Imprimindo - Revista Brasileira de Arbitragem

Transcrição

Imprimindo - Revista Brasileira de Arbitragem
Doutrina Nacional
O Instituto da Arbitragem na Dinâmica do Processo de
Recuperação de Empresas
RONALDO VASCONCELOS
Advogado em São Paulo, Sócio do Escritório Lucon Advogados, Mestre e
Doutorando em Direito Processual na Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, Professor do Departamento de Direito Processual Civil da Faculdade de
Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
RESUMO: O principal objetivo deste estudo foi o de analisar a interface
estabelecida entre a arbitragem e o instituto de recuperação em três
situações distintas: (i) recuperação extrajudicial com estipulação de cláusula
arbitral; (ii) deferimento de recuperação judicial após processo arbitral já
instalado; e (iii) processo arbitral para processar recuperação judicial a ser
estabelecida entre devedor e credores. A inclusão de convenção de
arbitragem em plano de recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da
autonomia da vontade das partes. Por outro lado, a falência e a recuperação
judicial tutelam, em grande parte, interesses públicos, deixando espaço
reduzido para a instituição da arbitragem, destinada à solução de litígios
relativos a direitos disponíveis.
ABSTRACT: The main objective of the present essay is to analyze the
relationship between Arbitration and the Bankruptcy Institute on three distinct
situations: (i) the extrajudicial recovery with the stipulation of an arbitral
clause; (ii) the approval (granting) of the judicial recovery after the beginning
of the arbitral procedure; (iii) an arbitral procedure to generate the judicial
recovery as a private negotiation established between the debtor and the
creditors. The possibility of convention on the extrajudicial recovery allows the
parties involved in the litigation to negotiate a settlement to preserve her
faculties and interests. On the other hand, the bankruptcy and the judicial
recovery are institutes that protect the public interests, leaving a small space
to the arbitral procedure, since the arbitration is a form of alternative dispute
resolution related to unalienable rights.
SUMÁRIO: 1 Apresentação; 2 Da autodefesa ao monopólio estatal; 3 A eficiência
nos processos falimentares e de recuperação de empresas; 4 A lei de
recuperação e falências e suas influências no mercado; 5 A arbitragem em
questões relacionadas à falência e liquidações extrajudiciais; 6 A arbitragem
em questões relacionadas à recuperação extrajudicial; 7 A arbitragem em
questões relacionadas à recuperação judicial; Conclusões.
1 APRESENTAÇÃO
O
objetivo
do
presente
artigo
é
desenvolver
análise
relacionando o instituto da arbitragem com a dinâmica do novo
processo de recuperação de empresas instituído pela Lei nº 11.101,
de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação e Falências), em
ambas as modalidades de recuperação financeira do devedor - judicial
e extrajudicial. Pretende-se examinar os efeitos jurídicos de eventual
processamento da recuperação judicial em arbitragem já instaurada
ou a instalar, bem como verificar a viabilidade de o processamento
integral da recuperação judicial ser submetido à arbitragem.
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Portanto, a discussão acerca da recuperação judicial ligada à
arbitragem envolve três situações distintas: (i) recuperação
extrajudicial com estipulação de cláusula arbitral; (ii) deferimento de
recuperação judicial após processo arbitral já instalado; e (iii) processo
arbitral para processar recuperação judicial a ser estabelecida entre o
devedor e seus credores.
Para alcançar o objetivo desse estudo, procurou-se compilar,
de modo ordenado, as conceituações e classificações ofertadas pela
legislação concursal específica (Lei de Recuperação e Falências),
bem como pela insipiente doutrina acerca da interface estabelecida
entre a recuperação judicial e a arbitragem, fornecendo interpretações
e conclusões a respeito dos temas e textos abordados.
O que se percebe é que a doutrina ainda não se animou a
desenvolver o tema da disciplina da crise econômica da empresa sob
o prisma arbitral. Talvez por não vislumbrar espaço para a aplicação
da arbitragem ao instituto da recuperação judicial.
2 DA AUTODEFESA AO MONOPÓLIO ESTATAL
As situações da vida e o convívio entre pessoas acarretam
conflitos que, muitas vezes, por não vislumbrarem uma solução
negociada, acabam em impasses.
Nas origens, visando a solucionar esses impasses, os
indivíduos envolvidos utilizavam-se das próprias forças, impondo-se
covardemente aos mais fracos. Inexistia, nessa época, qualquer
ingerência do Estado nos negócios ou na vida das pessoas.
Desconhecia-se a figura do Estado com poderes suficientes para
substituir a vontade dos particulares e sujeitá-los às suas decisões.
Para iniciar nosso estudo sobre os reflexos da arbitragem na
recuperação de empresas é necessário realizarmos pequena
digressão acerca da origem dos procedimentos concursais.
Na antiguidade, a execução do devedor não se restringia
apenas ao seu patrimônio, e o credor podia não só apossar-se de
seus bens, como também da sua pessoa, reduzindo-o à condição de
escravo. Na Roma antiga, quando vigorava a Lei das XII Tábuas, o
credor detinha poder total, não só sobre os bens, mas também sobre
a pessoa do devedor. A Tábua III proclamava: "Aeris confessi
rebustque jure judicatis tringinta dies justi sunto. Post deinde manus
injectio esto, in jus ducito" 1.
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Com o passar do tempo, porém, e com o crescente reforço da
organização política, há um gradativo aumento da participação do
Estado na solução de litígios, verificando-se, em consequência, uma
paulatina restrição ao campo da autodefesa.
Quanto mais o Estado se expande, por meio da jurisdição,
impedindo a realização privada do direito, menor é a possibilidade de
se exercer a ação de direito material sem invocação da proteção
jurisdicional 2. Só no Norte da Itália, surge com extrema nitidez a
execução de caráter coletivo, remanescendo ainda as penas
severíssimas, para os devedores falidos, sendo que a falência, por si
só, constituía-se crime. A finalidade primeira era a liquidação do
patrimônio do devedor, por meio da execução coletiva 3.
Hoje, diante de situações de insatisfação, o Estado oferece aos
sujeitos envolvidos um caminho civilizado para a tentativa de solução,
facultando às partes ou mesmo a uma única delas,
independentemente da disposição da outra, socorrerem-se do Poder
Judiciário mediante o processo.
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Com o passar dos tempos, inúmeras transformações
operar-se-ão, não de maneira sucessiva, evolutiva ou linear, levando o
instituto falimentar a se preocupar com a boa ou a má-fé por parte do
falido, a criar instrumentos para prevenir ou remediar o estado de
desequilíbrio nas contas do devedor (o que dá ensejo para o
aparecimento das concordatas preventivas - sucedida pela atual
recuperação), até à própria resolução de se submeter todo o processo
de falência e de concordata à autoridade judicial, com progressiva
perda de prerrogativas por parte dos credores e devedores em favor
do juiz.
O instituto da falência apresentou-se, desde o início, com
caráter repressivo. Seu propósito era o de punir o devedor que iludira
a confiança de outros, ficando marcado com a infâmia. O maior
problema é que, com isso, agravava-se dia-a-dia a situação do
devedor, principalmente aquele que sempre agira honestamente, o
qual ficava apavorado com a simples e vaga ideia de cair em falência.
Por esses e outros motivos passou-se a cogitar meios que
moderassem a severidade para com os devedores honestos, mas
que, ao mesmo tempo, não sacrificassem os direitos e interesses dos
credores e de terceiros. Surgiram, então, os seguintes institutos: (i)
moratória, traduzido na dilação de prazo concedida ao devedor para
solver as suas obrigações; (ii) cessão de bens, consistente na entrega
dos bens do devedor aos credores; (iii) liquidação judicial, que era
processo congênere ao da falência, mas que não acarretava o
desapossamento dos bens do devedor e, finalmente, (iv) a concordata
preventiva, que consistia em um favor legal concedido pelo Estado
para os comerciantes em crise financeira.
No direito romano, não havia a concordata com o devedor
insolvente 4. Houve, todavia, dois institutos que se aproximavam da
concordata judicial, quais eram: o (i) inducioe quinquennales e (ii) o
pactum ut minus solvatur, este último colocado pela doutrina como o
que mais se assemelha ao instituto da concordata preventiva 5.
Por meio desse instituto, os credores decidiam a concessão ou
não do benefício por maioria computada pelo valor dos créditos.
Ressalte-se que para se operar a validade e a eficácia desse acordo,
necessária a homologação pelo magistrado, atingindo tanto os
credores quirografários, como aqueles que gozassem de privilégios
(garantia real, por exemplo) 6.
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Tudo isso porque se verificou que era mais vantajoso deixar o
devedor à frente de seus negócios, sendo que nesse caso a minoria
teria que acatar a concessão do benefício pela maioria (princípio da
comunhão de interesses), desde que o prazo de moratória não
excedesse cinco (5) anos. Em resumo: chegou-se à conclusão de que
era sempre mais seguro cobrar uma quantia menor ou conceder
prazos ao devedor, do que correr o risco de nada receber.
Atualmente, mostra-se inaceitável aos olhos do leigo, como aos
do iniciado na ciência jurídica, que o titular de um direito de crédito, a
despeito de aguardar o moroso curso do processo de recuperação,
muitas vezes não consiga, ao final, receber o que a lei lhe assegura,
mercê da prática do ato ímprobo do devedor e do dano marginal do
processo 7.
Tal conjuntura, ora vulgarmente expressa no pensamento
popular "ganha, mas não recebe", contribui para a descrença na
justiça e, consequentemente, para o aumento da chamada situação
de litigiosidade contida 8, a qual, além de atormentar o convívio em
sociedade, coloca em cheque a serventia do processo e a autoridade
do ordenamento jurídico 9.
A duração dos processos, considerada excessiva, explica a
preferência de inúmeros litigantes pela utilização de vias extrajudiciais,
encaradas sob a nomenclatura de "Resolução Alternativa de Conflitos"
(ADR’s).
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A existência de meios alternativos de solução de conflitos, por
meio dos quais os impasses são colocados perante terceira pessoa
(que não o Poder Judiciário), tal como ocorre com a arbitragem, a
conciliação e a mediação, apresentam grande utilidade social
10
. É
certo também que o direito estimula a autocomposição dos sujeitos
em embate, seja por meio da transação, seja por meio da renúncia ou
da submissão. Dentro desse contexto, a ideia de resolver conflitos de
direitos e de interesses mediante arbitragem, como alternativa para a
solução judicial, vem sendo muito enfatizada em diferentes partes do
mundo 11.
Entretanto, conforme será exposto no desenvolvimento do
presente estudo, questiona-se veementemente a possibilidade de se
submeter integralmente o processo de recuperação judicial à
arbitragem.
3 A EFICIÊNCIA NOS PROCESSOS FALIMENTARES E DE
RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
A eficiência do sistema deve ser o objetivo norteador de
qualquer processo em que se pretenda um mecanismo justo, célere e
que preserve, na medida do possível, a maximização da riqueza
social.
A reforma de qualquer lei concursal, diploma central na
preservação dos direitos de propriedade, deve necessariamente ser
acompanhada de alguns fatores, tais como o treinamento dos juízes, a
implantação de mecanismos de governança corporativa na
administração da empresa em recuperação (ou até mesmo falida),
bem como o fortalecimento dos direitos de propriedade ao longo do
processo, entre tantas outras prioridades.
E o assunto é relevante para a economia, em especial em
épocas de crise como a que enfrentamos desde o final de 2008. As
companhias precisam falir porque, em alguns momentos, sofrem da
incapacidade crônica de honrar seus compromissos financeiros, e
isso, naturalmente, é parte do sistema capitalista.
Nas situações de falência, classicamente, somente duas
hipóteses de solução se apresentam aos credores: (i) ou podem
executar suas respectivas garantias; (ii) ou podem vender todos os
ativos para que se efetue pagamento proporcional ao passivo. É nesta
última que a antiga lei falimentar brasileira se concentrava
(Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945), principalmente em
razão de ter como objeto o comerciante da década de 40 - muito
distinto do empresário do século XXI.
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Aliás, a maior prova da inadequação do mencionado instituto
aos seus objetivos é o fato de a experiência da economia moderna
permitir colher o testemunho de que, quando a insolvência (ou mesmo
a insolvabilidade) atinge um empreendimento do porte de uma grande
empresa, todos se convencem (credores, governo e a coletividade em
geral) de que a pior solução para o caso será a falência. O consenso
indica que, instaurando-se a falência, todos os valores sociais, todos
os interesses econômicos, estarão definitivamente perdidos.
Portanto, a doutrina comercialista de forma uníssona aponta
para que todos os esforços sejam desenvolvidos em favor da
preservação da empresa, e, com isso, dos empregos diretos e
indiretos que ela gera, dos tributos que ela recolhe e da circulação de
riquezas que propicia. Afinal, como lembra Giuseppe Ragusa
Maggiore, a empresa constitui o ponto de encontro de vários
interesses e "que a falência destrói na maior parte dos casos" 12.
Para tanto, segundo a doutrina econômica especializada
13
,
podem ser estabelecidas três metas principais concernentes a bons
procedimentos concursais: (i) deve resultar em uma solução eficiente;
(ii) deve preservar os efeitos vinculantes das dívidas e penalizar os
administradores e acionistas causadores do problema aos credores
nas várias fases do processo; (iii) deve oferecer, no entanto,
incentivos de modo que, ao preservar as prioridades relativas, conte
com o apoio dos acionistas e dos trabalhadores, ou, ao menos, que os
interessados não atrapalhem uma solução em que, ao término do
processo, haja mais ganhadores do que perdedores.
Nesse sentido, duas sugestões se mostram importantes. Em
primeiro lugar, revisitar o instituto do concurso de credores (o que
efetivamente ocorreu na Lei de Recuperação e Falências ao privilegiar
os créditos com garantia real em detrimento dos créditos tributários art. 83, II e III), principalmente se a interrupção da atividade
econômica da empresa em crise for mais prejudicial ao interesse
público do que a habilitação de seu crédito tributário.
Em segundo lugar, permitir maior participação dos credores (os
verdadeiros interessados no processo), com vistas a garantir que
sejam capazes de definir o destino daquilo que passou a ser deles.
Isso também foi adotado na Lei de Recuperação e Falências, tendo
em vista a adoção de um regime de comunhão de interesses para a
deliberação sobre a concessão ou não do instituto da recuperação.
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Aliás, em um dos trinta e cinco objetivos marcados para a
eficiência do processo falimentar nas "diretrizes" formuladas pelo
World Bank, propõe-se a conversão de dívida em participação
acionária, "debt equity swap" (com classes de acionistas diferenciados
e com opções de ações aos credores menos privilegiados), o que é
um incentivo interessante para a recuperação da empresa
14
. Em
outras palavras, vai-se o empresário, mas permanece o negócio,
conforme adotado no art. 50, X e XVI, da Lei de Recuperação e
Falências 15.
Até mesmo porque, com a preservação da entidade econômica,
deliberada de acordo com um regime de comunhão de interesses, os
credores poderiam trocar dívida por capital (saindo da condição de
credores para a de sócios); o que, em muitos casos, traduz uma
situação mais vantajosa do que se fossem apenas credores.
A aproximação entre Direito e Economia é uma dinâmica que
se impõe por conta das novas e relevantes questões que emergem do
cotidiano. Implica reconhecer que a distância entre as duas ciências é
cada vez menor.
Isso leva à conscientização de que o processo judicial não vale
tanto pelo que é, mas, fundamentalmente, pelos resultados que
produz, determinando o reexame dos institutos jurídicos, a fim de
sintonizá-los com a realidade do mercado. Esse, por sua vez, também
é uma instituição que necessita de ordenamentos previsíveis para
garantir a tão almejada segurança, racionalidade e eficiência alocativa
do capital.
Assim, o legislador disponibilizou no art. 50 um rol
exemplificativo de instrumentos econômico-financeiros, administrativos
e jurídicos, que normalmente são empregados na reorganização
voluntária de empresas, com o objetivo de, com isso, propiciar "fôlego"
para o devedor continuar presente e atuante no mundo econômico.
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Em realidade, esses instrumentos previstos no art. 50, se
aplicados isoladamente, talvez não sejam aptos a propiciar a
recuperação da empresa em crise. Já, se combinados, poderão
permitir uma efetiva recuperação.
Isso posto, a primeira e tradicional modalidade é a "concessão
de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações
vencidas ou vincendas". Logicamente, é a que mais se aproxima do
antigo instituto da concordata preventiva, por se tratar da prorrogação
de prazos e remissão parcial das obrigações. Tal modalidade tem o
condão de efetivamente permitir a reestruturação da atividade
empresarial, com a redução de custos com empréstimos bancários e a
consequente disponibilização de recursos em caixa para novos
investimentos.
Destacam-se, como novas modalidades, a utilização dos
conhecidos institutos da "cisão, incorporação, fusão ou transformação
de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas
ou ações", reguladas pela lei societária (Lei nº 6.404/1976).
Outro significativo meio de recuperação previsto pelo referido
art. 50 é de "constituição de sociedade de credores". Tal instituto tem
por objetivo criar sociedade credora única com o propósito específico
de organizar a administração dos múltiplos créditos, mediante sua
conferência ao capital da nova sociedade. Essa medida propicia aos
acionistas o eventual recebimento de dividendos, na proporção dos
créditos aportados, e, sobretudo, a capacidade de intervir na
recuperação de forma mais efetiva e uniforme, inclusive com aporte
de capital-financeiro a favor da empresa em crise.
Enfim, muitos são os instrumentos disponibilizados pelo
relevante art. 50 para viabilizar a recuperação da empresa em
dificuldades. Insista-se que são instrumentos que, isoladamente, não
levam à recuperação da empresa. De qualquer forma, impõe-se sua
contextualização com a efetiva viabilidade econômica do plano de
recuperação, mediante planos de negócios e operações muito bem
discriminados para salvar a empresa em virtude da importância do
ente na comunidade onde atua.
4 A LEI DE RECUPERAÇÃO E FALÊNCIAS E SUAS INFLUÊNCIAS
NO MERCADO
Com quase doze anos de tramitação no Congresso Nacional,
mais de cinco substitutivos e quatrocentas e oitenta emendas depois,
entrou em vigor, no dia 9 de junho de 2005, a Lei de Recuperação de
Empresas e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005).
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Por meio dela há uma mudança substancial nos efeitos da
insolvência, se comparada com a antiga Lei Falimentar de 1945, que
pelo seu caráter sancionatório punia não somente o empresário, mas,
sobretudo, a própria empresa, que era imediatamente fechada e
lacrada, levando à deterioração de seus ativos (transformados em
carcaça nos longos anos que precediam a sua venda judicial). Nessa
punição, todos os empregos eram cancelados, bem como afastada
toda a variada atividade profissional dos terceiros que girava em torno
da empresa judicialmente destruída.
O caráter draconiano da antiga lei, que se viu encerrada nos
sessenta anos de sua aplicação, destruiu empresas da maior
importância para o país, pois o instituto da concordata não se
adequava à realidade das rápidas relações comerciais, não fazendo a
adequada separação da culpa do empresário e a sobrevivência da
empresa, esquecendo-se que o ente produtivo não comete crimes
falimentares atribuíveis aos seus donos.
Tinha o antigo diploma, portanto, um caráter medieval e
patrimonialista. Além de punitivo, não levava em conta o valor dos
intangíveis das empresas falidas, fazendo desaparecer com elas as
suas marcas e o seu nome comercial.
Mas a Lei de Recuperação e Falências não visa somente à
continuação do negócio ou à preservação da empresa. Seus
princípios foram substancialmente alterados, apontando para
conceitos modernos, utilizados por legislações de países de economia
pujante, tais como a França, EUA, Espanha e Portugal. Portanto, deve
ser encarada dentro de um novo contexto, não somente liquidatório,
mas principalmente como uma "nova disciplina jurídica das empresas
em crise", como bem afirmado por Nelson Abrão já em 1985 16.
Enfim, não se pode aceitar que a empresa é um ente
descartável. Tanto isso é verdade que a valiosa jurisprudência de
nossos Tribunais vinha destoando das disposições legais do diploma
legal anterior, garantindo muitas vezes a continuação dos negócios
para a realização da função social da empresa.
Mas a jurisprudência, por mais valiosa que fosse, não era
capaz de garantir a mudança que o mercado desejava. Isso porque o
mercado, assim como qualquer outra instituição jurídica, necessita de
comportamentos previsíveis para garantir a tão almejada eficiência
alocativa do capital. Tudo isso porque o risco da atividade empresarial
deve residir na jogada do agente e não nas "regras do jogo" 17.
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Finalmente, depois de várias tentativas, o Brasil está diante de
uma concreta perspectiva de tratamento positivo das crises
econômico-financeiras das empresas. A Lei de Recuperação e
Falências, agora em vigor, procura, sempre que possível, evitar o
desaparecimento de unidades produtivas.
A razão de seu surgimento está no art. 47, que assim dispõe:
"A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da
situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos
interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da
empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".
A Lei de Falências revogada previa o instituto da concordata
preventiva que consistia em um favor legal concedido pelo Poder
Judiciário para aqueles empresários que se encontravam em situação
de crise financeira.
Tratava-se de uma verdadeira "moratória legal", concedida pelo
período de dois (2) anos e que geralmente se estendia por outros
anos a fio, sem qualquer pagamento aos credores, finalizando com a
inevitável decretação da quebra.
Com a edição da Lei de Recuperação e Falências, em lugar da
vetusta concordata preventiva, o legislador disponibilizou institutos
para a efetiva recuperação da empresa e a superação de crises
econômico-financeiras. São eles: a recuperação judicial e a
extrajudicial.
Em realidade, todo o sistema foi significativamente alterado, na
medida em que, pelo sistema anterior, o sacrifício imposto aos
credores já vinha definido pelo legislador e era de escolha unilateral
do devedor (prazo de pagamento em dois anos e correção dos valores
com juros de até 12% a. a.), enquanto, na recuperação, o sacrifício
será delimitado pelo plano de recuperação, que impõe a efetiva
concordância e participação dos credores.
No instituto da recuperação extrajudicial se verifica um modelo
que visa a negociar os créditos dos mais relevantes credores. Trata-se
de instituto eminentemente contratual. Já na recuperação judicial,
verifica-se um processo mais formal e controlado pelo Poder
Judiciário, objetivando que os credores aprovem um plano de
recuperação apresentado pelo devedor de acordo com o regime de
comunhão de interesses (prevalência da maioria).
Não obstante a adoção desse princípio da conservação da
empresa, não se pode aceitar um mecanismo indiscriminado para
manter qualquer atividade econômica. A experiência mostra que a
extinta concordata preventiva era, muitas vezes, ajuizada justamente
para preparar a empresa para o processo falimentar. Logo, a
afirmação, até hoje tida como verdadeira, de que "ninguém ganha com
a falência" é relativa. Isso porque, no presente regime normativo, a
rápida liquidação da empresa pode ser benéfica à comunidade.
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E o art. 75 da nova Lei confirma esse entendimento ao pontuar
que "a falência, ao promover o afastamento do devedor de suas
atividades, visa a preservar e a otimizar a utilização produtiva dos
bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da
empresa".
Portanto, deve-se ter em mente que a recuperação só será
oportuna se os custos sociais e econômicos com a conservação da
empresa forem menores do que sua rápida liquidação. Desse modo,
somente a real viabilidade econômica da empresa em dificuldade
pode legitimar a aplicação de um plano visando à sua recuperação.
Assim é que, em face do relevante interesse público que a
preservação da atividade econômica organizada ostenta, a atuação do
juiz no processo deverá ser fundada no referido art. 47 da Lei de
Recuperação e Falências, no seu amplo alcance, capaz de até
mesmo suspender a execução de garantias vinculadas aos
empréstimos e contratos financeiros, desde que essa suspensão seja
imprescindível para a recuperação da empresa em crise.
Ademais, deve sempre ser levado em conta o regime de
comunhão de interesses dos credores adotado pela Lei de
Recuperação e Falências, fazendo com que a vontade da maioria
prevaleça sobre a minoria, sempre visando ao bem maior do interesse
coletivo da preservação da empresa.
5 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À FALÊNCIA E
LIQUIDAÇÕES EXTRAJUDICIAIS
A questão que ora se coloca, a fim de pontuar a linha de
raciocínio a ser desenvolvida no presente artigo, especialmente no
que diz respeito à análise da eventual interface a ser estabelecida
entre a arbitragem e o instituto da recuperação, diz respeito à
possibilidade de algumas questões incidentais do processo falimentar
serem ou não solucionadas por meio da arbitragem 18.
Com isso não se discute, eventualmente, que o próprio
processo falimentar seja submetido ao procedimento arbitral. Até
mesmo porque, em se tratando de processo falimentar pendente, com
a consequente perda pelo falido da disponibilidade da administração
de seus bens (LRF, art. 103), não há como celebrar convenção de
arbitragem válida, uma vez que esta inequivocadamente exige que os
seus objetos sejam direitos patrimoniais disponíveis
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. Como se isso
não bastasse, a própria arrecadação dos bens da empresa falida
acarreta a indisponibilidade desses direitos 20.
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Discute-se especificamente nessa oportunidade a posição
devidamente fundamentada em artigo denominado "A arbitragem, a
falência e a liquidação extrajudicial", publicado pelo Professor Donaldo
Armelin, por meio do qual afirma peremptoriamente que a decretação
da falência não impediria a massa falida, representada por seu
administrador, de cumprir o pactuado em cláusula compromissória
firmada antes da decretação da quebra pelo falido para solucionar
conflito de interesse estabelecido com terceiro 21.
Assim, ainda segundo o ilustre autor, não haveria motivo para
extinguir ou sobrestar a arbitragem em curso na dependência do
desenvolvimento do processo de falência, bastando a mera sucessão
da parte contratante (falido) por aquela que a sucedeu nos direitos e
obrigações decorrentes da íntegra convenção de arbitragem pactuada
(administrador judicial). No que diz respeito às arbitragens ainda não
iniciadas, mas com convenção de arbitragem firmada antes do
advento da falência, impor-se-ia o direito adquirido à instauração da
arbitragem, seu processamento e conclusão com a prolação da
sentença arbitral, competindo ao tribunal arbitral decidir se mantém ou
não sua competência para solucionar o litígio 22.
À luz dos interesses multifacetários do processo falimentar,
bem como da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor
antes da decretação da falência, ousamos discordar dessa posição.
A convenção de arbitragem é o acordo de vontades pelo qual
as partes se vinculam à solução de litígios determinados ou
determináveis, presentes ou futuros, por meio de juízo arbitral, sendo
derrogada, em relação aos mencionados litígios, a jurisdição estatal.
Em outras palavras: a convenção de arbitragem pode ser considerada
como a forma pela qual se institui o juízo arbitral, sendo suas duas
espécies (compromisso arbitral e cláusula compromissória - LA, arts.
4º e 9º) modos distintos de visualização do mesmo fenômeno 23.
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Na convenção de arbitragem, sem dúvida existe um negócio
jurídico celebrado entre as partes, tendo como pressuposto um acordo
de vontade entre elas, dizendo respeito a objetos estipulados pelas
partes de acordo com o ordenamento jurídico utilizado 24.
O compromisso arbitral é a forma de instituição da arbitragem
tradicionalmente utilizada quando o litígio já existe, isto é, existindo o
conflito entre as partes, ela pode definir a arbitragem como forma de
solução. Já a cláusula compromissória se caracteriza como a
convenção de arbitragem anterior ao litígio, por ser prevista no
momento em que as partes celebram um contrato e cujo cumprimento
se espera.
Não se nega, portanto, o caráter contratual da convenção de
arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o
compromisso arbitral, nos termos dos arts. 3º, 4º e 9º da Lei nº 9.307,
de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) 25.
No entanto, com o objetivo de sustentar a divergência
manifestada no presente estudo, verifica-se que o art. 117 da Lei de
Recuperação e Falências estabelece a regra geral dos contratos
bilaterais, os quais não se resolvem com a decretação da quebra e
podem ser cumpridos pelo administrador judicial para evitar prejuízos
à massa falida 26.
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Talvez resida aí o ponto central para a melhor interpretação da
questão, uma vez que a técnica legislativa reservou ao administrador
judicial a decisão sobre a resolução da relação contratual, a qual deve
se pautar pela conveniência ou não da manutenção do contrato para a
liquidação e a conservação dos ativos 27.
Isso não quer dizer que a opção outorgada ao administrador
judicial em continuar a execução dos contratos bilaterais seja livre,
posto que a autorização somente se dará nas hipóteses em que o
cumprimento for capaz de reduzir ou evitar o aumento do passivo da
massa falida. Ou, ainda, quando se mostrar necessário à manutenção
e preservação dos ativos da massa falida.
Seguindo a tendência geral da lei de aumento da participação
dos credores nas decisões que envolvem questões da falência
(regime da comunhão de interesses), verifica-se que o administrador
necessitará de autorização do Comitê de Credores, quando formado,
para dar cumprimento a contrato bilateral. Na inexistência de tal órgão,
a interpretação cumulada dos arts. 28 e 117 da Lei de Recuperação e
Falências outorga ao juiz a tarefa de anuir ou não com a pretensão do
administrador de declarar a resolução ou manutenção do "contrato"
(LRF, arts. 28 e 117) 28.
Portanto, diferentemente da premissa adotada pelo Professor
Donaldo Armelin, no sentido de estar "pouco importando o estado
atual da liquidação da empresa, o tribunal arbitral será sempre
competente para prolatar a sentença arbitral"
29
, verifica-se que a
competência da fundamentada decisão de levar a cabo ou não a
cláusula compromissória ou o compromisso arbitral previamente
estabelecido será resolvida no âmbito da falência e não do Tribunal
Arbitral.
Para infirmar esse conceito, aqueles que defendem a
possibilidade de aplicação da arbitragem nesses casos destacam,
com base no postulado da kompetenz-kompetez, que questões
atinentes à existência, validade e eficácia da cláusula compromissória
deverão ser apreciadas pelo árbitro, a teor do que dispõem os arts. 8º,
parágrafo único, e 20 da Lei de Arbitragem.
44
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
Não se desconsidera esse entendimento adequado; no entanto,
ao analisar a questão sob o prisma objetivo do melhor proveito
econômico para a massa falida, deverá o administrador judicial
submeter sua pretensão ao Comitê de Credores, o qual concordará ou
não com a decisão, extrajudicialmente. Na hipótese de inexistir Comitê
de Credores instaurado, cabe ao juiz analisar essa questão.
Se a resposta for negativa, ainda assim resta ao sujeito
interessado no cumprimento da cláusula compromissória o
ajuizamento do processo judicial estipulado no art. 7º da Lei nº 9.307,
de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem)
30
, visando a compelir
a massa falida à instituição da arbitragem por meio de sentença.
No entanto, é de se ressaltar que a competência para a
demanda é do próprio juízo universal falimentar, competente para
todas as novas ações sobre as quais haja interesse da massa falida
(LRF, art. 76). Sendo assim, caberá ao juiz da falência presidir os
trabalhos em audiência e julgar a pretensão, o que pode figurar um
tanto quanto peculiar, em se tratando que o próprio juiz já poderá ter
se manifestado contrariamente. Tudo dependerá da força dos
argumentos técnicos do requerente no sentido de demonstrar a
vantagem da instituição da arbitragem ou inexistência de prejuízo para
a massa falida.
Ainda que eventual posição favorável ao cumprimento da
cláusula compromissória seja emitida pelo administrador judicial,
devidamente corroborada pelo Comitê de Credores ou juiz, ainda
assim penderá óbice à celebração do compromisso arbitral.
Isso porque um dos requisitos do compromisso arbitral é o de
justamente estabelecer a "declaração da responsabilidade pelo
pagamento dos honorários e das despesas com a arbitragem" e "a
fixação dos honorários do árbitro, ou dos árbitros" (LA, art. 11, V e VI).
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
45
Portando, via de regra, o procedimento arbitral acarretará
custos para a massa falida. Custos esses destinados à satisfação da
pretensão de um único credor, em detrimento dos demais, uma vez
que toda a despesa será arcada com o ativo da massa falida. Assim é
que diante da objetiva proibição econômica estabelecida no art. 117
da Lei de Recuperação e Falências, praticamente impossível será o
preenchimento de condições fáticas tais que permitam a instauração
do processo arbitral.
Somente se mostrará possível nas remotas e cumulativas
hipóteses de: (i) o sujeito interessado no cumprimento da cláusula
compromissória arcar com todos os custos do processo arbitral; (ii) os
órgãos de administração da massa falida (administrador judicial,
Comitê de Credores e juiz) verificarem existir vantagem ou inexistir
prejuízo na solução do impasse por meio da arbitragem; (iii) serem
observados os meios necessários para a garantia do tratamento
paritário das partes no procedimento arbitral, de modo a evitar que o
poder econômico de uma parte concorra favoravelmente ao deslinde
da questão
31
; e (iv) que a sentença arbitral não implique risco de
tratamento discriminatório entre credores, ou seja, que se limite a
declarar a existência ou não do direito patrimonial questionado,
viabilizando apenas a regular formação de título judicial ensejador de
habilitação de crédito no processo falimentar (CPC, art. 475-N, IV) 32.
Portanto, diferentemente do quanto afirmado pelo Professor
Donaldo Armelin em sede doutrinária, compete ao juízo falimentar, e
não ao tribunal arbitral, a decisão pela instauração ou não da
arbitragem com base em cláusula compromissória firmada pelo falido
antes da decretação da quebra.
Como se isso não bastasse, figura-se praticamente impossível
a superação dos óbices fáticos à instauração do procedimento arbitral,
à luz dos interesses multifacetários do processo falimentar, bem como
da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor antes da
decretação da falência.
46
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
No entanto, importante se faz ressaltar que no mesmo sentido
sustentado pelo Professor Donaldo Armelin em sede doutrinária,
algumas manifestações da jurisprudência corroboram a possibilidade
e o interesse da utilização da arbitragem para a massa falida
33
. O
mesmo entendimento já foi aplicado às liquidações extrajudiciais
previstas para instituições financeiras (Lei nº 6.024/1974), planos de
saúde (Lei nº 9.656/1998), sociedades cooperativas (Lei nº
5.764/1971), entre outras 34.
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
47
6 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À
RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL
A Lei de Recuperação e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de
fevereiro de 2005) contemplou instituto que vinha sendo praticado há
algum tempo por empresas brasileiras em crise: a recuperação
extrajudicial. Em realidade, a possibilidade da recuperação
extrajudicial pode ser considerada a maior e mais benéfica inovação
trazida pela Lei de Recuperação e Falências.
Consiste na possibilidade concedida ao devedor em situação
de crise de convocar seus credores para oferecer-lhes forma de
composição para pagamento dos valores devidos. Trata-se de
verdadeira legalização da denominada "concordata branca", em
detrimento da maléfica disposição legal constante da Lei de Falências
anterior. Isso porque na revogada Lei Falimentar de 1945, a infrutífera
convocação dos credores para renegociação das dívidas gerava a
caracterização dos denominados atos de falência, possível ensejador
de quebra. Era o que determinava o antigo art. 2º, III, da Lei de
Falências Antiga: "Art. 2º Caracteriza, também, a falência, se o
comerciante: [...] III - convoca credores e lhes propõe dilação,
remissão de créditos ou cessão de bens".
Portanto, de grande importância foi a abertura da possibilidade
de convocação dos credores para a renegociação das dívidas, não
implicando qualquer risco para a empresa devedora, pois é dado a ela
assim proceder por meio da recuperação extrajudicial. Senão
vejamos: "Art. 161. O devedor que preencher os requisitos do art. 48
desta Lei poderá propor e negociar com credores plano de
recuperação extrajudicial".
Logo, a recuperação extrajudicial regulamentou e ampliou a
possibilidade de o devedor convocar seus credores para buscar
soluções, visando à recuperação e evitando-se a falência.
A negociação entre devedor e credores será traduzida em um
plano de recuperação, de natureza contratual, que estabelecerá as
condições acordadas pelas partes. Negociadas as condições do plano
de recuperação extrajudicial e firmado o contrato, os credores
signatários estão vinculados a este, devendo respeitar suas
condições. Em caso de descumprimento pelo devedor, o plano de
recuperação extrajudicial poderá ser executado, podendo até mesmo
resultar na falência.
Pode ainda o devedor, se desejar, requerer a homologação do
plano de recuperação extrajudicial. A homologação judicial do plano
de recuperação pode interessar ao devedor, na medida em que, se
deferida, vinculará eventuais credores que negociaram e optaram por
rejeitar a proposta. No entanto, ressalte-se que aqueles credores que
sequer foram convocados ou não compareceram à reunião, não
sofrerão qualquer limitação em seus direitos 35.
48
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
Observa-se que para a ocorrência da vinculação de credores
dissidentes, deverá o plano de recuperação extrajudicial ser aprovado
por credores que representem mais de 3/5 (três quintos) dos créditos
de determinada espécie.
Nesse contexto, fica claro que legislador primou pela
participação dos credores, permitindo a negociação com o devedor e
extinguindo a concordata preventiva, instituto em desacordo com as
atuais práticas de mercado e, na maioria das vezes, insuficiente ou
incapaz de recuperar a empresa. Portanto, a recuperação
extrajudicial, diante da atual realidade do mercado brasileiro, muito
mais consistente e maduro, será alternativa viável para a efetiva
recuperação da empresa, sem grandes intervenções do Estado.
Mas ressalte-se novamente que a homologação em Juízo não é
indispensável e a composição pode se dar por qualquer meio e a
qualquer momento, seja por contrato, concessões de prazo,
abatimentos, dações em pagamento, entre outros.
Em realidade, a homologação em juízo da recuperação
extrajudicial se mostra interessante à luz dos efeitos decorrentes
desse ato, quais sejam: a) a constituição de título executivo judicial,
nos termos do art. 584, III, do Código de Processo Civil e a
possibilidade de sua execução; b) dá publicidade e oficialidade ao
procedimento; c) suspende ações e execuções em andamento e
impossibilita pedido de falência dos credores sujeitos ao plano, nos
termos do art. 161, § 4º, da Lei de Recuperação e Falências; d)
impossibilidade de os credores que aderiram ao plano extrajudicial
desistirem da adesão, marcando o cunho contratual do vínculo, nos
termos do art. 161, § 5º, da Lei de Recuperação e Falências; e)
possibilidade de inclusão (submissão) de outros credores que não
acataram a proposta de recuperação extrajudicial, desde que ocorra a
aprovação por mais de 3/5 de todos os créditos de cada espécie por
ele abrangidos, nos termos do art. 163 da Lei de Recuperação e
Falências.
Por conta disso, na recuperação extrajudicial, nada impede que
os credores e o devedor prevejam a arbitragem como forma de
solução de conflitos provenientes da interpretação ou da falha de
cumprimento das disposições estabelecidas no plano de recuperação
extrajudicial, justamente pelo fato de esse instituto viabilizar a escolha
daqueles credores que com o devedor deseja "contratar".
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
49
Dentro desse contexto, a inclusão de convenção de arbitragem
em plano de recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da
autonomia da vontade das partes 36.
O ponto chave, no entanto, reside na necessidade de
segregação dos direitos patrimoniais disponíveis daqueles direitos
indisponíveis definidos pela Lei de Recuperação e Falências,
notadamente os créditos de natureza tributária, derivados da
legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes do trabalho, nos
termos do art. 161, § 1º, da Lei de Recuperação e Falências.
Outra questão que se coloca sobre o tema é a capacidade de
uma cláusula compromissória arbitral, não acordada por todos os
credores, mas apenas por aqueles que representam mais de 3/5 de
todos os créditos de cada espécie, ser imposta àqueles credores que
não a aceitaram.
Respeitosamente, discordamos desse posicionamento, uma
vez que a questão central consiste em saber se a maioria votante,
independentemente da vontade minoritária, pode afastar a
competência da jurisdição estatal e, em seu lugar, adotar o juízo
arbitral. Dentro desse contexto, temos que o consentimento é
indispensável para que se possa, validamente, suprimir o conflito da
apreciação da jurisdição estatal e submetê-lo à jurisdição
convencional.
A cláusula arbitral só pode ser imposta àqueles credores que
houverem expressamente aderido a ela, ainda que o quorum
qualificado previsto no art. 163 da Lei de Recuperação e Falências
seja alcançado. A minoria, apesar de vencida, não pode ser obrigada
a aceitar a cláusula arbitral porque não a teria subscrito
expressamente, por força do art. 4º, § 1º, da Lei de Arbitragem.
Até mesmo porque o compromisso em adotar a chamada
jurisdição convencional para solução de controvérsias é uma opção,
uma escolha do indivíduo: ato essencialmente voluntário. Dessa
forma, não poderão subsistir quaisquer incertezas sobre a intenção da
parte em adentrar no juízo arbitral, sob pena de se macular a
autonomia da vontade 37.
50
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
A cláusula de previsão de arbitragem para a solução dos
conflitos decorrentes do vínculo social não é uma cláusula direcionada
aos interesses gerais da coletividade de credores, e sim às partes que
a compõem. O princípio da maioria vigente no instituto da recuperação
não pode reduzir um direito essencial do credor de se socorrer do
Poder Judiciário. Mesmo reconhecendo a existência de abalizadas
opiniões em sentido contrário 38, sem a adesão de todos os credores
não há a possibilidade de se impor a cláusula compromissória de
arbitragem aos demais credores.
7 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À
RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Depois do clamor doutrinário existente desde 1960, no sentido
da necessária reforma do direito falimentar brasileiro, e não obstante
algumas mal sucedidas tentativas, o Brasil está diante de uma
concreta perspectiva de tratamento das crises econômico-financeiras
das empresas.
De forma até mesmo programática, a Lei de Recuperação e
Falências procura, sempre que possível, evitar o desaparecimento de
unidades produtivas. Para tanto, basta verificar a redação do art. 47
da mencionada lei, a qual deixou bem claro que a recuperação judicial
é medida judicial destinada a sanar crise econômico-financeira da
empresa, manter a fonte produtora de riquezas, pagadora de tributos
e de emprego, salvaguardar o interesse dos credores e realizar a
função social da empresa.
Ademais, de acordo com a redação do art. 49, caput, da Lei de
Recuperação e Falências, estão sujeitos a ela todos os credores
anteriores ao pedido de recuperação, senão vejamos: "Art. 49. Estão
sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do
pedido, ainda que não vencidos".
Por outro lado, não estão sujeitos à recuperação judicial, em
regra: (a) credores decorrentes de contratos de alienação fiduciária,
arrendamento mercantil (leasing) e contratos com reserva de domínio
(LRF, art. 49, § 3º); (b) credores decorrentes de contratos de compra e
venda de imóveis (LRF, art. 49, § 3º); (c) créditos bancários
decorrentes de adiantamento a contrato de câmbio para exportação
(art. 49, § 4º); (d) créditos trabalhistas ou decorrentes de acidentes do
trabalho; (e) créditos tributários, pois as ações fiscais não se
suspendem; (f) créditos garantidos por penhor, uma vez que sua
substituição também depende da vontade do credor; e (g) as
instituições financeiras credoras por adiantamento aos exportadores
não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial.
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
51
Ressalte-se que esses credores, via de regra excluídos dos
efeitos da recuperação judicial, não são atingidos pela medida e
podem continuar exercendo seus direitos reais e contratuais nos
termos das leis próprias. Podem ainda, desde que desejem, participar
do processo de recuperação, na medida em que a lei, ao mesmo
tempo em que os exclui, não vedou sua participação no processo de
recuperação de judicial.
Entretanto, durante o período de 180 dias (denominado "stay
period"), não poderá ser realizada qualquer venda ou retirada de bens
de capital essenciais à atividade do devedor por execução de referidas
demandas. Isso porque ocorre a suspensão das execuções individuais
dos credores pelo prazo improrrogável de 180 dias (art. 6º, § 4º).
Ademais, durante o processamento da recuperação judicial há o
prosseguimento das ações ordinárias para discutir valores ilíquidos
(LRF, art. 6º, § 1º).
O legislador deixou aos credores o encargo de aprovar,
modificar ou rejeitar o plano de recuperação apresentado pelo
devedor. Até mesmo porque os credores reunidos em torno de uma
execução coletiva ou recuperação judicial possuem alguns interesses
convergentes e muitos divergentes.
Na recuperação judicial, cada classe de credores deve arcar
com a parcela de sacrifícios que lhe foi imposta no plano de
recuperação, e as divergências certamente ocorrerão quando o
assunto disser respeito ao modo de distribuição dos "prejuízos" entre
as classes. No emaranhado dessa complexa trama de interesses é
preciso que se identifique a solução que melhor atenda ao conjunto de
credores.
Assim é que deve ser levada em conta a aplicação do regime
de comunhão de interesses, fazendo com que a vontade da maioria
prevaleça sobre a minoria, sempre visando a um bem maior do que o
direito de crédito individualmente considerado. Desse modo, os
credores são chamados a se reunir sob o regime de comunhão de
interesses em assembleia-geral de credores. Trata-se, portanto, de
um órgão da falência ou da recuperação judicial, tal como o
administrador judicial, o comitê de credores e o gestor judicial.
A assembleia-geral tem como fundamento formar a vontade
majoritária do grupo a partir das vontades individuais. Para tanto,
pressupõe uma confrontação de interesses. Não é, portanto, a
assembleia-geral foro de consulta aos credores, como ocorre com o
voto por correspondência. O conclave proporciona, ao menos
teoricamente, um confronto de ideias mediante a discussão das
matérias pelos presentes, com a possibilidade de surgirem
explicações e apreciações do mérito das propostas.
52
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
É o instrumento eficaz que tem o credor para trocar suas
opiniões com a dos demais. É na assembleia-geral que pode ocorrer a
intervenção minoritária, na medida em que, ao arguir as questões
propostas, não se considera a representatividade do seu crédito
diante do montante total da dívida. Diferentemente do voto por
consulta, que isolaria os credores, a deliberação em assembleia-geral
os reúne para formar a vontade coletiva.
No contexto da legislação concursal vigente, a assembleia-geral
se caracteriza como a reunião de credores da empresa em
recuperação ou da falida, devidamente convocada (LRF, art. 36) e
instalada (LRF, art. 37, § 2º), para deliberar sobre os assuntos de sua
competência, observados os quóruns legais (LRF, arts. 45 e 58).
Cabe, ainda, destacar que, diferentemente do que ocorre na Lei
de Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), a assembleia-geral da
Lei de Recuperação e Falências não pode ser considerada órgão
soberano, uma vez que seu poder não sobrepõe ou substitui o
jurisdicional, que detém a competência decisória, permanecendo a
assembleia-geral com o poder deliberativo.
Nos termos do art. 53 da Lei de Recuperação e Falências, o
plano de recuperação judicial deve ser apresentado no prazo
improrrogável de sessenta (60) dias contados do deferimento do
processamento da recuperação judicial, ao qual pode se opor
qualquer credor (LRF, art. 55). Ocorrendo uma objeção ao plano de
recuperação, compete ao juiz convocar a assembleia-geral para
aprovação (LRF, art. 56, § 2º), modificação (LRF, art. 56, § 3º) ou
rejeição (LRF, art. 56, § 4º) do plano inicialmente apresentado.
Assim, a realização da assembleia-geral de credores é
facultativa, salvo na hipótese de apresentação de objeção ao plano de
recuperação por parte de qualquer dos credores, quando será
obrigatória. Na ausência de objeção, o juiz concederá a recuperação
judicial sem a convocação de qualquer assembleia (LRF, art. 57).
De tudo isso, se extrai que o mais importante elemento do
processo de recuperação judicial é o plano de recuperação, e a Lei de
Recuperação e Falências atribui competência exclusiva da assembleia
para sua análise.
Depende exclusivamente do plano a realização ou não dos
objetivos precípuos do instituto da recuperação, quais sejam, a
preservação da atividade econômica e o cumprimento de função
social da empresa (LRF, art. 47).
Se o plano de recuperação é consistente, há chances efetivas
de a empresa se reestruturar e superar sua crise. Mas, se o projeto for
inconsistente, tenderá a cumprir mera formalidade processual e o
futuro desse processo certamente será a decretação da quebra.
Desse modo, um bom plano de recuperação não é, por si só, garantia
absoluta de reerguimento da empresa em crise. Fatores
macroeconômicos globais ou nacionais, acirramento da concorrência
no segmento de mercado ou mesmo imperícia na sua execução
podem comprometer a reorganização pretendida.
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
53
Assim é que os órgãos da administração da recuperação
judicial devem produzir um plano viável e tecnicamente consistente,
para que todos os esforços e providências adotadas se justifiquem.
Tudo isso para que os meios aplicados não frustrem as expectativas
de reerguimento da atividade econômica em foco.
É dentro desse complexo panorama que se insere o seguinte
questionamento: Existe espaço para a utilização da arbitragem no
mecanismo legal de recuperação de empresas?
Em primeiro lugar, não haverá surpresas se, na fase de
cumprimento do plano de recuperação, surjam divergências entre o
devedor e a comunidade de credores. Não é possível se imaginar que
o plano de recuperação apresentado em juízo contenha um grau de
detalhamento tal que cada credor possa, de antemão, prever com
razoável certeza os obstáculos que terá de enfrentar a partir da sua
respectiva aprovação.
É justamente aí que, teoricamente, abre-se o espaço para a
utilização da arbitragem no processo de recuperação judicial, uma vez
que a solução de controvérsias surgidas por meio da arbitragem
poderá abreviar o tempo de resolução das questões relativas ao
descumprimento de obrigações. Para tanto, necessário se faz que os
credores e o devedor tenham incluído cláusula compromissória no
plano de recuperação.
A arbitragem poderia ser utilizada nesse contexto como forma
de se amenizar o risco de conversão da recuperação em falência, com
a solução privada de conflitos decorrentes do cumprimento do plano
de recuperação judicial entre credores e devedor.
No entanto, todas essas frases são colocadas no condicional,
na medida em que compete exclusivamente à justiça estatal processar
os pedidos de recuperação judicial e falência, não havendo, portanto,
lugar para a arbitragem 39. O foro estabelecido na Lei de Recuperação
e Falências, no qual deverão ser processados os pedidos de
recuperação judicial e falência é cogente e improrrogável, nos termos
do art. 3º da Lei Concursal.
54
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
Sob qualquer dos ângulos que comporta, a competência
funcional é sempre absoluta, ou seja, instituída de acordo com o
interesse público e não por conveniência das partes
40
. Por conta
disso, não tolera modificação, legal ou convencional 41.
Constitui razão histórica da formação e desenvolvimento da
recuperação judicial como instituto jurídico a necessidade de se
assegurar, por um único juízo, o conhecimento de todas as ações, dos
diversos credores, que se relacionem com aquele devedor
42
. Como
corolário natural da necessidade de garantir tratamento igualitário aos
credores perante um mesmo órgão jurisdicional, o legislador instituiu a
universalidade e indivisibilidade do juízo falimentar (LRF, arts. 3º e 76,
respectivamente).
A universalidade do juízo é tipicamente falimentar e da sua
essência, não podendo ser afastada, salvo naquelas hipóteses
previstas na legislação (LRF, art. 6º)
43
, quais sejam, as demandas
relativas a créditos trabalhistas e tributários, os quais devem ser
reconhecidos nos próprios juízos, para ulteriormente serem admitidos
44
.
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
55
A indivisibilidade do juízo da recuperação é decorrência lógica
da unidade de juízo, ditada por razões de economia processual e fruto
da necessidade de uma solução igualitária e eficaz para os conflitos
envolvendo a empresa em recuperação em todos os seus aspectos e
interesses
45
. Até mesmo porque, no que concerne à competência
funcional abrangente do juízo falimentar, tem-se que a unidade e a
universalidade do órgão jurisdicional são relevantes para a eficácia e a
agilidade das decisões sobre as variadas questões submetidas à sua
apreciação 46.
Por seu turno, o art. 6º da Lei de Recuperação e Falências não
estipula regra de competência, mas tão somente impõe a suspensão
das ações e execuções individuais em que figure no polo passivo a
empresa em recuperação, justamente para evitar que tramitem
processos relativos a interesses e negócios da empresa em juízos
diversos do falimentar. Define também regra de prevenção, por meio
da qual a distribuição do primeiro pedido previne a jurisdição para
novos pedidos em face do devedor, de falência ou recuperação
judicial (LRF, art. 6º, § 8º c/c CPC, arts. 106 e 219). Há de se
destacar, porém, que, em relação ao órgão funcionalmente
incompetente, o fenômeno da prevenção não traz nenhuma
repercussão relevante, uma vez que a incompetência absoluta não se
prorroga e a prevenção não tem o condão de fazer prevalecer uma
competência que não existe 47.
Por conta disso, o que já foi dito em relação à falência, no item
5 do presente artigo, tem plena eficácia para a recuperação judicial,
na medida em que não detectamos qualquer espaço para a
arbitragem no processo de recuperação judicial disciplinado pela Lei
de Recuperação e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de
2005), independentemente do fato de se tratar de litígio entre o
devedor e os seus credores ou entre os próprios credores do devedor.
Ou seja, a falência e a recuperação judicial tutelam, em grande
parte, interesses públicos, deixando espaço reduzido para a instituição
da arbitragem, destinada à solução de litígios relativos a direitos
disponíveis.
56
RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL
Como se isso não bastasse, teríamos grande dificuldade de
formar o polo de demandantes e demandados em um processo
arbitral que viesse a ser instaurado para reger o processo de
recuperação judicial. Até mesmo porque, em sua origem, o processo
arbitral seria constituído pelos credores e o devedor. No caso em tela,
estaríamos diante de um caso de arbitragem multiparte no polo ativo,
com as sabidas dificuldades inerentes a essa hipótese.
Uma vez notificado ao devedor acerca do pedido de
instauração da arbitragem pelos credores ou vice-versa, poder-se-ia
questionar qual a atitude que poderia ser adotada por outros credores
diante da controvérsia alegada. Discute-se, nessa oportunidade, a
possibilidade de ocorrer a intervenção de outros credores, que não
aqueles que já figuram em um dos polos, em procedimento arbitral
que decide a recuperação da empresa.
Ocorre que a intervenção de terceiros no procedimento arbitral
não está regulada em lei e dependerá sempre da concordância das
partes e dos árbitros para que possa se efetivar 48. Assim é que diante
dos interesses multifacetários do processo de recuperação judicial,
mostra-se praticamente impossível a obtenção desse consenso no
caso concreto, de modo a viabilizar a instituição da arbitragem como
técnica capaz de regular integralmente o processo de recuperação
judicial.
No entanto, diferentemente do que ocorre para o caso de
decretação de falência, os processos arbitrais já iniciados
anteriormente ao processamento da recuperação não sofrerão
significativa alteração, na medida em que a empresa mantém sua
regular atividade e capacidade de contratar, viabilizando a plena
atuação no processo arbitral. Assim é que poderá ocorrer o
desenvolvimento paralelo entre os processos arbitrais e o processo de
recuperação, sendo que o resultado do processo arbitral poderá
importar melhora ou piora da situação da empresa que está em
recuperação.
CONCLUSÕES
O presente estudo está longe de ter a pretensão de esgotar
assunto tão fecundo quanto a análise do instituto da arbitragem com a
dinâmica do novo processo de recuperação de empresas instituído na
Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação e
Falências), em ambas as modalidades de recuperação financeira do
devedor - judicial e extrajudicial
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57
O principal objetivo deste trabalho, conforme proposta
estampada na introdução, foi o de analisar a interface estabelecida
entre a arbitragem e o instituto de recuperação em três situações
distintas: (i) recuperação extrajudicial com estipulação de cláusula
arbitral; (ii) deferimento de recuperação judicial após processo arbitral
já instalado; e (iii) processo arbitral para processar recuperação
judicial a ser estabelecida entre devedor e credores.
Antes, porém, importante se fez destacar o posicionamento
adotado em relação à possibilidade de algumas questões incidentais
do processo falimentar serem (ou não) solucionadas por meio da
arbitragem. Com isso não se discute que o próprio processo falimentar
seja submetido ao procedimento arbitral. Até mesmo porque, em se
tratando de processo falimentar pendente, com a consequente perda
pelo falido da disponibilidade da administração de seus bens (LRF,
art. 103), não há como celebrar convenção de arbitragem válida, uma
vez que essa inequivocadamente exige que o seu objeto seja direitos
patrimoniais disponíveis.
Nesse contexto, discordamos da posição doutrinária defendida
pelo Professor Donaldo Armelin, no sentido de que a decretação da
falência não impediria a massa falida, representada por seu
administrador, de cumprir o pactuado em cláusula compromissória
firmada antes da decretação da quebra pelo falido para solucionar
conflito de interesse estabelecido com terceiro.
À luz dos interesses multifacetários do processo falimentar,
bem como da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor
antes da decretação da falência, ousamos discordar dessa posição,
uma vez que a técnica legislativa reservou ao administrador judicial a
decisão sobre a resolução da relação contratual, a qual deve se
pautar pela conveniência ou não da manutenção do contrato para a
liquidação e a conservação dos ativos 49.
Portanto, diferentemente da premissa adotada pelo Professor
Donaldo Armelin, verifica-se que a competência da fundamentada
decisão de levar a cabo ou não a cláusula compromissória ou o
compromisso arbitral previamente estabelecido será resolvida no
âmbito da falência e não do Tribunal Arbitral.
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Até mesmo porque, via de regra, o procedimento arbitral
acarretará custos para a massa falida. Custos esses destinados à
satisfação da pretensão de um único credor, em detrimento dos
demais, uma vez que toda a despesa será arcada com o ativo da
massa falida. Assim é que diante da objetiva proibição econômica
estabelecida no art. 117 da Lei de Recuperação e Falências,
praticamente impossível será o preenchimento de condições fáticas
tais que permitam a instauração do processo arbitral.
No que diz respeito à recuperação extrajudicial, nada impede
que os credores e o devedor prevejam a arbitragem como forma de
solução de conflitos provenientes da interpretação ou da falha de
cumprimento das disposições estabelecidas no plano de recuperação
extrajudicial, justamente pelo fato de esse instituto viabilizar a escolha
daqueles credores que com o devedor deseja "contratar". Dentro
desse contexto, a inclusão de convenção de arbitragem em plano de
recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da autonomia da
vontade das partes.
O ponto chave, no entanto, reside na necessidade de
segregação dos direitos patrimoniais disponíveis daqueles direitos
indisponíveis definidos pela Lei de Recuperação e Falências,
notadamente os créditos de natureza tributária, derivados da
legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes do trabalho, nos
termos do art. 161, § 1º, da Lei de Recuperação e Falências.
No entanto, outra questão que se coloca sobre o tema é a
capacidade de uma cláusula compromissória arbitral, não acordada
por todos os credores, mas apenas por aqueles que representam mais
de 3/5 (três quintos) de todos os créditos de cada espécie, ser imposta
àqueles credores que não a aceitaram.
Respeitosamente, discordamos desse posicionamento, uma
vez que a questão central consiste em saber se a maioria votante,
independentemente da vontade minoritária, pode afastar a
competência da jurisdição estatal e, sem seu lugar, adotar o juízo
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Por outro lado, na medida em que compete exclusivamente à
justiça estatal processar os pedidos de recuperação judicial e falência,
não se encontra espaço para a utilização do processo arbitral como
competente para processar recuperação judicial a ser estabelecida
entre devedor e credores. O foro estabelecido na Lei de Recuperação
e Falências, no qual deverão ser processados os pedidos de
recuperação judicial e falência, é cogente e improrrogável, nos termos
do art. 3º da Lei Concursal.
Sob qualquer dos ângulos que comporta, a competência
funcional é sempre absoluta, ou seja, instituída de acordo com o
interesse público e não por conveniência das partes
50
. Por conta
disso, não tolera modificação, legal ou convencional 51.
Ademais, constitui razão histórica da formação e
desenvolvimento da recuperação judicial como instituto jurídico a
necessidade de se assegurar, por um único juízo, o conhecimento de
todas as ações, dos diversos credores, que se relacionem com aquele
devedor, mostrando-se contraproducente qualquer técnica que instale
regimes diferenciados para credores diferenciados.
A falência e a recuperação judicial tutelam, em grande parte,
interesses públicos, deixando espaço reduzido para a instituição da
arbitragem, destinada à solução de litígios relativos a direitos
disponíveis.
Como se isso não bastasse, teríamos grande dificuldade de
formar o polo de demandantes e demandados em um processo
arbitral que viesse a ser instaurado para reger o processo de
recuperação judicial. Estaríamos diante de um caso de arbitragem
multiparte no polo ativo, por meio do qual a inclusão de terceiros
dependeria da concordância das partes e dos árbitros. Diante dos
interesses multifacetários do processo de recuperação judicial,
mostra-se quase impossível a obtenção desse consenso no caso
concreto, de modo a viabilizar a instituição da arbitragem como técnica
capaz de regular integralmente o processo de recuperação judicial.

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