Significado como uso: uma interpretação

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Significado como uso: uma interpretação
Significado como uso: uma interpretação
Claudia Bianchi
Università Vita-Salute San Raffaele de Milão
Tradução: Renato Railo*
Universidade de São Paulo
Resumo
O legado de Wittgenstein à filosofia da linguagem é múltiplo e a sentença “o significado é uso”
é uma de suas teses mais famosas e controversas. A filosofia da linguagem ordinária e, por consequência, a pragmática contemporânea são baseadas em interpretações dessa tese. De acordo
com a visão pragmática, o significado convencional de qualquer sentença (regras linguísticas
convencionalmente associadas às expressões da sentença pela semântica da linguagem) não é
suficiente para determinar completamente suas condições de verdade. A visão de que uma subdeterminação semântica é essencial para a linguagem natural é explicitamente atribuída a Wittgenstein (e ao ​​seu “significado como uso”) por todos os estudiosos da pragmática. Neste artigo,
o objetivo não será o de se ater à questão controversa da legitimidade dessa atribuição, mas o de
mostrar qual a versão da teoria semântica – tomadas, principalmente, das “Investigações Filosóficas” – que poderia justificar tal atribuição. Pretende-se, então, esboçar a imagem da linguagem
* A presente tradução foi gentilmente autorizada pela autora e pela editora Il Mulino. O artigo foi originalmente publicado
como: BIANCHI, C. “Significato come uso: un’interpretazione”. Rivista di Filosofia, v. 94, n. 1, abr./ 2003, p. 1-24. Disponível
em:
http://www.mulino.it/rivisteweb/scheda_articolo.php?id_articolo=8460&from=%2Fws%2FrwDirectDownload.
php%3Fdoi%3D10.1413%2F8460 (N. T.).
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que Wittgenstein critica – em sua maioria, discutindo jogos de linguagem e semelhança de família – e oferecer uma reconstrução plausível da interpretação pragmática dessa crítica.
Palavras-chave
Filosofia da linguagem ordinária, filosofia analítica, pragmática, semântica
Abstract
Wittgenstein’s legacy in philosophy of language is manifold, and the motto meaning is use”
is one of the most notorious and controversial Wittgensteinian thesis. Ordinary language
philosophy and, as a result, contemporary pragmatic models are based on interpretations of
this very thesis. According to the Pragmatic View, the conventional meaning of any sentence
(the linguistic rules conventionally associated with the expressions of the sentence by the
semantics of the language) underdetermines its truth conditions. The view that a semantic
underdetermination is essential to natural language is explicitly ascribed to Wittgenstein (and
to his “meaning as use” thesis) by all pragmatic scholars. In my paper I shall not concern myself
with the controversial question of the legitimacy of this ascription; my only aim is to show
which version of the semantic theory – taken mainly from the Philosophical Investigations
– could justify that ascription. I will then sketch the image of language that Wittgenstein
criticises - mostly by discussing language games and family resemblance – and offer a plausible
reconstruction of the pragmatic interpretation of this critique.
Keywords
Ordinary language philosophy, analytic philosophy, pragmatic philosophy of language,
semantic
Introdução
Entre as inúmeras e diversas heranças que Wittgenstein deixou à filosofia da linguagem,
encontra-se a tese resumida no slogan “O significado de uma palavra é o seu uso na lin-
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guagem” (WITTGENSTEIN, 1968: §43)1, uma das mais notáveis e controversas doutrinas
filosóficas. Tal proposta, diversamente interpretada, está na origem da filosofia da linguagem ordinária e o que se pretende com este artigo é mostrar como ela se insere também no
centro da perspectiva pragmática da linguagem – que da filosofia da linguagem ordinária
constitui a continuação mais explícita e consciente. Sob a cômoda denominação “corrente
pragmática”, concentrar-se-á aqui em posições por vezes diversas e mesmo contrastantes,
devido ao fato de possuírem particularidades por demais extensas para que pudessem ser
reconhecidas por um paradigma unitário2. Apesar disso, acredita-se na possibilidade de delimitar uma base comum, chamada tese de subdeterminação, segundo a qual o significado
convencional de cada enunciado (regras linguísticas convencionalmente associadas às expressões do enunciado pela semântica da linguagem) não é suficiente para determinar completamente as condições de verdade do próprio enunciado e que estes só vêm delimitados
por meio da adoção de processos inferenciais ou pragmáticos.
O retorno aos filósofos da linguagem ordinária, a propósito da tese de subdeterminação,
é, às vezes, explícito na corrente pragmática, ainda que raramente demonstrado3. O presente artigo não se ocupará, no entanto, da legitimidade histórica ou filológica dessa filiação; na
primeira parte, tentar-se-á ilustrar a interpretação da teoria da linguagem apresentada pelos
filósofos da linguagem ordinária que justificam tal evocação e, em relação a isso, limitar-se-á
basicamente a um ponto negativo, isto é, a uma noção de linguagem que é ponto polêmico
entre Wittgenstein, Waismann e Austin. Já na segunda parte, ao contrário, ter-se-á por objetivo explicitar e articular uma linha argumentativa plausível e coerente que seja capaz de
justificar a tese de subdeterminação desenredada pela corrente pragmática.
1 - Edição brasileira: WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, § 43: “Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra “significação” – se não para todos os casos
de sua utilização –, explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”. (N. T.)
2 - Tais posições podem ser encontradas nos trabalhos de linguistas, psicólogos e filósofos, como, entre outros, Kent Bach,
Robyn Carston, François Récanati, John Searle, Charles Travis, Dan Sperber e Deirdre Wilson. Estes se apresentam ora
por “pragmatic view” (cf. TRAVIS, C. “Pragmatics”. In: HALE, B.; WRIGHT, C. (orgs.). A Companion to the Philosophy of
Language. Oxford: Blackwell, 1997, p. 87-107), ora como “contextualistas” ou por “pragmática vero-condicional” (cf. Récanati,
F. Direct Reference: from Language to Thought. Oxford: Blackwell, 1993; Carston, R. “Implicature, Explicature and ThuthTheoretic Semantics”. In: Kempson, R (org.). Mental representations: the interface between language and reality. Cambridge:
Cambridge University Press, 1988, p. 155-181), ou ainda por “modelo comunicativo inferencial” (cf. Sperber, D.; Wilson, D.
Revelance: Communication and Cognition. Oxford: Blackwell, 1986. Edição italiana: _______. La pertinenza. Trad. G.
Origgi. Milano: Anabasi, 1993).
3 - Exceto os trabalhos de Travis, que caracterizam e articulam a derivação wittgensteiniana da tese; recomenda-se TRAVIS,
C. The Uses of Sense: Wittgenstein’s Philosophy of Language. Oxford: Clarendon Press, 1989; TRAVIS, C. Unshadowed
Thought: Representation in Thought and Language. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2000.
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Wittgenstein, Waismann e Austin
Como dito antes, costuma-se atribuir a inspiração da linha teórica que pertence às
correntes pragmáticas contemporâneas à tradição dos filósofos da linguagem ordinária e,
em particular, ao segundo Wittgenstein, Waismann e Austin. Naturalmente, os três autores requerem análises diversas, sobretudo em relação às motivações presentes na origem
das ideias aparentemente semelhantes. Por exemplo, se Waismann persegue o objetivo de
enfraquecer os argumentos neopositivistas a favor da identificação do significado de uma
frase com o método de investigação, Austin tenta atacar um dos pilares da noção tradicional (fregeana) da linguagem, ou seja, a ideia segundo a qual o significado convencional de
um enunciado determina completamente e univocamente as suas condições de verdade4,
enquanto que, em relação à Wittgenstein, as teses presentes nas Investigações Filosóficas só
adquirem sentido completo se vistas em paralelo e em contraposição àquelas do Tractatus
Logico-Philosophicus. Feita essa ressalva, é possível, no entanto, determinar exemplos, temas
comuns e uma metodologia aos três filósofos – além de doutrinas, ora só acenadas, ora extensamente analisadas, que influenciaram diretamente os autores da corrente pragmática.
Pelo exame da linguagem ordinária surge o que Waismann chama de textura aberta (open
texture) dos termos empíricos, caráter discriminante das linguagens naturais em relação às
linguagens formais. Se, em uma linguagem formal, as convenções semânticas associam a
cada termo e a cada frase um significado fixo, os termos empíricos de uma linguagem natural são caracterizados por uma incompletude essencial que se reflete sobre a possibilidade de
verificação dos enunciados que contém termos empíricos. Acredita-se que a expressão “textura aberta”, aplicada aos termos empíricos, presta-se a interpretações diversas que identificam pelo menos três possibilidades de sentido da expressão.
Em primeiro lugar, é possível perguntar-se, tal qual Waismann ou Austin, quantos e
quais testes são necessários para investigar um enunciado como:
(1) Há um gato no quarto ao lado.
Isto é, basta ver o gato, ou é preciso tocá-lo, acariciá-lo e senti-lo ronronar?5 Se a origem da
4 - Vale dizer que o artigo Verifiability de Waismann foi escrito no mesmo ano da publicação (1940) de The Meaning of a Word,
de Austin, e trata substancialmente dos mesmos temas. Waismann pertence, primeiramente, à tradição intelectual oposta àquela
de Austin, ou seja, ao neopositivismo, do qual toma os modelos de análise, a terminologia e retoma seus problemas. O comportamento crítico de Waismann contra a corrente neopositivista deve ser realçado também à influência de Wittgenstein.
5 - E para um telefone, questiona-se Austin, é preciso tentar adentrá-lo?
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incompletude da verificação reside na incompletude dos termos empíricos, esta, por sua
vez, deriva da incompletude das descrições factuais; a qualquer descrição empírica (como
a descrição da mão direita, exemplo dado por Waismann) é possível sempre acrescentar
complementos e detalhes, sem que se chegue a um fim, a um inventário completo. A
impossibilidade de exaurir todos os detalhes de uma descrição empírica é o primeiro
sentido que deve ser atribuído à expressão “textura aberta”, o que corresponde ao horizonte
de possibilidades sobre o qual se estende cada conhecimento factual. Um horizonte que,
também para Wittgenstein, não é limitado em seja qual for a direção, sem que isso seja
considerado preocupante: “Mas então o emprego da palavra não está regulamentado; o
‘jogo’ que jogamos com ela não está regulamentado. Ele não está inteiramente limitado por
regras” (WITTGENSTEIN, 1968: § 68). Mais à frente, diz: “Mas isto não é ignorância. Não
conhecemos os limites porque nenhum está traçado” (Idem: § 69). E o mesmo continua:
Torna-se estranho quando somos levados a pensar que o desenvolvimento futuro
deva estar já de algum modo presente no ato de compreender, e, contudo, não está.
Pois dizemos que não há dúvida de que compreendemos esta palavra, mas, por
outro lado, que sua significação reside em seu emprego (Ibidem: § 197).
Em outras palavras, não se trata de ignorância e nem de limites vagos; segundo Waismann, os termos empíricos são delimitados somente em certas direções, em função do
conhecimento dos falantes e de seus interesses, objetivos e atividades que lhes vêm relacionados. Os limites são consequência dos objetivos atuais de uma comunidade linguística e
cultural e são, portanto, limites não definitivos, mas sim abertos a usos inéditos, à criação de
novas convenções em contextos imprevistos.
Pode-se então frisar um segundo sentido de “textura aberta”: Wittgenstein, Waismann e
Austin se esforçam por variar as situações de pronunciação de enunciados que contêm termos empíricos, de forma a criar contextos de uso imprevistos, isto é, casos extraordinários
que, em contraste com nossas intuições, são capazes de evidenciar as tensões da linguagem
natural (WAISMANN, 1951: 118)6. Veja-se o exemplo
(2) Ali tem uma poltrona,
6 - Como em Wittgenstein (1968, § 250): “A questão da verificação só surge quando caímos em uma nova combinação de
palavras... quando dizemos ‘O cão pensa’ criamos um novo contexto, saímos dos limites do discurso comum, e surge, então,
a questão do quê se quer dizer com esta sucessão de palavras”.
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ou, como o próprio Wittgenstein (1968: § 80) escreve:
Digo: ali tem uma poltrona. Que aconteceria se eu fosse lá buscá-la e ela desaparecesse repentinamente da minha vista? [...] Você tem regras prontas para tais casos
– que digam se se pode ainda chamar a isto de ‘poltrona’? Mas elas nos escapam
quando usamos a palavra ‘poltrona’; e devemos dizer que não ligamos a esta palavra nenhuma significação, uma vez que não estamos equipados com regras para
todas as possibilidades de seu emprego?
Analogamente, Waismann também fornece exemplos; o enunciado,
(3) Ali está um amigo meu
é verdadeiro ou falso se, quando me aproximo, o homem desaparece, ou então se ele fala e
se comporta como um homem, mas sua altura chega aos 10 centímetros? E o que dizer do
enunciado,
(4) É ouro,
dito a propósito de um objeto que satisfaz todos os testes químicos para que seja classificado como ouro, mas que emite um novo tipo de radiação? (WAISMANN, 1951: 118)
Austin continua: o que dizer do enunciado,
(5) É um pintassilgo,
proferido a propósito de um passarinho que explode ou cita Virginia Woolf? (AUSTIN,
1961a)7 A expressão “textura aberta”, nesse segundo sentido, é, então, a impossibilidade
inicial de prever todas as circunstâncias que poderiam modificar ou descrever um enunciado, de indicar novas experiências que obrigam a uma reformulação radical de uma parte da
7 - A tradução das referências à Austin é nossa.
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nossa teoria sobre o mundo. Em seu The Meaning of a Word, Austin (Idem: 67) observa que
nem a frase,
(6) É um gato (verdadeiro),
nem a sua negação parecem corresponder ao estado de coisas em que um gato, após anos
de vida em comum com um homem, vida esta marcada pela harmonia e amizade, começa a
discorrer em inglês perfeito: “[ambos os enunciados] são apropriados em situações diversas
desta” (Ibidem); ou seja, em uma circunstância fora do padrão, anormal, “não sabemos o
que dizer. Faltam-nos as palavras, literalmente” (Ibidem: 68).
E, enfim, da variação dos contextos tomados em consideração, crê-se que esta levada
ao extremo permite a compreensão de um terceiro sentido de “textura aberta”, visto que se
torna obrigatória a exploração dos limites lógicos do pensamento humano, isto é, o campo
de possibilidades no interior do qual se pode exercitá-lo. Diante dos enunciados,
(7) “X é extenso, mas não tem forma” (Ibidem)8
ou
(8) Este homem está e não está em casa,
comprova-se que se está diante de frases que não se limitam a colocar à prova as intuições
empíricas dos indivíduos, uma vez que parecem sair do espaço lógico até aqui ocupado pela
língua e violar as regras de uso das expressões, como nos exemplos (2) a (6). Já (7) e (8)
podem ser incorporadas à negação de proposições gramaticais no sentido de Wittgenstein,
como em
(9) Cada haste há um comprimento,
8 - Mas recomenda-se também a leitura de Wittgenstein (1968: § 252).
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que define os termos da seguinte forma: “Mas esta imagem, em relação à frase gramatical, pode
apenas mostrar aquilo que chamamos de comprimento de uma haste”(WITTGENSTEIN,
1968: § 251, grifo do autor) – proposições das quais “não posso me representar o contrário”
(Idem). Ainda nesses casos, porém, os termos da linguagem natural são suficientemente
flexíveis a ponto de consentir seu emprego em usos inéditos e inconstantes. A propósito de
(7) e (8), de fato, Austin (1961a: 68, grifo do autor) observa:
Em certo sentido não podemos dizer que coisa isto ‘poderia querer dizer’ – não
existem convenções semânticas, explícitas ou implícitas, que cubram este caso: pois
isso não está excluído em modo algum – não existem regras que ponham limites
sobre aquilo que podemos ou não podemos dizer em casos fora do ‘comum’.
De um homem morto e estendido sobre o próprio leito, pergunta, diz-se que está em casa?
Ou que não está em casa?
Gatos, portas, gramas e geladeiras
Como dito na Introdução, a tradição da filosofia da linguagem ordinária
foi renovada recentemente, especialmente com John Searle e Charles Travis, com trabalhos
dedicados à generalização da propriedade de subdeterminação semântica9. Os dois autores
retomam de Austin, Waismann e Wittgenstein os tipos de exemplos de situações estranhas
e o método de questionar que Austin chamava “fenomenologia linguística” (1961b: 182).
Para enunciados aparentemente banais e inocentes como
O gato está sobre o tapete;
Paulo corta a grama;
9 - Sobre este ponto ver: SEARLE, J. Expression and Meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979; SEARLE, J.
“The Background of Meaning”. In: ______; KIEFER, F.; BIERWISCH, M. (orgs.). Speech Act Theory and Pragmatics. D.
Reidel Publishing Company, 1980, p. 221.232; SEARLE, J. The Rediscovery of the Mind. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1992;
TRAVIS, C. Saying and Understanding. Oxford: Blackwell, 1975; TRAVIS, C. The True and the False: the Domain of Pragmatics. Amsterdam: Benjamins, 1981; TRAVIS, C. “On What is Strictly Speaking True”. Canadian Journal of Philosophy, v. 15, n.
2, 1985, p. 187-229; TRAVIS, C. The Uses of Sense, op. cit.; TRAVIS, C. “Meaning’s Role in Truth”. Mind, v. 105, n. 419, 1996,
p. 451-466; TRAVIS, C. Pragmatics, op. cit.; TRAVIS, C. Unshadowed Thought, op. cit.
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Bia abriu a porta;
Tem leite na geladeira,
vêm conjecturados contextos desviantes ou bizarros, como, por exemplo, a viagem pelo espaço interestelar e sem gravidade do gato e do tapete, a grama que é cortada como um bolo
de aniversário, as portas que são abertas após serem arrombadas, e as geladeiras que estão
repletas de leite, prontas a submergir aquele que se atrever a abri-las. Nas intenções dos autores pertencentes à corrente pragmática, exemplos como os citados mostram que cada frase tem um só sentido, uma vez especificado um sistema de relações contextuais (que Searle
chama background) que fixa as condições de verdade dos mesmos – em outras palavras, só
uma vez fornecida uma descrição da ocasião de uso, que é fixada a interpretação pertinente.
O sistema de relação contextual não é único, constante, estabelecido para sempre, associado
de modo estável ao enunciado ou ao predicado, assim como não é única a ocasião de uso
de um enunciado ou de um predicado. Variando oportunamente o que está por trás das
hipóteses contextuais, é possível fazer variar, por consequência, as condições de verdade
das frases. Os autores da corrente pragmática concluem, então, com Wittgenstein, que as
propriedades semânticas de uma expressão dependem do uso que se faz da expressão e que
o significado convencional de um enunciado, na ausência de uma ocasião particular de uso,
subdetermina suas condições de verdade.
Ao se analisar os trechos dados como exemplos neste artigo, é possível perceber que a
tese de subdeterminação não é o resultado de uma demonstração, mas emerge como simples hipótese empírica. Os exemplos se limitam a mostrar, sem demonstrar, a variação de
condições de verdade que também diz respeito aos enunciados mais banais – como neste
caso dado por Searle (1979: 127):
Suponhamos que eu vá ao restaurante com a clara intenção de dizer exatamente e
literalmente aquilo que quero dizer, isto é, com a intenção de proferir as frases imperativas que exprimem exatamente aquilo que desejo. Começo dizendo: “Tragame um hambúrguer bem passado, com ketchup e mostarda, sem muito picles”. [...]
Suponhamos que o hambúrguer que me fosse servido estivesse fechado dentro de
um metro cúbico de matéria plástica transparente e rígida, de forma a só poder ser
aberto com uma britadeira; ou suponhamos que o hambúrguer tivesse um quilômetro de extensão e que fosse necessário derrubar o muro do restaurante para que
eu pudesse ser servido. A minha ordem “Traga-me um hambúrguer bem passado,
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com ketchup e mostarda, sem muito picles” foi obedecida e satisfeita nestes dois
casos?.
No que se segue, tentar-se-á caracterizar com maior precisão o tipo de fenômeno que
Searle e Travis tentam circunscrever ao descrever ocasiões particulares de uso de enunciados aparentemente não problemáticos, explicitando e articulando argumentações somente
acenadas, geralmente implícitas na apresentação dos exemplos. Analisar-se-á, em particular, os exemplos com o verbo abrir propostos por Searle, a partir dos enunciados:
(10) Bia abriu a porta;
(11) Bruno abriu a latinha de atum;
(12) Francisca abriu os olhos;
(13) Paulo abriu a ferida;
(14) Lia abriu os braços.
A propósito de (10) - (14), Searle afirma que, ainda que o significado convencional do
verbo abrir seja sempre o mesmo, a sua interpretação é radicalmente diversa de enunciado
para enunciado. O verbo parece ter um conjunto de condições de aplicação que varia sensivelmente de (10) - (14) e Searle se pergunta, por exemplo, se estaremos dispostos a considerar (10) verdadeiro se Bia abrisse a porta com um abridor de latas ou com um bisturi.
Aparentemente, o significado convencional do verbo determina uma contribuição diversa
às condições de verdade de cada frase e o significado convencional da frase determina, para
a mesma frase em contextos diversos, conjuntos distintos de condições de verdade.
Semântica tradicional
Passamos agora a caracterizar a noção de linguagem contra a qual são diretos os exemplos dos filósofos da linguagem ordinária e, sobre seu rastro, dos pragmáticos. Por semântica tradicional tornou-se convenção identificar a semântica de modelos, filiação direta do
paradigma fregeano e das teses semânticas do Tractatus (MARCONI, 1999). O centro desse paradigma é a ideia de que as expressões linguísticas têm sentidos fixos, estabelecidos
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pelas convenções da linguagem, e condições de verdade determinadas. Particularmente: i)
cada expressão linguística tem um sentido convencional – sentido determinado pela forma
de expressão; ii) tal sentido se identifica, no caso de uma expressão subenunciativa (como
um predicado), com as condições de aplicação da expressão (CDA, condições que um objeto deve atender de maneira que a expressão se lhe aplique) e, no caso de um enunciado,
com as condições de verdade do enunciado (CDV, condições que o mundo deve atender de
maneira que o enunciado constitua uma descrição apropriada dele); iii) o sentido de uma
expressão complexa é função do sentido das expressões componentes.
A tese pragmática de subdeterminação, exemplificada na seção precedente, constitui
uma objeção às bases da semântica tradicional: a ideia de que os enunciados tenham CDV
determinados, fixados por convenções linguísticas. Na realidade, também a semântica tradicional reconhece exceções à identificação tout court das CDV de um enunciado com o seu
significado convencional, a saber, os fenômenos de ambiguidade, elipses, indexicalidade
ou sentido implícito. Crê-se, então, evidente que a tese pragmática representa uma objeção séria e relevante somente se conseguir desenhar um fenômeno de subdeterminação
não passível de pertencer aos campos da ambiguidade, elipses, indexicalidade ou sentido
implícito – fenômenos para os quais a semântica tradicional possui uma ampla gama de
soluções. O objetivo desta seção será, então, o de ilustrar os caminhos que a semântica tradicional poderia adentrar para reconduzir a tese de subdeterminação ao interior do próprio
paradigma. Na seção sucessiva, ao contrário, indicar-se-á uma leitura plausível da tese de
subdeterminação, de forma a excluir as estratégias tradicionais, sendo que, dessa maneira,
mostrar-se-á como a tese pragmática representa um fenômeno do qual a semântica tradicional não consegue dar conta.
a) Ambiguidade
No paradigma semântico tradicional, a linguagem é caracterizada por uma correspondência entre forma e conteúdo: o sentido de uma expressão é determinado pela forma da
expressão. A linguagem natural contém expressões ambíguas; logo, esse modelo semântico postulará que a uma expressão ambígua, seja homônima (como crença) ou polissêmica
(como jornal), estejam associados dois ou mais conjuntos de CDA e a um enunciado ambíguo, como em
(15) Estou livre de todas as minhas velhas crenças,10
10 - A palavra italiana credenza significa tanto crença, ato ou efeito de crer, quanto armário, móvel de cozinha. Percebe-se, então,
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dois ou mais conjuntos de CDV. As convenções da linguagem fixam a lista dos sentidos potencialmente disponíveis para uma expressão, postulando tantas unidades distintas (tantas
formas diferentes) quantos são os sentidos – formas que podem ser assinaladas para distingui-las: crença (1) (que é associada ao sentido de “móvel de cozinha”) e crença (2) (que é
associada ao sentido de “convenção, opinião”). É então possível formular uma estratégia em
termos de ambiguidade para dar conta dos enunciados de (10) - (14), postulando mais sentidos distintos para abrir: abrir (1) associado ao sentido de “desfechar”, abrir (2) associado
ao sentido de “fazer uma fenda”, abrir (3) associado ao sentido de “ampliar”, etc.
b) Elipse
A correspondência faz o significado e a CDV é posta em discussão também nos casos
das elipses, como em:
(16) João terminou de comer; também Lia terminou.
É evidente que, para ser avaliado, ou seja, para ter a CDV determinada, o segundo enunciado deve ser completado com material linguístico e, no caso de (16), recuperado a partir do
primeiro enunciado. Tem-se então:
(17) João terminou de comer; também Lia terminou de comer.
Da mesma forma, no que tange a (10), poder-se-ia postular que o enunciado, após ter a
CDV determinada, deva ser completado com material linguístico, recuperável por meio do
contexto extralinguístico, como em
(18) Bia abriu a porta com a chave
ou
que, ao ser traduzida, o exemplo perde sentido, razão pela qual se deve conceber a mesma homonímia em Português. (N. T.)
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(19) Bruno abriu a latinha de atum usando um abridor de latas.
c) Indexicalidade
A semântica tradicional retifica a identificação de significado e a CDV também para incluir expressões particulares das linguagens naturais, como os indexicais. As frases em que
aparecem tais expressões têm, sim, um significado convencional, que, no entanto, não pode
ser identificado diretamente com as condições de verdade da frase. É, de fato, necessário,
para poder fixar as condições de verdade de uma frase indexical, como, por exemplo,
(20) Eu sou italiana,
determinar quem proferiu a frase, ou seja, o contexto de pronunciamento da frase. O significado de uma expressão indexical vem, então, concebido como uma função – que Kaplan
(1989) chama de caráter da expressão –, desde elementos do contexto de pronunciação,
como falante, lugar e tempo de tal pronúncia, até o valor semântico da expressão (ou CDV)
(aquele que Kaplan chama de conteúdo)11. Em outras palavras, o valor semântico de uma expressão indexical é determinado pelas regras da linguagem e por fatores contextuais – onde
o fator contextual pertinente é fixado pelas regras associadas à expressão (como em “eu se
refere ao falante no contexto dado”). As CDV de um enunciado vêm determinadas, indiretamente, pelo significado linguístico do enunciado, com uma determinação que é automática,
funcional e, portanto, semântica.
Tal concepção, se aplicada em (10) - (14), generaliza a ideia de que o significado linguístico associado convencionalmente às expressões linguísticas seja uma função e isso permitiria à semântica tradicional manter sua tese central de significados convencionais fixos associados às expressões linguísticas. No âmbito semântico tradicional, um critério desse tipo
foi utilizado como exemplo para definir o significado convencional dos predicados como
11 - A noção de contexto aqui utilizada corresponde à situação objetiva de pronunciação e é constituída por um número
fixo e restrito de parâmetros: falante, lugar, tempo, conjunto de ouvintes, conjunto dos objetos que podem ser designados,
segmento de discurso. São esses os parâmetros que aparecem na exposição montagoviana presente em: MONTAGUE, R.
“Pragmatics”, 1968. In: ______. Formal Semantics. New Haven: Yale University Press, 1974, p. 95-118; David Lewis propõe,
em apêndice, uma primeira expansão de tais índices: cf. LEWIS, D. “General Semantics”. Synthese, 22, 1970, p. 18-67.
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ser vermelho ou ser plano (ou de preposições como de e verbos como pegar) com disjunções
da forma:
f(x) = “...” se P1 (x)
“...” se P2 (x)
“...” se..........
“...” nos outros casos (KEENAN, 1975)12.
O valor semântico que o predicado assume em seu uso particular varia, dependendo do
contexto linguístico (intuitivamente, o que significa ser vermelho muda se falamos de cabelos ou de tomates, assim como ser plano não tem o mesmo significado se falamos de uma
mesa ou da Holanda). Adaptando essa proposta ao nosso exemplo, a função associada ao
predicado abrir parece possuir valores diversos em contextos (linguísticos) diversos como
(10) - (14). Também aqui, intuitivamente, existem modos diversos de abrir uma porta ou
uma latinha de atum ou os olhos ou, ainda, uma ferida. E, então, a função associada ao predicado abrir será da forma:
Abrir = “x” se abrir (porta, janela);
“y” se abrir (latinha);
“q” se abrir (olhos);
“z” se abrir (ferida);
“w” nos outros casos.
Uma vez dado o objeto, a interpretação pertinente (o modo pertinente de abrir) vem calculada automaticamente. Como acenado, a proposta apresentaria a vantagem – extremamente
sedutora para a semântica tradicional – de permitir, sim, a variação sistêmica dos valores
obtidos aplicando a função aos diversos enunciados, mas mantendo fixo o significado do
predicado, a partir do momento que o significado é dado pela totalidade da disjunção, pela
função no seu complexo.
12 - Ver também: PARTEE, B. “Compositionality”. In: LANDMAN, F.; VELTMAN, F. (orgs.). Varieties of Formal Semantics.
Dordrecht: Foris Publications, 1984, p. 289-290.
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d) Sentido implícito
O último caminho aberto à semântica tradicional para tratar do fenômeno exemplificado em (10) - (14) é aquele de reduzi-lo a um caso de sentido implícito, ou sentido comunicado, ou significado do falante; tratar-se-iam de enunciados de cujo falante se serve para
comunicar qualquer coisa a mais, além do (ou diverso do) sentido literal das expressões utilizadas, e isso graças à rede de crenças, intenções, atividades que ele compartilha com seus
interlocutores. Exemplos clássicos de sentido implícito ou comunicado de um enunciado
são constituídos por implicações comunicativas griceanas, ou seja, exemplos de sentido não
literal de uma expressão, seus sentidos amplos ou figurados e metafóricos. Na semântica
tradicional, implicações e sentidos figurados são diferenciados claramente pelas CDV literais de um enunciado ou pelas CDA literais de uma expressão subenunciativa, sendo os
sentidos implícitos expulsos pela semântica e confinados na pragmática.
Quando se aplica aos exemplos até aqui fornecidos a estratégia, em termos de sentido
implícito, devemos associar a abrir um só sentido literal, a um só conjunto de CDA; todos
os outros sentidos seriam sentidos figurados ou amplos, como quando se diz
(12) Francisca abriu os olhos
e se quer dizer que Francisca finalmente se tornou consciente de algo, ou quando se diz
(21) Paulo abriu o seu coração
e se quer dizer que Paulo confiou em alguém.
Crítica à semântica tradicional
Na interpretação que se propõe, a corrente pragmática se mostra como continuação direta da tradição da filosofia da linguagem ordinária, sobretudo pelo objetivo de desmantelar
a tese, central para Frege e para o primeiro Wittgenstein, de significados fixos associados
convencionalmente às expressões, e de CDV determinadas associadas aos enunciados da
linguagem. Como dito, o objetivo pode ser alcançado somente refutando convincentemenFUNDAMENTO – Revista de Pesquisa em Filosofia, n. 4, jan–jun - 2012
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Significado como uso: uma interpretação
te as diversas estratégias que se ilustrou aqui e demonstrando que os exemplos examinados
trazem à superfície um fenômeno mais preocupante, que a semântica tradicional não consegue resolver: a subdeterminação semântica de cada frase da linguagem natural. Na última
parte deste artigo, serão examinadas as refutações possíveis de se realizar, desde que se desenvolva a perspectiva pragmática com coerência e até as últimas consequências.
a) Ambiguidade
A estratégia em termos de ambiguidade postula que se associe ao verbo abrir uma pluralidade de sentidos distintos. Searle e Travis, no entanto, mostram que é possível multiplicar
à vontade os exemplos, estendendo indefinidamente a lista de CDA associada estavelmente,
convencionalmente, ao predicado. Essa multiplicação de sentidos, se tomada seriamente,
tem duas consequências indesejáveis para uma teoria semântica. De um lado, torna pouco
plausível e, certamente, não econômico considerar lexicalizados todos os diversos sentidos
do verbo, sentidos que seriam repertoriados em uma lista exaustiva. Por outro lado, o método da lista, que postula apenas alguns valores, não dá conta da dimensão de continuidade
e de permeabilidade de tais sentidos – ou seja, o fato destes frequentemente se sobreporem
parcialmente na interpretação e fazerem apelo um ao outro – e do fato dos sentidos estarem
simultaneamente presentes, ainda que diversamente salientados ou sublinhados, ou, ainda,
inclusos um no outro.
b) Elipse
Uma solução em termos de elipse, ao contrário, sugere, para que um enunciado como
(10) tenha CDV determinada, completá-lo com material linguístico, como em
(18) Bia abriu a porta com a chave.
Mas é evidente que uma estratégia desse tipo não teria como restringir os tipos de complementos a serem incluídos nas CDV (no conteúdo semântico) de (10), se (18), ou se
(22) Bia abriu a porta usando a maçaneta
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ou ainda
(23) Bia abriu a porta empurrando-a
etc. E também se fosse estipulado que (18) constitui um “bom” complemento de (10),
nada em (18) bloquearia interpretações desviantes, como aquela segundo a qual a chave
usada por Bia pesa 20 kg e Bia a usou como se fosse um aríete.
c) Indexicalidade
Aquela que se definiu como solução em termos de indexicalidade parece ser o centro
dos exemplos de Searle: é, de fato, possível obter, para abrir a porta, a interpretação de abrir
que se teria geralmente para abrir a latinha – ou seja, “fazer uma fenda”. Como exemplo,
tome-se em consideração (10), proferido em duas circunstâncias diversas. Caso I: para um
jantar com amigos o anfitrião está cozinhando um maravilhoso risoto à milanesa; sua vizinha, Bia, convidada para jantar, bate na porta e, ao convite daquele (expresso por “entre”),
Bia, com um machado, dilacera a porta. Dir-se-ia que Bia abriu a porta? Provavelmente não;
(10) parece falso. Caso II: o maravilhoso risoto à milanesa, esquecido por 40 minutos no
forno, pega fogo; a casa é rapidamente invadida por chamas e fumaça; todos se refugiam
sob a mesa e começam a pedir ajuda. Bia, a vizinha, usando um machado, dilacera a porta.
Dir-se-á que Bia abriu a porta? Provavelmente sim; nesta circunstância, (10) nos parece
verdadeiro.
Segundo Searle e Travis, novamente, nos dois casos examinados, a semântica de (10)
não varia – o seu significado convencional é o mesmo – e, no entanto, sua interpretação é
radicalmente diferente no primeiro caso em relação ao segundo. Visto que parte do mundo
(o estado de coisas) ao qual se refere permanece constante (porta e modo de abri-la não
mudam nos dois casos), mas o valor de verdade do enunciado muda ((10) é falso no caso
I e verdadeiro no caso II), significa que as condições de verdade do enunciado são diversas
nos dois casos, conclusão que a semântica tradicional não consegue resolver.
Crê-se possível, no entanto, delinear uma estratégia indexical um pouco diferente, que
tome como modelo as expressões demonstrativas e possessivas e que é possível de se aplicar a (10). Foi dito que Travis defende a tese segundo a qual o significado convencional
de (10) não fixa um conjunto único de condições de verdade: basta, de fato, fazer variar
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Significado como uso: uma interpretação
um elemento do contexto13 para fazer variar o valor de verdade de (10), logo, suas CDV.
Nomeou-se os dois diversos casos respectivamente (Caso I – o jantar; Caso II – o incêndio). O conjunto apropriado de CDV de (10) no Caso I era algo como “Bia abriu a porta
com a chave”; o conjunto apropriado de condições de verdade de (10) no Caso II era, ao
contrário, “Bia abriu a porta com o machado”. Os dois conjuntos de CDV se diferenciam
por um elemento, que representa o modo pelo qual a porta foi aberta e é responsável pela
variação de condições de verdade. Os dois contextos escolhidos requerem que seja fixado
este aspecto do contexto, que se escolha entre um “modo de abrir” e outro. A análise aqui
apresentada pode ser vista como paralela em relação àquela dos possessivos: na construção
possessiva “o livro de Lia” está presente uma variável que corresponde à relação que liga
Lia ao livro, variável que deve ser saturada para que a expressão tenha uma referência e o
enunciado, onde a expressão aparece, CDV determinada: essa saturação não segue, ainda,
nenhuma regra prefixada (o livro pode ser aquele que pertence a Lia, ou que Lia escreveu,
ou leu, ou viu em uma vitrine, etc).
Se se quisesse aplicar o tratamento de demonstrativos e possessivos aos enunciados
(10) – (14), dever-se-ia dizer que no predicado abrir está presente uma variável – digamos
Xm, o modo de abertura – que deve ser estipulada para cada ocorrência do predicado em
cada contexto. O destinatário deve saturar essa variável a fim de obter um valor semântico
definido para o predicado; somente em seguida é possível determinar as condições de verdade de (10). Nessa perspectiva, o predicado abrir não teria nem um valor fixo associado
convencionalmente pelas regras da linguagem à expressão-tipo, nem uma regra automática
de saturação, uma função (como para a estratégia indicativa) que, uma vez dado o argumento (o contexto linguístico porta, por exemplo), forneça o valor da função no contexto dado
(um determinado modo de abrir). Aqui, como no caso das expressões demonstrativas ou
possessivas, o significado convencional do predicado se limitaria a assinalar a presença de
uma variável para estipular (o modo de abrir), mas sem determinar como estipulá-la (admite-se número indefinido de modos – chaves, abridores de lata, machados, etc).
Na interpretação que se propõe, a tese que emerge dos exemplos de Searle parece ainda
mais extrema. É, de fato, fácil imaginar pelo exemplo de (10) que ocasiões de uso cujo fator
contextual foi ressaltado – chamemos Xm – podem se revelar não pertinentes para a determinação das condições de verdade de (10). Isso significa que Xm não constitui um aspecto
do sentido de abrir que deve ser necessariamente determinado, como acontece no caso de
uma construção possessiva, quando a determinação da relação que liga os dois termos da
13 - Naturalmente tratar-se-á de um elemento diverso pelos parâmetros da situação de pronunciação, isto é, falante, lugar e
tempo.
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construção é um processo obrigatório, imposto pelo material linguístico e necessário a fim
de que a expressão tenha um valor semântico definido. Pode-se, sim, construir contextos
nos quais a variável “modo” não tenha pertinência alguma para fixar as condições de verdade de um enunciado que contém o predicado abrir. É aquilo que acontece no próprio Caso
II (o incêndio), pois pouco importa o modo pelo qual Bia abriu a porta – machado, aríete,
ombrada, ou ainda, porque não, a chave duplicada que se lhe confiou para o caso de alguma
eventualidade.
Parece, então, que é possível perceber duas consequências do exemplo analisado. Por
um lado, o significado convencional do predicado abrir não impõe uma determinação particular da variável “modo de abrir” (chave mais do que machado), ou seja, nenhum modo
particular faz parte do significado convencional do predicado, mas é o contexto que força
uma interpretação em detrimento de outra. E, por outro lado, também uma vez fixado esse
particular aspecto do contexto (também uma vez estabelecido, por exemplo, que o único
modo conveniente de abrir uma porta deva ser com o uso da chave e da maçaneta), será
possível tornar variáveis as condições de verdade de (10) variando outros aspectos do contexto (como o tempo): esses outros aspectos do contexto serão, de volta em volta, responsáveis pela subdeterminação do enunciado. Para dar ainda outro exemplo, se, no Caso II, Bia
conseguisse derrubar a porta somente horas depois, quando então a dona da casa, todos os
convidados e o risoto estariam completamente carbonizados, continuaríamos a dizer que
(10) é verdadeiro?
d) Sentido implícito
Aplicada aos nossos exemplos, a estratégia do sentido implícito postula que seja associado a abrir um só sentido literal, um só conjunto de CDA; todos os outros sentidos seriam
sentidos figurados ou amplos. Acredita-se que o sentido associado ao verbo abrir como
candidato a seu único significado literal pode ser interpretado em pelo menos dois modos:
(i) como um conjunto particular de CDA, isto é, um dos sentidos específicos, como por
exemplo, o sentido de “fazer uma fenda”; (ii) como um conjunto de CDA abstrato e geral,
comum a todos os usos do verbo. Crê-se que seja possível refutar ambas as interpretações.
A interpretação (i) implica que em um uso de
(10) Bia abriu a porta
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Significado como uso: uma interpretação
o sentido “desfechar” de abrir é um sentido não literal, mas sim figurado, obtido por extensão pelo sentido primário “fazer uma fenda” – conclusão intuitivamente pouco plausível.
Já a interpretação (ii), ao contrário, sugere que se use para cada enunciado o conjunto de
CDV mais abstrato e geral, isto é, um conjunto comum a todos os usos de abrir. Assim, para
(10), teríamos um conjunto de CDV que abstrai o modo pelo qual a porta foi aberta, assim
como o tempo gasto, o tipo de abertura praticada e todo e qualquer tipo de especificação que
se poderia imaginar. Essas determinações seriam de domínio da pragmática, modulações ou
enriquecimentos que não modificam as CDV literais da frase, pois o contexto permite simplesmente de integrar o significado, de completá-lo e de especificá-lo, e contextos diversos
permitem integrações diversas. Considera-se que a corrente pragmática não deva aceitar de
modo algum uma solução em termos de sentido implícito, uma vez que essa levaria a um
divórcio entre as CDV formuladas pela teoria semântica e as intuições dos falantes sobre isso
que torna um enunciado verdadeiro. De fato, se atribuímos a (10) um conjunto de condições
de verdade abstrato e geral, cada abertura praticada (de qualquer natureza que esta seja e de
qualquer modo que essa seja praticada) virá considerada como tal por satisfazer as condições
de verdade de (10). Isso nos obrigaria a admitir que é verdadeiro (10) o fato de que Bia tenha
rompido a porta de casa, ou tenha feito uma fenda na porta com um bisturi, ou, ainda, o fato
de que Bia tenha espedaçado a parede e penetrado na casa, deixando todos na sala, em seguida
abrindo a porta – ou engolido tudo e aberto a porta com as contrações do próprio estômago.
Conclusão
A análise do exemplo de Searle que aqui se propôs pode ser facilmente ampliada aos
casos examinados por Wittgenstein, Waismann e Austin. Se as refutações apresentadas são
convincentes, surgiria então uma forma de subdeterminação semântica que se diferencia
notavelmente dos tipos de dependência do significado de uma expressão por seus usos admitidos pela semântica tradicional – uma forma de subdeterminação que ameaça a imagem
tradicional da linguagem presente nos escritos de Frege e no Tractatus. Esta apresentaria
de fato dois caracteres que se distanciam radicalmente da semântica tradicional, e que, na
reconstrução aqui proposta, constituem as teses basilares da corrente pragmática: a) em
primeiro lugar, a subdeterminação é generalizada a todas as expressões linguísticas, não
sendo propriedade de nenhum conjunto finito e determinado de expressões (indexicais e
demonstrativos, expressões ambíguas, metáforas e usos figurados), mas uma propriedade
geral do significado; b) em segundo lugar, os elementos contextuais que podem revelar-se
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como pertinentes para fixar as condições de verdade de um enunciado dado não são determinados a priori, codificados no significado convencional do próprio enunciado; a relação
entre caracteres da ocasião de uso e condições de verdade do enunciado não é automática,
funcional, e, portanto, não é previsível.14
O modo de dependência não é dado, isto é, não é fixado independentemente da ocasião
de uso (como é ao contrário o modo de dependência para as expressões indexicais ou demonstrativas): é o próprio contexto de uso que fixa o modo de dependência. Disso se segue
que, fora de qualquer contexto, não é possível especificar um estado de coisas cuja realização
tornaria um enunciado verdadeiro como (10): o seu significado convencional só determina as
CDV do enunciado relativamente a certas assunções, a certas práticas, a certos objetivos.
Desse ponto de vista, as representações linguísticas são como a noção wittgensteiniana
do homem que sobe à montanha segundo a qual pode ser vista como a imagem de um homem que desce dela; para se aplicar à realidade, as representações necessitam de interpretação. Como visto, acrescentar posteriores representações à nossa representação de origem
não faria mais do que deslocar o problema: cada explicitação requereria, ela própria, uma
interpretação. Como no caso do gato falante de Austin, nem (6) nem a sua negação são
descrições adequadas: a solução pareceria, diz Austin, aquela de “fornecer uma descrição
completa dos fatos” (AUSTIN, 1961a: 68) e, portanto, aquela de determinar o contexto,
desejos, intenções, objetivos etc., da troca comunicativa e dos seus participantes. É, porém,
evidente o regresso ao infinito que uma descrição desse tipo conduziria, pois, por um lado,
cada especificação da situação de uso é passível, por sua vez, de especificações, e, por outro,
a enumeração das especificações que se poderiam acrescentar não teria um fim. É o tema da
discussão wittgensteiniana sobre o “seguir uma regra”:
Disse que o emprego de uma palavra não é sempre limitado por regras. Mas qual a
aparência de um jogo que é inteiramente limitado por regras? Regras que não dão
margem a nenhuma dúvida e que lhes fechem todas as lacunas. – Não podemos
imaginar uma regra que regule o emprego da regra? E uma dúvida, que aquela
regra levante – e assim por diante? (WITTGENSTEIN, 1968: § 84).
A solução de Searle, como aquela de Austin e de Wittgenstein, é de fazer repousar cada
14 - Caracterizou-se aqui o tipo de subdeterminação trazido à tona pela corrente pragmática como uma forma de metadependência contextual. Ver mais em: BIANCHI, C. La dipendenza contestuale: per una teoria pragmatica del significato. Napoli:
Edizioni Scientifiche Italiane, 2001, cap. XI.
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Significado como uso: uma interpretação
representação sobre um pano de fundo constituído por práticas, de usos, de hábitos, de
comportamentos, de natureza largamente não representacional – sobre uma forma de vida.15 Como escreve Wittgenstein (Idem: § 198):
O que tem a ver a expressão da regra – digamos, o indicador de direção – com minhas ações? [...] talvez esta: fui treinado para reagir de uma determinada maneira
a este signo e agora reajo assim. [...] alguém somente se orienta por um indicador
de direção na medida em que haja um uso constante, um hábito.16
Referências bibliográficas
AUSTIN, J. L. “The Meaning of a Word”. In: ________. Philosophical Papers. Oxford:
Clarenton Press, 1961a, p. 55-75.
_____________. “A Plea for Excuses”. In: _________. Philosophical Papers. Oxford:
Clarenton Press, 1961b, p. 175-204.
KAPLAN, D. “Demonstratives: An Essays on the Semantics, Logic, Metaphysics, and
Epistemology of Demonstratives and Other Indexicals”. In: ALMOG, J.; PERRY, J.; WETTSTEIN, H. (orgs.). Themes from Kaplan. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 481563.
KEENAN, E. Formal Semantics of Natural Language. Cambridge: Cambridge University
Press, 1975.
MARCONI, D. La competenza lessicale. Roma-Bari: Laterza, 1999.
SEARLE, J. Expression and Meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
WAISMANN, F. “Verifiability”. In: FLEW, A. (ed.). Essays on Logic and Language. Oxford:
Blackwell, 1951, p. 117-144.
WITTGENSTEIN, L. Ricerche filosofiche. Org. M. Trinchero. Torino: Einaudi, 1968.
15 - Searle fala a propósito de Background não intencional. Para mais informações, ver: SEARLE, J. Intentionality: An Essay on
the Philosophy of Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 174-175.
16 - Desejo agradecer a Carlo Penco, Nicla Vassallo e Carlo Augusto Viano pelas observações e críticas que conduziram a
presente versão.
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