Agosto 2008 - O Livro das Vidas - The New York Times
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Agosto 2008 - O Livro das Vidas - The New York Times
Ricardo Pedreira de Brasília J erry Siegel criou a história do Super-Homem, vendeu os direitos por 130 dólares e morreu em grandes dificuldades.Helen Bunce dedicou a vida a tricotar luvas de lã para serem doadas aos pobres no inverno, e sua filha calculou que ela tricotou pelo menos quatro mil pares de luvas durante 47 anos.Nguyen Ngoc Loan,o general vietnamita notabilizado pela foto em que aparece executando um prisioneiro com um tiro à queima-roupa, acabou indo para os Estados Unidos e montou uma pizzaria. Escreveram na porta do banheiro do estabelecimento:“Sabemos quem é você”. É de gente assim, quase sempre gente de quem não se ouvia falar e que teve uma vida pouco comum, que é feito O Livro das Vidas, uma coleção de textos da seção de obituários do The New York Times.Obituários, para quem não está acostumado ao jargão jornalístico, são aqueles perfis sobre pessoas recémfalecidas publicados na imprensa. Os jornais brasileiros não têm tradição nesse tipo de trabalho,mas nos Estados Unidos e na Inglaterra os obituários são muito populares e rendem alguns dos mais inspirados textos jornalísticos. O título do livro diz tudo: não é sobre mortes,mas sobre vidas. Sobre gente. A partir da morte, os obituários contam a vida de gente que teve uma história que vale a pena ser contada. Exemplo: Edward Lowe foi o sujeito que, em 1947,descobriu que argila granulada pode ser usada naquelas caixas onde os gatos urinam.Gatos são conhecidos por sua obsessão pela limpeza. Vivem se lambendo e tirando sujeira do corpo. Mas sua urina concentrada é muito fedorenta.Antes de Lowe, quem tinha gatos usava serragem ou areia como banheiro para eles, mas a fedentina permanecia.Lowe descobriu que a argila granulada absorve de forma notável o fedor do xixi dos bichanos e ficou milionário. Quem não gosta de ler histórias desse tipo? É por isso que os obituaries, ou simplesmente obits, são campeões de leitura do The New York Times. Para os jornalistas, são uma oportunidade de texto mais elaborado.No Times e em outros jornais ou revistas dos Estados Unidos e da Inglaterra, uma vaga na seção de obituários é disputada à tapa pelos jornalistas. Quando trata de pessoas famosas, o obituário geralmente é um texto preparado com antecedência.A pessoa estava velha, e o repórter já havia apurado as informações e escrito o texto. Muitas vezes, já havia até entrevistado o personagem, que sabia do motivo da entrevista.Meio mórbido, não? Para os menos célebres ou até anônimos, figurar num obituário como o do Times é a glória. Como diz Matinas Suzuki no posfácio do livro:“Para muita gente, é mais negócio ter um bom obituário no The New York Times do que ir para o céu. Há uma grande chance de, aqui na Terra, ele dar a última palavra a respeito de suas vidas”. Nem sempre, é claro, essa última palavra é um elogio.Veja o primeiro parágrafo de um obituário que está no livro:“Anton Rosenberg,famoso artista bissexto de Greenwich Village e músico ocasional que, no cool dos anos 50, encarnou o ideal hipster de forma tão despreocupada e com uma indiferença tão determinada que nunca chegou a ser grande coisa,morreu em 14 de fevereiro num hospital perto da sua casa em Woodstock, Nova York”. Esse início do texto sobre alguém que nunca chegou a ser grande coisa mostra também um aspecto fundamental dos obituários, que é a capacidade de sintetizar com elegância a vida de uma pessoa. Coisa difícil e subjetiva. O jornalista Robert McG Thomas Jr. foi um dos mestres dessa pequena arte. São dele grande parte dos obituários reunidos em O Livro das Vidas. O poder de síntese no primeiro parágrafo, ou “a Cláusula Quem”, como é chamado no Times, ganhou com McG Thomas Jr.uma fórmula que ele manejava com grande competência. Logo de cara, dava o nome da pessoa, abria uma vírgula para definir o que tinha sido sua vida, fechava a vírgula e informava sobre a morte. Essa técnica do aposto ganhou o nome de “McG” e um livro todo dedicado aos obituários feitos apenas pelo jornalista. Quando morreu, o criador virou criatura e mereceu um obituário do jornal, cujo título foi:“Robert McG Thomas Jr., 60 anos, cronista de vidas anônimas”. Diz Bill McDonald, o atual editor de obituários do Times:“De certa maneira, os melhores obituários são aqueles que nos falam de pessoas sobre as quais nós nunca tínhamos ouvido falar e nos deixam chateados por não termos tido chance de conhecê-las”. Esse delicioso O Livro das Vidas nos dá a oportunidade de conhecer algumas dessas pessoas.
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