Êcfrases - Laboratório de Letras Clássicas

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Êcfrases - Laboratório de Letras Clássicas
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UFPB / CCHLA / DLCV / CCLC / 2015.1 / Literatura Latina I: Épica / Prof. Lucas Dezotti
DESCRIÇÃO.
Illa uero, ut ait Cicero, sub oculos subiectio tum fieri
solet cum res non gesta indicatur sed ut sit gesta
ostenditur, nec uniuersa sed per partis: quem locum
proximo libro subiecimus euidentiae; […] ab aliis
ὑποτύπωσις dicitur, proposita quaedam forma rerum
ita expressa uerbis ut cerni potius uideantur quam
audiri: 'ipse inflammatus scelere et furore in forum
uenit, ardebant oculi, toto ex ore crudelitas eminebat.'
Nec solum quae facta sint aut fiant sed etiam quae
futura sint aut futura fuerint imaginamur. […]
Locorum quoque dilucida et significans descriptio
eidem uirtuti adsignatur a quibusdam, alii
τοπογραφίαν dicunt.
A [figura] chamada por Cícero de “exibição aos olhos” costuma se
dar quando o que aconteceu não é simplesmente indicado, mas se
mostra como aconteceu, e não de modo geral, mas em detalhes.
No livro anterior classificamos esta figura como evidência; […]
outros chamam de hipotipose qualquer representação visual dos fatos
expressa em palavras de tal modo que pareçam muito mais ser vistas
do que ouvidas: “ele chegou ao fórum inflamado pelo crime e pela
loucura: seus olhos estavam em brasa, sua cara emanava selvageria”.
E podemos criar imagens não só do que aconteceu ou acontece, mas
também do que pode acontecer ou poderia ter acontecido. […]
Também a descrição clara e expressiva de lugares é designada por
alguns dentro da mesma virtude; já outros a chamam de topografia.
De descriptione. Descriptio est oratio colligens et
praesentans oculis quod demonstrat. fiunt autem
descriptiones tam personarum quam rerum et
temporum et status et locorum et multorum aliorum:
– personarum quidem, ut apud Virgilium «uirginis os
habitumque gerens et uirginis arma / Spartanae»;
– rerum uero, ut pedestris proelii uel naualis pugnae
descriptio;
– temporum autem, ut ueris aestatis;
– status, ut pacis uel belli;
– locorum, ut litoris campi montium urbium.
[– αἱ δὲ καὶ τρόπων εἰσὶν ἐκφράσεις, ὁποῖαι τῶν
σκευῶν καὶ τῶν ὅπλων καὶ τῶν μηχανημάτων, ὃν
τρόπον ἕκαστον παρεσκευάσθη.]
Potest autem et commixta esse demonstratio, ut, si quis
describat nocturnam pugnam, simul et tempus et rem
demonstrat.
Sobre a descrição. Descrição é a composição textual que reúne e
apresenta aos olhos aquilo que demonstra. Fazem-se descrições de
personagens, de ações, de tempos, de circunstâncias, de lugares e de
muitas outras coisas:
– de personagens, como em Virgílio: “trazendo de virgem o rosto e a
aparência e o armamento de virgem espartana”;
– de ações, como de um combate terrestre ou uma batalha naval;
– de tempos, como da primavera, do verão [ou de uma festividade];
– de circunstâncias, como da paz ou da guerra [ou de tempestade, de
fome, de epidemia, de terremoto];
– de lugares, como de praia, campo, monte, cidade, [ilha, deserto];
– [há ainda descrições de modos, que são as dos utensílios, dos
armamentos e das máquinas, com respeito ao modo como se fazem
os preparativos.]
Pode ser também uma demonstração mista, por exemplo: se alguém
decreve uma batalha noturna, demonstra tanto tempo quanto ação.
– QUINTILIANO, Institutio oratoria 9.2.40–44.
– PRISCIANO, Praeexercitamina, 46.11–22, ed. Passalacqua, 1987.
[– TEÃO, Progymnasmata, ed. Gredos, 1991, pp. 136–7].
A distinção entre narração e descrição como temos hoje não se observava na retórica antiga. Conforme Teão e
Aftônio, o gênero ecfrástico é “misto” ou “composto” e as écfrases integram-se à ação dos poemas, narrando fatos. O
dispositivo ecfrástico remete ao discurso periegético, que guia o espectador ao redor da cena descrita, explorando ao
máximo as possibilidades que a imagem encerra. Esse caráter periegético aparece sobretudo na descrição de objetos, que
normalmente fornece todos os detalhes para a presentificação da imagem. Em outras palavras, a descrição era entendida
como um dispositivo que detalhava seu objeto de tal maneira que pudesse ser claro o bastante para sua “visualização”.
Em contextos ecfrásticos, a expressão enárgeia aparece para tratar do aspecto de vivacidade dos textos. Segundo
Nicolau, em seus Progymnásmata, é a enargia que distingue a écfrase da narração pura e simples e procura transformar o
público ouvinte em espectador. O efeito da enargia está sempre presente no efeito de inúmeros tropos ou figuras, tais como a
metáfora, o símile, a hipérbole, a prosopopeia, a alegoria, entre outros.
Integrada à ação do discurso ou de caráter digressivo, a écfrase ou descrição cumpre a função de maravilhar o
espectador diante do quadro que se apresenta. A écfrase está presente já nos poemas homéricos, mas como método de
exposição dos elementos visuais. O principal exemplo de écfrase épica (écfrase de modo, segundo Teão) são os preparativos
do livro XVIII da Ilíada, no qual está presente a célebre passagem da produção do escudo de Aquiles.
De acordo com P. Hamon, os estudiosos se satisfazem com a classificação da descrição de acordo com o objeto
referente: cronografia, descrição de tempo; topografia, descrição de lugar; hipotipose, descrição vivaz de ações, paixões,
eventos físicos ou morais; prosopografia, descrição física de uma personagem; etopeia, descrição moral de uma
personagem; prosopopeia, descrição de um ser imaginário ou alegórico; retrato, descrição física e moral; paralelo,
combinação de duas descrições, por meio de semelhança ou antítese.
No século XX, principalmente, historiadores da arte passaram a usar o termo restrito à acepção de “descrição de
obra de arte”.
– Melina RODOLPHO (2010)
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(1a) A rocha que serve de baliza (Eneida 5. 124–31): descrição de lugar
Est procul in pelago saxum spumantia contra
litora, quod tumidis summersum tunditur olim
fluctibus, hiberni condunt ubi sidera Cauri;
tranquillo silet immotaque attollitur unda
campus et apricis statio gratissima mergis.
hic uiridem Aeneas frondenti ex ilice metam
130 constituit signum nautis pater, unde reuerti
scirent et longos ubi circumflectere cursus.
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Há ao longe, no mar, defronte às praias espumantes, uma rocha
que, estando submersa, é batida pelas ondas túmidas, quando os
Cauros invernais escondem as estrelas. Estando o mar tranquilo, é
silenciosa e da água calma é um campo que se eleva e um pouso
bem agradável para o banho de sol dos mergulhões.
Aí o pai Eneias fixou a baliza verde, feita de frondosa
azinheira, como marca para os navegadores, para que soubessem
de onde deveriam retornar e onde contornar com uma longa volta.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(1b) A gruta das Ninfas (Eneida 1. 157–73): descrição de lugar
Defessi Aeneadae quae proxima litora cursu
contendunt petere, et Libyae uertuntur ad oras.
est in secessu longo locus: insula portum
160 efficit obiectu laterum, quibus omnis ab alto
frangitur inque sinus scindit sese unda reductos.
hinc atque hinc uastae rupes geminique minantur
in caelum scopuli, quorum sub uertice late
aequora tuta silent; tum siluis scaena coruscis
165 desuper, horrentique atrum nemus imminet umbra.
fronte sub aduersa scopulis pendentibus antrum;
intus aquae dulces uiuoque sedilia saxo,
Nympharum domus. hic fessas non uincula nauis
ulla tenent, unco non alligat ancora morsu.
170 huc septem Aeneas collectis nauibus omni
ex numero subit; ac magno telluris amore
egressi optata potiuntur Troes harena
et sale tabentis artus in litore ponunt.
Exaustos, os Enéiadas procuram seguir na direção das praias
próximas e ao litoral da Líbia se dirigem.
O lugar é um recôncavo isolado: uma ilha interposta forma um
porto, as ondas do alto-mar ali se quebram, repartem-se e recuam
em refluxo.
De um lado e de outro, fragas eminentes, penhascos gêmeos,
sobem para o céu; ao longo de seus pés as águas calam.
Frondosa e farfalhante cena acima, de sombra espessa um
negro bosque assoma.
De frente para a ilha, num sopé, uma gruta de rocha saliente;
dentro, água doce e, em pedra viva, assentos: moradia das Ninfas.
Ali às naus cansadas não constrangem cabos nem âncoras de
dente adunco.
Eneias se encaminha para lá com sete naus ao todo resgatadas.
Ardorosos por terra, desembarcam, tomam posse da praia desejada
e, os corpos escorrendo ainda em sal, os troianos estiram-se na
areia.
– Tradução: Márcio Thamos.
(1c) A baía dos Ciclopes (Eneida 3. 568–84): descrição mista (lugar e circunstância)
interea fessos uentus cum sole reliquit,
ignarique uiae Cyclopum adlabimur oris.
570
Portus ab accessu uentorum immotus et ingens
ipse: sed horrificis iuxta tonat Aetna ruinis,
interdumque atram prorumpit ad aethera nubem
turbine fumantem piceo et candente fauilla,
attollitque globos flammarum et sidera lambit;
575 interdum scopulos auulsaque uiscera montis
erigit eructans, liquefactaque saxa sub auras
cum gemitu glomerat fundoque exaestuat imo.
fama est Enceladi semustum fulmine corpus
urgeri mole hac, ingentemque insuper Aetnam
580 impositam ruptis flammam exspirare caminis,
et fessum quotiens mutet latus, intremere omnem
murmure Trinacriam et caelum subtexere fumo.
noctem illam tecti siluis immania monstra
perferimus, nec quae sonitum det causa uidemus.
Nesse meio tempo, o vento e aquele sol nos deixaram extenuados
e, sem saber a rota, abordamos as margens dos Ciclopes.
O porto, abrigado dos ventos, é tranquilo e amplo, mas perto o
Etna troveja com horríveis erupções.
Ora a montanha lança para o éter nuvens negras, nas quais
turbilhonam fumos sombrios e cinzas incandescentes, e eleva globos
de chamas que lambem os astros.
Ora projeta rochedos arrancados de suas entranhas como se os
vomitasse, amontoa, mugindo, pedras liquefeitas nos ares, e referve
nas suas profundas.
Narra a lenda que o corpo fulminado de Encélado se revolve sob
essa massa, e que o enorme Etna, que o esmaga com seu peso, exala
a chama de suas fornalhas hiantes, e que cada vez que ele move o
flanco cansado, a Trinácria inteira treme com longo murmúrio e o
céu se cobre de fumo.
Durante a noite, sob o teto das florestas, assistimos a esses
monstruosos prodígios, sem vermos qual a causa de tal ruído.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
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(1d) A “topografia” do mundo subterrâneo (Eneida 6. 264–89; 6. 548–59): descrição de lugar
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275
280
285
550
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Ibant obscuri sola sub nocte per umbram
perque domos Ditis uacuas et inania regna:
quale per incertam lunam sub luce maligna
est iter in siluis, ubi caelum condidit umbra
Iuppiter, et rebus nox abstulit atra colorem.
uestibulum ante ipsum primisque in faucibus Orci
Luctus et ultrices posuere cubilia Curae,
pallentesque habitant Morbi tristisque Senectus,
et Metus et malesuada Fames ac turpis Egestas,
terribiles uisu formae, Letumque Labosque;
tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis
Gaudia, mortiferumque aduerso in limine Bellum,
ferreique Eumenidum thalami et Discordia demens
uipereum crinem uittis innexa cruentis.
in medio ramos annosaque bracchia pandit
ulmus opaca, ingens, quam sedem Somnia uulgo
uana tenere ferunt, foliisque sub omnibus haerent.
multaque praeterea uariarum monstra ferarum,
Centauri in foribus stabulant Scyllaeque biformes
et centumgeminus Briareus ac belua Lernae
horrendum stridens, flammisque armata Chimaera,
Gorgones Harpyiaeque et forma tricorporis umbrae.
[…]
Respicit Aeneas subito et sub rupe sinistra
moenia lata uidet triplici circumdata muro,
quae rapidus flammis ambit torrentibus amnis,
Tartareus Phlegethon, torquetque sonantia saxa.
porta aduersa ingens solidoque adamante columnae,
uis ut nulla uirum, non ipsi exscindere bello
caelicolae ualeant; stat ferrea turris ad auras,
Tisiphoneque sedens palla succincta cruenta
uestibulum exsomnis seruat noctesque diesque
Obscuros sob a noite sozinha, eles iam através da sombra e
das moradas vazias e dos reinos desabitados de Dite: assim é nas
florestas o caminho sob a luz maligna, através da lua incerta,
quando Júpiter oculta o céu com uma sombra e a negra noite
rouba a cor das coisas.
Diante do vestíbulo, onde começam as gargantas do Orco, o
Luto e os Remorsos vingadores puseram seus leitos; lá habitam
as pálidas doenças e a triste Velhice e o Medo e a Fome má
conselheira e a desagradável Pobreza e a Morte e o Sofrimento –
formas horríveis de se ver.
Então o Sono profundo, irmão da Morte, e os Prazeres
perversos da mente e, no limiar oposto, a Guerra mortífera e as
camas de ferro das Eumênides e a Discórdia sem juízo, com sua
cabeleira de víboras atada por fitas sangrentas.
No meio, estende os ramos e velhos braços um olmeiro
opaco, enorme, que dizem ser onde os Sonhos vãos têm sua
morada, fixados sob cada folha.
E também muitas formas fantásticas de diversos animais:
Centauros repousavam nos umbrais, as Cilas biformes e Briareu
de cem braços e o monstro de Lerna zunindo de modo assustador,
e a Quimera armada de chamas, as Górgonas e as Harpias e a
forma da sombra de três cabeças.
[…]
Eneias olha para trás subitamente e vê à esquerda, ao pé dum
rochedo, largas muralhas cercadas por um tríplice muro, que um
rio rápido circunda com sua corrente de chamas e revolve pedras
sonoras: é o Flegetonte tartáreo.
Do outro lado, uma enorme porta e colunas de inquebrável
diamante, que nenhuma força humana, nem mesmo a do próprio
habitante do céu, seria capaz de destruir na guerra. Uma torre de
ferro se ergue nos ares; sentada, vestindo sua capa sangrenta,
Tisífone guarda o vestíbulo noite e dia, sem dormir.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(1e) Um banquete em detalhes (Eneida 1.697–711): descrição de modo
cum uenit, aulaeis iam se regina superbis
aurea composuit sponda mediamque locauit,
iam pater Aeneas et iam Troiana iuuentus
700 conueniunt, stratoque super discumbitur ostro.
dant manibus famuli lymphas Cereremque canistris
expediunt tonsisque ferunt mantelia uillis.
quinquaginta intus famulae, quibus ordine longam
cura penum struere et flammis adolere penatis;
705 centum aliae totidemque pares aetate ministri,
qui dapibus mensas onerent et pocula ponant.
nec non et Tyrii per limina laeta frequentes
conuenere; toris iussi discumbere pictis
mirantur dona Aeneae, mirantur Iulum,
710 flagrantisque dei uultus simulataque uerba,
pallamque et pictum croceo uelamen acantho.
Quando chega [Cupido], a rainha já se encontra sobre
opulentas mantas reclinada, num leito de ouro, cujo centro ocupa;
o pai Eneias e os demais troianos, entrando, já se estendem sobre a
púrpura.
Criados vertem água para as mãos e toalhas de fino pelo trazem
e dos cestos de Ceres distribuem.
São cinquenta criadas incumbidas de preparar os pratos em
sequência e de manter as chamas dos penates; cem outras e outros
cem [serviçais] da mesma idade enchem copos e [nas mesas]
servem iguarias.
Também os tírios vão chegando em grupos, convocados ao
ledo limiar, e em leitos adornados se acomodam.
Os presentes de Eneias os encantam, a aparência de Iulo, um
deus flagrante, seu discurso enganoso, o fino manto e, cingido de
acanto, o véu dourado.
– Tradução: Márcio Thamos.
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(1f) O desfile dos jovens cavaleiros (Eneida 5. 553–602): descrição de ação
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incedunt pueri pariterque ante ora parentum
frenatis lucent in equis, quos omnis euntis
Trinacriae mirata fremit Troiaeque iuuentus.
omnibus in morem tonsa coma pressa corona;
cornea bina ferunt praefixa hastilia ferro,
pars leuis umero pharetras; it pectore summo
flexilis obtorti per collum circulus auri.
tres equitum numero turmae ternique uagantur
ductores; pueri bis seni quemque secuti
agmine partito fulgent paribusque magistris.
una acies iuuenum, ducit quam paruus ouantem
nomen aui referens Priamus, tua clara, Polite,
progenies, auctura Italos; quem Thracius albis
portat equus bicolor maculis, uestigia primi
alba pedis frontemque ostentans arduus albam.
alter Atys, genus unde Atii duxere Latini,
paruus Atys pueroque puer dilectus Iulo.
extremus formaque ante omnis pulcher Iulus
Sidonio est inuectus equo, quem candida Dido
esse sui dederat monimentum et pignus amoris.
cetera Trinacriis pubes senioris Acestae
fertur equis.
excipiunt plausu pauidos gaudentque tuentes
Dardanidae, ueterumque agnoscunt ora parentum.
postquam omnem laeti consessum oculosque suorum
lustrauere in equis, signum clamore paratis
Epytides longe dedit insonuitque flagello.
olli discurrere pares atque agmina terni
diductis soluere choris, rursusque uocati
conuertere uias infestaque tela tulere.
inde alios ineunt cursus aliosque recursus
aduersi spatiis, alternosque orbibus orbis
impediunt pugnaeque cient simulacra sub armis;
et nunc terga fuga nudant, nunc spicula uertunt
infensi, facta pariter nunc pace feruntur.
ut quondam Creta fertur Labyrinthus in alta
parietibus textum caecis iter ancipitemque
mille uiis habuisse dolum, qua signa sequendi
frangeret indeprensus et inremeabilis error;
haud alio Teucrum nati uestigia cursu
impediunt texuntque fugas et proelia ludo,
delphinum similes qui per maria umida nando
Carpathium Libycumque secant.
hunc morem cursus atque haec certamina primus
Ascanius, Longam muris cum cingeret Albam,
rettulit et priscos docuit celebrare Latinos,
quo puer ipse modo, secum quo Troia pubes;
Albani docuere suos; hinc maxima porro
accepit Roma et patrium seruauit honorem;
Troiaque nunc pueri, Troianum dicitur agmen.
hac celebrata tenus sancto certamina patri.
Os meninos avançam e, lado a lado, sob os olhares dos pais,
resplandecem sobre os cavalos arreados. Toda a juventude da
Trinácria e de Troia freme de admiração ante sua marcha.
Todos trazem a cabeleira segundo o costume, cingida com uma
coroa talhada; carregam duas lanças de espinheiro com ponta de
ferro, e alguns uma aljava leve a tiracolo; um colar flexível de
ouro retorcido desce-lhes do pescoço até o alto do peito.
São três turmas de cavaleiros, comandadas por um trio de
chefes; de duas vezes seis meninos seguem a cada um, que
brilham em dupla fileira, com número igual de escudeiros.
Uma formação orgulhosa de jovens marcha conduzida pelo
pequeno Príamo, que retoma o nome do avô, progenitura ilustre
tua, Polites, que viria a engrandecer os ítalos; ele monta um
cavalo trácio bicolor, de manchas brancas, que ostenta altivo a
ponta branca das patas e uma fronte branca.
Outro é Átis, donde os Ácios latinos tiram sua origem,
o pequeno Átis, menino querido do menino Iulo.
Último e superior a todos em beleza, o formoso Iulo
é transportado pelo cavalo sidônio que a deslumbrante Dido
lhe tinha dado como lembrança e prova de amor.
Os demais jovens cavaleiros montam cavalos trinácrios do
velho Acestes.
Os dardânidas acolhem com aplausos os meninos intimidados
e os contemplam com prazer, reconhecendo neles os traços dos
antepassados. Depois de alegrar toda a assembleia e buscar os
olhares dos seus sobre os cavalos, ficam de prontidão, e de longe
Epítides deu o sinal com um grito e tocou o apito.
Eles se espalharam por igual e dividiram os três esquadrões
em tropas distintas; a nova ordem, deram meia volta e
empunharam as lanças na direção dos outros.
Então empreendem outros avanços e outros recuos,
enfrentando-se a distância, e envolvem com círculos os círculos
recíprocos e promovem com as armas uma simulação de
combate: ora fogem descobrindo a retaguarda; ora, hostis,
apontam os dardos; ora marcham lado a lado, feita a paz.
Assim como outrora na alta Creta – é o que se conta –
o Labirinto tinha uma rota por paredes cegas entrelaçada e
a armadilha ambígua dos seus mil caminhos, onde enganava
um errar irreversível e impossível de seguir pegadas,
não de outro modo os filhos dos teucros misturam na corrida
seus vestígios e no jogo entrecruzam as fugas e os combates,
semelhantes aos golfinhos que fendem nadando
os úmidos mares dos Cárpatos e da Líbia.
O costume dessa corrida e desses combates foi Ascânio
quem primeiro retomou quando rodeava Alba Longa com
muralhas, e ensinou os antigos latinos a celebrar, como ele
mesmo fazia quando era criança com a juventude troiana.
Os albanos ensinaram seus descendentes, e daí em diante
a grande Roma os recebeu e preservou a tradição ancestral,
que agora se chama Troia, e os meninos o “esquadrão troiano”.
Assim celebraram-se os jogos em honra de um pai sagrado.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
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(1g) Os funerais de Miseno (Eneida 6. 212–35): descrição de modo
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Nec minus interea Misenum in litore Teucri
flebant et cineri ingrato suprema ferebant.
principio pinguem taedis et robore secto
ingentem struxere pyram, cui frondibus atris
intexunt latera et feralis ante cupressos
constituunt, decorantque super fulgentibus armis.
pars calidos latices et aëna undantia flammis
expediunt, corpusque lauant frigentis et unguunt.
fit gemitus. tum membra toro defleta reponunt
purpureasque super uestis, uelamina nota,
coniciunt. pars ingenti subiere feretro,
triste ministerium, et subiectam more parentum
auersi tenuere facem. congesta cremantur
turea dona, dapes, fuso crateres oliuo.
postquam conlapsi cineres et flamma quieuit,
reliquias uino et bibulam lauere fauillam,
ossaque lecta cado texit Corynaeus aëno.
idem ter socios pura circumtulit unda
spargens rore leui et ramo felicis oliuae,
lustrauitque uiros dixitque nouissima uerba.
at pius Aeneas ingenti mole sepulcrum
imponit suaque arma uiro remumque tubamque
monte sub aërio, qui nunc Misenus ab illo
dicitur aeternumque tenet per saecula nomen.
E nesse meio tempo os teucros não param de chorar na praia a
morte de Miseno e rendem as supremas honras às suas cinzas
insensíveis. Começam erguendo uma enorme pira cheia de pinho e
carvalho cortado, revestem os lados de folhagem escura, fincando
na frente ciprestes fúnebres e decorando a parte de cima com armas
brilhantes.
Uns agilizam a água quente e [potes] de bronze agitados pelas
chamas, e lavam e perfumam o corpo do [homem] gelado. Há um
gemido. Então choram sobre o cadáver e o repousam no leito e
lançam por cima suas vestes de púrpura, traje familiar.
Outros levantaram o enorme esquife – triste encargo – e,
seguindo o costume dos antepassados, desviando os olhos, mantém
a tocha sob a fogueira. Tudo se queima: as oferendas de incenso, a
carne das vítimas, as crateras de óleo derramado.
Depois que as cinzas caíram e a chama se extinguiu, lavaram
com vinho os restos e as brasas bebedoras, e Corineu guarda os
ossos recolhidos numa urna de bronze.
Ele também circundou os companheiros com água sagrada,
aspergindo de leve com um ramo de fecunda oliveira, e purificou
os guerreiros e pronunciou as derradeiras palavras.
Daí o piedoso Eneias ergue um túmulo ao guerreiro com uma
enorme pilha de pedra e deposita as armas e o remo e a tuba dele,
aos pés de um alto monte que, por causa dele, agora se chama
Miseno e guarda por séculos esse nome eterno.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(1h) Cartago, cidade em construção (Eneida 1. 418–29): descrição de ação
Corripuere uiam interea, qua semita monstrat,
iamque ascendebant collem, qui plurimus urbi
420 imminet aduersasque aspectat desuper arces.
miratur molem Aeneas, magalia quondam,
miratur portas strepitumque et strata uiarum.
instant ardentes Tyrii: pars ducere muros
molirique arcem et manibus subuoluere saxa,
425 pars optare locum tecto et concludere sulco;
iura magistratusque legunt sanctumque senatum.
hic portus alii effodiunt; hic alta theatris
fundamenta locant alii, immanisque columnas
rupibus excidunt, scaenis decora apta futuris.
E eles, tomando a trilha que se abria, subiam já o outeiro
dominante que espreita [de cima e observa] os baluartes e as
muralhas.
Eneias vê as portas da cidade, os edifícios (antes só casebres) e
vê a agitação nas ruas prontas.
Aplicam-se ardorosamente os tírios: uns, a erguer fortalezas,
rolam pedras; outros, a escolher onde as casas fiquem, assinalam
com sulcos o terreno; tratam dos magistrados e das leis, e definem
um senado venerável.
Ali escavam portos; mais além lançam as amplas bases de um
teatro e altas colunas cortam da pedreira, de encenações futuras
nobre ornato.
– Tradução: Márcio Thamos.
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CARACTERIZAÇÃO.
De allocutione. Allocutio [gr. ἠθοποιία] est imitatio
sermonis ad mores et suppositas personas adcommodata,
ut quibus uerbis uti potuisset Andromache Hectore
mortuo. conformatio uero, quam Graeci προσωποποιίαν
nominant, est quando rei alicui contra naturam datur
persona loquendi, ut Cicero patriae et rei publicae in
inuectiuis dat uerba. est praeterea simulacri factio, quam
Graeci εἰδωλοποιίαν dicunt, quando mortuis uerba dantur.
fiunt autem allocutiones et finitarum et infinitarum
personarum, <infinitarum>, ut quibus uerbis uti potuisset
ad suos aliquis profecturus a patria, finitarum uero, ut
quibus uerbis uti potuisset Achilles ad Deidamiam
profecturus ad bellum Troianum.
allocutionum uero quaedam sunt simplices, quando
supponitur aliquis ipse per se loquens, quaedam duplices,
quando ad alios loquitur. […] ubique autem seruanda est
proprietas personarum et temporum. alia sunt enim uerba
iuuenis, alia senis, alia gaudentis, alia dolentis.
sunt autem quaedam allocutiones morales, quaedam
passionales, quaedam mixtae. passionales sunt, in quibus
passio, id est commiseratio, perpetua inducitur, ut quibus
uerbis uti potuisset Andromache mortuo Hectore; morales
uero, in quibus obtinent mores, ut quibus uerbis uti
potuisset rusticus, cum primum aspexerit nauem; mixtae,
quae utrumque habent, ut quibus uerbis uti potuisset
Achilles interfecto Patroclo (habet enim et passionem
funeris amici et morem de bello cogitantis).
Sobre a alocução. Alocução [em grego, etopeia] é a imitação da
fala de um dado personagem apropriada ao seu caráter, por
exemplo: que palavras Andrômaca poderia ter dito diante da
morte de Heitor? Conformação, que os gregos chamam de
prosopopeia, é quando se dá a uma coisa abstrata o papel da fala,
contra a natureza, como faz Cícero nas Catilinárias, ao dar a
palavra à pátria e à república. Há ainda a simulacrificção, que os
gregos chamam de idolopeia, quando se dá a palavra aos mortos.
Pode-se ter alocução de personagens definidos e indefinidos.
Exemplo de indefinido: que palavras poderia ter dito aos seus
familiares alguém que estivesse de partida da pátria? Exemplo de
definida: que palavras Aquiles poderia ter dito a Deidamia antes
de partir [para a guerra de Troia?
As alocuções podem ser simples, quando se propõe alguém
falando consigo mesmo, ou dúplices, quando alguém fala para
outros. […] Em todas é preciso observar a propriedade das
pessoas e dos tempos. Com efeito, são diferentes as palavras do
jovem e do velho, de quem está alegre e de quem está sofrendo.
Por outro lado, as alocuções podem ser morais, passionais ou
mistas. Nas passionais, o sofrimento, quer dizer, a compaixão, é
totalmente predominante, por exemplo: que palavras Andrômaca
poderia ter dito diante da morte de Heitor. Nas morais,
predomina o caráter, por exemplo: que palavras um camponês
poderia ter dito ao ver um navio pela primeira vez. As mistas têm
os dois, por exemplo: que palavras Aquiles poderia ter dito diante
da morte de Pátroclo (pois tem tanto o sofrimento pela morte do
amigo e o caráter de quem reflete a respeito da guerra).
– PRISCIANO, Praeexercitamina, 45.7–46.10, ed. Passalacqua, 1987.
Cum autem quid sit quaeritur, notio explicanda est et
proprietas et divisio et partitio. Haec enim sunt definitioni
attributa; additur etiam descriptio, quam χαρακτῆρα
Graeci vocant.
Notio sic quaeritur: sitne id aequum quod ei qui plus
potest utile est. Proprietas sic: in hominemne solum cadat
an etiam in beluas aegritudo. Divisio et eodem pacto
partitio sic: triane genera bonorum sint. Descriptio,
qualis sit avarus, qualis assentator ceteraque eiusdem
generis, in quibus et natura et vita describitur.
Quando se procura o que algo é, deve-se explicitar o conceito,
bem como a propriedade, a distinção e a análise. Todas elas se
relacionam com a definição. Soma-se ainda a descrição, que os
gregos chamam de caráter.
O conceito se busca assim: se é justo algo que seja vantajoso para
quem tem mais poder. A propriedade assim: se é só o homem que
sofre de tristeza ou também os animais. A distinção e a análise
pelo mesmo método: se são três os tipos de bens. A descrição:
que tipo de pessoa é um avarento ou um puxa-saco ou outros
casos semelhantes, em que se descrevem a natureza e a vida.
– CÍCERO, Tópicas 83
Χαρακτηρισµός ἐστιν ὑποτύπωσις ἰδιώµατος ψυχῆς, οἷον
εὖ δὲ σὺ οἶσθα, γεραιὲ διοτρεφές, οἷον ἐκεῖνος
δεινὸς ἀνήρ· τάχα κεν καὶ ἀναίτιον αἰτιόῳτο.
– POLÍBIO (RETOR), De figuris, 108.32–109.3, ed. Spengel, 1856.
Novimus autem tres characteres hos esse dicendi: unum,
in quo tantum poeta loquitur, ut est in tribus libris
georgicorum; alium dramaticum, in quo nusquam poeta
loquitur, ut est in comoediis et tragoediis; tertium,
mixtum, ut est in Aeneide: nam et poeta illic et introductae
personae loquuntur.
Caracterismo é a descrição de uma característica psicológica, ex.
“Tu bem sabes, ó ancião criado por Zeus, quão terrível
é aquele homem! Depressa culparia quem não tem culpa.”
(Ilíada 9. 653-4: Pátroclo falando a Nestor a respeito de Aquiles)
Sabemos que existem esses três estilos de expressão: um, em que
somente o poeta fala, como ocorre nos três livros das Geórgicas;
outro, dramático, em que o poeta nunca fala, como ocorre nas
comédias e nas tragédias; e um terceiro, misto, como ocorre na
Eneida, em que tanto o poeta quanto as personagens por ele
introduzidas falam.
– SÉRVIO, Comentário às Bucólicas de Virgílio, 3.1
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Do modelo de Sérvio podem-se deduzir três tipos de caracterização de personagens:
(i) a partir de seus pensamentos ou discursos (modo direto);
(ii) pela informação que o narrador fornece sobre seus atributos, pensamentos ou discursos (modo indireto);
(iii) por uma combinação de suas próprias palavras com a informação fornecida pelo narrador.
Sem dúvida esta é a forma mais evidente de caracterização na poesia narrativa de Virgílio. Além disso, é bom lembrar que
muitas vezes os personagens também podem retratar uns aos outros em suas falas.
Em um nível mais básico, Virgílio pode constituir ou desenvolver a caracterização de uma personagem
simplesmente introduzindo-a e mencionando seus atributos, estabelecendo diretamente como ela é (2a–2c); muitas vezes os
epítetos podem cumprir essa função (e.g. pius Eneias, infelix Dido). Ou então ele pode fornecer uma informação contextual
sobre a personagem (e.g. a biografia resumida de Latino na Eneida 7.45–106, o testemunho de Evandro sobre Mezêncio em
8.483–8 (2d), a informação sobre Dido dada a Eneias por Vênus em 1.340–68). Ou pode constituir sua caracterização
simplesmente relatando a fala da personagem, de modo que ela revele por si própria seu caráter (2e).
Por outro lado, Virgílio tem outras técnicas de caracterização mais particulares e mais interessantes, porque são
mais psicológicas. O poeta pode, por exemplo, descrever o estado de espírito e as emoções de uma personagem apontando
uma característica que não é evidente ou mesmo que não condiz com suas ações ou comportamentos (e.g. Eneida 1.208–9)
(2f). Uma imagética elaborada também pode ser usada para descrever processos mentais (e.g. Eneida 4.1–5, em que o
estado psicológico de Dido é descrito em termos quase fisiológicos) (2g). Virgílio também obtém uma caracterização
psicológica quando constrói uma perspectiva que não corresponde ao ponto de vista do narrador, e sim ao ponto de vista de
um agente da história, forma bastante sutil de sugerir as atitudes ou opiniões de um indivíduo ou grupo em particular; esse
procedimento é conhecido por focalização (e.g. Eneida 4.279–82) (2h). Semelhante a este é a caracterização psicológica
pelo recurso ao discurso indireto livre, em que se apresentam pensamentos particulares sem que o personagem caracterizado
tome a fala no lugar do narrador-poeta (e.g. Eneida 4.283–4) (2i).
– Andrew LAIRD (1997)
(2a) Caronte, o barqueiro do mundo subterrâneo (Eneida 6. 298–304): descrição de pessoa
portitor has horrendus aquas et flumina seruat
terribili squalore Charon, cui plurima mento
300 canities inculta iacet, stant lumina flamma,
sordidus ex umeris nodo dependet amictus.
ipse ratem conto subigit uelisque ministrat
et ferruginea subuectat corpora cumba,
iam senior, sed cruda deo uiridisque senectus.
Um barqueiro horroroso, de aspecto sujo, guarda estas águas e
rios: Caronte. Uma barba branca cheia e descuidada pende de seu
queixo, seus olhos perplexos são de fogo, uma veste suja se prende
aos seus ombros por um nó.
Ele conduz o barco com uma vara e dirige por meio de velas e
no convés enferrujado transporta os corpos, já bem velho, mas a
velhice robusta e vigorosa, própria a um deus.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(2b) Eneias aparece diante de Dido (Eneida 1.586–93): descrição de pessoa
uix ea fatus erat cum circumfusa repente
scindit se nubes et in aethera purgat apertum.
restitit Aeneas claraque in luce refulsit
os umerosque deo similis; namque ipsa decoram
590 caesariem nato genetrix lumenque iuuentae
purpureum et laetos oculis adflarat honores:
quale manus addunt ebori decus, aut ubi flauo
argentum Pariusue lapis circumdatur auro.
E mal falara, a nuvem que os cobria de súbito dissipa-se no ar.
Eneias aparece feito um deus [na aparência e no porte], o busto
resplandente em luz purpúrea (pois a deusa, num sopro, dera ao
filho o ornato de magníficos cabelos, um ar de rutilante juventude e
nobre gentileza no semblante – qual mãos que do marfim o encanto
acrescem, ou como ouro amarelo que se engasta quer na pedra de
Paros quer na prata).
– Tradução: Márcio Thamos.
(2c) Dido e sua comitiva para a caçada (Eneida 4.129–42): descrição mista (modo e pessoa)
Oceanum interea surgens Aurora reliquit.
it portis iubare exorto delecta iuuentus,
retia rara, plagae, lato uenabula ferro,
Massylique ruunt equites et odora canum uis.
reginam thalamo cunctantem ad limina primi
Poenorum exspectant, ostroque insignis et auro
135 stat sonipes ac frena ferox spumantia mandit.
tandem progreditur magna stipante caterua
Sidoniam picto chlamydem circumdata limbo;
cui pharetra ex auro, crines nodantur in aurum,
aurea purpuream subnectit fibula uestem.
130
Nesse meio tempo, a Aurora a surgir deixa o Oceano. Com o
raiar do sol, passa pelos portões a graciosa juventude, finas redes,
armadilhas, lanças de ferro largo, e se precipitam os cavaleiros
massílios e a força farejadora dos cães.
No limiar do palácio os chefes púnicos esperam a rainha, que
se demora no quarto; seu cavalo enfeitado com púrpura e ouro já
está de prontidão e mastiga, bravio, os freios espumantes.
Enfim ela aparece, cercada por uma grande comitiva, envolta
numa clâmide fenícia de bordas pintadas. Seu carcás é de ouro,
seus cabelos são amarrados com ouro, uma fivela de ouro prende
seu vestido púrpura.
8
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nec non et Phrygii comites et laetus Iulus
incedunt. ipse ante alios pulcherrimus omnis
infert se socium Aeneas atque agmina iungit.
qualis ubi hibernam Lyciam Xanthique fluenta
deserit ac Delum maternam inuisit Apollo
145 instauratque choros, mixtique altaria circum
Cretesque Dryopesque fremunt pictique Agathyrsi;
ipse iugis Cynthi graditur mollique fluentem
fronde premit crinem fingens atque implicat auro,
tela sonant umeris: haud illo segnior ibat
150 Aeneas, tantum egregio decus enitet ore.
140
E não deixam de marchar também os companheiros frígios e o
alegre Iulo. Mais belo que todos os outros, ele, Eneias, avança
como aliado e junta os grupos.
Tal qual Apolo, quando abandona a hibernal Lícia e as bordas
do Xanto e se dirige para a materna Delos, e lá renova os coros e,
misturados em torno dos altares, se comprimem cretenses, dríopes
e agatirsos pintados – Apolo avança sobre os cimos do Cinto e,
compondo o cabelo flutuante, o prende com branda folha e o
entrelaça com ouro, as setas retinem no seu ombro –, não menos
ágil caminhava Eneias, tamanha beleza lhe esplende no majestoso
semblante.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(2d) Evandro antecipa para Eneias o caráter de Mezêncio (Eneida 8. 483–8)
haud procul hinc saxo incolitur fundata uetusto
urbis Agyllinae sedes, ubi Lydia quondam
480 gens, bello praeclara, iugis insedit Etruscis.
hanc multos florentem annos rex deinde superbo
imperio et saeuis tenuit Mezentius armis.
quid memorem infandas caedes, quid facta tyranni
effera? di capiti ipsius generique reseruent!
485 mortua quin etiam iungebat corpora uiuis
componens manibusque manus atque oribus ora,
tormenti genus, et sanie taboque fluentis
complexu in misero longa sic morte necabat.
— Não longe daqui, construída sobre um antigo rochedo,
se ergue a cidadela de Agila, onde outrora o povo lídio, ilustre na
guerra, se fixou nas colinas etruscas. Por muitos anos floresceu, até
que o rei Mezêncio a subjugou com sua arrogância e suas armas
cruéis. Mas por que lembrar das matanças inomináveis e dos atos
selvagens desse tirano? Que os deuses reservem [algum castigo]
sobre a cabeça dele e de sua família! Chegou ao cúmulo de unir
cadáveres a corpos vivos, alinhando mãos com mãos e bocas com
bocas – forma de tortura! – e assim os matava com morte lenta,
num abraço infame, banhados em sangue e podridão.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(2e) Diante da partida de Eneias, Dido cobra explicações (Eneida 4. 296–330)
300
305
315
320
325
330
At regina dolos (quis fallere possit amantem?)
praesensit, motusque excepit prima futuros
omnia tuta timens. eadem impia Fama furenti
detulit armari classem cursumque parari.
saeuit inops animi totamque incensa per urbem
bacchatur, qualis commotis excita sacris
Thyias, ubi audito stimulant trieterica Baccho
orgia nocturnusque uocat clamore Cithaeron.
tandem his Aenean compellat uocibus ultro:
“dissimulare etiam sperasti, perfide, tantum
posse nefas tacitusque mea decedere terra?
nec te noster amor nec te data dextera quondam
nec moritura tenet crudeli funere Dido? […]
mene fugis? per ego has lacrimas dextramque tuam te
(quando aliud mihi iam miserae nihil ipsa reliqui),
per conubia nostra, per inceptos hymenaeos,
si bene quid de te merui, fuit aut tibi quicquam
dulce meum, miserere domus labentis et istam,
oro, si quis adhuc precibus locus, exue mentem.
te propter Libycae gentes Nomadumque tyranni
odere, infensi Tyrii; te propter eundem
exstinctus pudor et, qua sola sidera adibam,
fama prior. cui me moribundam deseris hospes
(hoc solum nomen quoniam de coniuge restat)?
quid moror? an mea Pygmalion dum moenia frater
destruat aut captam ducat Gaetulus Iarbas?
saltem si qua mihi de te suscepta fuisset
ante fugam suboles, si quis mihi paruulus aula
luderet Aeneas, qui te tamen ore referret,
non equidem omnino capta ac deserta uiderer.”
Mas a rainha pressentiu o dolo – quem pode enganar quem
ama? – e compreendeu logo a que levariam aqueles movimentos,
temendo por tudo o que era seguro. A mesma Fama ímpia contou
àquela louca de amor que a frota se armava e preparava a partida.
Ela fica furiosa, perde a cabeça, e corre pela cidade inflamada
como bacante, como a tíade excitada pelos transportes sagrados,
quando as cerimônias trienais estimulam dizendo “Baco!” e o
noturno monte Citéron chama aos gritos.
Por fim, ela se permite interpelar Eneias com estas palavras:
— Esperavas poder dissimular tamanho crime e sair de
minha terra em silêncio, seu traidor! Nem nosso amor, nem esta
mão direita que te foi dada, nem Dido, prestes a morrer por morte
violenta, pode te impedir? […]
Foges de mim, é isso? Por estas lágrimas e por tua mão direita
(já que não foi outra coisa que eu deixei para mim mesma,
coitada de mim), pela nossa união, pelo casamento começado,
se eu bem mereci algo de ti, ou se alguma coisa minha foi doce
para ti, se ainda há espaço para pedidos, eu te peço: tem
compaixão por uma casa que desaba e põe de lado esse plano.
Por tua causa os povos da Líbia e os tiranos númidas estão com
ódio, e os tírios com raiva; por tua causa se extinguiu o pudor e a
fama que eu tinha, pela qual sozinha eu me elevava às estrelas.
A quem me abandona pra morrer, ó meu hóspede?
(Esse é o único nome que resta do que foi um marido.)
Por que estou esperando? Até que meu irmão Pigmalião destrua
minhas muralhas ou o getulo Jarbas me leve derrotada?
Se ao menos tivesse havido um fruto teu que eu carregasse,
antes de tua fuga, se comigo brincasse no paço um pequenino
Eneias, que te lembrasse nas feições, eu não pareceria totalmente
derrotada e abandonada.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
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(2f) Discrepância entre emoção e discurso (Eneida 1. 198–209)
“O socii (neque enim ignari sumus ante malorum),
o passi grauiora, dabit deus his quoque finem.
200 uos et Scyllaeam rabiem penitusque sonantis
accestis scopulos, uos et Cyclopia saxa
experti: reuocate animos maestumque timorem
mittite; forsan et haec olim meminisse iuuabit.
per uarios casus, per tot discrimina rerum
205 tendimus in Latium, sedes ubi fata quietas
ostendunt; illic fas regna resurgere Troiae.
durate, et uosmet rebus seruate secundis.”
Talia uoce refert curisque ingentibus aeger
spem uultu simulat, premit altum corde dolorem.
— Companheiros, lembremo-nos de outrora! Piores
males tendes já sofrido, um deus também a estes dará fim.
Vós afrontastes a raivosa Cila e os escolhos que rugem
largo e fundo; já vistes as cavernas dos Ciclopes.
Invocai vossos ânimos de volta, afastai vossas tristes aflições.
Talvez um dia seja prazeroso rememorarmos estes infortúnios.
Em meio a tantos riscos e percalços, seguimos o destino
e ao Lácio vamos, onde afáveis moradas nos esperam,
pois lá é justo Troia ressurgir. Perseverai: guardai-vos
à bonança!”
Assim dizendo, aflito e preocupado, a esperança simula no
semblante, no coração reprime a dor profunda.
– Tradução: Márcio Thamos.
(2g) Dido perturbada pela paixão (Eneida 4. 1–12)
5
10
At regina graui iamdudum saucia cura
uulnus alit uenis et caeco carpitur igni.
multa uiri uirtus animo multusque recursat
gentis honos; haerent infixi pectore uultus
uerbaque nec placidam membris dat cura quietem.
postera Phoebea lustrabat lampade terras
umentemque Aurora polo dimouerat umbram,
cum sic unanimam adloquitur male sana sororem:
“Anna soror, quae me suspensam insomnia terrent!
quis nouus hic nostris successit sedibus hospes,
quem sese ore ferens, quam forti pectore et armis!
credo equidem, nec uana fides, genus esse deorum.
Mas a rainha, que já sofria de uma grave inquietação,
alimenta a ferida em suas veias e é consumida por um fogo cego.
Não lhe sai da cabeça a grande virtude do guerreiro e a grande
reputação de seu povo; permanecem fixados em seu peito o rosto e
a fala, e a inquietação não permite aos membros um sono tranquilo.
A Aurora seguinte iluminava as terras com a luz de Febo e já
tinha afastado do céu a sombra úmida, quando ela, transtornada,
assim se dirige à sua irmã e confidente:
— Ana, minha irmã, que insônia me assusta e me aflige!
Quem é esse novo hóspede que surgiu em nosso palácio?
Como se porta bem! Que peito forte ele tem, e que armas!
Chego a crer, e não é uma crença vã, que ele é da raça dos deuses.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(2h) Um exemplo de focalização (Eneida 4. 279–82)
280
At uero Aeneas aspectu obmutuit amens,
arrectaeque horrore comae et uox faucibus haesit.
ardet abire fuga dulcisque relinquere terras,
attonitus tanto monitu imperioque deorum.
Atordoado por essa visão, Eneias emudeceu. Seus cabelos se
arrepiaram de medo e sua voz travou na garganta.
Está ávido por abrir fuga e deixar para trás aquelas terras doces,
impactado por tamanha advertência e determinação dos deuses.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
(2i) Discurso indireto livre (Eneida 4. 283–6)
heu quid agat? quo nunc reginam ambire furentem
audeat adfatu? quae prima exordia sumat?
285 atque animum nunc huc celerem nunc diuidit illuc
in partisque rapit uarias perque omnia uersat.
Ah! E agora? O que fazer? Com que discurso ousar se
aproximar da rainha enlouquecida? Com que palavras começar?
E dispersa sua mente rápida, agora por aqui, agora por ali, leva-a
para vários caminhos e examina todas [as possibilidades].
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
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ÊCFRASE.
Para a antiga crítica literária, o termo êcfrase (“descrição”) possui um amplo espectro de referência, englobando
tanto a força visual quanto o impacto emocional da arte verbal (e não só na poesia, mas também na historiografia e na
oratória). A épica heroica, em particular, era considerada uma forma narrativa que se orienta para produção de efeitos
visuais e para a recriação das reações manifestas pelas testemunhas oculares dos acontecimentos, normalmente impactantes
e caracterizados pelo grandioso e o violento.
Para a crítica moderna, o termo êcfrase é usado especificamente para se referir à descrição literária de uma obra de
arte, ou melhor, à recriação verbal de uma obra de arte visual. Nesse caso, a representação verbal testa seus próprios limites
através desse confronto entre a descrição literária e as representações proporcionadas por outras mídias. Em outras palavras,
a mensagem será avaliada não só em relação à percepção direta da realidade (a imaginação visual) mas também em relação
ao modelo das artes visuais.
O interesse nessas passagens não se deve a nenhum valor documental: não há razão para pensar que Virgílio está
descrevendo objetos reais, e nenhum leitor romano teria imaginado a possibilidade de vê-los com os próprios olhos. Ao
contrário, o leitor pode visitar esses monumentos apenas com a ajuda da voz do poeta.
Na êcfrase, a ação narrativa fica congelada, tendo implicações na dinâmica da narrativa e do enredo. Na êcfrase, a
arte é o centro das atenções, bem mais do que a ação e o personagem, sugerindo uma autoconsciência artística da parte de
Virgílio. Por último, a êcfrase serve muito bem como palco de uma espécie competição entre as diverentes maneiras de
representar e imaginar o mundo real.
– Alessandro BARCHIESI (1997)
(3a) O templo de Juno em Cartago (Eneida 1. 441–97): retrato do passado
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Lucus in urbe fuit media, laetissimus umbrae,
quo primum iactati undis et turbine Poeni
effodere loco signum, quod regia Iuno
monstrarat, caput acris equi; sic nam fore bello
egregiam et facilem uictu per saecula gentem.
hic templum Iunoni ingens Sidonia Dido
condebat, donis opulentum et numine diuae,
aerea cui gradibus surgebant limina nexaeque
aere trabes, foribus cardo stridebat aënis.
hoc primum in luco noua res oblata timorem
leniit, hic primum Aeneas sperare salutem
ausus et adflictis melius confidere rebus.
namque sub ingenti lustrat dum singula templo
reginam opperiens, dum quae fortuna sit urbi
artificumque manus inter se operumque laborem
miratur, uidet Iliacas ex ordine pugnas
bellaque iam fama totum uulgata per orbem,
Atridas Priamumque et saeuum ambobus Achillem.
constitit et lacrimans “quis iam locus” inquit “Achate,
quae regio in terris nostri non plena laboris?
en Priamus. sunt hic etiam sua praemia laudi,
sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt.
solue metus; feret haec aliquam tibi fama salutem.”
sic ait atque animum pictura pascit inani
multa gemens, largoque umectat flumine uultum.
namque uidebat uti bellantes Pergama circum
hac fugerent Grai, premeret Troiana iuuentus;
hac Phryges, instaret curru cristatus Achilles.
nec procul hinc Rhesi niueis tentoria uelis
agnoscit lacrimans, primo quae prodita somno
Tydides multa uastabat caede cruentus,
ardentisque auertit equos in castra prius quam
pabula gustassent Troiae Xanthumque bibissent.
No meio da cidade havia um bosque de sombras
abundantes e aprazíveis. Da tormenta e das ondas acossados, ali
desenterraram logo os púnicos o sinal que lhes dera Juno régia:
a fogosa cabeça de um cavalo, indicando à nação, por muitos
séculos, prosperidade e distinção guerreira.
No local, a sidônia Dido erguia a Juno um grande templo,
muito rico em oferendas ao poder da deusa. Na entrada, era de
bronze a escadaria, de bronze era a fileira de colunas, ragia a
dobradiça em brônzeas portas.
Deu-se uma novidade nesse bosque capaz de enfim o medo
aliviar; aí, pela primeira vez, Eneias ousou ter esperança na
ventura e nas vicissitudes confiar.
Aguardando a presença da rainha, os detalhes do grande
templo observa; avalia a riqueza da cidade apreciando as obras
dos artistas.
Das batalhas troianas vê a série – a guerra já famosa em
todo o mundo! – os Atridas e Príamo e Aquiles, este cruel com
uns, cruel com o outro.
Em pranto, assim parou dizendo:
— Acates, que recanto da terra, que país já não conhece
nossos sofrimentos? Eis Príamo: a virtude aqui se louva,
aqui também se chora a dor humana. Esquece o medo:
irá salvar-te a fama!
Falando e lamentando-se demais, na vã pintura o ânimo
sustenta e banha o rosto em grosso rio de lágrimas, pois em
Pérgamo via os combatentes: aqui os gregos fogem dos
troianos, ali os frígios, perseguidos, correm – Aquiles, de
penacho, vem no carro.
Perto dali, aos prantos reconhece de Reso o acampamento,
as brancas tendas traídas pelo sono e pela noite, que o cruento
Tidides devastava com grande mortandade e assim levava para
os seus campos os corcéis fogosos, que dos pastos de Troia não
provassem e das águas do Xanto não bebessem.
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parte alia fugiens amissis Troilus armis,
infelix puer atque impar congressus Achilli,
fertur equis curruque haeret resupinus inani,
lora tenens tamen; huic ceruixque comaeque trahuntur
per terram, et uersa puluis inscribitur hasta.
interea ad templum non aequae Palladis ibant
crinibus Iliades passis peplumque ferebant
suppliciter, tristes et tunsae pectora palmis;
diua solo fixos oculos auersa tenebat.
ter circum Iliacos raptauerat Hectora muros
exanimumque auro corpus uendebat Achilles.
tum uero ingentem gemitum dat pectore ab imo,
ut spolia, ut currus, utque ipsum corpus amici
tendentemque manus Priamum conspexit inermis.
se quoque principibus permixtum agnouit Achiuis,
Eoasque acies et nigri Memnonis arma.
ducit Amazonidum lunatis agmina peltis
Penthesilea furens mediisque in milibus ardet,
aurea subnectens exsertae cingula mammae
bellatrix, audetque uiris concurrere uirgo.
Haec dum Dardanio Aeneae miranda uidentur,
dum stupet obtutuque haeret defixus in uno,
regina ad templum, forma pulcherrima Dido,
incessit magna iuuenum stipante caterua.
Em outra parte, Troilo vai fugindo, moço infeliz, que as
armas já perdera e que não era páreo para Aquiles: pelos
cavalos deixa-se levar, preso ao carro vazio, pendendo o corpo,
segura ainda as rédeas e prossegue – cabelo e nuca arrastam-se
no chão, na terra a lança adversa risca pó.
E ao templo da implacável Palas iam, suplicantes e
tristes, as troianas, desgrenhadas, no peito as mãos batendo,
levando um rico manto à deusa avessa, que mantinha no chão
os olhos fixos.
Em torno das ilíacas muralhas, Aquiles arrastara Heitor três
vezes e o corpo a peso de ouro então vendia.
Nesse momento, ao ver o espólio e o carro, ao ver do amigo
o corpo já sem vida e Príamo estendendo as mãos sem forças,
um profundo gemido Eneias solta.
Também se vê embatendo aquivos chefes e as forças do
Oriente reconhece e o exército negro de Menão.
Pentesileia vai guiando, em fúria, as amazonas dos
broquéis de lua, e brilha entre milhares a guerreira que
ostenta um cinto de ouro e um seio nu: a combater varões
se atreve a virgem.
Enquanto fica absorto na pintura, maravilhado e estático o
dardânio, a belíssima Dido vem ao templo, e vêm em bando os
jovens com a rainha.
– Tradução: Márcio Thamos.
(3b) O escudo de Eneias (Eneida 8. 615–731): retrato do futuro
dixit, et amplexus nati Cytherea petiuit,
arma sub aduersa posuit radiantia quercu.
ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit,
miraturque interque manus et bracchia uersat
620 terribilem cristis galeam flammasque uomentem,
fatiferumque ensem, loricam ex aere rigentem,
sanguineam, ingentem, qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget;
tum leuis ocreas electro auroque recocto,
625 hastamque et clipei non enarrabile textum.
Disse Vênus e foi abraçar o filho [e] colocou as armas brilhantes
diante dele, aos pés de um carvalho.
Ele, alegre pelo presente da deusa e com tanta honra,
incapaz de se saciar, passa os olhos por cada uma
e fica admirado e examina entre as mãos e os braços
o elmo imponente nas cristas e que cospe chamas,
e a espada mortífera, a rígida couraça de bronze,
cor de sangue, enorme, qual a nuvem azul
quando é incendiada pelos raios do sol e resplandece ao longe,
em seguida as grevas leves feitas de uma liga de ouro e âmbar
e a lança e a indescritível composição do escudo.
illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens, illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella.
O [deus] que tem o poder do fogo, conhecendo as profecias e
sabedor dos tempos que viriam, tinha feito ali a história da Itália
e as vitórias dos romanos, toda a genealogia da futura descendência de Ascânio e as batalhas que se travaram, tudo ali, em ordem.
fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro
procubuisse lupam, geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos, illam tereti ceruice reflexa
mulcere alternos et corpora fingere lingua.
E tinha feito uma loba deitada com seus recém-nascidos na
verdejante gruta de Marte, dois meninos gêmeos agarrados a ela,
brincando em volta das tetas e a mãe os lambendo,
eles sem medo nenhum, ela com a cabeça levemente curvada
acariciando os dois e modelando seus corpos com a língua.
nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas
consessu caueae, magnis Circensibus actis,
addiderat, subitoque nouum consurgere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris.
post idem inter se posito certamine reges
640 armati Iouis ante aram paterasque tenentes
stabant et caesa iungebant foedera porca.
Não longe dali ele tinha posto Roma e as sabinas sendo raptadas
sem nenhuma civilidade, do meio da plateia, durante as grandes
competições no Circo, e de repente uma nova guerra a emergir
entre a casta de Rômulo e o velho Tácio e os austeros curenses.
Depois os mesmos reis, tendo parado de lutar entre si,
armados se postavam diante do alter de Júpiter, tigelas nas mãos,
e selavam sua aliança sacrificando uma porca.
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haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis, Albane, maneres!),
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
645 per siluam, et sparsi rorabant sanguine uepres.
Não longe daí, rápidas quadrigas tinham esquartejado Meto
em várias partes – mas você, albano, que mantivesse a palavra! –
e Tulo arrastava as vísceras daquele mentiroso pela floresta,
e os arbustos espalhados pingavam sangue.
nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat;
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant.
illum indignanti similem similemque minanti
650 aspiceres, pontem auderet quia uellere Cocles
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis.
Não faltou Porsena mandando aceitar o expulso Tarquínio
de volta e pressionando a cidade com um enorme cerco:
a casta de Eneias recorria à espada em nome da liberdade.
Dava para vê-lo com ar de indignação e ar ameaçador porque
Cocles ousava quebrar a ponte e Clélia nadava
o rio depois de ter se soltado das correntes…
in summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat,
Romuleoque recens horrebat regia culmo.
655 atque hic auratis uolitans argenteus anser
porticibus Gallos in limine adesse canebat;
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae.
aurea caesaries ollis atque aurea uestis,
660 uirgatis lucent sagulis, tum lactea colla
auro innectuntur, duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu, scutis protecti corpora longis.
Na parte de cima estava o guardião da cidadela tarpeia, Mânlio,
de pé diante do templo, defendendo a colina do Capitólio, e o
palácio recém-construído arrepiava a palha do teto de Rômulo.
E aqui um ganso prateado, voando sobre os pórticos dourados,
anunciava que os gauleses já estavam nas portas [da cidade];
os gauleses chegavam pelos matagais e iam ocupando a cidadela,
protegidos pelas trevas e pelo presente de uma noite escura.
Tinham cabeleiras douradas e também roupas douradas,
rebrilham com suas capas listradas, até seus pescoços cor de leite
estão cingidos por ouro, cada um deles agitando na mão duas
lanças alpinas, protegidos nos corpos pelos grandes escudos.
hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
665 extuderat, castae ducebant sacra per urbem
pilentis matres in mollibus. hinc procul addit
Tartareas etiam sedes, alta ostia Ditis,
et scelerum poenas, et te, Catilina, minaci
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem,
670 secretosque pios, his dantem iura Catonem.
Aqui cinzelara os sálios saltando, os lupercos nus,
os barretes de lã e os anciles caídos do céu;
as castas matronas, em carros de flexíveis molas,
conduziam pela cidade as imagens sagradas. Mais longe grava
também a região do Tártaro, a profunda porta de Dite
e os castigos dos criminosos, e tu, Catilina, suspenso
a um rochedo ameaçador, tremendo à vista das Fúrias;
separado dos maus, os piedosos, aos quais Catão dava leis.
haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea, sed fluctu spumabant caerula cano,
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant.
675 in medio classis aeratas, Actia bella,
cernere erat, totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus.
No centro do escudo estendia-se ao longe a imagem de um
mar encapelado, mas cujas vagas eram brancas de espuma;
ao redor, golfinhos de prata brilhante, em círculo, varriam
a líquida planície com suas caudas e fendiam os cachões.
No meio podiam-se ver armadas de brônzeo rostro,
a guerra de Ácio, e se via todo o Leucates ferver
em guerra acesa e a água refletir o ouro das armaduras.
hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque, penatibus et magnis dis,
680 stans celsa in puppi, geminas cui tempora flammas
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus.
parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduus agmen agens, cui, belli insigne superbum,
tempora nauali fulgent rostrata corona.
685 hinc ope barbarica uariisque Antonius armis,
uictor ab Aurorae populis et litore rubro,
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit, sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx.
De um lado Augusto César, conduzindo os Ítalos para o combate,
com os senadores, o povo, os Penates e os grandes deuses,
de pé sobre uma alta popa: suas têmporas alegres cintilam
dupla chama e a constelação paterna lhe fulge sobre a cabeça.
Do outro lado Agripa, secundado pelos ventos e pelos deuses,
conduzindo seus exércitos de porte marcial: suas têmporas
brilham sob os rostros da coroa naval, soberba insígnia de guerra.
Na frente, Antônio, com tropas estrangeiras e armas de todo tipo,
voltando vencedor dos povos da Aurora e do litoral Vermelho;
transporta com ele o Egito e os poderes do Oriente e a longínqua
Bactriana e é seguido – ó abominação! – por uma esposa egípcia.
una omnes ruere ac totum spumare reductis
conuulsum remis rostrisque tridentibus aequor.
alta petunt; pelago credas innare reuulsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos,
tanta mole uiri turritis puppibus instant.
stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
695 spargitur, arua noua Neptunia caede rubescunt.
Precipitam-se todos ao mesmo tempo e a planície líquida espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que a rasgam. Ganham
alto-mar; crer-se-ia que as Cíclades boiavam arrancadas, ou que
as montanhas se chocavam com outras montanhas, tamanha é a
massa de popas carregadas de torres que conduzem guerreiros.
A mão espalha a chama da estopa e arremessa dardos de ferro que
voa, os campos de Netuno se avermelham com a nova carnificina.
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regina in mediis patrio uocat agmina sistro,
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis.
omnigenumque deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
700 tela tenent. saeuit medio in certamine Mauors
caelatus ferro, tristesque ex aethere Dirae,
et scissa gaudens uadit Discordia palla,
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello.
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
705 desuper; omnis eo terrore Aegyptus et Indi,
omnis Arabs, omnes uertebant terga Sabaei.
No centro, a rainha anima os batalhões com o sistro pátrio
e não vê ainda duas serpentes que estão atrás dela.
Monstros de deuses de todo tipo e o ladrador Anúbis
lutam de armas na mão contra Netuno e Vênus,
contra Minerva. No meio da batalha se enfurece Marte,
gravado em ferro, e as Fúrias cruéis descem do céu,
e a Discórdia passeia alegre em seu manto rasgado,
seguida por Belona e seu chicote ensaguentado.
Vendo tudo de cima, Apolo Ácio retesava seu arco;
diante desse horror, o Egito todo e os indianos
e todo árabe e todos os sabeus voltavam as costas.
ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis.
illam inter caedes pallentem morte futura
710 fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri,
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos.
A própria rainha parecia dar velas aos ventos invocados
e deixar cada vez mais as cordas soltas.
No meio da carnificina, pálida pela morte iminente, o que tem o
poder do fogo a fizera sendo arrastada pelas ondas e pelo Iápige,
e do outro lado o Nilo, com seu vasto corpo, lamentando-se
e abrindo o manto e com toda roupa chamando os derrotados
para seu colo azul e seus esconderijos fluviais.
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at Caesar, triplici inuectus Romana triumpho
moenia, dis Italis uotum immortale sacrabat,
maxima ter centum totam delubra per urbem.
laetitia ludisque uiae plausuque fremebant;
omnibus in templis matrum chorus, omnibus arae;
ante aras terram caesi strauere iuuenci.
E César, levado por um triunfo triplo às muralhas
romanas, consagrava aos deuses da Itália um voto imortal:
trezentos santuários máximos por toda a cidade.
As ruas fremiam de alegria, jogos, aplausos;
em todos os templos havia um coro de matronas, havia altares;
diante dos altares, touros imolados cobriam a terra.
ipse sedens niueo candentis limine Phoebi
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus; incedunt uictae longo ordine gentes,
quam uariae linguis, habitu tam uestis et armis.
Sentado diante da branca porta do radiante Febo, ele
analisa as ofertas dos povos e as fixa nos magníficos
batentes; as nações vencidas avançam em longa fila,
tão variadas no jeito de falar como de se vestir e de se armar.
hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros,
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos
finxerat; Euphrates ibat iam mollior undis,
extremique hominum Morini, Rhenusque bicornis,
indomitique Dahae, et pontem indignatus Araxes.
Aqui o deus da forja tinha modelado o povo númida e os
africanos de roupas soltas, ali os lélegos e os cários e os gelonos
flecheiros; o Eufrates corria suas águas, já mais manso,
e os mórinos, último dos povos, e o Reno de duas barras,
e os citas indomáveis e o Araxes indignado com a ponte.
Talia per clipeum Volcani, dona parentis,
miratur rerumque ignarus imagine gaudet
attollens umero famamque et fata nepotum.
São essas coisas que ele admira no escudo de Vulcano, presente
da mãe, e, não conhecendo as histórias, se deleita com a imagem,
levando ao ombro a fama e o destino de seus descendentes.
– Tradução: Tassilo Spalding, modificada.
Referências e obras de apoio
BARCHIESI, Alessandro (1997) “Virgilian narrative: ecphrasis”, in The Cambridge companion to Virgil, ed. Charles Martindale, 271–281.
Cambridge University Press.
CARDOSO, Zélia de A. (1997) “Virgílio e os jogos fúnebres troiano-romanos”. Clássica 9/10: 107–118.
DUFALLO, Basil (2013) “Heroic objects: ecphrasis in the Aeneid and Metamorphoses”, in The captor’s image: Greek culture in Roman
ecphrasis, 137–160. Oxford University Press.
ELSNER, Jas (2002) “Introduction: the genres of ekphrasis”. Ramus 31 (supl.1/2): 1–18.
GILDENHARD, Ingo (2012) Virgil, Aeneid, 4.1-299: Latin Text, Study Questions, Commentary and Interpretative Essays. Open Book
Publishers. Endereço eletrônico: < https://books.google.com.br/books?id=2NohH_K1yz8C >. Acesso em 8.10.2015.
LAIRD, Andrew (1997) “Approaching characterisation in Virgil”, in The Cambridge companion to Virgil, ed. Charles Martindale, 282–293.
Cambridge University Press.
MARTINS, Paulo (2001) “Eneias se reconhece”. Letras Clássicas 5: 143–57.
RODOLPHO, Melina (2010) Écfrase e evidência nas letras latinas: doutrina e práxis. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH–USP.
SPALDING, T. O. (1983) Virgílio: Eneida. São Paulo: Abril Cultural.
THAMOS, Márcio (2011) As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida. São Paulo: Edusp.

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