoriedade àqueles poetas que só
chegavam ao público com dificuldade, em parte até por vontade própria ou idiossincrasias de
ofício, como era o caso de Joaquim Cardozo. O fato é que muitos daqueles poetas ali reunidos
não tinham sido publicados em livro até então, a exemplo de Cardozo, conforme Bandeira
também explicou em carta ao amigo em comum que era João Cabral de Melo Neto, ao
participar-lhe da situação literária no Brasil, como se vê.
Outro dia encontrei na rua com o Joaquim Cardoso, que me disse terem os versos
dele sido mandados a você para as suas edições. Com os poemas do Cardoso e os da
Clarice Lispector a sua coleção adquire de saída uma grande classe. Estou
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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interessadíssimo no seu empreendimento. Sugiro para depois o Prudente, o Nava e o
Aníbal Machado, enfim, os grandes bissextos. Digo bissextos bem abusivamente,
porque o Prudente e o Cardoso não são bissextos senão na atitude esquiva e se os
pus na minha antologia foi porque se não o fizesse ninguém poderia ler os poemas
deles. (BANDEIRA, 2001b, p.49-50)
A carta escrita em 25/11/1947 tinha o propósito de definir como ficaria o título e a
portada do livro Mafuá do malungo, editado por João Cabral e vindo a lume no ano seguinte.
Nesta mesma carta, consta ainda a quadra de dedicatória a João Cabral, feita por Manuel
Bandeira e que veio a constar no frontispício daquela publicação. Depois da transcrição da
quadra, é que Bandeira inicia o texto supracitado, respondendo ao incômodo de João Cabral
por ter convidado a Joaquim Cardozo e a Drummond para publicarem pela sua prensa manual,
mas sem resposta até aquele momento. Bandeira, então, conforta o amigo, descrevendo o
episódio com Cardozo, que veio a publicar os Poemas pernmbucanos sob o selo do Livro
inconsútil.
A atitude esquiva à publicação foi uma nota dominante na produção poética de
Joaquim Cardozo, o que explica em parte a irregularidade de suas publicações e até,
poderíamos dizer, o seu lugar impreciso na história literária, dado o caráter rarefeito de sua
repercussão. Se a princípio Joaquim Cardozo teve um reconhecimento precoce no Recife do
primeiro quarto de século – mesmo sem ter sido publicado em livro -, logo depois se instaura
um lapso de duas décadas - de 1920 a 1940 -, tal como se depreende do texto de Souza Barros
quando aprecia a relação entre “Joaquim Cardozo e o ‘Cenáculo da Lafaiete’” no seu livro A
década de 20 em Pernambuco (BARROS, 1972, p. 223).
“Foi sem dúvida Cardozo o mais perfeito contumaz, do ponto de vista de uma
continuidade, e o mais influente membro da confraria. Pode-se mesmo dizer que o
grupo tomou saliência e uma determinada importância pela presença de Cardozo.
Sabia, apesar de retraído, levantar debates, trazendo questões interessantes para os
bate-papos, pois era o mais informado, acompanhando com interesse o que se
passava na Europa, lendo e tendo assinaturas de revistas estrangeiras.
Teria razão Rachel de Queiroz, que passou pelo Recife no início da década de 30 e
freqüentou o ‘cenáculo’. Ao relembrar aqueles tempos, anos mais tarde, já aqui no
Rio, disse ao próprio Cardozo ‘que o conhecera ali, na Lafaiete, rodeado de
admiradores, deixando-se adorar como a um Deus’”
Tendo saído de Recife em 1939, fixar-se-ia no Rio de Janeiro, quando se integra ao
ambiente cultural fluminense e passa a reviver a cidade natal sob o filtro da memória, ao que a
obra de Manuel Bandeira serve de ótimo esteio. Assim, o crítico de primeira hora do poeta de
Pasárgada encontraria naquela poesia a justa medida para sua rememoração do passado, que
ele amplia e redimensiona para além do âmbito familiar. Vale ainda lembrar que, mesmo
residente no Recife, Joaquim Cardozo sempre utilizou a paisagem pernambucana nos seus
versos, mas depois que sai de lá, obviamente, tal referência ganha outra dimensão, porque
outro é o sentido da memória para quem está exilado involuntariamente, como era o caso.
Memória que penetra o espaço urbano e o rural – como sempre havia sido desde antes
de sua partida -, atravessa também os séculos anteriores ao século XX e se faz por meio de
uma sensibilidade personalíssima como é a de Joaquim Cardozo. E se tal cruzamento entre o
individual e o coletivo se dá quando da observação da matéria brasileira, seja entendida em
sua extração nacional (fluminense) ou regional (pernambucana), não vai ser diferente quando
o “poeta do Capibaribe” – como João Cabral o alcunhou na dedicatória de O cão sem plumas
– se volta para a imagem de Manuel Bandeira na condição de fazedor de versos.
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O primeiro momento em que podemos aventar um diálogo poético explícito entre
Cardozo e Bandeira é com o poema “Arquitetura nascente e permanente”, que constitui parte
significativa do livro Signo estrelado (1960). Depois disso, encontramos no livro Mundos
paralelos (1970) o poema “Luz na galeria”, com a seguinte dedicatória “A Manuel Bandeira:
homenagem minha e de uma rua”. E entre os seus dispersos, a que os organizadores da edição
da sua Poesia completa e prosa pela Aguilar cunharam Outros poemas está o “Para Manuel
Bandeira”, recheado de referências à vida e à obra que se juntam no complexo de poesia que
identificamos singelamente no autor de Cinza das horas.
Diante do quadro esboçado, algumas razões me inclinaram a analisar o “Luz na
galeria”: o fato de ter sido publicado em livro e em vida do autor; assim como ter Manuel
Bandeira convertido em personagem aureolado pelo universo recifense, através de um enredo
cotejado por Joaquim Cardozo ( 2007, p. 290-292).
Luz na galeria
A Manuel Bandeira: homenagem minha e de uma rua.
I
Num tempo muito cedo em minha vida
Várias vezes visitei Tia Rosinha
Na sua casa da Rua da União
O vento vinha do mar sobre os sobrados antigos
Do velho Recife: passava sobre a confluência
Dos dois rios da cidade – de águas tão diferentes!
E vinha balouçar-se nos ramos das “Casuarinas”
Da Escola Normal: balouçar-se e... plangentes.
- Os bicos das aves que haviam no vento
Bicavam o liso reboco das casas da rua,
E nele abriam pequenos orifícios...
Nele, naquele reboco, liso e vidrado como se fosse de louça.
Pela calçada da Assembléia
Ao longo da Rua arborizada de “Carolinas”
Sempre de grandes frutos carregadas,
- Frutos cor de batina de padre franciscano –
Passavam as normalistas,
Os estudantes passampassavam, no Ginásio Pernambucano.
- Na paz recifense da tarde presente/perene, e quieta,
Havia um pressentimento de que ali,
Alguns anos atrás, também passara um poeta.
II
Num sobrado da Rua da União,
Entre as ruas do Príncipe e Riachuelo,
Desfiaram-se as minhas primeiras horas de trabalho;
Era defronte do pequeno jardim do Senado
- Jardim de um canteiro somente – do qual um meu amigo,
- Excelente mentiroso – e, ali, alto empregado,
Era o “Jardineiro”.
Nesse trecho de rua moravam lindas moças morenas,
Lindas moças muito brancas moravam...
Da prancheta em que desenhava, no primeiro andar,
Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves,
Num passo tranqüilo, conduzindo e ondulante,
Quase sempre na direção da Rua da Aurora.
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Para esta rua saía, às quatro da tarde,
Com os meus companheiros de trabalho;
- Rua do Sol, pela manhã, e, à tarde, de sombra;
Rua da Margem do Rio, de calçadas prediletas...
-Tinha-se a impressão de conosco, às vezes,
Conosco, ao nosso lado, ia também um poeta.
III
No trecho que termina na Rua Formosa,
Numa de suas casas, a Rua da União me foi moradia;
Era uma casa de corredor independente,
Daquelas que conservam em mistério a sala de visitas;
- Tinha/tem um sótão com janela para a rua,
De onde se viam as palmeiras da Igreja dos ingleses.
Uma noite me chamaram: alguém me procurava;
Desci a escada do sótão, fui até o corredor;
Diante de mim, sorrindo,
Estava um poeta: Manuel Bandeira;
Estava o presente, o pressentido – duas vezes – naquela Rua.
Falou-me de Nicolas Lenau, de Maurice de Guérin,
De Gonçalves Dias, de Antonio Nobre, de... de... de...
E vi, e contemplei/compreendi
- Através dele: um – um por um - todos os que vivem em poesia.
- Estava o presente, o pressentido.
Na/da Rua da União passou/saiu para o mundo
Um grande poeta: Manuel Bandeira.
O livro Mundos paralelos, de Joaquim Cardozo, reúne uma quantidade considerável
de poemas narrativos, entre os quais podemos destacar o poema dedicado a Manuel Bandeira.
Poema narrativo que é portador de uma estrutura própria – dividida em três partes -, que é
tributária da história que conta e que passa pelo crivo da personagem que a enreda: Manuel
Bandeira. Por conseguinte, todos os conflitos ali dimensionados sob o filtro da sensibilidade
do poeta de Pasárgada são convertidos em expressão do sujeito poético. Neste poema, Manuel
Bandeira aparece como uma espécie de assombração que carrega e encarna o passado, cuja
vitalidade reivindica sua presença que se qualifica pelo conjunto de elementos que remontam
à experiência decorrente de sua lembrança. Assim, sua memória se consubstancia e se cruza
com a memória coletiva que traz a reboque de sua experiência sensível e circunstante. E aqui
já dispomos de um ponto de contato entre o melancólico Manuel Bandeira destacado na
crítica de Joaquim Cardozo intitulada “Manuel Bandeira: um poeta pernambucano” e a
melancolia que o poema enseja através da persona de Manuel Bandeira descrita entre
calçadas e arbustos na Rua da União.
A narrativa do poema se divide em três partes, cuja divisão é indicada pela narração
que o poema apresenta e que traz três repercussões distintas da imagem de Manuel Bandeira.
Na primeira, há apenas a sugestão de que por ali passara o poeta; na segunda, já há a
impressão de que num tempo passado, contiguamente andava o poeta, ao lado de seus
sequazes; e na terceira, finalmente, o pressentido se faz presente. Ou seja, a figura do poeta se
materializa, não pela sua presença, mas pela presença das coisas que o revelavam e que estão
presentes na sua poesia, trazendo consigo uma porção do poeta ou, ao menos, parte das
sensações que ele nos legou e nos fez acreditar serem legítimas. Não por uma suposta verdade
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imanente ali depositada, mas porque adquiriram sentido após a sua intervenção e só por causa
dela, com sua sensibilidade arrevesada e indômita.
A presença do poeta, portanto, é resultante de um conjunto de sensações que ele nos
impingiu, um tanto circunstancialmente, e que aparecem redivivas por terem sido revividas
por outros, especularmente, recifrando o sentido que lhes foi conferido antes, por aquele que
já passara por ali, e parece estar vivo nos passos de quem anda por aquelas mesmas calçadas
ou, ao menos, pesa como uma velha sensação decantada daquelas ruas.
Trata-se, por conseguinte, de uma sensação decalcada da experiência sensível do
homem Manuel Bandeira que é transmitida de longe em longe por algum dos seus eventuais
leitores contumazes daquele mesmo espaço. A experiência vivida e sentida por Joaquim
Cardozo é reduplicada na direção de outros leitores de Bandeira e evocada deste mesmo
poeta, com o propósito de ampliar o sentido nele, com ele e através dele. Quer dizer, o
entendimento da obra de Manuel Bandeira é atualizado concretamente por uma sensação que
é aspirada de sua vivência. Com isso, mais do que apontar um procedimento poético
caracteristicamente bandeiriano ou indicar a matéria recorrente impressa nas suas
composições, o que se destaca do poema de Joaquim Cardozo é uma sensação de algo
irremediavelmente perdido que se desprende da figura, da paisagem e do estilo que atribuímos
a Manuel Bandeira. Não se veja aí, pois, uma outra “Evocação do Recife”, porque não é a
cidade aureolada de história, guerras e literatura que interessa. Antes é o espírito da cidade
radiografado em miniatura no quadrilátero que Manuel Bandeira elegeu como sua Tróada,
qual seja, o cruzamento da Rua da União, com a Rua do Sol, atravessando por sua vez a Rua
do Príncipe e a do Riachuelo em direção à Rua da Aurora ou à Rua Formosa.
É a limitação espacial que permite uma apreciação mais analítica da cidade, decifrada
em elementos muito particulares que dão a ver certa compreensão de urbanidade e o conjunto
de sensações que atravessaram o poeta nascido em 1886 e que trespassam ainda aquele outro
vindo à luz em 1897. Embora não esteja nítida a proximidade dos poetas nos manuais de
literatura, o quadro de experiência deles junto à cidade é muito parecido, quer consideremos a
vivência do Recife ou o cordão de personagens que dali se desprende e que vai de árvores a
normalistas. As árvores – tal como as ruas – são particularizadas, produzindo o mesmo efeito
de ampliar a impressão que causa pela aproximação do sujeito narrador do poema. Sujeito que
se faz objeto da narração no qual identificamos o reflexo de Manuel Bandeira através das
“Casuarinas” e “Carolinas”. Ou seja, por se tornar tão familiar àquelas ruas, a ponto de
podermos identificar-lhes suas árvores, o espaço se torna tão próprio ao novo observador
quanto o foi para Manuel Bandeira.
Tão intenso e efetivo é o efeito de reduplicação da imagem de Manuel Bandeira na
imagem que Joaquim Cardozo reivindica para si no poema, que podemos identificá-los
metaforicamente como incrustados nos rios da cidade que enformam o verso 6, a saber: “ Dos
dois rios da cidade – de águas tão diferentes.” A cidade que é cortada por rios, também é
cortada e recortada pelos poetas, de maneira que o corte desferido primeiramente por um é
reduplicado pelo segundo que amplia em intensidade e profundidade o corte primeiro, razão
de existir do segundo. Sem um, não haveria o outro. Havendo um, o outro se torna legítimo e
até necessário.
O sentido do poema de Cardozo só ganha relevo porque existe o de Bandeira. O
“Evocação do Recife” conduz à compreensão da cidade para a Rua da União, passando por
vários lados e reminiscências da cidade. Este poema de Cardozo começa e acaba em volta da
Rua da União. O sentido da obra de Cardozo ganha substância e se tonifica na medida em que
reconhecemos uma tradição que ele cava e sedimenta com Manuel Bandeira. Não como um
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patrono ou um símbolo pelo qual sua poesia navega, mas por ser portadora de uma matéria
semelhante que se desdobra numa sensibilidade igualmente singular. É a singularidade de
Bandeira que abre espaço para a singularidade de Cardozo, que é outra: de outra natureza, de
outra tonalidade e de estilo completamente outro, porque muito próprio. Tão próprio quanto o
de Bandeira, embora seja de outra propriedade.
Assim, a obra de Joaquim Cardozo ganha recurso, não porque imite ou se valha de
procedimentos bandeirianos explícitos, e sim porque reconhece uma grande voz poética que o
antecedera e que é portadora de um timbre muito peculiar. Ouvindo a impostação da voz do
outro, Cardozo encontra um veio através do qual sua voz também pode ser impostada, sem
encobrir ou sobrepor a projeção do canto alheio. Ao contrário, ouvindo as duas vozes é
perfeitamente audível o canto entoado em torno de ruas que identificam os poetas e com as
quais os timbres se confundem, ilustrando a cidade que acolhe a ambos, de vozes distintas.
Com as vozes em sintonia, cria-se uma imagem do Recife urbano que é tributário da
intervenção dos poetas.
O mais curioso da narração que o poema carrega é que há uma matéria comum que
evoca uma sensação supostamente tragada de experiências similares. Sensação que pode ser
ilustrada pela perspectiva de Joaquim Cardozo que vê a mesma cena desenhada nos poemas
de Manuel Bandeira, embora a descrição de Bandeira seja animada por outros traços,
decorrentes de outra angulação, que se cruza com a de Joaquim Cardozo, tal como vemos na
descrição da segunda parte de seu poema: “Da prancheta em que desenhava, no primeiro
andar,/ Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves,/ Num passo tranqüilo, conduzindo e
ondulante,/ Quase sempre na direção da Rua da Aurora.”
Decerto foi uma dessas moças de vestidos claros e leves que Manuel Bandeira viu
nuinha no banho, tendo seu primeiro alumbramento. Pela idade com que saiu do Recife e a
posição infantil que ocupava na sua cidade, Manuel Bandeira nunca poderia olhar as moças
recifenses de cima, tal como o engenheiro do alto de seu escritório. Por outro lado, a visão da
mulher em Manuel Bandeira via de regra vai ser mais carnal e menos metafórica do que em
Joaquim Cardozo. Aqui, neste poema, parece haver uma síntese entre a perspectiva
usualmente identificável na poesia de um e de outro, através da qual percebemos uma
tonalidade densamente alegórica, em que a carnalidade do escopo que visualiza o feminino é
sobreposto a seu caráter representativo, que metonimizado aparece nos seus vestidos, na sua
brancura, na sua morenice ou na sua lindeza. Não deixa de ser apropriada a imagem da
mulher, apesar de à primeira vista parecer apresentar um quadro disforme e incongruente,
como é toda sensação viva e palpável, porque radicalmente contraditória, como é tudo que se
queira a alguns palmos da realidade.
Assim, o pressentido se faz presente pela reduplicação da imagem projetada
anteriormente numa metaforização a meio caminho da alegoria. Isso tanto vale para a imagem
da mulher que Joaquim Cardozo explora ou do espaço urbano recifense, onde aquela mulher
passeia. Quando circunstanciada no ambiente daquela cidade, a imagem da mulher ganha uma
coloração que concorre para o entendimento da paisagem ao seu redor e de seu valor
representativo. Teremos dado um passo além na compreensão desta composição se
considerarmos o encontro que se dá entre o sujeito lírico e Manuel Bandeira na Rua da União,
onde o seu busto está afixado como indica o poema.
Somente porque tal encontro acontece é que podemos visualizar a ampliação da
imagem de Manuel Bandeira, que se desdobra pelo próprio reconhecimento do seu busto e
pela sensação que acomete o sujeito lírico após tal reconhecimento, tornando palpável aquilo
que fora anteriormente pressentido: a presença de Manuel Bandeira naquela rua. A presença
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física do busto do poeta desencadeia uma série de sensações ali engatilhadas e que,
aparentadas às sensações provocadas pela poesia bandeiriana, faz com que revivamos sua
poesia através do caráter representativo que ela adquiriu, quer seja ilustrado pelo seu busto ou
pela poesia que Joaquim Cardozo busca e realiza.
A melancolia de Joaquim Cardozo ganha força porque é projetada na de Manuel
Bandeira, onde sua densa angústia se alimenta, repercutindo a melancolia do outro e
intensificando a sua, que já vale por si só e se acentua pelo reconhecimento da perda do outro,
também melancólico. Esta melancolia da melancolia produz um efeito devastador, conforme o
qual o sentido da perda não encontra correspondente substitutivo. Antes conduz a uma
transcendência vazada e sem fundo, onde não há reconciliação possível (MERQUIOR, 1996,
p. 29-33). O encontro com Manuel Bandeira é antes de tudo e de mais nada o encontro com o
vazio cantado por um poeta pernambucano que ecoa no outro o seu sem-sentido que tenta
desesperadamente se agarrar às coisas circunstantes para lhes conferir um sentido provável,
embora saiba nem sempre tangível. Sentido que só é identificável nas coisas a que os poetas
tentam se plasmar, seja um busto ou a poesia do confrade. O pressentido vazio ali se faz
presente, pela existência do outro, num lugar em que o sujeito poético parece ganhar fixidez e
que justifica sua existência dispersa nos despojos de sua lembrança, para a qual a demarcação
do espaço se lhe oferece como alento possível, também a pique de se esfumar.
“Da Rua da União para o mundo” vem a ser, portanto, uma fórmula para universalizar
algo perdido no tempo que se convenciona através do espaço ocupado por um e outro poeta,
ou pela reverberação de uma poesia que se justifica pelo reconhecimento que lhe foi devotado
e que ela suscita, inclusive através do busto de seu autor. A tentativa desesperada de demarcar
um espaço próprio e contíguo à poesia de ambos os autores deve-se sobretudo a uma
desconfiança sábia, porque quase certa, de que haverá o esboroamento da experiência dali
decorrente e que junto a ela se vai também parte da compreensão da poesia, a poesia mesma.
É a certeza de que a poesia não tem valimento, sequer para redimir seu sujeito, que motiva e
anima a escrita de Joaquim Cardozo, espelhada na de Manuel Bandeira, que era portador de
uma consciência assombrosa da gratuidade do seu fazer, que podemos apelidar de ceticismo
ou coisa semelhante. Mas que só vale devido ao que está gravado em versos, nos seus versos e
nos versos do outro, curtido e repercutido.
JOAQUIM CARDOZO, READER OF MANUEL BANDEIRA
ABSTRACT: Although Joaquim Cardozo has been recognized by their peers, as happened with Drummond –
who prefaced one of his book – and with João Cabral – that edited another-, his place in literary history remains
somewhat blur. Late and tangential modernist, the poet does not enough to compose the generation of 45,
despite having her first book published in 1947. Reading the poema "Luz na Galeria", dedicated to Manuel
Bandeira and published in the book Mundos paralelos (1970), sues itself demonstrate how Joaquim Cardozo ties
in modern lyric tradition through the dialogue with that other poet, since the 1920s, when he publishes his first
poems, whose impact extends throughout his work. Supporting the historiographical revision, it is considered the
letters of Manuel Bandeira.
KEYWORDS: Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Modern Brazilian Poetry, Literary Historiographic.
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REFERÊNCIAS
BANDEIRA, M. Antologia do poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora Zélio
Valverde, 1946.
_____________.Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2001a.
_____________. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira;
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001b.
_____________. “Correspondência de Gilberto Freyre a Manuel Bandeira” in: VICENTE, S M. Cartas
provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. 2007. 591 f. Tese (Doutorado em
Teoria Literária e Literatura Comparada) FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008.
_____________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.
BARROS, S. A década de 20 em Pernambuco. Rio de Janeiro: Editora Paralelo, 1972.
CARDOZO, J. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Recife: Massangana, 2007.
FONSECA, E. N. da. Alumbramentos e perplexidades: vivências bandeirianas. São Paulo: Arx, 2002.
FREYRE, G. (org.). Livro do Nordeste. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979.
MERQUIOR, J. G. Uma canção de Cardozo. Razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 17-35
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
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O MITO PROMETÉICO NA TRAJETÓRIA
POÉTICA DE MURILO MENDES
Wanderlan da Silva ALVES1
Diego de Jesus Rosa CODINHOTO2
RESUMO: Neste artigo, estudamos a recorrência do mito de Prometeu na poesia de Murilo Mendes. O poeta, a
partir da incorporação da Mitologia em sua criação poética, invoca tais mitos, ora referenciando-os ora
atualizando-os, em uma poesia que se faz moderna, por meio da tensão dialética entre passado/presente,
imaginação/realidade, tradição/modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: Murilo Mendes. Mito de Prometeu. Poesia Brasileira. Poesia modernista.
Em sua obra, Murilo Mendes recorre diversas vezes à Mitologia 3 para compor seus
poemas, mas constrói uma poesia que não despreza os aspectos do mundo real e da
Modernidade. Em sua poética, elementos histórico-culturais associados à arte podem
manifestar aspectos da relação do homem com o cosmo e criar um campo crítico de reflexão
sobre o fazer artístico. Desse modo, o poeta toma o mito ora como narrativa sagrada contada
por um rapsodo, ora como representação de verdades profundas da mente, particularizando-o
e atualizando-o.
Embora Murilo Mendes nunca tenha seguido explicitamente programas estéticos (tão
em voga no contexto histórico-social e artístico em que o poeta escreveu sua obra, entre as
primeiras décadas do século XX e o começo da década de 1970), chama-nos a atenção o fato
de o mito prometéico aparecer no decorrer de toda a sua obra poética.
De certo modo, tal mito, mais que mera referência à Mitologia Greco-romana, prestase, na poesia de Murilo Mendes, à representação e à identificação simbólica da própria
relação do poeta com o lírico, de modo que o mito de Prometeu se associa à concepção de
sujeito presente na sua poética e, ainda, ao ideal de poesia que está presente em toda a
produção literária desse poeta.
Os textos de Murilo Mendes que resgatam o mito prometéico são os seguintes:
“Novíssimo Prometeu”, “Amor – Vida”, “Botafogo”, “Natureza”, “A Noite de Junho”, “O
Fósforo” e “Hans Magnus Enzensberger”, que aparecem nessa mesma ordem, em sua obra
completa (MENDES, 1994), e, como veremos, estão distribuídos ao longo das quase quatro
décadas pelas quais se estende a sua produção literária. Propomo-nos, então, analisar como se
dá a atualização e a particularização do mito de Prometeu na obra do poeta, buscando
compreender qual a importância desse mito na poesia do autor e qual (ais) a(s) função (ões)
que ele assume na relação poeta-mundo e em seu plano artístico.
1
Doutorando pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas - São José do Rio Preto - SP – 15054-000. E-mail: [email protected]
2
Mestrando pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Biociências,
Letras e Ciências Exatas - São José do Rio Preto - SP – 15054-000. E-mail: [email protected]
3
O termo “Mitologia”, empregado aqui, engloba todo o universo mitológico. Faremos a referência necessária
quando tratarmos de alguma mitologia específica, como a grega ou a romana, por exemplo.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no11
Prometeu revisitado
A retomada que Murilo Mendes faz de várias Mitologias, ao longo de sua obra
poética, poderia ser analisada sob diversos focos. Escolher o mito de Prometeu é uma maneira
de investigar a ênfase dada ao humano na poesia muriliana, já que Prometeu, tanto na versão
mítica quanto na visão moderna que se tem desse mito, representa toda a humanidade. Além
disso, é uma maneira de apontar e ratificar o importante papel da Mitologia Greco-romana
como fonte constitutiva não só da literatura muriliana, mas também de toda a cultura
ocidental. Dessa forma, a partir de apropriações, estilizações, paródias e paráfrases, o poeta
retoma o mito prometéico, valorizando-o por meio de figurações textuais afins ao contexto do
homem moderno, o que resulta numa maneira de refletir sobre a própria relação do homem no
literário e com o literário, a partir da sua herança cultural. Murilo Mendes empreende, pois,
uma poesia (re) criadora, que integra Mitologia, História e Poesia, o que já nos permite
apontar o projeto literário do poeta de uma poesia totalizadora.
Em sua obra, o mito prometéico é retomado pela primeira vez em “Novíssimo
Prometeu” (MENDES, 1994, p. 237), poema do livro O Visionário (1930-1933), pertencente
ao que alguns críticos chamaram de primeira fase do poeta, ainda fortemente influenciada
pelo Surrealismo, mas que já apresenta um consistente trabalho com a realidade tornada lírica,
de uma poesia pautada no mundo substantivo, sempre em busca de manter a coerência entre o
“eu” e o mundo.
Em “Novíssimo Prometeu”, o título já nos propõe uma atualização do mito, pois se
declara a fonte (Prometeu), porém modifica-se e determina-se sua condição. Antecipa-se,
então, a noção de que não se faz uma mera alusão à Mitologia Greco-romana, mas, sim,
procura-se, ao mesmo tempo, enriquecer tanto a criação artística moderna de Murilo Mendes
quanto a própria literatura clássica com algo que a torne “novíssima”, o que, no contexto da
poesia de muriliana, pode significar atual, perfeitamente adaptada ao poeta moderno. Já
observamos (ALVES, 2006) que o ideal de inovação muitas vezes se presentifica, na poesia
de Murilo Mendes, a partir dos títulos de alguns de seus poemas, como “Novíssimo Job”,
Novíssimo Jacob” e “Novíssimo Orfeu”, todos eles relacionados a personagens de alguma
Mitologia. Parece haver, então, no emprego que faz dos mitos em sua poesia, o objetivo de
apresentar uma Mitologia atualizada e de acordo com seu projeto poético.
No poema “Novíssimo Prometeu”, os primeiros versos já colocam o mito como ponto
de partida, e o eu-lírico é incorporado pelo sujeito mitológico, pois o “eu” afirma: “Eu quis
acender o espírito da vida,/ Quis refundir meu próprio molde,/ quis conhecer a verdade dos
seres, dos elementos”, o que consiste numa estilização de uma fala do Prometeu mítico, que
também diz “eu quis cometer meu crime! Eu o quis conscientemente, não o nego! Para acudir
aos mortais” (Ésquilo, 1987, p. 119). Essa referência direta ao mito demonstra a consciência
poética de Murilo Mendes no emprego do mito de Prometeu e acentua o propósito do eu-lírico
do poema de levar à humanidade o “espírito da vida”, o fogo, cuja simbologia aponta não
apenas para o caráter de iluminação, de sabedoria e de vida, mas também para o papel que ele
teve na história da humanidade, uma vez que possibilitou a ela sair de sua condição passiva,
determinada pela natureza, pelos “deuses”, rumo a seu próprio mundo, dominando os seres
vivos, os metais e o próprio homem – “a verdade do seres, dos elementos” –, via confrontos,
batalhas e guerras. Além disso, podemos observar, no verso “Quis refundir meu próprio
molde”, a intenção do sujeito lírico (o eu) de fundir-se com o herói mitológico referido, uma
vez que o próprio eu-lírico declara querer refundir a si mesmo, mas, agora, consciente de seu
poder e de seus defeitos. Nesse sentido, pode-se perceber uma tentativa do eu-poético de
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moldar-se ao mito de Prometeu, porém transformando tal mito em um outro, diferente, uma
vez que se soma ao mito grego (agora novíssimo), promovendo a fusão do mito com o eulírico (inserido na história) e, consequentemente, da experiência de Premeteu com a própria
história do eu-lírico. Desse modo, o eu-lírico, com o desejo de tornar-se outro, torna-se o
Prometeu de seu tempo.
Mas o que há de novo em “Novíssimo Prometeu”? “Prometeu é o símbolo da
humanidade. Seu destino simboliza a história essencial do gênero humano” (DIEL, 1991, p.
233). Porém a associação estabelecida entre Prometeu e o “eu”, nesse poema, é de ruptura.
Enquanto, no mito grego, Prometeu se rebela contra os deuses para salvar a humanidade, pois
o fogo do Olimpo representa a sabedoria, o eu-lírico do poema, por sua vez, se personifica em
Prometeu e, embora esteja ciente de seu dever de obediência, rebela-se contra “Deus”, “o
papa”, “a família”, enfim, contra todos. Desta maneira, o novíssimo Prometeu vai além e tenta
rebelar-se contra o próprio mito (e o seu destino: o castigo eterno) e contra si mesmo. Sabe
que, no mundo moderno, o fogo dos deuses não existe mais, por isso pretende dar seu próprio
molde ao espírito da vida, o que confirma seu desejo de sabedoria. O eu-lírico torna, pois, a
humanidade consciente de sua realidade e ressalta, ainda, que aspira à onipotência, porque ele
tanto quer criar, despertar, moldar a humanidade, quanto a quer “à sua imagem e
semelhança”, afirmando “Quis refundir meu próprio molde”, verso cujo possessivo nos leva,
por um lado, à sua atitude ativa, é ele quem vai moldar, e, por outro lado, à noção de que ele é
o modelo, isto é, o molde. No entanto, essa assunção de poder transformador exige, como
consequência, que o homem/Prometeu atualizado assuma, também, a responsabilidade por
tudo que seu ato vier a provocar. Temos, então, um eu-lírico que invoca a sabedoria contida
na experiência do mito de Prometeu para tomar, ao rebelar-se inclusive contra si mesmo, um
posicionamento crítico do “eu”, que acompanha toda a poesia de Murilo Mendes. Em atitude
de ruptura, como valor eufórico, o poema “Novíssimo Prometeu” assume que “o pensamento
humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo
com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos
outros expressa na palavra” (BAKHTIN, 1981, p. 73), o que possibilita o diálogo com a
narrativa mítica da tradição e, ainda, a torna atualizada pela perspectiva adotada no poema.
O intuito de alcançar uma poesia integradora é uma tônica em Murilo Mendes e aponta
o desejo criativo de sua poesia, que procura relacionar tempos, formas e planos, acentuando o
papel dinâmico de sua poética, que retoma o passado (histórico, mítico, cultural), dando-lhe
seu próprio tom, ou “molde”, posição que manifesta, inclusive, uma concepção de literário
como construção, arte de linguagem, cujo processo de elaboração se dá, basicamente, por
deslocamento e condensação, o que, segundo Bosi (2001), situa Murilo Mendes entre os
poetas modernos que representam a máxima poesia brasileira da segunda metade do século
XX.
É relevante, também, no estudo do poema em questão, analisar a própria simbologia
do nome “Prometeu”, que, segundo Diel, (1991), significa o pensamento previdente, aquele
que reflete antes de agir, e, para Salis (2003), é aquele que vai em direção ao mito. A
associação do nome “Prometeu” à sua simbologia nos mostra a atualização do mito, no poema
muriliano, e a relação que o eu-lírico estabelece com o social, o que se apresenta, em
“Novíssimo Prometeu”, por meio da relação tensa entre o “eu” e o poder, tanto representado
por entidades espirituais quanto institucionais – “Me rebelei contra Deus,/ Contra o papa, os
banqueiros, a escola antiga,/ Contra minha família” –, e, ainda, por elementos sentimentais –
“contra meu amor”. Como tais poderes são ideologicamente construídos, presentificá-los, no
poema, negando-os, não só retoma, do contexto mitológico, a coragem de Prometeu, mas
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resulta, também, numa poesia crítica em relação à própria História, que, normalmente, se faz
pela ótica da tradição institucional dos vencedores. Segundo Trintin (1978, p. 20), na poesia
muriliana, isso corresponde “à dialética de um projeto que detém e revela a realidade [...],
uma busca incessante da situação da poesia em relação ao mundo”.
Essa revolta instalada no poema acentua-se, gradativamente, numa tentativa de
apagamentos ideológicos, institucionais, estabelecidos no poema, como se percebe, nas
rebeliões “contra o trabalho,/ Depois contra a preguiça,/ Depois contra [si] mesmo,/ Contra
[suas] três dimensões”. Nessas construções paralelas, os elementos contra os quais o “eu” se
rebela são cada vez mais próximos de si e até pertencentes a si, o que nos faz acreditar,
inicialmente, que correspondem às suas três dimensões. Ocorre, porém, que, ao final da
primeira estrofe, não há um encerramento do período por meio do ponto-final esperado; ao
contrário, aparecem os dois-pontos, que contribuem para acentuar ainda mais a tensão
instalada pela rebeldia do “eu-Prometeu” na estrofe inicial do texto.
A influência mitológica sob a qual se constrói o poema nos ajuda a interpretar essas
três dimensões. Quando relacionadas a Prometeu, elas correspondem à criação, à sedução e ao
castigo prometéicos, pois, segundo Salis (2003), ao punir Prometeu, Zeus lhe afirma que uma
desgraça nunca virá só, ela virá tripla, o que se justifica, se observarmos que são três os
castigos dados a Prometeu, no mito grego, a saber: Prometeu é acorrentado ao Cáucaso; a
humanidade perde a imortalidade; e essa mesma humanidade perde a vida abundante, farta e
sem custos que, até então, possuía. Pode-se, ainda, associar as três dimensões mencionadas no
poema às relações eu-poeta-mundo ou eu-mundo-fé, haja vista que os três representam o
nobre, o bom e o belo, elementos espirituais que estabelecem a ponte entre o plano terreno e o
plano superior, em geral, na tradição da cultura ocidental. Nesse sentido, a própria descrição
que Ésquilo (1987) faz do acorrentamento de Prometeu ao Cáucaso, Prometeu de braços
abertos, o que nos dá a imagem de uma cruz, corrobora nossa interpretação, uma vez que,
além de revelar as três dimensões empíricas de qualquer corpo material, representa o corpo
físico do eu-lírico, o que configura a rebelião radical do “eu” contra a própria condição física
do ser.
Essa radicalização revela o “lirismo de exame de mundo” muriliano (TRINTIN, 1978,
p. 8) e manifesta, ainda, uma das propostas da poesia moderna, que é “ser libertária num
mundo de ossatura exposta” (BARBOSA, 2000, p. 36). Podemos, por fim, associar essa
dimensão tripla do “eu” à escrita do poema, uma vez que, ao utilizar-se de textos anteriores,
podemos falar nas três dimensões do espaço textual, ou seja, o sujeito da escrita, o
destinatário e os textos anteriores (KRISTEVA, 1974) aos quais ele se relaciona.
Retomemos o poema. Vimos que sua primeira estrofe caracteriza-se pela ânsia e pela
angústia do “eu”. A segunda, por sua vez, traz-nos o testemunho desse “eu”, que observa,
preso ao Pão de Açúcar, “esquadrilhas de aviões”, “o fígado [bicado]”, “as filhas do mar”,
“madrugadas e tardes”. Observarmos que as duas estrofes apresentam dez versos, aspecto que
as aproxima. No entanto, o “eu” porta-se de forma bem distinta em cada uma delas, e isso as
distancia. Os versos da primeira aparecem na voz ativa, tendo por sujeito agente, expresso ou
elíptico, o “eu”. Isso resulta numa atitude restrita, finita e internalizada, porém marcada pela
ação. Nota-se, também, que os processos verbais dessa estrofe estão no pretérito perfeito do
indicativo, o que evidencia o papel ativo dos atos passados desse “eu” e se reforça, por sua
atitude de rebelião (versos 4 a 9) e de negação de si mesmo (verso 10). Já a segunda estrofe
põe o “eu” em posição passiva, seja como complemento verbal, logo alvo da ação praticada
pelos sujeitos “ditador do mundo” e “esquadrilhas de avião” (versos 12 a 14), seja como
sujeito que tem sua ação positiva anulada pela semântica dos verbos, pela negatividade em
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“Vomito” e pela passividade em “Contemplo” e “Vejo”. Ressalte-se, contudo, que, a partir do
décimo sexto verso, os verbos passam para o presente, o que cria espaço para a atitude de
comentário que vem no último verso do poema (“não posso pedir perdão”).
A condição do eu-lírico, no poema, situa, também, o poeta em face do lírico na
Modernidade. Isolado, sem um espaço que lhe ofereça a liberdade e a privacidade necessárias
para a contemplação descomprometida e desinteressada do mundo, também sem
interlocutores garantidos nesse universo, o poeta não tem com quem comunicar-se
plenamente. Nesse contexto, esse contemplador que, deslocado, observa o mundo à sua volta,
não é o basbaque deslumbrado, não se vê absorvido pelo moderno nem o recebe de modo
eufórico. Em seu isolamento, ele é, também, um melancólico. É esse estado de constante
reflexão, típico do melancólico, que situa o sujeito, no poema, aquele que vê criticamente o
mundo – “Pureza e simplicidade da vida!” – e rumina sua condição de sujeito-parte desse
mesmo universo, dia após dia. Em certo sentido, lamenta, ainda, o fato de que, mesmo em
épocas distintas, sem qualquer ligação cronológica nem causal perceptível, passado (mítico) e
presente (do poema) se identificam, talvez pelo caráter de violência e de barbárie de ambos e
pela impossibilidade de vivência plena pelo sujeito, em ambos os momentos, diante dos
poderes institucionalizados que regem seu universo (tanto no passado mítico quanto no
presente histórico).
Não poder pedir perdão insinua, então, a condição do poeta-Prometeu moderno,
impossibilitado de retornar ao passado – a tradição/o mito –, mas sem perspectivas seguras de
futuro. Se, por um lado, essa atitude é altiva, por outro, é de lamento, porque a
impossibilidade de pedir perdão inviabiliza o retorno à tradição e ao lugar de acolhida com
que o Poeta (com maiúscula, também de modo mitificado) contava no passado. Não é difícil,
aqui, notar certa proximidade (irônica) possível entre a condição do eu-lírico de “Novíssimo
Prometeu” e a do sujeito de “A perda da auréola”, poema em prosa de Baudelaire (1977), em
que o poeta ironiza a dupla condição do poeta moderno, por um lado, livre, homem comum, e,
por outro, destituído da segurança que a condição aurática (perdida) lhe garantia. Ambos
atualizam a imagem do poeta que sobrevive, mas perde os rastros (a sabedoria da tradição
mítica), a aura, e isso o isola. Podemos inferir que há, então, nesse poema, uma tentativa de
salvar o mito do esquecimento, por tratar-se, talvez, de um bem cujo valor simbólico só é
recuperado no momento em que o passado mobilizado é reconhecido, como propunha
Benjamin (1985) acerca do conceito de história. No poema, tal reconhecimento se dá na
incorporação do mito de Prometeu ao presente, mesmo sob a condição de que Prometeu
precisa ser outro: novíssimo.
Observando-se, agora, as duas estrofes do poema, percebe-se que ele se desenvolve
associando passado (mitológico) e presente (realidade/ mito atualizado). Vê-se que o “eu” só
aparece explicitamente uma vez, é disfarçado em elipses (versos 2 a 10) e passa à segunda
estrofe fragmentado, impotente para realizar qualquer ato. A ironia se manifesta porque é o
“eu-Prometeu” que é aniquilado no “Cáucaso do Pão de Açúcar”, ao lado do Cristo Redentor,
comparado ao próprio Cristo – os dois de braços abertos4, presos (acorrentados), “lá em
cima”, olhando do alto, enfrentando o suplício para beneficiar os homens. Tomando-se, então,
o poema como reescrita do mito, compreendemos o texto muriliano como uma cosmovisão
que aproxima o mundo do homem e o homem do homem. Nessa mesma linha, se tomamos a
segunda estrofe como reescrita e consequência da primeira, entendemos que ela só podia
4
Nota-se, aqui, a invocação, mesmo que indireta, da tradição judaico-cristã, também mitológica, ao comparar o
Cristo Redentor à situação presente do eu-lírico no presente do poema.
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mesmo apresentar dez versos, como a que a antecede, uma vez que ela funciona como espelho
da anterior, no que se refere ao número de versos, ou seja, se a primeira apresenta dez versos
e, como já mostramos, uma estrutura ativa, logo positiva, a segunda também apresenta dez
versos, porém uma estrutura passiva, portanto negativa, o que nos permite propor que cada
verso da segunda estrofe neutraliza o verso correspondente da primeira. Dessa maneira, se
concretiza a neutralização e a fragmentação formal do “eu”, antes instigado a agir para elevar
o homem; e, agora, impotente. Desse modo, Murilo Mendes nos apresenta uma concepção de
poesia que acerta o passo com a estética moderna do seu tempo, pois a fragmentação do eu
poético foi uma das grandes propostas dos “ismos” do início do século XX. Com a História, o
poeta recupera valores, sem opor-se ao espírito novo, e sustenta as razões de fazer arte
(MAIMONE, 1994), recolhendo, organizando e ampliando a significação de fragmentos
deixados pela humanidade.
O poema “Novíssimo Prometeu” está no livro O Visionário (1930-1933), o qual
apresenta uma tendência surrealista fortemente marcada. Ligado à primeira fase da obra
muriliana, seu caráter onírico já se deixa ver no título. Esse aspecto se acentua por meio da
imagística que dá base à sua metáfora agressiva e crítica. Seguindo a linha de Ricoeur (1992),
para quem o elemento visual constitui o princípio da metáfora, por ser a base em que se funda
a reestruturação semântica dos elementos sobrepostos, podemos afirmar que Murilo Mendes
se vale, fundamentalmente, da metáfora semântica como tipo de metaforização que estabelece
a imagística do poema “Novíssimo Prometeu”. Esse tipo de metáfora se caracteriza pela
aproximação ou sobreposição dos elementos envolvidos, sem que haja estrutura linguística
que os ordene rigorosamente (ALVES, 2007). Para o poema em questão, essa imagística parte
da tragédia de Ésquilo e estabelece imagens ousadas, atribuindo, desse modo, dramaticidade à
lírica, de maneira que o onírico e o alucinatório ocasionam uma reflexão sobre a realidade
do/no poema, interpenetrando o real, o mitológico e o espiritual, o que constitui o processo
muriliano de dizer e criar o mundo (BARBOSA, 2000).
Além disso, o onírico e o alucinatório incitam Prometeu a desafiar o espírito e deixarse mover pelos desejos humanos (“as filhas do mar vestidas de maiô, cantando sambas”), o
que, relacionado ao mito, cujo complemento envolve, também, Epimeteu e Pandora, revela a
sedução que leva Prometeu, consciente, a sucumbir, tornando-se vítima da imaginação
exaltada. Segundo Diel (1991, p. 227), “a exaltação imaginativa (Pandora) [aqui, todo o
feminino] é a consequência legal (vontade de Zeus) da intelectualização revoltada”. A partir
disso, percebemos que a revolta humana, em sua tentativa de elevar-se a qualquer custo, faz
com que o homem desafie seu próprio espírito e atue não pela razão e pelo respeito à
espiritualidade, mas pelo instinto. Além disso, a referência ao mar, no poema, leva-nos outra
vez ao mito, pois o Oceano é uma das personagens da tragédia de Ésquilo e, sendo irmão de
Zeus, o reinado deste também o beneficiou. Na verdade, o titã Prometeu colaborou para a
obtenção desse(s) reinado(s), possibilitando que águas, terras e infernos coubessem,
respectivamente, a Posêidon, Zeus e Hades. É exatamente por causa dessa cumplicidade que,
em relação a Prometeu, “o Oceano será sempre seu amigo fiel” (ÉSQUILO, 1987, p. 120), o
que aumenta a importância de sua presença no poema “Novíssimo Prometeu”, ao lado de
Prometeu, num gesto solidário, em que o mar compartilha com Prometeu as dores deste, com
o qual mantém o vínculo, por meio da contemplação. E o único espaço à contemplação, nesse
contexto, é o deslocamento, a prisão, o exílio. Então, a consciência do passado perdido torna
ainda mais dolorosa sua experiência, já que o deixa inconsolável, numa relação de
incomunicabilidade com o mundo. Seu lugar é uma espécie de exílio conquistado, e, nesse
contexto, quem já não tem nenhuma pátria encontra no poético seu lugar de resistência e no
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escrever um modo de elaborar seus padecimentos (ADORNO, 1993).
Ao chegar aos três últimos versos, percebe-se que a estilização do mito feita pelo
poeta realça seu trabalho de singularização sobre a passagem mitológica. Enquanto nas
tragédias perdidas de Ésquilo, contava-se a reconciliação entre Zeus e Prometeu – depois de
um longo exercício de poder, Zeus institui o Reino da Justiça e liberta Prometeu –, ao
“Novíssimo Prometeu” resta apenas a ânsia de salvar-se, vendo a vida “lá embaixo”
transcorrer simples e cotidiana, impedido de redimir-se e de realizar, plenamente, qualquer
ação transformadora, uma vez que este Prometeu moderno, novíssimo, não tem a quem pedir
perdão. Observe-se, todavia, que esse posicionamento está de acordo com a própria atitude
prometéica valorizada no poema, uma vez que o mito de Prometeu conta a história do
despertar da consciência humana e, num sentido profundo, conforme Diel (1991), apresenta as
consequências da intelectualização que questiona os valores espirituais e sofre, em virtude
disso, a tendência ao esquecimento do sentido da vida (e dos sentidos e valores da tradição), a
qual, no entanto, transcorre normalmente. Dessa forma, a personagem que participa da intriga
adquire, ao mesmo tempo, a condição de ator e espectador, agindo sobre o mundo e sofrendo
o que o destino5 lhe impõe. É por essa razão que Prometeu tornou-se símbolo da resistência a
um sofrimento intenso e da força que resiste à opressão, pois acredita que é no desejo que está
a predição, portanto crê que o que deseja (“quis”, como diz o eu-lírico) acontecerá.
No poema, por não abandonar seus propósitos, Prometeu comete a falta e não pode
escapar da punição, uma vez que “a falta carrega consigo seu próprio castigo, formando uma
unidade” (DIEL, 1991, p. 230), o que se confirma pelo fato de que, no mito grego, é Hefesto,
símbolo da inteligência, quem acorrenta Prometeu, que também é símbolo da inteligência.
Desse modo, “o intelecto revoltado, por solicitação do espírito, é punido pelo próprio
intelecto: carrega a punição em si mesmo, inflige a si mesmo o castigo” (DIEL, 1991, p. 230)
e condena-se à pequenez do homem, soberbo, que não pode (e talvez não queira mesmo) pedir
perdão. E a permanência dessa condição já se presentifica no decorrer do poema, cuja
nasalidade consonântica em seu ritmo provoca um tom lamurioso e triste que perpassa o
caráter onírico do texto, acentuando o clima negativo.
Observamos, então, a própria relação do homem com o mito, nesse poema. Se, em um
momento, Prometeu foi visto como um deus derrotado, aqui, mesmo permanecendo preso ao
Cáucaso/Pão de Açúcar, mantém a crença de que os mortais podem buscar seu próprio
destino. Se se vê a derrota no castigo, é uma derrota que traz/trouxe novas perspectivas e que
põe o homem em relevo (GINZBURG, 1989).
Em “Novíssimo Prometeu”, o mito grego, mesmo estilizado, é retomado na íntegra,
todos os seus elementos estão presentes, e é essa reutilização do mitológico que o revaloriza,
renovando-o, de maneira que o antigo e o novo se refletem um no outro, reconhecem-se um
no outro; morte, temporalidade e história são reabilitadas, num processo que funde sentidos e
sentidos e torna possível a leitura (GAGNEBIN, 1994). Aliás, o fogo, elemento prometéico, é,
em seu aspecto mitológico, profundamente ambivalente, posto que destrói e renova,
simultaneamente, o mundo. Percebe-se, pois, que, ao recontar o mito, o poeta assume a
posição de rapsodo e reinstaura sua autoridade, valorizando o papel da autoria e buscando o
caráter sagrado (perdido) de sua atuação, destruindo e renovando o mito de Prometeu. Assim
como se dava com o rapsodo, o “eu”, identificado com a instância autoral, no poema, colocase na condição de quem testemunhou o fato que conta ou o escutou diretamente dos deuses,
5
Uma vez, Zeus; outra vez, as instituições ou as próprias dimensões limitadoras de um “eu” que deseja mais do
que a sabedoria.
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alguém que, portanto, é também um previdente (ou ainda “pré-vidente”, aquele que vê antes
dos demais); logo, também um Prometeu.
É exatamente essa identificação com o Prometeu do mito grego que nos leva à
próxima ocorrência do mito prometéico na obra muriliana. Ela se dá no poema “Amor –
Vida” (MENDES, 1994, p. 285), do livro A Poesia em Pânico (1936-1937). É necessário,
aqui, observar que, ainda que o mito de Prometeu esteja presente em vários momentos da obra
de Murilo Mendes, sua retomada nem sempre segue completamente a narrativa grega. Na
verdade, é apenas em “Novíssimo Prometeu” que o mito possui força de tema, ou seja, que
constitui o todo textual e mantém-se em unidade, ao passo que, nas demais ocorrências,
aparece, apenas, como motivo, isto é, como elemento que suscita a significação do original,
criando efeitos de sentido para o poema, sem que, contudo, seja fundador do todo textual.
Em “Amor – Vida”, o título pode ser relacionado ao caráter prometéico de valorização
da vida humana, sinal de amor e de busca de elevação do homem, o que lhe permitiria
alcançar a vida plena, e leva-nos a considerar que se instala um paralelismo, segundo o qual
“amor” e “vida” são elementos que se interpenetram e complementam-se. E essa é uma
acepção que toma o mito, também, como representação de uma verdade profunda da mente
(TÁVOLA, 1985), haja vista o fato de que, no texto, a relação “amor-vida” é universalizada
não apenas pelo paralelismo mencionado, mas também pela relação que o texto (e, mesmo, a
obra poética de Murilo Mendes como um todo) estabelece com outras culturas e Mitologias.
Observa-se, nesse poema, em seus três primeiros versos, que o “eu” se identifica com
Cristo, e essa relação perpassa quase todo o poema, à exceção dos versos 4, 5 e 9. A
influência prometéica, por sua vez, torna-se nítida no quarto e no quinto versos, em que lemos
“Eu fui o poeta que distribui os dons/ E que não recebe coisa alguma”, uma vez que esses
versos aludem à atitude de Prometeu que, levando o fogo à humanidade, levou-lhe as
condições básicas para tornar-se independente. Nota-se, também, que a alusão ao
Cristianismo permanece, na distribuição dos dons do Espírito Santo. Isso se justifica porque,
na Modernidade, Prometeu é associado ao próprio Cristo, como Deus sobrevivente que se
preocupa com o homem.
No nono verso, “Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu”, apesar da presença
explícita de semas ligados ao Cristianismo, veiculados pela oposição entre “inferno” e “céu”,
o fogo nos exige algumas considerações, por ser altamente simbólico no mito prometéico e,
aqui, ambíguo, já que pode ser associado às duas Mitologias. Enquanto, num primeiro
momento, o verso marca a revolta desse “eu” que nunca foi reconhecido por seus atos em prol
da humanidade, numa configuração profunda, é de fundamental importância, uma vez que sua
significação se estende desde o humano, em sua alma errante, até o Espírito divino. Dessa
forma, o fogo não só celebra a conciliação de contrários, tão valorizada e cultivada por Murilo
Mendes, mas representa a força capaz de regenerar periodicamente os seres. Desse modo, sua
relação se dá tanto com o divino quanto com o demoníaco, algo importante para a
compreensão de Prometeu.
Por um lado, ressalta o intuito de tirar o homem de sua cegueira e dar-lhe a capacidade
de ver e compreender o mundo. Aliás, em Ésquilo, isso fica explícito, pois Prometeu afirma,
soberbamente: “Antes de mim, eles [os homens] viam, mas viam mal; e ouviam, mas não
compreendiam” (ÉSQUILO, 1987, p. 123). Por outro lado, sua atitude de desafio aos deuses e
seu interesse em tornar o homem, também, um deus refletem uma rebeldia e uma altivez que
adquirem um tom profano, porque tiram dos deuses a (suposta) superioridade. Nesse sentido,
faz com que o homem não precise mais deles, o que altera a própria cosmogonia, visto que a
humanidade passa a ser fruto de si mesma, gestora de seu próprio destino, algo que nem
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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mesmo os deuses podiam controlar, conforme já havia observado o Prometeu grego
(ÉSQUILO, 1987), segundo o qual o próprio Zeus deveria, posteriormente, procurá-lo para
saber sobre seu futuro, porque, de acordo com Prometeu, Zeus é regido, sua vontade é, para
ele, a justiça. Na iminência de imprevistos golpes, a cólera indomável de Zeus haveria de se
aplacar, e ele haveria de procurar a amizade de Prometeu.
De certa forma, essa rebeldia é a forma por meio da qual os seres mais se assemelham
aos deuses, uma vez que, desse modo, aceitam participar do jogo de poderes que envolve os
seres divinos, em condição de igualdade. Nesse caso, a punição a Prometeu e, por extensão, à
humanidade, é resultado do descuido do intelecto para com o espírito, mesmo fator que
alimenta a altivez que faz o eu-lírico preferir o inferno ao céu, em “Amor – Vida”. No poema
em questão, o amor se manifesta na voz de Prometeu, como um ser vivo. Em atitude
prometéica, o eu-lírico assume que não se arrependeu de seus atos, mesmo tendo recebido a
punição. Esse é, na verdade, um aspecto recorrente no que se refere às representações de
Prometeu nos poemas de Murilo Mendes analisados até agora. Seu altruísmo e sua altivez são
elementos que colocam tanto o homem quanto o poeta frente à complexidade da vida, à
materialidade das coisas e à sua projeção da experiência vivencial, num “estado de veemência
perante a vida, seu absurdo enigma, sua infinitude de tempo e espaço – dimensões irreveladas
desse universo-esfinge que se propõe à ‘numerosa comunidade do desespero’, dos lúcidos
poetas” (ARAÚJO, 1972, p. 41). De certo modo, a complexidade do “eu” presentificada nesse
poema segue a tendência da poética muriliana, diante de um mundo desconjuntado, marcado
pelo caos, cuja única possibilidade de regeneração que o poeta vê está na tentativa de resgate
de valores absolutos.
Não é menor a perplexidade do “eu-Prometeu” em sua relação com o mundo no
próximo poema da obra de Murilo Mendes em que aparece a figura prometéica. “Botafogo”
(MENDES, 1994, p. 280), texto do livro Os Quatro Elementos (1935), também nos instiga, já
pelo título, pois, além de reafirmar sua identidade com a primeira fase do autor, na qual é
intensa a presença do Rio de Janeiro, assim como ocorre em “Novíssimo Prometeu”, da
mesma fase, esse título também nos leva a uma segmentação interessante. Há, em “Botafogo”,
não só uma referência a um bairro da cidade do Rio de Janeiro, mas também o resultado de
uma composição por justaposição formada por “bota” (verbo, no sentido de “pôr”) e “fogo”.
É significativa a sugestão de “pôr fogo”, logo “dar vida” ou “destruir”, em face de um mundo
caótico, que provoca, constantemente, o sofrimento do “eu”. Essa é, inclusive, uma atitude
transgressora, à altura do caráter transformador, ao mesmo tempo, sublime e perverso, de
Prometeu.
No poema “Botafogo”, o mito grego presentifica-se no quarto verso, em que lemos
“Um aeroplano bica a pedra amorosamente”, uma estilização que não nos impede de
reconhecer o texto mítico. Percebe-se, também, que o poema estabelece uma relação de
intratextualidade com “Novíssimo Prometeu”, pela presença do aeroplano como
figurativização do abutre, e pelo primeiro e terceiro versos, que retomam tanto o mar
(sereias6, peixes, etc.) quanto o cenário do Pão de Açúcar. Essa relação torna-se ainda mais
forte, se observarmos que a inversão na ordem da sentença que inicia o poema, isto é, o uso de
verbo seguido de sujeito, institui um ritmo que impele o leitor a não parar no ponto-final que
indica o fim do período. Com isso, organiza-se, no poema, outro ato de fala, que nos permite
fazer mais um corte na leitura dos primeiros versos, suspendendo-a no ponto-final e
6
Além disso, nota-se mais uma invocação mitológica, ainda no primeiro verso: as sereias estão, neste verso, no
mesmo paradigma de peixes, algas, etc.
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iniciando-a, novamente, no quarto verso, seguindo, desse modo, a sintaxe textual; ou, então,
lendo os quatro primeiros versos aos pares – “Desfilam algas sereias peixes e galeras/ E
legiões de homens desde a pré-história// Diante do Pão de Açúcar impassível./ Um aeroplano
bica a pedra amorosamente”. Essa leitura se justifica pelo que já dissemos e reforça-se ao
notarmos que o segundo verso termina por um complemento de lugar, e os complementos
adverbiais, em português, tendem a aparecer no final da sentença. Essa segunda leitura não
apenas reafirma a intratextualidade já mencionada, mas também recupera plenamente o
espaço presente em “Novíssimo Prometeu”, para, então, inovar. Em “Botafogo”, o aeroplano
não bica o fígado de Prometeu, bica a própria pedra, o Cáucaso/Pão de Açúcar, o que torna a
situação ainda mais dramática, dando-lhe um tom irônico, já que o faz “amorosamente”. Tal
oxímoro ressalta a intensidade da agressão, que tanto está presente no poema quanto é
mobilizada pela recuperação do mito grego.
É importante observar, pois, a significação que a pedra adquire no contexto do poema
“Botafogo” e do mito grego de Prometeu. De acordo com a Mitologia Grega (BULFINCH,
1965), diante das terríveis condições que reinavam na terra, Zeus resolveu destruir seus
habitantes e fazer surgir uma nova raça. Conta-se que apenas Deucalião e Pirra encontraram
refúgio e sobreviveram. Orientados pelos deuses, os dois deveriam repovoar a terra, jogando
os ossos de sua mãe (Terra) ao solo, ou seja, atirariam pedras ao chão. Ao serem atiradas,
essas pedras iam adquirindo forma humana e tornavam-se homens (as atiradas por Deucalião)
ou mulheres (as atiradas por Pirra). Considerando-se que Deucalião e Pirra descendem de
Prometeu, a pedra que é “agredida amorosamente”, no poema, se relaciona tanto a Prometeu,
quanto à própria humanidade, cuja filiação prometéica perpassa todos os tempos.
Esse aspecto caracteriza a poética plural, multifacetada, diversificada e totalizante de
Murilo Mendes. Corresponde, também, ao que o poeta diz em sua “Microdefinição do Autor”,
na qual afirma que dentro de si discutem “um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um
cristão péssimo, relaxado, um socialista amador” (MENDES, 1994, p. 45), isto é, admite ser
atraído pelo finito e pelo infinito, pelas dissonâncias da História e pelo giro das imagens, o
que vem confirmar nossa interpretação e enriquecer o trabalho do poeta, que se utiliza de
diversas Mitologias, empregando, inclusive, arquétipos universais, por vezes aceitos como
característicos do próprio ser humano.
A propósito do uso das imagens, que o poeta admite valorizar – o que verificamos com
uma leitura rápida de seu(s) poema(s) –, sua recorrência também é significativa. Segundo
Trintin (1978, p. 45), na poesia muriliana, “o pensamento poético que é gerado pela
imaginação criadora [...] não explica nem interpreta a realidade, lança luzes sobre ela,
mostrando-a por nexos analógicos, metafóricos ou alegóricos”. De certo modo, faz-se,
portanto, pelo fragmento, o que, mais uma vez, situa seu trabalho no contexto da
Modernidade. Nesse sentido, a “imaginação”, que é a criação de imagens, está na base de sua
linguagem literária. Verifica-se, pois, que a textualização calcada na metáfora semântica
contribui para garantir a relação entre o texto mítico e o poema, em sua obra, uma vez que
reestrutura, semanticamente, os elementos envolvidos na metaforização, na medida em que
renova o signo, sem, no entanto, tirar a integridade dos signos que constituíram a metáfora.
Tal procedimento constrói o elo que mantém as semelhanças entre o Prometeu grego e o
muriliano. Dessa forma, o poeta usa o poder criador da linguagem para chegar ao mito, ao
sagrado, ao cosmológico.
“Natureza” (MENDES, 1994, p. 377), poema de Mundo Enigma (1942), no qual o
mito de Prometeu aparece de forma indireta, porém constituindo a base figurativa do texto,
apresenta uma relação com “Botafogo”, porque também emprega o texto mítico, atualizando81 | P á g i n a
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o, metaforicamente, por meio da imagem. Além disso, da mesma forma que, neste texto
tínhamos a pedra, naquele temos a montanha – logo, pedra também –, que recupera o contexto
mitológico, atribuindo-lhe novos sentidos.
Em “Natureza”, temos, novamente, a perplexidade do “eu” ante o “Prometeuhumanidade”, “montanhas lavadas”, o qual, apesar de resistir ao tempo, está petrificado, ou
seja, não evoluiu do estado primordial e, por isso mesmo, permanece preso, impotente. Além
dessa impotência, o “Prometeu-montanha” está degradado (“montanhas ‘lavadas’”), ou seja,
não traz mais consigo o princípio e o objetivo de elevação do ser humano que portava na
origem mítica. A “montanha lavada” é uma pedra sem identidade, sem elementos que a
singularizem, “insípida”. Sua relação com o mito recupera, basicamente, o sofrimento, uma
vez que o bicar do abutre é incessante. Impotente, esse Prometeu está envilecido e, por ser
“montanha”, está impossibilitado de elevar-se, pois está preso à terra. Desse modo, o intelecto
permanece distante do espírito e, enquanto não se fizer a comunhão “intelecto-espírito”, esse
Prometeu se verá aniquilado por seu próprio ato. E o caráter totalizador da poesia muriliana
universaliza a angústia prometéica de estar preso ao Cáucaso, iconizando-a na própria
natureza e expandindo, dessa forma, a negatividade para todo o espaço representado.
Há que ressaltar que a imaginação, ou seja, a criação de imagens que, de certa forma,
metaforiza o mito de Prometeu, no poema, vai ao encontro da concepção muriliana de poesia
híbrida, que relaciona várias formas de expressão, como poesia, pintura, e escultura, e calcase na expectativa criadora que busca ampliar a consciência humana. Além disso, por meio de
metaforizações que fundem elementos sócio-históricos e mitológicos, o poeta manifesta a
corrupção humana e seu distanciamento, cada vez maior, dos valores espirituais. Essa
percepção do sujeito, representado pelo eu-lírico, em “Natureza”, revela um posicionamento
em prol de uma arte criadora e combinatória, cuja função básica é transfigurar a realidade, por
meio de uma poesia que leva a metáfora às últimas consequências. Tal recurso lhe permite
ressignificar não só a linguagem literária, mas o próprio mito grego, trazido, perfeitamente,
para a Modernidade, época em que as angústias prometéicas permanecem, mas são
figurativizadas em elementos da própria Modernidade – aviões, guerras, ditadores, etc. Cabe,
pois, observar que a figura de Prometeu, nos poemas de Murilo Mendes, sofre, por vezes, um
processo de coisificação, aparecendo como pedra, montanha, etc., por meio de objetos,
elementos da natureza, metonímia, fragmentos ou releituras do mito, etc. Essa criação em
mosaico, com a supressão de passagens intermediárias entre os textos envolvidos na
intertextualidade, institui uma atmosfera menos lógica, “e, dentro do pensamento utópico do
poeta, ela pode representar a antecipação de um estado em que os conhecimentos científico e
poético possam caminhar juntos” (MOURA, 1995, p. 30).
Também do livro Mundo Enigma (1942) é o poema “A Noite de Junho” (MENDES,
1994, p. 382-383), no qual aparece, outra vez, o mito de Prometeu. Nesse poema, o mito
prometéico é retomado por metonímia, a partir do motivo da orfandade. Nele, o “eu” revela:
“Bem cedo me fiz órfão/ Para que todos possam bicar meu coração/ E o coqueiro dê violetas”.
Nele, o eu-lírico compara-se a Prometeu, que, após ter roubado o fogo, foi rejeitado por Zeus
e, a partir de então, padeceu seu sofrimento diário preso ao Cáucaso. A crítica já associou
esses versos à biografia do autor, que perdeu a mãe muito cedo, com apenas um ano de idade.
Tais versos representariam, então, sua cosmogonia. No poema, porém, há que observar que,
mais que recuperar o mito, o “eu” presentifica-o, de modo a transferir para si o sofrimento de
Prometeu e torná-lo atual, colocando-o, mesmo, como meta a ser alcançada por todos, como
se explicita pela oração adverbial de finalidade, “Para que todos possam bicar meu pobre
coração”. Tomam-se, desse modo, os outros (“todos”) como a humanidade rebelde e
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independente que vira as costas a quem dela necessita (o “eu”), no caso, Prometeu
“acorrentado-órfão”, que, em razão de seu estado, se vê impotente e necessita de ajuda, mas
nada obtém dos que o rodeiam, além das sofridas bicadas, o que também pode identificar-se
com a condição do próprio poeta, situado na Modernidade, a qual já não oferece lugar para o
poeta.
O pessimismo do eu-lírico, nesse poema, manifesta a visão crítica da poesia de Murilo
Mendes diante de questões que afligem a humanidade de seu tempo. Como sabemos, Mundo
Enigma (1942) surge numa época cuja tensão tornou-se presente em toda a literatura mundial
(as guerras mundiais). Vemos, então, que, no poema “A noite de Junho”, o sofrimento
prometéico é intensificado ainda mais, porque não é apenas físico, mas incide na interioridade
(tanto física quanto figurada) do ser, no “coração”. Esse sofrimento é tão profundo, marcante
e significativo, que resulta no onírico verso “E o coqueiro dê violetas”. Mas é exatamente o
estado alucinatório que intensifica a relação entre o órfão Prometeu e o poeta, e o que permite
a este estabelecer aproximações e obter associações entre figuras aparentemente impossíveis,
como coqueiros que dão violetas, mas que, segundo Friedrich (1978), obtêm uma carga
semântica forte e suficientemente lógica dentro do mundo individual criado pelas imagens
poéticas do poeta moderno. Nota-se, pois, que a presença do “Prometeu-criador” é
fundamental à concepção de poesia em Murilo Mendes e, ao longo de sua obra, é buscada de
várias formas, quase que obsessivamente. Tal reiteração suscita o simbolismo mítico na
subjetividade de seus poemas, pela retomada tanto da face elevada quanto da face negativa
associadas à tradição prometéica.
Essa concepção, altamente simbólica e significativa, que, no fundo, perpassa todos os
textos até agora vistos, é a base de sustentação do próximo poema em que aparece o tema
prometéico na obra muriliana. Poema em prosa, “O Fósforo” (MENDES, 1994, p. 1007), do
livro Poliedro (1965-1966), está na seção “Microlição de Coisas”. Sua consciência simbólica,
figurativa, aparece já no início do texto, em que se afirma que, ao acender um fósforo, se
acende Prometeu, ou seja, que a presença de qualquer luz mobiliza, para o “eu”, toda a
tradição prometéica, retomada, positivamente, como elemento purificador, “a liquidação dos
falsos deuses”. Luciana Estegagno Picchio (apud Sócio, 2001, p. 20) diz que “Murilo
interessa-se por tudo que é novo em arte e literatura. E o novo não é necessariamente o de
hoje. [...] Os quatro setores de Poliedro levam [...] o canto de um poeta que [...] procura
comunicar [...] temas universais, eternos.”
O fósforo aparece, então, como identidade prometéica representativa da crença
regeneradora de sua força, como possibilidade de elevação que sobrevive e que, “quando
chamado e provocado, polêmico est[á], esclarecendo tudo.” Dessa forma, o poeta identifica
sua poesia com o ideal prometéico, já que constrói uma obra cuja “poesia liberdade” é
constantemente proposta, o que lhe permite exprimir-se acerca dos acontecimentos
contemporâneos que a rodeiam. E, da mesma forma que Prometeu, o “eu-Prometeu” também
se revela altivo e rebelde o suficiente para colocar-se contra a ordem negativa vigente, contra
o Fascismo, cujas aspas em “‘ordem’ facista”, como aparece no poema “O fósforo”, sugerem
sua visão de desordem e incômodo com o sistema autoritário e, mesmo, contra o “ditador do
mundo”, já apresentado, anteriormente, em “Novíssimo Prometeu”.
Observamos que, em “O fósforo”, a força prometéica é representada de forma
vigorosa e decidida, distintamente de sua maneira pessimista de alguns poemas anteriores. A
crença do eu-lírico no dia do racional, do entendimento universal, de Prometeu totalizado,
recupera o sentido mítico de comunhão entre corpo e espírito, que, seguindo a ética
apresentada no poema, dá ao homem a possibilidade de elevar-se e recuperar seu caráter
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divino primordial. E o poeta procura representar essa possibilidade, metonimicamente, por
meio do fósforo, que é, segundo o eu-lírico, “o portador mais antigo da tradição divina”, ou
seja, a representação contemporânea do gesto de Prometeu.
Verificamos que o poeta utiliza-se da estrutura mais simples da língua – determinante
e determinado, artigo e substantivo –, “o fósforo”, para, logo em seguida, constituir o
sintagma “fósforo fogo” e recuperar o mito. Tal procedimento representa, segundo Sócio
(2001), a retomada de fenômenos míticos e abstratos, o que possibilita a reestruturação do
universo divino que a Modernidade renega. Estamos diante de uma arte formadora, já na
própria estrutura linguística, uma vez que mito, linguagem e arte formam uma unidade
reveladora da essencialidade, pois a soma “língua e mito” constitui o todo (CASSIRER,
1972), e a nomeação realiza essa totalidade das origens, que o eu-lírico propõe que seja não
apenas recuperada, mas cultivada. Para ele, o que merece atenção é o fogo dos ancestrais, a
sabedoria e a experiência dotada dessa sabedoria, não as cinzas, sendo o fogo o que se deve
guardar, conforme lemos na citação que faz de Jaurès, no poema “O fósforo”. O que se revela,
em “O fósforo”, é a relação entre prosa e poesia como possibilidade renovadora da tradição
mitológica, construída essencialmente pela metaforização, exemplo de criação, o que se
mostra bastante coerente com o ideal prometéico recuperado por Murilo Mendes.
Como estamos verificando, o trabalho dialético com os lados opostos do mito, tanto
dentro de cada poema quanto na obra como um todo, na poética de Murilo Mendes, contribui
para a busca da palavra poética que sintetiza o passado e o presente e leva ao futuro, razão por
que ora presenciamos um “eu” altivo e cheio de esperança, ora perplexo e incapaz de tudo.
No último poema de sua obra em que verificamos a presença prometéica, “Hans
Magnus Enzensberger” (MENDES, 1994, p. 1535), por exemplo, vemos ressaltado o caráter
exacerbado do “eu-Prometeu”, sem perspectivas diante de sua contemporaneidade e de sua
condição.
O Prometeu “Hans Magnus Enzensberger”, do livro Ipotesi (1968), é retomado em um
grau máximo de impotência. Ser “de periferia”, estar à margem do Olimpo, da sociedade, do
mundo, sem o fogo da sabedoria ou, mesmo, a caixa de fósforos, aponta para um mundo
moderno, representado no poema, em que o sagrado e o maravilhoso não têm lugar. Tal
situação cria o pior dos mundos, e o “eu” sente-se deslocado, “de periferia”. Essa deformidade
é conotada no próprio Prometeu, “frustrado”, sentindo-se “um eco perdido”.
Enzensberber é um dos intelectuais europeus mais importantes e polêmicos do pósguerra e seus escritos estão marcados por certo sentimento de impotência (MOURA, 1995).
Tal fato é significativo, visto que revela a capacidade do “eu” e, de certo modo, do próprio
poeta, de identificar as mazelas de seu universo, para, desse modo, estabelecer contato com o
mito grego, numa fusão de tempos, crenças e História, em que o tema de Prometeu é
associado à própria condição dos poetas e da poesia na Modernidade, “sós”, no mundo
moderno. Então, invocação do mito se faz potencialmente importante por servir de espécie de
fuga ou de consolo, pelo fato de o poeta sentir-se desconfortável e, de certa forma, castigado,
preso, no mundo moderno em que vive. O mito aparece, no último poema, diretamente
nomeado.
Ao relacionar uma história mitológica a uma criação pessoal, o poeta obtém, ainda,
uma construção nova, que vai além dos elementos míticos retomados, num esquema “chavefechadura”, o que é imprescindível para que o próprio universo de “Prometeu”, retomado nos
poemas de Murilo Mendes, (re)signifique, na medida em que habilita a experiência estética
através do fragmento, superpondo tempos, o agora da obra ao agora da compreensão da obra,
num espaço que torna visíveis os sujeitos da história e a vivência dos sujeitos na historia.
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Prometeu: ecos recuperados
O mito de Prometeu, relido e transfigurado por Murilo Mendes, apresentado ao longo
de toda a sua trajetória poética, aparece pela primeira vez em “Novíssimo Prometeu” (19301933) e pela última em “Hans Magnus Enzensberger” (1968) e é uma das figuras-chave para
se entender toda a proposta poética muriliana. Na particularização que o poeta faz do mito
grego de Prometeu, torna-o mais próximo de sua contemporaneidade. Murilo Mendes envolve
a narrativa mítica ao seu próprio ato de criação, um desafio à sua poética. A relação que se
estabelece com a história grega de Prometeu é forte por seu caráter criador, altivo e
desafiador. Dessa forma, a recuperação do mito colabora, ainda, para o posicionamento do
poeta em face de seu fazer poético e da maneira como ele o concebe, um ato de criação
pautado no trabalho, na ação e na construção que lhe possibilitam associar elementos
aparentemente díspares e buscar uma unidade que dê à sua poesia uma forma transfiguradora
da realidade.
Por meio de uma linguagem construída sobre bases metafóricas, Murilo Mendes
trabalha de forma que consiga relacionar a temática aos procedimentos artísticos empregados
em sua escrita, avançando e construindo, desse modo, uma poesia moderna que dialoga tanto
com as propostas do Modernismo Brasileiro quanto com os Novisimi italianos. Seu
posicionamento como escritor nos apresenta sua leitura da Modernidade e, mesmo, sua
subjetividade, sem deixar para traz a longa História do homem, de sua transformação e de
seus estágios, na constante busca pelo progresso e pela evolução, dentro da tradição ocidental.
Recorrendo ao mito de Prometeu, o poeta o atualiza, representando-o ora sob uma ótica
otimista, ora sob uma impotência e uma negatividade exacerbadas.
Podemos, por fim, considerar esta uma característica importante na representação da
trajetória prometéica da poética muriliana: a retomada do mito por meio de imagens e de
outras linguagens, como a pintura e a escultura, além da citação, se não explícita, mas clara e
objetiva, da passagem mítica. Não podemos nos esquecer, no entanto, de que tudo isso é uma
questão de predominância, e não uma perspectiva estanque. Enquanto os primeiros poemas
estão mais voltados para o ato criador, os últimos intensificam sua relação com a História e
com a condição, ao mesmo tempo, múltipla, por sua liberdade de construir seu próprio
destino, à maneira Prometéica do homem, e sem perspectiva, dado o caráter de preocupação e
angústia do homem do pós-segunda guerra, o que, mais uma vez, aproxima suas
representações de Prometeu das do Prometeu mítico grego.
Em seu trabalho poético, Murilo Mendes associa uma multiplicidade de idéias,
imagens e sensações que originam uma verdadeira dicção lírica, calcada tanto no elemento
novo quanto no cotidiano. Para isso, o poeta identifica ao mito prometéico a realidade dentro
da qual se discute o sentido da experiência humana do homem ocidental do século XX,
especialmente do entreguerras a meados da segunda metade do século. Essa recorrência ao/do
mito de Prometeu, em sua poesia, projeta-se numa circularidade que faz o mito grego
representar a própria realidade designada em seus poemas e as relações de poder percebidas
ou vivenciadas pelo eu-lírico.
THE PROMETHEUS’ MYTH IN THE POETIC TRAJECTORY BY MURILO MENDES
ABSTRACT: In this article, we study the recurrence of the Prometheus myth in Murilo Mendes’s poetry. The
poet, considering that Mythology, to come around senses of this myth, through references and updates, and
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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composes a modern poetry, capable of joining both past and present, imagination and reality, tradition and
modernity.
KEYWORDS: Murilo Mendes. Prometheus myth. Brazilian poetry. Modernist poetry.
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DRUMMOND: BIOGRAFIA, REALISMO E MODERNIDADE
Albertina VICENTINI1
Maria Elizete de Azevedo FAYAD2
RESUMO: O texto discute Carlos Drummond de Andrade como um poeta realista moderno, que sempre manteve sua
realidade subjetiva e biográfica e o mundo de seu tempo presente histórico – o século XX – como matéria sua poesia;
também, sempre manteve a confidência como a sua forma de encorpar essa matéria. Para efetivar esse amálgama,
garantiu a modernidade de um eu-lírico em alteridade com o mundo, praticando um realismo em que tudo se relaciona
(inclusive o seu autorretrato) com o processo geral da vida e com o processo geral de uma vida específica, imersa num
mundo que não pretende seja somente representado, mas funcional. É por isso que Otto Maria Carpeaux, lúcida e
paradoxalmente, pôde dizer de sua poesia que ela é uma poesia subjetiva e objetiva ao mesmo tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Biografia. Realismo. Carlos Drummond de Andrade.
O que hipotetizamos é Carlos Drummond de Andrade como um poeta realista moderno, por
mais paradoxal que uma afirmativa dessa possa parecer, quando a crítica, de modo geral, desdenha
o realismo como uma posição tradicional de qualquer poeta (no mínimo considerado engajado) a
favor do autotelismo da poesia moderna. Dizemos isso porque Drummond é um poeta que sempre
manteve, explicitamente, as suas duas ou três cidades (Itabira, Belo Horizonte e Rio de Janeiro) e o
mundo de seu tempo presente histórico – o século XX – como matéria sua poesia; mas também
sempre manteve a autobiografia, a sua realidade interior e biográfica, como forma de encorpar essa
matéria.
Além disso, e talvez por isso, Otto Maria Carpeaux (2000, p.xxx) disse dele: “A poesia de
Carlos Drummond de Andrade, expressão duma alma muito pessoal, é poesia objetiva”.
Drummond é, então, um poeta subjetivo e objetivo ao mesmo tempo.
Tomemos o seu primeiro livro Alguma Poesia (1974) como exemplo e já se pode ver que o
primeiro poema – “Poema de 7 faces” – corrobora essa assertiva do subjetivo e objetivo. O
desenho do poeta é uma mescla desses dois pontos de vista, porque é um poema que se abre com a
afirmação do que se é (primeira estrofe), um gauche na vida, a que se seguem três estrofes
contemplativas, curiosas da paisagem humana e urbana - as casas, o bonde e o homem -, de forma
mais ou menos impessoal, objetiva e informativa. Essas estrofes são seguidas por uma súplica
bíblica intertextual (“Meu Deus, por que me abandonaste!”), uma assertiva irônica sobre a poesia
(“Raimundo e mundo” seriam uma rima meramente “abstrata”), uma ironia trágica ao estado do
mundo (“sem solução”), para compor uma última e sétima face, confidencial, invocando o leitor
(“eu não devia te dizer”), mas também irônica e sentimental do romantismo – “essa lua e esse
conhaque botam a gente comovido como o diabo”.
A estilística do poema é ainda mesclada: pelo tom narrativo tradicional oral (“Quando eu
nasci, um anjo torto desses”), pelo discurso figurado/metonímico da literatura (“as casas espiam os
homens”), pela metonímia modernista paródica oswaldiana (“pernas brancas pretas amarelas, para
1
PUC-GO – Pontifica Universidade Católica - Mestrado em Letras - Departamento de Letras. Goiânia – GO Brasil. 74180-190. E-mail: [email protected] e/ou [email protected].
2
UEG-GO – Universidade Estadual de Goiás - Faculdade de Letras Cora Coralina - Goiás, GO, Brasil. 74180-190.
[email protected].
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que tanta perna”), pela paródia azevediana (“essa lua e esse conhaque”), pela fala coloquial
objetiva (“o homem é sério, simples e forte”), pela fala coloquial corriqueira (“botam a gente
comovido como o diabo”).
A face, ou as faces, que são sete, cada qual com sua estrofe, é o retrato do conteúdo e
forma, das preferências e estilos com que o poeta seguirá sua trajetória poética: coloquialidade,
ironia, seriedade, ironia trágica, ironia sentimental, humana, etc.
‘Face’ ainda é expressão, semblante, rosto (identidade, portanto), fachada, cada um dos
aspectos com que o eu-poético, doravante, irá trabalhar como matéria e forma literárias.
Ao fim do poema, a comoção lírica sobre a matéria, como disposição e tessitura: “Comoção
de minha vida”, como já dissera Mário de Andrade.
O segundo poema do livro continua o retrato do poeta. “Infância” é um poema
autobiográfico e remete à história do indivíduo criança que, no quarto poema, será já um adulto
que pertence a uma coletividade maior, a nação – “também já fui brasileiro como vocês”.
Depois, seguem restos de namoro juvenil (“Toada do amor”), observação da vida rotineira
do trabalho à sua volta (“Construção”) e “Europa, França e Bahia” – geografia e mundo que nunca
foram conhecidos a não ser pelos livros que o eu-poético, num gesto ainda autobiográfico, leu e
que estende ao hino que é de todos dessa terra que tem palmeiras (“Canção do Exílio”). Locais das
Minas Gerais antigas e da Minas do presente são descritos (Sabará, Belo Horizonte, Caeté, São
João Del Rei, Itabira), Nova Friburgo esquecida e a cidade grande aparece, afinal, sob o impacto
do seu mundo - “fios nervos faíscas”, poluição, rixas, paisagem, violência, assassinatos, vigarices no coração do poeta comovido, mas assustado/perplexo.
Aparecem então as nostalgias da terra (de viúva) e um “Natal” cujas ações e orações são
diferentes, e que iniciam o poeta em sua vida na cidade grande, que mantém a hegemonia cultural
frente à identidade tímida e provinciana dos poetas hierárquica e humorísticamente classificados
em municipais, estaduais e federais (“Política literária”).
Daí a pouco, encontra o poeta a sua “Pedra no meio do caminho” (sobre a qual, mais tarde,
voltará para dizer que restara: dos seus “passos caprichosos na vida porque o resto se esfumaça, é
que havia uma pedra no meio do caminho”. E que pedra!) e segue dos seus domingos rotineiros à
vivência da cidade na sua política barata e hipócrita (“Política”), na sua vida burguesa (“Sweethome”), no seu trabalho (“Jornal”), na sua solidão de poeta melancólico frente à futilidade das
“Notas Sociais”.
Dessa forma, num insight de solução raimundiana, vem-lhe a vontade de se matar – “Foi no
Rio .... a cidade sou eu” – quando compara os “pobres jardins ... do sertão”, as “cidadezinhas
quaisquer” do interior, a sua família e as suas contradições.
E resta-lhe a essa altura ser “sobrevivente” – deslocado e gauche - quando afirma, perplexo:
“Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade/ há máquinas
terrivelmente complicadas para as necessidades simples/ os homens não melhoraram e matam-se
como percevejos” (“O Sobrevivente”) e “caçam-se como se fosse uma piada” (“Anedota
Búlgara”).
Não só ele é uma contradição, um deslocado. O mundo está deslocado, o poeta encontra o
tempo presente de “homens partidos”.
Novas lembranças do mundo deixado atrás, no tempo e no espaço – retrato na parede -, e o
tempo presente reaparece na Revolução de 30.
E resta outra vez o poeta com a poesia e explica: “Meu verso é minha consolação”,
compensação, cachaça, vício. Verso às vezes irônico, mas “sempre triste”, porque o poeta chora.
Ah! Porque é filho de fazendeiro (e coronel de escravos, patriarcal) e porque tem uma “sen-si-bi-li-
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da-de” que o faz vacilar (“no elevador, penso na roça; na roça, no elevador”). “Quem me fez assim
foi minha gente e minha terra!”, assume.
O livro termina, e o que se tem, de fato, é um retrato do gauche. Um retrato – imagem
recorrente na obra de Drummond – que é escrita autobiográfica, mas, ao mesmo tempo, é também
objetividade para com a cidade grande, a realidade, o mundo vasto (embora o coração seja mais
vasto ainda), o tempo presente e o homem precário (tímido, perplexo) dentro da realidade precária.
Vida, tempo e histórias reais.
O retrato ou o autorretrato é uma forma de escrita de si – forma autobiográfica - próxima da
lírica, que, entre outras características, mantém: a) a de não ser uma livre invenção romanesca; b) a
de buscar o conhecimento de si; c) a de ser uma forma que retém uma seleção de elementos, coisas
ou acontecimentos em organização mais interdependente que a do diário e menos que a das
memórias; d) que tenta captar a essência de uma vida; e) que diz quem se é.
Se a sua forma é justaposta - embora coerente e organizada, porque é das partes que se faz o
todo – e se efetiva como montagem, essa não só é a forma que Drummond usará ao longo de seus
poemas (até Boitempo), mas também é a própria forma da poesia em geral, repartida em pequenos
universos a que chamamos poemas. E mais: se ele dispõe retratos de família, o pai, a mãe, o irmão,
Itabira, a sua vida inaciana, a sua ida para Belo Horizonte, suas leituras e companheiros, ele coloca,
ao lado disso, o mundo que encontrou à sua frente, a forma como ele o viu para assinalar-se quem
é: um gauche frente a tudo que, de sua vez, também está deslocado.
O retrato drummondiano, assim como o gauche que ele se autoaponta, não são, portanto,
só a história de uma vida. Ele é gauche tanto quanto o mundo de certa forma o é. O retrato dele e
do mundo são traçados em sua poesia inicial.
Mas Alguma poesia é um livro ainda incipiente, embora já mantenha as coordenadas gerais
da obra do poeta (o poeta é tautológico de si, persegue por toda a vida poucos temas, não se sabe?).
Com Sentimento do Mundo, Rosa do Povo, José, Lição de Coisas (1974) essa tautologia se
estende. E, se superficial e vacilante ainda em Alguma Poesia, para frente alcançará uma densidade
jamais alcançada na poesia brasileira. O poeta itabirano, gradativamente, vai abrindo seus olhos
para o seu tempo histórico (de vida pessoal e de mundo), complexificando a sua intimidade na
estruturação da própria vida, na temporalidade medida em tardes, noites, mas também em passado
e presente (e futuro), família, gerações, classes, raízes, contradições sociais etc. Mistura a sua
biografia na biografia de seu tempo/espaço, longe do mero sensualismo e perto das concepções
elaboradas do pensamento que enxerga o mundo e a si no processo da vida, juntando os elos
temporais coletivos com os pessoais, com os espaços em que vive e viveu, demonstrando que esse
amálgama que ele promove e avalia, e que problematiza a vida (já incluída a sua vida na dos
homens de um tempo), é, fundamentalmente, um processo necessário, isto é, longe do arbitrário, da
invenção, da fantasia, da crítica partidária, da racionalidade ou da emoção abstratas. As conhecidas
assertivas drummondianas dos “ombros que suportam o mundo”, do poeta da “vida presente”, do
“vamos de mãos dadas”, do ‘tempo de homens partidos’ ou do retrato de Itabira‘que dói’ na parede
são a de um homem que assume a sua vida pessoal autobiografada como história humana de
vínculos indissolúveis com o tempo e com o mundo, com os espaços itabiranos e universais,
internacionais, conferindo materialidade, concretude e humanismo à sua produção e invenção
literárias, através da biografia explícita que nela coloca mesmo que de forma dispersa – do
autorretrato às memórias.
E nisso vai criando a sua objetividade – com o mundo, o tempo e si-mesmo, como
assinalava Carpeaux - e fazendo-se poeta subjetivo, que monta seu autorretrato de gauche, e
objetivo (realista) ao mesmo tempo.
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Como poeta objetivo, essa mesma problematização de vida (sua e da vida humana), a
abordagem do espaço e da história, de sua unidade e interpretação – o local deixando de ser local
indeterminado porque o acontecimento deixa de ser irreal -, a sua história sendo a história de um
homem concreto, num espaço concreto, real (até pelas tonalidades autobiográficas que aparecem
na sua obra), que vive num tempo determinado, num mundo determinado, apontam que o seu
material de poesia se aproxima do da prosa narrativa. A poesia, para condensar-se, necessita de
certo grau de abstração. Poesia é síntese, não expansão de totalidade de mundo, como se dá na
prosa narrativa; da mesma sorte, a modernidade aponta para uma poesia dissonante, hermética,
autônoma e não presa aos ditames da História, o que inviabiliza uma poesia realista na
modernidade. Como juntar isso, então, em Carlos Drummond? Parece que de duas formas: a
substância de seu conteúdo e o eu-lírico que ele promove.
A poesia tradicional e seus entendimentos marcaram certa concepção de lírica nas
categorias hegelianas da subjetividade, unidade e estado de ânimo do poeta frente a uma situação
da realidade (HEGEL, 1976). Tais categorias significavam dizer que, da análise da poesia,
deveriam resultar não só a percepção das condições que constituem a subjetividade lírica através
das expressões figurativas do poema, mas também a subjetividade (eu poético) do poeta
enunciador, numa elucidação permanente (e, pois, idealista) do processo lírico.
A poesia de Carlos Drummond, segundo parece, como uma de suas formas, responde contra
o idealismo dessa tradição se exercitando numa matéria concreta que acaba por unificar a sua obra
sem despojá-la da subjetividade, que aparece de forma nítida, por exemplo, no seu
confessionalismo – poesia também subjetiva (claro que se entende ser esta uma dentre as múltiplas
respostas que Drummond deu a esse idealismo). Mas não é só isso.
Em Drummond encontra-se uma poesia centralizada no acento do gênero prosaico do poeta,
prosaico aqui entendido não como tema ou uso da linguagem coloquial - porque a vida prosaica e
corriqueira é tema dele e de todos os modernistas de sua época e a coloquialidade uma sua forma
expressa –, mas como utilização de categorias da prosa narrativa, categorias da contigüidade e não
da equivalência, especialmente aquelas do romance, que garantem caracteres (retratos), ações,
tempo, espaço (independentemente se o poema é narrativo ou não), dentro, no caso drummondiano,
de um realismo, em que tudo se relaciona (inclusive a própria biografia) com o processo geral da
vida. Com a nota de que se relaciona com o processo geral de uma vida específica imersa num
mundo que não pretende seja representado, mas também real (porque é parte de um biografia),
preso ao tempo “presente” – o século XX.
Hipotetizamos, então, que a substância do conteúdo3 que mantém a obra drummondiana é
densa o suficiente para o romance e não só para a poesia, embora, no entanto, seja por essa
condensada, ritmada e metaforizada enquanto forma desse mesmo conteúdo.
Quando Mikhail Bakhtin (1992) discute o romance biográfico e o romance realista de
formação, ele alude a certas características importantes do realismo e da matéria do romance. Diz
que o enredo do romance biográfico
não se baseia em desvios (provas) em relação ao curso típico e normal de uma vida, mas
em momentos típicos e fundamentais de qualquer vida humana: o nascimento, a infância,
os anos de estudos (...) O tempo biográfico é o processo geral da vida participando da vida
do biografado e lhe é circunscrito, não reproduzível e irreversível. (BAKHTIN, 1992,
p.232)
3
Estamos nos utilizando aqui da distinção hjelmsleviana de forma e substância do conteúdo e da expressão.
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Chamamos a atenção para o fato de que não é do sujeito participando do mundo que se fala
aqui, mas do inverso, isto é, “do processo geral da vida participando da vida” do sujeito. Isso
significa que a situação, o nascimento, os acontecimentos contemporâneos determinam
consubstancialmente a vida, modelam o seu destino (ainda que este crie ou produza sob ela), ou
seja, o mundo não é cenário do homem, mas um elemento funcional junto à sua vida que, dessa
forma, reveste-o de traços quer positivos, quer negativos que o heroificam, mas também o antiheroificam (tornam-no, no caso drummondiano, um gauche, por exemplo).
Segundo isso, pergunta-se: o que, dentre essas afirmações, embora do romance, não se pode
aplicar à obra drummondiana quanto à substância de seu conteúdo?
Ademais, assim como faz o romance, Drummond oferece ao seu leitor uma imagem total do
mundo e da sua vida (seu tempo e seu retrato pessoal) pelo ângulo de uma época considerada em
sua integridade. Os acontecimentos representados em sua poesia substituem, em certo sentido, a
vida de uma época, ou seja, fornecem um substituto ao todo da realidade, o que também é matéria
de romance e não de poesia.
Elliot (1922), em seu artigo sobre Hamlet, pressupôs o poema como um correlato objetivo
do intelecto, sentimentos, imaginação e emoções do poeta, uma manifestação da necessidade do
suporte do real na poesia, ou seja, o poema significa o sujeito indiretamente, através das formas
analógicas dos conteúdos que cria, analogia aqui entendida no sentido lato de correlação e não
necessariamente de semelhança..
O poeta, nesse sentido, é as formas e a substância do conteúdo que cria. Através das
metáforas, das comparações, das repetições, dos paralelismos etc. com que ele aparece em seus
poemas (de forma bem multiplicada, portanto, e por isso mesmo distante de uma subjetividade
idêntica a si), nós podemos figurar o estado afetivo que ele evoca e perceber a sua própria
figuração.
Nesse mesmo sentido, e no sentido da contigüidade, diz Jenny (2003):
Não somente o enunciado lírico propõe as figurações de uma experiência, mas nelas
organiza a sucessão. Da mesma forma que se pode dizer que o gênero narrativo é
estruturado por uma sucessão de ações orientadas logicamente e cronologicamente para
um fim, também o gênero poético se constrói como uma sucessão de figurações muitas
vezes analógicas. [...] Através dela, o poema nos propõe muitas vezes uma transformação.
Faz-nos passar de uma figuração de partida a uma figuração final, através de certo número
de etapas intermediárias.4 (Grifos do autor)
Ao que podemos acrescentar que ler um poema é também acolher as transformações do
sujeito ou dos sujeitos (que são múltiplos) que o escreve. E quando o poeta, como Drummond,
alude à sua ‘biografia’ e ao seu ‘tempo presente’ em seus poemas, essa figuração final caminha
para a sua obra em seu conjunto, e não só para alguns poemas, ou seja, caminha para a
objetividade, para o realismo.
De outro lado, no entanto, não estaria Drummond, nesse sentido, buscando aquela tradição
hegeliana que endossa uma subjetividade única do poeta frente ao mundo, a que aplica seus
significados e donde plasma seus estados d’alma?
4
Non seulement l’énoncé lyrique propose des figurations d’une experience, mais il en organize la succession. De
même qu’on peut dire que le genre narratif est structuré par une succession d’actions orientées logiquement et
chronologiquement vers une fin, le genre poétique se construit comme une succession de figurations, souvent
analogiques […] À travers elle, le poème nous propose souvent une transformation. Il nous fait passer d’une
figuration de départ à une figuration finale à travers un certain nombre d’étapes intermédiaires.
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Cremos que não, porque, para além dessas formas da expressão (do significante) e do
conteúdo, há o mundo propriamente referenciado no poema que não se confunde com essas e esse
é um dos sentidos que Alfonso Berardinelli (2007) discute em seu artigo “As muitas vozes da
poesia moderna” (em alusão ao ensaio de T.S.Elliot sobre “As três vozes da poesia” (1972), escrito
em 1953), contrapondo-se à redução de Hugo Friedrich da lírica moderna à forma ( ou estrutura) da
dissonância.
Embora aceitando a estrutura dissonante como uma das características da lírica
contemporânea (o que está correto), para Berardinelli (2007) a teorização de Hugo Friedrich no
livro A estrutura da lírica moderna (1978) seria uma “contribuição indireta à teoria da “poésie
pure, elaborada na esteira do mais prestigioso sucessor de Mallarmé no século XX, isto é, Paul
Valéry” (p.19), e seria, portanto, incompleta e não corresponderia às diferentes vozes da poesia do
século.
[...] a lírica de que nos fala Friedrich em seu livro basta a si mesma. Não necessita mais
do mundo, evita qualquer vínculo com a realidade. Nega-lhe até a existência. Fecha-se
numa dimensão absolutamente autônoma. Fantasia ditatorial, transcendência vazia, puro
movimento da linguagem, ausência de fins comunicativos, fuga da realidade empírica,
fundação de um espaço-tempo sem relações causais e dissociado da psicologia e da
história [...] essa poesia se apresenta em seu conjunto como uma criação sem sujeito, uma
obra sem autores. (p.21)
A incompletude do estudo de Friedrich, segundo o autor, deve-se a alguns ‘esquecimentos’
O primeiro deles se dirige especialmente a Whitmann e a parte da obra de Baudelaire e Rimbaud
em algumas de suas peculiaridades que não só a dissonância. Detendo-se mais nas particularidades
de Whitmann, ele chama a atenção para o fato de que nesse poeta não se encontram “abstração ou
cerebralismo, nem culto da premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a
uma transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do imediato, da experiência
comum” (p.23), atitudes que corroborariam a estrutura da lírica moderna de Friedrich. Antes,
Whitmann seria o oposto de tudo isso, inclusive responsável por outra estrutura moderna: a
enumeração caótica, estudada por Leo Spitzer e por este denominada de literatura como ‘bazar’.
Um segundo esquecimento de Friedrich, segundo Berardinelli, seria o da relação palavra e
coisa, sujeito e objeto, ser e linguagem, que poetas como Valéry ou os surrealistas pleitearam como
“sublimação hiper-subjetiva da escritura”, estranha à lógica e aos significados estabelecidos pela
comunicação ordinária, e que relaciona poesia e língua comum, de um lado, e poesia e referência
ao real, de outro. Nem todos os poetas defendem esse argumento. Pensando como Elliot,
Berardinelli o cita em sua lei geral contra o estranhamento da língua poética em relação à língua
prosaica: “é a lei segundo a qual a poesia não pode afastar-se muito da língua cotidiana que nós
mesmos falamos ou ouvimos falar” (ELLIOT, apud BERARDINELLI, 2007, p.27), ou seja, uma
das vozes da poesia contemporânea contraria a diferença entre linguagem poética e linguagem
prosaica.
Para a relação palavra-sentido-real ou referência, o mesmo Elliot complementa:
Antes de tudo, gostaria de lembrar que a música da poesia não existe independentemente
do significado; do contrário, poderia produzir-se uma poesia de grande beleza musical,
mas ausente de sentido, como jamais me ocorreu de ler. Nas aparentes exceções há apenas
uma diferença de gradação; há poesias em que nos deixamos levar pela música, aceitando
o sentido como dado; outras, em que nos fixamos sobretudo no sentido, enquanto, sem que
o percebamos, somos comovidos pela música. (ELLIOT, apud BERARDINELLI, 2007,
p.27)
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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Um terceiro esquecimento ligado à matéria do poema seria o das vozes poéticas que se
atraem pela prosa, cujos exemplos podem ser a criação de personagens dramáticos, os poemasreportagem de G. Benn, ou os poemas-conversa de Elliot, que são em certo sentido uma crítica
formal da estetização da poesia autossuficiente, da fuga da realidade, e a possibilidade de mistura
de gêneros literários. Segundo Berardinelli,
poderíamos ler na poesia moderna um retorno à realidade: a irrupção do não-formalizado
ou do não-formalizável no interior de uma forma poética que se esforça cada vez mais
para organizar e dominar esteticamente seus materiais. Os primeiros poemas de Eliot e de
Benn demonstram uma capacidade de percepção realista muitas vezes não menor à da
prosa contemporânea, de Joyce a Döblin e Celine. (Idem. p.28)
E convoca Erich Heller (que defende radicalmente a exposição de crenças através da
poesia) para a relação entre o problema dos valores que não se dissociam do problema da
realidade:
Seja lá o que faça, a poesia não pode senão confirmar a existência de um mundo
significativo, mesmo quando denuncie a falta de sentido deste. Poesia significa ordem,
mesmo quando lance a denúncia de caos; significa esperança, ainda que com um grito de
desespero. A poesia diz respeito à real estatura das coisas; portanto, toda grande poesia é
realista.(HELLER, apud BERARDINELLI, 2007, p.31)
A poesia moderna, portanto, pode ser realista, isto é, deter-se no mundo, falar a partir dele.
E uma das formas poéticas de realizar esse realismo se centraliza no ‘sujeito lírico’ (ou eus-líricos)
presentes no poema.
Para esse sentido, Michel Collot (2009) trabalha o sujeito lírico da modernidade como um
alienado, submisso ao tempo (seu próprio tempo), ao mundo e à linguagem, ou seja, um sujeito
lírico fora de si. Para ele, esse lirismo (que vai de encontro ao subjetivismo idealista de Hegel) não
é a exceção, mas a regra do homem moderno. Como a tríade tempo-mundo-linguagem que o
submete não lhe pertence, a submissão torna-o estranho a si, “por dentro por fora”.
Dada essa tripla pertença a uma carne que propriamente não o pertence, o sujeito
encarnado não saberá se pertencer completamente. A cega tarefa do corpo e do horizonte
o impede de acessar uma plena e inteira consciência de si mesmo. Sua abertura ao mundo
e ao outro o torna um estranho “por dentro – por fora”. Ele não pode, então, reaver sua
verdade mais íntima pelas vias da reflexão e da introspecção. É fora de si que ele a pode
encontrar. Talvez, a e-moção lírica apenas prolongue ou reapresente esse movimento que
constantemente porta e deporta o sujeito em direção a seu fora, através do qual ele pode
ek-sistir e se exprimir. É apenas saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não como
uma identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade,
conforme foi bem mostrado por Ricoeur, não para se contemplar em um narcisismo do
eu, mas para realizar-se como um outro. (2009, s/p.)
‘Fora de si’ quer dizer, sobretudo, nas palavras de Collot, “ter perdido o controle de seus
movimentos interiores e, a partir daí, ser projetado em direção ao exterior. Esses dois sentidos da
expressão me [lhe] parecem constitutivos da emoção lírica: o transporte e a deportação que porta o
sujeito ao encontro do que transborda de si e para fora de si.” (COLLOT, 2009, s/p.)
A maneira que o sujeito tem de constituir (e constituir-se como sujeito) o poema reside na
operação “pela qual o sujeito, ao invés de impor ao mundo seus valores e significados
preestabelecidos, aceita “transferir-se às coisas” para descobrir nelas “um milhão de qualidades
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inéditas, das quais ele poderá se apropriar se chegar a formulá-las. O sujeito se perde nelas apenas
para se recriar”.(Idem.)
Essas idéias de Collot defendem uma poesia materialista, que não sobrevive sem o mundo e
não é dicotômica à poesia subjetiva, desde que ela somente pode ser esta se transferida daquele.
Anteriormente, aproveitando-nos de Bakhtin, dizíamos que o mundo, para a substância do
conteúdo de Carlos Drummond de Andrade, não era cenário do homem, mas um elemento
funcional junto à vida que, dessa forma, revestia-se de traços quer positivos, quer negativos que o
heroificavam ou anti-heroificavam.
E o que é a transferência do mundo à obra do poeta lírico (no caso drummondiano, a
transferência do tempo do século XX e da própria biografia dentro dele e que constrói seu
realismo) de que fala Collot senão essa funcionalidade? “Abdicando todo significado e
representação pré-estabelecida, aceitando estar fora de si na abstração lírica do gesto de escrever,
projetando-se na matéria das palavras e das coisas, o poeta se revela a si mesmo e aos outros”, diz
Collot. (Idem.)
O projetar-se na “matéria das palavras e das coisas” revela, de um lado, a autonomia do
significante, que, no entanto, não se debruça sobre si mesmo. Ao contrário, revela-se ao poeta, que
o percebe e percebe nele o mundo para o qual se transferiu. Não só o mundo, mas também a
palavra e o poeta são um outro. A dimensão é, então, transitiva e “transpessoal”, como diz Collot,
porque o poeta não é ele e sua autobiografia, mas ele, o mundo e a linguagem em alteridade: uma
característica (realista) do sujeito moderno.
O interessante dessa perspectiva, com essa transposição do sujeito-lírico para fora de si, é a
desierarquização que sofre a relação sujeito-lírico, mundo e linguagem para a poesia (a nenhum
dos três é dado o centro do processo poético) e a possibilidade de, somente objetivando-se, se
poder ser subjetivo e singular. O que significa encontrar o homem na sua universalidade, mas
através da particularidade que aponta a singularidade, uma reunião que Carlos Drummond, poeta
singular, ao ser realista, ou usar das suas particularidades de vida pessoal e de tempo coletivo,
constrói para alçar o universalismo moderno no sentido mais humanístico dessa palavra.
DRUMONND:BIOGRAPHY, REALISM AND MODERNITY
ABSTRACT: This article discusses Carlos Drummond de Andrade as a modern and realistic poet, who always
maintained his subjective, biographical reality and the world of his historical present time – the XX century – like a
subject of his poetry. He always carried on the confidence as way of reaching this matter. In order to keep this
amalgam, the poet guaranteed a moderna lyric for the construction of the persona in alterity with the world. He used to
practise a realism in which everything is brought into relation - his self-portrait included - with a general life process
and a specific one. It is intended that this world be not only represented but also functional. That is why Otto Maria
Carpeaux wisely said that Drummond´s poetry is subjective and objective at the same time.
KEYSWORDS: Poetry. Biography. Realism. Carlos Drummond de Andrade.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, C. D. de. Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974.
BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. SP: Martins Fontes, 1992.
CARPEAUX, O. M. Introdução: In: Carlos Drummond de Andrade.Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar
Ed., 2000.
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COLLOT, M. O sujeito lírico fora de si. (Trad. Alberto Pucheu). Disponível em
<http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero11/xiv.html>. Acesso em 15.10.2009
ELLIOT, T. S. A essência da poesia. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
_______. Hamlet and his problems. In: <http://articles.poetryx.com/50/>. Acesso em 30.10.2009.
FAYAD, M. E. Poesia e realismo em Rio do Sono de José Godoy Garcia. Goiânia, PUC-Go, 2009. (Dissertação de
Mestrado)
FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. 2ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
HEGEL, J. Estética. Poesia. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.
JENNY, L. Méthods et problémes de la poesie. (Aula) Université de Genève, 2003. Disponível em:
<www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/elyrique/>. Acesso em 15.10.2009.
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OS “SETE POEMAS PORTUGUESES”, DE
FERREIRA GULLAR: “PORTUGUESES”?
Odil José de OLIVEIRA FILHO1
RESUMO: As reflexões aqui propostas tomam, como ponto de partida, o qualificativo “portugueses” dado por
Ferreira Gullar ao conjunto de sete poemas que abrem a sua obra A luta corporal, publicada em 1954. O objetivo
é chegar a uma leitura contextualizada desse conjunto de poemas, a partir do exame dos possíveis sentidos do
qualificativo e, daí, a uma visão de um princípio básico da poética de Ferreira Gullar e de seu lugar na Literatura
Brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Ferreira Gullar. A luta corporal (1954). Sete poemas portugueses. Leitura e
interpretação.
Caminhos não há
mas os pés na grama
os inventarão. (GULLAR, 2008, p.6)
Comecemos por notar que se pode, numa primeira impressão, ser levado a pensar num
significado algo provocativo nesse “portugueses” atribuído aos poemas inaugurais de A luta
corporal, ainda mais quando se leva em conta o claro propósito de acerto de contas que a obra
representava, naquele momento, para o poeta em relação a um modo de compor praticado,
meio ingenuamente, em seu trabalho poético inicial, e que precisava ser superado por um
escritor já então consciente das prerrogativas da Modernidade.
Assim, à primeira vista, os “Sete poemas portugueses” poderiam parecer evocar o
mesmo posicionamento crítico assumido pela primeira geração modernista ante as influências
portuguesas, tanto na língua, quanto na literatura praticada no Brasil, ainda que, neste caso,
empreendido de dentro da própria tradição, por meio de um conjunto de poemas vazados sob
formas e metros tradicionais. Sendo inevitável notar-se, na leitura dos poemas, que, na
verdade, na retomada de metros fixos como o heptassílabo e o decassílabo e da forma do
soneto, o que se opera é uma verdadeira desmontagem de suas estruturas formais, pode-se ser
levado a entender que o qualificativo de “portugueses”, dado por Gullar a esses poemas,
acaba, em última hipótese, por sugerir uma visão das letras portuguesas como vinculadas ao
tradicional, ao ultrapassado, ao não-moderno, como se fosse preciso, ainda em meados do
século XX, portanto, superá-las e deixá-las definitivamente para trás.
Ocorre que, saído em 1954, o livro (produzido entre os anos de 50 a 53) colhe em
cheio as discussões que se faziam, na época, em torno dos rumos a serem seguidos pela poesia
brasileira, a partir, principalmente, dos questionamentos feitos às primeiras gerações
modernistas pelos chamados “neomodernos” (Tristão de Athayde) da geração de 45. Ainda
que não se buscasse, como diz Luiz Carlos da Silva Lessa, regredir ante as conquistas
idiomáticas de 22, pretendia-se, isto sim, “um cerceamento dos exageros evidentes da fase
inicial” (1976, p.42). Apontava-se mesmo que o modernismo havia levado a uma “decadência
da língua literária, no que se refere à beleza expressional”, mesmo que se reconhecesse o
1
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Departamento de Literatura. Assis
– São Paulo – Brasil. CEP: 19.800-000 – e-mail: [email protected].
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papel renovador de sua “reação sem tréguas contra a gramatiquice” e a “aceitação, ostensiva e
corajosa, de uma série de peculiaridades da sintaxe brasileira” (LESSA, 1976, p.141).
Tristão de Athayde, por exemplo, saudava os novos poetas de 45 pela “nova
preocupação de disciplina filológica” (1956, p.156). Álvaro Lins, por sua vez, dirá mesmo
que o que era revolucionário em 1922 era o informe, o desordenado, o caótico, o à-vontade de
expressão, a despreocupação quanto ao estilo, e o que deveria ser revolucionário naquele
momento seria “o senso da forma, a construção artística, o aperfeiçoamento da arte de
escrever, a preocupação do estilo” (1947, p.108-9). No fundo, esse regramento filológico e
formalista procurava conter uma tendência modernista vista como de dissolução da língua em
favor de uma “língua brasileira” – o que soterrava de vez o projeto de Mário de Andrade de
uma sistematização do português falado no Brasil, com sua própria gramática, as suas
próprias normas, distintas necessariamente da língua praticada em Portugal.
Os postulados dessa verdadeira provocação marioandradiana foram tentados, como se
sabe, em sua inacabada obra A gramatiquinha da fala brasileira, publicada, graças aos
esforços de Edith Pimentel Pinto, em 1990. Entre as ideias centrais que sustentam sua
proposta, Mário diz, por exemplo, o seguinte:
Nesse monstrengo político [o Brasil] existe uma língua oficial emprestada e que não
representa nem a psicologia, nem as tendências, nem a índole, nem as necessidades
nem os ideais do simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa língua
oficial se chama língua portuguesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos
legisladores lusitanos. [...] Escrevem-a [sic] também os escritores, casta hedionda de
falsários pedantes que malempregam os dotes de lirismo e de inteligência que
possuem. (apud PINTO, 1990, p.321)
Abstraídos os arroubos nacionalistas dessas ideias, pode-se depreender também que
elas se sustentam, na verdade, numa reivindicação essencial da postura lírica moderna, na
medida em que o projeto formal que as impulsiona visa a aproximar a poesia da fala, da vida
cotidiana, sem a intermediação falseadora de normas que distanciassem o poeta do mundo. É
por isso que, em seu artigo de 1946, Álvaro Lins alertava que a necessidade de
“restabelecimento da forma artística e bela”, reivindicada pela geração de 45, não poderia
significar simplesmente uma retomada das “fórmulas esgotadas e petrificadas da forma
parnasiana”, desmontada pela geração de 22, mas “uma evolução dentro do gosto e do senso
estético do nosso tempo” (1947, p.108-9).
Tais princípios foram, de fato, assimilados ou intuídos por poucos poetas do tempo.
Tratava-se, em síntese, de não abrir mão do legado dos primeiros modernistas, centrado
principalmente na luta por aproximar a poesia da vida, sem esquematismos e sem fórmulas
prontas, mas também, ao mesmo tempo, tendo de deixar para trás certos recursos expressivos
genuinamente modernistas, como o chamado poema-piada (que se amaneirara na mão dos
epígonos), e, mesmo, a recorrência aos idealismos da brasilidade. Na ambiência histórica que
se abria, após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a internacionalização da cultura, a
procura agora era pela construção de uma lírica que aprofundasse as lições da Modernidade –
o que não impedia, por exemplo, que os poetas, por necessidade expressiva, voltassem a
recorrer ao verso metrificado, como nota Alfredo Bosi, “alternando-o com formas livres
herdadas à renovação de 22” (2000, p.104). Entre os poetas que assim procederam, Bosi cita
os casos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e Murilo
Mendes – que são, não sem razão, alguns dos responsáveis pela grande poesia moderna
praticada, no Brasil, na segunda metade do século passado.
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Se assim é, o epíteto “portugueses” atribuído por Gullar aos seus poemas, nesse
momento de transição, de rescaldo dessas discussões, pode não ter a ver com uma posição
antilusitana pura e simples. Herdeiro da geração de 22, mas também da de 45, a questão só
pode ser decidida, de fato, se for possível perceber como ele se colocava diante dessa tradição
em que se inseria.
Como se sabe, antes de A luta corporal, Gullar lançara, em 1949, ainda em São Luís
do Maranhão, um primeiro livro de poemas, tirado às suas próprias expensas e intitulado Um
pouco acima do chão – obra que só recentemente permitiu que fosse reeditada e admitida
entre as suas obras completas. O motivo dessa renegação de seu livro de juventude deve-se,
possivelmente, ao fato de Gullar, em diversos depoimentos sobre o assunto, considerá-lo
como excessivamente ingênuo e imaturo, fruto, que era, mais das leituras que fazia naquele
tempo – vivendo, como diz Antônio Carlos Secchin, “as condições culturais adversas da
província” (2008, p.XIX) – quase tão-somente dos poetas parnasianos brasileiros de final do
século XIX. Numa entrevista à revista Poesia Sempre, em 1998, diz Gullar, ironizando, que
nessa época, em virtude de sua formação parnasiana, aprendera a versejar tão bem, que
passara mesmo a falar em decassílabos... Diz também que, por essa altura, desconhecia
completamente os poetas modernos brasileiros, cujos primeiros textos só foram chegar ao
Maranhão em finais da década de 40. Confessa, ainda, que, por essa época, estudava e
praticava fielmente as lições do Tratado de versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos.
Para que se perceba o teor das lições que porventura o poeta apreendia, no Tratado
encontravam-se recomendações de Bilac e Guimarães Passos, ao poeta neófito, como, por
exemplo, as de que não se preocupasse com a poesia em si e que procurasse, de preferência,
surpreender “o segredo do verso” e “assenhorar-se da sua mecânica”. E, mais à frente,
aconselhavam:
Deve o que começa ensaiar-se no verso mais acessível, que é a redondilha, não
procurando combinar ideias, exprimir pensamentos, mas reunindo palavras
desconexas, porém que se ajustem, e deem o verso sonoro e cantante, com todos os
requisitos exigidos pelos mestres. (...) Senhor uma vez da métrica de um verso,
tente o discípulo os outros, sem ordem, mas buscando conhecer e aperfeiçoar-se em
todos, até o alexandrino. (BILAC e PASSOS, 1944, p. 73-4)
Olhado de hoje, Um pouco acima do chão, em boa parte, confirma o severo
julgamento de Gullar sobre o seu livro de juventude, pois o que se encontra dominantemente
ali, de fato, é um abnegado discípulo dos mandamentos parnasianos de Bilac. No entanto, nos
poemas do terço final do livro, pode-se perceber uma surpreendente mudança de tom e o
abandono das formas fixas e do verso metrificado, em favor do verso livre e do tratamento de
temas concretos do cotidiano do poeta. É o caso do poema “Viagem diurna à roda do meu
quarto”, que traz uma descrição emocionada do quarto do poeta, cujo tema, ao que tudo
indica, é tomado à tradição romântica de Byron – e, inevitavelmente, faz com que nos
lembremos das “Idéias Íntimas”, de Álvares de Azevedo. Há também tom romântico no
poema dedicado à rua da infância (“Rua da Infância”); no entanto, têm outra dicção o poema
“A draga velha”, em que se materializa, na imagem da velha draga holandesa abandonada no
cais, a própria degradação da paisagem, e o longo poema final, intitulado “Adeus Bizuza”,
que lembra Bandeira e já, portanto, uma provável ressonância dos efeitos que a leitura dos
poetas modernos brasileiros causavam no então jovem poeta:
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O que eu te disse, Bizuza!
O meu sonho mais sonhado,
Meu desejo mais profundo,
já vai ser realizado!
- mandei fazer um navio
para dar volta ao mundo!
Partindo de São Luís,
irei direitinho à França
(França pura de Flaubert,
França imensa de Balzac)
Quero visitar a pátria
que da outra vez será minha. (GULLAR, 2008, p.527)
Tais efeitos, ao que tudo indica, parecem ter sido de profunda iluminação criadora, nos
poucos anos que transcorrem entre Um pouco acima do chão e A luta corporal, o qual já traz
um artista completamente sintonizado com a poesia moderna praticada no Brasil e,
principalmente, com os impasses que ela enfrentava. É surpreendente notar-se a radical
reviravolta dada por Gullar entre um livro e outro, abandonando a retórica do parnasiano
deslocado da província, para assumir incisivamente a linguagem do poeta moderno, vivendo
agora no centro cultural do País – o Rio de Janeiro.
Nesse sentido, como vê Alcides Villaça, em A luta corporal, pode-se encontrar um
verdadeiro painel das possibilidades históricas abertas à poesia dos anos 50:
há aqui algo do difuso neosimbolismo [sic] que não seria estranho a alguns dos
poetas da chamada “geração de 45”; logo ali há marcas de um coloquial expandido
nas trilhas do modernismo; mais além, o discurso catártico da livre associação faz
pensar nos surrealistas; ainda adiante, a sintaxe e a morfologia perdem toda a
estabilidade e se estraçalham em signos e simulacros de signos, numa espécie de
apostasia da linguagem. (VILLAÇA, 1998, p.89)
Pode-se até aventar que essas tendências irradiavam-se para a poesia de Gullar a partir
da assimilação de poetas como Manuel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e João Cabral
de Melo Neto – tidos pelo próprio Gullar como mentores de sua incorporação dos modos de
compor da poesia da modernidade. Ora, não por coincidência, esses eram os poetas que, na
década de 1950, como entende Santiago Kovadloff, “se empenhavam em reabrir e ramificar
os caminhos traçados pelos grandes renovadores dos anos 20 e 30” (1979, p.209-10),
apontando como o grande predecessor de Ferreira Gullar nesse trabalho a figura de João
Cabral de Melo Neto.
Como mostra Benedito Nunes (1971, p.33), a poesia de João Cabral erigira-se a partir
de uma síntese composta pela assimilação do tom prosaico de Drummond, do relevo plástico
das imagens de Joaquim Cardoso e do visionarismo de Murilo Mendes, fazendo-os convergir
para o objetivo comum de neutralização do lirismo puro, do lirismo de elevação espiritual
idealizante, herdado do Simbolismo, e que se tornara puro maneirismo. Para Nunes, João
Cabral seguirá essa tendência fazendo-a crescer “em regime de crise interna”, chegando,
numa luta consigo mesma, a problematizar, na “poética negativa” de Psicologia da
composição (1947), o próprio alcance da lírica moderna.
Talvez seja por ressoar nesse contexto, abrindo, além disso, uma fresta de inovação e
radicalização ante o esforço de renovação que se ensaiava, que A luta corporal foi recebido
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com entusiasmo e certo espanto pela opinião crítica do tempo, que reconheceu,
possivelmente, na luta expressional do jovem poeta, para atingir uma linguagem própria e
descontaminada de maneiras e preceitos, a consecução de um ponto luminoso da poesia
moderna brasileira após os grandes poetas de 22. É nessa obra e nesse contexto que devem,
pois, ser pensados os sentidos dos “Sete poemas portugueses”, que abrem o livro, com o
explícito propósito, como já se disse, de um ajuste de contas com a poesia rimada e
metrificada praticada anteriormente e, implicitamente, com toda a maneira ou postura, dada
de antemão, na produção da poesia.
Numerados de 3 a 9 - o que o próprio Gullar explica pela supressão, por falta de
qualidade, diz ele, dos dois poemas iniciais -, os “Sete poemas portugueses” são compostos
por dois poemas iniciais que combinam redondilhas maiores e menores (o 3 e o 4); dois
sonetos decassílabos (o 5 e o 6); um soneto abortado do último verso (o 7); uma composição
em quintilhas decassílabas (o 8); e uma estranha construção final composta de dois quartetos,
que segmentam, espacialmente, os terceiros versos no interior de ambas as estrofes (o 9).
Quanto à ausência dos dois poemas iniciais, apesar da explicação de Gullar, pode-se entendêla como uma espécie de intervalo significativo entre o trabalho poético anterior, ainda preso à
tradição parnasiana, e o do atualidade, de onde emergiria, no primeiro poema do conjunto
(mas marcado pelo número 3), a voz poética que se procura e à sua canção:
3
Vagueio campos noturnos
Muros soturnos
paredes de solidão
sufocam minha canção (GULLAR, 2008, p.5)
O conjunto dos sete poemas é, de fato, atravessado por esse clima de incerteza e
vaguidão, em que a voz poética empreende uma procura da poesia que tem de ser decifrada a
cada passo do caminho, para que, enfim, o próprio poeta possa revelar-se (a si mesmo e ao
mundo) por meio da poesia que consiga criar – como está dito no poema de número 4:
4
Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento
Caminhos não há
mas os pés na grama
os inventarão (GULLAR, 2008, p.5-6)
Após a ocorrência dos redondilhos maiores e menores nos dois primeiros poemas,
sucedem-se três sonetos em decassílabos (os de número 5, 6 e 7), em meio aos quais o poeta
se debate para reter, inutilmente, o rio do discurso poético que lhe escorre por entre as mãos:
5
Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora
e na fonte e no muro onde sua face,
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.
Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos
das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis –
eu colho a ausência que me queima as mãos. (GULLAR, 2008, p.6)
A notar, para o que aqui nos interessa, é a tensão existente entre o rígido travejamento
raciocinante do decassílabo clássico (conjugando versos heróicos e sáficos) e o caráter aberto
e evanescente das imagens, vazadas num andamento prolongado de versos e estrofes, por
intermédio de enjambements que acabam por subverter totalmente a estrutura lógica inerente
ao soneto tradicional.
Essa subversão, que parece ter sido a base do projeto estético dos “Sete poemas
portugueses”, encontra seu ponto alto no último deles, o de número 7, cujo tema, cantado ao
andamento dos hemistíquios tradicionais do decassílabo clássico, enfrenta,
contraditoriamente, o risco máximo (e sempre presente) enfrentado por todo poeta - ainda
mais, como é o caso, quando está a empreender a busca do seu próprio canto: o silêncio, a
solidão:
7
Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante e vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho – o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo. (GULLAR, 2008, p.7)
O poema de número 8 é composto de quatro quintilhas de decassílabos heroicos –
invariância rítmica que já é manifestação formal do tema veiculado: o aprisionamento da voz
poética entre os “muros de cal” do poema, como está dito na primeira estrofe:
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8
Quatro muros de cal, pedra soturna,
e o silêncio a medrar musgos, na interna
face, põe ramos sobre a flor diuturna:
tudo que é canto morre à flor externa,
que lá dentro só há frieza e furna. (GULLAR, 2008, p.8)
Por fim, o último poema é só um fragmento, composto de apenas duas estrofes, que
poderiam ser estruturadas com dois quartetos de dez sílabas, não fosse a divisão dos terceiros
e quartos versos de ambas as estrofes em dois versos distintos, de seis e quatro sílabas
respectivamente, transformando-as, assim, em duas estrofes de cinco versos. Dessa forma, o
próprio caráter visual do texto já denuncia a fragmentação – na verdade, sintoma da frustração
assumida e sentida pelo poeta, por continuar a fluir obscuro pelo rio do discurso, por não
conseguir atingir a beleza que na rosa, espontânea e naturalmente, cintila:
9
Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa
se entrega ao mundo, estrela tranqüila.
Nada sei do que sofro.
O mesmo tempo
que em mim é frustração nela cintila.
E este por sobre nós espelho, lento,
bebe ódio em mim; nela, o vermelho.
Morro o que sou nos dois.
O mesmo vento
que impele a rosa é que nos move, espelho! (GULLAR, 2008, p.8)
Em linhas gerais, os “Sete poemas portugueses” tematizam essa desalentada frustração
por não se conseguir alcançar a poesia necessária, viva, que o poeta anseia por atingir. Apesar
de vaga, a aspiração ganha tão forte efeito sugestivo que faz, estranhamente, com que os
metros e formas “portugueses”, tradicionais, utilizados trabalhem para realçá-la, e não para a
aprisionar. Ou seja, toca-se o indizível, usando-se as formas tradicionais do dizer.
Em verdade, a tarefa empreendida por Gullar em A luta corporal de renegação dos
modelos poéticos prontos, partindo dos “Sete Poemas portugueses”, chega ao ponto máximo
nos últimos poemas do livro, completando um percurso que acaba, afinal, por revelar a
coerência interna da obra como um todo, a da luta corporal com a expressão artística,
podendo-se entender, portanto, que o sentido do qualificativo dado aos poemas que abrem o
livro tem muito mais a ver com a ideia de todo o esquema poético dado, pronto e
sistematizado, que não tenha nascido da necessidade sempre viva e presente de dizer a vida –
necessidade essa que, na sua ânsia de captar o mundo, pode até mesmo subverter a língua e o
verso, ainda que seja para transformá-los em uivo - como ocorre em “Roçzeiral”:
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Ai sôflu i luz ta pompa inova’
orbita
FUROR
tô bicho
‘scuro fogo
Rra
UILÁN
UILÁN,
Lavram z’olhares, flamas!
CRESPITAM GÂNGLES RÔ MASUAF
Rhra
Rozal, ROÇAL
l’ancêndio MinoMina TAURUS
MINÔS rhes chãns
sur ma parole –
ÇAR (GULLAR, 2008, p.50)
Nesse sentido, diz o próprio Gullar, na entrevista à revista Poesia sempre, a respeito
de A luta corporal, o seguinte:
[...] O livro começa com um ajuste de contas relativamente à poesia rimada e
metrificada, como é o caso do soneto. A maneira de construir o poema também já é
diferente. Eu quis dizer o seguinte: como nunca mais vou utilizar esse instrumental,
tirarei ouro de ouro, colocarei no papel o melhor que posso fazer com isso. E fiz
então “Poemas portugueses”, embora os dois primeiros fossem irremediavelmente
velhos. No que toca aos outros, creio que consegui realizar meu propósito. E dei a
coisa por finda. Mas aí aconteceu algo estranho: depois que deixei de lado aquilo
tudo, fiquei sem linguagem e mergulhei numa solidão total.
(http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar.)
Esse procedimento, de lutar com os materiais expressivos para fazê-los render até o
limite - que é, afinal, a luta de todo o artista moderno -, principiado em A luta corporal e
tendo como marco inicial esses “Sete poemas portugueses”, parece ter se tornado o
fundamento básico do projeto poético de Ferreira Gullar, que, de livro para livro, durante
todos esses anos de produção literária, tem reassumido, sempre, essa tarefa de uma luta, sem
tréguas, pela expressão sempre nova da vida.
Como, aliás, está dito em um de seus últimos textos, publicado em Muitas vozes e
intitulado “Não-coisa”:
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe. (GULLAR, 2008, p.376)
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“SETE POEMAS PORTUGUESES”, BY FERREIRA GULLAR: "PORTUGUESES"?
ABSTRACT: The reflections intented in this study have, as a point of departure, the qualifying adjective
"portuguese" given by Ferreira Gullar to the group of seven poems that iniciate his work A luta corporal,
published in 1954. The aim is to achieve a contextualized reading of this group of poems, by the examination of
the eventual meanings of the mentioned qualifying adjective and, from that, to a vision of an elementary
ingredient of the poetics of Ferreira Gullar and his place in the Brasilian Literature.
KEYWORDS: Ferreira Gullar. A luta corporal (1954). Sete Poemas Portugueses. Reading and comprehension.
REFERÊNCIAS
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BILAC, O.; PASSOS, G. Tratado de versificação. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1944.
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
GULLAR, F. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
__________. Poesia Sempre 9. Disponível em: <http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar>. Acesso em: 01 abril
2010.
KOVADLOFF, S. Ferreira Gullar: o fogo solidário. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.9,
p.205-22, 1979.
LESSA, L. C. da S. O modernismo brasileiro e a língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Grifo, 1976.
LINS, Á. Jornal de crítica. 5ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947.
NUNES, B. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1971.
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VILLAÇA, A. Gullar: a luz e seus avessos. Cadernos de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, n.6, p.88-107,
1998.
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POESIA DE CONFLITO NOS ANOS 70: PAULO LEMINSKI E
OS SINAIS EXCÊNTRICOS DE SEU NEORROMANTISMO
Robson Coelho TINOCO2
RESUMO: Paulo Leminski respondeu de modo singular, sobretudo na década de 70, aos desafios cada vez mais
candentes que a cultura e a nova ordem sociopolítica apresentavam. Desafios lançados, por exemplo, pela Guerra
Fria, lutas raciais, Terceiro Mundo, sociedade de informação. Nesse contexto nacional-mundial, Leminski
renova a linguagem poética como centro de suas preocupações éticas e projetos estéticos. Sob tal composto
ético-estético, neo-romanticamente ressaltam divergências sensíveis, frente ao cânone literário nacional, quanto a
entender as fronteiras entre poesia e não-poesia, arte funcional e arte engajada. Ressalta, ainda, a bem-humorada
e irônica denúncia dos “novos tempos” e do que o poeta propunha como a procura de uma comunicação mais
integrada, criativa e provocativa com as pessoas e com a arte.
PALAVRAS-CHAVE: Excentrismo. Poesia. Sociedade
entre a dívida externa
e a dúvida interna
meu coração
comercial
alterna
Paulo Leminski, Caprichos e relaxos
As margens de um (des) rumo biográfico
Paulo Leminski Filho3 nasceu em Curitiba, Paraná, em 24 de agosto de 1944. Em 1956
ingressa como oblato no Mosteiro de São Bento, São Paulo, onde permaneceu até os 14 anos.
Participa, em 1963, do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte e,
a partir de 1964, começa a publicar trabalhos, alguns literários, no jornal Última Hora
(sucursal de Curitiba). Publica seus primeiros poemas na revista “Invenção”, estabelecendo,
dessa maneira, o início de um diálogo bastante fértil, e nem sempre tranqüilo, com a
vanguarda concreta paulistana. Em 1966, classifica-se em 1º lugar no II Concurso Popular de
Poesia Moderna, promovido pelo Jornal O Estado do Paraná; em 1968 participa do I
Concurso Nacional de Contos do Paraná com “Descartes com Lentes”. Meio índio, negro e
polonês, judoca faixa-preta e zen, candidato a monge e um dos ídolos da vanguarda pop, sua
vida representa, para pessoas como Waly Salomão e Haroldo de Campos, a transição mais
perfeita entre as décadas de 70 e 90, período de uma exditadura-pósmoderna-extrapop; o
início e o fim do século estão selados nele.
Inicia, a partir dos primeiros anos da década de 70, seu aprendizado de violão e
publica poemas, ao longo desta década, geralmente em revistas alternativas como a “Qorpo
2
UnB - Universidade de Brasília - Instituto de Letras - Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília,
Distrito Federal – Brasil - CEP 70910-900. E-mail: [email protected].
3
O conjunto de informações bibliográficas foi compilado de Paulo Leminski. (vários autores) 2. ed. Curitiba:
Ed. da UFPR, 1994 e dos ensaios de Kamiquase: http://users.sti.com.br/efres/Leminski/biblio.htm,
http://sites.uol.com.br/fredbar e http://users.sti.com.br/elsonf/ensaios13.htm.
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Estranho” (depois “Corpo Estranho”), a “Muda” ou a “Código”. Lança, em 1975, em edição
particular, sua prosa experimental “Catatau”, assumindo uma linha de romance pós-joyceano.
“Catatau” pode ser considerada, cronologicamente, a obra em prosa mais ousada, sobretudo
no aspecto formal, produzida no Brasil depois do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães
Rosa e das “Galáxias”, de Haroldo de Campos. Em 1979 publica poemas com fotos de Jaques
Pires, no álbum “Quarenta Clic’s de Curitiba” e, em 1980, também em edição particular, os
livros de poemas “Não fosse isso e era menos/Não fosse tanto e era quase”, “Tripas” e
“Polonaise”. Essas obras, aliás como de hábito em sua carreira de escritor, não obtiveram
muito sucesso de crítica, além de uma recepção, pelo “grande” público, nada além de
razoável.
Essa fase dita “marginal” do poeta, conhecido basicamente pela vanguarda artística do
país e por leitores mais especializados4, começa a dar lugar a uma poesia mais editorial, mas
não menos inovadora. Assim, em 1983, tem início a associação do poeta com a editora
Brasiliense, o que resulta em uma produção poética, sem dúvidas, mais comercial. Nota-se,
também, o declarado sucesso de recepção daquele “grande” público, que se amplia, pela
facilidade de conhecimento e aquisição dos livros de Leminski.
É a partir desse período que se promove a publicação de “Matsuó Bashô, a lágrima do
peixe” e “Cruz e Souza, o negro branco”, ambas obras biográficas. Passa a escrever
esporadicamente para a revista “Veja”, assumindo o papel, que nunca lhe caiu bem, de um
tipo de rebelde pacífico. Com tal intenção, na década de 70 até meados da de 80, mesmo que
representando produções sem maior importância para sua vida de escritor, até pela qualidade
e intenção, Leminski escreveu, ainda, textos de novela, “Minha classe gosta, logo, é uma
bosta”; texto para cinema, “Roteiro para documentário sobre o Museu David Carneiro”, ou
“Drama da fazenda Fortaleza”; ainda, texto para telenovela, como “Outra paixão é um
perigo”. O problema poético de Leminski é que, poeta, jamais conseguiu, nem quis, ser
artista pacificador.
A trajetória de Leminski, com início efetivo na década de 70, foi sintomaticamente
dupla: avessa aos chamados “poetas sociais”, que produzem poesia marcada por uma poética
engajada (nesse sentido, alguns arcádicos, e Castro Alves a Ferreira Gullar), ou os de função
pública poético-burocrática; composta por uma variedade grande de atividades. Em 1983,
publicou “Caprichos e relaxos”, livro de poesia que retratava o modus vivendi da década
anterior, considerado um dos melhores daquele ano; poesia de espécie underground, com os
livros “Não fosse isso e Era Menos” e “Polonaises”; poemas comuns em versinhos bem
compostos em “Distraídos Venceremos”.
Chamando de romance de “reficção”, em que se misturam doses de suspense, terror e
sexo, escreve “Agora é que são elas”; romance experimentalista, “Catatau”, publicado em
1975, em Curitiba, por uma pequena editora, que, no entender de Leminski, é a história de
uma espera. O personagem (Cartésius) espera um explicador (Artychewsky). Espera
redundância. O leitor espera uma explicação. Espera redundância, tal como o personagem
(isomorfismo leitor/personagem). Mas só recebe informações novas. Tal como Cartéssio
(CAMPOS, 1991). Escreveu ainda, com alta presença de lirismo, poemas-mensagens para ser
“aplicados” no muro, no pôster, na música, na camiseta:
coração
4
Observe-se, entretanto, que estudiosos como Alfredo Bosi e Massaud Moisés não citam o poeta em suas obras
sobre Literatura Brasileira, nas partes referentes ao modernismo.
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PRA CIMA
escrito em baixo
FRÁGIL5
veloz
como a própria voz
elo e duelo
entre eu e ela
virando e revirando nós6
Com 45 anos, na sua sempre-eterna Curitiba (de onde, na verdade, nunca se afastou
sentimentalmente), Leminski falece em 1989, de cirrose hepática. Publica-se nesse ano “A lua
foi ao cinema”, história infantil, pela Pau-Brasil, a 2ª edição de “Catatau”, pela Sulinas, RS,
“Memória de vida” (homenagem póstuma), pela Fundação Cultural de Curitiba e “Paulo
Leminski” (reunião de entrevistas e resenhas), pela Scientia et Labor, de Curitiba; é
inaugurado em 24 de agosto, em sua homenagem, o espaço cultural Pedreira Paulo Leminski;
em 1990, “Vida”, reunião das biografias de Trótski, Cruz e Souza, Matsuó Bashô e Jesus e
“La vie en close”, poemas inéditos, ambos pela Brasiliense; em 1991, “Uma carta uma brasa
através / Cartas a Régis Bonvicino”, volume composto por corres-pondências trocadas entre
os dois escritores, desde a década de 70, pela Iluminura.
O poeta e uma poesia para (re) ocupar espaços novos
Leminski abriu as picadas da linguagem para os novos poetas dos anos 70, fossem eles
ditos marginais ou construtivos. Traçou, nessa abertura, um arco de ligação entre a poesia
concreta e as novas sensibilidades não especializadas, optando por uma linguagem de
rendimento comunicativo mais imediato, quer arriscava tudo. Leyla Perrone-Moisés o
considera, como todo artista, um tipo de formalista que, todavia, nunca foi poeta de gabinete.
Para ela, suas vivências de beatnik caboclo e sua filosofia de malandro zen são aprimoradas
no uso preciso da linguagem “até chegar à cifra certa” (apud GÓES e MARINS, 2001).
Cumpria bem, sem se prender a nenhuma escola ou fórmula literária, o papelpersonagem de poeta incomodado em um país tricampeão de futebol (“a taça do mundo é
nossa, ó brasileiro, não há quem possa...”), saindo de um período ditatorial, ainda às margens
da comunidade global em que outros países se nutriam nos novos ventos já tecnológicos e da
política pós-guerra. Nas décadas de 50 e 60, acontecera a súbita ascensão do Japão e da Itália
como potências exportadoras de manufaturas. Da mesma forma que com as telecomunicações
e informática atualmente, estava também em curso uma evolução nos transportes, ao lado da
introdução dos plásticos e materiais sintéticos. O Brasil iniciava seus passos globalizadores,
na arte e na economia por ex., nesse contexto em que todos os países avançados, e não apenas
Japão e Itália, se expandiam aceleradamente. Foram os chamados “anos gloriosos”, até 1973,
quando se crescia a 5% ou mais.
5
Caprichos e relaxos, p. 67. Ver Nota 1.
6
La vie en close, p. 54.
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Era nessa situação mundial, bipolar e já neoliberal, que os governantes brasileiros
procuravam se espelhar, na verdade, sem um direcionamento autônomo. Sem espelhos que
usar, samurai e malandro, Leminski sempre ganha a aposta do poema, ou por golpe de lâmina
– sua estrutura é cortante –, ou por jogo de cintura – seu conteúdo propõe a idéia antes da
afirmação (GÓES e MARINS, op. cit.). Crítico do momento e malandramente, Leminski,
reaplicando a “dialética da malandragem”7, busca com suas multiproduções um novo caminho
de reconhecimento do país em que vivia. Reconhecimento desde os anos 70 que, frente ao
modelo da agora ensaiada “dialética da marginalidade” pressupõe uma nova forma de
relacionamento entre as classes sociais.
Nesse contexto, não se trata mais de conciliar diferenças, mas de evidenciá-las,
recusando-se a assumir “a promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do
poder e o crescente universo dos excluídos” (ROCHA, 2004). Entenda-se que aqueles anos de
arbítrio, que partilhamos com os outros povos da América Latina, não podiam ser
considerados como tempos de isolamento cultural. Pelo contrário, coincidem com a explosão
de maio de 68 na França, com vários desdobramentos, que atingiria em cheio as formas de
conduta individual. Atingiria, ainda, os modos de expressão entre as gerações dos países que
sofreram o seu impacto, por exemplo, “no Brasil, a abertura cultural precedeu a abertura
política e lhe sobreviveu.” (BOSI, 1996, p. 436)
Leminksi possuía uma visão de linha evolutiva da literatura. Considerava que, assim
como a técnica ou a ciência que evoluem, o texto, o fazer literário, enfim, o ato de escrever,
também deveriam evoluir. Afirma que não se interessava mais pela idéia de literatura como
algo pré-estabelecido em si mesmo ou como processo de continuidade literária. Para o poeta
era importante que suas “coisas” não tivessem nenhum padrão dessa continuidade com “isso
que se chama literatura” (LEMINSKI [vários autores], 1994, p. 18). Colocava-se, e a sua
produção, dentro de uma perspectiva histórica, profundamente marcada pela composição
joyceana de mundo e de narrativa.
Assim, apocalíptico, composto de material pronto para a combustão intelectual e de
essência poética romântico-oriental, Leminski foi um marco. Poeta, filósofo, humorista,
professor, judoca, artista gráfico, fazedor de quadrinhos, compositor e tradutor de inglês,
grego, hebraico, tupi, japonês, latim e russo, foi desses personagens imperdíveis pelos bares
de Curitiba e perdidos nos trilhos de uma literatura mercantil, marcada pela luta do bem
contra o mal. O conto e a poesia, avalia o poeta, terminaram por representar, no Brasil, a
mesma coisa que o Volkswagen representou, pode-se dizer, em termos viários. Esse carro
colocou a classe média sobre rodas e aqueles textos deram a todos a ilusão da possibilidade de
uma carreira literária que, para Leminski, seria uma coisa bem mais complicada.
De espírito profundamente irrequieto e hiperativo, Leminski era um tipo de zenlírico
imerso na contemporaneidade das vanguardas multimídias necessitadas de auto-afirmação e
reconhecimento. Nesse tipo, transitava impassível por um irregular feixe expressivo de
códigos, signos e linguagens, comunicando-se com variadas faixas etárias e processos de
informação de massa ou de grupos específicos. Quanto ao sentido de “auto-afirmação e
reconhecimento” citado, Haroldo de Campos, em entrevista exclusiva para Ricardo Araújo
(1999, p. 79), afirma, sobre a poesia contemporânea (em especial sua experiência com a
poesia computadorizada) que
7
Em “Dialética da Malandragem – caracterização das ‘Memórias de um sargento de milícias’”, Antonio Candido
apresenta profunda interpretação da vida social brasileira, com base histórica num comércio duplo de interesses
estabelecidos entre a ordem e a desordem, entre o permitido e o proibido.
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esse tipo de experiência já estava contido nas premissas históricas da Poesia
Concreta. Quando esta foi lançada e elaborada, por volta da década de 50,
pretendia-se sair do círculo fechado do beletrismo acadêmico e ligar a poesia às
outras manifestações, com o que se fazia, em termos de vanguarda, nas artes
plásticas e na música, como também colocar a poesia em sintonia com que havia de
mais novo e fundamental na pesquisa científica.
Leminski exercitava uma sintaxe que, ao tempo em que era televisiva, descontínua,
focada em núcleos de imagens rápidas e bombásticas, era também composta por uma lógica
subjetiva e romântica: cantava a pessoa da-modernidade falando da pessoa de-sempre – ser
sentimental, por condição existencial. Com facilidade impressionante imprimia ao texto uma
circunstância de projeção de slide e, reduzindo-o a algumas palavras, explodia por ele toda a
força lírica da emoção de ser apaixonado pela vida, pela criação, pelo ser humano. Cultuando
os clássicos, “as obras-mãe em que as outras de diluem”, como dizia, desbravava o
desconhecido da função poética não como marginal, mas como intelectual excêntrico,
guinado a essa condição pelo seu romantismo pós-lírico (1):
A morte, a gente comemora.
No meu peito, cai a Roma,
que caída embora,
nenhum bárbaro doma.
................8
não creio
que fosse maior
a dor de dante
que a dor
que este dente
de agora em diante
sente9
dois namorados
olhando o céu
chegam à mesma conclusão
mesmo que a terra
não passe da próxima guerra
mesmo assim valeu
...............10
8
La vie en close, p. 78.
9
Caprichos e relaxos, p. 28.
10
Envie meu dicionário, “valeu”, p. 147.
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Ao comentar a poesia de Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda avalia que o
mundo visível pode fornecer as imagens de que é feita sua poesia, mas essas imagens
combinam-se, justapõem-se de modo sempre imprevisto, talvez até mesmo pelo próprio poeta
(MELO, 1998). Nesse sentido, considere-se que Leminski legou aquilo que poderíamos
chamar de espontaneísmo orientado, atingido através do completo domínio dos meios
poéticos e de total predisposição ao poema. É, assim, naquele estranho poder de absorver o
visto – processo subjetivo integrando espírito e visão – que vive a contribuição indispensável
de Leminski, que não se privou de declarar algumas diretrizes de sua técnica. Segundo Melo
(op. cit.), como força ou não de sua expressão, mas ao contrário dos louvores de alguns poetas
pelo dilema do “papel em branco”, Leminski propõe a revelação do poema por dentro, e de
soltá-lo sem hesitação.
O poeta reafirma sua predisposição ao poema, como reação planejada ao que ele vê e
sente. Pode se ver(ler)sentir em Leminski, como crítica poética, que, “(...) a palavra escrita é a
verdadeira alma do homem que pensa em ocidentês. Ao contrário do que pensa McLuhan, ela
vai mais e mais competir com a televisão” (PIGNATARI, 1995, p. 16). É nessa leitura que o
poeta reafirma, também, a necessidade do exercício poético incansável:
.................
bashô disse: não siga as pegadas dos antigos.
procure o que eles procuraram.
eles procuraram a poesia, vamos procurá-la. à nossa moda.
.................
precisamos tirar a poesia da vertigem/miragem do novo, novo, mais
novo, mais, mais...
.................
como canta roberto carlos: de que vale tudo isso,
se você não está aqui ?
.................
desestatizar o poema: desestatizar os veículos (livros, revistas, jornais)
e ambientes (sala, galeria, show)
11
O poema leminskiano, ao surgir na linha do parnasiano chic, é para ridicularizar suas
possibilidades, engajando-se naquilo que o mesmo Sérgio Buarque de Holanda chamou, em
Bandeira, de “rebelião contra as formas convertidas em fórmulas”. Assim, uma dada situação
estrutura e compõe a forma que é, na maioria das vezes, realizada por um conjunto de frases
bem arquitetadas, ambíguas, opacas, “vestidas” em metros comuns, com uma sonoridade
profundamente presente. O poema vai, dessa maneira, rompendo suas frases que
aparentemente são rasas, inequívocas, claras.
Acrescente-se a essa composição o claro-difuso sentido neo-romântico de um lirismo
marginal às imposições das vanguardas, sobretudo as da década de 70. Tal sentido ampliava a
11
Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trechos da carta 42, pp. 109-117.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no11
análise do ensaísta, para quem a força poética de Leminski centra-se na necessidade de
concentração e reflexão no poético de diversos assuntos, como história, religião etc., como
forma de enriquecimento do “material”, da “massa de assuntos”:
o esplêndido corcel
vê a sombra do chicote
e corre, esplendores do cavalo
em labirintos de crina
..................
e o coração no peito
feito um pião dormindo!12
Esterilidades*
..................
Tarântula das atrizes
O deslize
Strip-tease da medula
Pras felinas Ophélias
Messalinas em férias.
.................13
de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
..................
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em copacabana14
Oswald de Andrade, a certa altura do Manifesto Antropófago, anuncia que “... nunca
admitimos o nascimento da lógica entre nós” (TELES, 1991, p. 355). Também oswaldiano,
mas ampliando-o, Leminski defendia uma lógica-em-duplicidade: ao mesmo tempo
modernista, portanto “alógica”, e individual, “ilógica” pela cartilha do verso / poema bem
12
La vie en close, p. 55.
13
Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trecho da carta 69, p. 161. *Jules Laforgue, trad. de Paulo
Leminksi.
14
Caprichos e relaxos, p. 84.
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composto. Quanto aos primeiros modernistas, considere-se que Leminski não valorizava
muito a obra de Mário de Andrade, encontrando nele o que chamou de “algumas das coisas
chatas da cultura brasileira: ufanismo, ‘macumba para turistas’ e, principalmente,
sentimentalismo barato” (MELO, 1998).
Segue, avaliando que gostava do Macunaíma (romance escrito em 7 dias), mas nem
tanto. Se insistissem em sua filiação modernista, defenderia Cartesius (já citado como um dos
personagens de seu “romance-idéia”, produzido em 7 anos, Catatau) como o herói de caráter
demais, cuja “muiraquitã” seria a Europa, o passado, o teorema de Pitágoras. Ainda sobre sua
relação com o modernismo e a literatura brasileira que o influenciou, em depoimento de 1978
– como sempre, marcado por boa dose de humor irônico –, Leminski afirma: “Drummond, só
uma dose simples para saber que barato que dá. Cabral, por dever de ofício. Oswald, já muito
tarde para alterar rumos”. É interessante perceber, que esse “muito tarde” foi dito por um
poeta de, apenas, 34 anos.
Quanto à questão “Leminski e vanguardas”, deve-se retomar a noção de vanguarda
como “desvio da norma”, na reveladora expressão de Viktor Chklósvki. Este sentido de
“desvio” pode ser aplicado tanto para vanguardas estéticas quanto para vanguardas que, além
do componente estético, são formadas por outros políticos, religiosos etc. Tais vanguardas
possuem, em sua composição básica, um forte elemento desviante, que promove desde suas
manifestações públicas até mesmo sua condição existencial de grupo(s) social(is).
Esse desvio trata, antes, de uma postura frente à norma social vigente (das décadas de
70 e 80), à crítica em relação a um determinado cânone estético. Assim, determinada
vanguarda estética representaria um desvio em relação a um “mundo artístico-intelectual”, tal
como o definiu Howard S. Becker. No caso de uma vanguarda como a contracultural, com
seu ápice na década de 70 – composta por elementos estéticos, industriais, políticos,
econômicos, ecológicos, psicofísicos etc. –, o sentido de desvio extrapola o nível de produção
de obras, ou pensamentos, e se instaura no dia-a-dia do indivíduo.
A contracultura, nesse sentido, pode ser definida como manifestação
esteticopsicossocial (RISÉRIO, 1990) em que, e isso é evidente, vida e obra surgem como
elementos, por vezes conflitantes, mas inseparáveis, em qualquer situação. No caso de
Leminski, aqueles dois desvios agem concomitantemente, estruturando-se um no outro e sua
trajetória literária, ou multiartística, é resultado do intercâmbio desse desvio duplo, às vezes
até ambíguo. Nesse período se instaura uma espécie de onda neo-romântica, anunciando e
oferecendo às pessoas novidades como as drogas alucinógenas, o pacifismo, a ecologia, o
orientalismo, o movimento feminista, o pansexualismo etc., como manifestações de um
desvio assumido contra o status quo mundial. Leminski, integrado a tudo isto, entrega-se às
influências concreto-líricas de Donald Keene e Haroldo de Campos, em que o método
ideogrâmico é peça-chave dessa estética vanguardista que se assume como nova fé pelos
conceitos e linhas estéticas:
SIGNO
SIGO
NA NOITE
O DESTINO
SER AQUILO
QUE A SOMBRA
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QUIS
PARA NOIVO 15
simples
como um sim
é simples
mente
a coisa
mais simples
que ex
iste
assim
ples
mente
de mim
me dispo
des
(aus)
ente16
Como poucos, sobretudo a partir da segunda metade da década de 70, Leminski
trabalhou exaustivamente a dicotomia e/ou dialética instaurada entre o sentido do legível e
ilegível, de limite e dissolução, erudito e popular, história e filosofia, prosa e poesia,
informação e comunicação. Seus poemas haikaicos mesclam uma massa coesa de ficção e
erudição conseguindo, como espécie poética de anotações caóticas – previamente arquitetadas
–, transformar informação rápida em mensagem profunda.
O poeta, com a sofreguidão dos operadores das Bolsas de Valores e a serenidade zen
dos monges, explorava os limites das fronteiras fluidamente estabelecidas. Nesses limites as
ultrapassava, como quem aposta no desconhecido como a mais ousada forma de revelar, em si
e por si, o lirismo entranhado em cada ser humano. Leminski via no dia-a-dia da vida a
possibilidade real de (re) acender o romantismo como neologomarca de uma postura mais
centrada no sentimental, no espiritual e no indizível das palavras. Ao romper, pacificamente,
com o concretismo, o poeta busca a (re) construção de uma nova poesia brasileira como quem
tem de começar tudo de novo. E assim faz, na busca da compreensão de que “difícil é
descobrir o novo nas coisas recentes” e “que a estátua da liberdade / e a estátua do rigor velem
/ por nós.” (LEMINSKI e BONVICINO, 1999, p. 10).
Ao se aproximar dos parnasianos por seu gosto pelo artifício da estrutura poética e uso
de outros recursos (rima e escansão, por ex.), Leminski assume como norma a transformação
em novos significados de Figuras de Linguagem, como a antítese. Dessa maneira, compõe sua
15
Caprichos e relaxos, p. 120.
16
La vie en close, p. 27.
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poética, dentro de uma linha neo-romântica, articulando visão zen-orientalista com uma
abordagem tecnicista da poesia concreta: ele articula Bashô e Pound; Bilac e Oswald de
Andrade; Buda e Jesus Cristo. O poeta, ao utilizar com rara habilidade e eficiência o mass
media, desconfiava da formalidade acadêmica e do que chamava, no rastro da produção
concretista, de “lógica aristotélica” da linguagem.
Leminski apelava, assim, para a experiência irracional como fonte de conhecimento
para o haikai (FRANCHETTI, 1994). Nesse sentido, no haikai de Leminski, que melhor
soube adaptá-lo para o português, há uma confluência tanto da ênfase na técnica do
ideograma, quanto de um apelo vivencial. Há a preocupação do poeta em radicar o haikai
numa prática, assumindo-o como caminho mesmo de vida e o colocando como representação
pura da experiência sensorial mais elementar.
Ao mesmo tempo em que mantém sua composição poética com declarado virtuosismo
técnico e com aprimorada linha intelectual, Leminski estabelece com sua produção uma
relação marcada pelo lúdico, por uma expressão de fundo romântico centrada entre a
inocência e o deslumbramento pela vida e pelas pessoas. Muitos de seus poemas revelam um
inconfundível prazer pelo conteúdo conciso do haikai e uma assumida liberdade, quanto à
estrutura, ora pelo uso descompromissado da assonância e da rima, ora utilizando o verso
branco e sem medida, ora construindo o poema visualmente, ora reconstruindo a forma/fôrma
das letras e palavras e ocupando o espaço disponível da folha.
Foi sobretudo com o lirismo dessa poesia livre – liberdade como marca da produção
poética da década de 70 –, atribulada e serena que o haikai encontrou, fora da comunidade
japonesa, a melhor e mais conhecida realização no Brasil. Assim, haikaimente, a fulminante
produção poética de Leminski assimila as conquistas da poesia concreta, articulando-as a uma
noção coloquial e humorística do modernismo brasileiro da 1ª fase:
SÍ LA BA
MIM
PA
LA
VRA
SEM
F
F
F
I
I
I
M
M
M 17
se
nem
for
17
Caprichos e relaxos, p. 135.
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terra
se
trans
for
mar18
Mesmo depois da definição do calligrame, por Apollinaire, como poema ideográfico e
com a atenção das vanguardas literárias européias do início do século para a ideografia
chinesa, ainda é outro o interesse concretista. Ele se funda na radicalidade de uma composição
nova, centrada em Fenollosa (2) e suas considerações sobre linguagem e poesia, antevendo-se,
de modo sintético mas detalhado, uma abertura extra-ocidental que avança pelo texto além de
seu plano das fundamentações estéticas. Nesse contexto, avalia Risério (3), a contracultura
propõe um tipo de retorno à natureza, refazendo viagens de Rosseau e Wordsworth em que se
estabelece, ainda que utopicamente – considere-se que aquele ecologismo não é o ecologismo
de hoje –, o rompimento com um dado modelo de sociedade.
O haikai, para Leminski, serve para testar e compor visualidades e sintaxes de
montagem, harmonias fônicas em jogos de imagem. O poeta o assume, também, com olhos de
contracultural andarilho neo-romântico-metroplitano – olhos de angustiante e isolado amor
pela natureza, marcado pela inexorável percepção da escassez dos recursos minerais e
materiais:
as coisas estão pretas
uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras19
um pouco de mao
em todo poema que ensina
quanto menor
mais do tamanho da china20
xavante
muitos xxxxx
avante21
18
Idem, p. 126.
19
Caprichos e relaxos, p. 105.
20
Idem, p. 84.
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muito romântico
meu ponto pacífico
fica no atlântico22
No Brasil dos anos 70 se percebe a estruturação do Movimento Negro Unificado, a
proliferação dos terreiros de umbanda, do ritual católico das missas que admitem algumas
intervenções do candomblé. Percebe-se, ainda, o ressurgimento de entidades afrocarnavalescas, o renascimento de uma música popular negromestiça que, entre outros fatores,
institui um novo contexto histórico fundamental nas relações sócio-raciais (4). Ao par desses
acontecimentos nacionais, vê-se o surgimento, no continente africano, de novas nações negras
de língua portuguesa superando o colonialismo e a revitalização do movimento black power e
da soul music norte-americanos.
Leminski – um excêntrico que não tendia ao desbunde intelectualóide e infrutífero de
boa parte de sua geração – não ficou às margens desses “acontecimentos”. Deixando-se
absorver por tantas novidades, contraculturalmente, revelou-as por meio de um processo
poético neo-romântico miscigenado e antipreconceituoso. Nesse contexto o verso
leminskiano, sob uma neo-estética lírico-poética da concisão, do humor, da ambigüidade, da
sonoridade, do subjetivismo, absorvido por momento histórico (pós) moderno, nunca perde a
espontaneidade e uma orientação bem definida:
Meu reino é do outro lado do mundo
Meu reino
Meu mundo por um cavalo
.................
Este mundo
Não me deixa reinar
Neste reino me resta
Ser vagabundo e ruminar
.................
Meu reino cavalga este mundo
– Logo ele que nunca soube caminhar!23
...................
eu descobri
que o frevo
tem muito a ver
21
Idem, p. 104.
22
Idem, p. 152.
23
Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, carta 68, p. 173.
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com certo
jeito mestiço de ser
...................
de ser meio
e meio ser
sem deixar
de ser inteiro
e nem por isso
desistir
de ser completo
mistério
...................24
Em La vie en close – que compôs ao longo das décadas de 70-80 e deixou organizado
no final de 1988 – Leminski sugere a proximidade de sua morte. Nesse período sofre graves
crises hepáticas e como neo-ultra-romântico vítima de um novo Mal du siècle – a angústia da
ação vivida no meio da multidão de pessoas mecanicamente insensíveis, angústia movida a
drogas e bebidas –, vai se entregando aos “mistérios gozosos” do fim de seu tempo “na
esfera” da terra. Em outubro ou novembro daquele ano, escreveu um bilhete-testamento
(divulgado pelo Jornal da Tarde) no qual, com a imprevisibilidade constante de sua boêmia
assumida, procurou traçar um sentido a sua passagem:
Este pode ser meu último texto. Talvez eu repita o destino de Fernando Pessoa,
aos 44 anos e do mesmo mal. Nunca estive interessado em envelhecer, eu que
sempre amei a juventude. Quero repousar em Curitiba, ao som dos Beatles, com
meu kimono de faixa preta. Saio da embriaguez de viver para o sonho de outras
esferas. Alice: por toda uma vida. Ana: obrigado pela vida que você me deu.
Fortuna: você foi demais pra mim. Áurea, Estrela: vou amar vocês até o fim e
depois.
O livro é marcado, assim, pela presença fluida da leveza oriental de quem enxerga a
vida através das lentes grossas de óculos ocidentais exigindo formalidade e rapidez. Nele, sua
poesia traz, em si, essas marcas tatuadas:
RUMO AO SUMO
Disfarça, tem gente olhando.
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
...................
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.25
Com o lançamento de La vie en close, Leminski não chegou ao ato extremo como
Torquato Neto, ou Mishima (5), ou como Iessiênin ou Maiakóvski. Ele busca, na verdade,
24
Caprichos e relaxos, p. 16.
25
La vie en close, p. 49.
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além de uma notificação objetiva, datada com extrema lucidez e coragem, a revalidação de
um sentido romântico de sua própria vida, em que a função de fugacidade para sua Pasárgada
é mantida-roubada dia-a-dia: em um jogo de vai-e-volta espiritual, Leminski opta pela razão e
aposta na vitória do sentimento. Assim, vários de seus poemas estão carregados dessas pistas,
algumas visíveis, outras camufladas, mal e bem escondidas em cada imagem, em cada espaço
vazio, em cada sensação de silêncio e grito – contido e expulso.
Não haveria exagero nenhum em comparar a trajetória vigorosa deste multipoeta,
rebelde dos anos 70, com a de Jimi Hendrix ou Janis Joplin (ASSUNÇÃO, 1991). O fato é
que Leminski, disfarçado em si mesmo, erudito, karateca, alcoólatra e poliglota, não passou
incólume àquela geração rebelde dos anos 60. Ele chegou a escrever em um poema que estava
se tornando um mestre em disfarces. Essa afirmação revela sua inquietação em “administrar”
uma vida – conturbada pela tecnologia e interesses imediatistas – procurando a essência de
uma nova existência interpessoal romântica, suave e concreta, perdida entre os museus
clássicos e os shoppings center ciberpoéticos da pós-modernidade.
À vontade de revigorar a produção poética nacional da década de 70, apoiou sua
intenção despreocupada em seguir as idéias da poesia concreta ao longo das trilhas áridas dos
anos da década de 60. Assim, sua produção reaplica a, mesmo que questionável, importância
de Oswald de Andrade com seu coloquialismo nacional e poemas-piada, poemas-minuto,
poemas-pílula. Reaplica o constante e intenso diálogo com a literatura clássica, com os
simbolistas e com a poesia beat americana, a fim de tentar estabelecer novos parâmetros para
a leitura e compreensão da lírica moderna. Reaplica: a produção literária pela música popular;
o uso obsessivo do provérbio, a construção da frase poética densa, inquebrantável e simples; o
orientalismo ocidentalizado pelos haikais de Bashô.
Reaplica, ainda, as mais variadas filosofias e línguas que compõem o percurso
histórico e estético dos ismos europeus do final do século XIX e as vanguardas (com suas pósvanguardas) do século XX. Todos esses desvios, recriando novos caminhos, traçam o
conturbado percurso leminskiano. Daí o projeto de Envie meu dicionário (6), como mais um
testemunho de fé: textos com a missão de registrar o neo-romantismo de uma produção
poética, perdida e encontrada, na modernidade.
Esse livro, em que se lê/vê a desconstrução de um período – sobretudo década de 70 e,
ainda, a de 80 – pela composição das cartas (e por elas, a alma do poeta), revela-se como tipo
de documentação poética. Nela é demonstrada a estruturação do verbo fácil, o derramamento
constante de idéias, o carinho entranhado na mensagem, a rispidez fiel de uma fonte precisa, o
sentido de estranhamento e a definição de uma poesia construída, essencialmente, pelo
diálogo. Poesia que se afirmava na categoria de um empreendimento cultural que se projeta
como entidade/identidade de círculos especulativos, de materiais mergulhados na palavra, na
sua forma, no seu som.
Há um problema, até ingênuo, em taxar Leminski como fundamentalmente um poeta
marginal. Tanto quanto, ao rotulá-lo como poeta de “versos normais”, meramente proverbiais,
não se percebe seu lirismo em uma estrutura romântica quase clássica – nunca na forma, mas
sempre na essência. É ver/ler alguns trechos de suas cartas-ensaios, de seus poemas, e assumir
a possibilidade da ampliação da visão para além do esperado, do estabelecido e do proposto
como estrutura formal ou/e conceito tradicional. Neles, os anos 70, no Brasil e no mundo,
lançam raízes ético-estéticas para além de uma filosofia e gramática livresco-acadêmica;
neles, há o ruído de uma poesia amena, árida e sempre plena:
.................
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nossa poesia tem que estar a serviço de uma Utopia
ou como v. disse
de uma
ESPERANÇA
é isso que quero dizer quando falo
que o poeta para ser poeta tem que ser mais poeta
.................
talvez não haja mais tempo
para grandes e claros GESTOS INAUGURAIS
como a poesia concreta foi
a antropofagia foi
a tropicália foi
agora é tudo assim
ninguém sabe
as certezas evaporaram
que a estátua da liberdade
e a estátua do rigor
velem por nós
amor abraços26
Enfim, materializou sua vida pop-underground-zen na ressignificação do conceito
dialético beber-viver, lúcido-excêntrico, oriental-ocidental, solidário-solitário, românticoconcreto. Nessa assumida ressignificação, viveu crises sociais de identidade nacional de um
país em surtos de milagres econômicos, ao lado de suas várias crises pessoais. Assim, talvez,
ou certamente, a massa desconjuntada de ações da maioria amorfa e comedida de seus
sobreviventes contemporâneos, envolvendo-o, o tenha abalado com uma intensidade sempre
ferinamente decisiva, que o empurrou ao convívio de seus (poucos) iguais:
LIMITES AO LÉU
POESIA: “words set to music (Dante
via Pound), “uma viagem ao desconhecido”(Maiakóvski), “cernes e
medulas”(Ezra Pound), “a fala do
infalável”(Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade”(Jákobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido”(Paul Valéry), “fundação do
ser mediante a palavra”(Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem”(Coleridge), “emoção
relembrada na tranqüilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
26
Envie meu dicionário – carta e alguma crítica, trecho da carta 9, p. 46.
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(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras”(Fernando
Pessoa), “criticism of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa”(Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire”(Bob Dylan), “design de
linguagem”(Décio Pignatari), “lo
imposible hecho posible” (García
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução” (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo
Leminski)...27
Leminski e a poesia como religião moderna: uma poética excêntrica em suas marcas
neo-românticas (um conjunto de características)
Baseando-se na articulação dos conceitos da Estética da Recepção (ZILBERMAN,
1989; LIMA, 1979), na análise do conceito de romantismo anticapitalista (GUINSBURG,
1993; LÖWY e SAYRE, 1995, 1993; LÖWY, 1990) e na linha epistemológica desenvol-vida
por autores como José Guilherme Merquior (1996), o conjunto de características a seguir
busca o desvelamento temático28 do sentido de excentricidade romântica na poética de
Leminski. Construída por singular composição conteúdo x forma, tal poética representa a
literatura nacional no que se expressa por temas contemporâneos, fundados em uma condição
hiper-real e metonímica. Essa expressão contemporânea se dá, no entender de Merquior, por
meio da articulação com uma, e superando-a, produção moderna de essência surreal e
metafórica.
Entenda-se que Leminski também traz em sua produção essa “manifestação de
articulação” entre o moderno e o contemporâneo. Nesse novo contexto sócio-artístico –
década de 70 e ainda a de 80 –, floresce o neo-romantismo de Leminski, considerado como
tipo de romântico excêntrico – lembre-se, ainda, século XX afora, de Murilo Mendes, Manoel
de Barros, Cora Coralina, entre outros. Neo-românticos excêntricos, às margens de um centro
canônico literário estabelecido, esses artistas são, com sua visão crítica, lírica, telúrica,
corrosiva e desmascaradora de arte e de mundo, efetivamente os fundadores de uma
verdadeira “tradição moderna” nacional.
Ao fim dessa análise, seguem algumas características – na linha proposta de um
neorromantismo-excêntrico – que podem ser avaliadas como componentes fundamentais da
estrutura poética de Leminski29:
A presença ausente da mulher amada – símbolo do sentimento perdido / encontrado no
vazio do dia-a-dia:
este mundo está perdido
27
La vie en close, p. 10.
28
A opção, no presente artigo, é pela apresentação geral desses temas na poética de Leminski, sem considerar
questões outras de ordem analítica, como predominância de imagens, alegorias, rimas, substantivações etc.
29
Optou-se, ainda, na maior parte dos exemplos, pela apresentação integral dos poemas.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no11
disperso entre o escrito
e o espírito ruído
entre o físico e o químico
flui o sentido, líquido
viver é grande
porque eu sinto tua falta
já que arrasto por aí
esse falso ainda
minha alma torta
e a falta faz que vai
mas volta
no meio da ida e da vinda30
A crítica (com intenção solidária) a condições de existência centradas em uma vida
rotineira, sem riscos ou dúvidas:
UMA PARTÍCULA
UM ÁTOMO
UMA MOLÉCULA
UMA CÉLULA
UMA SÍLABA
UMA PALAVRA
UM SIGNO
UMA ESTRELA
UMA KONSTELLAZION
UMA GALÁXIA
entre o verso e o universo
o subverso versus o reverso
tem lugar para todo mundo vamos deixar de ser fascistas
o concretismo ou significa liberdade
dogmáticos
ou não significa NADA
partidistas
bitolados
chega de leis
limitados
basta de normas
cada obra
agora
já sabe o que fazer
o que deve ser feito
o perfeito
e o imperfeito
o absoluto
e o relativo31

 nós

A poética da (neo) religiosidade como ofício de crença em um deus brasileiro ativo e
presente:
30
La vie en close, p. 43.
31
Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trecho da carta 25, p. 73.
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Guavira
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parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta32
O sentido transmoderno da fugacidade contemporânea para um local ameno (sem sair
de onde se está):
a quem
interessa
esse
além
sem
pressa
?
a mim
este
aquém
o
além
a
quem
interessar
possa33
POETRY OF CONFLICT IN THE 70´s:
PAULO LEMINSKI AND SIGNS OF HIS NEOROMANTISM
ABSTRACT: Paulo Leminski responded in a unique way, especially in the 70´s, the most pressing challenges
increasing the culture and the new sociopolitical order presented. Challenges posed, for example, by the Cold
War, racial strife, Third World, the information society. In this context national-global Leminski renew poetic
language as the center of their ethical and aesthetic projects. Under such compound ethical and aesthetic, neoromantically emphasize major divergence, compared to the national literary canon, as to understand the
boundaries between poetry and non-poetry, functional art and activist art. Also emphasizes the humorous and
ironic denunciation of the "new times" and proposed that the poet as looking for a more integrated
communication, creative and edgy with people and art.
32
Caprichos & relaxos, p. 91.
33
La vie en close, p. 88.
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Guavira
no11
KEYWORDS: Eccentrism. Poetry. Society.
Notas:
(1) Os poemas citados foram extraídos de LEMINSKI, P. e BONVICINO, Régis (org.). Envie meu dicionário –
cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999; LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2 ed. São Paulo:
brasiliense, 1991; LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. 3. ed. São Paulo: brasiliense, 1985.
(2) No ensaio de Fenollosa, The chinese written character as a medium for poetry, já se observam análises muito
interessantes sobre o jogo de vanguardas que ora se presencia em todo o mundo.
(3) Risério, op. cit., p. 12, avalia que “foi dessa maneira que a contracultura abrigou e alimentou o embrião da
ecopolítica, embora, naquele momento, nosso ecologismo tenha sido mais uma atitude filosófica do que qualquer
outra coisa.”
(4) Esse conjunto amplo de fatores foi resultado, basicamente, do chamado milagre brasileiro, promovido pela
sucessão de governos autoritários desde a década de 60. Para melhor compreensão do “fenômeno” e suas
variantes, consultar: SKIDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. Trad. de Raul Fiker. São Paulo: Paz e
Terra, 1998; PRADO Jr., Caio. “Organização social”. In: Formação do Brasil contemporâneo. 21. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
(5) Leminski traduziu Sol & Aço, uma apologia ao suicídio honroso dos samurais, de Yukio Mishima. Não
obstante, para alguns críticos mais ácidos de sua obra, essa tradução tenha sido feita por motivos estritamente
financeiros, para o poeta esse caminho – o do suicídio – seria sempre um caminho possível e venerável.
(6) Esse livro, de 1999, apresenta-se como obra melhorada, com mais ensaios e fac-símiles, em relação à anterior
coletânea de cartas, Uma carta uma brasa através, publicada em 1992, pela Iluminuras.
REFERÊNCIAS
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ASSUNÇÃO, A. Leminski: dor e rigor em seus últimos poemas. In: Jornal da Tarde. Caderno Artes e
Espetáculos. São Paulo, edição de 29/03/1991.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
CAMPOS, H. de. Uma leminskíada barrocodélica. In: Folha de São Paulo, Caderno Letras, p. G4, edição de 2
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FRANCHETTI, P. Notas sobre a história do haikai no Brasil. In: Revista de Letras. São Paulo, UNESP, no. 34,
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GÓES, F; MARINS, Á (Sel.). Melhores poemas de Paulo Leminski. 5. ed. São Paulo: Global, 2001.
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LIMA, L. C. (org. e trad.). A literatura e o leitor – textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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LÖWY, M. e SAYRE, R. Revolta e melancolia – o romantismo na contramão da modernidade. Trad. Guilherme
João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
_____. Romantismo e política. Trad. Eloísa de Araújo Oliveira. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
LÖWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. Trad. Myrian Veras Baptista e
Magdalena Pizante Baptista. São Paulo: Perspectiva; EdUSP, 1990.
MELO, T. M. de. Leminski e as gerações futuras. In: O Povo, jornal literário, Caderno Sábado. Fortaleza, CE,
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_____. Qualigrafeira. In: Viola de cocho, jornal literário, abril/maio de 1998. Ponta Porã, MS.
MERQUIOR, J. G. A razão do poema. 2. ed. Rio de Janeiro: Toopbooks, 1996.
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no11
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ROCHA, J. C. de C. Dialética da marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea (ensaio).
In: Folha de São Paulo, Caderno Mais!, edição de 29 de fevereiro de 2004.
TELES, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
Vários autores. Paulo Leminski. Curitiba: EdUFPR, 1994.
ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
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YVES BONNEFOY E A IMAGEM, COM
UMA NOTA SOBRE RAOUL UBAC
Pablo SIMPSON1
RESUMO: Este ensaio pretende discutir a noção de “imagem” na obra de Yves Bonnefoy a partir do livro
L’Arrière-pays, publicado em 1972. A imagem, cuja recusa e aceitação constitui parte da intriga do livro, nos
permite considerar uma dimensão do tempo, chamada aqui de “hesitação”, fundamental para a produção crítica e
literária do poeta. Trata-se de uma “suspensão do tempo”, conforme afirmaria Yves Bonnefoy, sugerida nas
obras pictóricas “por sua espessura de hesitações, de ambigüidades, de contradições”. Tal hesitação se produziria
no texto literário através da sugestão de momentos de simultaneidade, mas também através de imagens como a
“soleira” ou o “limiar”. São imagens, além disso, que se revelariam como momentos de uma “atestação de si”,
cujo valor ético observou em artistas como Raoul Ubac.
PALAVRASCHAVE: Yves Bonnefoy. Raoul Uba.Poesia.
L’Arrière-pays de Yves Bonnefoy é um livro de imagens. A angústia de um caminho
não escolhido, de uma terra distante para além das montanhas, não se diz sem menção a esse
lugar. São paisagens como as de Piet Mondrian ou de Nicolas Poussin, sendeiros que se
abrem, “um caminho que seria a terra mesma”, como indicariam igualmente a Paysage e a
Petit paysage d’Italie vu par une lucarne de Edgar Degas, reproduzidas no livro. Ou, como
afirmaria o poeta em Le Nuage rouge de Piet Mondrian, “o crisol onde a terra distante,
dissipada, viria readquirir forma”2.
Em L’Arrière-pays, Yves Bonnefoy afirma a “necessidade que temos das imagens” e a
relação que estabelecem, de maneira geral, com a criação poética. Assim as definiria, como o
que aparece nos devaneios a partir das experiências e dos desejos que as “simplificam, ou
intensificam, ou transfiguram”. São imagens que se fixam com seus traços: “tudo que parece,
apesar de tudo, fazer da visão fugitiva um fato”, interrompendo o fluxo. Fato que diz respeito
a um outro lugar “que não o de nossa vida”, e que testemunha “talvez a existência de um
outro mundo”. A citação é de Entretiens sur la poésie:
As imagens, elas são com certeza o que aparece nos devaneios a partir das
experiências já ensaiadas em nossa prática efetiva e os desejos que as simplificam
ou intensificam ou transfiguram. Mas são também o enquadramento, a página, a
fixidez do traço, tudo o que parece fazer da visão fugitiva um fato apesar de tudo,
um fato proveniente de um outro lugar que não a nossa vida, e testemunhando
mesmo talvez a existência de um outro mundo. (Entretiens, p. 12)
No fim dos anos 1960, Yves Bonnefoy recebeu um convite de Albert Skira para
participar da coleção Sentiers de la création, criada alguns anos antes em Genebra. São livros
de imagens, em que as imagens se relacionam com o texto literário. Embora elas tenham
1
Leitor de Civilização e Literatura Brasileira na Université de Yaoundé I - Cameroun. E-mail:
[email protected].
2
As referências seguintes das publicações de Yves Bonnefoy foram abreviadas para facilitar a leitura e
encontram-se completas na bibliografia final. As traduções, salvo menção, são minhas. As três telas ilustram,
respectivamente, as páginas 58-59, 153 e 151 de L’Arrière-pays.
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Guavira
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sempre participado de sua obra ensaística e poética, não apenas com o sentido da crítica de
arte freqüente aos poetas franceses, em L’Arrière-pays elas adquirem um lugar central.
Imagens não do próprio escritor, como de Roland Barthes ou de Henri Michaux, que
ilustraram a mesma coleção. A relação entre texto e imagem não é também uma relação
secundária de ilustração3. As imagens são acompanhadas de pequenas frases extraídas do
texto, sem menção direta. Em L’Arrière-pays, elas não recebem comentários. Deixam-se
enunciar, no entanto, através do texto. Constituem a raiz de seu próprio movimento hesitante,
tanto quanto de sua intriga: do narrador-personagem que recusa as imagens à aceitação delas e
de si-mesmo. Conforme afirmaria Catherine Beccheti no ensaio “Du rêve de l’image à la
parole simplifié”, “entre a representação pictural e a voz hesitante que anuncia a presença, se
desdobra todo o espaço da criação poética como Yves Bonnefoy a compreende”4.
Em “La présence et l’image”, aula inaugural do curso de poética do Collège de France,
em 1981, Yves Bonnefoy investigaria um de seus desdobramentos. A imagem estaria próxima
da idéia de ficção. Trata-se, em primeiro lugar, de sua relação com as palavras: “Eu chamarei
imagem essa impressão de realidade enfim plenamente encarnada que nos vem,
paradoxalmente, das palavras que se desviam da encarnação”5. A imagem é mentira, “por
mais sincero que seja o criador de imagens”. Nesse instante, Yves Bonnefoy definiria a poesia
como uma negação da imagem, uma transgressão. A imagem seria o “mundo-imagem” que é
preciso combater, com vistas à finitude: dialética também do sonho e do aqui, do “eu que
sonha” e do “eu que existe”. Toda representação se tornaria um véu que esconde o
“verdadeiro real”. “A poesia conhece a sua própria mentira”, diria o poeta, mas através dessa
relação com a imagem. Esse é o primeiro sentido (e o negativo) das imagens de L’Arrièrepays: visão “coerente e suficiente”, que “se substitui ao mundo da finitude”6.
Mas a imagem comportaria também uma verdade, como afirmou no ensaio “Leurre et
vérité des images”7. Assim Florença, esse lugar de conversão para Yves Bonnefoy, é também
a educadora ferida que ensina que se pode amar as imagens:
(...) Florença tinha sido para ele a educadora ferida, memoriosa, sábia, de que
tinha necessidade, que buscava. E ela lhe mostrou, lição jamais recebida até então,
que podemos amar as imagens, mesmo que em cada uma reconheçamos o não-ser:
tanto é verdade que todas essas obras juntas, elas não são uma anulação recíproca,
mas um aprofundamento possível de si-mesmo, e enfim o destino.(L’Arrière-pays,
pp. 80-83)
3
Micolet, H. Peinture et littérature chez Yves Bonnefoy: formation de la forme dans L’Arrière-pays, (cf.
bibliografia), p. 35.
4
Becchetti, C. “Du rêve de l’image à la parole simplifié”, in Critique, 560-561, jan-fev de 1994, p. 21-46. “Entre
la représentation picturale et la voix hésitante qui annonce la présence, se déploie tout l’espace de la création
poétique telle qu’Yves Bonnefoy la comprend”, p. 22.
5
Lieux et destins, p. 26.
6
As citações provêm das notas anexas de Yves Bonnefoy ao estudo de Jérôme Thélot, Poétique d'Yves
Bonnefoy, Droz (Histoire des idées et critique littéraire), Genève, 1983, pp. 265.
7
Bonnefoy, Y. “Leurre et vérité des images”, entrevista com Françoise Ragot, Alain Irlandes e Daniel Lançon, in
Écrits sur l’art et livres avec les artistes, ABM/Flammarion, 1993, pp. 35-78.
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Ut pictora poesis
Um aprofundamento de si é obtido através das imagens. O poeta não hesitaria em
referir a esse lugar de contato da poesia e da pintura. O pintor seria aquele que “permitiria ao
poeta melhor compreender a natureza da ilusão”, que tanto a poesia quanto a pintura têm em
comum: “é a preocupação do que chamo imagem” 8. A arte italiana revelaria, por um lado, a
“felicidade que encontramos nos aspectos do mundo, quando os percebemos como
componentes de nosso lugar” 9. É preciso compreender essa dialética de Yves Bonnefoy, para
entender a sua recusa a Picasso e a Manet. Este faria com que a arte rompesse com “seu
antigo projeto de conhecimento, metafísico ou moral”. Picasso, em Les Demoiselles
d’Avignon, tentaria desarticular a pintura como lugar de uma “consciência profunda” 10. No
ensaio “Giacometti et Picasso” em Remarques sur le regard, Yves Bonnefoy explicitaria essa
contrariedade ao opor o projeto de ambos. É revelador, aliás, que a recusa a Picasso encontre
no que caracterizaria como uma “abolição do olhar” um componente da relação das imagens e
do “eu”. O auto-retrato, para Picasso, seria um problema, como no Autoportrait de 1906, em
que o eu desvia o olhar. Nas duas telas de 1928, Le Peintre et son modèle, Yves Bonnefoy
chama a atenção para essa inaptidão do artista de colocar-se “em plena presença” do outro e
de si. Numa delas, a modelo com três olhos, que miram o artista, encontra em sua
representação apenas dois que observam não a ela, porque voltados “para nós, que estamos
fora da cena, como para escapar do pedido que lhe é feito”. Não se afrontariam a
intensificação e a inquietude desse olhar:
Como melhor significar que o olhar, via através da qual o ser emerge na figura, é o
que mais aparece em Picasso, mas também o que ele teme não poder sustentar, o
que a sua arte vai ao mesmo tempo guardar em memória e evitar afrontar?11
Alberto Giacometti, por sua vez, como para o poeta Jacques Dupin – “ele persevera
nas aparências e escava o real até tornar visível a essência de sua relação, isto é a presença do
sagrado” 12 – seria aquele que colocaria em primeiro plano, não o prazer estético, mas a
exigência moral 13. Ele atestaria a presença, segundo Bonnefoy, e uma “descoberta de si”,
situando-se na contrariedade de Picasso, ao ir direto ao rosto14. Contra a arte lúdica e livre, as
“facilidades da virtuose sarcástica” do pintor espanhol, Giacometti, paralisado, se colocaria
frente ao “duro fardo da responsabilidade pessoal”, num século que começava com o
sentimento da relatividade das culturas, da irrealidade dos valores da tradição ocidental. Daí a
8
Id., p. 44.
9
Id., p. 63.
10
Id., pp. 69 e 71. A análise de Yves Bonnefoy da mesma tela encontra-se também no ensaio Remarques sur le
sur le regard: Picasso, Giacometti, Morandi, L’Art en France entre les deux guerres, Calmann-Lévy, 2002, pp.
91-96.
11
Remarques sur le regard, p. 82.
12
cf. Mascarou, A. Les Cahiers de “L’Éphémere” 1967-1972: tracés interrompus, L’Harmattan, 1998, p. 125.
13
Remarques sur le regard, p. 100.
14
Sobre o caminho da representação do rosto, que conjugaria “aparência, essência e intemporalidade”, e as
interrogações sobre a ausência de retratos na arte moderna, cf. ainda Bonnefoy, Y. “Le Portrait: sa naissance, sa
renaissance” in Campbell, Lorne. Portraits de la Renaissance: la peinture des portraits en Europe aux XIV e,
XVe et XVIe siècles, traduit de l’anglais par Dominique Le Bourg, Hazan, 1991.
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“esterilidade inquietante” do artista no pós-guerra dos anos 1920. A hesitação é a mesma que
caracterizaria a sua invocação na revista L’Éphémère, dirigida por Bonnefoy: por um
engajamento na “existência real”, aproximando vida artística e uma sucessão de provações15.
A pintura/imagem comportaria, para Yves Bonnefoy, portanto, ilusão e verdade. Com
essa dicotomia, o poeta investigaria a Passage du Commerce-Saint-André de Balthus, no
ensaio “L’invention de Balthus”, observando as “figuras com mais ausência, as miragens mais
perigosas”, mas também um rapaz sob a soleira da porta: “ele significa a presença que veio da
ausência”16. E, então, um Balthus oposto ao “rei dos gatos”: oposição entre o que estivera
preso aos números, à literalidade, e o outro que se confronta com esse “grande realismo” – a
expressão é constitutiva da primeira ensaística de Yves Bonnefoy em L’Improbable – “não
figurável na transcendência desse olhar” 17.
É importante indicar a dimensão do olhar do pintor ao reencontrar um outro. Hesitação
que Yves Bonnefoy colocaria sob o signo do tempo, em seu estudo “Le temps et l’intemporel
dans la peinture du Quattrocento” de L’Improbable. Angústia, por vezes, como definiria com
relação a Profanação da hóstia de Paolo Ucello, no tremer dos dedos e na fixidez dos olhares,
confrontados a um futuro iminente, a uma virtualidade trágica. A Profanação “seria” do
tempo, ao dizê-lo em sua “rede de projetos e de inquietações” 18. Trata-se da escolha de um
momento da pintura: “espessura de hesitações”, frente à ação próxima. Hesitação do pintor e
dos gestos. Há um momento cuja intensidade responderia, segundo Pascal Griener, ao que os
gregos chamaram acmé. A análise é do livro Rome 1630 de Yves Bonnefoy, em que o poeta
figuraria a contradição entre dois acontecimentos do período do barroco italiano: arte refinada
e terror desumano. Contradição que Yves Bonnefoy identifica não apenas na história, nos
momentos de decisão e mudança da convicção dos artistas – e que apartaria grandemente o
projeto Rome 1630 de Renaissance und Barock de Wölfflin, por uma dimensão também
pessoal que é, a cada instante, preservada pelo poeta19. Contradição na obra: do “eu” e do
outro. São dois olhares que devem ser confrontados, no instante. E que trazem uma dimensão
do acaso, apontada por Griener, ao fazer da história o “jogo misterioso da necessidade com o
acaso”, como no título de seu ensaio. Por isso, o interesse de Yves Bonnefoy pela “decisão de
ser um pintor”, pelo momento decisivo, que estaria no centro de L’Arrière-pays, na referência
a Nicolas Poussin: “Poussin olha, compreende, e decide pintar, mestre do ramo de ouro, onde
quer que eles existam, seus grandes Moisés salvo”20. Momento da decisão, dada no instante, e
que se encontra também em Rue Traversière, no poema em prosa “La décision d’être
peintre”. Nele as palavras ininteligíveis mudam-se no sol que se ergue, bruscamente, aos
olhos do artista.
E bruscamente, ao contornar um muro, ele recebeu o sol levante no rosto como um
grande grito de envolvimento, de abraço, de fumaça, no inacabado da luz.
(Rue traversière, p. 100)
15
Mascarou, Alain. Op. Cit., p. 127.
16
L’Improbable, p. 55.
17
Id., ibid.
18
Id., p. 66.
19
Griener, P. “Le jeu mistérieux de la nécessité avec le hasard: Yves Bonnefoy, Rome et l’Âge Baroque” in
Bonnefoy, Y. Goya, Baudelaire et la poésie, Goya, Baudelaire et la poésie, La Dogana, Genève, 2004, pp. 85
& 101, respectivamente.
20
L’Arrière-pays, p. 155.
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Poesia, viagem, pintura
Mas é preciso indicar ainda uma outra dimensão desse encontro, dessa atestação de si.
Interrupção que será dada na viagem, lugar de abertura do olhar. Yves Bonnefoy não deixaria
de inscrever-se e de indicar essa aproximação entre a viagem e a arte, como Goethe no
momento em que encontra os túmulos de Verona, inquirindo as ruínas e figuras que são “aqui
na Terra, o que foram e continuam sendo”. Divisando, outrossim, no dia em que chegara à
Roma, a data de seu “segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento”21. Esse é o
sentido que Yves Bonnefoy sugeriria em seu ensaio sobre Bizâncio, “cidade das imagens”, ao
vislumbrar esses instantes, como o canto de um pássaro, possibilitando ao “eu” afrontar, ainda
uma vez, “nosso mundo em seus aspectos mais fugitivos”. Mas não sem incluir a cidade na
geografia do “arrière-pays”, como indicaria Rémi Labrusse22. A citação é do ensaio
“Byzance” de Yves Bonnefoy.
(...) e eu de início associei a um desejo em mim que buscava sua pátria, aquele de
afrontar nosso mundo em seus aspectos mais fugitivos, aparentemente os menos
carregados de ser, para consagrá-los e que eu fosse salvo com eles. É verdade,
cada vez que um canto de pássaro ressoou em alguma floresta, fora de mim, cada
vez que vim à soleira de um circo de pedra onde é minha ausência que reina, cada
vez que o aqui limitado e mortal me pediu assim para romper o selo da recusa
moderna do ser, é a irradiação de Bizâncio que por pressentimento, desde que
soube o nome da cidade das imagens, acreditei tocar. Tratava-se bem da eternidade
esta vez ainda; a nota maior de Bizâncio, percebida em todas as épocas, não tinha
parado de vibrar. Mas esta eternidade não se dava mais através da negação do país
sensível, ela vinha queimar em suas árvores, era preciso esgotá-la no profundo
dessa dispersão onde estamos, porque ela lhe era a substância mesma e o corpo de
glória, subitamente. Todas as formas de consumação e, por excelência, a viagem.
(L’Improbable, p. 176)
A hesitação entre a viagem e a necessidade de fundar um lugar (uma pátria) é,
ademais, transferida para a angústia dos pintores que se exilaram ou escolheram uma outra
terra, no ensaio “Le peintre dont l’ombre est le voyageur”. E então a pergunta: “O que parece
prometer o distante àqueles que conhecem o aqui do mundo?” 23. Tensão, segundo o poeta,
entre o imaginário e a evidência da vida. Não é preciso retomar a proximidade dos temas da
viagem, do exílio e do sonho, para dizer que eles pertencem à mesma dialética da imagem.
Negação/aceitação do aqui, mas também da arte, da escrita, graças a um “ato de fé”.
A dimensão da imagem possibilita uma suspensão do tempo. Corresponde a “um
pouco de duração”, no aqui de nossa adesão, na finitude. Oposição entre “dois desejos, dois
níveis de nosso desejo”. O momento da ação iminente está próximo da representação de cada
uma das figuras inscritas na tela, não apenas pelo caráter da ação propriamente, mas pela
21
Goethe, J. W. Viagem à Itália: 1786-1788, trad. de Sérgio Tellaroli, Companhia das Letras, São Paulo, 1999,
pp. 50 e 175.
22
Labrusse, R. “Byzance et le thème bizantin”, Yves Bonnefoy: Poésie, peinture et musique, Op. Cit., p. 89. Mais
precisamente: “Civilisation orientale et pourtant héritière de Rome, chrétienne et pourtant au contact de
l’Islam, elle est donc aussi un point de rencontre privilégié entre la question de l’origine et la question de l’exil:
deux grands soucis de la poétique d’Yves Bonnefoy. Que ces soucis soient poursuivis au plan des rêveries
profondes du moi, – et c’est l’expérience que le poète désigne sous le nom d’arrière-pays (...)”, p. 84.
23
Rue traversière, p. 160.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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presença/ausência que elas permitem intuir, como o rapaz da tela de Balthus. G. E. Lessing,
em seu estudo exemplar sobre a relação entre a poesia e a pintura, o Laocoonte, já havia
aprofundado – dentre tantas outras questões, o docere das imagens, como na “educadora
ferida” de Bonnefoy; a ilusão da presença (evidentia) de Zêuxis, a que o poeta retornaria
diversas vezes, como na narrativa “Les raisins de Zêuxis” de La Vie errante – essa
perspectiva da ação. Trata-se da oposição entre a linearidade da razão a qual seria submetida a
poesia e a simultaneidade da recepção da pintura. Se as ações constituem o objeto da poesia –
e daí a direção rumo a uma teoria da arte dramática como representante da poesia em Lessing,
realizando “a utopia da linguagem direta”, segundo Márcio Selligman-Silva – a pintura
“devido aos seus signos ou ao meio de sua imitação (...) só pode conectar no espaço, deve
renunciar totalmente ao tempo”. “A seqüência temporal é o âmbito do poeta, assim como o
espaço é o âmbito do artista” 24.
É o mesmo que expressará a poesia de Bonnefoy, repetindo elementos, imagens,
dando a impressão de uma continuidade narrativa. Momento decisivo, a partir também de uma
melancolia da memória. Memória, aliás, que se diz em poemas que chamou de “pedra”,
pedras tumulares, inscrições dirigidas a um leitor. E que falam de um passado irrecuperável
em tensão com o presente, como no poema seguinte de Les Planches courbes:
Manhãs que tínhamos,
Eu retirava as cinzas, ia encher
O cântaro, colocava-o sobre o lajedo,
Com ele fluía em toda a sala
O odor impenetrável da menta.
Ó lembrança,
Tuas árvores estão em flor perante o céu,
Podemos crer que neva,
Mas o raio se afasta no caminho,
O vento da noite derrama seu excesso de grãos.25
Em Yves Bonnefoy ocorre, portanto, uma variação da proposição de G. E. Lessing.
Embora a arte se inscreva no espaço, ela não deixaria de referir a esse tempo da “duração”.
Ele é sugerido na obra pictórica “por sua espessura de hesitações, de ambigüidades, de
contradições”. Assim pretendeu em seu estudo sobre o Quattrocento em L’Improbable. A
pintura se dirigiria à ambigüidade da ação. A poesia, por outro lado, ainda que disponha seus
elementos de maneira linear, pode aproximar-se, por vezes, da representação desses instantes
decisivos. Momentos de “simultaneidade”, expressos através das imagens recorrentes da
soleira, do limiar, no livro Dans le leurre du seuil, nos textos em prosa “Les raisins de
Zêuxis” e “Les découvertes de Prague”. A “soleira” ou o “limiar” são alguns dos lugares de
predileção de Yves Bonnefoy, em que se “cristaliza uma postura afetiva ou mental”, em
contraste, por exemplo, com o “Jardin” de Ronsard, o “Lac” de Lamartine, o “Sorgue” de
Char26. A interrupção é o momento em que o “eu” se abre ao espaço, afrontando o outro e a
si. O momento decisivo torna-se o centro dessa arte “linear”. Porque mesmo a prosa de Yves
24
Lessing, G. E. Laocoonte ou as fronteiras da Pintura e da Poesia, com esclarecimentos ocasionais sobre
diferentes pontos da história da arte antiga, introdução, tradução e notas de Márcio Selligman-Silva,
Iluminuras, São Paulo, 1998, p. 190 & 211.
25
Bonnefoy, Y. Les Planches courbes, Gallimard, 2001.
26
Maulpoix, J.-M. Le Poète perplexe, José Corti, 2002, p. 65.
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Bonnefoy privilegiará essa tensão em que o tempo é menos sucessivo do que simultâneo. Na
narrativa “L’Égypte”, a primeira de Rue traversière, por exemplo, as três histórias narradas
vêm mesclar-se: o sonho em viagem, seguido do despertar que compreende a notícia da morte
da mãe e a visão da menina, e a lembrança da infância, na parte consagrada à personagem
Promé té ché. São associações metafóricas, obtidas pelos “brancos” narrativos, pelos saltos e
interrupções para cada um dos relatos. Eles separam os acontecimentos mais importantes,
tempo que se detém e retoma por meio de intervalos. Subitamente, passa-se a um outro
tempo, servindo-se o “eu” apenas de índices temporais imprecisos.
Mas é possível estender ainda essa simultaneidade à recepção, conforme indicado por
Lessing para a pintura. “L’Égypte” como L’Arrière-pays o fazem através sobreposição de
momentos que adquirem sentido senão em referência um ao outro, na iminência de cada uma
das ações, alternando relações metafóricas e metonímicas – sobreposição que retoma a
oposição entre prosa e poesia. Neles as ações, tão hesitantes, aprofundam, em suas
interrupções – em face do “arrière-pays”, tanto quanto do “eu”, do sonho, da escrita, da
viagem e das imagens – uma dimensão fundamental do tempo.
Raoul Ubac
Raoul Ubac é, nesse sentido, um dos artistas prediletos de Yves Bonnefoy. A ele o
poeta dedicou três ensaios nas bonitas edições de litogravura elaboradas pela Galerie Maeght
para a coleção Derrière le miroir, atrás do espelho: o primeiro deles intitulado “Raoul Ubac”,
de 1955, o segundo, “Dos frutos se erguendo do abismo”, de 1964, e “Proximidade do rosto”
de 196627. São litogravuras acompanhadas por vezes, no caso de Ubac, também de ensaios
dos poetas Francis Ponge ou André Frennaud, em outros números da coleção.
As duplicidades da obra teórica de Yves Bonnefoy constituem elementos importantes
para entender o seu interesse pelo artista, que ilustrou um de seus livros de poemas, Pierre
écrite, em 1965. A crítica do poeta chamaria a atenção para o que existe de amassado e
irregular no papel utilizado por Ubac, sobre o qual imprime manchas feitas com ardósias
entalhadas, uma delas intitulada “Torso”.
27
Sobre o diálogo entre ambos cf. também Pearre, A. La présence de l'image: Yves Bonnefoy face à neuf artistes
plastiques, Rodopi, Amsterdam, 2004, p. 116 e ss, de quem sigo várias observações. Os três ensaios sobre
Ubac foram republicados e L’Improbable et autres essais.
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É possível ver nela, com o auxílio do poeta, uma espécie de poder de concentração ou
economia expressiva, como no poema citado de Les Planches courbes. Trata-se de um mundo
recolhido em seus aspectos essenciais: a pedra, o corpo (tronco sem cabeça), com uma
gravidade que Yves Bonnefoy observaria em Ubac, artista austero, taciturno, de imagens
enegrecidas28. Para dizer que a pedra gravada se tornaria uma “metáfora do ser”. Pedra
gravada no mesmo período em que elabora as ilustrações de Pierre écrite, com a cabeça
ausente, além disso, para situar a dificuldade da representação do rosto na modernidade, numa
espécie de inquietação com a unidade perdida, sobre a qual teorizaria o poeta29.
Raoul Ubac, além disso, ao mesmo tempo em que compartilharia a atração de vários
pintores e gravadores por uma espécie de mundo de signos, como Henri Michaux, superaria
essa espécie de arte fechada, segundo Yves Bonnefoy, através da veemência expressiva.
Contra a idéia de uma pintura voltada para si mesma ou de uma poesia também fechada,
concentrada naquilo que existe de arbitrário nos signos e representações – e cujo paradigma
seria Mallarmé – o poeta observaria em Ubac uma espécie de abertura. É nesse sentido que
afirma que ele “não consentiria à autonomia do grafismo”. Ou ainda: “não aceitou que a
28
“Raoul Ubac” in L’Improbable, p. 57.
29
Pearre, A. Op. Cit., p. 117.
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fascinação da forma pura viesse atrapalhar em sua obra a meditação mais alta daquilo que
existe” 30.
De algum modo, podemos ver assim em Ubac a oposição hesitante entre um certo
sentido elevado, compreendido por esse mundo de signos (elevado também no sentido moral,
numa espécie de desejo ascético manifesto pela resistência da pedra), e o mundo material. É
essa duplicidade que permite que se possa opor contra o cristal de Valéry, a impressão opaca
de sentido, manchada, suja. Como no poema de Yves Bonnefoy dedicado à cantora Kathleen
Ferrier, em Hier régnant désert de 1958: “adeus de cristal e de bruma”, “voz mesclada de cor
cinza”.
Na segunda gravura (sem título, 1974), trata-se novamente de uma espécie de signo
gravado. É um grande “c” com estrias, em tons de cinza e preto. Assemelha-se a um grande
labirinto aberto por quase todos os lados – labirinto como lugar por excelência da hesitação
para Yves Bonnefoy, lugar onde é preciso tomar decisões a cada momento, nenhuma delas
totalizadora. A imagem é, de certo modo, um desdobramento da primeira, também ela uma
pedra, nesse trabalho continuado, repetido do artista sobre a mesma superfície, como numa
evocando uma idéia de artesanato cara ao poeta francês. Ubac se tornaria o artista paysan para
Yves Bonnefoy, camponês prudente, sóbrio, próximo da idéia ética de responsabilidade com
os outros. Artista que trabalharia com limites, lento, e que, para cada tela, necessitaria
elaborar um guache preparatório e um esboço.
Com isso talvez se possa observar também nessas estrias ora a imagem de um campo
arado, ora a sucessão horizontal de colinas, opondo ainda uma vez o rigor construtivo do
signo com as aberturas horizontais, o grande “c” aberto, e a inscrição laboriosa repetida,
primitiva. Nessa pedra que resiste ao esforço artístico, muitas vezes partida, como no “Torso”
de 1965. Campo arado, para dizer também “lavoura” ou “lavra”, títulos de algumas obras de
30
L’Improbable, p. 58.
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Raoul Ubac, e que, de certo modo, acabam por conferir um caráter menos abstrato às
imagens.
Elas trazem, ademais, uma certa idéia de um renascimento, tempo do cultivo aberto ao
futuro, como no vento levando o excesso de grãos do poema de Les Planches Courbes. Com
Yves Bonnefoy, ele seria resposta ao campo devastado da guerra, talvez como vislumbrou em
Giacometti: nesses dois artistas que saíram do surrealismo (Ubac interrompendo, desde então,
a atividade de fotógrafo). Decisão positiva, como observaria o poeta em seu terceiro ensaio
sobre o artista, através do símbolo da Vênus de Paestum enterrada e descoberta por um
camponês. Como sugere Anja Pearre em La Présence de l’image: Yves Bonnefoy face à neuf
artistes plastiques:
Assim, as estrias banais adquirem aos olhos do poeta significações acumuladas.
Como as ranhuras do arado no corpo da Vênus de Paestum, como os signos do
escritor na página branca, essas cifras conseguem por algum momento encarnar a
unidade da matéria e do Inteligível que sugere também a obra de Ubac31.
Trata-se, além disso, de uma abertura no tempo, na duração. Se há uma melancolia
para o viajante que vê nessas manchas impressas a sensação “mais humilde”, sensação
descrita várias vezes em L’Arrière-pays: o ruído de uma colher de estanho, por exemplo, ou a
visão de uma caixa enferrujada, é possível observar nelas também a idéia de aceitação
(aceitação do trabalho), respondendo à dialética visada por Bonnefoy entre um lugar da
imagem e a imagem como experiência da vida. Inscreve-se sob o signo da confiança, tão
importante para a sua última poesia, desde Dans le leurre du seuil. Seria ele, ademais, o
motivo que o afastaria do artista, com sua obsessão pelo negro, pelo obscuro, em contraste
com uma poesia cada vez mais solar, mesmo diante da lembrança inquieta da casa natal:
E depois se fez dia; e o sol
Lançou suas mil flechas de todos os lados,
No dormitório onde aqueles que dormiam
A cabeça embalava ainda nas rendas
Das almofadas de lã azul. Eu não dormia,
Tinha demais a idade ainda da esperança,
Dedicava minhas palavras às montanhas baixas,
Que eu via aproximarem-se através dos vidros. (...) (Planches courbes, pp. 90-93)
YVES BONNEFOY AND THE IMAGE, WITH A NOTE ABOUT RAOUL UBAC
ABSTRACT: This essay aims to discuss the notion of “image” in Yves Bonnefoy’s work starting from the book
L'Arrière-pays, published in 1972. The image, whose refusal and acceptance constitute part of the book’s
intrigue, allows us to consider a dimension of time, referred here as “hesitation”, fundamental for the poet’s
critical and literary production. It is a “suspension of time”, as stated by Yves Bonnefoy, suggested in the
pictorial works “by its thickness of hesitations, ambiguities, contradictions”. Such hesitation would be produced
in literary texts through the suggestion of moments of simultaneity, but also through images as the “threshold” or
the “border”. They are images that would also be revealed as moments of a “attestation of itself”, whose ethical
value he observed in artists as Raoul Ubac.
KEYWORDS: Yves Bonnefoy. Raoul Ubac. Poetry.
31
Pearre, A. Op. Cit., p.126.
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BIBLIOGRAFIA DE YVES BONNEFOY
Poèmes: Anti-Platon (1947), Du Mouvement et de l’immobilité de Douve (1953), Hier régnant désert (1958),
Pierre écrite (1965), Dans le leurre du seuil (1975), compilados por Mercure de France em 1978, reeditados em
Poésie/Gallimard, 1982.
L’Arrière-pays, Skira, 1972, Poésie/Gallimard, 1992, reeditado em 2003.
Rue Traversière et autres récits en rêve, Poésie/Gallimard, 1992. (Reedição de Rue Traversière, Mercure de
France, 1977, e de Récits en rêve, Mercure de France, 1987, que trazia à frente, sem ilustrações, o texto de
L’Arrière-pays.)
Les Planches courbes, Mercure de France, Poésie/Gallimard, 2001.
Entretiens sur la poésie (1972-1990), compilado por Mercure de France, 1990
L’Improbable, suivi de Quatre Notes et de Un Rêve fait à Mantoue, Mercure de France, 1959, nouvelle édition
corrigée et augmentée, Idées/Gallimard, 1980.
Lieux et destins de l’image, un cours de poétique au Collège de France (1981-1993), Éditions du Seuil, 1999.
Remarques sur le regard: Picasso, Giacometti, Morandi, L’Art en France entre les deux guerres, CalmannLévy, 2002.
“Leurre et vérité des images”, entrevista com Françoise Ragot, Alain Irlandes e Daniel Lançon, in Écrits sur
l’art et livres avec les artistes, ABM/Flammarion, 1993, pp. 35-78.
“Le Portrait: sa naissance, sa renaissance” in Campbell, L. Portraits de la Renaissance: la peinture des portraits
en Europe aux XIVe, XVe et XVIe siècles, traduit de l’anglais par Dominique Le Bourg, Hazan, 1991.
SOBRE YVES BONNEFOY
Yves Bonnefoy – poésie, peinture, musique, Presses Universitaires de Strasbourg, 1995.
BECCHETTI, C. “Du rêve de l’image à la parole simplifiée”, Critique, 560-561, jan-fev. 1994.
MASCAROU, A. Les Cahiers de “L’Éphémere” 1967-1972: tracés interrompus, préface de Jean-Michel
Maulpoix, L’Harmattan, 1998.
MICOLET, H. Peinture et littérature chez Yves Bonnefoy: formation de la forme dans L’Arrière-pays, cf.
www.unibuc.ro/eBooks/filologie/litteratureetpeinture/micolet.pdf, maio de 2005).
PEARRE, A. La présence de l’image: Yves Bonnefoy face à neuf artistes plastiques, Rodopi, Amsterdam, 2004.
THÉLOT, J. Poétique d’Yves Bonnefoy, Droz (Histoire des idées et critique littéraire), Genève, 1983.
REFERÊNCIAS
GOETHE, J. W. Viagem à Itália: 1786-1788, trad. de Sérgio Tellaroli, Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
LESSING, G. E. Laocoonte ou as fronteiras da Pintura e da Poesia, com esclarecimentos ocasionais sobre
diferentes pontos da história da arte antiga, introdução, tradução e notas de Márcio Selligman-Silva, Iluminuras,
São Paulo, 1998.
MAULPOIX, J-M. Le Poète perplexe, José Corti, 2002.
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O CASAMENTO DE TEXTO E IMAGEM NOS
PRIMEIROS LIVROS DE WILLIAM BLAKE
Enéias Farias TAVARES1
RESUMO: A obra de William Blake se encontra num lugar incomum na arte ocidental. O artista, não apenas
pretendendo casar o humano e o divino, a infância e a vida adulta, a percepção física com a capacidade
imaginativa, como toda a sua Filosofia dos Opostos demonstra, foi mais longe, conectando poesia e imagens
pictóricas em suas iluminuras. Sua opção por uma forma de arte análoga – nem poesia nem pintura, mas poesia e
pintura – mostrou-se uma escolha extremamente arriscada. Num período em que ilustradores de obras literárias
eram considerados artistas menores – vide caso do francês Gustav Doré e do inglês John Gilbert –, Blake não
ofertou apenas ilustrações de obras textuais já consagradas como também promoveu, em sua própria arte, um
casamento entre poesia escrita e arte pictórica. Nesse trabalho, pretendemos problematizar a leitura que se tem
feito da obra de Blake levando-se em conta apenas o texto e ignorando a importância de suas imagens, buscando
assim a validação de uma interpretação mais completa da obra do poeta inglês.
Palavras-Chave: William Blake. Pintura. Poesia. Relação Intermidiática
Do ponto de vista biográfico, William Blake representa um caso curioso dentro do
Romantismo inglês. William Blake nasceu no final de Novembro de 1757, em Londres. Ainda
na infância, teve visões de deuses, anjos, demônios e antigos profetas bíblicos, como Ezequiel
e Isaías. Crescendo numa paisagem rural, foi alfabetizado pelos próprios pais, numa época em
que a educação formal infantil era um luxo pelo qual a família Blake não poderia pagar. Aos
catorze anos, começou a trabalhar com o gravador James Basire. No mundo das artes
plásticas, as principais influências de Blake foram Durer, Rafael e, em especial,
Michelangelo. No mundo da literatura, Blake apreciava Shakespeare, Milton e Spencer. Nessa
época, o poeta começou a se interessar por alguns textos sobre ocultismo e misticismo, em
especial pelos escritos do alquimista Paracelso. Em 1782, se casou com Catherine Boucher,
que seria sua principal ajudante na pintura e na confecção de suas obras. Após a morte do
irmão Robert, Blake sonhou que ele aparecera numa visão para o ensinar a unir palavras e
imagens numa mesma lâmina. Essa técnica seria conhecida mais tarde como “textos
iluminados”, ou simplesmente “iluminuras”, arte usada por ele em todos os trabalhos
posteriores à Songs of Innocence (1789). No ano seguinte, Blake e a esposa mudaram-se para
o distrito de Lambeth, onde o poeta iria escrever, ilustrar, gravar, imprimir e pintar suas
principais obras. French Revolution, The Marriage of Heaven and Hell, America: A prophecy,
The Book of Urizen e Songs of Experience, entre outros trabalhos, foram compostos,
impressos e vendidos na localidade. Em 1802, Blake retorna à Londres e dedica seu tempo e
energia a projetos pessoais, como Milton e Jerusalém. Durante esse período, o poeta também
aceitou encomendas de ilustrações para obras literárias do seu interesse como The Book of
Job, Paradise Lost e Divine Comedy. Blake morreu em 1827, pobre e considerado um poeta
menor, insano e exótico por parte de seus contemporâneos.
A obra de Blake encontra-se num lugar incomum na historiografia da arte ocidental. O
artista, não apenas pretendendo casar o humano e o divino, a infância e a vida adulta, a
percepção física com a capacidade imaginativa, como toda a sua Filosofia dos Opostos
1
Doutorando da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria – Centro de Artes e Letras – Santa Maria – RS –
Brasil – 97010-080 - [email protected].
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demonstra, foi mais longe, conectando sua poesia com as pinturas presentes em suas
iluminuras. Sua própria opção por uma forma de arte análoga - nem poesia nem pintura, mas
poesia e pintura - se mostrou, como o poeta já devia esperar, uma escolha extremamente
arriscada. Num período em que ilustradores de obras literárias eram considerados artistas
menores – vide caso do francês Gustav Doré e do inglês John Gilbert –, Blake não ofertou
apenas ilustrações de obras textuais já consagradas como também promoveu, em sua própria
arte, um casamento entre poesia escrita e arte pictórica. Nesse trabalho, pretendemos
problematizar a leitura que se tem feito da obra de Blake levando-se em conta apenas o texto,
na maioria dos casos se ignorando as imagens pintadas por ele. Esse problema de
interpretação é problemático, sobretudo, em países que não publicam suas iluminuras, apenas
os textos das laminas, caso brasileiro. Desse modo, essa pesquisa visa a validação de uma
interpretação mais completa da obra do autor, poeta e pintor.
***
A estrita relação, na arte de Blake, entre o verso lírico e as imagens das lâminas,
relação que arriscamos chamar de indissociável, perpassa toda a obra do autor. Começando
por seus trabalhos iniciais, There is no natural religion e All the religions are one, ainda que
de uma forma rudimentar, percebemos como o autor intensificou as possibilidades
interpretativas de sua obra ao apresentar, lado a lado, versos que ora complementam, ora
intensificam, ora aludem, ora se opõe às imagens representadas na mesma lâmina. Como
ilustraremos abaixo, essa arte dual inicia de forma pouco marcante nas primeiras obras,
embora se adense nas obras posteriores, ou da fase madura de Blake, que começa com Songs
of Innocence and Experience e The marriage of heaven and hell.
Em sua primeira obra, The is no natural religion, o poeta afirma que apenas o Gênio
Poético vê todas as coisas como elas são, infinitas. Todas as religiões derivariam então das
diferentes percepções do Gênio Poético de diferentes nações. Se todos os Gênios eram iguais,
todas as religiões seriam também iguais. Segundo Northrop Frye, no clássico estudo sobre a
obra blakeana Fearful Symmetry, de 1948, a arte de Blake está centrada no princípio de que o
mundo material provê uma linguagem universal de imagens e que cada imaginação humana
fala essa linguagem com seu próprio sotaque. As religiões seriam então tentativas,
fracassadas, de formular diferentes gramáticas para essa linguagem (1990, p. 28).
Em All religions are one, obra seguinte, William Blake propõe que o homem só
apreenderia a verdadeira existência física por meio de suas capacidades perceptivas, sempre
limitadas. Segundo Harold Bloom, na edição comentada de The Poetry and Prose of William
Blake, o poeta proporia que para ver o infinito em todas as coisas seria preciso ver com a
visão divina. Apenas o Gênio Poético teria essa capacidade (1965, p. 807). Como se pode
perceber, mesmo nessas primeiras obras, o jovem artista já problematizava a própria
percepção material da existência em oposição a uma capacidade visionária de observar além
da aparência físicas das coisas. Como tal temática, tão marcada nos princípios de cada obra
conforme a interpretação de Frye e Bloom, se faria presente também nas ilustrações das
iluminuras?
Na última lâmina de There is no natural religion, temos o princípio “Se Deus se tornar
como nós, também poderemos ser como ele”. Na lâmina anterior temos um corpo jogado no
chão,como se estivesse morto. Já nessa última lâmina, que apontará para o contexto da
próxima obra, temos a nítida imagem de um despertar, ou de uma ressurreição. Mesmo que
não física, a percepção do divino no homem e do humano em deus significaria, para Blake, a
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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própria revelação apocalíptica que indicaria o caminho do homem para viver em sua
completude.
Na quinta lâmina de All the religions are one, temos o seguinte princípio: “Todos os
homens são iguais na forma exterior. Do mesmo modo (e com a mesma infinita variedade)
todos são iguais em seu gênio poético”. Nesse caso, a imagem parece não concordar com o
conteúdo textual ao representar na parte de baixo, cordeiros pastando e, acima do texto, um
casal olhando para o céu. Mas numa outra acepção, podemos observar que a imagem,
aparentemente desconexa em relação ao texto, apenas intensifica o sentido dos versos ao
supor que apenas quando deixarmos as preocupações terrestres e vislumbrarmos o eterno, o
celestial, é que acessaremos o nosso particular gênio poético.
Figura 01, William Blake, There is no natural religion, lâmina 11
Figura 02, William Blake, All the religions are one, lâmina 5
Em sua primeira obra com lâminas coloridas com aquarela, The book of Thel essa
relação entre imagem e texto é ainda mais marcante. Dividido em quatro capítulos, o primeiro
abre com Thel, uma jovem pastora que, inconformada com a existência terrena, pergunta à
Natureza o sentido da vida. O Lírio responde a ela como o tempestuoso Javé do Livro de Jó,
mas com um tom delicado e estimulante ao afirmar a perfeição da natureza em seu propósito
predeterminado. O segundo canto trás a reposta da Nuvem, que argumenta que sendo o
homem alimento de vermes, deve sentir júbilo por ser um componente importante do todo do
universo. No terceiro, temos o verme em forma de criança deitada no lírio, incapaz de falar. A
terra então fala por ela, dizendo que o universo inteiro alimenta o verme. Thel é então
convidada a entrar no túmulo da terra. No quarto canto, dentro de suas profundezas, Thel vê o
sofrimento dos mortos. Ela vê a própria cova e os questionamentos que ali estão. São espíritos
que dissociados da carne e das percepções físicas, vivem em confusão. A cova então
questiona Thel com os famosos versos:
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“Por que a Língua impregnada do mel trazido dos ventos?
Por que os Ouvidos, ferozes para sugar citações?
Por que as Narinas inalando terror, trêmulas, & atemorizadas?
Por que um brando freio no vigoroso jovem ardente?
Por que uma pequena cortina de carne no leito de nosso Desejo?”
O poema termina com a jovem, incapaz de apreender tal conhecimento, fugindo da
verdade, da experiência da observação real da existência. Como Bloom ressalta, Thel é o
nome grego para Vontade ou Desejo, o que é irônico visto o sofrimento da personagem advir
precisamente de sua falta. Tendo por mote o livro de Eclesiastes, capítulo 12, o poema
antecede à criação e apresenta a escolha de Thel de nascer e morrer no ciclo vegetativo.
Segundo o crítico, a ironia do poema é a voz do túmulo que fala da força dos quatro sentidos e
da fraqueza do quinto, o desejo sexual (Ibiden, p. 808). Dessa forma, o poema terminaria, pelo
menos se levarmos em conta apenas o texto, em uma cena de total desespero e fuga da
realidade física, realidade que é representada no poema pelos sentidos físicos que
possibilitariam a Thel acessar a verdadeira percepção da existência.
O interessante nesse livro, é que todas as ilustrações de Blake, exceto a última,
representam pictoricamente o que os versos narram. Por exemplo, quando Thel conversa com
as nuvens, a ilustrações da lâmina quatro apresenta tanto um ser angelical masculino vestido
de nuvens quanto o verme em forma infantil que repousa dentro do lírio. A princípio, essa
mera ilustração do enredo narrado em versos tornaria a imagem ineficaz enquanto obra de arte
autônoma, por estar meramente ilustrando o que já está elucidado nos versos. Entretanto, a
ilustração da última lâmina quebra com essa lógica meramente representacional das
ilustrações ao representar o que aparentemente nada tem a ver com o texto narrado. Como
muito bem aponta Bentley Jr
To Thel’s ears, to questioning reason, the voice from the pit is terrifying – but the
last image of the book is of three naked babes riding a docile, harnessed serpent.
Though Thel is terrified, the babes are not. Thel’s prying intellect cannot
understand what is before her. Thel sees the world of spirits which is all around her,
but she believes only in a temporal, perishing world. The intellectual text ends in
terror, but the design concludes in harmony. (2003, p. 134).
Como as palavras do biógrafo indicam, o aparente desespero da protagonista do
poema contrasta com a imagem de real harmonia entre as três crianças montando o dorso da
serpente. “O texto intelectual finda em terror, embora o design da lâmina conclui em
harmonia”. Como mais tarde ficará claro, no contexto blakeano a serpente é sinônimo de
conhecimento adquirido ou revelado. Assim, o que termina em desespero para Thel, nos
versos do poema, deve significar conhecimento e revelação para o leitor, ao cotejar imagem e
texto. Nesse sentido, a publicação um ano mais tarde de The Marriage of Heaven and Hell
significaria a grande execução de Blake ao contrastar poesia e pintura, intensificando a
percepção dos leitores e observadores por sua sobreposição de sentidos, nesse caso, os
sentidos poéticos e pictóricos.
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Figura 03, William Blake, The book of Thel, lâmina 04
Figura 04, William Blake, The book of Thel, lâmina 06
Refletindo sobre as palavras de Goethe2 a respeito da necessidade de trevas para se
haver luz e sobre a necessidade da luz para se haver trevas, Jean Starobinski alude à obra de
Blake, na qual a principal proposição do poeta seria o casamento entre opostos, entre luz e
trevas, entre céu e inferno. “Opposition is true friendship”, que de acordo com o crítico, deve
ser o grande o aforismo da poesia e da arte pictórica da obra de Blake, toda ela construído
sobre opostos. “Por toda parte se encontra a oposição (no interior mesmo do estilo de Blake,
ela se torna a oposição implícita entre o simbolizante e o simbolizado), por toda parte reinam
a tensão e a luta, mas o conflito se resolve nas grandes formas harmoniosas do círculo, do
turbilhão, da espiral.” (1989, p. 115). Essa Filosofia dos Opostos seria posteriormente o
próprio tema da obra mais conhecida do poeta, The Marriage of Heaven and Hell, que abre
com os versos que definem essa visão antitética da realidade:
2
“Ao longo de sua viagem pela Itália, Goethe meditou sobre a luz e a cor. De volta a Weimar, ele experimenta.
Sua primeira publicação sobre o assunto, Beiträge zur Optik, aparecerá em 1791. A idéia central, a que orienta
toda a sua teoria, é a de que a cor resulta da polaridade da luz e da escuridão. O princípio da polaridade
encontra-se no próprio olho, já que, nos efeitos de contraste sucessivo ou de contraste simultâneo ele produz a
cor complementar àquela que lhe é imposta de fora. ‘É a eterna fórmula da vida que se exprime aqui. Ofereçase ao olho o escuro, ele exige a claridade; e exige a escuridão, se aproximamos dele o claro, e é desse modo
que demonstra sua vitalidade, seu direito de aprender o objeto produzindo, por sua própria atividade, alguma
coisa que é oposta ao objeto.’ Ora, esse princípio de polaridade, que liga a luz e as trevas, o sujeito e o objeto,
estende-se ao universo moral: é o princípio mesmo do universo.” (Starobinski, 1989, p. 113).
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“Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e
Ódio são necessários à existência Humana. Desses contrários emana o que o
religioso denomina Bem & Mal. Bem é o passivo que obedece à Razão. Mal, o
ativo emanando da Energia. Bem é Céu. Mal, Inferno.”
Quando se trata de contrários, é impossível ser parcial, defende-se um dos lados da
oposição mencionada. No caso de Blake, sua defesa recai sobre a energia, a oposição, o
demoníaco. Embora, como Frye aponta, Blake não estabelece a centralidade de um em
detrimento da de outro. Antes, o que ele concebe é o choque constante entre os opostos,
choque que provoca o crescimento mútuo das duas entidades em conflito. Aqui temos o que
os críticos irão denominar de Doutrina dos Contrários, ou de Filosofia dos Opostos, presente
tanto na obra poética quanto pictórica do poeta. Tal doutrina é a cerne do título da obra que já
propõe a união de duas instâncias completamente antitéticas, e também na própria ilustração
da primeira lâmina, na qual um anjo e um demônio se abraçam e se beijam entre nuvens e
chamas.
A segunda lâmina do poema apresenta Rintrah, personagem criado por Blake para
personificar a Ira. Para Bloom, Rintrah funciona como a aparição das personagens Luvah, em
The Book of Thel, e Urizen, em Visions of the Daugheter of Albion, obras nas quais
personagens simbólicos são rapidamente apresentados, mesmo antes de Blake estar
completamente pronto para fazer uso deles. O que sugere que ele pode ter formulado grande
parte de sua mitologia alguns anos antes de incorporá-la em sua poesia. Ainda na segunda
lâmina, as menções textuais de figuras de oposição são bastante claras. Rosas e espinhos.
Abelhas e charnecas estéreis. Entretanto, o que se destaca aqui é a relação completamente
problemática entre o texto e a imagem da lâmina.
Figura 05, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 01
Figura 06, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 02
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Um bom estudo sobre a relação imagem/texto nessa obra é o trabalho de dissertação
de mestrado de Andrea Lima Alves, “‘Oposição é verdadeira Amizade’: imagem poética e
pictórica no livro O Matrimônio do Céu e do Inferno de William Blake”, que se encontra na
Biblioteca de Dissertações e Teses da Unicamp. Como Alves observa (2000, p. 63), a imagem
opressiva do texto é quebrada pela forma idílica da ilustração, que parece recriar o momento
em que a serpente entrega o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mau à primeira
mulher. Reforça essa primeira interpretação a representação da serpente em forma feminina e
com uma articulação corporal fisicamente impossível, bem ao gosto da principal influência
artística de Blake, Michelangelo, que representa a serpente do mesmo modo num dos afrescos
da Capela Sistina.
Entretanto se observarmos com mais atenção, perceberemos que a mulher que apanha
o fruto está vestida, tendo ao seu lado figuras angelicais que estão deitadas à esquerda da
árvore. A mulher vestida remete a um período posterior ao pecado original, no qual homem e
mulher estavam nus. Os anjos descansando também corroboram tal interpretação visto terem
eles recebido a ordem de guardar o Jardim e estarem agora distantes de sua tarefa. Assim,
passamos a relacionar a imagem da lâmina não mais com a Árvore do Conhecimento, mas
com a segunda árvore descrita no Gênesis bíblico, a Árvore da Vida. Tais anjos guardiões,
agora em nítido descanso, não mais protegem a árvore, tendo sido ela liberada aos homens.
Desse modo, a lâmina não mais apresentaria uma imagem de queda ou perdição, e sim faria
uma alusão a um apocalipse pessoal, a uma revelação espiritual que estaria prestes a se
realizar, quando os homens teriam então a permissão de comer da Árvore da Vida. Como que
ilustrando, previamente, a descrição da prancha 14, a imagem já funciona em oposição ao
texto da própria lâmina. Sobre essa oposição dos sentidos dissonantes entre texto e imagem na
poesia e na arte blakeana, Alves escreve:
Aquele intuito da poética de Blake, de expandir a percepção mental de seus leitores
– no qual um dos instrumentos é o embate, a batalha da relação entre texto e
desenho, em seus livros ilustrados – faz com que as ilustrações não tenham uma
relação direta com o texto da prancha que figuram (na maioria das vezes), mas
várias ligações complexas com ele. Nós podemos relacionar essa imagem pictórica
do “Argumento” com o texto da prancha 14, como dizíamos, assim como com a
obra em sua totalidade, ilustrando a ‘realidade’ posterior ao apocalipse que ela
prenuncia.” (2000, p. 65)
Essa mesma expansão da “percepção mental de seus leitores” se dá no próprio gênero
usado por Blake em Marriage, ao contrastar um típico estilo textual, provérbios de sabedoria
e moderação, com conselhos que privilegiam exatamente o oposto, o excesso e o deleite da
experiência humana. Também a paisagem infernal de Blake é completamente diferente, tanto
em texto quanto em imagens, da que veríamos em Dante ou em Milton, ou como a própria
tradição medieval imaginou.
Diferente do que se esperaria de uma paisagem infernal os provérbios não fazem
alusão a demônios, sofrimentos ou martírios. Além disso, o inferno blakeano não é um
cenário desolado, em meio às chamas e aos tormentos medievais. Nos provérbios, as alusões
são a vários aspectos de vida campesina, contendo apenas duas menções a construções
urbanas. Do ponto de vista visual, Blake reforça ainda mais esse contraste. As imagens das
lâminas são claras, em tons pastel, verde e azul claro. As poucas figuras nas margens e entre
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as linhas do poema estão dançando, gesticulando, algumas copulando, em nítido sinal de
prazer e contentamento.
Apenas na última imagem, na prancha 10, temos uma quebra desse cenário idílico,
com a presença do nosso narrador, o homem que desceu ao inferno e que anota os provérbios
conforme lhe é narrado por um demônio. Também nessa ilustração o cenário muda, fazendo
alusão a um aspecto mais soturno, no qual um tom avermelhado escuro faz pesar o horizonte.
Temos um terceiro escrivão que observa o demônio, que desenrola o livro infernal, e que dita
suas palavras ao primeiro escrivão, extremamente compenetrado com o seu oficio, como o
Daniel da Sistina.
Figura 07, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 05
Figura 08, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 10
Alves destaca que os críticos têm uma predileção por encarar o escrivão da esquerda
como uma representação da criação artística por excelência e o da direita como um plagiador.
Mas em oposição, ela também menciona que as duas figuras podem estar representando as
duas artes articuladas por Blake em sua obra: a palavra e a imagem, na medida em que cada
um dos escreventes ouve e vê o que futuramente representará.
Portanto, como os exemplos indicam acima, a obra de William Blake está perpassada,
desde os primeiros livros até a sua fase mais madura, pela relação precisa e extremamente
profícua entre texto e imagem. Do ponto de vista dos estudos intermidiáticos, a interpretação
da poesia Blakeana ao lado de sua arte pictórica, permite uma maior acepção artística e
estilística de seu ofício. Sobretudo numa cultura visual como a nossa, a poesia de Blake
surpreende pela vitalidade com que apresenta o seu eterno embate entre razão e emoção, entre
inocência e experiência, entre palavra e imagem.
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THE MARRIAGE OF TEXT AND IMAGE IN THE FIRST BOOKS OF WLLIAN BLAKE
ABSTRACT: William Blake's work has an unusual place in Western art. The English artist, not only looking for
to union the human and divine, the childhood and adulthood, the physical perception with the imaginative one,
as its entire Philosophy of Contrasts demonstrates, connects poetry with pictures in his Illuminated Books. His
own choice of a similar form of art – not poetry or painting, but poetry and painting – was a very risky choice.
At a time when illustrators of literary texts were considered minor artists - see French Gustav Doré and English
John Gilbert -, Blake not only offering textual illustrations of classical texts as well promoted in his own art, a
marriage between poetry writing and pictorial art. In this paper, we will study the necessity of reading Blake’s
art taking into account his text and his painted pictures in the validation of a more complete interpretation.
KEYWORDS: William Blake. Painting. Poetry. Intermediatic relations
REFERÊNCIAS
ALVES, Andrea Lima. “Oposição é verdadeira Amizade”: imagem poética e pictórica no livro O Matrimônio
do Céu e do Inferno de William Blake, São Paulo. 2001. 203f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) –
Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. L&PM editores: Porto Alegre, 1989.
BENTLEY JR., G. E. The Stranger from Paradise – A biography of William Blake. New Haven and London:
Yale University Press, 2003.
BLAKE, William. The poetry and prose of William Blake. David V. Erdman (editor) e Harold Bloom
(commentary). New York: Doubleday & Company, 1965.
FRYE, Northrop. Fearful Symmetry – A Study of William Blake. Princeton University Press: Princeton, 1990.
GILLIHAM, D. G. William Blake. Cambridge: Cambridge University Press, 1973.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
RAINE, Kathleen. William Blake. New York: National Book League, 1951.
STAROBINSKI, Jean. 1789 – Os emblemas da razão. Companhia das Letras: São Paulo, 1989.
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POESIA E PINTURA ABSTRATA:
A MÚSICA DAS CORES
Jacineide TRAVASSOS1
RESUMO: Neste artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura Poesis, o flerte
entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o tempo através de uma análise comparativa entre a
poesia e a pintura abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a relação
imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma homologia estrutural entre as
artes em questão no tocante à espacialidade e temporalidade, sendo esta também uma categoria da música. Os
instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse comparativismo, são referentes à crítica de orientação
estética, literária e semiótica.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Pintura. Estética. Semiótica da Cultura. Intersemiose.
Introdução
Sabemos que para investigar a relação entre linguagem e realidade na poesia e na
pintura, temos que alargar o conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso,
processo que abarca todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno translinguístico
e Jean Molino (1989, p.25), como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução
da aporia, com respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em
atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O historiador
de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento, o geógrafo frente a uma
paisagem, o sociólogo frente a um movimento social estão na mesma posição de um intérprete
junto a um texto?” (MOLINO, 1989, p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa
medida, acrescentar que o físico está diante da natureza como diante de um livro escrito,
segundo a fórmula de Galileu, em signos matemáticos.
Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996, p. 149) - no início do século XX - ressaltou
o talento poliédrico de Lomonossóv, um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem
“o elo que une domínios diferentes da vida no planeta é a linguagem” (MACHADO, 2003, p.
24). Segundo Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de
Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias científicas onde
operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas russos defendem a concepção
do texto como unidade básica da cultura, e não do sistema lingüístico. Nesse sentido, uma
dança, uma cerimônia, uma obra de arte e muitos outros produtos e manifestações culturais
são considerados texto.
Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz sobre as mesmas questões
abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta
Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a
intersemiótica. Esta última que nos interessa particularmente, também denominada
transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na interpretação dos signos não
1
Universo - Universidade Salgado de Oliveira - Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte –Recife – PE Brasil - CEP: 51150-001. E-mail: [email protected].
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verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a
dança, o cinema, a pintura e vice-versa. Diz Dominique Maingueneau que:
a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre
vários discursos [...]. A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de
enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na
dependência de outros domínios semióticos (pictural, musical, etc.).
( MAINGUENAU, 1984, p.1-13)
Etienne Souriau (1983, p.11-13), em seu livro intitulado A Correspondência das Artes
– Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de Victor Hugo: “O vento são
todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas as artes”. Porém, Souriau afirma que a
pesquisa, neste domínio, só será interessante se banir e interdisser severamente as metáforas
imprecisas, as analogias confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma
arte a linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart, professor
da Universidade de Gand:
As intuições mais corriqueiras a respeito das ‘correspondências’ das artes tendem,
em sua maioria, a cair na metáfora. Diz-nos que existem sonetos esculpidos e
romances de composição arquitetônica, mas um soneto não é uma escultura e um
romance não é uma catedral. Mesmo um poema manifestamente composto, segundo
o princípio ‘música antes de mais nada’ (Verlaine) não é música propriamente dita:
é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72)
Acreditamos que Molino, Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson,
Maingueneau, Etiene Souriau e Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando
o critério de textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das
várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam bastante o
fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que alteram o seu modo de
significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das metáforas e analogias imprecisas, cientes
que as artes dialogam entre si, mas conservam sua materialidade artística própria. Em nossa
investigação, afirmamos uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há
uma identidade de estruturas em uma variedade de meios.
A intersemiose, o diálogo entre as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais
trata-se de um anseio eminentemente da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os gregos,
Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta
com as de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as belezas
comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o que vos aconselho a
acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même principe.” 2 os poetas franceses, sobretudo
Baudelaire (Les Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A
noir, E blanc…), Verlaine (De la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu
personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria estética no seu romance simbolista A
Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase
(interdiscursividade entre dança, música, cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma
completa fusão entre escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e
retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das correspondências,
2
DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M (1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier.
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sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar exaustivamente, se é que já não o
fizemos.
Ut pictura poesis
Como vimos, a noção de parentesco entre as diversas linguagens artísticas constitui
um topos revisitado e remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de
quem o realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco
explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The Sister Arts of
Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora atenha-se à tradição
inglesa, retraça a história da interrelação entre a pintura e a poesia partindo de suas origens.
Segundo Hagstrum dois nomes apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e
Simonides de Cós. Horácio, que criou a expressão Ut Pictura Poesis em sua Ars Poetica,
(anos 14 e 15 A.C.) postula: “Ut Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et
quaedam, si longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum
quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)3
A teoria implícita no axioma horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde
havia de trilhar as discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as
representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a distinção valorativa:
signos naturais e signos artificiais, respectivamente. Como salienta João Alexandre Barbosa
(1994, p.11), esta concepção dominou, sobretudo, os períodos clássico e romântico na história
da arte e da literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco
atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a poesia é uma
pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar o que é composto;
e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN, 1993, p.26)
Gotthold Efrain Lessing (1998) é apontado pelos historiadores da arte como o melhor
leitor de Horácio em sua época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo
adiante de suas teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi
publicado sob o título de Laokoon, ou Os Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a
respeito das artes são apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que
representava o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes,
sob os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões sobre o
fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os preceitos de Apolo. A
obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em co-autoria dos filhos Atenodoro e
Apolidoro.
Laokoon, aponta Aguinaldo Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado.
Relações Homológicas Entre Imagem e Texto, pode ser definido como a “conjunção de várias
tendências que se unem para um único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann
Joachim Winckelmann em suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e
3
HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73,
tradução de David Jardim Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos
impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto bastante escuro, mas aquele
necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em
que for visto, mas aquele vos deleitará tantas vezes quanto seja olhado.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie Chischen Werker der Malerei und
Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir, pela sua linha de abordagem, que Winckelmann
também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de
Longino, privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus argumentos
revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as artes visuais, sobretudo
quando compara o Laokoon com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo
contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre a pintura e a
poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos artificiais para a questão
do espaço e do tempo.
Lessing possibilitou-nos pensar as artes pictóricas e poéticas a partir do uso
diferenciado de seus meios de expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia
(mímese das ações). Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por
excelência, e a poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a
época (daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal distinção, seja no
campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no campo das artes, à luz das
diversas correntes da filosofia, citamos a Poética do Espaço de Gaston Bachelard como
exemplo e, sobretudo sob o prisma da semiótica.
Mukarovsky (1990, p.81) critica Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo
caráter de seus materiais e por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites
impostos por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se ultrapassada.
A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon, credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que
“se aproximarmos a câmara às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo,
notaremos que já para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32).
Adverte que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os
signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos apenas quanto
imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem este caminho ao correr dos
tempos.
Diz Northop Frye que há um grau de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo
“quando se desenvolve no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993,
p.81). Mas salienta que:
[...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um espacial, embora estas
categorias se desenvolvam de acordo com as possibilidades materiais de cada arte e
seu modo de estruturação. Referindo-se à literatura, especificamente, ressalta que as
obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em
imagens, como a pintura. (FRYE, 1993, p.81)
A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em seu texto
Literatura e Artes Visuais, “desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e
correspondência entre a pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram
expressas por meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e
assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por Edgar Wind
(1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença (Pagan Misteries in the
Renaissance).
No Renascimento, a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor
Botticelli e dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente.
Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para escrever.
Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin, Odilon Redon, o
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expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e imagens dos escritos de poetas e
romancistas. Mas, em se tratando de um estudo intersemiótico, devemos afastar-nos das
metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, porém conservam sua
materialidade de linguagem e artística.
Poesia e pintura abstrata
Vimos que, dentro do enfoque da teoria de Lessing, com base na teoria clássica da
mímese, o espaço é o lugar ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura:
ponto, linha, superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa
de ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem. Devemos
revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar, ao modo de
Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação rígida das categorias de
espaço e tempo.
Bem sabemos que a poesia, a literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só
dimensão espácio-temporal na poesia de Ungaretti:
ROSA EM CHAMAS
sobre um oceano
de campainhas
subitamente
flutua outra manhã
(UNGARETTI, 2003, p.153)4
Vejamos outro exemplo em Guilherme de Almeida:
INFÂNCIA
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora”
(ALMEIDA, 2004, p.26)
Em Ungaretti a Imagem “oceano de campainhas” é indicadora de uma grande
hiperestesia, pois a água torna-se metaforicamente sonora, ao passo que indica também
passagem de tempo: “flutua outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente
hiperestésico, a “amora e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do
tempo, a captação do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão
“chamava-se ‘Agora’”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da
infância passada, ao modo de uma recordação lírica, como a concebeu Emil Staiger (1975, p.
59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o outro. Do mesmo modo, em
homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura abstrata. Sendo o ponto índice de uma
linha e formador dinâmico de outras figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky,
admitimos, também, uma temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro:
4
Texto original. ROSE IN FIAME : Su un oceano/ Dis scampanelli/ Repetina/ Un lattra matina
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(Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)5
Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky, diz Walda
Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por sua continuidade”.
(LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o objeto passa a ser signo, pois
mantém uma profunda dialética com o tempo, que, no caso, “é criado pela repetição de traços
que espacializam a diacronia do movimento”. (LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o
elemento temporal pode ser reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos
estruturadores do quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem Plumas (Paisagem do
Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto:
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa
de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro
dos peixes de água,
5
1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner Kunts.
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da brisa na água
[...]
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes
jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro
[...]
(MELO NETO, 1994, p.105-106)
Cabral, como assinala Secchin (1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter
impositivo da metáfora em um processo contínuo de remineralização da palavra, propõe a
imagem do cão como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do
pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio” que se muta e
simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde passa. A fanopeia é
evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de rosa e negro. As cores suaves, azulrosa, são signos de uma amenidade que o rio Capibaribe não conhece. Domina o grito social
da paisagem de um homem-anfíbio que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é
o negro, esta assinala a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o
sublime negativo.
O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do tempo, do sentido
das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista dessa música das palavras, mas se
funde com o ser, com elementos vegetais, minerais e da cultura, antes aparece como um
substantivo-caleidoscópico que se repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poemajazz, onde tudo está em tudo. Essa repetição também assinala o poeta não só como um ser
engajado, mas como trabalhador das palavras. Podemos dizer, ao modo de Haroldo de
Campos, que Cabral é um geômetra engajado. Contemplemos Mondrian:
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(Fig.2. Mondrian, Broadway Boogie-Woogie)6
Segundo Meyer Shapiro (2001, p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em
direção à nova tendência voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se
materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores primárias branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais, enfim, ao abstrato, à “pintura
pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as
unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram meticulosamente
recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral
de Melo Neto, permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre
caleidoscopicamente recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e
movimento. Vale ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase
neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista. Ressalto que
ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não abdica do seu grito social,
pois jamais recusa a realidade mas a aparência da realidade. Desse modo, exorta seu
espectador a olhar a vida e a tela criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo
engajado
O título da tela, Broadway Boogie-Woogie, já insinua um diálogo com a música e a
dança, enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer
Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar esta tela
maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001, p.79) Não esqueçamos
também que a poesia é a dança das palavras, expressão do pensamento por imagem-som.
Conclusão
Como atestam os teóricos da literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a
literatura comparada que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em
relação apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração de um
elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que exercia uma literatura
6
Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43. Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doação
anônima.
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nacional sobre outra. O comparatismo literário mantinha-se, desta forma, sob uma forte base
de valor axiológico e resultava em um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P.
Brunel (1990, p.2), Pichois e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo
política, é freqüentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o
comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura.
No século XX, o conceito de originalidade foi intensamente refutado por teóricos
como Tinianov, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de
intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que esta trata-se de
um único palimpsesto raspado e reescrito sem cessar ao longo dos tempos, a literatura
comparada ampliou seu método de abordagem e comprova que a obra literária produz-se em
um constante diálogo de textos, por retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori,
niveladora e internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação
diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das relações
intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau, Boullart, entre outros
teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de texto, para além de suas propriedades
puramente linguísticas, sistematizá-lo enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos
realizar uma exegese eficaz da relação entre as artes.
A interdisciplinaridade, no que se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo
das relações interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu
Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós – mas as relações
mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda resistências em admitir-se que a
comparação dá-se, também, no ultrapassar as similaridades, que o comparatismo pode operarse pelo confronto de elementos, por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão
suficientemente avançadas no estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda
estão por fazer.
O estudo da literatura comparada alcança, atualmente, o terreno das artes que
constituem, por si, partes de uma totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a
literatura como principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como
um sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam eles
picturais, musicais, cinematográficos etc.
No estudo da representação literária calcado na abordagem intersemiótica – como o
que empreendemos através das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é
interessante se banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são
evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É preciso
estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a tradução de uma idéia artística
em literatura, pintura, música, cinema, etc, mas cada linguagem traz consigo recursos
peculiares e trata o assunto de modo específico. As várias artes possuem cada qual seu código
artístico, sua evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre elas.
Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em um campo que,
a princípio, parece ser vago e de difícil acesso.
Com base nas análises que fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a
poesia e a pintura abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade.
Afirmamos ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica,
dialoga com a categoria temporal. A pintura abstrata instaura o tempo por meio do movimento
das formas e cores. Fica evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade,
assumem um parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e
pintura abstrata imagem-movimento, ambas música das cores.
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POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS
ABSTRACT: In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation
between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between
poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and
image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and
abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical
tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and
semiotics.
KEYWORDS: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis.
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A POÉTICA DO ESPETÁCULO
Suilei Monteiro GIAVARA1
Ana Maria Domingues de OLIVEIRA2
RESUMO: A leitura dos quatro livros de sonetos da poetisa Florbela Espanca (1894 -1930) - Livro de
Mágoas (1919), Livro de Sóror Saudade (1923), Charneca em Flor (1931) e Reliquiae (1931) – evidencia
a expressividade dramática que ela lhes imprimiu, criando um estilo “derramado” que comove o leitor,
bem como uma ambientação propícia à utilização de máscaras poéticas, característica que pode ser vista
como dramática. Para tanto, ela usa como recurso poético algumas figuras retóricas, responsáveis pelo
referido estilo de sua poética. O embasamento teórico deste trabalho pautou-se em alguns teóricos sobre a
lírica e o drama, bem como em alguns estudiosos da Retórica Antiga - como Marcus Fabio Quintiliano e
Aristóteles – e em estudos modernos sobre Estilística Literária.
Palavras-chave: Florbela Espanca. Retórica. Figuras de Estilo. Máscaras Poéticas.
O drama e o dramático
De acordo com Aristóteles, o drama é uma poesia feita para ser representada, no
entanto tal representação só será dramática se apresentar personagens e ações tensos.
Por isso, com o passar do tempo, tal característica – a tensão – fez com que o termo
drama passasse a ser usado para caracterizar obras que apresentassem uma situação de
crise, incerta, independentemente se destinadas ao palco ou não.
Wolfgang Kayser retoma o significado original do termo, afirmando que o
drama se constitui sempre que houver personagens envolvidos numa situação
comunicativa na qual é desenvolvida uma ação num espaço determinado, referindo-se
especificamente à encenação de um fato. Por sua vez, a noção de dramático, “como uma
atitude interna e verdadeira essência do mundo poético”, (KAYSER, 1968. p. 274. v.1)
é uma forma de apresentar um caráter do pensamento, ou seja, é uma mundividência,
um modo de ver o universo.
Emil Staiger, por sua vez, acredita que a definição original do termo decorre das
peculiaridades desse tipo de texto, por isso assegura que nem toda produção dramática
deve ser assim denominada porque é passível de adaptação para o palco, mas, ao
contrário disso, é o “espírito dramático”, enquanto concepção de mundo, que contém a
raiz desse gênero. Para ele, “o palco foi, realmente, criado segundo o espírito da obra
dramática”. (STAIGER, 1997, p. 120)
De acordo ainda com este último teórico, uma das características responsáveis
pelo “estilo de tensão” do drama é o pathos, traduzido do grego como paixão. Tal
característica, já apreciada por Aristóteles como um eficiente meio de conduzir o ânimo
dos juízes, relaciona-se com a representação ou o despertar das emoções humanas
através de um discurso ou de uma obra poética.
Staiger afirma que os gregos relacionavam o pathos com as “paixões humanas”,
responsabilizando-o, portanto, pelo estilo de expressão vincada na exaltação emocional.
1
Doutoranda - UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras - Departamento de Literatura – Assis – SP – Brasil - 38304.064 –
[email protected].
2
UNESP, Departamento de Literatura. Assis, SP, Brasil. – [email protected]
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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Assim, os mesmos gregos não diferenciavam o estilo patético do lírico, pois tanto um
quanto o outro têm o seu foco centrado na demonstração dos sentimentos humanos.
Segundo Staiger, “o pathos foi assim, não raras vezes considerado como gênero lírico,
até certo ponto com razão, pois que o patético e o lírico transformam-se, com
freqüência, um no outro [...]” (STAIGER, 1997, p. 121)
O pathos, de acordo com Northrop Frye, “mantém estreita relação com o reflexo
sensitivo das lágrimas” e quando é “altamente enunciado é capaz de tornar-se um apelo
faccioso para a auto-comiseração ou a fala convulsa de pranto” (FRYE, 1973, p. 44-45)
– característica que se harmoniza perfeitamente com a expressão patética dos sonetos
florbelianos.
Os estudiosos aqui citados empregaram a noção de pathos para caracterizar o
estilo dramático, entretanto Aristóteles, em Arte Retórica e Arte Poética, e Marco Fábio
Quintiliano, em Instituições Oratórias, descrevem esse conceito como um excelente
operador argumentativo na tarefa de “comover” os juízes e o público, usando-o
inclusive como prova numa determinada causa.
A Retórica e o patético
Marco Fábio Quintiliano diz que o orador dispõe de três maneiras para exercer a
persuasão: através do convencimento da mente por meio de provas ou argumentos
lógicos e racionais; ou por meio do apelo à afetividade ou ainda pela sedução do ouvinte
pela beleza do estilo. Ressalta, todavia, que os argumentos usados para comover o
coração, denominados “psicológicos”, possuem uma força maior por manipularem
diretamente a emoção do público ou dos juízes, pois objetivam despertar sentimentos
favoráveis dos ouvintes. Assim, esses argumentos, decorrentes da manipulação
psicológica exercida pelos oradores sobre o público que os assiste, possuem uma força
persuasiva muito maior, pois “saber arrebatar os Juízes; dar-lhes a disposição de
Espírito que se quer; acendê-los em cólera, ou enternecê-los até ao ponto de chorarem,
isto é muito mais raro”. (QUINTILIANO, v. 1, p. 324)
Afirma o retor ainda que esse tipo de argumento, tirado pelo orador “do seu
fundo”, constitui um meio poderoso de “mover os ânimos dos juízes, de lhes fazermos
tomar a forma e o hábito que quisermos, e de os transformar, [...]”.(QUINTILIANO, v.
1, p. 323) Para ele, o grau de persuasão desse tipo de argumento é tão forte que instiga
os juízes a crer no que o orador diz mesmo sem provas e, mais do que isso, leva-os a
julgar a causa como se fosse sua.
Quintiliano diz ainda que, para mover os afetos nos outros, o orador deve fazer
uso de um artifício denominado “representação interior”, que consiste na recriação
fantasiosa de coisas ausentes como se estivéssemos a vê-las de fato, ou seja, o orador
imagina uma cena em detalhes e, com esse artifício, comove-se primeiro e somente
depois transporta a sua emoção para o discurso, tornando-o mais convincente; assim,
com os sentidos perturbados e as idéias confundidas, o “juiz ocupado da paixão perde
todo o modo de indagar a verdade, é levado da torrente do discurso, e obedece à
corrente impetuosa da Eloqüência”. (QUINTILIANO, v. 1, p. 323)
Entendemos que tal recurso, usado como manifestação poética, busca traduzir o
dinamismo do mundo através de uma linguagem altamente expressiva que estabelece
analogias e cria imagens a partir de sua potencialidade sensorial. Diante do que
podemos afirmar que a poesia de Florbela Espanca é um dos exemplos mais notáveis
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dessa capacidade sensitiva, revelada através de um estilo ”derramado”, cujas figuras
retóricas asseguram a composição de um discurso romanticamente expressivo, além de
conferir à sua obra uma dramaticidade bastante evidente.
Uma expressão dramática
Antonio Candido concorda com a idéia de que a linguagem figurada é uma
“inclinação” natural dos seres humanos e não apenas um “enfeite” da expressão,
conforme afirmavam os retores. É fato que recorremos às figuras no falar cotidiano,
pois, freqüentemente, necessitamos da comparação para esclarecer melhor uma idéia
que tenha ficado obscura. No entanto, Candido ressalva que é necessário distinguir a
“linguagem figurada espontânea” da “linguagem figurada elaborada”, pois é esta
segunda modalidade que faz da poesia um tipo de expressão afastada do uso banal que
fazemos da língua. As figuras retóricas são importantes recursos estéticos que
contribuem para dar mais expressividade ao texto e, especificamente na poesia de
Florbela Espanca, são as responsáveis por sua disposição para o dramático que é a
marca registrada do estilo florbeliano.
Figuras retóricas dos sonetos florbelianos
A) Pintura
A Pintura, segundo Quintiliano, é um ornato que permite representar um
“objeto” com palavras e, desse modo, materializá-lo diante do auditório. Ainda segundo
o mesmo autor, tal figura é importante porque “um discurso, que não passa do ouvido,
[...] não faz tanta impressão, nem se apodera plenamente dos corações, como o que
pinta os objetos e os põe presentes aos olhos do espírito.” QUINTILIANO, v. 01, p. 656. (grifo nosso)
Antonio Candido considera a possibilidade de “representar” a realidade através
das palavras o cerne do processo poético. É o que ele denomina de “sugestão sensorial”,
processo através do qual “elementos abstratos” ganham legitimidade “quando parecem
transpostos para o mundo das formas, ou quando vêm amparados em imagens e
seqüências que denotam a força sensorial”. (CANDIDO, 2004, p. 107).
No soneto “Último sonho de ‘Sóror Saudade’”, (p.292)3 a seqüência narrativa,
percebida não só pelos verbos no pretérito – abriu, despiu, olhou, entrou, rezou – mas
também pela forma encadeada como essas ações são organizadas ao longo do soneto,
constrói uma cena que se descortina os olhos do leitor e permite visualizar claramente o
gesto de Sóror Saudade, que, numa atitude de esperança, despe o seu burel e sai da
clausura para “ver” o mundo. No entanto, decepcionada com a feiúra deste e com a
nulidade do ser humano, resolve se encarcerar novamente, manifestando, assim, a sua
decepção com a vida.
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Todos os sonetos foram retirados da edição organizada por Maria Lúcia Dal Farra.
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Sóror Saudade abriu a sua cela...
E, num encanto que ninguém traduz,
Despiu o manto negro que era dela,
Seu vestido de noiva de Jesus.
E a noite escura extasiada ao vê-la,
As brancas mãos no peito quase em cruz,
Teve um brilhar feérico de estrela
Que se esfolhasse em pétalas de luz!
Sóror Saudade olhou... Que olhar profundo
Que sonha e espera?... Ah! Como é feio o mundo,
E os homens vãos – Então devagarinho,
Sóror Saudade entrou no seu convento...
E, até morrer, rezou, sem um lamento,
Por Um que se perdera no caminho!...
A força imagética da pintura é intensificada pela utilização de predicativos que
pertencem ao campo semântico visual, como, por exemplo, “manto negro”, “noite
escura”, “brancas mãos”, ‘brilhar feérico de estrela”, “pétalas de luz”, “olhar profundo”,
“feio mundo”.Tais vocábulos oferecem imagens sugestivas que comovem muito mais
porque o leitor este é induzido a crer naquilo que vê..
Além disso, Florbela também assume uma postura narrativa ao optar pelo uso da
terceira pessoa do singular, característica que, segundo T. S. Eliot, torna a voz do poeta
dramática, porque então é como se ela não falasse do “Eu”, pessoa poética
eminentemente lírica. No entanto, o princípio lírico é revelado ao leitor que conhece a
obra florbeliana e sabe que “Sóror Saudade” é uma das máscaras usadas pela poetisa
para se dissimular.
B) Prosopopéia, personificação
Para Quintiliano, a prosopopéia é uma importante aliada do escritor para mover
as paixões, pois “os Juízes se figuram ouvir nelas, não as vozes de homens que choram
os males de outro; mas as dos mesmos infelizes, cuja figura, ainda que muda, está
excitando a lástima.” Percebemos claramente nestas palavras que esse recurso “cênico”,
aplicado a uma determinada situação, contribui para mover a compaixão dos juízes, pois
estes não enxergam o orador a falar, mas a própria vítima, como se estes discursos, “[...]
quando se fingem ditos pela sua própria boca” fossem iguais àqueles ditos pelos
“representantes do teatro”, cuja “pronunciação debaixo da máscara tem mais força para
mover as paixões. (QUINTILIANO, v.1, p. 312.)
Podemos afirmar, então, que a prosopopéia é uma “dramatização” que permite
ao orador, através de suposições, desnudar pensamentos e ações do acusado ou do réu a
fim de exagerá-las ou minimizá-las e, desse modo, conseguir a simpatia do auditório,
uma vez que nos compadecemos muito mais de alguém que narra o próprio sofrimento.
O soneto “Neurastenia” (p.141) é um dos exemplos mais notáveis da utilização
dessa figura por Florbela Espanca, pois, através desse artifício, ela permite ao seu “Eu”
exteriorizar-se, ir além do universo interior e gritar o seu sentimento “ao mundo”.
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“Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Vento... Tenho saudades! Mas de quê?!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...
O vento desgrenhado, chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...
Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?!
Um sino dobra em mim, Ave Marias!
Ó neve que destino triste o nosso!
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto e que não posso!!...
Percebemos, logo no primeiro verso, que a oração exclamativa atribui ao texto
um tom de desabafo, de dor, agravado ainda mais pela analogia com o “dobre do sino”
que reverbera no interior do eu lírico – “em mim” – os seus acordes melancólicos.
A partir do terceiro verso, Florbela procede à exteriorização da sua tristeza
através da descrição do espaço exterior, representado por uma locução adverbial de
lugar – “Lá fora”. No entanto, vale frisar que essa descrição, feita segundo o prisma do
eu lírico, demonstra uma simetria perfeita com os seus sentimentos e, desse modo, esse
exterior é uma extensão do “Eu”.
Sobre essa “atitude dialogante”, Benedito Nunes afirma que o poeta,
especificamente o romântico, vê nos objetos a condição de “segunda pessoa – o tu
diante do Eu – é o nexo de simpatia que o ligará às coisas, num mundo em que tudo
pode ser analogicamente compreendido”. (NUNES, 1993, p. 67) Desse modo, a relação
amistosa da poetisa com os elementos personalizados, que funcionam como projeções
do eu-lirico, evidencia a solidão e o isolamento a que ela está fadada.
O teor apostrofante, explicitado a partir da terceira estrofe, revela um processo
de internalização do eu lírico – culminando na sua fusão com os elementos da natureza;
o que é reiterado pelo pronome possessivo “nosso”, através do qual a poetisa compara o
seu destino ao da neve: “branca e fria”.
C) Apóstrofe
Nilce Martins assegura que, estruturalmente, tal como o vocativo, a apóstrofe4 é
um termo acessório em torno do qual circulam as funções apelativa e fática,
responsáveis pela convocação de um interlocutor para interagir na cena comunicativa.
Já estilisticamente, ela contribui para o patético da expressão à medida que não permite
o distanciamento do leitor, conclamando-o a emitir juízos sobre as verdades
disseminadas, pois, conforme afirma Wolfgang Kayser, “à força de ser constantemente
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Sintaticamente a apóstrofe e o vocativo têm a mesma função, no entanto, é importante ressaltar que a
apóstrofe é a denominação dada a partir da utilização do vocativo com função poética, constituindo-se,
por isso, uma figura de linguagem.
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interpelado, o respectivo eu vê-se constrangido a resoluções e portanto a juízos”.
(KAYSER, 1968, p. 275) Tal procedimento assegura à enunciação um caráter
invocatório, que lhe facilita a conclamação do público para assentir com o que está
sendo dito.
Como técnica poética, Jonathan Culler diz que a prosopopéia é um “ritual
poético”, pois “a voz chama a fim de estar chamando. Chama a fim de dramatizar a voz:
para intimar imagens de seu poder de modo a estabelecer sua identidade como voz
poética e profética.” (CULLER, 1999, p.79).
É o que podemos observar no poema “Espera...” (p. 236), em que a poetisa
dirige apóstrofes a uma “sombra amiga”, suplicando-lhe reiteradas vezes que não a
abandone, usando o poder apelativo que sua própria imagem sugere: – “Sou a dona dos
místicos cansaços, / A fantástica e estranha rapariga / Que um dia ficou presa nos teus
braços...”, “Teu amor fez de mim um lago triste:”(grifo nosso) e da evocação de um
passado de felicidade e de paixão que agora já é desfeito, o que acentua a
inconveniência do desprezo do ser amado.
Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!
Sou a dona dos místicos cansaços,
E nunca mais me encontras neste mundo!...
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!
Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!
Espera... espera...ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
A fantástica e estranha rapariga
Cabe lembrar ainda que a sombra só subsiste como reflexo de um ser
materialmente visível. Essa definição, embora um tanto óbvia, é bastante interessante se
pensarmos na característica narcísica da poesia de Florbela Espanca, pois o narcisista
tem consciência do caráter irrealizável da relação com o “Outro”, pois ele ama as
qualidades ideais que ele próprio não pôde alcançar, ama uma idéia, uma imagem que,
na verdade, é o reflexo de si mesmo. Tal idéia pode ser intuída com a leitura da última
estrofe, na qual fica explícito que essa sombra – denominada agora de “minha sombra
amada” (grifo nosso) – está fadada ao aniquilamento longe do objeto que lhe atribui o
contorno.
Assim, o ato de apostrofar ao ente amado, categorizando-o como uma sombra,
soa-nos como uma forma dramática de a poetisa dizer-lhe que ela própria é fonte de
existência, sem a qual ele não perdura. Além disso, esta técnica poética confere ao texto
uma mobilidade quase cênica, permitindo a visualização do contexto em que tais
palavras são proferidas, bem como a percepção da intensidade afetiva que une os
interlocutores.
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D) Discurso Direto (dialogismo)
Massaud Moisés afirma que no gênero dramático “tudo passa como se,
em verdade, tivéssemos de imaginar, no diálogo lido, o diálogo travado entre seres de
carne e ossos, apontados no texto como virtualidade à espera do chamado à vida”
(MOISÉS, 1991. p. 127). Assim, ancorado na verossimilhança, o leitor fantasiosamente
reconstrói o contexto e vivifica seres fictícios, instaurando uma suposta realidade.
No plano expressivo, portanto, essa estratégia possibilita a atualização do
episódio, uma vez que a reprodução direta oferece vivacidade e naturalidade ao
enunciado, além de enriquecê-lo com elementos lingüísticos – interjeições,
exclamações, reticências, vocativo – que facilitam ao leitor a apreensão dos sentimentos
envolvidos no contexto enunciativo. Desse modo, o uso do discurso direto colabora para
dinamizar o tom patético de um enunciado à medida que mantém, no discurso citante, as
marcas de subjetividade presentes no discurso citado, ou, como assegura Nilce Santana,
“sugere-se o enunciado vivo”, tal qual o proferiu ou deveria proferir o enunciador de
origem.
A poesia florbeliana oferece-nos um leque amplo de exemplos desse recurso.
Entretanto, essa técnica aparece primorosamente no soneto “Em busca do Amor” (p.
161), no qual há a descrição minuciosa da trajetória incansável da poetisa à procura
desse sentimento.
O meu Destino disse-me a chorar:
“Pela estrada da Vida vai andando;
E, aos que vires passar, interrogando
Acerca do Amor que hás de encontrar.”
Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas do meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...
Mesmo a um velho eu perguntei: “Velhinho,
Viste o Amor acaso em teu caminho?”
E o velho estremeceu... olhou... e riu...
Agora pela estrada, já cansados
Voltam todos p’ra trás, desanimados...
E eu paro a murmurar: “Ninguém o viu!...”
A leitura deste soneto revela uma estrutura eminentemente narrativa, em que a
primeira estrofe poder funcionar como uma introdução, pois prepara o leitor para o fato
narrado a partir da estrofe seguinte. A segunda e a terceira estrofes contêm o
desenvolvimento dessa narrativa, constituindo o momento em que as ações são mais
detalhadas até chegar a uma intensidade maior, quando um velho, questionado sobre o
Amor, responde apenas com um sorriso reticente. A última estrofe seria o desfecho
frustrante para a busca empreendida ao longo do soneto, culminando com a constatação
de que, assim como ela, ninguém encontrou o Amor.
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Esse pendor narrativo também é corroborado pelo uso de verbos no pretérito
perfeito – disse-me, fui, perguntei, viste, estremeceu, olhou, riu – que, segundo Vítor
Aguiar, é o “tempo canônico do texto narrativo”. (SILVA, 1991. p. 612) Além disso, a
utilização do gerúndio – andando, interrogando, desfiando, caminhando, perguntando –
bem como das locuções adverbiais de tempo “noite e dia”, “à chuva e ao luar” e do
advérbio “sempre” conferem à ação um aspecto ininterrupto, como se o ato narrado
acontecesse permanentemente, sem se prender ao fator tempo.
Quintiliano enfatiza essa capacidade que o discurso direto tem de conferir
realidade às ações, dizendo que o uso do monólogo e do diálogo no discurso “dá mais
peso às paixões” e “faz crível o dito como se a pessoa pensasse interiormente”.
(QUINTILIANO, v. 2, p. 144-5) Assim, podemos afirmar que uso desse artifício
permite à poetisa dramatizar um conceito abstrato – a busca frustrada do Amor, e isso
faz com que o leitor delineie melhor o real significado dessa busca e mensure o
sofrimento diante da decepção exposta na última estrofe, mais do que se a poetisa
dissesse simplesmente o que sente.
E) Hipérbole
Quintiliano afirma que a hipérbole é uma “Exageração mentirosa”, que aumenta
as coisas muito acima do que elas são, não com a intenção de mentir, mas de dizer o
quão grande ela é, mesmo que não haja termos para compará-la.
Nos sonetos florbelianos, as hipérboles são importantes expedientes para compor
imagens que refletem os seus sonhos de grandeza ou a intensidade do seu sentimento.
Mas é em “Ser poeta” (p. 229) que o tom hiperbólico usado pela poetisa auxilia na
descrição do que é “ser poeta” como algo grandioso e incomparável:
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
È ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
È ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Como podemos perceber, já no primeiro verso, a tentativa de definição do que é
“ser poeta” é ancorada pelos adjetivos flexionados no grau comparativo de
superioridade “mais alto” e “maior” em relação aos homens, sugerindo, com essa
atitude, que o poeta é uma categoria que está acima da maioria das pessoas. Tal
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definição traduz “a aspiração do infinito”, (NUNES, 1993, p. 52) que é a marca do
poeta romântico por excelência.
Ainda na primeira estrofe, Florbela evidencia hiperbolicamente mais uma
característica de ser poeta, comparando-o a um mendigo, talvez pela característica de
ambos serem marginalizados pela sociedade e não possuírem nada além de si mesmos,
ou também porque o único legado de ambos é a Dor. Aqui, ressalta ela a capacidade
solícita do poeta para a doação, que, mesmo não tendo nada além de seu dom, é capaz
de encher o mundo.
A partir da segunda estrofe, a poetisa volta a caracterizar o poeta a partir de
idéias que sugerem a verve romântica. Conforme Benedito Nunes, “a sensibilidade
romântica, [...] separa e une estados opostos – do entusiasmo à melancolia, da nostalgia
ao fervor, da exaltação confiante ao desespero –, contém o elemento reflexivo de
ilimitação, de inquietude e de insatisfação permanentes de toda experiência conflitiva
aguda, que tende a reproduzir-se indefinidamente à custa dos antagonismos insolúveis
que a produziram”. (NUNES, 1993, p. 52).
Na última estrofe que a poetisa aproxima o fazer poético de algo que é o
leitmotiv de sua obra: o Amor. Zina Belodi afirma que em Florbela Espanca o amor “é
uma vontade de ir além do humano; é a expressão da sede de transcendência, é
expressão da necessidade de ser mais que humano, ser ‘sobre-humano’, é a ânsia de ser
mais do que realmente é”. (SILVA, 1987, p. 240) Tais palavras encontram ressonância
nas finais da poetisa, que evidenciam o sentimento amoroso como a energia vital que
alimenta a sua atividade criadora: “É seres alma e sangue e vida em mim / E dizê-lo
cantando a toda a gente!".
F) Exclamação, reticência e interrogação
A linguagem falada tem à disposição todo um arsenal de recursos rítmicos e
melódicos, bem como cênicos, que respaldam a transmissão das emoções do falante
com mais clareza. Já a linguagem escrita, por não dispor dos mesmos expedientes,
necessita de criar mecanismos que cumpram a função de reconstituir o movimento vivo
da elocução oral. Assim, é viável afirmar que a pontuação configura-se como uma
importante aliada do escritor, porque cumpre o papel de manifestar no enunciado toda a
carga emotiva presente no discurso, assumindo, por isso, um valor psicológico.
Quintiliano assegurou que a exclamação é uma figura que nasce “da arte, e
entusiasmo do orador” para “fingir” os sentimentos e transportá-los para o discurso, de
modo que comovam o público. Segundo este autor, a figura denominada exclamação
não recebe este nome em decorrência do sinal gráfico que a acompanha, mas sim pelo
seu caráter semântico, ou seja, por ser um recurso que visa exprimir a carga emotiva do
falante através da configuração que este dá ao seu discurso.
Em “Angústia” (p.146), as exclamações são as responsáveis pelo timbre
dramático do soneto, pois repercutem o estado de aflição intensa que obsedia o eu lírico.
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Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar!... E o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Qu’rer apagar no Céu – Ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: “O que te resta?...”
Ah! Não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
Cabe salientar aqui que Florbela mantém o gosto pelo verso decassílabo heróico,
de acordo com o estilo clássico, cuja regularidade imprimia um ritmo bastante uniforme
e padronizado ao soneto. Tal informação parece ser crucial aqui, se pensarmos no fato
de que o ritmo é um dos componentes essenciais na interpretação do texto poético.
Este soneto, entrecortado pelas exclamações e pelas reticências, apresenta um
ritmo que é bastante propício à expressão do cunho ofego característico da ansiedade do
eu-poético. Além disso, a ocorrência das exclamações em orações nominais, – “Tortura
do pensar! Triste lamento! / E não se quer pensar! / Ser rugido de tigre na floresta!”, ou
associada a interjeições – “Ó sonho atroz! / Ah! não ser mais que o vago, o infinito!” –,
bem como o fato da fluência do verso ser interrompida por apostos ou orações – “Quem
nos dera cá dentro, muito a sós, / Sempre a morder-nos bem, dentro de nós... / Qu’rer
apagar no céu – Ó sonho atroz! – E não se apaga, não... nada se apaga” – também
auxiliam a dar essa configuração patética do texto, pois são recursos que evidenciam, ao
mesmo tempo que intensificam, o sentimento de angústia que é o motivo do poema.
Outra figura considerada como um importante expediente para o efeito
expressivo do enunciado é a reticência, pois, ao abreviar propositadamente a expressão,
ela permite subentender o que não foi dito, pois o pensamento este prossegue apesar do
silêncio. Assim, essa figura tem, pois, um poder sugestivo e até emotivo, porque pode
levar a imaginação para além do texto.
Pelo fato de constituir-se através da falta, a reticência dá à elocução um caráter
afásico em que os silêncios, importantes componentes significativos, são interpretados
de acordo com o contexto em que estão inseridos. Deste modo, este pode ser
considerado um meio eficaz para provocar os afetos dos receptores, porque permite ao
orador encaminhar o pensamento do modo que lhe aprouver, através dos matizes cálidos
e avivados que dá à expressão.
O soneto “Évora” (p.269) constitui um bom exemplo do uso desse recurso
estético que confere ao texto o teor nostálgico sugerido pela dedicatória, onde a poetisa
compara o aspecto soturno e triste da cidade com o seu estado de ânimo.
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
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Ao amigo vindo da
luminosa Itália,
a minha cidade, como eu soturna e triste...
Évora! Ruas ermas sob os céus
Cor de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as míseras vaidades!
Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!
Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!
... Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minh’alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina-e-moça...
Partindo de um procedimento bastante comum na sua poesia, Florbela Espanca
inicia o soneto com a descrição de um ambiente exterior – a cidade de Évora – para
depois proceder a um processo de internalização que imbrica a descrição desse ambiente
às colorações sentimentais que lhe dá o eu lírico. Essa identificação com o espaço nasce,
na verdade, do poder apelativo da memória, incitada a partir da segunda estrofe pelos
fatos que levam a poetisa a recordar um passado de amor vivido naquele lugar – “E só
aqui recordo os beijos teus, / E só aqui sinto que são meus / Os sonhos que sonhei
noutras idades!”.
Tal atitude culmina com a completa interiorização do eu lírico, que parece ter
esquecido de Évora para concentrar-se na transmissão dos seus sentimentos. No entanto,
percebemos que essa é uma idéia superficial, porque o vocativo dirigido à cidade,
seguido de expressões que enaltecem as qualidades físicas do ser amado, sugerem
sinestesicamente uma fusão entre o ambiente e o objeto evocado pela lembrança.
O pendor saudosista é reforçado pelo uso sistemático das reticências que, aliadas
a expressões nominais e exclamativas, conferem à expressão o teor pesaroso e
melancólico, típico de quem sente saudades. Mais do que isso, as reticências
possibilitam ao leitor penetrar nos pensamentos da poetisa e, assim, compreender
melhor os sintomas deste seu sentimento.
Além desses, a interrogação é outro meio eficaz de mover os afetos, porque
também permite ao orador controlar as reações do auditório através do discurso. No
entanto, esta só será uma figura retórica se for uma indagação meramente enfática ou se
for uma afirmação feita em forma de pergunta, pois sua função é trazer à tona a
emotividade.
No soneto “?” (p.244), essa figura é a responsável por levantar uma série de
questionamentos meramente retóricos que evidenciam a alma inquieta do eu lírico.
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Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?
Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?
Que fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Tereza em místicos arroubos!
Os monstros? E os profetas? E o luar?
Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?
A interrogação executa essa tarefa de exteriorizar a angústia diante da própria
vida, porque espelha uma indagação mais profunda sobre a existência. Tal atitude, de
defrontar o leitor com perguntas para as quais ele sabe que não existe resposta, faz com
que ele se solidarize com a inquietação evidenciada pelo sujeito poético.
De fato, essa idéia parece ser corroborada pela série de perguntas retóricas feitas
desde o primeiro verso até o meio da segunda estrofe – “Quem fez o mar?” –, pois
percebemos que todas elas se referem a elementos exteriores que traduzem a indefinição
da própria poetisa.
Os versos 7 e 8 sugerem que todas as indagações são decorrentes da condição de
sofredora da poetisa num mundo em que as aparências enganadoras oprimem a sua
sensibilidade de “visionária” – “Quem nos deu olhos para ver os astros / - Sem nos dar
braços para os alcançar?”.
Na última estrofe, de fato, as inquirições parecem indicar a insatisfação de
Florbela com a sua condição de poetisa num contexto em que o seu talento não era
reconhecido. As asas, elementos capazes de satisfazer o seu anseio de ascensão
manifesto reiteradas vezes na sua obra, são vistas aqui como desnecessárias porque ela
“anda de rastros”, quando queria voar.
THE POETICS OF SPECTACLE
ABSTRACT: The reading of the four sonnet books by Florbela Espanca (1894 -1930) – Livro de Mágoas
(1919), Livro de Sóror Saudade (1923), Charneca em Flor (1931) and Reliquiae (1931) - highlights the
dramatic expressiveness that she imprinted on them, creating a "sheded" style that moves the reader, as
well as a favorable atmosfhere to the use of poetic masks, characteristic that can be seen as dramatic. For
this, she uses some poetic rhetorical figures, responsible for that style of her poetry. The theoretical basis
of this study was the Literary Critic about the lyric and the drama, some specialists of the Old Rhetoric like Marcus Fábio Quintiliano and Aristotle - and modern studies on Literary Stylistic.
KEYWORDS: Florbela Espanca. Literary Stylistic, Figures of Speech, Poetic Masks.
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CANDIDO, A. O Estudo Analítico do Poema. 4. ed.. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.
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FRYE, N. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
KAYSER, W. Análise e interpretação da obra literária. 4. ed.. Coimbra: 1968.
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Araraquara: 1987
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WELLEK, R. & WARREN, A. Teoria da Literatura. Lisboa: Publicações Europa-América, 1962.
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ELEMENTOS DA EXPERIÊNCIA NACIONAL DE EXPRESSÃO
RURAL REINTERPRETADOS NA FORMA LITERÁRIA
Maria Suely da COSTA151
RESUMO: O artigo traz uma leitura de textos literários de autores norte-rio-grandenses, inseridos na linha da
temática rural e sertaneja em que a figura do boi aparece como elemento-chave. A partir de um recorte em prosa
e poesia, e com base em um referencial teórico de natureza historiográfica, objetiva-se por em cena um olhar
sobre fontes primárias veiculadas no periódico literário Revista do Brasil, de grande circulação nas primeiras
décadas do século XX no país. Verificou-se que, em meio à subjetividade lírica, a linguagem se apresenta sob
certa concretude, apreendendo a paisagem através de referências diretas de uma realidade regional,
aproximando-se ao máximo do registro coloquial, aspecto que na última fase do modernismo funcionou como
uma das mais importantes conquistas do texto literário. Uma leitura nos dias atuais desse material, no sentido de
compreender os matizes de uma ordem sociocultural brasileira, tende a passar pelo entendimento de que os
aspectos da cultura popular, internalizados no texto escrito, são resultantes de um processo cultural possível
somente através da continuidade. Trata-se, pois, de uma tradição dinamizada no processo social e reinterpretada
na forma literária, sintetizando para a tradição dos estudos brasileiros aspectos de um mundo rural enquanto
componente de nacionalidade.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular. Lirismo. Periódico literário. Nacionalidade.
Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro;
nem ele as articula, pois fala do seu gado, com essa
linguagem do coração que enternece os animais e os
cativa (José de Alencar, O Sertanejo).
Aboio não se repete nunca. Cada aboio é uma
improvisação. É coisa séria. Velhíssima em uso,
respeitada (Câmara Cascudo, Tradições populares da
pecuária nordestina).
Conforme mostra a historiografia literária152, os primeiros anos do século XX foram
constituídos sob uma atmosfera intelectual que iria modelar o pensamento de contemporâneos
desse período histórico, sobretudo com relação ao problema da identidade nacional. Por sua
vez, as idéias nacionalistas receberam novo impulso na segunda década desse século, tendo
uma dimensão complexa a abranger vários campos de poder da sociedade, adquirindo maior
ênfase a partir do movimento modernista, com a busca da exaltação nacional pelo retorno às
origens do povo brasileiro. Intelectuais, influenciados pelas idéias cientificistas e estéticas
importadas da Europa, adotaram posturas diferenciadas, preconizando o mergulho na
realidade brasileira para melhor conhecê-la e estudar com profundidade a nossa história,
151
UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Departamento de Letras e Educação. Guarabira – PB – Brasil.
CEP: 58.200-000. Email: [email protected]
152
A exemplo de BOSI (1994), COUTINHO (1955) e CANDIDO (1976).
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nossos processos, características e problemas. Foram revalorizados, assim, as figuras do
negro, do índio e do caipira com seu folclore regional, a cozinha típica, as crenças, músicas,
enfim, uma série de práticas e costumes. As publicações de inspiração nacionalista, surgidas
no início do século XX, confirmam esta análise. Um exemplo claro é Revista do Brasil (SP),
fundada em 1916. Já em sua 1ª fase (1916-1925), essa revista buscou resgatar os valores da
cultura nacional e discutir os principais problemas do País (DE LUCA, 1999). Depois,
seguiram expressões como o estudo lingüístico sobre “O Dialeto Caipira" de Amadeu Amaral;
o poema “Juca Mulato” de Menotti del Picchia em 1917, e, no mesmo ano, outro fato
marcante foi a exposição da pintora Anita Malfatti. A partir da década de 1920, desenvolvemse novas reflexões caracterizadas por um enfoque sociológico da realidade nacional e a busca
por um pensamento nacional independente de modelos estrangeiros, integrando-se as
novidades formais a temas brasileiros de raízes populares.
No contexto dos anos de 1920, a Revista do Brasil, que já gozava de algum prestígio
antes, era dirigida por Monteiro Lobato e, sob sua direção, tornava-se o periódico mais
importante e influente do meio intelectual e literário da década, uma vez que reunia, entre
seus colaboradores, intelectuais de destaque no cenário cultural, os quais utilizavam a própria
revista como porta-voz de seus ideais. Landers (1988, p.100) observa que, na Revista do
Brasil, “se concentraram os mais importantes nomes do momento e o espírito era
essencialmente brasileiro, principalmente depois de 1918 quando Monteiro Lobato compra a
revista e assume a sua direção”. A partir de então, a citada revista passa a ser imediatamente
um centro intensivo de debates sobre assuntos brasileiros de toda ordem. Em suas páginas é
possível identificar uma série de textos imbuídos da “proposta de reconstrução nacional”
(MARTINS, 2001, p.68). Um material considerado menor, enquanto esparso, e, no entanto,
notável, como são os ensaios, crônicas e poesias publicados em periódicos, esquecidos no
tempo, e só recolhidos em livros anos mais tarde, cuja temática revela uma interpretação do
Brasil marcada por certo toque de singularidade, transmitida a essa produção escrita e, em
seguida, aos leitores dela.
Enquanto integrantes desse contexto, merecem referência aos textos de escritores
norte-rio-grandenses publicados na Revista do Brasil no início da segunda década do século
XX153: o poema “O aboio” (Revista do Brasil, ano V, n. 54, p. 127-131, 1920), de Henrique
Castriciano, e a crônica “O aboiador” (Revista do Brasil, ano VI, n. 67, p. 296-298, 1921), de
Luís da Câmara Cascudo. O fato de ambos os textos aparecerem publicados em uma revista
da região Sudeste do Brasil chama a atenção, em princípio, para dois aspectos: o ambiente e o
momento histórico no qual se inserem – São Paulo, início da década de 1920; cenário onde a
literatura identificada como pré-modernista (antes 1922) modificara e aproximara, em certo
sentido, as relações entre escritor e público, tornando-se, muitas vezes, porta-voz desse
público, dos seus anseios, desejos e necessidades. Aproximação também refletida nos
procedimentos estilísticos tais como filiação com a oralidade, incorporação de temas
153
A Revista do Brasil (São Paulo) circulou nas primeiras quatro décadas do século XX. O primeiro número
data de 1916. Constam no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB / USP) os números editados até a 4ª fase em
1944. Este periódico teve correspondentes nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Neste último, Henrique Castriciano aparece ocupando a função de correspondente local.
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folclóricos, mergulho no regionalismo. As transformações formais aparecem acompanhadas
de mudanças no conteúdo das obras, cada vez mais voltadas para temas populares e
cotidianos, possibilitando nesse processo uma ampliação e renovação no horizonte de
percepção do leitor, ao expor, muitas das vezes, contradições da sociedade, tornando patentes
suas fissuras e particularidades. Aspectos esses reveladores das relações da literatura com seu
destinatário na dimensão de sua recepção e de seu efeito, nos termos observados por Hans
Robert Jauss (1994, p.23), considerando-se que, “tanto em seu caráter artístico quanto em sua
historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre
literatura e leitor”.
Conforme indicam os títulos – “O aboio”, “O aboiador” –, ambos os textos estão
centrados na paisagem imaginária que habita o universo regional brasileiro tipicamente rural e
pecuário cuja figura central é o boi, associado ao homem, à terra, aos costumes e às tradições.
Assim, nesse contexto de “sabor da terra”, uma vez inseridos na linha da temática rural e
sertaneja em que a figura do boi aparece como elemento-chave, situações da histórica tradição
popular acabam por se inscreverem. Estamos falando, neste caso, de práticas humanas e
sociais do homem sertanejo que se perpetuam através dos tempos, a exemplo da “festa
d’apartação” além de uma série de costumes, crenças e tradições.
O texto “O aboio” de Henrique Castriciano, publicado em junho de 1920, é um poema
composto por 159 versos de 12 sílabas cada, apresentando ritmos e rimas regulares. Os
alexandrinos acentuam a musicalidade dando forma à monótona melodia. Os versos aparecem
dispostos em três estrofes, a primeira e a última estrofe com 06 versos cada, e o corpo do
poema com os restantes 147 versos. Pela sua regularidade formal, vê-se que se trata de um
texto com tendência parnasiano-realista dos fins do século XIX. Esta seria uma das mais
fortes tendências a marcar o estilo poético de Henrique Castriciano que “tem a sua própria
alma esparsa em rimas e em palavras sonoras. Prosa ou verso parece-nos sempre o requinte,
do trabalho acurado e penoso de criar na simplicidade, o grande cunho de emoção e magia”
(CASCUDO, 1991, p. 17- 20). O canto alexandrino do poeta potiguar nos faz observar,
conforme Antonio Candido, que “As tendências oriundas do naturalismo de 1880-1900, tanto
na poesia quanto no romance e na crítica, propiciaram na fase de 1900-1922 um compromisso
da literatura com as formas visíveis, concebidas pelo espírito principalmente como
encantamento plástico, euforia verbal, regularidade (CANDIDO, 1976, p. 115).
No poema de Henrique Castriciano, percebe-se que o aboio, tal qual uma espécie de
musa que desperta o canto, vem servir como objeto de descrição. O que sobressalta em meio à
subjetividade lírica de “O aboio” é a linguagem que se apresenta sob certa concretude,
apreendendo a paisagem através de referências diretas de uma realidade regional (“à beira dos
currais”, o “clarão da fogueiras”, a “enxada no chão”... ), e se aproximando ao máximo do
registro coloquial, que na fase seguinte do modernismo será a mais importante conquista do
texto literário.
O tema da saudade, da falta, aparece como índice de um viver marcado pelo
sofrimento. O canto insurge como uma alegoria da amargura: “Ah! Como é triste o aboio! ah,
como é triste o canto / Sem palavras – tão vago! – a saudade exprimindo” (CASTRICIANO,
1920, p. 127 – versos 1 e 2).
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O poema descreve uma vida caracterizada ora pela fartura, ora pela carência. Condição
essa imposta, acima de tudo, por um contexto socioeconômico resultante de um sistema
profundamente desigual. Tanto a temática quanto o tom rítmico se inscrevem sob uma certa
tensão social, expressa na forma poética, que tende a caracterizar a aparente calma da melodia
do aboio. Fica evidente que a vida do vaqueiro cantada no poema está representando,
poeticamente, a vida de tantos outros sertanejos: uma vida de sonhos desfeitos e de muita
labuta cotidiana, em torno do ciclo do inverno e do verão. “Nessa triste canção, doce como
uma prece” (verso 156) que dá forma ao poema, remonta-se um cenário que, a espécie de um
ritual, se faz passo a passo. Num primeiro momento, o sertanejo se volta para o céu e canta o
lamentoso aboio, dizendo o que outrora dizia o “curvo bisavô” – vendo o gado, o inverno, a
fartura, junto à companheira e aos filhos a narrar lendas da Carocha, dias azuis de sossego e
alma, o som da viola, as noites de São João e Natal. Num segundo momento, o canto passa a
demonstrar dor e sofrimento: “– quanta amargura! – a voz dorida exprime” (verso 80). É o
tempo da seca, da fome, de luta e de muita reza (embalde!), do pranto, da fuga, da partida e do
Adeus.
O texto de Henrique Castriciano se estrutura em função da representação de um
mundo rural como depositário do sentido de um Brasil marcado por uma tradição secular. As
formas tradicionais populares se destacam nas referências às festas populares, religiosas e
folclóricas – São João, Noite de Natal, Festa d’apartação154. Se nas festas de São João e Natal
a figura do boi tende a aparecer em meio às manifestações populares de Pastoris, Reisados e
Folias de Reis, na Festa d’apartação o boi é também figura central, girando em torno de si
uma série de costumes e comemorações que atravessam os tempos, firmando-se na cultura e
tradição do povo nordestino.
A experiência de contar estórias, enquanto uma marca de oralidade, também é
lembrada pelo poeta ao apresentar um eu lírico que, ao cantar, “lhe sai da garganta, o que
outr’ora dizia / o curvo bisavô [...]” (versos 58-59), ao ver o gado manso ou arisco no curral.
Tal qual seus antepassados, este “Conta que é bom o Inverno e o tempo da Fartura” (verso
61); e, ao pé da fogueira, narra para os filhos pequeninos as lendas da Carocha. Essas
passagens caracterizando a transmissão de um certo tipo de conhecimento acabam de ser
observadas pelo poeta enquanto ação precípua dos contos populares da tradição oral. Assim, a
voz que abóia representa simbolicamente uma voz coletiva, entoando situações culturais
secularizadas historicamente pelas três raças, o branco, índio e negro:
41
42
43
44
45
46
Essa dorida voz, de ondulações extranhas,
Triste atravéz do espaço e atravéz das montanhas,
É a mesma que veio entoando pelos mares
As orações de fé da patria portugueza;
Que, na lingua tupy, em incertos cantares,
Primeiro celebrou a nossa natureza
154
Segundo Luís da Câmara Cascudo, a “apartação” consistia na identificação do gado de cada patrão marcado
pelo ferro ou sinal na orelha. Dezenas de vaqueiros passavam semanas recolhendo o gado esparso em serras e
tabuleiros. Era o momento de muita correria, brincadeiras, bebida, comida e negócios” (CASCUDO, 1984b, p.
106-107).
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47 Que, depois de soffrer as amarguras do eito,
48 Pobre raça infeliz, nos embalou no leito!
“Essa dorida voz” denota um conhecimento enraizado (“É a mesma que veio entoando
pelos mares / Que... celebrou a nossa natureza / Que... nos embalou no leito!”), ultrapassando
o solo individual. O tom que a rege não é o de um drama pessoal, é bem maior; transcende o
indivíduo, tornando-se o canto e expressão de experiências coletivas cuja unidade sugerida
entre o português, o nativo brasileiro e o africano mostra uma identidade mestiça da cultura
nacional.
A temática do poema tende a se constituir por um princípio narrativo que reflete a
estrutura de uma ordem social em função do modo de vida do homem sertanejo
historicamente recorrente, tal qual o ciclo do inverno e da seca. Nesse contexto, o canto do
aboio acaba por destacar a presença do passado no presente, as alegrias e as emoções, as
dores, as saudades e os lamentos. O tom maior é regido pelo contraste presente na série de
termos antagônicos recorrentes no poema: céu/terra, noite/dia, invernia/estio, fome/fartura,
alegria/dor, feliz/infeliz, sorrir/chorar, silencia/diz, vida/morte, morrer/nascer. Outro grupo
semântico a dar cor e forma à realidade regional se expressa pela flora (carnaubais, juremas,
juazeiro, oiticica, mussambê, jucá, tamarindo, cravo, jasmins, mangericão), pela fauna
(graúna, araponga, galo-de-campina, jassanãs, jandaia), ou ainda pela geografia do ambiente
(montanhas, montes, serras, encostas, colina, várzeas, clareiras, rio, riacho, lagoa, matas,
cascatas, selva e o “solo, entre cardos e pedra”). De modo que, no corpo do poema, estes
elementos acabam por concretizar uma interseção entre pensamento, cultura e solo,
estabelecendo relações entre texto e contexto pela referência de uma realidade social de
expressão rural.
Outro aspecto de destaque no poema diz respeito ao próprio “aboio” sobre o qual o
poeta indica uma origem e estrutura: o que é o aboio, de onde vem, desde quando, como, o
que exprime e quando. Nessa caracterização, é visível a marca de uma tradição em uma
prática que se identifica como regional e secular. Segundo o texto, é à tarde, “ao por do sol”,
“ao incêndio do poente”, “às horas da trindade”, quando costumeiramente se manifesta o
aboio – o canto que “ha seculos”, “em expansões sonoras”, exprime “A lembrança feliz de
todas as auroras / E a funda vibração de todas as saudades” (versos 14-15). E o que é este
canto sob letra que “ninguem, ninguem conhece”?155. Para o poeta, é cântico vago, é rude
litania, é trêmula queixa, é o gemido e o brado de uma raça infeliz, é dorida voz de
ondulações estranhas, é cântico sem fim desolado e tremente, é triste canção, doce como uma
155
No Dicionário do Folclore Brasileiro¸ Luís da Câmara Cascudo caracteriza o aboio como: 1) “canto entoado,
sem palavras, pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado. Os vaqueiros abóiam quando querem orientar os
companheiros dispersos durante as pegas de gado”. 2) “canto em versos, modalidade de origem moura,
berbere, da África setentrional; veio para o Brasil possivelmente da ilha da Madeira” (CASCUDO, 2001a, p.
05). No Dicionário musical brasileiro, Mário de Andrade registra: “O Marroeiro (vaqueiro) conduzindo o gado
nas estradas, ou movendo com ele nas fazendas, tem por costume cantar. Entoa um arabesco, geralmente livre
de forma estrófica, destituído de palavras as mais das vezes, simples vocalizações, interceptadas quando senão
quando por palavras interjectivas, ‘boi’, ‘êh’, ‘boiato’, etc.. O ato de cantar assim chamam de aboiar. Ao canto
chamam de Aboio (ANDRADE, 1989, p. 1-2. Grifos do autor).
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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prece que sai do “seio nu” do sertanejo sob uma modulação que “Si coubesse n’um rythmo,
era o do coração!” (verso 159). Desse modo, o aboio exprime não apenas a face externa que
os olhos do sertanejo (vaqueiro) enxergam, mas as sensações e as emoções que o mundo
exterior (os fenômenos meteorológicos, a terra, o gado, as festas, as crenças etc.) produz nesse
filho do sertão, de tal forma que o canto se torna metáfora simbólica da alegria (na lida com o
gado), da saudade (na recordação do passado), da prece (a rogar a Deus), e da dor (quando
tem que partir). A perspectiva saudosista que reveste o poema tende a aproximar seu autor da
postura do folclorista e assim também dos propósitos de um regionalismo tradicional uma vez
que se inscreve na tendência de encarar o passado sempre melhor que o presente.
A terceira estrofe, antes de indicar o fecho do poema, se caracteriza como uma
retomada que, semelhante a uma ondulação rítmica em processo contínuo, nos retorna a
alguns versos já anunciados (na 1ª. e 2ª. estrofes), observando particularidades de ritmo e
forma do aboio: é o canto “sem palavras”, monótono; é canção de ritmo circular que parece
não findar; é prece cuja letra ninguém conhece:
01 Ah! Como é triste o aboio! ah!, como é triste o canto
02 Sem palavras – tão vago – a saudade exprimindo
[...]
31 A letra da canção ninguem, ninguem conhece,
32 Mas sabemos que ali chora e geme uma prece
33 Desolada e subtil, cuja modulação
34 Si coubesse n’um ritmo, era o do coração.
[...]
155 A voz do sertanejo, ansiando de saudade,
156 Nessa triste canção, doce como uma prece,
157 Cuja lettra ninguem advinha ou conhece,
158 Mas cujo pensamento ungido de emoção,
159 Si coubesse n’um rythmo, era o do coração!
Esse canto sem palavras, que muito exprime, aparece na tradição popular como signo
da presença do vaqueiro, figura típica das fazendas de gado, cuja marca é ser destemido,
corajoso e perseverante, ter paciência e sabedoria. Ao caracterizar o vaqueiro, ou boiadeiro,
afirma Câmara Cascudo:
É sua função buscar o gado e encaminhá-lo ao seu destino. O vaqueiro dá nome ao
boi, sabe como tratá-lo e até conversar com ele. O vaqueiro tem duas características:
o aboio e vestimentas; desde a ilha do Marajó até o sul do país, elas o identificam.
Em alguns lugares é o vaqueiro; em outros o boiadeiro, mas é sempre o ‘homem que
toma conta do boi’, ao lado dos seus grandes amigos, o cavalo e o cão (CASCUDO,
2001a, p. 718. Grifo do autor).
É sob o título “O aboiador” a crônica de Câmara Cascudo publicada na Revista do
Brasil (1921). A proposta central do texto está em mostrar a cultura da fazenda sertaneja com
práticas ligadas à pecuária. Neste registro, o boi, o vaqueiro e o aboio se destacam como
signos da cultura tipicamente rural do sertão nordestino. A experiência de exploração pecuária
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sertaneja é sintetizada na descrição em torno de quatro elementos: a fazenda, a apartação, o
vaqueiro e o aboio.
A narrativa inicia pela referência à fazenda de “terreiro de barro vermelho batido”,
apresentada como o espaço próprio para grandes ajuntamentos: “uma multidão de vaqueiros”,
“mocinhas de fita à cintura”, “cavalos suados” e “bois enormes, pesados e magníficos como
sultões”. Todos eles constituem os figurantes para o dia de festa – a festa da apartação. Tal
qual um ritual de fim de colheita em cultos agrários, terminado o inverno, é hora de reunir
todo o gado nos currais. O momento é celebrado com música, comida farta e diversão.
Conforme registrado por Câmara Cascudo em pesquisa sobre as práticas culturais do sertão
referentes ao ciclo do gado, “Nenhuma festa tinha as finalidades práticas das ‘apartações’ do
nordeste” (CASCUDO, 2001b, p. 106). Esse era um momento de trabalho, de negócios
(vendas e trocas) e também de muito divertimento.
Na crônica, tem-se reproduzida a cena lúdica entre o vaqueiro e o animal. Com
detalhes, o autor mostra a técnica utilizada para derrubar o boi durante a Apartação,
manifestação da qual se originou a vaquejada156. A cena sintetiza uma exibição de força e
agilidade dos vaqueiros na ação de derrubar o animal pela cauda:
Parou a musica. Dois vaqueiros pularam com varas de ferrão para o curral. Outros,
encourados, vermelhos de sol, com os gibões enfeitados de fio de retróz branco,
colocaram-se do lado da porteira. Uma novilha appareceu, pulou e n’um salto brusco
desatou numa carreira terrivel pelo campo. Os cavallos iam-lhe no piso. O esteira157
conservou-a em linha recta, o outro baixou-se, apanhou a cauda, firmou-se na sella,
e n’uma nuvem de pó as patas da novilha ergueram-se para o ar (CASCUDO, 1921,
p. 296-297).
Outro aspecto apresentado na crônica, dentre as práticas ligadas à tradição cultural do
sertanejo, é o momento em que estes se reúnem para a “costumada façanha”: o aboiar. A
maior parte do texto, a partir de então, tem por foco o sujeito da ação, o aboiador,
cuidadosamente descrito como “o melhor aboiador das cercanias”, função comumente
assumida por um negro, observando-se, nesse ponto, a presença histórica do escravo negro
nas fazendas de gado:
Era Joaquim do Riachão [...]. O preto era baixo, magro, vestia calça de zuarte azul,
cinto vermelho e uma camiza de algodãozinho que lhe mostrava o peito descarnado
e as claviculas rompendo a pelle. O pescoço fino, cheio de musculos n’uma alto
relevo de estatuaria, prendia-lhe a cabeça polygonal, desbastada à largos golpes de
camartelo, com o cabello encarapinhado, o rosto chupado, com a arcada zigomatica
accusada atravez da epiderme franzina. Completava-o uns olhos claros, tristes,
contemplativos como se evocassem silenciosamente a saudade da patria distante, a
Africa longinqua dos seus avós (CASCUDO, 1921, p. 297).
156
Folguedo de derrubar boi bastante realizado nos dias atuais no Nordeste.
157
Denominação dada ao cavaleiro que corre à esquerda do boi.
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Depois de mostrar uma espécie de rápido ritual feito pelo aboiador (“trepou o moirão
da porteira, tirou o seu chapéu, bateu-o na coxa, pô-lo na cabeça e soltou o grito forte,
estridente, alto como uma fanfarra gloriosa de clarins em tarde de vitória”), o texto segue
dividido em quatro partes, separadas por uma frase tal qual um mote – “O negro aboiava”– a
compor momentos. No primeiro, a descrição recai sobre quem e como cantava: era “um
rapsodo, o ultimo cantor das terras do sertão”. Seu canto era “potente, sinuoso, dobrado em
curvas felinas [...] em tonalidades extranhamente emotivas [...]. Depois descia, quebrava-se...
para um smorzado magúado, sentido, bizarro, exdruxulo”. No segundo momento, o foco é
dado ao que se cantava: “cantava-se n’aquella tarantella febril, a ancia dolorida de uma raça.
Febre, luctas, vibrações, sentimentos, a coragem eterna do trabalho heroico...”. Assim como
no poema de Henrique Castriciano, este (aboio) também “era um canto triste, uma melopéa
vagamente monotona, que subia aos céos levando envolta em notas a saudade sem fim dos
dias que passaram”. Já no terceiro momento, o aboio é caracterizado como “lembrança da
terra querida”, agora marcada pelas impressões da seca, da morte do gado, dos rios e açudes
secos, do sol ardente. O tom do aboio passa a ser “queixume, esperança, prece e desalento”.
Por fim, no quarto momento, o aboio aparece como síntese de “um soluço”. Um
impressionante canto triste de lamento “lançado ao sol morimbundo”.
A adjetivação numerosa presente no texto revela o esforço de quem deseja apreender,
pela escrita, a medida certa desse canto “tristíssimo” de sonoridade “doentia”, recordando “a
levada dos retirantes, sem pão, sem lar, sem descanso” a procura de “terras melhores, de um
céu mais amigo” (CASCUDO, 1921, p.228). Há nesse momento uma mistura entre vida do
retirante e a do negro (exilado da África) de um modo que o limite entre as duas experiências
parece não definido. Todo esse aparte a representar o momento em que “o negro aboiava”
tende a se caracterizar como uma viagem imaginária embalada pelo ritmo do aboio, que sem
palavras, canta a “ancia dolorida de uma raça” e a “dor eterna das gentes do matto” a traduzir
o modo de vida do homem do sertão e, assim, a identidade de um grupo metonimicamente
expressa na dolência rítmica do aboio “tão forte e tão sonoro, como se fosse a própria alma do
sertão que ia cantando...” (CASCUDO, 1921, p.298). Tal como se observa no texto de
Henrique Castriciano, a perspectiva de Câmara Cascudo é também de um certo saudosismo. É
como se a imagem tradicional do abaioador (“um rapsodo”) e do aboio (canto libertado de
escrita) estivesse desaparecendo e eles tivessem de registrar para salvar o que iria se perder no
tempo.
Esse também é o tom que permeia o texto de Eloy de Souza158 publicado no Livro do
Nordeste (nov. 1925, p. 66-67), sob o título “Os ultimos cantadores do Nordeste”. Nesse
artigo, o autor percorre suas memórias de infância, lembrando que foi em uma noite de Natal
que ouviu cantar pela primeira vez o desafio entre poetas repentistas. A descrição detalhada
dos traços físicos dos cantadores (João Birro e Maneol Ciryllo) e a citação de trechos de
158
Eloy Castriciano de Souza, (1873-1959), irmão de Henrique Castriciano, nasceu em Recife e veio ainda
criança morar em Macaíba – RN. Exerceu vários cargos públicos dentre os quais Delegado de polícia,
Deputado (estadual e federal) e Senador da República. Como jornalista dirigiu e colaborou em jornais, e
publicou vários livros (Cf. Personalidades históricas do Rio Grande do Norte, 1999).
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desafios assistidos cuidam em tornar notório o quanto ainda esses elementos estavam presente
na memória do autor (jornalista e político), crédulo de que “os poetas, ainda que errantes e
vagabundos, são bem mais felizes que os políticos e os poderosos [...], viverão nos versos que
improvisaram e se perpetuaram na memória de gerações e gerações” (SOUZA, 1925, p. 66).
Dois cantadores são citados no referido texto como exemplos de que alguns
adquiriram “tamanha celebridade que em torno de seus nomes se crearam lendas”. O
primeiro, o velho repentista Manoel do Riachão, aparece como protagonista de um desafio
com uma estranha mulher que tinha pés de pato. Conforme a lenda, na madrugada do terceiro
dia de cantoria ininterrupta, o repentista Manoel do Riachão fez aquela figura do satanás
desaparecer de repente, deixando apenas o cheiro do enxofre, após cantar o oficio de Nossa
Senhora. O segundo cantador é Fabião das Queimadas, um analfabeto “octogenário, cuja
faculdade de improvisação ainda tinha naquela idade lampejos de gênio”, devido a se
identificar nele, segundo Eloy de Souza (1925, p. 67), não somente “um improvisador
expontaneo”, mas, sobretudo, “um improvisador imaginoso [...] Versos que improvisou ha 55
annos elle os reproduz [...], tão fielmente, como si tivessem sido compostos momentos antes”.
Os dois exemplos citados, e demoradamente comentados pelo autor no decorrer do texto,
funcionam como aportes para o objetivo principal: mostrar que “hoje, a espécie vae rareando,
dia a dia”. As causas disso são indicadas pelo próprio Eloy de Souza ao observar que “o
ambiente material das terras do Nordeste já não permitte a vida errante e boemia dos
cantadores de antanho, tão queridos de toda gente, tão festejado por toda parte, figuras
constantes e principaes nos baptisados e casamentos” (SOUZA, 1925, p. 66)159. No final do
texto, a citação de versos do poema “o aboio” de Henrique Castriciano tendem a justificar a
postura saudosista do autor, para quem
Se a poesia dos nossos cantadores já não embelleza a vida do sertão, ainda resta,
para encher e povoar de saudade e de sonho a amplidão dos campos sertanejos, as
notas plangentes do aboio, o canto do vaqueiro e o canto de uma raça, prece sem
palavras que os animaes escutam e comprehendem e os corações recolhem
contrictos e comovidos (SOUZA, 1925, p. 67).
Ao canto do aboiador rogam-se os méritos de uma representação de efeito emotivo
que comove e encanta. Em sua crônica (“O aboaidor”), Câmara Cascudo nos faz ver que a
figura do aboiador na cultura sertaneja assume uma função social, histórica e até mística;
podendo-se tomar a figura do vaqueiro/aboiador como modelo de herói, no que diz respeito a
uma conduta de aspectos positivos: é o herói que, às avessas do cotidiano árduo, faz do canto
a sua voz, sua alegria, sua prece, seu choro e seu lamento. Por meio de seu canto, reacende a
memória do passado na inspiração do tempo presente, exprimindo uma heróica epopéia
cotidiana dos animais e dos homens do sertão. Sua arte “é porventura o mais característico
159
Na década de 1930, quando publica o livro Viajando o Sertão, Câmara Cascudo expõe claramente o fato de o
“sertão descaracterizar-se” é de ser natural que o “cantador vá morrendo também”. Processo esse advindo de
um ambiente marcado pela modernização, onde se encontram “as rodovias ... as vitrolas.. as meninas [...] usam
cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado das tango-girls do Aéro Club e Natal Club”
(CASCUDO, 1984c, p. 46- Grifo do autor).
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dos cantos sertanejos por inimitável e inconfundível” (TRIGUEIROS, 1977, p. 27). Segundo
Edilberto Trigueiros, no estudo sobre a língua e folclore do Nordeste,
[...] o aboiado é uma toada de grande beleza pela sua plangência e pela emoção que
inspira. O vaqueiro o sente profundamente e só ele sabe entoar. Mas o boi também
o entende e se abranda à magia de suas modulações. Vaqueiros há, verdadeiros
virtuoses na arte de aboiar. O canto embora pareça monótono na sua arrastada
plangência comove e encanta (TRIGUEIROS, 1977, p. 27).160
No penúltimo parágrafo de sua crônica, Câmara Cascudo faz referência à relação
homem / bicho, isto é, vaqueiro / gado, os quais parecem se entenderem sob a magia melódica
do aboio:
O gado sahiu do curral, todo elle, bois immensos, touros nervosos, novilhos
trafegos, cabisbaixo, pensativo, n’uma fila lenta, n’um mugido doloroso e foi
seguindo no rasto do vaqueiro, o trilho sonoro do aboio. Nenhum correu, nenhum se
apressou, nenhum d’aquelles animaes rompeu a forma original d’aquella parada
(CASCUDO, 1921, p. 298).
Libertado de uma escrita, pois “a letra ninguém conhece”, o aboio, sobre o qual os
textos dos escritores potiguares versam, se faz sob as mesmas nuanças de tema e ritmo,
reafirmando sua marca regional e permanência na cultura popular do sertanejo. Traçando um
paralelo entre ambos os textos, nota-se que se referem quase sempre ao mesmo assunto:
habilidades do vaqueiro, cavalos, bois, festas, trabalho, fartura etc., como também de seca,
fome, morte e fuga, tudo regado à cadência da saudade, da prece e do lamento. Tudo isso
numa vibração de mesmo tom. Sob o ritmo de um estilo literário que revela o envolvimento
do autor com o mundo em sua volta de onde recolhe elementos para a matéria literária.
Assim, tanto a poesia quanto a prosa, neste caso, se revelam sob um sentido pragmático de
compreensão de um Brasil pelo viés de aspectos locais, dentro de uma perspectiva de
elaboração literária resultante “das sugestões da personalidade e do mundo que possui
autonomia de significado; mas que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração
no real, nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele” (CANDIDO, 2002, p. 85). A
interiorização das coisas existentes no mundo em volta patenteia em ambos os textos formas
impregnadas dos ritmos e do colorido tropical. Bastante reveladores são os verbos de ação,
indicando movimento, a caracterizar que o cronista Câmara Cascudo, assim como o poeta
Henrique Castriciano, não lida com signos de um mundo meramente abstrato, mas com
imagens e acontecimentos de uma realidade perceptível no espaço e no tempo dos sentidos,
160
No livro Viajando o Sertão, Câmara Cascudo observa que em relação ao gado estrangeiro, introduzido pouco
a pouco no estado do Rio Grande do Norte, o canto do aboio não tinha o mesmo efeito: “todo esse gado não
atende à magia melódica do aboio, à trilha sonora que, outrora, os vaqueiros desenhavam no ar, sugestionando
a boiada vagarosa. Touro zebu, caracu, Heresford, não atende aboio nem serve para ser puxado.” (CASCUDO,
1984c, p. 46).
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conforme expresso nas epígrafes desse texto, aproximando mundo exterior e mundo interior –
“cujo pensamento ungido de emoção / Se coubesse num ritmo, era o do coração” (H.
Castriciano); “... a dolência rítmica do aboio,... como se fosse a própria alma do sertão que ia
cantando...” (C. Cascudo).
Em um dos livros capitais sobre a cultura brasileira, Literatura oral no Brasil, mais
precisamente nos últimos dos 10 capítulos, Câmara Cascudo se dedica às manifestações
culturais relacionadas ao “ciclo do boi”, presente nos autos populares e danças dramáticas.
Dentre esse conjunto, destaca o Bumba-meu-boi como um dos autos de maior
representatividade no Brasil cuja expansão se deveu, inicialmente, ao processo de assimilação
de diversos reisados nos fins do século XVIII161. Diante da possibilidade de traçar um paralelo
entre o auto Bumba-meu-boi, onde o boi é figura central, e os textos “O aboio” e “O
aboiador” dos escritores potiguares, identificamos neles aspectos recorrentes, tais como o
trabalho e a festa, o sagrado e o profano, a vida e a morte. Se o vaqueiro e o aboio são
elementos integrantes do auto Bumba-meu-boi, por outro lado, o dinheiro, a bebida, a
diversão também fazem parte da festa d’Apartação, momento alto para o aboiador com seu
aboio. O processo que marca essas manifestações populares é a referência ao cômico,
promovendo a liberação do riso, e a vitória sobre o medo, o sofrimento, a seriedade e a dureza
do cotidiano. O aboiador tece seu canto em função do culto ao inverno e à fartura, em
oposição à seca e à escassez; como também da morte (“ao dilatar-se o Estio”) ao
ressurgimento (“nos meses festivais de invernia”), caracterizando o ciclo vital. Assim como
em algumas versões do bailado nordestino em que o boi é morto e seu corpo é distribuído
entre os participantes, nas festas de vaquejada o boi, uma vez machucado, deve ser sacrificado
e distribuído. O colorido de fitas presentes no Bumba-meu-boi também aparece enfeitando a
cintura das mocinhas expectadoras das festas d’apartação, representando alegria, mas também
em azul, verde, amarelo e branco (cores citadas nos textos), uma metáfora do Brasil
representado na sua condição de país pré-burguês, das fazendas, e apresentado em um
ambiente urbano modernizante, a exemplo da São Paulo de 1920 onde os textos foram
publicados.
A presença destes textos em um periódico de circulação nos centros São Paulo e Rio
de Janeiro, nos primeiros anos da década de 1920, nos faz concluir que se estes escritores do
Rio Grande do Norte estavam em contato com as idéias em discussão nesses centros, à luz dos
movimentos de renovação estética, no mínimo contribuíram com essas discussões oferecendo
condições específicas de inscrição da cultura popular no debate de temas relacionados à linha
que caracteriza o processo moderno nacional. Ou seja, ambos se revelam à procura de uma
expressão brasileira, ainda que por meio de parâmetros, de certo modo, conservadores de fim
de século, uma vez que nenhum dos dois textos se estrutura sob uma forma moderna. Deste
ponto de vista, processa-se a idéia de que o modernismo no Brasil, antes de ser um evento
temporariamente localizado na história literária, deve ser analisado como um processo
161
Conforme registrado por Câmara Cascudo, o folguedo Bumba-meu boi, Boi Kalemba, Boi-bumbá ou
simplesmente Boi, “é um auto popular formado no norte do Brasil, da Bahia para cima, pela reunião de vários
reisados tradicionais, ao redor da dança do Boi” (CASCUDO, 1984a, p. 421).
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contínuo de diálogo com as dominantes que o antecederam162, incluindo-se aí o penumbrismo
literário finissecular.
Uma leitura nos dias atuais desse material, no sentido de compreender os matizes de
uma ordem sociocultural brasileira, deve passar pelo entendimento de que os aspectos da
cultura popular, internalizados no texto escrito, são resultantes de um processo cultural
possível somente através da continuidade. Trata-se, pois, de uma tradição dinamizada no
processo social e reinterpretada na forma literária (seja poética, no caso de Henrique
Castriciano, ou prosaica, de Câmara Cascuda), possibilitando o entendimento de uma
experiência nacional de expressão rural. Sendo assim, os textos dos escritores norte-riograndenses acabam por sintetizar para a tradição dos estudos brasileiros parte do mundo
primitivo e rural do país, trazendo para o centro do sistema literário uma tradição que, até
então, reclamava visibilidade, comungando, portanto, da pesquisa e registro da cultura
popular, uma questão central dos regionalismos, redescoberta em seguida pelo modernismo
como componente de nacionalidade.
ELEMENTS OF THE EXPERIENCE OF EXPRESSION NATIONAL RURAL
REINTERPRETED IN THE LITERARY FORM
ABSTRACT: The article presents a reading of literary texts by authors from Rio Grande do Norte, inserted in a
rural and country thematic in which the figure of the bull appears as a key element. From a clipping in prose and
poetry, and based on a historiographic theoretical reference, the objective is to stage a look upon primary sources
broadcast in the literary periodical Revista do Brasil, with high turnover in the first decades of the twentieth
century in the country. It was found that among the lyric subjectivity, language presents itself under certain
concreteness in grasping the landscape through direct references of a regional reality, approaching itself the most
of colloquial registry, which is an aspect that in the third phase of Modernism it worked as one of the most
important conquests of literary text. Nowadays a reading of this material, in order to understand the nuances of a
Brazilian sociocultural order tends to pass by the understanding of the aspects of popular culture internalized in
the written text and they are the result of a cultural process possible only through continuity. It is, therefore, a
tradition in the social process and reinterpreted in literary form, synthesizing to a tradition of Brazilian studies
aspects of the countryside as a component of nationality.
KEYWORDS: Popular culture. Lyricism. Literary periodical. Nationality.
162
Ao tecer uma explicação conjuntural a respeito dos vários modernismos, Perry Anderson, no texto
“Modernidade e revolução”, faz referência a “diferentes temporalidades históricas”. Para ele, pode-se entender
melhor o ‘modernismo’ como um campo cultural de força triangulado por três coordenadas decisivas”,
identificadas como: academicismo oficial / tradição antiga ainda atuante; tecnologia / inovações incipientes; e
proximidade da revolução social. Conforme a proposta analítica de Perry Anderson, considerando as devidas
proporções, o modernismo brasileiro também se situa “entre um passado clássico ainda utilizável, um presente
técnico ainda indeterminado e um futuro político ainda imprevisível” (ANDERSON, 1986, p. 8-9 – Grifo do
autor).
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JAUSS, H .R. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Telloroli. São Paulo:
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LANDERS, Vasda B. De Jeca a Macunaíma - Monteiro Lobato e o modernismo. Rio de Janeiro: Civilização
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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RESENHAS
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Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
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VELOSO, Gil. Fábulas farsas. São Paulo: Opera Prima, 2009. (Resenha)
André Teixeira Cordeiro163
Primeiro livro de Gil Veloso, Fábulas Farsas retoma as fábulas de maneira
singular: humor, ritmo, invenção da linguagem e força são determinantes nesta obra. As
fábulas, numa linguagem coloquial e muito criativa, tratam de questões da sexualidade,
da escrita literária, do ser e parecer no mundo acadêmico, de questionamentos do saber
livresco, das pseudo-religiosidades, da fama a qualquer preço etc. Gil entrega-se à
linguagem como num improviso (muito racional, na verdade) de jazz, a palavra é a sua
morada. E as ilustrações, de Wanderlei Lopes, por sua vez, parecem nos introduzir no
tempo dos bestiários. Realizadas com técnica que nos remete ao pontilhismo, todas elas
em branco sobre fundo preto, dialogam perfeitamente com as fábulas. As ilustrações são
como constelações que se entremeiam harmonicamente entre as narrativas.
“O puro ofício de viver se cumpre nos bichos”, frase do escritor Guimarães
Rosa, é a epígrafe do livro. Apaixonado por animais, o autor dá o tom nesse livro de
Gil. Além do interesse por animais, há, também, como em Rosa, a procura lúdica e
incessante de um uso especial da linguagem. O autor de Fábulas farsas maneja
habilmente as palavras, quer nos dar a conhecer as várias faces delas. Fazendo amplo
uso de um processo semelhante ao da colagem / montagem utilizadas pelos poetas e
pintores cubistas e surrealistas, Gil reúne palavras, reutiliza expressões, construções
conhecidas e encontra sempre uma terceira coisa, algo novo, inesperado, iluminador:
“Deus, quando dá asas, cobra”, “À hora da estrela da vida inteira”, “Da jaula de aula
caiu fora, mordeu a repressora”. Outras vezes, faz uso de nomes de autores conhecidos
e os homenageia, como quando escreveu na fábula “Micuim, o Ácaro”: “Micuim Caiu
Ferido no Breu”, provavelmente, uma referência a Caio Fernando Abreu. Torna assim
vivo o que disse Wolfgang Kayser: “Todo o existente está ligado misteriosamente, de
forma a não existirem fronteiras firmes entre as coisas, e tudo segue um curso
permanente, em transformação constante.” (KAYSER, 1970, p. 191, vol. 1)
“O cupim e as coisas” é o primeiro encontro do leitor com a escrita de Gil e traz
em germe todo o sistema narrativo da obra. A multiplicidade de planos que surgem de
forma quase alucinada, os temas e as associações heterogêneas das fábulas seguintes
(todas elas verdadeiros poemas em prosa) já estão nesse texto inicial. Baudelaire,
segundo BENJAMIN (1989), procurava pelas ruas, bancas de jornais e galerias de Paris
os seus poemas. Gil desvenda tensões humanas enveredando por um mundo de animas e
plantas. Micro-universos inesperados podem revelar dramas sociais e individuais:
Cupim é a pior coisa que pode acontecer a uma coisa; é o câncer das coisas.
Certa vez conheci uma coisa que tinha cupins. Coitada, já velha carcomida
por dentro; toda oca nas entranhas. Entranha é uma palavra bastante estranha.
Cupim é também palavra bastante esquisita. Esquisita é palavra bastante...
Bem, basta! (VELOSO, 2009, p. 13)
Fala-se de uma coisa, objeto que tem cupins, mas essa construção vai se
encaminhando para uma associação com a figura humana: “câncer”, “entranhas”. Ir ao
mundo externo é, no fundo, fazer uma viagem externa. E ainda:
163
Faculdade das Américas – FAM; Faculdade Campos Sales - FCS.
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Dizem que há, entre eles, reis, rainhas e soldados. Por minha conta acrescento:
políticos (cupins da oratória, degradam tudo), banqueiros, juízes, advogados,
pastores, cardeais e colaterais, a cúria toda, todo o clero esclerosado e as gentes
demais que formam o povo, cupins de auditório, o zé-povinho basicamente.
Escravos certamente os há, aos montes; ditadores, generais obrigando a roer a
dita dura. Enfim, uma sociedade com seus modelos a definhar. (VELOSO,
2009, p. 13)
O leitor é pego sempre de surpresa, da simplicidade de um tema quase inocente
o autor enseja uma demolição desmistificadora. Aponta a sua espada para um Deus e
seus representantes que apenas condenam, discute política, ética, questiona “uma
sociedade com seus modelos a definhar”. Gil desmonta a sintaxe, escava,
frequentemente, novos sentidos na massa lingüística dos significantes: “entranha” /
“estranha”, “ditadores” / “dita dura”. Procedimentos que nos remetem à escrita lúdica de
Guimarães Rosa e, como já mencionamos, à arte combinatória dos surrealistas e
cubistas, ao “estado de bagunça” de muitos dos livros de Murilo Mendes. A escrita de
Gil confirma o que diz Antonio Candido no ensaio O direito à literatura: “o conteúdo só
atua por causa da forma” (CANDIDO: 2004, p. 179). Há uma indissociabilidade, uma
necessidade mútua entre significante e significado, forma e conteúdo. De um vocábulo
ou construção mais complexa Gil extrai seu texto, porém não se trata de uma escrita
cega, muito pelo contrário, o processo é refletido e racional.
Nesse processo de corrosão das coisas, que se estende para a sociedade, Gil, ao
final, acaba também descobrindo os cupins que dão em gente: “Atenção, não fique
muito tempo parado, devoluto, que poderá ser confundido com uma coisa. Pelo que sei,
e acredito piamente,o bicho-de- pé, o tal geográfico, é primo parente desses cupins que
não dão em gente. Aposto um dedo do pé que é.” (VELOSO, 2009,15) Cada fábula tem
como pretexto um animal, na verdade, o rico e multifacetado processo de associações de
Gil parece desconhecer um termo. As fábulas se concluem, mas algumas poderiam
continuar numa série de outras fábulas sobre o mesmo animal – e mesmo serem
adaptadas para a linguagem dos quadrinhos, para o teatro ou uma série de TV. Digo isso
porque a linguagem dinâmica de Fábulas Farsas parece dialogar com vários sistemas.
Seu ritmo lembra muito a demolidora irreverência de certos grupos de teatro dos anos
70 como o Asdrúbal trouxe o trombone ou a estética de um programa como TV Pirata,
transmitido nos anos 80 e 90 pela TV Globo. Sobre a relação com os quadrinhos, cito a
epígrafe da fábula “Sou um burro”: “Justo a mim me coube ser eu”, frase retirada das
histórias da Mafalda, de autoria do cartunista Quino. Mafalda é uma menina de 7 anos
que vive na Argentina dos anos 70 numa época de conflitos políticos e ideológicos.
Mesmo com essa idade, ela entende de política, filosofia e literatura. Esse aspecto
aparentemente ingênuo, problematizador e também inesperado é um recurso constante
na obra de Gil.
A depressão, a angústia, a crise existencial são os motores iniciais da maioria das
narrativas. Em “O Vaga-lume louva-a-Deus”, o Vaga-lume estava “Aborressentido,
triste, a depressão em riste; ignorava o porquê, se o inferno astral [...], a crise da idade
[...]; papai do céu, papai-noel, o saco de sempre.” (VELOSO,2009, p. 16) E antes
mesmo desse momento limite, o Vaga-lume já tinha passado por situações difíceis na
vida e o narrador recorda: “Pobre-lume, já havia atravessado obscuros e turbulentos
pedaços, como quando, desempregado, cortaram-lhe a luz por conta de contas não
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pagas. Ainda bem que ao fim do ano arranjou emprego numa árvore de Natal.”
(VELOSO, 2009, p. 16)
Acompanhamos também a história de amor do Vaga-lume com uma libélula –
que não dá nada certo, pois a beldade achou uma chatice o palavreado todo açucarado
do moço. Nessa, como em outras das fábulas, a figura feminina parece arrojada e
diferenciada e, realmente, Gil não aposta em histórias de amor do tipo foram felizes
para sempre. O autor provoca o tempo todo o seu leitor e chega mesmo, em outras
fábulas, a conversar com eles sobre o andamento da história, sobre o seu final. Em
seguida ao idílio, o Vaga-lume tenta estrear uma peça, “num palco escuro, só com seu
fogo estreme iluminado” (VELOSO, 2009, p. 17). Como se pode constatar, trata-se
também de uma aposta muito divertida em figuras vaidosas, ridículas mesmo. Nos
encontramos nesses personagens de uma forma muito bem humorada e todos nos levam
à reflexão. O Vaga-lume acaba por encontrar seu caminho, como também se dá com
outras personagens na obra de Gil, passa a dedicar-se à “temperança, ao dito, e nada
erudito, conhecimento [...].Quem o vê, meditabundo em luminescências, julga-o louvaa-deus untado de tudo e Tao. Qual nada! É só uma vaga-luz a luminar.” (VELOSO,
2009, p. 21)
Na fábula “O Elefante bailarino”, o autor discute os padrões de comportamento:
“O pai do elefantinho, seu Helefantudo, entrou repentino no quarto do filho e ficou
besta ao vê-lo bailando com sapatilhas, balangandãs, castanholas e tudo. [...] ‘Que porca
vergonha!Uma tromba já des’tamanho e prestar-se a esse dom transviado.’ ” (VELOSO,
2009, p. 31) Helefantudo chegou mesmo a destruir o quarto com todos os ícones
cultuados pelo adolescente. O fato é trazido de forma divertida e inteligente: “Parecia
que um ciclone passara em seu quarto; uma manada sobre seu peito. Adeus Laban, John
Fante, Morangos Mofados, pôster da Pina Bausch e a estatueta de Ganesha, que ele,
culto, cultuava.” (VELOSO 2009, p. 32)
A mãe do elefantinho ameniza a situação e conta a ele um dos sonhos do
passado de seu pai: estudar decoração. Mas foi proibido pelo avô do elefantinho e este,
durante o jantar, fez ao pai sisudo essa pergunta que desarma pai e leitor: “Durante o
jantar, momento ruminante, ousou súbito, sem tromba de dúvida: ‘Pai, responde
resoluto de supetão: qual é o seu dharma, sua vocação, seu dom verdadeiro, seu sonho
DE-CO-RA-ÇÃO?’ ” ( VELOSO, 2009, p. 33) Helefantudo começou a espirrar mingau
de aveia pela tromba e foi parar no hospital. Depois, tudo acabou se acertando como,
muitas vezes, na vida também.
São vinte e nove narrativas, três delas não são exatamente fábulas. Duas são, na
verdade, uma declaração de afeto aos animas, parecem ter um caráter autobiográfico:
“Uma cadela”, Chimía, fala de uma cadelinha que o autor deve ter tido na infância e a
outra é “De Gatinho, engatinho”, sobre um gato chamado Bertrand. A outra chama-se
“Heureca”, que trata de um personagem chamado “Ninguém”, aqui não há nenhuma
relação com animais. Ninguém é um ser deprimido, “Mais solitário que Deus”, segundo
o narrador. As vinte e seis histórias restantes têm um caráter semelhante ao das outras
que tratamos anteriormente – e não muito diferente dessas três que se destacam mais por
não serem fábulas. Há um questionamento permanente da vida (“Zangada, escrava
exaurida cansada de usança [...], a abelhinha rebeldesvairada sonhava ser rainha: quem
dera viver no harém da colméia real, untada em geléia com um enxame de zangões
libidinosos.” - “O Beija-flor e a Abelha que não gostava de mel”), de nossos “bons
costumes” e valores morais (exaltação da preguiça: “formada e graduada em não fazer
absolutamente nada; exímia em minúcias e tudo que requer esforço mínimo.” – “O
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aniversário da Preguiça”), da religiosidade (“Sem sombra de um deus, sem medo, sem
mágoa, de culpas & Cia” – “Micuim, o Ácaro”), da sexualidade (“Machos, uns broxam,
outros desabrocham” – “O elefante bailarino”), da espetacularização vazia (como o da
lagartixa e seu grande sucesso na “música copular brasileira”: “Mi sexo, su sexo / Su
sexo, mi sexo [repete até perder o fôlego]. / Eu quero su sexo. Jo quero sucesso. Eu
quero sucexo.” – “A lagartixa e o bicho preguiça”).
A proposta, de forma geral, prima pela auto-descoberta e aposta-se nas
experiências realmente vividas como quando o narrador de “Heureca” diz ao leitor:
“Melhor que você descubra sozinho. Caso esteja muito curioso, pergunte pro adulto
mais próximo; obeso de saber livresco virar-se-á do avesso tentando explicar.”
(VELOSO, 2009, p.56) O tom é divertido quase sempre (chegando ao humor negro), até
na hora de falar sobre suicídio. Em “O Peixinho complexado”, o Peixinho “tristíssimo”
e ansioso se empanturra de “doces girinos” e pensa em se suicidar mordendo um anzol.
Sem a moral clássica da história ao final de suas fábulas e narrativas – daquele tipo
MORAL DA HISTÓRIA: ..., Gil une o útil e o agradável sem receio algum. Não teme
barreiras, tabus. Segue, apenas, o próprio caminho que lhe apontam sua consciência
crítica e o desejo constante de brincar com a alquimia das palavras. Quem disso isso,
certamente, deve dizer mais.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN,Walter. Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III. São Paulo:Brasiliense, 1989.
CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
KAISER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Arménio Amado, 1970, vol. 1.
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GUIMARÃES, Rodrigo. objeto algum. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
Alexandre de Melo ANDRADE164
A poesia brasileira das últimas décadas tem sido marcada por vários aspectos
que sinalizam a desconstrução do todo-construído e a ruptura com as estruturas
preestabelecidas. O Concretismo – movimento poético que marcou a literatura brasileira
dos anos 50 e 60 –, por meio da desarticulação sintática, do desmembramento
morfológico e da valorização do branco da página, já apontava para essa ruptura e essa
desconstrução de que nos ocupamos aqui. Rompendo com o padrão frásico da poesia
tradicional, o movimento concretista revalorizou o nominalismo e a economia verbal,
desnudando o ser-palavra do acúmulo de significados e propondo uma redescoberta do
significante.
O cenário poético que desabrochou após a revolução concretista apresentou
poetas preocupados com o olhar sobre o objeto-em-si e, consequentemente, despidos
dos excessos que poderiam causar transbordamento na forma poética. Carlos
Drummond de Andrade, por exemplo, pendia para um fazer-poético enxuto,
“petrificado”, atingindo os objetos da forma mais substancial possível. Orides Fontela,
já nas últimas décadas do século XX, trouxe uma produção poética que prima pelo
movimento construção-desconstrução, de forma que a palavra pudesse – conforme
também propõe Heidegger – evocar o “sentido primeiro” e resgatar o primitivismo do
ser-palavra, oculto pelo historicismo.
Rodrigo Guimarães, que vem se destacando no panorama atual da poesia
brasileira, apresenta-nos uma poesia que leva a cabo esse movimento de construçãodestrutiva e de destruição-construtiva comum na lírica contemporânea. Nascido em
Belo Horizonte – MG, graduado em Psicologia e doutor em Literatura Comparada pela
UFMG, é autor de alguns livros de Psicologia e de obras poéticas. Seu livro objeto
algum, publicado em 2008 pela 7Letras – Rio de Janeiro, reabsorve todas as tendências
da poesia das últimas décadas – inclusive do próprio Concretismo – e lança mão de
recursos que insinuam um ludismo revelador. Desconstruindo as camadas de
significados e desautomatizando o leitor, Rodrigo chama a atenção para a coisa-em-si.
Seu projeto poético liberta os objetos do mundo das associações e do conhecimento
teórico, relativizando o empirismo e a captação do real.
O título da obra – objeto algum – por si mesmo já causa um deslocamento em
relação às ideias preconcebidas. Pela clareza lógica, o que se teria é “algum objeto”;
porém, a inversão dos termos transforma o conteúdo em negação do objeto. Temos,
então, uma desreferencialidade que empana o olhar lançado sobre os objetos, e que será
pertinente em todos os poemas. A primeira parte da obra, intitulada “Sem título”, causa
estranhamento justamente porque o título, por ser um centramento das ideias expostas
ao longo de um segmento, contraria sua própria função, o que colabora para a
desreferencialidade dos objetos. A segunda parte do livro possui o título da obra.
Quando falamos em desreferencial, necessariamente tocamos no plano espacial,
pois qualquer referencialidade perdida tange a ausência de um elemento espacial
centralizador. O exercício da leitura do livro em duas partes antecipa e acentua essa
perda de referência: a primeira parte é escrita em versos que transcorrem a página no
sentido mesmo a que estamos acostumado a ler livros; a segunda parte, porém, exige
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Faculdade Bandeirantes - FABAN
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que o leitor vire o livro, de forma que o aspecto vertical da primeira parte seja o aspecto
horizontal da segunda. O próprio livro, dessa forma, projeta uma desreferencialidade em
relação ao seu leitor e aos vocábulos que escorrem pelas páginas. Salientamos, ainda,
que na segunda parte do livro há uma mistura do verso com a prosa, pois as linhas são
ocupadas na quase totalidade de sua extensão na folha, havendo, numa mesma linha,
espaçamento maior entre algumas expressões – o que insinua a pausa do fim do verso,
ainda que se continue a escrever na mesma linha. O parágrafo, o verso e a segmentação
são superpostos, causando a impressão de um non-sense poético, de uma falta de apoio
que oriente o curso da escrita e da leitura.
O poema que abre a primeira parte da obra, intitulado “sem título”, assim se
apresenta:
e o que se vê
centraliza todo
o espaço,
persiste,
sem moldura
ou título,
cravado em seu
axioma de ferro,
seu habitat supremo,
desqualificando tudo
com exata indiferença,
como um
prego na parede
(2008, p. 13)
O olhar, conforme o poeta alude nos três primeiros versos, é responsável por
centralizar os objetos captados no mundo físico: o olhar ordena, focaliza, centraliza,
mira e organiza. Os termos “moldura”, “título” e “prego na parede” fazem referência
justamente a esse caráter centralizador do olhar sobre a matéria. Porém, subtraindo a
moldura através do uso da preposição “sem” e mais o uso dos prefixos -des (em
“desqualificando”) e -in (em “indiferença”), o poeta descentraliza e, por isso,
desautomatiza o olhar sobre a matéria.
A segunda estrofe do poema “equilíbrio residual”, transcrita abaixo,
assim como
o aquário desequilibra o mar
a gaiola o espaço
o espaço o muro
o murro o homem
o homem o homem.
(2008, p. 49)
pressupõe justamente o oposto do título, ou seja, o desequilíbrio. Usando termos de
implicação – aquário e mar, gaiola e espaço, espaço e muro, murro e homem –, o poeta
propõe que a ordem imposta pelo homem ao mundo acentue o próprio desequilíbrio; ou
seja, buscando um equilíbrio, causa um desequilíbrio. O último par de elementos (“O
homem o homem.”) justamente transpõe para o homem o fator central de desiqulíbrio,
já que ele está contra si mesmo ao alterar o espaço em busca de um “equilíbrio”.
Todos os poemas de objeto algum usam recursos de forma e conteúdo para a
expressão do desreferencial. Os sentidos – viciados pelas convenções organizacionais –
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são reduzidos a uma escala zero pelo próprio (des) processo com que Rodrigo
Guimarães apresenta seus versos. Não há dúvida de que o poeta deve ser lido por
aqueles que buscam a compreensão dos caminhos (ou descaminhos?) da poesia
contemporânea.
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DISSERTAÇÕES
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LIMA, Maria José Batista de. Orides Fontela: Aspectos da Fortuna Crítica. Dissertação
(Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS
– Três Lagoas, 2010. Orientadora: Kelcilene Grácia Rodrigues.
Esta dissertação tem como objetivo catalogar a produção crítica sobre a obra de Orides
Fontela, considerando a importância da poeta no quadro das tendências que fecham o
século XX no Brasil. Para tanto, fez-se necessária uma pesquisa que teve por meta a
sistematização bibliográfica da recepção da escritora paulista, por meio da crítica
literária que a recebeu e de trabalhos realizados por pesquisadores que atuam na área da
historiografia literária. Assim, catalogamos o material bibliográfico e sistematizamos
em categorias discursivas a fortuna crítica de Fontela, de que resultou um trabalho
dividido em dois capítulos. No primeiro, apresentamos a vida e a obra da escritora,
esboçamos as categorias empregadas para sistematizar a bibliografia de Orides Fontela
e realizamos uma exposição dos aspectos tratados em textos publicados sobre a
escritora. Esperamos que o estudo crítico da recepção da autora seja instrumento para a
organização do conhecimento científico no âmbito literário, fornecendo uma fonte para
futuras pesquisas acadêmicas sobre Fontela. No segundo capítulo, analisamos poemas
dos livros Transposição (1969), Rosácea (1986) e Teia (1996) para comprovar que a
metapoesia e o drama existencial são aspectos recorrentes na poesia oridiana, tal como
diversos estudos coligidos na fortuna crítica mencionam.
NEVES, Fábio Luís Silva. Ficção, História e Ideologia nas reedições críticas de
Visconde de Taunay. Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador: João Luís Pereira
Ourique.
Esta pesquisa tem por objetivo analisar algumas reedições de obras do Visconde de
Taunay surgidas nos anos de transição entre os séculos XX e o XXI, de modo a tanto
fornecer ao leitor e ao pesquisador uma leitura crítica destas reedições quanto apresentar
uma outra versão histórico-literária do período. Tendo como base de nosso corpus a
reedição do conto “Ierecê a Guaná”, de 2000, organizada por Sérgio Medeiros,
propomos também a análise de outras duas reedições: a das Memórias, de 2005,
também organizada por Medeiros, e a de Inocência, de 2006, dirigida por Hildebrando
Campestrini e editada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul.
Partindo da análise de parte da fortuna crítica do Visconde de Taunay, produzida no
século passado, e estabelecendo comparações com as manifestações críticas presentes
nas reedições mencionadas, constatamos um embate crítico. Para tanto, apresentamos
como base do percurso o material histórico sobre o autor, produzido por renomados
críticos brasileiros do século XX, e formulações teóricas condizentes com o período em
que as reedições se inserem. Ou seja, tais reedições têm proposta distinta da crítica que
consagrou por mais de um século o escritor romântico brasileiro: nelas, a ficção é relida
como manifestação direta, sem m ediação, da vivência cultural e política do escritor e é
indevidamente apropriada como uma fundação simbólica e atemporal que traz como
resultado o fato de a ficção ser transformada em ideologia.
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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PEREIRA, Rodrigo Andrade. Tormenta e Resignação: Contos de Luiz Vilela
configuram um bildungsroman?. Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) –
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador:
Rauer Ribeiro Rodrigues.
O presente trabalho tem como corpus contos dos três primeiros livros de Luiz Vilela:
Tremor de Terra, de 1967, No Bar, de 1968, e Tarde da Noite, de 1970. O que se
pretende verificar é a configuração de um “romance de formação”, o Bildungsroman,
observável em uma seleção de contos, quando tais contos são colocados em ordem
cronológica da idade do herói da narrativa. Verificamos, nestes contos, conflitos
internos das personagens que as levam à próxima etapa da sua vida. Primeiramente,
fazemos um breve relato dessas três primeiras obras de Vilela e da formação literária do
escritor; fazemos ainda comentários sobre a recepção crítica que estes três primeiros
livros tiveram. Abordamos, depois, os vários aspectos do romance de formação, desde
os seus primórdios, com o Meister, de Goethe. Passamos pelas análises sobre o romance
de formação e a problematização do interior da personagem formuladas por Bakhtin; e
verificamos os comentários sobre o romance O Tambor, de Günter Grass, que é
considerado pela crítica como uma espécie de romance de formação às avessas. A partir
desse referencial, mostramos de que modo pode haver relação entre o gênero conto e o
gênero romance. O “romance de formação” deve, sinteticamente, ser definido como um
romance que abarca a trajetória da personagem desde os primeiros anos, passa pelos
momentos em que se revela e aperfeiçoa, e o acompanha ao grau máximo de
perfectibilidade, quando se integra, acomodado, à sociedade. Para demonstrar nossa
proposição, analisamos contos de Luiz Vilela, traçando a trajetória da personagem, nas
etapas da infância, da sexualidade, da adolescência, do amor jovem, da revolta e – na
idade adulta – da conformação.
RODRIGUES, Valéria Aparecida. Quase de verdade: quatro fábulas de Clarice
Lispector (vida, criança e bichos). Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) –
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador:
Edgar Cézar Nolasco dos Santos.
Sob a rubrica da crítica biográfica, este texto propõe estabelecer a intrínseca relação
entre autor e obra. A partir da leitura das quatro fábulas claricianas, "O mistério do
coelho pensante" (1967), "A mulher que matou os peixes" (1968), "A vida íntima de
Laura" (1975) e "Quase de verdade" (1978), entre outros procuraremos detectar como
ocorre a relação biográfico-cultural na obra voltada para crianças de Clarice Lispector.
Nessa relação que envolve vida e obra inscreve-se o "bio" que, por sua vez, desencadeia
outras formas possíveis de serem imaginadas e estabelecidas, ainda que
metaforicamente, ampliando as possibilidades de compreensão do texto literário como
texto da cultura. Entre as formas possíveis de relação, destacamos as "influências
metafóricas" ou "amizades literárias", que aproxima escritores e obras, mesmo quando
tal relação não tenha acontecido de fato no percurso histórico. Nesse sentido, é oportuno
ressaltar que nossa leitura também privilegiará o conceito de amizade, que é essencial
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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para esta pesquisa, já que os amigos também se apresentam como marca autoral na obra
clariciana. Assim, a leitura das fábulas infantis de Clarice Lispector colabora com os
propósitos desta pesquisa, haja vista que elas apresentam-se como o fabulário da própria
vida da escritora, uma vez que as histórias da vida real servem de suplemento para a
ficção e vice-versa.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS
1 – Apresentação
A revista eletrônica Guavira Letras, registrada com ISSN 1980-1858, avaliada como Qualis B3
pela CAPES, é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMS
do Câmpus de Três Lagoas.
Criada e publicada desde 2005, a Guavira Letras tem por finalidade divulgar produções
científicas de pesquisadores de universidades nacionais e estrangeiras. O periódico conta com
um Conselho Consultivo, Conselho Editorial e com pareceristas externos especialmente
convidados.
2 – Normas para apresentação dos artigos
Observando os objetivos da Revista, a Guavira Letras publicará:
a) Artigos originais e inéditos;
b) Entrevistas originais e inéditas;
c) Resenhas inéditas de obras científicas ou literárias editadas ou reeditadas nos últimos
dois anos;
d) Trabalhos de revisão e/ou de atualização, elaborados por especialistas;
e) Resumos de dissertação de mestrado.
3 – Normas para publicação de artigos na Guavira Letras
1 – Arquivo apenas em extensão DOC.
2 – Os artigos deverão ter no mínimo 10 (dez) e no máximo 20 (vinte) páginas e as resenhas no
máximo 03 (três) páginas, respeitando-se a seguinte configuração, em papel A4: 1,25cm de
margem para parágrafo, com margens esquerda e superior de 3,0cm e direita e inferior de
2,0cm, sem numeração de páginas.
3 – Os trabalhos de pós-graduandos, assim como os de Mestres e Doutores sem vínculo com
instituições de ensino ou pesquisa, só serão aceitos se apresentados em co-autoria com o Prof.
Orientador.
4 – Os artigos, entrevistas ou resenhas devem ser enviados por e-mail
([email protected]), em programa Word for Windows 6.0 ou compatível, em um
arquivo com o título do trabalho e com identificação do proponente e um arquivo com o título
do trabalho e sem identificação do proponente.
5 – O Conselho Consultivo, ao qual serão submetidos os textos, poderá sugerir ao autor
modificações de estrutura e de conteúdo. Serão devolvidos para correção os trabalhos para as
modificações. Nenhuma modificação de conteúdo ou estilo será feita sem o prévio
consentimento do autor. É do autor a inteira responsabilidade pelo conteúdo do material
enviado.
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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6 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura:
6.1 – Elementos pré-textuais:

Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito. Fonte: Times New
Roman, corpo 13, somente a primeira letra em maiúscula em ambos.

Nome do(s) autor(es): duas linhas abaixo do título, alinhado à direita, com o último
sobrenome em maiúscula. Ao final do nome do autor (es) indicar, em nota de rodapé: Sigla –
Universidade. Faculdade/Instituto – Departamento. Cidade – Estado – País. CEP – e-mail.

RESUMO: três linhas abaixo do nome do autor; em português. Colocar a palavra
RESUMO em caixa alta, alinhado à esquerda, sem adentramento e seguida de dois pontos.
Redigir o texto em parágrafo único, espaço simples, justificado, de, no mínimo, 150 palavras e,
no máximo, 200. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo. O resumo do artigo
deve indicar objetivos, referencial teórico utilizado, resultados obtidos e conclusão.

PALAVRAS-CHAVE: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do
resumo, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Fonte: Times New
Roman, corpo 10. Cada palavra-chave somente com primeira letra maiúscula, separada por
ponto. Para maior facilidade de localização do trabalho em consultas bibliográficas, o Conselho
Editorial sugere que as palavras-chave correspondam a conceitos mais gerais da área do
trabalho.
6.2 – Elementos textuais:

Texto: O corpo do texto inicia-se duas linhas abaixo das palavras-chave.

Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao longo de todo o
texto.

Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto
(tabelas, ilustrações, citações em destaque, etc.).

Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas duplas.
Fonte: Times New Roman, corpo 12. Quando maiores do que 5 (cinco) linhas, devem ser
destacadas fora do corpo do texto. Fonte: Times New Roman, corpo 10, em espaço simples,
com recuo de 4cm à esquerda. Todas as referências das citações ou menções a outros textos
deverão ser indicadas, após a citação, com as seguintes informações entre parênteses:
sobrenome do autor em caixa alta, vírgula, ano da publicação, abreviatura de página e o número
desta. Exemplo: (CANDIDO, 1976, p. 73-88) (NBR 10520/03). Evitar a utilização de idem ou
ibidem e Cf. Quando utilizar apud colocar as mesmas informações solicitadas anteriormente
para o autor do texto da qual a citação foi retirada. Exemplo: (BOSI, 2003, p. 1-10 apud
SILVA, 1998, p. 23). Não esquecer de incluir todos os dados de ambos os autores. Colocar
somente as obras consultadas diretamente nas Referências.

Notas explicativas: se necessárias, devem ser: colocadas no rodapé da página de
ocorrência, numeradas seqüencialmente, com algarismos arábicos, fonte Times New Roman,
corpo 10, alinhamento justificadas, mantendo espaço simples dentro da nota e entre as notas, no
decorrer do texto.

Títulos e subtítulos das seções: Referenciados a critério do autor, devem estar
alinhado à esquerda, sem adentramento, em negrito, sem numeração, inclusive Introdução,
Conclusão, Referências e elementos pós-textuais, com maiúscula somente para a primeira
palavra da seção, fonte: Times New Roman, corpo 12.
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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
Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser inseridas no texto,
logo após serem citadas, contendo a devida explicação na parte inferior da mesma, numeradas
seqüencialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo: Fig. 1. Fig.
2, etc
6.3 – Elementos pós-textuais:

Colocados logo após o término do artigo.

Título: em inglês, centralizado, em itálico e caixa alta. Inserido duas linhas
abaixo do final do texto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa.

ABSTRACT: Duas linhas abaixo do título. Colocar a palavra ABSTRACT,
alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta, fonte Times New Roman, corpo
10 para todo o texto, seguida de dois pontos. Redigir o texto em inglês, em parágrafo único,
espaço simples e justificado. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua
inglesa.

KEYWORDS: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do abstract,
em inglês, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Colocar o termo
Keywords em caixa baixa. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada Keywords palavra-chave
somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Recomenda-se procurar revisão por
um especialista em língua inglesa.

Referências: seguir as normas da ABNT em uso (NBR-6023/02). Duas linhas
abaixo das palavras-chave em inglês, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e
caixa alta. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e espaço 1,5 entre uma referência e
outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado, indicando-se as obras de autores citados no
corpo do texto.

Bibliografia: se considerada imprescindível, deve vir duas linhas abaixo das
referências, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta. Podem ser
indicadas obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no texto. Usar espaçamento 1
entre as linhas da referência e espaço 1,5 entre uma referência e outra, em ordem alfabética,
alinhamento justificado.
7 – Exemplos de referências (NBR-6023/02):
Livros:
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Tradução de Cláudia
Pfeiffer et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 1986.
CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. (Orgs.). O desejo da teoria e a contingência da prática.
Campinas: Mercado das Letras, 2003.
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Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
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Capítulo de livros:
PECHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: Orlandi, E. P. (Org). Gestos de leitura: da história no
discurso. Tradução de Maria das Graças Lopes Morin do Amaral. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1994. p.15-50.
Artigo em periódico:
SCLIAR-CABRAL, L.; RODRIGUES, B. B. Discrepâncias entre a pontuação e as pausas.
Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, n.26, p.63-77, 1994.
Artigo em periódicos on-line:
SOUZA, F. C. Formação de bibliotecários para uma sociedade livre. Revista de
Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n.11, p.1-13, jun. 2001. Disponível
em: . Acesso em: 30 jun. 2001.
Dissertações e teses:
BITENCOURT, C. M. F. Pátria, civilização e trabalho: o ensino nas escolas paulista (19171939). 1988. 256 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
Artigo em jornal:
BURKE, Peter. Misturando os idiomas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2003. Mais!, p.3.
Documento eletrônico:
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Coordenadoria Geral de Bibliotecas. Grupo de
Trabalho Normalização Documentária da UNESP. Normalização Documentária para a produção
científica da UNESP: normas para apresentação de referências. São Paulo, 2003. Disponível
em: . Acesso em: 15 jul. 2004.
Trabalho de congresso ou similar (publicado):
MARIN, A. J. Educação continuada. In: CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE
FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1., 1990. Anais...São Paulo: UNESP, 1990. p.114-8.
CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais
eletrônicos...Recife: UFPe. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 1997.
CD-ROM:
KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital 98. Direção geral de
André Koogan Breikman. São Paulo: Delta; Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por
Videolar Multimídia.
Conselho Editorial da revista Guavira
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Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses
Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales.
Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).

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