A Viena de Freud - verlaine.pro.br

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A Viena de Freud - verlaine.pro.br
A Viena de Freud*
o
N
foi por acaso que a psicanálise nasceu em Viena e ali
atingiu a maturidade. No tempo de Freud, a atmosfera cul­
ural de Viena estimulava a fascinação por doenças mentais
e problemas sexuais de forma singular no mundo ocidental - uma
fascinação que se estendia à sociedade, e até à. corte imperial que do­
minava a vida social vienense. As origens dessa singular preocupação
cultural remontam à história da própria cidade e, mais particular­
mente, aos interesses e atitudes que dominavam o pensamento das eli­
tes culturais de Viena pouco antes e durante o período em que Freud
desenvolveu suas revolucionárias teorias sobre a vida emocional.
Freud não foi de modo algum o único inovador em Viena a
provocar uma mudança na visão da sexualidade em geral, e das per­
versões sexuais em particular, e do tratamento da insanidade. Por
exemplo, o barão Richard von Krafft-Ebing, professor de psiquiatria
na Universidade de Viena, foi quem deu nome à paranóia e a intro­
duziu na conversa comum. Seus registros clínicos da patologia sexual
demonstraram de maneira eloqüente as muitas formas que a pulsão
sexual pode assumir, anos antes de Freud começar seus estudos sobre
* O presente ensaio apareceu em francês com algumas diferenças sob o título "La
Vienne de Freud" em Vienne, /'apoca/ypse joyeuse (Paris: Editions du Centre Pom­
pidou, 1986). A primeira edição em inglês é de Alfred A. Knopf Publisher, Nova
Iorque, 1990.
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o sexo. A obra mais importante de Krafft-Ebing, Psychopathia Sexua­
lis, publicada em 1886, revolucionou as idéias gerais que se tinha
sobre as perversões sexuais, um tema completamente desprezado pe­
los cientistas até aquele momento. Essa obra levou à descriminação
das perversões sexuais na Áustria, muito antes dessa idéia sensata se
difundir por outros países. Krafft-Ebing abriu caminho para uma era
de mudanças de atitude com relação à sexualidade em Viena e na
Áustria, e de certa maneira preparou o ambiente que tornou o tra­
balho de Freud possível.
Além da psicanálise, os médicos vienenses criaram e desenvol­
veram outros métodos modernos de tratamento de distúrbios men­
tais. Wagner von Jauregg, que substituiu Krafft-Ebing na chefia da
cadeira de psiquiatria da Universidade de Viena, e que, nessa quali­
dade, foi chefe de Freud quando este lecionou ali, descobriu a apli­
cação da malarioterapia à paralisia geral e da piretoterapia a esta mes­
ma doença; por tal feito ganhou em 1927 o primeiro Prêmio Nobel
de Medicina concedido por uma descoberta psiquiátrica. Seu trabalho
pode ser considerado, com justiça, o início da quimioterapia no trata­
mento das doenças mentais. Seguindo a mesma linha, Manfred Sakel,
outro médico vienense, descobriu em 1933 o choque insulínico para o
tratamento da esquizofrenia. É quase surpreendente observar que to­
dos os métodos modernos para tratamento de distúrbios mentais -
psicanálise, quimioterapia, e tratamento de choque- vieram ao mun­
do no transcurso de poucas décadas e numa única cidade.
Para compreender a forma singular que a cultura vienense as­
sumiu em fins do século XIX e princípios do século XX, é preciso
reconhecer que Viena foi, conforme a chamavam com carinho, die
a/te Kaiserstadt- a velha Cidade Imperial. O nome dos Hapsburgo
não possui mais a aura e o glamour de outrora, mas durante muitos
séculos o vasto império austro-húngaro, do qual Viena era capital, era
o maior que o mundo já conhecera, ultrapassando em extensão o an­
tigo império romano, do qual se julgava herdeiro legítimo: os Haps­
burgo eram os governantes do ' 'Santo Império Romano-Germâ­
nico''.
No século XVI um imperador da dinastia dos Hapsburgo, Car­
los V (também Carlos I, rei de Espanha), pôde afirmar (no que foi
mais tarde imitado pelos ingleses) que uma vez que seu império abar­
cava o mundo, o sol nunca se punha em suas terras. Após Carlos V,
sobreveio uma decadência gradual mas constante no poder dos Haps­
burgo. O império quase pereceu durante as Guerras Napoleônicas.
Mas ao fim desse episódio, Viena hospedou o Congresso de Viena
em 1814-1815, que decidiu a geografia e o futuro da Europa. Após o
que, os vienenses puderam considerar sua cidade a mais importante
da Europa, pois, mais uma
vez,
o imperador Hapsburgo e seu reino
dominavam o continente, graças à habilidade do chanceler austríaco,
o príncipe Metternich.
Contudo, essa situação se modificou de uma vez por todas com
as revoluções de 1848, quando o idoso Metternich foi forçado a abdi­
car e Francisco José começou seu longo reinado (1848-1916). Mesmo
na forma reduzida posterior às Guerras Napoleônicas, e na ausência
do título "Santo Império Romano", o reino dos Hapsburgo conti­
nuou a ser a principal presença imperial na Europa, dominando uma
variedade de principados germânicos até a formação da moderna Ale­
manha; e exerceu soberania sobre toda a Europa Central, e grande
parte da Itália e da Europa Oriental. O estado dos Hapsburgo era
·
assim um estado multinacional, habitado por diferentes grupos lin­
güísticos, dos quais os mais importantes eram os alemães, os italia­
nos, os poloneses, os tchecos, os húngaros, os eslovacos, os croácios,
os eslovenos e os rutênios. A partir de 1848 inclusive, com a cres­
cente onda de nacionalismo, esses variados povos que formavam o
império começaram a exigir autodeterminação e logo depois indepen­
dência total, ameaçando o império com o que parecia ser o caos. Essas
forças poderosas na mente do homem comum eram contrabalançadas
e mantidas em cheque pela presença do exército imperial, formado
por todas as nacionalidades, e pelo respeito devido ao próprio impe­
rador, que ele se esforçava constantemente por manter.
Além disso, a capital Viena continuou a crescer em termos de
influência cultural sobre a intelligentsia de todo o império, e de uma
grande parte da Europa, como por exemplo os estados alemães e os
Bálcãs. Podia-se dizer que na Europa Central e Oriental todos os ca­
minhos levavam a Viena; que não só era a sede do império e das mais
importantes instituições culturais na sua esfera de influência, mas, de
longe, a maior cidade nessa vasta extensão geográfica. Na realidade,
tratava-se da segunda maior cidade do continente europeu (depois de
Paris), e por isso era natural que atraísse aqueles que desejavam aban­
donar as províncias em favor de uma vida no centro dos aconteci­
mentos. Durante todo o século XIX, Viena continuou a crescer em
tamanho, em oportunidades culturais, em renome científico e em im­
portância econômica. E todo esse tempo o imperador conservou a
coroa, tornando-se mais respeitado à medida que envelhecia.
A maioria dos que contribuíram para a grandeza cultural de
Viena nesse período não nasceram ali, vieram das províncias próxi­
mas e distantes do império. Eram atraídos a Viena seja como imi­
grantes a um centro cultural, seja porque foram educados nele. Mui­
tos eram trazidos a Viena ainda na infância pelos pais, que queriam
dar aos filhos o melhor. Sigmund Freud foi uma dessas crianças e tam­
bém Theodor Herzl, o fundador do Sionismo. Outros acorreram a
Viena já adultos, como, por exemplo, os músicos Gustav Mahler e
Johannes Brahms, o pintor Oskar Kokoschka, o arquiteto modernista
Josef Hoffmann, e o educador Franz Cizek, que foi o primeiro a des­
cobrir e cultivar a arte infantil.
Uma cultura tem o poder de atrair gente talentosa à sua capital,
e um exemplo da atração exercida por Viena no nosso próprio século é
o detentor do Prêmio Nobel de Literatura Elias Canetti. Em um vo­
lume de sua autobiografia, intitulada Die Fackel im Ohr ('' A Tocha
no Ouvido"), ele conta como saiu dos Bálcãs para Viena e se deixou
influenciar pela atmosfera cultural que encontrou ali. Dá especial des­
taque ao crítico e escritor político Karl Kraus, cujas idéias expressas
em sua revista, Die Fackel ( "A Tocha"), foram cruciais para o cres­
cimento do próprio Canetti.
Mas o que dotou a cultura vienense de sua verdadeira singula­
ridade foi o acaso histórico, pelo qual o ápice de seu desenvolvimento
cultural coincidiu com a desintegração do império que, de início, a
tornara importante, e do qual ainda era capital, sede do governo e, o
mais importante, residência do imperador. Francisco José, na quali­
dade de imperador, não era apenas o símbolo máximo do império,
mas também a pessoa que realmente garantia a sua unidade. As coisas
nunca tinham estado melhores, mas, ao mesmo tempo, nunca tinham
estado piores: essa curiosa simultaneidade, na minha opinião, explica
por que a psicanálise baseada na compreensão da ambivalência, da
histeria, da neurose, se originou em Viena e, provavelmente, não
poderia ter se originado em nenhum outro lugar. E a psicanálise foi
apenas um dos principais progressos intelectuais de uma época em
que uma difusa percepção da decadência política de Viena levou as
elites culturais a abandonarem a política como tema sério, e a vol­
tarem suas atenções do mundo como um todo para o seu mundo in­
terior.
A decadência se tornou visível a todos os interessados a partir
dos acontecimentos de 1859 (três anos após o nascimento de Freud),
quando a eminência (e imagem) do império como potência mundial
sofreu a primeira série de golpes. Naquele ano, ele perdeu as provín­
cias mais prósperas e avançadas: a maior parte da Itália Setentrional,
inclusive a Lombardia e a importantíssima Milão, a Toscânia com a
cidade de Florença, Parma e Modena. Somente Veneza e o Vêneto
permaneceram austríacos, e apenas por mais alguns anos. Sete anos
mais tarde, em 1866, em conseqüência da guerra com a Prússia rebe­
lada, o império sofreu uma devastadora derrota na Batalha de Konig­
grãtz; perdeu os últimos territórios italianos e a Prússia assumiu o
domínio dos outros estados alemães. Isso privou a Á ustria da he;ge­
monia que mantivera sobre a Alemanha cerca de seiscentos anos.
Quatro anos depois, quando a Prússia derrotou a França em 1870, a
Alemanha se reuniu sob a liderança da Prússia. Com isso, Berlim
(,
começou a substituir Viena como centro do mundo de língua alemã, e
pôde se orgulhar de ter um jovem imperador mais imponente e dinâ­
mico do que o envelhecido Francisco José.
Uma maneira de enfrentar essas perdas que pressagiavam o fim
do império era usar a negação como uma espécie de defesa. Assim
a intelligentsia vienense talvez dissesse: "Bom, enquanto a situação
for desesperadora, a coisa ainda não é séria.'' Nesse estado de ânimo,
que foi durante muitos anos comuníssimo em Viena, despreza-se a
realidade exterior e se volta toda a energia mental para o interior:
só se dá atenção à vida interior do indivíduo. Ao mesmo tempo que
a nova Alemanha unificada (com a sua capital, Berlim) voltava sua
fantástica energia para a construção de um império, as elites culturais
vienenses se dedicavam a descobrir e conquistar o mundo interior
do homem. Essa retirada foi facilitada e assegurada por novos desa­
pontamentos que surgiram na esteira dos antigos.
Houve esforços oficiais para neutralizar essa sensação de deca­
dência, mas nenhuma medida chegou a ter a eficácia pretendida. Por
exemplo, a fim de neutralizar a derrota militar de 1866,
o
governo
se desdobrou para reafirmar a importância econômica e cultural de
Viena. Planejou para 1873 uma feira mundial, com a idéia de atrair
mais uma vez para Viena a atenção e admiração do mundo. As expec­
tativas de prosperidade que a feira mundial traria a Viena provocaram
uma expansão imobiliária; e muitas construções grandiosas, tanto pú­
blicas quanto particulares, se ergueram dos dois lados da recém-aberta
Ringstrasse. Esta avenida contornava o centro da cidade e tinha o
objetivo de suplantar os famosos bulevares Haussmann de Paris, pois
os prédios da Ringstrasse seriam ainda mais imponentes do que os
que enfeitavam as avenidas de Paris.
Historicamente Viena era uma cidade barroca; foram os majes­
tosos palácios e igrejas barrocas que caracterizaram a cidade. Agora
as construções modernas da Ringstrasse emprestavam a Viena um
caráter ambíguo e um tanto contraditório: o de ser a um só tempo
uma velha capital imperial e um centro de cultura moderna. Era como
se a cidade não conseguisse decidir que caminho tomar: o do passado
glorioso (que se distanciava) ou o de um futuro novo e moderno.
As grandes expectativas em torno da feira mundial também
produziram uma desenfreada especulação no mercado de ações. Nóve
dias após a inauguração da feira, a bolsa entrou em colapso. Na
''sexta-feira negra'' vienense, 125 bancos quebraram, e muitas outras
empresas faliram, num choque crescente que provocou uma profunda
depressão. A crise financeira em Viena se espalhou por toda a Europa
e chegou a afetar os Estados Unidos.
Conforme observei acima, as elites culturais vienenses despre­
zaram a importância dos acontecimentos à sua volta e voltaram as
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atenções para dentro de si, para os aspectos humanos antes desco­
nhecidos e ocultos. Porém, essa solução para as contradições que
atormentavam a vida vienense só se aplicava a uns poucos. A vasta
maioria da população vienense precisou procurar outra maneira de
escapar à apreensão que sentia numa hora em que o mundo tradi­
cional e seguro que ela e seus antepassados tinham conhecido estava
se desintegrando. A resposta estava na diversão despreocupada. Era
verdade, a feira mundial de 1873 fracassara, mas com a estréia de
Die Fledermaus em 1874, Viena começou novamente a governar o
mundo- o mundo da opereta. Antes o centro de antiga e superior
cultura -"a ópera e o teatro sério, os maiores da língua alemã -,
Viena agora se destacava na ópera leve e principalmente na música
para dançar. A valsa vienense em poucos anos conquistava o mundo;
além das valsas, havia as inúmeras operetas de Strauss, Lehár, Suppé,
e outros. Em retrospectiva, parece que a Viena daquela época jamais
parava de dançar: bailes de máscaras, as extravagâncias do carnaval
(o Fasching, em que quase toda a Viena participava), e esplêndidos
salões de dança em todos os logradouros da cidade. Algumas dessas
ocasiões, como os bailes de gala da corte, eram oferecidas apenas às
classes superiores; mas muitas outras se destinavam às classes infe­
riores, havendo outras tantas em que essas ·classes se misturavam
livremente. Além disso, Viena era uma grande cidade em matéria de
desfiles, com muitos carros alegóricos que todos podiam admirar nas
comemorações da corte, nos casamentos reais ou nos aniversários do
imperador. Eram ocasiões em que os artistas exibiam seu talento e
imaginação ao mesmo tempo em que divertiam o povo. Com essas
contínuas comemorações, negava-se à decadência do império qual­
quer gravidade.
Na esfera política e dos acontecimentos mundiais, as catástwfes
sacudiam periodicamente o império até às raízes e apressavam a sua
desintegração. Mas isso não era tudo: igualmente desastrosas eram .: '
catástrofes que ocorriam no coração do universo pessoal da cidade no âmbito da família imperial, da corte que era o verdadeiro centro
da cidade, sua raison d 'être.
O casamento do imperador Francisco José com Elizabeth, uma
princesa bávara muito jovem e muito bela, era uma união de grande
amor e devoção de sua parte, e esse amor perdurou por toda a sua vida.
Porém, apesar do empenho do imperador em agradar Elizabeth e
fazê-la feliz, ela não tardou a se afastar dele e da corte, um processo
que foi se extremando até a princesa praticamente deixar de conviver
com o marido ou retornar a Viena.
Hoje podemos ver Elizabeth pelo que era, histérica, narcisista
e anoréxica. À época, porém, foi aclamada, com muita justiça, a mu­
lher mais bela da Europa. Para conservar sua beleza característica,
o atributo responsável por sua ascensão a imperatriz, passava fome
em dietas exageradas, como, por exemplo, não ingerir nada a não ser
seis copos de leite por dia, durante dias seguidos. Nas freqüentes
caminhadas, marchava a passo tão enérgico que seus companheiros
ficavam pelo caminho exaustos, enquanto ela prosseguia por sete, oito
e até dez horas.
A exemplo de alguns histéricos, como o que Schnitzler mais
tarde descreveu em seu romance Miss E/se, a imperatriz - que
sempre viajava com malas suficientes para encher muitos vagões de
trem, de modo que sempre tinha à disposição uma vasta coleção das
roupas mais caras e bonitas que havia - finalmente passou a fazer
suas excursões usando apenas um vestido, uma única peça de roupa
cobrindo o corpo nu. Não usava roupas intimas, e para horror dos
companheiros, nem meias. Contudo, muitas vezes levava até três
pares de luvas para proteger as lindas mãos.
Possivelmente um dos sintomas mais claros de sua neurose
eram as incessantes e despropositadas viagens por toda a Europa. Nas
palavras do escritor francês Maurice Barres: ''Suas viagens não lem­
bravam a regularidade tranqüila e deliberada das aves migratórias;
eram antes o vôo vertiginoso e errático de um espirito desenraizado
que agita as asas, sem se dar descanso nem objetivo.''
Em 1871, quando o imperador escreveu a Elizabeth, que, como
sempre, não se encontrava em Viena, perguntando que presente mais
gostaria de receber no dia de seu nome, ela respondeu, provavelmente
zombando de si mesma: '' O que mais gostaria era de um hospicio
de loucos inteiramente equipado.''
A loucura exercia especial fascinio sobre Elizabeth, talvez por­
que não fosse incomum em sua familia, os príncipes Wittelsbach da
Baviera. Com freqüência visitava instituições para loucos, por exem­
plo, em Viena, Munique e Londres. Exaltava a morte e a loucura
em comentários do tipo ''A idéia da morte purifica'' e ''A loucura
. é mais real que a vida''- evidências de um estado de ânimo profun­
damente melancólico muito anterior aos terriveis acontecimentos de
Mayerling, a partir dos quais esse estado se intensificou. Finalmente,
em 1898, em uma de suas viagens a Genebra, foi assassinada por um
anarquista. Seu assassinato fez ainda menos sentido do que a sua vida.
Assim sendo, havia um interesse na insanidade e nos exemplos
do impacto devastador da neurose e dos efeitos destruidores da his­
teria na corte imperial, que dominava tudo que acontecia em Viena,
muito antes de Freud resolver devotar a vida a aprofundar a com­
preensão das forças interiores, até então desconhecidas, que agem no
homem e causam tais distúrbios.
Em 1889, Francisco José completava mais de quarenta anos de
reinado; a continuação do império dependia de Rudolf, seu herdeiro
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e único filho. Rudolf levava uma vida solitária; a mãe, Elizabeth,
mantinha-se distante e, a maior parte do tempo, inacessível. Ele e o
pai não nutriam grande simpatia mútua, e não havia amor entre o
príncipe e a esposa, uma princesa belga. Aos quarenta anos já tivera
muitos casos amorosos, sem maior significação. Deprimido e solitá­
rio, sentindo-se totalmente inútil ainda tão jovem, Rudolf imaginou e
executou um pacto suicida com uma de suas amantes, uma baronesa
Vetsera: matou-a e em seguida cometeu suicídio em seu pavilhão de
caça em Mayerling, no coração dos Bosques de Viena, a uns nove
quilômetros da cidade.
Conflitos edipianos entre governantes e seus filhos não são
novidade na história - nem na casa dos Hapsburgo. O conflito entre
Philip e Don Carlos não só fez história mas foi tema de um dos
maiores dramas da história e de uma grande ópera. Mas o gesto de
Rudolf parece único: o herdeiro de um grande império comete homi­
cídio e suicídio, logo após ter relações sexuais com uma mulher de sua
escolha, que também opta claramente pelo sexo e a morte. O clima
psicológico de Viena durante a decadência do império, e os senti­
mentos mórbidos que permeavam a cidade em conseqüência desse
período, são o pano de fundo digno, e até necessário, para um exemplo
extremo de grave conflito edipiano com o pai- neurose, sexo, homi­
cídio
e
suicídio. Uma demonstração vívida e chocante das tendências
destrutivas inerentes ao homem, que Freud iria investigar e descrever
anos depois. Refletia também a íntima ligação entre pulsão sexual
e pulsão de morte - uma relação que Freud procurou estabelecer
nas suas explorações dos aspectos mais obscuros da psique humana.
O próprio imperador procurou enfrentar essas tragédias pessoais
e familiares agravando sua neurose de trabalho; mergulhou sem des­
canso em seus papéis umas dezesseis horas por dia, como se fosse um
mero subalterno do império, ao invés de seu governante supremo.
Compulsivamente insistia na etiqueta cortesã e adotara a famosa (ou
melhor, infame - porque negava espaço às emoções ou à espontanei­
dade nas relações humanas) Cerimônia da Corte Espanhola, que proi­
bia o contato pessoal de qualquer natureza. É interessante, porém,
que após o afastamento de Elizabeth se tornar permanente, e mais
ainda depois de sua morte, procurou consolo na companhia de uma
jovem e bela atriz que trabalhara como leitora para a sua esposa.
Devido ao suicídio de Rudolf, o arquiduque Francisco Ferdinandoum homem com quem o imperador se encontrava em profundo con­
flito - tornou-se herdeiro do trono. Conta-se que, quando Ferdi­
nando foi assassinado em 1914 - acontecimento que resultou na
Primeira Guerra Mundial -, Francisco José comentou que sentia
alívio, porque tal assassinato corrigira uma situação que precisava
muito de correção.
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O sexo e a destruição partilhavam uma estranha coexistência
na cultura vienense durante o período da lenta extinção do império.
Até políticos eminentes se preocupavam com a idéia de morte, como
sugere o comentário feito pelo ministro húngaro das relações exte­
riores por volta de 1912: " Temos que nos matar antes que outros o
façam''. Essa interligação do sexo e da morte constituiu um impor­
tante tema subjacente da arte vienense, da literatura e da psicanálise.
Permeou a obra de muitos, como o jovem e brilhante filósofo Otto
Weininger, que em 1903, aos vinte e três anos, cometeu suicídio no
local onde morreu Beethoven. Seu Sexo e Cardter, com uma visão
profundamente pessimista do sexo, exerceu enorme influência na
intelligentsia vienense.
No início da vida, Freud fez uma escolha que pareceu pressagiar
o reconhecimento posterior da importância da pulsão de morte na sua
maturidade. Em dezembro de 1881, o Teatro de Arena de Viena se
incendiara com grande perda de vidas, mais uma trágica catástrofe a
abalar a cidade. O imperador, sempre enfrentando com a maior cora­
gem os desastres, decretou que no local do teatro destruído se cons­
truísse um novo edifício comercial e residencial que se chamaria
Sühnhaus (A Casa da Expiação). O arquiteto seria o homem que
Viena considerava um expoente, F. V. Schmidt, e devido à excelente
localização em Rigstrasse, o novo edifício poderia cobrar altos alu­
guéis; uma parte da renda assim obtida seria destinada ao sustento das
crianças que o incêndio tornara órfãs.
A princípio, foi difícil encontrar inquilinos para os esplêndidos
apartamentos da Sühnhaus: as pessoas relutavam em se mudar para
um lugar onde tantas haviam perdido a vida. Mas foi nessa Casa da
Expiação que Freud- embora o aluguel estivesse muito além de suas
posses - alugou um apartamento quando se casou, e ali clinicou.
E o que é mais significativo, não levou em consideração que seus
pacientes, sofrendo de distúrbios nervosos debilitantes, pudessem
hesitar em receber tratamento em um edifício com associações mór­
bidas. Por razões que desconhecemos, Freud não só não se importava
com essas associações, como obviamente as cultivava. Talvez naquela
época as idéias a respeito da morbidez das neuroses já estivessem em
seu inconsciente, levando-o a escolher esse edifício agourento para
viver e trabalhar. Os Freud se tornaram inquilinos tão no início do
Sühnhaus que seu primeiro filho foi também a primeira criança a
nascer ali. Na ocasião, Freud recebeu uma carta do imperador, cum­
primentando-o por ser o pai da primeira criança nascida no edifício,
trazendo vida ao mundo em um lugar onde tantas vidas tinham
se perdido.
Essa carta é a única ligação direta entre o imperador e Freud
que conhecemos. Mas o imperador e o que ele representava nunca
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estiveram longe dos pensamentos de Freud. Ele disse muitas vezes
que um imperador era um símbolo do pai e do superego e, assim
sendo, a figura do imperador desempenhava um importante papel no
consciente e no inconsciente de todas as pessoas.
Os acontecimentos, porém, evidenciaram que nem o imperador
de Viena mandava na própria casa; e esse fato talvez tivesse inspirado
Freud a desenvolver a idéia de que o ego não era dono da própria casa
- uma compreensão que Freud considera um duro golpe no nosso
narcisismo (como devia ter sido destrutivo para o narcisismo do impe­
rador o fato de ser rejeitado pelo filho e pela esposa). A neurose de
trabalho, defesa do imperador contra os muitos golpes ao seu amor­
próprio, provavelmente não passou despercebida a Freud, quando
estudou as neuroses, e descobriu que eram defesas contra os temores
sexuais e os ataques ao amor-próprio.
Nessa singular cultura vienense, as maiores forças interiores
eram tânatos e eros, a morte e o sexo. A formulação parece simples,
mas a interação dessas forças não é nada simples; pelo contrário, é
extremamente complexa, criando problemas psicológicos complicados
e de longo alcance. A cultura vienense gostava de explorar tais
complexidades psicológicas e as materializava em suas criações. Ex­
trair o significado desses complexíssimos fenômenos psicológicos até
então desconhecidos, obscuros e ocultos de forma a se poder enten­
dê-los e talvez até dominá-los, era a questão central da cultura vie­
nense. Freud não estava sozinho ao devotar a vida ao confronto com
esses problemas extenuantes. O vienense Arthur Schnitzler, a quem
Freud denominava seu alter ego, formara-se, como Freud, em medi­
cina; e também à semelhança de Freud, Schnitzler exercera esse ofício
por um período relativamente curto. Então também se voltou para o
estudo da psique humana, não como psiquiatra, mas como escritor.
Schnitzler era de longe a principal figura literária na Viena de
sua época e era reconhecido como tal; suas novelas eram lidas e
admiradas por todos, e suas peças, as apresentadas com maior fre­
qüência nos palcos alemães, especialmente em Viena, a cidade onde
o teatro sempre fora tido em alta conta. Este não é o espaço para
analisar em detalhe a obra de Schnitzler, mas pelo menos duas de suas
peças mais importantes merecem menção para demonstrar que em
sua mente, também, sexo e morte estavam inextrincavelmente entre­
laçados. Podemos traduzir livremente o título de uma de suas peças
por "Um Amor Passageiro" (Liebelei). Um rapaz da elite tem um
caso com uma moça do povo que lhe devota um amor profundo. Mas
a relação que mantêm possui pouca importância para ele, quando
comparada ao seu interesse em seduzir a esposa de um eminente
cidadão. Tampouco está realmente apaixonado por ela, mas o desafio
de seduzi-la empolga sua vaidade. O marido da dama sente-se compe12
lido a desafiá-lo para um duelo, durante o qual mata o rapaz. A moça
que o amava tanto nem ao menos tem permissão para assistir ao
enterro, e esse fato a impressiona pelo pouco valor que tivera para ele;
em desespero, comete suicídio.
A outra peça é Das Weite Land, ' 'O Vas to País' ' . Esse vasto
e desconhecido país, naturalmente, é a psique humana. Na peça uma
senhora casada da elite mantém um romance - devemos presumir
que pela primeira vez na vida - com um jovem oficial da marinha
de licença. O marido teve muitos casos, nenhum dos quais apresentou
maior significação para ele, mas assim mesmo se ofende com o ro­
mance da esposa porque este fere o seu orgulho. Desafia o oficial
de marinha para um duelo e o mata. Em conseqüência, não apenas
uma vida é destruída mas também as do marido e da esposa, uma vez
que suas vidas agora perderam todo o significado. Assim, nas duas
peças, como em muitos dos outros escritos de Schnitzler, o envolvi­
mento sexual leva à destruição. Esse é também o tema de um de seus
romances mais conhecidos, Friiulein Else ("Senhorita Else"), no
qual uma jovem visivelmente neurótica e provavelmente histérica, a
fim de salvar o pai da vergonha, cede ao desejo de um homem mais
velho de que o procure nua, só para se matar ao fazer isso.
Em conversa com Martin Buber - outro homem extraordi­
nário cuja personalidade se formou naqueles anos em Viena, onde
nasceu e onde, através de sua associação com Herzl, decidiu dedicar
a vida ao estudo do hassidismo-, Schnitzler disse dos personagens
que criara, que eram tão típicos da Viena daquela época, que uma
sensação de fim de mundo os envolve, e que o fim de seu mundo se
aproxima; e realmente era verdade.
Rilke, em seu Conto de Amor e Morte do Cornetim Christoph
Rilke, projeta no passado da Áustria a idéia de que a morte se segue
imediatamente à experiência sexual, mas o tema era flagrantemente
contemporâneo, como demonstrava claramente a tragédia do príncipe
herdeiro austríaco.
Que eras e tânatos são as pulsões mais profundas e fortes do
homem foi uma idéia que ocorreu a outros além de F reud e Schnitzler.
Uma das maiores obras de Brahms, seu Réquiem Alemão, tem por
tema central que ' 'em meio à vida estamos cercados pela morte''.
Mahler compôs músicas sobre a morte de uma criança, uma sinfonia
da ressurreição e, para coroar sua obra, a Oitava Sinfonia, na qual
combina uma missa medieval com a última parte de Fausto - sua
apoteose, em que na morte é salvo pelo amor de uma mulher, suge­
rindo que somente na morte é possível a verdadeira realização.
Freud iniciou sua investigação das·· forças ocultas que inspi­
ram as ações dos homens com o estudo da histeria, no qual ainda
trabalhava quando ocorreu a tragédia de Mayerling. Nesse estudo
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descobriu que a pulsão sexual é urna força abrangente e poderosa,
capaz de produzir estranhas formas de comportamento quando inibida
e/ou reprimida. O Estudo da Histeria dele (e de Breuer) foi publicado
em 1895, e seria acompanhado no ano seguinte pela comunicação de
Freud sobre a etiologia da histeria e pela comunicação sobre a sexua­
lidade na etiologia das neuroses. A impressão profunda que tais estu­
dos causaram no rnund9 liter.ário de _Viena pode ser ilustrada pelo
comentário de Hugo von Hof rnllnnsthal de que, quando escreveu o
libreto para a ópera de Richard Strauss Electra, consultou-os repetidas
vezes. Electra é de fato retratada corno urna mulher histérica.
Com a publicação de A Interpretação dos Sonhos em 1900,
a psicanálise se firmou. Essa obra, a maior de Freud, é um trabalho
de introspecção; nela todo o interesse se volta para o eu mais profundo
do homem, a ponto de negligenciar o mundo exterior, que empalidece
frente ao fascínio desse mundo interior. Que essa obra-prima vienense
da virada do século resultasse em realidade do desespero ante a inca­
pacidade de mudar o curso do mundo exterior, e representasse um
esforço para compensar essa deficiência por urna fixação no obscuro
mundo subterrâneo, é atestado pela epígrafe com que Freud iniciou a
obra: o verso de Virgilio Flectere si nequeo superos, Acheronta mo­
vebo (''Se não sou capaz de mudar o céu, sacudo o inferno''). Essa
máxima é urna sugestão concisissirna de que a mudança das atenções
para o interior e os aspectos ocultos do eu devia-se a um desespero
porque já não estava ao alcance de ninguém alterar o mundo exterior
ou deter sua dissolução; e que portanto o melhor que se poderia fazer
era negar a importância do mundo em geral, concentrando todo o
interesse nos aspectos obscuros da psique.
As marcas dessas preocupações com o sexo e a morte são muito
acentuadas nas obras dos grandes artistas vienenses da época, nota­
damente nas de Gustav Klirnt e Egon Schiele. Os primeiros quadros
de Klirnt foram bem convencionais, mas ao atingir a maturidade, na
virada do século, ele começou a pintar e desenhar mulheres nuas e
histéricas. Por exemplo, alguns dos estudos para seus grandes qua­
dros que iriam decorar a Universidade de Viena mostravam mulheres
nuas na tipica posição histérica de are de cercle, um terna que repetiu
muitas vezes. De fato, já em 1902 um critico hostil se referia a Klirnt,
não sem razão, corno ' 'o pintor do inconsciente''. O papel de eros na
pintura de Klirnt não pode ser desprezado, tão dominantes são os
ternas eróticos na maioria de suas obras, excetuando-se apenas as pai­
sagens. Os quadros de Klirnt Dânae, Serpentes Marinhas, Realização,
e várias partes do friso de Beethoven corno Poderes Hostis são bons
exemplos disso, bem corno os seus Leda e O Beijo.
O aluno mais talentoso de Klirnt, Egon Schiele, levou essa ten­
dência mais longe. Assim que atingiu a maturidade artística pintou e
desenhou principalmente o mundo interior do homem, particular­
mente seus aspectos neuróticos. Um importante conceito de Freud
.
que parece ter influenciado Schiele é que a auto-análise deve preceder
a análise de outros; a fim de compreender inteiramente o incons­
ciente, a pessoa deve primeiro estudar o próprio inconsciente. Em
seus auto-retratos Schiele analisou sua personalidade com a mesma
perspicácia e inclemência com que Freud se analisara. As duas pin­
turas que fez em 1910 e 1911 intituladas Visão do Eu são caracterís­
ticas da habilidade de Schiele em retratar a vida inconsciente de uma
pessoa. No quadro duplo O Inspetor Benesch e seu Filho, não só
pintou os aspectos ocultos da psique dos dois homens mas também
seu conflito edipiano. Nesse caso um quadro realmente transmite a
essência de um conflito edipiano com a mesma eloqüência dos es­
critos de F reud.
O comentário acima sobre os quadros e auto-retratos de Schiele
pode, com igual justiça, se fazer sobre os quadros de Oskar Ko­
koschka. E Arnold Schonberg, que criou em Viena as bases da mú­
sica moderna, também pintava; seu O Olhar Injetado e A Visão nos
permite contemplar a vida interior da pessoa retratada com mais cla­
reza do que a sua aparência exterior. Mas, em última análise, os qua­
dros falam diretamente a nós, e as mensagens que essas pinturas
transmitem sobre os segredos mais íntimos do homem devem ser pro­
curadas nelas - nas nossas reações a tais mensagens - não no que
se possa dizer ou escrever a seu respeito.
Há uma eloqüente nota de pé-de-página à história da imperatriz
Elizabeth e seu desejo de ganhar ''um hospício inteiramente equi­
pado''. Na década seguinte à sua morte, construiu-se um asilo para
abrigar os loucos de Viena. Os maiores talentos artísticos que havia
foram convidados a criar o edifício mais belo e moderno para uso
exclusivo dos doentes mentais. Um dos arquitetos mais destacados de
Viena, Otto Wagner, foi contratado para projetar a Igreja de S. Leo­
poldo em Steinhof, um lugar destinado a atender às necessidades espi­
rituais de portadores dos mais· graves distúrbios interiores. Wagner
concebeu essa igreja como uma obra global de arte, uma Gesamt­
kunstwerk, e convidou diversos dos melhores artistas jovens de Viena
- Kolo Moser, Richard Luksch, Othmar Schimkovitz e outros - a
participar da decoração de sua obra. Uma das características mais
esplêndidas da igreja, iniciada em 1905 e completada em 1907, é a sua
cúpula dourada, uma cúpula revestida de bronze, que brilha linda­
mente ao refletir os raios de sol. Essa igreja domina não só a insti­
tuição mas os bairros vizinhos; tornou-se um dos grandes marcos
da cidade.
Assim, durante os últimos anos da desintegração do grande
império dos Hapsburgo, sua capital pagou tributo à importância da
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loucura com um belo e majestoso monumento. Seus grandes escri­
tores e pintores também exploraram a natureza da loucura em suas
obras e as melhores cabeças acadêmicas devotaram as energias à des­
coberta e compreensão da mente mais recôndita, profundamente
oculta do homem, aquele "vasto país" da peça de Schnitzler, e à
decifração das origens do comportamento neurótico e histérico.
Em conseqüência dos acontecimentos vienenses naquela época
extraordinária, possuímos agora os meios de dominar - ou pelo
menos compreender - algumas das forças mais obscuras de nossa
mente, e com isso descobrir que é possível - mesmo quando cerca­
dos pela desintegração - extrair um significado da vida e, seguindo
os ensinamentos de Freud, sermos donos da própria casa.
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