Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 7

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Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 7
Revista Diálogos Mediterrânicos
www.dialogosmediterranicos.com.br
Número 7 – Dezembro/2014
REVISTA DIÁLOGOS MEDITERRÂNICOS
EQUIPE EDITORIAL
EDITOR GERENTE
Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil
EDITOR ADJUNTO
Prof. Me. André Luiz Leme, Universidade Federal do Paraná, Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Dennison de Oliveira, Universidade Federal do Paraná, Brasil
Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil
Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes, Universidade Federal do Paraná, Brasil
Prof. Dr. Renan Frighetto, Universidade Federal do Paraná, Brasil
CONSELHO CONSULTIVO
Prof. Dr. Hans-Werner Goetz, Universität Hamburg, Alemanha
Prof. Dr. Saul António Gomes, Universidade de Coimbra, Portugal
Profa. Dra. Aline Dias da Silveira, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Prof. Dr. Stéphane Boissellier, Université de Poitiers, França
Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, Universidade Federal de Goiás, Brasil
Profa. Dra. Renata Cristina Nascimento, Universidade Federal de Goiás, Brasil
Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Prof. Dr. Gerardo Fabián Rodríguez, Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina
Profa. Dra. Ana Paula Magalhães, Universidade de São Paulo, Brasil
Profa. Dra. Maria Filomena Pinto Da Costa Coelho, Universidade de Brasília, Brasil
Profa. Dra. Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil
Prof. Dr. José Carlos Gimenez, Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Prof. Dr. Leandro Duarte Rust, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Prof. Dr. Marcos Luis Ehrhardt, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Profa. Dra. Armênia Maria de Souza, Universidade Federal de Goiás, Brasil
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FOCO E ESCOPO DA REVISTA
A Revista Diálogos Mediterrânicos, vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos da
Universidade Federal do Paraná, tem como principal missão à difusão do conhecimento
historiográfico relativo a realidade do mundo mediterrânico na diacronia histórica, desde
a Antiguidade até a contemporaneidade. Tal iniciativa é amparada por objetivos
definidos, como o de incentivar a produção acadêmica – científica qualificada e,
conseqüentemente, incrementar o debate e o intercâmbio entre especialistas nas áreas das
Ciências Humanas que tenham como motor de suas investigações a História do mundo
mediterrânico. Trata-se duma publicação vocacionada ao espaço científico, sendo
destinada à divulgação de artigos e resenhas de mestrandos, mestres, doutorandos e
doutores que devem ter como tema central a História na realidade mediterrânica.
Todos
os
trabalhos
deverão
ser
encaminhados
pela
página
web
http://www.dialogosmediterranicos.com.br, através do sistema Open Journal Systems que
favorece a ocorrência duma avaliação criteriosa e séria por parte dos pareceristas e dos
autores de artigos e resenhas. Para tanto é essencial que cada autor realize seu cadastro no
sistema, seguindo os passos informados. Os trabalhos serão enviados para sessões
específicas – Dossiê; Artigos Isolados; Resenhas; Entrevistas – e sua publicação será
realizada conforme a avaliação dos pareceristas.
CONTATO PRINCIPAL
Núcleo de Estudos Mediterrânicos
Universidade Federal do Paraná
Endereço: Rua Gal. Carneiro, 460.
Prédio D. Pedro I, 7º andar, sala 715.
Centro - Curitiba - Paraná – Brasil
CEP 80060-150
Telefone: 55 (41) 3360-5416 / 3360-5417
E-mail:
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SUMÁRIO
EDITORIAL
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7
Marcella Lopes Guimarães
DOSSIÊ
“LEITURA E IDENTIDADE EM DISCUSSÃO: HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL”
Apresentação ao Dossiê
10
Marcella Lopes Guimarães
“Sem fazer nada, os homens fazem mal”: leituras e leitores de Catão
na Roma Antiga
12
Marcos Luis Ehrhardt
Um exemplo de gens na Hispania visigoda: Fructuoso de Braga e a
sua origo preclara (século VII)
28
Renan Frighetto
As representações dos Muçulmanos durante a tomada de Lisboa
pelos Cristãos (1147)
53
José Carlos Gimenez
A Trama da História na concepção de povo nas Siete Partidas
66
Aline Dias da Silveira
Ideologia da guerra ou ideologia dos guerreiros? Mais algumas
interpretações do relato da batalha do Salado (1340) no Livro
de Linhagens do Conde Dom Pedro
84
Stéphane Boissellier
As transformações na sociedade política e nas monarquias medievais
e seus efeitos na mobilidade de facções nobiliárquicas entre
Portugal e Castela
104
Fátima Regina Fernandes
ARTIGOS
Men of Sea. The making of an Identity
David Álvarez Jimenez, Sergio Remedios Sánchez
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Elementos Proféticos na Cronística Moçárabe (séculos VIII - XI)
141
António Rei
O Intelectual na Idade Média: divergências historiográficas e
proposta de análise
155
Igor Salomão Teixeira
O que vale é a intenção… Texto, contexto, autor e linguagem na
perspectiva de Quentin Skinner
174
Ana Crhistina Vanali, Monica Helena Harrich Silva Goulart
RESENHAS
GALLEGO, Julíán; GARCÍA MAC GAW, Carlos G.
(comps.). La ciudad en el Mediterráneo Antiguo.
Colección
Razón
Política/Estudios
del
Mediterráneo Antiguo – PEFSCEA N° 4. Buenos
Aires: Universidad de Buenos Aires/Ediciones del
Signo, 2007, 264p.
188
Horacio Miguel Hernán Zapata
GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge!
Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais.
Curitiba: Editora UFPR, 2013, 195p.
194
Ana Luiza Mendes
DOCUMENTOS HISTÓRICOS & TRADUÇÕES
Bulas Inquisitoriais: "Ad Extirpanda" (1252)
Leandro Duarte Rust
NORMAS DE PUBLICAÇÃO
Revista Diálogos Mediterrânicos
200
230
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NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos
A revista Diálogos Mediterrânicos chega ao seu sétimo número com um dossiê
intitulado Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval. Ele reúne
pesquisadores do NEMED que, em 2012, celebraram também 10 anos de criação desse grupo
de pesquisa.
No dossiê, os artigos de Marcos Luis Ehrhardt, José Carlos Gimenez e Stéphane
Boissellier voltam-se às questões da leitura de textos, sua apropriação e ressignificação.
Destaco os sentidos que só o ato de ler pode produzir em sociedades tão diversas quanto as
que os colegas autores examinam. Já os textos de Renan Frighetto, Aline Dias da Silveira e
Fátima Regina Fernandes voltam-se à discussão da identidade. Destaco o fato de Renan
Frighetto e Aline Silveira analisarem na especificidade o que a semelhança dos termos gens e
gentes poderia inadvertidamente aproximar. Convido os leitores à leitura da apresentação do
dossiê para uma síntese mais pormenorizada.
A Diálogos Mediterrânicos 7 também têm o prazer de publicar entre seus artigos livres
uma rica diversidade. David Álvarez Jimenez Correio, da Universidade Internacional de La
Rioja, e Sergio Remedios Sánchez Correio, da Universidade Complutense de Madrid trazem a
identidade das gentes do mar na Antiguidade. António Rei, do Instituto de Estudos Medievais
(IEM / FCSH–UNL), Lisboa, evoca os textos moçárabes de Al-Andaluz. Igor Salomão Teixeira,
da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), revisa o conceito de intelectual
medieval e, finalmente, Ana Crhistina Vanali da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e
Monica Helena Harrich Silva Goulart da (UTFPR) analisam as contribuições de Quentin
Skinner para a história intelectual.
A revista ainda publica duas resenhas, a primeira escrita por Horacio Miguel Hernán
Zapata da Universidade Nacional del Nordeste (UNNE), Argentina, da obra La ciudad en el
Mediterráneo Antiguo, publicada em 2007, e de Ana Luiza Mendes, da UFPR (Universidade
Federal do Paraná) da obra Por São Jorge ! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas
medievais, organizada por mim e publicada em 2013.
A revista Diálogos Mediterrânicos 7 está aberta à submissão de trabalhos acadêmicos
de gêneros diversos e, neste número em especial, temos a satisfação de convidar o leitor à
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leitura de uma tradução bilíngue, latim-português, de um documento medieval, a bula Ad
extirpanda (1252), trabalho realizado por Leandro Rust da UFMT (Universidade Federal do
Mato Grosso). Que essa novidade mobilize os pesquisadores a apresentarem entrevistas,
outras traduções, balanços de pesquisa, transcrição de documentos..., inspirados pela
inventividade do conhecimento produzido nas Humanidades.
Agradeço aos autores pela confiança, aos pareceristas a correção e agudeza e ao meu
editor adjunto, Prof. Me. André Leme, pela parceria constante.
Aos leitores, uma boa leitura!
Marcella Lopes Guimarães.
Em 17 de dezembro de 2014.
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DOSSIÊ
LEITURA E IDENTIDADE EM DISCUSSÃO:
HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL
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Apresentação ao Dossiê
“Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval”
No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já
era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro.
(Alberto Manguel em Uma história da leitura)
O dossiê leitura e identidade revela como revisitar a tradição fomenta ações e como
tradições diversas, atualizadas por sociabilidades em constante movimento, mobilizam uma
discussão sobre identidade entre a Antiguidade e o Medievo.
O dossiê se abre com o texto do Professor Doutor Marcos Luis Ehrhardt, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, que “defende” o primeiro pilar do dossiê: “Leitores
não são apenas herdeiros silenciosos, mas participantes críticos”. No artigo, o autor avalia
como a retomada do pensamento dos dois Catões, o antigo e o seu bisneto, (entre os séculos
III e I a. C.) opera histórica e literariamente a reabilitação do presente de leitores muito
especiais, como Lucano, Pérsio e Sêneca.
O segundo artigo, da autoria do Professor Doutor Renan Frighetto, da Universidade
Federal do Paraná, entroniza a segunda discussão, ao refletir sobre o conceito de gens, na
Antiguidade Tardia, fundamentalmente a partir da obra de Fructuoso de Braga, “verdadeiro
modelo de integrante de uma das mais ínclitas gentes do reino hispanovisigodo no século VII”.
Nesse texto, o professor esmiúça os elementos que constituem a construção ideológica do
conceito.
O Professor Doutor José Carlos Gimenez, da Universidade Estadual de Maringá, volta-se
à leitura da carta de um clérigo inglês, conhecido como Osberno, escrita entre a segunda
metade do século XII e a primeira metade do XIII, para resgatar “as aventuras e as
adversidades transcorridas” durante a conquista de Lisboa, em campanha liderada por Afonso
Henriques, primeiro rei de Portugal (reinado: 1139-1185). A carta reporta fatos políticos
baseados na afirmação da fé cristã, em oposição à presença moura.
A discussão da identidade volta à cena, com o artigo da Professora Doutora Aline Dias
da Silveira, da Universidade Federal de Santa Catarina. A partir da análise das Siete Partidas,
realizadas sob os auspícios de Afonso X de Castela (reinado: 1252 a 1284), a autora discute o
conceito de povo, que, segundo sua análise, “apoia-se na interdependência de seus membros
com a terra e com o rei”, em uma rede de “convivência”.
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A leitura é a ambição do texto e o Professor Doutor Stéphane Boissellier, da
Universidade de Poitiers, volta-se à interpretação de um “monumento destinado a celebrar e
recordar a batalha do Salado” (1340), ou seja, à narrativa conservada no Livro de linhagens do
Conde D. Pedro Afonso, inserida na segunda refundição da obra, no fim do século XIV. Sua
análise centra-se no que o documento revela sobre a “atitude nobiliárquica para com a guerra,
entre proeza pagã e cumprimento da vontade divina”.
Encerra o dossiê Leitura e Identidade em discussão: História Antiga e Medieval o
artigo da Professora Doutora Fátima Regina Fernandes, da Universidade Federal do Paraná,
que a partir da observação “das idas e retornos de nobres entre os reinos de Portugal, Castela e
Inglaterra”, busca mapear relações políticas na sociedade ibérica medieval, caracterizada por
vínculos concorrentes que constroem identidades superpostas e complexas.
Esse dossiê formado por pesquisadores de várias instituições – no Brasil e no exterior –
celebra ainda o encontro entre companheiros do mesmo grupo de pesquisa, o NEMED, que em
2012, completou 10 anos de vida. Salve!
Marcella Lopes Guimarães
Em 17 de dezembro de 2014.
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“Sem fazer nada, os homens fazem mal”: leituras e leitores de
Catão na Roma Antiga
"By doing nothing, men learn to do poorly": reading and readers
of Cato in Ancient Rome
Marcos Luis Ehrhardt*
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Resumo
Abstract
Leitores de obras não são apenas herdeiros
silenciosos, mas participantes críticos. A
julgar pela quantidade de vezes que aparece
nos textos antigos, em diversos autores de
diferentes vinculações políticas, filosóficas e
educacionais, percebemos que o nome de
Catão, é recorrência constante e duradoura.
Este trabalho objetiva perceber como ele é
representado, lido e relido por diferentes
autores como Sêneca, Lucano e Pérsio, sendo
apontado inclusive como modelo de cidadão
ideal na Roma Antiga.
Readers works are not only silent inheritors,
but critic participants. Considering how many
times it appears in ancient texts, in various
authors of different political, philosophical
and educational affiliations, it is possible to
notice that the name of Cato is frequent and
longstanding. This paper aims to notice how
he is represented, read and reread by
different authors, like Seneca, Lucano and
Persius, pointed out, inclusive, as a model of
ideal citizen in Ancient Rome.
Palavras-chave: Catão; Roma Antiga; Homem
Keywords: Cato; Ancient Rome; Public man.
Público.
● Enviado em: 03/11/2014
● Aprovado em: 12/12/2014
*
Professor Adjunto D do Colegiado do Curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Unioeste – campus de Marechal Cândido Rondon/Pr.
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Um texto clássico é, sempre, intertexto. Um tecido pontilhado de alusões ao
mito, aos poetas “antigos”, a uma história comum ao escritor e ao leitor.
Joaquim Brasil Fontes.
Introdução e Metodologia de Análise
Quando nos debruçamos sobre a literatura política e moral da sociedade greco-latina, é
imperioso constatar a relação existente, em quase todas as épocas da Antiguidade, entre o
governo e os pensadores, e mais especificamente ao que nos interessa, entre o governo
imperial romano e os filósofos e/ou moralistas. Para exemplificar essas relações em
diferentes épocas e lugares, há farta literatura que demonstra esse estreito diálogo entre
saber e poder. O que nos interessa diretamente neste momento é entender a produção
intelectual e/ou educacional de autores que viveram ou elegeram o primeiro século da era
cristã. São inúmeras as referências a homens considerados modelares aos propósitos dos
autores. Alguns nomes ganham um significativo destaque pela importância dada e pela
recorrência aos mesmos. Vou me deter em dois deles: primeiramente Catão, o antigo ou o
censor (235 – 149 a.C.), descendente de família obscura de Túsculo, que combateu contra
Aníbal, foi cônsul em 195 e censor em 185. E além deste seu homónimo Catão, o Jovem ou
Catão de Útica, bisneto de Catão o censor. Adversário de Caio Julio César durante a sua
trajetória política, acabou participando do grupo liderado por Pompeu Magno na guerra civil
contra os cesarianos (49 a.C./45 a.C.). Depois da derrota das forças de Pompeu na batalha da
Pharsalia (48 a.C.), o jovem Catão retirou-se para a África e, ao saber que os partidários de
Pompeu tinham sido vencidos na batalha de Tapso (46 a.C.), suicidou-se em Útica. Sua morte
ficou célebre. Apesar de vencido Catão, o Jovem apareceu, na ótica de Salústio, como uma
espécie de “campeão moral” do mundo republicano romano.
Porque o nome de Catão é tão citado e alardeado nos autores tanto do período
republicano quanto do período imperial? Uma primeira constatação é a de que aquele aparece
como um exemplo, uma verdadeira personificação da austeridade, patriotismo e moralidade
que definiriam os traços dominantes do homem público romano. Assim percebemos uma
identificação, uma convergência de interesses para dois nomes que se transformaram em um
verdadeiro paradigma.
O tema da relação entre pensadores/autores com o poder sempre me interessou. A
necessidade de atrelar tema/corpus documental e teoria me aproximou da História
Intelectual. Gostaria de propor uma leitura que se inspira no conceito de geração. O conceito
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de geração nos permite problematizar a ideia de legado e de transmissão. Também comporta
as noções de mudança e de ruptura, e a possibilidade de perceber as continuidades e
descontinuidades de pensamento. Porém só se torna válido quando estabelece um sistema de
referências aceitas por um grupo, quer seja, o de identificação coletiva. 1
No que tange aos intelectuais ou pensadores, a ideia de herança é basilar. Os processos
de transmissões culturais são fundamentais. Quer haja ruptura, quer não haja, o período
anterior é quase sempre referência direta ou indiretamente. Pensamos aqui na ideia de
Tradição, porém não devemos confundir com noções de conservação ou continuidade de
valores imutáveis. O que se deve buscar são os atos de “ressignificação do texto”. É preciso
desconstruir a ideia e/ou prática que considera a palavra anunciada ou o texto como uma
posição de verdade absoluta.
É imperioso constatar ainda o cuidado ao se utilizar de epistemologias modernas para
o mundo antigo. Penso que o conceito de geração intelectual lançado aos autores antigos é
válido e podemos utilizá-lo sem o tratarmos como um conceito fechado, classificador, pois
como diz Paul Veyne, “todo conceito classificador é falso porque nenhum acontecimento se
parece com outro e que a História não é a constante repetição dos mesmos fatos” 2.
Lidamos com os chamados “textos clássicos”, mas que não se amarram em um
repertório fixo, aprovado para sempre3. Assim, a utilização do conceito de geração intelectual
nos auxilia para entendermos a presença de um nome, Catão, em um grupo de autores que
criaram em um determinado período, uma identificação de grupo com objetivos convergentes.
Para os Catões e para nossa perspectiva de análise consideramos também dois
aspectos: a perspectiva sincrônica que nos permite entender o contexto intelectual (relação
do sujeito biografado e seus engajamentos, escolhas, silêncios, entre outros) e a leitura
diacrônica, quer seja, leituras em diversas épocas para entender as influências, permanências,
contradições, enfim a fortuna crítica de um determinado nome4.
Podemos também pensar a partir de uma perspectiva que considere a prosopografia
como método de análise. Como nos ensina Fátima Fernandes,
a prosopografia foi inicialmente utilizada para apresentar e destacar
indivíduos ilustres formadores de uma consciência moral, com a tarefa de
1
2
3
4
Para tanto ver SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos de História Intelectual. Entre questionamentos
e perspectivas. São Paulo: Papirus, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1983.
Conforme LACERDA, Sonia; KIRSCHNER, Tereza. Tradição Intelectual e espaços historiográficos ou
porque dar atenção aos textos clássicos. In: Textos de História. Brasília, v. 5, n. 2, 1997.
Para um aprofundamento desta discussão destacamos a obra de SILVA, Helenice Rodrigues da.
Fragmentos de História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. São Paulo, Papirus, 2002.
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orientar os jovens em relação aos valores autorizados e reconhecidos em sua
época, ou seja, como uma proposta de formação edificante que aparece nas
obras onde o termo é aplicado.5
Ambos os Catões foram influenciados pelo estoicismo e suas ações mostram-nos
indivíduos que se apresentavam como participantes efetivos nas instituições de poder e que
colocavam seus conhecimentos ao serviço da res publica para referendar ou criticar
determinados aspectos da sociedade na qual viviam e transitavam. Eram homens de letras e,
em muitos casos, ocupantes de cargos públicos. Como diz Paul Veyne,
(...) não são homens como os outros: tudo que diz é público e merece crédito;
eles julgam os atos públicos e privados de seus pares. (...) E essa autoridade
recaía sobre a moral privada como sobre a vida pública. (...) Sendo historiador,
dirá o que se deve pensar do passado romano, para ilustrar as verdades
políticas, morais e patrióticas de que o Senado era o conservatório ou a
academia. (...) Sendo filósofo, terá o direito de dizer como se aplica a filosofia à
política, para encontrar nos livros de sabedoria os velhos princípios de Roma,
dos quais são guardiões6
Uma questão importante se impõe: O que os autores almejavam transmitir à
posteridade a partir dos seus escritos? Entendemos que aqueles podiam contemplar tanto as
formas de pensamento em vigor quanto às informações sobre um mundo em constante
transformação. Temas que nos fazem refletir e que nos levam a uma segunda pergunta: os
autores romanos do primeiro século da era cristã percebiam e aceitavam a ideia de que a
sociedade romana passava por um momento de transformação? Penso que percebem, mas
não aceitam, condenam e apresentam outros caminhos.
O homem público romano deste período se sofistica. Propositadamente cria uma
“cultura de ostentação” com banquetes e grandes festas. Alguns autores chamam isso de “luxo
asiático” (novos produtos, novos hábitos, novas necessidades). Convém recordar uma
passagem de Juvenal no livro I, sátira 16 quando aponta a sofisticação do paladar como uma
característica do Império Romano. À medida que cresce espacialmente, mais complexa e mais
sofisticada se torna a sociedade romana. Há uma diversificação dos gostos. A simplicidade
está em segundo plano e se reflete na vida cotidiana 7.
5
6
7
FERNANDES, Fátima Regina. A metodologia prosopográfica aplicada às fontes medievais: reflexões
estruturais. In: História da historiografia. Ouro Preto: abril, n. 8, 2012, p. 12.
VEYNE, Paul. Censuras e Utopias. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da Vida Privada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, p. 173.
Referência importante para esta reflexão é o trabalha da historiadora chilena CUBILLOS POBLETE,
Marcela. El otro poder. Vida cotidiana y control social en Roma. In: Instituições, Poderes e Jurisdições. I
Seminário Argentina, Brasil, Chile de História Antiga e Medieval. Curitiba: Juruá, 2007.
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Mas também devemos sempre considerar que o “discurso decadentista” é tradicional
da literatura romana, uma tônica constante tanto dos autores republicanos quanto dos
autores imperiais. Todos os autores dialogam com esta tradição. Assim, Catão, para os autores
que pretendemos analisar é resignificado com interesses de cunho moral e político. Para
Carlos Galvão,
(...) qualquer interpretação do Principado que o defina como um sistema de
imposições que se abatem sobre uma aristocracia submissa não se sustenta a
partir da leitura das fontes. Para fins de análise, portanto, é preferível ver o
regime político inaugurado por Augusto e perpetuado pelos seus sucessores
não como um sistema fixo e engessado, mas como uma situação social,
resultado, ao mesmo tempo, de um rearranjo das forças políticas em um
determinado contexto histórico e da organização de um conjunto instável e
dinâmico de restrições dos espaços de atuação tanto dos súditos mais
privilegiados do regime como do príncipe8.
Constatamos que autores do pensamento político, ou a ele vinculados, tencionam a
intervenção. Mesmo o pensador que opta pelo otium escolhe, muitas vezes, um leitor ideal,
parceiro que dará vida as suas páginas. É fundamental pensar: a quem os autores se dirigem,
para evitar um enquadramento do texto e talvez realizar apenas uma contextualização de boa
qualidade.
Para o contexto do Principado, e por uma clara influência da filosofia estoica, há uma
estreita aliança entre o pensamento filosófico e o pensamento político. Por esse motivo,
devemos considerar a vida pública e a vida privada como interdependentes. Se a última é má e
corrupta, a primeira não pode alcançar o seu fim. Por isso, visualizamos nas fontes esta dupla
preocupação. Para os estoicos não existia quebra de continuidade entre a esfera individual e
política. Dessa forma a realidade cotidiana, que envolvia os ambientes público e privado,
constituía-se como uma grande res publica. Assim afirmou Sêneca na epístola 94 ao referir-se
a função da filosofia estoica no mundo romano: “...Como se fosse possível alguém ministrar
preceitos sobre uma questão particular sem ter em vista toda a complexidade da vida
humana”.9
Catão e os Autores do Principado Neroniano
Um rápido apanhado na literatura clássica romana demonstra a presença constante e
recorrente ao nome dos Catões. Cícero utiliza-se amplamente de Catão, o censor para
8
9
GALVÃO, Carlos. Autocracia, Ressentimento e Engajamento Político no Principado Romano. In: Memória
e (RE) Sentimento. BRESCINANI, S.; NAXARA, M. (Orgs.). São Paulo: Editora da Unicamp, 2004, p. 320.
SENECA, Lucius Anneus. Ad Lucilium epistulae morales. Transl. Richard Gummere. London: Harvard
University Press, 1989, p 234.
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demonstrar a importância da formação sólida dos homens das letras pelo seu exemplo.
Plutarco, ao aproximar-se do ideal da educação e da humanitas do povo romano, inclina-se
para Catão, o antigo. Em Plínio, o jovem, Catão torna-se um adjetivo. Contrariamos Marco
Aurélio, nas suas Meditações, no Livro IV, 33 que diz que o tempo tudo apaga e também
apagará Catão. Ao considerar sua influência e permanência, parece que o principe filósofo
equivocou-se em sua assertiva.
Temos que ter clareza que cada época e cada autor apresentam os nomes dos Catões de
diferentes maneiras para diferentes propósitos. Para os nossos escolhemos um grupo de
autores que, em nossa opinião, apresentam propósitos convergentes ao se utilizarem dos dois
Catões para dialogar. A seguir, apresentaremos alguns exemplos de autores de uma mesma
geração intelectual que se utilizam dos Catões para construir seus argumentos acerca do
modelo ideal, prioritariamente, de homem romano. Lucano e Pérsio estão voltados de forma
bastante clara para Catão, o jovem e, por fim, Sêneca, inclinado aos dois Catões, dependendo
dos seus objetivos no texto.
Lucano – 39 – 65 d. C.
Lucano (Marco Aneu Lucano) era natural de Córdoba, sobrinho de Sêneca, viveu sob o
principado neroniano. Sua principal obra, fundamental para a literatura latina do século I d.C.,
foi a Pharsalia. Qual é o momento da escrita de Lucano? No que tange à divisão da literatura
latina, Lucano estaria na fase conhecida como “Idade de Prata”, tendo nascido cem anos
depois de Virgílio. Enquanto o poeta de Mântua cantou os mitos de heróis e semideuses, o
poeta cordobês cantava a guerra entre os mortais, pois não falava mais de deuses, mas de
homens. A epopeia é uma narrativa de heróis que se perdem no tempo. Lucano faz uma
epopeia que foge a essa estrutura. Assim, mudou a perspectiva desta e isso é uma
representação histórica bastante importante. 10
Lucano é visto como um autor muito exagerado que usava máximas e frases de efeito o
tempo todo ao longo do texto. Há pelo menos duas vertentes de análise da obra lucaniana: de
um lado, o autor aparece como participante de uma espécie de cruzada política-literária,
chamado de “o maior representante da literatura de combate”; de outro, um autor com graves
falhas de construção, resultado de suas paixões políticas. “Se levantou contra César (...) o seu
herói é o suicida Catão, o seu partido é o republicano. A Pharsalia é um poderoso sermão
10
Conforme CARVALHO, Aécio F. de. A Farsália de Lucano: importância na evolução do epos. In: Acta
Scientiarum, Maringá, 23(1):93-101, 2001.
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político, a favor de uma causa já vencida, abandonada pelos deuses, mas por isso mesmo
mantida pelo espírito do novo Catão”.11
Nos três primeiros livros da Pharsalia mostra-se um partidário do principado, nos sete
últimos defende ardorosamente o velho espírito republicano, personificado em Catão. Ao
romper com Nero, e não podendo atacá-lo diretamente, descarrega todo seu ódio sobre a
pessoa de César, que ele descreve como ambicioso, egoísta, hipócrita e cruel. Lucano chamará
a atenção para as atrocidades da guerra civil. Seus questionamentos filosóficos aparecem no
verso 140 do livro I quando defende a liberdade de um povo oprimido pela tirania. Referência
semelhante também aparece no Livro VI, verso 790, citando Catão, o velho, inimigo de Cartago
e seu neto, Catão, o jovem, que não estava disposto a ser escravo. 12
No Canto II ou Livro Segundo, no verso 240, Lucano faz uma forte exortação de Catão, o
jovem. Homem virtuoso e defensor das virtudes republicanas, afirma: “Da virtude, que todos,
faz tempo, deixaram, só tu és garantia, e isso nem os giros da Sorte furtar-te-ão, minha alma
vai sem rumo, conduz-me e fortalece com tuas certezas”. 13
Ao trazer a resposta de Catão, o jovem, a Brutus no verso 290 Lucano apresenta-nos a
um Catão estoico por excelência, além da justificação do suicídio de Catão como algo
grandioso e até necessário. No verso 375 do segundo livro, Lucano destacou as atitudes castas
de Catão durante suas núpcias com Márcia:
O severo Catão, resoluto, assim vivia e agia, esta é a sua moral: Guardar o meio
termo, sempre impor limites, seguir a natureza, à pátria dar a vida, e crer que
existe não para si, mas para o mundo. A Catão um banquete era matar a fome;
grandioso lar, um teto para fugir do frio, roupa estupenda, a toga Quirinal,
única utilidade do venerio enlace, procriação; à Urbe era um pai e um marido,
defensor da justiça e da honra inflexível, afeito ao bem comum. Em ato algum
Catão falhou, avesso a toda espécie de egoísmo 14
No que tange às suas vinculações ao poder vemos um autor, no canto I entre os versos
33 e 66 de sua Pharsalia, que exaltou e elogiou o advento do governo neroniano. Dadas as
circunstâncias, podemos entender e levar aquele elogio muito a sério. Lucano pôde, na
generosidade do seu idealismo de jovem, antes do rompimento com o imperador ter visto em
Nero características extraordinárias, capazes de motivarem o elogio.15 Isso não seria nada
11
12
13
14
15
CARPEAUX, Otto M. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959, p. 131/2.
LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid:
Editorial Gredos, 1984.
LUCANO, op. Cit. p. 34.
LUCANO, op. Cit, p. 78.
LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid:
Editorial Gredos, 1984, p. 102.
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estranho, ainda mais se lembrarmos que os historiadores se referem a um período - o
quinquennium Neronis – no qual o imperador foi capaz de colocar a ambição a serviço do bem
público, sendo possível à história destacar, nesse período, medidas de grande senso
administrativo16.
Ao final, quando condenado pelo despotismo neroniano, Lucano, tendo que cometer o
suicídio, encarnou a liberdade perdida dos tempos ancestrais da Res publica romana,
personificado em Catão, o jovem.
Pérsio – 34 – 62 d. C.
Pérsio (Aulus Persius Flaccus) foi cavaleiro romano, nascido em 4 de dezembro de 34
em Volterna, antiga cidade etrusca. Morreu em 24 de novembro de 62, vítima de uma doença
do estômago. Pérsio, em suas sátiras, atacava o mau gosto dos homens, inclusive os das letras,
a sordidez da população, o orgulho dos nobres e para muitos, a postura despótica do princeps.
Suas sátiras aparecem como verdadeiros sermões; também contém anedotas, referências
mitológicas, máximas e em muitos momentos, cartas dirigidas a pessoas conhecidas.
A utilização da epistolografia foi um recurso amplamente utilizado por autores
romanos, como uma maneira de dialogar com o leitor ou com um interlocutor que poderia ser,
inclusive, imaginário. A literatura define-a como suasoriae onde o autor imagina que alguma
das suas afirmações é objetada por alguém, objeção essa que lhe dará oportunidade para
retomar a sua ideia inicial, comprová-la com novos argumentos ou ilustrá-la com nova
exemplificação. Abundam nesse tipo de textos expressões como dicunt (dizem alguns), dicis
ou dices (dizes ou dirás tu). Também se constata a intenção de atingir um tu mais direto e
objetivo nesse tipo de recurso de escrita.
Graças a Cornuto17, Pérsio pode se relacionar com distintos membros daquele grupo de
estoicos que enfrentaram no final da vida o despotismo de Nero e conservaram viva a chama
da doutrina de Crisipo e Creantes. Na mesma escola de Cornuto, Pérsio teve como colega
Lucano, cinco anos mais jovem que Pérsio; um admirava o trabalho do outro.
Suas sátiras, inspiradas em uma longa tradição foram, para muitos, direcionadas contra
Nero. Seus biógrafos confirmam um conhecido episódio, segundo o qual no verso 121 a sátira
16
17
Para um aprofundamento de Lucano, ver VIEIRA, Brunno V.G. Farsália DE Lucano– Cantos de I a V,
introdução, tradução e notas. São Paulo: Editora Unicamp, 2011.
Lucius Annaeus Cornutus. Foi um escravo liberto de Sêneca. Abriu uma escola filosófica estoica, sendo
Pérsio e Lucano alunos da referida escola.
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dizia: “o rei tem orelhas de asno”.18 Cornuto, temendo que o imperador interpretasse a frase
como uma alusão direta a ele, convenceu o satírico a mudar a frase para: “quem não tem
orelhas de asno”?19 Apesar do esforço de Cornuto, a interpretação corrente era a de que todos
sabiam que os versos eram direcionados a Nero. Em 65, ordenado por Nero, Cornuto fora
mandado para um forçado exílio, juntamente com seu colega, o também estoico Musonio Rufo.
Como exemplo trazemos referências da sátira III (de um total de seis) que o poeta
dirigiu contra todos aqueles que se descuidaram dos estudos da filosofia e cederam seu tempo
e suas forças ao ócio, a indolência, principalmente os jovens. O poeta descreve os ardis de que
se valia, desde a sua infância para se dedicar aos estudos. “da mesma maneira que devemos
atacar o mal pela raiz com remédios adequados, assim devemos o quanto antes assimilar os
estudos filosóficos para a nossa vida”. 20 Viver segundo regras de conduta ética, que nos
colocarão ao abrigo da ignorância. Afirma na sátira III: “Quando criança, recordo, ficava a
fazer exercícios a partir dos exemplos de Catão, e principalmente pelo seu suicídio”.21
A obra persiana é considerada tanto filosófica quanto didática, bastante convencional
se consideramos que o período não cansou de detectar e constatar os excessos cometidos por
Nero durante boa parte de seu principado. É imperioso constatar que com Lucano e Sêneca,
principalmente, a filosofia estoica foi uma das armas de oposição aos príncipes que se
utilizavam de atitudes consideradas despóticas. A presença de Pérsio aqui se deve ao fato de
ser um autor que engrossará, com o passar do tempo, o grupo de estoicos que além de
professar um sistema filosófico, transformar-se-á em uma espécie de bandeira de combate.
Sêneca – 01 – 65 d.C.
Sêneca (Lucius Anneus Seneca) natural de Córdoba, assim como seu sobrinho Lucano,
nasceu por volta do ano 1 d.C. e sua morte se deu em 65 d.C. quando cometeu suicídio por
ordens do imperador Nero. Escreveu muito e sobre muitos assuntos. Grande parte do
conjunto de suas obras pode ser vista com uma função instrumental de educar a todos,
elencando direitos e deveres, ou seja, o que era recomendável e o que não era recomendável
fazer para governar e para viver em sociedade. De sua biografia e trajetória elencamos quatro
momentos que consideramos relevantes: a primeira fase é da mocidade do autor, seus
18
19
20
21
PERSE. Satires. Texte établi et traduit par A. Cartanet. Paris: Les Belles Lettres, 1929, p. 21.
PERSE, Op. Cit., p 32.
PERSE, op. Cit. p. 33.
Era prática comum das crianças e jovens fazer exercícios de eloquência. Os pais constantemente
assistiam a esses exercícios, inclusive em diversos momentos convidavam os amigos para assistir.
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primeiros anos em Roma e sua rápida viagem ao Egito para tratar um problema de saúde; a
segunda fase significativa foi a do seu exílio na Córsega por ordens do imperador Cláudio e
que marcou profundamente seus escritos; a terceira, o período em que atuou como preceptor
e conselheiro de Nero, quando escreveu textos importantes; a quarta e última fase, a da sua
velhice, já afastado do poder, momento em que aparece um dos seus escritos mais
significativos: Ad Lucilium epistulae morales.22
A defesa de uma vida dedicada aos estudos e presente nos textos redigidos na velhice
explica sua posição e suas escolhas. Apesar de seu reconhecimento, Sêneca colheu muitas
frustrações ao longo de sua trajetória política e pessoal. Foi exilado no ápice da sua vida e
quando despontava como político e escritor em Roma. Tomou praticamente as rédeas do
poder e viu suas pretensões de um governo de feição estoica desandar ao longo da
administração de Nero.
As referências a figura de Catão, o jovem no conjunto das obras senequianas são uma
constante. É o autor mais citado no De Providentia, no De Constantia Sapientis, na Ad Marciam
De consolatione e no De tranquilitate animi. Neste, os exemplos de vários nomes que são um
exemplo a ser seguido: “Sócrates, Pompeu, Cícero e Catão... todos esses encontram a custo de
um lapso insignificante de tempo, o modo pelo qual se fizessem eternos, e morrendo,
alcançaram a imortalidade”23. No De vita beata Catão, o jovem, surge como um exemplo de
homem de discernimento e a personificação do sábio. Nesse caso, vale a pena acentuarmos a
preocupação senequiana da relação política entre a aristocracia senatorial e o princeps, bem
como a função daqueles aristocratas como homens sábios atuantes na vida pública romana.
O maior número de referências a Catão, o jovem – 45 no total – aparecem na última
obra do filósofo cordobês, as Epístolas Morais já citadas neste texto. Dessas referências
destacamos aquela na qual exaltou-se a dignidade com que Catão, o jovem, enfrentou a “bela
morte” que transformou-o em um autêntico herói.24 Na epístola 24 Sêneca afirma:
“Desembainhando a espada exclamou: Não combati até hoje pela minha própria liberdade,
mas pela da pátria; todo o meu esforço tendeu, não a viver livre, mas a viver entre homens
22
23
24
SENECA, Lucius Anneus. Ad Lucilium epistulae morales. Transl. Richard Gummere. London: Harvard
University Press, 1989.
SENECA. Tratados Morales. Introducción, versión española y notas por José M. Gallegos Rocafull. México:
Universidad Nacional Autónoma de México, 1944, p.78.
Na epístola 13, a morte de Catão é um exemplo de glória.
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livres. E agora que já não há esperança para o gênero humano, Catão irá acolher-se a um lugar
seguro”.25
Na epístola 95, a carta mais longa do conjunto das Epístolas, na morte de Catão, é a
própria liberdade que exalou o seu último suspiro. Diz-nos Sêneca:
Será útil não nos limitarmos a ver quais os traços, as características gerais que
habitualmente identificam os homens de bem, mas antes expor em pormenor
como eles de fato agiram: referir, por exemplo, a ferida mortal que Catão,
como decisivo ato de coragem, infligiu a si mesmo, ferida por onde a liberdade
republicana exalou o último suspiro26.
Afirma o filósofo cordobês em trecho da epístola 104:
toda a existência de Catão decorreu ou no meio da agitação social armada ou
quando já estava em gestação a guerra civil declarada. Também de Catão se
pode dizer, como de Sócrates, que se eximiu pela morte à servidão. (...)
enquanto uns tomavam o partido de César e outros o de Pompeu, Catão foi o
único que abraço o partido da república. 27
O modelo de sociedade que Sêneca almejava apresentar deveria ser buscado na
história, romana prioritariamente, e no exemplo de homens considerados ilustres e, portanto,
modelares. Podemos dizer que Sêneca sempre permaneceu coerente, ao longo dos seus
escritos e da sua vida, aos valores políticos por ele defendidos e que reforçavam a defesa da
liberdade pública como um ideal a ser mantido no principado.
Possibilidades de Leituras e Considerações Finais
A partir de agora, apontaremos algumas possibilidades de interpretação dos
propósitos dos autores aqui analisados fazendo referência aos Catões.
Uma primeira
constatação: convém lembrarmos as reflexões feitas por Norberto Luiz Guarinello sobre
aquilo que a historiografia chamou de círculo dos estoicos na época do principado romano. 28
25
26
27
28
SENECA, Op, cit., p. 67. Na epistola 67, outro exemplo de “bela morte“, quando Sêneca elenca o nome de
importantes homens que morreram e se tornaram exemplos: Catão, Rutílio, Sócrates e Régulo. Nas
epístolas 70, 82 e 104, Catão é o exemplo de homem que enfrenta a morte sem covardia, com virtude.
SENECA, Op. Cit., p. 345. Nesta mesma carta ainda há referências a Catão, o antigo, com seus feitos de
cunho tanto público quanto privado. Na carta 97, Sêneca afirma que todas as épocas produzem homens
maus, mas nem todas as épocas podem produzir seus Catões. Na carta 104, os dois Catões podem te
ensinar a morrer quando a necessidade se impuser.
SENECA. Op. Cit., p. 389. Sêneca, na mesma carta cita Catão também para justificar um tempo em que
Roma era mais digna – olhar voltado para a República. Nos diz: “gloriosos tempos em que um homem se
contentava com apenas um cavalo”.
Para tanto ver: GUARINELLO, Norberto Luiz. Nero, o estoicismo e a historiografia romana. In: Boletim do
CPA. Campinas, n. 1, 1996.
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Trata-se de autores que procuraram construir uma estreita relação entre os preceitos da
filosofia estoica e a administração do principado romano.
A partir de uma primeira aproximação com os textos, percebemos que os autores
procuravam evidenciar mais o caráter pessoal e individual da ética estoica. Como diz
Guarinello, tratava-se de uma ética centrada no “autocontrole de si” e para a qual a questão da
liberdade se resolve individualmente, pelo caminho do suicídio, inclusive, se as circunstâncias
se fizessem necessárias. Defende-se um rígido controle das paixões, aquilo que os gregos
chamavam de sofrosine, ao mesmo tempo em que havia uma confiança absoluta na
providência divina e no reconhecimento inelutável do destino.
No entanto, como afirma Guarinello:
Essa imagem, verdadeira em linhas gerais, não deve, contudo, fazer-nos
esquecer que o estoicismo romano, possuía também uma forte dimensão
política, estreitamente vinculada à sua adoção por parte significativa da elite
política romana desde o final da República. No seio desta elite, o estoicismo
atuava como fonte de uma ética ao mesmo tempo pessoal e coletiva, que dava
sentido à sua participação na vida pública e permitia unificar, no universo de
suas relações, sua vida privada com sua existência pública. 29
Os estoicos defendiam o ideal de um principado cuidadoso das liberdades públicas. No
final da vida principalmente, Lucano, Sêneca e Pérsio, formavam o que podemos definir como
uma espécie de estoicismo anti-neroniano. Segundo Paratore: “a própria poesia volta a ser
instrumento de luta e, muitas vezes, os seus criadores mergulham na ação e desejam
ardentemente a bela morte, no clima inflamado pelas suas paixões e pelo gosto teatral e
barroco da época”.30.
Os nossos autores almejavam, e nos propósitos deste texto, a partir das atitudes e do
exemplo dos dois Catões, dirigirem-se à consciência moral de cada habitante do império, pois
reconheciam a existência das redes clientelares e suas vicissitudes e estavam cientes de
algumas desigualdades presentes na Roma de seu tempo.
A constatação de que a condição moral das pessoas se mostrava quase sempre
extremamente complexa e bastante ambígua, essa filosofia, que poderia ser considerada como
“guardiã” de valores ideais e nobres, carregava a possibilidade de ser um depositário de
virtudes para se aplicar, quando houvesse necessidade, ao universo político romano. A
filosofia do estoicismo defendia claramente a participação dos seus iniciados na vida pública
e, portanto, política da cidade.
29
30
GUARINELLO, op. Cit., p. 54.
PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 547.
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Essa participação ativa e positiva, contudo, aparece ocultada pelas fortes distorções
operadas, a partir da morte de Nero, na memória sobre os eventos de seu breve governo. Para
os historiadores posteriores, Nero passou a representar o exemplo, por excelência, do tirano,
do mau príncipe, lascivo, cruel, ambicioso, escravo do medo e da paixão. A memória sobre seu
reinado e mesmo nosso acesso à realidade, eventos e expectativas deste período são
determinados, em larga medida, pelo relato contido nos textos produzidos a posteriori. Houve,
sim, um projeto que envolveu um grupo de estoicos, em particular o ativo grupo de senadores
liderados por Thrasea Paetus.31
Uma segunda possibilidade de leitura que apresentamos está relacionada a utilização
de Catão para um grande objetivo de uma literatura voltada as questões da educação romana
preocupada pela construção do modelo almejado de homem romano ideal, um Catão
exemplificado nas suas ações públicas e um Catão como exemplo a ser seguido nas escolhas
da vida privada. Esta função pedagógica também está grandemente atrelada a um recurso
retórico e estilístico presente na literatura clássica através dos exempla e da Historia Magistra
Vitae. Ao longo dos textos, vemos desfilar inúmeros personagens, uns mais, outros menos
conhecidos, mas a quase totalidade deles cumpre um papel, o de servir como exemplo ou
como um contraexemplo para aquilo que os autores desejam demonstrar aos seus potenciais
leitores. Tais exemplos fixam-se na memória por meio da repetição de eventos ou pela (re)
memoração destes eventos e das personagens (novamente lembramo-nos do exemplo de
Catão) trazidas à memória da sociedade do período em que os referidos pensadores se
encontravam inseridos. Há, nas reflexões dos autores, inúmeros exemplos de ações, de
acontecimentos e de personagens de épocas anteriores que podem e, para o autor, devem ser
aprendidos e praticados (ou rejeitados) na vida pública e privada. Objetivava mostrar às
pessoas que homens considerados especiais poderiam ter condições de instruir outros
homens e outras épocas através do exemplo dos seus pensamentos e das suas ações. 32
O principado é considerado como uma resposta para os problemas decorrentes das
crises e guerras civis do final do período republicano.33 Apesar de todo o esforço de Otávio
Augusto para garantir uma legitimidade jurídica e administrativa, havia campos e espaços em
que esta legitimidade não alcançava o efeito desejado. São aspectos que passavam pela esfera
da ética e da moral e neste sentido, a intervenção destes autores na “alma” e no “coração” dos
31
32
33
Ver GUARINELLO, op. Cit.
Sêneca na epístola 25 afirma: “quando já tiveres progredido a ponto de um grande respeito por ti
mesmo, só então terás condições de dispensar um pedagogo. Até que isso aconteça, refugia-te na
proteção de umas dessas autoridades: Catão, Cipião, Lélio”.
BRAVO, G. Poder político y desarollo social en la Roma Antigua. Madri: Taurus, 1980.
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homens, mostrava-se bastante satisfatório. Segundo Pierre Grimal, “se for possível infletir o
curso das coisas, isso pode ser feito tão bem ou melhor, agindo-se sobre os espíritos, fazendoos sentir a verdade, do que se coagindo o corpo pela violência e pela guerra, como, até então, a
política se limitara a fazer”.34 A relação entre princeps e súditos era um dos cimentos do
império. Perseguir e atingir o ideal ciceroniano de “afeto dos súditos” poderia ser alcançado
com o exemplo catoniano. Convém lembrar que no contexto greco-romano, o termo “político”
tem um significado mais amplo, pois significava desempenhar, além das questões políticas,
todas as obrigações de um cidadão como casar e ter filhos, participar da vida pública, ser
virtuoso e respeitador do mos maiorum.
Os exemplos fornecidos pelos autores do que era correto e do errado, daquilo que
denota uma vida virtuosa e de uma vida entregue aos vícios, demonstram suas inclinações
para outra época. Afirma Sêneca na epístola 95: “Naquela época (antiga), os homens ainda não
necessitavam de remédios fortes. A perversidade não havia atingido ainda a intensidade
provada nos dias de hoje. Vícios simples necessitavam de remédios simples”. 35
Em Lucano, detectamos algo semelhante no Livro Primeiro da Pharsalia:
De fato, conquistado o mundo, quando a Sorte trouxe riquezas mil, os usos
bons cederam aos usos prósperos, e os bens ganhos do inimigo os luxos
fomentaram, em ouro e edifícios não existia regra, e as mesas dos antigos a
gula desdenhou; homens feitos trajaram vestes que a custo suas noivas
usariam; aos heróis a pobreza fecunda se vai, e em todo orbe se busca tudo o
que nações corrompe.36
Os autores reafirmam uma época de excessos, de mal-estar e, a partir dos textos,
tentaram impedir o desmoronamento moral da sociedade romana. Para entender melhor esse
aspecto, é preciso ter em mente que os primeiros séculos de desenvolvimento da civilização
romana se mostravam de forma mais ou menos independente, pois inicialmente a influência
grega fora pouco sentida. Em comparação com os gregos, voltados a uma educação citadina e
aristocrática, percebe-se no mundo romano uma educação mais rudimentar, voltada ao
âmbito rural. Jean-Noel Robert nos diz: “Para gerações de romano, Catão encarnou o homem
típico incorruptível e sem fraquezas, originário do campo”37. Ou ainda: “Em sua origem, o
34
35
36
37
GRIMAL, Pierre. Virgílio, ou o segundo nascimento de Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 32.
SENECA, op. Cit, p. 389.
LUCANO, M. Anneu. Farsalia. Introducción, Traducción y notas de Antonio Helgado Redondo. Madrid:
Editorial Gredos, 1984, p. 22.
NORBERT, Jean-Noel. Os Prazeres em Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 18.
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romano é um soldado e um camponês. Trabalho obstinado, frugalidade e austeridade
constituíam as três principais regras de vida desses homens”.38
Tal menção não é meramente gratuita, pois a terra adquirirá um lugar basilar na
exploração econômica de Roma e da Itália como um todo. As consequências dessa escolha irão
intervir em diversos aspectos da sua história, pois as questões políticas, já nos primórdios da
República, são questões vinculadas à terra. Para Maria Helena da Rocha Pereira, “[...] estas
tradições rústicas que, como notou Claude Nicolet, tão bem se coadunavam com a doutrina
estoica, vão perseverar e, sobretudo ganhar novo alento na época de Augusto”.39
Muitos autores greco-romanos, ao se debruçarem sobre a política e o funcionamento
do principado romano, construíram um discurso decadentista, denunciando excessos
cometidos por imperadores e concidadãos. Defendemos aqui uma perspectiva de renovação.
Elemento que ocorria constantemente no pensamento antigo ao se destacar um determinado
período tendo outro como exemplo, com a retomada de um passado tornado exemplar e
reabilitador de um presente considerado decadente e inferior. A Historia Magistra Vitae nos
ensina que os exemplos bons trazidos a tona devem ser virtuosos, de antepassados ilustres
personificados em grandes homens, como Catão, por exemplo. Além disso os autores, ao
citarem grandes homens, afirmavam a autoridade de suas obras, pois se apresentavam como
conhecedores de um passado importante e modelar. Imitar um modelo precedente era a
oportunidade de dialogar com seus pares e provar vinculações e interesses. Era ainda
valorizar a memória de um grupo ou ideia considerada influente e importante. Horácio, ao se
dirigir a Augusto na Epistola I (versos 125 – 131) afirma:
ainda que sem vigor e sem coragem no trato com as armas, o poeta é útil à
cidade, se tu concorda que as pequenas coisas podem ajudar as grandes. O
poeta modela a boca tenra e gaguejante das crianças, ele afasta desde então
suas orelhas de propósitos desonestos; mais tarde ele forma também o seu
coração por preceitos amigos, o curando da indocilidade, da inveja e da cólera.
Ele narra as belas canções, supre de exemplos ilustres as gerações que
chegam, consola a pobreza do pesar 40
Por fim, constatamos que na antiguidade greco-romano havia homens que encarnavam
o modelo de homens sábios que colocavam seus conhecimentos a serviço da res publica. No
contexto do principado romano, mais especificamente durante o principado neroniano, o
38
39
40
Idem, p. 23.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Roma. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995, p. 457.
SILVA, Gilvan V. da. Política, Ideologia e Arte Poética em Roma: Horácio e a criação do Principado. IN:
Politéia. Hist. e Soc. Vitória da Conquista, v. 1, n. 1, 2001.
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estoicismo apareceu como uma possibilidade pessoal e coletiva. Objetivava estreitar as
relações da esfera privada e da espera pública, como vimos. Um pequeno, mas significativo
grupo de pensadores ligados aos ideais republicanos, tendo como referência um homem, ou
melhor, dois homens que foram considerados como os verdadeiros representantes dos
valores republicanos, personificação do homem sábio e verdadeiro político: o nome de Catão.
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Um exemplo de gens na Hispania visigoda: Fructuoso de Braga e a
sua origo preclara (século VII)
An example of gens in the Visigoth Hispania: Fructuoso of Braga
and his origo preclara (seventh century)
Renan Frighetto*
Universidade Federal do Paraná
NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos
Resumo
Abstract
A discussão sobre o conceito de identidade vem
ganhando amplo espaço nos debates acadêmicos
e científicos. No que se refere às Antiguidades –
clássica, helenística e tardia – o tema da
identidade vinculava-se diretamente com a noção
de comunidade cívica que projetava outros
importantes conceitos como o de patria e o de
natio que nos demonstram a necessidade de
pluralização dos mesmos. Apesar de relevantes
acreditamos que o conceito de gens, vinculado à
ideia de ancestralidade e de tradição, ganhou uma
grande projeção na Antiguidade Tardia, em
particular no reino hispanovisigodo de Toledo,
destacando
a
importância
dos
grupos
aristocráticos e nobiliárquicos e estabelecendo,
desde uma perspectiva sociocultural, a
constituição de uma identidade nobiliárquica que
os unia. Dos vários exemplos que dispomos,
destacamos o de Fructuoso de Braga, verdadeiro
modelo de integrante de uma das mais ínclitas
gentes do reino hispanovisigodo no século VII.
A discussion of the concept of identity has gained
ample space in the academic and scientific
debates. Concerning the Antiquities - Classical,
Hellenistic and Late Antiquity - the theme of
identity is directly linked with the notion of civic
community that designs other important concepts
such as homeland and the natio we demonstrate
the need for pluralization of them. Although we
believe that the relevant concept of gens, linked to
the idea of ancestry and tradition, gained a great
projection in Late Antiquity, especially in the
Hispanic Visigoth kingdom of Toledo, highlighting
the importance of aristocratic and nobility groups
and setting from a sociocultural perspective the
formation of an nobility identity that united them.
Of several examples that we have, we highlight
the Fructuoso of Braga, true model of an
important member of the gentes of the Hispanic
Visigoth kingdom of Toledo in the seventh
century.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Reino
hispanovisigodo de Toledo; gens; gentes;
Fructuoso de Braga.
Keywords: Late Antiquity; Hispanic Visigoth
kingdom of Toledo; gens; gentes; Fructuoso of
Braga.
● Enviado em: 24/02/2014
● Aprovado em: 30/11/2014
*
Doutor em História Antiga pela Universidad de Salamanca; Professor Associado do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná; Bolsista ID do CNPq; pesquisador do Núcleo de Estudos
Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná; e-mail: [email protected]
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Stirpis origo tue licet nobilissimo fulta (Ver.Fruc.,IV,2,3).
Conceitos singulares, conceitos plurais: acerca de Identidade/Identidades e de Pátria/Pátrias.
A frase apresentada como epígrafe do presente artigo revela plenamente o objeto que
pretendemos abordar: nela encontramos a afirmação, feita pelo anônimo autor dos Versiculi
Fructuosi, de que uma nobilíssima estirpe apoiava-se no direito da sua origem, estando, dessa
forma, amparada pela importância adquirida, ao longo do tempo, por um grupo de indivíduos
que legou a alguém a noção de pertencimento a um nomen1, uma estirpe2, uma linhagem 3.
Segundo a tradição helenística romana o nomen, entendido como uma designação dada a uma
comunidade formada à volta de um coletivo humano específico, era, de acordo com a
interpretação de Patrick Le Roux, o termo que melhor aproximava-se da noção de identidade4.
Porém acreditamos que antes da adoção de uma concepção identitária cívica e coletiva,
elemento básico para compreendermos a constituição de uma comunidade cívica pautada na
instituição da polis – ciuitas5, devemos analisar quais seriam as origens dos grupos familiares
aristocráticos a ela vinculados que tinham como representantes máximos os patres e
optimatibus6 que se apoiavam em tradições religiosas e nos costumes imputados aos
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Isid.,De Diff.,355:...Nomen est uocabulum propriae appellationis (...). Proinde nomen a proprietate uenit...
Isid.,Etym.,IX,5,13: Stirpis ex longa generis significatione vocatur...; Form.Visig.,XX,1: Insigni merito et Getice
de stirpe senatus...
Cic.,De Rep.,II,51:...quod quoniam nomen minus est adhuc tritum sermone nostro, saepiusque genus eius
hominis erit in reliqua nobis oratione...; Isid.,Etym.,I,7,2: Nomen vocatum,quia notat genus...; IX,4,4: Genus
aut a gignendo et progenerando dictum, aut a definitione certorum prognatorum (...) quae propriis
cognationibus terminatae gentes appellantur.
LE ROUX, P., “Identités civiques, identités provinciales dans l’Empire Romain”, in : Roma Generadora de
Identidades. La experiencia hispana (Coord. Antonio Caballos Rufino y Sabine Lefebvre). Madrid: Casa de
Velázquez/Universidad de Sevilla, 2011, p.9, “…C’est sans doute ce mot de nomen qui s’approcherait le
mieux de la notion d’identité. Le fait de pouvoir être nommé ou de nommer incluait l’individu ou la
collectivité dans une séquence ordonné à caractère politique et social...”.
De acordo com HORSTER, M., “Priestly hierarchies in cities of the Western Roman Empire?”, in: Del
Municipio a la Corte. La renovación de las elites romanas (Ed .Antonio F. Caballos Rufino). Sevilla:
Ediciones Universidad de Sevilla, 2012, p.290, “…A city’s civic identity, that the collective identity of its
citizen body, can be characterized, from the classical period right through to the imperial period, under
three aspects: firstly, the political aspect, that is, the citizenry as a political unit, with its institutions and
rituals; secondly, the religious aspect, i.e. the citizens as a community of shared worship and cult; and
thirdly, the communicative aspect, that is, their shared history and narratives. This third aspect is
manifested in stories, images and texts, in terminology and names, monuments and public spaces, in
music and cuisine, but above all in rituals and practices…”; para Isid.,Etym.,XV,2,1: Civitas est hominum
multitudo societatis vincula adunata, dicta a civibus, id est ab ipsis incolis urbis [pro eo quod plurimorum
consciscat et contineat vitas]. Nam urbs ipsa moenia sunt, civitas autem non saxa, sed habitatores vocantur.
Cic.,De Leg.,III,10: Omnes magistratus auspicium iudiciumque habento exque is senatus esto. Eius decreta
rata sunto. Ast potestas par maiorue prohibessit (...). Creatio magistratuum, iudicia populi, iussa uetita cum
suffragiis consciscentur, ea optimatibus nota, plebi libera sunto (…). Cum populo patribusque agendi ius
esto consuli, praetori, magistro populi equitumque, eique quem patres produnt consulum rogandorum
ergo...
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ancestrais7 que serviam como elementos constituidores e definidores ideológicos da noção de
gens8, fundamento do que denominamos como a identidade nobiliárquica9. Ou seja, parece-nos
certo pluralizar o conceito na medida em que referimo-nos a diversas formas de identidades,
embora, em termos discursivos, deparemo-nos com a singularização do mesmo tendo como
objetivo a proposta de unidade sociopolítica voltada ao fortalecimento institucional, seja do
imperium10, seja do regnum11. Consequentemente, devemos nos questionar sobre quais seriam
os elementos constituidores de uma determinada identidade no contexto que queremos
analisar, especialmente se aquela revelasse a existência de importantes grupos sociopolíticos,
dotados de prestígio e de poder, tanto nos ambientes urbanos como nos espaços rurais das
Antiguidades clássica, helenística e tardia.
Indubitavelmente que nosso primeiro olhar, em virtude da abordagem mais ampla que
podemos oferecer desde o ponto de vista da pesquisa histórica, deve ser projetado ao
ambiente institucional da polis – ciuitas forjadora, na perspectiva greco-romana, das
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Interessante a análise proposta por PERKINS, J., Roman Imperial Identities in the Early Christian era.
London – New York: Routledge, 2009, p.18, “...Cultural identities are produced through difference (…).
When amidst this array of choices, a group selects particular differences and stipulates that these are
fundamental for establishing identity, this selection must be recognized as part of the group’s will to
power, its strategy for acquiring and expanding its influence. In the early imperial period, a new cultural
identity was under construction emphasizing high status as a crucial determinant; it was to be a transempire community of the elite…”; de acordo com Isid.,Etym.,XV,2,2: Tres autem sunt societates:
familiarum, urbium, gentium.
Cic.,De Leg.,II,3 : Marcus: Quia si verum dicimus, haec est mea et huius fratris mei germana patria. Hic enim
orti stirpe antiquissima sumus, hic sacra, hic genus, hic maiorum multa vestigia. Quid plura? Hanc vides
villam, ut nunc quidem est, lautius aedificatam patris nostri studio, qui cum esset infirma valetudine, hic
fere aetatem egit in litteris...; II,30: Quod sequitur vero, non solum ad religionem pertinet sed etiam ad
civitatis statum, ut sine iis, qui sacris publice praesint, religioni privatae satis facere non possint. Continet
enim rem publicam, consilio et auctoritate optimatium semper populum indigere, discriptioque sacerdotum
nullum iustae religionis genus praetermittit...; II,55:...Iam tanta religio est sepulcrorum, ut extra sacra et
gentem inferri fas negent esse, idque apud maiores nostros A.Torquatus in gente Popillia iudicavit(...).
Totaque huius iuris conpositio pontificalis magnam religionem caerimoniamque declarat, neque necesse est
edisseri a nobis, quae finis funestae familiae, quod genus sacrificii Lari vervecibus fiat...
Sobre este conceito, vide FRIGHETTO, R., “Considerações sobre o conceito de gens e a sua relação com a
idéia de identidade nobiliárquica no pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII)”, in: Imago Temporis.
Medium Aevum, 6. Lerida: Universidad de Lerida, 2013, p.420-39.
Para tanto, vide MATHISEN, R.W., “Peregrini, Barbari and Cives Romani: concepts of citizenship and the
legal identity of barbarians in the Late Roman Empire”, in: The American Historical Review 111 – 4.
Illinois: The American Historical Association, 2006, p.1011-40; outro interessante estudo é o de
BANCALARI MOLINA, A., Orbe Romano e Imperio Global. La Romanización desde Augusto a Caracalla.
Santiago de Chile: Universidad de Santiago, 2007, pp.122 e ss.
De acordo com VELÁZQUEZ, I., “Pro Patriae Gentisqve Gothorvm statv (4th Council of Toledo, canon 75,
a.633)”, in: Regna and Gentes. The relationship between Late Antique and Early Medieval Peoples and
kingdoms in the transformation of the Roman World (Org. H.-W.Goetz, J.Jarnut & W.Pohl). Leiden – Boston:
Brill, 2003, p.174, “…But the fact that the expression used is Hispania (in the singular or the plural) at the
3rd Council of Toledo does not mean that gens Gothorum refers to all its inhabitants, that is, to the
Hispani, as well as the Gothi. It also seems clear that it is the gens Gothorum, or at least their nobility, who
have become the ruling class in Hispania. Although the constituent elements of power are not yet clearly
defined…”.
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identidades cívicas e locais12 que revelariam a concepção de um orgulho cívico visto como
autêntico fenômeno identitário13. De fato, utilizando como metáfora a própria ciuitas de
Roma, Cicero revelou-nos tanto na sua Republica como em outros tratados, como no De
Legibus, que a comunidade cívica romana representava o sistema político perfeito, ideal 14,
sendo, por esse motivo, merecedora de ter alcançado a hegemonia em todo o mundo
mediterrânico15. Tratava-se de um pensamento político que se manteve ideologicamente forte
por longo tempo, estando ainda presente naquele mundo greco-romano marcado pelas
transformações que caracterizaram a Antiguidade Tardia16. De fato, observamos que nos
primórdios do século VIII, no momento em que o regnum gothorum desmoronava política e
institucionalmente diante da onda berbere e islâmica e frente aos seus múltiplos problemas
de ordem política interna17, a sobrevivência daquele orgulho cívico de origem romana que
exaltava a existência de um senatus na mui patrícia ciuitas de Córdoba, derrotada e submetida
aos novos senhores muçulmanos18 permanecia vívido no discurso do anônimo autor
moçárabe da Crônica de 754.
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Segundo PINA POLO, F., “Etnia, ciudad y provincia en la Hispania republicana”, in: Roma Generadora de
Identidades…, p.51, “…Roma fomentó la ciudad como elemento autoidentificatorio de los indígenas como
individuos. La ciudad constituía evidentemente un elemento consustancial a la civilización romana, y
como tal Roma se esforzó tanto en fundar ciudades a través de sus representantes, de estatuto jurídico
privilegiado o no, como en incentivar la creación de ciudades indígenas con organización y urbanismo
romanos por parte de los mismos indígenas. Al mismo tiempo, allí donde fue posible, la ciudad fue
promocionada por Romo como referencia en el mundo indígena…”.
Cic.,De Rep.,VI,12 :...circuitu naturali summam tibi fatalem confecerint, in te unum atque in tuum nomen se
tota convertet civitas; te senatus, te omnes boni, te socii, te Latini intuebuntur; tu eris unus, in quo nitatur
civitatis salus...; Sid.,Ep.,I,5,2(ad Herenio): Egresso mihi Rhodanusiae nostrae moenibus publicus cursus usui
fuit utpote sacris apicibus accito, et quidem domicilia sodalium propinquorumque…
Cic.,De Leg.,III,28:... Nam ita se res habet, ut si senatus dominus sit publici consilii, quodque is creverit
defendant omnes, et si ordines reliqui principis ordinis consilio rem publicam gubernari velint, possit ex
temperatione iuris, cum potestas in populo, auctoritas in senatu sit, teneri ille moderatus et concors
civitatis status, praesertim si proximae legi parebitur... ; Cic.,De Re Pub.,II,56 : Genuit igitur hoc in statu
senatus rem publicam temporibus illis, ut in populo libero pauca per populum, pleraque senatus auctoritate
et instituto ac more gererentur, atque uti consules potestatem haberent tempore dumtaxat annuam, genere
ipso ac iure regiam, quodque erat ad obtinendam potentiam nobilium vel maximum, vehementer id
retinebatur, populi comitia ne essent rata nisi ea patrum adprobavisset auctoritas...
Para tanto, cf. o clássico estudo de MOMIGLIANO, A., “Políbio e Possidônio”, in: Os limites da helenização.
A interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Zahar, 1990,
pp.32-4; ver também GASCÓ LA CALLE, F., “La teoría de los cuatro imperios. Reiteración y adaptación
ideológica. I Roma y griegos”, in: Habis 12. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1981, p.179-96; e GABBA, E.,
“Aspectos culturales del imperialismo romano”, in: Sociedad y política en la Roma Republicana (siglos III-I
a.C.). Pisa: Pacini Editore, 2000, p.209-34.
Sobre este período histórico, FRIGHETTO, R., A Antiguidade Tardia. Roma e as monarquias romanobárbaras numa época de transformações (séculos II – VIII). Curitiba: Juruá Editora, 2012, pp.19-33; idéia
que pode ser observada, por exemplo, em Isid.,H.G., De Laude Spaniae.:...Iure itaque te iam pridem aurea
Roma caput gentium concupiuit et licet te sibimet eadem Romulea uirtus primum uictrix desponderit...
Para tanto, vide FRIGHETTO, R., “In eandem infelicem Spaniam, regnum efferum conlocant: las
motivaciones de la fragmentación política del reino hispanovisigodo de Toledo (siglo VIII)”, in: Temas
Medievales 19. Buenos Aires: Conicet/Saemed, 2012, p.137-64.
Chron.Moz.,a.754,52:...Rudericus tumultuose regnum ortante senatu inuadit...; 54:...Adque in eandem
infelicem Spaniam Cordoba in sede dudum Patricia, que semper extitit pre ceteras adiacentes ciuitates
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Porém, além dessa valorização do ambiente da ciuitas helenística e tardia como signo
formador de uma identidade coletiva19 é certo, também, verificarmos que em um âmbito mais
restrito ao mundo rural, por exemplo, no espaço das uillas20, encontraríamos igualmente
aquela pátria natural, revelada pelo pensamento ciceroniano, e entendida como uma segunda
identidade, particular, mais antiga e apoiada em vínculos ancestrais e aristocráticos21. Ou seja,
seguindo a lógica discursiva característica das fontes helenísticas e tardo-antigas, teríamos
duas possíveis identidades as quais o indivíduo poderia filiar-se, uma relacionada com aquela
pátria cívica apresentada nos escritos do rhetor romano tardio Decimo Magno Ausonio22 e que
na perspectiva do bispo hispanovisigodo Isidoro de Sevilha poderia ser denominada como a
pátria comum23, outra vinculada à noção do que definiremos como a pátria familiar24 que, em
nossa opinião, estava totalmente associada à idéia de pertencimento a pátria natural.
Segundo o pensamento isidoriano, a noção de pertença a uma pátria comum vinculavase diretamente com o local de nascimento de um indivíduo ou até mesmo de um grupo
revelando, dessa forma, a sua origem, a sua natio25. Essa argumentação foi utilizada nos
escritos isidorianos para explicar a associação entre os godos e a Spania26 formulada a partir
da hegemonia político-militar iniciada sobre a antiga Hispania romana no reinado de
Leovigildo (569 – 586)27 e que a transformou na pátria comum dos godos28. Por esse motivo,
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opulentissima...; ver também GARCIA MORENO, L. A., “Nobleza goda bajo el Islam: el ocaso de una elite”,
in: Del Municipio a la Corte. La renovación de las elites romanas…, p.336 e ss.
Isid.,Etym.,XV,2,1: Civitas est hominum multitudo societatis vinculo adunata, dicta a civibus...; 8: Civitas
proprie dicitur, quam non advenae, sed eodem innati solo condiderunt...
Isid.,Etym.,XV,13,2: Villa a vallo, id est aggere terrae, nuncupata, quod pro limite constitui solet.
Cic.,De Leg.,II,5:...Ego mehercule et illi et omnibus municipibus duas esse censeo patrias, unam naturae,
alteram civitatis...
Aus.,Mos.:...Ausonius nomen Latium, patriaque domoque Gallorum extremos inter celsamque Pyrenen,
Temperat ingenuos qua laeta Aquitanica mores...; Aus.,Ord.Urb.Nob.,XX:...Hic labor extremus celebres
collegerit urbes. Unque caput numeri Roma ínclita, sic capite isto Burdigala ancipiti confirmet vertice
sedem. Haec patria est, patrias sed Roma supervenit omnes...
Isid.,Etym.,XIV,5,19:...Patria autem vocata quod communis sit omnium, qui in ea nati sunt.
Isid.,Etym.,IX,4,3: Domus unius familiae habitaculum est, sicut urbs unius populi, sicut orbis domicilium
totius generis humani. Est autem domus genus, familia, sive coniunctio viri et uxoris...
Isid.,Etym.,IX,2,1:...sicut natio a nascendo; Isid.,De Uir.Ill.,31: Iohannes, Gerundensis ecclesiae episcopus (...)
prouinciae Lusitaniae Scallabi natus...
Isid.,H.G.,De Laude Spaniae: Omnium terrarum, quaeque sunt ab occiduo usque ad Indos, pulcherrima es, o
sacra semperque felix principum gentiumque mater Spania: iure tu nunc omnium regnina prouinciarum
(...) tu decus atque ornamentum orbis, inlustrior portio terrae, in qua gaudet multum ac largiter floret
Geticae gentis gloriosa fecunditas (...) denuo tamen Gothorum florentissima gens post multiplices in orbe
uictorias certatim rapit et amauit, fruiturque hactenus inter regias infulas et opes largas imperii felicitate
securas.
Ioan.Bicl.,Chron.,a.569,4:...Liuuigildus germanus Liuuani regis superstite fratre, in regnum citerioris
Hispaniae constituitur...; Isid.,HG,48:...Liuua Narbonae Gothis praefitur regnans annis tribus. Qui secundo
anno postquam adeptus est principatum, Leuuigildum fratrem non solum successorem, sed et participem
regni sibi constituit Spaniaeque adminstrationi praefecit, ipse Galliae regno contentus…
Isid.,HG,49:...Leuuigildus adepto Spaniae et Galliae principatu ampliare regnum bello et augere opes statuit
(...) Spania magna ex parte potitus, nam antea gens Gothorum angustis finibus artabatur...; Conc. IV
Tol.,a.633,c.75:...Quiquumque igitur a nobis vel totius Spaniae populis qualibet coniuratione vel studio
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na História dos Godos escrita por Isidoro de Sevilha, a Hispania/Spania surge como patria e
natio gothorum, pois de acordo com a lógica isidoriana as terras hispanas foram o local de
nascimento de uma nova natio gothorum, surgida quase 70 anos depois da perda da Aquitania
como solar da antiga natio gothorum 29.
Contudo, apesar do tom unitário e aglutinador apresentado pelo hispalense na História
dos Godos no que se refere à elaboração da idéia de uma natio gothorum uníssona e coesa30,
encontramos reminiscências do pensamento político romano helenístico e tardio que
assentava a natio individual em pátrias provinciais e citadinas31. O próprio Isidoro de Sevilha
oferece-nos um exemplo dessa permanência ao informar-nos sobre o local de nascimento do
seu irmão mais velho, Leandro, oriundo da província Cartaginense32, revelando-nos assim a
idéia de uma natio provincial33. A mesma forma de pensamento é encontrada na autobiografia
de Valério do Bierzo quando este indica-nos a província Asturicense como o local da sua natio
provincial34. Podemos dizer que em ambos os casos a natio provincial ganhava uma conotação
de pátria cívica na medida em que nos dois exemplos legados pelo hispalense e pelo
bergidense a denominação provincial estava diretamente relacionada ao âmbito
administrativo das ciuitates de Cartago Noua e Asturica Augusta35.
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sacramentum fidei suae, quod patriae gentisque Gothorum statu vel observatione regiae salutis pollicitus
est...; Conc.VII Tol.,a.646,c.1:...sive etiam quod gentem Gothorum vel patriam aut regem...; Conc.VIII
Tol,a.653,Tomus:...in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta fuisset...; c.2:...Ceterum
quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt
exacta vel deinceps extiterint exigenda...; Conc.XVI Tol.,a.693,Tomus:...quicumque amodo ex palatinis
cuiuslibet sit ordinis vel honoris persona in necem regiam vel excidium gentis ac patriae Gothorum...;
Conc.XVII Tol.,a.694,Tomus:...quia satis longum est ea quae regni nostri utilitatibus seu genti et patriae
nostrae necessaria...
Isid.,HG,36:...Eurico mortuo Alaricus filius eius apud Tolosensem urbem princeps Gothorum efficitur (...)
tandem prouocatus a Francis in regiones Pictauensis urbis proelio initio extinguitur eoque interfecto
regnum Tolosanum occupantibus Francis destruitur.
Para tanto, vide FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda, segundo o
pensamento de Isidoro de Sevilha (século VII)”, in: Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico (Coord.
Fátima Regina Fernandes). Curitiba: Juruá Editora, 2013, pp.105-16.
Por exemplo, Plin.,HN,III,18: Citerioris Hispaniae sicut conplurium provinciarum aliquantum vetus formas
mutata est, utpote cum Pompeius Magnus tropaeis suis, quae statuebat in Pyrenaeo, DCCCLXVI oppida ab
Alpibus ad fines Hispaniae ulterioris in dicionem ab se redacta testatus sit. nunc universa provincia
dividitur in conventus VII, Carthaginiensem, Tarraconensem, Caesaraugustanum, Cluniensem, Asturum,
Lucensem, Bracarum. accedunt insulae, quarum mentione seposita civitates provincia ipsa praeter
contributas aliis CCXCIII continet...;
Isid.,De Uir.Ill.,28: Leander (...) Carthaginensis prouincia Hispaniae...
Sobre este conceito, vide HAINZMANN, M., “Provinz-Identität und ‘nationale’-Identität”, in: : Roma
Generadora de Identidades..., p.321-36.
Val.,Ord.Querm.,1: Dum olim ego (...) Asturiensis prouinciae indigena...
Para FATÁS CABEZA, G. et alii, Tabula Imperii Romani. Hoja k-30 Madrid. Caesaraugusta – Clunia. Madrid:
CSIC, 1993, p.104-5, “...Conventus Asturum (...). División administrativa creada por Augusto en la
organización del territorio que sigue a la conquista, con capital en Asturica Augusta. Comprende la
totalidad de los pueblos astures (…). Conventus Carthaginensis (…). División administrativa de la
provincia Citerior con capital en Cartago Noua…”.
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Mas, para além desta denominação da natio por meio da pátria cívica, podemos
encontrar referências vinculadas à ideia de pertencimento a uma pátria natural, onde o local
de nascimento/origem do indivíduo aparece indicado de forma mais específica e pontual
coligando-o com importantes elementos aristocráticos e ancestrais locais. Este seria o caso
descrito na epistola encaminhada por Valério do Bierzo a Donadeo e na qual o bergidense
afirma que na sua terra natal foi fundado o cenóbio de Compludo36, relacionando-o
diretamente ao grupo aristocrático do fundador daquele cenóbio, Fructuoso de Braga37.
Ora, a relação estabelecida entre a patria natural, entendida no âmbito do universo da
propriedade rural e vinculada a um patrimônio familiar e ancestral 38, com as famílias
aristocráticas portadoras de uma origem honrosa e detentoras de um prestígio sóciopolítico
local e regional, leva-nos a uma terceira concepção identitária, apresentada pelo hispalense e
amparada na família/nomen, na linhagem e na estirpe. Estes três elementos combinados e
amparados em um discurso preservado pela memória39 e mantido de geração em geração 40,
constituíam a base que sustentava a construção ideológica de uma gens. De fato, o
pensamento expressado nos escritos isidorianos realçava que a gens se caracterizava pela
ancestralidade das famílias41 onde o acento aristocrático recaía sobre o genus, a linhagem, que
cada família nobilitada portava a gerações 42 e que se consubstanciava por meio das relações
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Val.,Ad Don.,1:...Dum olim adhuc adulescentulus a terra natiuitatis meae, flama desiderii ac sacre religionis
accensus, ad hisdem quietis loca festinans fuissem egressus, contigit, ut in quadam magne dispositionis
eclesiam. In qua erat plerumque congregatio fratrum...; Val.,Ord.Querm.,1:...subito gratiae diuinae desiderio
coactus pro adipiscenda sacrae religionis crepundia toto nisu mundiuagi saeculi fretum aggrediens, uelut
nauigio uectans, ad Complutensis coenobii litus properans...
VF,3:...Nam construens cenobium Conplutensem iuxta diuina praecepta nichil sibi reseruans...; Cf. Anexo I.
Isid.,Etym.,XV,13,4: Fundus dictus quod eo fundatur vel stabiliatur patrimonium...
Como indica INNES, M., “Introduction: using the past, interpreting the present, influencing the future”, in:
The uses of the past in the Early Middle Ages (Ed. Y. Hen & M. Innes). Cambridge: Cambridge University
Press, 2004, p.6-7, “…Although the buzzword, memory, rests on an analogy between the ways in which
societies construct their pasts and individual human remembrance, the study of social of collective
memory is really the study of the common cultural pool which informed a vision of the collective past,
explaining how and why present society came into being. For notions of memory to be meaningful, they
must be specific: collective memory is by its very nature multivalent, with different memories being
accessed by different groups in different situations…”.
Isid.,Etym.,XI,1,12: Mens autem vocata, quod emineat in anima, vel quod meminit...; 13: Nam et memoria
mens est, unde et inmemores amentes. Dum ergo vivificat corpus, anima est; dum vult, animus est: dum scit,
mens est: dum recolit, memoria est...; sobre esta questão, vide FRIGHETTO, R.,“Memoriae conseruandae
causa facit. A Memória e a História como veículos da construção das identidades no reino hispanovisigodo de Toledo (finais do século VI – primórdios do século VII)”, in: De Rebus Antiquis 2. Buenos
Aires: Universidad Catolica Argentina, 2012,p.1-18.
Isid.,Etym.,IX,2,1:...Gens autem apellata propter generationes familiarum, id est a gignendo...; Isid.,De
Diff.,332:...Gentes autem familiae, ut Iuliae, Claudiae...
Isid.,Etym.,IX,4,4: Genus aut a gignendo et progenerando dictum, aut a definitione certorum prognatorum
(...) quae propriis cognationibus terminatae gentes appellantur; Isid.,Etym.,X,184: Nobilis, non vilis, cuius et
nomen et genus scitur...
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de parentesco 43 e da partilha de costumes, de ritos comuns e de uma formação própria,
pautada nos princípios helenísticos da Paideia – Humanitas44 mas já transformados pela
influência do cristianismo45, dos segmentos sociais superiores, aspectos que tornavam as
gentes grupos aristocráticos – nobiliárquicos coesos desde a perspectiva sociocultural46.
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46
Isid.,Etym.,IX,6,28: Stemmata dicuntur ramusculi, quos advocati faciunt in genere, cum gradus
cognationum partiuntur...
Aul.Gel.,Noc.Att.,XIII,17,1: Qui verba Latina fecerunt quique his probe usi sunt, "humanitatem" non id esse
voluerunt, quod volgus existimat quodque a Graecis philanthropia dicitur et significat dexteritatem
quandam benivolentiamque erga omnis homines promiscam, sed "humanitatem" appellaverunt id
propemodum, quod Graeci paideian vocant, nos eruditionem institutionemque in bonas artis dicimus. Quas
qui sinceriter cupiunt adpetuntque, hi sunt vel maxime humanissimi. Huius enim scientiae cura et disciplina
ex universis animantibus uni homini datast idcircoque "humanitas" appellata est.
Como indica TORRES PRIETO, J. Mª, Ars persuadendi: Estrategias retóricas en la polémica entre paganos y
Cristianos al final de la Antigüedad. Santander: Ediciones Universidad de Cantabria, 2013, p.13-4, “…La
comunidad científica acepta de forma unánime la idea de que todos los escritos cristianos, con
independencia del género al que pertenezcan, presentan afinidades con las formas literarias paganas.
Según eso, sus autores serían grandes deudores de la cultura clásica pues, a pesar de que la mayoría
manifiestan explícitamente su rechazo al helenismo en todas las facetas, e insisten en la originalidad del
cristianismo, en realidad utilizan todos los géneros literarios legados por la tradición (…). Los escritores
cristianos cultivaron los diferentes géneros literarios, tanto los de tradición pagana como los de nueva
creación (…). Además, gracias a su excelente formación retórica, compusieron obras de gran calidad
literaria, que resultaron enormemente convincentes. En efecto, la mayoría de los autores cristianos de
los primeros siglos recibieron una esmerada educación y concluyeron el ciclo formativo en las más
prestigiosas escuelas de retórica de la época…”; segundo PRICOCO, S., “Il Vivario di Cassiodoro”, in:
Monaci, Filosofi e Santi. Saggi di Storia della cultura tardoantica. Messina: Rubbettino Editore, 1992,
p.192-3, “...L’interesse di Cassiodoro per la cultura cristiana fu costante, anche nel periodo anteriore alla
c.d. conversione (...). Nella ratio studiorum che egli trácia nelle Institutiones la cultura cristiana è non solo
fondamento del sapere, ma il sapere stesso; ai suoi disertissimi collaboratori egli commissiona solo scriti
cristiani...”; ver também CAMERON, A., “On defining the Holy Man”, in: The cult of saints in Late Antiquity
and the Early Middle Ages (Ed. J. Howard-Johnston & P. A. Hayward). Oxford: Oxford University Press,
1999, pp.30-1; exemplos dessa humanitas cristianizada podem ser observados em Isid.,Etym.,II,16,1-2:
Iam vero in elocutionibus illud uti oportebit, ut res, locus, tempus, persona audientis efflagitat, ne profana
religiosis, ne inverecunda castis, ne levia gravibus, ne lasciva seriis, ne ridícula tristibus misceantur. Latine
autem et perspicue loquendum. Latine autem loquitur, qui verba rerum vera et naturalia persequitur, nec a
sermone atque cultu praesentis temporis discrepat…; Isid.,De Eccl.Off.,II,5,17: Huius autem sermo debet esse
purus simplex et apertus, plenus grauitatis et honestatis, plenus suauitatis et gratiae, tractans de mysterio
legis, de doctrina fidei, de uirtute continentiae, de disciplina iustitiae, unumquemque diuersa ammonens
exortatione iuxta professionis morumque qualitatem, uidelicet ut praenoscat quid cui quando uel quomodo
proferat. Cuius prae ceteris speciale officium est sripturas legere, percurrere canones, exempla sanctorum
imitare...
Para PERKINS, J., Roman Imperial Identities..., p.22-3, “...The new classicizing Paideia contributed to
forming precisely the ‘imperial’ subject and the group identity that Rome would utilize for managing its
eastern empire. Rome was an innately hierarchical society. Legal distinctions of status based on
property qualifications secured its political system, and social conventions, including distinctive clothing
and specified seating on public occasions, routinized and reinforced status differences in Romans daily
lives…”, p.25, “…The elite proclaimed their superiority through their Paideia and their civic
beneficiations…” e p.27, “…The emphasis on education and culture, on Paideia and Humanitas, that
inscribed the cultural identities of both elite Romans and Greeks, contributed to the formation of a transempire alliance, a cosmopolitan elite identity that incorporated the leading people across the empire…”;
e HUMFRESS, C., Orthodoxy and the courts in Late Antiquity. Oxford: Oxford University Press, 2007, p.108,
“…A formal training in rhetoric had a wider cultural function in both classical and post-classical
antiquity; put simply, it shaped and reproduced an ethos for the literate elite. We should not solely think
in terms of a shared high-level Paideia of an Ambrose, an Ausonius, or a Symmachus here (…). Rhetoric
could function as a means of social control partly…”; como aponta DI SALVIO, L., “Élites dirigenti in
trasformazione. La testimonianza di Libanio”, in: in: Le Trasformazioni delle Élites in età tardoantica
(Cura di Rita Lizzi Testa). Roma: L’Erma di Bretscheneider, 2006, p.141-2, “...La classe che attira di più la
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Conduzidas pelos mais destacados personagens das cenas política, econômica, social e
cultural do reino hispanovisigodo, denominados nas fontes como os próceres47, os maiores 48,
os primates49, os potentes50 ou os ilustres51, líderes das famílias aristocráticas
hispanovisigodas que se converteram ao catolicismo no III Concílio de Toledo de 589 52 e nas
quais encontraríamos também integrantes do ambiente eclesiástico, as Gothicae Gentes eram a
base de sustentação política do regnum gothorum e responsáveis pela escolha, eleição e
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sua attenzione è quella, che può considerarsi unitaria, formando l’élite, costituita dai buleuti cittadini e
dal funzionariato statale. Dunque gli honorati, funzionari in attività o in pensione e i potentiores cittadini,
forti delle cariche ricoperte o del possesso delle terre, possono considerarsi come costituendi un’unica
classe, quella que ho chiamato ‘dirigente’...”; também o interessantíssimo trabalho de BROWN, P.
“Devotio: Autocracy and Elites”, in: Power and persuasion in Late Antiquity – Towards a Christian Empire.
Madison: The University of Wisconsin Press, 1988, p.30, “…Far from being rendered unnecessary by the
autocratic structure of the late Roman government, rhetoric positively throve in its many interstices. (…)
It presented educated contemporaries with the potent image of a political world held together, not by
force, collusion, and favoritism, but by logoi, by the sure-working of Greek words. Emperors and
governors gave way, not because they were frequently unsure of themselves, ill-informed, or easily
corrupted, rather, they had been moved by the sheer grace and wisdom of carefully composed speeches.
Governors did not seek allies or respect vested interests out of fear of isolation or from collusion with the
rich. They did so because their own high culture enabled them to see, in the local notables, men of
paideia, their 'natural' friends and soul mates…”; um estudo interessante sobre as atividades de um
rethor na Antiguidade Tardia VENTURA, G., “Os apuros de um professor: Libânio e o cotidiano escolar
em Antioquia”, in: Revista Diálogos Mediterrânicos, 3. Curitiba: Núcleo de Estudos Mediterrânicos, 2012,
p.91-117.
Isid.,Etym.,IX,4,17: Proceres sunt principes civitatis, quasi procedes, quod ante omnes honore praecedant...;
Conc.VIII Tol.,a.653,Item ex uiris inlustribus oficii palatini:...Babilo comes et procer; Astaldus comes et
procer; (...) Euredus comes et procer (...); Froila comes et procer...; Conc.XIII Tol.,a.683,Item de uiris
inlustribus officii palatini:...Trasimirus procer similiter; (...) Recaulfus procer similiter...
Isid.,Etym.,X,171:Maximus, aut meritis, aut aetate, aut honore, aut facundia, aut virtute, aut omnibus magis
eximius. Maior...; Conc.III Tol.,a.589,Tomus:...Praecipiente autem universo venerabili concilio atque iubente,
unus episcoporum catholicorum ad episcopos et religiosos vel maiores natu (...).Tunc episcopi omnes uma
cum clericis suis primoresque gentis Gothicae...; Conc.VIII Tol.,a.653,Tomus:...maioribusque personis...;
L.V.,II,4,6 (Cintasvintus Rex):...si maioris persona est...; L.V.,IX,2,9 (Ervigius rex):...si maioris loci persona
fuerit, id est dux, comes seu etiam gardingus...
Fred.,Chron.,73: Eo anno quid partibus Spaniae, vel eorum regibus contigerit, non praetermittam (...) cum
esset Sintela nimium in suis iniquus, et cum omnibus regni sui primatibus odium incurreret...; 82 :...Tandem
unus ex primatibus, nomine Chintasindus (...). Fertur de primatibus Gotthorum hoc vitio reprimendo
ducentos fuisse interfectos...; Conc.VI Tol.,a.638,c.13:...Qui primatuum dignitate atque reverentiae vel gratia
ob meritum in palatio honorabiles...; L.V.,IX,2,9 (Ervigius rex):...et quidem si de primatibus palatii fuerit...
Isid.,Etym.,X,208: Potens, rebus late patens: unde et potestas, quod pateat illi quaqua velit, et nemo
intercludat, nullus obsistere valeat. Praeopimus, prae ceteris opibus copiosus.
Isid.,Etym.,IX,4,12: Primi ordines senatorum dicuntur inlustres...; Conc.II Hisp.,a.619,c.1:...cum inlustribus
viris Sisisclo rectore rerum publicarum atque Suanilane rectore rerum fisculium...; Conc.VIII
Tol.,a.653,Tomus:...Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo interesse mos
primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium rectores exegit,
quos in regimine socios, in adversitate fidos et in prosperis amplecturos strenuos...; Conc.X Tol.,a.656,Item
aliud decretum:...per inlustrem virum Ubanbanen testamentum gloriosae memoriae sancti Martini
ecclesiae Bracarensis episcopi, qui et Dumiense monasterium visus est construxisse...; Conc.XII
Tol.,a.681,Tomus:...et vos illustres aulae regiae viros...
Conc.III Tol.,a.589,Tomus:...Praecipiente autem universo venerabili concilio atque iubente, unus
episcoporum catholicorum ad epíscopos et religiosos vel maiores natu ex haerese Arriana conversos (...).
Tunc episcopi omnes uma cum clericis suis primoresque gentis Gothicae (...). Similiter et omnes seniores
Gothorum subscribserunt. Post confessionem igitur subscribtionem omnium episcoporum et totius gentis
Gothicae seniorum...
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aclamação do rex gothorum53 e, ao lado deste, pela defesa da patria e do populus gothorum 54.
Tais ações, apoiadas por princípios políticos e morais defensores da idéia de unidade do reino
hispanovisigodo de Toledo, entendido como um corpo perfeito voltado à defesa da catholicam
fidem55, serviram, em vários casos, como autêntico leitmotiv que culminou com a mudança
abrupta e violenta da figura régia e dos grupos políticos a ela vinculados, demonstrando uma
grande volatilidade política entre as Gothicae Gentes que acabou enfraquecendo a própria
instituição régia hispanovisigoda ao longo da sétima centúria 56. Um destes movimentos, o da
rebelião liderada pelo prócer e Dux, Sisenando57 contra o legítimo soberano Suinthila58
ocorrida entre os anos de 631 e 633 e que redundou na deposição deste e na assunção ao
trono régio do líder rebelde, atos validados no IV Concílio de Toledo de 633 59,
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Conc. IV Tol.,a.633,c.75:...sed defuncto in pace principe primatus totius gentis cum sacerdotibus successorem
regni concilio conmuni constituant, ut dum unitatis concordia a nobis retinetur...; Conc.VIII
Tol.,a.653,c.10:...Abhinc ergo deinceps ita erunt in regni gloriam perficiendi rectores, ut aut in urbe regia
aut in loco ubi princeps decesserit cum pontificum maiorumque palatii omnimodo eligantur adsensu...
Form.Visg.,IX,39-42:...Obtestamur etiam eos quibus post foelicissimis temporibus nostris regnum dabitur
per aeterni regis imperium, sic Deus Gotorum gentem et regnum usque in finem seculi conseruare
dignetur...; Conc.VII Tol.,a.646,c.1:...sive etiam quod gentem Gothorum vel patriam aut regem...; Conc.VIII
Tol,a.653,Tomus:...in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta fuisset...; c.2:...Ceterum
quaequumque iuramenta pro regiae potestatis salute vel contutatione gentis et patriae vel hactenus sunt
exacta vel deinceps extiterint exigenda...; Conc.XVI Tol.,a.693,Tomus:...quicumque amodo ex palatinis
cuiuslibet sit ordinis vel honoris persona in necem regiam vel excidium gentis ac patriae Gothorum...;
Conc.XVII Tol.,a.694,Tomus:...quia satis longum est ea quae regni nostri utilitatibus seu genti et patriae
nostrae necessaria...
Isid.,HG,52:...Recaredus regno est coronatus, cultu praeditus religionis (...) hic fide pius et pace preaclarus
(...) hic gloriosius eandem gentem fidei trophaeo sublimans. In ipsis enim regni sui exordiis catholicam
fidem adeptus totius Gothicae gentis populos...; Conc.III Tol.,a.589,Homelia Leand.:...Qui ut notesceret quae
uentura essent genti uel populo, quae ab unius ecclesiae communione recidissent, secutus est: “Gens enim et
regnum quod non seruierit tibi peribit”. Alio denique loco similiter ait: “Ecce gentem quam nesciebas,
uocabis, et gentes quae non cognouerunt te ad te current”. Unum enim est Christus Dominus, cuius est uma
per totum mundum ecclesia sancta possessio. Ille igitur caput, et ista corpus...; Isid.,Sent.,III,51,4: Principes
saeculi nonnunquam intra Ecclesiam potestatis adeptae culmina tenente, ut per eamdem potestatem
disciplinam ecclesiasticam muniant...; L.V.,XII,2,14(Flavius Sisebutus Rex):...Universis populis ad regni
nostri, provincias pertinentibus salutifera remedia nobis gentique nostre conquirimus, cum fidei nostrae
coniunctos de infidorum manibus clementer eripimus. In hoc enim ortodoxa gloriatur fidei regula, cum
nullam in christianis habuerit potestatem Ebreorum execranda perfidia...
Para tanto, vide FRIGHETTO, R, “As limitações do poder régio no reino hispano-visigodo de Toledo
(séculos VI – VII)”, in: Cuestiones de Historia Medieval (Dir.Gerardo Rodríguez). Buenos Aires:
Universidad Catolica Argentina, 2011, v.1, pp.245-52.
Sobre este acontecimento e seus personagens, vide FRIGHETTO, R., “A Hispania visigoda (séculos VI –
VII) e a Antiguidade Tardia: algumas considerações”, in: Territórios e Fronteiras 6. Cuiabá: Programa de
Pós-Graduação em História da UFMT, 2013, pp. 90-2; Cron.Moz.,a.754,17:...Sisenandus in aera DCLXVIIII
(...), per tirannidem regno Gothorum inuaso...
Isid.,HG,62: Aera DCLVIIII (...) gloriosissimus Suinthila gratia diuina regni suscepit sceptra...; 64: Praeter
has militaris gloriae laudes plurima in eo regiae maiestatis uirtutes: fides, prudentia, industria, in iudiciis
examinatio strenua, in regendo cura praecipua, circa omnes munificentia, largus erga indigentes et inopes
misericordia satis promptus, ita ut non solum princeps populorum, sed etiam pater pauperum uocari sit
dignus; Cron.Moz.,a.754,16:...Suintila in era DCLVIII (...), digne gubernacula in regno Gothorum suscepit
regna...
Uma análise recente da questão foi feita por DIAZ MARTINEZ, P.C., “La dinámica del poder y la defensa
del territorio: para una comprensión del fin del reino visigodo de Toledo”, in: De Mahoma a Carlomagno.
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indubitavelmente deve ser enquadrado nesse perfil. O principal argumento para que tal ação
usurpatória tenha sido validada pelo coletivo dos integrantes das gentes hispanovisigodas
presentes na reunião conciliar, tanto seus representantes laicos como os eclesiásticos, estava
centrado na acusação de que o deposto soberano, Suinthila, juntamente com sua mulher e
filhos, havia atuado de forma iníqua contra o conjunto do populus gothorum60, provocando o
ódio das gentes e a cisão interna61. A condenação política imputada pela assembleia conciliar
recaiu, de forma paritária, sobre o conjunto dos integrantes da gens liderada por Suinthila
com especial destaque ao irmão do soberano deposto, Geila, acusado pelos mesmos crimes e
também, apontado no cânone conciliar com destacado agravante, de agir de maneira infiel
contra seu irmão e de negar a sua fidelidade ao novo e legitimo soberano, Sisenando62. Por
certo que o tema da fidelidade devida ao soberano pelos integrantes das gentes ganhou
enorme projeção naquele contexto conturbado, na medida em que promessa de fidelidade
jurada e sagrada feita por integrantes das gentes63, ao menos do ponto de vista teórico,
reforçaria a legitimidade de um soberano que havia alcançado o poder pela via da
confrontação abrindo, com isso, a possibilidade de novas atitudes similares no futuro 64.
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Los primeros tempos (siglos VII – IX) – XXXIX Semana de Estudios Medievales de Estella. Estella: Gobierno
de Navarra, 2013, pp.180-2.
Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...De Suintilane vero qui scelera propria metuens se ipsum regno privavit et
potestatis fascibus exuit id quum gentis consultu decrevimus: Ut neque eumdem vel uxorem eius propter
mala quae conmisserunt neque filios eorum unitati nostrae unquam consociemos, nec eos ad honores a
quibus ob iniquitatem deiecti sunt aliquando provemus...; Isid.,Sent.,III,48,6: Qui intra saeculum bene
temporaliter imperat, sine fine in perpetuum regnat; et de gloria saeculi huius ad aeternam transmeat
gloriam...; 48,7:...Recte enim illi reges uocatur, qui tam semetipsos, quam subiectos, bene regendo
modificare nouerunt; 49,3: Dedit Deus principibus praesulatum pro regimine populorum, illis eos praesse
uoluit, cum quibus uma est eis nascendi moriendique conditio...; interpretação que também é oferecida por
Taius, Sent.,V,9:…Hanc ergo primam ruinam principes timeant, qui privatam gloriam semetipsos diligere
non formidant…
Vide notas 49 e 60.
Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...Nam aliter et Geilanem memorati Suintilani et sanguine et scelere fratrem, qui nec
in germanitatis foedere stabilis extitit nec fidem gloriosíssimo domno nostro pollicitam conservavit, hunc
igitur cum coniuge sua, sicut antefatos, a societate gentis atque consortio nostro placuit separari...
Form.Visg.,XXXIX: Conditiones sacramentorum (...): ‘Iuramus primum per Deum patrem omnipotentem et
Ihesum Xpm filium eius Sanctumque Spiritum, qui est una et consubstantialis magestas; iuramus per sedes
et benedictiones Domini (...); iuramus per sanctam communione, quae periuranti in damnatione maneat
perpetua, quia nos iuste iurare et nihil falsum dicere (...). Quod si in falsum tantam diuinitatis magestatem
ac deitatem taxare aut inuocare ausi fuerimus, maledicti efficiamur in aerternum...; a definição oferecida
por Isidoro de Sevilha é esclarecedora, Isid.,Etym.,V,24,29: Conditiones proprie testium sunt, et dictae
condiciones a condicendo, quasi condiciones, quia non ibi testis unus iurat, sed duo vel plures...;
Isid.,Etym,V,24,31: Sacramentum est pignus sponsionis; vocatum autem sacramentum, quia violare quod
quisque promittit perfidiae est.
Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...Quiquumque igitur a nobis vel totius Spaniae populis qualibet coniuratione vel
studio sacramentum fidei suae, quod patriae gentisque Gothorum statu vel observatione regiae salutis
pollicitus est, temtaverit aut regem nece adtrectaverit aut potestatem regni exuerit aut praesumptione
tyrannica regni fastigium usurpaverit, anathema sit in conspectu Dei Patris et angelorum, atque ab ecclesia
catholica quam periurio profanaverit efficiatur extraneus et ab omni coetu christianorum alienus cum
omnibus inpietatis suae sociis, quia oportet ut una poena teneat obnoxios quos similis error invenerit
implicatos...; um estudo mais amplo sobre o tema em FRIGHETTO, R., “Incauto et inevitabili conditionum
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Porém, um detalhe que chama a nossa atenção no cânone conciliar é o que reforça a relação
de consanguinidade entre Geila e Suinthila65, denotando uma evidente vinculação parental e
gentilícia que se coligava a uma determinada pátria natural, localizada, provavelmente, nas
áreas do sul da Hispania66. Devemos entender tal informação como incremento da
importância da gens no intrincado tabuleiro político do reino hispanovisigodo de Toledo, pois,
em nossa opinião, o apoio e o interesse mútuos dos integrantes da gens aliado às vinculações
matrimoniais e parentais com outras gentes hispanovisigodas reforçaria o sentido de pertença
a um determinado grupo político mais amplo que teria como denominadores comuns o
vínculo e a ligação a ancestrais coincidentes, portadores de virtudes, valores, costumes e uma
formação compartilhados entre todos os seus membros.
Fructuoso de Braga: sua linhagem, seu patrimônio e sua formação como signos de uma gens.
Nessa linha de investigação encontramos, em algumas fontes hispanovisigodas, um
interessante exemplo da constituição de um importante grupo político a partir da figura de
Fructuoso de Braga. Monge67 e bispo68, fundador de diversas comunidades monásticas na
65
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sacramento: juramento de fidelidad y limitación del poder regio en la Hispania visigoda en el reinado de
Egica (688)”, in: Intus Legere Historia 1, 1-2. Viña del Mar: Universidad Adolfo Ibañez, 2007, p.67-79.
Isid.,Etym.,IX,6,4: Consanguinei vocati, eo quod ex uno sanguine, id est ex uno patris semine sati sunt...; 9:
Porro cognatione fratres vocantur, qui sunt de una família, id est patria...
Para VALVERDE CASTRO,M.R., Ideología, simbolismo..., p.207, “...De hecho, tras haberse apoderado de la
realeza, Sisenando tuvo que combatir la sublevación de Iudila, que estalló en el sur peninsular, la zona
donde presumiblemente se concentraban los partidarios de Suintila...”; segundo GARCIA MORENO, L.A.,
“Prosopography, nomenclature, and royal succession in the Visigothic Kingdom of Toledo”, in: Journal of
Late Antiquity 1 – 1. New York: The Johns Hopkins University Press, 2008, p.155, “…Sisenand was the last
Visigothic king with origins in Septimania, which explains the strong opposition he faced in southern
Spain. After Suinthila’s defeat, Sisenand was opposed by Iudila, who issued coins in Merida and
Granada…”.
VF,1:...praespicuae claritatis egregias diuina pietas duas inluminauit lucernas, Isidorum reuerentissimum
scilicet uirum Spalensem episcopum atque beatissimum Fructuosum ab infantia inmaculatum et iustum.
Ille autem oris nitore clarens, insginis industriae, sophistae artis indeptus praemicans dogmata
reciprocauit Romanorum; hic uero in sacratissimo religionis propositu spiritus sancti flamma succensus ita
in cunctis spiritalibus exercitiis omnibusque operibus sanctis perfectus emicuit ut ad patrum se facile
quoaequaret meritis Thebaeorum…; Vers.Fruc.,IV,3: Cernite cuncti presens quod gestat pagina, sacris
eloquiis quod profert ipsa sanctissimi uatis, Fructuosi namque, dulcis cuius ex ore loquella procedens iugiter
suaui eufonia permulcet cunctorum pectora sistentium sibi deuota (...): sanctorum agmina beata cursu
sequi alacri pernicique, artam incunctanter intrare protinus per uiam, paradisi trepudiando occius
pertingere portis, angelicos illico potiri choros consortio dignos, martirum catheruis contubérnio mox
adiungi beatis, regnum ethereum prosperiter frui per secula cuncta...; Braul.,Epist.,44(Ad Fructuoso):...Felix
tu qui huius mundi contemnens, negotia prelegisti otia sancta! Ardorem tuum animumque, uigorem
luminisue candorem Spiritu Sancto fulgentem intellego, delector, diligo, amplector et ut pro meis flagitiis
facinoribusque ante Deum preualeat areditate bibula anelo. Felix illa eremus et uasta solitudo, que dudum
tantum ferarum cônscia, nunc monacorum per te congregatorum laudes Deo precinentium habitaculis est
referta...
VF,18: Post haec videlicet, licet inuitus, contra uoluntatem suam langores merore depressus perniciter
resistendo in sede metropolitana dono dei ordinatus est pontifex...
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Provincia Gallaecia69, participante do Concilio X de Toledo realizado no ano de 656 como
episcopus bracarensis e metropolitano de toda a Gallaecia70, o bracarense surge como
verdadeiro paradigma discursivo onde a grandeza aristocrática e nobiliárquica de sua família
aparece refletida na sua figura. Portador de um sangue preclaro71, indicação que evidenciava a
sua vinculação a antepassados de origem senatorial72, Fructuoso seria filho de Didacus, um
clarissimus73 e Dux emparentado com a família régia74, especificamente com o soberano
Sisenando e outros integrantes de sua gens, como Esclua de Narbona e Pedro de Beziers75,
todos ilustres e amparados em uma própria ínclita estirpe76. Certamente que podemos dizer
que a patria dos ancestrais de Fructuoso de Braga estava situada na Galia Narbonense, talvez
no eixo entre Narbona e Beziers, área na qual Esclua e Pedro ocupavam importantes sedes
episcopais, onde Sisenando aparecia como um dos próceres mais destacados sendo, por esse
motivo, muito provável que detivesse o cargo de Dux Narbonensis, função que lhe propiciaria
liderar a rebelião contra Suinthila e, também, de negociar apoio militar do rei franco
Dagoberto a sua ação rebelde77.
Apesar dessa vinculação gentilícia e territorial com um grupo político estabelecido na
Galia Narbonense, observamos que o anônimo autor da Vida de Fructuoso projetou como a
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Além da nota 37, VF,6: Post haec denique in uastissima et arta atque procul a saeculo remota solitudine in
excelsorum montium sinibus extruens monasterium Rufianensem (...). Demum itaque egrediens, inter
Bergidensis territorii et Gallaeciae prouinciae confinibus aedificauit monasterium Visuniensem; 7: Atque
postmodum ex alia parte Galleciae in ora maris construit monasterium Peonensem...; Val.,Ord.Querm.,7:...In
finibus enim Vergidensis territorii inter caetera monasteria juxta quodam castello cujus uetustus conditor
nomen ediit Rufiana. Est hoc monasterius inter excelsorum alpium conuallia sancta memoriae beatissimo
Fructuoso olim fundatus...; Val.,Repl.,9: In haec igitur rupe, huic monasterio subjacente, cum beatissimus
Fructuosus orare...; Val.,Resd.,1:...Cum autem hinc per supra dicta serie fuissem perductus, intuens huic
Rufianensis locum monasterii procul mundana conuersatione remotum...; Cf. Anexo II.
Conc. X Tol.,a.656, Decr.Pot.:...Tunc venerabilem Fructuosum ecclesiae Dumiensis episcopum conmuni
omnium nostrorum electione constituimus ecclesiae Bracarensis gubernacula continere, ita ut omnem
metropolim provinciae Gallaecia cunctosque episcopos populosque ipsius omnemque curam animarum…
Vers.Fruc.,IV,2:...eniteat preconio sanguineque preclaro...
Vers.Fruc.,IV,1:...appares in cunctis preclarus ille triumphis (...). Leta quondam tibi series et origo preclara...;
Isid.,Etym.,IX,4,12:...secundi spectabiles, tertii clarissimi...
Vers.Fruc.,IV,1:...quibus clarissimus Didacus Britio natus obtinuit legali Iustam equitate matronam...
VF,2: Hic uero beatus ex clarissima regali progenie exortus, sublimissimi culminis atque ducis exercitus
Spaniae prolis...
Vers.Fruc.,IV,1:...qua namque pontifex Sclua sortitus opimam rexit multifariter diuina dignatione
Narbonam; sicque Beterrensem Petrus elimauerat urbem, deceat ut celicis talem conpulari falanges. Quid
Sisenandum recolam gratia precipua regem, populos qui rite rexit cunctosque refouit...; tanto Esclua de
Narbona como Pedro de Beziers aparecem confirmando as atas do IV Concílio de Toledo, Conc.IV
Tol.,a.633,Subscr.:...Ego Ysclua in Christi nomine ecclesiae Narbonensis metropolitanus episcopus haec
statuta subscribsi (...); Petrus ecclesiae Beterrensis episcopus subscripsi...; Cf. Anexo III.
Vers.Fruc.,IV,1:...Illustrem si ex tam generoso fomite pompas, agnosces ipse proprias stirpis inclite uenas...
Fred.,Chron.,73:...cum consilio caeterorum Sisenandus quidam ex proceribus ad Dagobertum expetit ut ei
cum exercitu auxiliaretur, qualiter Sintellanem degradaret a regno (...). Quo audito, Dagobertus, ut erat
cupidus, exercitum in auxilium Sisenandi de toto regno Burgundiae bannire praecepit. Cumque in Spania
divulgatum fuisset exercitum Francorum in auxilium Sisenando aggredere, omnis Gotthorum exercitus se
ditioni Sisenandi subegit...
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patria natural do bracarense a região berciana onde seu pai detinha patrimônio fundiário78 e
na qual, por volta do ano de 640, nosso personagem fundou o seu primeiro cenóbio,
Compludo79. Logicamente que uma explicação plausível para entendermos essa mudança
geográfica, da Narbonense à Gallaecia, seria, por um lado, a da criação contida na Vida de
Fructuoso de um topos monástico a volta do personagem central da hagiografia sobre o qual se
projetava a imagem de um uir sanctus80 que escolheu uma região inóspita e afastada do século
para iniciar uma trajetória que o levou as mais altas hierarquias episcopais do regnum
gothorum. Outro caminho igualmente possível estaria relacionado com a concessão
patrimonial de terras que integravam o fisco régio dadas, de forma temporal, ao pai de
Fructuoso, Didacus, na condição de Dux. Nesse caso aquelas terras do Bierzo seriam parte do
patrimônio régio sem sê-lo de caráter familiar ou hereditário, algo bastante lógico se
observarmos que aquelas áreas montanhosas da Gallaecia haviam sido recentemente
conquistadas pela autoridade régia hispanovisigoda, sendo consideradas ao longo de todo o
século VII como regiões de fronteira, instáveis e inseguras81. Uma hipótese que ganha
argumentos ao recordarmos que mesmo após a fundação do cenóbio de Compludo o
bracarense teve de fazer frente às tentativas de seu cunhado, Visinando82, de obter a
concessão régia daquelas mesmas terras para a realização de uma expedição pública 83,
informação que reforçaria a perspectiva de que aquelas terras que fariam parte do patrimônio
de Didacus eram, de fato, terras pertencentes ao fisco régio hispanovisigodo que foram
patrimonializadas por Fructuoso no momento em que este ergueu naquelas uma fundação
monástica. Logo, podemos verificar a criação de uma patria natural para Fructuoso de Braga
na região berciana a partir do relato hagiográfico, amparada em uma gens ancestral e nos
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VF,2:...sub adhuc puerulus sub parentibus degerit, contigit ut quodam tempore pater eius eum secum
habens inter montium conuallia Bergidensis territorii gregum suorum requireret rationes. Pater autem
suus greges discribebat et pastorum rationes discutiebat; hic uero puerulus inspirante domino pro
aedificatione monasterii apta loca pensabat et intra semetipsum retinens nemini manifestabat...
Vide nota 37.
Como indica FLORIO, R., “Waltharius, figuras heroicas, restauración literária, alusiones políticas”, in:
Maia. Rivista di Letterature Classiche. Genova: Cappelli Editore, 2006, p.208, “...En el ámbito de la
literatura y, específicamente, de la epopeya, el santo y el mártir se transformaron en los paradigmas
heroicos. Esta labor de reconversión ideológica había comenzado con los apologistas cristianos de los
primeros tiempos, Tertuliano, Minucio Félix y Lactancio…”.
Para tanto vide FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda...”, p.118; idéia
reforçada pela informação contida na L.V.,IX,2,8 (Wamba rex):...Nam et si quilibet infra fines Spanie, Gallie,
Gallecie vel in cunctis provinciis, que ad ditionem nostri regiminis pertinent, scandalum in quacumque
parte contra gentem vel patriam nostrumque regnum...
Vers.Fruc.,IV,1:...Mihique videlicet extat única soror, unicum sortita pignus memorabile nobis, in quo
retentans pii gaudia magna uiri Visinandi potitus fruitur prapagine nomen.
VF,3:...iliquo uir iniquus sororis eius maritus, antiqui hostis stimulis instigatus, coram rege prostratus
surgens subripuit animum eius isdem pars hereditatis a sancto monasterio auferretur et illi quase pro
exercenda publica expeditione conferretur...
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laços de seu pai com a família régia de Sisenando que possibilitaram a Didacus alcançar uma
importante função na administração régia hispanovisigoda. Contudo, de uma forma bastante
curiosa, observamos uma ação de patrimonialização de terras do fisco régio levada a cabo por
Fructuoso no momento em que este criou e posteriormente teve o reconhecimento da
fundação do cenóbio de Compludo, atitude que pode ter sido promovida pelo bracarense em
outras fundações monásticas por ele erigidas no Bierzo, casos de Rufiana e Visonia 84. Ou seja,
podemos dizer que o movimento monástico liderado por Fructuoso de Braga no território
berciano teve, ao que tudo indica uma vertente patrimonialista importante estando
relacionada tanto à condição sociopolítica da gens do bracarense como à difusão do
cristianismo católico em terras de fronteiras políticas e culturais85.
Ora, o movimento monástico fructuosiano deve ser inserido naquela proposta projetada
desde o III Concílio de Toledo de 589 de busca pela unidade político-religiosa do regnum
gothorum e que deveria ser conduzida pelos máximos representantes institucionais, o
princeps christianus sacratissimus e os representantes laicos e eclesiásticos que integravam o
universo das Gothicae gentes, para que se pudesse alcançar o consenso universal e a concórdia
das ordens que melhor defenderiam a totalidade do populus e da patria/natio gothorum 86.
Tratava-se de um movimento com duas vias, uma institucionalizada e calcada nas decisões
tomadas pelo conjunto das hierarquias eclesiásticas 87, outra mais autônoma que poderia ter
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Vide nota 68.
Cf. FRIGHETTO, R., “Identidade(s) e Fronteira(s) na Hispania visigoda...”, pp.118-20; segundo WOOD, I.,
“Missionaries and the christian frontier”, in: The Transformation of Frontiers – From the Late Antiquity to
the Carolingians (Ed. W.Pohl, I.Wood e H.Reimitz). Leiden-Boston: Brill, 2001, p.211-2, “…Certainly the
crucial conceptual boundary that appears time and time again is not the boundary between pagan and
christian, but that between the culturally familiar and the ‘other’. Within the Empire or later the
successor states of the Visigoths and Franks, supposed pagan practices might be abhorrent, buy they
were also familiar and they could, only too easily, be formed by nominal christians. Martin of Braga
enumerated the problems of rustic beliefs in north-western Spain in the sixth century in his letter De
Correctione Rusticorum addressed to Bishop Polemius. Beyond the old Roman frontiers, in eighty
century Hesse, Thuringia and Bavaria, Boniface was faced not with fully-fledged paganism, but with the
failure of christians to live up to his expectations, by celebrating nature cults, observing auguries, or by
non-observance of the Church canons on marriage…”.
Conc.IV Tol.,a.633,c.75:...sed fidem promissam erga gloriosissimum domnum nostrum Sisenandum regem
custodientes ac sincera illi devotione famulantes, non solum divinae pietatis clementiam in nobis
provocemus, sed etiam gratiam antefati principis percipere mereamur...; Isid.,Sent.,50,6: Reges vitam
subditorum facile exemplis suis vel aedificant, vel subvertunt, ideoque principem non oportet delinquere, ne
formam peccandi faciat peccati eius impunita licentia. Nam rex qui ruit in vitiis cito viam ostendit erroris
(...). Illi namque ascribitur, quidquid exemplo eius a subditis perpetratur.
Conc.IV Tol.,a.633,c.51:...monasteriis vindicent sacerdotes quod recipiunt canones: id est monachos ad
conversationem sanctam praemonere, abbates aliaque officia instituere, atque extra regulam acta
corrigere...; Conc.VII Tol.,a.646,c.5:...Deinceps autem quiquumque ad hoc sanctum propositum vinire
disposuerit, non aliter illis id dabitur adsequi neque ante hoc poterunt adipisci, nisi prius in monasterio
constituti, et secundum sanctas monasteriorum regulas plenius eruditi et dignitatem honestae vitae et
notitiae potuerint santae promereri doctrina...
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diversos matizes, desde a busca por uma conversão sincera 88 até a simples tentativa de se
criar um mosteiro com fins de torna-lo patrimonialmente imune89, isenção concedida às
fundações monásticas reconhecidas pelas autoridades eclesiástica 90 e régia91, ou mesmo para
ampliar a arrecadação de bens materiais para as famílias fundadoras de mosteiros com pouca
ou nenhuma vocação espiritual, ocupados por aqueles que Valério do Bierzo definiu como o
sétimo tipo de monges, grupo que seria formado por dependentes daquelas famílias
convertidos, de forma compulsória, a vida monástica sendo, por esse motivo, falsamente
chamados de monges92. Apesar de encontrarmos similaridades da fundação de Compludo por
Fructuoso com esta via monástica ilegítima, como a de lançar mão dos dependentes que
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Conc.VII Tol.,a.646,c.5:...Ex hoc igitur iustae severitatis talia decernentes, opportuno tempore iudicio
iubemus eos quos in cellulis propriis reclusos sanctae vitae ambitio tenet, quosque eiusdem sancti propositi
et merita iuvant et probitas ornant, quietos Dei auxilio et nostro favore tutos existere...
Conc.II Brac.,a.572,c.6:...ut nullus episcoporum tam abominabili voto consentiat, ut baselicam quae non pro
sanctorum patrocínio sed magis sub tributaria conditione est condita, audeat consecrare; RC,1: Solent enim
nonnulli ob metum gehennae in suis sibi domibus monasteria componere et cum uxoribus filiis et seruis
atque uicinis cum sacramenti conditione in unum se copulare et in suis sibi ut diximus uillis et nomine
martyrum ecclesias consecrare et eas tale nomine monasteria nuncupare. Nos tamen haec non dicimus
monasteria sed animarum perditionem et ecclesiae subuersionem (...) et nil de propria substantia
pauperibus erogant, sed adhuc aliena quase pauperes rapere festinant, ut cum uxoribus et filiis plus quam
in saeculo erant lucra conquirant...
Conc.III Tol.,a.589,c.3:...si quid vero quod utilitatem non gravet ecclesiae pro suffragio monachorum vel
ecclesiis ad suam parochiam pertinentium dederint, firmum maneat...; Conc.IV Tol.,a.633,c.51: Nuntiatum
est praesenti concilio eo quod monachi episcopali imperio servili opere mancipentur et iura monasteriorum
contra instituta canonum inlicita praesumtione usurpentur (...). Quod si aliquid in monachis canonibus
interdictum praesumserint aut usurpare quisppiam de monasterii rebus temtaverit...; Conc.IX
Tol.,a.655,c.5:...Quisquis itaque episcoporum parochia sua monasterium construere forte voluerit, et hoc ex
rebus ecclesiae cui praesidet ditare decreverit, non amplius ibidem quam quinquagesimam partem dare
debebit, ut hac temperamenti aequitate servata et cui tribuit conpetens subsidium conferat, et cui tollit
damna gravia non infligat...
Form.Visig.,IX: Alia quam facit rex qui ecclesiam aedificans monasterium facere uoluerit. Domino glorioso
ac triumphatori beatissimo ill. Martiri ill. rex (...). Ergo ut nobis et apud Deum et apud uestram dignationem
sors beatitudinis commodetur, congregationem monachorum in eundem locum quo sacrosancti uestri
corporis thesauri conquiescunt esse decreuimus, quibus iugiter Deo uestraeque memoriae condigne
seruientibus, et iuxta patrum more, qui monachis normam uitae posuerunt, conuersantibus, sit uotum
nostrum consumata mercede firmissimum et perpetuitate temporum propagatum. Offerimus ergo gloriae
uestrae de patrimoniis nostris pro reparationem eiusdem ecclesiae (...). Quarum possessionum ius semper et
usus pro nostrae perpetuitatis mercedem nostrisque abluendis (...). Hoc diuino testimonio per etates
succiduas futuros praemonemus abbates, nec uotum hoc nostrum sua qualibet tépida conuersatione
dissoluant...; L.V.,V,2,2 (Flavius Chindasvindus Rex): Donationes regie potestatis, que in quibuscumque
personis conferuntur sive conlate sunt, in eorem iurem persistant; quia non oportet principum statuta
convelli, que convellenda esse percipientis culpa non fecerit.
Val.,De Gen.Mon.,3:...in quibus sacratissimis locis paucissimi tandem reperiuntur electi uiri qui de toto corde
conuertuntur ad Dominum; et ne ipsa monasteria desolata desertaque remaneant, tolluntur ex familiis sibi
pertinentibus subulci, de diuersisque gregibus dorseni, atque de possessionibus paruuli qui pro officio
supplendo inuiti tondentur et nutriuntur per monasteria atque falso nomine monachi nuncupantur; 4:...non
obedientie humilitate aut sincere caritatis dilectione fundantur, sed crescunt typo superbie turgidi, fastu
elationis inflati...; RC,1:...Inde surrexit haeresis et schisma et grandis per monasteria controuersia. Et inde
dicta haeresis eo quod unusquisque suo quod placuerit arbitrio eligat, et quod elegerit sanctum sibi hoc
putet et uerbis mendacibus defendat. Hos tales ubi reperitis non monachos sed hypocritas et haereticos esse
credatis...; o perigo da heresia é outro tema sempre recorrente, segundo Braul.,Epist.,44 (Ad
Fructuoso):...Cauete autem dudum illius patrie uenenatum Priscilliani dogma, quae et Dictinum et multos
alios (...). Nam ita peruersitatis sue studio sacras deprauauit scripturas...
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integravam o seu patrimônio para residirem no mosteiro93, o certo é que aquela comunidade
monástica passou a dispor de um estatuto legítimo no momento em que foi dotada com uma
regra de vida em comunidade reconhecida pelas hierarquias eclesiásticas alçando à condição
de cenóbio94, acentuando o caráter de renúncia dos integrantes da comunidade monástica aos
contatos com o mundo secular95. Logo o movimento monástico promovido por Fructuoso
ganhou reconhecimento por parte das instituições régia e eclesiástica hispanovisigoda
inserindo-se, a partir de então, no ambiente dos costumes e ritos religiosos católicos
validados pelos antepassados 96, destacando ainda os méritos e as virtudes possuídas por
Fructuoso enquanto promotor de uma vida cenobítica santificada e voltada ao auxílio dos
mais humildes97, colocando-o como legítimo continuador de sua gens preclara98.
Mas para atingir esta condição legitimadora, Fructuoso recebeu após a morte de seus
pais e ainda menino, uma formação voltada aos conhecimentos eclesiásticos, com especial
acento ao estudo dos salmos99, sob a orientação de Conâncio, bispo de Palencia 100 e
responsável pela escola episcopal palentina101. O conhecimento dos salmos envolvia o
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VF,3:...eum locupletissime ditauit et tam ex família sua quam ex conuersi ex diuersis Spaniae partibus
sedule concurrentibus eum agmine monachorum affluentissime compleuit...
VF,4: Hic uero sanctissimus confirmans cunctum regularem ordinem constituensque cenobii patrem cum
ingentem districtionis rigorem...; Isid.,Etym.,VII,13,2: Coenobitae, quos nos in commune viventes possumus
appellare. Coenobium enim plurimorum est; Isid.,Etym.,XV,3,7: Coenaculum dictum a communione vescendi;
unde et coenobium congregatio...; XV,4,6: Coenobium ex Graeco et Latino videtur esse conpositum. Est enim
habitaculum plurimorum in commune viventium...
RF,21:...Monachi in monasterio sancte et pudice adque honeste uiuentes persistant. Nihil foris sine abbatis
uel praepositi mandato peragant, nec liceat monachum foris claustri coenobii proprii longius euagari, nisi
in uicino dumtaxat hortulo, uel pomerio cum benedictione senioris. Ceterum uicos, uillasque circuire adque
ad saecularem possesionem accedere non licebit...
Vers.Fruc.,IV,2:...Optimi more unguenti redolens uirtutibus pectorisque alabastro pedibus dominicis
pretiosum fundis nectar unguine catholico...
Idéia apresentada no estudo de NERI, Cl., “Influenze monastiche e nuovi codici di comportamento per le
élites laiche e le Gerarchie ecclesiastiche”, in: Le Trasformazioni delle Élites in età tardoantica, p.300,
“...Intanto dobbiamo dire che, dalle fonti della letteratura monastica, si evince che è un dovere per i
monaci aiutare, sotto ogni aspetto, i poveri o i bisognosi, stornando le offerte fatte alle loro comunità...”.
Vers.Fruc.,IV,1:...sic te uita pia, sic mens te sepit honesta et merito radians honor in orbe Dei...
Para Isid.,Sent.,III,7,31: Sicut orationibus regimur, ita psalmorum studiis detectamur. Psalendi enim utilitas
tristia corda consolatur, gratiores mentes facit, fastidiosos oblectat, inertes exsuscitat, peccatores ad
lamenta invitat...
VF,2:...Post discessum igitur parentum abiecto saeculari habitu tonsoque capite, quum religionis initia
suscepisset, tradidit se erudiendum spiritalibus disciplinis sanctissimo uiro Conantio episcopo...; Ild.,De
Uir.Ill., 10: Conantius post Murilanem, ecclesiae Palentinae sedem adeptus. Vir tam pondere mentis quam
habitudine speciei grauis, communi eloquio facundus et gratus, ecclesiasticorum officiorum ordinibus
intentus et prouidus: nam melodias soni multas nobiliter edidit. Orationum quoque libellum de omnium
decenter conscripsit proprietate psalmorum. Vixit in pontificatu amplius triginta annis, dignus habitus fuit
ab ultimo tempore Vuitterici, per tempora Gundemari, Sisebuti, Suinthilanis, Sisenandi et Chintilae regum;
Conc.IV
Tol.,a.633,subscr.:...Conantius
ecclesiae
Palentinae
episcopus
subscripsi...;
Conc.V
Tol.,a.636,subscr.:...Ego Conantius ecclesiae Palentinae episcopo subscribsi...; Conc.VI Tol.,a.638,
subscr.:...Conantius ecclesiae Palentinae episcopus subscribsi...
Há uma referência a escola episcopal de Palencia na citação VF,2:...quum ei ad manendum hospitium
praeparassent, quidam de sumptoribus scolae ipsius adueniens interrogauit...; ver também VSPE,II,612:...Quem ut uiderunt ebrium pueri paruuli, qui sub pedagogorum disciplinam in scolis litteris studebant...;
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desenvolvimento da arte da impostação da voz e do canto102, sendo também utilizada a
técnica da repetição e da memorização dos mesmos, muita usada no ambiente monástico
fructuosiano103, com vistas ao aprimoramento espiritual e cultural dos monges104 que servia,
igualmente, como signo de uma identidade monástica105. Parece-nos evidente que a formação
inicial de Fructuoso foi baseada nesta forma de aprendizado, memorizando e aprendendo os
salmos106. Interessa-nos aqui atentar para a estratégia formativa desenvolvida nos ambientes
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Taius, Ep. ad Eugenium Toletanum:...inaestimabili accensus desiderio, tanquam unus ex collegio
caurientium puerorum inediae coactus impulsis...; como indica DIAZ Y DIAZ, M.C., “La cultura de la España
visigotica del siglo VII”, in: De Isidoro al siglo XI. Ocho estudios sobre la vida literaria peninsular.
Barcelona: Ediciones El Albir, 1976, p.28, “...El tipo de escuela – si puede llamarse así, que más habría
que denominar tipo de formación -, más frecuente es el del discipulado en torno a una gran figura, cuya
altura, valores morales o prestigio personal atrae gentes que siguen con él unos años el camino de la
iniciación en las materias eclesiásticas y profanas: así un visigodo de sangre real como Fructuoso se
somete a la disciplina de Conancio de Palencia, junto con otros varios jóvenes…”.
Isid.,Etym.,VI,19,11: Psalmus autem dicitur qui cantatur Psalterium, quod unum esse David profetam in
magno mysterio prodit historia. Haec autem duo in quibusdam Psalmorum titulis iuxta musicam artem
alternatim sibi adponuntur; Isid.,De Eccl.Off.,I,5,1-2:...Cuius psalterium idcirco cum melodia cantilenarum
suauium ab ecclesia frequentatur, quo facilius animi ad conpunctionem flectantur. Primitiua autem
ecclesia ita psallebat ut modico flexu uocis faceret resonare psallentem, ita ut pronuntianti uicinior esset
quam canenti. Propter carnales autem in ecclesia, non propter spiritales, consuetudo cantandi est instituta
ut, quia uerbis non conpunguntur, suauitate modulaminis moueantur (...). Nam in ipsis sanctis dictis
religiosius et ardentius mouentur animi nostri ad flammam pietatis cum cantantur quam si non cantetur...
RF,1:...unde et a monachis necesse est ne otiosa ducatur. Ideo constitutum est ut trino psalmorum obsequio
frequentetur, que et primae consummet officium et subsequenter tertiae incipiat scandere gradum (...).
Nocturno igitur tempore prima noctis hora sex orationibus celebranda est ; ac deinde decem psalmorum
concentu cum laude ac benedictionibus consummanda in ecclesia est (...). Tunc demum pergentes ad cubilia
adque in unum cuncti coneuntes ob perfectionem pacis et reorum absolutionem cantatis tribus psalmis
iuxta morem (...), pergat ad lectum suum, ubi tacite orationi insistens, psalmosque recitans ultimo
orationem suam... ; 3 : Quum hora nona ad uescendum conuenitur, dicto psalmo, sedentibus aliis unus in
medio...
Para PRICOCO, S., “Il Vivario di Cassiodoro”, p.194, “...Il Salterio, per Cassiodoro, non è soltanto il testo
bíblico di più alta illuminazione divina, è anche il testo che sta a fondamento delle discipline liberali. Egli
insiste nell’indicare nei Salmi il pieno dispiegarsi degli artifici retorici più accorti e sofisticati...”; segundo
PRICE, R. M., “The holy man and Christianization from the apocryphal apostles to St. Stephen of Perm”,
in: The cult of saints in Late Antiquity and the Early Middle Ages, p.233-4, “…The monastic movement of
the fourth century (which had such a decisive influence on the Christianization of Egypt and Syria) was
accompanied by heightened eschatological expectation: we read in the History of the Monks of Egypt that
for the fathers in the desert ‘there is only the expectation of the coming of Christ in the singing of
psalms’…”.
De acordo com WILLIAMS, M. S., “Hymns as acclamations: the case of Ambrosius of Milan”, in: Journal of
Late Antiquity, 6 – 1. New York: The Jonhs Hopkins University Press, 2013, p.113-4, “…Whether the text
around which the participants united was a song, or a phrase from religious worship, or a line from a
play, or a Christian hymn, the important aspect is that it conferred on the crowd a common identity and
a common purpose…”.
Muito interessante a informação contida em Val.,Repl.,6: Cum autem paruulum quendam pupillum litteris
imbuerem, tantum dispensatio diuina dedit illi memoriae capacitatem et intra medium annum peragrans
cum canticis uniuersum memoriae retineret psalterium..., coligada com as referências de RF,4:...Iuniores
autem coram suis residentes decanis lectioni uel recitationi vacent...; e Val.,Ad Don.,1:...Inter quos erat
quidam frater, nomine Maximus, librorum scribtor, psalmodie meditator, ualde prudens, et in omni sua
actione conpositus...; de acordo com FONTAINE, J., Isidoro de Sevilla. Génesis y originalidad de la cultura
hispánica en tiempos de los visigodos. Madrid: Ediciones Encuentro, 2002, p.259, “…En cabeza de las
fuentes religiosas de esta estética debemos colocar las oraciones de la liturgia hispánica y, sobre todo, la
práctica del canto de los Salmos. Esta doble práctica diaria marcó el aprendizaje y, por así decirlo, el
mantenimiento ininterrumpido del latín de Isidoro…”; sobre esta prática diária, RI, 6:…Verum in uigiliis
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eclesiásticos, da memorização e da repetição, que também contemplaria a evocação das
tradicionais gestas ancestrais hispanovisigodas, como o Cantar de Valtario, que seriam
constantemente rememoradas e validadas pela tradição para e pelos filhos das mais
importantes gentes107, signo contundente da importância e da grandeza dos grupos
aristocráticos e nobiliárquicos do reino hispanovisigodo108.
A guisa de conclusão: Fructuoso de Braga, representante máximo de sua gens.
Dessa forma, verificamos que os elementos básicos constitutivos de uma gens como o
da vinculação a uma família detentora de uma ancestralidade, que era possuidora de um
patrimônio fundiário e que oferecia aos seus integrantes uma formação amparada em
princípios defendidos pelo conjunto da aristocracia – nobreza hispanovisigoda, são elementos
que aparecem, de forma destacada, no exemplo de Fructuoso de Braga. Integrante de uma
estirpe com estreitas ligações com a família régia, Fructuoso aparece como merecedor e
continuador da grandeza de seus antepassados, na medida em que sua importância colocavao em um patamar superior aos seus ancestrais. De fato se seu pai foi Dux, detentor de um
importantíssimo cargo na administração político-militar do regnum gothorum, Fructuoso
alcançou a condição de bispo e metropolitano de toda a provincia Gallaecia, função eclesiástica
tão ou mais destacada que aquela ocupada por seu ancestral imediato, equivalente àquela
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recitandi aderit usus. In matutinis psallendi canendique consuetudo, ut utroque modo seruorum dei mentes
diuersitatis oblectamento exerceantur et ad laudem dei sine fastidio ardentius excitentur…
Isid.,Carm.,19:…Ecclesiae et Christi laudes hinc indecanentes. Et thalami memorat socios sociasque fideles.
Ilas, rogo, mente tua, juvenis, mandare memento. Cantica sunt nimium falsi haec meliora Maronis. Haec tibi
vera canunt vitae praecepta perennis...; Isid.,Etym.,I,39,9:...Heroicum enim carmen dictum, quod eorum
virorum fortium res et facta narrantur. Nam heroes appellantur viri quasi aerii et caelo digni propter
sapientiam et fortitudinem. Quod metrum auctoritate cetera metra praecedit ; unus ex omnibus tam
maximis operibus aptus quam parvis, suavitatis et dulcedinis atque aeque capax.
De acordo com AGUILAR ROS, P., “El cantar de Valtario, hipótesis para una nueva lectura”, in: De la
Antigüedad al Medievo. Siglos IV – VIII. III Congreso de Estudios Medievales. Avila: Fundación SanchezAlbornoz, 1993, p.183, “…Por otra parte no debe extrañar que sea un monje el que componga la leyenda
goda ya que sabemos que desde el siglo VII se cantaban en España los ‘carmina maiorum’ de origen godo
y que el clero, lejos de oponerse a tales recuerdos, los preceptuaba para la educación de los jóvenes…”;
igualmente interessante e válido é o estudo de POHL,W., “Memory, identity and power in Lombard Italy”,
in: Using the past in the Early Middle Ages (Ed. Yitzahk Hen & Matthew Innes). Cambridge: Cambridge
University Press, 2004, p.13-4, “…Here, I would like to disentangle myself from the looming problem of
orality versus written memory by proposing a simple hypothesis: this question is central only if you
automatically associate oral tradition with archaic origin, authenticity and purely ‘Germanic’ character
of this tradition in content and form; and identify literacy with classical (or clerical) erudition,
manipulation and dilution of the original text, but also with its transplantation into a Latin culture. I do
not think this bipolarity makes much sense. Latin and Germanic language, traditionalist and legislative
rhetoric, and the attitudes and rituals of late Roman judicial and ‘Germanic’ warrior cultures were, by
the middle of the seventh century, too entangled to understand them as fundamentally different ways of
dealing with the past (…). Orality and literacy often seem to be quite inseparable on the basis of our
evidence, and the ‘milieu of memory’ at the Lombard court certainly relied on both written and oral
tradition…”.
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desempenhada por seu parente Esclua de Narbona, bispo e metropolitano da provincia
Narbonense. A constituição de uma nova patria natural para Fructuoso, iniciada por seu pai
que dispunha de parcelas do patrimônio régio no Bierzo integradas, do ponto de vista
administrativo, a provincia Gallaecia, demonstra-nos a expansão territorial da gens do
bracarense para outras áreas do regnum gothorum e que neste caso estaria relacionada com a
cessão de terras do fisco régio entre familiares e aliados gentilícios que fariam parte do
mesmo grupo político, como seriam Didacus e Sisenando.
A partir da sua nova pátria natural, a propriedade fiscal onde foi fundado o cenóbio de
Compludo, Fructuoso iniciou um processo de patrimonialização dos bens régios voltado, é
certo, para o desenvolvimento de seu movimento monástico, mas que na realidade fazia parte
de uma estratégia corriqueira e desenvolvida pelos integrantes das gentes hispanovisigodas
de ampliarem suas propriedades à custa do patrimônio régio, sempre em benefício próprio
dos integrantes do universo aristocrático – nobiliárquico e visando um incremento de seus
poderes locais e regionais. Logo, o movimento monástico promovido por Fructuoso de Braga e
apresentado como movimento espiritual deve ser, também, analisado a partir dessa dinâmica
da patrimonialização feita tanto pelos agentes da administração régia como por integrantes
da aristocracia – nobreza local, ou seus herdeiros, das propriedades do fisco régio, onde a
subtração dos bens fiscais acabava por reduzir, efetivamente, o poder político-econômico da
instituição régia hispanovisigoda. Seja como for, observamos que Fructuoso de Braga aparece,
sempre de acordo com o anônimo autor da Vida de Fructuoso, como detentor de um
patrimônio próprio que o colocaria na condição de continuador de sua gens ancestral e, mais
ainda, como promotor de um movimento monástico inovador, posicionando-o espiritualmente
acima de seus predecessores e vinculando-o com os ritos e costumes religiosos católicos
defendidos por sua família e seu grupo político.
A espiritualidade desenvolvida e imputada a Fructuoso tinha uma direta relação com a
formação por ele adquirida desde a sua infância e que fazia parte dos princípios formativos
passados aos jovens integrantes das gentes hispanovisigodas, ancorados especialmente sobre
os preceitos morais e éticos contemplados pelo cristianismo católico. Encontramos desde a
conversão dos godos ao catolicismo no ano de 589 uma imediata associação entre as Gothicae
gentes como defensoras da unidade político-religiosa do regnum gothorum, defesa amparada
em uma formação vocacionada aos elementos aristocráticos e nobiliárquicos com notório
acento sobre as virtudes helenísticas e tardias comumente presentes no discurso das fontes
eclesiásticas católicas, como a fidelidade, a justiça, a piedade, a religiosidade e no caso
particular de Fructuoso a santidade que, ao lado de sua condição de bispo metropolitano da
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Gallaecia, o colocava em um patamar mais elevado que o detido por seus ancestrais. Signos de
uma nova identidade que caracterizava, desde o III Concílio de Toledo, a Gens Gothorum e que
conviviam, igualmente, com antigas tradições ancestrais que valorizavam as virtudes
guerreiras, como a fortitudo, destacadas nas tradicionais gestas heroicas memorizadas e
passadas, de geração em geração, entre os membros aristocráticos e nobiliárquicos
hispanovisigodos. Talvez por esse motivo nos deparemos com a associação dirigida à figura
de Fructuoso como uir sanctus portador de virtudes guerreiras que o levaram à confrontação
e a vitória sobre o mais temido de todos os inimigos, o demônio. Enfim, Fructuoso surge, nas
fontes hispanovisigodas que o referenciam, como legítimo herdeiro de sua ínclita gens e como
protótipo aristocrático hispanovisigodo digno de ser analisado, interpretado e estudado com
vistas a um maior conhecimento da realidade sociopolítica, econômica e cultural do reino
hispanovisigodo de Toledo do século VII.
ABREVIATURAS:
. Aul.Gel.,Noc.Att. = AULUS GELIUS, Noctes Atticae, ed. J. C. ROLFE, Cambridge-London:
Harvard University Press, 1927.
. Aus.,Mos. = DECIMUS MAGNUS AUSONIUS, Mosella, ed. Hugh G. EVELYN – WHITE, New
York: Harvard University Press, 1988.
. Aus.,Ord.Urb.Nob. = DECIMUS MAGNUS AUSONIUS, Ordo Urbium Nobilium, ed. L.DI
SALVO, Napoli: Loffredo Editore, 2000.
. Braul.,Epist. = BRAULIONE CAESARAUGUSTANO EPISCOPO, Epistulae, ed. Luis Riesgo
Terrero, Sevilla: Editorial Catolica Española, 1975.
. Chron.Moz.,a.754 = Chronica Mozarabica anno 754, ed. J.E. LOPEZ PEREIRA, Zaragoza:
Anubar Ediciones, 1980.
. Cic.,De Leg. = MARCUS TULIUS CICERUS, De Legibus, ed. Georges DE PLINVAL, Paris: Les
Belles Lettres, 1959.
. Cic.,De Rep. = MARCUS TULIUS CICERUS, De Republica, ed. Clinton W. KEYES,
Cambridge-London: Harvard University Press, 1928.
. Conc. = CONCILIOS VISIGOTICOS E HISPANO-ROMANOS, ed. José VIVES, Tomás MARÍN
& Gonzalo MARTINEZ, Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 1963.
. Form.Visg. = Formulae Visigothicae, ed. Juan Gil, Sevilla: Universidad de Sevilla, 1972.
. Fred.,Chron. = FREDEGARII SCHOLASTICI, Chronicum, ed. J.-P. MIGNE, Paris: Patrologia
Latina LXXI, 1849.
. Ild.,De Uir.Ill. = ILDEPHONSUS TOLETANUS EPISCOPUS, Liber de Uiris Illustribus, ed.
Carmen CODOÑER MERINO, Salamanca: Consejo Superior de Investigaciones Científicas,
1972.
. Ioan.Bicl.,Chron. = IOANNIS BICLARENSIS, Chronicon, ed. Julio CAMPOS, Madrid:
Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1960.
. Isid.,Carm. = ISIDORUS HISPALENSIS, Carmina, ed. J. P. MIGNE, Paris: Patrologia Latina
83, 1847.
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. Isid.,De Diff. = ISIDORUS HISPALENSIS, De Differentiis I, ed. Carmen CODOÑER, Paris:
Les Belles Lettres, 1992.
. Isid.,De Eccl.Off. = ISIDORUS HISPALENSIS, De Ecclesiasticis Officiis, ed.Ch. M. LAWSON,
Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 113 – Brepols, 1989.
. Isid.,De Uir. = ISIDORUS HISPALENSIS, De Viris Illustribus, ed. Carmen CODOÑER,
Salamanca: CSIC, 1964.
. Isid.,Etym. = ISIDORUS HISPALENSIS, Etymologiarum Libri XX, ed. Manuel DIAZ Y DIAZ,
Jose OROZ RETA & Manuel MARCOS CASQUERO, Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1982.
. Isid.,HG = ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI, De origine gothorum, ed. Cristóbal
RODRÍGUEZ ALONSO, Leon: Colegiata de San Isidoro, 1975.
. Isid.,Sent. = ISIDORI HISPALENSIS EPISCOPI, Sententiarum Libri Tres, ed. Julio CAMPOS
& Ismael ROCA, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos – Santos Padres Españoles II,
1971.
. L.V. = Lex Visigothorum, ed. K. ZEUMER, Hannover – Leipzig: MGH, 1902.
. Plin.,HN = PLINIUS, Naturalis Historia, ed. Harris RACKHAM, New York: Harvard
University Press, 1945.
. RC = Regula Communis, ed. Julio CAMPOS & Ismael ROCA, Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos – Santos Padres Españoles II, 1971.
. RF = Regula Fructuosi, ed. Julio CAMPOS & Ismael ROCA, Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos – Santos Padres Españoles II, 1971.
. Val.,Ad Don. = VALERIUS BERGIDENSIS, Dicta Beati Valeri ad beatum Donadevm scripta,
ed. M.C. DIAZ Y DIAZ, León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 2006.
. Val.,De Gen.Mon. = VALERIUS BERGIDENSIS, De Genere Monachorum, ed. M.C. DIAZ Y
DIAZ, León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 2006.
. Val.,Ord.Querm. = VALERIUS BERGIDENSIS, Item Valeri narrationes superius memorato
Patri nostro Donadeo Ordo Querimoniae Praefatio Discriminis, ed. Renan FRIGHETTO,
Noia: Editorial Toxosoutos, 2006.
. Val.,Repl. = VALERIUS BERGIDENSIS, Item Replicatio Sermonum a Prima Conversione,
ed. Renan FRIGHETTO, Noia: Editorial Toxosoutos, 2006.
. Val.,Resd. = VALERIUS BERGIDENSIS, Item quod de Superioribus Querimoniis Residuum
sequitur, ed. Renan FRIGHETTO, Noia: Editorial Toxosoutos, 2006.
. Vers.Fruc. = ANONIMUS, Uersiculi Fructuosi, ed. A.MAYA SANCHEZ, Turnholti: Corpus
Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992.
. VF = ANONIMUS, Vita Fructuosi, ed. M.C.DIAZ Y DIAZ, Braga: Camara Municipal, 1974.
. VSPE = ANONIMUS, Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, ed. A.MAYA SANCHEZ,
Turnholti: Corpus Christianorum Series Latina 116 – Brepols, 1992.
. Taius, Sent. = TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, Sententiarum Libri Quinque, ed.
J.P.MIGNE, Paris: Patrologia Latina LXXX, 1851.
. Taius, Ep. ad Eugenium Toletanum = TAIONIS CAESARAUGUSTANI EPISCOPI, Epistola
ad Eugenium Toletanum, Paris: Patrologia Latina LXXX, 1851.
. Mapas feitos a partir da plataforma
http://pelagios.dme.ait.ac.at/maps/grecoroman/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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ANEXO I
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ANEXO II
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ANEXO III
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As representações dos Muçulmanos durante a tomada de
Lisboa pelos Cristãos (1147)
The depiction of the Muslims during the siege of
Lisbon by the Christians (1147)
José Carlos Gimenez*
Universidade Estadual de Maringá
Resumo
Abstract
O objetivo deste trabalho é discutir as
representações dos muçulmanos no contexto da
tomada da cidade de Lisboa pelos cristãos no ano
de 1147, mais especificamente, como uma
narrativa sobre o cerco de uma cidade pode
constituir-se em uma importante fonte para
conhecermos o discurso e o emprego da violência
na Idade Média. Para tal propósito, tomaremos
como fonte principal uma carta escrita,
provavelmente entre a segunda metade do século
XII e a primeira metade do XIII, por um clérigo
inglês,
conhecido
como
Osberno,
que
acompanhava a expedição Cruzada que se dirigia
a Jerusalém. Nessa carta, a construção de uma
imagem negativa dos muçulmanos serviu,
sobretudo, para exaltar a qualidade e a
superioridade da fé cristã frente ao Islam. A carta
revela ainda, as interfaces de uma batalha
tipicamente medieval, com especial destaque
para os aspectos relacionados ao mundo do
sagrado e do profano, em que os desejos de
realização de bens materiais entrelaçam-se com
ideais de conquista e de expulsão dos inimigos da
fé cristã.
This work aims to present and debate the
representation of the Muslims during the
enclosure and conquest of Lisbon by the
Christians in 1147, more specifically, to the fact
that how its siege constitutes an important source
to knowing the discourse and utilization of
violence in the Middle Age. To present this
purpose, the main source of information is a
letter, probably written between the second half
of the 12th century and first half of the 13th
century, written by a churchman and English
crusader, known as Osbern, who followed that
expedition heading for Jerusalen. In this letter,
the construction of the Muslims’ negative image
served, above all, to praise the quality and
superiority of Christian faith before the islams.
Yet, the letter reveals the interfaces of a typically
medieval battle, focusing on the details about the
sacred and profane world, in which the desires of
material fulfillment entangles with the ideals of
conquering and expelling of the enemies of
Christian faith.
Palavras-chave: Conquista de Lisboa; Idade
Média Ibérica; Reconquista Cristã. Cruzadas.
Keywords: Lisbon Conquer; Iberic Medieval Age.
Christian Reconquering; Crusades.
● Enviado em: 02/11/2014
● Aprovado em: 12/12/2014
*
Doutor em História pela UFPR, Professor de História Medieval na Universidade Estadual de Maringá,
Líder do grupo de pesquisa Instituições Políticas e Religiosas Medievais na Península Ibérica,
pesquisador do Núcleo de Estudos Mediterrânicos, NEMED-UFPR. [email protected]
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Introdução.
Para muitos medievalistas o resultado da Primeira Cruzada foi favorável aos cristãos
ocidentais, principalmente para a Igreja que, ao incorporar e empregar os valores bélicos a
serviço de Deus no combate aos inimigos da fé cristã transformou a Santa Sé em um poder
temporal forte e armado, com grande penetração nos assuntos políticos de reis e
Imperadores. As Cruzadas também trouxeram grande benefício econômico para os
mercadores, principalmente para os venezianos e genoveses que, ao transportarem
peregrinos e cruzados, aumentaram os seus rendimentos, especialmente com a instalação de
entrepostos comerciais em vários portos do mediterrâneo oriental e com a fundação de novas
rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Para José Luiz Corral, a ideia de Cruzada
igualmente serviu de atrativo para que os cristãos da Península Ibérica idealizassem não
apenas enfrentar, mas também vencer o Islam em seus territórios. Ela, todavia, teve um
significado maior ainda, já que o espírito de Cruzada foi incorporado como uma ideologia de
enfrentamento contra os inimigos da fé cristã em toda a Cristandade Ocidental e marcou o
período1.
Em dezembro de 1144, a perda do Condado de Edessa, uma das primeiras cidades
ocupadas pela Primeira Cruzada, para o governador de Monsul e Alepo, Zangi Imadad-Din
(1127-1146), reavivou o espírito beligerante dos cristãos para uma nova convocação.
Glorificada pelo Papa Eugênio III (1100-1153, Papa desde 1145) e estimulada pelo abade
cisterciense Bernardo de Claraval (1090-1153), os cristãos rumaram para a Terra Santa em
uma segunda Cruzada, então liderada pelo rei da França, Luís VII (1120-1180, rei desde
1137), e pelo Imperador germânico, Conrado III (1138-52). Ainda que conduzissem uma
grande armada pela Ásia Menor, os exércitos cristãos foram praticamente destruídos pelos
constantes ataques das hostes turcas.
Além dos exércitos comandados pelo rei francês e pelo Imperador alemão, um terceiro
contingente, saído da Inglaterra e formado por escoceses, flamengos, germanos, normandos e
ingleses, também pretendia, por via marítima, alcançar a cidade de Jerusalém. A escolha desse
caminho inevitavelmente obrigava os cruzados a passarem pela cidade de Lisboa, pois,
naquele contexto, já era a maior e mais importante cidade da fração Ocidental da latinidade, o
que lhe conferia o papel de um entreposto estratégico de abastecimento para viajantes que se
deslocavam para o sul daquele continente e para a África.
1
CORRAL, J. L. En el origen de las Cruzadas (1095-1119), In: Breve historia de la Orden del Temple.
Barcelona Edhasa, 2007, p. 23-42.
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Ao passarem por Lisboa, os cruzados auxiliaram o monarca português, Afonso
Henriques (1109-1185, rei desde 1139), a reconquistar aquela cidade, que estava sob o
domínio muçulmano desde o ano de 719. As venturas e as adversidades transcorridas durante
essa empreitada foram relatadas, em forma de carta, por um cruzado inglês conhecido como
Osberno. Maria João Violante Branco, na introdução do livro A Conquista de Lisboa aos
Mouros: relato de um cruzado2, traduzido e editado por Aires Augusto Nascimento, informa
que o texto é conhecido somente por meio de uma única cópia preservada no Colégio Corpus
Christi de Cambridge, e que foi incorporado àquela coleção na primeira metade do século XVI,
por Mathew Parker (1504-1575), aluno e futuro vice-chanceler da própria Universidade e
futuro Arcebispo de Cantuária. Ainda segundo ela, estudos de crítica textual e de análise
paleográfica e diplomática do documento atestam que ele foi escrito entre a metade do século
XII e primeira metade do século XIII, o que reforça a tese de que a narrativa foi produzida em
um período muito próximo aos acontecimentos relatados3. Neste sentido pode-se afirmar que
pelas informações apresentadas na fonte, trata-se igualmente de um autor que vivenciou
plenamente o movimento e o espírito das Cruzadas 4.
Las personas que vivieron en esa época sabían perfectamente lo que era una
Cruzada. En los escritos de los cronistas, de los apologistas y los canonistas, así
como en las expresiones empleadas por quienes redactaban cartas Papales,
podemos identificar señales que informaban a los fieles de que se estaba
predicando una Cruzada. En primer lugar, los participantes, o algunos de ellos,
eran llamados a “aceptar la cruz”, lo cual quería decir que debían prestar
juramento antes de incorporar a una expedición militar con objetivos
concretos5.
Na leitura do texto, é possível constatar também que o autor pertencia ao clero e que
construiu a visão desse clero sobre a missão que cabe à Igreja, a um monarca cristão e às
hostes cristãs, no combate aos infiéis. Embora esses três segmentos tenham interesses
distintos, uma vez que Afonso Henriques buscava consolidar seu poder sobre um reino recém2
3
4
5
Essa obra para a qual a referida professora faz a introdução foi ditada e traduzida com notas por Aires
Augusto Nascimento a partir do texto original De Expugnatione Lyxbonensi. Lisboa, Nova Vega, 2007, 2ª
edição (Coleção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, 96), edição que utilizamos para as nossas
citações. Desse ponto em diante será usada a abreviação CLM como referência a fonte A Conquista de
Lisboa aos Mouros: relato de um cruzado.
BRANCO, M. J. V. Introdução. In: CLM, p. 9-51.
O valor e a grandeza desse episódio, narrado no documento aqui analisado serviram de cenário para o
escritor português José Saramago (1922-2010) escrever, em 1989, o romance História do Cerco de
Lisboa. No livro o autor aborda de modo original e criativo a complexa relação entre os limites da
história e da ficção. Sobre a contribuição dessa obra para a revitalização do romance histórico veja-se,
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. A Idade Média revis(it)ada: História(s) do cerco de Lisboa. In:
IPOTESI: Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 15, n.1, p.
153-161, jan./jun. 2011.
RILEY-SMITH, J. ¿Qué fueron las Cruzadas? Barcelona: Acantilado, 2012, p. 25.
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criado, a Igreja buscava substituir o Islam pelo Cristianismo e os soldados procuravam
alcançar um expressivo espólio da guerra, o autor do relato construiu um discurso religioso
com o objetivo de atender a diferentes objetivos. Neste sentido, somam-se aos ideais de
Cruzada com os desejos de Reconquista, uma vez que,
[…] O cerco à Lisboa Muçulmana, desta maneira, assume-se como um
microcosmo que contém todas as potencialidades dos movimentos presentes
nessa época: a fragilidade do bloco muçulmano; o ímpeto crúzio que vem,
neste caso, de Inglaterra, e o movimento de Reconquista, desta feita
corporizado em Afonso Henriques6.
Margarete Labarge afirma que a determinação que levava os homens a criarem e a
participar das Cruzadas é ampla, pois a análise dos fatos é ao mesmo tempo mais complexa e
mais interessante, porque são muitas as razões que moviam os cruzados. O autêntico
idealismo e os fervores religiosos eram entrelaçados em sonhos mais que seculares de
aventura; uma vez que a cavalaria medieval encontrou nas Cruzadas uma maneira de escapar
da monotonia cotidiana por meio de combates vitoriosos, juntamente com motivações
religiosas e a possibilidade de alcançar um rico espólio de guerra7.
O texto A Conquista de Lisboa aos Mouros: relato de um cruzado, também revela as
questões apontadas acima, uma vez que a realidade de conquistas políticas e de bens
materiais somava-se aos ideais e às esperanças de recompensas espirituais. Trata-se,
portanto, de um documento com informações preciosas sobre a importância da Península
Ibérica medieval como espaço de lutas e de propagação das desavenças entre cristãos e
mulçumanos. Devido a isso e à natureza desse evento, apresentaremos um corte temático que
privilegiará uma análise sobre a maneira como esse documento propagava os ideais de
Cristandade frente aos muçulmanos e, mais especificamente, como estes foram representados
durante o cerco e a tomada da cidade de Lisboa pelos cristãos. É a tensão de um texto
fundamentado na mentalidade cristã com explícitos desejos de propagar a superioridade da
sua fé frente à religião muçulmana.
Análise da narrativa.
A narrativa tinha como finalidade lembrar aos cavaleiros reunidos para o assalto e a
expulsão dos muçulmanos daquela cidade que a causa religiosa deveria ser posta acima das
6
7
MONTE, M. P. do. Cruzada e Reconquista: as duas faces da conquista de Lisboa em 1147. In: Medievalista
online. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, ano 4, n. 5, 2008:
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA5
LABARGE, M. W. Viajeros medievales: Los ricos y los insatisfechos. Madrid, Editorial Nerea, 1992.
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cobiças materiais, o que revela que se trata de um documento de propaganda da milícia cristã,
inspirada pelo pensamento de São Bernardo de Claraval. Todavia, para o medievalista
espanhol Ayala Martinez, o abade de Claraval não inventou uma nova espiritualidade
guerreira, nem justificou a harmonização da tradição monástica com a milícia armada. Tratouse de um propagandista de uma nova ética guerreira centrada na disciplina e no compromisso
da cavalaria com a Igreja, que passava por um processo de renovação em torno da primeira
centúria do século XII8.
Nesse sentido, parece plausível, também, apreciar o texto sobre o Cerco de Lisboa
como um desdobramento das ideias do abade de Claraval, aplicado à realidade da Península
Ibérica, questão também abordada por Maria João Branco, ao afirmar que aquela narrativa
não estaria fora do ambiente em que nasceu e das motivações que parecem secundar a
campanha de “propaganda” da conquista de Lisboa, o que levou a tradição hispânica e
Ocidental como um todo dos séculos XII, XIII e XIV a considerar o fato como um ponto
determinante9.
Com esse propósito, o autor, ao longo do texto, cria uma série de situações em que a
única possibilidade de vencer os inimigos e de reconquistar aquela cidade seria a manutenção
do espírito de união, baseado nos ensinamentos cristãos. Para tanto, desde a saída do porto de
Dartmouth, Inglaterra, ele transforma cada nau em um microcosmo cristão e, nelas, homens
de diferentes regiões e reinos da Europa deveriam fazer promessas de concórdia e de
amizade, bem como respeitar as hierarquias, renunciar às vaidades pessoais e, acima tudo,
que em cada navio se cumpra os ofícios religiosas com se ele fosse uma paróquia. Partir para a
expulsão dos infiéis transformava-se em padecimento e peregrinação em direção ao
desconhecido, em que sereias emitiam sons horripilantes, acompanhados por lamentos, risos
e gargalhadas, como se fossem gritos de tropas em provocações aos opositores 10.
La extensión creada se transforma en espacio sobrenatural. De forma
deslumbrante, durante siglos, la peregrinación ha evidenciado la avidez con la
que (sin duda en todo el mundo) lo sagrado se alimenta del espacio. El hombre
se somete así a una prueba con el fin de alcanzar unos lugares saturados de
símbolos engarzados – de tal do modo que la misma aproximación queda por
anticipación santificada en virtud del objetivo al que tiende11.
8
9
10
11
AYALA MARTINEZ, C. La Orden del Cister y las órdenes militares. In: Actas - I Colóquio Internacional:
Cister, os Templários e a Ordem de Cristo. (eds. José Albuquerque Carreiras e Giulia Rossi Vairo). Tomar:
Laboratório de Tecnologia e Artes Gráficas, Instituto Politécnico de Tomar, 2012.
BRANCO, M. J. V. Op.Cit., p.11.
CLM, p. 57.
ZUMPHOR, P. La medida del Mundo: representación del espacio en la Edad Media. Madrid: Ediciones
Catedra, 1994, p. 182.
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A narrativa transita entre os fatos políticos, ou seja, a presença indesejável dos
inimigos da fé e a necessidade de devolver àquela cidade as insígnias da verdadeira religião.
Com isso, pode-se afirmar que a religiosidade cristã ibérica também se construiu em oposição
aos paradigmas e à presença do Islam naquele território.
Em diversas passagens, o texto insiste que somente por interferência divina as hostes
cristãs poderiam vencem os obstáculos, recuperar a vida normal e se revigorar para vencer os
infiéis. A presença de seres fantásticos como as sereias assume aqui, um caráter pedagógico,
pois serve para mostrar aos soldados que os perigos são constates, e que precisam ser
decifrados para se afastarem dos maus presságios. Com esse intuito, o autor descreveu os rios,
as principais cidades, as fortalezas, as igrejas e os mosteiros, entre outras, como locais onde se
cultivava uma fartura alimentar e onde a natureza gerava alimentos em abundância. Além
disso, aponta alguns lugares, como a cidade do Porto, cujos areais curariam diversas doenças,
inclusive a lepra12.
Um dos pontos mais significativos do documento é a descrição que o autor faz do
sermão pregado pelo bispo do Porto, D. Pedro de Pitões, informando que no dia anterior já
estivera com o rei português D. Afonso Henriques e que desejava transmitir as determinações
que recebera do monarca lusitano. Esse bispo fez um longo discurso sobre as razões e os
procedimentos que os cruzados deveriam adotar para tomar a cidade de Lisboa e expulsar de
forma definitiva os infiéis13. Trata-se de uma belíssima passagem que possibilita uma ampla
análise sobre o significado da guerra em uma perspectiva da Cristandade medieval. Não
obstante, destacaremos os principais pontos em que se exaspera o Cristianismo em
contraposição à religião e ao modo de vida dos muçulmanos.
A princípio, o autor exalta a excepcionalidade do cristão como povo escolhido por
Deus, para, em um segundo momento, representar o muçulmano como seu oponente e,
consequentemente, inferior. Em relação ao cristão, o texto os descreve como “gente bem
aventurada e escolhida por Deus”, “privilegiados por Deus por entenderem os caminhos da
disciplina”, “piedosos”, “filhos de uma terra feliz que nutre sentimento de unidade e santidade
no seio da Igreja”, “vida de pureza religiosa”, “amparados por Cristo em nome de Deus”,
“cumpridor e observante da lei”, “dignos”, “justos”, “sinceros”, “honrados”, “únicos filhos da
primitiva Igreja”, “sementes de Deus”, “virtude e graça que agrada a Deus e aos homens”, entre
outros predicados morais e religiosos14.
12
13
14
CLM, p. 59-61.
CLM, p. 61-63.
CLM, p. 63-65.
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Para exaltar ainda mais os combatentes cristãos evidencia-se, mais uma vez, a
influência do Tratado da Nova Milícia de São Bernardo quando o sermão adverte
constantemente os combatentes para se não esquecerem de que nessa campanha haviam sido
renascidos pelo batismo da penitência e novamente revestidos de Cristo, o que os tornava
superiores aos inimigos. Nesta acepção somente o Catolicismo poderia oferecer armas para os
homens lutarem contra a cobiça e a desarmonia.
[...] Eliminai, pois, a inveja que deita a perder a caridade e alimenta a discórdia
que corrói e mirra o corpo não lhe permitindo manter a saúde e o vigor, pois a
peste da inveja enquanto dilacera a alma, consome o corpo e mata nele o que
parece ter de bom [...] É necessária, pois, a prática do amor, coisa que entre os
maus não diríamos propriamente amor, mas simultaneidade; na verdade, não
há amor senão entre os bons, pois não há amor consistente a não ser que haja
afecto de ambas as partes. A guarda deste amor ou caridade é a inocência que
é considerada de tanta virtude e graça que agrada a Deus e aos homens [...] A
inocência, na verdade, repele o ferro, embota o fio das espadas, detém os
inimigos, repele as intenções dos maus, pois por maravilhoso juízo da
Providência divina, sempre há alguém de mau espírito e consciência torpe é
certo e seguro que um obstáculo o segue para não actuar contra a inocência 15.
A passagem acima é apenas um exemplo do que se esperava de um verdadeiro
guerreiro cristão para vencer os inimigos da fé, uma vez que abandonar estes e outros vícios
era perpetrar uma guerra justa, principalmente porque ela possibilitava banir daquelas terras
homens que provocavam ruínas, que geravam devastações, que fustigavam as Igrejas, que
matavam religiosos. E acrescenta:
Que há efetivamente no litoral hispânico que tenha surpreendido o vosso
olhar e que não demonstre senão traços de memória da sua devastação e
vestígios da derrocada? Quantos destroços de cidades e de igrejas percebestes
nele pelo olhar ou pelas informações dos seus habitantes? Por vós chama a
Madre Igreja, já quase de braços mutilados e de rosto disforme, reclamando o
sangue de seus filhos e a vingança por vossas mãos. Clama, sim clama:
‘Executai a vingança nos estranhos, exorcizai os povos’16.
A partir dessa exaltação, o texto emprega uma linguagem beligerante contra a presença
dos muçulmanos na Península Ibérica, já que eles geravam ou eram “violentos”, “injuriosos”,
“homicidas”, “salteadores”, “adúlteros”, “ímpios”, “parricidas”, entre outras características, de
modo que era necessário eliminá-los. Para o autor, tal ação não consiste em atrocidade
quando se castiga com retidão em nome de Deus, mas sim num ato piedoso e justo 17.
15
16
17
CLM, p. 65-67.
CLM, p. 67-69.
Sobre a formulação medieval de guerra justa, consultar GARCÍA FITZ, F. La justificación religiosa de la
guerra: el concepto de la guerra santa. In: La edad media, guerra e ideología, justificaciones religiosas y
jurídicas. Madrid: Silex, 2003.
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[...] Fazei guerra justa com o zelo da justiça, não com o fel da indignação. ‘A
guerra justa, aliás, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por declaração para
reaver o que é nosso ou com o fim de expulsar os inimigos’; e porque é justa a
causa de ‘punir homicidas, sacrílegos e envenenadores, a efusão de sangue não
é homicídio’. Também ‘não é cruel quem elimina os cruéis’. Ou ‘quem elimina
os maus, pelo facto mesmo de serem maus, e tem razões para os matar, é
ministro do Senhor’18.
Para que a viagem ganhasse ainda mais as dimensões sagradas em sinais prodigiosos, o
autor transformou a extensão espacial a percorrer em um caminho de provações. Os cruzados
se submeteriam, assim, a uma prova de superação, cuja finalidade primordial era alcançar os
lugares que outrora pertenciam aos verdadeiros e únicos cristãos, mas que naquele momento
estavam ocupados pelos inimigos da fé. Para exemplificar essa questão, o autor utilizou como
metáfora uma disputa celestial entre duas grandes nuvens, uma branca e outra negra. A
nuvem de cor branca representaria os cristãos, e a nuvem de cor negra os muçulmanos. Como
desfecho da disputa, o relato mostra a cor branca como vencedora, ou seja, uma vitória dos
seguidores de Cristo sobre os adeptos de Maomé. Com isso a narrativa projetava para os
soldados cristãos uma expectativa de vitória predestinada e sem precedentes 19.
[...] Foi o caso que umas nuvens grandes e resplandecentes que vinham
connosco dos lados das Gálias nos apareceram a irem ao encontro de outras
grandes nuvens de farrapos negros que vinham de terra firme; eram como
fileiras em linha de batalha e juntando cada qual as suas alas esquerdas
entraram em luta com ímpeto extraordinário, umas, a modos de infantaria
ligeira, vindas da direita e da esquerda davam a impressão de saltarem para o
combate, outras pareciam tornear as demais para encontrarem uma entrada,
umas tantas pareciam penetrar noutras de modo e, depois de nelas entrarem,
esvanecê-las como se fossem de vapor; umas levadas para cima outras para
baixo, ora parecendo quase a tocar nas águas ora a perder-se do olhar nas
alturas. Quando finalmente, a grande nuvem, que nos acompanhava desde as
nossas terras, arrastou consigo toda a impureza do ar de tal modo que parecia
ficar para além dela uma espécie de azul extremamente límpido, no seu
movimento dominou todas as outras que vinham de terra, como que
proclamando vitória dispôs as prisioneiras na sua frente e, só, assumiu o
domínio do espaço celeste enquanto as outras todas se começaram a
desvanecer ou, se alguma pequenita ficava, víamo-la refugiar-se junto da
cidade, enquanto nós clamávamos: “Eia, a nossa nuvem venceu! Eia, Deus está
conosco! Está em dispersão a força dos inimigos. Estão a ficar perturbados,
pois o Senhor os dissolverá”20.
18
19
20
CLM, p. 69.
Para uma leitura sobre a simbologia religiosa presente no Cerco de Lisboa e em outras guerras
peninsulares durante a Idade Média, consultar COSTA, R. da. A Guerra na Idade Média: Um estudo da
mentalidade de Cruzada na Península Ibérica. Rio de Janeiro, Edições Paratodos, 1998.
CLM, p. 75.
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O autor conclui o sermão fazendo um paralelo entre o passado bíblico e realidade
presente, pois pretendia justificar o uso da violência contra os muçulmanos a partir de
experiências passadas, principalmente em situações em que, ao seguirem a vontade de Deus,
os homens já tinham realizado guerras legítimas, como o homicida e parricida Abraão, o
implacável Finéias, o rigoroso Elias, o zeloso Simão Cananeu, entre outros. Para ele, os cristãos
deveriam seguir o exemplo de Abraão, que fez guerras contra idólatras, ou de Finéias, filho de
Eleazar, que matou heréticos para livrar o povo de Israel de uma praga que o afligia, ou ainda
de Elias, que defendeu Yahweh contra o culto a Baal. Nesse aspecto, o autor rememorava o
passado
e
fundamentava
a
veracidade
de
seus
argumentos
numa
tradição
veterotestamentária muito usada na Península a fim de corrigir o presente ao comparar os
muçulmanos aos idólatras, heréticos e adoradores de um falso Deus. Sobre a relação entre
passado e presente como legitimador da história, Juan António Estrada afirma que
[…] Cualquier movimiento que surge en la Iglesia tiene que integrarse dentro
de las estructuras e instituciones existentes. Por eso, retrospectivamente, cada
teología buscó legitimar la vida religiosa, vinculándola a otros acontecimientos
cristianos anteriores. Lo primero es la realidad histórica, luego viene la
tematización teológica y a búsqueda precursores, influencias y antecesores 21.
Para justificar, ainda mais, a necessidade de expulsão dos inimigos da fé cristã, o autor
descreveu Lisboa como um local paradisíaco a ser conquistado. Com isso, mais uma vez, o
mundo maravilhoso se revelava, e a cidade de Lisboa oferecia uma possibilidade de
concretização material e espiritual de muitos dos anseios dos cristãos. Contudo, insiste a
narrativa, ela estava ocupada pelos mouros, o que impossibilitava os soldados de aproveitar a
abundância de seus recursos naturais, da fertilidade do seu solo, onde tudo que se plantasse
se colheria, assim como do rico comércio que enriqueceria a todos. Não bastasse isso, a cidade
oferecia águas com propriedades medicinais que podiam curar diversas doenças. E, o mais
atrativo para a sociedade guerreira da época, éguas que se reproduziam apenas com o sopro
do vento.
[...] Tem ouro e prata e nunca faltam produtos de ferro. Predomina a oliveira.
Nada fica nela por cultivar ou é improdutivo nem fica sem trazer uma messe
ambulante. Não amanham o sal, mas escavam-no. [...] Até os terrenos áridos
estão recobertos de pastos. É famosa por muitos gêneros de caça. [...] É
saudável de ares. Tem, por outro lado, esta cidade banhos quentes. [...]
Próximo fica o castelo de Sintra, a uma distância de umas oito milhas, local
onde há uma fonte puríssima, cujas águas, segundo dizem, servem para curar
a tosse e a tísica, pelo que quando os moradores ouvem alguém a tossir
depreendem que não é natural dali [...]. Nos seus campos espinoteiam éguas
21
ESTRADA, J. A. La vida religiosa y el laicado. In: Religiosos en una sociedad secularizada: Por un cambio de
modelo. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 21.
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de surpreendente fecundidade, pois, ao serem bafejadas pelos favónios,
concebem do vento e, depois, atacadas pelo cio copulam com os machos, assim
se acasalando com o sopro das brisas22.
Conquanto apresentasse a cidade com essas características, quando os cruzados
cristãos começaram a entrar, encontraram uma realidade caótica, com ruas abarrotadas de
pessoas vivendo em promiscuidade. Isso ocorria, segundo o autor, porque não havia entre
eles forma alguma de limite e cada um impunha sua própria lei, o que atraía gente de toda
parte do mundo, principalmente os mais viciados. De acordo com o relato, os muçulmanos
transformaram Lisboa em um viveiro de toda a licenciosidade e imundície23.
Antes que se iniciasse o cerco da cidade, que ocorreria em 1 de julho daquele ano, o
autor descreveu uma série de eventos, tais como: a montagem dos acampamentos, as diversas
tentativas de conciliação com os muçulmanos, a presença e as negociações do rei D. Afonso
Henriques com os cruzados, os difíceis acordos e deliberações e, principalmente, a pressão
dos cristãos sobre os seus oponentes para desocupar a cidade. Nesse episódio, o autor destaca
a importância do Arcebispo de Braga e do bispo do Porto como negociadores e motivadores
da batalha que se avizinhava. O Arcebispo de Braga iniciou o seu discurso afirmando que a
religião dos seguidores de Maomé é um equívoco: “O Deus de paz e de amor retire dos vossos
corações a venda do erro e vos converta a si” 24. Em diversas passagens a narrativa afirma que
os cristãos vinham em nome da paz e desejavam a paz, porém reivindicavam a cidade como
um direito natural e sagrado, tomada e conservada pelos muçulmanos por meio da pilhagem.
[...] Fostes vós que viestes da terra dos mouros e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o
reino da Lusitânia a um rei vosso e nosso. São inúmeras as depredações que se fizeram e
continuam ainda a fazer sobre as cidades e aldeias com suas igrejas desde esse tempo até hoje
[...]25. O discurso do bispo foi concluído projetando que a violência que se praticaria durante a
tomada da cidade era culpa dos próprios muçulmanos, pois se tratava de um povo que
praticava uma religião doentia.
[...] Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso
sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais
útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue;
de facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada
depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências
extremas pra ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra virá
22
23
24
25
CLM, p. 77-79.
CLM, p. 79.
CLM, p. 93.
CLM, p. 95.
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se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis
extintos [...]26.
A resposta supostamente dada por parte dos muçulmanos também expôs, entre outras
possibilidades de leitura, uma visão negativa sobre aquela cultura e sobre aquela religião, já
que foram considerados intransigentes nos acordos, provocadores, culpados pela violência,
blasfemadores, conscientes de que cometiam pecados.
[...] Quanto a esta cidade, ao que me parece, foi ela vossa em tempos; mas
agora é nossa; no futuro talvez seja vossa. Isso, no entanto, será da vontade
divina, enquanto Deus quis, tivemo-la nós; quando não quiser, não a teremos.
[...] Seja-nos pois grato o que a Deus for grato, Ele que tantas vezes livrou o
nosso sangue das vossas mãos; não deixamos de olhar para Ele e para as suas
disposições, e com razão, por isto: porque Ele não pode ser vencido e porque
tem sob o seu domínio todos os males e, por outro motivo, mais importante
ainda, porque é Ele quem nos sujeita aos infortúnios e às dores ou às injurias.
[...] Mas, para que hei-de demorar-vos mais? Fazei o que estiver ao vosso
alcance. Nós, o que for da vontade de Deus27.
Aqui, percebemos, portanto, que o uso da violência por parte dos cruzados já fazia
parte da “lógica” da guerra cristã. Como afirma Riley-Smith, a violência não era um mal
intrínseco, mas moralmente neutro, pois o seu valor moral derivava das intenções de seus
perpetradores. Ainda segundo esse autor, a partir de um ponto de vista teórico, era possível
conceber uma violência “boa”, e ações repressivas “justas”, ideia que constituía uma das bases
do conceito medieval de guerra. Somando-se a isto, completa o autor, era a convicção de que
Deus estava intimamente relacionado com as estruturas e os acontecimentos políticos, haja
visto que este mundo seria o resultado da sua vontade e a violência servia para justificar uma
reação imprescindível contra a injustiça ou a agressão 28.
Como se pode perceber no relato do cruzado inglês, os mouros são descritos como
obstinados a continuar nos seus erros. A essa teimosia, o bispo do Porto rebateu
enquadrando-os como extremistas incorrigíveis: Vós, como é vosso hábito, fixais num ponto
apenas o motivo e o objetivo da vossa obstinação e esperais pelo acontecer dos fatos e das
desgraças. Ora, é frágil a esperança e débil a confiança que não procede do próprio valor, mas
depende da miséria alheia [...] 29.
Segundo o documento, antes de 21 de outubro de 1147, data em que a cidade foi
efetivamente ocupada, os cristãos assediaram Lisboa e se dedicaram aos preparativos da
26
27
28
29
CLM, p. 95.
CLM, p. 97-99.
RILEY-SMITH, Op.Cit., p. 31.
CLM, p. 99.
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batalha construindo máquinas de guerra, elaborando as melhores estratégias, organizando e
dividindo os exercícios cruzados, tudo isso com dedicação e fé na vitória. Os muçulmanos, ao
contrário, zombavam dos cristãos, ameaçando-os e os insultando, [...] cuspindo, urinando e
fazendo gestos opróbios aos nossos 30. Segundo o relato, os maometanos, por meio desses
abusos e dessas desonras, professaram contra Deus, motivo pelo qual haveriam de ser
castigados. Desse modo, a narrativa transforma a vitória dos cristãos e, consequentemente, a
derrota dos muçulmanos em um resultado previsível da própria vontade de Deus.
Isso acontecia porque a justiça divina os mantinha obcecados. Quantas vezes
por nós foram instados, quantas vezes lhes foram caucionados os seus direitos
e bens, com a condição de saírem livremente da cidade para onde quisessem
ou lhes foi admitido que ficassem em posse plena de tudo, desde que nos
entregassem a fortaleza da cidade! Mas nunca o nosso Deus permitiu que a sua
obstinação terminasse senão na pior e extrema desonra. Estava, efetivamente,
nas previsões de Deus que sobretudo nestes tempos se daria o castigo aos
adversários da Cruz através de homens de pouco valor, não importa quem eles
fossem. De facto, tal como depois nos apercebemos, Deus tinha-os entregue a
paixões de ignomínia31.
Como uma espécie de balanço final da reconquista da cidade, a parte derradeira do
texto é reservada para justificar a vitória cristã, assim como a maneira como ela foi
reconstruída após a expulsão dos muçulmanos. O texto reforça a ideia de que o triunfo dos
cruzados, ainda que muitos soldados cristãos insistissem em se afastar de uma guerra justa e
desejada, também proporcionaria a reconciliação com o verdadeiro Deus e à obediência a Ele,
caso contrário [...] sereis semelhantes aos que ultrajaram a Cristo com bofetadas e lhe cuspiram
no rosto ou lhe bateram na cabeça e lhe colocaram em cima a coroa de espinhos 32. Assim, o
verdadeiro cristão é aquele que não comete qualquer pecado e os fazem diferentes dos
mouros que profanam a fé ao macular a cruz, ou como fizeram outrora os judeus, que
martirizaram o corpo de Cristo.
Ainda mais, o texto afirma que Deus, na sua sabedoria, havia criado e redimido os
pecados dos homens enviando seu filho, o qual somente era possível reencontrar por meio da
Igreja. Colocar a Igreja Católica como depositária da justiça e da guerra, como nos diz o
fragmento abaixo, revela que o ensejo fundamental do verdadeiro cristão estaria na defesa e
propaganda dos valores em que assenta a sua crença. Neste sentido, a fé vinculada à Igreja,
apresenta-se como valor objetivo, ainda que para isso seja necessário praticar atos de
30
31
32
CLM, p. 105.
CLM, p. 107.
CLM, p. 119.
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violência contra aqueles que ela considera desprezíveis e imorais 33. Para fundamentar o
emprego derradeiro da violência contra os muçulmanos, o relato do cruzado inglês afirma que
os ocupantes da cidade de Lisboa são os seres mais ignominiosos do mundo. Para mais, afirma
ainda, que eles concebem Cristo de forma errada, e que somente a Igreja de Roma sabe
distinguir a verdadeira missão do filho de Deus.
[...] Ora, o Filho de Deus, tal como a Igreja católica acredita e venera, assumiu a
natureza humana para nela sofrer o que era próprio do homem. É este o
remédio dos homens tão grande que nem se pode pensar quão grande seja. Ó
remédio que a todos dá conforto, que elimina o que é supérfluo, que guarda o
indispensável, repara o perdido, corrige o depravado! [...] 34.
Embora em diversas partes da narrativa o autor Osberno assegure que a cidade seria
tomada com o único objetivo de restabelecer a paz e a ordem sob os preceitos cristãos,
mostra-nos que os juramentos feitos pelos cristãos não se concretizaram, uma vez que no
assalto final foram cometidos saques e iniquidades contra todos os habitantes da cidade,
independentemente da idade, do sexo ou da fé que eles professavam.
Podemos considerar, portanto, que o texto sobre o cerco da cidade de Lisboa espelha
os ideais cristãos que almejavam a libertação de Jerusalém. Lisboa figura muito mais que uma
paragem necessária para o abastecimento, uma vez que nela habitam os “inimigos da fé” e, ao
reconquistarem-na, revelaram, por meio de suas ações, o sentido e o espírito de uma
verdadeira guerra santa.
Outra questão importante para compreensão do texto, e não pode ser esquecido, o
autor pertence ao universo mental das Cruzadas e, possivelmente, reunia funções sacerdotais
e guerreiras. Adotou um ideal de guerra propalado por São Bernardo de Claraval, e por meio
dele construiu uma narrativa que recuperava diferentes vozes com um desejo fervoroso de
superação e de mudança, cujas expressões máximas traduzem-se em bens materiais e em
conforto espiritual, ainda que para isso tenham lançado mão das armas e da violência contra
os consideram inimigos da fé católica.
33
34
PIKAZA, Xabier. Violencia y religión en la Historia de Occidente. Valencia: Tirant lo Blanch, 2005, p. 189.
CLM, p. 121.
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A Trama da História na concepção de povo
nas Siete Partidas
The weft of History in the concept about people
in the Siete Partidas
Aline Dias da Silveira*
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Abstract
O artigo a seguir pretende aplicar uma
perspectiva de análise que tem como pressuposto
o entrelaçamento de aspectos e conjunturas
históricas. De acordo com a perspectiva
apresentada, propõe-se analisar a concepção de
povo na obra Siete Partidas, percebendo-a como
um ponto de interconexão na trama maior da
História. A análise desses fios da História
demonstra que a construção da ideia de povo nas
Siete Partidas – uma tentativa de construção
identitária – não se configurou somente a partir
da conjuntura histórica de Reconquista,
repovoamento e disputas nobiliárquicas da
Castela do século XIII. Para entender esta
construção é necessário identificar e analisar
também
os
fios
e
interconexões
do
entrelaçamento transcultural mediterrânico.
This article aims to apply an analytical
perspective that presupposes the intertwining of
historical aspects and conjunctures. Some threads
of a small part of the great historic fabric are
reconstituted, demonstrating the interlacements
that transcend themselves in weaving of an idea.
According to the perspective presented, the
concept of people is analyzed is studied as a point
interconnected in the larger scheme of history.
The analysis of these threads of history shows
that the construction of the idea of people in the
Siete Partidas was not configured solely from the
historical
conjuncture
of
Reconquista,
repopulating and disputes nobiliary in the
thirteenth-century of Castile. To understand this
construction, it is also necessary to identify and
analyze the threads and interconnects of the
transcultural intertwining.
Palavras-chave: entrelaçamentos da História;
Siete partidas; povo; microcosmo; macrocosmo.
Keywords: interlacements of History; Siete
Partidas; people; microcosm; macrocosm.
● Enviado em: 18/10/2014
● Aprovado em: 25/11/2014
*
Professora Adjunta e coordenadora do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina,
coordenadora o Núcleo Interdisciplinar de Estudos medievais – Meridianum CNPq/UFSC, é membro
NEMED CNPq/UFPR.
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No tecido histórico, reconstituído pelo Historiador, os fios e os entrelaçamentos que
originam os conceitos e definições não são propícios a delinear centros, mas sim pontos de
intersecção. A definição de povo nas Siete Partidas1 constitui um bom exemplo destes
entrelaçamentos, onde diversas concepções se interseccionam. Nessa exposição, a fontes
serão percebidas como vórtices culturais, por representarem o cruzamento de diversas
correntes do pensamento, transformadas pelo movimento e pelas circunstâncias históricas.
No desenvolver do artigo, será demonstrado como as concepções de povo, terra e rei nas Siete
Partidas foram intimamente construídas dentro da visão neoplatônica de reino. Essa relação
foi construída e expressa de forma harmônica, com tons ontológicos, e em perfeita
consonância com a percepção de mundo que faz da reunião entre micro e o macrocosmo a lei
essencial do Universo.
O artesão dos fios da trama a ser apresentada chamou-se Afonso X de Castela. O rei
Dom Afonso foi poeta e amante do conhecimento, sua corte tornou-se conhecida pela reunião,
convivência e colaboração de intelectuais de diferentes lugares e credos. Principalmente, nas
traduções do árabe para o Castelhano, trabalhavam juntos judeus, mouros e cristãos2.
Francisco Márquez Villanueva descreve o ambiente intelectual da Castela do século
XIII, relacionando-o com a tradição da cultura Toledana:
La vida española venía haciendo posibles en determinados ambientes unas
condiciones únicas para la colaboración intelectual entre gentes de diversas
religiones. El intercambio científico en que asienta la tarea alfonsí era en
España un fenómeno decididamente urbano y centrado mayoritariamente
sobre Toledo. Una tradición única y autóctona para la cual moros y judíos, y no
ya clérigos, encarnaban el ideal de la más alta cultura profana. 3
Através de seu scriptorium4 e patrocínio de intelectuais, Afonso ficou conhecido na
história com o epíteto de “o Sábio”. Nascido em 1221, era filho de Fernando III e Beatriz da
1
2
3
4
Neste artigo será utilizada a transcrição das Siete Partidas feita e glossada por Gregorio Lopez em 1555
e reeditada em 2004: ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas. Gregório Lopez (org.). Salamanca, 1555.
(edição renovada, Madrid, 2004).
PROCTER, Evelyn. Alfonso X de Castilla Patrono de las Letras y del Saber. Manuel González Jiménez (trad.),
Murcia, 2002. (Biblioteca de Estudios Regionales, Bd. 38). 132; ROTH, Norman. “Les collaborateurs juifs
à l’oeuvre scientifique d’Alfonse X”. In: BARKAI, Ron. Chrétiens, musulmans et juifs dans l’Espagne
médiéval: de la convergence à la expulsion. Paris, 1994, pp. 203-225; DÍES BRASA, Mariano. Alfonso X El
Sabio y los Traductores españoles. Cuadernos Hispano-americanos, 410, 1984, pp. 21-33.
MÁRQUES VILLANUEVA, Francisco. El Concepto Cultural Alfonsí. Madrid: Editorial Mapfre, 1995, p.69.
Obras desenvolvidas na corte de Afonso X: Legislativas: Especulo (1254, 1255, depois de 1276), Fuero
Real (1255), Siete Patidas (1276), Setenario; Históricas: Primera Crónica General de España, General
Estoira; Traduções: Picatrix ou Gayat al-hakim, Lapidario, Libros de Astromagia, Liber Razielis (cabala),
Libro de los secretos de la naturaleza, Libro de las formas y de las imagénes, Tetrabiblos ou Liber
Quadripartitum (Ptolomeu), Cánones de Al–Battani, Libro conplido de los iudizios de las estrellas, Los
quatro libros de la octava esfera y de sus cuarenta y ocho figuras con sus estrellas, Libro de la alcora o sea
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Suábia, neto de Alfonso IX de Leão e Bisneto de Afonso VIII de Castela. Teve um reinado que
durou de 1252 a 1284, quando faleceu. Sua obra legislativa, bem como suas práticas, deixa
descortinar as ambições de centralização de poder frente a uma forte nobreza de ricoshomens5.
H. Salvador Martinez em sua biografia sobre Afonso X, fala de uma “era alfonsí”
remetendo-se ao Prólogo das Tablas alsonsíes, as quais afirmam:
Et este el reinado del Señor rey don Alfonso, que sobrepujó en saber, seso et
entendimiento, ley, bondat, piedat et nobleza a todos los reyes sabios. Et por
esto tovimos por bien de poner por comienzo de era ell año en que comenzó a
reinar este noble rey, por cabsa que se use et manifieste esta era, ansí como se
usaron te manifestaron las otras eras antes della, porque dure et quede la
nombradía deste noble rey para siempre. Et posiemos el comienzo deste año
sobre dicho 1252 ser comienzo desta era, et posiémosle nombre la ‘era
alfonsí’.6
Salvador Martínez comenta que pela quantidade de Biografias de Afonso X que já foram
escritas, “hay que reconocer que los científicos que trabajaron en las Tablas fueron de uma
clarividência impresionante”7. Entre as biografias escritas nas últimas décadas estão: H.
Salvador Martínez, Alfonso X, el Sabio, una Biografía, Madrid: Ediciones Polofemo, 2003; F.
Perez Algar, Alfonso X, El Sabio, Biografía, Madrid: Studium Generalis, 1994; M. González
Jiménez, Alfonso X, El Sábio: 1252-1284, Palência: Disputación Provincial, La Olmeda, 1993; J.
F. O´Callaghan, The Learned King, The Reign of Alfonso X of Castile, Philadelphia: University of
Pennsylvania,1993; A. Ballesteros Beretta, Alfonso X, El Sabio, 2ª ed., Barcelona: El Albir, 1984.
Para o presente artigo serão consultadas as Biografias de H. Salvador Martinez e Joseph F.
O’Callaghan, essa última na tradução para o espanhol (Universidad de Sevilla, 1999).
Do material
O material que constitui os fios deste artigo, ou seja, a fonte principal, é a obra Las Siete
Partidas, a mais completa obra legislativa do scriptorium afonsino. As Partidas foram escritas
5
6
7
el globo celeste (construção de astrolábio); Libros del saber de astronomía, Tablas astronomicas, Libro de
las Cruzes; Literárias: Cantigas de Escarnio, Cantigas de Amor, Cantigas de Santa Maria; Alguns
colaboradores de Afonso X: Boaventura de Siena, Isaac ben Sid (el Rabbi Zag) e Jehuda ben Moses Cohen,
Juan D’aspa, Bernardo el Arábigo, Johannes de Cremona, Egidio Teobaldi de Parma, Roberto Anglicus
(Robert Scotus), Hermanus Alemanus e Juan Gil Zamora.
SAVASTANO, Gladys I. Lizabe de. “El título XXI de la Segunda Partida y la frustración política de Alfonso
X”. Bulletin of Hispanic Studies, n. 4, 1993, pp. 393-402.
ALFONSO EL SABIO. Las Tablas de los movimientos de los cuerpos calestes del ilustrísimo rey Don Alonso
de Castilla. J. Martinez Gázquez ed.. Murcia: Academia Alfonso X el Sabio, 1989, Prólogo.
SALVADOR MARTÍNEZ, H. Alfonso X, el Sabio, una Biografía. Madrid: Ediciones Polofemo, 2003, p.11.
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em língua romance, o castelhano, baseadas em fontes de diferentes tradições e conhecimentos
da Filosofia, do Direito, da História e da mística medieval, além de ser também um Speculum8,
um Espelho de Príncipes, como o autor do prólogo da obra esclarece:
(…) E por esta razõ fezimos señaladamente este libro: porque siempre los reys
del nuestro señorio se catẽ enel ansi como en espejo: e vean las cosas que an
en si de enmẽdar, e las enmiẽden, e segund aquesto que fagan en los
suyos.(…)9
Para além dos tratados de filosofia, os Specula ou Espelhos de Príncipes transcendem as
discussões entre o poder temporal e espiritual, para concentrar-se na vida prática,
administrativa e legislativa do reino. O Speculum é um gênero, cuja função é aconselhar o
“príncipe”, de como esse deveria proceder e de como deveria ser a estrutura do reino. Os
Espelhos de Príncipes aparecem na Península Ibérica desde os primeiros séculos da ocupação
omíada. Os governantes muçulmanos buscavam conselhos nestes livros, de acordo com os
quais o dever essencial do “príncipe” seria a justiça. Os Specula foram buscados no legado
persa, o qual o Islã adaptou, construindo uma unidade entre os valores religiosos e políticos 10
dentro do movimento do translatio studiorum 11 medieval, como será apresentado no decorrer
deste trabalho.
No século XIII, foi despertado o interesse por esse tipo de literatura entre os reinos
cristãos da Península Ibérica, sendo que Jaime I de Aragão e Afonso X de Castela foram os
precursores nas traduções destas obras para o idioma regional. Eles poderiam, dessa forma,
encontrar conselhos de como governar e organizar um reino com grande diversidade cultural.
O estudo recente de Irina Nanu, desenvolvido na tese defendida em 2013 na Universidade de
Valência, trata da relação da Segunda Partida com a tradição dos Specula Principum12. A
autora analisa as estratégias discursivas e conceituais, bem como os recursos retóricos e
simbólicos, nos quais estariam sustentados o ideário político afonsino e as influências
aristotélicas nas Siete Partidas. A respeito da obra de Aristóteles na corte de Afonso X, é
8
9
10
11
12
Ver NITSCHKE, August. Naturerkenntnis und politisches Handeln im Mittelalter: Körper, Bewegung, Raum.
(Stuttgarter Beiträge zur Geschichte und Politik, Bd. 2.) Stuttgart 1967; ROSENTHAL, Erwin I. J.. “La
filosofia política en la España musulmana”. Revista de Occidente, 78, 1969, pp. 259-280; SILVEIRA, Aline
Dias da Silveira. “Relação, Corpo, Natureza e Organização Sociopolítica no Medievo: revelação, ordem e
lei”. In: NORDARI, E. S.; KLUG, J.. História Ambiental e Migrações. São Leopóldo: Oikos, 2012, pp. 147-162.
ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas. Gregório Lopez (org.). Salamanca, 1555. (edição renovada,
Madrid, 2004), Prólogo, p.4.
ROSENTHAL, Ibem, p. 259.
FLORIDO, F. Leon. “Translatio Studiorum: translado de los libros y diálogo de lãs civilizações en la Idade
Média”. Revista General de Información y Documentación, 2005, v. 15, n. 2, 51-77.
NANU, Irina. La Segunda Partida de Alfonso X el Sabio y la tradición de los Specula Principum. Universitat
de València, 2013.
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importante observar, que o aristotelismo que chega à Península, através dos escritos árabes,
já constitui uma mescla com obras neoplatônicas, seja na obra política de um PseudoAristóteles, como a Poridat de las Poridades13 (secretum secretorum), ou nas obras de
astrologia, tão requisitadas por Afonso X:
O universo de que astrólogo tem necessidade não é o de Aristóteles, é o do
aristotelismo árabe no qual os elementos de astronomia e teologia natural e
astral disseminados no livro lambda da metafísica foram retomados,
trabalhados, repensados num quadro teórico distinto do aristotelismo de
Aristóteles: o emanatismo neoplatônico.14
Nas Partidas, encontram-se também menções ao direito visigótico, Liber Iudiciorum
(654), e ao canônico. A obra é constituída de sete partes, pois, de acordo com seu prólogo,
todas as coisas no Universo são divididas em sete: o movimento (para cima, para baixo,
direita, esquerda, frente, atrás e ao redor), os planetas, as esferas planetárias, as zonas
climáticas, os metais e as ciências15. O fundamento para a base da divisão setenária jaz na
relação simpática e harmônica entre a obra e o universo, típico pensamento medieval de
raízes neoplatônicas, que percebe a relação entre a parte e do todo numa intrínseca e
ontológica constituição16. As letras do nome de Afonso, ALFONSO em castelhano, aparecem no
início de cada Partida: Primeira Partida, “A Seruicio de Dios...”; Segunda Partida: “La fé
catholica de nuestro señor...”, e assim por diante até a Sétima Partida, “Oluidança e
atreuimiento son...”. A e O também representam a primeira e a última letra do Alfabeto grego,
Alfa e Omega. Ou seja, Afonso está presente na obra do princípio ao fim, uma simbiose
construída entre obra e artífice. Autores como Kenneth H. Vanderford17, Lapesa18
e
Craddock19 veem nas Siete Partidas a continuação da obra o Setenario, a qual segue o mesmo
princípio desta relação setenária. No entanto, os estudos recentes de Georges Martin apontam
para uma data de composição do Setenario dentro do último terço do reinado de Afonso: “La
coincidencia entre nuestra obra y las últimas redacciones de la Primera partida (para no decir la
13
14
15
16
17
18
19
PSEUDO-ARISTOTELES. Poridat de las Poridades. Lloyd A. Kasten (org.). Madrid, 1957
LIBERA, Alain de. Pensar na Idade Média. Paulo Neves (trad.). São Paulo: Ed.34, 1999, pp.243-244. Ver
também: LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 83.
ALFONSO X, Las Siete Partidas, Ibedem, Prólogo, p. 4.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2010, pp. 90-9.1
ALFONSO EL SABIO. Setenario. Kenneth H. Vanderford (ed.). Buenos Aires, 1945.
LAPESA, Rafael. “Símbolos y palavras en el Setenario de Alfonso X”. Nueva Revista de Filologia Hispanica,
26, 2, 1980, 247-261.
CRADDOCK, Jerry R. “El Setenario: última e inconclusa refundición alfonsina de la Primera
partida”. Anuario de Historia del Derecho Español, 56 (1986), pp. 441-446.
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última) indican que la composición del Setenario debe situarse, no al principio, sino en la
segunda mitad y muy probablemente en el último tercio del reinado de Alfonso X.” 20.
A data da composição das Siete Partidas é controversa e ainda não encontrou um
consenso. Para citar dois autores que discutem este tema, J. R. Craddock 21 considera a
composição da obra entre 1256 e 1265 com uma refundição em 1272, já para Alfonso GarcíaGallo22 as Siete Partidas só teriam obtido sua identidade de tratado doutrinal em 1290 no
governo de Sancho IV.
A primeira publicação das Partidas foi feita em 1491 por Alfonso Díaz de Montalvo, a
qual foi seguidamente impressa até ser superada pela edição de 1555 de Gregorio Lopez 23. As
citações das Siete Partidas apresentadas neste artigo são transcritas da edição de 1555,
reeditada em 2004 pelo Boletín Oficial Del Estado.
Neste ponto, é necessário esclarecer o que significa a autoria do rei que manda fazer
uma obra a partir do entendimento de Afonso e seus colaboradores, segundo os quais: “El Rey
faze un libro, non por quel lo escriua com sus manos, mas por que compone las razones del, e las
emiendas, et yegua, e enderesça, e muestra la manera de como se deuen fazer, e desi escriue las
qui el manda, pero dezimos por esta razón que el rey faze o libro”24. De acordo com essa
passagem da General Estoria , o rei faz uma obra não por que a escreve com suas próprias
mãos, mas porque estabelece os objetivos e assuntos da obra, os reúne, os corrige e cuida para
que sejam escritos na forma adequada. Dessa forma, apesar de as Siete Partidas serem escritas
por diversas mãos anônimas, a obra exprime ainda a visão de mundo e o projeto político de
Afonso X , ou seja, Afonso se percebe como o autor de suas obras legislativas, o rei é aquele
que pode legislar (partida I, titulo I, ley XII).
Do fio da Antiguidade ou do Translatio studiorum
O fio da influência dos textos da Antiguidade é difícil de ser determinado exatamente.
No entanto, esse pode ser vislumbrado pelas menções feitas nas Siete Partidas a Sêneca,
20
21
22
23
24
MARTIN, Georges. “De nuevo sobre la fecha del Setenario”. E-Spania : Revue électronique d’études
médiévales, nº 2 (2006), disponível on-line: http://e-spania.revues.org/381?lang=pt, acessado em
20/08/2013.
CRADDOCK , opus cit.
GARCÍA-GALLO, Alfonso. “La obra legislativa de Alfonso X. Hecho e hipóteses”. Anuario de Historia de del
Derecho Español. 54 (1984), pp. 97-161.
PROCTER, 2002, opus cit., p.63
ALFONSO EL SABIO. General Estoria. Antonio Solalinde (ed.). 2 Tomos. Madrid, 1930, 477b.
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Isidoro de Sevilla, Aristóteles, Cícero, Valério, Catão, Boécio, Agostinho de Hipona25, sendo
Aristóteles o mais citados na segunda Partida. Os textos de Aristóteles chegam a Afonso e a
seus colaboradores através, principalmente, das fontes muçulmanas, em sua maioria
traduções e comentários de obras gregas e persas sob a luz do neoplatonismo. Francisco
Márques Villanueva fala do pouco interesse de Afonso em mandar traduzir as obras latinas
para o vernáculo, seu maior interesse estava nas traduções dos textos árabe para o
castelhano.
Como hijo de sus tiempos carecía de ojos y oídos para La tradición clásica, de
que su vasto proyecto usó únicamente en un plano auxiliar y no como un
objetivo o meta de cultura que para sus reinos deseaba. En un momento en
que comienza a perfilarse una avidez inicial por traducciones de clásicos
latinos, en torno a Alfonso X sólo se lanza traducciones del árabe. 26
No prólogo do Libro de las Cruzes, é possível perceber os motivos, pelos quais Afonso
interessa-se principalmente pelos textos da ciência árabe:
(…)Onde este nostro sennor sobredicho, qui tantos et diuersos dichos de
sabios uiera, leyendo que dos cosas son en el mundo que mientre son
escondidas son prestan nada, et es la una seso encerrado que non se amostra,
et la otra thesoro escondido en tiera, el semeiando a Salamon en buscar et
espaladinar los saberes, doliendo se de la perdida et la mengua que auian los
ladino en las sciencias de las signifitiones sobredichas, fallo el Libro de las
Cruzes que fizieron los sabios antigos que esplano Queydalla, et faula en las
costellationes de las reuolutiones de las planetas et de sus ayuntamentos (..)27
De acordo com o prólogo do Libro de las Cruzes, em paralelismo com o rei bíblico
Salomão, o rei sábio de Castela aprendeu que duas coisas muito importantes não valem de
nada se escondidas: tesouro e conhecimento. Por isso, resolve revelar os saberes dos antigos,
assim, lamentando a perda que os latinos tiveram da ciência, ele busca os árabes.
A busca e tradução dos textos árabes na corte de Afonso X inserem-se na história do
movimento do pensamento neoplatônico e peripatético na Idade Média. Nesse ambiente do
scriptorium afonsino, foram traduzidas, organizadas e comentadas obras de várias correntes
do pensamento filosófico, político e científico, herdeiras de uma genealogia que pode ser
remetida à academia platônica de Atenas. Essa herdeira do neoplatonismo pagão 28 foi
25
26
27
28
ALFONSO EL SABIO. Las Siete Partidas – antologias. Francisco López Estrada ed. Madrid: Editorial
Castalia, 1992. (Obres Nuevos), introdução, p.35.
MÁRQUES VILLANUEVA, Francisco. El Concepto Cultural Alfonsí. Madrid: Editorial Mapfre, 1995, p.60.
ALFONSO EL SABIO. Libro de las Cruzes. Lloyd A. Kasten; Lawrence B. Kiddle (orgs.). Madrid, 1961,
Prólogo, p.1.
LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p.26; HAMEEN-ANTTILA, Jaakko,
“Continuity of Pagan Religious Traditions in Tenth-Century Iraq” In: Antonio Panaino y Giovanni
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transladada para o Império Persa, depois de fechada pelo imperador Justiniano no início do
século VI. Em 532, os filósofos Damáscio, Simplício, Eulâmio, Prisciano da Lídia, Hérmias,
Diógenes e Isidoro de Gaza estabeleceram um espaço para a filosofia pagã na cidade de
Harram (Carrher dos romanos) no norte da Mesopotâmia. A filosofia grega e os estudos
astronômicos/astrológicos Harrianos29, influenciaram a obra dos Irmãos da Pureza (século X)
em Basra na organização de uma enciclopédia do saber Universal, a Ras’il Ikhwân al-Safâ30. É
principalmente a partir do estudo da matéria dessa obra, que Maslama de Madrid compõe a
obra Gayat al-Hakim, o “Objetivo dos Sábios”. Não é surpreendente que, três séculos depois, o
rei Sábio mande traduzir essa obra em seu scriptorium sob o nome de Picatrix, ao lado de
outras traduções do árabe para o castelhano, cujas matérias também expressam os
conhecimentos sobre astrologia/astronomia e astromagia, como o Libro Razielis e o Libro de
Astromagia.
No capítulo “Em torno de Alfonso el Sabio” do livro El Pequeño Mundo del hombre.
Varia Fortuna em la Cultura Española de Francisco Rico, o autor desenvolve a conexão da obra
neoplatônica dos Irmãos da Pureza com o corpus literário afonsino, partindo do PseudoAristóteles Poridat de las Poridades e chegando ao Setenario e às Siete Partidas.31
Esse movimento do saber e seus desdobramentos inserem-se no fenômeno que Alain
de Libera chama de translatio studii e/ou translatio studiorum32, os quais definem o
movimento de textos e intelectuais, principalmente, da direção leste em direção ao oeste do
globo. O espaço principal seria o mediterrâneo e o oriente médio, a delimitação cronológica
seria entre século VI, com o fechamento da escola platônica em Atenas e sua migração para a
Pérsia e, posteriormente, a mesopotâmia, e o século XVI 33, quando processos intelectuais e
político levam o translatio studii desses séculos a um caráter marginal, processos que já
29
30
31
32
33
Pettinato (eds.). Ideologies as Intercultural Phenomena. Melammu Symposia III, Bologna, International
Association for Intercultural Studies of the MELAMMU project, 2002, pp. 89-107
DOZY, Reinhart. “Nouveaux documents pour l’etude de la religion des Harraniens”. In: Michael Jan de
Goeje (ed.), Actes du Sixième Congrès International des Orientalistes tenu en 1883 à Leide, Leiden, Brill,
1885, vol. 2, pp. 283-366; PINGREE, David. “The Sabians of Harran and the Classical Tradition”.
International Journal of the Classical Tradition, 9 (2002), pp. 8-35.
LIBERA, 2011, p.115; RICO, Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la
cultura española. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp.64-65. CALLATAŸ, Godefroid de. “Magia en alAndalus: Rasa’il ijwan al-Safa’, Rutbat al- akim y Gayat al-hakim (Picatrix)”. Revista Al-Qantara, n. 31, V 2,
jul.-dez. 2013, pp. 97-344.
RICO, Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la cultura española. Madrid:
Alianza Editorial, 1986, pp.59-80.
LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 17.
FLORIDO, F. Leon. “Translatio Studiorum: translado de los libros y diálogo de lãs civilizações en la Idade
Média”. Revista General de Información y Documentación, 2005, v. 15, n. 2, 51-77.
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iniciariam no século XIII34. No entanto, mesmo considerando essas definições, Alain de Libera
ainda expressa a transcendência e complexidade das mesmas:
Que nos desculpe Notker, o Alemão, mas nem todos os caminhos saem de
Roma, nem de Atenas e, tampouco, todos levam a Paris. Há várias translationes
studiorum nos confins da Antiguidade e da Idade Média: uma é feita de Atenas
para a Pérsia e da Pérsia para Harran (a não ser que essas duas translações
formem uma só); outras se fazem de Alexandria para os mosteiros sírios dos
séculos VII e VIII; um terceiro movimento vai da cultura siríaca para a cultura
árabe, de Alexandria a Bagdad .(...) Nessa mesma época, o Ocidente cristão
é filosoficamente estéril. Só desperta do longo sono com uma nova
translatio, que vem de Bagdad para Córdoba e, daí para Toledo, isto é:
do Oriente muçulmano para o Ocidente muçulmano e, de lá, para o
Ocidente cristão.35
Enfrentam-se na definição de translatio studiorum os mesmos problemas que em
relação à definição e limites da Idade Média. Pois, a restrição de mil anos para entender os
movimentos do pensamento é ainda mais complicada que os marcos encontrados para definir
os limites do medievo, por ser o pensamento um elemento da longa duração histórica, ou
como observou Fernand Braudel: “os quadros mentais também são prisões de longa
duração”36. Por isso, o entendimento da percepção de mundo na obra de Afonso X precisa
transcender geografias e temporalidades.
Da natureza do rei, da terra e das gentes
José Antonio Maravall salienta que nem o direito romano, que não necessariamente
considera o território como um valor político, nem o pensamento aristotélico, do qual o
conceito de território tem como base a polis, podem oferecer o entendimento que a obra
jurídica e histórica de Afonso dão ao termo território37. De fato, na obra de Afonso, aparece
uma descrição de território que, apesar de grande, está essencialmente relacionado com a
vida e história das comunidades. Dessa percepção do espaço, desenvolve-se o sentido de terra
como pátria nas Siete Partida. Na partida I, titulo I, ley II, sob o título “Del derecho natural, e
delas gentes”, aparece a seguinte referência:
34
35
36
37
FLORIDO, Translatio Studiorum, 69.
LIBERA, Alan de. A Filosofia Medieval, p. 17.
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 50.
MARAVALL, José Antonio. Estudios de Historia del Pensamiento Español. 3.ed., Madrid: Ediciones Cultura
Hispánica, 1983. (Serie Primeira - Edad Media), pp. 100-101.
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(..)E este fue hallado con razon, e otrosi por fuerça, porque los omes non
podrian bien biuir entresi en concordia, e en paz si todos non usassem del. Ca
por tal derecho como este cada vn ome conosce lo suyu apartadamente. E son
departidos los campos, e los terminos de las villas. E otrosi son tenudos los
omes de loar a Dios,e obdescer a sus padres, e a sus madres, e su tierra que
dizen en latin patria (…).
Podemos perceber, nessa passagem, significativa diferença de percepção do espaço em
comparação com a forma feudal. Na circunstância do feudo, a relação dos grupos humanos
com a terra não é a de naturalidade, mas de espaço de trabalho e domínio do Senhor, o qual
não estava necessariamente ligado à terra por naturalidade. Por outro lado, o termo patria,
nesta ley, evoca a naturalidade do direito e do dever de “loar a Dios, e obdescer a sus padres, e a
sus madres, e su tierra”. Veremos, no decorre deste trabalho, que obedecer à terra significa,
simbioticamente, na obra de Afonso, obedecer ao rei. Essa simbiose passa pelo próprio
conceito de natureza nas Siete Partidas que poderia ser interpretado como a forma de ligação
entre o rei, a terra e o povo. Nesse sentido, o amor entre ambos é um dever natural: “Natureza
e vassallage son los mayores debdos que ome puede auer con su Señor. Ca la natureza le tiene
siempre atado para amar lo e non yr contra El.” (partida II, titulo XVIII, ley XXXII).
Antonio Maravall aponta para a questão de que Afonso ainda considera o caráter feudal
da terra (partida IV, titulo XXV- “de los vassalos” - e XXVI – “de los feudos”), mas, ao mesmo
tempo, é possível já perceber transformações, presentes, inclusive, nas exigências da nobreza
da época. Um exemplo que Maravall nos oferece é o caso de uma entre tantas reivindicações
dos nobres durante o governo de Afonso. Sabemos que foi costume na Península Ibérica
medieval a doação de terras a nobres de outros reinos, principalmente, por dois motivos:
atuação nas batalhas e por casamento. De forma que os laços de vassalagem entre os
membros da nobreza não se restringia a um único e mesmo Senhor. No entanto, na Crónica
Del Rey Don Alfonso El décimo é descrita a reivindicação dos vassalos para que Afonso
entregasse terras apenas aos homens de Castela e Leão 38. Outro exemplo encontra-se no
reinado de Afonso XI, nas Cortes de Carrión, onde a mesma reivindicação é colocada, ou seja,
que as terras fossem exclusivamente concedidas aos “naturales” súditos do rei39.
Aqui, a relação entre reino e natureza das gentes apresenta uma ligação identitária com
o espaço. Esta percepção é expressa, muitas vezes, nas Siete Partidas, quando o direito e o
38
39
CRÓNICA Del Rey Don Alfonso El décimo. In: Crónicas de los reys de Castilla. Caetano Rossel (ed). Madrid,
1953, cap. LXVI.
CORTES de los Antiguos Reinos de León y Castilla. Colmeiro Cortes (ed.). T.1, 1861, p. 326.
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dever de um grupo são evocados. Outro exemplo ilustrativo é a partida II, título XIX, ley III,
que trata do dever do povo em defender sua terra:
Como deue guardar el pueblo la tierra, e venir en hueste, contra los que se alçassen en
ella
(...)Mas de la que se leuãta de suyos mismo, desta nasce mayor deshõrra, como en
querer los vassallos egualar se con el Señor, e contender cõ el, orgullosamente, e con
soberuia. E es otrosi mayor peligro, por que tal leuãtamiẽto como este, siempre se
mueue cõ grãd falsedad, señaladamẽte por fazer engaño e mal. (…)E porẽde, por todas
estas razões, deuẽ todos venir, luego que lo sopierẽ, a tal hueste, nõ atẽdiẽdo mãdado
del rey: ca tal leuãtamiẽto como este, por tã estraña cosa, lo touierõ los antiguos, que
mãdaron, que ninguno, nõ se pudiesse escusar, por hõrra de linaje, ni por priuãça que
ouiesse cõ el rey, nin por preuillegio, que touiesse del rey, ni por ser de ordẽ, si nõ
fuesse ome encerrado, en claustra o los que fincassẽ para dezir las horas, que todos
viniessen ende, para ayudar, cõ sus manos, o cõ sus cõpañas, o cõ sus aueres. E tan
grãd sabor ouierõ de la vedar, que mãdarõ, que si todo lo al fallesciesse, las mugeres
veniessen, para ayudar a destruyr el fecho, como este. Ca pues que el mal, e el daño,
tañe a todos, nõ touieron por bien, nin por derecho, que ninguno se pudiesse escusar,
que todos nõ veniessen a defraygallo.
Mesmo que em outros titulos (partida II, titulo XXI -“ de los cavalleros, e de las cosas que
les conuiene fazer” ) ainda possamos perceber o entendimento das três ordens sociais (os que
oram, os que lavram a terra e os guerreiam), o dever e o direito do povo em defender sua
terra transcende as ordens, já que, como entende Afonso, todos estão em perigo se a terra e o
rei estão ameaçados. Segundo a ley citada acima, ninguém deveria ser excluído de defender
sua terra, até mesmo as mulheres são exortadas a combater. O dever do povo de defender sua
terra sobrepõe outros deveres de forma que ninguém necessitaria da convocação ou
permissão real para exercê-lo. O projeto político de Afonso é cunhado por uma visão de
mundo orgânica, a qual era compartilhada por seus contemporâneos. Segundo esta percepção,
o espaço assume o sentido de elemento de ligação, de conexão entre os viventes do espaço
(rei e seu povo) de maneira que esses formam uma unidade, o reino. E, a fusão do rei com a
terra é a de um consorte, a exemplo da Partida II, titulo XI, ley I - “Como deue El Rey amar a su
Tierra”:
Tenudo es el Rey non tan solamente de amar, e honrrar e guardar a su pueblo,
assi como dize enel titulo ante deste, mas aun a la tierra misma, de que es
Señor. Ca pues que el e su gẽte, biuen de las cosas, que enella son. E han della,
todo lo que les es menester, con que cũplen e fazen todos sus fechos derecho
es la amen, e la honrren, e la guarden.
No desenvolvimento de um sentimento de identidade regional, o povo seria gente da
terra, “filhos” do rei. Uma explicação para o desenvolvimento de tal proposta régia se encontra
no contexto de reconquista. A alta nobreza estaria mais ligada aos laços de sangue e
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vassalagem que ao sentimento de pertencimento a um espaço. Dessa forma, mesmo com o
aumento do território ao sul e as reivindicações por terras, essas antigas famílias não
permaneciam no território conquistado, o que trouxe problemas ao processo de
repovoamento de Andaluzia, empreendido mais de uma vez por Afonso X 40.
Não só
problemas para o repovoamento, mas, consequentemente, para as forças de defesa, havendo a
necessidade de associação do rei com a pequena nobreza de privilégios (que receberam
benefícios do rei por seus feitos). Afonso legitima esta nobreza, desprovida da fidalgia, na
partida II titulo IX, ley VI: “nobles son llamados em dos maneras. O por linage, o por bondad, e
como quier que el linage es noble cosa, la bondad la passa e a vence”. O rei e seus antepassados
buscaram também a fidelidade das cidades, concedendo privilégios àqueles que pudessem se
armar e manter cavalos para participarem das batalhas como seus caballeros villanos41.
Em meio a este contexto de reconquista e a oposição da alta nobreza frente ao poder
real, a ideia de um corpo do reino, onde o rei é a cabeça, o coração e a alma, toma maior
relevância e sentido para o projeto da coroa castelhana de centralização de poder. Como
podemos aferir na partida II, titulo I, ley V a seguir:
Vicarios de Dios son los Reys cada vno en su reyno, poestos sobre las gentes,
para mantener las en justicia e en verdad quando en lo temporal, bien assi
como el Emperador en su imperio. Esto se muestra complidamente en dos
maneras. La primera dellas, es espiritual, segund lo mostraron los profetas, e
los santos aquien dio nuestro Señor gracia, de saberlas cosas ciertamente, e de
fazer las entender. La outra es, segundo natura, assi como mostraron los omes
sabios que fueron conoscedores delas cosas naturalmente. E los santos
dixeron que el Rey es puesto en la tierra en lugar de Dios, para cõplir la
justicia, e dar a cada vno su derecho. E porende lo llamarõ coraçon, e alma del
pueblo. Ca assi como yase el alma enel coraçon del ome, e por ella biue el
cuerpo, e se mantiene, assi enel Rey yaze la justicia que es vida e
mãtenimiento del pueblo de su señorio. E biẽ otrosi como el coraçon es vno, e
por el recibẽ todos los otros miembros vnidad, para ser un cuerpo, bien assi
todos los del reyno maguer seã muchos (porque el Rey es e deve ser uvo) por
esso deuẽ otrosi ser todos vnos conel, para servir le, e ayudar le, en las cosas,
que el ha de fazer. E naturalmente dixerõ los sabios que el Rey es cabeça del
reino, ca assi como dela cabeça nascen los sentidos, porque se mãdan todos los
miembros del cuerpo, bien assi por el mandamiento que nasce del Rey, que es
señor e cabeça de todos los del reyno, se deuen mandar e guiar e auer vn
acuerdo conel para obedescer le e amparar e guardar e acrescentar el reyno.
Onde el es alma e cabeça e ellos miembros.
40
41
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel. Entorno a los origines de Andalucia. La repoblación del siglo XIII. 2ª edição.
Sevilha, 1988. (Colección de Bolsillo, Bd. 83), p. 26.
O’CALLAGHAM, Joseph F. El Rey Sabio. El reinado de Alfonso X de Castella. Manuel González Jiménez
(trad.). Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, pp. 127-130.
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Pela representação organicista do reino, a partir da qual o rei é a cabeça, o coração e a
alma, podemos perceber a compatibilidade deste pensamento associativo com as ambições e
práticas políticas de Afonso pela centralização de poder. Política que lhe trouxe problemas
perante a nobreza. Gladys Lizabe Savastano identifica na segunda partida a frustração política
de Afonso perante a nobreza, pois a maioria das leis parece estar a serviço do projeto de
centralização política de Afonso42. De fato, a alta nobreza castelhana revoltou-se contra o rei
Afonso X em 127243, alegando que esse não seguia os antigos costumes, pois Afonso pretendia
terminar com o julgamento especial dos nobres, deixando este julgamento para seus
alcaldes44, além de introduzir mudanças inspiradas no direito romano, o qual fundamentaria o
caráter centralizador da lei.
Em harmonia com a metáfora do corpo, temos a definição de povo na partida II, titulo
X, ley I:
Cvydã algunos, que el pueblo es llamado la gẽte menuda, assi como menestrales, e
labradores. E esto nõ es ansi. Ca ãtiguamẽte en Babylonia e en Troia e en Roma, que
fuerõ logares muy señalados, ordenarõ todas estas cosas, cõ razõ, e pusierõ nome
acada vna segund que cõuiene. Pueblo llamã el ayuntamẽto de todos los omes
comunalmẽte, e de los mayores, e de los medianos, e de los menores. Ca todos son
menester: e nõ se puedẽ escusar, porque se hã de ayudar, vnos a otros, por que puedã
bien biuir e ser guardados, e mantenidos.
O povo não seria apenas a “gente miúda”, mas todos os que chegaram àquela terra e
convivem em uma comunidade. Sejam grandes, médios ou pequenos, todos são importantes. A
peculiaridade desta definição de povo é que a naturalidade, não passa, necessariamente, pela
origem, mas pela forma de convivência e a interdependência entre os membros daquela
sociedade, bem como daqueles com a terra, da qual vivem. Na partida II, titulo I, ley V, citada
mais acima, aparece a palavra natura como “maneira” e a palavra naturalmente como algo que
parece pertencer a uma lei essencial, primordial, enquanto necessária, no entanto, não
original.
Georges Martin desenvolve um interessante estudo sobre os conceitos natureza, natura
e natural presentes nas Siete Partidas, indicando um sentido vertical para o conceito de
natureza, quando relacionado à ligação entre o rei e o povo, e horizontal, quando relacionado
42
43
44
SAVASTANO, Gladys I. Lizabe de. “El título XXI de la Segunda Partida y la frustración política de Alfonso
X”. Bulletin of Hispanic Studies, n. 4, 1993, pp. 393-402.
O’CALLAGHAN, 1999, opus cit., pp. 231-280; SALVADOR MARTÍNEZ, 2003, opus cit,. pp. 317-356.
Alcalde deriva da palavra árabe andaluz alqádi, que corresponde no governo de Afonso X aos seus juízes
nomeados. Ver Diccionario Medieval Español. Desde las Glosas Emilianenses y Silenses (s.X) hasta el siglo
XV. Martin ALOSO PEDRAZ (ed).. 2 T., Salamanca, 1986.
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à ligação entre as pessoas que vivem em um mesmo território45. Eu não concordo com o autor
no que toca a verticalidade do conceito. Pois, apesar de algumas passagens poderem indicar
certa verticalidade na forma como a palavra natureza é empregada nas Siete Partidas, o
sentido que prevalece é o do dever de amar e, aqui, não há verticalidade. O rei é o coração e a
alma do reino (terra+povo).
Dessa forma, dentro da linha política e da visão de mundo que marcam as Siete
Partidas é possível identificar funções relacionais entre terra, rei e povo:
1. Partida 2.10.2 : “Como el Rey deue amar e honrrar e guardar a su pueblo”;
2. Partida 2.13 “Qual deue el pueblo ser en conoscer en honrrar, e en guardar al Rey”;
3. Partida 2.11.3 “Como el Rey deue guardar su Tierra”;
4. partida 2.19.3 “Como deue guardar el pueblo la tierra, e venir en hueste, contra los que se
alçassen en ella”.
A partir dessas relações, identificamos um triângulo de proteção e imbricações: rei, povo,
terra. O entendimento do projeto político de Afonso X, exige buscar outros fios deste
entrelaçamento histórico, para além das reivindicações da nobreza e das circunstâncias das
Reconquistas que formaram esta nobreza tal como ela atua no século XIII. Para nos
aprofundarmos na busca dos mecanismos do pensamento fundamentador da proposta
política de Afonso, faz-se necessário compreender o desenvolvimento do entendimento sobre
a função de rei na relação simpática entre micro e macrocosmo, a qual também emerge nas
Siete Partidas:
Aristoteles en el libro que fizo a Alexandro, de como auia de ordenar su casa e
su señorio, diole semejança del ome al mundo: e dixo assi como el cielo, e la
tierra, e las cosas que enellos son, fazen vn mũdo, que es llamado mayor,
Otrosi, el cuerpo del ome, con todos sus miembros faze otro que es dicho
menor. Ca bien assí como el mundo mayor hay moebda, e entendimiento, e
obra, e aconcordança e departimiento, otrosi lo ha el ome segund natureza. E
deste mundo menor, de que el tomo semejança, al ome, fizo ende otra, que a
semejo ende al rey e al reino, e en qual guisa deue ser cada vno ordenado, e
mostro que assi como Dios puso el entendimiento en la cabeça del ome, que es
sobre todo el corpo, el mas noble lugar, e lo fizo como rey, e quiso que todos
los sentidos, e los miembros, tambien los que son de dentro, que nõ parecen:
como las de fuera, que son vistos, le obedesciesen, e le siruiessen, a si como
señor. (partida II, titulo IX, ley I)
45
MARTIN, Georges. “Le concept de ‘naturalité’ (naturaleza) dans les ‘Sept parties’, d’Alphonse X le Sage”.
E-Spania : Revue électronique d’études médiévales, nº 5 (2008), disponível on-line : http://espania.revues.org/10753, acessado em 20/08/2013.
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Na ley transcrita acima, o cerne do pensamento de Afonso e os modelos de sua visão de
mundo esclarecem a relação entre terra, povo, rei e, consequentemente, a construção de uma
identidade do reino a partir da terra que tem um rei, ou uma “cabeça”, como diria Afonso. Por
esse fio, aproximando e articulando os trechos aqui apresentados, povo seria a reunião de
todos os homens em comunidade, dos maiores, dos medianos e dos menores, pois todos
seriam importantes, não se devendo excluir alguém, porque eles hão de se ajudar uns aos
outros, para que possam bem viver, serem protegidos e mantidos, como os membros de um
corpo, o mundo menor (microcosmo), cuja cabeça é o rei. Bem como o céu, a terra e as coisas
que neles estão formam um mundo chamado de maior (macrocosmo) que possui movimento,
entendimento, concordância e partes, assim, se constituem o mundo menor, o corpo humano,
e o reino - dentro do esquema associativo do pensamento medieval 46.
Do fio do Micro e do Macrocosmo
Na Idade Média, de acordo com o sistema associativo de compreensão do mundo
natural, o ser humano foi percebido como um pequeno mundo, o microcosmo. Os olhos, por
exemplo, entendidos como iluminadores da percepção, foram associados ao sol e à lua nas
esferas fixas dos céus47. Assim, todos os membros do corpo humano foram relacionados em
tal sistema, no qual o paralelo cósmico-antropológico apresenta o ser em fina sintonia com o
universo, percebido como um todo de relações simpáticas 48. Sobre este sistema de percepção
da natureza e do próprio ser humano, Aaron Gurjewitsch49 afirma que a relação do ser
humano com a natureza na Idade Média não consistiria na relação entre sujeito e objeto, mas
do encontrar a si mesmo no mundo externo e na percepção do cosmo como sujeito. O ser
humano encontrou na natureza sua continuação e, em si mesmo, a descoberta do universo. O
corpo humano, chamado na Antiguidade de microcosmo, foi percebido, então, não apenas
como uma pequena parte do todo, mas também como sua pequena réplica, o pequeno mundo.
46
47
48
49
FRANCO, Hilário Jr.. “Modelo e Imagem: o pensamento analógico medieval”. In: Anais do IV Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Belo Horizonte, 2003, p.39-58.
Esta imagem aparece sob a influência do neoplatonismo a partir de seu entendimento sobre emanação e
simpatia entre os corpos sub e supralunares. Sobre o neoplatonismo: REALE, Giovanni. Plotino e o
neoplatonismo. São Paulo, Loyola, 2008.
PIERRE, Marie-Joseph. “Le chant entre terre et ciel. Corps et membres dans les Odes de Salomon” . In:
GIGNOUX, Philippe (org.). Ressembler au Monde: Nouveaux documents sur la théorie du macromicrocosme dans l’antiquité orientale. Brepols, 1999, pp. 55-78. (Bibliothèque de l’École des Hautes
Études Section des Sciences Religieuses, Bd. 106). P.55.
GURJEWITSCH, Aaron J.. Das Weltbild des mittelalterlichen Menschen. Gabriela Lossack (trad.). München:
C.H.Beck, 1997. (Beck’s historische Bibliothek, Bd. 5), p.57.
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As obras filosóficas e políticas do medievo esclarecem o microcosmo como completo em si
mesmo, assim como, o macrocosmo foi entendido no sistema associativo entre pequeno e
grande mundo.
Na alta Idade Média, a imagem do universo da cristandade latina era, em essência, o
modelo platônico. Isso, não porque as ideias de Platão combinariam com o pensamento
cristão melhor que outras da Antiguidade, mas porque os textos desta época foram
fundamentados a partir das obras de autores neoplatônicos como Agostinho (354-430),
Macrobios (entorno de 400) e Martinus Capella (em atividade cerca 410-429)50.
A considerar esse contexto medieval neoplatônico e peripatético, retornemos à ley I do
titulo IX da Partida II: “Ca bien assí como el mundo mayor hay moebda, e entendimiento, e obra,
e aconcordança e departimiento, otrosi lo ha el ome segund natureza”. As três primeiras
características do mundo mayor podem ser entendidas melhor à luz de uma passagem do
Setenario que explica a quinta “manera” da Metafísica:
La quinta llaman intellectus, que quiere tanto dezir commo entendimiento
obrador que obra ssobre todas las cosas, em cada vna segunt ssu natura, e es
assí commo el spíritu em el cuerpo del omne quel ffaze beuir e mouer e obrar.
Et por esso lo llamaron los philósophos alma del mundo. 51
Ou seja, o entendimento opera (obra), dando movimento às coisas, segundo sua
natureza. Dessa forma, o rei, a cabeça do reino, à semelhança do corpo, recebe de Deus o
entendimento obrador e alma del mundo . “Et acordanza et departimiento” expressam o
princípio fundamental de ambas as obras: unidade na variedade, harmonia na pluralidade. O
entendimento, além de dar movimento, principalmente, unifica a múltipla diversidade das
coisas. Essa é a função do rei.
Na corte afonsina, a expressão da percepção simpática entre ser humano e universo,
reunidos pela alma do mundo, apresenta-se nos Specula, então, da seguinte forma: como
produtos exemplares do entrelaçamento transcultural em um contexto de translatio
studiorum. Nesse entrelaçamento, a partida II, titulo IX, ley I, tem como base também o texto
Poridat de las Poridades 52, do qual a versão latina ficou conhecida como Secretum Secretorum.
Poridat de las Poridades é uma tradução do texto árabe Sirr al-asra, cuja autoria foi, na época,
atribuída a Aristóteles, mas, atualmente, entende-se que é um texto de síntese, que expressa
muito mais a interpretação tardo-antiga e medieval de uma percepção neoplatônica a partir
50
51
52
ENDRESS, Gerhard. Der arabische Aristoteles und sein Leser. Physik und Theologie im Weltbild Alberts des
Großen. (Lectio Albertina, Bd. 6.) Munster, 2004, p. 21.
ALFONSO EL SABIO. Setenario. Kenneth H. Vanderford (ed.). Buenos Aires, 1945, p. 39.
PSEUDO-ARISTOTELES. Poridat de las Poridades. Lloyd A. Kasten (org.). Madrid, 1957.
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das traduções árabes53. O texto foi construído em forma de cartas de Aristóteles a Alexandre,
quando esse se encontrava no oriente. O livro ocupa-se de conselhos sobre o exercício de
reinar, as boas maneiras do rei, a justiça, funcionários, estratégia de guerra e organização do
exército54. Poridat de las Poridades utiliza ainda a metáfora do corpo para explicar como o rei
deveria entender a responsabilidade de seus funcionários:
Sepades que la primera cosa que Dios fizo una cosa simple spiritual et mui
conplida cosa, et figuro en ella todas las cosas del mundo, et pusol nonbre
seso. Et del salio otra cosa non tan noble quel dizen alma, et pusolos Dios con
su uirtud en el cuerpo del omne; et pues el cuerpo es commo cipdad, et el seso
es commo el rey de la cipdad, et alma es como el su aguazil quel sirue et quel
ordena todas sus cosas; et fizo morar el seso en el mas alto logar et en el mas
noble della, et es la cabeça del omne. Et fizo morar el alma en todas las
partidas del cuerpo de fuera et de dentro, et siruel et ordenal el seso. Et
quando conteçe alguna cosa al seso, esfuerçal el alma et finca el cuerpo bivo
fata que quiera Dios que uenga la fin. 55
Nessa passagem, identifica-se a influência da analogia micro-macrocosmo da obra de
um Pseudo-Aristóteles56 na esfera política. Em comparação com outras fontes da época,
percebe-se que a compreensão da relação entre micro e macrocosmo não foi puramente
científica, filosófica ou política. O neoplatonismo que fundamenta a emanação e relação
simpática dos cosmos é a chave que aproxima as diversas vertentes do pensamento medieval,
como observa Carlos Escudé na obra “Neoplatonismo e Pluralismo Filosófico Medieval: um
enfoque politológico”:
Nuestra travesía filosófica inter-confesional nos ha permitido identificar
numerosas paradojas. Hemos comprobado que el neoplatonismo, de origen
pagano, fue un fértil punto de encuentro para eminentes pensadores de los
tres monoteísmos abrahámicos. Sus sistemas filosóficos se basaron en un
emanatismo cuyo origen remoto se encuentra en la filosofía estoica, pero que
en manos de Plotino y sus seguidores neoplatónicos fue adaptándose a las
necesidades del monoteísmo.57
Se o emanatismo neoplatônico se faz presente nas três religiões abraâmicas em seus
desdobramentos medievais, podemos concluir que a expressão do mesmo na obra e na
multicultural corte afonsina é uma consequência “natural” do movimento do saber.
53
54
55
56
57
LIBERA, Alain de. Pensar na Idade Média. São Paulo: Editora 34, 1999, pp. 108, 245-248.
RICO. Francisco. El Pequeño mundo del hombre. Varia fortuna de una idea en la cultura española. Madrid:
Alianza Editorial: 1986, pp.64-73.
PSEUDO-ARISTÓTELES, opus cit. p. 47.
SILVEIRA, Aline Dias da. Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no Medievo: revelação,
ordem e lei. In: NODARI, Eunice; KLUG, João. História Ambiental e Migrações. São Leopoldo: Oikos, 2012,
pp. 151-166.
ESCUDÉ, Carlos. Neoplatonismo e Pluralismo Filosófico Medieval: um enfoque politológico. Buenos Aires:
Universidad del CEMA, 2011, p. 61.
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Do Entrelaçamento transcultural
De acordo com a trama maior da História, se quisermos compreender o entendimento
afonsino sobre o termo pueblo nas Siete Partidas, não poderemos dissociar o que está
organicamente representado em sua obra: a identidade do povo construída nas Siete Partidas
apoia-se na interdependência de seus membros com a terra e com o rei, independente da
origem das “gentes”. A análise desses fios da história demonstra que a construção da ideia de
povo nas Siete Partidas - uma tentativa de construção identitária dentro de um projeto
político – não se configurou somente a partir da conjuntura de reconquista, repovoamento,
disputas nobiliárquicas da Castela do século XIII. Para entender esta construção é necessário
identificar e analisar também os fios e interconexões do entrelaçamento trascultural expresso
na concepção neoplatônica medieval. Esses Fios perpassam diversas conexões na rede que
constituiu o traslatio studiorum na Idade Média. A considerar que a própria expressão
traslatio studiorum não dá conta das transformações, desdobramentos e caminhos que
assume o movimento do saber na perspectiva da longa duração.
As fontes de Afonso e seus colaboradores foram textos provenientes, principalmente,
de um passado entrelaçado com a cultura mediterrânica, seja através da vinculação dos bispos
visigodos com bizâncio58 ou da corte omíadas de Córdoba e dos reinos Taifas 59. No entanto, a
percepção de mundo expressa nas Siete Partidas representa um entendimento que conecta
diversas expressões do saber, transcendendo o espaço ibérico, europeu e mediterrânico. A
perspectiva apresentada aqui demonstra a importância de aumentar o foco temporal e
espacial sobre o medievo: um corpus vórtice, como o do Scriptorum afonsino, precisa ser
entendido também pelos cruzamentos e conexões que transcendem as definições de oriente e
ocidente.
Ao longo dos séculos, são tantos os entrelaçamentos na trama da História que as
origens culturais dos pensamentos não são mais possíveis de identificar de forma exata e
definitiva. Por outro lado, os mecanismos e as articulações dos desfechos são identificáveis e
podem ser analisados e interpretados. Dessa forma, Afonso X e sua obra não estão no centro
de origem da ideia de povo na Castela do século XIII - a proposta deste artigo, desde o início,
foi a de romper com a ideia de centro e origem – são apenas pontos de intersecção na trama
histórica.
58
59
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pp. 34-39).
RICO, 1986, opus cit., pp.59-80.
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Ideologia da guerra ou ideologia dos guerreiros? Mais algumas
interpretações do relato da batalha do Salado (1340)
no Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro
Ideology of the war or ideology of the warriors? Some more
interpretations on the account of the battle of Salado (1340)
in the Livro de Linhagens of the Count Dom Pedro
Stéphane Boissellier*
Universidade de Poitiers
Resumo
Abstract
O texto que vou analisar é apenas um dos
diversos monumentos destinados a celebrar e
recordar a batalha do Salado, ganha pelos
exércitos castelhano e português contra o sultão
merinida do Marrocos, Abû l-Hassan, e o rei
nasrida de Granada, Yusuf. Este texto é
conservado, levemente mutilado, enquanto
inserção na grande compilação genealógica dita
“Livro de linhagens do Conde D. Pedro”; foi
inserido na segunda refundição, cerca de 13801383, e parece ter sido redigido de propósito. O
seu papel, portanto, é a glorificação da linhagem
dos Pereira, através de Álvaro Gonçalves, prior da
Ordem do Hospital em Portugal; isso implica que
a narrativa da batalha não seja um objetivo em si,
mas antes um pretexto a uma escrita épica. A
minha análise restringir-se-á à atitude
nobiliárquica para com a guerra, entre proeza
pagã e cumprimento da vontade divina.
The text I’m going to analyze is just one of the
several monuments designed to celebrate and
remember the battle of Salado, won by the
Castilian and Portuguese armies against the
Marinid sultan of Morocco, Abu l-Hassan, and the
Nasrid King of Granada, Yusuf. This text is
preserved, slightly mutilated, while insertion in
the large genealogical compilation called “Livro
de linhagens do Conde D. Pedro”; it was inserted
in the second recasting, about 1380-1383, and
appears to have been written on purpose. Their
role, therefore, is the glorification of the lineage
of the Pereira, through Álvaro Gonçalves, prior of
the Hospitalller Order in Portugal; this implies
that the narrative of the battle may not be an
objective by itself, but rather a pretext for an epic
writing. My analysis will be restricted to the
nobility attitude toward the war, between pagan
achievement and fulfillment of the divine will.
Palavras-chave: Batalha do Salado; Livro de
linhagens; Conde D. Pedro.
Keywords: Battle of Salado; Livro de linhagens;
Count D. Pedro.
● Enviado em: 06/06/2014
● Aprovado em: 07/11/2014
*
Possui Doutorado em História Medieval pela Universidade de Nantes, França (1996). Atualmente é
professor de História na Universidade de Poitiers, França.
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Apresentação
O texto que vou analisar é apenas um dos diversos monumentos destinados a celebrar
e recordar a batalha do Salado, ganha pelos exércitos castelhano e português contra o sultão
merinida do Marrocos, Abû l-Hassan, e o rei nasrida de Granada, Yusuf 1. Este texto é
conservado, levemente mutilado, enquanto inserção na grande compilação genealógica dita
“Livro de linhagens do Conde D. Pedro”2 ; foi inserido na segunda refundição, cerca de 13801383, e parece ter sido redigido de propósito. O seu papel, portanto, é a glorificação da
linhagem dos Pereira, através de Álvaro Gonçalves, prior da Ordem do Hospital em Portugal;
isso implica que a narrativa da batalha não seja um objetivo em si, mas antes um pretexto a
uma escrita épica. Do ponto de vista literário, este relato épico é certamente o mais rico e mais
“monumental”, colocando nomeadamente o problema, técnico, da introdução do
providencialismo clerical no gênero da epopeia profana. Sobretudo, este texto reflete muito
evidentemente a versão aristocrática do acontecimento. A minha análise restringir-se-á,
portanto, à atitude nobiliárquica para com a guerra3, entre proeza pagã e cumprimento da
vontade divina; neste sentido, J. Flori tem sugerido que nunca existiu, depois do século XI,
uma teoria da guerra « puramente » teológica, isto é sem qualquer influência da cultura
cavalheiresca4.
1
2
3
4
Um inventário comentado destes monumentos é elaborado excelentemente por Bernardo
VASCONCELOS e SOUSA, “O sangue, a cruz e a coroa - a memória do Salado em Portugal”, Penélope. Fazer
e desfazer a história 2 (1989), p. 26-48.
Livro de linhagens do Conde D. Pedro (Portugaliae Monumenta Historica. Nova série, vol. II), ed. de José
Mattoso, Lisboa, 1980 (2 vol.), p. 242-257 ; a maior parte deste texto encontra-se no mais antigo
fragmento manuscrito da obra – que contém gralhas e adjunções altamente significativas –, que foi
editado por si em Livro de linhagens do Conde D. Pedro. Edição do fragmento manuscrito da Biblioteca da
Ajuda (século XIV) (Filologia portuguesa), ed. de Teresa Brocardo, Lisboa, 2006 (nas páginas 41-53). A
antiga (re)edição anotada de Alfredo PIMENTA, Fontes medievais da história de Portugal I Anais e
crónicas (Colecção de clássicos Sá da Costa), Lisboa, 1982 (1e ed. 1948), pp. 211-256 oferece notas
filológicas e fatuais. Existe uma boa tradução francesa por Robert RICARD, « La relation portugaise de la
bataille du Salado (1340) », Hespéris 43 (1956), pp. 7-27.
Algumas das minhas análises seguem largamente Bernardo VASCONCELOS e SOUSA, “Vencer ou morrer.
A batalha do Salado (1340)”, em F. Bethencourt e D. Ramada Curto (org.), A memória da nação, Lisboa,
1991, p. 505-514 ; ver também uma excelente contextualização em Fátima R. Fernandes, « O poder do
relato na Idade Média portuguesa : a batalha do Salado de 1340 » em Marcella Lopes Guimarães (org.),
Por São Jorge ! Por São Tiago ! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Ed. Juruá: Curitiba, 2013, p. 87120.
Jean FLORI, « La formation des concepts de guerre sainte et de croisade aux XIe et XIIe siècles :
prédication papale et motivations chevaleresques », em Daniel Baloup e Philippe Josserand (éd.),
Regards croisés sur la guerre sainte. Guerre, idéologie et religion dans l’espace méditerranéen latin (XIeXIIIe siècle). Actes du colloque international tenu à la Casa de Velázquez (Madrid) du 11 au 13 avril 2005
(Méridiennes, Etudes médiévales ibériques), Toulouse, 2006, p. 133-157.
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Considerações metodológicas prévias
“Ideologia da guerra" é uma proposta cuja formulação pode parecer contraditória no
seu funcionamento concreto; os que fazem a guerra são "homens de mão", que têm com
certeza representações mentais, mas estas nos escapam; os que elaboram esquemas
ideológicos complexos são, no mundo cristão, clérigos, canonicamente constrangidos ao
pacifismo pessoal e, por conseguinte, bastante ignorantes (pelo menos por experiência
pessoal) dos combates. Ao limite, tem-se a impressão de que coexistem práticas guerreiras e
uma ética sem relações.
Admitindo que as representações do mundo circulam da parte superior para baixo
(dos inteletuais para os illitterati) – ideia que é objeto de debates –, é evidente que os clérigos
fornecem elementos ideológicos aos guerreiros, mas de maneira bastante desviada, por duas
razões. Por um lado, a época feudal forjou um sistema de valores cavalheirescos bastante
coerente (proeza pessoal, agressividade e competicão no grupo, lucro material,
generosidade…) mas em nítido desfasamento com as orientações da Igreja, até no significado
das guerras legalizadas e justificadas pela Igreja, o que põe obstáculos à assimilação dos
esquemas clericais relativos à guerra ; por outro lado, a guerra é efetuada num quadro
coletivo de obrigações políticas e serviços recíprocos que não necessitam necessariamente
justificações transcendentais para os atores: contrariamente ao que induzem as noções de
"ferramenta" mental e de "fundamentos" ideológicos, o exercício das armas não precisa de
justificações éticas para ter sentido. São os monarcas que podem constituir os mais eficazes
propagandistas dos esquemas eclesiásticos junto dos guerreiros.
A definição dos discursos sobre a guerra como uma "ideologia" coloca outros
problemas; implica nomeadamente uma dimensão agonística, dado que o próprio das
ideologias é constituir sistemas, necessariamente fechados, “totalitários” e exclusivos; outro
obstáculo conceptual, numa abordagem que permanece fortemente psicológica, é a
focalização sobre a violência como dimensão mais problemática (e, por conseguinte, que
necessita mais justificação) para os moralistas medievais, enquanto a violência é onipresente
nas sociedades tradicionais e contribui mesmo para a ordem do mundo, de acordo com os
antropólogos - com efeito, a sua legitimação tem sido realizada muito cedo pelos Pais da
Igreja; por último e, sobretudo, o estudo das ideologias é levado a cabo mais pela disciplina
filosófica do que pela história sociocultural, portanto sem tomar em conta suficientemente as
condições sociais da formação, da circulação e do uso dos motivos ideológicos.
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Na Península Ibérica, pensa-se espontaneamente que a guerra que mais precisa de
reforço ideológico é a efetuada contra al-Andalus, dado que parece opôr religiões que
reivindicam a exclusividade da verdade. Não se dá atenção suficiente aos conflitos entre
reinos cristãos, que se combinam com a Reconquista. Ora, como mostra o discurso pontifical,
que os proíbe, são as guerras entre cristãos que mais necessitam justificações morais, no
sistema de valores. Por conseguinte, procurou-se, na tradição de Carl Erdmann5, relacionar os
discursos da Reconquista com o "espírito de Cruzada" e muito menos com os escritos
redigidos aquando das guerras entre cristãos ibéricos – é verdadeiro que estes últimos não
são objeto de construções doutas, o que coloca um problema do "efeito de fonte". Uma
abordagem antropológica deveria também levar-nos a comparar (apesar da forte divergência
formal e funcional das fontes) os relatos de guerra com os textos judiciais de resolução dos
conflitos nas sociedades cristãs hispânicas, minorando a ideia segundo a qual o antagonismo é
gerado ou pelo menos modulado pela alteridade do inimigo.
Os medievalistas refletiram sobre a penetração da noção de guerra santa em Portugal
fundando-se, sobretudo, nos escritos clericais, considerando, portanto, não sem razões, que a
maior parte das ideias medievais sobre este tema emana de focos culturais estrangeiros ao
país; mas a maior parte destes estudos, mesmo recentes, baseia-se nas concepções da guerra
santa que foram desenvolvidas nos anos 1930-60 (aquelas de Michel Villey, Alphonse Dupront
ou Paul Rousset, para além do próprio C. Erdmann) 6, e visa confrontar as Cruzadas orientais e
a Reconquista ibérica. As evoluções recentes da investigação europeia a este respeito (Jean
Flori, Pierre A. Bronisch) permitem retomar o problema em termos, ligeiramente diferentes,
de interiorização da norma pelos atores das guerras.
A noção de "sistema" ideológico chama a atenção para os discursos mais doutos,
emanando das autoridades mais influentes, porque são os que constituem um corpus coerente
e uma verdadeira doutrina. Ora, a consideração de numerosas outras fontes mostra que não
existe, para a quase totalidade dos atores, uma ideologia monolítica da guerra contra o infiel.
Esta atenção emprestada às fontes, para evitar reconstituir ficticiamente um sistema
ideológico global, que nunca funcionou para o conjunto dos atores sociais, parece-me ser um
dos poucos méritos metodológicos do meu primeiro artigo, escrito há mais de 15 anos7… Com
5
6
7
Carl ERDMANN, A ideia de Cruzada em Portugal, Coimbra, 1940.
Encontrar-se-á, além de uma análise do léxico medieval, uma presentação clara da evolução
historiográfica em Thomas DESWARTE , « La ‘guerre sainte’ en Occident : expression et signification »,
em M. Aurell et T. Deswarte (éds.), Famille, violence et christianisation au Moyen Âge. Mélanges offerts à
Michel Rouche (Cultures et civilisations médiévales, 31), Paris, 2005, pp. 331-349.
Stéphane BOISSELLIER, « Réflexions sur l'idéologie portugaise de la Reconquête XIIe-XIVe siècles »,
Mélanges de la Casa de Velazquez. Antiquité et Moyen Age, XXX-1 (1994), pp. 139-165.
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efeito, quereria-se que os fragmentos de valores morais presentes nas fontes mais vulgares
que são as crônicas sejam fragmentos de um conjunto coerente, que é transmitido da parte
superior para baixo. É, por conseguinte, de bom método isolar uma região, um tipo de escrita
e um grupo social, para situar-se na boa escala, a da informação realmente utilizada pelos
letrados e eventualmente difundida junto do público. Em qualquer caso, para delimitar a
articulação entre o concreto da guerra e as representações de que é objeto, parece-me que as
fontes mais relevantes são as que utilizam o imaginário dos guerreiros para orientá-lo, dado
que revelam indiretamente qual é este imaginário (de acordo com a noção, literária, de "efeito
de real", que postula que os motivos propostos devem ser acreditáveis); isto não impede,
certamente, que sejam, até a uma data tardia em Portugal, os clérigos a ter a pena. O principal
problema é que o desenvolvimento de uma historiografia real e nobiliárquica (tipo que
fornece as fontes procuradas) é muito posterior ao fim da Reconquista, em Portugal: ora, os
métodos testados sobre os relatos dos combates dos séculos XIV e XV contra os mouros não
são aplicáveis às outras fontes, anteriores e oriundas de uma outra tipologia.
Na fonte que privilegiei (tardomedieval), alguns elementos compõem uma bricolagem
ideológica suficiente para dar sentido à guerra: a motivação da participação no combate, a
representação do inimigo, a justificação que autoriza a transgredir o tabu universal do
homicídio, o objetivo do conflito; mas não devemos esquecer que estes elementos integram-se
num discurso que é de legitimação ou, mais globalmente, de interpretação do mundo, tal como
é ou como deveria ser para o comanditário da obra – em outros termos, a justificação é
sobretudo uma defesa e ilustração do papel social da nobreza ou da monarquia, e a guerra é
apenas objeto que serve a esta intenção. Certamente, existem canais mais específicos para
relatar um combate, ou mesmo uma guerra, do tipo das cartas e crônicas das Cruzadas, nas
quais o conflito é objeto em si de um discurso; até as crônicas "magrebinas" de Zurara servem
para legitimar a nova dinastia de Avis e a sua ambição imperial.
A principal dificuldade, contra a qual se chocaram muitos medievalistas, é a
personalização da história na cronística medieval, o que faz deste tipo de fontes um material
delicado a manipular. De fato, não se devem confundir as atitudes individuais, que podem ser
fundamentadas diretamente pela pesquisa da salvação, ou mesmo pela detestação do inimigo,
e as dinâmicas sociais (coletivas), que se articulam em redor da guerra, mas sem atribuir-lhe
um valor moral específico. E até a noção de "motivação", que é pessoal e psicológica, é
também criticável. Os medievalistas, persuadidos de que o dogma cristão é onipresente nos
medievais, valorizam, entre as motivações do empenho guerreiro, a busca da salvação, que,
contrariamente às doações piedosas, é individual; em realidade, são os constrangimentos
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sociais, coletivos, que movem o essencial das ações dos medievais, enviando os guerreiros ao
combate sem precisar de "motivação" (= convicção psicológica íntima; podemos supôr que o
valor mais fortemente interiorizado é a pressão social, o dever para cumprir para com os
outros, vivos e mortos, em outros termos a solidariedade (ou até o "habitus", no sentido de P.
Bourdieu, ou seja, uma conformidade inconsciente aos valores).
Além disso, do ponto de vista meramente literário, a personalização dos fatos orienta
os próprios relatos medievais para a psicologia e torna difícil a exposição pelos autores de
uma doutrina ideológica geral e abstracta (por exemplo, o conceito de infidelidade religiosa),
para além de incisos éticos pontuais.
O contexto e as funções da fonte
A confrontação direta com os Mouros termina em 1250 em Portugal, e é necessário
esperar quase um século para que aconteça um novo empenho militar maciço de Portugueses
contra adversários muçulmanos, aquando da batalha do Salado (1340). Tem-se, por
conseguinte, a impressão de certo hiato ideológico e até histórico, mas, dada a estrutura da
historiografia portuguesa, as principais crônicas da Reconquista constituem uma redação
tardia, muito posterior aos acontecimentos. Portanto, há precedentes bastante próximos do
nosso relato, como a passagem da Crónica da conquista do Algarve relativa aos "sete mártires
de Tavira" (cavaleiros santiaguistas mortos em emboscada contra os mouros no início dos
anos 1240)8. Além disso, os acontecimentos posteriores à Reconquista são a ocasião de uma
reescrita da história ; assim, no relato da ocupação de Ceuta, em 1415, a longa exposição
histórica, posta na boca do Conde D. Pedro de Meneses para galvanizar a guarnição
desencorajada de permanecer em Ceuta, associa à aventura marroquina o passado militar
ibérico (visigótico, reconquistador e a lembrança da batalha do Salado) e lembra a
especificidade portuguesa (a independência do reino e as figuras reconquistadoras do
primeiro rei, Afonso Henriques, e do mestre "português" de Santiago, Paio Peres Correia)9.
Mas não devemos esquecer que este texto tem outras funções que inculcar uma ideia
nova; ele também confirma a aristocracia nas suas crenças sociais, e, consequentemente, leva
8
9
Cf. Pedro PICOITO, "Os sete cavaleiros de Tavira. História de um culto local", em V jornadas de história
Tavira, Tavira, 2006, p. 51-71; mas esta crônica, redigida provavelmente nos anos 1340 (talvez sob a
influência da vitória do Salado) para celebrar a ação na Reconquista de um antigo Mestre da Ordem de
Santiago, Paio Peres Correia, permaneceu em uso interno da Ordem, e é conhecida só através da sua
utilização pela crônica do reino de 1419.
Gomes Eanes de ZURARA, Crónica do conde D. Pedro de Meneses (ed. Maria Teresa Brocardo) (coll.
« Textos universitários de ciências sociais e humanas »). Fundação Calouste Gulbenkian / JNICT. Lisboa.
1997, cap. 12.
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uma mensagem que se dirige indiretamente ao conjunto da sociedade e mais diretamente à
monarquia – e a introdução da ideia de guerra santa serve antes para reforçar a demonstração
da diferença aristocrática. No que concerne ao público imediato, basta confortá-lo nas suas
certezas; mas, para o público indireto, que é a Corte e os oficiais régios, é necessário ser
persuasivo. Para esse efeito, o artifício literário é duplo: uso de um discurso para inserir a
justificação explícita da utilidade social dos nobres, e atribuição deste discurso ao monarca.
Além disso, o autor faz proclamar explicitamente aos combatentes que defendem toda a nação
contra um grave perigo10, em outros termos enunciam a sua utilidade social – sem dissimular,
contudo, que o seu altruísmo dirige-se, sobretudo, aos seus parentes. Mais ainda que para
introduzir a ideia de santidade da guerra, uma tarefa tão difícil como a legitimação de um
grupo social extremamente díspar, tanto mais com argumentos um tanto capciosos neste caso
(o monopólio da guerra), requer de recorrer a um núcleo de representações “conformistas”,
simples e fundamentais, que podem ser admitidas até pelos que não as interiorizaram já
totalmente.
Isto explica o lugar reservado no relato às peripécias militares, que se impõem
tecnicamente (na economia narrativa), mas que são também argumentos; demonstram as
virtudes “por natureza” dos cavaleiros: proeza, solidariedade e fé. Esta empresa de
legitimação de um grupo pelo seu comportamento necessita de um artifício literário, que é a
depersonalização dos cavaleiros, permitindo posicionar o seu comportamento como um
protótipo social. Este anonimato passa pelo emprego de um qualificativo único, os fidalgos, e
pela ausência de qualquer referência precisa aos indivíduos – contrariamente ao que fará,
algumas décadas atrás, um cronista como Fernão Lopes, que fornece o seu homérico “catálogo
dos heróis” que têm participado na batalha de Aljubarrota.
O uso de representações mentais é o principal método dialético. Ora, a psicologia social
e as ciências cognitivas podem apoiar a crítica histórica, ajudando-nos a precisar este conceito
afinal tão aviltado quanto o seu antecessor, as “mentalidades”; pode-se deduzir dos seus
trabalhos que:
a) as representações são uma construção tanto social como individual;
b) são ativas (orientam a ação) e não são “imagens fixas”;
c) têm uma forte resistência à mudança dos dados objetivos;
d) são redutoras;
10
P. 246, os cristãos esperam “hoje ser salvos por nós e os nobres cavaleiros de Castela”.
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e) alteram-se pela sua transmissão. Após ter visto sucessivamente as representações como
propostas analíticas e protótipos referenciais, as investigações recentes pensam que
funcionam como pequenos “núcleos de sentido” (patterns) que formatam as informações
recebidas; consequentemente, funcionam ao mesmo tempo como esquemas cognitivos
(conceitos), como explicações do mundo (representações sociais) e como símbolos. Esta
abordagem, que vai para além da tradicional “história do pensamento”, permite encarar a
recepção dos discursos doutos, fora mesmo do círculo dos intelectuais.
Neste relato, redigido cerca de 1380, a concorrência simbólica entre monarquia e
aristocracia para instrumentalizar a guerra santa utiliza evidentemente o passado, fonte de
qualquer autoridade, o que coloca o problema, inevitável, da “tradição” da Reconquista11.
Para o Portugal medieval, que apresenta a originalidade de ter desenvolvido uma expansão
ultramarina logo no início do século XV, o problema foi colocado em termos de continuidade.
Os medievalistas da época do Estado Novo, retomando o continuismo aparecido nos cronistas
logo no início do século XVI12, foram tentados, para fazer do colonialismo português uma
missão civilizadora católica, de interpretar as guerras contra os mouros como uma empresa
única de defesa da fé desde o nascimento do reino13, empresa na qual a batalha do Salado vem
naturalmente constituir o “elo em falta”.
Se certas inflexões do discurso são observadas nos textos de propaganda, aquilo reflete
talvez mais a evolução dos tipos documentais do que das concepções doutas e, mais ainda,
populares da guerra. Se quer-se vincular as correntes ideológicas à conjuntura politicomilitar, pode-se notar que a confrontação, desde 1275, para o controlo do estreito de
Gibraltar, nomeadamente entre os Mérinidas de Marrocos e os Castelhanos14, constitui uma
11
12
13
14
A reivindicação anacrônica da Reconquista pela totalidade da aristocracia - da qual uma parte recusou
realmente implicar-se - é uma tradição já antiga para 1380, dado que já visível no prologo do mais antigo
LL (“o livro velho”), datando de circa 1290, onde o autor afirma que são os nobres que “conquistaram o
reino”, em contradição com os relatos contidos neste mesmo livro ; o assunto foi estudado por vários
artigos de L. Krus, em especial Luis Filipe Llach KRUS, “O discurso sobre o passado na legitimação do
senhorialismo português dos finais do século XIII”, em Idem, Passado, memória e poder na sociedade
medieval portuguesa. Estudos (Patrimonia histórica), Redondo, 1994, p. 197-207. Mas trata-se, no fim do
século XIV, de reinventar a própria natureza deste combate.
É o caso de Duarte Galvão na sua “Crónica de D. Afonso Henriques” (citado por Carla Serapico SILVÉRIO,
Representações da realeza na cronística medieval portuguesa. A dinastia de Borgonha (Estudos da FCSHUNL, 16), Lisboa, 2004, p. 85).
É a ideia desenvolvida particularmente por António Dias DINIS, “Precedentes da expansão ultramarina
portuguesa. Os diplomas pontifícios dos séculos XII a XV”, Revista portuguesa de história, 10 (1962), p.
1-118, mas já tem integrada por autores como A. Pimenta.
A “batalha do estreito” é detalhada por P. Guichard, numa análise bem atualizada, em J.-C. Garcin (dir.),
Etats, sociétés et cultures du monde musulman médiéval Xe-XVe siècle. Tome I L’évolution politique et
sociale (Nouvelle Clio), Paris, 1995, pp. 296-299. Para um bom desenvolvimento sobre as implicações
portuguesas neste desafio, ver Bernardo Vasconcelos e SOUSA, D. Afonso IV (1291-1357) (Reis de
Portugal, vol. 7), Lisboa, 2006, chap. X (“A batalha do Salado”).
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série de conflitos antes que de uma confrontação contínua, dado que os acontecimentos têm
pouco relacionamento estratégico entre si; os motivos ideológicos empregados nestas
ocasiões para legitimar a ação e animar os combatentes não podem por conseguinte constituir
uma construção ad hoc. A ideologia que aparece no relato deve então sair de várias fontes:
quer das representações tradicionais procedentes da Reconquista ibérica, quer dos esquemas
clássicos da Cruzada de Duzentos, quer das evoluções recentes do “espírito de Cruzada”
geradas pela perda da Terra Santa e pela luta contra a heresia. Mas não é certo que se poderá
identificar claramente correntes ideológicas com base na nossa fonte; com efeito, as sutilezas
e o rigor dos teólogos e dos canonistas são empobrecidos por um discurso produzido em
meios bastante pouco letrados e cujo destinatário direto é incontestavelmente a pequena e
média nobreza.
Temos a sorte que, em Portugal, a nobreza não se tornou, mesmo na baixa Idade Média,
um simples elo da monarquia na produção cultural. Certamente, a maioria da aristocracia,
sobretudo a que é encenada no relato, toma a sua legitimidade simbólica e a sua força real no
serviço do rei; mas a estabilidade das representações mentais perpetua os esquemas
globalmente antimonárquicos das velhas linhagens feudais, aquelas que reivindicam uma
ascendência fictícia na antiga nobreza condal asturleonesa, portanto anterior à própria
monarquia portuguesa – e os LL servem precisamente para forjar as genealogias que integram
até a nobreza mais recente, numa espécie de nova redação passadista e fundamentalista.
Portanto, aparecem no nosso texto, como em todos os LL, traços da concorrência entre a
monarquia e a aristocracia15.
Para além desta posição “política”, importante mas talvez não central, o relato tem a
função de legitimar a posição eminente do grupo nobiliárquico em relação à toda a sociedade ;
isto leva a tomar este grupo como uma globalidade (os fidalgos), o que tem duas
consequências diretas : por um lado, o ponto de vista expresso ultrapassa os destinatários
diretos do discurso, por outro lado, é em relação à toda a estrutura social – e não somente em
relação à monarquia – que o autor deve sublinhar as especificidades da aristocracia. A própria
escolha do acontecimento narrado pelo autor revela uma concepção estrutural da sociedade:
é um relato de batalha, o que faz da guerra o principal fator da identidade nobiliárquica; mais
ainda, é um prélio em campo aberto, com carga de cavalaria, o nec plus ultra do combate cuja
15
Ver a este respeito Stéphane BOISSELLIER, « Les rois, la guerre, les Maures. La (re-)construction de
l’idéologie de Reconquête dans une source portugaise généalogico-narrative tardive, les ‘livres de
lignages’ », dans C. Carozzi et H. Taviani-Carozzi (dir.), Le pouvoir au Moyen Âge. Idéologies, pratiques,
représentations (Le temps de l’histoire), Aix en Provence, 2005, pp. 123-145.
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aristocracia pretende ter o monopólio16. No entanto, é difícil, na Península Ibérica, apresentar
uma relação privilegiada entre a guerra e a aristocracia como um esquema fundador, já que as
milícias municipais desempenharam um papel bem sabido na Reconquista. Não é de resto
antes da primeira metade século XV que se enraiza em Portugal (na grande compilação
jurídica das “Ordenações afonsinas”) a ideologia trifuncional que assimila os aristocratas aos
defensores.
A ideia que a guerra é fonte de santidade, por conseguinte de legitimação social, não
parece ainda muito presente nas mentalidades comuns em Portugal, e não corresponde,
portanto, com as convições mais íntimas do público da obra. Mais do que uma inaptidão ou
uma contradição entre o autor e os seus comanditários, é necessário ver na escolha do tema
da guerra santa uma intenção deliberada; a escolha mostra que este tema é promovido às
expensas do resto – e não se encontra, de resto, na principal fonte castelhana relativa ao
acontecimento (apesar de ser uma crônica real, de Alfonso XI), texto que permanece muito
“laico”. Tem-se, por conseguinte, aqui um verdadeiro escrito de propaganda, que deve inserir
ideias novas numa trama bastante clássica, de modo que o conjunto seja aceitável.
Promover a guerra santa é inovador em Portugal, mas é tambem um arcaismo à escala
europeia, numa época onde a instituição que a encarna, a Cruzada, começa, factual e
doutrinariamente, a ser contestada. Isso implica apresentar a Cruzada do Salado como uma
expedição defensiva, critério tradicional da guerra legítima, mas cuja importância vai
crescendo no direito romano-canónico da Baixa Idade Média 17. A razão da escolha da guerra
santa pelo comanditário do texto é o apego dos cavaleiros do Hospital a esta ideologia; mas,
sobretudo, permite ao grupo nobiliárquico de diferenciar-se, senão do clero e da monarquia,
pelo menos dos plebeus, que nunca acreditaram que a guerra contra os Mouros fosse mais do
que um modo de obter novas terras. É o que explica o rápido êxito na nobreza, no século XV,
desta ideologia obsoleta, que é doravante uma verdadeira estratégia de distinção, levando
numerosos aristocratas na defesa das praças marroquinas. Como a adoção dos códigos
cavalheirescos foi, no século XII, um meio para distinguir-se dos “cavaleiros vilãos”, na época
da sua concorrência direta nos exércitos da Reconquista, a guerra sagrada acrescenta uma
camada de legitimidade para uma classe mal definida juridicamente, e, sobretudo, para a
16
17
Nos anos que seguem imediatamente à redação do nosso relato, as guerras de João I contra a Castela
opõem o rei e o seu condestável, o afamado Nuno Álvares Pereira, aquando da sede Coria, o segundo
afirmando que bater-se contra muros não é conforme com o ideal da Mesa Redonda (citado por Manual
Rodrigues LAPA, Lições literatura de portuguesa. Época medieval, Lisboa, 1934, p. 198).
Este último ponto é essencial; como mostra-o a argumentação do chanceler João das Regras, aquando da
eleição de João I, em 1385, a doutrina escolástica da legitimidade do poder (sintetizada por Thomas de
Aquin) impregna então os letrados portugueses, e implica até a legitimidade dos reinos infiéis ; não
sendo a guerra legitimada pela única infidelidade do inimigo, o seu caráter defensivo torna-se crucial.
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nobreza de serviço, cujas origens recentes podem ser plebeias 18. Além disso, apresentar uma
atitude religiosa na guerra permite responder às críticas de teólogos, como o “português”
Álvaro Pais, contra a perversão da função cavalheiresca 19.
Se pode-se falar de propaganda para este texto, é também (e sobretudo ?) porque
situa-se no âmbito ideológico de uma “concorrência memorial”. Com efeito, a adoção
aristocrática do discurso da guerra santa é igualmente uma resposta à política real, para
evitar que a monarquia se arrogue o monopólio deste tema. Os soberanos portugueses da fase
final da Reconquista (1217-1249) têm, com alguma razão e em contraste com os dois
primeiros reis da dinastia, uma imagem pouco guerreira, até nos anais régios 20; a
historiografia posterior corrigiu paulatinamente, dado que a Crônica de 1344 é ainda discreta
sobre as atividades bélicas fora das de Afonso I, e é apenas a Crônica de 1419 que sistematiza
o tema do rei guerreiro, na sua versão cristianizada, ou seja em associação com a proteção
divina21. Quanto aos soberanos posteriores à Reconquista (Afonso III, Dinis e Afonso IV), as
suas proezas militares pessoais não são nem numerosas nem sagradas, e inscrevem-se na
continuidade de uma dinastia que perdeu rapidamente as suas virtudes marciais. É
precisamente este défice, bem como o desejo mais global de sacralizar a “religião régia”, que
levam Afonso IV e os seus sucessores a pedir regularmente bulas de Cruzada para as
expedições que projetam 22 e a “recuperar” a batalha do Salado para dar a interpretação de
uma guerra santa. Pela escolha e o uso de um tema, o nosso texto reflete, por conseguinte, um
conflito simbólico entre realeza e aristocracia, mais do que a sua concorrência real 23.
Mais do que a função laudativa do texto, é o público visado que guia a escolha narrativa
do autor, isto é a natureza literária da nossa fonte : para recordar e glorificar uma batalha, e
18
19
20
21
22
23
Nos anos que seguem à redação, a passagem da dinastia da Borgonha a uma nova dinastia provoca uma
renovação profunda das elites aristocráticas, e a sua necessidade urgente de legitimar a sua posição
social explica o sucesso brutal da ideologia de guerra santa no século XV.
Com efeito, os casos precisos citados na soma deste autor referem-se a todo o Ocidente ; embora foi
bispo de Silves, em Portugal, o que parece mais tipicamente ibérico na sua acusação em 31 pontos
refere-se aos bandos nobiliárquicos da Galiza, a sua região de origem (Álvaro PAIS, Estado e pranto da
Igreja (Status et planctus Ecclesiae), ed. e trad. de Miguel Pinto de Meneses, Lisboa, 1988 sq. (4 vol.), livro
II, título 32) ; este texto é resumido em Philippe CONTAMINE, La guerre au Moyen-Age (Nouvelle Clio,
24), Paris, 1980, p. 440-441.
Cf. Armando de Sousa PEREIRA, Representações da guerra no Portugal da Reconquista (séculos XI-XIII),
Lisboa, 2003.
C. S. SILVÉRIO, Representações da realeza..., p. 85-86.
A bula Gaudemus et exaltamus é renovada em 1345, 1355, 1375 e 1377 ; a partir de 1320, o rei Dinis
chama Cruzada o seu projeto de expedição marítima contra os corsários do Estreito (textos coligidos
comodamente nos Monumenta Henricina. Vol. I: 1143-1411, Coimbra, 1960). Certamente, a obtenção das
vantagens materiais ligadas a esta qualificação jurídica, nomeadamente a decima, não é alheia a este
zelo.
Ver a concorrência entre o rei Afonso IV e o prior do Hospitalários, analisada em seguida, nos discursos e
as cerimônias preparatórias que dão o seu sentido à batalha.
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para demonstrar o seu caráter santificador a uma aristocracia impregnada de literatura
cavalheiresca, que chama as suas crianças Gauvain (Galvão) ou Lancelot (Lançarote), e que se
empenha na demanda de Ilhas fabulosas (as Canárias), um canto épico será mais eficaz do que
um relato cronístico que procura a precisão e a exaustividade 24. Assim, a estrutura global da
parte narrativa, em três tempos, abertura terrível da batalha, perigo e desânimo seguidos
finalmente por uma vitória esmagadora, é evidentemente uma figura de estilo, que não visa
nenhuma exatidão cronológica.
Certamente, como em qualquer narrativa dirigida aos leigos, considerados incapazes
de abstração, o público deve poder identificar-se nos pormenores e no espírito geral; a
verosimilhança das atitudes mentais e o realismo dos elementos materiais (o famoso “efeito
de realidade”) são, por conseguinte, obrigatórios25. Em contrapartida, o tema da guerra santa
não é objeto de passagens didáticas, porque não faz parte do vivido dos ouvintes, e o autor
deve recorrer ao artifício dos discursos para torná-lo verossímil: são os próprios atores que
proclamam esta nova etapa do dogma. Do ponto de vista literário, o autor emprega
alternativamente mecanismos dramáticos do tipo das canções de gesta (desânimo no
combate, esquecimento inexplicável) e do tipo da hagiografia (a fé abalada) ; mas isso, que nos
aparece como uma carência tipológica, talvez permita ao público reconhecer mais facilmente
ideias familiares.
O tamanho mesmo do relato dilui a continuidade necessária a um raciocínio rigoroso e
explícito. Em contrapartida, parece que a estrutura dramática, complexa, pode servir para
introduzir e, sobretudo, demonstrar a santidade da guerra. A primeira sequência do texto é
uma descrição meticulosa da luta, quer técnica, quer épica 26 ; as notações morais são quase
excluídas, porque a tonalidade geral é fatual, e o campo lexical é o da violência (armas
quebradas, ondas de sangue, ou imagens ainda mais universais como as flechas que
escurecem o sol, p. 245, e barulho a fazer desabar-se as montanhas, p. 246) e o da valentia
(“proeza e honra de cavalaria”). A segunda sequência, que dá a “visão dos vencidos”, é
construída de maneira complexa do ponto de vista dramático; os diálogos entre chefes
mouros e seus arengas às tropas servem ao mesmo tempo para precisar peripécias do
24
25
26
A inexistência de uma tradição épica portuguesa, em oposição com a Castela, foi muito controvertida
(ver o artigo de José MATTOSO, « Épica (temas épicos) », in G. Lanciani, G. Tavani (coord.), Dicionário da
literatura medieval galega e portuguesa, Lisboa, 1993, pp. 237-238), mas o seu verdadeiro assunto é a
criatividade literária, que pouco nos importa aqui: que as canções de gesta sejam traduções ou
composições originais, é certo que o público aristocrático português gosta delas.
À data presumida de redação do texto, muitos veteranos que participaram na batalha podiam não estar
vivos, mas a preocupação de conformidade às suas lembranças (até por causa de um possível uso dos
seus testemunhos pelo autor) pode animar o autor do relato.
O combate enquanto tal começa p. 245.
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combate, para esclarecer pesadamente o caráter prodigioso da vitória cristã27 e ainda para
elogiar a valentia dos cavaleiros portugueses. A moralidade da história, longamente trazida
pela segunda parte, é começada habilmente logo no fim da primeira parte, por uma curta
reflexão emprestada aos Mouros sobre a impotência “do seu Mahomet”, aquando da mudança
de favor das armas (p. 249).
Mas até o implícito pode constituir também uma espécie de conivência entre o
narrador e um público que compartilha os mesmos valores. Assim, a ausência de qualquer
legitimação ao empenho dos cavaleiros portugueses contra um inimigo que não ameaça o seu
reino, assim como a fraqueza da justificação moral do emprego da violência contra os Infieis,
resultam do espírito cavalheiresco, que tende a codificar mais o jus in bello do que o jus ad
bellum. Mas pode-se considerar o silêncio como um método retórico eficaz?
Afinal, permanece difícil de determinar se o público percebe uma demonstração além
do suspense narrativo. Certamente, não há contradição absoluta entre a forma e o fundo:
qualquer conto de cavalaria, mesmo aparentemente vão, visa comunicar um ensino; mas, do
nosso ponto de vista, a forma, que se dirige para as emoções, dissimula ou veste a ideia, num
domínio tão complexo como a teologia28.
O papel e a natureza da guerra santa
Toda a dificuldade consiste para o narrador em construir um esquema ideológico, com
o que isso implica de abstração, através de representações mentais, que são unidades
semânticas simplistas e que não se articulam num sistema coerente de interpretação dos
problemas complexos. Além disso, num discurso pouco retórico, podem ser combinados os
estereótipos – que reforçam uma opinião mais do que a suscitam – de forma a fazer evoluir as
crenças do público? Vamos, portanto, colocar o problema nestes termos: mais do que encarar
uma impermeabilidade ou antes uma diferença de natureza entre o sistema de valores
nobiliárquico e a ideologia de sacralização da guerra29, interrogar-nos-emos que
representações ancoradas nos cavaleiros podem ser utilizadas para persuadi-los de que a sua
guerra é uma obra religiosa.
27
28
29
Por exemplo, p. 253, a cruz resplandece como o sol, a vitória cristã é “contra natureza”.
É o problema do exemplum e do teatro medieval, de que se pode interrogar-se qual eficácia tinham para
“fazer crer”.
É a posição defendida por António José SARAIVA, A cultura em Portugal. Teoria e história. vol. II Primeira
época: formação (Obras de António José Saraiva, 5), Lisboa, 1991, p. 91-96, talvez influenciado pela
tradição inteletual que remonta até aos reformadores gregorianos.
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Num texto que é propagandístico, que necessita, portanto, de ser explícito ou pelo
menos, se ouso dizer, “claramente sugestivo”, e que visa um público pouco familiar das
subtilezas teológicas, o historiador não precisa procurar raciocínios dogmáticos em filigrana
ou na forma de alusões voluntariamente herméticas porque destinadas a um público de
peritos30 ; se há sinais de conivência, será antes no universo mental do público.
A legitimação da guerra pela natureza do inimigo é um processo dialético tradicional
da literatura profana, e os simples fiéis podem conhecer também o que pensam os clérigos
através das suas pregações; pode-se, portanto, interrogar-se em primeiro lugar qual é a
imagem dos mouros no relato31.
A partir do momento em que a vitória se desenha para os cristãos, é ao inimigo que a
palavra é dada; a sua função é pois muito importante no relato, mas é enquanto agente da
demonstração que o autor quer desenvolver. Com esta instrumentalização, espera-se o
conjunto dos lugares comuns, tanto os que arrastam na literatura profana como os
procedentes da propaganda religiosa, dado que o autor deveria dar aqui ao público o que este
espera, isto é mouros de canções de gesta e não mouros reais. Certo é que vários nomes não
são identificáveis e que certos personagens parecem inventados; além disso, os diálogos entre
mouros são uma convenção literária. O principal problema é a personagem de Alcarac, que,
designado como “Turco” e apresentado como chefe de tropas árabes vindo da Ásia, não pode
ser identificado a nenhuma personagem histórica conhecida – e não se pode tratar de um
reforço enviado pelos Mamelucos – ; estamos induzidos a ver nele uma ficção literária
inspirada diretamente pelas canções de Cruzada32, que devem ser familiares ao comanditário
do texto, o prior dos cavaleiros Hospitalares (Ordem que vai participar, alguns anos depois,
em 1396, na desastrosa Cruzada de Nicopolis).
A imagem dos mouros é ambígua no domínio cultural : “são grandes astrólogos” 33 ; isso
é visto antes do lado da magia negra que da ciência, mas é ao mesmo tempo um elemento do
fascínio ocidental para o Oriente sabedor de segredos. Sua valentia guerreira, várias vezes
30
31
32
33
O pano de fundo inteletual do nosso texto, isto é a ideologia dos letrados, é bem resumido no artigo de
Luis Filipe THOMAZ, “Cruzada”, em C. Moreira Azevedo (dir.), Dicionário de história religiosa de Portugal,
Lisboa, 2000 (4 vol.), vol. II, p. 31-38.
O quadro geral desta reflexão é fornecido por Stéphane BOISSELLIER, « Une tolérance chrétienne dans
l’historiographie portugaise de la Reconquête (XII-XIIIe siècles) ? », em Guy Saupin e.a. (dir.), La
tolérance. Colloque international de Nantes (mai 1998). Quatrième centenaire de l’édit de Nantes, Rennes,
1999, p. 371-383 e Armando de Sousa PEREIRA, “Cristãos e muçulmanos no Ocidente peninsular
medieval. As representações de um confronto”, Cultura: história e filosofia VII (1997), p. 89-112.
Sobre o eventual protótipo arturiano desta personagem (na Estoire del Santo Graal), Evalac de Sarras,
ver Martin AURELL, La légende du roi Arthur 550-1250, Paris, 2007, p. 417. Certo é que, historicamente,
há tropas de mercenários turcos (Ghuzz) no exército merinida, mas não podem ser identificadas com os
combatentes do relato.
P. 242 ; ver depois uma explicação sobre o curso fasto e nefasto dos astros (p. 250).
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assinalada34, é uma conotação indubitavelmente positiva num sistema de valores
cavalheirescos, ainda que matizada pela esmagadora superioridade numérica dos mouros.
Sobretudo, certos códigos da literatura épica, dentro dos mais importantes, como a crueldade
e a monstruosidade física dos mouros35, não são empregues pelo autor. Com efeito, os chefes
muçulmanos
são
apresentados
aqui
como
cavaleiros
(obcecados
pela
honra,
nomeadamente36), sábios, bons estrategistas e valentes; falta afinal uma dimensão cultural
essencial, o caráter abominável do inimigo: numa lógica que provem do direito natural mais
do que do direito canônico (focalizado, ele, sobre a ortodoxia), esta lacuna impede a
detestação ontológica do inimigo, que nunca é exprimida explicitamente – o vocabulário
clerical de diabolização da infidelidade (do tipo “inimigos do nome cristão” ou
“blasfemadores”) é totalmente ausente. Isto explica a ausência de um dos elementos mais
simbólicos da prática da guerra santa, presente principalmente nas fontes narrativas 37 : a
destruição do infiel – que, de resto, é justificada pela doutrina jurídica romana da “guerra
mortal”, e não necessariamente por um ódio ontológico para com o inimigo – ; neste relato,
mata-se muito, mas é dentro do combate38 e não por execução dos sobreviventes – ao
contrário do que sugere a inscrição comemorativa da batalha na Sé de Évora.
Com efeito, para os mouros como para os cristãos, há uma personalização extrema do
acontecimento; a ação é focalizada sobre o misterioso Alcarac – este exclusivamente como
ator da batalha – e sobre o sultão merinida Abû l-Hassan. É este último, como instigador da
invasão da Península e principal vencido da batalha, que incarna o sentido providencial da
história, com o seu discurso explicitador em forma literária de pranto (p 254) : seguro da sua
superioridade militar, ao topo da glória e da potência, invicto até là39), simboliza a desgraça
absoluta; a última parte do texto, narrando em pormenor suas peripécias no Magrebe, que se
poderia intitular “as desgraças de Abû l-Hassan”, é uma longa exemplificação da lógica de
degradação inevitável para cada infiel. Pode-se considerar que toda a segunda metade do
relato serve, na perspectiva de promoção da guerra santa, para trazer a moralidade, que
34
35
36
37
38
39
Por exemplo, p. 245, “os Mouros eram muito esforçados e feridores de todas partes”.
Pelo contrário, é Alcarac quem descreve os cavaleiros portugueses como gigantes (p. 254).
P. 250, “nom percades as famas de bondades de cavalaria que sempre houvestes”.
Ver o resumo da historiografia do assunto em Pascal BURESI, « Captifs et rachat de captifs. Du miracle à
l’institution », Cahiers de civilisation médiévale, 50 (fasc. 198) (2007), p. 113-129.
As menções do tipo “a batalha tornou-se… muito destrutiva e muito cruel e sem piedade” (p. 245)
introduzem descrições épicas, e não são uma alusão à guerra romana.
Mas não é apresentado explicitamente como um orgulhoso nem como inimigo do cristianismo : a palavra
injuriosa atribuida ao sultão “cães de cristãos”, quando evoca a Reconquista da Península (p. 250),
parece antes destinada a motivar o seu exército. O autor insiste antes na sua descrença, quando espantase que um mero pedaço de pau (a Vera Cruz) possa dar a vitória ao inimigo, apesar da sua inferioridade
numérica (p. 253).
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reside numa frase: “assim Jesus manifesta os seus milagres contra os que querem ir contra a
sua fé” (p 256)40.
Isto conduz ao problema da identidade: contra um inimigo muçulmano, mesmo
devidamente “regionalizado” (reinos de Granada ou de Marrocos), é mais fácil identificar-se
como cristão do que como cidadão de tal ou tal comunidade política local (um reino). Então, é
a identificação social religiosa ou étnica? Em outros termos, intitulam-se os protagonistas
“cristãos” ou “Portugueses” ? Várias vezes, vê-se que os reis português e castelhano, quando
juntos, são ditos “reis cristãos” (p 243) e que os exércitos são designados do mesmo modo (p
246-8, várias ocorrências), embora os beligerantes sejam às vezes qualificados de
Portugueses ou Castelhanos (p 249), aparentemente logo que o autor tiver necessidade de
distingui-los um para com o outro, por conseguinte por necessidade narrativa. Esta
globalização lexical, que se encontra também na ausência de qualquer distinção entre
magrebinos merinidas e andaluzes nasridas 41, permite identificar apenas dois campos, cristão
e mouro; esse dualismo é endurecido pelo critério, religioso, distinguindo estes campos. É
uma ideia relativamente nova em Portugal, segundo a qual a fronteira ibérica contra alAndalus representa a fronteira de toda a Cristandade contra todo o Islão.
Se nos colocarmos a posteriori, nos discursos de justificação retrospetiva da ação, uma
das principais motivações íntimas apresentadas é a pressão social, formalizada na noção do
dever, noção particularmente sensível na nobreza, cuja ética cavalheiresca coloca o dever à
cimeira dos valores morais (embora concebendo-o cada vez mais, na baixa Idade Média, como
a obediência militar ao chefe). A esse respeito, a noção de “serviço de Deus”, central para os
leigos implicados nestas guerras, não é clara: é realmente dupla, associando numa clara
discriminação a obra piadosa e o dever para com o suzerano? Ou a “religião vassálica” (ou
mesmo a “religião régia”) impregnou suficientemente os espíritos de modo que o serviço do
rei seja assimilado ao serviço de Deus, através do cumprimento da Ordem?
É verdadeiro que, entre as consequências possíveis do combate, seja atribuída aos
atores a esperança de ganhar a palma do mártire – sem empregar a palavra, de resto – e de ir
diretamente ao lado do Pai, porque essa morte é uma nova Paixão; várias vezes reiterado
40
41
Pode-se notar, no plano literário, que a moralidade é sugerida, através dos discursos do rei Albofacem,
pelos próprios parceiros da ação, o que é um método familiar aos ouvintes de novelas cavalheirescas,
como nos romances arturianos (com o eremita que explica ao cavaleiro o sentido escondido das suas
aventuras) ; mas a enunciação explícita desta moral é feita pelo próprio autor.
A única distinção feita no inimigo opõe os mouros (do Ocidente) e “os árabes” de Alcarac (que são
aparentemente Orientais), cf. por exemplo, p. 247, os cavaleiros árabes “X mil cavaleiros d’aláraves”.
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pelos próprios combatentes durante a batalha42, este motivo de origem romano-franca,
introduzida na Península pelos clérigos gregorianos mas integrada apenas a partir do século
XII nos discursos clericais hispanos, é o principal elemento dogmático que faz do combate
uma guerra “que justifica” : a certeza da salvação (pelo dom da sua vida para uma justa causa)
mostra que a guerra contra o infiel é percebida pelo autor como um combate de Deus. É, por
conseguinte, uma motivação estritamente espiritual que é proposta ao público, mas que se
confunde certamente para os ouvintes com a ideia mais global da glória conferida pela morte
no combate ; de resto, de maneira bastante arcaica, no discurso do rei como no dos cavaleiros,
a salvação sempre é associada só à morte para a fé, enquanto a glória mundana é reservada
aos sobreviventes – o que é uma concessão aos valores cavalheirescos.
Notem que a enunciação mais precisa do valor penitencial da guerra fica num discurso
do rei – “pensava que Deus o fizera uma grande graça ao conduzi-lo ao momento onde poderia
redimir os seus pecados para salvação da sua alma e receber a morte para Jesus Cristo” (p.
243) – , e a estrutura do texto induz que é nesta perspetiva que dirige a sua arenga aos seus
homens. Se o discurso que lhe é atribuído fala principalmente da legitimação da aristocracia
em relação à monarquia, a sua conclusão é principalmente religiosa : “os que morrerão e
viverão aqui serão salvos e célebres para sempre” (p. 244), o que coloca o monarca, mais uma
vez, como o que professa o valor sagrado do combate43. No entanto, antes desta afirmação
abstrata, as motivações concretas propostas pelo rei ao público estão claramente ad usum
militum: a defesa do território, a reprodução das virtudes ancestrais e a seguridade física dos
parentes. De resto, a resposta dos cavaleiros é mais laica, dado que é uma simples promessa
de vencer ou morrer. Além disso, num dos discursos atribuídos aos cavaleiros durante a luta,
produzido para incentivo mútuo, o sentido da vitória é definido por uma série de
qualificativos, cuja natureza e ordem são significativas e retomam em parte o discurso real :
glória pessoal, honra de grupo, salvação física das famílias, reprodução das virtudes ancestrais
e por último salvação pessoal da alma (p. 245).
Há no relato um objeto, onipresente, que é um fragmento da Vera Cruz conservado
num mosteiro Hospitalário do sul de Portugal, em Marmelar, cujo papel na economia do relato
coloca o problema do uso do milagre, necessário para manifestar explicitamente o favor
42
43
“este é o dia da salvaçom das nossas almas” (p. 245), “os que morrêremos hoje seeremos com el no seu reino
celestial, u ha moradas tam nobres que se nom podem dizer por linguas” (p. 246).
No entanto, na verdadeira liturgia que é a ostensão da Vera Cruz antes do combate (p. 244), é o prior do
Hospital que desempenha o primeiro papel, pregando ao rei (este como responsável do combate) a
devoção para com ela, o que restabelece a aristocracia na vanguarda da sacralização do combate.
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divino e, portanto, clássico na literatura de Cruzada44. Aqui, a intervenção não tem nada de
sobrenatural, dado que é uma ostensão litúrgica de uma relíquia trazida pelos combatentes ;
não é um aparecimento prodigioso, como o quer um topos hagiográfico frequente. Além disso,
o seu poder não se manifesta através de um prodígio realmente contra natureza, mas ao dar
novas forças aos combatentes abatidos e cansados. Tudo permanece subordinado à valentia e
à ação dos guerreiros. Certamente, pode-se ver lá uma espiritualização da ação das relíquias,
ao contrário do pensamento mágico que fez o seu sucesso popular ; mas nunca é enunciada
explicitamente a moralidade que se deveria deduzir logicamente, isto é que é a fé e não o
objeto que atua. Um outro fator esperado de milagre é o número infinito de inimigos,
mencionado no princípio do relato, fácil de utilizar para sugerir o caráter sobrenatural do
sucesso, e o autor atribui ao rei Albofacem, no fim do relato, palavras que retomam
pesadamente aquele aspecto ; mas é um método literário que não tem nada de
especificamente clerical. A ideia geral, providencialista, que os cavaleiros foram o instrumento
de Deus, ideia que é provavelmente a mais evidente para o público, parece-me para
interpretar no contexto de concorrência simbólica com a monarquia; é necessário tomar um
dos fundamentos do poder real para atrair um pouco desta sagralidade doravante
indispensável para legitimar qualquer superioridade social.
Fora deste uso de uma relíquia bem específica, o autor não acha útil conferir ao
acontecimento qualquer aparato ritual, que seja sobrenatural (aparecimento celestial,
milagre, intervenção dos santos) ou temporal (pregação clerical, bendições, votos e missa); o
que procura fazer crer, é que esta guerra é pelo melhor santificadora mas não sagrada (isto é
uma guerra na qual Deus luta “pessoalmente”). As interpretações de tipo teológico, como a
dimensão escatológica do combate e a sua qualificação de “santo” ou “sagrado” (sem falar do
qualificativo “Cruzada”, que é totalmente ausente), e as justificações canônicas, como a
menção da bula de Cruzada, faltam igualmente. Parece-me, por conseguinte, difícil apresentar
este relato, como o fez C. Erdmann, como o apogeu da ideologia de guerra santa em Portugal,
mesmo na perspetiva do mero conteúdo moral. Podemos explicar esta ausência de sagrado
antes por uma impermeabilidade dos tipos literários: o sobrenatural cristão, apesar da sua
dimensão patética potencial, é demasiado associado à retórica clerical para ser utilizado num
texto épico. O uso direto de imagens visuais violentas (o jogo letal das espadas, o sangue que
se espalha, o número aterrorizante de mortos), nas passagens que nos parecem precisamente
44
É a partir dos anos 1410 que o mito fundador da nação portuguesa, a batalha de Ourique, é narrado
como um milagre. Algumas décadas atrás, o cronista Zurara faz preceder a expedição “fundadora” de
Ceuta (1415) de um aparecimento milagroso ao rei João I.
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mais lúdicos e menos propagandísticos, não compensa a ausência de referências sagradas ;
mas pelo menos sugere, pelo exemplo, a necessidade de exterminar este tipo de inimigo. Além
disso, a mera vitória sob a bandeira e pela virtude da Vera Cruz é a imagem que se forma a
partir da organização dramática, elemento de religiosidade simplista, mas que se interioriza
precisamente graças à sua simpleza. Enfim, uma última representação, menos nítida, mas
felizmente colocada ao fim para uma melhor memorização, é a condenação dos infieis à
desgraça. Obtém-se, por conseguinte, a associação procurada entre a ideia de eleição divina e
a imagem da vitória militar.
********
Em conclusão, é necessário recordar obstinadamente que o uso social de um
documento importa tanto como o seu conteúdo, porque um escrito é redigido mais como
“instrumento” do que como “monumento” – e deve em primeiro lugar cumprir as esperas do
público visado (o Erwartungshorizont teorizado por Hans Robert Jauss).
A noção de defesa armada da fé que confere salvação, no que tem de mais espiritual e
dogmático, não é ausente nem mesmo ocultada pelos valores cavalheirescos, como se se
tratasse de dois sistemas incompatíveis, mas é literariamente mediatizada pelo próprio
combate, na forma destes feitos de armas que tanto agradam à nobreza média e pequena.
Enquanto inteletuais que somos, os historiadores, recusamos a superioridade da sugestão
poética em relação à capacidade de convencer da retórica. A relativa liberdade do narrador no
uso de gêneros literários (incluido no uso de exempla pelo pregador), os “efeitos de realidade”
e o uso intensivo dos estereótipos geram discursos “a dimensão argumentativa” que não
devemos duvidar em classificar na literatura de propaganda.
A fraqueza dos elementos dogmáticos e litúrgicos na dinâmica deste texto não deve
induzir a inexistência ou a ineficácia da propaganda em prol da guerra santa. Com efeito, para
além dos pormenores, o significado do acontecimento faz confluir a tradição guerreira pagã
(amansada pela Igreja em ética cavalheiresca) e o sentido sagrado da violência45: trata-se de
uma batalha ordenada, acontecimento invulgar que não se pode assimilar à guerra comum, e
que é, portanto, interpretado por todos, tanto pelos atores laicos como pelos clérigos que lhe
deram este sentido, como uma ordália – mas é necessário sublinhar que, fora da arenga
preliminar e da Vera Cruz, o autor omite qualquer “teatralização do risco”, pelas quais as
45
René Girard mostrou em La violence et le sacré que a violência coletiva tem uma dimensão sacrificial
fundadora, que subsiste no seio da definição, mais jurídica, do sagrado pelo cristianismo.
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liturgias (pagãs ou cristãs) atenuam a iminência da morte e relacionam a violência e o
sagrado. Além disso, por uma espécie de bricolagem literária, o autor obtém uma associação
de ideias entre a guerra, a superioridade do cristianismo e a salvação46.
Mas devemos reconhecer que as articulações entre estas ideias não são nem finas nem
explícitas; esta prudência dialética, que não parece ser uma inaptidão técnica, poderia
explicar-se pelo fato de o autor conhecer a ignorância do público para com estas ideias. Se foi
interpretado este relato como um ponto de chegada, é porque as práticas e as noções da
guerra santa desenvolveram-se fortemente algumas décadas atrás, na expansão em Marrocos,
e porque se quer ver naquelas um fato de “mentalidades”, necessitando, portanto, uma longa
maturação – para além do desejo dos historiadores de estabelecer uma continuidade com a
Reconquista, em nome de uma concepção linear do “progresso”. Propomos antes de
considerar este texto como um ponto de partida no longo caminho pelo qual se passou do
sacrifício ao sagrado e do sagrado ao sacramento.
46
É de resto uma leitura rápida e principalmente semântica do texto que levou os medievalistas a
considerá-lo como a expressão perfeita de um “espírito de Cruzada” em Portugal.
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As transformações na sociedade política e nas monarquias
medievais e seus efeitos na mobilidade de facções nobiliárquicas
entre Portugal e Castela
The transformations in political society in the medieval
monarchies and their effects on the mobility of nobiliary factions
between Portugal and Castile
Fátima Regina Fernandes*
Universidade Federal do Paraná
NEMED - Núcleo de Estudos Mediterrânicos
Resumo
Abstract
Este estudo propõe-se a analisar as relações
políticas na sociedade ibérica medieval no nível das
elites definidas a partir das vinculações de natureza
linhagística e vassálica, uma rede sócio-política cuja
estrutura é constituinte da sociedade política
medieval. Esta teia de acordos e vínculos
interpessoais interferia e por vezes mesmo definia
as políticas régias e marcava um perfil de ação
nobre marcado pela extraterritorialidad de que nos
fala Salvador de Moxó, principalmente nos vários
contextos de guerra que se desenrolam na
Península Ibérica tardo-medieval, palco de nossos
estudos. A crise dinástica de Borgonha e ascensão
de Avis em Portugal são vistos pela historiografia
como um momento-chave de recomposição destas
estruturas tanto em Portugal como em Castela, no
entanto, preconiza-se a ampliação desta análise a
outros vetores geo-políticos que envolvam a
participação portuguesa na Guerra dos Cem Anos,
assim como a importância dos processos de
regeneração nobiliárquica e centralização régia
nestas movimentações. Elementos que ampliam a
tradicional abordagem limitada ao eixo
Avis/Trastâmara e buscam promover uma
problematização mais estrutural dos exílios que
permeiam este cenário a fim de extrair-se um perfil
deste movimento, além das verdadeiras
motivações de ida e retorno destes nobres entre os
This study proposes to examine the political
relations in medieval Iberian society at an elite
level defined from bindings of lineage and
vassalic nature, a socio-political network whose
structure constitutes medieval political society.
This web of agreements and interpersonal bonds
interfered and sometimes even defined the royal
policies and marked a profile of noble action
marked by the extraterritorialidad mentioned by
Salvador Moxó, especially in the various contexts
of war unfolding in late medieval Iberian
Peninsula, in which we place our studies. The
dynastic crisis of Burgundy and the rise of Avis in
Portugal are seen by historiography as a key
moment of restoration of these structures both in
Portugal and Castile, however, it is recommended
to expand this analysis to other geo-political
vectors involving Portuguese involvement in the
Hundred Years War, as well as the importance of
the processes of nobiliary regeneration and royal
centralization in these movements. Such elements
expand the traditional approach limited to the
Avis / Trastámara axis and seek to promote a
more structural problematization of the exiles
that permeate this scenario in order to draw up a
profile of this movement, in addition to the true
motivations behind the comings and goings of the
nobles between these kingdoms. Thus, the
*
Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes é Doutora em História Medieval pela Universidade do Porto em
Portugal, Professora Associada IV da UFPR, pesquisadora PQ II do CNPq e Coordenadora do Núcleo de
Estudos Mediterrânicos (NEMED) da UFPR.
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reinos. Assim, a mobilidade destes grupos
caracteriza em boa parte este contexto de crise e
transformação, além de promover uma verdadeira
atualização dos perfis de atuação nobiliárquicos do
grupo em si e frente à monarquia nestes séculos
finais da medievalidade.
mobility of these groups largely characterizes this
crisis and transformation context, and promotes a
true updating of nobiliary action profiles of the
group itself and in relation to the monarchy in
these final centuries of medieval times
Palavras-chave: Exílios tardomedievais;
Regeneração nobiliárquica tardomedieval;
Monarquia tardo medieval portuguesa.
Keywords: Late medieval exiles; late medieval
nobiliary regeneration; late medieval Portuguese
monarchy.
● Enviado em: 24/02/2014
● Aprovado em: 07/11/2014
Introdução
Este estudo propõe-se a observar as relações políticas na sociedade ibérica medieval
cuja natureza envolve as vinculações linhagísticas, e as vinculações vassálicas, as quais podem
funcionar independentes ou complementarmente como estrutura constituinte da sociedade
política medieval. Esta teia de acordos e vínculos interpessoais interferia e por vezes mesmo
definia as políticas régias, movendo igualmente grupos nobiliárquicos segundo interesses
coletivos e por vezes servindo de suporte a interesses individuais. Um perfil de ação marcado
pela extraterritorialidad de que nos fala Salvador de Moxó 1 cujas condições de movimentação e
estabelecimento aceleram-se nos vários contextos de guerra que se desenrolam na Península
Ibérica nos séculos XIV e XV, palco de nossos estudos.
A luz desta perspectiva o nosso estudo centra-se no fenômeno dos exílios que se realizam
entre 1369 e 1398 a fim de extrairmos um perfil deste movimento, motivações de ida e retorno
destes nobres entre os reinos de Portugal, Castela e Inglaterra, descortinando os grupos a que se
vinculam vassalicamente e o peso destes interesses na sua decisão de partir, assim como o uso
que fazem de uma causa em função de seus interesses pessoais de estabelecimento e projeção.
Trata-se, assim, de uma proposta de pesquisa em início de desenvolvimento que apresenta
resultados iniciais que passamos a apresentar.
1
MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, S, “De la nobleza vieja a la nobleza nueva”. In: Cuadernos de História (anexos
da Revista Hispânia), Madrid: Instituto Jerónimo Zurita, 1969, 3, pp.1-210.
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As transferências de um reino a outro são uma constante para grupos de
representantes da nobreza que dispõem de uma rede de suporte linhagística, portanto
familiar, complementada por vinculações vassálicas, condição que facilita as deslocações e
condições de estabelecimento em qualquer reino peninsular e mesmo além-Pirinéus e
permite a relativização dos conceitos de naturalidade para seus representantes.
Na verdade observamos deslocações de coletividades mais que de indivíduos, grupos
que constituem pequenas sociedades políticas privadas dos nobres que se transferem a outros
espaços acompanhados de seus fiéis de menor condição partilhantes das benesses, mas
também das experiências de confisco e mobilidade.
Assim, nossa proposta parte da observação nos documentos medievais portugueses de
um movimento, uma clara mobilidade de grupos nobiliárquicos potencialmente justificados
em sua capacidade de integração independentemente das fronteiras dos reinos. No entanto,
nas fontes relativas ao recorte proposto não aparece o termo exílio, este tem de ser entendido
a partir do cenário contextual e desdobramentos das trajetórias destes indivíduos e por nós,
historiadores do século XXI compreendidos como um fenômeno de exílio. Em geral este
movimento está ligado a um deserviço ao rei, uma consequência natural e posterior a um ato
entendido como traição, uma reação a um ato consumado e uma forma eficiente de escapar à
ira ou desfavor régio; trata-se assim, em geral de um auto-exílio. Apresenta-se, portanto,
segundo estas fontes, como um movimento mais que um conceito definido, visto que os
vestígios mais confirmadores da condição de exílio são o confisco dos bens e sua transferência
a outrem. Não identificamos documentos intitulados em sua natureza ou fins como cartas de
exílio e mesmo considerando-se as filtragens documentais realizadas ao longo da
medievalidade seria improvável não haver sobrado nenhuma carta deste tipo 2. Apenas nas
cartas de doação é que se identifica complementarmente à condição de confiscado, aquela de
quem caíra em deserviço, o qual estando fora do reino teria os seus bens transferidos a
outrem. Propomo-nos, assim, com este projeto definir em moldes medievais esta condição de
exilado escapando a anacronismos interpretativos que contaminem a análise.
Acompanhando em parte esta discussão, chegamos às cartas de seguros, outro tipo de
materiais a que Quintanilla Raso dedicou estudos iniciantes3 e que constituíam, em suas
palavras “pilares básicos de la vida social” transformados em política régia no sentido de
manter o bem comum, a paz e estabilidade interna dos reinos. O seguro, a proteção declarada
2
3
FERNANDES,F.R. “As Crônicas e as Chancelarias régias: a natureza e os problemas de aplicação das
fontes medievais portuguesas”. In:,Revista Ágora, Vitória, UFES, 2012, 16, pp. 77-94.
QUINTANILLA RASO, M.C. “Pactos nobiliários y seguros régios em la Castilla de finales del siglo XV”. In:
Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, Instituto de Historia de España, 2012, 85-86, pp. 567-79.
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entre o rei e nobres, de caráter particular manifestaria uma outra forma de justiça maior do
rei, capaz de garantir conjuntural ou circunstancialmente a integridade das pessoas e bens
envolvidos. Pouco estudados pela historiografia espanhola, conforme balanço da
pesquisadora, constata-se igual ou menor interesse da parte da historiografia portuguesa
além dos estudos de Manuela Mendonça para o princípio da modernidade. Trazemos esta
reflexão por entendermos tratar-se de elemento adicional e frequentemente constatável nos
movimentos de mobilidade dos grupos ou de individualidades nobiliárquicas no reino
português no contexto proposto por esta pesquisa. Os pedidos de proteção ao rei se sucedem
nas Chancelarias portuguesas, quase sempre entendidos como movimentos isolados,
esporádicos quando do retorno ao reino por parte de um nobre auto-exilado no reinado
anterior, como seria o caso de Diogo Lopes Pacheco em 13674 ou quando o rei Pedro, o Cruel
de Castela pede salvo-conduto a seu tio, o rei Pedro I, de Portugal contra as intenções de seu
filho, Infante Fernando em 13665 ou mesmo o pacto que envolve o rei Fernando aos
emperegilados em 13696.
Situações que devem ser compreendidas estruturalmente como sintomas, partes
constituintes de uma política régia de concentração na instituição monárquica das estratégias
reguladoras da ordem social, fonte em última instância da paz e proteção individual e coletiva,
intervindo, autorizando, garantindo a integridade daqueles que optassem por voltar ou vir
para o seu reino. Ações que não devem ser entendidas, segundo nossa perspectiva, num
caráter de excepcionalidade e que se constituem como parte de uma política concertada de
intervenção legitimadora destes fenômenos de mobilidade sócio-política revisando
interpretações historiográficas que justificam as recomposições nobiliárquicas medievais à
luz apenas de mudanças dinásticas. Questões derivadas do tema dos exilados na
medievalidade e que nos arrastam ainda a outros aspectos desta realidade estudada que
4
5
6
LOPES,
Lopes. Crónica de D. Pedro I. Damião PERES (ed.), Porto, Ed. Civilização, 1965, cap. IV, p.20 e LOPES,
Lopes. Crónica de D. Fernando. Salvador Dias ARNAUT (ed.), Porto, Ed. Civilização, 1966 cap.1, pp.10-11 e
cap.81, p.212. Consegue a confirmação do perdão e a restituição da sua honra e bens, situação
confirmada por duas cartas régias datadas de 08 e 09 de Março de 1367 (Arquivos Nacionais/ Torre do
Tombo, Chancelaria de D. Fernando, l.I, f.2). Nas cartas de restituição dos seus bens, percebe-se a
amplitude do patrimônio de Diogo Lopes Pacheco em Portugal, sendo referidos bens em vários
almoxarifados: Lisboa, Coimbra, Viseu, Guarda e Lamego, além do senhorio de Ferreira de Aves, na Beira
(Id, ibid, livro I, f.2 e f.66).
Mesmo a comitiva escolhida para a acompanhar o rei Pedro, o Cruel até à fronteira com Castela teme ao
Infante Fernando que os mandara ameaçar, pelo que deixam o rei castelhano na Guarda apesar das
propostas de pagamento extra se o levassem até a Galiza. (LOPES, Crónica de D. Pedro I, cap. 39, pp. 1801).
LOPES, Crónica de D. Fernando, cap. 27, pp. 79-81.
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respeita ao conceito de fronteira física7, sua delimitação e concepções por parte dos vários
segmentos da ordem nobiliárquica em atualização.
Podemos refletir ainda, relativamente ao conceito de fronteira que nos é trazido a
propósito da temática dos exílios no recorte desta proposta que nossa discussão perpassa
uma problemática mais centrada nos efeitos da cristalização de uma identidade monárquica
identificada como a do reino. As transformações dos séculos XIV e XV e o esgotamento do
processo de Reconquista cristã na Península Ibérica8 promovem uma atualização dos critérios
definidores do conceito de fronteira em outros moldes. Os projetos universalistas cristãos,
imperiais teriam de ser restritos a unidades políticas menores onde cada rei seria Imperador
em seu reino, desafio proposto aos juristas e à Universidade em apoio às motivações
monárquicas. Os interesses dinásticos ganham, assim, uma dimensão de legitimidade
equivalente à dos interesses coletivos de um reino gerando uma secularização da ideia de
fronteira agravada pela falência do projeto de unidade da Cristandade latina pontifícia
manifesta no Exílio de Avignon e Cisma do Ocidente9. Outra inflexão importante neste
conceito de fronteira num contexto baixo-medieval peninsular estaria ligada à passagem de
uma ideia de fronteira móvel à de uma fronteira estática 10. Uma discussão que se encaminha
para a compreensão de elementos complementares como a existência de uma identidade
fronteiriça que pouco a pouco seria dissolvida nas elaborações monárquicas onde as
7
8
9
10
Os materiais documentais envolvem desde o conjunto das Siete Partidas, cuja primeira edição completa
manuscrita caberia a Afonso XI de Castela na primeira metade do século XIV, assim como as glosas e
comentários posteriores que do ponto-de-vista jurídico e político atualizariam seu conteúdo
acompanhando as transformações do conteúdo e dinâmica sócio-política do contexto analisado. Neste
sentido terá importância ainda, a análise do conteúdo das Ordenações Afonsinas que teriam a função de
selecionar e sistematizar as matérias e cânones ainda válidos na legislação portuguesa do século XV. As
atas dos capítulos gerais e particulares das Assembleias de Cortes Gerais dos reinados de Fernando e
João I de Avis permitem identificar os pontos de desacordo entre esta política monárquica no decurso de
uma crise dinástica e a base municipal e nobiliárquica do reino português. A documentação chancelar
fornece um panorama administrativo e político amplo e alimenta a metodologia prosopográfica
permitindo desenhar o perfil desta nobreza regenerada, seus grupos de apoio, satélites, critérios de
ascensão e ofuscamento em relação ao poder central.
PAZ ESTEVEZ, M. de la. “La conquista de Toledo en 1085. Génesis y desarrollo de una frontera a través
de sus fuentes”. In: NEYRA e RODRÍGUEZ (dirs), ¿Qué implica ser medievalista? Prácticas y reflexiones en
torno al oficio del historiador, Mar del Plata, Universidad de Mar del Plata, Sociedad Argentina de
Estudios Medievales, 2012, v. 2, pp. 23-43; AYALA MARTÍNEZ, C, “Definición de cruzada: estado de la
cuestión”. In: Clio & Crimen, Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, Durango, 2009, 6,
pp.216-42; RUIZ-DOMENEC, J.E. “La frontera en la España medieval. Una historia cultural”. In: Id, Entre
Historias en la Edad Media, Granada, Editorial Universidad de Granada, 2011, pp. 61-70 e GARCÍA FITZ, F.
“La Reconquista: un estado de la cuestión”. In: Clio & Crimen, 6, 2009, pp.142-215
FERNANDES, F.R. “A monarquia portuguesa e o Cisma do Ocidente ( 1378-85)”. In: Instituições, poderes e
jurisdições, Renan FRIGHETTO e Marcella L. GUIMARÃES (Coords.), Curitiba, Juruá, 2007, pp.137-55 e
FERNANDES, F.R. “Nem Roma, nem Avinhão, mas Pisa”. In: SOUZA, J. A. de (org). As relações de poder: do
Cisma do Ocidente a Nicolau de Cusa, Porto Alegre, Edições EST, 2011, pp. 69-87.
MITRE FERNÁNDEZ, E. “La Cristiandad medieval y las formulaciones fronterizas”. In: MITRE
FERNÁNDEZ et alii (org), Fronteras y fronterizos en la Historia. Valladolid, Universidad de Valladolid,
1997, pp. 10-62.
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competências frente ao outro passariam a ser focadas a partir da criação de uma consciência
territorial e sua equivalente alteridade entre cristãos de reinos vizinhos. 11 Um processo mais
espontâneo e de rápida assimilação nos territórios fronteiriços e especialmente em momentos
de guerra constante, transformando os Concelhos de fronteira em espaços privilegiados de
observação desta transformação especialmente no contexto da Guerra dos Cem Anos na
Península, a partir, portanto, de 1369.
A problemática que nos motiva seria, então, a de saber como as elites reagem a este
processo quase natural, concebendo-se como válidas e pertinentes as transformações
estruturais em curso, tanto dos estratos nobiliárquicos quanto da instituição monárquica.
Parece-nos que os reis seriam os principais agentes oficializadores destas concepções
políticas, aproveitando-se da crise de identidade da nobreza para estabelecerem modelos de
validade geral influenciados por estas concepções de predomínio do valor da naturalidade
sobre a fidelidade vassálica extraterritorial. Modelos de signo centralizador cujos efeitos a
base municipal também sofria sendo lesada a todo o momento em suas competências,
prerrogativas e direitos consuetudinários e foralengos.
No panorama sócio-político medieval português, quiçá, ibérico, observam-se sintomas
de reações de voluntária incorporação e também de resistência a este processo recompositor
da sociedade política que cerca os reis. Fenômeno que provoca importantes mudanças de
alguns conceitos como natural, estrangeiro, domicílio, vizinho, fidelidade, traição ou deserviço,
bastardia, exílios e mobilidades à luz de discussões desenvolvidas pelos Doutores em Leis que
cercavam como letrados, os reis tardo-medievais12. Discussões, glosas e comentários de
códigos legislativos e jurídicos que promovem uma compreensão, usos e combinações
trecentistas e quatrocentistas para conceitos antigos como os de ius sanguinis e ius solis. Assim
como a adesão de vários critérios definidores e reguladores do conceito de natureza como o
de domicílio efetivo, tempo de residência, vontade verbalmente explicitada, traslado/
residência efetiva por uma década, filiação materna e paterna ou apenas a última que
constituem aquilo que Strayer bem definiu como uma “territorialización empírica del
11
12
FERNANDES, F.R.” A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na
construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES, F.R. (org), Identidades e fronteiras no
medievo ibérico. Curitiba, Juruá, 2013, pp.13-47; PAZ ESTEVEZ, M. de la. “La conquista de Toledo en
1085. Génesis y desarrollo de una frontera a través de sus fuentes”, pp. 23-43.
QUINTANILLA RASO, M.C. “La renovación nobiliária em la Castilla bajomedieval: entre el debate y la
propuesta”. In: La Nobleza Medieval en la Edad Media. Actas Del Congreso de Estudios Medievales, Leon,
Fundación Sánchez-Alborñoz, 1999, pp.255-96. MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, S. de. “De la nobleza vieja a la
nobleza nueva”, pp.1-210. VITERBO, Fr. J. de Santa Rosa de, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que
em Portugal antigamente se Usaram e que Hoje regularmente se Ignoram. ed. Mário FIÚZA, Porto,
Civilização, 1962-65, 2 v.
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derecho”13. A sistematização de formas linguísticas oficiais e de vocábulos acompanham este
processo e promovem a associação da designação do reino a um espaço territorial definido
como demonstra, por exemplo, a titulatura rei de Portugal e do Algarve. Enfim, um universo
conceitual de forte cariz jurídico que defende o predomínio do Ius Commune ou Direito
Comum que se impõe nas últimas décadas do século XIV e estará completo em meados do
século XVI prenunciando a chegada dos Estados modernos.
Assim, os exílios, movimentos que aparentemente refletem desagrados pontuais entre
instâncias representativas de níveis centrais ou locais de autoridade, tomam, a partir destas
reflexões uma dimensão mais estrutural e menos casuística. Uma proposta que constitui,
assim, uma perspectiva de análise que busca promover uma revisão historiográfica ampla
sobre o sentido da centralização monárquica, a regeneração nobiliárquica e as construções
identitárias que acompanham estes movimentos, assim como apoios, resistências e
acomodações a estas transformações.
As razões que motivam estas deslocações são várias e merecem análise, mas importa
reter antes de mais que a nobreza no recorte por nós proposto passa por importantes
transformações estruturais internas com alcance nas relações de poder por elas praticadas.
Toda a medievalidade é marcada pela dialética entre renovação e manutenção de
alguns elementos, própria da concepção de tradição válida à época, a qual tem um sentido de
inovação que encobre sob o manto da repetição, dos comentários e citação das fórmulas
autorizadas, o recurso às vozes de autoridade, mas glosadas, comentadas, no fundo
atualizadas. A tradição era entendida como fonte de autoridade e legitimidade o que não
significava o congelamento de valores, tratava-se na verdade de um conceito intrinsecamente
dinâmico que buscava contornar, assim, o medo escolástico da contradição e da originalidade
associada ao pecado do orgulho14.
Monarquia e nobreza em atualização.
Observamos assim, na segunda metade do século XIV e XV de um modo geral em todos os
reinos da Cristandade latina os reflexos de uma dinâmica de redefinição e atualização dos
critérios definidores da monarquia e da nobreza. O processo de acirramento da centralização
13
14
STRAYER, J. apud MITRE FERNÁNDEZ, E. “La Cristiandad medieval y las formulaciones fronterizas”, p.
43. Ver ainda PÉREZ COLLADOS, J.M, Una aproximación histórica al concepto jurídico de nacionalidad.
Zaragoza, Institución “Fernando el Catolico”, 1993; HESPANHA, A. M, História das Instituições; épocas
medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982 e SILVA, N.E.G. da, História do Direito Português :
IV. - Fontes de Direito. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian , 1985.
ECO, U. Arte e beleza na estética medieval. SP/RJ: Record, 2010.
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monárquica avançava paralelamente ao de renovação dos modelos e perfis definidores da
nobreza numa relação de provocação biunívoca. A tradição era o discurso legitimador de
transformações que se impunham resultantes de um contexto instável que gerava guerras, crise
dinástica, disputas internas e exílios, fenômenos que manifestavam o desgaste de modelos
ultrapassados que tentavam resistir e a decorrente necessidade de reconstruir em bases
ligeiramente diferentes as condições de restabelecimento de uma nova ordo. Um processo de
readaptação e atualização transformadora que se desenrola no interior da própria diacronia
histórica medieval abalando condições e status quo consagrados desde o século XI até os fins da
Reconquista em Portugal e que nos séculos XIV e XV teriam de se reinventar para não
desaparecer totalmente. Uma regeneração, como nos fala Quintanilla Raso 15 aprovada pelo
poder régio cujos contornos são assumidamente de feição cavaleiresca resultado de uma
incorporação dos valores nobiliárquicos pela instituição monárquica. Os reis a partir do século
XIII utilizam-se dos mesmos argumentos, imagens mentais, ritos e atitudes da cavalaria medieval
absorvendo uma das mais importantes forças de resistência ao seu processo de afirmação, a
nobreza. Teria, no entanto, o cuidado de garantir a sua preeminência neste esquema colocandose como a fonte da atribuição e reconhecimento da virtus cavaleiresca fundamentado na sua
própria escolha divina. A prerrogativa régia de ordenação de cavaleiros mesmo que o próprio rei
não tivesse sido ainda ordenado é disso um bom exemplo16.
O leque de atribuições exclusivas dos reis se ampliava exponencialmente: a guerra justa
era a do rei, a justicia mayor do rei, a quebra-de-moeda ou monetágio e a cunhagem de moeda,
dentre muitos outros exemplos possíveis. Num momento em que o corpus nobiliárquico,
heterogêneo, de feição por vezes indefinida ou mesmo híbrida enfrentava uma crise de
identidade a monarquia apresentava-se como o agente regulador das disputas e fonte de
atribuição da nobilitude legítima acelerando mesmo que inconscientemente o processo de
atualização/regeneração da nobreza.
Mas como vínhamos discutindo até aqui, esta dialética entre renovação e manutenção
de alguns elementos seria própria da concepção de tradição na Idade Média. Assim, por
15
16
QUINTANILLA RASO, M.C. “La renovación nobiliária en la Castilla bajomedieval: entre el debate y la
propuesta”, pp. 255-95, vide ainda GONZÁLEZ MÍNGUEZ, César. “Las luchas por el poder en la Corona de
Castilla: nobleza vs. Monarquía (1252-1369)”. IN: Clio & Crimen, 2009, 6, pp. 36-51.
“De esta forma se rompía la autonomía del proceso feudal de transmisión de los valores caballerescos, que
establecía que todo caballero debía ser armado por otro caballero, y se consolidaba la imagem del rey soberan,
que se situaba por encima de ellos, como fuente y origen de su valor y excelencia. Lo que no quiere decir , por
otra parte, que la caballería medieval aceptase sin rechistar tales planteamientos.”PALACIOS MARTIN, B,. “La
recepción de los valores caballerescos por la monarquia castellano-leonesa”. In: Codex Aquilarensis:
Cuadernos de Investigación del Monasterio de Santa Maria la Real, Aguilar de Campoo , Palencia, 1998, 13,
p. 100.
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exemplo, a nobreza nova que cercaria os reis peninsulares na tardo-medievalidade
manifestaria alguns elementos simbólicos e estratégias perpetuadoras de sua imagem que
nestas representações de poder os aproximariam de modelos reconhecidos e estáveis da
época da Reconquista. No entanto, tratava-se de indivíduos novos com experiência de
ascensão sócio-política promovida em boa parte a partir de sua capacidade de ter iniciativas
por vezes inusitadas, inovadoras diante de situações de perigo ou de negociação diplomática.
Libertos da carga de expectativas que oprimia os ricos-homens estariam mais à vontade para
inclusive improvisar estratégias nas quais os resultados começariam a ser mais considerados
que os meios para alcançá-los. Atitudes modernas que garantiriam o acesso à indispensável
fonte de estabelecimento régio especialmente no contexto dos séculos XIV-XV.
No reino português encontramos assim, um sentido de transformações apontadas para
um crescente afã de ordenação, codificação, sistematização e precisão de modelos, fórmulas e
procedimentos. Multiplicam-se as ordenações, regimentos de armas e não só, procedimentos
que tentam limitar uma natural diversidade própria de identidades de grupos, locais,
consuetudinárias que deveriam espelhar-se nos modelos centrais e oficiais, no entanto,
observa-se por parte da sociedade política como um todo certa resistência a estas medidas
oficializantes. As relações régio-nobiliárquicas nos séculos XIV e XV dão-nos conta desta
dialética de apoios e resistências à formatação de uma identidade portuguesa especialmente
na dinastia avisina. Identificam-se nesta construção instrumentos ideológicos como o
aproveitamento do fenômeno de regeneração nobiliárquica, atualizador e ao mesmo tempo
plasmador de modelos de nobreza variantes. Um contexto onde se manifestam importantes
movimentos e transformações ocorridas no bojo da medievalidade portuguesa seguindo
tendências experimentadas em toda a Península Ibérica, quiçá no restante da Cristandade
latina preconizando-se, portanto, uma abordagem que privilegie o estudo dos processos de
construção ideológica monárquica mais que o reconhecimento basal dos modelos daí
resultantes. Diante deste perfil atualizado da nobreza tardo-medieval válido para o reino
português interessa, assim, compreender como seria entendido o exílio, em suas várias
modalidades num contexto de predomínio de uma nobreza de serviço.
Aplicação no recorte contextual português.
Ao nível contextual seria com o assassinato de Pedro I, o Cruel, rei de Castela em 1369,
por seu meio-irmão Enrique Trastâmara o que definiria a inserção da Península Ibérica no
confronto anglo-francês da Guerra dos Cem Anos. As partidarizações acionadas após este
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episódio que promoveria a quebra dinástica alfonsina em Castela trariam ao ambiente sóciopolítico peninsular um grau de instabilidade e hostilidade duradoura entre os reinos cristãos.
O equilíbrio de forças sócio-políticas estabelecido desde a estabilização da Reconquista em
fins do século XIII teria de ser reavaliado e reconstituído em bases distintas.
Em Castela, o modelo clássico de resistência nobiliárquica frente às pretensões
exageradas dos monarcas esgotaria-se com a morte em 1354 de João Afonso de Albuquerque
representante de um jogo político que envolvera Portugal e os exílios e extermínio dos filhos
bastardos do rei Dinis por seu filho reinante Afonso IV. Este teceria para si e seus
descendentes uma política de vinculações que demonstram algumas inflexões na tradicional
política luso-castelhana e o casamento do Infante Pedro de Portugal com uma filha de Juan
Manuel manifesta bem esta inflexão 17. Os Manuéis representavam em Castela uma via direta
de legitimidade que recuava a Fernando III ultrapassando a mácula usurpatória de Sancho IV
de cujo ramo descendia Pedro, I, o Cruel. Assim, Afonso IV ao consorciar seu filho em 1339
com uma descendente legítima dos Manuéis libertava-se do tradicional jogo de associações
diretas dos Infantes castelhanos com Infantas portuguesas recuando ao ramo secundogênito
da Casa régia vizinha para construir estruturalmente as bases de um protagonismo português
frente a um frágil ramo régio castelhano. Os excedentes deste jogo, como por exemplo, o
Conde João Afonso de Albuquerque, filho do meio-irmão de Afonso IV que se exilara em
Castela, defenderia o rei castelhano Afonso XI até a sua morte em 1350 quando passaria a ser
hostilizado pelo Infante Pedro de Castela até o seu desaparecimento em 1354. Já em Portugal,
a linhagem dos Castro seria afastada do poder por Afonso IV e também por Pedro, o Cruel de
Castela, mas reabilitados após a ascensão de Pedro I de Portugal gerariam expectativas de
ascensão do ramo ilegítimo da linhagem castelhana no reino português.
Assim, podemos concluir que a partir de meados do século XIV estão postas as
condições de destaque do reino português na península frente ao reino castelhano em seguida
imerso numa guerra civil que oporia os filhos de Afonso XI e apostando num discurso que
ainda pautava suas argumentações numa base de legitimidade sanguínea dos descendentes
das Casas régias peninsulares.
A partir daí a sucessão de quebras dinásticas seja por razões naturais ou provocadas
obrigaria a uma reformatação das estratégias de aliança político-matrimonial. Se o pai de
Fernando conservara traços de pouca disposição para alterar um jogo tradicional de alianças,
17
FERNANDES,F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os
matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”. In: Cuadernos de Historia de España, 2011-2, LXXXVLXXXVI, pp.199-214.
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o jovem Infante em 1366 já manifestaria sintomas de uma orientação de alianças de outro
signo.
Quando em 1366, o rei castelhano Pedro, o Cruel resolve forçar a concretização da
aliança com Portugal e entra no reino recebe apenas a indiferença de seu tio e volta sem
qualquer esperança de hostes ou apoio frente a seus oponentes. É neste momento que começa
a surgir a voz indireta do Infante Fernando jovem herdeiro de 21 anos a quem as fontes
portuguesas reconhecem que o rei castelhano teme a ponto de pedir salvo-conduto a seu tio
para sair do reino português,
(...) e esto fazia elle temendosse do Iffamte Dom Fernamdo de Purtugal, por seer
sobrinho da molher delRei DomHemrrique18, Juana Manuel. Estava feita a
opção do Infante Fernando, ou seja, fazer valer as amplas potencialidades que
seu avô lhe deixara e honrar a sua vinculação familiar direta aos Manuéis em
detrimento de uma aliança com os descendentes de Sancho IV19.
Pedro, o Cruel percebe a opção de Fernando e busca a aproximação aos ingleses com
quem casa suas filhas, opção estratégica da qual lhe advém a vitória em Nájera em 1367, ano a
partir do qual Fernando ascende ao trono português tecendo de motu próprio os seus projetos
de aliança política e usando até o infinito o seu potencial matrimonial intacto à data de sua
ascensão.
A partir de 1369, após o assassinato de Pedro, o Cruel, os nobres castelhanos própetristas, os chamados emperegilados, liderados por Fernando Peres de Castro passam ao
reino português e oferecem o trono de Castela a Fernando, legítimo descendente da Casa régia
castelhana na linha de Fernando III frente às pretensões do bastardo Enrique Trastâmara que
tomara as mesmas pretensões e consorciar-se-ia com este fim, com outra Manuel na vã
esperança de legitimar suas pretensões. Mas, ainda teria de lutar contra a carga pejorativa do
argumento de sua bastardia, seu defeito de nascimento, de sangue, mal de que não padecia o
rei português Fernando.
Os Castro lideram, portanto, em 1369 o primeiro movimento coletivo de exilados,
deixando suas casas e status na busca pelo apoio no reino vizinho. Cerca de quarenta e cinco
nobres de várias extrações seguidos de suas famílias e dependentes que se instalam no reino
compondo boa parte da sociedade política fernandina pelo menos até 1372 quando cerca da
metade mais influente seria expulsa por conta de um tratado de paz estabelecido com Castela.
18
19
Mesmo a comitiva escolhida para acompanhar o rei Pedro, o Cruel até à fronteira com Castela teme ao
Infante Fernando que os mandara ameaçar, pelo que deixam o rei castelhano na Guarda apesar das
propostas de pagamento extra se o levassem até a Galiza. (LOPES, F.Crónica de D. Pedro I. Cap. 39, pp.
180-1).
FERNANDES, F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os
matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”, pp.199-214.
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Passariam em boa parte ao reino de Inglaterra onde constituiríam uma companhia de
mercenários a serviço do Duque de Lancaster contra o reino francês. Este seria o primeiro
grupo a ser analisado em suas expectativas, motivações e realizações durante o seu exílio em
Portugal, assim como no impacto dos nobres naturais do reino e também dos já estabelecidos
há mais tempo como João Afonso Teles e Álvaro Peres de Castro 20.
Para além da expressiva quantidade de indivíduos em movimento chama aqui a
atenção o fato de serem nobres apoiantes das estratégias políticas mais tradicionais,
representantes da nobleza vieja e seus vassalos, que se instalam no poder até os fins da
Reconquista e vêem-se ameaçados pelas novidades que traz o pretenso herdeiro Trastâmara
ao trono. A aliança com o reino da França e o apoio a Avignon, a proposta de um modelo
político atualizador, inclusive, a partir da tolerância e desconsideração em relação ao entrave
da bastardia por conta de sua própria condição e da disposição ilimitada de buscar aliados
que legitimassem a sua causa, afastaria estes nobres galegos e leoneses; inclusive porque
agora se tratava de uma causa, a causa Trastâmara mais do que um casuísmo político.
Os emperegilados em Portugal engrossariam os quadros nobiliárquicos de um reino no
qual o rei seria identificado em Crônica régia posteriormente escrita como quem:"(...) Amava
justiça, e era prestador, e graado mujto liberal a todos, e gramde agasalhador dos estramgeiros.
Fez mujtas doaçoöes de terras aos fidallgos de seu reino, tantas e mujtas mais que nenhuum Rei que
antelle fosse"21. Um conjunto de nobres e seus vassalos disponíveis e dispostos a cumprir várias
funções no reino português como procuradores e embaixadores de D. Fernando e recebendo,
inclusive, a responsabilidade militar como alcaides de muitos castelos fronteiriços apesar das
fortes críticas dos súditos vilãos manifestas especialmente nas Cortes de 1371-222 . Além disso,
fomentariam duas guerras de Portugal contra o usurpador castelhano em nome da defesa da
legitimidade do rei português ao trono de Castela; uma potencialidade que D. Fernando só
dispunha em função das escolhas que seu avô concretizara ao casar seu pai com uma
representante da linhagem dos Manuéis. Estes nobres tinham testemunhado a morte do seu rei e
senhor jurado e reconhecido em Castela, Pedro I, o Cruel e recusando-se a refazer o voto ao seu
substituto tinham preferido tornarem-se fiéis vassalos do rei português. Uma condição
perfeitamente estabelecida e válida mesmo para os padrões mais arcaicos de vinculação
20
21
22
FERNANDES,F.R. Sociedade e Poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Curitiba, Ed. UFPR, 2000, cap. IV,
pp. 267-318..
LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Prólogo, p. 3.
Nas Cortes de Lisboa de 1371 há mesmo um artigo onde o Povo pede-lhe que não conceda alcaidarias do
reino a estrangeiros (Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383). A. H. de Oliveira MARQUES e
Nuno José Pizarro Pinto DIAS (eds.), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa INIC/ JNICT,1990-3,v.I, art.744, p.51).
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vassálica ordenadora das relações de poder da elite e que relativizava conceitos como o de
naturalidade daí que estes homens não seriam vistos como traidores do reino castelhano.
Situação que mudaria quando promovessem guerra ao seu reino de origem linhagística segundo
as condições de desnaturamento previstas por Juan Manuel no século XIII passando à condição
de deserviço ao rei e ao reino também de nascimento atualizando e ampliando, neste século XIV,
o conceito de natural e, por conseguinte de desnaturamento23.
Mas, em breve esta causa Trastâmara faria valer suas pretensões num mundo em que a
nobreza de serviço seria de fundamental apoio às pretensões de bastardos à Casa régia. Os
emperegilados seriam expulsos de Portugal em 1373 e esta seria uma condição nova, a obrigação
vergonhosa determinada em cláusula do Tratado de Santarém de que o rei português deveria
expulsar os seus apoiantes em seu reino por conta da derrota frente ao vencedor castelhano. O
poder de Enrique Trastâmara estendia-se, assim, ainda que momentaneamente sobre
castelhanos acoutados no reino português, obrigados a deixar as terras do reino de D. Fernando e
de sua proteção. O rei português dera-se conta muito tardiamente que tentara usar estas forças
de vassalos recentemente aceites a favor de sua projeção, mas fora igualmente usado por
alianças que se foram tecendo entre Fernando Peres de Castro, o líder dos emperegilados e o
Duque de Lancaster casado com a filha e herdeira de Pedro I, o Cruel manifestando pretensões
semelhantes à do rei português por direito de casamento. A resistência e demora no
atendimento aos termos do tratado de Santarém agravara ainda mais a pressão castelhana sobre
a soberania do rei português que termina por desabafar:
“(...) eu nom fui bem avisado em tal feito, nem isso mesmo os de meu comselho,
em cometer tal guerra qual fui começar; por que seu aa primeira bem cuidara
como se o duque Dallamcastro chamava Rei de Castella, e sua molher Rainha,
dissera a vos outros que vos forees todos pera ele, e que el vehesse demandar o
reino, se lhe per dereito perteemçia; e em isto fezera melhor siso, que gastar meus
reinos e gente como gastei, e comprar omezio de que me nom veho proveito, mas
mui gramde perda(...)”24.
Da condição de vassalos, recebidos voluntariamente pelo rei em Portugal, os
emperegilados passavam, quatro anos depois a omézios, um estorvo político com nenhum ganho
concreto para o reino que os recebera tão prodigamente, condição que nos dá conta o
testemunho de João Afonso de Moxica que após a diáspora acabaria instalado em 1379 na Corte
Trastâmara de onde falaria saudosamente da prodigalidade fernandina.
23
24
PÉREZ COLLADOS, J.M. Una aproximación histórica al concepto jurídico de nacionalidad. 1993.
LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Cap. 86, pp. 227-8.
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"(...) Eu nom ei razom de saber todallas graadezas que elRei Dom Fernando
mostrou contra aquelles senhores e fidallgos que se pera sua terra forom, sei
porem que reçebiam delle todos mujta homrra e gramdes gasalhados, e a mujtos
que nomear poderia, deu villas e terras de jur e derdade, e gramdes dadivas de
dinheiros e bestas e outras cousas. E de mim vos digo que estamdo huuma vez na
çidade Devora, que el me mandou huum dia trimta cavallos, e trinta mullas, e
trimta arneses, e trimta mil livras em dinheiros, que eram mil e çento e tantos
marcos de prata, e quatro azemellas, as duas dellas com duas camas, e as outras
duas com roupa destrado, e mais me deu de jur e derdade huuma sua villa
que
chamam Torres vedras; e per aqui poderees veer que daria aos outros senhores e
fidallgos de moor estado e condiçom que eu"25.
De fato, daí em diante os expulsos, não mais auto-exilados como da primeira vez visto que
o rei português que os acolhera como vassalos considera-os agora, daninhos, rompendo o
vínculo de fidelidade devido ao deserviço que eles causaram ao reino usando-o em função de
interesses primários e particulares. Estariam à deriva temporária num universo sócio-político
estruturalmente vinculativo vagando por Aragão até chegarem à Inglaterra onde um dos própetristas, João Fernandes Andeiro que já servia ao Infante inglês passaria a polarizar boa parte
destas forças ainda que numa dimensão de companhia mercenária26 convertidos em vassalos
com fraca dimensão política especialmente após a morte de seu líder original, Fernando Peres de
Castro em 1377. Seriam usados mais como força militar qualificada e retornariam em 1381 ao
reino português acompanhando o Duque de Lancaster que por força do Cisma do Ocidente e do
andamento da guerra contra o eixo-franco-castelhano precisava manifestar seu apoio ao reino
português mais uma vez frente à Castela Trastâmara e seus aliados.
Manifestava-se aqui, claramente um processo de atualização do perfil da nobreza desta
segunda metade do século XIV a partir deste episódio que convertera representantes da nobreza
de sangue, pelo menos seus líderes mais expoentes em uma nobreza de serviço, num exílio
forçado, transformados em criminosos de guerra. Haviam sido empurrados a esta condição por
motivações tradicionais, o questionamento à legitimidade de um bastardo que provocara uma
quebra dinástica que seria biologicamente quase inevitável, mas sem encontrarem um apoio
durável em reino vizinho ou mesmo nos representantes da linhagem líder dos Castro no reino
português veriam-se obrigados a improvisar estratégias de sobrevivência mais modernas. Ao
adaptarem-se á realidade transformada por uma guerra global, a Guerra dos Cem Anos e a crise
do feudalismo27, encontrariam seu novo lugar a partir do critério da privança em primeiro lugar
25
26
27
LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Cap.27, p.80.
Russell refere-o em Inglaterra, em consonância com documentos ingleses como: "(...)Andeiro and his fellowcountrymen" (RUSSELL,P. “João Fernandes Andeiro at the Court of John of Lancaster, 1371-1381”. In:
Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1940, vol. XIV , pp.28-9).
BOIS, G. La grande depresión medieval, siglos XIV-XV: el precedente de una crisis sistémica. Valencia,
Biblioteca Nueva, Universitat de Valencia, 2001.
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o que dava-lhes a feição da nobleza nueva que Salvador de Moxó identifica para os castelhanos a
partir da dinastia Trastâmara. Uma constatação mais estrutural que episódica e que manifesta
uma transformação subterrânea, interna da nobreza nestes séculos cujos sintomas se tornam
mais visíveis nos momentos de crise dinástica e guerras.
Em pazes novamente com o reino vizinho D. Fernando ao casar-se com Leonor Teles em
137228 rejeitava, no entanto, a Infanta Leonor de Trastâmara, filha de seu opositor, com a qual,
pelos termos do acordo de Alcoutim de 1371 deveria se casar. Escapava, assim, de legitimar o
projeto trastamarista e de boicotar as pretensões inglesas ao trono castelhano e
simultaneamente evitava a diluição de sua projeção num eixo franco-castelhano onde o reino
português seria um elemento secundário. De certa forma seguia, em grandes linhas o projeto de
seu avô, Afonso IV, recusando-se a secundarizar o projeto do usurpador Trastâmara que, por sua
vez, pelo tratado de Tuy de 1372 relativizava a desfeita portuguesa e refazia os termos das pazes
indispensáveis para a frágil dinastia castelhana nascente29.
Muito em breve, o reino português passaria por um fenômeno semelhante devido à
quebra dinástica gerada após a morte do rei Fernando sem descendência varonil, agravada pelos
termos do Tratado de Salvaterra de Magos de 1383 e pela ambição de Juan I Trastâmara casado
com a Infanta portuguesa, filha do falecido rei.
A ascensão do Mestre de Avis, primeiro à condição de Regente do reino e finalmente a rei
de Portugal nas Cortes de Coimbra de 138530 seria francamente questionada pelo rei Juan I
Trastâmara, nos mesmos termos em que seu pai fora questionado. Enrique Trastâmara, bastardo
de Afonso XI fora questionado em suas pretensões devido à sua condição de bastardia e também
por haver uma alternativa viva e legítima na época, seu meio-irmão, Pedro I, o Cruel; fora
acusado, portanto, de usurpação.
João I de Avis, por sua vez, seria questionado internamente pela nobreza por conta de sua
ilegitimidade e por haver também uma alternativa, o Infante João de Castro, o qual, no entanto,
era tão ilegítimo quanto o Mestre e, além disso, encontrava-se na condição de desnaturado por
ter feito guerra contra Portugal e ausente do reino por cuidados do rei castelhano que o mandara
prender logo após a morte do rei Fernando. O povo, no entanto, não pedia arraial pela Infanta
Beatriz, pelo Infante Castro nem pelo Mestre de Avis, mas sim, por Portugal, pelo seu direito
28
29
30
FERNANDES,F.R. “A dimensão política do reino português na segunda metade do século XIV, os
matrimônios régios e o ocaso de uma dinastia”, pp. 199-214.
Uma mesma desfeita ocorreria frente a Aragão em 1371-2.
CAETANO, M. “As Cortes de Coimbra de 1385”. In: separata da Revista Portuguesa de História, Coimbra:
Faculdade de Letras, 1951, vol. V. e Id. História do Direito Português: fontes –Direito Público (1140-1495).
2 ª ed., Lisboa/ São Paulo, Editorial Verbo, 1985.
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soberano de escolher o monarca que reinaria sobre Portugal
31.
A questão da naturalidade
precoce nos meios municipais burgueses dava seus primeiros vagidos pleiteando uma
governação soberana, livre de interferências externas que cláusulas tratadísticas ou relações de
poder ancestrais tentavam legitimar.
Do ponto-de-vista externo os argumentos de questionamento à causa de Avis podem ser
colhidos nos relatos da Crônica régia atribuídos ao Dr. João das Regras. A estratégia é o
rebaixamento de todos os candidatos a uma condição de ilegitimidade jurídica de nascimento ou
da natureza de suas pretensões e ou ações nivelando os candidatos a partir de uma perspectiva
favorável ao Mestre de Avis. A Infanta Beatriz padeceria da ilegitimidade de nascimento visto
que sua mãe ainda estaria casada com João Lourenço da Cunha quando se consorciara com seu
pai, o rei Fernando. Além disso, seu casamento com o rei castelhano, de quem era sobrinha, seria
igualmente inválido por não dispor de dispensa matrimonial por consanguinidade. O rei
castelhano, por sua vez, seria acusado de ilegitimidade na dimensão espiritual de seu poder régio
devido ao reconhecimento dado ao Papa de Avignon o que o tornava aos olhos dos apoiantes de
Roma, cismático e herege, descumpridor das funções de defensor da Igreja e dos fiéis. Os Infantes
Castro seriam ilegítimos pelo sangue, filhos de uma união nunca plenamente reconhecida apesar
dos esforços de seu pai, Pedro I de Portugal junto ao Papa, além do fato dos progenitores serem
compadres o que impedia legalmente o reconhecimento do matrimônio. Um agravante da
ilegitimidade das pretensões dos Infantes Castro seria o fato de sendo homens criados, terem
feito guerra e destruição ao reino português desnaturando sua origem. Apresentado este
panorama, o jurista português discípulo de Baldo defendia a tese de não haverem candidatos
legítimos à sucessão do rei Fernando I e que deveriam eleger um rei do qual começa a traçar o
perfil.32
“ E digo brevemente segumdo os saibos rrecomtam, que amtre as outras cousas
que em ell ha daver, deve de seer de boom linhagem, e de grãde coraçom pera
deffemder a terra; desi que haja amor aos súbditos; e com isto bomdade e devaçom.
Hora que estas comdiçoões sejam achadas no Meestre, nosso senhor, que teemos e
voomtade pera emlleger, assaz he visto claramente como todos bem sabees” 33.
Assim, diante da inexistência de candidatos legítimos à sucessão hereditária de Fernando,
fundava-se uma nova dinastia pela eleição de um rei reconhecido pela sua sociedade política
31
32
33
FERNANDES, F.R. “A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na
construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES, F.R. (org). Identidades e fronteiras no
medievo ibérico. Curitiba, Juruá, 2013, pp. 13-47.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 1ª p., introd. Humberto Baquero MORENO e prefácio de António SÉRGIO,
Barcelos-Porto, Civilização, 1991, caps. 183-192, pp. 393-424.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 1ª p, cap. 191, p. 420.
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como detentor das melhores qualificações: filho de rei, defensor do reino na guerra, condição já
comprovada desde 1383 e de bom coração. Atributos funcionais de monarca que longe de
pretender usurpar o trono, tal como Enrique Trastâmara, receberia de seus súditos e pela eleição
a tarefa de pôr ordem no reino. Uma causa, mais que uma dinastia se inaugurava e mesmo que
seu governo não chegasse a atender à maioria das expectativas originais, inaugurava uma nova
realidade institucional no reino português que assustaria a nobreza mais tradicional.
Os nobres portugueses que lutaram contra o reino de Castela Trastâmara, usurpadora e
ilegítima não aceitariam João de Avis como seu rei e passariam paulatinamente ao reino vizinho,
a mesma Castela, em busca de exílio temporário até que as coisas voltassem à velha ordem em
seu reino inaugurando uma nova vaga de exílios voluntários. Muitos deles morreriam no campo
de Aljubarrota neste mesmo ano de 1385 confirmando uma condição permanente de lacuna,
vazio na sociedade política de Avis facilitando a implantação de um modelo monárquico mais
centralizador e eficiente do ponto-de-vista administrativo em Portugal. A sua feição institucional
originariamente modernizadora não seria sinônimo de popularização do poder, muito pelo
contrário, caminharia no sentido de uma crescente institucionalização do poder régio reduzindo
espaços de diálogo e dependência do consenso em suas decisões e tarefas legislativas e
administrativas em geral.
Um processo facilitado pelo predomínio à sua volta de uma nobreza em franco processo
de regeneração, receptiva às medidas ordenadoras do rei. As causas de Avis e a Trastâmara,
especialmente depois de instalada e reconhecida, refletiam movimentos de atualização,
transformação, mas não no sentido de uma popularização do poder. Encaminhavam-se mais
num sentido de eficiência administrativa, limites à corrupção, reflexão sobre a validade das
guerras, privilégios e prerrogativas exageradas, enfim, uma modernização da monarquia,
manifesta e anteriormente demandada em Cortes pelo Povo. Argumentos e discursos
legitimadores consonantes com as expectativas da burguesia que transformam as crises
dinásticas dos séculos XIV e XV em causas de apelo, inclusive, popular, assim como dos estratos
excedentes da elite.
Os grupos nobiliárquicos resistentes tanto às novas dinastias como às novas estratégias
governativas, cada vez mais centralizadoras e pautadas na eficiência do apoio mais que na
fidelidade a um voto vassálico acabariam por ser incorporados pelas novas dinastias.
Inicialmente estas frágeis linhagens monárquicas mostram-se absolutamente permeáveis à
adesão de qualquer indivíduo ou grupo que reforce a sua frágil legitimidade e apenas quando
sentirem-se minimamente seguras no poder manifestarão um modelo governativo recuperador
de poder e crescentemente concentrador das decisões e rumos políticos de suas monarquias. A
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nobreza de serviço seria menos reticente a este modelo governativo, adequando-se melhor aos
critérios de reconhecimento e ascensão que passavam cada vez mais pelo mérito, iniciativa
individual e serviço ao rei, suserano dos suseranos que acumulava em sua instância central as
atribuições e as contrapartidas sem prever concorrência à sua centralização de poderes e à
prerrogativa de criar novos vassalos. E será através do fenômeno dos exílios que buscamos
avaliar este diálogo entre um modelo régio modernizador cada vez menos disposto a partilhar
seu poder com nobres de sangue, seus potenciais concorrentes e as possíveis resistências
provocadas por este movimento.
Além disso, no esteio de uma redefinição da natureza das relações de poder destes
séculos da tardo-medievalidade entre a nobreza de serviço ou privilégio e seus reis, observamos
tratar-se de forças em movimento e transformação atualizadora que ainda que conservem
elementos de uma tradição ancestral, seu caráter personalista, por exemplo, manifestam
sintomas de novidade em seus critérios de reconhecimento e validade; além das estratégias
mantenedoras de sua condição legítima disfarçados num invólucro de tradição legitimadora.
Com esta perspectiva de análise pretende-se ainda promover uma revisão historiográfica sobre
este tema das quebras dinásticas e seu impacto na recomposição da sociedade política
explicados a partir de critérios válidos apenas até o século XIII sem considerar estes movimentos
de transformação estrutural que atravessam os séculos finais da medievalidade e que provocam
atualizações dos modelos e lógicas de relacionamento político originais e plenamente válidos à
época da Reconquista, mas não mais depois.
Esta nobreza de privilégio tendo alcançado a privança régia urgia em seguida tecer
estratégias que perpetuassem a sua condição, seja através de matrimônios seja através de
instrumentos ideológicos mais elaborados. Assim, observamos que as Crônicas constituíam-se
como textos cristalizadores por excelência de sua imagem idealizada de nobre garantindo a
individualidade fundadora de uma legitimidade que deveria ser estendida hierarquicamente
ao coletivo de seus descendentes na linhagem. Com isso buscava-se assegurar a fração de
continuidade dos valores mais conservadores e legitimadores ainda que em textos fundadores
de uma tradição nova à volta de uma linhagem. Estratégias que se estenderiam até mesmo à
inserção apócrifa de suas existências e façanhas nos Livros de Linhagens como o do Conde D.
Pedro, nos fins do século XIV e inícios do XV. Assim, esta nobreza nova diante de um
panorama de fragilidade de sua identidade original, inseria-se à força dentro dos próprios
instrumentos de resistência da nobreza de sangue como a literatura genealógica. Percebe-se,
também aqui uma convivência entre o reconhecimento dos protagonismos individuais e os
valores historicamente reconhecidos das solidariedades coletivas linhagísticas manifestando
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a mesma dinâmica própria do conceito de tradição acima referido. Tal movimento promove,
no entanto, uma crescente indefinição entre os estratos da nobreza e também entre a nobreza
de serviço e a burguesia municipal, especialmente os cavaleiros-vilãos que serviam de força
militar e apoio sócio-político à ascensão desta nobreza nova.34
Nos inícios da década de ’90 do século XIV, João I de Avis, representante de uma
monarquia nova em todos os sentidos, mas de feição centralizadora que tinha feito grandes
concessões de benefícios à nobreza criada e estabelecida à sua volta e por seu beneplácito
precisaria recuperar parte de suas atribuições e conter as resistências à sua preeminência.
O indubitável protagonismo e eficiência bélica do Condestável Nuno Alvares Pereira
geraria disputas com outros nobres que pretendiam igualmente ascender fosse à privança régia,
fosse ao patrimônio concedido pelo rei. No entanto, seriam ofuscados em parte pela ambição de
exclusividade e epigonismo manifesta por Nuno Alvares, modelo de nobre de serviço, apesar
disto, os murmúrios contra o Condestável continuariam a difundir-se35. Era chegada a hora de
o rei português colocar limites às extensões indevidas ou exageradas de poder da sua nobreza
e começaria pela recuperação de patrimônio para a monarquia, política que causaria outro
momento importante de fração de seus apoios no reino36. O estopim da iniciativa régia
assentaria em dois episódios, o primeiro seriam as pazes estabelecidas com Juan I Trastâmara
em fins de 1389, as quais em Castela pressionariam o rei a ponto de ele pensar em renunciar
ao seu trono, situação agravada pelo vazio de poder gerado por sua morte em outubro de
139037. Um momento de fraqueza do oponente tradicional, cujo reino esgotaria-se em
questões internas ligadas às disputas e dissensões entre os tutores do herdeiro em sua
menoridade. Mesmo após sua ascensão, a política castelhana de Enrique III em relação a
Portugal passaria naturalmente a um nível de prerrogativa periférica e D. João I de Avis com
tréguas acertadas de quinze anos após 1393, teria condições políticas de voltar-se para a
organização interna do reino e de sua sociedade política.
34
35
36
37
FERNANDES,F.R. “A fronteira luso-castelhana medieval, os homens que nela vivem e o seu papel na
construção de uma identidade portuguesa”. In: FERNANDES (org), Identidades e fronteiras no medievo
ibérico. P. 13-47.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ª p, ed. M. Lopes de ALMEIDA e A. de Magalhães BASTO, Barcelos-Porto,
Civilização, 1990, cap. 131, pp. 289-92.
FERNANDES, F.R. “Os exílios da linhagem dos Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações
aos Castro (segunda metade do século XIV)”. In: Cuadernos de Historia de España, 2008, vol. 82, pp.3154; FRANCO SILVA y GARCIA LUJAN, Los Pacheco. “La imagen Mítica de um Linaje Português em Tierras
de Castilla”. In: Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Porto, Comissão Organizadora
do Congresso / INIC, 1989, vol.III, pp. 969-74 e BAQUERO MORENO, Contestação e oposição da nobreza
portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média, Revista da Faculdade de Letras, Porto, FLUP,
1987, v. IV.
Crónica del Rey Don Juan, primero de Castilla e de Leon. Madrid, Biblioteca de Autores Españoles,
Ediciones Atlas, 1953, vol. 2, caps. I-II, pp. 125-9.
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O segundo episódio, decorrente do primeiro foi a distribuição de bens promovida pelo
Condestável entre seus vassalos devido à pacificação anunciada do reino. Daria-lhes rendas de
lugares que ele tinha recebido em préstamo do rei e que repassava na mesma condição a seus
fiéis, os quais em troca manteriam escudeiros para serviço do rei e do nobre Nuno Álvares
Pereira38. Este, senhor de sua própria sociedade política afrontaria o rei com esta iniciativa e
aguçaria a ambição dos outros nobres que passariam a defender uma emergencial recolha
patrimonial régia dos bens doados ao Condestável para fazer frente às necessidades inerentes
aos três descendentes de D. João I já nascidos. O rei resolve-se por um chamamento régio que
na verdade, atingiria o Condestável 39, mas também outros beneficiados, obrigados a devolver
ou vender as terras recebidas em préstamo ao rei dentre eles os Cunha e Pacheco e
contribuiria juntamente com outros elementos conjunturais para seus respectivos exílios em
Castela a partir de 139740. Já Nuno Álvares, após este episódio começa imediatamente a
organizar seu exílio, disposto a partir acompanhado voluntariamente de muitos dos seus,
desgostoso com a postura de força do rei. Uma ameaça para D. João I preso à necessidade de
manter o equilíbrio na distribuição dos benefícios entre a sua nobreza, mas ao mesmo tempo
38
39
40
LOPES,F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 151, p. 331. Considerando-se que em carta emitida em Lisboa a 30
de março de 1389 D. João I confirmava a seu Condestável todas as doações feitas enquanto era apenas
Regedor do reino (AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. II, f.15) e a 2 de julho de 1390 desde Santarém o rei
confirmaria ainda as doações feitas ao Condestável pelo rei D. Fernando com suas jurisdições e direitos
correspondentes (Idem, ibidem, l. IV, f. 49v) podemos considerar que a dita devolução de benefícios ao
rei seria em data posterior à destas cartas. Ainda em carta de 15 de novembro de 1389 emitida em Braga
o rei confirma doação do Condestável a um seu escudeiro (Idem, ibidem, l. II, f. 38 e v).
Na Chancelaria as confirmações régias de doações feitas pelo Condestável a terceiros permanecem e a
partir de 1391 encontramos cartas de escambo como a de 30 de outubro de 1391 emitida nos Paços do
Conde em Barcelos, na qual o Condestável troca com seu primo João Rodrigues Pereira, a terra de Basto
que recebera do rei pela terra de Baltar que seu primo herdara de seu pai ( AN/ TT. Chancelaria de D.
João I. l. IV, f. 88-90). Ainda em carta de 11 de maio de 1392 o rei confirma o escambo descrito na carta
anterior de 1391 e inclui o reconhecimento régio a escambo do Condestável com Lopo Dias de Azevedo.
Este dá-lhe Vila Nova de Anços, Pereira, Nouras e o reguengo de Alviela em troca da terra de Pena e
Bouças do Condestável (Idem, ibidem, l. II, f. 67v) . Já em outra carta de 11 de maio de 1392, o rei em
Coimbra escamba com o Condestável a juridição cível e crime da terra de Baltar em troca do mesmo
direito sobre a Vila Nova de Anços (Idem, ibidem, l. II, f. 67 e v). Aventamos a hipótese de que nesta
forma tão freqüente de escambo do Conde com seus vassalos e a intervenção talvez forçada do rei nesta
troca se fariam os ensaios à referida recuperação de patrimônio régio que deve ter ocorrido entre 1392
e 1398 quando novamente encontramos cartas de doação régia ao Condestável (Idem, ibidem, l. II, f.
148). A 1 de setembro de 1398 o Condestável receberia a maioria dos bens fruto de doação régia que Gil
Vasques da Cunha tinha no reino devido a seu exílio em Castela (Idem, ibidem, l. II, f. 180v).
LOPES, F. Crônica de D. João I. 2ªp, cap. 152, p. 332, MITRE FERNANDEZ, E.” La emigracion de nobles
portugueses a Castilla a fines deI siglo XIV”. In: Hispânia: Revista Espanhola de Historia, Madrid, CSIC Instituto Jerónimo Zurita, 1966,vol.104, pp.513-25 e BAQUERO MORENO, H. “ Exilados portugueses em
Castela durante a crise dos finais do século XIV (1384-88)”. In: II Jornadas Luso-Espanholas de História
Medieval, Porto, Centro de História da Universidade do Porto/ INIC, 1987-1990, vol. 2, 1989, pp. 69-101.
Martim Vasques da Cunha a 2 de maio de 1394 vê-se obrigado a vender as terras de Sul, Gulfar, Seia,
Penalva, Çatam, Rio de Moinhos, Aguiar da Beira e Lousada que tinha recebido a 21 de maio de 1384 devido
ao deserviço de Henrique Manuel de Vilhena, seu possessor, para a constituição do patrimônio dos Infantes (
AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. I, f.19v e l. II, f.94v-95). Para períodos anteriores vide ainda, PIZARRO,
J.A.de S.M. “De e para Portugal. A circulação de nobres na Hispânia medieval (séculos XII a XV)”. In:
Anuario de Estudios Medievales, Madrid, CSIC, 2010, 40/2, pp. 889-924.
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consciente de sua dependência em relação a Nuno Álvares, um epígono, mas totalmente fiel ao
seu rei. São vários os emissários enviados ao Conde até que o convencem a permanecer
apesar da manutenção das restrições de criação de vassalos por parte da nobreza,
prerrogativa estritamente régia. Os bens distribuídos seriam retomados por D. João I, assim
como os vassalos feitos pelos nobres41. Todos os esforços de centralização de recursos e
poder simbólico e político seriam empregues a partir daqui ao serviço da monarquia de Avis e
uma estratégia eficiente seria limitar as fontes de recursos disponíveis por parte de sua
nobreza.
Claro que tal estratégia régia de reduzir as fontes de recursos nobiliárquicos coibiria
intencionalmente iniciativas pessoais da sua nobreza, as de potencial confrontação em
primeiro lugar, mas também as de apoio. No entanto, a guerra justa e legítima era cada vez
mais a do rei e não seriam mais aceitas assuadas entre nobres, especialmente com recursos da
monarquia. O fato é que as forças do Condestável não encontrariam oposição em Castela por
onde vaguearia por quinze dias pilhando e queimando as terras aos olhos do Mestre de
Santiago e nem mesmo o Infante Dinis ousaria confrontá-lo em batalha42. Nuno Álvares
acharia no botim a fonte de recursos que a monarquia lhe negava.
Era um homem de ação, mais que argumentador ou negociador e aparece como
protótipo do nobre deste período de transição que progredia por suas ações e vitórias e
deixava aos letrados e Doutores em Leis o encargo de negociar termos e legislação. As
Crônicas o apresentam como bom ouvinte de seu Conselho, no entanto, quando se vê na
obrigação de ouvir as argumentações de seus homens insatisfeitos com as ordens de expulsão
das mulheres das suas companhias, destaca-se a disposição do Condestável em trocar tal
situação de explicação das razões por uma boa batalha43. A mesma inquietude manifesta
diante dos debates subjacentes às Cortes de Coimbra de 1385 onde era o cabeça do partido do
Mestre44 ou mesmo no Conselho sobre a batalha de Aljubarrota seriam ainda sua marca
registrada nas negociações das pazes de 1398. Nestas, que decidiriam sobre a devolução a
Castela de Tuy e Badajoz interviriam com a ajuda de quadros qualificados em Direito, no
entanto, não dispensaria os seus homens armados durante os dez meses que duraram as
41
42
43
44
LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ª p, cap. 153, pp. 335-6.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, caps. 166-172, pp.363-379.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 69, pp. 176-7.
Além de deixar o recinto esbravejando ao perceber que os votos tendem ao outro partido, intimida
Martim Vasques da Cunha ao invadir com suas forças o Paço onde este iria falar ao então Mestre de Avis
(SANTOS, M. dos. Monarquia Lusitana. Ed. A. da Silva REGO, A. Dias FARINHA e Eduardo dos SANTOS, 3 ª
ed., Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988, parte VIII, cap. XXIX, pp. 648-54).
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inúteis negociações.45 Em 1401 preparava-se novamente o confronto onde Nuno Álvares seria
requisitado, mas onde teria um papel menos efetivo, respondendo pelo controle da devolução
dos reféns castelhanos e dos equivalentes castelos portugueses 46.
Iniciava-se o período de pazes sucessivas até chegar-se às pazes de 1411, as quais
seriam confirmadas em 1431, ano da morte do Condestável, momento em que Fernão Lopes
interrompe o relato da Crônica régia e insere uma Crônica abreviada deste personagem a
partir de uma perspectiva dicotômica: o nobre em tempos de guerra e em tempos de paz 47.
Aqui, sumariavam-se todos os elementos até então dispersos no relato da História do reino e
traçava-se um perfil idealizado do nobre e vassalo ideal, cuja trajetória alicerçadora dos ideais
de Avis estaria definitivamente inserida na construção do passado português. Restava ao
Cronista mostrar a transcendência desta vida nos destinos futuros do reino e no penúltimo
capítulo da segunda parte da Crônica de D. João I, fala da união do filho legitimado do rei,
Infante Afonso com a sua filha, Beatriz. A junção do sangue e do patrimônio destes dois
paradigmas da História portuguesa selaria o futuro da monarquia de Avis 48. A singularidade
do Condestável posta a serviço do reino seria definitivamente recompensada e definiria um
perfil de nobreza regenerada em cujas ações os fins seriam mais determinantes que os meios.
Reflexões finais
Ao encerrarmos estas reflexões pretendemos ter promovido um desafio de investigação
que privilegie um enfoque mais atual e revisionista do ponto-de-vista historiográfico sobre o
tema dos exílios luso-castelhanos tardo-medievais ao incluir na problemática de análise um
debate acerca dos discursos identitários e do conceito de fronteira na medievalidade ibérica.
Uma proposta que procura ampliar a perspectiva de análise da casuística de cada mobilidade
45
46
47
48
Além do Condestável também seria escolhido juiz da parte portuguesa D. João, Bispo de Coimbra,
assessorado pelo Bacharel Rui Lourenço e pelo escolar Álvaro Peres (LOPES,F. Crónica de D. João I. 2ªp,
caps. 176-82, pp. 390-402). Nuno Álvares receberia a 1 de setembro de 1398 em carta de morgado as
terras de Paiva, Tendães e Lousada com as jurisdições cível e crime (AN/TT. Chancelaria de D. João I. l. II,
f.148) retomando as concessões régias ao Condestável após o referido chamamento régio de patrimônio.
LOPES, F. Crônica de D. João I. 2ªp, cap. 183, pp.403-5.
LOPES, F. Crónica de D. João I,. 2ªp, caps. 198-9, pp. 447-54.
LOPES, F. Crónica de D. João I. 2ªp, cap. 202, p. 460. O Condestável daria a sua filha em 1 de novembro de
1399 em arras por seu casamento com o Conde de Barcelos na forma de morgado a vila e castelo de
Chaves, o julgado de Montenegro, castelo e fortaleza de Montalegre, a terra de Barroso, Baltar, Paços no
Entre-Douro-e-Minho e Trás-ós-Montes, quintas da Carvalhosa, Covas, Canedo, Sarraços, Gondinhães,
São Felix da Temporã, casais de Bostelo, quintas da Moreira e Pousada (AN/TT. Chancelaria de D. João I.
l. II, f. 175v) completando o patrimônio da Casa de Barcelos: doação confirmada a 8 de novembro por D.
João I. Entendemos, portanto, que estes bens continuaram em mãos do Condestável mesmo após o
chamamento régio. Por outro lado, esta união constituiria uma forma mais eficaz e duradoura de
reincorporação de patrimônio régio cedido ao Condestável pela monarquia de Avis.
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nobiliárquica analisada para um fenômeno estrutural que envolve as estruturas régionobiliárquicas em atualização, na continuidade dos estudos de Salvador de Moxó sobre o
surgimento de uma nobleza nueva ibérica a partir do século XIV, mas ampliando o eixo de análise
e compreensão de seu objeto. A Baixa Idade Média portuguesa compreendida como um período
de transformação dos modelos e estruturas válidos até o fim da Reconquista apresenta-se como
um campo de investigação profícuo em especial no que se refere ao tema dos exílios e suas
implicações relativamente à fronteira.
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Men of Sea. The making of an Identity
Los hombres del mar. La creación de una identidad
David Álvarez Jimenez Correio*
Universidad Internacional de La Rioja
Sergio Remedios Sánchez Correio**
Universidad Complutense de Madrid
Abstract
Resumen
This paper pretends to deal with the identity of
the people who sailed the sea –specifically
professional sailors– in Antiquity. Although we
don’t deny singularities into the different Men of
Sea who lived in this period, there are some
aspects that are common to every sailor
concerning their conditions of life and work
regardless of their very different origins. In fact,
their life-style clashed directly with the earth
based society. These features shaped an identity
that is more evident to recognize when we use
ancient sources, which writers always came from
the highest hierarchies of their societies or acted
as speakers of these, that usually scorned the
sailors because of the terrible fear that sea
aroused on them, the nature of their economic
activities, their different customs and the liberty
that enjoyed Men of Sea because they could
pollute the established order. In fact, we can
speak of a mariner identity in opposition to the
earthly-based society.
Este artículo tiene como objeto la identificación
de las gentes que navegaban el mar en la
Antigüedad, en particular de los marinos
profesionales. Aunque no se niegan las
singularidades de los diferentes hombres del mar
que vivieron durante este período se pueden
observa diversos aspectos comunes a cualquier
marino con respecto a sus condiciones laborales y
vitales y a pesar de sus diferentes orígenes. De
hecho, su estilo de vida chocaba directamente con
la sociedad basada en la tierra. Estos rasgos
conformaron una identidad que es más fácil
reconocer en las fuentes antiguas, siempre
escritas por portavoces de las élites antiguas,
debido a que los escritores así lo estimaban al
despreciar a los marinos debido al terrible miedo
que el mar implicaba, la libertad que disfrutaban,
la naturaleza de sus actividades económicas, sus
costumbres diversas y en especial la libertad que
encarnaban y que podía contaminar al orden
establecido. De hecho, se insiste en una identidad
del marino opuesta a la de la sociedad terrestre.
Keywords: navigation; sailors; identity.
Palabras clave: navegación; marinos; identidad.
● Enviado em: 28/04/2014
● Aprovado em: 20/11/2014
*
**
Doctor en Historia Antigua por la Universidad Complutense, con una tesis titulada "La Piratería en la
Antigüedad Tardía" bajo la dirección de la catedrática Rosa Sanz Serrano. Tiene en su CV diversas
publicaciones, incluída la edición de "El Espejismo del Bárbaro. Ciudadanos y extranjeros al final de la
Antigüedad" (Anejo 1 de la revista Potestas, Universidad Jaume I de Castellón, 2013). En la actualidad es
profesor asistente de la Universidad Internacional de La Rioja (UNIR).
Sergio Remedios Sánchez es doctorando de la Universidad Complutense de Madrid. Su tesis versa sobre
economía y sociedad en la colonización fenicia temprana de la Península Iberica y está siendo dirigido
por el catedrático Carlos González Wagner. Tiene en su haber un buen número de publicaciones.
Asimismo, es el director de la revista electrónica Herakleion especializada en la historia y arqueología
del Mediterráneo antiguo (www.herakleion.es).
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The origins of the navigation are as remote as the rising of mankind. Since the great
Paleolithical migrations, the dominion of sea or at least a basic knowledge of seafaring was a
necessity for many peoples. The early Mediterranean societies were not excluded of this
reality. The early Neolithic Cyprus’ colonization (VIIth mill. BC) can be considered a first
example, but this use was extended to every Mediterranean coastal population from this
moment onwards with a very precise turning point. We can consider the Bronze Age as the
time where both archaeological records and texts confirm the beginning of the maritime
specialization, that is, the appearance of sailors as distinctive professionals. The fluvial
shipping in Mesopotamia and Egypt1 and the early Cananean and Aegean naval activities –
mainly Minoan and Mycenaean–, are some of the most important first examples of this reality.
We can ascertain the existence at the IIIrd mill. BC, and especially for the IInd mill. BC, of
established commercial waterways as it’s evidenced through the Ulu Burun2 and Cape
Gelidonya3 wrecks4. The disappearance or extreme weakening of most of the Oriental empires
as a result of the terrible irruption of the enigmatic Sea Peoples around 1200 BC marked a
new direction. Afterwards Phoenicians rose as the most important seafaring power. As the
heirs of previous traditions, the Phoenicians sailed through the whole Mediterranean and for
the first time they connected in a steady and lasting way both Mediterranean edges into a
single seafaring network on a regular basis5. This intense naval activity allowed them to deal
with some peoples as Tartessians, Etrurians, Egyptians, Greeks and many others through
commerce, knowledge and colonisation. One of the more important consequences of their
labour of colonisation was the creation of the then colony of Carthage that continued their
labour in Occident after Phoenician city-states fell in the VIth century BC. While this happened
1
2
3
4
5
On Egypt, see JONES, D. Ancient Egyptian boats. Texas University Press: Austin, 1995; and on
Mesopotamian navigation POTTS, D. T. 1997: Mesopotamian Civilization: The material foundations.
Cornell University Press: Ithaca, 1997, pp. 122-137.
BASS, G. F. “A Bronze Age Shipwreck at Ulu Burun (KAS): 1984 Campaign”. In American Journal of
Archaeology, 90, 1986, pp. 269-296; BASS, G. F. “The Bronze Age Shipwreck at Ulu Burun, Turkey: 1985
Campaign”. In American Journal of Archaeology, 92, 1988, pp. 1-37; BASS, G. F. “The Bronze Age
Shipwreck at Ulu Burun: 1986 Campaign”. In American Journal of Archaeology, 93, 1989, pp. 1-29.
PULAK, C. 1997: “The Uluburun Shipwreck”. In: SWINY, S., HOHLFELDER, R. L. & SWINY, H. W. (Ed.). Res
Maritimae. Cyprus and the Eastern Mediterranean from Prehistory to Late Antiquity. Proceedings of the
Second International Symposium Cities on the Sea (Nicosia, October 18-22, 1994. Atlanta: American
Schools of Oriental Research, pp. 71-81.
BASS, G. F. et al: Cape Gelidonya: A Bronze Age Shipwreck. Philadelphia: American Philosophical Society,
1967.
On Bronze Age navigation, see KNAPP, A. B. “Thalassocracies in Bronze Age Eastern Mediterranean
trade: making and breaking a myth”. In: World Archaeology, Vol. 24, N. 3, 1993, pp. 332-347.
AUBET, M. E.: The Phoenicians and the West: Politics, Colonies and Trade. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001. On the Greek and Roman voyages to the Iberian Peninsula, see the introductory
paper of DE HOZ, J. “Viajeros griegos y romanos en la Península Ibérica. Del comercio marítimo y la
curiosidad intelectual”. In: ARCAZ POZO, J. L. & MONTERO MONTERO, M. (Ed.) Mare nostrum. Viajeros
griegos y latinos por el Mediterráneo. Madrid: SEEC, 2012.
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in the West, in the Oriental basin the leading role on the dominium of sea was taken on by
democratic Athens during the so-called Athenian Thalassocracy which lasted until the
Peloponnesian war. Later, Punic power was halted because they were confronted by the most
improbable seafaring people, the Romans. The traditional Roman refusal for navigation didn’t
prevent them for unifying for the first time the whole Mediterranean Sea, which became the
Mare Nostrum, under a single command. During seven centuries they didn't just control these
waters but they developed internal maritime waterways that articulated their territories from
a military and a tributary point of view and built up a massive exchange network which can be
considered both private and public; in fact, we can say that their most impressive naval
development was the imperial annona6. Unfortunately, sea activities don’t let enough remains
as terrestrial movements do, as vehemently Donald Moore said 7, but we can rely on increasing
underwater archaeology evidence as long as epigraphy and iconography. Ancient sources are
sometimes pretty discouraging because of the usual distrust that Sea, navigation and sailors
meant to the normative society’s speakers –especially during Roman supremacy– but they
still offer fundamental data to interpret the maritime world.
Sailors were never fully appreciated by the earth-based population because of several
reasons as we can see in the Graeco-Roman sources: the particular conditions of their work,
the irrational fear provoked by the sea into their fellows and the perennial bad consideration
that commerce aroused on Antiquity, in spite of the impressive revenues obtained by sea
trade8. About this last preconception, Homer provides an early proof when Odysseus is
scorned by the Pheaecian Euryalus with these words:
Nay, verily, stranger, for I do not liken thee to a man that is skilled in contests,
such as abound among men, but to one who, faring to and fro with his benched
ship, is a captain of sailors who are merchantmen, one who is mindful of his
freight and has charge of a home-borne cargo, and the gains of his greed. Thou
dost not look like an athlete (Od. VIII, 159-164).
6
7
8
Some worthy introductions to naval history in Antiquity are STARR, C. G. The influence of Sea Power on
Ancient History. New York: Oxford University Press; DE SOUZA, P. Seafaring and Civilization. Maritime
perspectives on world history. London: Profile Press, 2002 and ABULAFIA, D. The Great Sea: A human
history of the Mediterranean. Oxford: Oxford University Press, 2011.
MOORE, D. “Maritime aspects of Roman Wales”. In: Studien zu den Militärgrenzen Roms II. Vortrage des
10. Internationalen Limeskrongresses in der Germania Inferior. Köln: Rheinland Verlag, p. 31.
In Roman times this idea was very alive and even senators were forbidden to use maritime commerce as
a way of increasing their wealth. Of course, a lot of senators broke the law. D'ARMS, J. H. Commerce and
social standing in ancient Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. About denigration of
commerce, see some other examples as Hesiod Op. 236-237 and 682-694, Cicero Verr. II, 5, 167 or
Jerome Ep 14.9. On this subject, ROUGE, J. 1966 Recherches sur l’organisation du commerce maritime en
Méditerranée sous l’Empire Romain. Paris: S.E.V.P.E.N., pp. 19-21.
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In a later date, the closeness of cities to sea was considered by some of the elite main
thinkers as a moral disadvantage, so Aristotle said that “the visits of persons brought up
under others institutions are detrimental to law and order, and so is a swollen population,
which grows out of sending out abroad and receiving in a number of traders, but is
unfavourable to good government” (Pol. VII, 5, 3), and Cicero said about Rome foundation that
He [Romulus] made an incredibly wise choice. For he did not build it down by
he sea, thought it would have been very easy for him… because maritime cities
are exposed to dangers which are both manifold and impossible to foresee…
maritime cities also suffer a certain corruption and degeneration of morals;
for they receive a mixture of strange languages and customs, and import
foreign ways as well as foreign merchandise, so that none of their ancestral
institutions can possibly remain unchanged. Even their inhabitants do not
cling to their dwelling places, but are constantly being tempted. Far from
home by soaring hopes and dreams (De rep. II, 3-4)9.
According to these texts, the sailors were considered as rootless because of their
constant movement and contact with different kinds of societies, so they could behave as
bearers of destabilizing news regarding the established hierarchy and their political system 10.
There are more examples in later times. So, the sophist Claudius Aelianus in one of his letters
addressed to a farmer he affirmed this dichotomy between land and see when he referred to a
fellow farmer who had decided to leave land aside in search of benefit by the sea:
Keeping an eye out for juicy profits and thinking of striking it rich all at once,
he said good-bye to those little goats and his former pastoral life… the profit of
a voyage out and back inflames and fires up his imagination, and he does not
think of storms, opposing winds, the ever-changing sea, or unseasonable
weather. As for us—even if we work hard for little gain, nevertheless the land
is much steadier than the sea, and since it is more trustworthy, it offers more
certain prospects (ep. 18).
In this way, in the Later Roman Empire, Synesius of Cirene paraphrased Homer when
affirmed that:
I do not live near the sea, and I rarely come to the harbour. I have moved up
country to the southern extremity of the Cyrenaica, and my neighbours are
such men as Odysseus was in quest of, when he steered from Ithaca, to
9
10
On this perception prolonged during a long, long time see HORDEN, P & PURCELL, N. The Corrupting Sea.
A study of Mediterranean History. Oxford: Oxford University Press, 2001.
RAUH, N. K. Merchants, sailors and pirates in the Roman world. Brimscombe Port Stroud: Tempus, 2003.
RAUH, N. K., DILLON, M. J. & MCCLAIN, T. D. “Ochlos Náuticos: leisure culture and underclass discontent
in the Roman maritime world”. In: HOHLFELDER, R. L. (Ed.) The Maritime World of Ancient Rome.
Proceedings of ‘The Maritime World of Ancient Rome’. Conference held at the American Academy in Rome
27-29 march 2003. Michigan: Ann Harbor), 2008, pp. 197-242.
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appease the wrath of Poseidon, in obedience of the oracle: Men, who know not
of the sea, nor eat food mixed with salt (Ep. 148) 11.
Earth-bounded society usually didn’t appreciate at all the sailor environment and this
reality was reflected in the perception of the sea workers. The sea was terribly feared because
the certain risk of death. So, e.g., the Christian author Tertullian defined it as sic et mari fides
infamis (De Pall. 2), and even Roman laws encouraged the writing of a testament before
travelling by sea12. The references about this topic are innumerable, but let's finish with an
eloquent sentence of Lucretius that refers to the lack of empathy that sea work aroused into
their fellows: “It is sweet, when, down the mighty main, the winds roll up its waste of waters,
from the land to watch another's labouring anguish far, not that we joyously delight that man
thus be smitten, but because it is sweet to mark what evils we ourselves be spared” (De rer.
Nat. II, 1-5)13. To die at sea because a shipwreck was a straight disgrace, as a result of the
certain possibility of not finding the corpse with the metaphysical implications this fact arose
because it was thought that the soul perished when someone got drowned 14.
This dichotomy was emphasized by the nature of sailors’ work, far different and more
specific than earth-based occupations. The knowledge required to navigate was hardworked15. Their labour was conditioned by the basic tool they used: the vessel, which
undoubtedly represented one of the highest technological achievements of Antiquity16 and in
consequence required a very specific knowledge to be able to handle it rightly as it is
observed in the particular vocabulary utilized by them 17 that was clearly out of reach and
comprehension by the landlubber population. Analogous to this particular knowledge, the
learning of all the orographic and nautical fundamentals was basic to make possible not only
the success in their works but also their survival. The currents, the dangerous and calm
11
12
13
14
15
16
17
Upon Homer Od. XI, 119-125.
Dig. XXVIII, 1, 24.
Impressive testimonies of troubled maritime voyages in Antiquity are found, for example, in Synesius of
Cirene Ep. 5 and Gregory of Nazianzus Orat. 18.31.
On this see, Homer (Od. IV, 497-506) and Synesius of Cirene (Ep. 108-118). LINDENLAUF, A. “The Sea as
a place of no return in Ancient Greece”. In: World Archaeology, 35, 3, 2003, pp. 416-433. FERNÁNDEZ
NIETO, F. J. “Morir en el agua, morir en el mar. Creencias, conductas y formas morales en la Grecia
antigua”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del
mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 91-106.
Definitively the best recent work on ancient navigation is MEDAS, S. De Rebus Nautica. L’Arte della
navigazione nel mondo antico. Rome: L’Erma di Bretschneider, 2004. On the relationship between sea
and the Romans, see the recent book of MALISSARD, A. Les romains et la mer. Paris: Les Belles Lettres,
2012.
Above this, see PRYOR, J. H. Geography, technology and war. Studies in the maritime history of the
Mediterranean 649-1571. Cambridge: Cambridge University Press, 1988 and more specifically, MCGRAIL,
S. Boats of the World. From the Stone Age to Medieval Times. Oxford: Oxford University Press, 2001.
MEDAS, De Rebus… p. 32.
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waterways, in brief, the appropriate routes18 required a very specific familiarity that was
transmitted from generations to generations of sea workers. The precise abilities developed
for doing this work possible were associated with the peril implicit that certainly separated
earthly population from sailors and helped to shape an identity. In fact, navigation’s season
was rigidly established since an early date because of this uncertainty. Hesiodus19 was the
first author to talk about chronological limits fit to sail, from the end of spring till the
beginning of autumn, and even if these limits were extended later, Roman law did not allow
sailing during winter time20. Of course, there were exceptions because in some areas
favourable maritime conditions permitted to navigate, as Ahiqar Palimpsest (475 BC)
demonstrated concerning Egypt under the domination of the Persian Empire. This tributary
document records all the vessel entries in an unknown Egyptian port where navigation was
just stopped during the months of January and February 21. On the other hand fishermen could
work during this period and it was also encouraged travelling by sea during these months in
case of food shortages22 or military needs23.
Because of these uncertainties, religiosity and superstition were commonly linked with
sailors and navigation in Antiquity and, as in later times happened, these features constitute a
part of their identity24. We can observe that some superstitious rituals began even before of
navigation itself. Shipbuilders tried to attract good luck on the vessels through some practices
as putting some coins inside the hole where the mainmast was going to be fitted onto, or
18
19
20
21
22
23
24
On ancient maritime routes see ARNAUD, P. Les routes de la navigation antique. Itinéraires en
Méditerranee. Paris: Éditions Errance, 2005.
Hesiodus Op. 663-665.
CTh XIII, 9, 3, 3 and CJ XI, 6, 3, and see also Vegetius IV, 38. On this, see ROUGE, J. “La navigation
hivernale sous l'empire romain”. In: Revue de Études Anciennes 54, 1952, pp. 316-325 and MEDAS, De
Rebus… pp. 34-40. On maritime dangerousness, see HOLLAND ROSE, J. The Mediterranean in the Ancient
World, Cambridge: Cambridge University Press, 1933, pp. 153-154 and 177-180; THIEL, J. H. Studies on
the History of Roman sea-power in republican times, Amsterdam: North-Holland publishing company,
1946, pp. 1-31; REDDÉ, M., GOLVIN, J. C. & GASSEND, J. M. Voyages sur le Méditerranée romaine, Paris:
Éditions Errance, 2005, pp. 5-7 and 11-43; PITTIA, S. “Circulation maritime et transmission de
l’information dans la correspondance de Cicéron”. In: ANDREAU, J. & VIRLOUVET, C. (Ed.) L’information
et la mer dans le monde antique, Rome: École Française de Rome, 2002, pp. 199-203.
YARDENI, A. “Maritime trade and royal accountancy in an erased customs account from 475 BCE on the
Ahiqar scroll of Elephantine”. In: Bulletin of the American School of Oriental Research 293, pp. 67-78.
STAGER, L. 2004: “Dos pecios fenicios en alta mar de la costa norte del Sinai”. In: PEÑA, V., MEDEROS, A.
& WAGNER, C. G. (Ed.) La navegación fenicia. Tecnología naval y derroteros. Madrid: Cefyp, pp. 188 and
191.
Some examples: Suetonius Claud. 18 on the time of the emperor Claudius and Paulinus of Nola Ep. 49.1
at the beginning of the fifth century.
E.g. Libanius Or. 59.137 praised the emperor Constans because of his travel to Britain in the middle of
the winter of the year 343 to suffocate grave barbarian raids.
IGLESIAS GIL, J. M. “La inseguridad en la navegación: de los fenómenos naturales a las supersticiones y
creencias religiosas”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (ed.)
La religión del mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de
Sevilla, pp. 133-139.
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laying some propitiatory ornaments in the prows as ox horns, painted eyes, or divine statues
or caducei in the case of Punic vessels25. Even the very name of the ships reflected this search
for good omen as epigraphy proves, for instance, in the case of Roman navy ships, although
this custom was known from older as it is shown by the mythical Argo ship crewed by the
Argonauts. To provide names of gods to the Roman warships as Pollux, Minerva, Fortuna,
Neptunus or Vesta was not uncommon, as also to name ships after favourable abstract
concepts as Providentia, Victoria, Salus or Spes26.
When navigation season was going to be initiated, it was opened by special overture
ceremonies with the same objective of assuring Gods’ favour. A very good example of this is
provided by Apuleius when he describes a ceremony of this kind in Cenchreas and conducted
by Caeres’ Pastophores:
And calling together their whole assembly, from his high pulpit began to
readout of a book, praying for good fortune to the great Prince, the Senate, to
the noble order of Chivalry, and generally to all the Roman people, and to all
the sailors and ships such as be under the puissance and jurisdiction of Rome,
and he pronounced to them in the Grecian tongue and manner this word
following, ‘Ploiaphesia’, which signified that it was now lawful for the ships to
depart ; whereat all the people gave a great shout, and then replenished with
much joy, bare all kind of leafy branches and herbs and garlands of flowers
home to their houses, kissing and embracing the feet of a silver image of the
goddess upon the steps of the temple (Apul. Met. XI, 17)27
Every sea travel was accompanied by some rituals that were rigidly observed
whenever it was possible. Dr. Luis Ruiz Cabrero has gathered a good collection of literary,
textual and archaeological references from the Phoenician, Greek and Roman worlds about
such ceremonies that can be divided into three important phases: embaterion or embarkation;
25
26
27
BELTRAME, C. Vita di bordo in età romana. Rome: Istituto Poligrafico dello Stato, 2002, pp. 70-81 on
Roman examples while RUIZ CABRERO, L. “La marina de los fenicios, de la creencia en la vida a las naves
de la muerte”. In: MORENO ARRASTIO, F., PLACIDO SUÁREZ, D. & RUIZ CABRERO, L. (Ed.) Necedad,
sabiduría y verdad: el legado de Juan Cascajero. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, p. 100
gives Greek and especially Phoenician and Carthaginian examples. See also LÓPEZ-BERTRAN, M.; AGNÈS
GARCIA-VENTURA, A. & KRUEGER, M. “Could you take a picture of my boat, please? The use and
significance of Mediterranean ship representations”. In: Oxford Journal of Archaeology, 27, 4, 2008, pp.
341–357.
A very complete list of Roman navy ships’ names appears in SPAUL, J. Classes Imperii Romani. An
epigraphic examination of the men of the Imperial Roman Navy. Andover: Nectoreca Press, 2007, pp.7483. Of course, as Spaul show there were also other names related with geography (Syria, Rhenum or
Tigris) or different concepts (Pax, Pietas, Clementia), but they have been found in lesser numbers. About
Roman navy, see STARR, C. G. Roman Imperial Navy 31 B. C. – A. D. 324. Ithaca: Cornell University Press,
1993 and REDDE, M. Mare Nostrum. Les infrastructures, le dispositif et l’histoire de la marine militaire
sous l’empire romain. Rome: L’École Française de Rome, 1986.
See also Virgil Aen. V, 770-776. Beltrame, Vita… pp. 74-77 offers abundant archaeological and textual
data of this kind of ceremonies for the Roman times.
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during the voyage and finally aprobaterion, the disembarkation 28. An instance of the first
group is found on Thucydides (VI, 32, 1-2), when he narrates a prayer recited by the captain
of a fleet and sung by every sailor and harbour worker. It has been corroborated by a
Phoenician-Cypriote votive cow scapula found in Tel Dor (Israel)
29.
During travel, it was
common use to make libations to revere Gods as, e.g. Telemachus did in the Odyssey to
honour Athena (Od. XV, 257-258), and container used for libations like this one have been
found in such an early date as the XIV th BC as shown in the Cape Gelidonya shipwreck 30.
During navigation, this ritualism continued alongside with certain superstitious practices as
avoiding sex or cutting the hair aboard. A death happened during the voyage was a terrible
omen which only could be purged by the expulsion of the corpse off the vessel 31. At the
moment of disembark, it was almost compulsory to present as signs of gratitude offerings to
the sanctuaries as exvoti like anchors or ships’ prows, boat’s miniatures, fishing hooks or
foodstuff for sacrifices or libations to grateful deities because of their assist in some
dangerous circumstances32.
An additional proof of specific ritualism related with sailors is found at the funerary
level. For instance, the existence of anchors and ships’ replicas inside the tombs or
represented graphically outside33, the use of ships as burial places or as coffins 34, or the find
of beach sand covering sailors’ graves placed far away from the coasts –as it probably
happens in the graves found in the necropolis of La Joya and Las Cumbres in South West Spain
28
29
30
31
32
33
34
In the Greek case before proper navigation, it was usual to make an appeal to oracles to get favourable
omens. DOMÍNGUEZ MONEDERO, A. “Los oráculos, guía de la navegación y la colonización”. In: FERRER
ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del mar. Dioses y ritos de
navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 67-90.
Ruiz Cabrero, La marina… pp. 101-104
Ruiz Cabrero, La marina… pp. 105-109. Some other examples in a later date are the decanters found in
the Phoenician wrecks Tanit and Elissa found in the Sinai waters, Stager, Dos pecios…, pp. 183-184 and
the bronze Kyathoi found in the Greek wreck in Cala Sant Vicenç (Pollença, Majorca), although the
excavators just suppose it was used for symposiums in the ship. NIETO, X., SANTOS, M. & TARONGI, F
“Un barco griego del s. VI aC en Cala Sant Vicenç (Pollença, Mallorca)”. In: PEÑA, V., MEDEROS, A. &
GONZÁLEZ WAGNER, C. (Ed.) La navegación fenicia. Tecnología naval y derroteros. Madrid: CEFYP, p.
209. For Roman times, see Beltrame, Vita…, pp. 75-76.
Beltrame, Vita… p. 73.
Ruiz Cabrero, La marina… pp. 100, 102, 104, 107-109 and 111-112; REMEDIOS SÁNCHEZ, S. “El papel
del templo y la aristocracia en la estructura social de los yacimientos fenicios peninsulares en la época
arcaica”. In: ECHEVERRÍA REY, F. & MONTES MIRALLES, M. Y. (Ed.) Actas del V Encuentro de Jóvenes
Investigadores. Ideología, estrategias de definición y formas de relación social en el mundo antiguo.
Madrid: Cirsa, pp. 115-116; ROMERO RECIO, M. “Recetas para tratar el miedo al mar: las ofrendas a los
dioses”. In: FERRER ALBELDA, E., MARÍN CEBALLOS, M. C. & PEREIRA DELGADO, Á. (Ed.) La religión del
mar. Dioses y ritos de navegación en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 107-118..
As seen in some Carthaginian funerary inscriptions: CIS I, 3140, 3189, 3 and 4901-4902. Ruiz Cabrero,
La marina… p. 115.
ADAMS, J. “Ships and Boats as Archaeological Source Material”. In: World Archaeology 32, 3, 2001, p. 294.
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and dated at the VIth century BC–35 are clear proofs of self-recognition. We can add some
textual testimonies. One of most impressive appears in the Bible by the prophet Ezekiel who
personifies the fall of Tyre in a single sailor through a touchy lament for the death of one of
the men of sea (Ez. XXVII, 28-36). For the Roman Age, the Anthologia Graeca provides very
interesting testimonies about tombs of sailors or fishermen remembering disgraced deaths at
sea. Although most of the poems reflect a sinister view of their fate 36, there is a very
interesting kind of verses that reflects the proud custom of some of these sea workers of being
incinerated with their vessels so that they could be carried rightly to Hades. One of the most
fascinating is the following one:
Glaucus, brought up on the shores of Thasus, he who conducted those crossing
by ferry to the island, skilled ploughman of the sea, who even when he was
dozing guided the rudder with no uncertain hand, the old man of countless
years, the battered remnant of a seafarer, not even when he was on the point
of death quitted his old tub. They burn his shell on the top of him, that the old
man might sail to Hades in his own boat” (AG IX, 242) 37.
Of course, during Roman Age besides this emotive testimonies there were also
frequent funerary inscriptions of merchants, navicularii and sailors, whatever military,
classiarii or related with commerce or fishing, nautae and piscatori, which, in general, were far
more prosaic than Glaucus’ epigram. In spite of traditional distrust from terrestrial society 38,
the men of sea showed a true satisfaction and pride that can be interpreted as a conscience of
membership to a particular group.
Certainly, sailors’ life conditions supposed a vivid contrast with the earth based
population. The permanent errant lives of the ships’ crews involved an evident physical and
social isolation, where vessels were conformed as miniature societies in themselves where, in
spite of the quarrelsome and troublesome sailors’ character –perceptible through their foul-
35
36
37
38
RUIZ MATA, D. & PÉREZ, C. J. “Aspectos funerarios en el mundo orientalizante y colonial de la Andalucía
occidental”. In: FÁBREGAS, R., PÉREZ, F. & FERNÁNDEZ, C. (Ed.) Arqueoloxia da morte na Peninsula
Iberica desde as orixes ata o Medievo. Xinzo de Limia: Biblioteca Arqueohistórica Limiá, 1996, pp. 171221.
Some selected examples are AG VII 294, 382, 532, 693; IX 82
Similar poems are AG VII, 305, 381, 505 and 635. Homer (Od. XI, 75-78, and XII, 10-15) and Virgil (Aen.
VI, 162-174 and 212-235) also gives us additional references to similar practices as sailors’ burials with
ships’ oars
For example, Roman navy was always considered of second class in comparison with the army, Thiel
Studies…, pp. 11-16), Starr, Roman…, pp. 67-68) and GARLAN, Y. La Guerra en la Antigüedad. Madrid:
Aldebarán, 2003, pp. 137-138). Likewise, see a particular study on identity and Dalmatian sailors in
Roman fleet: DZINO, D. “Aspects of identity. Construction and cultural mimicry among Dalmatian sailors
in the Roman Navy”. In Antichthon, 44, 2010, pp. 96-110, and especially pp. 101-103. But not only was
applied this category of though to the Roman world, Plato affirmed the same in Laws 4.707a.
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mouthed and dirty language well attested by the sources–39, there was a clear hierarchy and a
discipline according to the extreme harshness of their labour, the changing weather or any
misfortune, whatever technical or human as endemic Mediterranean piracy was 40. A comic
example of the supreme command of the captain is found in Synesius of Cirene when he
describes his gloomy voyage to Alexandria in the vessel of the Jewish captain Amarantus. His
authority was so inflexible and respected by his crew –most of them Jewish–, that when he
decided to celebrate Sabbath in a moment when the ship was almost going to wreck, and even
after an Arab soldier threatened to killed him, he showed no inclination to yield his beliefs till
the danger became absolutely manifest (Synesius Ep. V, 74-103). The captain’s authority was
not at all petty, it was bestowed because he was judged as the most experienced person at the
ship and he was absolutely essential to guarantee the success of the navigation and the mere
survival of the crew. His leading role can be discerned also through the transmission of
knowledge to the younger sailors as Plato (Rep. 488b) said 41. In fact this responsibility
sometimes provided great opportunities to ambitious and capable men as the Egyptian
Ahmose who began as an apprentice repairing rigging on a ship and after becoming captain he
finished his life as admiral of the Pharaonic fleet in the XVIIIth Dinasty as his autobiography
alleged42.
Their isolation had its psychological counterpart. When sailors disembarked on their
destination or when they had to look for a shelter during winter, they tended to cause a lot of
trouble as a way of relieving tensions and especially on their particular haven: the taverns 43.
In fact, harbours were considered from Antiquity onwards as disreputable areas, where the
sailor colluded with criminals, runaway slaves, prostitutes and most of the vilest elements of
the society. A satire of Juvenal provides the most perfect statement. It concerns the Consul
Plaucius, who lived under Nero's rule. This man got lost at Ostia in his way to the province of
Iliricum. There he enjoyed a rude experience, which is pretty illuminating about harbours
consideration:
39
40
41
42
43
Rauh Merchants…, pp. 163-166
On this topic, see ORMEROD, H. A. Piracy in the Ancient World. An essay in Mediterranean History.
Baltimore: The John Hopkins Press, 1997; DE SOUZA, P. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002; ÁLVAREZ-OSSORIO RIVAS, A.: Los piratas contra Roma. Écija:
Gráficas Sol, 2008; ÁLVAREZ JIMÉNEZ, D. La piratería en la Antigüedad Tardía. Madrid: Universidad
Complutense and ÁLVAREZ-OSSORIO RIVAS, A.; FERRER ALBELDA, E. & GARCÍA VARGAS, E. (Eds.)
Piratería y seguridad marítima en el Mediterráneo antiguo. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2013.
MEDAS, De Rebus… p. 31.
MCCOY, R. A. Admiral Ahmose. The autobiography of an ancient naval commander: hyerogliphic text from
his tomb at El-Kab with a translation and notes. Ft. Lauderdale: Enchiridion Publications, 1999.
A satisfactory example is provided by Heliodorus Aeth. V, 18, 3.
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Send your Legate to Ostia, O Caesar, but search for him in some big cookshop!
There you will find him, lying cheek-by jowl beside a cut-throat, in the
company of bargees, thieves, and runaway slaves, beside hangmen and coffinmakers, or some eunuch priest laying drunk. Here is Liberty Hall! One cup
serves for everybody; no one has a bed for himself, nor a table apart from the
rest (Sat. VIII, 171-178).
As Juvenal implied, sailor environment was a mixture between lust and violence
overlapped through the lowest stratus of ancient world. On the other hand, this identification
among underground society and sailors was even used in the controversy aroused between
Paganism and Christianity as the pagan Celsus termed Jesus Christ's apostles as ‘the very
wickedest of tax-gatherers and sailors’ to look down on the humble Christian beginnings (C.
Celsum I, 62). Nicholas K. Rauh was right when he assumed that this aggressive behaviour
served as a medium for sailors to vindicate and distinguish themselves with respect to earthbased society and so they could extend their sociological isolation as a group when they
disembarked 44. In an interesting anthropological paper Michael Seltzer dealt with the
historical linking of sailors with taverns and alcohol. As he said “the sailor’s life thus swings
pendulum-like between spells at sea and stays on land” and “given the deprivations of life and
work at sea, newly discharged sailors may use their stores of cash to obtain what has been
denied them aboard the ship”45. In these places, sailors felt a “sense of community”46 in a
closed space that resembled in a way the ship were sailors came from. Violence, alcohol and
sailors’ need of self-expression were all united. In consequence, all these peculiarities fit into
an identity that in its basic features remained like that almost at our time and made possible
what the very Nicholas K. Rauh denominated maritime “community and culture”47 or in an
even more diachronic approach Keith Muckelroy48 and Jonathan Adams49 named respectively
as a “closed community” and as a “ship society”.
Regardless of this traditional suspicion, the Sea, the sailor and the commerce were
reluctantly weighed up positively as an innate part of the ancient world. We can reinforce the
celebrated Pompeius’ aphorism navigare necesse est (Plutarchus Pomp. L, 2) by a vehement
speech of Tiberius addressed to the Senate: ‘¡Hercules’ sake!, not a man points out in a motion
that Italy depends on external supplies, and that the life of the Roman nation is tossed day
44
45
46
47
48
49
RAUH, Merchants…, pp. 163-166; RAUH, DILLON & MCCLAIN, Ochlos… A general view about Greek and
Roman underground society is found in SALLES, C. Les bas-fonds de l’Antiquité. Paris: Payot, 2004.
SELTZER, M. “Haven in a Heartless Sea: The Sailors' Tavern in History and Anthropology”. In. The Social
History of Alcohol and Drugs: An Interdisciplinary Journal, 19, 2004, p. 65.
SELTZER, Haven…, p. 80
RAUH, Merchants…, pp. 135-168.
MUCKELROY, K. Maritime archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 1978, pp. 221-225.
ADAMS, Ships…, pp. 304-306.
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after day at the uncertain mercy of wave and wind’ (Ann. III, 54)50. One century later, Aelius
Aristides (Or. XXVI, 11-13) considered Rome as the centre of the world because of the
affluence of commodities from all parts around the globe. The navigation was necessary to
connect the different coasts and to control politically, economically, fiscally and militarily the
territories subjected and it's not a fortunate chance that diverse concepts as the State, in a
later date the Christian Church and the mere metaphysical existence were metaphorically
assimilated in the ancient sources as a ship or a sailing experience. The fact that ships, sailors
and merchants played an important role in the Ancient World is obvious, even thou the sailor
as a historical figure was scorned by the dominant culture. For instance, Phoenician sailors
provided the necessary interconnectivity between colonies, markets and their metropolis and
likewise in a later date sailors were fundamental to achieve Greek oukomene51 or pax Romana
–and make feasible what Bryan Ward-Perkins defined as the Roman economic
sophistication52.
Conclusions
As it happens with every interpretation of the past, there are some difficulties. The
main problem is that there is not a single ancient text written by a sailor. In fact, it's a problem
of alterity. Fortunately the increasing underwater and earthly excavations allow knowing
more and more about the ancient life of the Men of Sea and so to confirm, counter or qualify
the ideas reflected by the ancient sources. The identity of the ancient sailors or men of sea
according to our research is based on an open opposition to earth-based society and it is
recognizable through the extremely dangerous conditions of their work and their isolation,
their particular customs and their deep religiosity and superstitious attitudes, obviously
encouraged because of the evident risks of their activities. These basic features were basically
shared for every sailor from Antiquity onwards. Nevertheless, the seafarer was a
consubstantial part of the ancient life, even if their way of living turned them into a necessary
evil for the established powers. They were brave men who dared to affront the storms and the
wreckages that scared most of the people, they crossed the seas and knew different customs
and populations, and therefore enjoying through the waters of a kind of freedom in their
50
51
52
See also a positive view in Juvenal Sat. XIV, 275-283.
ROUGE, J. La marine dans l’antiquité. Paris: Vendôme, p. 212.
WARD-PERKINS, B. The Fall of the Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 2005.
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maritime isolation just limited by the necessary internal discipline that got broken when they
disembarked. They were easily recognisable in Antiquity as a community in spite of their
differences and they were treated like that by the earthly inhabitants.
Acknowledgements
We want to dedicate this paper to the late Fernando López Pardo, lecturer of
Ancient History at Universidad Complutense because of his invaluable help to make possible
the former poster that inspired this paper. He will always be remembered as a great
researcher and as a magnificent person.
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Elementos Proféticos na Cronística Moçárabe (séculos VIII-VI)
Prophetic Elements in the Mozarabic Chronicles
(VIII-VI centuries)
António Rei*
IEM /FCSH – Universidade Nova de Lisboa
Resumo
Abstract
Os textos moçárabes escritos em al-Andalus entre
os séculos VIII e XI proporcionam-nos
informações, não apenas acerca do que trazem
escrito em si mesmos, mas também acerca do
período ou períodos nos quais eles foram escritos
ou reescritos. O espírito de resistência moçárabe
tomou diferentes discursos, de acordo aos
diferentes objectivos que tinham em cada
momento.
Mozarabic texts wrote in the al-Andalus between
the VIIIth and XIth centuries provide us with
information, not only about what they have in the
text itself, but also about the period or periods in
what they were wrote or re-wrote. The spirit of
mozarabic resistance assumes different kinds of
speech in accordance to the different aims it had
in every moment.
Palavras-chave: Moçárabes; Hispânia; Profecia;
Resistência; Identidade.
Keywords: Mozarabic; Hispania; Prophecy;
Resistance; Identity.
● Enviado em: 05/09/2014
● Aprovado em: 31/10/2014
*
Doutor em História Cultural e das Mentalidades Medievais, pela Faculdade de Ciências Sociais
eHumanas–Universidade Nova de Lisboa ; Investigador Integrado do Instituto de Estudos Medievais
(IEM / FCSH–UNL);[email protected]
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I. CONTEXTOS
I.1. A presença islâmica na Península Ibérica
No ano de 711 ocorreu uma mudança radical no panorama politico-militar da
Península Ibérica. Nessa data terminava o Reino Visigodo, que acabara por unificar o espaço
peninsular, e começava a presença de um novo poder, islamo-árabe, que iria permanecer,
ainda que sob vários formatos, espaciais e político-institucionais, até 1492, quando Granada
se rendeu aos Reis Católicos.
I.2. Produção literária cristã entre os séculos VIII e XI
Entre a produção literária que teve início nos meios cristãos peninsulares ao longo do
século VIII, vamos observar, muito em especial, alguma daquela que abordou a problemática
da situação e condição dos cristãos na Hispânia, quer eles estivessem a viver autonomamente,
dando origem aos reinos cristãos do Norte peninsular, Astúrias e Navarra; quer fossem
cristãos a viver diretamente sob a autoridade islâmica, e aos quais se costuma designar
genericamente por “moçárabes”.
Embora, tanto quanto sabemos, foram, de início, os moçárabes, do sul, a escrever, a
produzir e a influir nas comunidades cristãs do norte, e não o contrário, pois não houve
qualquer obra surgida nos meios asturianos até ao surgimento da Crónica de Afonso III, nos
finais do século IX - inícios do X1.
Aquela dinâmica de produção letrada, que se foi elaborando ao longo de vários séculos,
teve o seu início logo no mesmo século VIII, e pode considerar-se que manteve um discurso
ideológico, mais ou menos inalterado até ao século XI. Constata-se, ao longo daquele período
de mais de três séculos, alguma sincronia nas ações, mesmo uma certa univocidade, ou no
mínimo, uma semelhança no discurso produzido pelos dois meios letrados.
Estabelecemos o século XI como ponto de chegada, pelo facto de, no início do último
quartel daquele século, ter tido lugar um acontecimento que acabou alterando aquela relação
entre os dois meios letrados cristãos, os quais, em alguns casos, curiosamente, já coexistiam
sob a autoridade dos reis cristãos “reconquistadores”. O facto em causa foi a adoção oficial,
1
Sobre as produções literárias no âmbito da monarquia asturiana, v. António REI, O Louvor da Hispânia na
Cultura Letrada Peninsular Medieval. Das suas origens discursivas ao Apartado geográfico da Crónica de
1344, Tese de Doutoramento, FCSH-UNL, 2007, policop., capítulo II.6 ; e também Manuel DÍAZ Y DÍAZ,
“La historiografía hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000”, in De Isidoro al siglo XI, Barcelona,
El Albir, 1976, pp.203-234, pp.212-229.
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pela monarquia castelhano-leonesa, do rito romano, divulgado por Cluny, e o abandono
definitivo do rito visigótico ou moçárabe. Tudo isto por volta do ano 1080, durante o reinado
do rei Afonso VI2. A partir de então alteraram-se as relações entre as comunidades moçárabes
e o poder ou poderes régios, pois essas alterações, por vezes alterosas, mesmo violentas,
ocorreram não só em Leão e Castela, mas também em Portugal3.
Mas voltando ao nosso tema, é em função daquelas duas diferentes origens literárias e
dos respetivos meios sociais e culturais que terão estado na sua génese, que as resolvemos
designar genericamente como “profetismo moçárabe”, quando oriundas dos meios
propriamente moçárabes; ou como “ideologia prospetiva neo-goda” no caso em que são
produtos literários dos reinos cristãos do norte.
I.3 A laude e o dolo
Aquelas literaturas procuraram criar, e difundir, uma mensagem, um discurso com
características algo similares e em que os principais elementos articulantes do discurso foram
dois elementos literários, designadamente a laude e o dolo4.
Estes dois essenciais elementos discursivos foram uma presença constante na
cronística hispânica cristã, desde a CM754 até à Crónica General de España de Afonso X, ou seja
durante mais de meio milénio5.
2
3
4
5
Em 1080 Afonso VI de Leão e Castela adoptara oficialmente o rito romano e abandonara o rito visigótico,
comprometendo-se assim com Cluny e com Roma (A. RUCQUOI, História Medieval da Península Ibérica,
Lisboa, Estampa, 1995, pp. 161-162). M. DÍAZ Y DÍAZ, diz que essa adopção e abandono simultâneos se
teriam dado ainda com Fernando I, pai de Afonso VI, portanto em data anterior a 1065 (v. IDEM, “Isidoro
en la Edad Media Hispana”, in De Isidoro al siglo XI, pp.141-201, p.184 n.121). Sobre influências
cluniacenses na Hispânia do século XI, v. José MATTOSO, “O Monaquismo Ibérico e Cluny”, in Religião e
Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, INCM, 1982, pp. 55-72.
Sobre estas confrontações e resistência, v. PICOITO, Pedro, “Identidade e Resistência. São Vicente e os
Moçárabes de Lisboa”, Xarajîb, 7: Actas do I Colóquio Internacional sobre Moçárabes [IEM/CELAS] (2009),
Silves, pp. 21- 34; e GOUVEIA, Mário de, “Os Moçárabes de Coimbra na frente de resistência à Monarquia
Leonesa (sécs. XI-XII)”, idem, pp. 35-48.
Sobre a “laude” e o “dolo” como elementos discursivos, e da sua importância na construção e
consolidação do discurso da “Reconquista”, v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica
General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, in Luis GARCÍA
MORENO e Esther SÁNCHEZ MEDINA (eds.), Del Nilo al Guadalquivir – II Estudios sobre las fuentes de la
conquista islámica. Homenaje al Profesor Yves Modéran, Real Academia de la Historia, Madrid, 2013, pp.
83-96.
O ‘Dolo’ constata-se ainda, como elemento exortativo, e sempre justaposto à ‘Laude’ no De Rebus
Hispaniae de Rodrigo Ximénez de RADA (“Deploratio Hispanie”, in De Rebus Hispaniae sive Historia
Gothica [ed. e estudo Juan FERNÁNDEZ VALVERDE], Turnholt, Brepols Ed., 1987, pp.106-109) e na
Primera Crónica General, de Afonso X (“Del duello de los godos de Espanna” in Primera Crónica General de
España [ed. Ramón MENÉNDEZ PIDAL], II ts., Madrid, Ed. Gredos, 1977, t.I, pp. 312-314).
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A laude (o louvor, o panegírico), remontava, pelo menos, a Isidoro de Sevilha, e à sua
famosa Laude Spaniae (O Louvor da Hispânia), se é que não viria mesmo, enquanto género
literário, de mais atrás no tempo, da própria cultura imperial latina 6.
O dolo (o dó, o lamento) era coetâneo, tendo surgido naquele mesmo século VIII, pela
mão dos letrados moçárabes, e no qual era chorada a perda da Hispânia nas mãos dos árabes,
como castigo pelas faltas dos Visigodos.
Faltas que recaíam, quer sobre os próprios monarcas, que não teriam sido bons reis;
mas também sobre os súbditos, em especial sobre os magnates visigodos, que, insubmissos ao
seu rei ungido e sacralizado, se rebelavam quase continuamente e traziam o reino num
constante clima de insegurança e de violência, quando não chegavam ao ponto de assassinar o
próprio monarca; ou quando, no mínimo, o prendiam e deixavam incapaz de governar,
geralmente privando-o da visão.
O que tem sido designado como ‘Dolo’ ou ‘Dó da Hispânia’ é um discurso lamentoso,
uma narração triste e dolorosa em que se relata que, em consequência do desaparecimento do
Reino Visigodo e da instalação do poder islâmico na Hispânia, se tinham abatido sobre este
extremo do mundo todas as desgraças e inclemências 7. É o pranto pelo ‘Paraíso Perdido’, que
urgia recuperar8.
I.4. O discurso da redenção da Hispânia
Impunha-se, pois, portanto a redenção da Hispânia, já que a presença islâmica na
Península Ibérica era, e passou a ser entendida e divulgada como tratando-se de um castigo
divino. Castigo que, se entendia, ou pretendia, temporário, e que tornava, pois, necessário aos
cristãos hispânicos, estivessem eles dentro ou fora dos limites de al-Andalus, a procura ativa
daquela mesma redenção.
Este ‘dó’ tinha uma função semelhante à da ‘laude’, ambos produzindo um efeito de
exortação. No caso em que ambos se conjugam e complementam, o efeito ganha um muito
maior impacto emotivo. A diferença essencial entre ambos é que a ‘laude’ exorta através da
criação de uma exaltação positiva resultante de uma evocação da unicidade espaço - temporal
da memória hispânica; enquanto o ‘dó’ busca fazer surgir um sentimento negativo, resultante
6
7
8
REI, António, O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval…, pp. 35-36.
Além das referências da nota anterior, v. “Spania miserrima” in CM 754 (ed. J.E. LÓPEZ PEREIRA), pp. 6975.
Elisa ESTEVES, A Crónica Geral de Espanha de 1344: estudo estético-literário, Évora, Pendor, 1997, p. 91.
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da evocação da diferença, do ‘outro’, e da condição ‘estrangeira’ do último e mais recente dos
possessores da Hispânia, os muçulmanos, apresentando assim a sua ilegitimidade para nela
continuarem9.
O ‘dó’ ou ‘dolo’ terá sido o elemento emocional, o motor de arranque, da chamada
‘Reconquista’ que se foi elaborando posteriormente, em forma argumentativa, e enquanto
discurso legitimador10.
Dessa forma deveriam, pois, os cristãos procurar, devota e devotadamente, os sinais
que indicariam ou, ao menos, indiciariam um momento, ou talvez mais exatamente “o
momento” em que a misericórdia divina se manifestaria, por fim, generosamente, através de
uma inequívoca vitória que lhes devolveria, em definitivo, o domínio da Hispânia. A vitória
seria assim a marca evidente de que aquela velha falta já se encontrava, finalmente, expiada.
A literatura cristã e / ou moçárabe, por coincidência, ou sincronia, ganhava alento e
recrudescia de atividade, produzindo ou reproduzindo textos, nos períodos de maior
debilidade do poder islâmico andalusi, assumindo o papel de arauto daquelas esperanças
profundas, procurando apontar prognósticos para determinados momentos que se entendiam
estarem tocados pela graça divina.
A ação conjunta ou isolada de ambas as comunidades cristãs é que nos leva a colocar as
duas possibilidades atrás enunciadas: ou se trataria essencialmente de divulgação de textos
de caracter profético, com origem nos meios letrados moçárabes, e que produziriam reflexo
nos meios cristãos do norte; ou, pelo contrário, se se tratariam de textos do que poderemos
designar como “ideologia prospetiva neo-goda”, os quais acabariam por produzir ondas de
choque nas comunas cristãs sob poder islâmico. Estamos em crer que terão sido dois
movimentos, com origens e dinamismos autónomos, embora mais ou menos sincrónicos em
determinados momentos de visibilidade e ação socio-política e cultural.
Em ambos os meios cristãos acabaram por se impor, ao menos, duas atitudes, ambas a
exigir estudo e especial atenção: o estudo dos textos bíblicos, procurando, através de fórmulas
9
10
Sobre o ‘Dó’ ou ‘Dolo’ pela Hispânia, diz-nos Luís KRUS: «As lamentações pela perda da Hispânia visavam
um apelo à unidade cristã, o reforçar da resistência religiosa e cultural face aos novos poderes.» (“Tempo
de Godos e Tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, p.108). Ainda sobre este tópico literário, v.
v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os
cimentos do discurso da Reconquista”, passim.
Sobre o conceito de ‘Reconquista’ e a sua difusão nos reinos cristãos peninsulares, v. J. MARAVALL, El
concepto de España en la Edad Media, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1981; Luís KRUS,
“Tempo de Godos e tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, in Passado, Memória e Poder na
sociedade medieval portuguesa, Patrimónia, Redondo, 1994, pp.102-127; e IDEM, “Os Heróis da
Reconquista e a Realeza Sagrada Medieval Peninsular: Afonso X e a Primeira Crónica Geral de Espanha”,
in idem, pp.129-142; e v. António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a
‘laude’ e o ‘dolo’, os cimentos do discurso da Reconquista”, passim.
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de tipo numerológico, conseguir identificar o momento, a altura, o ano, em que irromperia o
restauro do domínio cristão da Hispânia; e, simultaneamente, estar vigilantes aos momentos
de força, mas, e principalmente, aos momentos de debilidade do poder islâmico em alAndalus, pois um desses momentos de fraqueza entre os muçulmanos poderia ser “o
momento” esperado, essa poderia ser a conjuntura, que poderia dar origem ao movimento
reconquistador e restaurador.
A própria noção de “Reconquista”, de recuperação do espaço perdido, procura afirmar
e reiterar, ad aeternum, o pressuposto de que os cristãos visigodos e depois os neo-godos, não
teriam perdido o direito à terra hispânica, que lhes fora entregue por Deus. A associação da
monarquia visigoda com o cristianismo romano, através da conversão do rei Recaredo, visto
como um verdadeiro sucessor do Cristianíssimo e Hispânico Imperador Teodósio, fazia
daquele momento da conversão o ápice da História para estas terras e gentes 11. Escolhidos e
tocados pela Divindade, já nada, nem ninguém, poderia posteriormente vir retirar-lhes o que
lhes fora dado para todo o sempre12.
I.5. O cálamo e a espada
Um exemplo de todo aquele modus operandi é o estudo numerológico que, baseando-se
em premissas cronológicas como as que estruturam a Crónica Moçárabe de 754, calculou que o
ano de 798 d.C. seria o ano 6000 da Criação do Mundo. Data redonda, e marcando uma
evidente mudança de ciclo numérico, foi considerada como de prognóstico favorável. Poderia
ser o ano em que tudo mudaria, em especial o relativo ao domínio político-militar na
Península.
Todo aquele conjunto de dados e conclusões foram comunicados ao rei Afonso II das
Astúrias, em função dos quais resolveu colocar a sua espada ao serviço do Destino; do que
assim se entendia que seria o Plano Divino. E o rei asturiano encabeçou, naquele ano, todo um
movimento de razia, em direção ao Gharb, precisamente a região onde havia mais
comunidades moçárabes e que, simultaneamente, estavam mais próximas das fronteiras
cristãs.
Depois desta irrupção dos asturianos, a qual chegou a ameaçar, senão mesmo a ocupar
momentaneamente Lisboa, durante cerca de um decénio, entre 798 e 809, os moçárabes do
11
12
REI, António, O Louvor da Hispânia … p. 90, n.10
António REI, “Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a ‘laude’ e o ‘dolo’, os
cimentos do discurso da Reconquista”, passim.
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Gharb estiveram em estado de sublevação, até serem submetidos pelas forças islâmicas e, no
final, perderem definitivamente as suas autonomias, que se mantinham desde há cerca de um
século.
Curiosamente aquelas ações guerreiras levadas a cabo por Afonso II foram seguidas de
perto pelos meios carolíngios e o rei asturiano chegou mesmo a enviar a Carlos Magno por
intermédio de uma embaixada encabeçada por dois dignitários da corte asturiana, Basílio e
Froila, algumas prendas, e até mesmo prisioneiros de guerra, tudo obtido a partir dos botins
conseguidos nas razias a sul13. Por outro lado, e tendo em conta aqueles contextos
numerológicos, é de considerar que a própria coroação de Carlos Magno em Roma, no ano de
800, possa estar, também ela, enquadrada no que se entenderia ser o início do sétimo milénio
do Mundo.
Importa ainda referir dentro do contexto moçárabe / neogodo, a evidente articulação
entre os exegetas cristãos e o poder político-militar; e a noção de que a política, e
principalmente a guerra, eram manifestações da vontade de Deus.
O verdadeiro veículo da ação redentora cristã, mais do que o letrado, que divulgava
pela letra aquela mensagem, passava a ser o guerreiro, e as vitórias militares seriam o sinal
evidente daquele regresso à graça de Deus. Assim, esta condição quase sacerdotal do
guerreiro hispânico, que se constata desde cedo, fez com que os monarcas cristãos da
Hispânia, como chefes guerreiros e de guerreiros, com muito poucas exceções, não tivessem
necessidade de ser sagrados pela Igreja, ao contrário dos monarcas de além-Pirenéus.
II. TEXTOS
II.1. Crónica Profética Arábico-Bizantina de 741
É possivelmente a primeira obra escrita em ambiente moçárabe, e apenas três décadas
após a chegada dos muçulmanos.
É, portanto, pela datação que surge no título, contemporânea da crise que na Península
se prolongou pela década de 40, com a instabilidade político-militar a tomar conta do espaço
hispânico sob a autoridade islâmica, com as revoltas berberes, que aqui secundavam outras
revoltas similares que já tinham começado no Norte de África.
Esta obra, composta em meios letrados moçárabes, teve, entre as suas fontes, a Crónica
de João de Santarém, mais conhecido como Biclarense, pelo facto de o autor, scalabitano de
13
Luís Saavedra MACHADO, “O primeiro assalto cristão à Lisboa muçulmana (798?)”, in Revista Palestra nº
4, Liceu nacional Pedro Nunes, Lisboa, 1959, pp. 20-33, pp. 23 e 32.
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origem, ter sido Bispo de Bíclaro. Esta mesma Crónica do Bispo de Bíclaro, muito
possivelmente já dentro deste contexto de readaptação literária, foi retocada e deu origem a
uma versão, que poderemos chamar de “moçárabe”, datável de 742, ou seja do mesmo
período em que a Crónica Profética estava também a ser composta14.
E ela mesma foi fonte para a Crónica Moçárabe de 754, cuja descrição segue.
Crónica Moçárabe de 754 (CM 754)
A chamada Crónica Moçárabe de 754 (também conhecida como Continuatio Hispana)15
é uma obra que terá sido composta em meados do século VIII16.
Digamos que esta obra acompanhou, desde terras da Hispânia, os ecos da trágica
mudança da dinastia califal no oriente, quando os Abássidas destronaram e massacraram os
depostos Omíadas, mas também da luta que grassava entre as principais elites árabes
assentes em al-Andalus, visto já não se sentirem comprometidos com o novo poder abássida.
Coincidentemente, no ano seguinte, de 755, o príncipe omíada ‘Abd al-Rahmân entrou em AlAndalus para lutar pelo poder17.
14
15
16
17
Sobre estes textos, o de 741 e o de 742, v. o excelente estudo de César DUBLER, “Sobre la Crónica
Arabigo-Bizantina de 741 y la influencia bizantina en la Península Ibérica”, Al-Andalus XI (1946), pp.
283-349, sobretudo pp. 298-321; e ainda M. DÍAZ Y DÍAZ, “Transmisión…”, pp.130-135. Cármen
HARTMANN, no estudo que acompanha a edição da Crónica de João de Santarém, diz ser a Crónica
Arabigo-Bizantina de 741 um texto moçárabe (João de Santarém (Biclarense), Crónica [ed. e introd.
C.C.HARTMANN], p.80, n.143).
A designação de ‘Continuatio Hispana’ ou ‘Continuatio Isidoriana Hispana’ ficou a dever-se a T. Mommsen
(v. Crónica Mozarabe de 754 [ed. crít. e trad. cast. de José Eduardo LÓPEZ PEREIRA), Anúbar Ed.,
Saragoça, 1980, p.19; Cláudio SANCHÉZ-ALBORNOZ, “La Crónica del Moro Rasis y la Continuatio
Hispana”, Anales de la Univ. de Madrid, Letras, III, 3 [1934]; e CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXV).
Sobre edições e questões textuais relacionadas com esta Crónica, v. Crónica Mozarabe de 754 (ed. crít. e
trad. cast. José Eduardo LÓPEZ PEREIRA), Anúbar Ed., Saragoça, 1980, em especial pp. 7-21; e M. DÍAZ y
DÍAZ, “La historiografia hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000” in, De Isidoro al siglo XI,
Barcelona, Ed. El Albir, 1976, pp. 203-234, pp. 207-210; e IDEM, “La transmisión del Biclarense”, in De
Isidoro al siglo XI, pp. 117-140; pp. 135-140; José Eduardo LÓPEZ, “La cultura del mundo árabe en textos
latinos hispanos del siglo VIII”, in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da UEAI,
Universidade de Évora, 1986, pp. 253-271, pp.267-269; B. SANCHÉZ ALONSO, Historia de la
historiografia española: ensayo de un examen de conjunto. 1) hasta la publicación de la Crónica de Ocampo
(… - 1543), 2ª 3d.rev., Madrid, CSIC, 1941, pp. 105-108.
Historicamente a CM 754 é um dos poucos, e por isso tão importantes, textos cristãos peninsulares que
se conhecem, e que foram compostos no período que medeia entre o reinado do monarca visigodo
Wamba e o reinado do rei Afonso III das Astúrias, ou seja durante um lapso temporal de, pelo menos,
dois séculos. Entre o reinado de Wamba (672-680) [A.RUCQUOI, ob.cit., p.321] e o de Afonso III (866909) [IDEM, p.326], correram cerca de dois séculos, nos quais a produção literária foi muito escassa.
Sobre este período problemático na Hispânia islâmica em meados do século VIII, e os reflexos e
consequências da mudança dinástica em Damasco, v. A. RUCQUOI, ob.cit., pp.69-70.
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Aquele contexto de instabilidade política fez surgir, ou ao menos recrudescer, nos
meios cristãos, a circulação e divulgação de textos pseudo-proféticos, com cariz mais ou
menos esotérico, e que prognosticariam o fim breve do domínio islâmico na Península.
Esta Crónica, de autor desconhecido, tem sido vista como produto de um círculo
letrado moçárabe, sem que, no entanto, os investigadores tenham chegado a algum consenso
quanto à sua origem. Já lhe foi atribuída origem cordovesa18, toledana19 e até eventualmente
murciana20.
Entre as fontes utilizadas para a sua redação contam-se a Crónica de João de Santarém
ou de Bíclaro, já na sua versão de 742, e a chamada Crónica Profética Arábico-Bizantina de
741; textos, que como já vimos atrás, são textos irmãos.
A utilização posterior da CM 754, constatar-se-á, mais tarde, como fonte da Crónica
Pseudo-Isidoriana, numa última redação desta última, ainda efetuada em meios moçárabes
toledanos ou conimbricenses21; mas ela figurou ainda, já no período da ‘reconquista’
castelhano-leonesa, como fonte utilizada por Rodrigo Ximénez de Rada, chanceler do rei
Fernando III, o Rei Santo.
18
19
20
21
O partidário da origem cordovesa do autor é R. Dozy (apud M. DÍAZ Y DÍAZ, “Transmisión…”, p. 135,
n.44).
M. DÍAZ Y DÍAZ, e já anteriormente MOMMSEN, entendiam ser o autor um toledano (ibidem).
LÓPEZ PEREIRA entende ser alguém do sudeste peninsular, possivelmente murciano, o autor da CM754
(CM754, ed. LÓPEZ PEREIRA, p.17).
Estamos em crer que a ultima redação/versão da CPs-I, ainda em árabe, terá ocorrido em meio cultural
moçárabe, e poderá ter sido uma peça instrumental importante na resistência cultural e identitária dos
mesmos moçárabes, ante o avanço das influências borgonho-cluniacenses. Pomos mesmo a
possibilidade de que aquela redação pode não ter sido algo de todo estranho a Sisnando Davidis, o
homem que governou Coimbra e Toledo, entre 1065 e 1091 (sobre Sisnando Davidis, figura a pedir um
novo estudo, ver a síntese, com 60 anos (!) mas ainda excelente, de Ramón MENÉNDEZ PIDAL e Emilio
GARCÍA GÓMEZ, “El conde mozárabe Sisnando Davídiz y la política de Alfonso VI com los Taifas”, AA XII
(1947), pp.27-41), e grande defensor da causa moçárabe, pois constata-se a presença da CM 754 em
Coimbra, tendo sido fonte dos Annales Portugalenses Veteres (ainda sobre esta relação textual entre a CM
754 e os APV, v. Damião PERES, “A propósito do «Chronicon Alcobacense»”, Rev. Portuguesa de História, I
(1941), Univ. Coimbra, pp.148-150 + 1 extratex.; José Eduardo LÓPEZ PEREIRA, “El elemento godo en los
Annales Portugalenses Veteres: un problema de critica textual y de fuentes”, Rev. Portuguesa de História,
XVI (1976), Univ. Coimbra, pp.223-226), os quais foram redigidos até 1093 (João de Santarém
(Biclarense), Crónica [ed. e introd. C.C.HARTMANN], p.85) ou seja, durante o governo de Sisnando e de
seu genro e sucessor, Martim Moniz. Curiosamente, o arquétipo textual da CM 754, que hoje conhecemos
em vários testemunhos, parece remontar precisamente a Coimbra como ponto de origem (Idem, pp. 8486; e António BENITO VIDAL, Crónica Seudo Isidoriana, Valência, Anúbar Ed., 1961, p.18), com exceção
do chamado ‘Complutense’, que seria de Toledo (Idem, p. 86); mas Sisnando também governou Toledo.
Se acrescentarmos a este quadro que Diego Catalán e Ramón Menéndez Pidal falam na redação da CPs-I
em Toledo (v.infra n.49), e que na sua composição os excertos de obras hispânicas são claramente
privilegiados em relação a outros que o não são (CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXVII), o cenário de
uma afirmação de cristianismo ‘nacionalista’, leia-se ‘moçárabe’, não parece descabido, nem toda esta
conjetura de proximidade entre aquele magnate moçárabe, Sisnando, e este esforço cronístico com
origem nos meios letrados do cristianismo hispânico. Sobre esta questão e período v. ainda Pierre
DAVID, “L’abolition du rite hispanique”, Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe
siècle, 1947, pp. 391-405.
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II.3. Kitâb Hurûshyûsh (KH) [O Livro de Orósio] (Sécs. IX-X)
As Histórias contra os pagãos, de Orósio, cerca de meio milénio depois da sua redação,
pois fora redigida nos inícios do século V, continuavam sendo uma referência-base de
importância basilar para a construção da memória hispânica. O Kitâb Hûrûshyûsh (O Livro de
Orósio) foi a ‘ponte’ através da qual muitos dos conceitos e memórias da Antiguidade Tardia
relativamente à Hispânia, acabaram entroncando na cultura hispano-árabe. Trata-se, na sua
origem, de uma tradução do latim para árabe das Histórias de Orósio22, obra considerada
como uma matriz da historiografia medieval 23 e de grande importância para esta Finisterra,
por ser o autor da mesma um hispânico e a obra em causa dar um lugar especial à Hispânia 24.
Até há pouco tempo esta tradução da obra orosiana era entendida como fruto de um
trabalho de equipa, equipa essa dirigida, pelo Qādī (juiz) muçulmano Qāsim ibn al-Asbagh e
constituída também pelo “Juiz dos cristãos”, um moçárabe ainda não identificado com
segurança25. O texto latino em causa teria chegado a Córdova como oferta do Basileus de
Constantinopla durante uma embaixada bizantina a al-Andalus26.
No entanto, mais recentemente, mercê de profundo estudo levado a cabo por Mayte
Pénelas, provou-se ser uma tradução levada a cabo por Hafs ibn Albar, filho de Álvaro de
Córdova, e então juiz ou conde (kumis) dos cristãos da capital omíada. Pela sua condição de
interlocutor privilegiado junto da corte, em nome dos cristãos cordoveses, Hafs ibn Albar
seria um homem já culturalmente bilingue, pois falaria e escreveria o latim mas também o
árabe, e a prova desse seu domínio da língua arábica seria, de forma patente, esta mesma
tradução.
22
23
24
25
26
Acerca do conhecimento da existência desta tradução entre letrados dos séculos X e XI, v. Mayte
PÉNELAS, (ed. e estudo), Kitâb Hurûshyûsh (Traducción Árabe de las Historiae adversus Paganos de
Orosio), Madrid, CSIC, 2001, p.17.
C.ORCÁSTEGUI e E. SARASA, ob.cit., pp. 37-38. Sobre a popularidade desta obra na Idade Média, bastará
dizer que se lhe conhecem cerca de 275 mss. (Orósio, História Apologética, pp. 34-43).
V. António REI, O Louvor da Hispânia …, II.2.
Esta tese, de uma equipa chefiada por Ibn al-Asbagh, tem sido geralmente aceite (embora M. DÍAZ Y
DÍAZ já tivesse colocado anteriormente, em 1970 e em reedição de 1976 [IDEM, “La Historiografia
Hispana…”, p.205], como data e local da redacção do KH, respectivamente, por volta de 930 e em Toledo
[Idem, p.211]) até à muito recente investigação e edição que Mayte PÉNELAS levou a cabo, e onde foi
formulada esta nova tese, quanto a nós bastante plausível. A anterior apresentava algumas debilidades
cronológicas, quer relativamente ao monarca que hipoteticamente teria oferecido a obra a ‘Abd alRahmān III (Mayte PÉNELAS, ob.cit., p.28); quer, e principalmente, no respeitante ao papel que o Qādī
Qāsim ibn al-Asbaġ teria desempenhado na empresa em causa, atendendo à sua idade e à sua sanidade
mental no final da vida (Ibidem). O aspecto, até então acessório, que relacionava a tradução com os
moçárabes passou agora a ser o aspecto principal e único (Idem, pp.30-42). A hipótese colocada por M.
DÍAZ Y DÍAZ situa aquela compilação ainda no ambiente da resistência toledana à política hegemónica
de ‘Abd al-Rahmān III.
V. nota supra.
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De forma semelhante às que identificámos supra, também aqui encontramos uma
paralela época de crise política em al-Andalus, coincidindo com o bastante mais longo período
das autonomias muladis, que durante mais de meio século27, em especial no ocidente e no sul
da Hispânia islâmica, eram a prova evidente da debilidade da autoridade política e militar dos
emires de Córdova.
Tratar-se-ia, pois, de mais um contributo para o espírito de resistência e de
sobrevivência cultural das comunidades moçárabes. No entanto aquela resistência já assumia
formas aculturadas, pois apesar de haver a transmissão de uma memória cristã, a que acrescia
o facto de ter origem hispânica, aquela transmissão já não se podia fazer em latim, mas sim
em árabe, pois o grau de ‘arabização’ entre os cristãos peninsulares, estava já muito avançada,
em especial entre aqueles que residiam nos meios urbanos28.
O KH veio a ser uma das fontes utilizadas por Ahmad al-Râzî para a sua obra perdida
Akhbâr Mulûk al-Andalus (Notícias acerca dos Monarcas de al-Andalus), certamente usada no
apartado geográfico do seu trabalho. O mesmo KH veio a ser usado mais tarde, no séc. XI, por
al-Bakrî na sua obra geográfica Al-Masâlik wa-l-Mamâlik (As Vias e os Reinos)29. A utilização do
KH quer por al-Râzî quer por al-Bakrî levanta importantes questões textuais, as quais já foram
abordadas por nós em momento anterior30.
27
28
29
30
No extremo ocidente as revoltas muladis prolongaram-se de 866 (quando se deram as primeiras
revoltas em Mérida; v. Maria Ángeles PÉREZ ÁLVAREZ, Fuentes Árabes de Extremadura, Cáceres,
Univ.Extremadura, 1992, p.106) a 930 (quando Badajoz se rendeu a ‘Abd al-Rahmân III; Idem, p.124)
embora só com a rendição de Toledo, em 932, se tenha dado a pacificação de al-Andalus sob a
autoridade do seu primeiro califa (v. António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe (PEA), 2ªed. II
vols., Lisboa, Caminho, 1989, vol.II, p.36).
Sobre o grau de arabização dos moçárabes que teria levado Hafs ibn Albar a traduzir Orósio de latim
para árabe, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp. 40-42. Outros sinais do alto grau de arabização das elites
moçárabes no século X são o facto de Recemundo de Córdova ter escrito o seu ‘Calendário’ em árabe, e
tê-lo dedicado a al-Hakam II; segundo M. DÍAZ Y DÍAZ também a CM 754 ou Continuatio Hispana
(Bibl.Nac., Madrid, ms. 4879 [Gg. 132]) teria sido traduzida para árabe; e também Isidoro de Sevilha teria
sido traduzido para árabe, e posteriormente utilizado por al-Râzî (v. M. DÍAZ Y DÍAZ, “Isidoro en la Edad
Media Hispana”, p. 174); também Mayte PÉNELAS refere as muitas anotações árabes que acompanham
os mss. das Etimologias, e que fazem supor terem sido extraídas de uma tradução árabe (IDEM, ob.cit.,
pp. 56-57 e n.172). Aquela mesma listagem encontra-se quase literalmente em A. RUCQUOI, ob.cit.,
p.101. Os próprios Evangelhos foram traduzidos para árabe, acompanhados de apontamentos litúrgicos,
o que nos fala do grau de aculturação entre os moçárabes, pelo menos os de meios urbanos, em especial
Córdova. (Mª. Jesus VIGUERA, «¿Existe una identidad mozárabe? A modo de conclusión» in ¿Existe una
identidad mozárabe? Historia, lengua y cultura de los cristianos de al-Andalus (siglos IX-XII), Estudios
reunidos por Cyrille Aillet, Mayte Penelas y Philippe Roisse, Madrid, Casa de Velázquez, 2008, pp. 299314.
Relativamente à utilização que al-Bakrî fez do KH, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp. 73-74; e António REI,
Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, E. Colibri, Lisboa, 2008,
p.130, n.5. Sobre a relação de Al-Himyarî com o KH, v. Mayte PÉNELAS, ob.cit., pp.74-76.
V. A. REI, O Louvor da Hispânia…, em especial no capítulo II.5.
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II.4. Crónica Pseudo-Isidoriana (CPs-I) (Séc. X-XI)
Obra que levanta vários problemas, em virtude de não se lhe conhecer o autor, o qual,
sendo conhecido, ajudaria, com certeza, a datar, por aproximação, o período em que surgiu a
obra em causa e a situar espacialmente o seu aparecimento. Assim, relativamente a esta obra,
quer a sua datação aproximada, quer a região da sua elaboração são questões importantes e
ainda não sanadas31.
Tendo sido entendida como uma continuação da obra de Isidoro de Sevilha, tal facto
deu origem à designação que surge no ms. de Paris: Cronica Gothorum a sancto Isidoro edita 32.
Mais recentemente, veio a fixar-se a sua denominação em Chronica Gothorum Pseudo
Isidoriana 33 ou simplesmente Crónica Pseudo Isidoriana (CPs-I) 34.
Diversos autores que trataram esta Crónica e tema têm feito diferentes propostas no
que toca à época da sua redação 35. Ramón Menéndez Pidal num primeiro momento entendeu
tratar-se de uma obra compilada na primeira metade do século XI36, seguindo Mommsen e
Cláudio Sanchez-Albornoz37, para depois se fixar na primeira metade do século X38. Levi Della
Vida apontou, como possível época de redação, o final do século XI39.
31
32
33
34
35
36
37
38
39
Um ponto de situação relativamente recente, de 1996, sobre a obra e sobre os autores que a ela se têm
dedicado, em Helena DE CARLOS VILLAMARÍN, Las Antigüedades de Hispania, Spoleto, 1996, pp. 241249. Dando uma ideia geral das problemáticas, não dispensa, nalguns casos a consulta da obra ou obras
referidas, como a antiga mas não dispensável obra de B. SANCHÉZ ALONSO, Historia de la
historiografia…, pp. 115-116.
O ms. nº 6113 da Biblioteca Nacional de Paris, único exemplar da CPs-I começa daquela maneira (apud
P.GAUTIER-DALCHÉ, “Notes sur la «Chronica Pseudo-Isidoriana», Annuario de Estudios Medievales 14
(1984), pp.13-32, p. 14). Edições desta Crónica: T. MOMMSEN, Monumenta Germaniae Historica, Auctores
Antiquissimi XI, Chronica Minora II, pp.372-388; edição castelhana da CPs-I, da autoria de Antonio
BENITO VIDAL, Crónica Seudo Isidoriana, Valência, Anúbar Ed., 1961. A mais recente edição, tradução e
estudo deste ms. é: La chronica gothorum pseudo-isidoriana (ms. Paris BN 6113), ed. crítica, trad. y
estudio de Fernando GONZÁLEZ MUÑOZ, A Coruña, Toxosoutos, 2000.
Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, Cuadernos de Historia de España XXIXXII (1954), pp. 5-15, onde assim a designa, apesar do título apresentar outra forma. Também Cláudio
SANCHÉZ-ALBORNOZ a designa daquela forma no seu longo estudo “San Isidoro, «Rasis» y la Pseudo
Isidoriana”, CHE IV (1946), pp. 73-113.
Esta designação, hoje a mais comum, encontramo-la, entre outras, no título do trabalho de MENÉNDEZ
PIDAL (v. nota supra); no trabalho de P. GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., passim; M. DÍAZ Y DÍAZ, “La
Historiografia Hispana…”, pp. 211-212; e na edição castelhana da CPs-I, de Antonio BENITO VIDAL,
Crónica Seudo Isidoriana.
Diego CATALÁN, a partir de Menéndez Pidal, coloca a redacção da CPs-I a acontecer em Toledo, do punho
de um murciano (v. CMR, ed. CATALÁN e ANDRES, p. XXXII).
Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, p.5.
Cláudio SANCHÉZ-ALBORNOZ, “San Isidro, ‘Rasis’ y la Pseudo-Isidoriana”, p.74; Mayte PÉNELAS, ob.cit.,
68, n. 227.
Ramón MENÉNDEZ PIDAL, “Sobre la Crónica Pseudo Isidoriana”, p.13.
Apud Antonio BENITO VIDAL, que afirma que Levi della Vida coloca a redacção da CPs-I no século XII
(IDEM, ed. Crónica Seudo Isidoriana, p.7).
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Pela nossa parte, cremos que todos têm uma parte de razão nas propostas que fazem.
Assim, quanto a nós, a CPs-I será o resultado final de uma evolução textual que se foi
processando ao longo dos séculos IX a XI, com momentos de maior visibilidade quando se
deram as autonomias muladis (sécs. IX-X); quando o califado entrou em colapso e surgiram as
Taifas (princípio do séc. XI)
40;
e, por último, e num cenário e numa lógica completamente
diferentes, durante o período de resistência cultural que os moçárabes hispânicos
protagonizaram no final do século XI41 e no início do século XII, contra o cada vez maior
predomínio do cristianismo romano e cluniacense, o qual acabou por vencer e levar, por parte
das monarquias cristãs hispânicas, ao abandono do rito visigótico-moçárabe.
Atendendo ao cada vez maior grau de arabização dos moçárabes, a sua língua literária
passou a ser o árabe, e nesse idioma terá sido ainda redigida a última versão da CPs-I, a
mesma que acabou mais tarde por ser traduzida para latim 42.
Compilada a CPs-I em ambiente moçárabe, usou entre as suas fontes a CM 754, a
Historia Gothorum de Isidoro de Sevilha43, e também se constatam passagens de João de
Santarém e de Orósio, entre os autores hispânicos44. Usou ainda os códices moçárabes das
Nomina Sedium45.
Trata-se, esta obra, no seu conjunto, de uma síntese da História Hispânica, desde Noé
até à invasão árabe, sendo introduzida por uma descrição geográfica da península46.
III . Conclusão
A literatura moçárabe, foi, enquanto existiu, produto da herança cultural hispanovisigoda em contínua relação e consequente aculturação com a cultura islamo-árabe que se
instalou na Península Ibérica. Uma das principais razões da sua existência e, eventualmente, o
principal valor da sua identidade, foi o da resistência aos poderes hegemónicos que se lhe
foram impondo (islâmicos e cristãos romanos), procurando no estudo dos textos bíblicos
40
41
42
43
44
45
46
Relativamente à constituição e estruturação do texto da CPs-I, e à época em que começou a sua
circulação entre as comunidades moçárabes, M. DÍAZ Y DÍAZ, “La Historiografia Hispana desde la
invasión árabe hasta el año 1000”, pp.211-212.
Chegou a existir um pleito judiciário, em 1077, entre os partidários de ambas as liturgias, a romana e a
hispano-visigótica (v. L.KRUS, A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380), p.72, n.70).
P. GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., pp.23-26.
P.GAUTIER-DALCHÉ, ob.cit., p.25.
Crónica Seudo Isidoriana, (ed. Antonio BENITO VIDAL), p.7.
V. A. REI, O Louvor da Hispânia…: II.4.4. As Nomina Sedium moçárabes, pp. 114-116.
Crónica Seudo Isidoriana, (ed. A. BENITO VIDAL), p.7.
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sinais que indicassem o momento em que se produziria a redenção da Hispânia, e em que eles,
os verdadeiros neo-godos, reassumiriam o poder que, por mal usado, lhes fora retirado em
711.
Os Moçárabes foram, portanto, os herdeiros e continuadores de uma cultura e de uma
vivência cristã intrinsecamente hispânicas, que surgira e atingira o seu auge politicamente,
com a ação unificadora da monarquia visigótica, pela espada de Leovigildo; e, culturalmente,
pelo cálamo do cunhado de Leovigildo, Isidoro de Sevilha, foi elevada a hino laudatório.
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O Intelectual na Idade Média: divergências historiográficas
e proposta de análise
L’intellectuel au Moyen Âge: débats historiographiques
et proposition d’analyse
Igor Salomão Teixeira*
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
Résumé
Este artigo é sobre a problemática historiográfica
do termo “intelectual” para definir pensadores na
Idade Média. Trata-se de uma análise
bibliográfica a partir do estudo de Jacques Le Goff,
Os intelectuais na Idade Média (1957), dos
estudos de Jacques Verger, como Homens e Saber
na Idade Média (1997) e Cultura, Ensino e
Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII (1999).
O objetivo é sistematizar pontos divergentes
sobre definições de Intelectuais e Homens de
saber. Ao final, apresentamos características
gerais da Antropologia Escolástica como um
campo propício para análises que consideram a
“consciência de si” de pensadores dos séculos XII
a XIV. Concluímos que essa problemática é uma
reflexão que assume tanto a possibilidade de se
propor uma análise de história social (séries
documentais), ou de história intelectual (a
atuação dos mesmos a partir de suas produções).
Notre texte c’est sur les discussions
historiographiques autour du terme “intelectuel”
pour les penseurs du Moyen Âge. Dans une
analyse bibliographique a partir de l’oeuvre Les
Intellectuels au Moyen Âge, de Jacques Le Goff,
publié en 1957, et des études de Jacques Verger,
comme Les gens de savoir dans l'Europe de la fin
du Moyen Age (1997) et Culture, enseignement et
société en Occident aux XIIe et XIIIe siècles (1999)
l’objectif s’est systématiser les différences entre
les concepts Intellectuels et Gens du Savoir. À la fin
du texte il y a une présentation de l’Anthropologie
Scolastique comme un domaine qui posibilite
l’analyse de la “conscience de soi” des penseurs
entre le XIIème et le XIVème siècles. La conclusion:
analyser cette problématique a partir de
l’Anthropologie Scolastique peut indiquer un
chemin vers l’histoire sociale (histoire serielle) ou
vers l’histoire intellectuel (l’atuaction des
penseurs et leurs productions).
Palavras-chave: Universidades Medievais;
Tomás de Aquino; Intelectuais.
Mots-clés: Universités Médiévales – Tomas
d’Aquin - Intellectuels.
● Enviado em: 08/04/2014
● Aprovado em: 10/11/2014
*
Dr. em História. Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esse texto faz parte de uma série de reflexões teóricometodológicas a partir do projeto Os Tempos da Santidade: Processos de Canonização e Relatos
Hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV). Pesquisa financiada pela FAPERGS.
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Introdução:
Entre tantas palavras: eruditos, doutos, clérigos, pensadores (a terminologia
do mundo do pensamento sempre foi vaga), essa designa um meio de
contornos bem definidos: o dos mestres das escolas. Anuncia-se na Alta
Idade Média, desenvolve-se nas escolas urbanas do século XII, desabrocha a
partir do século XIII nas universidades. Designa aquele cujo ofício é pensar
e ensinar seu pensamento. Essa aliança da reflexão pessoal e de sua
difusão num ensino caracteriza o intelectual.1
Com essas palavras Jacques Le Goff iniciou seu ensaio sobre Os Intelectuais na Idade
Média. O texto publicado em 1957 serviu como referência para muitos historiadores que
enveredaram pelas análises da produção teológico-filosófica ou, sem anacronismos, científica
durante o período medieval. Sintetizando: mestres das escolas que tem como ofício pensar e
ensinar seu pensamento a partir do ensino.
Vinte e sete anos após a publicação da primeira edição, em 1984, o autor escreveu um
prefácio à segunda edição, que sairia no ano seguinte. Sua preocupação foi justificar o porquê
de reeditar o livro sem alterações significativas após os debates em torno da noção de
intelectual. Seria anacrônico para a Idade Média? Ao que responde categoricamente: não. Para
Le Goff, o uso do termo foi inicialmente pensado para “deslocar a atenção das instituições para
os homens, das ideias para as estruturas sociais, as práticas e as mentalidades, de situar o
fenômeno universitário medieval numa longa duração”.2 Sobre este aspecto, então,
poderíamos perguntar: a que se refere Jacques Le Goff como modificações e avanços no trato
do tema do “intelectual” entre a publicação do livro em 1957 e o prefácio de 1984? Com os
estudos mais recentes a questão ganha ainda mais fôlego, o que faz com que a análise da
historiografia dos anos 1960-1970 não necessariamente responda satisfatoriamente o que
pretendemos com este texto, a saber, uma análise sobre os intelectuais na Idade Média.
Consideraremos textos e reflexões dos últimos anos do século XX e o início do século
XXI, na historiografia francesa, para responder a essas perguntas. Tratamos de um percurso
historiográfico que se inicia nos anos 1950-1960 – com os textos de Jacques Le Goff –
passamos pelos textos de Jacques Verger, principalmente os do final dos anos 1990, e
chegamos à fundação e atuação do Grupo de Antropologia Escolástica, a partir de 1993.
1
2
LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 23.
IDEM. Ibidem. p. 07.
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O intelectual segundo Jacques Le Goff:
A obra Os Intelectuais na Idade Média foi publicada originalmente em 1957, em francês.
Em Portugal foi lançada uma edição nos anos 1970 e, no Brasil, o texto foi publicado nos anos
1990 e, mais recentemente, em 2003. O autor caracteriza o texto como um ensaio. O texto está
dividido em três partes bem demarcadas: o século XII, o século XIII e os séculos XIV e XV.
Considerando: nascimento, maturidade e declínio, respectivamente. Partes precedidas por
uma breve introdução na qual Le Goff apresenta as características citadas anteriormente e
complementa: “erudito e professor, pensador por ofício”, “argumentador”, “científico” e
“crítico”.3 Além dessas características um traço não pode ser negligenciado na ora de Jacques
Le Goff sobre os intelectuais: sua relação com as cidades. O autor estabelece uma ligação
direta entre o aparecimento e a atuação desses personagens ao desenvolvimento urbano a
partir do século XII. Isso não significa que Le Goff exclua as cidades do mundo medieval na
Alta Idade Média. O que o autor defende é que o fenômeno urbano do século XII “modificou
então, profundamente, as estruturas econômicas e sociais do Ocidente”, além de “sacudir as
estruturas políticas” a partir do movimento comunal.4 A atuação dos intelectuais deve ser
observada nas cidades.
Na primeira parte do ensaio, o autor desenvolve esse argumento e procura, a partir dos
mestres da Escola de Chartres, “traços do intelectual nascente”. 5 A escola da catedral de
Chartres foi fundada por Fulbert de Chartres (960-1028) e tornou-se um importante local de
estudos sobre textos platônicos e das artes liberais, principalmente o Quadrivium (aritmética,
geometria, música e astronomia). Pode-se, então, caracterizar essa “escola” como um
importante centro de estudo das “coisas”, ou da parte “prática” das artes liberais. Afinal, o
Trivium (gramática, retórica e lógica) centrava-se nos estudos sobre as “palavras”. É
importante ressaltar que prática, neste caso, significa observar.
Le Goff destaca que, entre os chartrianos, as tentativas de equação entre Natureza –
como mater generationi – e Deus, onipotente, geraram debates e controvérsias na medida em
que a primeira era considerada perfeita e fecundante. Para alguns, isso entrava em choque
com a onipotência e onisciência de Deus, para outros, não. Outro elemento que caracterizou o
pensamento chartriano, para Le Goff, foi a preocupação e o interesse no homem como ser
racional. A esse interesse o autor definiu que o “humanismo chartriano” sintetizou que: “o
3
4
5
IDEM. Ibidem. pp. 25-26.
IDEM. Ibidem. p. 31.
IDEM. Ibidem. p. 74.
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homem que é natureza, que pode compreender a natureza segundo a razão, também pode
transformá-la por sua atividade”.6 Nesse processo de identificação e percepção do homem
como natureza e sua atividade transformadora os intelectuais (para manter a nomenclatura
dada pelo autor) vão reivindicar, também, sua atividade de ensinar como um ofício, uma arte:
O intelectual urbano do século XII se sente como um artesão, como um homem
de ofício comparado aos outros das cidades. Sua função é o estudo e o ensino
das artes liberais. Mas o que é uma arte? Não é uma ciência, é uma técnica. Ars
é techné. É tanto a especialidade do professor como a do carpinteiro ou do
ferreiro. 7
Ao identificar-se como artesão o intelectual vai reivindicar direitos de atuação e
autonomia profissional. Nesse processo de identificação está a chave para o entendimento
e/ou discussão sobre a (im)pertinência do uso da noção de intelectual para o período
medieval. Esse processo vai se estruturar de forma significativa no século XIII e levará à
identificação de um estatuto jurídico-profissional, a universitas, um espaço específico de
atuação do intelectual, a universidade.
Na segunda parte da obra, Le Goff, então, apresenta o que foi definido como “a
maturidade e seus problemas”. A primeira frase corrobora com a citação anterior: “O século
XIII é o século das universidades porque é o século das corporações”.8 Para expor a
“institucionalização” dessas corporações universitárias e a constante necessidade de
reivindicação por autonomia o autor considera dois polos de conflito: os poderes eclesiásticos
e os poderes leigos.
Essa institucionalização conflituosa assim o é por motivos como a definição do próprio
ofício e suas responsabilidades: a quem caberia o ensino? O autor responde que ensinar
caberia aos clérigos e esses são tratados pelos bispos como súditos. No texto percebemos um
processo de hierarquização das responsabilidades sobre o ensino a partir da autoridade que
os bispos tinham de delegar a um de seus oficiais o poder de chefiar as escolas, os scolasticus.
Esse delegado será chamado de chanceler, que, dentre outras funções no século XII, tinha a
autoridade para conceder a licença docente. Autoridade esta que é perdida progressivamente
no século seguinte com a atribuição da função aos mestres das Universidades, como acontece
em Paris em 1213. Essa perda de autoridade do chanceler também constitui a diminuição do
poder clerical sobre o ensino.9 Em relação aos poderes leigos, as universitas vão ser de
6
7
8
9
IDEM. Ibidem. p. 83
IDEM. Ibidem. p. 88.
IDEM. Ibidem. p. 93.
IDEM. Ibidem. p. 95
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interesse dos reis na medida em que são fornecedoras em potencial de mão de obra, riqueza e
prestígio. Há uma tentativa de incorporação dos membros dessas corporações aos quadros
oficiais do reino e de enquadramento dos mesmos à autoridade real. 10
Essas disputas vão ocasionar intervenções diversas de Papas e Reis, proporcionarão
eventos violentos, como assassinatos, e movimentações coletivas, como as greves. No entanto,
veio de um pontífice o que muitos consideram como o reconhecimento da autonomia
universitária no século XIII: a Parens scientiarum, de Gregório IX. Datada de 1231 e
ocasionada pela interrupção dos cursos na Universidade de Paris desde 1229 essa bula
autoriza os mestres nos seguintes termos:
Nós concedemos o poder de estabelecer sábias constituições ou regulamentos
sobre os métodos e horários das aulas, das discussões […] sobre as cerimônias
fúnebres, sobre os bacharelados: quem deve dar as aulas, em qual hora e qual
autor escolher; sobre a taxação dos aluguéis e interdição de algumas casas; o
poder de castigar aqueles que se rebelarem contra essas constituições ou
regulamentos excluindo-os.11
Ao autorizar, nesses termos, a organização dos mestres da Universidade o papa lhes
conferia, de fato, autonomia? Le Goff responde que as intervenções não foram desinteressadas
e que se trata, de fato, tutelar, controlar a Universidade nas jurisdições eclesiásticas. Pois, pelo
mesmo documento, os estudantes que cometam crimes deviam ter suas penas cumpridas na
prisão do bispo, ficando o chanceler proibido de possuir uma prisão particular. Também era
vedada a prisão de estudantes por dívidas e também que o chanceler cobre submissão aos
docentes que recebem a licença docente. 12
A definição dessas corporações foi também elemento de disputas internas. Disputas
estas que, segundo Le Goff, contribuem para dificultar o entendimento inicial sobre o que
seriam as corporações universitárias:
Trata-se, em primeiro lugar, de uma corporação eclesiástica. Ainda que seus
interesses estejam longe de pertencer todos às ordens; ainda que, cada vez
mais, ela vá abrigar em suas fileiras puros leigos, os universitários passam
todos por clérigos, estão ligados às jurisdições eclesiásticas, mais ainda: à
jurisdição de Roma. Nascidos de um movimento que caminhava para o
laicismo, integram-se à Igreja, mesmo quando buscam, institucionalmente,
dela sair.13
10
11
12
13
IDEM. Ibidem. p. 96.
Essa exclusão poderia ser a excomunhão. DENIFLE, H; CHATELAIN, E. Chartularium Universitatis
Parisiensis, t.1, Paris, 1889. pp. 136-139.
A análise da Parens scientiarum foi tema de conferência “As greves nas universidades medievais”
ministrada pelo Dr. Sylvain Piron (EHESS/Paris) em Porto Alegre no II Encontro Estadual de Estudos
Medievais do Rio Grande do Sul. O evento foi realizado em setembro de 2012. Texto inédito.
LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. p. 100.
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Institucionalmente, a busca pela saída da Igreja, considerando os termos desse
historiador, levou à organização das corporações universitárias. Os estatutos das
Universidades são importantes portas de acesso para os usos feitos pelos mestres da
autorização explicitada na Parens scientiarum e, principalmente, para a organização
administrativa e escolar/pedagógica. Isso significa que os conflitos não se encerraram com o
posicionamento pontifício. Podem ser listadas algumas outras controvérsias que foram
fundamentais para o processo de constituição das Universidades como corporações. Conflitos
que duraram cerca de um século se considerarmos os embates ocorridos a partir de 1250.
Jacques Le Goff menciona essas controvérsias ao tratar das críticas dos clérigos
seculares em relação à ocupação de espaços nas Universidades por clérigos regulares e
membros de ordens mendicantes, principalmente dominicanos e franciscanos. As
incompatibilidades denunciadas: a obtenção da licença docente para lecionar teologia fora da
faculdade de teologia e a ocupação de mais de uma cátedra na Universidade, quando os
estatutos regulamentavam que poderiam ter apenas uma. Mas a principal queixa era a quebra
e violação dos estatutos nos casos das greves, pois, os mendicantes não interromperam os
cursos quando da paralisação das atividades, principalmente, em 1253. Isso é importante na
medida em que, de acordo com o que foi outorgado por Gregório IX em 1231, essa
desobediência poderia gerar a excomunhão. Entre 1253 e 1256 os Papas alternaram entre a
condenação da atuação dos mendicantes e a condenação da postura dos mestres da faculdade
de artes.14 Outro elemento foi detonador de conflito: qual era a relação desses mestres com o
dinheiro? Como sobreviver? Salário, esmola ou benefício? A garantia da gratuidade do ensino
– conforme determinação do III Concílio de Latrão (1179) – e a concessão de benefício aos
professores criava um vínculo e uma dependência material dos professores à Igreja. Com a
expansão do número de professores e da demanda gerada pelo número de alunos o benefício
da Igreja não foi mais suficiente e, no século XIII, foram diversificadas as formas de
manutenção do ensino: mecenas, bolsas, doações, pagamento dos salários dos professores
pelos alunos etc.15
A segunda parte do ensaio Os Intelectuais na Idade Média é também dedicada à
organização pedagógica das/nas universidades, por exemplo: programas de estudos,
métodos, exames, vocabulários, equipamentos. Os programas e os exames atendiam as
14
15
FORTES, Carolina C. “A Querela contra os mendicantes e os estudos na Ordem dos Pregadores (12501260)”. IN: MATTOS, C. M. F.; CRUXEN, E. B. e TEIXEIRA, I. S. (Orgs). Reflexões sobre o medievo II: Práticas
e Saberes no Ocidente Medieval. São Leopoldo: Oikos, 2012. pp. 131-142.
LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. pp. 124-135.
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especificidades de cada tipo de curso e licença conseguida, além das formações direcionadas.
Sendo assim, o curriculum da faculdade de Artes era diferente do curriculum da faculdade de
Teologia, de Medicina e Direito. Os exames e o tempo de preparação para os mesmos idem.
Podem ser destacados, no entanto, dois princípios: o uso da dialética e as Questões.
Para tentar aplicar o que Le Goff escreveu sobre esses elementos apresentamos uma sugestão
de registro e sistematização para textos da escolástica a partir da Suma Teológica (12501270) especificamente da Questão 1 da Primeira Parte:
TABELA 1: Leitura e Sistematização do conteúdo da Suma Teológica.
PARTE I
SEÇÃO: A Teologia como ciência
PRÓLOGO: “Nos propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais apropriado à formação de
iniciantes.” (p.136.)
QUESTÃO 1 : A DOUTRINA SAGRADA O QUE É?
ARTIGO 1: É NECESSÁRIA OUTRA DOUTRINA ALÉM DAS
QUAL SEU ALCANCE?
DISCIPLINAS FILOSÓFICAS?
COMEÇO DO ARTIGO: PARECE QUE NÃO É NECESSÁRIA OUTRA DOUTRINA
OBJEÇÃO 1: “o homem não deve esforçar-se para alcançar RÉPLICA 1: “o que é revelado por Deus, deve-se acolher na
aquilo que está acima da razão humana ... o que se encontra fé” (p.139)
à altura da razão é ensinado suficientemente nas disciplinas
filosóficas.” (p.136)
OBJEÇÃO 2: “nas disciplinas filosóficas se trata de todos os
entes, e mesmo de Deus; eis por que uma parte da filosofia é
chamada de teologia, ou ciência divina, como mostra o
Filósofo, no livro VI da Metafísica.” (p.138)
RÉPLICA 2: “a diversidade de razões no conhecer determina
a diversidade das ciências ... A teologia, portanto, que
pertence à doutrina sagrada difere em gênero daquela que é
considerada parte da filosofia.” (p.139)
ARG. S.C.: “uma Escritura inspirada por Deus não faz parte das disciplinas filosóficas, obras da razão humana. Portanto, é útil
que além das disciplinas filosóficas, haja outra ciência inspirada por Deus.” (p.1378)
RESPOSTA: “Era necessário existir para a salvação do homem...uma doutrina fundada na revelação divina. Primeiro, porque
o homem está ordenado para Deus, como para um fim que ultrapassa a compreensão da razão...a verdade sobre Deus
pesquisada pela razão humana chegaria a apenas um pequeno número, depois de muito tempo chegaria em erros...do
conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus.” (p.138)
Temos acima, então, um texto produzido no contexto universitário do século XIII e
herdeiro de uma prática de exposição e argumentação: a dialética. Entre os pensadores do
período medieval, é de Pedro Abelardo em sua obra Sic et Non (1122) que essa sistematização
adquire uso e se expande.
Como explicar, então, uma Quaestio? Há a exposição de um tema – a teologia como
ciência – e uma questão – se é necessária outra doutrina além das disciplinas filosóficas.
A interrogação é propositiva para a etapa seguinte: a da exposição do argumento inicial e suas
objeções. Neste caso, o teólogo inicia negando a necessidade de outra doutrina. Essa primeira
afirmação poderíamos chamar de tese. A isso seguem dois argumentos. Na segunda objeção
encontramos também um recurso praticado em demasia: a auctoritas. No caso, Aristóteles. A
autoridade é sinal de reconhecimento da tradição e do conhecimento cumulativo sobre o
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tema. Na obra de Tomás de Aquino encontramos diversos recursos a esse instrumento, seja
para citar um autor não cristão, como Aristóteles, seja para reverenciar a tradição cristã,
citando Agostinho, Gregório Magno e outros. Em seguida, expõe-se o argumento em sentido
contrário, o que poderíamos chamar de antítese. Passagem que é seguida pela solução da
questão (resposta/síntese) e finalizada pelas réplicas às objeções. Ou seja, temos um
argumento defendido a partir da análise de elementos favoráveis e contrários.
É importante ressaltar que apresentamos apenas a forma como Tomás de Aquino
desenvolveu o primeiro artigo da Questão. Além desse, outros 9 são elaborados para definir,
discutir e caracterizar a Teologia como ciência. Desses todos, acreditamos que é significativo
para o entendimento da relação palavra/coisa, disciplinas mais teóricas (trivium) e práticas
(quadrivium) a forma como o teólogo define que a teologia é superior às outras ciências por
ser especulativa e prática simultaneamente. Especulativa pois seus princípios são revelados
por Deus; prática por visar a “bem-aventurança eterna”.16
A partir do que foi apresentado até o momento podemos sintetizar o que Jacques Le
Goff considera como maturidade e seus problemas nessa segunda parte da obra: temos um
grupo de homens pensando sobre uma prática específica e que gera um produto. Daí sua
reivindicação como uma corporação e sua autonomia. Para a conquista desses objetivos os
intelectuais envolveram-se em problemas externos (com a Igreja e com os Reis) e internos
(seculares e regulares). Ao mesmo tempo, elaboraram formas específicas de expressão: a
Quaestio, a dialética, o recurso às autoridades etc são exemplares nesse sentido. Segundo Le
Goff, “o intelectual universitário nasce a partir do momento em que põe em questão o texto,
que não é mais do que uma base, e então de passivo se torna ativo. O mestre […] Dá suas
soluções, cria. Sua conclusão [...] é obra de seu pensamento”. 17
A última parte do ensaio, intitulada “Do universitário ao humanista”, finaliza a
concepção, digamos, “orgânica” que Le Goff atribui a seu ensaio (nascimento, maturidade e
declínio). O autor considera que as indefinições e conflitos do período da maturidade levaram
16
17
I, Q.1, a.5, sol., vol. 1, p.144. Nesta citação outra especificidade: como os textos estão divididos em
Questões, artigos, objeções e réplicas, convencionou-se citá-los como nesta situação onde se lê: I –
primeira parte (da Suma Teológica), Q. 1 (primeira Questão), a.5 (artigo 5), sol. (solução à Questão).
Volume e página são secundários na medida em que variam as edições usadas pelos pesquisadores, mas
a numeração das Questões a disposição dos artigos não. Pelo que foi explicado é importante o leitor ter
em mente essa estrutura, pois, ao citar uma passagem de uma Questão é importante situar essa
passagem na sequência dos argumentos, afinal, eles podem assumir um “sentido contrário” ao final do
mesmo texto. É comum encontrarmos em textos de não especialistas citações nas quais temos acesso
apenas à página e volume das edições usadas. Isso inviabiliza a compreensão do argumento na medida
em que o leitor não tem acesso ao “lugar” da citação na estrutura do texto. TOMÁS DE AQUINO. Suma
Teológica. São Paulo: Loyola, 2001-2006. 9vols.
LE GOFF, J. Os Intelectuais…op. cit. p. 120.
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a uma, digamos, progressiva elitização dos universitários (o que vai culminar, por exemplo,
com a formação de uma aristocracia hereditária nos séculos XIV e XV). Também, em tempos
de crise, serão reduzidos os benefícios e a cobrança de taxas e pagamentos pelos alunos
variou de acordo com as vicissitudes locais. Outro elemento importante e que merece
destaque nas conclusões de Le Goff é a multiplicação das Universidades e sua “nacionalização”
– Universidades na Península Ibérica, na Península Itálica, regiões da atual Bélgica, Alemanha
etc. Mas, talvez, a explicação mais impactante seja a que sintetiza o primeiro impacto do “fim
das universidades medievais”: o isolamento do intelectual. Segundo Le Goff, os Renascentistas
fecharam-se em si mesmos, o que provocou, de início, uma maior separação entre o
intelectual e o não letrado. Isto porque a função de ensinar foi cada vez mais desvinculada do
ato de pensar. Para o historiador francês a invenção da imprensa modifica, em parte, esse
quadro, pois segue favorecendo um grupo restrito. A Contrarreforma alterou um pouco esse
quadro, mas a principal modificação se deu na percepção do intelectual sobre si mesmo ao
separar ciência do ensino: “De um lado, o tumulto das escolas, a poeira das salas de aula, a
indiferença quanto ao cenário do trabalho coletivo, do outro, tudo é ordem, formosura, é luxo,
é calma, e é volúpia pura”.18
Outras abordagens: a obra de Jacques Verger
Diferentemente de Jacques Le Goff, que publicou seu principal estudo sobre o tema das
universidades e intelectuais no final da década de 1950, Jacques Verger produziu de 1973 a
2006 inúmeros textos sobre o tema. Seu primeiro livro foi As Universidades na Idade Média
(1990) e o mais recente foi Des nains sur des épaules de géants: Maîtres et éléves au Moyen Âge,
com Pierre Riché. (2006) De sua autoria, em língua portuguesa, também foram publicados:
História das Universidades, com Christophe Charle, (1996); Homens e Saber na Idade Média
(1999) e Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII (2001).19
Os trabalhos, em geral, abordam os mesmos conteúdos tratados por Jacques Le Goff. As
diferenças, no entanto, concentram-se no fato de Verger considerar a importância do século
XII e legar ao século XIII mais à questão das Universidades do que propriamente um “apogeu”
ou “maturidade”.
O livro Homens e Saber na Idade Média foi publicado originalmente em 1997 na França.
Isso já nos possibilita apontar o curto intervalo entre a publicação em francês e a tradução
18
19
LE GOFF. Os Intelectuais…op. cit. pp. 197.
Os títulos que estão em português e as respectivas datas são referentes às traduções brasileiras.
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brasileira. Diferentemente dos quase 30 anos em relação à obra de Jacques Le Goff, temos
apenas 2 anos. A obra é dividida em três partes e tem como principal objetivo “na descrição,
por uma perspectiva comparada, de um fenômeno observável em escala europeia”.20 O autor
classifica como “perspectiva comparada” a possibilidade de abordar o tema não só na França –
embora admita que esta seja predominante em relação às demais regiões – mas também na
Inglaterra, Itália, Alemanha, “reinos ibéricos”. Frisamos os “reinos ibéricos” entre aspas, pois é
uma aparente contradição: considerando que Portugal e Espanha tornam-se Estados antes
que muitos desses outros países, como Itália e Alemanha, o autor não usa – ao menos na
tradução brasileira – Portugal e Espanha. Outro elemento reforça essa contradição e alerta
também para a modificação do título no Brasil. No original: Les Gens de Savoir dans l’Europe de
la fin du Moyen Âge. Em tradução literal: As Gentes de Saber na Europa do final da Idade Média.
Na tradução publicada: Homens e Saber na Idade Média. Há uma modificação explícita do
principal elemento que caracteriza a obra: os Homens (ou as gentes) DE Saber e não
separadamente Homens e Saber. Além disso, há uma generalização no título publicado em
português que não só não existe no título original como a introdução do livro explica o sentido
de e para “final da Idade Média”:
Por “final da Idade Média” nós compreendemos essencialmente os séculos XIV
e XV, considerando que essa época foi precisamente marcada pela emergência,
ou, de qualquer modo, pela afirmação do grupo social que nós desejamos
estudar, e ao mesmo tempo pelo surgimento de uma documentação que torna
possível esse gênero de estudos.21
Sobre esta passagem é importante destacar, além da evidente modificação do sentido
do título do texto, atribuindo-lhe uma generalização de mil anos, dois termos: “grupo social” e
“documentação”. Neste sentido, o autor também aponta como principal problema do título (no
original): a expressão gens de savoir. Algumas constatações, segundo Verger:
1. A expressão não existia na Idade Média. Termos equivalentes: vir litteratus, clericus,
magister, philosophus. Termos considerados limitados e por isso não usados;
2. Sobre a palavra “intelectuais”: “anacronismo outrora voluntária e brilhantemente
assumido por Jacques Le Goff… não seria suficientemente apropriada para designar
o conjunto de homens” estudados na obra;22
20
21
22
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 14.
IDEM. Ibidem.
IDEM. Ibidem. p. 15.
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3. Outros termos, como: diplomados, graduados. Também considerados restritivos
por excluir os letrados que não necessariamente tiveram instrução escolar
associada a títulos acadêmicos.
A posição de Verger em relação à definição/conceituação para gens de savoir
corresponde a um duplo atendimento de critérios:
a. Dominar um tipo e em certo nível de conhecimento;
b. Reivindicar competências práticas fundadas no conhecimento adquirido.
Desta forma, considerando os recortes propostos pelo título do livro (séculos finais da
Idade Média, leia-se: XIV e XV) e o duplo critério, conclui-se que, para Verger, o “grupo social”
que lhe interessa só adquiriu uma forma e consistência (identidade?) de grupo após um longo
percurso de controvérsias e querelas nos séculos precedentes. A partir dessas definições e
exposições de limitações para termos contemporâneos aos sujeitos históricos estudados,
Verger defende que a expressão gens de savoir é a mais “neutra” e menos “problemática”.
Nas três partes da obra são apresentadas e “descritas” – como é objetivo do autor – as
características que dão forma aos dois critérios: dominar saberes específicos e a reivindicação
das competências oriundas desse domínio. Interessa, portanto, a última parte do livro, pois é
nos capítulos finais que Verger expõe como se deu esse processo no final da Idade Média. O
título é sugestivo: “Realidades sociais e imagem de si”. E, no capítulo que abre a parte, o autor
revela o outro tópico que destacamos na longínqua citação: “documentação”. Em outras
palavras: nesta terceira parte Verger está interessado em analisar como esses homens DE
saber produziram registros que permitam que hoje possamos estudá-los como tais, e
principalmente, como tinham consciência de suas características específicas.
A documentação mais propícia para a identificação desse grupo, segundo o texto, é a
que permite estabelecer elos de parentescos: contratos, inventários e testamentos (fontes
notariais); cartas, súplicas pontificais e arquivos judiciários. Para Verger, essa diversidade
favorece a constituição dos “dicionários prosopográficos”, mas é limitada. A principal questão
que pode surgir dessas séries opacas construídas é a consideração das estruturas familiares e
suas ramificações. Essas estruturas e ramificações, no entanto, isoladamente não explicam
suficientemente a tomada de consciência e/ou a constituição de um grupo se não colocadas
em perspectivas cruzadas e em redes. 23
23
IDEM. Ibidem. pp. 223-228.
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O autor aponta, a partir dessa postura e forma de ler a documentação, dois possíveis
caminhos para a constituição de um grupo de elite no final da Idade Média: a origem no
“mercado” e o recrutamento no interior da “nobreza”. As duas situações são fluidas e de difícil
percepção, mas Verger considera que, no primeiro caso, trata-se do filho do mercador que
teve seus estudos financiados pelo próprio pai. O objetivo é conseguir “um nível de fortuna
mais elevado, pelo menos uma situação mais estável e honrada, eventualmente ela mesma
uma etapa em direção à nobilitação”.24 A segunda situação compreende uma complexa
“progressiva e global adaptação das elites sociais às mudanças da cultura do Estado pela
conjunção da antiga ideia de nobreza e da valorização das novas formas, civis ou eruditas de
serviço do príncipe ou da Igreja”.25 Homens de saber recrutados nas elites – econômicas e
aristocráticas – mas que permitiam, em certa medida, mais mobilidade e possibilidade de
ascensão se comparadas às questões feudais e de atribuição de funções, como a cavalaria e a
guerra por exemplo.26
O autor propõe uma lista de 4 elementos que caracterizam os homens de saber:
1. Aspecto urbano;
2. Profissionalização;
3. Politização;
4. Cultura e relação dos homens de saber com esse saber.
Acreditamos que Verger expôs seu entendimento sobre a questão ao afirmar que:
Se, de fato, o mundo dos homens de saber, que era, no final das contas,
bastante diferente de um país para outro, foi, até o final da Idade Média, um
dos meios mais flexíveis e mais abertos na sociedade medieval, ele, entretanto,
teve tendência, como todos os grupos constitutivos das elites de seu tempo, a
se fechar sobre si próprio e a tornar-se uma casta hereditária. […] Ao tempo
dos colegas, sucedeu-se aquele dos herdeiros, o espírito de família vinha
driblar o espírito de corporação.27
O processo indicado na citação acima, de transformação de uma corporação em uma
casta hereditária passa, portanto, pela tomada de consciência sobre as especificidades desse
24
25
26
27
IDEM. Ibidem. p. 237.
IDEM. Ibidem. p. 241.
Jacques Verger propõe o levantamento de documentação que possibilite a construção de séries
documentais e trata da transformação das corporações de ofício em castas hereditárias a partir da
prosopografia. Sobre essa questão indicamos alguns textos: ALMEIDA, C. C. de . “Poder e sociedade: as
relações entre a universidade e o Conselho da cidade de Colônia em fins da Idade Média e começo da
Idade Moderna”. Notandum (USP), v. 18, p. 07-24, 2008. BULST, N.; GENET, J-P. (dirs). Medieval lives and
the historian: Studies in Medieval Prosopography. Kalamazoo: Western Michigan University, 1986.
VERGER, J. Homens e saber…op. cit. p. 237.
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grupo. Para o autor, essa conscientização não faz com que os homens de saber se separem de
outros grupos de elite que compõem, ou seja: do clero e da nobreza. 28
Na obra Cultura, Ensino e Sociedade… o autor confirma a expressão usada na obra
anterior. O texto restringe-se à chamada cultura escolar ou como uma história da escola e do
ensino, considerando políticas de organização da escola enquanto instituição e dos métodos e
programas de ensino. Sendo assim, Verger discorre sobre temas como a importância de
Abelardo, os programas nas diferentes universidades e os métodos, como a escolástica, a
dialética e a quaestio. Nesta obra destacamos a parte final, na qual o autor aborda os conflitos
institucionais e, principalmente, a breve reflexão sobre “a consciência de si” dos homens de
saber ao final do século XIII. É importante ressaltar que a tomada de consciência perpassa e é
perpassada pelos conflitos.29
Em relação aos conflitos, Verger afirma que eles giraram em torno das referências
bíblicas, a gramática latina e Aristóteles. Mas o conflito não é necessariamente algo nocivo à
Universidade na Idade Média. Afinal, como afirma o autor, o debate e o antagonismo estavam
no cotidiano dos exercícios: a dialética, a quaestio e a disputatio. A reivindicação por
autonomia – inicialmente como corporação – também implicava na autonomia e autoridade
daqueles que “disputavam” em estabelecer os conteúdos e desenvolver suas teses. Para
Verger, Tomás de Aquino e sua trajetória são elementos significativos desse processo, tanto
de constituição de um grupo, quanto da tomada de consciência desse grupo sobre si mesmo:
desde sua posição em relação à querela dos anos 1250, passando pelo posicionamento contra
os averroístas, na década de 1270 e, mesmo após sua morte, no evento das condenações de
1277.30
“Consciência de si” e a Antropologia Escolástica para entender os “intelectuais” na
Idade Média
A preocupação com a “consciência de si” não é um tema que se deve exclusivamente a
Jacques Verger. Jacques Le Goff, anos antes, também se interessou pela questão ao se
perguntar “Qual consciência de si teve a universidade medieval?”. Sua reflexão e proposta de
resposta são diferentes das oferecidas por Jacques Verger. Para Le Goff, um caminho possível
é analisar obras e personagens em espaço localizado. O autor analisou obras e
28
29
30
IDEM. Ibidem. p. 258.
IDEM. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente: nos séc. XII e XIII. Bauru, SP: EDUSC, 2001. pp. 277-316.
IDEM. Ibidem. pp. 277-295.
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personagens/mestres da universidade de Paris, os conflitos doutrinários e corporativos. A
conclusão de Le Goff não é diferente da proposta contida em seu ensaio Os intelectuais…: a
visão orgânica de nascimento, maturidade e declínio permanece.31
Mesmo não concordando com a proposição que Jacques Le Goff aponta para a
abordagem da temática, é importante considerar suas contribuições em relação ao
desenvolvimento de um conjunto de estudos que culminou com a criação de dois grupos de
pesquisa: o Group d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (1978) e, a partir dos
estudos de um de seus orientandos – Alain Boureau – o Group d’Anthropologie Scolastique
(1993). Interessa-nos apresentar algumas características de novas possibilidades de
abordagem dos homens de saber e/ou intelectuais da Idade Média. Abordagem esta que foi
definida por Sylvain Piron nos seguintes termos: considerar a produção dos sábios como
acesso principal para entender acontecimentos e “os termos nos quais os indivíduos podiam
compreender a si mesmos”.32 Dessa breve citação podemos definir, então, a antropologia
escolástica como uma perspectiva de análise que considera as reflexões sobre “o homem” a
partir de um local específico, ou seja, o âmbito universitário europeu, entre 1150-1350.
A obra Satan Hérétique, de Alain Boureau, pode ser útil para tentar entender os usos de
uma história intelectual para o entendimento do que os intelectuais podiam pensar sobre si
mesmos, e, também, sobre o homem, de forma mais ampla. A história intelectual, no livro
Satan Hérétique, é um princípio de investigação que assume duas trilhas: uma que percorre a
formação intelectual dos autores estudados (teólogos e mestres das universidades medievais)
e outra, que analisa possíveis facetas para a definição de um mesmo fenômeno (as possessões
demoníacas, magia, milagres). Nos sete capítulos da obra percebemos esses dois caminhos
quando identificamos, por exemplo, o interesse de Alain Boureau nas investigações “jurídicas”
sobre os demônios (inquisição – suspeitas de pactos e bruxarias – e canonização – milagres de
cura de possessões demoníacas), tema dos capítulos um e cinco. Além disso, a análise, em
todos os capítulos, dos diferentes usos e significados para os pactos demoníacos e das crenças
nas possessões. É importante ressaltar como Alain Boureau identifica a problemática
escolástica da demonologia não apenas como um conjunto de reflexões de teólogos sobre o
31
32
LE GOFF. Pour une autre Moyen Âge: Tems, travail et culture en Occident (18 essais). Paris: Gallimard,
1977. Pp. 181-197.
PIRON, S. “Démonologie et anthropologie scolastique”. Cahiers du Centre de recherches historique, n.37,
avr/2006, pp. 173-179. Acesso em 01 de abril de 2014. Disponível em : http://halshs.archivesouvertes.fr/docs/00/44/99/57/PDF/Demonologie_et_anthropologie.pdf.
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tema. O autor analisa, também, as consultas realizadas por Papas, como que João XXII faz em
1320 sobre a magia e o tratamento jurídico nos processos de canonização. 33
Essa forma de abordar um objeto – a crença na possibilidade de atuação/pacto entre
homens e demônios – a partir da produção intelectual pode ser observada também em outros
trabalhos desse autor. Em um artigo no qual se propõe a analisar a monumental obra de
Alexander Murray sobre o suicídio34 e o estimulante estudo de Peter Biller sobre o controle da
natalidade na Idade Média35, Boureau oferece elementos mais precisos sobre como a história
intelectual pode contribuir significativamente para o estudo das populações na Idade Média. E
sobre a produção, nas palavras de Piron, das categorias que os sujeitos tinham para
compreender a si mesmos. Trata-se do texto “Uma história intelectual das populações
medievais”, publicado nos Annales em 2006.36 O historiador francês faz uma leitura sobre a
metodologia de trabalho de Murray e Biller e identifica dois caminhos profícuos: ao analisar o
difícil objeto “suicídio”, Murray elaborou um método de análise que mescla o uso de crônicas,
documentação jurídica e hagiográfica. Para Boureau, os interditos em relação ao suicídio
mascaram os casos e o número de quantas pessoas tiraram a própria vida será sempre
impreciso. A contribuição do historiador britânico, então, foi mostrar como questões, como o
suicídio, sobre as quais são impostos interditos e, por isso, não se exprimem diretamente,
aparecem em textos que tem, dentre outras funções, “registrar o que aconteceu” – seja no
âmbito cronístico, jurídico ou escatológico.37
O segundo caminho, a partir da obra de Biller, parte do seguinte princípio: o interesse
clerical em regulamentar o celibato para os padres e o casamento para os fiéis produziu uma
quantidade de reflexões e reflexos variados sobre temas como procriação e contracepção. 38
Biller centra sua análise nos textos teológicos e considera, segundo Alain Boureau, que
33
34
35
36
37
38
BOUREAU, A. Satan Hérétique: Histoire de la Démonologie (1280-1330). Paris: Odile Jacob, 2004. p. 128.
Obra que tivemos a oportunidade de traduzir para o português. Publicação pela editora da UNICAMP
prevista para 2014.
MURRAY, A. Suicide in the Middle Ages. 2vols. Oxford: Oxford University Press, 1998-2000. Há a indicação
de um terceiro volume, ainda inédito.
BILLER, P. The measurement of multitude: Populations in Medieval thought. Oxford: Oxford University
Press, 2000.
IDEM. “Une histoire intellectuelle des populations médiévales”. Annales HSS, janeiro-fevereiro, 2006, n.1
pp. 233-244.
IDEM. Ibidem. p. 242.
Por reflexões entendemos o conjunto de tratados jurídicos e teológicos abundantes, principalmente, a
partir do século XIII. Por reflexos entendemos o conjunto de textos para “exames de consciência”, que
ganharam força a partir da obrigatoriedade da confissão auricular a partir do século XIII. Muitos
manuais “ensinando” o exame de consciência e avaliação sobre o mesmo também oferecem inúmeras
situações passíveis de abordagem daqueles temas. É importante deixar evidente que não pensamos em
graus de importância aqui, como se as reflexões fossem superiores aos reflexos. Trata-se de um
uso/ocorrência simultânea entre aqueles séculos sem necessariamente hierarquias.
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…ces faits de population, en tant qu’ils traduisent une tendance jugée bonne
ou nécessaire, s’accompagnent nécessairement de justifications, de théories
spontanées, dont certains textes savants fournissent un analogue, cause et/ou
conséquence de la tendance considerée. 39
Essa afirmação é reveladora de uma abordagem epistemológica precisa: os textos estão
relacionados aos seus contextos e podem ser usados para definir, justificar uma tendência ou
surgir por causa de uma tendência. Nesse aspecto, então: a preocupação com o
celibato/casamento tornou-se uma tendência. Portanto, as reflexões eruditas sobre esses
elementos podem ser consideradas como indícios ou “sinais” importantes para entender o
processo histórico daquela preocupação. Nestes indícios que Biller encontrou a oportunidade
para analisar perspectivas sobre controle de natalidade na Idade Média.
A essas reflexões inserimos um estudo de Emanuele Coccia e Sylvain Piron sobre “uma
geração de intelectuais italianos” entre o final do século XIII e o início do século XIV. Os
autores deixam claro que excluíram das análises a “Itália religiosa” e o “componente
feminino”. O foco é na atuação de personagens definidos como “intelectuais leigos”.
A pergunta inicial do texto é: “Como podemos descrever Dante nos últimos anos de
vida (1320-1321)?”.40 Esse questionamento é revelador de vários aspectos e, talvez, o
principal – que marca uma diferença significativa em relação aos “intelectuais” dos nossos
tempos: os eruditos, homens de saber, intelectuais não estavam restritos a um único espaço
de atuação.
Dante tem tratados de retórica, política e, inclusive, alquimia. Dessa constatação os
autores concluem que a melhor forma para analisar personagens como Dante não é escolher
uma faceta, e sim, saber como articular todas elas e como elas se articulavam em seu tempo. A
proposta de Coccia e Piron, portanto, é estudar na sincronia diferentes manifestações, como “a
prática poética dos eruditos, as comunicações entre as disciplinas universitárias e o
engajamento na vida política, que, em geral, acontece junto às atividades cultas e literárias”. 41
Os autores identificam uma série de pensadores que atuaram de forma diversificada
em centros urbanos italianos entre 1290-1330. Consideraram a proeminência de Bolonha
nesse período. Identificaram que, a partir do século XIII, nessa cidade, há linhagens de
39
40
41
IDEM. Ibidem. p. 238.
COCCIA, E. e PIRON, S. “Poesia, ciência e política: uma geração de intelectuais italianos (1290-1330)”. In:
PEREIRA, N. M. ; ALMEIDA, C. C.; e TEIXEIRA, I. S.(Orgs). Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo: Oikos,
2009. p.60.
IDEM. Ibidem. p. 63.
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médicos e juristas que transmitiam para os filhos a clientela. 42 Também identificaram uma
predominância de leigos em relação a clérigos. O que faz da situação italiana bastante
diferente em relação a Paris, por exemplo. Mas o mais importante, nessa reflexão é: para
Coccia e Piron o modelo de “rede” é o mais adequado para pensar esse fenômeno, pois
“significa que ele [o fenômeno] é caracterizado pela prática do diálogo e pela circulação dos
homens entre diferentes vilas e de diversas maneiras”. 43
Esse texto difere da abordagem de Peter Biller na medida em que a identificação do
objeto não aconteceu necessariamente na produção erudita, em tratados de teologia, por
exemplo. Coccia e Piron identificam na documentação epistolar as redes e as reflexões sobre
inúmeros temas e, principalmente, sobre a criação de categorias que pudessem mostrar como
aqueles indivíduos se percebiam e percebiam seu tempo. Percebemos, então, que para esses
autores a identificação de um grupo de pensadores que viveu no mesmo período é um ponto
significativo para a abordagem dos intelectuais na Idade Média.
Considerações finais:
No decorrer dessas páginas propusemos um olhar sobre uma temática e uma
problemática que se confundem: como abordar as obras produzidas por pensadores no
período medieval? Como definir/conceituar esses pensadores: professores, mestres, doutores,
homens de saber, intelectuais? Para responder a essas perguntas analisamos duas teses
divergentes e um conjunto de publicações que dão a dimensão atual da questão, em uma
perspectiva.
Expliquemos.
A trajetória iniciou com a obra de Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média,
publicada em francês em 1957. Para este historiador, recentemente falecido, a condição
principal para entender os intelectuais: um grupo de homens – majoritariamente clérigos –
que refletia sobre sua atuação profissional e que reivindicava que o resultado de seu trabalho
fosse entendido como um produto. Por isso a questão da relação com o termo universitas, por
exemplo, acabou virando, tempos depois, sinônimo de Universidade. Destaca-se a relação
desses intelectuais com a Igreja e, portanto, com um “engajamento”. Também podemos
42
43
IDEM. Ibidem. p. 70. Recentemente foi publicado em português um interessante estudo de Patrick Gilli.
GILLI, P. “Dignidade e nobreza dos juristas : lugar e formação da ciência legal na Idade Média,
especialmente na Itália (séculos XII a XV)”. In: ALMEIDA, N. de B. e CANDIDO DA SILVA, M. (Orgs). Poder
e construção social na Idade Média: História e Historiografia. Goiânia: UFG, 2011. pp. 63-91.
COCCIA, E. e PIRON, S. “Poesia, ciência e política…op. cit. p. 72.
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afirmar que a concepção de Le Goff é analisar obras e personagens em um espaço localizado.
Uma crítica: o autor realiza sua abordagem a partir de uma perspectiva que podemos chamar
de “organicista”: nascimento, maturidade, declínio dos intelectuais.
Diferentemente, Jacques Verger – em produção datada do final dos anos 1980, e
durante toda a década de 1990 – define a perspectiva de Jacques Le Goff como “anacrônica” na
medida em que a concepção de intelectual usada por esse autor não existia na Idade Média.
Para oferecer algo mais apropriado, Verger sintetiza quatro características: o aspecto urbano,
politizado e profissionalizado dos homens de saber. Além disso, a importância do
entendimento da relação da cultura produzida por esses homens e a vida desses homens. Essa
perspectiva, por exemplo, dá mais importância aos conflitos institucionais (internos e
externos) vivenciados no século XIII. É importante ressaltar que, embora distintos, os
posicionamentos de Jacques Le Goff e Jacques Verger reconhecem que a produção e a
expressão desse saber por meio de instrumentos específicos – tratados, sumas, Questões, uso
da dialética, da retórica etc –, de fato, produziu uma categoria profissional específica.
Ao final do texto apresentamos características gerais da chamada Antropologia
Escolástica e a forma como autores como Alain Boureau e Sylvain Piron servem-se de
propósitos da chamada história intelectual para analisar fenômenos, como a demonologia, por
exemplo. Além disso, apresentamos brevemente a leitura que Boureau fez das obras de
Alexander Murray e Peter Biller, sobre o suicídio e o controle de natalidade na Idade Média,
respectivamente. A Antropologia Escolástica podemos caracterizar como um domínio que
nasceu da Antropologia Histórica e que visa entender os homens e as categorias que esses
homens criaram para entender o mundo em que viviam a partir da produção erudita,
universitária, teológica, filosófica e jurídica, principalmente.
Neste aspecto, apontam-se duas perspectivas:
1) A análise de um tema específico em autores contemporâneos para entender como um
determinado fenômeno foi pensado e/ou refletiu nas teses e sentenças elaboradas
pelos eruditos de diferentes domínios (juristas, cronistas, teólogos etc);
2) A análise de uma geração, ou, da atuação diversificada de pessoas em um determinado
período para compreender como eram articulados saberes médicos, teológicos,
filosóficos, juristas e literários na criação de categorias e doutrinas que explicavam
e/ou justificavam relações de poder, de dominação e de resistência. Neste aspecto, vale
ressaltar o caminho diferenciado que propuseram Coccia e Piron ao tratar
especificamente dos “intelectuais leigos”.
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Não são caminhos opostos ou excludentes. E ambos são igualmente estimulantes,
importantes e que, de fato, tendem a ampliar a compreensão que podemos ter sobre o mundo
medieval em suas diferentes facetas. Sobre o uso do termo “intelectual”, ao que indicam as
palavras usadas por Alain Boureau e Sylvain Piron, esse não é mais um problema.
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O que vale é a intenção… Texto, contexto, autor e linguagem na
perspectiva de Quentin Skinner
The most important is the intention ... Text, context, author and
language of Quentin Skinner’s perspective
Ana Crhistina Vanali*
Doutoranda em Sociologia
Universidade Federal do Paraná
Monica Helena Harrich Silva Goulart**
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Resumo
Abstract
Esse artigo elabora uma análise das contribuições
teóricas do historiador Quentin Skinner para se
pensar a prática da história intelectual. A partir
da leitura de alguns de seus principais textos
procura-se compreender as questões centrais que
fundamentam o programa de estudo conhecido
como “Contextualismo Linguístico”. O foco da
análise é centrado no desenvolvimento de alguns
dos pressupostos teóricos elaborados por
Quentin Skinner. Sem se ocupar com a exposição
de “modelos alternativos” de interpretação de
textos ou com a análise das críticas dirigidas ao
contextualismo linguístico, passa-se em revista
apenas os elementos que compõem o cerne da
teoria interpretativa de textos. Nesse sentido,
discute-se os pressupostos que para o autor são
úteis àqueles que se ocupam em perceber, as
diferenças e as singularidades dos vocabulários
normativos.
This article presents an analysis of the theoretical
contributions of the historian Quentin Skinner to
think about the practice of intellectual history.
From reading some of his main texts seek to
understand the core issues underlying the
program of study known as "Contextualism
Language". The focus of the analysis is focused on
the development of some of the theoretical
assumptions prepared by Quentin Skinner. Is not
concerned with the exhibition of "alternative
models" of text interpretation or analysis of the
criticism of the linguistic contextualism, one
passes in review only the elements that make up
the core of interpretive theory texts. In this sense,
we discuss the assumptions to the author are
useful to those who are engaged in realizing the
differences and particularities of normative
vocabulary.
Palavras-chave: Quentin Skinner;
Contextualismo Linguístico; História das Ideias.
Keywords: Quentin Skinner; Linguistic
Contextualism; History of Ideas.
● Enviado em: 29/04/2014
● Aprovado em: 30/11/2014
*
**
Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Bolsista
CAPES/PDSE na Universidade Nova de Lisboa.
Professora Doutora Adjunta da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná).
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“Quando tentamos situar (…) um texto em seu contexto
adequado, não nos limitamos a fornecer ‘um quadro’
histórico para nossa interpretação: ingressamos já no
próprio ato de interpretar”1.
INTRODUÇÃO
As discussões teóricas e metodológicas em torno do debate da história intelectual
desenvolvida a partir da década de 1960 propiciaram que este novo domínio historiográfico
se transformasse em um estimulante objeto de investigação. Como um campo de estudo vasto
e recente, a história intelectual transita ainda na fronteira de várias disciplinas, como a
tradicional história das ideias, a história social das ideias, a história dos intelectuais, a história
cultural, a crítica literária e a filosofia da linguagem, não possuindo uma problemática
norteadora ou temas consensuais. No centro destes debates encontra-se uma série de
questionamentos referentes às perspectivas de análise empregadas pela história intelectual
para interpretar um texto histórico e também o questionamento quanto à indefinição e à
validade de seus próprios objetos.2 De maneira geral, a principal divergência reside na ideia
da interpretação histórica e na relação texto, autor e contexto, ou ainda na ênfase que se
atribuí a um ou outro destes elementos para alcançar a compreensão dos significados
contidos numa determinada obra ou num conjunto de ideias.
Uma das propostas para se enfrentar essas questões é desenvolvida pelo historiador
britânico Quentin Skinner, a partir de uma série de textos publicados desde o final dos anos
1960. Em “Meaning and understanding in the history of ideas” 3, Skinner apresenta de modo
sistemático o método do “contextualismo linguístico” para o estudo da história das ideias.
Nesse artigo, Skinner procurou demonstrar que tantos os procedimentos analíticos
textualistas quanto os contextualistas empregados naquele momento eram inadequados à
prática da interpretação de textos, destacando que uma nova abordagem contextualista e
sensitivamente histórica precisaria ser construída. O argumento central de Skinner enfatiza
que só é possível compreender os significados de um dado texto, ou mesmo de um enunciado
ou de uma ideia qualquer, recuperando as intenções do autor no ato da escrita e
1
2
3
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996,p.13.
Devido a esta indefinição Helenice Silva entende “que a história intelectual oscila, por um lado, entre
uma sociologia, uma história e até mesmo uma biografia dos intelectuais e, por outro, entre uma análise
das obras e das ideias como, por exemplo, uma versão da história da filosofia.” SILVA, Helenice
Rodrigues da. “A história intelectual em questão”. IN: LOPES, Marcos Antonio (org). Grandes nomes da
história intelectual. SP: Editora Contexto, 2003, p.16.
Artigo publicado na Revista History and Theory em 1969. Depois foi republicado na íntegra, na coletânea
de textos organizada por James Tully, em 1988 (versão utilizada nesse artigo). Cf: TULLY, James.
Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988.
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reconstruindo o contexto das convenções linguísticas disponíveis num determinado tempo
histórico.
Embora ao longo dos anos Skinner tenha revisto algumas de suas concepções, pode-se
dizer que o núcleo de sua perspectiva teórica e metodológica sofreu poucas alterações. A
despeito das críticas que seguidamente são endereçadas à sua abordagem, especialmente
pelos adeptos da nova crítica literária, Skinner é considerado hoje uma das referências mais
influentes nos estudos da história intelectual, assim como na história do pensamento político
moderno. Uma de suas principais obras é As fundações do pensamento político moderno 4, na
qual realiza um estudo sobre a formação das ideologias políticas desde o Medievo Tardio até o
período da Reforma Religiosa durante o século XVI. Nesta obra, como em Maquiavel 5, e Razão
e Retórica na obra de Hobbes6, o autor faz uma leitura apurada tanto dos autores canônicos,
quanto das obras marginais, compondo uma interessante análise sobre as mentalidades que
constituiram a linguagem e o vocabulário político moderno7.
Assim, procura-se analisar as contribuições teóricas e metodológicas de Skinner para
se pensar a prática da história intelectual. Parte-se da leitura de seus principais textos
metodológicos e busca-se compreender as questões centrais que fundamentam sua proposta
de estudo conhecida como contextualismo linguístico que procura problematizar a dimensão
da interpretação dos significados contidos em textos passados, procurando compreender em
que termos autores, textos, contextos e linguagem devem ser articulados pelo pesquisador ao
investigar uma obra histórica, um conjunto de ideias, um enunciado ou o pensamento de um
determinado autor.
A TRADICIONAL HISTÓRIA DAS IDEIAS
Segundo Skinner8, durante os anos 1960 duas tendências dominavam o estudo da
história das ideias: o modelo contextualista, para o qual o contexto dos fatores religiosos,
políticos e econômicos é que determina o significado de qualquer texto dado, constituindo-se
4
5
6
7
8
Publicada em 1978. A versão em português é de 1996 da Editora Companhia das Letras. SKINNER,
Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996.
Publicada em 1981. Utilizamos a edição em português de 2012 da Editora LP&M. SKINNER, Quentin.
Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2012.
Publicada em 1995. Utilizamos a edição de 1996 da Editora da UNESP. SKINNER, Quentin. Razão e
retórica na obra de Hobbes. SP: Editora Unesp, 1996.
TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University
Press, 1988, pp.7-28.
SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and
context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp.29-57.
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assim como algo que deveria prover a estrutura última para qualquer esforço de compreensão
das ideias; e o modelo textualista, para o qual a autonomia do texto em si mesmo era a única
chave necessária para a interpretação do seu próprio significado, dispensando qualquer
recorrência à informações contextuais, consideradas como externas ao texto.
Para Skinner, estas duas tendências se apresentavam como modelos metodológicos
inadequados à compreensão de qualquer texto literário ou filosófico, já que ambas seriam
responsáveis pela produção de um conjunto de mitologias históricas que conduziriam a
conclusões equivocadas e a uma infinidade de confusões intelectuais. Em relação à abordagem
textual, a principal crítica de Skinner se dirige ao pressuposto de que as ideias possuem valor
universal e atemporal, como se fosse possível comparar enunciados e textos em busca de
verdades essenciais ou de um sentido que ligasse determinados conceitos numa linha do
tempo, como ‘unidades-ideias’ desencarnadas. Segundo Skinner, abordagens como estas
fatalmente incorreriam numa série de anacronismos, especialmente o de atribuir à autores e
textos considerações, intenções e significados que, em contextos históricos originais, jamais
reconheceriam como sendo seus; ou então, o de cair no equívoco, tão comum nestes estudos,
de julgar a genialidade de determinados autores pelo fato destes terem antecipado como
numa clarividência, o argumento desenvolvido posteriormente por outros autores.
Quanto à perspectiva contextual, Skinner destaca que é conceitualmente impróprio
concentrar-se simplesmente numa dada ideia ou num texto em si, talvez a melhor abordagem
consista “em reconhecer na verdade que nossas ideias constituem uma resposta para
circunstâncias imediatas, e que nós deveríamos, em consequência, estudar não o texto em si,
mas de preferência o contexto de outros acontecimentos que os explicam” 9. De acordo com
Skinner, a alternativa metodológica empregada pelos contextualistas vem enfrentando
resistência dos pesquisadores que insistem na autonomia do estudo textual e que os autores e
textos canônicos devem ser estudados em termos de sabedoria atemporais, como verdades
imutáveis que transcenderiam a dimensão histórica.
Skinner entende que o conhecimento do contexto social10 de um texto pode, embora de
modo incompleto, ser uma ferramenta útil. Compreende, no entanto, que esse modelo
9
10
Tradução livre das autoras do texto original “... to recognize the fact that our ideas are a response to
immediate circumstances, and that we should therefore not study the text itself, but rather the context of
other events that explain them”. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas.
IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton
University Press, 1988, p.57.
A crença de que a leitura contextual proporciona uma metodologia apropriada para a história intelectual
é comum entre os historiadores e certos cientistas sociais. Para estes, é usual na análise de textos
históricos considerar o conhecimento do contexto social e das condições políticas e econômicas nas
quais os textos são produzidos. Segundo Skinner, o trabalho de Max Weber sobre a ética protestante e o
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metodológico também apresenta sérias inadequações ao estudo da história intelectual. A
principal delas, diz respeito ao pressuposto da causalidade social, à afirmação de que o
contexto social ajuda a causar a formação e a mudança das ideias, e que, de maneira
semelhante, as ideias sucessivamente ajudam a causar a formação e a mudança do contexto
social, como se uma estrutura ou outra funcionasse o tempo todo, e de modo mecânico, como
um reflexo. O efeito dessa perspectiva é que o pesquisador das ideias termina por presentearse com o antigo enigma: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha? A leitura contextual
conduziria, assim, a um equívoco fundamental sobre a natureza da relação entre ação e
circunstância, uma vez que parte do princípio de que para toda e qualquer forma de ação deve
haver um conjunto de condições causais antecendentes. Por esse motivo, Skinner conclui que
a despeito da possibilidade que o estudo do contexto social apresenta para ajudar no
entendimento de um dado texto:
… a fundamental pressuposição da metodologia contextual … pode parecer
enganosa e servir em consequência não como um guia para o entendimento, mas
como uma fonte de promoção de confusões muito predominantes na história das
ideias11.
Diante disso, Skinner entende que um novo programa metodológico seria necessário
para estudar a produção de significados nos autores e textos históricos, sejam eles canônicos
ou não. Ele procura desenvolver o que denominou de contextualismo linguístico, ou seja, a
análise do texto em si incorre em uma infinidade de anacronismos históricos, e que mesmo a
tradicional perspectiva contextual apresenta-se como inadequada. Uma abordagem
contextualista mais atenta aos jogos de linguagem precisaria ser elaborada.
O CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO E UMA NOVA METODOLOGIA PARA A HISTÓRIA DAS
IDEIAS
De acordo com Skinner, a questão central da história das ideias consiste em
compreender a produção de significado através do uso da linguagem. Partindo de uma das
premissas da filosofia da linguagem de Wittgenstein, a qual afirma que ‘palavras são atos’,
11
espírito do capitalismo, assim como o de Robert Merton sobre o pensamento científico inglês no século
XVII, podem ser vistos nessa direção, onde o contexto social mais amplo é acionado para explicar,
respectivamente, o desenvolvimento do pensamento econômico e científico. SKINNER, Quentin. Meaning
and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and
his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, pp. 58-59.
SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and
context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.59.
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Skinner argumenta que para interpretar o significado dos textos, respeitando os contextos
linguísticos originais de sua produção, o pesquisador deve procurar compreender quais eram
as intenções e motivações dos autores ao pronunciarem uma determinada palavra, frase ou
enunciado. O entendimento de um dado texto não depende estritamente da compreensão de
seus significados, mas das intenções do autor no momento da escrita. Em seu ponto de vista,
mesmo que pudéssemos decodificar, através do estudo de seu contexto social, o que uma
sentença significa, ainda assim:
… ficaríamos sem compreender a intenção de sua força ilocucionária, e,
portanto, sem um entendimento real da sentença. A questão é, em suma, que
uma lacuna inevitável permaneceria: mesmo se o estudo do contexto social dos
textos pudesse servir para explicá-los, este não serviria como um meio para
entendê-los12.
Essa força ilocucionária intencional seria compreendida como uma força imposta pelo
autor, no ato da fala, com a intenção de comunicar o significado de um enunciado. Neste
sentido, para compreender um enunciado proferido por um determinado autor seria preciso,
de um lado, ter o domínio sobre as complexas intenções deste ao proferí-lo e, por outro, saber
qual era a audiência que visava ele atingir no momento da escrita. O conhecimento das
intenções do autor ao escrever é equivalente ao conhecimento do significado do que o autor
de fato escreveu. Em suma, entender as intenções e motivações de um autor equivale a
entender a natureza e a extensão dos atos ilocucionários que o escritor poderia ter
desenvolvido no momento em que escrevia ou enunciava suas ideias. Seguindo essa
orientação, Skinner compreende que é possível caracterizar o que um determinado autor
pretendia fazer, por exemplo, ao atacar ou defender uma linha particular de argumento, ao
criticar ou contribuir com uma tradição particular de discurso, e assim por diante.
Para compreender um ato de fala como uma ação política, para recuperar as intenções
de um autor ao enunciar determinada ideia, é necessário traçar a relação entre o dado
enunciado e o amplo contexto linguístico disponível e utilizado naquele momento, ou seja, o
repertório de ideias com o qual ele dialogou. Deste modo, Skinner está preocupado com os
atos ilocucionários e com a autoridade que o autor apresenta em relação ao significado do
texto, já que é possível perceber a importância que ele atribui à análise do contexto linguístico
como um elemento importante na metodologia empregada na história das ideias. Alguns de
12
SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the History of Ideas. IN: TULLY, James. Meaning and
context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University Press, 1988, p.61.
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seus críticos13 apontam, que a compreensão em relação as intenções e motivações do autor,
advém menos dos atos ilocucionários do que do conhecimento das convenções linguísticas
que historicamente contextualizam o texto, uma vez que a análise dos atos ilocucionários
parecia se ater mais às condições formais da linguagem.
Skinner se defende dos críticos que o atacavam por ter atribuído demasiada atenção às
intencionalidades dos autores argumentando que entre as tarefas de interpretar estaria
também o exercício de recuperar as motivações e as intenções políticas e sociais dos autores
no ato da escrita. O autor continua sustentando que recuperar o significado histórico de
qualquer texto e do que os autores intencionavam ao escrever são condições necessárias ao
seu entendimento, e que este processo nunca pode ser concluído simplesmente pelo estudo
do texto em si. A abordagem de Skinner dirige a atenção para o modo como o conhecimento
das convenções sociais em torno da linguagem (como as ideologias, o repertório intelectual e
o vocabulário conceitual existente) ganha importância na prática de interpretação de textos.
Duas regras devem ser
consideradas pelo pesquisador caso queira interpretar
adequadamente um texto: primeiro deve-se considerar não apenas o texto a ser interpretado,
mas também as convenções prevalecentes que governam as ideologias em uso, uma vez que
os autores são limitados, em suas intenções, durante a escrita, pelo estoque de conceitos
disponíveis que ele poderia empregar. Segundo, o pesquisador das ideias só atingirá uma
compreensão de seu objeto se enfocar o mundo mental do escritor, suas crenças empíricas,
suas percepções, seus sentimentos, seus valores morais e políticos, assim como suas
ideologias compartilhadas, trocadas com seus pares, com sua audiência.
Deslocando a atenção do texto para o contexto e, ainda, para o criador do texto, Skinner
se esforça para demonstrar que são nos atos de fala dos autores, em seu mundo mental e no
repertório linguístico de sua época que o pesquisador das ideias deve buscar a interpretação
de textos. Ao contrário da tradicional visão contextualista empregada na historiografia, a qual
reduz o significado das ideias ao contexto social e suas causalidades, Skinner destaca que os
significados de um texto ou de um dado enunciado devem ser procurados em contextos
linguísticos específicos, nos jogos de linguagens que governam o mundo mental e o
vocabulário conceitual empregados pelos autores num dado tempo histórico. Situar o texto
em seu contexto linguístico significa, portanto, compreender os valores ideológicos
compartilhados pelos agentes num mesmo período e obedecendo a um certo número de
13
FERES JUNIOR, João. “De Cambridge para o mundo, historicamente: revendo a contribuição
metodológica de Quentin Skinner”. IN: DADOS – Revista de Ciências Sociais. RJ, volume 48, n°2, 2005,
p.670.
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convenções sobre o que é possível a um autor dizer ou não num dado tempo, sobre o que é ou
não legitimamente aceito por seus pares.
Para James Tully, um dos intérpretes de Quentin Skinner, o termo convenção
linguística é empregado por ele para se referir a uma linguagem comum que une um número
de textos, como o vocabulário compartilhado, princípios, assuntos, problemas, critérios para
testar o conhecimento, distinção conceitual e assim por diante. Dessa maneira:
… a justificação para empregar o texto em seu contexto convencional é que a
ação linguística, semelhante a outras formas de ação social, é convencional e,
assim, o seu significado pode ser entendido somente acompanhando as
convenções em torno do desenvolvimento de um dado tipo de ação social em
uma dada situação social14.
No livro As fundações do pensamento político moderno, Skinner procura desfazer uma
série de mitologias e de anacronismos que a historiografia tradicional havia formulado em
torno dos principais textos de transição entre o pensamento político medieval e o moderno,
sobretudo de autores como Maquiavel, Erasmo, Lutero e Calvino, ou mesmo em relação a
matriz ideológica e o vocabulário que orientou outros pensadores considerados marginais no
período entre o século XIII e XVI. Desta maneira o interesse de Skinner é ilustrar um certo
modo de proceder ao estudo e interpretação dos textos históricos, realizando para isso uma
história das ideias na qual fosse possível enfocar a matriz social e intelectual, o contexto
linguístico, as ideologias e o vocabulário normativo em que foram concebidos tanto os textos
canônicos quanto as contribuições mais efêmeras ao pensamento social e político15.
Uma dimensão importante desta obra, conforme é destacado na introdução, diz
respeito também à atenção que Skinner lança para a relação entre as intenções do autor e o
vocabulário normativo disponível, entre a ideologia e ação política, uma vez que ao proferir
um enunciado o autor tem em mente legitimar um projeto político entre os grupos de
indivíduos que constituem a sua audiência. Em detrimento disso, Skinner argumenta que o
problema de um agente que pretenda legitimar o que está fazendo ao mesmo tempo que
obtém o que deseja não se reduz à questão, simplesmente instrumental, de recortar sua
linguagem normativa a fim de adequá-la à linguagem normativa que dispõe. Skinner enfatiza a
existência de uma certa margem limite de liberdade que um autor encontra ao formular seus
14
15
TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University
Press, 1988, p.9.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996,
pp.10-11.
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projetos ideológicos, visto que sua ação intelectual e política está intrinsecamente ligada ao
repertório de ideias compartilhadas pela sua audiência.
É por esse motivo que Skinner sugere que a compreensão das intenções e as
motivações de um autor, bem como do seu comportamento político, depende do estudo do
próprio contexto que constitui o pensamento ideológico com o qual ele dialoga. Skinner
enfatiza que estudar o contexto linguístico de qualquer obra não deve ser tomado pelo
pesquisador apenas como um meio de se obter uma informação adicional sobre a sua
etiologia, deve ser também um meio de lançar maior visão interna do que seu autor queria
dizer e o que ele estava fazendo quando escrevia. Empregando esse método à análise da
história das ideias, Skinner conclui:
Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles (os autores)
apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder,
e em que medida aceitavam e endossavam, ou contextavam e repeliam, ou às
vezes até ignoravam, as ideias e convenções então predominantes no debate
político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão
somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões
específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a fim
de reconhecer a direção e a força exata de seu argumento, necessitamos ter
alguma apreciação do vocabulário político mais amplo de sua época16.
Portanto, o contextualismo linguístico de Skinner assume um caráter historicista
radical, uma vez que a interpretação possível de um dado texto só ganha sentido se analisado
nos próprios termos de sua produção e no diálogo com as ideias, enunciados e conceitos
compartilhados. Além do mais, Skinner faz questão de ressaltar que situar um texto em seu
contexto adequado não significa fornecer um quadro histórico para nossa interpretação, pois
conhecer o contexto de produção de um texto qualquer já é, em si mesmo, um modo de
ingressar no próprio ato de interpretar. Ou seja, o contexto não ganha a forma de uma
moldura que dá sentido ao objeto, pois é ele constitutivo do próprio objeto que pretendemos
analisar. Para Skinner, na verdade, a dicotomia entre texto e contexto não faz sentido algum,
na medida que conhecer o contexto é adentrar no mundo dos significados textuais e das
intenções que movem os autores.
Enquanto em seu texto de 1969, Meaning and understanding, Skinner está preocupado
em compreender as intenções de autores a partir de atos ilocucionários de força, seus textos
posteriores cada vez mais expandem sua compreensão em compreender como as intenções
16
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. SP: Companhia das Letras, 1996, p.13.
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dos autores, suas questões e suas respostas à determinados problemas, estão conectadas às
convenções sociais em torno do uso da linguagem numa determinada época. Conforme Feres
destacou, Skinner parece ter chegado à conclusão que sua tese sobre atos de fala não se
sustentava, uma vez que faltava dizer como era possível acessar as intenções do autor 17.
Posteriormente, portanto, ao assumir o contexto linguístico como convenções sociais, ou
expressões ideológicas, do que enquanto conteúdo semântico, Skinner alcançou um modelo
metodológico interpretativo bastante relevante ao estudo da história intelectual e da história
das ideias.
CONCLUSÃO
Conforme alguns de seus críticos têm ressaltado, a perspectiva contextualista proposta
por Skinner foi fortemente influenciada pela Escola Histórica Inglesa, representada pelos
trabalhos de Collingwood (1889-1943) na primeira metade do século XX.18 De acordo com o
próprio Skinner, o historicismo de Collingwood foi um referencial importante tanto na
formulação de sua metodologia quanto na de seus colegas historiadores da Escola de
Cambridge, sobretudo de John Pocock, que ao lado de Skinner foi responsável por um amplo
debate metodológico que renovou a história do pensamento político e da história intelectual,
especialmente em relação à afirmação de que os historiadores deveriam prestar mais atenção
a função, ao contexto e à aplicação das linguagens conceituais encontradas em sociedades
particulares e em momentos particulares. Empregando essa abordagem, foi possível a Skinner
e a Pocock perceber que o estudo atento da linguagem conceitual permite ao pesquisador
compreender que os homens só são capazes de fazer o que a linguagem os possibilita pensar
ou dizer. Assim, a melhor maneira de evitar mitologias anacrônicas é perceber as dimensões
histórica e contextual que envolve o uso dos utensílios linguísticos disponíveis a uma dada
sociedade. Vale destacar que o vocabulário disponível num dado tempo histórico organiza o
mundo mental dos indivíduos de tal modo que este acaba por definir os limites coletivos do
que era possível pensar ou fazer. Por esse motivo Skinner sugere que conhecer o contexto
linguístico de uma dada obra significa, de fato, ingressar já no próprio ato de interpretar as
17
18
FERES JUNIOR, João. “De Cambridge para o mundo, historicamente: revendo a contribuição
metodológica de Quentin Skinner”. IN: DADOS – Revista de Ciências Sociais. RJ, volume 48, n°2, 2005,
pp.665-680.
TULLY, James. Meaning and context – Quentin Skinner and his critics. Princenton: Princenton University
Press, 1988, pp.7-28.
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intenções e motivações de seu autor ao defender uma ideia, um enunciado ou um conceito
qualquer.
De outro lado, Skinner apreende os usos da linguagem enquanto convenções sociais. É
a partir desse ponto de vista que se torna possível, como faz Jasmim 19, aproximar o
contextualismo linguístico de Skinner à história dos conceitos tal qual propõe o historiador
alemão Reinhart Koselleck.20 De acordo com Koselleck, só é possível compreender o uso dos
conceitos ao longo da história lançando mão do conhecimento sobre os usos sociais da
linguagem, uma vez que a compreensão de um conceito depende do conhecimento semântico
e da comumicação das palavras empregadas num determinado período histórico. Jasmim
explica que, assim como o método histórico proposto por Skinner, a história conceitual de
Koselleck parte do princípio de que:
… os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e
interpretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em termos
dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e desempenhados pelos
atores que participam desses conflitos21.
Outra convergência interessante que envolve as perspectivas de Skinner e Koselleck é
o fato de ambos construírem uma metodologia de estudo a partir da rejeição à tradicional
história das ideias. Enquanto o contextualismo linguístico de Skinner e de Pocock foi
formulado em oposição a história das ideias atemporais propostas por historiadores da
filosofia como Leo Strauss e Arthur Lovejoy, a história conceitual de Koselleck dirigiu-se
contra a história das ideias imutáveis tal qual apresentavam, por exemplo, na obra de
Friedrich Meinecke.
Jasmin destaca outro ponto importante que diferencia o projeto de estudo desses
historiadores22. O historicismo metodológico de Skinner é elaborado sobre uma perspectiva
sincrônica, tendo em vista que sua abordagem parte do princípio de que é possível ao
historiador recuperar as intenções originais dos autores no momento mesmo da escrita,
atravessando as camadas de interpretação que se põem entre o texto estudado e o mundo
19
20
21
22
JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN:
RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 27-39.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. RJ: Editora
Contraponto, 2006, pp.97-118; e KOSELLECK, Reinhart. “Uma história dos conceitos: problemas teóricos
e práticos.” IN: Revista Estudos Históricos, RJ, volume 5, n° 10, 1992, pp.134-146.
JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN:
RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 31-32.
JASMIN, Marcelo Gantus. “História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares”. IN:
RBCS, volume 20, n° 57, fevereiro de 2005, pp. 27-39.
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mental do historiador. Por esse motivo alguns de seus críticos chegaram a atribuir-lhe o
rótulo de positivista, como alguém que pretende retomar a hermenêutica romântica
empregada durante o século XIX, através da qual pensava-se ser possível compreender as
intenções dos autores em seus próprios termos, e não nos termos peculiares às suas próprias
situações e experiências. Skinner insiste que a primeira responsabilidade do pesquisador é
reconstituir as intenções primárias de um autor, onde a mensagem real do texto será
encontrada, embora considere ultrajante pensar na ideia de que seja possível recuperar uma
verdade histórica. Por outro lado, a história dos conceitos de Koselleck assume uma dimensão
diacrônica, uma vez que os significados da linguagem são interpretados como dependentes
das experiências históricas não de quem as formulou, mas de quem as recebeu em diferentes
períodos da história. Para Koselleck a história conceitual interessa-se pelos modos como as
gerações e os intérpretes posteriores leram e se apropriaram de maneiras diversas dos textos
passados. Ou seja, enquanto Skinner procura interpretar os significados atribuídos pelos
autores no momento mesmo da fala, Koselleck apreende os diferentes modos em que os
conceitos, as ideias e os enunciados são dados a ler em diferentes momentos da história.
Koselleck, ao contrário de Skinner, entende que a pergunta que se deve fazer a um texto não
pode mais inserir-se em seu horizonte original, pois este é sempre abarcado pela experiência
que envolve a leitura e a recepção.
Skinner recupera o papel do autor como agente fundamental no processo de produção
de ideias. De acordo com o contextualismo linguístico proposto por ele, textos não falam,
somente autores, o que significa dizer que estes não são meramente prisioneiros dos
discursos no interior dos quais os significados são construídos. Autores tem intenções,
motivações e, ainda, uma certa consciência das condições e possibilidades no campo de ação
no qual se movem. Skinner entende, desta maneira, que os atos de fala devem ser tomados
como atos sociais intersubjetivos, e não intertextuais, e que ocorrem em situações históricas
concretas, onde a linguagem é manipulada conscientemente com vistas a realização de
determinadas ações e interesses sociais e políticos.
Neste sentido, Skinner opõem-se a proclamação da morte do autor, pois essa ideia não
leva em consideração a historicidade da linguagem e as motivações sociais e políticas que
mobilizam os autores no momento mesmo em que escrevem e manifestam suas ideias.
Skinner reafirma a ideia da interpretação histórica empregada como explicação do que os
autores pretendiam ao escrever, tendo em vista que seus atos linguísticos são concebidos
enquanto atos sociais auto-conscientes.
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Apesar das muitas críticas formuladas contra o contextualismo linguístico de Skinner,
sua proposta teórica e metodológica tem contribuído para renovar os estudos de história
intelectual ou mesmo do pensamento político moderno. De um lado, sua abordagem
possibilita empregar um método no qual o texto apareça como um genuíno documento
histórico, passível de uma leitura objetiva, e onde a dicotomia entre autor, texto, contexto e
linguagem é eliminada em função de um contextualismo linguístico mais performático e
sensivelmente histórico, onde as ideias são tratadas dentro das tradições intelectuais e do
repertório normativo disponível numa dada sociedade ou num grupo de indivíduos. De outro
lado, Skinner lançou uma filosofia analítica e restituiu o lugar do autor no processo da
produção e difusão das ideias, defendendo a autonomia do pensamento e invocando uma
história de indivíduos que pensam, agem e escrevem a partir de intenções conscientes. Para
ele, o sentido da história não deve ser buscado nas estruturas do texto escrito, mas na relação
do ator-escritor com a linguagem e a experiência social historicamente compartilhada.
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RESENHAS
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GALLEGO, Julíán; GARCÍA MAC GAW, Carlos G. (comps.). La
ciudad en el Mediterráneo Antiguo. Colección Razón
Política/Estudios del Mediterráneo Antiguo – PEFSCEA N° 4.
Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires/Ediciones del Signo,
2007, 264p.
Horacio Miguel Hernán Zapata*
Universidad Nacional del Nordeste (UNNE), Argentina
● Enviado em: 27/07/2014
● Aprovado em: 07/11/2014
Las ciudades han sufrido una transformación radical al calor de los diferentes procesos
políticos y económicos globales, los constantes avances científicos y tecnológicos y las
alteraciones en el mapa demográfico, sociológico, cultural y étnico. A su vez, las nociones que
definían lo urbano, como el centro, el componente o los límites de la ciudad, han cambiado su
significado. Como consecuencia, es difícil de percibir en las actuales estructuras urbanas aquel
modelo clásico de ciudad en tanto lugar de sociabilidad y civilidad, esto es, como centro –
pólis– y espacio público –res publica– donde nacieron la democracia y la ciudadanía, ya que
estos ámbitos que habitamos se han convertido en lugares complejos, fragmentados y
contradictorios, representando el progreso humano y civilizacional pero también cargando la
amenaza del desastre social y ecológico. Bajo estas condiciones, la percepción espontánea de
cualquier individuo podría identificar que la ciudad, con su cotidiana multitud de gentes, su
complejo entramado relacional y su dendrítica materialidad urbana, es un dato “natural”, algo
que ha estado allí desde siempre. En un lenguaje poético, nadie ha expresado de mejor forma
esa supuesta inmortalidad de la ciudad que el escritor argentino Jorge Luis Borges, cuando en
su delicioso poema Fundación mítica de Buenos Aires proclamaba que “la juzgo tan eterna
como el agua y el aire”. Así, no es de extrañar que este cúmulo de problemáticas del mundo
contemporáneo se refleje en los trabajos que –desde hace algún tiempo– realizan
investigadores interesados en analizar algunas de estas transformaciones en su profundidad
*
Departamento de Historia, Facultad de Humanidades, Universidad Nacional del Nordeste (UNNE) /
Centro Interdisciplinario de Estudios Sociales (CIESo), Facultad de Humanidades y Artes, Universidad
Nacional de Rosario (UNNE)
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histórica y conceptual y que buscan proponer nuevas perspectivas y contribuir, desde el
campo de las ciencias sociales, a la mejora del conocimiento sobre los sistemas urbanos y las
condiciones de vida en las ciudades.
Desde el campo de la historia antigua, el estudio de la ciudad es un tema con una amplia
tradición, contándose entre los hitos más representativos de los primeros esfuerzos libros
como La ciudad antigua (1864) de Fustel de Coulange, obra dedicada a explicar la estructura
urbana interna en Grecia y Roma, con especial atención al ámbito político, social y religioso;
La ciudad griega (1929) del historiador C. Glotz, volumen cuyo objetivo central era analizar de
forma minuciosa la relación entre la familia, la urbe y el individuo; o Los orígenes de la
civilización (1936), ese magnífico estudio del arqueólogo Vere Gordon Childe en el que
identificaba con el nombre de “revolución urbana” a los diversos procesos históricos de
cambio que conducían al urbanismo y a la aparición de las primeras ciudades –y
concomitantemente del Estado –en el Próximo Oriente Antiguo. Incluso, desde mediados del
siglo XX hasta la actualidad, es posible encontrar numerosas monografías e investigaciones
que procuran revisar el concepto de “ciudad antigua”, no sólo desde una mirada tradicional
enfocada en las estructuras materiales, sino abordando el complejo entramado de relaciones
sociales que tienen lugar en esos centros localizados a lo largo y ancho de un ámbito de
encuentros culturales e intercambios materiales e inmateriales como era –y aún es– el
Mediterráneo y durante una extensión temporal que se prolonga incluso hasta la época
temprano-medieval.
Es precisamente en esta apuesta intelectual donde se ubica el libro que hoy reseñamos,
La ciudad en el Mediterráneo Antiguo, una compilación a cargo de los historiadores argentinos
Julián Gallego y Carlos G. García Mac Gaw, ya que como éstos confiesan en la introducción, el
libro es el resultado específico, en primer lugar, de las distintas líneas de investigación que
fueron desarrolladas dentro del proyecto “La ciudad en el mundo greco-romano: organización
política, estructuras sociales y el control de los recursos agrarios” bajo la dirección del
antiquista Julián Gallego y en el marco de la Secretaría de Ciencia y Técnica de la Universidad
de Buenos Aires. El objetivo principal de tal proyecto –plasmado plenamente en el libro–
consistió en pesquisar la organización política e institucional y la arquitectura social de la
ciudad antigua a través de sus diferentes expresiones (ciudad-estado, pólis, apoikía, civitas,
colonia, municipium, etc.), analizando las múltiples articulaciones existentes entre los
integrantes de la ciudad y los recursos rurales (economía campesina, agricultura esclavista,
relación rentística entre terratenientes y campesinos, recaudación tributaria estatal, etc.).
Partiendo del supuesto de que en el mundo antiguo la inclusión en la esfera política e
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institucional de la ciudad se encontraba íntimamente conectada con el acceso a los recursos
agrarios, un vínculo que no sólo implicaba el plano de la “materialidad” de las relaciones
sociales sino también el de las representaciones simbólicas, las intervenciones de la
compilación demuestran claramente que las instituciones políticas y jurídicas de la ciudadestado constituyen elementos nodales en el análisis de las sociedades antiguas, aun cuando
dicha importancia deba ser relativizada de acuerdo a los aspectos históricos considerados en
cada estudio puntual del volumen.
En concreto, el volumen transita las transformaciones que sufre el modelo de ciudad
como organizador de las relaciones sociales, iniciando su recorrido desde el Cercano Oriente,
cuando emergen los primeros centros urbanos, pasando por el universo de las póleis de la
Grecia arcaica y clásica y de las civitas de la Roma tardorrepublicana y altoimperial, llegando
incluso a la Antigüedad Tardía, cuando los monasterios comenzaron a asumir el rol de las
elites urbanas, volviéndose agentes intermediarios entre el Estado y los campesinos y
compitiendo con los centros urbanos como núcleos principales de patronazgo social. La
hipótesis general tomada por los compiladores como hilo conductor para la obra es que la
ciudad supone una comunidad que se gobierna a sí misma y que reside en un centro urbano y
su territorio circundante, hecho que a su vez posibilita pensar la configuración de una
colectividad política con poderes delimitados y definida por la participación directa de los
ciudadanos de pleno derecho en las cuestiones del ámbito público y la inexistencia de una
burocracia. Es este mismo orden institucional el que dará lugar, además, a las múltiples
modalidades de vinculación social y a los diversos modos de utilización de los recursos
agrarios.
Conforme a este conjunto de perspectivas y temáticas, la obra se encuentra dividida en
tres secciones bien delimitadas y que procuran reflejar, de forma clara y ordenada aunque no
esquemática, las líneas de investigación que hemos subrayado. Bajo el título “Organizaciones
urbanas, estructuras estatales y recursos agrarios”, la primera sección plantea, a través de
tres trabajos, una aproximación a la ciudad en la Antigüedad en tanto escenario propio del
funcionamiento del Estado, examinando sus dimensiones institucionales y determinantes
rurales. El primero de los trabajos, de autoría de Marcelo Campagno, se detiene en el
problema de la revolución urbana y el surgimiento del Estado en el Próximo Oriente. A partir
de un análisis comparativo, el autor demuestra con claridad cómo este proceso, ocurrido en
los contextos urbanos de Mesopotamia y Egipto a fines del IV milenio a. C., fue el producto de
la emergencia de una elite (asociada al mundo de las divinidades) que puso en
funcionamiento una compleja estructura burocrática, construyendo su poder por encima de
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un conjunto de comunidades aldeanas (con fuerte base campesina) que terminarían
convirtiéndose en poblaciones dependientes que se vieron obligadas a entregar regularmente
excedentes a dicha elite a través de distintos mecanismos de tributación estatal. El segundo
capítulo de la sección, de la pluma de Julián Gallego, aborda la cuestión de la aparición de la
pólis y el rol del campesinado en la Grecia antigua, subrayando que la configuración política de
la ciudad durante los siglos VIII a V a. C. no supuso una formación jerárquica en la que una
elite edificó su poder sobre un campesinado sometido, sino una organización segmentaria en
la que las aldeas rurales tendieron a incluirse dentro de un Estado a través de un proceso
político, espacial, social y religioso (denominado sinecismo), donde las comunas rurales
siguieron constituyendo los núcleos básicos del sistema socioeconómico, institucional y
militar del Estado griego. Y el tercer capítulo de la sección, a cargo de Carlos García Mac Gaw,
estudia la problemática del esclavismo y las distintas formas en que se organiza la explotación
de la fuerza de trabajo en la historia de Roma, tanto en la república tardía como en el alto
imperio. Conjugando aspectos económicos y jurídico-políticos, presenta la evidencia de un
paisaje complejo y plural caracterizado por las diferentes maneras que asume la explotación
del trabajo –que van desde modalidades varias del colonato hasta formas múltiples de
explotación del trabajo servil, que pueden aparecer conectadas entre sí y con la pervivencia
de la unidad doméstica campesina del pequeño propietario, coexistiendo todas ellas en el
tiempo y espacio–, reconstrucción que permite afirmar que dicho paisaje no puede ser
sencillamente definido a partir de una única categoría conceptual y, de este modo, discutir la
concepción historiográfica –aún
vigente en ciertos ámbitos académicos y recursos
bibliográficos– de que el esclavismo es el principal modo de producción que explica la
particularidad de la economía romana.
La segunda sección, titulada “Representaciones de la ciudad y el mundo rural”, se ocupa
del examen de los imaginarios sociales que circulan sobre la ciudad y las actividades
conectadas a la economía rural a partir de las producciones teatrales de la Atenas clásica,
problemática que es abordada en dos trabajos con novedosos abordajes. En su artículo, María
José Coscolla despliega un significativo análisis filológico de los objetos rurales y su relevancia
contextual en las comedias de Aristófanes junto con la aplicación de la teoría de los juegos
para identificar en los modos de intercambio social y los mecanismos de endeudamiento en el
mundo rural ateniense la presencia de matices en los comportamientos de los agentes en el
plano de la producción, por lo que el producto agrario y su rentabilidad fijarían diferentes
estrategias de inversión así como lazos de sociabilidad distintivos. Seguidamente, el trabajo de
Elsa Rodríguez Cidre nos conduce al universo de las representaciones simbólicas que, en esa
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misma sociedad ateniense y a través de los discursos de despedida de Hécuba y el coro en la
tragedia Troyanas de Eurípides, se pergeñaban en torno a la centralidad de la pólis, no sólo
como forma de Estado sino –y sobre todo– como un modo de convivencia que los propios
contemporáneos concebían como el modo de vida en sociedad, más allá del cual sobreviene la
catástrofe. Considerando la relevancia que el teatro de la ciudad poseía en el diseño de la
identidad cívica, la autora puntualiza que esta obra pone en escena la cuestión de la
destrucción de la pólis, un tópico que en realidad resulta irrepresentable dentro del
imaginario político de la Atenas clásica, cuyos efectos simultáneos no sólo son los
trastocamientos de los cánones formales que pueden identificarse en la tragedia sino también
la propia manera en que finaliza dicha obra.
Finalmente, la tercera sección del libro titulada “La Ciudad, la Iglesia y los campesinos en
la Antigüedad Tardía”, reúne diferentes contribuciones sobre las transformaciones del modelo
clásico de la ciudad en los siglos IV al VI d.C., una etapa en la que es posible observar el
redimensionamiento de los vínculos de patronazgo y el surgimiento de poderes locales con
formas propias ante la pérdida de unidad e influencia del Estado romano imperial, aun cuando
en este nuevo contexto sociopolítico la Iglesia aparece como el agente que heredaba o se
apropiaba del antiguo andamiaje institucional romano o como la depositaria de un orden
ecuménico universalista. Los autores de esta sección coinciden en la idea de que la
cristalización de nuevas formas de organización social a partir de la crisis del marco citadino
no operó de forma lineal y tales transformaciones deben ser estudiadas en las
particularidades que adquieren en los espacios locales. En esta senda, Diego Santos estudia los
realineamientos políticos de la población local en la Galia durante la decadencia imperial,
presentando alternativamente los momentos de identificación de los galos con Roma, como
un orden social y político, y con el lugar de origen, como un marco de integración social más
cercano y propio, dejando asentado al mismo tiempo que la función episcopal, cuyo espacio
era el de la civitas romana, a pesar de su notable influencia en la región, no alteró esta lógica.
Por su parte, Héctor Francisco se ocupa de desentrañar las características de los liderazgos
rurales en la Siria tardorromana, subrayando la vitalidad de los pequeños campesinos
independientes centrados en aldeas como aspecto específico de la expansión económica del
siglo IV en el Imperio oriental. Apoyado en diversos relatos de la intervención de los monjes
en los conflictos entre el campo y la ciudad contenidos en fuentes hagiográficas sirias de los
siglos V y VI d.C., el autor revela la progresiva pérdida del ascendiente de las clases curiales
sobre estos sectores campesinos y, como contracara, el crecimiento de la figura del obispo en
el nuevo paisaje social y político oriental, el cual comienza a posicionarse como bisagra entre
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la ciudad y el Estado, mientras que el monasterio operará como canal entre las áreas rurales y
las urbanas, relevando las bases del poder de los aristócratas locales construidas sobre las
funciones patronales. Por último, Eleonora Dell'Elicine se ocupa específicamente de la
fragmentación del mundo rural en la península ibérica y discutir desde allí la tesis que
sostiene que, entre los siglos IV y VIII, los campesinos de la región se hallaban insertos en el
sistema de villa aristocrática, buscando proponer una imagen del mundo rural mucho más
acertada y compleja. Tomando como caso de estudio el reino visigodo, la autora afirma que la
presencia y reproducción de los diferentes grupos de campesinos se organiza atendiendo al
anclaje sobre el terreno, la relación con el derecho, el vínculo con la ciudad, la inscripción
étnica y la adhesión religiosa, un cuadro que no sólo estaría hablando de la coexistencia de
diferentes factores de poder detrás de tales realidades, que ocupan el espacio que antes
mantenía la civitas en su relación con la corte imperial, sino del propio y nuevo diseño de un
paisaje rural que se aparta de las formas antiguas de organización social.
Llegados a este punto, es posible afirmar que La ciudad en el Mediterráneo Antiguo nos
da una muestra acabada de la confluencia de novedosas miradas sobre la historia antigua que
portan un alto valor académico. No sólo porque corporizan múltiples debates historiográficos
actuales, porque problematicen de forma constante los procesos históricos en base a marcos
teóricos renovados o porque pongan en juego diversos enfoques metodológicos, sino porque
también –y sobre todo– representan largos períodos de investigación rigurosa que llevan a
cabo investigadores-docentes en universidades públicas argentinas, siendo una de sus tantas
preocupaciones académicas dilucidar nuevas maneras de explicar las diversas formas en las
cuales se organizaban las sociedades, describir sus múltiples modalidades de configuración
espacial y comprender las distintas formas en que los integrantes de esas mismas sociedades
se hacen presentes, convergen y conviven como comunidad en un espacio común a la vez que
diverso.
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GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge! Por São
Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Curitiba: Editora
UFPR, 2013, 195p.
Ana Luiza Mendes*
Doutoranda em História
Universidade Federal do Paraná
● Enviado em: 28/08/2014
● Aprovado em: 30/10/2014
O livro Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais é
composto por cinco capítulos que trazem à tona o exame de cinco batalhas compreendidas
entre os séculos VIII e XV na Península Ibérica e em África. Contudo, a obra não nos oferece
simples narrativas dessas batalhas – Batalha do Guadalete (711), Batalha de Las Navas de
Tolosa (1212), Batalha do Salado (1340), Batalha de Aljubarrota (1385), Tomada de Ceuta
(1415) – mas coloca sob o escopo de análise as narrativas que foram produzidas sobre esses
eventos a fim de compreender o seu significado dentro de uma conjuntura complexa de fatos,
que envolve forças gestadas por indivíduos e fatos entrelaçados em uma rede de
acontecimentos, circunstâncias e enredos, assim como o significado desses eventos foram
perpetuados, reutilizados e ressignificados posteriormente.
Para compreender, portanto, essa complexa rede de relações que contribuíram para a
formação da Península Ibérica, também se faz necessária a discussão sobre os conceitos
pertinentes a esse contexto. Esta é proposta da análise do primeiro capítulo, em que Renan
Frighetto expõe a necessidade de esclarecimento de conceitos sobre a antiguidade e o
medievo, assim como a abertura para novas ideias que nos levam à flexibilização dos
parâmetros cronológicos e didáticos do tempo histórico.
A revisão de conceitos é, portanto, de suma importância para a compreensão do
período e, consequentemente da batalha estudada, que, para o autor, deve ser compreendido
a partir do conceito de transformação, pois compreende certas continuidades ou lentas
mudanças que constituem a identidade própria do período denominado Antiguidade Tardia.
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR.
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Após situar o leitor no contexto, ele parte para a análise da Batalha do Guadalete que
opôs o reino hispano-visigodo de Toledo e os mauri, convertidos ao islamismo, culminando no
fim da dominação goda na Hispania.
O autor compreende a Batalha do Guadalete e seus desdobramentos como o início da
Alta Idade Média na Península Ibérica, porém, não compreende a batalha em si como o mote
dessa transformação. A batalha encontra-se em meio a uma conjuntura de contínua
fragmentação e enfraquecimento político do reino hispano-visigodo, constituindo-se como o
ápice dessa desestruturação que culmina efetivamente em mudanças nas estruturas do poder
que, a partir de então, passa a ser islamizado.
O segundo capítulo também aborda um confronto que opõe cristãos e muçulmanos
que, segundo José Rivair Macedo, foi uma das batalhas que contribuíram para a definição de
territórios da Península. Diferentemente da Batalha do Guadalete, a Batalha de Las Navas de
Tolosa findou com a vitória dos cristãos ibéricos, com o recuo dos muçulmanos e com a
aceleração do processo de hegemonia dos reinos cristãos peninsulares.
Tal vitória nessa batalha foi, portanto, a consagração da Reconquista. Assim,
compreende-se que a Batalha de Las Navas de Tolosa insere-se num processo de amplos
embates políticos e militares cujos objetivos eram a ampliação da fronteira cristã face ao
domínio dos muçulmanos que eram retratados como demônios nas canções de gesta, mas,
como aponta o autor, nem sempre foram tratados com rejeição. As relações entre cristãos e
mouros oscilavam entre a animosidade, a concorrência e a aliança.
Sobre a narrativa da batalha, o autor aponta que nas crônicas muçulmanas o evento é
minorizado, ou ainda, silenciado, o que possibilita a análise das diferentes perspectivas de
memória a que esses eventos estão sujeitos, assim como a variações dos indivíduos
idealizados na sua descrição, conforme o foco narrativo do cronista. Assim, é possível
visualizar elementos ideológicos que convergem para a cristalização dos ideais da
Cristandade, conferindo à batalha uma dimensão sagrada, concomitante com a ideologia da
Reconquista que, entre outros valores, transmitia a ideia da ilegitimidade da religião e do
poder islâmico.
A análise do relato da batalha também é o viés escolhido por Fátima Regina Fernandes
que no terceiro capítulo aborda a Batalha do Salado ou, mais especificamente, a utilização do
relato da batalha enquanto um instrumento ideológico.
A autora dialoga com o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, com a Crônica Geral de
Espanha e com a Crônica de D. Afonso IV para analisar as diversas formas de apreensão que a
batalha recebe nas diferentes fontes.
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Assim, no Livro de Linhagens é possível verificar, segundo a autora, a construção do
perfil do vassalo ideal, personificado em Álvaro Gonçalves Pereira, além de justificar e
legitimar a ação dos monges-guerreiros como modelos, uma vez que estes seriam
imprescindíveis para a defesa do reino.
Por sua vez, a Crônica Geral de Espanha, escrita logo após o Livro de Linhagens, num
momento de exílio imposto ao conde D. Pedro por seu irmão, D. Afonso IV, é possível verificar
o lado castelhano da batalha, mais especificamente os preparativos de Castela para o embate,
além de apontar as negociações de apoio do rei português ao castelhano.
Já a Crônica de D. Afonso IV, contida na Crônica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, sem
autoria reconhecida, é escrita no século XV, quando os atores do evento já não existem mais.
Dessa forma, o relato da batalha é menos detalhado, mas dá ênfase à ideia de uma guerra
justa, sendo que a guerra justa é a do rei. Só ao rei caberia o poder de deflagrar ou encerrar
uma guerra justa.
Diante disso, a autora consegue visualizar nas fontes diferentes formas de narrativa
sobre a batalha que seguem um objetivo específico, ou seja, cada uma tem um foco, uma
intenção ideológica concomitante com a necessidade de legitimação de um único personagem,
como o rei, ou um grupo específico, a nobreza que é destacada na Crônica Geral de Espanha a
partir da sua importância enquanto apoio do rei.
Dessa forma percebe-se que a narrativa é um tema extremamente frutífero para a
discussão histórica, visto as conexões que elas promovem entre o passado e suas
reutilizações. É nessa perspectiva que se desenvolve o quarto capítulo, o qual aborda a
evocação da Batalha de Aljubarrota.
Marcella Lopes Guimarães compreende a evocação de Aljubarrota como uma forma de
não só dialogar com a atual reflexão historiográfica, mas também como forma de analisar a
cultura portuguesa com a qual se relaciona e pela qual é retomada e ressignificada. É possível
verificar, segundo a autora, que a retomada desta batalha está inserida num contexto de
afirmação da identidade portuguesa como um país europeu, frente a sua inserção na
comunidade cultural europeia. Diante disso, a autora salienta que as fontes devem ser
analisadas para além do registro dos acontecimentos, abordando não só o sentido da batalha,
mas também o sentido da sua lembrança.
Para tanto, a autora utiliza quatro crônicas, escritas por Pero Lopez de Ayala, Fernão
Lopes, Jean Froissart e a Crônica do Condestabre. Cada uma dessas crônicas tem um foco
distinto que se relaciona a um objetivo determinado e diferente das demais. Assim, no que diz
respeito à primeira crônica, Ayala, castelhano, define D. João como um aventureiro que se
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chamava rei de Portugal. O Mestre de Avis também ganha destaque na crônica de Froissart, o
qual deixa claro que Aljubarrota é a prova de D. João.
A crônica de Fernão Lopes nos oferece um diferente viés. Escrevendo posteriormente à
batalha, Lopes compõe uma obra que celebra a nova dinastia, batizada na batalha.
“Diferentemente de Ayala ou Froissart, Fernão Lopes interpreta os eventos que narra via
providencialismo, pintando o Mestre de Avis com as cores de um messias [...].” (p.142). Como
a autora salienta, a escrita de Lopes é coerente com o contexto da qual emerge, no qual as
correntes messiânicas estão presentes, diferente do contexto de Ayala e Froissart.
Por sua vez, a Crônica do Condestabre, diferente das acima citadas, não é uma crônica
régia, mas uma crônica biográfica senhorial. Diante disso, é possível deduzir que seu foco não
será a exaltação dos feitos do rei, mas sim de um homem de armas. Nesta crônica o cavaleiro é
protagonista e ela é escrita para que seus feitos não sejam esquecidos.
Apesar dos diferentes matizes pelos quais a Batalha de Aljubarrota é abordada nas
crônicas, o fato é que podemos identificar um objetivo comum na sua escrita: a da lembrança.
Lembrança não necessariamente do evento em si, mas de uma excepcionalidade, a do rei ou a
do cavaleiro, que deverão ser rememoradas como um exemplo.
Desta feita, podemos compreender que as batalhas ou os feitos jacentes a elas são
utilizadas como monumentos de memória e também de simbolismo. Segundo Daniel Augusto
Arpelau Orta1, “a concepção de escrita da História na sociedade portuguesa do século XV
parece ter sido a eleição de temas considerados notáveis para a configuração política e
exaltação de qualidades morais”. (p.160)
Tal perspectiva parece coerente com a abordagem das fontes pertinentes às batalhas
ibéricas, assim como também o é para a análise perpetrada por Orta em torno da Tomada de
Ceuta, cujos estudos modernos dão a esse evento a monumentalidade de uma mudança de
eras: com ela a Idade Média é superada pela Modernidade. Diante disso, o próprio passado
torna-se monumental e como tal é resgatado, sobretudo quando se busca fundamentar uma
identidade através de primazias econômicas e de conquistas.
No que diz respeito às fontes, o autor aponta para o caráter ideológico da sua escrita.
No Livro dos Arautos, de autoria desconhecida, D. João teve a intenção de atacar Ceuta para
diminuir a ajuda africana ao reino de Granada. Porém, para o cronista Gomes Eanes de Zurara,
1
Daniel era Doutorando em História na UFPR e veio a falecer em junho de 2013. Em abril de 2014
recebeu do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR o título de Doutor post-mortem. A Revista
Diálogos Mediterrânicos, vinculada ao Nemed, um dos grupos de pesquisa do curso de História da UFPR,
do qual Daniel fazia parte, lhe dedicou seu quarto volume. Vide:
http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/78/85.
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a escolha de Ceuta resulta da paz com Castela e da possibilidade de atacar Granada. As fontes,
portanto, mostram-se diferentes ao apontarem a intenção régia diante do embate.
Por sua vez, Mateus de Pisano, proveniente da Península Itálica, escreve o Livro da
Guerra de Ceuta dez anos após Zurara, o que o coloca numa situação de possível leitura deste,
com o objetivo de divulgação da obra e do evento às demais regiões do continente através do
latim.
Percebe-se, portanto, que em todos os capítulos do livro os autores se preocuparam em
analisar as diferenças de narrativa que as fontes oferecem de um mesmo evento. Dessa
maneira, a obra insere-se num debate profícuo sobre o estudo de batalhas e narrativas que
por certo período foi rechaçado e condenado. Na verdade, a proposta desta produção não é a
análise do evento em si, mas suscitar a reflexão sobre a complexidade na qual esse evento está
inserido e a complexidade também dos seus discursos que nunca são neutros. As narrativas
não são simples narrativas, mas revelam, como podemos verificar, formas de divulgação de
valores morais, de conduta e de legitimidade. Em algumas das fontes analisadas podemos
verificar, inclusive, o explícito desejo de que o passado seja relembrado. E, de fato, ele é
relembrado como forma de legitimar, identificar, ou ainda, restituir uma identidade seja nos
séculos do medievo ou da atualidade. Dessa forma, além de explicitar a importância histórica
do estudo das batalhas e narrativas, os autores também situam o papel do historiador que,
além de estudar o passado, também percebe como este é utilizado no presente.
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DOCUMENTOS
HISTÓRICOS &
TRADUÇÕES
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Bulas Inquisitoriais: Ad Extirpanda (1252)*
Inquisitorial Bulls: Ad Extirpanda (1252)
Leandro Duarte Rust**
Universidade Federal de Mato Grosso
Resumo
Abstract
Neste trabalho apresentamos uma tradução
bilíngue, latim-português, de um importante
documento medieval, a bula Ad extirpanda
(1252). Usualmente qualificada como um dos
“textos fundadores da Inquisição”, essa bula é um
documento valioso do cenário político de meados
do século XIII. A tradução, inédita em língua
portuguesa, é acompanhada de breve texto
introdutório.
We present here an important medieval
document, the papal bull Ad extirpanda (1252), in
a bilingual translation, Latin-Portuguese. Usually
described as one of “the founding texts of the
Inquisition”, that bull recorded the political scene
at the middle of the 13th century. Unpublished in
Portuguese, the translation comes to public with a
brief introductory text.
Palavras-chave: Documentos Medievais; Bulas
Inquisitoriais; História Política.
Keywords: Medieval Documents; Inquisitorial
Bulls; Political History.
● Enviado em: 19/07/2014
● Aprovado em: 31/10/2014
*
**
Prezado leitor: todas as citações que emergem no texto desacompanhadas de referências integram o
documento traduzido ao final. Agradeço ao professor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza pela
paciente revisão desta tradução documental e a Carolina Akie Ochiai Seixas Lima pela leitura final do
texto.
Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002), Mestre em História Comparada
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005), Doutor em História Social (setor História Medieval)
pela Universidade Federal Fluminense (2010); Pós-Doutor em História pela Universidade de São Paulo
(2012). Pesquisador-fundador do "Vivarium - Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo" e
professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, na Universidade
Federal de Mato Grosso.
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Prólogo
O sol estava quase a pino, banhando o dia com uma claridade quente e ofuscante,
quando a voz finalmente surgiu. Ela ecoou vagarosa, longínqua, como o sussurro de uma
árvore, pois ventava muito na floresta de Barlassina. Era o sinal pelo qual Alberto e Carino
esperavam há horas. Ambos fizeram silêncio. Suspenderam a respiração e menearam as
cabeças para ouvir com atenção. O som chegou fosco, sem contornos claros, misturado com o
farfalhar da folhagem. Porém, foi o bastante. Eles se entreolharam e viram no rosto do outro a
mesma certeza: era a voz do inquisidor. Ele vinha pela estrada, tagarelando aos ouvidos de um
acompanhante enquanto caminhava naquela direção.
Com o coração disparado e os olhos esbugalhados pelo nervosismo, Alberto perguntou
ao companheiro como agiriam. A resposta o fez estremecer. Embora participasse da
emboscada, não estava preparado para ouvir que ele atacaria o inquisidor. A notícia percorreu
sua espinha como um calafrio. Sua mente então começou a formigar: como seria depois? O que
seria dele quando os dois fossem capturados e todos descobrissem quem atacou o homem
forte do papa?1 Pois isto era certo: eles não escapariam. Um ato como o que estavam prestes a
cometer não ficaria impune. Eles seriam caçados, capturados e entregues a um julgamento
implacável. Enquanto o suor molhava as palmas das mãos, a imaginação de Alberto foi
encharcada pelo medo de ser torturado, decapitado e ter seu corpo exposto como uma carcaça
infame. Ele entrou em pânico. Largou o falcastrum – uma longa faca curva usada na poda de
árvores – e se pôs a correr. Embora surpreendido pela deserção, Carino reagiu com uma
calma glacial. Baixou os olhos e apanhou o falcastrum. Deu uma longa tragada no ar quente,
ergueu um olhar fixo para a borda da floresta e esperou. Enquanto aguardou, imobilizado pelo
silêncio de caçador, repetiu para si mesmo: mataria o inquisidor sozinho.
Era sábado. Quase meio-dia. Pedro, um célebre inquisidor, viajava a pé com Domenico,
seu irmão na ordem religiosa fundada por São Domingos. Retornavam de Como, cidade onde
1
O inquisidor em questão havia sido designado diretamente pelo papa Inocêncio IV para atuar na
Lombardia, notadamente nas regiões de Cremona e Milão: RIPOLL, Thomas (Ed.). Bullarium Ordinis ff.
Praedicatorum. Roma: Typ. Hieronymi Mainardi, 1729, tomus I, p. 192 [Daqui em diante, nos referiremos
a esta coletânea documental através da sigla BOP]. Ver ainda: BENEDETTI, Marina. Inquisitori a Milano
dalla metà del XIII secolo. ACME: Annali della facoltà di lettere e filosofia dell’Università degli Studi di
Milano,
vol.
58,
fasc.
3,
2005,
175-238
(Disponível
em:
http://dialnet.
unirioja.es/servlet/revista?codigo=9431); PRUDLO, Donald. The Martyred Inquisitor: the life and cult of
Peter of Verona (†1252). Aldershot: Ashgate Publ., 2008, p. 5-70; SULLIVAN, Karen. The Inner Lives of
Medieval Inquisitors. Chicago: University of Chicago Press, 2011, p. 99-124.
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Pedro pelejava com as responsabilidades de prior dos dominicanos da localidade. 2 Era uma
rota habitual. Há meses, quando encontrava uma pequena trégua no combate à heresia ou por
ocasião de alguma festividade, o inquisidor deslocava-se por aquela estrada para instruir,
edificar, investigar e punir a comunidade confiada à sua autoridade. Por isso ele caminhava
sossegado quando Carino irrompeu de trás das árvores, como uma aparição medonha. De
arma em punho, o agressor avançou sobre o inquisidor. Foi certeiro, como um bote. Alertado
pelo susto, Pedro anteviu o primeiro golpe. Ergueu os braços e impediu que a lâmina descesse
sobre sua cabeça. Não foi suficiente. Comparado a uma espada, o falcastrum era um
instrumento rude, pouco afiado. Usá-lo como arma requeria mais dos músculos que da
destreza. Mas, no momento fatal, a ferramenta rudimentar se revelou vantajosa. A força
aplicada sobre o ataque foi descomunal e colocou Pedro de joelhos. Antes mesmo que ele
tomasse consciência do ferimento no braço, outro golpe o atingiu no ombro e o abateu.
Domenico mal teve chance de reagir. Com o alvo derrubado, Carino aprumou o corpo e
deu dois passos largos na direção do dominicano. Bramiu o falcastrum e o fez trovejar sobre a
segunda vítima. Enquanto o atacante desferia os golpes brutais sobre seu companheiro de
viagem, Pedro, já sentindo o calor deixando o corpo juntamente com o sangue que tingia o
chão, balbuciou no ouvido da morte: in manus tuas, Domine, comendo spiritum meum (“em
tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito”). Após derrubar Domenico, Carino se virou.
Retornou ao alvo. Agachou-se sobre o ferido. Impassível, sem desviar o olhar um instante
sequer, começou a rasgá-lo, abrindo feridas em várias partes do corpo. Por fim, Carino
esmagou a cabeça do inquisidor.3
Tensões sociais e disputas pela autoridade
No dia 6 de abril de 1252, o inquisidor Pedro de Verona (1206-1252) foi assassinado.
Para o historiador, essa morte é um episódio emblemático. O assassinato conferiu uma trágica
visibilidade aos muitos reveses sofridos pelo combate às heresias no norte da península
2
3
DONDAINE, Antoine. Saint Pierre Martyr: Études. Archivum Fratrum Praedicatorum, vol. 23, 1953, p. 69107; MERLO, Giovanni Grado. “Pietro da Verona, Pietro Martire: difficoltà e proposte per lo studio di un
inquisitore beatificato”. In: BOESCH-GAJANO, Sofia & SEBASTIANI, Lucia (Dir.). Culti dei santi, istituzioni
e classi sociali in età pre-industriale. Roma: L’Aquila, 1984, p. 471-488; VAUCHEZ, André. “Pierre martyr”.
In: Histoire des saints et de la sainteté chrétienne. Paris: Hachette, 1986, tomo 6, p. 224-228.
A versão narrativa deste prólogo foi fundamentada sobre as seguintes bases documentais: BALME,
François (Ed.). Lettre de frère Roderic de Atencia a Saint-Raymond de Pennafort sur le martyre de S. Pierre
de Vérone, de l Ordre des Frères-Pr cheurs: document inedit (annee 1252). Paris: X. Jevain, 1886, 22 p.;
AMBROGIO TAEGIO. Vita Sancti Petri Martyris Ordinis Praedicatorum. Acta Sanctorum, vol. 12, p. 705706.
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italiana. Durante os anos 1240, as ações inquisitoriais enfrentaram diversos obstáculos. Em
primeiro lugar estava o acirrado conflito entre o papa Inocêncio IV (1195-1254) e o
imperador Frederico II (1194-1250).
Tratava-se de uma disputa herdada. Quando a coroa pontifícia foi colocada sobre a
cabeça de Inocêncio, ele pôde sentir o peso da obrigação deixada por seus antecessores. Ele
devia levar o governante a responder por numerosas denúncias. As queixas contra o
imperador se empilhavam no interior da Cúria. Frederico era acusado de violar a liberdade da
Igreja, perseguir os membros do clero, atentar contra a autoridade espiritual, invadir os
territórios papais, descumprir os votos de cruzado.4 Enquanto a Igreja romana calculava as
penas espirituais cabíveis, Frederico contra-atacava. Agentes imperiais se espalharam pela
península, imiscuindo-se nos assuntos dos governos locais como um enxame de vozes
influentes. Interferindo nos concelhos urbanos ou ocupando os títulos de nobreza, os
partidários de Frederico estimularam a oposição ao papa. Mas o cenário era confuso. Em
muitas cidades o nome Hohenstaufen – carregado pela linhagem imperial – era pronunciado
com ódio entre os lábios. As lembranças das invasões, dos cercos e das humilhações impostas
pela família reinante desde o século XII eram feridas profundas e ainda abertas nas
consciências citadinas.5
Empurradas para a encruzilhada de interesses papais e imperiais, muitas cidades
tornaram-se palco de drásticas alternâncias entre os grupos no poder. As revoltas se
multiplicaram. O espectro da insurreição se alastrou e pairou sobre a própria Roma. Vendo-se
em uma situação insustentável, Inocêncio partiu em busca de refúgio na Gália. Lá, em julho de
1245, diante de um concílio reunido na cidade de Lyon, ele condenou Frederico, afirmando:
desgraçados os que acatassem as ordens do imperador, pois ninguém poderia obedecer a um
4
5
Ver: ABULAFIA, David. Frederick II: a medieval emperor. Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 375438; BERTRAM, Martin. “Gregorio IX, Innocenzo IV e Federico II. Tre legislatori a confronto”. In:
ROMANO, Andrea (Org.). “...colendo iustitiam et iura condendo...”. Federico II, legislatore del Regno di
Sicilia nell'Europa del Duecento: per una storia comparata delle codificazioni (Atti del convegno
internazionale). Roma: Edizioni De Luca, 1997, p. 11-27; BRESSLER, Richard. Frederick II: the wonder of
the World. Yardley: Westholme Pub., 2010; KANTOROWICZ, Ernst. Frederick the Second: 1194-1250.
Londres: Constable & Co., 1957, p. 441-518.
A.A.V.V. Popolo e Stato in Italia nell'età di Federico Barbarossa: Alessandria e la Lega lombarda. Relazioni
e communicazioni al XXXIII Congresso storico subalpino. Alessandria 6-9 ott. 1968. Torino: Deputazione
Subalpina di Storia Patria, 1970; GUYOT-JEANNIN, Olivier. I podestà imperiali nell'italia centrosettentrionale (1237-1250). Palermo: Sellerio, 1995; RACCAGNI, Gian Luca. Tra Lega Lombarda e pars
Ecclesie. L’evoluzione della seconda Lega Lombarda e la leadership dei legati papali negli anni a cavallo
della morte di Federico II (1239-1259). Società e Storia, n. 136, 2012, p. 249-275; STARN, Randolph.
Contrary Commonwealth: The Theme of Exile in Medieval and Renaissance Italy. Berkeley: University of
California Press, 1982, p. 31-59.
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homem degenerado, “de costumes sarracenos”, um “herege” obstinado,6 o “anticristo” em
pessoa.
A condenação não foi um triunfo, tampouco fez os conflitos cessarem. A península
seguiu fervilhando em tensões e conflitos, que se renovavam à medida que as elites locais se
declaravam guelfas – aliadas ao papa – ou gibelinas – leais ao imperador. Em localidades da
Lombardia e na Toscana, sobretudo nas grandes cidades como Florença, certos círculos
poderosos pareciam preferir a influência do imperador. Afinal, era melhor lidar com um
governante cujo palácio estava fincado na distante terra da Sicília do que com o papa, cujas
reivindicações de submissão universal ecoavam de perto, do próprio coração da península. 7
As ausências de um suserano remoto poderiam ser mais facilmente convertidas em brechas
para a autonomia e o autogoverno. Quer tenham embarcado em tal cálculo político ou porque
temiam novas derrotas pelas mãos dos agentes e parentes imperiais, muitos magistrados
demonstravam crescente hostilidade a tudo que chegava de Roma. Esse cenário de dissidência
abriu espaço para a instalação de grupos então reprimidos pelo papado, como foi o caso dos
cátaros.8
Desde o final da década de 1230, quando as principais fortalezas do Languedoc
sucumbiram ao domínio dos guerreiros convocados pelo papado para erradicar o mal daquela
região infestada de heresia, muitos simpatizantes e acusados de catarismo migraram para o
norte da península italiana. Eles se deslocaram atraídos pela notícia de que encontrariam
abrigo sob a oposição política que os governos citadinos ofereciam à autoridade apostólica.
6
7
8
MANSI, Giovanni Dominico (Ed.). Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Veneza: Antonio
Zatta, 1798, tomo 23, col. 613-619. Ver igualmente: POUZET, Philippe. Le pape Innocent IV à Lyon. Le
concile de 1245. Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 15, n. 68, 1929, p. 281-318 (Disponível através
do portal: http://www.persee.fr/); WOLTER, Hans & HOLSTEIN, Henri. Lyon I et Lyon II. Paris: Éditions
de l’Orante, 1966.
PRUDLO, Donald, The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 39-40.
Como lembrou Lorenzo Paolini, durante muito tempo os historiadores evitaram o termo “catarismo”
quando tratavam da história da península italiana durante o século XIII. A rejeição era justificada pelo
fato da palavra induzir a uma série de imprecisões metodológicas. Neste caso, falava mais alto a
constatação de que o emprego de “catarismo” levava o pesquisador a reproduzir generalizações
historiográficas, as quais, por sua vez, perpetuavam os efeitos ideológicos e os discursos pretendidos
pelas fontes eclesiásticas medievais. No entanto, a pertinência dessa revisão conceitual não implica
descartar o termo. Aqui, o empregamos com base na seguinte definição: catarismo consistiu em um
movimento religioso caracterizado pela combinação de (1) visões de mundo dominadas por elementos
dualistas, (2) atividade missionária itinerante, (3) diferentes formas de piedade laica, (4) formalizações
teológicas singulares (5) oposição à hegemonia eclesiástica vigente através da mobilização da cultura
escrita e de extratos da elite letrada. Trata-se, por conseguinte, de um movimento religioso
multifacetado, socialmente diversificado e com significativas variações locais, que, ainda assim, possui
aspectos comuns e recorrentes. PAOLNI, Lorenzo. “Italian Catharism and written culture”. In: BILLER,
Peter & HUDSON, Anne (Ed.). Heresy and literacy (1000-1530). Cambridge: Cambridge University Press,
1996, p. 83-103. Ver ainda: MERLO, Grado Giovanni. Eretici del medioevo: temi e paradossi di storia e
storiografia. Brescia: Morcellaina, 2001; TAYLOR, Faye. “Catharism and heresy in Milan”. In: ROACH,
Andrew & SIMPSON, James (Ed.). Heresy and the Making of European Culture: medieval and modern
perspectives. Aldershot: Ashgate Publ., 2013, p. 383-402.
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Ali, dentro das muralhas urbanas, estariam a salvo dos inquisidores recrutados pelo pontífice.
Em poucos anos, a tolerância aos hereges ganhou corpo. Suas pregações podiam ser ouvidas
nas praças; suas reuniões eram comentadas nas ruas. Sua presença entre a população citadina
tornou-se mais explícita, pública, incluindo as elites. Dizia-se que figuras abastadas de
Florença, Milão, Gênova e Como se tornaram credentes. Isto é, embora não imitassem o modo
de vida dos líderes heréticos, muitos nobres teriam abraçado ideias condenadas pela Igreja
romana.9
Por mais que o papado se mobilizasse, as elites obstinavam-se na oposição. E a
mobilização era crescente. Em junho de 1247, Inocêncio atribuiu ao frade Giovanni de Vicenza
(1200?-1265?) a função de inquisidor da Lombardia. Giovanni era uma aposta alta.
Carismático, teatral, precedido pela fama de milagreiro, o novo inquisidor preferia persuadir a
punir, pacificar a reprimir. Ele era um pregador habilidoso, que há quinze anos arrebatava
multidões.10 Em junho de 1251, encorajado pela morte do imperador Frederico, o pontífice
passou à ofensiva. Como as estratégias de persuasão não produziam os efeitos esperados,
novos inquisidores foram destacados para “caçar os hereges”. Foi então que Pedro de Verona
e Viviano de Bergamo (?-?) receberam suas missões na Lombardia. Em primeiro lugar, eles
deveriam se dirigir a Cremona, considerada pelo papado um covil de incrédulos; depois foram
imbuídos de extirpar a “peste herética” em Milão.11 Os meses se revezavam e com o passar do
tempo outros frades dominicanos foram despachados para as regiões da Lombardia, de
Veneza e da Marca Trevisana, onde deveriam encurralar os suspeitos de renegar a fé católica e
seus protetores, ministrando a justiça divina contra o “contágio dos culpados pela depravação
herética”.12 Em Roma, o clero acreditava que a desobediência era uma infestação que se
espalhava rapidamente. As ações punitivas deveriam seguir o mesmo ritmo, agora que
Frederico, o grande antagonista, havia saído de cena.
9
10
11
12
ANDREWS, Francis; PINCELLI, Maria Agata (Ed.). Churchmen and Urban Government in Late Medieval
Italy, c.1200-c.1450: Cases and contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; DAMERON,
George Williamson. Episcopal Power and Florentine Society, 1000-1320. Cambridge: Harvard University
Press, 1991; GIVEN, James Buchanan. Inquisition and Medieval Society: Power, Discipline, and Resistance
in Languedoc. Ithaca: Cornell University Press, 1997, p. 104.
Sobre a designação de Giovanni de Vicenza: BOP, vol. I, p. 174-175. Sobre as pregações do frade
dominicano e sua habilidade retórica: GERARDO MAURÍSIO. Cronica Dominorum Ecelini et Alberici
fratrum de Romano (aa. 1183-1237). Ed. Giovanni Soranzo. In: MURATORI, Ludovico (Ed.). Rerum
Italicarum Scriptores. Città di Castello: Casa editrice S. Lapi, 1914, tomo 8, pt. 4, p. 31-34; THOMPSON,
Augustine. Revival Preachers and Politics in Thirteenth-Century Italy: the Great Devotion of 1233. Oxford:
Clarendon Press, 1992; VAUCHEZ, André. Une campagne de pacification en Lombardie autour de 1233.
In: Mélanges d'Archéologie et d'Histoire de l'École Française de Rome, t. 78, 1966, p. 503-549.
BOP, vol. I, p. 192-193, BERGER, Elie (Ed.). Les Registres d’Innocence IV: publiés ou analysés d’aprés les
manuscrits originaux du Vatican et de la Bibliothéque Nationale. Paris: Librarie Thorin & Fils, 1897, t. III,
n. 5345. Ver ainda: TILATTI, Andrea. Eretici in friuli nel duecento? Ce Fastu? Rivista della Società
filologica friulana, vol. 73, n. 1, 1997, p. 45-70.
BOP, vol. I, p. 199-200.
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Mas consumar a vitória inquisitorial permanecia um feito distante, negado ao papado
pelas fortes tensões sociais. Anos antes, a própria Igreja acusara os cátaros de incendiar um
convento em Viterbo.13 Talvez a denúncia fosse um exagero, uma forma de engrandecer um
inimigo e justificar o apelo a ações mais duras. Uma força maléfica capaz de tal ataque só seria
combatida com medidas severas, extremas. O remédio deveria estar à altura da doença. Seja
como for, retórica ou literal, a incriminação registrou algo notável: a Igreja de Roma
acreditava que sua autoridade era afrontada, desafiada à luz do dia por dissidentes.
Provavelmente esse temor era alimentado pelas notícias que chegavam à Cúria, dando conta
de armadilhas preparadas contra os homens encarregados de aplicar a justiça inquisitorial.
Em 1239, um grupo de cátaros irrompeu pelas portas do convento dominicano em
Orvieto e investiu contra os frades com espadas à mão. Seu objetivo era matar o inquisidor
Ruggiero Calcagni (1200?-1274?), que mal escapou com vida. Por um triz o homem escolhido
por Gregório IX (1160-1241) para organizar os tribunais inquisitoriais de Orvieto e Florença
não terminou esfolado por um herege. O episódio ganhou imenso vulto e suas repercussões
pareciam não ter fim. Dez anos depois, os rumores sobre o ataque ainda zuniam sobre a
paisagem do norte peninsular: Ruggiero seguia no encalço de seus algozes, denunciando-os e
submetendo-os a interrogatório. Aos olhos do inquisidor o crime jamais prescreveria 14.
O ataque a Pedro de Verona, portanto, não foi um acontecimento excepcional. Talvez
nosso hábito romântico de conceber as heresias como “religiosidades populares” nos
embarace diante do fato do assassinato ter sido planejado por nobres milaneses, figuras da
elite rodeadas pela fama de notórios credentes: Stefano Confanonerio, Guidoto de Sachella,
Jacobo della Clusa.15 O círculo de conspiradores se fechou com a contratação daqueles que
deveriam fazer Pedro Verona sangrar: Manfredo Chrono, Carino da Balsamo e Albertino
Porro.16 Desses últimos, dois compareceram ao local da ação. Somente um levou o plano
adiante. A maquinação contra o inquisidor não parece ter sido o revide de uma espiritualidade
popular acuada por instituições eclesiásticas. Foi uma ação deflagrada por altas esferas de
poder. Neste caso, o historiador poderia cogitar a hipótese de uma instrumentalização política
13
14
15
16
FUMI, Luigi. I Paterini in Orvieto Archivio storico italiano, series 3, vol. 22, 1892, p. 64; PRUDLO, Donald,
The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 40.
LANSING, Carol. Power and purity: cathar heresy in medieval Italy. Oxford: Oxford University Press,
1998, p. 57.
AMES, Christine Caldwell. Peter Martyr: the inquisitor as saint. Comitatus: a Journal of Medieval and
Renaissance Studies, vol. 31, n. 1., 2000, p. 137-174; AMES, Christine Caldwell. Righteous Persecution:
Inquisition, Dominicans, and Christianity in the Middle Ages. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2009, p. 62.
PRUDLO, Donald. The assassin-saint: the life and cult of Carino of Balsamo. The Catholic Historical
Review, vol. 94, 2008, p. 1-21.
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da luta herética, raciocínio que a converteria em um meio para a defesa de certas posições no
governo citadino.17
Porém, não nos deixemos hipnotizar por desventuras pessoais. A morte de Pedro de
Verona expressa muito mais que tragédias individuais. Ela condensa as tensões sociais da
pujante sociedade urbana do século XIII.
Explicá-la é uma tarefa que implica compreender rivalidades aristocráticas
multifacetadas, disputas que tinham na oposição “guelfos versus gibelinos” apenas uma de
suas muitas modalidade de expressão. A designação de um inquisidor movia uma importante
peça no complexo tabuleiro de xadrez da política urbana. As poderosas famílias deveriam
lidar com o homem cerimoniosamente enviado pelo papa para caçar os hereges. A postura
assumida pelas linhagens afetava sua posição de poder. Aliar-se ou opor-se ao recém-chegado
era uma decisão importante, muitas vezes crucial, pois poderia fortalecer ou estremecer
algumas colunas que sustentavam a influência de uma estirpe sobre o governo local. O modo
de se relacionar com o novo juiz poderia reabrir a disputa pela habilidade de apelar à tradição
católica, pela possibilidade de abrigar os interesses sob a proteção das normas eclesiásticas
ou ainda por ostentar a marca da boa fé para os patrimônios familiares. 18
E mais. Aproximar-se ou distanciar-se do inquisidor era algo que calava fundo nos
corações e mentes do popolo minuto. A expressão nomeia uma multidão de homens e
mulheres pobres, mas juridicamente livres; iletrados, entretanto, politicamente ativos.
Tratava-se dos grupos sociais mais expostos ao sobe-e-desce da prosperidade e das crises
urbanas e que, por isso, gangorreavam sobre a linha divisória entre a miséria e a chance de
trabalhar nas oficinas ou corporações.
17
18
Sobre as controvérsias e temas historiográficos desta perspectiva, ver: SIMPSON, James & ROACH,
Andrew (Ed.). Heresy and the Making of European Culture: Medieval and Modern Perspectives. Leiden:
Ashgate Publishing, 2013.
Não se trata, aqui, de retornar ao modelo explicativo criado pela historiografia do século XIX. Nele, as
cidades do norte italiano eram apresentadas como nichos da heterodoxia, verdadeiros redutos do
pensamento herético. Tracejada numa época de anticlericalismo nacionalista, esta perspectiva fixava a
imagem de que as concepções de poder existentes à época eram incompatíveis com o processo de
urbanização da península que, por assim dizer, teria produzido novas formas de consciência coletiva. A
conclusão, sob este prisma, se impõe: um dos principais indicadores históricos de que as cidades
italianas não tinham lugar na velha ordem social encimada pelo Imperador e pelo Papado estaria no fato
de abrigarem uma consciência religiosa nova que, alheia e oposta àquela defendida pelos poderes
universais, foi condenada como “herética”. A perspectiva que adotamos neste texto é outra: as formas de
expressão e crenças chamadas heréticas permeavam os conflitos aristocráticos travados dentro da
cidade. Não vislumbramos, por conseguinte, “uma nova consciência religiosa coletiva” ou uma
“identidade religiosa comunitária”; mas um quadro mais indefinido, complexo e contraditório: o de
práticas religiosas segmentadas, imbuídas nas disputas nobiliárquicas. Ver: BRUSCHI, Caterina. Familia
inquisitionis: a study on the inquisitors’ entourage (XIII-XIV centuries). Mélanges de l’École française de
Rome - Moyen Âge, vol. 125, n.2, 2013 ( Disponível em: http://mefrm.revues.org/1519); LASING, Carol.
Passion and Order: Restraint of Grief in the Medieval Italian Communes. Ithaca: Cornell University Press,
2008.
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Para essas pessoas, a voz de um homem da Igreja tinha grande peso. Não que o popolo
fosse um rebanho dócil, já domesticado pela autoridade eclesial. Numeroso, ele abrangia
parcelas sociais muito diferentes, mas sempre irrequietas, castigadas por taxações e
propensas a estourar em revoltas e insurreições. 19 Essa multidão encontrava na religião
publicamente praticada o centro nervoso de suas identidades. As festividades que celebravam
a coesão comunitária, as edificações e os cultos consagrados à cidade, os rituais e as práticas
que reforçavam a solidariedade e a proteção coletivas: tudo isto tocava no cerne dos diversos
interesses abrigados no interior do popolo. Portanto, acolher ou rechaçar o inquisidor eram
opções a ser levadas em conta segundo as reações desses grupos. A morte de Pedro de Verona
pode indicar que uma parcela da elite milanesa via o popolo como uma ovelha religiosa
desgarrada do rebanho controlado pelo papa e seus pastores dominicanos. Talvez os
conspiradores esperassem ser acolhidos como protetores da cidade e, por isso, foram
adiante.20
Há muito mais a ser mencionado. As missões inquisitoriais colocavam a Igreja em um
face a face com diversas transformações sociais. Entretanto, nas décadas que antecederam o
assassinato na floresta de Barlassina, as missões reiteradamente saíram em desvantagem
desta acareação. Como afirmou Donald Prudlo, Roma liderava: “many uncoordinated efforts
tried to root the Cathars out, some communal, some episcopal, and still others papal. These were
disconnected however and failed to expose the heretical presence, much less eradicate it”21. Os
fracassos da ação inquisitorial atingiram um clímax com o assassinato de Pedro de Verona.
Por este motivo, a notícia do atentado aparentemente foi recebida pelo papado e a nascente
ordem dos dominicanos como a evidência que faltava para confirmar a suspeita: eles viviam
uma época de perseguição da fé católica. Era preciso revidar.
19
20
21
CASAGRANDE, Giovanna. “Religious in the service of the commune: the case of thirteenth- and
fourteenth-century Perugia”. In: ANDREWS, Francis (Ed.). Churchmen and Urban Government in Late
Medieval Italy, c.1200–c.1450: cases and contexts. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 181200; COHN JR., Samuel Kline. Lust for Liberty: the politics of social revolt in Medieval Europe, 1200-1425.
Cambridge/London: Harvard University Press, 2008; HENDERSON, John. Piety and charity in late
medieval Florence. Oxford: Clarendon Press, 1994; NAJEMY, John M. A History of Florence 1200-1575.
Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 35-95; POLONI, Alma. Il commune di popolo e le sue istituzione
tra Due e Trecento. Alcune riflessioni a partire dalla storiografia dell’ultimo quindicennio. Reti Medievali
Rivista, n. 13, vol. 1, 2012, p. 1-25.
KAEPPELI, Thomas. Une somme contre les hérétiques de S. Pierre Martyr (?). Archivum Fratrum
Praedicatorum, vol. 17, 1947, p. 295-335. Há discordância acerca dessa afirmação, ver: WATERS, W.G.
The five italian shires: an account of the monumental tombs of S. Augustine at Pavia, S. Dominic at
Bologna, S. Peter Martyr at Milan, S. Donato at Arezzo and of Orcagna’s Tabernacolo at Florence.
Londres: John Murray, 1906, p. 103-107. Sobre as divergências das interpretações oitocentistas, são
igualmente representativos: CANTÚ, Cesare. Les hérétique d'Italie. Paris: Librarie Saint-Germain-desPrés, 1869, vol.1, p. 203-207; PERRENS, F.-T. Saint Pierre martyr et l'hérésie des patarins à Florence.
Revue Historique, t. 2, fasc. 2, 1876, pp. 337-366.
PRUDLO, Donald, The Martyred Inquisitor… op. cit., p. 40.
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O primeiro contragolpe sobre a chamada audácia herética teria sido perpetrado
diretamente dos céus. Deus decidiu intervir sobre os rumos da guerra espiritual –
apregoavam os aliados papais. Sua versão dos acontecimentos dizia o que segue. Tão logo os
frades resgataram o corpo de Pedro e o sepultaram em um sarcófago de mármore na Igreja de
São Simpliciano, notícias de milagres começaram a fermentar pelas ruas de Milão. A morte
não impedira o inquisidor de travar o combate contra as heresias. Intercedendo do além, da
“feliz pátria para a qual havia retornado o peregrino celestial”,22 ele curava enfermos
desacreditados e libertava pobres criaturas possuídas pelo diabo. Já na noite do sepultamento,
os restos mortais tornaram-se um symbolum fidei e o assassinado ganhou outro nome: “Pedro
Mártir”, afinal, ele sacrificara a vida pela verdade da fé assim como havia feito Pedro, o
príncipe dos apóstolos, a rocha fundamental que sustentava toda Igreja. 23 O martírio fizera do
ataque ao inquisidor um acontecimento apostólico. Ou seja, aquela morte já não deveria ser
vista como uma fatalidade local, mas como episódio de uma história universal, encabeçada,
desde a Antiguidade, pelo poder papal. A emboscada foi acrescida à lista de eventos que
contavam uma história do primado da autoridade petrina, justificando-o.24 O “tempo dos
mártires” não havia terminado. A fé ainda era fecundada por sangue. Sangue derramado em
nome do papa.
Com a verdade reluzindo da outra margem do Além, os cátaros teriam caído em
desespero. Em poucas semanas, parentes dos conspiradores teriam abjurado ao catarismo e
ingressado na ordem dominicana. A paixão sofrida pelo inquisidor teria despertado as
consciências para a fé autêntica. Outra prova disso teria sido o comportamento do popolo
minuto, supostamente tomado por alvoroço quando a notícia do assassinato começou a
saltitar de boca em boca. Ainda segundo essa versão, na manhã seguinte ao ataque, a cidade
inteira teria saído às ruas, atendendo aos apelos de Leão de Perego (?-1257), arcebispo de
Milão. Primeiro franciscano a ocupar o prestigioso posto de arcebispo ambrosiano, Leão teria
agitado a população. Todos teriam sido comovidos por sua pregação exaltada, que via no
22
23
24
AMBROGIO TAEGIO. Vita Sancti Petri Martyris Ordinis Praedicatorum. Acta Sanctorum, vol. 12, p. 706.
Idem, p. 707.
Neste sentido, a hagiografia de Pedro de Mártir poderia ser considerada um dos textos fundamentais do
processo de formação da autoconsciência eclesiológica do papado como cardo ecclesia, princípio que
alcançou grande expressão artística e historiográfica entre os séculos XIII e XV. Ver: BAGLIANI, Agostino
Paravicini. Le chiavi e la tiara: immagini e simboli del papato medievale. Roma: Viella, 2005;
MACCARRONE, Michele.Vicatius Christi: storia del titolo papale. Roma: Facultas Theologica Pontificii
Athenaei Lateranensis, 1952; La Teologia del Primato Romano del Secolo XI. Milão: Vita e Pensiero, 1971;
I fondamenti “petrini” del primado romano in Gregório VII. Studi Gregoriani, 1989, vol. 13, p. 55-96;
ZERBI, Pietro. Romana Ecclesia, cathedra Petri: studi e documenti di storia ecclesiastica. Roma: Herder
Editrice e Libreria, 1991, 2 vol.; RUSCONI, Roberto. Santo Padre: la santità del papa da San Pietro a
Giovanni Paolo II. Roma: Viella, 2010.
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martírio uma santificação selada pelos céus. Liderada por ele, a multidão teria corrido para
encontrar os dominicanos e implorar-lhes que o bem-aventurado cadáver fosse sepultado na
basílica de Santo Eustórgio, principal edifício religioso da cidade.
Levar as pessoas a acreditar em tais imagens miraculosas e arrebatadoras era,
precisamente, o que pretendia a narrativa hagiográfica que então passou a ditar a maneira de
lembrar o inquisidor. As cenas descritas acima receberam as pinceladas fundamentais quando
Jacopo de Varezze (1230?-1298) as incluiu na Legenda Aurea, em meados de 1260;25 e foram
emolduradas em 1276, quando a “Vida de São Pedro Mártir” concluída por Tommaso Agni
(1205?-1277), patriarca de Jerusalém e legado papal na Terra Santa, foi declarada a versão
oficial.26 A narrativa era parte da mobilização realizado pela ordem dominicana e pelo papado
para elaborar uma memória triunfal, que ocultasse contradições e fracassos: a morte do
inquisidor deveria ser recordada como ação de desesperados, como prova de que os hereges,
já sem opções para onde fugir e sem lugares para se esconder, só poderiam recorrer a
medidas pusilânimes, traiçoeiras, como emboscadas armadas nas sombras, em grotões rurais,
longe da vista de todos. Visto sob este prisma, o martírio demonstra que os espaços públicos
urbanos, teatros da autoridade legítima, eram inteiramente católicos. Donde a comovente
cena da multidão unida pela devoção ao mártir. Tal sentimento seria o mais novo símbolo de
um inebriante predomínio da autoridade eclesiástica – segundo a narrativa hagiográfica. Aos
hereges teria restado lançar mão da brutalidade dos párias e se esgueirar para os espaços
ocultos, rurais.27
Porém, enquanto o culto ao novo mártir tomava forma, Inocêncio IV redobrou as
iniciativas institucionais. Sua reação veio em questão de dias. Em 27 de abril, ele recorreu aos
magistrados das cidades do norte. Para restabelecer a ordem abalada pelo assassinato, os
homens à frente do governo urbano deveriam auxiliar os frades pregadores em tudo
25
26
27
JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução: Hilário Franco Júnior. São Paulo: Cia.
Das Letras, 2003, p. 387-400.
ORLANDI, Stefano (Ed.). S. Pietro Martire da Verona: leggenda di fra Tommaso Agni da Lentini nel
volgare trecentesco. Florença: Il Rosario, 1952.
Como parte dos esforços de propaganda elaborados em redor do martírio, em 1253, Inocêncio IV
inscreveu Pedro no rol dos santos da religião católica. Pedro foi transformado em segundo santo
dominicano – o primeiro havia sido o próprio fundador da Ordem – através de um processo de
canonização que permanece um dos mais rápidos da história. Ver: FESTA, Gianni (Ed.). Martire per la
fede: San Pietro da Verona, domenicano e inquisitore. Bolonha: Edizioni Studio Domenicano, 2007;
GÓMEZ-CHACÓN, Diana Lucía. San Pedro Mártir de Verona. Revista Digital de Iconografía Medieval, vol.
6, n. 11, 2014, p. 79-96; IMPROTA, Andrea. Dal pulpito al sepolcro: contributo per l’iconografia di San
Pietro Martire da Verona tra XIII e XIV secolo. Porticvm: revista d’estudis medievals, n. 1, vol.1, 2011, p.
105-119; MALÉ, Gemma. El retaule de sant Pere Màrtir de Verona: un instrument de propaganda
dominica, Porticvm: revista d’estudis medievals, n. 2, 2011, p. 52-67; MONTGOMERY, Scott. Il Cavaliere
di Cristo: Peter Martyr as dominican role model in the fresco cycle of the Spanish chapel in Florence.
Aurora, vol. 1, 2000, p. 1-28.
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necessário para erradicar a “pestilência dos hereges”. O primeiro passo nessa direção – e um
claro sinal da obediência esperada pela autoridade apostólica – seria cumprir, integralmente,
as leis anti-heréticas promulgadas pelo falecido Frederico II.28 Quando se viu no olho da
tormenta, o pontífice se abrigou sob a força das legislações imperiais – promulgadas por seu
maior adversário. O direito canônico não bastava. Em questões envolvendo punição secular,
era preciso exigir dos magistrados o rigor devido aos assuntos do imperador.29
Dias depois, Inocêncio investiu o provincial da Lombardia com poderes para apontar
novos inquisidores e remover quem julgasse inadequado.30 Mas não era suficiente. A ousadia
dos hereges exigia uma resposta mais firme. Se eles não temiam as consequências de realizar
uma tocaia contra um inquisidor designado pela autoridade apostólica, era porque,
provavelmente, estavam em grande número e contavam com a proteção e os favores de
muitos. Era necessário instruir os governantes verdadeiramente cristãos a agir de modo
sistemático e abrangente. Aos olhos do clero pontifício, apenas leis severas e metódicas
impediriam que as cidades do norte se transformassem em antros da heresia.
Nas semanas seguintes ao assassinato de Pedro de Verona, trinta e oito leis deste tipo
foram redigidas no interior da Cúria romana. Com a redação concluída no dia 15 de maio de
1252, cópias foram enviadas para a Lombardia, a Romanha e a Marca Trevisana. Os
historiadores se referem a estas constituições com “bula Ad extirpanda”.
A Ad extirpanda
Há muito tempo os historiadores são enfáticos quanto à Ad extirpanda. Antes que
concluísse sua famosa A History of the Inquisition of the Middle Ages, em 1888, Charles Henry
Lea qualificou o texto formulado por Inocêncio IV como “a carefully considered and elaborate
law which should establish machinery for systematic persecution as an integral part of social
edifice in every city and every state, though the uncertain way in which bishop, inquisitor, and
friar are alternately referred to in it shows how indefinite were still their respective relations
28
29
30
Neste caso, trata-se, das medidas decretadas contra as heresias no bojo das Constituições de Melfi, de
1231 – notadamente as que integram o primeiro livro: STÜRNER, Wolfgang (Ed.) Die Konstitutionen
Friedrichs II. für das Königreich Sizilien, MGH Const. 2, supp, 1996; POWELL, James (Ed.) The Liber
Augustalis ; or, Constitutions of Melfi, promulgated by the Emperor Frederick II for the Kingdom of Sicily in
1231. New York: Syracuse University Press, 1971. Ver ainda: SACKVILLE, L. J. Heresy and Heretics in the
Thirteenth Century: The Textual Representations. Woodbridge: The Boydell Press, 2011, p. 88-113.
BOP, vol. I, p. 205.
BOP, vol. VII, p. 28.
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and duties in the matter.”31 O ponto de vista se manteve ao longo do século XX. As trinta e oito
leis inocencianas são, frequentemente, mencionadas como uma declaração de instalação de
um regime penal gestado desde primórdios do século XII. Através delas a transformação do
ocidente em uma sociedade repressora32 teria chegado a seu termo. Em outras palavras, elas
constituiriam o marco documental do advento da Inquisição: “the papal bull Ad extirpanda
established the Inquisition which had been worked out between 1227 and 1241”.33
Envolvidas neste espectro, as leis de maio de 1252 quase sempre arrancam
superlativos dos estudiosos. E o fazem de tal modo que enxergá-las como medidas
repressoras costuma ser pouco. Elas deveriam ser vistas como atos de afirmação da soberania
papal sobre toda a cristandade. Não poderíamos estudá-las como capítulos de história local,
enraizada numa região do norte peninsular italiano. A Ad extirpanda teria sido maior, um
evento civilizacional: o longo tentáculo com o qual uma monarquia poderosíssima, a Corte
papal, teria envolvido e estrangulado a vida em sociedade. Exagero? Basta ler conclusões
como esta: “com a bula promulgada por Inocêncio IV, a Inquisição [...] foi oficializada [...]. Com
esse novo poder, que se difundiu na Europa germânica, na França meridional, na Itália
setentrional e na parte cristã da Espanha, o papado passou a controlar todas as esferas da
vida”.34 Com uma fisionomia supostamente totalitária, o poderio do papado teria sido
declarado de maneira apoteótica, suprema. As leis inocencianas teriam sido uma prova de que
as ambições temporais do papado chegavam aos pináculos da política. Mesmo após a
autoridade papal entrar em declínio, atingida pelas rajadas da “crise do século XIV” 35, a
magnitude da Ad extirpanda teria vingado por séculos, sustentando um reino de medo
transatlântico, que castigava bruxas no México, sodomitas no Brasil, cristãos-novos em Goa.36
31
32
33
34
35
36
LEA, Charles Henry. A History of the Inquisition of the Middle Ages. New York: Macmillan Co., 1906, vol.1,
p. 337.
Caracterização que obedece à periodização consagrada no final da década de 1980 através de uma obra
que goza de uma formidável reputação de “clássica”: MOORE, Robert Ian. The Formation of a Persecuting
Society: Authority and Deviance in Western Europe 950-1250. Oxford: Wiley Publ., 2007. Para a crítica
historiográfica a essa abordagem, ver: LAURSEN, John Christian & NEDERMAN, Cary (Ed.). Beyond the
Persecuting Society: religious toleration before the Enlightenment. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1998.
INNIS, Harold Adams. Empire and Communications. Lanham: Rowman & Littlefield, 2007, p. 154.
NAZÁRIO, Luís. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 41.
Apesar de ser uma referência historiográfica consolidade, a ideia de uma “crise do século XIV” se presta a
revisões e debates. Sobre isso, ver: CAMPBELL, Bruce. (Ed.) Before the Black Death: studies in the "crisis"
of the Early Fourteenth Century. Manchester: Manchester University Press, 1991.
Sobre a associação histórica entre Inquisição e Totalitarismo: GREEN, Toby. Inquisition: the reign of fear.
New York: Macmillan, 2009; MURPHY, Cullen. God’s Jury: the Inquisition and the making of the Modern
World. Boston: Mariner Books, 2012, p. 52-55; PÉREZ, Joseph. The Spanish Inquisition. Londres: Profile
Books, 2006, p. 175; PRESTON, Paul. The Spanish Holocaust: Inquisition and extermination in TwentiethCentury Spain. London, Harper Press, 2012; SCIOLINO, Anthony. The Holocaust, the Church, and the law
of unintended consequences. Bloomington: iUniverse, 2012, p. 1-62. Sobre a década de 1250 – e com ela,
da Ad extirpanda – como ápice da monarquia papal, ver: MORRIS, Colin. The Papal Monarchy: The
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Mas devemos ter cautela. Para isso, não é preciso enveredar pelos acalorados debates
sobre a validade da associação entre inquisição e regimes totalitários, como o nazismo. Basta
lembrar que a bula não foi promulgada como uma iniciativa de triunfo, mas como uma reação
a uma atmosfera política em que os inquisidores e seus partidários respiravam adversidades e
perigos mortais. Se as linhas da Ad extirpanda estão tomadas por uma linguagem dura, severa,
que transmite ao leitor a impressão de testemunhar uma intervenção avassaladora; suas
entrelinhas estão repletas de tensões, reveses e fracassos. É necessário estar atento aos
interstícios do discurso.
A principal razão para o vulto histórico atribuído à bula repousa em outro aspecto:
através da lei vinte e cinco, Inocêncio IV autorizou o uso da tortura nas investigações. O
governante deveria “coagir todos os hereges aprisionados, sem chegar à amputação dos
membros e ao risco de morte”.
Há quem tenha visto nesta medida uma prova inequívoca de que a Igreja romana foi um
organismo político soberano durante o século XIII. Isto é, ela teria exercido prerrogativas
típicas de um estado moderno.37 Porém, outra leitura pode ser feita. Ao autorizar a aplicação
da tortura, o papa vinculou competências inquisitoriais a jurisdições seculares. Aquela não era
uma matéria sujeita às decisões eclesiásticas. Os próprios clérigos não poderiam aplicar a
tortura. Os hereges poderiam ser expostos ao uso da força porque tinham cometido delitos
semelhantes aos que eram punidos pelos governos temporais. Eles deveriam ser tratados com
violência “tal como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais”.
Neste ponto, o papa, provavelmente, oferecia uma demonstração de sua identificação
com o nome “Inocêncio”. Meio século antes, seu mais ilustre antecessor, chamado Inocêncio III
(1160?-1216), afirmou sem titubear: os heréticos eram culpados de suprema traição. Quando
desertavam da fé, eles apunhalavam pelas costas a mais alta dignidade, a majestade de Cristo,
instância à qual todos os imperadores e reis prestariam contas. Em 1199, o papado declarou
os hereges culpados do crime de lesa-majestade.38 Um jurista calejado como o cardeal
Sinibaldo Fieschi sabia que a lei romana autorizava a tortura de traidores, por, entre outras
37
38
Western Church from 1050 to 1250: The Western Church from 1050 to 1250. Oxford: Oxford University
Press, 1989, p. 474-476. Sobre a magnitude histórica atribuída à bula: ESCUDERO, José Antonio.
Intolerancia e Inquisición. Madrid: Soc. Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2006, vol. 2, p. 206.
Esta foi a opinião consagrada por: MAITLAND, Frederic William. Roman Canon Law in the Church of
England. Six Essays. London: Methuen & Co., 1898; posteriormente retomada por: SAYERS, Jane.
Innocent III: leader of Europe (1198-1216). New York: Logman, 1994.
RUST, Leandro Duarte. Bulas inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Revista
de História, São Paulo, n. 166, 2012, p. 129-161.
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razões, negarem a autoridade imperial.39 Quando se tornou o papa e escolheu ser chamado de
“Inocêncio IV”, o cardeal Fieschi uniu as peças dos quebra-cabeças. Ele completou o raciocínio
de seu predecessor: já que os heréticos são traidores da majestade do Altíssimo, então,
conforme assegurava o direito romano, poderiam ser legalmente submetidos à dor. Os
flagelos, no entanto, não poderiam ser infligidos por clérigos. A tortura era questão mundana,
espúria, que mergulhava em pecado o encarregado de cumpri-la. Era um assunto de César,
não de Cristo.
Se a Ad extirpanda assegurou o lugar da tortura como procedimento inquisitorial,
conforme sugeriu Edward Peters, 40 ela o fez reafirmando tal procedimento como um assunto
eclesiástico e, ao mesmo tempo, secular. Se a inquisição surgiu como um “maquinário para
perseguição sistemática” – segundo a célebre definição de C. H. Lea –, então é necessário
reconhecer que bispos diocesanos, frades mendicantes e potentados citadinos acionavam as
alavancas lado a lado. Os papéis cabíveis a cada um eram desiguais; porém, exercidos
conjuntamente. Os potentados deveriam jurar obediência aos inquisidores e ao dignitário
episcopal. Quem se recusasse a fazê-lo deveria ser considerado um inepto, despojado de toda
autoridade: suas palavras seriam ocas; suas decisões, nulas. Além disso, caso falhassem no
cumprimento das leis elaboradas pela Igreja para “extirpar a praga herética”, eles deveriam
ser punidos. Após a excomunhão cair sobre seus ombros e suas terras serem lançadas sob
interdito, esperava-se que fossem tratados como infames, multados e removidos do ofício.
Embora drásticas, as prescrições papais não ocultavam algo evidente em todo
documento: a execução das medidas de combate à heresia dependia inteiramente da
mobilização secular. Desde as acusações do delito de heresia até a destruição da “casa na qual
o herético ou a herética tiver sido descoberto”, passando pela busca, captura e pelo
aprisionamento dos denunciados, tudo dependia dos recursos e agentes dos governos
urbanos. Os espaços das ações inquisitoriais eram demarcados a partir da “jurisdição e dos
distritos pertencentes ao ofício” citadino. O corpo de oficiais e notários necessários para
realizar os procedimentos previstos era mantido pelo erário urbano, o qual deveria arcava
com os pagamentos e as recompensas devidas. Preservar a custódia dos bens dos capturados;
encontrar uma prisão adequada para os detidos por heresia; despachar soldados e ajudantes
39
40
Ver: BERNSTEIN, Neil W. Ethics, Identity, and Community in Later Roman Declamation. Oxford: Oxford
University Press, 2013, p. 44-56; HARRIES, Jill. Law and Empire in Late Antiquity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p. 123-135; PETERS, Edward. Inquisition. Berkeley/Los Angeles: University of
California Press, 1989, p. 11-74; PÖLÖNEN, Janne. Plebeians and repression of crime in the Roman
Empire: from torture to convicts to torture of suspects. Revue Internationale de Droits de l’Antiquité, vol.
51, 2004, p. 217-257; TRACY, Larissa. Torture and Brutality in Medieval Literature: Negotiations of
National Identity. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2012.
PETERS, Edward. Torture. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999, p. 65.
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capazes garantir a ordem e a proteção dos inquisidores; fabricar e arquivar os livros que
registrariam para sempre a perfídia dos condenados: estas e outras tarefas fundamentais só
eram possíveis à custa dos poderes seculares. Para concretizar um espaço de manobras
inquisitoriais, a Igreja romana dependia das comunas italianas.
Inocêncio IV mantinha-se fiel à linha de atuação delineada por dois antecessores, Lúcio
III (1097-1185) e Inocêncio III: os procedimentos inquisitoriais eram, simultaneamente,
eclesiásticos e seculares, pois envolviam questões tanto canônicas quanto civis. 41 A bula Ad
extirpanda, cujo texto reivindicou a força da lei imperial, ampliou o rol das operações de
combate à heresia, entrelaçando ainda mais atribuições dos governos citadinos e
prerrogativas da autoridade eclesial. Neste sentido, ela manteve aceso um foco de tensões:
separar os papéis e as competências de cada esfera envolvida continuou um desafio prático.
Não era incomum que certos casos convertessem o entrelaçamento em emaranhado jurídico.
Relações que haviam sido idealizadas para transcorrer como cooperações hierarquizadas e
bem entrosadas, ganhavam outro temperamento, o de concorrências acirradas. Os atritos
permaneceram comuns nas décadas seguintes, com magistrados, reis, inquisidores e bispos
trocando farpas para determinar quem detinha poder sobre os hereges. Separar as jurisdições
com clareza é um desafio legado aos séculos seguintes pelo documento de maio de 1252.42
Nó górdio do pluralismo jurídico medieval, registro das represálias papais aos
fracassos das ações inquisitoriais, produto de tensões e disputas pela autoridade, a Ad
extirpanda é um texto com muitas faces. Torná-la mais acessível ao público brasileiro e
auxiliar outros leitores a tomar parte do desafio de descobrir outros enfoques foi o propósito
que motivou a tradução apresentada a seguir, em versão bilíngue, latim-português.
41
42
Ver: RUST, Leandro Duarte. Bulas inquisitoriais... op.cit.
FOSI, Irene. Papal Justice: Subjects and Courts in the Papal State, 1500-1750. Washington: The Catholic
University of America Press, 2011, p. 105-125; KIECKHEFER, Richard. The office of Inquisition and
medieval heresy: the transition from personal to institutional jurisdiction. The Journal of Ecclesiastical
History, vol. 46, n. 1, 1995, p. 36-61; MUNIZ, Patricia Gouveia Mendonça. Cruz e Coroa: Igreja, Estado e
conflito de jurisdições no Maranhão colonial. Revista Brasileira de História, v. 32, n. 63, 2012, p. 39-58.
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1252, maii 15. Perusii.
Innocentius IV PP, Promulgatio Legum et
Constitutum contra haereticos
15 de maio de 1252, Perugia.
Papa Inocêncio IV, Promulgação de leis e
constituições contra heréticos
Bula Ad Extirpanda
Bula Ad Extirpanda
Bullarium ordinis fratrum praedicatorum.
Ed.: Thomas Ripoll e Antonino Bremond.
Paris: Typographia Hieronimy Mainardi,
1729, tomo I, p. 209-211.
Bullarum, diplomatum et privilegiorum
sanctorum Romanorum Pontificum
Taurinensis. Ed.: Aloysius Tomassetti.
Augustae Taurinorum: 1858, tomo III, p.
552-558.
[1]
Innocentius
Episcopus
Servus
Servorum Dei. Dilectis filiis Potestatibus,
sive
Rectoribus,
Consiliis,
&
Communitatibus Civitatum, aliorumque
Locorum per Lombardiam, Romaniolam, &
Marchiam Tervisinam constitutis, salutem,
& Apostolicam Benedictionem.
[2] Ad extirpanda de medio Populi
Christiani haereticae pravitatis zizania,
quae abundantius solito succreverunt,
superseminante illa licentius his diebus
hominis inimico tanto studiosius, juxta
commissam nobis sollucitudinem insudare
proponimus,
quanto
perniciosius
negligeremus eadem in necem catholici
seminis pervagari. Volentes autem, ut
adversus hujusmodi nequitiae operarios
consurgant, stentque nobiscum Ecclesiae
filii, ac Orthodoxae fidei zelatores,
Constitutiones quasdam extirpationem
haereticae pestis edidimus, a vobis ut
fidelibus ejusdem Fidei defensoribus
exacta diligentia observandas, quae
seriatim inferius continentur.
[3] Quo circa Universitati vestrae per
Apostolica scripta mandamus, quatenus
singuli Constitutiones easdem conscribi
vestris Capitularibus facientes, nullis inde
43
[1] Inocêncio, bispo, servo dos servos de Deus,
aos amados filhos potentados ou governantes
instituídos, aos concelhos e às comunas das
cidades localizados na Lombardia, na Romanha,
na Marca Trevisana e em outros lugares,
saudação e benção apostólica.
[2] Tendo em vista a solicitude [pelo rebanho] 43
que nos foi confiado, nos propomos a extirpar do
meio do povo cristão a cizânia da depravação
herética, que em nosso tempo, se espalhou
amplamente, semeando a licenciosidade em
nome do Inimigo dos homens, tanto mais intensa
quanto perniciosamente, à medida que
negligenciarmos como ela causa a ruína dos
princípios católicos. Desejosos, pois, que os filhos
da Igreja e os defensores da fé ortodoxa se ergam
e conosco se oponham aos artífices dessa
perversidade,
infra
nós
decretamos
determinadas leis, com o fito de extirpar a praga
herética, e [determinamos que] venham a ser
observadas por vós e pelos fiéis defensores da
Fé, com diligente cuidado.
[3] Portanto, mediante este decreto apostólico,
nós ordenamos que sejam cumpridas em toda
vossa comunidade, cada uma destas leis
redigidas para vós; que nunca venham a ser
Os vocábulos e marcadores acrescidos ao texto em português por decisão de tradução estão destacados
entre colchetes.
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temporibus abolendas, secundum eas
contra omnem haeresim, se adversus hanc
sanctam Ecclesiam extollentem, sine
omissione aliqua procedatis. Alioquin
dilectis filiis Priori, Provinciali, & Fratribus
Inquisitoribus
haereticae
pravitatis
Ordinis Praedicatorum in Lombardia,
Marchia Tervisina, & Romaniola, damus
nostris litteris in mandatis, ut singulos
vestrum ad id per excommunicationem in
personas, & interdictum in terram
appellatione remota compellant.
abolidas e que, sem qualquer omissão, de acordo
com o que elas estipulam, procedais contra toda
heresia que se insurge contra esta santa Igreja.
Além disso, enviamos nossa carta aos amados
filhos da Ordem dos Pregadores, a saber, aos
superiores, ao provincial e aos frades
inquisidores da depravação herética na
Lombardia, na Marca Trevisana e Romanha,
ordenando a cada um de vós que, sob pena de
excomunhão pessoal e interdito nesses lugares,
sem haver a possibilidade remota de apelação,
obriguem [todos] a cumprir tais leis.
Leges, & Constitutiones autem sunt hae.
Portanto, as leis e os decretos são os seguintes:
Lex 1.
[4] Statuimus, ut Potestas, seu Rector, qui
Civitati praeest, vel loco alii ad praesens,
aut pro tempore praefuerit in futurum, in
Lombardia, Romaniola, vel Marchia
Tervisina, juret praecise, et sine timore
aliquo, attendere inviolabiliter, & servare,
et facere ab omnibus observari toto
tempore sui regiminis, tam in Civitate, vel
loco sui regiminis, quam in Terris suae
ditioni subjectis, omnes, & singulas tam
infrascriptas, quam alias Constitutiones, &
Leges, tam canonicas, quam civiles, editas
contra haereticam pravitatem. Et super
his praecise observandis recipiant a
quibuslibet sibi in Potestaria, vel regimine
succedentibus, iuramenta. Quae qui
praestare noluerint, pro Potestatibus, vel
Rectoribus nullatenus habeantur. Et quae
ut Potestates, vel Rectores fecerint, nullam
penitus habeant firmitatem. Nec ullus
teneatur, aut debeat sequi eos, etiamsi de
sequela praestanda eis exhibuerint
iuramentum. Quod si Potestas, vel Rector
aliquis haec omnia, & singula servare
noluerit, vel neglexerit, praeter notam
periurii, & perpetuae iacturam infamiae,
ducentarum marcharum poenam incurrat,
quae irremissibiliter exigantur ab eo, & in
utilitatem
Communis
integra
convertantur, & nihilominus ut perjurus, &
infamis, & tamquam haereticorum fautor,
de fide suspectus, officio, & honore sui
regiminis spolietur; nec ulterius Potestas,
seu Rector in aliquo habeatur, & de
Lei 1.
[4] Decretamos que o potentado ou o governante
que atualmente governa ou que no futuro vier a
governar a cidade ou outro lugar na Lombardia,
na Romanha e na Marca Trevisana, durante todo
o tempo que governar, sem temor algum, jure
inequivocamente cumprir, observar e fazer com
que venham a ser inviolavelmente observados
por todos, tanto na cidade e no lugar em que
governa, quanto nas terras que estão sob a sua
jurisdição, cada um e todos os decretos e leis
infra escritos, tanto civis quanto canônicos,
decretados contra a depravação herética. Que os
juramentos referentes à observância precisa
destes [decretos e leis] sejam prestados por
qualquer um na sede do governo ou àqueles que
sucederem no governo. Quanto aos que não
quiserem prestar [tal juramento], que, de modo
algum não sejam mantidos como potentados ou
governantes e, os que agirem assim, percam toda
autoridade. Nem ninguém se mantenha nem seja
obrigado a manter-se leal a eles, ainda que lhes
tenham prestado um juramento, na condição de
membro de seu séquito. Se algum potentado ou
governante se recusar a cumprir ou negligenciar
o cumprimento de um ou de todos estes decretos
ou leis, para além de ter de suportar a ignomínia
do perjuro e da infâmia perpétua, incorrerá na
pena
de
duzentos
marcos
que,
irremissivelmente, serão dele exigidos, os quais
serão integralmente convertidos para o proveito
da comuna e, ademais, na condição de perjuro,
infame, partidário de hereges e suspeito da fé,
que seja destituído do cargo e da honra inerente
ao mesmo, nem, de modo algum, ulteriormente
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caetero ad aliquam dignitatem, vel venha a exercer o cargo de potentado ou de
officium publicum nullatenus assumatur.
governante, nem tampouco venha a assumir
outra dignidade ou um cargo público.
Lex 2.
[5] Idem quoque Potestas, seu Rector
cujuslibet Civitatis, vel loci, in principio sui
regiminis, in publica concione more solito
congregata, banno Civitatis, vel loci
supponat tamquam pro maleficio, omnes
haereticos utriusque sexus, quocumque
nomine censeantur. Et teneatur bannum
hujusmodi a suis praedecessoribus
positum confirmare. Praecipue autem,
quod nullus haereticus, vel haeretica de
caetero habitet, vel moretur, aut subsistat
in Civitate, seu aliquo modo jurisdictionis,
aut districtus ejusdem, & quicumque
ipsum, vel ipsam invenerit, libere capiat, &
capere possit impune, & omnes res ipsius,
vel ipsorum eis licenter auferre, quae sint
auferentium pleno jure, nisi auferentes
hujusmodi sint in officio constituti.
Lei 2
[5] De igual modo, o potentado ou o governante
de qualquer cidade ou lugar, no começo de seu
governo, em uma assembleia pública reunida
segundo o costume, sob o banum44 da cidade ou
do lugar, deve acusar de delito todos os hereges
de ambos os sexos, qualquer que seja o nome
pelo qual são conhecidos. E terá o dever de
confirmar tal banum recebido de seus
predecessores. Além disso, que nenhum herege,
homem ou mulher, habite, more ou permaneça
na cidade ou no termo ou distrito do mesmo; e
quem os descobrir, poderá livre e impunemente
se apoderar de todos os bens dele ou deles e,
licitamente, levá-los, consigo, pois lhes
pertencerão de pleno direito, exceto se esta
forma de apropriação estiver reservada aos que
exercem um cargo público.
Lex 3.
[6] Idem quoque Potestas, seu Rector infra
tertium diem post introitum regiminis sui,
duodecim viros probos, & catholicos, &
duos Notarios, & duos Servitores, vel
quotquot fuerint necessarii, instituere
teneatur, quos Dioecesanus, si praesens
extiterit, & interesse voluerit, & duo
Fratres Praedicatores, & duo Minores ad
hoc a suis Prioribus, si Conventus ibi
fuerint eorumdem Ordinem, deputati,
duxerint eligendos.
Lei 3
[6] Semelhantemente, antes do terceiro dia, após
ter assumido o governo, o potentado ou o
governante deverá nomear doze homens probos
e católicos, dois notários e dois auxiliares, ou
quantos forem necessários; se aí houver um
bispo diocesano e ele quiser participar da
indicação, poderá fazê-lo e, se aí houver um
convento dos Pregadores e dos Menores, dois
frades daquelas referidas Ordens serão indicados
por seus superiores para participar disto.
Lex 4.
[7] Instituti autem hujusmodi, & electi
possint, & debeant haereticos, & haereticas
capere, & eorum bona illis auferre, &
facere auferre per alios, & procurare haec
tam in Civitate, quam in tota ejus
jurisdictione, atque districtu, plenarie
Lei 4
[7] Aqueles, pois, que forem designados e eleitos
poderão e deverão capturar os hereges, homens
e mulheres e retirar-lhes os seus bens ou tomar
as providências para que lhes sejam retirados
por outros e levá-los ou fazer com que sejam
levados à presença do bispo diocesano ou de
44
Optamos por não traduzir o vocábulo Bannus – aqui, banum. Isto em razão de acreditamos que não há
equivalente em português capaz de abarcar, simultaneamente, os vários significados do termo. O
vocábulo Bannus condensa os significados materiais e retóricos de “conjunto de leis”, “penas”, “governo”,
“jurisdição”, “foro” e “símbolos públicos” como flâmulas, estandartes e até edificações e cerimônias.
Optar por um destes termos mutilaria a formidável abrangência da palavra. Ver: NIERMEYER, J. F.
Mediae Latinitatis Lexicon Minus. Leiden: Brill, 1976, t. 1, p. 81-84.
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adimpleri, & eos ducere, & duci facere in seus vigários e cuidar para que estas medidas
potestatem Dioecesani, vel Vicariorum sejam plenamente cumpridas tanto na cidade,
eiusdem.
como em todo o seu termo e no distrito.
Lex 5.
[8] Teneatur autem potestas, seu rector
quilibet in expensis Communis, cui praeest,
facere duci eosdem haereticos ita captos,
quocumque dioecesanus, vel eius vicarii in
iurisdictione vel districtu dioecesani
episcopi, seu civitatis, vel loci voluerint
illos duci.
Lei 5
[8] Qualquer potentado ou governante mantido
às expensas da comuna que governa deve se
assegurar de que os hereges que forem assim
aprisionados sejam levados à presença ou à cúria
do bispo diocesano ou do vigário dele, ou à
cidade ou ao lugar que ele quiser que sejam
levados.
Lex 6.
[9] Officialibus vero praedictis plena fides
de his omnibus habeatur, quae ad eorum
officium pertinere noscuntur, aliquo
specialiter
praestito
iuramento,
probatione aliqua in contratium non
admissa, ubi duo, vel tres, vel plures
praesentes fuerint ex eisdem.
Lei 6
[9] Quanto aos mencionados oficiais, todos lhes
devem obedecer plenamente naquilo que
sabidamente concerne ao seu ofício, sobretudo
em relação ao juramento mencionado; qualquer
objeção contrária não será aceita, onde estiverem
presentes dois, três, ou mais dos referidos
oficiais.
Lex 7.
[10] Porro cum officiales huiusmodi
eliguntur, iurent haec omnia exequi
fideliter, et pro posse, ac super his semper
meram dicere veritatem, quibus ab
omnibus, in his, quae ad officium eorum
pertinente, plenius pareatur.
Lei 7
[10] Além disso, uma vez eleitos, que tais oficiais
jurem que, com todo empenho pessoal, irão fazer
cumprir fielmente todas estas leis; e que sempre
irão dizer a verdade, no tocante às atribuições
que têm de fazer plenamente e que competem ao
seu ofício.
Lex 8.
[11] Et tam dicti duodecim, quam
servitores et notarii praetaxati, simul, vel
divisim, plenariam praecipiendi sub poena
et banno, quae ad officium suum pertinent,
habeant potestatem.
Lei 8
[11] E tanto os doze homens que vierem a ser
indicados, quanto os seus mencionados
auxiliares e notários, quer atuem conjunta ou
individualmente, possuem pleno poder para
estipular um castigo e banum com respeito
àquilo que compete ao seu ofício.
Lex 9.
[12] Potestas autem, vel rector teneatur
habere firma et rata omnia praecepta,
quae occasione offici sui fecerint, et poenas
exigere non servantium.
Lei 9
[12] O potentado ou o governante deve manter
firmes e inalteráveis todos os deveres
relacionados com o exercício de seu cargo e
estipular castigos àqueles que não os cumprirem.
Lex 10.
[13] Quod dictis Officialibus aliquo
tempore aliquod damnum contigerit, in
personis, vel rebus, pro suis officiis
exequendis, a communi Civitatis, vel loci,
Lei 10
[13] Se, em alguma ocasião, devido ao
desempenho de seus deveres, vier a ocorrer
algum dano aos referidos oficiais, ou neles
próprios ou em seus bens, eles deverão ser
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per restitutionem plenariam serventur plenamente ressarcidos pela comuna da cidade
indemnes.
ou do lugar.
Lex 11.
[14] Nec ipsi officiales, vel eorum haeredes
possint aliquo tempore conveniri, de his
quae fecerint, vel pertinent ad eorum
officium, nisi secundum quod eidem
dioecesano et fratribus videbitur expedire.
Lei 11
[14] Nem tampouco, em momento algum, será
permitido a estes oficiais ou aos seus sucessores
fazer uma reunião para tratar a respeito daquilo
que tiverem feito ou sobre o que é inerente ao
seu ofício, a não ser que tal reunião pareça
oportuna ao bispo diocesano e aos frades.
Lex 12.
[15] Ipsorum autem officium duret
tantummodo per sex menses, quibus
completis, potestas teneatur totidem
subrogare officiales secundum formam
praescriptam, qui praedictum officium
secundum formam eamdem, in aliis sex
mensibus sequentibus exequantur.
Lei 12
[15] A incumbência dos referidos [oficiais]
durará somente seis meses, os quais, uma vez
completados, indicarão o momento em que o
potentado deverá substituí-los, segundo a forma
prescrita; os novos oficiais exercerão o
mencionado ofício, de acordo com a mesma
forma, durante os seis meses seguintes.
Lex 13.
[16] Sane ipsis Officialibus dentur de
Camera communis Civitatis, vel loci,
quando exeunt Civitatem, aut locum pro
hoc officio exequendo, unicuique pro
qualibet decem & octo Imperiales in
pecunia numerata, quos Potestas, vel
Rector teneatur eis dare, vel dari facere
infra diem tertium, postquam ad eamdem
redierint Civitatem, vel locum.
Lei 13
[16] É razoável que quando estes mesmos
oficiais deixarem a cidade ou o lugar, a fim de
desempenhar esta incumbência, seja dado a cada
um deles pela Câmara da comuna da cidade ou
do lugar dezoito moedas imperiais em dinheiro
contado, as quais o potentado ou o governante
deverá dar-lhes ou fazer com que lhes sejam
dadas, três dias após seu retorno à mesma cidade
ou ao lugar.
Lex 14.
[17] Et insuper habeant tertiam partem
bonorum
haereticorum
quae
occupaverunt, & mulctarum, ad quas
fuerunt condemnati, secundum quod
inferius continetur, & hoc salario sint
contenti.
Lei 14.
[17] E, além disso, eles devem se apoderar da
terça parte dos bens dos hereges; [a terça parte]
das multas às quais [os hereges] forem
condenados a pagar deve ser entregue aos
subalternos, os quais devem se contentar com
este salário.
Lex 15.
[18] Sed ad nullum aliud, quod istud
officium impediat, vel impedire possit, ullo
modo officium, vel etiam exercitium,
compelleantur.
Lei 15
[18] Mas, de maneira alguma, eles devem ser
compelidos a fazer algo que impeça, ou que possa
impedir de algum modo, o exercício de sua
incumbência.
Lex 16.
[19] Nullum etiam statutum, conditum vel
condendum, eorum officium ullo modo
valeat impedire.
Lei 16
[19]
Igualmente,
nenhum
estatuto,
já
promulgado ou que venha a ser decretado, de
modo nenhum poderá vir a impedir o
cumprimento da incumbência deles.
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Lex 17.
[20] Et si quis horum officialium propter
ineptitudinem,
vel
inertiam,
vel
occupationem aliquam, vel excessum,
dioecesano et fratribus supradictis visus
fuerit amovendus, ipsum ad mandatum vel
dictum eorum teneatur amovere potestas,
aut rector, et alium secundum formam
praescriptam substituere loco eius.
Lei 17
[20] E, se algum desses oficiais, por causa da
inaptidão, da indolência ou de outra ocupação ou
de excesso em suas atribuições, for declarado
afastado pelo bispo diocesano e pelos
mencionados frades, o potentado ou o
governante será obrigado a afastá-lo, por meio
de uma ordem ou determinação e o substituir, de
acordo com a forma prescrita, indicando um
outro no lugar dele.
Lex 18.
[21] Quod si quis eorum contra fidem et
sinceritatem offici sui in favorem haeresis
deprehensus fuerit excessisse, praeter
notam
infamiae
perpetuae,
quam
tamquam fautor haereticorum incurrat,
per potestatem, vel rectorem ad dioecesani
loci, et dictorum fratrum arbitrium
puniatur.
Lei 18
[21] Se algum desses oficiais, procedendo contra
o juramento prestado e a integridade de seu
cargo, for apanhado favorecendo a heresia, além
de incorrer na mancha da perpétua infâmia, na
condição de protetor dos hereges, há de ser
levado à presença do bispo diocesano e dos
mencionados frades para ser julgado e, depois,
por ordem do potentado ou do governante do
local, será punido.
Lex 19.
[22] Potestas praeterea Militem suum, vel
alium Assessorem, si Dioecesanus, vel ejus
Vicarius, aut Inquisitores a Sede Apostolica
deputati, seu dicti Officiales petiverint,
cum ipsis Officialibus mittere teneatur, &
cum ipsis eorum officium fideliter exercere.
Quilibet etiam si praesens in terra, vel
requisitis fuerit, teneatur tam in Civitate,
quam in jurisdictione, vel districtu
quolibet, dare ipsis Officialibus, vel eorum
sociis consilium, & juvamen, quando
voluerint haereticum, vel haereticam
capere, vel spoliare aut inquirere: seu
domum, vel locum, aut aditum aliquem
introire pro haereticis capiendis, sub
vigintiquinque librarum Imperialium
poena, vel banno. Universitas autem burgi,
sub poena & banno librarum centum, villa
vero librarum quinquaginta Imperialium
pro qualibet vice solvenda in pecunia
numerata.
Lei 19
[22] Se o bispo diocesano, ou seu vigário, ou os
inquisidores enviados pela Sé Apostólica ou os
mencionados oficiais solicitarem [outros], além
de seu soldado ou de um outro assessor, o
potentado deve enviá-los e, com os mesmos,
exercer fielmente o cargo deles. Igualmente
também, qualquer um que vive no lugar, tanto na
cidade quanto no termo dela ou em algum
distrito da mesma, ou que for requisitado, deve
aconselhar e prestar auxílio aos mencionados
oficiais, ou aos seus colaboradores, quando eles
quiserem capturar, espoliar ou inquirir qualquer
herege, homem ou mulher; entrar em uma casa,
ou num lugar ou nas proximidades do mesmo a
fim de capturar os hereges, e o farão isso sob
pena de pagar vinte e cinco libras imperiais ou
banum. Por outro lado, a fim de quitar qualquer
dívida e no lugar dela, a totalidade do burgo, sob
banum e pena, terá de pagar cem libras, a vila sob
banum e pena terá de pagar cinquenta libras
imperiais em dinheiro contado.
Lex 20.
[23] Qui cumque autem haereticum, vel
haereticam, captum, vel captam auferre de
manibus capientium, vel capientis ausus
Lei 20
[23] Entretanto, todo aquele que ousar libertar
um herege, homem ou mulher, de quem o
capturou ou de quem os capturou, ou defender
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fuerit, vel defendere ne capiatur: seu
prohibere aliquem intrare domum
aliquam, vel turrim, seu locum aliquem ne
capiatur, & inquiratur ibidem, juxta Legem
Paduae promulgatam per Fridericum tunc
Imperatorem, publicatis bonis omnibus in
perpetuum relegetur, & domus illa, a qua
prohibiti fuerint sine spe reaedificandi
funditus destruatur, & bona, quae ibi
reperta fuerint, fiant capientium, ac si
haeretici fuissent ibidem inventi, & tunc
propter
hanc
prohibitionem,
vel
impeditionem
specialem,
Burgus
componat Communi librarum ducentarum,
& Villa librarum centum, & vicinia tam
Burgi,
quam
Civitatis
librarum
quinquaginta Imperialium, nisi infra
tertium diem ipsos defensores, vel
defensorem haereticorum Potestati captos
duxerint personaliter praesentandos.
tal pessoa, a fim de que não seja capturada, ou
impedir que algum oficial entre em uma casa, ou
numa torre ou num lugar qualquer, de maneira a
impedir que essa pessoa venha a ser capturada
ou inquirida, saiba que, conforme a lei de Pádua,
promulgada pelo então imperador Frederico [II],
terá perpetuamente todos os seus bens
confiscados e tornados públicos; aquela casa na
qual a entrada dos oficiais foi proibida será
destruída até suas fundações, sem a esperança de
ser reedificada; os bens, que aí forem
encontrados, deverão ser capturados; se aí forem
encontrados hereges, então, por causa desta
proibição ou impedimento específico, o burgo
entregará duzentas libras à comuna, a vila
entregará cem libras e a vizinhança do burgo
quanto da cidade entregará cinquenta libras
imperiais, exceto se, antes de transcorridos três
dias, os referidos defensores ou o defensor dos
hereges
forem
capturados
e
levados
pessoalmente para serem apresentados ao
potentado.
Lex 21.
[24] Teneatur insuper potestas, seu rector
quilibet omnes haereticos vel haereticas,
qui capti amodo fuerint, per viros
catholicos ad hoc electos a dioecesano, si
fuerit praesens, et fratribus supradictis, in
aliquo speciali carcere tuto et securo, in
quo ipsi soli detineantur, seorsum a
latronibus et bannitis, donec de ipsis fuerit
definitum, sub expensis Communis civitatis
vel loci sui facere custodiri.
Lei 21
[24] Ademais, a partir deste momento, qualquer
potentado ou governante deve manter todos os
hereges, homens ou mulheres, que foram
capturados, sob a custódia de homens católicos,
designados para isto pelo bispo diocesano, se aí
houver um, e pelos mencionados frades, os quais
deverão ser exclusivamente reclusos em um
cárcere específico, indicado para tal, seguro e
guarnecido, distantes dos ladrões e dos
transgressores da lei civil, às expensas da
comuna da cidade ou do lugar.
Lex 22.
[25] Si quandoque aliqui, vel aliquae non
haeretici pro captis haereticis, ipsis non
contradicentibus, fuerint assignati vel si
forsitan assignaverint, praedicti suppositi
perpetuo carceri mancipentur, et haeretici
nihilominus reddi, et assignari cogantur,
et qui hunc dolum fecerint, iuxta legem
praedictam, bonis omnibus publicatis, in
perpetuum relegentur.
Lei 22
[25] Se, acontecer que algumas pessoas, homens
ou mulheres, não hereges, declararem que os
capturados como hereges, os quais não
contestaram as acusações, não são hereges ou
que, talvez, não o sejam e devem ser libertados
do cárcere perpétuo, embora tenham sido
reconhecidos como hereges ou devam ser
considerados como tal, todavia, conforme a
mencionada lei, os que mentirem terão todos os
seus bens perpetuamente confiscados e tornados
públicos.
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Lex 23.
[26] Teneatur insuper potestas et rector
quilibet omnes haereticos et haereticas,
quocumque nomine censeantur, infra
quindecim dies postquam fuerint capti,
dioecesano, vel eius speciali vicario, seu
haereticorum inquisitoribus praesentare,
pro examinatione de ipsis, et eorum
haeresi facienda.
Lei 23
[26] Além disso, qualquer potentado ou
governante está obrigado, quinze dias após a
captura, a apresentar todos os hereges, homens e
mulheres, acusados sob qualquer designação, ao
bispo diocesano ou ao vigário particular ou aos
inquisidores dos hereges, a fim de que sejam
examinados e declarada a heresia que professam.
Lex 24.
[27] Damnatos vero de haeresi per
dioecesanum, vel eius vicarium, seu per
inquisitores praedictos, potestas, vel
rector, vel eius nuncius specialis eos sibi
relictos recipiat, statim, vel infra quinque
dies ad minus, circa eos constitutiones
contra tales editas servaturus.
Lei 24
[27] Quanto aos condenados por heresia pelo
bispo diocesano ou por seu vigário ou pelos
mencionados
inquisidores,
entregues
ao
potentado, ao governante ou ao seu legado
particular, deve recebê-los e, imediatamente, ou,
no mais tardar, em cinco dias, aplicar os decretos
promulgados a respeito e contra tais pessoas.
Lex 25.
[28] Teneatur praeterea potestas, seu
rector omnes haereticos, quos captos
habuerit,
cogere
citra
membri
diminutionem, et mortis periculum,
tamquam vere latrones, et homicides
animarum, et fures sacramentorum Dei, et
fidei christianae, errores suos expresse
fateri, et accusare alios haereticos, quos
sciunt, et bona eorum, et credentes, et
receptatores, et defensores eorum, sicut
coguntur fures et latrones rerum
temporalium, accusare suos complices, et
fateri maleficia, quae fecerunt.
Lei 25
[28] Ademais, o potentado ou o governante deve
coagir todos os hereges aprisionados, sem chegar
à amputação dos membros e ao risco de morte, a
se considerarem verdadeiramente como ladrões,
assassinos das almas e assaltantes dos
sacramentos de Deus e da fé cristã, a
reconhecerem expressamente seus erros e a
acusar outros hereges que conhecerem, e
identificarem os bens deles, os partidários, os
acolhedores e os defensores dos mesmos, tal
como os ladrões e os assaltantes dos bens
temporais são obrigados a acusar seus cúmplices
e a reconhecer os crimes que cometeram.
Lex 26.
[29] Domus autem, in qua repertus fuerit
aliquis haereticus, vel haeretica, sine ulla
spe reaedificandi funditus destruatur; nisi
dominus domus eos ibidem procuraverit
reperiri. Et si dominus illius domus, alias
domos habuerit contiguas illi domui,
omnes illae domus similiter destruantur, et
bona, quae fuerint inventa in domo illa, et
in
domibus
illis
adhaerentibus,
publicentur, et fiant auferentium, nisi
auferentes fuerint in officio constituti. Et
insuper dominus domus illius, praeter
notam infamiae perpetuae, quam incurrat,
componat Communi civitatis vel loci
quinquaginta libras imperiales in pecunia
Lei 26
[29] Por outro lado, a casa, na qual algum herege,
homem ou mulher, tiver sido encontrado, deve
ser destruída até às fundações sem haver a
esperança de que venha a ser reconstruída, a não
ser que o dono da casa tenha sido aquele que
contribuiu para que fossem encontrados. E se o
dono daquela casa possuir outras casas contíguas
à mesma, de igual modo, todas elas devem ser
destruídas; os bens que forem encontrados no
interior daquela casa e das demais casas vizinhas
deverão se tornar públicos e passarão a
pertencer aos que puderem levá-los, a não ser
que essas pessoas exerçam um cargo. E, ademais,
o dono daquela casa, além de incorrer na marca
da infâmia perpétua, deverá pagar cinquenta
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numerata, quam si no solverit, in perpetuo
carcere detrudatur. Burgus autem ille, in
quo haeretici capti fuerint, vel inventi,
componat Communi civitatis libras
centum: et villa libras quinquaginta, et
vicina tam burgi, quam civitatis libras
quinquaginta imperialium in pecunia
numerata.
libras imperiais em dinheiro contado à comuna
da cidade ou do lugar; se for incapaz de pagar,
deverá ser lançado em cárcere perpétuo. Aquele
burgo no qual os hereges foram encontrados
pagará cem libras à comuna da cidade; a vila
pagará cinquenta, assim como a vizinhança tanto
do burgo quanto da cidade pagará cinquenta
libras imperiais em dinheiro contado.
Lex 27.
[30] Quicumque vero fuerit deprehensus
dare alicui haeretico, vel haereticae,
consilium, vel auxilium, seu favorem,
praeter aliam poenam superius, & inferius
praetaxatam, ex tunc ipso iure in
perpetuum sit factus infamis, nec in
publica officia, seu consilia, vel ad
eligendos aliquos ad hujusmodi, nec ad
testimonium admittatur, sit etiam
intestabilis, ut nec testamenti liberam
habeat factionem, nec ad haereditatis
successionem accedat. Nullus praeterea ei
super quocumque negotio, sed ipse alii
respondere cogatur. Quod si forte Judex
extiterit, ejus sententia nullam obtineat
firmitatem, nec causae aliquae ad ejus
audientiam
perferantur.
Si
fuerit
Advocatus, ejus patrocinium nullatenus
admittatur. Si Tabellio instrumenta
confecta per ipsum, nullius penitus sint
momenti. Credentes quoque erroribus
haereticorum
tamquam
haeretici
puniantur.
Lei 27
[30] Todo aquele que tiver sido surpreendido
aconselhando, auxiliando ou favorecendo um
herege, homem ou mulher, além da outra pena
acima e abaixo fixada, com base nas mesmas leis,
desde então, será perpetuamente declarado
infame, não será admitido a exercer cargos
públicos, ou nos concelhos ou nas designações
para estes; tampouco será aceito como
testemunha e, igualmente será inapto a testar, a
fim de que não possa livremente ter os diretos de
fazer testamento nem de suceder na herança.
Para mais, ninguém será obrigado a responder
sobre nenhum negócio dele, mas ele próprio será
coagido a responder por outros. Se, por acaso for
um juiz, sua sentença será nula, nem causa
alguma será levada ao seu tribunal. Se for um
advogado, sua defesa de modo algum será aceita.
Se for um tabelião, os instrumentos legais
chancelados por ele serão considerados
completamente nulos. Igualmente, os adeptos
dos erros dos hereges serão punidos tal como
eles próprios.
Lex 28.
[31] Teneatur insuper Potestas, seu
Rector, nomina Virorum omnium, qui de
haeresi fuerint infamati, vel banniti, in
quatuor libellis unius tenoris facere
annotari: quorum unum commune
Civitatis, vel Loci habeat, & alium
Dioecesanus,
&
tertium
Fratres
Praedicatores, & quartum Fratres Minores,
& ipsorum nomina ter in anno, & in
concione publica solemniter faciat recitari.
Lei 28
[31] Além disso, o potentado ou governante deve
fazer com que os nomes de todos os homens
transformados em infames ou banidos por causa
da heresia sejam escritos em quatro libelos do
mesmo teor, um dos quais será mantido pela
comuna da cidade ou do lugar, um outro pelo
bispo diocesano, o terceiro pelos frades
Pregadores, o quarto pelos frades Menores; os
nomes deles devem ser solenemente lidos em
voz alta na assembleia pública três vezes ao ano.
Lex 29.
[32] Tenatur quoque potestas, seu rector,
filios et nepotes haereticorum et
receptatorum, defensorum et fautorum
Lei 29
[32] Igualmente também, o potentado ou o
governante deve investigar, cuidadosamente, os
filhos e sobrinhos dos hereges e de quem os
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diligenter investigare, eosque ad aliquod acolheu, defendeu e auxiliou, a fim de que, no
officium
publicum,
seu
consilium futuro, eles de modo algum venham a ser
nullatenus admittere in futurum.
admitidos em cargo público ou ao concelho.
Lex 30.
[33] Teneatur praeterea potestas, seu
rector, unum de assessoribus suis, quem
elegerit dioecesanus si fuerit praesens, et
inquisitores praedicti ab Apostolicae Sede
dati, mittere cum eis quandocumque
voluerint, et in iurisdictione civitatis, atque
districtu. Qui assessor, secundum quod
praedictis inquisitoribus visum fuerit, ibi
tres, aut plures boni testimonii viros, vel
totam viciniam, si eis videbitur, iurare
compellat; quod si quos ibidem haereticos
sciverint, vel bona eorum, quod si quos
occulta conventicula celebrantes, seu a
communi conversatione fidelium vita et
moribus dissidentes, vel credentes, aut
defensores, seu receptatores, vel fautores
haereticorum, eos dictis inquisitoribus
studeant indicare. Ipse autem potestas
contra accusatos procedat secundum leges
quondam Friderici tunc imperatoris
Paduae promulgatas.
Lei 30
[33] Além disso, o potentado ou o governante
deve enviar um de seus assessores, a quem o
bispo diocesano escolher, se aí houver,
juntamente com os mencionados inquisidores
designados pela Sé Apostólica, sempre que eles
assim o desejarem, à câmara da cidade e distrito.
O referido assessor, segundo o que parecer aos
mencionados inquisidores, aí compelirá três ou
mais homens fidedignos ou, se lhes parecer
necessário, toda vizinhança, a jurar perante os
mencionados
inquisidores
se
conhecem
quaisquer hereges e se sabe onde estão seus
bens, se fazem reuniões secretas ou se tentam
afastar os fiéis da convivência rotineira e dos
costumes, transformando-os em dissidentes e
crentes [em sua heresia] ou, ainda, se conhecem
quem crê, defende, acolhe ou auxilia os hereges.
Por outro lado, o potentado deve proceder contra
os acusados, conforme as leis promulgadas pelo,
então, imperador Frederico, [II] em Pádua.
Lex 31.
[34] Teneatur insuper potestas, seu rector,
in
destructionem
domorum,
et
condemnationibus faciendis, et in rebus
inventis, vel occupatis consignandis et
dividendis, de quibus superius dicitur, infra
decem dies postquam accusatio facta
fuerit, haec omnia exequi cum effectu; et
condemnationes omnes in pecunia
numerata infra tres menses exigere et
dividere illas, sicut inferius continetur, et
eos qui solvere non poterint, banno
maleficii supponere, et donec solvant, in
carcere detinere; alioquin pro his omnibus,
et singulis syndicetur, sicut inferius
continetur, et insuper teneatur unum de
assessoribus, quemcumque dioecesanus,
vel eius vicarius, et dicti inquisitores
haereticorum
voluerint,
ad
haec
peragenda fideliter assignare, et mutare
pro tempore, si eis visum fuerit
opportunum.
Lei 31
[34] Ademais, no prazo de dez dias após a
acusação tiver sido feita, o potentado ou o
governante deve levar a efeito todas as
obrigações, já mencionadas acima: a destruição
das casas, a imposição das condenações, a
divisão e a atribuição dos bens encontrados e
apropriados. Ele deve exigir que, no prazo de três
meses, todos castigos pecuniários sejam pagos
em dinheiro contado e, dividi-los conforme o
estipulado mais adiante e os que não puderem
saldá-las, devem ser condenados pelo crime
contra o banum e mantidos no cárcere até que
possam pagar. Todavia, ele deve submeter cada
uma e todas essas questões à investigação,
conforme infra será descrito, e designar um de
seus assessores, escolhido pelo bispo diocesano
ou por seu vigário ou pelos mencionados
inquisidores dos hereges, para executar tudo
cuidadosamente; e se lhes parecer adequado,
esse assessor poderá vir a ser oportunamente
substituído.
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Lex 32.
[35] Omnes autem condemnationes vel
poenae, quae occasione haeresis factae
fuerint, neque per concionem, neque per
consilium, neque ad vocem Populi ullo
modo, aut ingenio, aliquo tempore valeant
relaxari.
Lei 32
[35] Entretanto, todas estas condenações ou
penas, impostas por motivo de heresia, de modo
algum, jamais, poderão ser atenuadas, nem por
decisão de assembleia, nem do concelho, nem
por aclamação popular, ou por outra qualquer
ação desta natureza.
Lex 33.
[36] Teneatur insuper potestas, seu rector,
omnia bona haereticorum, quae per dictos
officiales fuerint occupata seu inventa, et
condemnationes pro his exactas dividere
tali modo: uma pars deveniat in Commune
civitatis vel loci, secunda in favorem et
expeditionem offici detur officialibus, qui
tunc negotia ipsa peregerint, tertia
ponatur in aliquo tuto loco, secundum
quod dictis dioecesano et inquisitoribus
videbitur reservanda et expendenda per
consilium eorumdem in favorem fidei, et
ad haereticos extirpandos, non obstante
huiusmodi divisioni statuto aliquo, condito
aut condendo.
Lei 33
[36] Além disso, o potentado ou o governante
deve repartir todos os bens dos hereges que
tiverem sido encontrados e apossados pelos
mencionados oficiais, bem como as condenações
por eles obtidas, do seguinte modo: uma parte
deve ser entregue à comuna da cidade ou do
lugar; a segunda deve ser entregue como
recompensa ao empenho demonstrado pelos
oficiais que, no cumprimento de sua incumbência
tiverem lidado com o caso; a terceira parte deve
ser guardada em algum local seguro, conforme o
parecer do prelado diocesano e dos inquisidores,
a ser reservada e utilizada, conforme conselho
dos mesmos, em favor da fé e para promover a
extirpação dos hereges, não obstante semelhante
divisão estar estipulada ou vir a ser determinada
por algum outro estatuto.
Lex 34.
[37] Si quis autem de caetero aliquod
istorum statutorum, aut constitutionum
attentaverit delere, diminuere, vel mutare,
sine auctoritate Sedis Apostolicae speciali,
potestas seu rector, qui pro tempore fuerit
in illa civitate vel loco, teneatur eum
tanquam
defensorem
haereticorum
publicum et fautorem, secundum formam
praescriptam perpetuo publice infamare
atque punire in libris quinquaginta
imperialium in pecunia numerata, quam si
exigere non potuerit, eum maleficii banno
supponat, de quo eximi no valeat, nisi
solverit
duplam
dictae
pecuniae
quantitatem.
Lei 34
[37] Entretanto, se alguém tentar abolir, reduzir
ou alterar qualquer um destes decretos ou
estatutos, sem a autorização específica da Sé
Apostólica, o potentado ou o governante que,
naquela ocasião, estiver a governar aquela cidade
ou lugar, de acordo com a forma prescrita, deve
publicamente declarar tal pessoa perpetuamente
infame, na condição de defensora e fautora
pública dos hereges, e puni-la em cinquenta
libras imperiais em dinheiro contado e caso não
possa exigir-lhe isso, então, o potentado deverá
condená-la mediante o prejuízo do banum, da
qual não possa ficar isenta, a não ser que venha a
saldar com uma soma duas vezes maior em
dinheiro.
Lex 35.
[38] Teneatur sane potestas, seu rector,
infra decem dies sui regiminis syndicare
praecedentem proxime potestatem, vel
rectorem, et eius etiam assessores, per tres
viros catholicos et fideles electos ad hoc
Lei 35
[38] Na verdade, durante os dez primeiros dias
de seu governo, o potentado ou governante deve
recorrer a três homens católicos e confiáveis,
escolhidos pelo bispo diocesano, se houver um,
pelos frades Pregadores e Menores para
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per dioecesanum, si fuerit praesens, et per
fratres Praedicatores et Minores de
omnibus his, quae in statutis istis, seu
constitutionibus
et
legibus
contra
haereticos et eorum complices editis
continentur, et punire ipsos si excesserint
in omnibus et singulis, quae omiserint, &
cogere restituere de propria facultate; non
obstante si per aliquam licentiam consilii,
vel alterius cujuslibet a syndicatione
fuerint absoluti.
investigar o último e potentado ou o governante
precedente e seus assessores, em relação a tudo
o que foi estabelecido por estes estatutos,
decretos e leis contra os hereges e seus
cúmplices e, puni-los se tiverem se excedido em
cada uma e em todas as situações, inclusive, no
tocante às que tiverem sido negligenciadas e,
obrigá-los a restituir [o que tiverem se
apropriado] às próprias expensas, não obstante,
mesmo que, por acaso, tenham sido isentos de
serem investigados, por ordem do concelho ou
de qualquer outro.
Lex 36.
[39] Jurabunt autem praedicti tres Viri
bona fide syndicare praefatos de omnibus
supradictis.
Lei 36
[39] Os três mencionados homens devem jurar
que agirão de boa fé, ao investigar a conduta dos
referidos governantes acerca de tudo que foi
acima citado.
Lex 37.
[40] Caeterum teneatur Potestas, seu
Rector cujuslibet Civitatis, vel Loci, delere,
seu abradere penitus de Statutis, vel
Capitularibus communis, quodcumque
Statutum, conditum vel condendum,
inveniatur
contradicere
istis
Constitutionibus, seu Statutis, & Legibus
quomodolibet obviare: & in principio, & in
medio sui regiminis, haec Statuta, seu
Constitutiones, & Leges in publica concione
solemniter facere recitari; & etiam in aliis
locis extra Civitatem suam, vel Locum,
sicut Dioecesano, seu Inquisitoribus, &
Fratribus
supradictis
visum
fuerit
expedire.
Lei 37
[40] Em acréscimo, o potentado ou o governante
de qualquer cidade ou lugar deve excluir ou
apagar integralmente dos estatutos e das
capitulares da comuna ou de qualquer outro
texto legal, já outorgado ou que venha a sê-lo,
tudo o que se opuser ou contradiga o que está
estabelecido nestes decretos, estatutos e leis;
além disso, no princípio e na metade do tempo de
seu governo, ele deve tomar providência para
que estes decretos, estatutos e leis sejam
solenemente lidos em uma assembleia pública, o
que também deve ser feito em outros locais fora
da sua cidade ou lugar; o bispo diocesano, os
inquisidores e os mencionados frades se lhes
parecer conveniente, também farão isso.
Lex 38.
[41] Porro haec omnia Statuta, seu
Constitutiones, & Leges, & si quae aliae
contra haereticos, & eorum complices,
tempore
aliquo
auctoritate
Sedis
Apostolicae conderentur, in quatuor
voluminibus unius tenoris debeant
contineri: quorum unum sit in Statuario
communis cujuslibet Civitatis, secundum
apud Dioecesanum, tertium Fratres
Praedicatores, quartum apud Fratres
Minores, cum omni sinceritate serventur,
ne possint per falsarios in aliquo violari.
Lei 38
[41] Finalmente, todos estes estatutos, decretos e
leis, bem como quaisquer outros que tenham
sido ordenados, noutras ocasiões pela autoridade
da Sé Apostólica contra os hereges e seus
cúmplices, devem ser registrados em quatro
volumes de igual teor, cujo primeiro deve ser
depositado no arquivo da comuna da cidade, o
segundo na residência do bispo diocesano, o
terceiro no convento dos frades Pregadores e o
quarto no convento dos frades Menores, os quais
devem ser cuidadosamente guardados, a fim de
que não venham a ser adulterados em algo por
falsificadores.
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Datum Perusii Idibus Maii, Pontificatus Dado em Perugia, nos idos de maio, nono ano de
nostri anno nono.
nosso pontificado.
Dat. die 15 maii 1252, pontif. Anno IX.
Dado no dia 15 de maio de 1215, nono ano do
pontificado.
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NORMAS DE
PUBLICAÇÃO
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A Revista Diálogos Mediterrânicos, publicação acadêmica vinculada ao Núcleo de Estudos
Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná, se estrutura em dossiê, artigos isolados,
resenhas e entrevistas. Os trabalhos enviados devem obedecer à seguinte normativa:
SEÇÃO
Dossiê
Artigos
Resenhas
TITULAÇÃO
Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos.
Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos.
Doutores; Doutorandos; Mestres; Mestrandos.
1. Extensão: os artigos devem ter no máximo 20 páginas e as resenhas (de livros publicados
nos últimos 07 [sete] anos) devem ter até 5 páginas.
2. Todos os textos devem ser digitados em Word for Windows. Margens: 2 cm. Fonte e
espaçamento: Times New Roman, tamanho 12, com entrelinhas 1 ½.
 Para citações com mais de 3 linhas, destacar o texto e utilizar recuo de 4 cm, fonte
tamanho 11, espaçamento entre linhas simples.
3. Resumo e palavras-chave: os artigos devem apresentar obrigatoriamente um resumo com,
no máximo, 250 palavras, acompanhado de sua versão em Inglês (Abstract), ou em Francês
(Résumé), ou em Espanhol (Resumen) ou Italiano (Sintesi) e de três palavras-chave, em
Português e na língua escolhida para a tradução do resumo.
 Nos casos de artigos não escritos em Português, os resumos e palavras-chaves devem
ser escritos em uma das opções de língua citadas, diferente da utilizada no artigo.
 Só serão aceitas resenhas escritas em Português.
4. Título: também traduzido para o Inglês, ou Francês, Italiano ou Espanhol. Centralizado,
fonte tamanho 16, em negrito.
5. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deve ser mencionada em
nota de rodapé.
6. Citações e notas de rodapé: devem ser apresentadas em fonte Times New Roman corpo 10 e
de acordo com as normas seguintes e em rodapé:
 Citação de Livros: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Edição. Cidade,
Editora, ano, p. ou pp.
 Citação de artigos de revistas ou capítulos de livros: SOBRENOME, Nome. “Título do
Artigo” In Título do Periódico em itálico. Cidade, Editora, Ano, Vol., nº, p. ou pp.
 A primeira nota deverá conter informações sobre o autor do texto, para conhecimento
do editor, sendo suprimida na versão para os avaliadores.
7. Não serão aceitas bibliografias.
8. Os trabalhos deverão, obrigatoriamente, apresentar todos os itens acima.
9. Toda correspondência referente à Revista Diálogos Mediterrânicos deve ser encaminhada
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