Seleções Jurídicas - Eduardo Martins Consultoria Jurídica

Transcrição

Seleções Jurídicas - Eduardo Martins Consultoria Jurídica
FEVEREIRO/2009
EM FOCO
POLÊMICA
Arma de fogo desmuniciada
Seria objeto bastante para a
configuração dos ilícitos penais?
Direito à Saúde
Fornecimento gratuito de medicamentos
Parâmetros para a atuação judicial
Direito do Trabalho
Contrato de Estágio
Mecanismo de fraude à legislação trabalhista
Panorama
Opinião
Aborto, religião e fé
Destaques
Pedido de explicações
Medida contra parlamentar na condição de candidato
Embargos à execução fiscal
Reflexos da Lei 11.382/06 quanto ao efeito suspensivo
Horas in itinere
Tempo gasto entre o refeitório e o local de serviço
Programa de incentivo à aposentadoria
A quitação e os seus efeitos
Sumário
DOUTRINAS
– Arma de fogo desmuniciada – Roger Spode Brutti ......................
3
– Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,
fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial – Luís Roberto Barroso...........................................
– O contrato de estágio como mecanismo de fraude à legislação trabalhista – Eduardo Antônio Kremer Martins ...............................
7
20
PANORAMA
SELEÇÕES
JURÍDICAS
• Opinião
– Aborto, religião e fé – Atahualpa Fernandez ...............................
35
• Gestão de Carreira e Marketing Jurídico
– Relações Públicas na Advocacia – Ari Lima ................................
39
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
As opiniões emitidas em
artigos assinados são de inteira
responsabilidade dos seus autores.
Os acórdãos selecionados
correspondem, na íntegra, às cópias
fornecidas pelos Tribunais.
É proibida a reprodução parcial
ou total, sem autorização
dos editores.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
– Exercício ilegal da arte farmacêutica e de curandeirismo – Incom-
patibilidade entre os tipos penais ................................................
41
– Pedido de explicações contra parlamentar – Condição de candi-
dato.............................................................................................
43
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
– Educação – Creche da rede pública – Matrícula de menores de 0 a
6 anos .........................................................................................
49
– Embargos à execução fiscal – Efeito suspensivo – Reflexos da Lei
11.382/2006................................................................................
54
– Estatuto do Desarmamento – Regularização de posse de arma ads-
trito ao porte ilegal de arma de fogo ............................................
57
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
– Consignação em pagamento – Ajuizamento posterior de reclama-
tória trabalhista – Litigância de má-fé ..........................................
60
– Horas in itinere – Tempo gasto entre o refeitório e o local de ser-
viço .............................................................................................
REPOSITÓRIO AUTORIZADO
DE JURISPRUDÊNCIA
STF
Registro nº 39/2008
(DJE, 4-4-2008)
TST
Registro nº 32/2007
(DJ-U, 17-10-2007)
– Programa de incentivo à aposentadoria – Quitação – Efeitos .....
62
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TRIBUNAIS REGIONAIS DO TRABALHO
– TRT-3ª R. – Diferenças salariais – Acúmulo de funções ...............
– TRT-9ª R. – Aviso de demissão – Lavratura do termo por menor de
67
16 anos – Efeitos..........................................................................
68
69
– TRT-12ª R. – Unicidade contratual – Ônus da prova ...................
EDITORIAL
“A excelência moral se relaciona com as emoções e as
ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto
quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como
um acerto; ser louvado e estar certo são características
da excelência moral.”
CENTRO DE ORIENTAÇÃO, ATUALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
PRESIDENTE – José de Souza Filho
DIRETOR GERAL – Márcio William Faria de Souza
DIRETOR EDITORIAL E COMERCIAL:
Humberto Nunes Andrade Silva
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO:
Márcio William Faria de Souza
GERÊNCIAS NACIONAIS:
Crystiane C. de Souza – Heloísa Fátima Thomaz de Aquino
Jair Gomes – Luiz Roberto Costa
Sérgio Pínnola de Aguiar – Sidney Gaudie-Ley
Aristóteles, em “Ética a Nicômano”
GERÊNCIAS REGIONAIS:
ES – Sônia Xavier / MG – Jacir Dutra Junqueira
RJ – Sérgio Pínnola de Aguiar
RS – Teresinha Leal / SP – Ronoel Trevizolli Neves
Ética, virtude e justiça. Valores humanos
que congregam na busca do justo meio-termo.
P
ara o filósofo grego Aristóteles, o Bem Supremo só se
atinge com o equilíbrio, ou seja, o justo meio-termo.
Assim, o que está no meio, equidistante entre as vontades das
partes, é o “justo”.
Para a edição de fevereiro de Seleções Jurídicas, a Equipe
Técnica ADV traz como matéria de capa, na seção de
doutrina, o seguinte questionamento: a arma de fogo desmuniciada seria objeto bastante para a configuração dos ilícitos
penais? Diante de uma ação onde a vítima é surpreendida
pelo agente de posse de uma arma de fogo, não estaria o
potencial lesivo da arma em segundo plano? A tese é exposta
pelo nosso mais novo Colaborador, Dr. Roger Spode Brutti.
Ainda na seção de Doutrina, o ilustre constitucionalista Luis
Roberto Barroso, aborda os parâmetros para a atuação judicial quanto ao direito à saúde e o fornecimento gratuito de
medicamentos. Na seara trabalhista, o advogado Eduardo
Kremmer tece considerações sobre o contrato de estágio
como mecanismo de fraude.
No Panorama, outro tema que suscita calorosas discussões,
carecendo ainda de um meio-termo justo: aborto, religião e fé.
A opinião também marca a estreia do professor e Pós –Doutor
Atahualpa Fernandez como Colaborador ADV.
Na seção de Acórdãos na íntegra, abordamos, entre outros
temas relevantes ao Direito, a incompatibilidade entre os tipos
penais do exercício ilegal da arte farmacêutica e o curanderismo; pedido de explicações contra parlamentar na condição de candidato; o direito à educação e matrícula de menores de 0 a 6 anos em creches da rede pública; a configuração
das horas in itinere, pelo tempo gasto do empregado entre o
refeitório e o local de serviço; os efeitos legais da lavratura do
aviso de demissão por menor de 16 anos.
Paralelo aos temas abordados mensalmente em nossa revista,
atualize-se também pelo ADV Online: sua revista eletrônica
atualizada diariamente pela Equipe Técnica ADV!
Boa leitura e até a próxima edição.
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Crystiane C. de Souza
REDATOR RESPONSÁVEL INFORMATIVO ADV: Estevão da Silva Ribeiro
REDATOR RESPONSÁVEL JURISPRUDÊNCIA ADV: Zilton Moraes Di Pace
REDATORA RESPONSÁVEL SELEÇÕES JURÍDICAS ADV: Janaína Rosa Guimarães
CONSELHO EDITORIAL: André Luis Spies – Claudio Carneiro B. P. Coelho –
Cristiana de Santis de Farias Mello – Enio Santarelli Zuliani – Escritório Siqueira e
Castro – Hidemberg Alves da Frota – Ivan Lira de Carvalho – Joaquim Falcão – José
Carlos Teixeira Giorgis – José da Silva Pacheco – Luiz Cezar P. Quintans – Maria
Berenice Dias – Mario Oscar Oliveira & Advogados – Osnilda Pisa – Rénan Kfuri
Lopes – Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados
COLABORADORES: Adenisio Coelho Junior – Alexandre Gontijo – Alexandre
Mellão Hadad – Ana Carolina de Salles Freire Rutigliano – Celso Anicet Lisboa –
Christiane Pantoja – Christianne Bernardo – Claudia Brum Mothé – Cleide
Calgaro – Clóvis Brasil Pereira – Dayse Coelho de Almeida – Demócrito Reinaldo
Filho – Emanuelli Berrueta de Vasconcelos – Fabiano Jorge – Fábio Rosas – Felippe
Borring Rocha – Fernando Malheiros Filho – Francisco das C. Lima Filho – Helder
Martinez Dal Col – Hugo Filardi – Janaína Rosa Guimarães – João José Leal – Jorge
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Marcelo Di Rezende Bernardes – Marcelo Lessa Bastos – Marcus Vinicius
Fernandes Andrade Silva – Maria Aglaé Tedesco Vilardo – Mauro Gomes de Matos –
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Paula – Paulo Sergio Leite Fernandes – Rafael Ferraresi Holanda Cavalcante –
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Pereira – Vitor Vilela Guglinski – Walter Diab
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E-mail para remessa de artigos: [email protected]
Tiragem: 3.000 exemplares
Periodicidade: mensal
Circulação em âmbito Nacional
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SELEÇÕES JURÍDICAS
DOUTRINAS
DOUTRINAS
ARMA DE FOGO DESMUNICIADA
ROGER SPODE BRUTTI
Delegado de Polícia Civil no RS – Graduado em Direito pela Universidade de Cruz Alta/RS (UNICRUZ) –
Mestrando em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) –
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) –
Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA) –
Especializando em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de
Santa Maria (FADISMA) – Professor Designado de Processo Penal da Academia
de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS)
SUMÁRIO: Introdução; Aspectos teóricos e gerais acerca da
Lei nº 10.826/2003; e Conclusão.
Sua classificação: consubstancia-se, inarredavelmente, em crime
de mera conduta, de ação múltipla, comum e de perigo abstrato.
Introdução
Seu objeto material: verseja sobre arma de fogo, acessório ou
munição, de uso permitido.
No presente trabalho, enfaticamente, procurar-se-á defender o
posicionamento de que a arma de fogo desmuniciada, à luz da
legislação vigente, deve ser considerada objeto bastante, para a
configuração dos crimes elencados na Lei nº 10.826/2003, em
que pesem fortes correntes contrárias, tanto de natureza jurisprudencial como doutrinária.
Visar-se-á, mais do que defender, fazer com que todos lembrem
do essencial e célebre princípio outrora criado por Montesquieu,1 às vezes esquecido pelos juristas e doutrinadores pátrios.
Para Montesquieu, o Estado haveria de ser repartido, por assim
dizer, em três poderes, cada qual com uma função distinta. “Em
sua opinião, o normal seria a existência de um órgão próprio para
cada função, considerando indispensável que o Estado se organizasse com três poderes, pois “tudo estaria perdido, se o mesmo
homem ou mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou
mesmo do povo, exercesse a totalidade desses três poderes”.2
Aspectos teóricos e gerais acerca da Lei nº 10.826/20033
Os crimes de arma de fogo encontram-se elencados na Lei nº
10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que revogou a Lei
9.437/97. Os crimes estão previstos nos artigos 12 a 21 do referido diploma legislativo.
Para evitarmos a redundância, analisaremos, tão-somente, o
artigo 14 da Lei em evidência, que assim dispõe:
Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
Art. 14 – Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em
depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente,
emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido,
sem autorização e em desacordo com determinação legal
ou regulamentar:
Seu sujeito ativo: por configurar-se em crime comum, o sujeito
ativo pode ser qualquer pessoa.
Seu sujeito passivo: logicamente, trata-se da coletividade.
Seu elemento objetivo do tipo: diz respeito ao aspecto objetivo ou
exterior da ação, ou seja, versa sobre o comportamento proibido.
No artigo 14 temos, ainda, 13 verbos:4
1. Portar: ocorre, quando a arma é conduzida consigo;
2. Deter: ocorre, quando a arma é conservada em seu
poder;
3. Adquirir: percebe-se esta hipótese, quando o sujeito
obtém a arma por meio de compra;
4. Fornecer: é o abastecimento do comércio clandestino de
armas. É a venda, desde que de forma esporádica, já que se
no exercício de atividade comercial ou industrial, a tipificação será do artigo 17;
5. Receber: é a aceitação ou o acolhimento da arma de
fogo;
6. Ter em depósito: é a conservação da arma de fogo;
7. Transportar: é a condução da arma de fogo de um lugar
para outro;
8. Ceder, ainda que gratuitamente: é a transferência da
posse da arma para outra pessoa, ausente qualquer ônus
para esta;
9. Emprestar: é a confiança a alguém, de forma gratuita ou
não, do uso da arma, objeto este que será depois restituída
ao seu possuidor;
10. Remeter: é a expedição ou envio da arma de fogo;
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
11. Empregar: é a conduta em se fazer uso da arma;
Parágrafo único – O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em
nome do agente.
12/13. Manter sob guarda ou ocultar: é a conservação da
arma em local onde permaneça guardada, dissimulada ou
escondida.
Sua objetividade jurídica: manifestamente, diz respeito à incolumidade pública.
CONSUMAÇÃO: ocorre no momento em que o agente realiza
um dos verbos do tipo penal em estudo.
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SELEÇÕES JURÍDICAS
ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO: trata-se do dolo, o qual
consiste na vontade livre e consciente de o agente realizar as
condutas descritas no tipo, abarcando-se o conhecimento dos
elementos normativos que compõem o tipo.
ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO: está prevista na expressão
“sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou
regulamentar”. Dessa arte, o agente flagrado portando uma
arma de fogo com autorização expedida pela autoridade competente, em horário e local autorizados pela regulamentação,
não incide em ilicitude.
É cristalino, ainda, que o sujeito ativo, ainda que possua autorização para o porte de arma, não a poderá exibir ostensivamente
em local de aglomeração pública.
Com efeito, a ostensividade do material bélico, ainda que por
um agente de polícia, p. ex., em um local público e com ausência de uma situação de estrito cumprimento do dever legal,
enseja situação de visível perigo à coletividade, já que alguém
do povo, não o identificando de plano como policial, poderá
reagir e/ou criar pânico entre os presentes.
Por outro lado, preteritamente, uma questão que suscitava caloroso debate era aquela em torno do fato de estar municiada, ou
não, a arma de fogo. Discutia-se, pois, se referida conduta
subsumir-se-ia, ou não, em tipo penal.
Hodiernamente, pois, a questão já perdeu a sua razão de ser, em
decorrência da previsão específica contida nos artigos 12 e 14,
quando ali observamos as expressões “acessório ou munição”.
Com efeito, o fato de o agente trazer a arma desmuniciada e
desmontada já caracteriza, dessarte, a conduta incriminada.
De modo indubitável, a letra da Lei é clara e não abre margem a
qualquer suscitação de dúvida.
Se é incompreensível, dentro de uma sociedade democrática e
de direito, uma idéia de civilização sem juízes independentes,
que possam conter o uso da força contra o oprimido ou o abuso
do poder contra os mais fracos, também incompreensível é que
o Estado-juiz desconsidere a faculdade constitucional do Legislador, invadindo a sua seara de atribuições, considerando as
letras que desejar e desconsiderando aquelas que vão contra a
sua noção de “conveniência e oportunidade”.
Pois é aqui em que nos deparamos com o ponto fulcral da questão em tela: é constitucionalmente válido ao Judiciário transformar a leitura de um texto legal, fazendo emanar dele letras que
ali nunca foram inseridas por quem constitucionalmente de
direito, ou não visualizando em seu texto vocábulos nele tão
perfeitamente estampados, em perfeito e hialino vernáculo?
Tenho que a tarefa do magistrado é a de interpretar e aplicar a
legislação, dada pelo Poder Político Constituinte, sempre verificando antes a constitucionalidade do seu texto. Nesse sentido, o
artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Compl.
35, de 14-3-79 – LOM), diz que é dever do magistrado cumprir e
fazer cumprir, com serenidade e exatidão, as disposições legais.
O juiz constrói, pois, um sistema lógico cujo ponto de partida
são as leis feitas pelo Legislativo e nisso baseia a sua decisão.
Quero dizer: o juiz não pode legislar e deve se submeter às
proposições normativas vigentes.
DOUTRINAS
Não impor limites à chamada equidade, seria permitir a aniquilação plena das atribuições do Legislativo, Órgão este responsável
pela expressão da vontade popular, resumindo-o em um simples
formador de esboços de textos legais a serem “complementados”
ao bel-prazer dos Juristas que com eles venham a se deparar.
O juiz, aplicador do direito, com a sua competência e investido
no órgão Judiciário, tem seu poder de decisão de conflitos limitado pela dogmática jurídica, pois deve aceitar as normas jurídicas, sem as negar ou as contestar. Porém, como o direito só é
aplicado depois de interpretado, o juiz tem, por óbvio, certa
liberdade ao interpretar as normas. Não obstante, mesmo nesse
aspecto, a dogmática limita o poder do magistrado, já que, a
interpretação válida é aquela que segue, obviamente, os padrões dogmáticos. Podemos afirmar, ainda, que o juiz tem seu
poder um pouco mais “alargado” quando é autorizado a julgar
por equidade, embora essa possibilidade de poder torne-se
pequena quando comparada com o “poder de legislar”, este sim
próprio do Legislador.
No tocante à questão em pauta, sobre considerar-se crime, ou
mera infração administrativa, o portar arma de fogo desmuniciada, observamos uma tendência do Estado-juiz em não considerar a arma de fogo desmuniciada objeto bastante, para a configuração dos delitos capitulados na Lei nº 10.826/2003.
Com efeito, o nosso Pretório Excelso (STF, 1ª Turma, RHC 81057),
em tempo recente, suspendeu ação penal por porte ilegal de arma,
declarando atípica a conduta, contra decisão do Egrégio STJ.
O cerne do fundamento jurídico de tão estardalhaçante decisum resume-se no argumento de que, tratando-se de arma
desmuniciada, esta circunstância lhe retira a potencialidade
ofensiva, e, por conseqüência, a tipicidade da conduta, eis que
o bem jurídico protegido, a incolumidade física coletiva, somente pode ser ameaçada pela possibilidade de a arma produzir disparos (e não a sua mera capacidade).
Vemos, aqui, um violento choque de visões e, conseqüentemente, interesses, onde quem sai prejudicado, como de ordinário ocorre, é o cidadão de bem, aquele que paga os seus impostos e, do Estado, só implora mais segurança a si e à sua família.
Ora, o Legislador impregnou, na norma, com a mesma força e
com a mesma energia com que um fazendeiro marca, indelevelmente, o seu gado com o ferro em brasa, por meio da expressão
plural “acessório ou munição”, que o bem jurídico protegido
pela norma (incolumidade pública) não exige um perigo concreto, mas sim, patentemente, um perigo abstrato.
Não existe, pois, qualquer gris, tampouco adminículo, na letra
da Lei, o qual possa suscitar dúvidas a respeito disso.
E que prerrogativa constitucional, portanto, foi conferida ao
Estado-juiz, para desvirtuar, tão flagrantemente, a vontade do
Legislador?
Estaríamos em uma situação de paz absoluta em nosso país
onde a repreensão veemente ao comércio clandestino de instrumentos bélicos não passaria de um mero capricho, desnecessário e de uma mente exageradamente preocupada?
É claro que se o juiz aplicar estritamente o direito, que é extremamente formalista e segue rigorosamente a lei, pode, muitas
vezes, causar danos à justiça, ou mesmo agir com injustiça. Por
isso, é necessário abrandar o texto legal, através da equidade.
Por óbvio, p. ex., as ações de portar, deter, adquirir, fornecer,
receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou
ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido,
sem autorização e em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, fomenta, estampadamente, a criminalidade em
nosso meio social, esta já em índices elevadíssimos, como é de
todos cediço.
Todavia, essa eqüidade não pode ser utilizada como pressuposto de abuso.
Com o mesmo espírito, aliás, a Lei nº 6.368/76,5 em seu artigo
16, já reprimia a “posse” de substâncias entorpecentes. De fato,
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SELEÇÕES JURÍDICAS
se o delinqüente estivesse de posse de um simples cigarro de
maconha, não haveria em torno disso qualquer espaço, para
discussão sobre que perigo concreto referida conduta poderia
trazer a terceiros, muito menos se o autor poderia, ou não,
dispor de sua própria saúde. O que o Legislador visava com tal
repressão era, logicamente, impedir o fomento do tráfico.
Hoje, na mesma linha, atua o artigo 28 da Lei nº 11.343/2006,
apenas retirando-se do preceito secundário do tipo de posse de
entorpecentes a pena privativa de liberdade, remanescendo a
advertência sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços
à comunidade e a medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo.
Dizer-se, por conseguinte, que a mesma posse, só que de um
instrumento bélico, ainda que desmuniciado, sem autorização
e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, não
fomenta o índice de criminalidade em nossa sociedade é proferir-se, com as devidas desculpas, um tremendo disparate, algo
ilógico e não próprio de quem está comprometido com a
promoção de uma necessária contenção desta alarmante criminalidade que atordoa o nosso país.
Claro aos olhos deveria ser, a todos, que o que se busca na tipificação de delitos de perigo abstrato como os capitulados na Lei
nº 10.826/2003 “é a essencial manutenção da vigência da
norma” e, conseqüentemente, da ordem pública.
A tipificação dos crimes de perigo abstrato, efetivamente, representa uma preocupação de cunho prevencionista do direito
criminal da nossa sociedade contemporânea, a qual deseja antecipar a punição de certas condutas, com o fim de prevenir perturbações futuras e garantir a segurança, porquanto já fatigada está
com as lesões efetivas aos seus bens juridicamente tutelados.
In casu, nada mais lógico do que reprimir, no limiar, uma “ofensa”
aos nossos bens jurídicos, a qual, pela lógica, sem a devida repreensão do Estado, tornar-se-ia, futuramente, uma efetiva “lesão” a
esses nossos mesmos bens juridicamente tutelados.
Quantas vezes por semana são apresentados nas Delegacias de
Polícia de nosso País delinquentes contumazes, com antecedentes por delitos tais como roubo, os quais foram flagrados
portando arma de fogo sem munição em uma esquina escura das
nossas ruas, parados ali como se estivessem esperando um transeunte desavisado? Seria lógico o Delegado de Polícia não lavrar
prisão em flagrante, porquanto aquela arma de fogo desmuniciada não possuiria o condão de causar ofensa aos bens jurídicos
tutelados pelo Estado? Por acaso os sujeitos passivos de roubo
costumam interromper a ação dos delinqüentes, a fim de vistoriar
as suas armas, com o escopo de constatar se estão, ou não municiadas? Deixo aos leitores a reflexão sobre o tema.
Por outro lado, aproveito-me agora, para colacionar aos interessados um interessante julgado, onde o Estado-juiz, à época,
concluíra pela atipicidade da conduta do morador de área
bucólica possuidor de arma de fogo que não dispunha de munição ao seu alcance:
PROPRIEDADE RURAL – ARMA DE FOGO – ATIPICIDADE –
ABSOLVIÇÃO – EXCLUSÃO.
Lei das Armas. Espingarda de fabricação caseira desmuniciada. Residência em propriedade rural. Inexistência de
munição. Disponibilidade do uso não configurado. Atipicidade da conduta pela ausência de afetação ao bem jurídico
protegido pela norma incriminadora. O crime imputado ao
apelante tem por objetivo tutelar a incolumidade pública.
No caso dos autos, o bem jurídico protegido pela norma
penal não chegou a sofrer qualquer ofensa em decorrência
da ação do acusado, pois embora a perícia tenha constatado o funcionamento normal do mecanismo de disparo, a
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DOUTRINAS
arma, que é de fabricação caseira e estava em mau estado
de conservação, encontrava-se desmuniciada e sequer tinha
ele, em casa, a munição apropriada, o que afasta a disponibilidade para o seu imediato uso, elemento indispensável à
realização do tipo incriminador. A par disso, o apelante,
que é analfabeto, era colono do sítio pertencente ao seu
patrão Marcinho Japour, localizado na Fazenda dos Cafés,
indicativo de que se trata de propriedade rural, circunstância que autoriza concluir pela ausência de afetação ao
objeto da tutela penal. Recurso provido. (TJRJ, 3ª Câm.,
Apel. 2002.050.05437, Rel. Des. Valmir de Oliveira Silva,
unânime, julg. 18-3-2003, Reg. 9-6-2003).
No julgado em apreço, vê-se que há um fundamento aparentemente lógico e razoável, exigido pela Constituição Federal em
seu artigo 93, inciso IX, onde consta que todas as decisões judiciais serão fundamentadas, sob pena de nulidade.
Todavia, o leitor atento pode observar que o ponto que constitui
a essência do decisum é aquele em que o julgado cita como
elemento da tipicidade a indispensabilidade de que o armamento estivesse disponível para um alegado “uso imediato”.
Ora, se essa necessidade de disponibilidade para um chamado
“uso imediato” poderia suscitar alguma dúvida na vigência da
Lei nº 9.437/97, agora, com o advento do novo Estatuto legal de
22-12-2003, não cabem quaisquer incertezas a respeito do
perigo abstrato, causado pelo fomento à ilicitude, que a arma,
mesmo desmuniciada, ou qualquer peça sua, provoca em nosso
âmbito social. E esse fomento tornasse conseqüência lógica, em
um mundo de criminalidade já caótica como a que vivemos,
caso não haja a necessária e preventiva repreensão implacável
e de cunho penal do nosso Estado.
Não se deveria, como se fez no julgado supra, cogitar-se, como
flagrantemente se fez, sobre a teórica possibilidade daquele
pacato morador do campo utilizar o armamento bélico contra
um terceiro. O que deveria haver sido notado, mas não foi, é a
disponibilidade, que por meio da sua conduta perfez-se, de mais
um instrumento bélico posto em nosso meio social, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
E, para quem ainda não percebeu, segue um dizer de quem, na
condição de Delegado de Polícia, atuante na função repressiva
do Estado há mais de uma década, possui experiência prática,
para, categoricamente, afirmar: são extremamente comuns os
registros de ocorrências policiais, em nosso dia-a-dia, onde
pacatos cidadãos, tanto os moradores das nossas áreas campestres como aqueles residentes em nossas áreas urbanas, deixam
comunicado o fato de que as suas residências foram alvo de
furto ou de roubo, de onde acabaram sendo subtraídos, dentre
vários bens economicamente apreciáveis, justamente, armas de
fogos (quer com autorização e em acordo com determinação
legal ou regulamentar; quer sem autorização e em desacordo
com determinação legal ou regulamentar).
A pergunta, relativamente sarcástica, que resta, agora, é a
seguinte: para quem irá e para o que servirá a arma de fogo ilicitamente subtraída pelo marginal?
O número de armas de fogo que são subtraídas, no meio urbano
e no meio rural, pelos larápios contumazes, é uma verdadeira
absurdidade, fato que fomenta, desenfreadamente, a criminalidade já em níveis polpudos em nosso meio social.
Frente a esta problemática, a par das opiniões contrárias daqueles que não confiam o suficiente no Estado-polícia, optou o
Legislador em reprimir, com perceptível clareza, a manutenção,
pelo cidadão, em desacordo com a Lei ou determinação regulamentar, armamento bélico, estando ele municiado, ou não;
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SELEÇÕES JURÍDICAS
estando ele “inteiro”, ou não (lembre-se sempre da expressão
legal “acessório ou munição”).
E, por isso, não pode agora o jurista, às vezes descontente com a
postura do Legislador, Órgão este que, constitucionalmente,
detém a representação da vontade popular, considerar a letra da
Lei como “coisa não escrita”.
De acordo com a corrente que se está formando, chegar-se-ia ao
disparate de considerarmos, como mera transgressão administrativa, v.g., um carregamento clandestino de centenas ou milhares
de armas de fogo, sem qualquer munição próxima a elas.
Questão ferrenha que se mantém, de outra banda, é saber-se se
a conduta da pessoa em possuir uma arma de fogo desmuniciada aproximar-se-ia mais de uma transgressão de “natureza”
penal ou, então, tão-só, de uma transgressão de “natureza”
administrativa. Para os defensores do direito penal mínimo,
logicamente, afasta-se ela da natureza criminal, devendo ser
tratada administrativamente. Todavia, por força constitucional,
é o Legislador, com o mandato concedido pelo eleitor, quem,
legitimamente, decide a respeito. E assim ele o fez, com patente
clareza, ao editar a Lei nº 10.826/2003. Aliás, é-nos cediço que
não existe uma diferença de natureza ontológica entre ilícito
penal e ilícito civil, pois ambos ferem o nosso ordenamento jurídico. Assim, a única diferença entre o ilícito penal e o ilícito
civil é a diferença de cunho meramente formal, ou seja, aquela
estabelecida na Lei penal, pelo Legislador. Caso ali, na Lei
penal, não esteja tipificada determinada conduta, por certo,
pelo princípio da reserva legal, o ilícito é, tão-só, civil. Agora,
estabelecida, então, no ordenamento penal, com todas as letras
e com toda a clareza possíveis, e em acordo com os princípios
constitucionais e infraconstitucionais que nos regem, não estando, ainda, viciada por qualquer contradição ou ilogicidade
flagrante, a conduta haver-se-á de ser tida como um ilícito
penal, não sendo permitido, ao jurista cujo texto não lhe caiu no
seu agrado, promover qualquer inovação.
Por certo, às vezes, o Legislador, na ânsia de “legislar contra a
criminalidade”, em defesa do seu eleitorado, comete contradições flagrantes, o que deve, tão-só nessas hipóteses de natureza
irrefutável, permitir-se, por parte do Judiciário, vamos dizer, uma
lícita correção do dispositivo, tudo com base no bom senso e na
equidade. Exemplo dessa interferência lícita, poderíamos citar, é
o parágrafo único do artigo 14 da comentada Lei nº 10.826/2003,
onde se estabelece que a pessoa cuja conduta subsuma-se no
referido tipo, e cujo armamento bélico não esteja em seu nome,
terá a sua liberdade, forçosamente, cerceada, porquanto o delito
seria, assim sendo, inafiançável. No entanto, quer seja por haver
contradição expressa com o artigo 21 da mesma lex, onde se
estabelece que os crimes previstos nos artigos 16, 17 e 18 são
insuscetíveis de liberdade provisória, nada se referindo ao citado
parágrafo único do seu artigo 14; ou quer, ainda, pela ilogicidade
de um delito ser considerado inafiançável, se a sua pena máxima
prevista permite o regime inicial de cumprimento como sendo o
aberto, tem-se pacífico no nosso meio jurídico a desconsideração do referido texto como a única opção acertada.
Quiçá seja mesmo em decorrência de inúmeras ilogicidades
como a acima exposta, o Estado-juiz criou, ao longo do tempo,
corpo e coragem, para, ao seu bel-prazer, mesmo quando
nenhuma contradição legal reluza aos seus olhos, criar novas
normas, considerando ou não considerando, ainda que nos mais
hialinos textos legais possíveis, a vontade expressa do Legislador.
Conclusão
Por derradeiro, como, sabiamente, Lord Acton, em carta ao
Bispo M. Creighton, no ano de 1887, já declarara, “todo o poder
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DOUTRINAS
tende a corromper; e o poder absoluto corrompe absolutamente.” Esta afirmação, com efeito, já nos foi provada ao longo
da história da nossa humanidade.
O poder tende, insofismavelmente, a fascinar, deixando o desatento cego mesmo ao que está patente à sua frente.
E, literalmente, parece haver ocorrido isso na relação entre o
Judiciário e a letra cristalina da Lei nº 10.826/2003.
A vontade do Legislador, quando uníssona com os ditames
constitucionais, em prol manifesto dos interesses coletivos,
deve, sempre, ser tratada com o respeito a que faz jus. Assim,
outrora, Montesquieu, pela bem articulada teoria da Tripartição
dos Poderes, já nos deixou claro.
Permitir-se, portanto, que a posse, sem autorização e em desacordo com determinação legal, daquele instrumento criado,
precipuamente, para matar, seja, gritantemente de forma contrária à vontade do Legislador, tratada como mera infração de
cunho administrativo, é fomentar, por demais, a já estapafúrdia
criminalidade vigente, o que, por certo, não condiz com uma
atitude lógica de qualquer Órgão, incluindo-se dentre eles o
nosso ínclito e celebrado Poder Judiciário, cuja incumbência
SJ
essencial é a promoção do bem-estar social.
NOTAS
1.
O aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bredé e
Barão de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689 no
castelo de La Brède, e perto de Bordéus, na França, e faleceu
em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Político, filósofo e
escritor francês, filho de uma família nobre, ficou famoso pela
sua teoria da separação dos poderes, atualmente consagrada
em muitas das modernas constituições nacionais. Teve formação iluminista com padres oratorianos, de modo que cedo se
mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista
decadente, bem como do clero. Fez sólidos estudos humanísticos e jurídicos, mas também frequentou em Paris os círculos
da boêmia literária. Em 1714 entrou para o tribunal provincial
de Bordéus, que presidiu de 1716 a 1726. Fez longas viagens
pela Europa e, de 1729 a 1731, esteve na Inglaterra. Famoso
como escritor, Montesquieu passou a maior parte da vida em
Bordéus, mas sempre voltava a Paris, onde era muito requisitado. Escreveu várias obras, como Cartas persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua
decadência (1734) e do Espírito das leis (1748). Ganhou notoridade e exerceu notável influência. Contribuiu também para a
Enciclopédia e foi uma das maiores figuras do Iluminismo.
2.
Dalmo de Abreu Dallari. Elementos da Teoria Geral do Estado.
Editora Saraiva. p. 189.
3.
Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre
registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição,
sobre o Sistema Nacional de Armas (SINARM), define crimes e
dá outras providências.
4.
A respeito, vide: Pereira, Marcelo Matias. Dos crimes de arma
de fogo em espécie. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, nº 319, 22
maio 2004.
5.
Hoje substituída pela Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006
(Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas; estabelece normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá
outras providências.). A previsão legal sobre posse está contida
no artigo 28 desse novel texto legal, sendo ainda não totalmente assente o entendimento dos doutos nacionais sobre se é
devido considerar-se crime, ou não, a posse de substâncias
estupefacientes, já que o preceito secundário do tipo não
comporta, dentre as penas a privação da liberdade.
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SELEÇÕES JURÍDICAS
DOUTRINAS
DA FALTA DE EFETIVIDADE À JUDICIALIZAÇÃO
EXCESSIVA: DIREITO À SAÚDE, FORNECIMENTO GRATUITO
DE MEDICAMENTOS E PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO JUDICIAL
LUÍS ROBERTO BARROSO
Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) – Doutor livre-docente pela UERJ e mestre em
Direito pela Yale Law School – Procurador do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO: I – O fornecimento gratuito de medicamentos e a
judicialização excessiva
Introdução
APRESENTAÇÃO DO TEMA
I – O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização
excessiva
Parte I
ALGUMAS PREMISSAS DOUTRINÁRIAS
I – A doutrina da efetividade
II – A teoria dos princípios
III – Constitucionalismo, democracia e papel do Judiciário
IV – Conclusão acerca das premissas doutrinárias
Parte II
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL. CONSTITUIÇÃO,
LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E A
POLÍTICA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS
I – Breve notícia histórica
II – O sistema normativo a partir da Constituição de 1988
III – A questão específica da distribuição de medicamentos
Parte III
INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO EM RELAÇÃO
À SAÚDE E AO FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS. LIMITES LEGÍTIMOS E CRÍTICAS
I – O espaço inequívoco de atuação judicial
II – Críticas à judicialização excessiva
Parte IV
ALGUNS PARÂMETROS PARA RACIONALIZAR
E UNIFORMIZAR A ATUAÇÃO JUDICIAL NO
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
I – Em relação às ações individuais
II – Em relação às ações coletivas
III – Em relação à legitimação passiva
CONCLUSÃO
Introdução
APRESENTAÇÃO DO TEMA
I – O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização excessiva
1. Nos últimos anos, no Brasil, a Constituição conquistou,
verdadeiramente, força normativa e efetividade. A jurisprudência acerca do direito à saúde e ao fornecimento de medicamentos é um exemplo emblemático do que se vem de afirmar.
As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como
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integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a
desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os
direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica.
A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à
Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a
promessa constitucional de prestação universalizada do serviço
de saúde.
2. O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves
de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da
falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a
Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja
porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –,
bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há
um critério firme para a aferição de qual entidade estatal –
União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela
entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando
grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que
tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.
3. Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos
públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira
pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da
saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de
hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões
políticas pode levar à não realização prática da Constituição
Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade
da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.
4. O estudo que se segue procura desenvolver uma reflexão
teórica e prática acerca de um tema repleto de complexidades e
sutilezas. Seu maior propósito é contribuir para a racionalização do problema, com a elaboração de critérios e parâmetros
que justifiquem e legitimem a atuação judicial no campo particular das políticas de distribuição de medicamentos. O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar
direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua
atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode
ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover
os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da
7
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SELEÇÕES JURÍDICAS
mesma natureza de outros tantos. Na frase inspirada de Gilberto
Amado, “querer ser mais do que se é, é ser menos.”
5. Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia
supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma
colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o
direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os
princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade,
contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa
ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns
versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.
Parte I
ALGUMAS PREMISSAS DOUTRINÁRIAS
I – A doutrina da efetividade
6. O reconhecimento de força normativa às normas constitucionais foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um
movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade1. Tal movimento procurou não apenas
elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da
formação nacional, que se materializavam na insinceridade
normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas
constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão
máxima de sua densidade normativa.
7. Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não
é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar.
Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto
por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e
infraconstitucional devem prover meios para a tutela do direito
ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes
meios são a ação e a jurisdição: ocorrendo uma lesão, o titular
do direito ou alguém com legitimação ativa para protegê-lo
pode ir a juízo postular reparação. Existem mecanismos de
tutela individual e de tutela coletiva de direitos.
8. Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição
tenha criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais2
ou difusos – são eles, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como conseqüência, passa a ter
papel ativo e decisivo na concretização da Constituição. A doutrina da efetividade serviu-se, como se deduz explicitamente da
exposição até aqui desenvolvida, de uma metodologia positivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal
para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se
está na Constituição é para ser cumprido3. Nos dias que correm,
tornou-se necessária a sua convivência com novas formulações
doutrinárias, de base pós-positivista, que levam em conta fenômenos apreendidos mais recentemente, como a colisão entre
normas – especialmente as que abrigam princípios e direitos
fundamentais –, a necessidade da ponderação para resolver tais
situações, bem como conceitos como mínimo existencial e
fundamentalidade material dos direitos.
II – A teoria dos princípios
9. A teoria dos princípios, à qual se acha associada uma teoria
dos direitos fundamentais, desenvolveu-se a partir dos estudos
seminais de Ronald Dworkin, difundidos no Brasil ao final da
década de 80 e ao longo dos anos 90 do século passado4. Na
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DOUTRINAS
seqüência histórica, Robert Alexy ordenou a teoria dos princípios em categorias mais próximas da perspectiva romano-germânica do Direito5. As duas obras precursoras desses autores –
Levando os direitos a sério e Teoria dos direitos fundamentais –
deflagraram uma verdadeira explosão de estudos sobre o tema,
no Brasil e alhures6. São elementos essenciais do pensamento
jurídico contemporâneo a atribuição de normatividade aos
princípios e o reconhecimento da distinção qualitativa entre
regras e princípios. A doutrina costuma compilar uma enorme
variedade de critérios para estabelecer a diferença entre ambos7.
10. É quanto ao modo de aplicação que reside a principal distinção entre regra e princípio. Regras se aplicam na modalidade
tudo ou nada: ocorrendo o fato descrito em seu relato ela deverá
incidir, produzindo o efeito previsto8. Se não for aplicada à sua
hipótese de incidência, a norma estará sendo violada. Não há
maior margem para elaboração teórica ou valoração por parte
do intérprete, ao qual caberá aplicar a regra mediante subsunção: enquadra-se o fato na norma e deduz-se uma conclusão
objetiva. Por isso se diz que as regras são mandados ou comandos definitivos9: uma regra somente deixará de ser aplicada se
outra regra a excepcionar ou se for inválida. Como conseqüência, os direitos nela fundados também serão definitivos10.
11. Já os princípios abrigam um direito fundamental, um valor,
um fim. Ocorre que, em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas,
gerando tensões e eventuais colisões entre eles. Estes entrechoques podem ser de três tipos: a) colisão entre princípios constitucionais, como, e.g., a livre iniciativa versus a proteção do
consumidor, na hipótese de se pretender tabelar o preço de
determinado medicamento; b) colisão entre direitos fundamentais, como, e.g., o direito à vida e à saúde de uma pessoa versus
o direito à vida e à saúde de outra pessoa, na hipótese de ambos
necessitarem com urgência de transplante de determinado
órgão, quando só exista um disponível; c) colisão entre direitos
fundamentais e outros princípios constitucionais, como, e.g., o
direito à saúde versus a separação de Poderes, no caso de determinadas opções legais ou administrativas acerca de tratamentos
a serem oferecidos.
12. Como todas essas normas em rota de colisão têm a mesma
hierarquia, não podem elas ser aplicadas na modalidade tudo
ou nada, mas sim de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica. Cabe à autoridade competente –
que poderá ser o legislador ou o intérprete judicial – proceder à
ponderação dos princípios e fatos relevantes, e não a subsunção
do fato a uma regra determinada. Por isso se diz que princípios
são mandados de otimização: devem ser realizados na maior
intensidade possível, à vista dos demais elementos jurídicos e
fáticos presentes na hipótese11. Daí decorre que os direitos neles
fundados são direitos prima facie – isto é, poderão ser exercidos
em princípio e na medida do possível12.
13. Uma última observação: em muitas situações, o legislador
realiza ponderações em abstrato, definindo parâmetros que
devem ser seguidos nos casos de colisão. Quando isso ocorrer,
não deve o intérprete judicial sobrepor a sua própria valoração
à que foi feita pelo órgão de representação popular, a menos
que esteja convencido – e seja capaz de racionalmente demonstrar – que a norma em que se consubstanciou a ponderação não
é compatível com a Constituição13.
III – Constitucionalismo, democracia e papel do poder
judiciário
14. A idéia de Estado democrático de direito, consagrada no
artigo 1º da Constituição brasileira14, é a síntese histórica de dois
conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de
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SELEÇÕES JURÍDICAS
constitucionalismo e de democracia. Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei
(Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua
vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular
e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia
podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da
maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos
materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. A compreensão desse ponto é decisiva para o equacionamento adequado
da questão aqui tratada.
15. O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos15. Os direitos
fundamentais incluem: a) a liberdade, isto é, a autonomia da
vontade, o direito de cada um eleger seus projetos existenciais;
b) a igualdade, que é o direito de ser tratado com a mesma dignidade que todas as pessoas, sem discriminações arbitrárias e
exclusões evitáveis; c) o mínimo existencial, que corresponde
às condições elementares de educação, saúde e renda que
permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público. Os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – têm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o
núcleo essencial desses direitos.
16. O princípio democrático, por sua vez, se expressa na idéia
de soberania popular: todo poder emana do povo, na dicção
expressa do parágrafo único do artigo 1º da Constituição brasileira16. Como decorrência, o poder político deve caber às maiorias que se articulam a cada época. O sistema representativo
permite que, periodicamente, o povo se manifeste elegendo
seus representantes. O Chefe do Executivo e os membros do
Legislativo são escolhidos pelo voto popular e são o componente majoritário do sistema. Os membros do Poder Judiciário
são recrutados, como regra geral, por critérios técnicos e não
eletivos. A idéia de governo da maioria se realiza, sobretudo, na
atuação do Executivo e do Legislativo, aos quais compete a
elaboração de leis, a alocação de recursos e a formulação e
execução de políticas públicas, inclusive as de educação,
saúde, segurança etc.
17. Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos
direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e
governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria política
vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe ao
Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no
Estado constitucional democrático que se coloca a questão
essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas – isto é, o
Legislativo e o Executivo –, impondo ou invalidando ações
administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa
sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocamente, para
preservar um direito fundamental previsto na Constituição ou
para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer: para
que seja legítima, a atuação judicial não pode expressar um ato
de vontade própria do órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do legislador17.
IV – Conclusão das premissas doutrinárias
18. Sempre que a Constituição define um direito fundamental
ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial. Pode
ocorrer de um direito fundamental precisar ser ponderado com
outros direitos fundamentais ou princípios constitucionais, situação em que deverá ser aplicado na maior extensão possível,
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DOUTRINAS
levando-se em conta os limites fáticos e jurídicos, preservado o
seu núcleo essencial. O Judiciário deverá intervir sempre que
um direito fundamental – ou infraconstitucional – estiver sendo
descumprido, especialmente se vulnerado o mínimo existencial
de qualquer pessoa. Se o legislador tiver feito ponderações e
escolhas válidas, à luz das colisões de direitos e de princípios, o
Judiciário deverá ser deferente para com elas, em respeito ao
princípio democrático.
Parte II
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL. CONSTITUIÇÃO,
LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E A
POLÍTICA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS
I – Breve notícia histórica
19. A trajetória da saúde pública no Brasil inicia-se ainda no
século XIX18, com a vinda da Corte portuguesa. Nesse período,
eram realizadas apenas algumas ações de combate à lepra e à
peste, e algum controle sanitário, especialmente sobre os portos
e ruas. É somente entre 1870 e 1930 que o Estado passa a praticar algumas ações mais efetivas no campo da saúde, com a
adoção do modelo “campanhista”, caracterizado pelo uso corrente da autoridade e da força policial. Apesar dos abusos cometidos19, o modelo “campanhista” obteve importantes sucessos no controle de doenças epidêmicas, conseguindo, inclusive, erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro20.
20. Durante o período de predominância desse modelo, não
havia, contudo, ações públicas curativas, que ficavam reservadas aos serviços privados e à caridade. Somente a partir da
década de 30, há a estruturação básica do sistema público de
saúde, que passa a realizar também ações curativas. É criado o
Ministério da Educação e Saúde Pública21. Criam-se os Institutos de Previdência, os conhecidos IAPs, que ofereciam serviços
de saúde de caráter curativo. Alguns destes IAPs possuíam,
inclusive, hospitais próprios. Tais serviços, contudo, estavam
limitados à categoria profissional ligada ao respectivo Instituto22. A saúde pública não era universalizada em sua dimensão
curativa, restringindo-se a beneficiar os trabalhadores que contribuíam para os institutos de previdência.
21. Ao longo do regime militar, os antigos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foram unificados, com a criação do INPS
– Instituto Nacional de Previdência Social. Vinculados ao INPS,
foram criados o Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de
Urgência e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da
Previdência Social. Todo trabalhador urbano com carteira assinada era contribuinte e beneficiário do novo sistema, tendo
direito a atendimento na rede pública de saúde23. No entanto,
grande contingente da população brasileira, que não integrava
o mercado de trabalho formal, continuava excluído do direito à
saúde, ainda dependendo, como ocorria no século XIX, da caridade pública.
II – O sistema normativo a partir da constituição de 1988
22. Com a redemocratização, intensificou-se o debate nacional
sobre a universalização dos serviços públicos de saúde. O momento culminante do “movimento sanitarista” foi a Assembléia
Constituinte, em que se deu a criação do Sistema Único de
Saúde. A Constituição Federal estabelece, no artigo 196, que a
saúde é “direito de todos e dever do Estado”, além de instituir o
“acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”. A partir da Constituição
Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde não
mais estaria restrita aos trabalhadores inseridos no mercado
formal. Todos os brasileiros, independentemente de vínculo
empregatício, passaram a ser titulares do direito à saúde24.
9
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SELEÇÕES JURÍDICAS
23. Do ponto de vista federativo, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios (CF/88, artigo
24, XII, e 30, II). À União cabe o estabelecimento de normas
gerais (artigo 24, § 1º); aos Estados, suplementar a legislação
federal (artigo 24, § 2º); e aos Municípios, legislar sobre os
assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a
legislação federal e a estadual, no que couber (artigo 30, I e II)25.
No que tange ao aspecto administrativo (i.e., à possibilidade de
formular e executar políticas públicas de saúde), a Constituição
atribuiu competência comum à União, aos Estados e aos Municípios (artigo 23, II). Os três entes que compõem a federação
brasileira podem formular e executar políticas de saúde26.
24. Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se
que haja cooperação entre elas, tendo em vista o “equilíbrio do
desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (CF/88,
artigo 23, parágrafo único). A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja
a superposição entre a atuação dos entes federados, como se
todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as
questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na
prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos
federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas.
25. Logo após a entrada em vigor da Constituição Federal,
em setembro de 1990, foi aprovada a Lei Orgânica da Saúde
(Lei nº 8.080/90). A lei estabelece a estrutura e o modelo operacional do SUS, propondo a sua forma de organização e de funcionamento. O SUS é concebido como o conjunto de ações e
serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas
federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta. A iniciativa privada poderá participar do SUS em caráter
complementar. Entre as principais atribuições do SUS, está a
“formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a
participação na sua produção” (artigo 6º, VI).
26. A Lei nº 8.080/90, além de estruturar o SUS e de fixar suas
atribuições, estabelece os princípios pelos quais sua atuação
deve se orientar, dentre os quais vale destacar o da universalidade – por força do qual se garante a todas as pessoas o acesso
às ações e serviços de saúde disponíveis – e o da subsidiariedade e da municipalização27, que procura atribuir prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução das políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em
particular (artigo 7º, I e IX).
27. A Lei nº 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada
um dos entes federativos na matéria. À direção nacional do
SUS, atribuiu a competência de “prestar cooperação técnica e
financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para
o aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (artigo 16,
XIII), devendo “promover a descentralização para as Unidades
Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde,
respectivamente, de abrangência estadual e municipal” (artigo
16, XV). À direção estadual do SUS, a Lei nº 8.080/90, em seu
artigo 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, de
lhes prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, à direção municipal
do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e
executar os serviços públicos de saúde (artigo 18, I e III).
28. Como se observa, Estados e União Federal somente devem
executar diretamente políticas sanitárias de modo supletivo,
suprindo eventuais ausências dos Municípios. Trata-se de decorrência do princípio da descentralização administrativa. Como
antes ressaltado, a distribuição de competências promovida
pela Constituição e pela Lei nº 8.080/90 orienta-se pelas noções
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DOUTRINAS
de subsidiariedade e de municipalização28. A mesma lei disciplina ainda a participação dos três entes no financiamento do
sistema29. Os temas do financiamento e da articulação entre os
entes para a administração econômica do sistema, porém, não
serão objeto de exame neste estudo. Veja-se, portanto, que o
fato de um ente da Federação ser o responsável perante a população pelo fornecimento de determinado bem não significa que
lhe caiba custeá-lo sozinho ou isoladamente. Esta, porém, será
uma discussão diversa, a ser travada entre os entes da Federação, e não entre eles e os cidadãos.
III – A questão específica da distribuição de medicamentos
29. No que toca particularmente à distribuição de medicamentos, a competência de União, Estados e Municípios não está
explicitada nem na Constituição nem na Lei. A definição de
critérios para a repartição de competências é apenas esboçada
em inúmeros atos administrativos federais, estaduais e municipais, sendo o principal deles a Portaria nº 3.916/98, do Ministério da Saúde, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos30. De forma simplificada, os diferentes níveis federativos, em colaboração, elaboram listas de medicamentos que
serão adquiridos e fornecidos à população.
30. Com efeito, ao gestor federal caberá a formulação da Política Nacional de Medicamentos, o que envolve, além do auxílio
aos gestores estaduais e municipais, a elaboração da Relação
Nacional de Medicamento (RENAME). Ao Município, por seu
turno, cabe definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME31, e executar a assistência farmacêutica. O propósito prioritário da atuação municipal é assegurar o suprimento de medicamentos destinados à atenção básica
à saúde, além de outros medicamentos essenciais que estejam
definidos no Plano Municipal de Saúde. O Município do Rio de
Janeiro, por exemplo, estabeleceu, através da Resolução SMS
nº 1.048, de março de 2004, a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME)32, instrumento técnico-normativo
que reúne todo o elenco de medicamentos padronizados usados pela Secretaria Municipal de Saúde33.
31. A União em parceria com os Estados e o Distrito Federal
ocupa-se sobretudo da aquisição e distribuição dos medicamentos de caráter excepcional34, conforme disposto nas Portarias nº 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, e nº 1.321, de 5 de
junho de 200735. Assim, ao gestor estadual caberá definir o
elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente
pelo Estado, particularmente os de distribuição em caráter
excepcional. No caso específico do Estado do Rio de Janeiro, a
Secretaria de Estado de Saúde criou Comitê Técnico Operacional, com as funções de adquirir, armazenar e distribuir os medicamentos de competência estadual (Resolução SES nº 2.471, de
20 de julho de 2004)36. Além disso, criou também o Colegiado
Gestor da Política Estadual de Medicamentos e Assistência
Farmacêutica (Resolução SES nº 2.600, de 2 de dezembro de
2004)37, que tem a função de auxiliar a Secretaria de Estado na
gestão da Assistência Farmacêutica. Acrescenta-se ainda que o
Governo Estadual possui um programa de assistência farmacêutica denominado Farmácia Popular, que fornece remédios à
população a preços módicos38.
32. Como se pode perceber da narrativa empreendida, não seria
correto afirmar que os Poderes Legislativo e Executivo encontram-se inertes ou omissos – ao menos do ponto de vista normativo – no que toca à entrega de medicamentos para a população.
Ao contrário, as listas definidas por cada ente federativo veiculam as opções do Poder Público na matéria, tomadas – presume-se – considerando as possibilidades financeiras existentes.
Após as reflexões teóricas e a descrição do quadro normativo,
levadas a efeito nos capítulos anteriores, impõe-se agora a
análise crítica do papel desempenhado pela jurisprudência
10
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
para, na seqüência, procurar desenvolver alguns parâmetros
objetivos capazes de dar racionalidade e disciplina adequada à
questão.
Parte III
INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO EM RELAÇÃO
À SAÚDE E AO FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS. LIMITES LEGÍTIMOS E CRÍTICAS
I – O espaço inequívoco de atuação judicial
33. O papel do Poder Judiciário, em um Estado constitucional
democrático, é o de interpretar a Constituição e as leis, resguardando direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em muitas situações, caberá a juízes e tribunais o papel de
construção do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de princípios. Em inúmeros outros casos, será necessário efetuar a ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucionais que entram em rota de colisão, hipóteses
em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões
recíprocas entre normas ou fazer escolhas fundamentadas39.
34. Pois bem. O controle jurisdicional em matéria de entrega de
medicamentos deve ter por fundamento – como todo controle
jurisdicional – uma norma jurídica, fruto da deliberação democrática. Assim, se uma política pública, ou qualquer decisão
nessa matéria, é determinada de forma específica pela Constituição ou por leis válidas, a ação administrativa correspondente
poderá ser objeto de controle jurisdicional como parte do natural ofício do magistrado de aplicar a lei. Também será legítima a
utilização de fundamentos morais ou técnicos, quando seja
possível formular um juízo de certo/errado em face das decisões
dos poderes públicos. Não é dessas hipóteses que se está cuidando aqui.
35. O tema versado no presente estudo envolve princípios e
direitos fundamentais, como dignidade da pessoa humana, vida
e saúde. Disso resultam duas conseqüências relevantes. A primeira: como cláusulas gerais que são, comportam uma multiplicidade de sentidos possíveis e podem ser realizados por meio de
diferentes atos de concretização. Em segundo lugar, podem eles
entrar em rota de colisão entre si. A extração de deveres jurídicos a partir de normas dessa natureza e estrutura deve ter como
cenário principal as hipóteses de omissão dos Poderes Públicos
ou de ação que contravenha a Constituição. Ou, ainda, de não
atendimento do mínimo existencial.
36. Ressalvadas as hipóteses acima, a atividade judicial deve
guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas acerca
da matéria pelos órgãos institucionais competentes. Em suma:
onde não haja lei ou ação administrativa implementando a
Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes
e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente
aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da
autocontenção.
II – Críticas à judicialização excessiva
37. A normatividade e a efetividade das disposições constitucionais estabeleceram novos patamares para o constitucionalismo no Brasil e propiciaram uma virada jurisprudencial40 que
é celebrada como uma importante conquista. Em muitas situações envolvendo direitos sociais, direito à saúde e mesmo
fornecimento de medicamentos, o Judiciário poderá e deverá
intervir. Tal constatação, todavia, não torna tal intervenção
imune a objeções diversas, sobretudo quando excessivamente
invasiva da deliberação dos outros Poderes. De fato, existe um
02/2009
DOUTRINAS
conjunto variado de críticas ao ativismo judicial nessa matéria,
algumas delas dotadas de seriedade e consistência. Faz-se no
presente tópico um breve levantamento de algumas dessas críticas, sem a preocupação de endossá-las ou infirmá-las. O propósito aqui é oferecer uma visão plural do tema, antes da apresentação dos parâmetros propostos no capítulo seguinte.
38. A primeira e mais freqüente crítica oposta à jurisprudência brasileira se apóia na circunstância de a norma constitucional aplicável estar positivada na forma de norma programática41. O artigo 196 da Constituição Federal deixa claro que a
garantia do direito à saúde se dará por meio de políticas sociais
e econômicas, não através de decisões judiciais42. A possibilidade de o Poder Judiciário concretizar, independentemente de
mediação legislativa, o direito à saúde encontra forte obstáculo
no modo de positivação do artigo 196, que claramente defere a
tarefa aos órgãos executores de políticas públicas.
39. Uma outra vertente crítica enfatiza a impropriedade de se
conceber o problema como de mera interpretação de preceitos
da Constituição. Atribuir-se ou não ao Judiciário a prerrogativa
de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o
direito à saúde seria, antes, um problema de desenho institucional43. Há diversas possibilidades de desenho institucional nesse
domínio. Pode-se entender que a melhor forma de otimizar a
eficiência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência para tomar decisões nesse campo ao Poder Executivo,
que possui visão global tanto dos recursos disponíveis quanto
das necessidades a serem supridas. Esta teria sido a opção do
constituinte originário, ao determinar que o direito à saúde fosse
garantido através de políticas sociais e econômicas. As decisões
judiciais que determinam a entrega gratuita de medicamentos
pelo Poder Público levariam, portanto, à alteração do arranjo
institucional concebido pela Constituição de 1988.
40. Uma terceira impugnação à atuação judicial na matéria,
repetidamente formulada, diz respeito à intricada questão da
legitimidade democrática. Não são poucos os que sustentam a
impropriedade de se retirar dos poderes legitimados pelo voto
popular a prerrogativa de decidir de que modo os recursos
públicos devem ser gastos. Tais recursos são obtidos através da
cobrança de impostos. É o próprio povo – que paga os impostos
– quem deve decidir de que modo os recursos públicos devem
ser gastos44. E o povo pode, por exemplo, preferir priorizar
medidas preventivas de proteção da saúde, ou concentrar a
maior parte dos recursos públicos na educação das novas gerações. Essas decisões são razoáveis, e caberia ao povo tomá-las,
diretamente ou por meio de seus representantes eleitos45.
41. Talvez a crítica mais freqüente seja a financeira, formulada
sob a denominação de “reserva do possível”46. Os recursos
públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis.
Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar
de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em
regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos,
sejam individuais, sejam sociais47. Em diversos julgados mais
antigos, essa linha de argumentação predominava. Em 1994,
por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao negar a
concessão de medida cautelar a paciente portador de insuficiência renal, alegou o alto custo do medicamento, a impossibilidade de privilegiar um doente em detrimento de outros, bem
como a impropriedade de o Judiciário “imiscuir-se na política
de administração pública”48.
42. Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeção
de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos
provocam a desorganização da Administração Pública. São
comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no
âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes rece11
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
DOUTRINAS
bem atendimento médico, social e psicológico. Quando há
alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de
medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do
programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável49. Tais decisões privariam a Administração da
capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões
pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas,
globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais
no que toca à promoção da saúde pública.
referidas acima58. Veja-se que o artigo 196 da Constituição
Federal associa a garantia do direito à saúde a políticas sociais e
econômicas, até para que seja possível assegurar a universalidade das prestações e preservar a isonomia no atendimento aos
cidadãos, independentemente de seu acesso maior ou menor
ao Poder Judiciário. Presume-se que Legislativo e Executivo, ao
elaborarem as listas referidas, avaliaram, em primeiro lugar, as
necessidades prioritárias a serem supridas e os recursos disponíveis, a partir da visão global que detêm de tais fenômenos.
E, além disso, avaliaram também os aspectos técnico-médicos
envolvidos na eficácia e emprego dos medicamentos.
43. No contexto da análise econômica do direito, costuma-se
objetar que o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos
em outras políticas de saúde pública50, como é o caso, por
exemplo, das políticas de saneamento básico e de construção
de redes de água potável51. Em 2007, por exemplo, no Estado do
Rio de Janeiro, já foram gastos com os programas de Assistência
Farmacêutica R$ 240.621.568,00 – cifra bastante superior aos
R$ 102.960.276,00 que foram investidos em saneamento básico52. Tal opção não se justificaria, pois se sabe que esta política é significativamente mais efetiva que aquela no que toca à
promoção da saúde53. Na verdade, a jurisprudência brasileira
sobre concessão de medicamentos se apoiaria numa abordagem individualista dos problemas sociais, quando uma gestão
eficiente dos escassos recursos públicos deve ser concebida
como política social, sempre orientada pela avaliação de custos
e benefícios54.
47. Esse primeiro parâmetro decorre também de um argumento
democrático. Os recursos necessários ao custeio dos medicamentos (e de tudo o mais) são obtidos através da cobrança de
tributos. E é o próprio povo – que paga os tributos – quem deve
decidir preferencialmente, por meio de seus representantes
eleitos, de que modo os recursos públicos devem ser gastos e
que prioridades serão atendidas em cada momento. A verdade é
que os recursos públicos são insuficientes para atender a todas
as necessidades sociais, impondo ao Estado a necessidade
permanente de tomar decisões difíceis: investir recursos em
determinado setor sempre implica deixar de investi-los em
outros. A decisão judicial que determina a dispensação de
medicamento que não consta das listas em questão enfrenta
todo esse conjunto de argumentos jurídicos e práticos.
44. As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de
reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso
qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por
poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a
possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de
medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres.
Inclusive, a exclusão destes se aprofundaria pela circunstância
de o Governo transferir os recursos que lhes dispensaria, em
programas institucionalizados, para o cumprimento de decisões judiciais, proferidas, em sua grande maioria, em benefício
da classe média55.
45. Por fim, há ainda a crítica técnica, a qual se apóia na
percepção de que o Judiciário não domina o conhecimento
específico necessário para instituir políticas de saúde. O Poder
Judiciário não tem como avaliar se determinado medicamento é
efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida.
Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista
nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública56.
O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a
microjustiça, ao invés da macrojustiça, cujo gerenciamento é
mais afeto à Administração Pública57.
48. Foi nessa linha que entendeu a Ministra Ellen Gracie na
SS 3073/RN, considerando inadequado fornecer medicamento
que não constava da lista do Programa de Dispensação em
Caráter Excepcional do Ministério da Saúde. A Ministra enfatizou que o Governo Estadual (Rio Grande do Norte) não estava
se negando à prestação dos serviços de saúde e que decisões
casuísticas, ao desconsiderarem as políticas públicas definidas
pelo Poder Executivo, tendem a desorganizar a atuação administrativa, comprometendo ainda mais as já combalidas políticas de saúde59.
49. Essa mesma orientação predominou no Superior Tribunal
de Justiça, em ação na qual se requeria a distribuição de medicamentos fora da lista. Segundo o Ministro Nilson Naves,
havendo uma política nacional de distribuição gratuita, a decisão que obriga a fornecer qualquer espécie de substância fere a
independência entre os Poderes e não atende a critérios técnico-científicos60. A princípio, não poderia haver interferência
casuística do Judiciário na distribuição de medicamentos que
estejam fora da lista. Se os órgãos governamentais específicos já
estabeleceram determinadas políticas públicas e delimitaram,
com base em estudos técnicos, as substâncias próprias para
fornecimento gratuito, não seria razoável a ingerência recorrente do Judiciário.
II – Em relação às ações coletivas
Parâmetro: a alteração das listas pode ser objeto de discussão no
âmbito de ações coletivas
Parâmetro: no âmbito de ações individuais, a atuação jurisdicional deve ater-se a efetivar a dispensação dos medicamentos
constantes das listas elaboradas pelos entes federativos
50. Um dos fundamentos para o primeiro parâmetro proposto
acima, como referido, é a presunção – legítima, considerando a
separação de Poderes – de que os Poderes Públicos, ao elaborarem as listas de medicamentos a serem dispensados, fizeram
uma avaliação adequada das necessidades prioritárias, dos
recursos disponíveis e da eficácia dos medicamentos. Essa
presunção, por natural, não é absoluta ou inteiramente infensa a
revisão judicial. Embora não caiba ao Judiciário refazer as escolhas dos demais Poderes, cabe-lhe por certo coibir abusos.
46. O primeiro parâmetro que parece consistente elaborar é o
que circunscreve a atuação do Judiciário – no âmbito de ações
individuais – a efetivar a realização das opções já formuladas
pelos entes federativos e veiculadas nas listas de medicamentos
51. Assim, a impossibilidade de decisões judiciais que defiram a
litigantes individuais a concessão de medicamentos não constantes das listas não impede que as próprias listas sejam discutidas judicialmente. O Judiciário poderá vir a rever a lista elabo-
Parte IV
ALGUNS PARÂMETROS PARA RACIONALIZAR
E UNIFORMIZAR A ATUAÇÃO JUDICIAL NO
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
I – Em relação às ações individuais
02/2009
12
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
DOUTRINAS
rada por determinado ente federativo para, verificando grave
desvio na avaliação dos Poderes Públicos, determinar a inclusão de determinado medicamento. O que se propõe, entretanto,
é que essa revisão seja feita apenas no âmbito de ações coletivas
(para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja decisão
produz efeitos erga omnes no limite territorial da jurisdição de
seu prolator) ou mesmo por meio de ações abstratas de controle
de constitucionalidade, nas quais se venha a discutir a validade
de alocações orçamentárias61. As razões para esse parâmetro
são as seguintes.
gava o Estado a distribuir Interferon Perguilado ao invés do
Interferon Comum, este já fornecido gratuitamente. O Tribunal
entendeu que o novo medicamento, além de possuir custo
desproporcionalmente mais elevado que o comum, não possuía eficácia comprovada. Entendeu ainda que o Judiciário não
poderia se basear em opiniões médicas minoritárias ou em
casos isolados de eficácia do tratamento63. No mesmo sentido,
não se justifica decisão que determina a entrega de substâncias
como o composto vitamínico “cogumelo do sol”, que se insiram
em terapias alternativas de discutível eficácia64.
52. Em primeiro lugar, a discussão coletiva ou abstrata exigirá
naturalmente um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas (o que em regra não ocorre, até por sua inviabilidade, no contexto de ações individuais) e tornará mais provável
esse exame, já que os legitimados ativos (Ministério Público,
associações etc.) terão melhores condições de trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Será possível ter uma idéia mais
realista de quais as dimensões da necessidade (e.g., qual o custo
médio, por mês, do atendimento de todas as pessoas que se
qualificam como usuárias daquele medicamento) e qual a
quantidade de recursos disponível como um todo.
b) O Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no
Brasil.
53. Em segundo lugar, é comum a afirmação de que, preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia
denominar de microjustiça –, o juiz fatalmente ignora outras
necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar
recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas:
a macrojustiça62. Ora, na esfera coletiva ou abstrata examina-se
a alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter
geral, de modo que a discussão será prévia ao eventual embate
pontual entre micro e macrojustiças. Lembre-se ainda, como já
se referiu, que a própria Constituição estabelece percentuais
mínimos de recursos que devem ser investidos em determinadas áreas: é o que se passa com educação, saúde (CF/88, artigos
198, § 2º, e 212) e com a vinculação das receitas das contribuições sociais ao custeio da seguridade social. Nesse caso,
o controle em abstrato – da alocação orçamentária de tais recursos às finalidades impostas pela Constituição – torna-se substancialmente mais simples.
54. Em terceiro lugar, e como parece evidente, a decisão eventualmente tomada no âmbito de uma ação coletiva ou de
controle abstrato de constitucionalidade produzirá efeitos erga
omnes, nos termos definidos pela legislação, preservando a
igualdade e universalidade no atendimento da população. Ademais, nessa hipótese, a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a
atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal. Com efeito, uma decisão judicial única de caráter
geral permite que o Poder Público estruture seus serviços de
forma mais organizada e eficiente. Do ponto de vista da defesa
do Estado em ações judiciais, essa solução igualmente barateia
e racionaliza o uso dos recursos humanos e físicos da Procuradoria-Geral do Estado.
55. No contexto dessas demandas, em que se venha a discutir a
alteração das listas, é possível cogitar ainda de outros parâmetros complementares, capazes de orientar as decisões na matéria. Confiram-se.
a) O Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos.
56. Um dos aspectos elementares a serem considerados pelo
Judiciário ao discutir a alteração das listas elaboradas pelo
Poder Público envolve, por evidente, a comprovada eficácia
das substâncias. Nesse sentido, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça suspendeu liminar em ação civil pública que obri02/2009
57. A inclusão de um novo medicamento ou mesmo tratamento
médico nas listas a que se vinculam os Poderes Públicos deve
privilegiar, sempre que possível, medicamentos disponíveis no
mercado nacional e estabelecimentos situados no Brasil, dando
preferência àqueles conveniados ao SUS65. Trata-se de decorrência da necessidade de se harmonizar a garantia do direito à
saúde com o princípio constitucional do acesso universal e
igualitário. Nesse sentido, embora em demanda individual, o
Ministro Cezar Peluso, no RE 411.557/DF, admitiu a possibilidade do exame dos fatos e provas, de modo a verificar se seria
possível a substituição do tratamento no exterior por um similar
no país, o que apenas não ocorreu por se tratar de recurso extraordinário66.
c) O Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de
menor custo.
58. Pelas mesmas razões referidas acima, os medicamentos devem ser preferencialmente genéricos ou de menor custo. O medicamento genérico, nos termos da legislação em vigor (Lei nº
6.360/76, com a redação da Lei nº 9.787/99), é aquele similar
ao produto de referência ou inovador, com ele intercambiável,
geralmente produzido após a expiração da proteção patentária,
com comprovada eficácia, segurança e qualidade.
d) O Judiciário deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida.
59. A discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na
listagem que o Poder Público deverá oferecer à população deve
considerar, como um parâmetro importante, além dos já referidos, a relação mais ou menos direta do remédio com a manutenção da vida. Parece evidente que, em um contexto de recursos escassos, um medicamento vital à sobrevivência de determinados pacientes terá preferência sobre outro que apenas é
capaz de proporcionar melhor qualidade de vida, sem, entretanto, ser essencial para a sobrevida.
III – Em relação à legitimação passiva
Parâmetro: o ente federativo que deve figurar no pólo passivo de
ação judicial é aquele responsável pela lista da qual consta o
medicamento requerido
60. Como mencionado, apesar das listas formuladas por cada
ente da federação, o Judiciário vem entendendo possível responsabilizá-los solidariamente, considerando que se trata de
competência comum. Esse entendimento em nada contribui
para organizar o já complicado sistema de repartição de atribuições entre os entes federativos. Assim, tendo havido a decisão
política de determinado ente de incluir um medicamento em
sua lista, parece certo que o pólo passivo de uma eventual
demanda deve ser ocupado por esse ente. A lógica do parâmetro é bastante simples: através da elaboração de listas, os entes
da federação se autovinculam.
61. Nesse contexto, a demanda judicial em que se exige o fornecimento do medicamento não precisa adentrar o terreno árido
13
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
das decisões políticas sobre quais medicamentos devem ser
fornecidos, em função das circunstâncias orçamentárias de
cada ente político. Também não haverá necessidade de examinar o tema do financiamento integrado pelos diferentes níveis
federativos, discussão a ser travada entre União, Estados e
Municípios e não no âmbito de cada demanda entre cidadão e
Poder Público. Basta, para a definição do pólo passivo em tais
casos, a decisão política já tomada por cada ente, no sentido de
incluir o medicamento em lista.
3.
V. Luís Roberto Barroso, A doutrina brasileira da efetividade.
In: Temas de direito constitucional, v. 3, p. 76: “Para realizar
seus propósitos, o movimento pela efetividade promoveu,
com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na
prática do direito constitucional no país. No plano jurídico,
atribuiu normatividade plena à Constituição, que passou a ter
aplicabilidade direta e imediata, tornando-se fonte de direitos
e obrigações. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a
ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel
mais destacado na concretização dos valores e dos direitos
constitucionais. O discurso normativo, científico e judicialista
foi fruto de uma necessidade histórica. O positivismo constitucional, que deu impulso ao movimento, não importava em
reduzir o direito à norma, mas sim em elevá-lo a esta condição,
pois até então ele havia sido menos do que norma. A efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser
uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que
não se traduzia em proveito para a cidadania.”
4.
V. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997 (1ª edição:
1977), p. 22 e ss.
5.
V. Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, 1997,
p. 81 e ss.
6.
Vejam-se, exemplificativamente, J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003, p. 1253 e ss.;
Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 2004, p. 243
e ss.; Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição
de 1988 – Interpretação e crítica, 1996, p. 92 e ss.; Luís Roberto
Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2006; Ana
Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, 2002,
p. 40 e ss. e Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005, p. 166 e ss.; Rodolfo L. Vigo, Los princípios jurídicos – Perspectiva jurisprudencial, 2000, p. 9-20; Luis Prieto
Sanchis, Sobre princípios y normas. Problemas del razonamiento jurídico, 1992; Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação
constitucional, 1997, p. 79 e ss.; Humberto Ávila, Teoria dos
princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
2003; Ruy Samuel Espíndola, Conceito de princípios constitucionais, 1999; Fábio Corrêa de Souza Oliveira, Por uma teoria
dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade,
2003, p. 17 e ss.; Walter Claudius Rothenburg, Princípios
constitucionais, 1999; David Diniz Dantas, Interpretação constitucional no pós-positivismo, 2005, p. 41 e ss.
7.
Por simplificação, é possível reduzir estes critérios a apenas
três, que levam, em conta: a) o conteúdo da norma; b) a estrutura normativa; c) o modo de aplicação. Não será possível
avançar em relação aos dois primeiros, salvo para registrar que
princípios expressam valores, direitos fundamentais ou fins
públicos, ao passo que regras são normalmente comandos
objetivos, descritivos de condutas. Sobre a aproximação entre
direitos fundamentais e princípios, v. Roberto Alexy, Teoría de
los derechos fundamentales, 1997, p. 82.
8.
Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 24: “Regras
são aplicadas de modo tudo ou nada. Se os fatos que a regra
estipular ocorrerem, então ou a regra é válida, caso em que a
resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é, caso em que
não contribuirá em nada para a decisão” (tradução livre).
9.
Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997,
pp. 87 e 88: “[A]s regras são normas que só podem ser
cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve-se fazer
exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto,
as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e
juridicamente possível. Isso significa que a diferença entre
regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma é ou
bem uma regra ou um princípio. (...) Um conflito entre regras
só pode ser solucionado introduzindo uma cláusula de ex-
Conclusão
62. Diante do exposto, é possível compendiar nas proposições
seguintes as principais idéias no que diz respeito ao dever estatal de fornecer medicamentos à população:
A) As pessoas necessitadas podem postular judicialmente, em
ações individuais, os medicamentos constantes das listas elaboradas pelo Poder Público e, nesse caso, o réu na demanda
haverá de ser o ente federativo – União, Estado ou Município –
que haja incluído em sua lista o medicamento solicitado.
Trata-se aqui de efetivar uma decisão política específica do
Estado, a rigor já tornada jurídica.
B) No âmbito de ações coletivas e/ou de ações abstratas de
controle de constitucionalidade, será possível discutir a inclusão de novos medicamentos nas listas referidas. Tal inclusão,
contudo, deve ser excepcional, uma vez que as complexas
avaliações técnicas – de ordem médica, administrativa e orçamentária – competem primariamente aos Poderes Legislativo e
Executivo.
C) Nas discussões travadas em ações coletivas ou abstratas – para
a modificação das listas – o Judiciário só deve determinar que a
Administração forneça medicamentos de eficácia comprovada,
excluindo-se os experimentais e os alternativos. Ademais, o Judiciário deve, como regra, optar por substâncias disponíveis no
Brasil e por fornecedores situados no território nacional. Por fim,
dentre os medicamentos de eficácia comprovada, deve privileSJ
giar aqueles de menor custo, como os genéricos.
NOTAS
1.
2.
Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional
e a efetividade de suas normas, 2006 (a primeira versão do texto é de 1987). A expressão “doutrina brasileira da efetividade”
foi empregada por Cláudio Pereira de Souza Neto, Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In: Luís Roberto
Barroso (org.), A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.
Direitos sociais são comumente identificados como aqueles
que envolvem prestações positivas por parte do Estado, razão
pela qual demandariam investimento de recursos, nem sempre
disponíveis. Esses direitos, também referidos como prestacionais, se materializam com a entrega de determinadas utilidades concretas, como educação e saúde. É certo, todavia,
que já não prevalece hoje a idéia de que os direitos liberais –
como os políticos e os individuais – realizam-se por mera
abstenção do Estado, com um simples non facere. Pelo contrário, produziu-se já razoável consenso de que também eles
consomem recursos públicos. Por exemplo: a realização de
eleições e a organização da Justiça Eleitoral consomem gastos
vultosos, a exemplo da manutenção da polícia, do corpo de
bombeiros e do próprio Judiciário, instituições importantes na
proteção da propriedade. Sobre o tema, vejam-se: Stephen
Holmes e Cass Sunstein, The cost of rights, 1999; Flávio
Galdino, Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos
não nascem em árvores, 2005; e Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana, 2002.
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ceção que elimine o conflito ou declarando inválida, ao
menos, uma das regras” (tradução livre). Para uma visão crítica
sobre o ponto, v. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da
definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003.
10. Expondo a teoria dos princípios de Alexy, averbou Luís Virgílio
Afonso da Silva, O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais, mimeografado,
2005, p. 51: “O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos
que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se
direitos (ou impõem-se deveres) definitivos, ao passo que, no
caso dos princípios, são garantidos direitos (ou são impostos
deveres) prima facie.”
11. Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86:
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é
que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados
de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que
podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida
devida de seu cumprimento depende não apenas das possibilidades reais senão também das possibilidades jurídicas. O âmbito de possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios
e regras opostos” (tradução livre).
12. As categorias da teoria dos princípios, que envolvem direitos
prima facie e ponderação com outros direitos, princípios e
fatos relevantes, aplicam-se, também, aos direitos sociais, que
incluem o direito à saúde básica e, como decorrência, o direito
à obtenção de certas categorias de medicamentos. Também
aqui avulta a idéia de mínimo existencial para demarcar a
fundamentalidade material do direito e sua conseqüente exigibilidade. Para além desse núcleo essencial, os direitos sociais,
inclusive o direito à saúde, sujeitam-se à ponderação com
outros elementos fáticos e jurídicos, inclusive a reserva do
possível e as regras orçamentárias. Sobre a aplicação da teoria
dos princípios aos direitos sociais fundamentais, v. Robert
Alexy, Teoría de los derechos, 1997, p. 482 e ss.
13. Sobre o ponto, v. Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição, 2000, p. 114: “É evidente, porém, que
em uma democracia, a escolha dos valores e interesses prevalecentes em cada caso deve, a princípio, ser da responsabilidade de autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular. Por isso, o Judiciário tem, em linha geral, de acatar as
ponderações de interesses realizadas pelo legislador, só as
desconsiderando ou invalidando quando elas se revelarem
manifestamente desarrazoadas ou quando contrariarem a pauta axiológica subjacente ao texto constitucional.”
14. CF/88, artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...).”
15. Dela se podem extrair idéias importantes sobre as quais se
assenta o pensamento filosófico contemporâneo, como por
exemplo: a) toda pessoa humana é um fim em si mesma, não
devendo jamais ser transformada em um meio para a realização de metas coletivas (v. Immanuel Kant, Fundamentação à
metafísica dos costumes, 2005 (edição original de 1785));
b) toda vida desperdiçada, todo fracasso existencial é uma
perda para a humanidade como um todo. O Estado, o Direito e
a sociedade devem contribuir, na maior extensão possível,
para que cada indivíduo desenvolva suas potencialidades e
realize o seu projeto de vida (v. Ronald Dworkin, Is democracy
possible here?, 2006).
16. CF/88, artigo 1º, parágrafo único: “Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
17. A atuação judicial, em certos casos, poderá fundar-se em um
ato administrativo, como um regulamento ou portaria. Os atos
administrativos, todavia, para serem válidos precisam estar
fundados em norma constitucional ou legal. Assim, sua apli02/2009
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cação envolverá, ao menos indiretamente, a aplicação da
Constituição ou de uma lei.
18. No século XIX, foi criada a Sociedade de Medicina e Cirurgia
do Rio de Janeiro, principal responsável pela luta no sentido da
efetivação das políticas sanitárias. Nessa época, foram desenvolvidas ações de regulação do exercício da medicina, incluindo as atividades dos cirurgiões, e a criação das primeiras escolas de medicina: na Bahia é criada a Escola de Cirurgia, em
1808; e, no Rio de Janeiro, a cátedra de anatomia no Hospital
Militar, seguida pela de medicina operatória, em 1809.
19. Tanto assim que, em 1904, eclode, no governo de Rodrigues
Alves, a Revolta da Vacina, caracterizada pela insatisfação do
povo frente às medidas tomadas pelo poder público. No que
concerne à obrigatoriedade da vacinação antivaríola, o Governo estabeleceu multas aos refratários e a exigência do atestado de vacinação para matrículas nas escolas, empregos
públicos, casamentos, viagens, entre outros.
20. Nesse período, Oswaldo Cruz procurou organizar a diretoria geral de saúde pública. Foram incorporados como elementos das
ações de saúde: (i) o registro demográfico, possibilitando conhecer a composição e os fatos vitais da população; (II) a introdução do laboratório como auxiliar do diagnóstico etiológico;
e (III) a fabricação organizada de produtos profiláticos para uso
em massa.
21. O Ministério substituiu o antigo Departamento Nacional de Saúde Pública, que era vinculado ao Ministério da Justiça. Em 1953,
foi criado o Ministério da Saúde. Na verdade, tratou-se de
mero desmembramento do antigo Ministério da Saúde e Educação.
22. No período, também se destaca, em 1941, a reforma de Barros
Barreto, com a qual são instituídos órgãos normativos e supletivos destinados a orientar a assistência sanitária e hospitalar;
há a criação de órgãos executivos de ação direta contra as
endemias mais importantes (malária, febre amarela, peste); o
Instituto Oswaldo Cruz se constitui como referência nacional;
as atividades normativas e executivas descentralizam-se no
País por 8 regiões sanitárias; são desenvolvidos programas de
abastecimento de água e construção de redes de esgoto; são
criados serviços especializados nacionais para lidar com doenças degenerativas e mentais (Instituto Nacional do Câncer).
23. Assim concebido, o sistema possuía diversos problemas. Por ter
priorizado a medicina curativa, o modelo foi incapaz de solucionar os principais problemas de saúde coletiva, como as endemias, as epidemias, além de não ser capaz de melhorar significativamente os indicadores de saúde (mortalidade infantil,
expectativa de vida, por exemplo). Tais problemas foram
sendo agravados em decorrência de inúmeros fatores, como o
aumento constante dos custos da medicina curativa, centrada
na atenção médico-hospitalar de complexidade crescente; a
diminuição do crescimento econômico, com a respectiva
repercussão na arrecadação do sistema previdenciário; a incapacidade do sistema em atender a uma população cada vez
maior de marginalizados, que, sem carteira assinada e contribuição previdenciária, se viam excluídos do sistema; os desvios
de verba do sistema previdenciário para cobrir despesas de
outros setores e para a realização de obras por parte do governo federal; o não repasse pela União de recursos do Tesouro Nacional para o sistema previdenciário, cujo financiamento era tripartite (empregador, empregado e União).
24. O Sistema Único de Saúde é instituído no artigo 198 da Constituição: “as ações e serviços públicos de saúde integram uma
rede regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema
único”. Tal sistema deve ser “descentralizado” e deve prover
“atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. O texto
constitucional demonstra claro compromisso com o Estado de
bem-estar social, individualizando-se no cenário do constitucionalismo internacional por positivar o direito à saúde, bem
15
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SELEÇÕES JURÍDICAS
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como o sistema incumbido de sua garantia, em termos os mais
abrangentes.
dose a ser administrada; d) Facilidade de fracionamento ou
multiplicação das doses.
25. V. Sueli Gandolfi Dallari, Competência municipal em matéria
de saúde, Revista de direito público 92:173, 1989.
33. Ressalta-se ainda que a lista não fica estagnada. Para avaliar a
necessidade de atualização, com a inclusão e exclusão de
medicamentos, foi nomeada comissão. A Resolução SMS nº
1.139, de 4 de abril de 2005, constituiu o Grupo Técnico de
Estudos sobre Medicamentos, formado por profissionais da
Secretaria Municipal, envolvidos na gerência de diversas atividades relacionadas às ações e serviços de saúde. V. Resolução
SMS nº 1.139, de 4 de abril de 2005, artigo 3º: “o Grupo
Técnico de Estudos sobre Medicamentos terá as seguintes atribuições: a) Padronizar os medicamentos a serem utilizados na
rede assistencial própria da Secretaria Municipal de Saúde,
dentro dos critérios estabelecidos, que obedeçam aos parâmetros da economicidade, qualidade, segurança e eficácia; b) Avaliar os pedidos de inclusão e exclusão de medicamentos na REMUME-Rio; c) Convidar, quando couber, consultores ad hoc, sendo preferencialmente, especialistas ligados
aos Programas Nacionais ou Estaduais de Saúde e as comissões técnicas da SMS-Rio, professores de Universidades ou
profissionais de notório saber; d) Definir critérios que subsidiem a priorização dos medicamentos para elaboração de
protocolos de uso de medicamentos.”
26. No âmbito da União, a direção do SUS ficará a cargo do Ministério da Saúde; nos Estados e no Distrito Federal, das Secretarias de Saúde ou de órgãos equivalentes; na esfera dos Municípios, da Secretaria de Saúde local ou de qualquer entidade
correspondente (Lei nº 8.080/90, artigo 9º).
27. V. Marcos Maselli Gouvêa, O direito ao fornecimento estatal
de medicamentos. In: Emerson Garcia (coord.), A efetividade
dos direitos sociais, 2004, p. 213.
28. A Lei nº 8.080/90 se fez acompanhar de vasta regulamentação,
feita através de portarias editadas pelo Ministério da Saúde.
A Portaria 2.203/96 instituiu a Norma Operacional Básica do
SUS (NOB), que trata da edição de normas operacionais para o
funcionamento do sistema. As NOBs são, acima de tudo,
produto da necessidade de cooperação entre entes gestores,
de modo a viabilizar a descentralização do Sistema. Até o
momento foram publicadas quatro NOBs: 01/91, 01/92, 01/93
e 01/96.
29. Os recursos da Seguridade serão transferidos, primeiramente,
ao Fundo Nacional de Saúde e, depois, aos fundos de saúde
dos entes locais (Lei nº 8.080/90, artigos 34 e 35). Esses
recursos devem ser depositados nos fundos de saúde de cada
esfera de governo, e serão movimentados sob a fiscalização
dos respectivos conselhos de saúde.
30. V. Anexo da Portaria nº 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de
1998 (DOU 10 nov. 1998), item nº 5: “No que respeita às
funções do Estado, os gestores, em cumprimento aos princípios do SUS, atuarão no sentido de viabilizar o propósito desta
Política de Medicamentos, qual seja, o de garantir a necessária
segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais.” A Portaria nº 3.916/98 pode ser considerada a matriz de toda a estrutura de fornecimento de medicamentos, já que as outras portarias são baseadas em suas disposições. Sendo assim, a formulação da Política Nacional de
Medicamentos forjou o sistema hoje proposto para a distribuição dos medicamentos, cabendo às portarias seguintes apenas
delimitar os traços característicos.
31. Os medicamentos essenciais básicos compõem um elenco de 92
itens destinados à atenção básica. A OMS define medicamentos
essenciais como aqueles que satisfazem às necessidades de saúde prioritárias da população, os quais devem estar acessíveis em
todos os momentos, na dose apropriada, a todos os segmentos da
sociedade, além de serem selecionados segundo critérios de relevância em saúde pública, evidências de eficácia e segurança e
estudos comparativos de custo-efetividade. São os medicamentos mais simples, de menor custo, organizados em uma relação
nacional de medicamentos (RENAME).
32. A seleção de medicamentos que comporiam a REMUNE seguiu
os seguintes critérios: (I) Medicamentos de valor terapêutico
comprovado, com suficientes informações clínicas na espécie
humana e em condições controladas, sobre a atividade terapêutica e farmacológica; (II) Medicamentos que supram as
necessidades da maioria da população; (III) Medicamentos de
composição perfeitamente conhecida, com somente um princípio ativo, excluindo-se, sempre que possível, as associações;
(IV) Medicamentos pelo nome do princípio ativo, conforme
Denominação Comum Brasileira (DCB) e, na sua falta, conforme Denominação Comum Internacional (DCI); (V) Medicamentos que disponham de informações suficientes sobre a
segurança, eficácia, biodisponibilidade e características farmacocinéticas; (VI) Medicamentos de menor custo de aquisição, armazenamento, distribuição e controle, resguardada a
qualidade; (VII) Formas farmacêuticas, apresentações e dosagem, considerando: a) Comodidade para a administração
aos pacientes; b) Faixa etária; c) Facilidade para cálculo da
02/2009
34. Os medicamentos de “dispensação” em caráter excepcional
são aqueles destinados ao tratamento de patologias específicas, que atingem número limitado de pacientes, e que apresentam alto custo, seja em razão do seu valor unitário, seja em
virtude da utilização por período prolongado. Entre os usuários desses medicamentos estão os transplantados, os portadores de insuficiência renal crônica, de esclerose múltipla, de
hepatite viral crônica B e C, de epilepsia, de esquizofrenia
refratária e de doenças genéticas como fibrose cística e a
doença de Gaucher.
35. A Portaria nº 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, aprova o
Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional
e apresenta a lista de medicamentos sob a responsabilidade da
União. A lista completa contendo mais de 105 substâncias
ativas pode ser verificada no endereço: http:// dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-2577.htm. A Portaria nº 1.321, de 5 de junho de 2007, define os recursos a
serem repassados para os Estados e o Distrito Federal, a título
de co-financiamento, referentes à competência maio e junho
de 2007, para a aquisição e distribuição de Medicamentos de
Dispensação em Caráter Excepcional da Tabela SAI/SUS. Nesse
mesmo sentido decidiu a Comissão Intergestores Tripartite, no
dia 5 de outubro de 2005, em reunião em que foi pactuada a
repartição do financiamento dessa espécie de medicamento
entre União e Estados: “Na questão dos Medicamentos da
Dispensação Excepcional, o secretário de Ciência, Tecnologia
e Insumos Estratégicos, Dr. Moisés Goldbaum, falou do processo de trabalho na Câmara Técnica Tripartite e do acordo
que fecharam para o momento. Após várias considerações
CONASS e CONASEMS, onde foram solicitadas ao Ministério
as criações de um mecanismo para compensar os Estados com
saldos negativos no custeio de medicamentos excepcionais e
mecanismos para enfrentar as questões judiciais, a proposta foi
pactuada” (Resumo Executivo da Reunião Extraordinária de 5
de outubro de 2006 da Comissão Intergestores Tripartite.
Disponível em http://dtr2001.saude.gov.br/dad/. Acesso em
27-8-2007).
36. Considerando a necessidade de contínuo abastecimento de medicamentos dos programas de assistência farmacêutica e a necessidade de padronizar os procedimentos administrativos adotados por todos os setores da Secretaria de Saúde, a citada resolução constituiu Comitê com as seguintes atribuições: (I) elaborar os procedimentos operacionais padronizados, para cada
etapa do fluxo de aquisição, armazenamento e distribuição de
medicamentos; (II) analisar e avaliar os processos de aquisição
de medicamentos em tramitação; (III) elaborar cronograma de
entrega de medicamentos; (IV) elaborar cronograma de pagamento para os fornecedores de medicamentos; (V) elaborar
16
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SELEÇÕES JURÍDICAS
relatório de situação sobre abastecimento de medicamentos
no prazo de 7 (sete) dias; e (VI) apresentar relatório com as
medidas adotadas no prazo de 15 (quinze) dias.
37. O Colegiado possui como objetivo formular políticas para o
setor que envolvem um conjunto de iniciativas voltadas à
promoção, proteção e efetivação da saúde. Segundo o artigo
4º da Resolução, “os trabalhos do Colegiado gestor deverá
englobar como eixo estratégico das diretrizes estabelecidas no
item 5.3 da Portaria GM/MS nº 3.916/98 e em outros que
forem considerados importantes para a melhoria do sistema de
gestão, propondo, inclusive, medidas que julgar necessárias,
encaminhando-as ao Secretário de Estado de Saúde para deliberação”.
38. Dados obtidos através do endereço: http://www.ivb.rj.gov.br/principal.asp: “Todas as farmácias vendem 48 medicamentos e
mais as fraldas descartáveis (tamanhos M e G). Os medicamentos são produzidos pelo próprio IVB, Laboratório Farmacêutico da Marinha, IQUEGO (Indústria Química de Goiás),
Lafepe (Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco)
e FUNED (Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais). Tudo a
R$ 1. As fraldas são também para deficientes (de qualquer
idade). Os medicamentos estão entre os mais consumidos pela
terceira idade. São para hipertensão, cardiopatias, problemas
de nervos, depressão, glaucoma e osteoporose entre outras.
Para comprar na Farmácia Popular, é preciso ter 60 anos ou
mais, apresentar receita médica da rede pública e com o nome
genérico do medicamento e, ainda, morar nas regiões” (Acesso em 28 ago. 07).
39. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito constitucional brasileiro, Interesse Público 19:51, 2003.
40. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003, p. 26, faz referência à “viragem jurisprudencial”, observando: “As decisões dos tribunais constitucionais
passaram a considerar-se como um novo modo de praticar o
direito constitucional – daí o nome de moderno direito constitucional.”
41. Segundo José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas
constitucionais, 1999, pp. 83-4. ‘A saúde é (...) dever do
Estado...’, aí, não impõe propriamente uma obrigação jurídica,
mas traduz um princípio, segundo o qual a saúde e o desporto
para todos e cada um se incluem entre os fins estatais, e deve
ser atendido. Sente-se, por isso, que as prescrições têm eficácia
reduzida...” V. também: TJRJ, j. 17 dez. 1998, MS 220/98, Rel.
Des Antonio Lindberg Montenegro: “Mandado de Segurança.
Impetrantes portadores de insuficiência renal crônica. Fornecimento de remédio (CELLCEPT) pelo Estado. As normas programáticas estabelecidas na Constituição Federal não conferem ao cidadão o direito subjetivo de exigir do Estado o
fornecimento de remédios de alto custo, em detrimento de
outros doentes, igualmente carentes. Na consecução de sua
obrigação de saúde pública a administração há que atender
aos interesses mais imediatos da população. Impropriedade da
via mandamental para atendimento do direito reclamado.”
42. Segundo o artigo 196 da Constituição Federal, “a saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
43. Sobre a noção de desenho institucional, v. F. Schauer, Playing
by the Rules: a philosophical examination of rule-based decisionmaking in law and in life, 1998; Noel Struchiner, Para falar de
regras. O positivismo conceitual como cenário para uma
investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito.
Tese de doutorado apresentada à PUC-Rio, 2005.
44. O argumento é assim sintetizado por Ingo Wolfgang Sarlet,
Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efeti02/2009
DOUTRINAS
vidade do direito à saúde na Constituição de 1988, Interesse
Público 12:102, 2001: “A expressiva maioria dos argumentos
contrários ao reconhecimento de um direito subjetivo individual à saúde como prestação (assim como ocorre com os demais direitos sociais prestacionais, tais como educação, assistência social, moradia, etc.) prende-se ao fato de que se cuida
de direito que, por sua dimensão econômica, implica alocação de recursos materiais e humanos, encontrando-se, por
esta razão, na dependência da efetiva disponibilidade destes
recursos, estando, portanto, submetidos a uma reserva do
possível. Com base nesta premissa e considerando que se
cuida de recursos públicos, argumenta-se, ainda, que é apenas
o legislador democraticamente legitimado quem possui competência para decidir sobre a afetação destes recursos, falando-se, neste contexto, de um princípio da reserva parlamentar
em matéria orçamentária, diretamente deduzido do princípio
democrático e vinculado, por igual, ao princípio da separação
de poderes.”
45. V. José Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da
Constiuição, 2001, p. 946: “os juízes não se podem transformar em conformadores sociais, nem é possível, em termos
democráticos processuais, obrigar juridicamente os órgãos
políticos a cumprir determinado programa de ação.” No mesmo sentido, segundo Fabiano Holz Beserra, Comentário sobre
a decisão proferida no julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 45/DF, Revista de direito
social 18:110, 2005: “De outra parte, é discutível a legitimidade daqueles que não possuem delegação popular para fazer
opções de gastos. Quando há investimentos dispensáveis ou
suntuosos, não há maiores problemas. O mesmo não se diga,
porém, quando se está a optar por gastos sociais de igual status,
como educação e saúde. Além disso, o que definiria a prioridade de atendimento: a distribuição do processo? O melhor
advogado? A celeridade do juízo? São indagações que, sem
dúvida, tornam a questão complexa.”
46. Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial, os direitos sociais
e a reserva do possível. In: António José Avelãs Nunes e Jacinto
Nelson Miranda Coutinho (Org.), 2004, pp. 455-6: “A doutrina modificou-se radicalmente, abandonando o positivismo
sociológico e adotando a visão principiológica em que se
realçam: (...) d) o reconhecimento da prevalência do princípio
da reserva do possível (expressão cunhada pelo Tribunal
Constitucional da Alemanha – BverGE 33: 303-333 – largamente empregada em Portugal e no Brasil) ou da reserva orçamentária: ‘não são determinados previamente, mas sujeitos à
reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), no sentido de que
a sociedade deve fixar a razoabilidade da pretensão. Em primeira linha compete ao legislador julgar, pela sua própria
responsabilidade, sobre a importância das diversas pretensões
da comunidade, para incluí-las no Orçamento, resguardando
o equilíbrio financeiro geral.’ e) possibilidade de superação do
princípio da reserva do possível no caso de contradição incontornável com o princípio da dignidade humana, consubstanciado no direito a prestação estatal jusfundamental.”
47. Gustavo Amaral, Direito, escassez & escolha: Em busca de
critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as
decisões trágicas, pp. 71-3: “Todos os direitos têm custos
porque todos pressupõem o custeio de uma estrutura de fiscalização para implementá-los.”
48. TJRJ, j. 20 set. 1994, Apelação Cível 1994.001.01749, Rel.
Des. Carpena Amorim: “Medida cautelar inominada destinada
ao fornecimento de remédio de alto custo indispensável para a
sobrevivência de pessoa com deficiência renal. Dada a carência de recursos não pode o Estado privilegiar um doente em
detrimento de centenas de outros, também carentes, que se
conformam com as deficiências do aparelho estatal. Não pode
o Poder Judiciário, a pretexto de amparar a autora, imiscuir-se
na política de administração pública destinada ao atendimento da população. Manutenção da sentença. (DP) Vencido
o Des. Hudson Bastos Lourenco.”
17
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SELEÇÕES JURÍDICAS
49. Marcos Maselli Gouvêa, O direito ao fornecimento estatal de
medicamentos, Revista forense 37: 113, 2003, sintetiza a
crítica da seguinte forma: “Um viés da crítica que se traça ao
intervencionismo judiciário na área de fornecimento de remédios é, precisamente, o de que ele põe por água abaixo tais
esforços organizacionais. Autoridades e diretores de unidades
médicas afirmam que, constantemente, uma ordem judicial
impondo a entrega de remédio a um determinado postulante
acaba por deixar sem assistência farmacêutica outro doente,
que já se encontrava devidamente cadastrado junto ao centro
de referência.”
50. Como esclarece Marcos Maselli Gouvêa, O direito ao fornecimento estatal de medicamentos, Revista forense 37: 108,
2003. “Em tese, seria possível aventar uma infinidade de
medidas que contribuiriam para a melhoria das condições de
saúde da população, decorrendo daí a necessidade de se
precisar que meios de valorização da saúde poderiam ser
postulados judicialmente. Um grupo de cidadãos poderia
advogar que a ação do Estado, na área de saúde, fosse máxima,
fornecendo tudo o quanto, ainda remotamente, pudesse satisfazer tal interesse; outros poderiam enfatizar o cuidado com
práticas preventivas, concordando com o fornecimento, pelo
Estado, de vacinas de última geração, de eficácia ainda não
comprovada; um terceiro grupo poderia pretender que o
Estado desse impulso a uma política de saúde calcada na
medicina alternativa, ou ao subsídio aos planos privados de
saúde. Existe, enfim, um leque infinito de estratégias possíveis,
o que aparentemente tornaria inviável sindicarem-se prestações positivas, nesta seara, sem que o constituinte ou o legislador elegessem uma delas.”
51. Varun Gauri, Social Rights and Economics: Claims to Health
Care and Education in Developing Countries, World Development 32 (3): 465, 2004.
52. Dados disponíveis em: http://www.planejamento.rj.gov.br/OrcamentoRJ/2007_LOA.pdf. Acesso em 22-10- 2007.
53. Segundo Arthur Bragança de Vasconcellos Weintraub, Direito
à saúde no Brasil e princípios da seguridade social, Revista de
direito social 20:58, 2005: “O atendimento integral é fruto da
universalidade objetiva, sendo que a prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais, é
oriunda da razoabilidade. Como diria São Jerônimo, sancta
simplicitas: é melhor prevenir que remediar. E remediar faz
mais sentido quando se trata de saúde. Previnam-se as doenças, mantendo-se o atendimento para os já enfermos. Tal prevenção envolve um conceito amplo de saúde, associado com
o equilíbrio físico, o psicológico e o social. (...) Estas diretrizes
[as do artigo 200 da CF/88] confirmam o alcance de um
conceito amplo de saúde, associado com o equilíbrio físico, o
psicológico e o social. o meio ambiente do trabalho e a saúde
do trabalhador, v. g., são interesses difusos, pois causam impacto social. A vigilância sanitária e epidemiológica também é
prioridade. Temos visto recentemente o governo investir mais
em referendos do que no controle da febre aftosa ou da gripe
aviária. São questões intrínsecas à saúde, que deveriam ser
essência da atuação estatal.” V. também: Marcos Maselli
Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas,
2003, p. 19: “Certas prestações, uma vez determinadas pelo
Judiciário em favor do postulante que ajuizasse ação neste
sentido, poderiam canalizar tal aporte de recursos que se
tornaria impossível estendê-las a outras pessoas, com evidente
prejuízo ao princípio igualitário.”
54. Nesse sentido, v. TJRJ, j. 20 set. 1994, Apelação Cível
1994.001.01749, Rel Des. Carpena Amorim.
55. Como sustenta Lúcia Léa Guimarães Tavares, O fornecimento
de medicamentos pelo Estado, Revista de direito da Procuradoria-Geral 55:109-10, 2002: “Uma última questão restaria a
ser discutida, tendo em vista que as decisões judiciais não são
‘seletivas’ no que se refere à definição dos medicamentos que
devem ser fornecidos. É comum que alguns magistrados deter02/2009
DOUTRINAS
minem a entrega de remédios inexistentes no país, que devem
ser importados, às vezes muito dispendiosos. Em geral, não são
sensíveis aos argumentos de sua inexistência ou de seu alto
custo, firmes na posição de que recursos existem, mas são mal
aplicados pelo Poder Executivo. Não posso, nem quero, entrar
no mérito da questão do desperdício dos recursos públicos,
desperdício este que, lamentavelmente, não é privilégio do
Poder Executivo. Mas não há dúvida de que os recursos são
escassos e sua divisão e apropriação por alguns segmentos –
mais politizados e articulados – pode ser feita em detrimento
de outras áreas da saúde pública, politicamente menos organizadas e, por isto, com acesso mais difícil ao Poder Judiciário.”
56. É o que explica Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial
das omissões administrativas, 2003, pp. 22-3: “O princípio da
separação de poderes compreende, portanto, uma vertente
político-funcionalista que não se pode desprezar, sob pena de
restringir-se a soberania popular. Afora esta componente, a
separação de poderes traduz-se numa consideração técnico-operacional. O Legislativo e principalmente o Executivo
acham-se aparelhados de órgãos técnicos capazes de assessorá-los na solução de problemas mais complexos, em especial
daqueles campos que geram implicações macropolíticas, afetando diversos campos de atuação do poder público. O Poder
judiciário, por sua vez, não dispõe de iguais subsídios; a análise que faz do caso concreto tende a perder de vista possíveis
implicações fáticas e políticas da sentença, razão pela qual os
problemas de maior complexidade – incluindo a implementação de direitos prestacionais – devem ser reservados ao
administrador público. Aos empecilhos normativo-estruturais,
financeiros e políticos listados acima são somados os obstáculos processuais. Ao passo em que os direitos liberais há
séculos já se encontram consagrados nos ordenamentos e na
jurisprudência dos mais diversos países, apenas no século XX
passou-se a reservar maior atenção aos direitos prestacionais.
Existe uma notável discrepância entre a complexidade e a
eficiência dos remédios jurídicos destinados à salvaguarda dos
direitos liberais (habeas corpus, mandado de segurança) e a
completa ausência de instrumentos específicos de tutela dos
direitos prestacionais. Não existe ainda, com pertinência a
estas situações jurídicas, a vasta produção doutrinária e os
precedentes jurisprudenciais que amoldam, encorpam, os
direitos de primeira geração.”
57. Confira-se, a respeito, a explicação de Ana Paula de Barcellos,
Constitucionalização das políticas públicas em matéria de
direitos fundamentais: o controle político-social e o controle
jurídico no espaço democrático, Revista de direito do Estado
3:32, 2006: “Ainda que superadas as críticas anteriores, o fato
é que nem o jurista, e muito menos o juiz, dispõem de
elementos ou condições de avaliar, sobretudo em demandas
individuais, a realidade da ação estatal como um todo. Preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia
denominar de microjustiça –, o juiz fatalmente ignora outras
necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar
recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macrojustiça. Ou seja: ainda que fosse legítimo o
controle jurisdicional das políticas públicas, o jurista não
disporia do instrumental técnico ou de informação para levá-lo
a cabo sem desencadear amplas distorções no sistema de políticas públicas globalmente considerado.”
58. Parece impossível, por evidente, considerando a garantia constitucional de acesso ao Judiciário, impedir demandas individuais que visem ao fornecimento de medicamentos não incluídos em lista. Ao decidir tais demandas, porém, o magistrado
terá o ônus argumentativo de enfrentar os óbices expostos no
texto. O ideal, a rigor, seria o magistrado oficiar ao Ministério
Público para que avalie a conveniência do ajuizamento de
uma ação coletiva, ainda que, naquele caso específico, e em
caráter excepcional, decida deferir a entrega do medicamento
para evitar a morte iminente do autor. O tema será retomado
adiante ao longo do texto.
18
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
59. STF, DJU 14 fev. 2007, SS 3.073/RN, Relª Minª Ellen Gracie:
“Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem
pública, considerada em termos de ordem administrativa,
porquanto a execução de decisões como a ora impugnada
afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a
gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o
benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do artigo 196 da Constituição da
República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade
do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação
da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema
público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do
medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde
básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento
solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não
consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos
em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda,
que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas.
Constato, também, que o Estado do Rio Grande do Norte não
está se recusando a fornecer tratamento ao impetrante. É que,
conforme asseverou em suas razões, ‘o medicamento requerido é um plus ao tratamento que a parte impetrante já está
recebendo’ (fl. 14). Finalmente, no presente caso, poderá
haver o denominado “efeito multiplicador” (SS 1.836-AgR/RJ,
Rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, unânime, DJ 11-10-2001),
diante da existência de milhares de pessoas em situação potencialmente idêntica àquela do impetrante. 6. Ante o exposto,
defiro o pedido para suspender a execução da liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança nº 2006.006795-0
(fls. 31-35), em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Norte. Comunique-se, com urgência.”
DOUTRINAS
60. STJ, DJU 2 fev. 2004, STA 59/SC, Rel. Min. Nilson Naves.
61. Isso, é claro, dependeria de uma revisão mais abrangente da
tradicional jurisprudência do STF, restritiva ao controle em
abstrato das leis orçamentárias. Como exemplo dessa linha
interpretativa, v. STF, DJU 16 mar. 2007, ADI 3.652/RR, Rel.
Min. Sepúlveda Pertence: “Limites na elaboração das propostas orçamentárias (Artigo 41): inviabilidade do exame, no
controle abstrato, dado que é norma de efeito concreto,
carente da necessária generalidade e abstração, que se limita
a fixar os percentuais das propostas orçamentárias, relativos a
despesas de pessoal, para o ano de 2006, dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público: precedentes.”
62. Richard A. Posner, Economic analysis of law, 1992; Gustavo
Amaral, Direito, escassez & escolha – Em busca de critérios
jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões
trágicas, 2001; e Flávio Galdino, Introdução à teoria dos custos
dos direitos:direitos não nascem em árvores, 2005.
63. STJ, DJU 5 abr. 2004, AgRg-Pet 1.996/SP, Rel. Min. Nilson
Naves.
64. Como esclarece Ricardo Seibel de Freitas Lima, Direito à
saúde e critérios de aplicação, Direito Público 12:68-9, 2006:
“o Poder Judiciário não necessita ficar vinculado à observância de um protocolo clínico, mas é altamente recomendável que o magistrado, ao analisar a situação, confie nos
estudos técnicos elaborados de forma ética e científica por
profissionais de renome, o que evitará que o Estado seja a
compelido a custear medicamentos ou tratamentos baseados
em prescrições duvidosas, perigosas, não admitidas no País e
até mesmo, antiéticas, pois tendentes a beneficiar determinado fabricante em detrimento de outros.”
65. Ricardo Seibel de Freitas Lima, Direito à saúde e critérios de
aplicação, Direito público 12:66, 2006.
66. STF, DJU 26 out. 2004, RE 411557/DF, Rel. Min. Cezar Peluso.
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SELEÇÕES JURÍDICAS
DOUTRINAS
O CONTRATO DE ESTÁGIO COMO MECANISMO
DE FRAUDE À LEGISLAÇÃO TRABALHISTA
EDUARDO ANTÔNIO KREMER MARTINS
Advogado, Pós-graduando em Direito Processual Civil
SUMÁRIO: 2. Do direito do trabalho. 2.1. Definição. 2.2. Histórico do direito do trabalho. 2.3. Direito do trabalho no mundo.
2.4. História do direito do trabalho no Brasil. 3. O contrato de
trabalho. 3.1. Conceito. 3.2. Distinção entre contrato de trabalho e contrato civil. 3.3. O surgimento da relação de emprego.
3.4. Princípios e ditames morais pertinentes ao contrato de
trabalho. 3.4.1. O princípio da primazia da realidade. 3.4.2. A boafé no mundo do trabalho. 3.5. Dissolução do contrato de trabalho. 4. A descaracterização do contrato de estágio. 4.1. Definição de estágio. 4.2. O contrato de estágio. 4.2.1. Sujeitos do
contrato de estágio. 4.2.2. Requisitos para o estágio. 4.2.2.1. Requisitos formais. 4.2.2.2. Requisitos materiais. 4.2.3. Objetivos e
responsabilidades. 4.2.4. Estágio para alunos de educação
especial. 4.2.5. Função social do estágio. 4.3. Conseqüências
do mau uso do estagiário. 4.4. A caracterização do vínculo
empregatício. 5. Conclusão. 6. Anexos.
1. Introdução
O Direito do Trabalho nasceu do povo e para o povo. Embora
em algumas nações que se desenvolveram mais tarde – ou que
continuam em desenvolvimento nos dias atuais – o direito não
tenha emanado do povo, a essência do Direito do Trabalho é o
povo.
Foi para a proteção e garantia dos direitos dos operários e, sem
dúvida, para a própria noção de civilidade dos cidadãos que as
garantias trabalhistas surgiram.
No Brasil, o Direito do Trabalho surgiu da noção que o legislador teve de não deixar o operariado brasileiro desamparado
como os operários europeus, que precisaram ir às ruas para
garantir seus direitos. Embora algumas manifestações operárias
tenham eclodido no início do século passado, não serviram
para caracterizar uma legislação ascendente1 no Brasil.
A partir de muitas tentativas fracassadas de garantir o direito aos
trabalhadores, juntamente com uma enormidade de projetos de
lei e decretos, é que se chegou à nossa atual Consolidação das
Leis Trabalhistas, editada em 1943.
O presente trabalho, entretanto, trata de uma instituição que só
será amparada pelo Direito do Trabalho se sua prática não atender aos seus requisitos configuradores: a prática de estágio.
O Estágio é uma figura de Direito Civil que tem a finalidade de
propiciar o aperfeiçoamento do aprendizado adquirido em sala
de aula e inserir o estudante em situações reais no âmbito de sua
futura profissão.
Contudo, mais do que tratar do Estágio, este estudo versa sobre a
desconfiguração do Contrato de Estágio.
A partir do Estágio desconfigurado deve-se, sim, falar em Direito
do Trabalho, pois, embora em sua primária concepção e objetivo não se confunda com emprego, o estágio se enquadra numa
das situações que mais se assemelham a ele, por possuir os
cinco elementos caracterizadores do emprego: trabalho pres02/2009
tado por pessoa física, com pessoalidade, não-eventualidade,
onerosidade e subordinação. Todavia, a legislação não permite
sua tipificação.
Esta tênue linha, que separa o emprego formalizado do estágio
em sua plenitude, bem como o flagrante mau uso do estagiário,
foram as causas que motivaram a pesquisa em tela.
Imprescindível destacar também que o estudo não tem espírito
maniqueísta e não busca de forma alguma levantar apenas um
lado da questão. Ver-se-á nas próximas páginas o que se tem
decidido e entendido por todo o país no tocante à caracterização da relação de emprego tendo por trás um pseudocontrato
de estágio, não se olvidando de citar casos práticos, onde o
vínculo empregatício inexistente pleiteado tenha sido negado.
O propósito da perfeita realização do estágio é alcançar o seu
fim verdadeiro: oportunizar ao estudante a complementação
dos estudos teóricos e inseri-lo, em condições adequadas às
exigências atuais, no mercado de trabalho. Bem utilizado, o
estágio é um excelente instrumento de integração entre o estudante e a futura área de atuação, bem como a todo o meio social
em que está inserido.
É imperativo dizer que, obedecido o estabelecido na legislação
vigente, e respeitado o aluno-estagiário, o estágio formalmente
caracterizado, sem vícios, não configura vínculo trabalhista.
2. Do direito do trabalho
2.1. Definição
Conforme Maurício Godinho Delgado,2 definir um fenômeno
consiste em apreender e desvelar os elementos que o compõem
e o nexo lógico que os mantêm integrados. É a “declaração da
estrutura essencial de determinado fenômeno, com seus integrantes e o vínculo que os preserva unidos”.
Quando se busca uma definição, sobretudo no ramo do Direito,
há sempre posturas distintas levantadas pelos juristas. Por vezes
definem subjetivamente, por outras objetivamente. Há, evidentemente, concepções mistas de definição, que procuram combinar os dois enfoques.
Portanto, de forma sintética e imparcial, o Direito do Trabalho é
o ramo do Direito responsável por regular a relação laborativa
entre empregador e empregado e de ambos com o Estado, tendo
por finalidade a valorização do trabalho humano, e não simplesmente a proteção do hipossuficiente, buscando a paz social
e regulando as atividades, tanto realizadas pelo empregado
como as de responsabilidade do empregador.
2.2. Histórico do direito do trabalho
O trabalho acompanha a espécie humana desde os primeiros
tempos. Mesmo sem subordinação o homem sempre trabalhou.
Trabalhava para conseguir alimentos, para fabricar ferramentas
e utensílios, enfim, trabalhava para sobreviver.
20
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Na busca por mais territórios, por terras mais férteis e por melhores condições de vida, o homem peregrinava constantemente.
Nessas viagens, não raramente, se deparava com outros povos
em seu caminho, ocupando terras que o interessavam.
Desses encontros surgiam batalhas, onde os vencidos acabavam por serem escravizados, dando origem à primeira forma de
trabalho subordinado. Mais tarde, muitos escravos iam se tornando livres, em geral quando seus senhores morriam, declarando a liberdade para seus escravos prediletos. Ganhando a
liberdade, esses escravos eram obrigados a laborar em seu ramo
habitual ou ainda alugando-se a terceiros, entretanto com direito a receber pelos seus serviços. Daí surgiram os primeiros
trabalhadores assalariados.
Tempos depois, nas sociedades feudais, se instituiu a servidão.
Sem a condição jurídica de escravo, e também sem liberdade, o
indivíduo se obrigava a servir o senhor feudal, que detinha a
terra e os direitos sobre seus servos. Por não ser escravo, na literal definição do termo, o servo sofria as mais severas restrições,
sobretudo quanto ao deslocamento, geralmente nunca tendo
licença para se locomover para outras terras.
Entre a escravidão e a servidão são muitos os pontos em
comum, embora ainda assim, a servidão tenha sido menos
árdua. Com o advento das Cruzadas e com as epidemias no final
da Idade Média, a servidão começou a desaparecer, tanto pela
fuga dos servos quanto pela alforria.
Contemporâneas às sociedades feudais, as corporações foram
se instalando. Essencialmente formadas por servos foragidos,
que colonizavam as margens das cidades, esses grupos profissionais estabeleciam suas próprias leis e asseguravam direitos
para todos os coorporatizados. O homem, que até então trabalhava em prol do senhor feudal, passara a exercer sua atividade
de forma organizada, embora ainda sem inteira liberdade e sem
receber um tostão. Tinha, em compensação, direito a socorros
em casos de doença e outras benesses.
Viu-se, então, que as corporações não passavam de uma escravidão mais branda e que freqüentemente digladiavam-se umas
contra as outras, gerando rebeliões, o que levou à extinção das
mesmas por terem sido declaradas atentatórias aos direitos do
homem e do cidadão.
Mais recentemente, a invenção da máquina e sua conseqüente
aplicação à indústria resultou na Revolução Industrial, o que
modificou por completo a relação de trabalho entre empregador e empregado. Houver nessa época inúmeros movimentos
de protestos, com destruição de maquinário e rebeliões. Mas,
com o desenvolvimento do sistema de comércio ampliando o
mercado, aconteceu um maior número de admissões em razão
do aumento da necessidade de mão-de-obra, embora os salários ainda fossem baixos em razão da produção em série.
DOUTRINAS
rindo-lhe a liberdade. Porém, na verdade, ele não passava de
um mero meio de produção.
O crescimento das forças dos privilegiados oprimia cada vez
mais o operariado. Como o salário não tinha a barreira do
mínimo de hoje, que visa dar condições de sobrevivência para a
pessoa humana, os chefes de indústria reduziam os salários dos
operários até onde a concorrência permitia, fazendo com que a
desigualdade aumentasse mais e mais.
Desse cenário de exploração formaram-se duas classes de interesses opostos: os capitalistas e os proletários. Os capitalistas,
apesar de não formarem o Estado, detinham o capital e ditavam
as regras a serem seguidas pela classe trabalhadora. Os proletários eram submissos e ficavam sujeitos aos mandos e desmandos da classe opressora. Essas duas classes, conforme Segadas
Vianna,3 “viviam tão separadas, tão distantes, tão indiferentes,
como se habitassem países distintos ou se achassem divididas
por barreiras intransponíveis”.
Este contraste é perfeitamente explicitado por Oliveira Viana:4
“no seu supermundo, em monopólio absoluto, os ricos
avocavam para si todos os favores e todas as benesses da
civilização e da cultura: a opulência e as comodidades dos
palácios, a fatura transbordante das ucharias, as galas e os
encantos da sociabilidade e do mundanismo, as honrarias e
os ouropéis das magistraturas do Estado. Em suma: a saúde,
o repouso, a tranqüilidade, a paz, o triunfo, a segurança do
futuro para si e para os seus.”
“No seu inframundo repupulava a população operária: era
toda uma ralé fatigada, sórdida, andrajosa, esgotada pelo
trabalho e pela subalimentação; inteiramente afastada das
magistraturas do Estado; vivendo em mansardas escuras,
carecida dos recursos mais elementares de higiene individual e coletiva; oprimida pela deficiência dos salários;
angustiada pela instabilidade do emprego; atormentada
pela insegurança do futuro, próprio e da prole; estropiada
pelos acidentes sem reparação; abatida pela miséria sem
socorro; torturada na desesperança da invalidez e da
velhice sem pão, sem abrigo, sem amparo. Só a caridade
privada, o impulso generoso de algumas almas piedosas,
sensíveis a essa miséria imensa, ousava atravessar as fronteiras desse inframundo, os círculos tenebrosos deste novo
Inferno, para levar, aqui e ali, espaçada e desordenadamente, o lenitivo das esmolas, quero dizer: o socorro aleatório de uma assistência insuficiente. Os capitães de indústria, ocupados com a acumulação e a contagem de seus
milhões e o gozo dos benefícios de sua riqueza, não tinham
uma consciência muito clara do que significava a existência desse inframundo da miséria, que fica do outro lado da
vida, longe de suas vistas aristocráticas, e cujos gritos de
ódio, cujas apóstrofes indignadas, cujas reivindicações de
justiça eles não estavam em condições de ouvir e, menos
ainda, de entender e atender”.
Entretanto, isso tudo resume apenas as primeiras formas de
trabalho e não o Direito do Trabalho propriamente dito. Foi a
partir do final do século XVIII, com as revoluções política e
industrial, que se deu por necessária uma regulação quanto às
formas de lavoro.
Segundo Palácios,5 “a liberdade sem freios será a causa da
brutalidade e da usurpação se há desigualdade nas forças individuais”.
De certa forma, devemos ao Sistema Liberal o surgimento do
Direito do Trabalho. Foi com a bandeira da “Igualdade e Liberdade” que a sociedade tornou-se desigual e escravizada. O Estado abandonava o operário, largando-o à própria sorte e confe-
O Estado tinha a função de assegurar a ordem social e política.
No entanto, não passava de espectador, dando aos particulares
– leia-se os detentores do capital – ampla liberdade de ação
econômica. Foi-se instalando, com isso, uma verdadeira dita-
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21
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
dura capitalista da qual o direito não mais pôde atender aos seus
fenômenos econômicos e sociais. O legislador não tomava
providências para garantir a igualdade jurídica e o Estado garantia tão-somente o direito à propriedade, esquecendo-se que
além dos bens materiais, o cidadão-proletário6 necessitava da
proteção dos direitos morais e da dignidade humana, que em
razão da opressão econômica estava rebaixada.
Essa superproteção à individualidade fez com que os próprios
liberais se apercebessem de que o Estado estava fugindo de sua
missão ao não cuidar dos interesses da sociedade como um
todo. A sociedade sentia o declínio do sistema ao entender que
não bastava aglutinar todas as individualidades, mas sim, fazer
uma combinação a fim de que cada um tivesse sua atribuição e
finalidade.
Dessa percepção surgiram, em meados do século XIX, os primeiros estudos acerca do papel do homem na sociedade e as
discussões sobre o modelo ideal de Estado. Uns defendiam o
coletivismo, outros a presença de um Estado autoritário, e ao
mesmo tempo, alguns falavam em equilíbrio de classes. Adolfo
Wagner entendia que, antes de tudo, existe uma solidariedade
moral entre os indivíduos, muito mais profunda que a econômica.
O Estado deveria ter se tornado instrumento da justiça e intercedido como representante do interesse coletivo, a fim de manter
o equilíbrio entre os diversos fatores de produção e reprimir os
interesses individuais que passassem por cima dos interesses da
sociedade, reduzindo as desigualdades.
Passou-se a desconsiderar o homem isoladamente e a dar
ênfase ao homem na sociedade. O Estado começou a assegurar
o desenvolvimento da personalidade e as aptidões dos hipossuficientes, impedindo que os mais fortes se opusessem ao desenvolvimento deles.
Instituída essa doutrina mais intervencionista, a igualdade pura
foi substituída pela igualdade jurídica em nome da solidariedade.
2.3. Direito do trabalho no mundo
Impossível falar em Direito do Trabalho sem mencionar a obra
“Germinal”, de Emile Zola, que gerou o filme homônimo de
Claude Berri. A trama explora a questão da luta pelos direitos
trabalhistas a partir da ação dos carvoeiros franceses no século XIX.
DOUTRINAS
Sem sucesso nas tratativas por melhores condições de trabalho
e maiores salários, eclodiu a revolução, com greves e boicotes,
brigas e sangue e operários destruindo galpões e maquinários.
Num primeiro momento, mesmo que alguns patrões tenham
chegado a falir, essa rebelião não surtiu muitos efeitos. Os operários viram-se obrigados a voltar ao trabalho, porém desta vez
com as famílias enxugadas pelas mortes ocorridas durante a
revolução, mas com uma vitória: condições de trabalho mais
favoráveis.
A partir desse cenário, começaram a brotar os direitos trabalhistas. O cidadão ganhou o direito de não mais ser detido por
inadimplência, seu salário passou a ser impenhorável, as vítimas de acidentes passaram a ser indenizadas, o trabalhador era
protegido de exploração, os direitos de propriedade passaram a
ser limitados e os impostos relativos a heranças sofreram reajuste. Tudo para dar ampla oportunidade às classes baixas e
nivelar a disparidade social.
Na Inglaterra, foi reduzida a idade mínima para o exercício o
trabalho infantil de nove para oito anos de idade, estabelecendo-se meia jornada de trabalho. Foi criado o serviço de inspeção nas oficinas e instituídas medidas de segurança no trabalho.
Os governantes, em geral, passaram a se interessar mais pela
classe trabalhadora, sobretudo na virada do século XIX. A Encíclica Rerum Novarum, redigida pelo Papa Leão XIII, veio a ser
um marco na história do Direito do Trabalho, sugerindo que
ambas as classes (do capital e do trabalho) se unissem para
evitar “confusão e lutas selvagens”. As palavras do Pontífice
exerceram forte influência no mundo cristão e vieram a contribuir com o avanço no ramo trabalhista.
Segadas Viana7 narra magistralmente o que passou a ocorrer
quando os próprios detentores do capital entenderam que a
classe trabalhadora deveria ter direitos respeitados e ser protegida:
“Reconhecia-se que o dever da prestação do salário não se
podia resumir ao pagamento de algumas moedas que
apenas permitissem não morrer rapidamente de fome; que
o trabalho excessivo depauperava a saúde do operário e
que isso impediria a existência de um povo fisicamente
forte; compreendia-se que a velhice, a invalidez e a família
do trabalhador deviam ser amparadas, porque ele poderia
melhor empregar sua capacidade produtora tendo a
certeza de que, à hora amarga da decrepitude, do infortúnio ou da morte, velava por ele e pelos seus o Estado, através duma legislação protetora”.
A narrativa refere-se ao processo de maturação dos movimentos
operários e à adoção de uma postura mais rígida em relação à
exploração exercida pelos patrões. Os carvoeiros submetiam-se
às mais cruéis condições de trabalho, com jornadas de até 16
horas diárias, falta de equipamentos, constantes riscos de desmoronamentos e explosões. Além disso, recebiam um salário
baixíssimo, sujeito a multas e reduções arbitrárias e sem prévio
aviso. Não raramente, os chefes de família se viam obrigados a
colocar crianças e filhas mulheres para extrair carvão, a fim de
aumentar a renda familiar.
Com a Primeira Guerra Mundial, onde trabalhadores foram
levados às trincheiras, juntamente com soldados de outras
camadas sociais, se compreendeu que para lutar e morrer todos
os homens eram iguais e que deveriam, portanto, serem iguais
para o direito de viver. David Lloyd George,8 na Inglaterra,
chegou a confessar aos trabalhadores: “O Governo pode perder
a guerra sem o vosso auxílio, mas sem ele não a pode ganhar”.
A forma na qual a situação era conduzida, com famílias em
estado de miséria absoluta, sem comida para pôr na mesa,
doentes e fracas, em contraste com a vida luxuosa e a mesa farta
dos patrões, chegou a um estágio no qual a revolução se tornou
obrigatória.
Durante os cinco sangrentos anos que perdurou a guerra,
convenções foram surgindo por todo o globo, com o propósito
de dar mais proteção e garantias aos trabalhadores, fixando
regras de duração, higiene, segurança, seguro social e direito à
livre organização sindical.
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22
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Ao cabo dessa grande guerra, verificou-se que os trabalhadores
não apenas foram à linha de frente para lutar pelos interesses
dos detentores do capital, e sim, para preparar o campo para
uma nova era, onde os direitos trabalhistas seriam respeitados e
o trabalho seria colocado no mesmo plano do capital.
Com isso, deu-se início às primeiras formas de proteção ao
trabalhador e foi universalizado o Direito do Trabalho pela
Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919.
2.4. História do direito do trabalho no Brasil
Enquanto no México, na Inglaterra, na França e em quase todo o
mundo as legislações trabalhistas surgiram dos movimentos
ascendentes;9 no Brasil ocorreu o contrário: as atividades econômicas não exigiam grandes massas operárias, de modo que
não existiam grandes associações profissionais e, por isso, não
havia lutas e grandes protestos. Diante desse panorama, restou
ao Estado promulgar a legislação em benefício do indivíduo.
Na época do Império, não havia indústrias desenvolvidas, os
grupos sociais eram inorgânicos e as atividades agrícolas eram
realizadas por escravos, que não se sentiam possuidores de
qualquer direito. As pequenas rebeliões e fugas tinham a nobre
ambição da liberdade e nunca o anseio da igualdade jurídica.
A indiferença com a questão da escravidão era tamanha que a
abolição partiu unicamente de um ato de generosidade da Princesa Isabel. Nunca houve, no Brasil, qualquer pressão da
opinião pública.
Nos primeiros tempos da República, os debates sobre a questão
social também não surtiam grande interesse, pois as proporções
dos acontecimentos eram tão pequenas que não se podia falar
em “problema social”.
Quando a indústria começou a se desenvolver é que passou a se
sentir o desajuste entre as condições normais de vida do trabalhador e aquelas a que ele deveria ter direito. Entretanto, ainda
não haviam se formado as concentrações de operários e as
esparsas manifestações que se verificavam no país eram atribuídas a anarquistas – não a trabalhadores descontentes.
As primeiras leis de cunho trabalhista na história do Brasil são
referentes ao trabalho agrícola, como os projetos de Costa
Machado, de 1893 os de Prudente José de Moraes e Barros,10 de
1895 e 1899. Um outro projeto, ainda de Prudente de Moraes,
que estabelecia indenização em caso de demissão injusta, foi
vetado pelo Presidente em exercício Manoel Vitorino Pereira.
Ao decorrer da história da República e, sobretudo no início do
século XX, muitos outros atos, decretos e leis em benefício do
trabalhador foram surgindo. Na verdade, muitos deles tiveram
fim essencialmente eleitoreiros, como bem refere Oliveira Viana:11
“(...) os nossos parlamentares também procuram, principalmente nos fins da legislatura e por ocasião da renovação
dos mandatos, dar mostras ao eleitorado que fizeram
alguma coisa no interesse do povo – e nesse sentido é
grande, às vezes, a atividade legislativa que desdobram”.
Muitos projetos foram sendo apresentados, no entanto a maioria não passou disso. Um em especial merece destaque pela
total discrepância do proposto. Trata-se do projeto de Graccho
Cardoso, de 1908, que pretendia regular a indenização por
acidentes de trabalho na indústria. Em seu texto, as empresas
com menos de cinco empregados seriam excluídas, e o mais
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DOUTRINAS
incrível é que quando ocorressem catástrofes vitimando mais de
três empregados, o empregador se desobrigava de os indenizar.
Entretanto, foi só a partir de 1911, com o Projeto de Nicanor do
Nascimento, que se esboçou o princípio da inferioridade econômica do trabalhador, tentando conferir-lhe uma maior proteção. No texto, os cidadãos empregados em casas de comércio
tinham uma jornada diária de 12 horas, além do que, uma vez
por semana, o patrão poderia tomar mais três horas do empregado exclusivamente para a limpeza do estabelecimento, desde
que não fosse aos sábados e também proibia o trabalho aos
domingos e feriados.
O projeto também previa a impossibilidade de se dispensar, por
parte do empregado, o repouso semanal, o que veio mais tarde a
efetivar o princípio da irrenunciabilidade, que impede o trabalhador de renunciar aos direitos a ele conferidos. Outras mudanças trazia o projeto, como a proibição do trabalho aos
menores de dez anos e a permissão aos que tivessem entre dez e
quinze anos, desde que alfabetizados. Impedia o trabalho
noturno para menores de 18 anos, com exceção dos artistas,
desde que tivessem o consentimento de seus responsáveis.
Por fim, o projeto estabelecia que o ambiente de trabalho deveria prezar pela higiene e obrigava o empregador a indenizar os
empregados acidentados. Também obrigava as casas comerciais que tivessem mais de trinta menores analfabetos empregados a manter escolas a fim de alfabetizá-los.
Apesar de ser o precursor de muitos dos princípios e normas
hoje implantados em nossa Consolidação das Leis Trabalhistas,
esse projeto nunca foi apreciado. O mesmo fim teve o projeto
de Figueiredo Rocha, de 1912, que fixava a duração do trabalho
em oito horas diárias, proibia serões industriais e estabelecia
que o operário que contasse com mais de cinco anos de serviço
continuaria a perceber dois terços de sua diária, quando inutilizado, trabalhando para o empregador.
Três anos mais tarde surgiu o primeiro projeto de um Código de
Trabalho no Brasil. Maximiliano Figueiredo utilizou-se de outros
projetos que não haviam vingado, compendiando-os e formando um texto com mais garantias e mais condizente com as
questões sociais da época. Definia o contrato de trabalho como
“convênio pelo qual uma pessoa se obriga a trabalhar sob a
autoridade, direção e vigilância de um chefe de empresa ou
patrão, mediante uma remuneração, diária, semanal ou quinzenal, paga por este, calculada em proporção ao tempo empregado, à quantidade, qualidade e valor da obra ou serviço, ou
sob quaisquer outras bases não proibidas por lei”.
Aos menores de idade, entre os dez e quinze anos, era reconhecido o direito de trabalhar, desde que o serviço não prejudicasse
a saúde e o rendimento escolar. A duração da jornada do menor
era reduzida e, no contrato firmado entre patrão e empregado
(que era obrigatório, nesse caso), deveria constar o tempo de
vigência – nunca superior a 4 anos – a designação do serviço, o
salário, o tempo, a forma de pagamento e o lugar onde seria
exercida a atividade laboral, nunca podendo exceder a quatro
quilômetros de distância da residência do menor.
Já se vislumbrava nesse projeto a obrigatoriedade do aviso
prévio (de oito dias) e o ressarcimento, quando da rescisão do
contrato sem justa causa. Previa o licenciamento remunerado
da mulher grávida e fixava os deveres do empregado e do
empregador.
23
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Também não aprovado, em 1917, Maurício de Lacerda apresentou um conjunto de projetos, que regulava a duração da
jornada de trabalho, criava o Departamento Nacional do Trabalho e instituía Comissões de Conciliação e Conselhos de Arbitragem Obrigatória. Ainda autorizava a greve, regulava a aprendizagem industrial, obrigava a criação de creches em estabelecimentos que empregassem mais de 10 mulheres e, quanto aos
menores de idade empregados, concedia o repouso semanal de
36 horas.
Só em 1919 é que, finalmente, foi aprovado um projeto sobre
acidentes do trabalho, redigido pelo senador Adolfo Gordo, e
que durou até 1934, quando outro Decreto o substituiu.
Com a Primeira Guerra Mundial, houve anos de inatividade
legislativa. Ao final dela, algumas leis voltadas ao trabalhador
foram editadas, como a de Eloy Chaves, que instituía caixas de
aposentadoria e pensões para os ferroviários, bem como a que
concedia o direito a férias remuneradas, outra sobre a locação
de serviços teatrais, bem como a que legislava sobre o trabalho
de menores. Em 1923, foi criado o Conselho Nacional do
Trabalho. Em 1926, a partir da reforma na Constituição, atribuiu-se ao Congresso Nacional a competência privativa de
legislar sobre o trabalho.
Como bem afirmou Cesarino Júnior,12 “A Legislação Social do
Brasil começou, decididamente, após a Revolução de 1930.
O Governo Provisório, que foi constituído sob a chefia do então
Presidente da República, Getúlio Vargas, criou o Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, que principiou realmente a
elaboração das nossas leis sociais”.
Mais uma vez no Brasil, como já referiu Oliveira Viana, foi o fim
eleitoreiro que culminou nessas reformas sociais. Contudo,
após a Revolução de 1930, foi conferida a pasta do Ministério
do Trabalho a Lindolpho Collor, que logo tratou de pôr em
execução uma série de medidas legais destinadas a colocar
nossa legislação trabalhista em consonância com a situação
econômica e social brasileira, bem como com toda a legislação
vigente em países que beneficiavam mais o proletariado.
No Governo Provisório, foi publicado o Decreto nº 19.482,
contendo várias medidas de proteção ao trabalhador. Nesse
período, muitas medidas de caráter social foram expedidas pelo
Governo, como a que dispunha sobra a organização do Departamento Nacional do Trabalho, a que regulou a sindicalização,
os Decretos que definiram o horário para o trabalho no comércio e na indústria, dentre outros.
No período entre a promulgação da Constituição de 1934 e o
golpe de Estado de 1937, foram expedidos outros Decretos e
Leis, como os que reformavam a Lei de Acidentes do Trabalho e
a Lei Sindical. Uma Lei dava conta da rescisão do Contrato de
Trabalho e outras instituíam as Comissões de Salário Mínimo e o
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários.
Em outubro de 1935, o Ministro do Trabalho Agamemnon
Magalhães submeteu ao Presidente da República o anteprojeto
da organização da Justiça do Trabalho, que a Constituição de
1934 instituía. Um ano após, o Presidente enviou o projeto à
apreciação do Congresso, que pretendeu modificar substancialmente seu teor.
Em 1938, o Governo nomeou uma comissão para preparar o
novo projeto. A comissão foi formada por Deodato Maia, Luiz
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DOUTRINAS
Augusto de Rego Monteiro, Oliveira Viana, Oscar Saraiva,
Geraldo Faria Batista e Helvécio Xavier Lopes.
Finalmente em, 1939, a Justiça do Trabalho foi organizada,
sendo instalada a 1º de maio de 1941 em todo o território nacional, passando a integrar o Poder Judiciário após a Constituição
de 1946.
Em 10 de novembro de 1943, entrava em vigor a Consolidação
das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452 de 1º
de maio do mesmo ano. A Comissão designada pelo então
Ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho para a elaboração do anteprojeto da CLT foi formada pelos Procuradores da
Justiça do Trabalho Luiz Augusto de Rego Monteiro, Arnaldo
Süssekind, Dorval Lacerda e José Segadas Vianna, além do
Consultor Jurídico do Ministério, Oscar Saraiva.
Até hoje a CLT vigora. Uns a vêem como uma reles cópia da
Carta Del Lavoro, de Benito Mussolini, apenas implementada
em sua essência pelo Ditador da época, Getúlio Vargas, conforme sintetiza Ângelo Priori.13 Outros, defendem sua permanência, pois, apesar de corporativa, fascista e burocrática, ela
reflete as conquistas sociais de um povo.
3. O contrato de trabalho
3.1. Conceito
“Contrato de Trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga
a prestar uma atividade em proveito e sob a direção de outra
pessoa, a qual por sua vez se obriga a retribuir-lhe”. Américo Plá
Rodriguez14
O Contrato de Trabalho, à luz do Código Comercial de 1850,
era tido como um contrato meramente mercantil. Após, com o
Código Civil de 1916, o Contrato de Trabalho foi tratado no
capítulo da “locação de coisas”, como “locação de serviços” e
“empreitada”.
Como bem explica Délio Maranhão,15 a denominação “Contrato de Trabalho” traduz um sentido de autonomia jurídica da
disciplinação contratual da relação de trabalho, afastando-o da
antiga figura civil da locação de coisas.
Com o Direito do Trabalho, o trabalhador já não é mais tido
como um mero “insumo econômico”.16 “Ele é uma pessoa
humana, com direitos, aspirações e potencialidades, que precisam ser expressas e realizadas através de seu labor”.
3.2. Distinção entre contrato de trabalho e contrato civil
O que difere o Contrato de Trabalho dos Contratos de Direito
Civil é que nestes a produção de efeitos jurídicos só depende do
acordo de vontades entre os contratantes e no Contrato de
Trabalho, esses efeitos existirão a partir do cumprimento da
obrigação adquirida em razão do contrato. Diferem-se, também,
pelas partes envolvidas: enquanto nos contratos civis as partes
estão em equilíbrio, há no contrato de trabalho, uma assimetria
contratual que faz com que haja uma parte mais fraca – o
empregado.
3.3. O surgimento da relação de emprego
Conforme a Consolidação das Leis Trabalhistas, para o surgimento da relação de emprego se pressupõe a existência de duas
partes: o empregador e o empregado.
O empregador é bem definido pelo caput do artigo 2º da Consolidação:
24
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
“Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual
ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”.
A Lei também define a parte hipossuficiente da relação de
emprego:
“Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que
prestar serviços de natureza não eventual a empregador,
sob a dependência deste e mediante salário”.
O empregado deve ser Pessoa Física. Nenhuma Pessoa Jurídica
será considerada empregada, mesmo prestando serviços que
também possam ser executados por pessoa física.
O serviço deve ser de natureza permanente. Se for de caráter
eventual, embora havendo remuneração, não fica caracterizado o vínculo. O trabalho eventual é bem definido como
aquele que é prestado por profissionais liberais, tais como
pedreiros, costureiras ou qualquer profissional que execute
serviço do qual sua natureza não gere vínculo.
O empregado deve estar subordinado ao empregador, cumprindo ordens, horários e deve estar vinculado às exigências de
seu cargo. É obrigado também, como prevê a CLT, a receber
salário. Não haverá vínculo empregatício caso a pessoa não
receba salário do empregador.
Reunindo estes requisitos, estará configurado o vínculo de
emprego. Normalmente, a discussão acerca do vínculo se dá
quando da não anotação na Carteira de Trabalho e Previdência
Social do trabalhador. Em havendo a anotação, não se discutirá
sobre a caracterização da relação de trabalho.
3.4. Princípios e ditames morais pertinentes ao contrato de trabalho
3.4.1. O princípio da primazia da realidade
O Direito do Trabalho se presta, grosso modo, a regular as relações entre empregador e empregado, protegendo este em detrimento daquele, por ser a parte hipossuficiente da relação.
17
Nesse sentido, Márcio Túlio Viana sustenta:
“A norma trabalhista não busca apenas regular as relações
entre dois contratantes (para isso seria bastante o direito
comum), mas proteger um deles, em face do outro”.
É importante destacar que uma relação de trabalho não depende unicamente do que foi pactuado ao início da prestação
de serviços, mas da real situação em que se encontra o trabalhador. Segundo Américo Plá Rodriguez,18 não é certo julgar a
natureza de uma relação de acordo com o que as partes ajustaram, pois se o acertado no contrato formal não corresponder à
realidade, este carecerá de todo valor. “O que interessa é o que
ocorre na realidade dos fatos”, afirma.
DOUTRINAS
Muitas vezes, o empregado assina documentos sem saber o
que está assinando. Em sua admissão, pode assinar todos os
papéis possíveis, desde o contrato de trabalho até seu
pedido de demissão, daí a possibilidade de serem feitas
provas para contrariar os documentos apresentados, que
irão evidenciar realmente os fatos ocorridos na relação
entre as partes. São privilegiados, portanto, os fatos, a realidade, sobre a forma ou a estrutura empregada”.
Enquanto no Direito Civil prepondera o princípio da pacta sunt
servanda, onde os contratos acordados devem ser cumpridos, no
Direito do Trabalho prevalece o que ocorre na realidade dos
fatos. É simples, pacífico e coerente que assim o seja. Nos contratos civis, parte-se do princípio de que as partes acordam por
livre e espontânea vontade, e, por estarem em igualdade de
condições, o contrato deve servir de prova cabal a futuros litígios.
Por outro lado, no Direito do Trabalho as partes estão em condições diferentes. Enquanto o empregador detém o capital e a
oportunidade de conceder o emprego, o empregado fica submetido aos mandos do patrão e, dependente do salário que é, está
sujeito a receber tarefas diferentes do que o formalmente acordado.
3.4.2. A boa-fé no mundo do trabalho
Mister se faz entender que a realidade dos fatos e a boa-fé
devem andar lado a lado. Mário Gonçalves Júnior20 faz uma
ligeira confusão ao afirmar que:
“(...) empregadores que, embora inicialmente tenham até
pretendido escapar da legislação trabalhista, deixaram de
registrar trabalhadores e qualificando-os como autônomos,
mas na execução dessas relações jurídicas se verificou que,
de fato e naturalmente os elementos caracterizadores do
emprego não se fizeram todos presentes. Ou seja, a intenção inicial pode ter sido viciada de má-fé, mas a realidade
que se verificou, ao depois, durante a execução desses
contratos, acabou por afastá-los da caracterização de
emprego (...)”.
Por entender que o empregador não poderia estar fraudando a
relação de trabalho, já que mais tarde essa situação não se verificou, o doutrinador ainda compara essa situação à figura penal
do crime impossível.
Ora, como bem sustentam Süssekind, Maranhão, Vianna e
Teixeira Lima,21 “o contrato de trabalho, como qualquer outro,
deve ser executado de boa-fé”. É imprescindível que em qualquer ato jurídico não estejam embutidos vícios.
Importante observar que as relações de trabalho instaladas de
modo a não configurar relações de emprego são coibidas pela
CLT em seu artigo 9º:
“Art. 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados
com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
O Princípio da Primazia da Realidade vem à lide sempre que
surgir contradição entre o que está escrito e o que está ocorrendo na prática. Nesses casos, deve-se optar pela realidade, ou
seja, por aquilo que se sucede no terreno dos fatos.
Dessa forma, embora a boa-fé seja um princípio cujo debate
não se esgota, por se mostrar bastante subjetivo, é nulo todo ato
crivado pela má-fé.
Sérgio Pinto Martins19 explica que:
3.5. Dissolução do contrato de trabalho
“No Direito do Trabalho os fatos são muito mais importantes do que os documentos. Por exemplo, se um empregado
é rotulado de autônomo pelo empregador, possuindo
contrato escrito de representação comercial com o último,
o que deve ser observado realmente são as condições fáticas que demonstrem a existência do contrato de trabalho.
02/2009
O Contrato de Trabalho pode ser cessado de diversas maneiras
e de formas bastante subjetivas, merecendo muitas interpretações e contradições, o que não cabe neste estudo esgotar.
Em geral, os contratos, inclusive os de trabalho, extinguem-se
com uma situação que põe termo aos mesmos. Todavia, o
25
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
contrato pode deixar de existir de uma forma normal ou anormal.22 Normalmente, o contrato se extingue com a sua execução – ocorre quando ele alcança os seus fins.
Anormalmente, os contratos se dissolvem por resilição, resolução, revogação, rescisão e por força maior.
A resilição ocorre quando as próprias partes desfazem o ajuste
acordado – necessita de acordo mútuo. A resolução se dá mediante uma inexecução faltosa por parte de um dos contratantes. A revogação acontece, geralmente, em contratos a título
gratuito, embora excepcionalmente a lei possa conceder esse
direito em relação a um contrato oneroso. Quando o contrato é
maculado por nulidade, a dissolução ocorre por rescisão e,
finalmente, quando existe a impossibilidade da execução do
contrato, se dá a dissolução por força maior.
Nos Contratos Civis, o inadimplemento responde por “simples
culpa” deixando, desse modo, o contrato resolvido. Nos Contratos de Trabalho, o cerne da dissolução é, muitas vezes, a justa
causa. Trata-se de uma figura dúbia e tendente a interpretações,
mas que bem se define por ser aquela situação em que se torne
indesejável a manutenção do empregado por ações indignas no
ambiente de trabalho.
Apesar de a doutrina discutir se a noção de justa causa atende
somente ao contrato por tempo indeterminado, prevalecendo
no contrato a termo a resolução por simples culpa, a CLT não
distingue, em seus artigos 482 e 483, entre as duas espécies de
contrato:
“Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do
contrato de trabalho pelo empregador
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem
permissão do empregador, e quando construir ato de
concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado,
ou for prejudicial ao serviço;
d) condenação criminal do empregado, passada em
julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da
pena;
e) desídia no desempenho das respectivas funções;
f) embriaguez habitual ou em serviço;
g) violação de segredo da empresa;
h) ato e indisciplina ou de insubordinação;
i) abandono de emprego;
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço
contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas
condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de
outrem;
k) ato lesivo de honra e boa fama ou ofensas físicas praticada contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo
em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
l) prática constante de jogos de azar.
Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o
contrato e pleitear a devida indenização quando:
a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos
por Lei, contrários aos bons costumes ou alheios ao
contrato;
b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores
hierárquicos com rigor excessivo;
c) correr perigo manifesto de mal considerável;
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;
e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou
pessoas de sua família ato lesivo da honra e boa fama;
f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisica02/2009
DOUTRINAS
mente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de
outrem;
g) O empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por
peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários.”
Segundo Evaristo de Moraes Filho,23 justa causa “é todo ato
doloso ou culposamente grave, que faça desaparecer a confiança e boa-fé existentes entre as partes, tornando, assim,
impossível o prosseguimento da relação”.
A justa causa se mostra então, desde que devidamente comprovada, uma forma de dispensa justa quando o empregado cometer algum dos atos previstos nas alíneas do artigo 482 da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Destarte, sempre que ocorrida a extinção de um contrato, é
exigida uma formalidade, e um prazo. Quando não existir prazo
estipulado no contrato e, ainda, quando o empregado não tiver
culpa, não provocar a rescisão, a indenização será no valor do
maior numerário já percebido. Em geral, um salário mínimo.
4. A descaracterização do contrato de estágio
4.1. Definição de estágio
A figura jurídica do estágio foi criada há quase três décadas, a
partir da Lei nº 6.494, de 7 de dezembro de 1977,24 que ajudou
a formalizar sua prática.
Por estágio, se entende toda atividade de aprendizagem social,
profissional e cultural que insere o estudante – com 16 anos de
idade ou mais – em situações reais de vida e trabalho de seu
meio, oportunizando a complementação dos conhecimentos
adquiridos em sala de aula, de maneira que possa vivenciar no
dia-a-dia a teoria, absorvendo melhor os conhecimentos, podendo refletir e confirmar sobre a sua escolha.
O estágio é uma forma atípica de trabalho, ou seja, apesar de ser
uma das figuras que mais se assemelham a uma relação de
emprego, este não se caracteriza desde que preenchidos os
pressupostos para sua validação.
Existem dois tipos de estágio: o curricular e o extracurricular.
Embora ambos possuam o mesmo objetivo, que é pôr em
prática o conhecimento em sala de aula, há uma sensível diferença entre eles. O estágio curricular, por assim dizer, é aquele
obrigatório, previsto no currículo, do qual sem ele não se integralizaria o curso. Já o estágio extracurricular, é uma faculdade
do estudante, não está previsto no currículo e pode, a critério da
direção do curso, ser aproveitado para suprir a ausência de estágio curricular ou as chamadas “atividades complementares”.
Dependendo do curso ou do órgão onde ocorrer o estágio,
poderá se ter, como pré-requisito, a conclusão de algum semestre ou ano letivo.
Tanto o estágio curricular como o extracurricular possuem a
nobre legenda de ser um instituto social, ou seja, podem ser
realizados na comunidade em geral ou junto a Pessoas Jurídicas
de direito público ou privado, sob responsabilidade e coordenação da Instituição de Ensino, oportunizando ao futuro profissional a necessária prática no âmbito da profissão escolhida.
O que costuma ocorrer na prática é o desvio dessa função do
estágio, sobrecarregando o estudante com tarefas não condizentes a sua formação. Desse artifício, que resulta em um primeiro
momento no enxugamento das despesas da Unidade Concedente, deixa para o mercado de trabalho um profissional não
26
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
qualificado, ao mesmo tempo em que contribui para com o
crescente nível de desemprego, dentre outros problemas na
sociedade.
4.2. O contrato de estágio
Diferentemente do Contrato de Trabalho, que pode ser constituído tanto de forma tácita como expressa, todo e qualquer estágio deve estar alicerçado por um contrato. Este contrato – ou
Termo de Compromisso – possui pressupostos que devem ser
respeitados sob pena de se frustrar o objetivo principal do estágio, qual seja, proporcionar ao estudante a complementação
dos estudos teóricos.
4.2.1. Sujeitos do contrato de estágio
Basicamente, os sujeitos do estágio são:
– O Estudante (estagiário);
– A Unidade Concedente;
– A Instituição de Ensino.
Esses três sujeitos são de interveniência obrigatória no Contrato
de Estágio, sendo que a ausência de qualquer um deles nulifica
o mesmo, ensejando na inevitável caracterização da relação de
emprego entre o estudante e a Unidade Concedente.
Há ainda um quarto sujeito na relação de estágio, que é o
Agente de Integração. Foi criado pelo Decreto nº 87.497/82,
sendo sua presença facultativa. Mesmo assim compreende a
grande maioria dos Termos de Compromisso, facilitando na
identificação de oportunidades de estágio e no ajuste das condições. Além disso, presta serviços de cadastramento de estudantes e vagas, bem como é responsável pelo pagamento das
bolsas-auxílio (quando estágio remunerado).
O Agente de Integração deve ser essencialmente filantrópico,
não podendo, sob qualquer hipótese, cobrar taxa referente a
providências administrativas ao estudante, conforme disciplina
o artigo 10º do Decreto nº 87.497/82, pois do contrário, estaria
lucrando com o trabalho alheio, o que, segundo Rodrigo de
Lacerda Carelli,25 chama-se marchandage. Também não pode
cobrar participação à Unidade Concedente por estudante colocado, senão se tornaria sócia do trabalhador. Além disso, sua
atuação deve se limitar à relação entre a Unidade Concedente e
a Instituição de Ensino.
O Agente de Integração é um importante elo entre a Instituição
de Ensino, a Unidade Concedente e o estagiário, podendo,
dessa forma, orientar para que o estágio ocorra dentro do que
prevê a lei. Segundo a Comissão Temática Mista (CTM),26 presidida pela Procuradora Regional do Trabalho Eliane Araque dos
Santos, medidas para prevenir irregularidades podem constar
no Contrato de Estágio, no Convênio (que é assinado pelo
Agente de Integração e pela Unidade Concedente) ou ainda no
Termo de Cooperação, que é firmado entre o Agente e a Instituição de Ensino. Ainda, conforme a conclusão da CTM, a descrição das atividades a serem desenvolvidas pelo estagiário, bem
como a definição dos compromissos da Unidade Concedente e
do papel da Instituição de Ensino podem e devem constar nos
referidos Contratos.
4.2.2. Requisitos para o estágio
Para a perfectibilização do estágio, existem requisitos formais e
materiais a serem respeitados, dos quais sem eles não se configuraria tal instituto.
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DOUTRINAS
4.2.2.1. Requisitos formais
Primeiramente, há de se cuidar a existência das partes envolvidas no estágio. Estudante e Unidade Concedente devem preencher as condições necessárias para que figurem como partes
legítimas, assim como a Instituição de Ensino, que tem a responsabilidade de supervisionar o procedimento didático-pedagógico.
Em relação ao estagiário, este deverá estar regularmente matriculado em algum curso vinculado ao ensino público ou particular e estar comprovadamente freqüentando-o, sendo curso de
nível superior, profissionalizante de 2º Grau, escola de educação especial ou ensino médio, mesmo que não-profissionalizante.
Nesse plano, Pedro Delgado de Paula27 faz dura crítica à
Medida Provisória nº 2.164-41, de 24 de agosto de 2001, que
altera a redação do § 1º do artigo 1º da Lei nº 6.494/77, autorizando o estágio para alunos de ensino médio. Segundo o advogado, a prática de estágio na condição de estudante de Ensino
Médio não-profissionalizante foge inteiramente à finalidade do
estágio, sendo, nesse caso, dificilmente preenchidos seus requisitos materiais.
Tárcio José Vidotti28 sugere, em seu artigo “Legislação sobre
estágio profissional deve ser alterada”, que se troque a expressão “de ensino médio” para “de ensino médio de escolas que
proporcionam habilitação profissional” no dispositivo legal, em
sintonia com a proposta da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), que considera inaceitável a modificação legislativa trazida pela referida Medida
Provisória. Tal proposição, segundo Tárcio, harmonizaria o
texto da Lei 6.494/77 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),29 impossibilitando a exploração de adolescentes que procuram no estágio um passaporte para sua inserção no mercado de trabalho.
Há que se destacar que, em alguns casos pode ocorrer a realização do estágio sem a possibilidade de freqüência no curso. Isso
ocorre quando o estudante não realizou o estágio curricular
durante a duração do curso e, para a obtenção do diploma, obriga-se a fazê-lo após a conclusão da parte teórica.
Quanto à Unidade Concedente, a Lei nº 6.494/77 restringe a
atuação às Pessoas Jurídicas de Direito Privado, aos Órgãos da
Administração Pública e às Instituições de Ensino. Todavia,
nada impede que Pessoas Físicas contratem estagiários.30 A exclusão das Pessoas Físicas do dispositivo legal se faz para assegurar o real cumprimento das metas pedagógicas do estágio,
partindo-se da premissa de que as Pessoas Jurídicas poderão
melhor atender a estas metas. Contudo, há Pessoas Físicas que
possuem a capacidade de proporcionar experiência prática na
linha de formação do estudante.
Outro requisito formal indispensável à realização do estágio, de
acordo com o anteriormente destacado, é a celebração de um
Termo de Compromisso entre o estudante e a Unidade Concedente,31 bem como a interveniência obrigatória da Instituição
de Ensino no encaminhamento do estagiário. Além disso, é obrigatória, por parte da Unidade Concedente, a emissão de apólice
de seguro de vida e acidentes pessoais em favor do aluno,
tornando-se ineficaz – do ponto de vista jurídico – “qualquer tentativa oriunda de norma infralegal visando a transferir a responsabilidade pela parcela à respectiva Instituição de Ensino”.32
27
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SELEÇÕES JURÍDICAS
A bolsa de complementação educacional também figura como
requisito formal, embora não haja a obrigatoriedade de sua
prestação, conforme o artigo 4º da Lei 6.494/77. Em havendo,
esta deverá constar no Termo de Compromisso, lembrando que
dela não advém natureza salarial.
4.2.2.2. Requisitos materiais
Como requisito material, destaca-se a obrigatoriedade de que o
estágio seja exercido em unidades que tenham condições reais
de proporcionar experiência prática de formação profissional e
que oportunizem ao estudante a efetiva complementação do
ensino e aprendizagem, em consonância com os currículos,
programas e calendários escolares.
Neste sentido, leciona Rogério Rangel:
Quando se fala em estágio, sobretudo no que diz respeito ao
estágio praticado por estudante do nível médio, argumenta-se
que este gera evasão escolar.
Conforme refere Oris de Oliveira,34 “um correto estágio longe
de propiciar evasão escolar, vincula o estagiário a seu curso”.
Como já vimos, a não freqüência do aluno às aulas acarreta na
perda da condição de estagiário e sua relação jurídica com a
Unidade Concedente passa a ser de empregado. A lei esclarece
que compete a Instituição de Ensino acompanhar e supervisionar o estágio, de modo a garantir uma formação digna ao estudante e precaver-se de não estar contribuindo com o lucro da
Unidade Concedente.
Carmem Caminho35 tem posição a respeito:
33
“Atendidos os requisitos formais do estágio como: termo de
compromisso, interveniência obrigatória da instituição de
ensino universitário, contrato de bolsa quando oneroso,
seguro de acidentes de trabalho, prazo de duração; e atendidos os elementos materiais como: aluno matriculado e
freqüente, local que propicie experiência prática de formação profissional, vinculação entre as atividades desenvolvidas no local do estágio e a proposta curricular de formação
teórica profissional, o estágio estará alcançando os seus
fins. Do contrário, emerge a figura genérica e hegemônica
da relação de emprego”.
Contudo, não basta a correspondência entre as tarefas realizadas e o currículo escolar, uma vez que deve haver um estudo
prévio, com planejamento das atividades que possam ser realizadas e terão utilidade prática à formação do estudante. Este
planejamento, de acordo com o artigo 5º do Decreto nº 87.497/82,
deve constar no instrumento jurídico que a Unidade Concedente firmou com a Instituição de Ensino, demonstrando as
atividades que serão executadas e sua relação com as matérias
existentes no currículo escolar.
Uma empresa só terá condições de oferecer um estágio se, em seu
quadro permanente, houver pessoal habilitado na área de formação do estagiário, além de estrutura material apta a conceder experiências práticas específicas. Dessa forma, Rodrigo de Lacerda
Carelli (2004, p. 104) exemplifica, referindo que um estudante de
Agrimensura não pode estagiar em uma fábrica de calçados. No
entanto um aluno de Direito pode, desde que em um departamento jurídico. Porém, se esse departamento se circunscrever ao
próprio estagiário, faltará à Unidade Concedente as condições
técnicas para a concessão do estágio, pois carecerá de profissional
que repasse o aprendizado necessário ao estudante.
4.2.3. Objetivos e responsabilidades
Fazer com que o estudante participe de “situações reais de vida
e trabalho na comunidade em geral” ou em estabelecimentos
de Pessoas Jurídicas Privadas é extremamente enriquecedor.
Entretanto, deve-se ter em mente que a atuação e a cobrança do
estagiário na Unidade Concedente são diferentes das de sala de
aula. A Unidade Concedente possui um ritmo de trabalho mais
intenso, além de compromissos com prazos, atendimento ao
consumidor e outros. Em razão disso, é que se faz necessária a
supervisão por parte da Instituição de Ensino, de modo que o
estagiário tenha uma “experiência prática na linha de formação”, evitando cobranças por resultados por parte da Unidade
Concedente.
02/2009
DOUTRINAS
“Temos sustentado, com fundamento do artigo 1.518 do
Código Civil, a possibilidade de responsabilização solidária da escola e do sujeito-cedente quando demonstrado o
conluio para a exploração pura e simples da força de trabalho do estudante. A fraude às normas tutelares constituem o
ilícito trabalhista, agasalhado no artigo 9º da CLT, daí a
possibilidade de responsabilização solidária de ambos os
agentes que, em concurso, ensejam o prejuízo do trabalhador, travestido de “estagiário”. Tal responsabilidade pode
se estender, inclusive, ao agente de integração, se provado
que este também concorreu para a ilicitude."
Para a Instituição de Ensino proporcionar o estágio de forma
plena, há que se respeitar os §§ 2º e 4º do artigo 36 da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
“Art. 36 – O currículo do ensino médio observará o
disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes.
§ 2º – O ensino médio, atendida a formação geral do
educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões
técnicas.
§ 4º – A preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação profissional poderão ser desenvolvidas nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em
cooperação com instituições especializadas em educação
profissional.”
4.2.4 – Estágio para alunos de educação especial
Educação especial é aquela voltada para alunos com necessidades excepcionais. Daí a nomenclatura comumente usada para
designar as pessoas portadoras de deficiências mentais, físicas
ou sensoriais, tal como Síndrome de Dawn (a mais conhecida).
A distinção entre a educação comum e a especial decorre da
defrontação das condições individuais do aluno com as condições gerais da educação formal oferecida.
O estágio para portadores de deficiência não possui especificação de nível escolar como para os demais estágios. No entanto,
continua tendo, do mesmo modo, caráter profissionalizante.
4.2.5. Função social do estágio
O estágio não pode ser visto como um “primeiro emprego”, mas
sim como uma função social da Unidade Concedente, proporcionando ao estudante o desenvolvimento prático em sua área
de estudo. A figura do primeiro emprego deverá acontecer em
um momento posterior à prática do estágio. Ao mesmo tempo –
e sem cair em contradição – a empresa que contratar o estagiário como empregado, após ter contribuído para sua aprendizagem profissional, social e cultural, estará evitando descumprir a
28
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
lei do estágio e reduzindo o desemprego, demonstrando, da
mesma forma, responsabilidade social.
O Diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, Federação dos Bancários do Rio Grande do Sul e AFUBESPE (Associação dos Funcionários do Grupo Santander Banespa, Banesprev
e Cabesp), Ademir Wiederkehr, diante de decisão do TRT da 4ª
Região que reconheceu vínculo de emprego para uma ex-estagiária do BANESPA, deduz:
“Esperamos que com essa decisão do Tribunal a direção do
grupo espanhol venha a mudar a sua postura e passe a
respeitar a legislação brasileira acerca do estágio, efetivando como empregados esses estudantes que trabalham
nas agências, atendem os clientes e ajudam o banco a
acumular lucros cada vez maiores (...) contratando os estagiários, o banco deixaria de descumprir a lei do estágio,
garantiria emprego para milhares de trabalhadores
demonstrando responsabilidade social e ainda iria parar de
treinar gratuitamente mão-de-obra para a concorrência.”
O que se deve buscar quando da contratação de um estagiário é
a formação de um futuro profissional, inserindo-o no mercado
de trabalho e oxigenando o quadro funcional da empresa.
Entretanto, o que costuma ocorrer na prática é o desvirtuamento
do fim do primeiro do estágio. Utiliza-se o estagiário para enxugar os custos com a folha de pagamento e obrigações trabalhistas, fazendo-se uso da mão-de-obra qualificada do estudante e
atribuindo-lhe tarefas análogas as do funcionário formalmente
empregado.
Ulisses Otávio Elias dos Santos,36 em seu artigo “Estágio de estudantes possibilidade de vínculo empregatício”, refere:
“...outra questão importante e atinge a maioria dos estagiários seria quanto à execução do estágio, que muitas vezes
foge ao que foi pactuado, ou seja, executa serviços que não
condizem com o estágio, exemplo: estagiário de escritório
de contabilidade que constantemente é obrigado a passar
quase o dia todo tirando xerox e a cumprir horários incompatíveis com o que foi estabelecido. Este exemplo deixa
claro que a intenção da empresa não é fornecer subsídios
favoráveis a aprendizagem, e sim usufruir de maneira desonesta do estagiário burlando o que se assevera a legislação.”
Nesses casos, o entendimento jurisprudencial:
“87016818 – VÍNCULO EMPREGATÍCIO – ESTAGIÁRIO –
Desvirtuada a finalidade do estágio, tal como previsto na Lei
nº 6.494/77 e no Decreto-Lei nº 87.497/82, é possível a
configuração de vínculo de emprego quando presentes os
pressupostos insertos no artigo 3º da CLT.” (TRT-12ª R. –
RO-V 05001-2003-001-12-00-2 – (06021/2004) – Florianópolis – 2ª T. – Relª Juíza Ione Ramos – J. 1-6-2004) JCLT.3.”
“CONTRATO DE ESTÁGIO – DESVIRTUAÇÃO –
RELAÇÃO DE EMPREGO – Quando as atividades do
período de estágio ocorrem sem qualquer correlação com
o curso freqüentado pelo trabalhador e sem supervisão da
sua escola, não propiciando a complementação do ensino
e da aprendizagem, sem qualquer finalidade integrativa
entre o curso e as funções exercidas, tem-se que o contrato
se deu em desacordo com os princípios e finalidades da Lei
6.494/77 e do Decreto nº 87.497/82, sendo nulo de pleno
direito a teor do artigo 9º da CLT, já que evidente o objetivo
02/2009
DOUTRINAS
de desvirtuar e impedir a aplicação dos preceitos atinentes
ao contrato de trabalho, cujo reconhecimento se impõe.”
(TRT-3ª R – 01305-2003-023-03-00-7 RO – 3ª T – Rel. Juiz
Sebastião Geraldo de Oliveira – DJ-MG 20-3-2004)
“87015854 – VÍNCULO DE EMPREGO – ESTÁGIO –
Deixando de ser atendido um dos pressupostos legais de
validade do contrato de estágio, como previsto no § 3º do
artigo 1º da Lei nº 6.494/77, é de ser reconhecida a vinculação de emprego entre as partes, por aplicação do artigo 9º
da CLT.” (TRT-12ª R. – RO-V 00077-2003-044-12-00-0 –
(04956/2004) – Florianópolis – 3ª T. – Relª Juíza Teresa
Regina Cotosky – J. 10-5-2004)
“VÍNCULO DE EMPREGO – ESTAGIÁRIO – LEI Nº 6.494/77 –
Estágio profissional celebrado sem a estrita observância aos
ditames da Lei nº 6.494/77, consubstanciados na inexistência de experiência prática na linha de formação do estagiário e na ausência de complementação do ensino e da
aprendizagem, mediante acompanhamento e avaliação, de
acordo com os currículos, programas e calendários escolares, revela vínculo de emprego entre prestador e tomador do
serviço.” (TRT-4ª R – 01142-2002-741-04-00-5 RO – 4ª T –
Rel. Juiz Milton Varela Dutra – DOE-RS 10-2-2004)
“PROFESSOR – RELAÇÃO DE EMPREGO X ESTÁGIO. O estágio se perfaz mediante contrato específico e, nos termos
da legislação específica (Lei nº 6.494/77), deve o estagiário
contar com supervisão e acompanhamento permanentes,
os quais não foram comprovados pela Reclamada, no caso
em tela. De mais a mais, prestando o Reclamante seus
misteres à Reclamada, por cerca de sete anos, cai por terra a
alegação de que era mero estagiário. É princípio geral de
direito a vedação do enriquecimento ilícito; princípio
constitucional, o da valorização social do trabalho; e do
Direito do Trabalho, o da proteção ao hipossuficiente.
Logo, tendo se beneficiado a Reclamada do trabalho do
Reclamante, que lecionou por tantos anos, não se pode
falar em nulidade da avença, sendo impossível o retorno ao
status quo ante, pela própria natureza dos serviços prestados. Se se declarasse a nulidade do pacto havido,
estar-se-ia admitindo implicações em outros planos, inclusive quanto à validade dos diplomas dos alunos para os
quais lecionou o Reclamante. Ao caso, se constatada eventual irregularidade da prestação de serviços de professor,
ainda assim seria válida a relação de emprego, sendo aplicável a Teoria da Aparência do direito alemão (Erscheinungstheorie), para convalidar as situações benéficas a
ambas as partes”. (TRT-RO-2663/00 – 4ª T. – Rel. Juiz Luiz
Otávio Linhares Renault – Publ. MG. 29-7-2000)
“Não comprovando o reclamado a observância aos requisitos da Lei nº 6.494/77, que regulamenta o contrato de
estágio, tais como a realização de acompanhamento e
avaliação do estágio prestado, descumprindo a regra do
§ 3º do artigo 1º daquele diploma legal, e demonstrando a
prova dos autos que a reclamante, embora formalmente
contratada como ‘estagiária’ desenvolvia tarefas idênticas
àquelas atribuídas aos demais empregados do reclamado,
resta descaracterizado o contrato de estágio celebrado e
reconhecida, por conseguinte, a relação de emprego
durante todo o período da vinculação entre as partes.
Recurso do reclamado a que se nega provimento.” (TRT-4ª
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SELEÇÕES JURÍDICAS
Região – 00539-2001-851-04-00-4 (RO) – Rel. Juiz hugo
Carlos Scheuermann. Data de Publicação: 24-3-2004)
“87016959 – VÍNCULO DE EMPREGO – ESTÁGIO – A Lei
nº 6.494/77 estabelece como requisitos para a contratação
de estágio que os estudantes estejam regularmente matriculados em curso de ensino médio ou superior, que o estágio
propicie a complementação do ensino e da aprendizagem
e que a realização do estágio se dê mediante termo de
compromisso celebrado entre o estudante e a parte
cedente, com interveniência da instituição de ensino.
Inexistindo termo de compromisso, bem como seguro
contra acidentes pessoais, há que se ter em conta o princípio da primazia da realidade, segundo o qual a relação
objetiva evidenciada pelos fatos define a verdadeira relação jurídica estipulada pelos contratantes.” (TRT-12ª R. –
RO-V 00691-2003-014-12-00-0 – (06185/2004) – Florianópolis – 1ª T. – Rel. Juiz Amarildo Carlos de Lima – J.
7-6-2004)
“ESTAGIÁRIO – RECONHECIMENTO DO VÍNCULO
EMPREGATÍCIO. O estágio legalmente constituído não
permite que se reconheça a existência da relação de
emprego, conforme prevê a Lei nº 6.494/77, justamente por
se constituir em oportunidade para que o aluno adquira
experiência prática visando facilitar sua futura colocação
no mercado de trabalho. Porém, restando provado que a
empresa contrata profissional qualificado, que inclusive já
compôs o quadro de empregados da empresa, por meio de
estágio, estando o empregado a exercer as mesmas funções
anteriormente desempenhadas, recebendo ajuda de custo
e comissões além da chamada ‘bolsa’, torna-se forçoso o
reconhecimento do vínculo empregatício mascarado sob a
denominação de estágio.” (Ac. 1ª T.: Julg: 00.00.02
TRT-RO: 1337/02 – Rel. Juiz Pedro Luis Vicentin Foltran –
Publ. DJ: 23-8-2002
Como bem se vê nas jurisprudências colacionadas, são flagrantes o desleixo, o desrespeito e a inobservância quanto às normas
que cuidam do estágio. Por todo o país, cada vez mais o estudante-estagiário vem sendo explorado ou, pelo menos, utilizado como mão-de-obra barata, sem as garantias trabalhistas a
que tem direito em razão do vínculo de emprego que fica
caracterizado.
Carmem Caminho doutrina nesse mesmo diapasão:
“O estágio profissional tem sido instrumento generalizado
de fraude aos direitos sociais. Não raro encobre contratos
de trabalho, não só pelo concurso doloso dos sujeitos-cedentes que nada mais querem do que contar com a
força do trabalho sem os ônus sociais como pela negligência das instituições de ensino que se limitam a cumprir os
requisitos formais, sem se preocuparem com o acompanhamento pedagógico, equiparando-os a meras intermediadoras de mão-de-obra.”
Todavia, para que a Lei de estágio e seu Decreto regulamentador não caiam em descrédito, a Justiça Trabalhista vem decidindo que se presentes os requisitos configuradores do estágio
não há de se caracterizar o vínculo, haja vista que a função do
estágio está sendo cumprida.
Nesse sentido, os julgados:
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DOUTRINAS
“188014709 – VÍNCULO EMPREGATÍCIO – CONTRATO
DE ESTÁGIO – Não forma vínculo de emprego a contratação
de estagiário quando obedecida a previsão legal sobre a matéria. Recurso conhecido e provido.” (TRT-11ª R. – RO
22288/2003-001-11-00 – (806/2004) – Rel. Juiz Othílio Francisco Tino – J. 3-3-2004)
“87015166 – VÍNCULO DE ESTÁGIO – O vínculo de estágio tem por finalidade auxiliar na formação técnico-profissional do estudante, proporcionando-lhe a
complementação e o aperfeiçoamento do aprendizado
acadêmico. Cumpridos os ditames da Lei nº 6.494/77, não
há falar em relação de emprego nos moldes estabelecidos
na CLT, por faltarem os requisitos que a tipificam.”
(TRT-12ª R. – RO-V-A 00416-2003-008-12-00-4 –
(04198/2004) – Florianópolis – 1ª T. – Rel. Juiz Gerson
Paulo Taboada Conrado – J. 27-4-2004)
Apesar de existirem em menor número, esses entendimentos
jurisprudenciais demonstram uma coerência e não o radicalismo, que muitas vezes é atribuído à Justiça Trabalhista. Vê-se,
então, que quando preenchidos os requisitos configuradores do
estágio, o vínculo empregatício não ocorre, respeitando a Legislação acerca desse assunto e contribuindo para que empregadores legalistas mantenham as contratações de estagiários.
Assim se proporciona uma melhor formação profissional, conduzindo o estudante em aptas condições de se gerir e sustentar
no mercado de trabalho.
Um tanto quanto contraditória, mas da mesma forma justa, a
caracterização do vínculo pode queimar etapas no aprendizado
do estudante, liberando para a vida um profissional não bem
formado. Concernente a isso, exsurgem conseqüências para o
indivíduo e para a sociedade como um todo.
4.3. Conseqüências do mau uso do estagiário
Há de se ressaltar que o mau uso do estagiário também colabora, além de outros fatores, para com o desemprego, violência
e empobrecimento geral da população. Todavia esses diversos
outros fatores são, de certa forma, muito mais decisivos do que a
descaracterização do contrato de estágio. Isso, de forma alguma,
sugere que a discussão sobre o tema se mostre inútil.
O estágio remunerado é o instituto que mais se aproxima de
uma relação empregatícia, haja vista que reúne os cinco requisitos que caracterizam o emprego: trabalho por pessoa física,
pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação.
Entretanto, a legislação não autoriza sua tipificação como tal.
A justificativa para isso se dá em razão da possibilidade de
aumento nas ofertas de estágio no mercado, o que não ocorreria
se a relação de emprego fosse caracterizada.
Em decorrência disso, graves conseqüências vêm sendo geradas para a sociedade como um todo. Uma delas é o desemprego, que não se dissolve, e isso se dá também pela troca que
empresas vêm fazendo de empregados efetivos por estagiários.
Desse fenômeno erguem-se outros, como o empobrecimento
da população – com as pessoas sujeitando-se a ganhar menos –
e o aumento do déficit da Previdência Social, pois não há recolhimento de INSS para estagiários.
Nesse sentido, Rogério Rangel:
“A lei não estabelece limites percentuais para a admissão
de estagiários em relação aos profissionais admitidos com
30
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SELEÇÕES JURÍDICAS
vínculo de emprego. Aplica-se sempre o princípio da razoabilidade para que os institutos jurídicos não sejam desvirtuados visando a redução de custos com mão-de-obra.”
As dificuldades que os jovens vêm enfrentando para obter um
emprego aumentam ano a ano. As ofertas de trabalho se apresentam escassas e precárias, com duração determinada e empregos com má qualidade e baixos rendimentos.
Como conseqüência disso, muitos jovens abandonam o mundo
do trabalho (ou sequer nele ingressam), passando a aumentar a
lista do desemprego, da violência e do déficit do Estado.
Em síntese, não é o mais prudente procurar por “furos” na legislação ou na própria realização do estágio. Há, sim, que se oferecer (Unidade Concedente) e prestar (Estudante) um estágio com
trocas de experiências e ganho cultural, coexistindo o estagiário
e o empregado, formando-se um círculo de renovação e crescimento em toda a sociedade.
Se isso não põe termo a todos os problemas sociais, pelo menos
é uma boa forma de corrigir alguns deles.
4.4. A caracterização do vínculo empregatício
DOUTRINAS
No caso do estágio não é diferente. Ao mesmo tempo em que
alguns empregadores fazem o mau uso do estagiário, como
meio de redução nos custos com mão de obra, fraudando a
legislação trabalhista, muitos outros proporcionam ao estudante o aprendizado e a vivência necessária, no ramo que o
estudante decidiu seguir.
Desse modo, respeitando os requisitos essenciais para a validação do estágio e entendendo seus reais objetivos, a Unidade
Concedente e o Estagiário (juntamente com a Instituição de
Ensino e facultativamente o Agente de Integração) contribuirão
para a formação de melhores profissionais e, paulatinamente,
para o crescimento da própria sociedade. SJ
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Vol. 1. 21ª ed. atual. Por Arnaldo Süssekind e João de Lima
Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 2003.
Em 1987, o então Secretário das Relações do Trabalho, Plínio
Gustavo Adri Sarti, editou as “Instruções para a fiscalização do
estágio”,37 endereçadas aos Delegados Regionais do Trabalho,
as quais explicavam como agir quando da verificação da descaracterização do estágio.
3. ______ . ______ . Vol. 1. 16ª ed. São Paulo: LTr, 1996.
Se não atendidos os requisitos ali expostos – descaracterizado,
então, o estágio – o Fiscal do Trabalho deverá exigir que a situação do estudante, como empregado da empresa, se regularize.
Quando lavrado Auto de Infração, deverão ser mencionados os
elementos que convenceram o Fiscal a declarar o vínculo
empregatício.
6. PALÁCIOS, Alfredo Lorenzo. El Nuevo Derecho. 5ª ed.
Buenos Aires: Claridad, 1960.
Em não vislumbrando quaisquer vícios na execução do estágio,
o Fiscal limitar-se-á ao exame dos documentos relacionados
nas instruções.
5. Conclusão
Desde os primórdios até hoje em dia, o mais forte oprime o mais
fraco. Se outrora o mais forte fisicamente levava vantagem nos
confrontos diretos, hoje o mais forte economicamente se sobressai.
Se hoje existem críticas a respeito de uma Justiça do Trabalho
pro operario, em detrimento do interesse do empregador, é
porque a história mostrou aos operadores do direito que a
justiça deve ser feita, mesmo que tardia.
Ao contrário de Mário Gonçalves Júnior,38 que entende que “os
operadores do Direito do Trabalho têm que abandonar velhas
concepções, do tempo da onça (...)”, referindo-se ao tempo em
que nem se falava em direitos trabalhistas e os trabalhadores
eram explorados, penso que, mais do que tentar corrigir todas as
injustiças sofridas pelos trabalhadores ao longo da história,
mister se faz que a justiça proporcione justiça.
Jurisprudências dos quatro cantos do país comprovam que
muitas das ações que a Justiça do Trabalho cuida acabam em
não reconhecer o direito alegado pelo trabalhador, justamente
porque tal direito não existe. Assim, como a Justiça do Trabalho
vem reconhecendo os direitos trabalhistas quando o trabalhador de fato não está amparado por eles, essa, de forma hábil,
reconhece quando o trabalhador não vislumbra tais direitos.
02/2009
4. VIANA, Francisco José de Oliveira. As Novas Diretrizes da
Política Nacional. s.l, s.n: 1939.
5. ______ . O idealismo da Constituição. s.l, s.n: 1939.
7. GERMINAL. Bélgica/França/Itália, 1993. 170min. Direção:
Claude Berri.
8. AUBERT, Roger; SCHOOYANS, Michel. Da Rerum Novarum
à Centesimus Annus. Trad. Flávio Vieira de Souza. Ed.
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São Paulo: LTr, 1982.
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14. ______ . ______ . 21ª ed. atualizada até dezembro de 2003.
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22. REVISTA LTr 60-05/635. Jurisprudência. Dra. Carmen Caminho – Juíza do TRT da 4ª Região.
DOUTRINAS
com o intuito de combater movimentos oposicionistas – tais
como a Guerra de Canudos (1896-1897, de cunho notadamente monarquista) e a Revolta da Armada (1893, movimento
de apoio aos governos militares de Deodoro e Floriano).
11. 1939.
12. Apud, op. cit. pp. 56-57.
13. Ângelo Priori é professor do Departamento de História e coordenador do Laboratório de História Política e Movimentos
Sociais da UEM.
14. 1982, p. 17.
15. Op. cit. p. 235.
16. João de Lima Teixeira Filho, 2003, p. 236.
17. Márcio Túlio Viana é Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região, professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais e membro do Instituto Brasileiro de
Direito Social Cesarino Júnior.
18. Op. cit.
23. SANTOS, Ulisses Otávio Elias dos. “Estágio de estudantes
possibilidades de vínculo empregatício”. Disponível em:
http://www.classecontabil.com.br/ servlet_art.php?id=493.
Acesso em: 24 fev. 2005.
19. 2002.
24. CARTILHA DO TRABALHADOR. Santa Maria: Sociedade
Vicente Pallotti, 2005.
23. A Justa Causa na Rescisão do Contrato de Trabalho, 1946, p. 56.
25. SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Principiologia do direito
do trabalho. São Paulo: LTr, 1999.
26. GONÇALVES, Emílio. O Estudante no Direito do Trabalho.
São Paulo: LTr, 1987.
27. NASCIMENTO, Amauri Mascaro do. Curso de Direito do
Trabalho. 19ª ed. Revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 20.
NOTAS
1.
Os movimentos ascendentes caracterizam-se pela existência
de uma história social marcada pela luta de classes e reivindicações por melhores condições de trabalho, gerando, assim,
uma ação dos Parlamentos para normatizar as relações de
empregos.
2.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho.
3. ed. São Paulo: LTr, 2004. p. 49.
3.
Instituições de Direito do Trabalho, 2003. p. 34.
4.
1960.
5.
1939.
6.
Nomenclatura dada por Joaquim Pimenta, em sua Sociologia
Jurídica do Trabalho.
7.
Instituições de Direito do Trabalho, 2003. p. 41.
8.
David Lloyd George foi primeiro-ministro da Inglaterra entre
1916 a 1922.
9.
vide nota 1.
10. Prudente de Moraes foi eleito Senador constituinte pelo Estado
de São Paulo, entre 1890 e 1891. Exerceu a Presidência do Senado no mesmo período em que Floriano Peixoto, como vicepresidente, assumiu a Presidência da República. Foi o primeiro
Presidente Civil da República Brasileira, eleito por sufrágio
universal. Governou de 1894 a 1898, tendo sofrido forte oposição de florianistas (adeptos do governo militar do presidente
anterior, Marechal Floriano Peixoto) exaltados. No período
em que esteve afastado do governo, por motivo de saúde, foi
substituído pelo vice-presidente Manoel Vitorino Pereira, que
trocou todo o ministério colocando florianistas no poder. Ao
reassumir a Presidência, Prudente decretou estado de sítio
02/2009
20. A boa-fé no Contrato de Trabalho.
21. 1996, p. 254.
22. Délio Maranhão, 2003, p. 554.
24. Após, em 1982, foi editado o seu Decreto Regulamentador
nº 87.497/82.
25. Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de
Janeiro e mestre em Direito e Sociologia pela Universidade
Federal Fluminense.
26. A Comissão Temática Mista foi instituída pela Portaria nº 219,
de 5 de junho de 2001, do Ministério Público do Trabalho, a
qual é composta por membros do Ministério Público do
Trabalho, do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) e do
Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com o objetivo de realizar estudos
e apresentar conclusões sobre os programas de estágio acadêmico e de nível médio intermediados junto a órgãos e entidades públicas e privadas.
27. Pedro Delgado de Paula é advogado trabalhista de Belo Horizonte/MG e autor do artigo “Contrato de estágio como meio
fraudulento de contrato de trabalho”.
28. Tárcio José Vidotti é juiz do Trabalho, mestrando em Direito
pela Unesp e representante da Anamatra no Fórum Nacional
de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.
29. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
30. Este o entendimento do advogado Pedro Delgado de Paula, de
Rodrigo de Lacerda Carelli e de Maurício Godinho Delgado,
embora o sistema jurídico permita somente a concessão de
estágio por pessoas jurídicas.
31. A exigência de contrato prévio não é absoluta, uma vez que o
§ 2º do artigo 3º da Lei nº 6.494/77 dispõe que os estágios realizados sob a forma de ação comunitária estarão isentos de celebração de termos de compromisso. Ainda, quanto ao estágio
para realização de atividades de extensão, previsto no artigo 2º
do mesmo diploma legal, também se mostra desnecessária a
realização de um Termo de Compromisso.
32. Maurício Godinho Delgado, op. cit. p. 326.
33. Rogério Rangel é Auditor Fiscal do Trabalho na Delegacia
Regional do Trabalho de Santa Catarina, Agência de São
José.
34. Trabalho e profissionalização do jovem, 2004.
35. Carmem Caminho é Juíza do Tribunal Regional do Trabalho
da 4ª Região.
32
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
36. Ulisses Otávio Elias dos Santos é advogado e assessor jurídico
do Portal Nacional do Direito do Trabalho (PNDT).
37. V. anexos.
38. Op. cit.
ANEXOS
INSTRUÇÕES PARA A FISCALIZAÇÃO DE ESTÁGIO
OFÍCIO CIRCULAR SRT Nº 11/85, DE 9-9-85, E
ALTERAÇÕES DA SRT Nº 08/87, DE 29-7-87
DO: SECRETÁRIO DE RELAÇÕES DO TRABALHO
AO: DELEGADO REGIONAL DO TRABALHO
ASSUNTO: INSTRUÇÕES PARA A FISCALIZAÇÃO DE ESTÁGIO (ENCAMINHA)
Senhor Delegado:
Estamos encaminhando a V. S. para distribuição aos fiscais do
trabalho, instruções para a fiscalização do cumprimento das
normas contidas na Lei nº 6.494, de 7 de dezembro de 1977,
regulamentada pelo Decreto nº 87.497, de 18 de agosto de
1982, que dispõem sobre o estágio de estudantes de estabelecimentos de ensino superior e profissionalizante do 2º grau e
supletivo.
Tal medida visa impedir que as empresas utilizem o trabalho do
estudante sem a caracterização de estágio e sem o competente
registro, no caso da comprovação da relação empregatícia.
O Fiscal do trabalho, ao constatar a presença de estagiário, deve
solicitar os seguintes documentos, para exame:
1. Acordo de Cooperação (Instrumento jurídico) celebrado pela
EMPRESA (concedente) e a INSTITUIÇÃO DE ENSINO a que
pertence o ESTUDANTE.
Verificar:
1.1. a qualificação e assinatura dos acordantes (empresa e instituição de ensino);
1.2. as condições de realização do estágio;
1.3. a compatibilização entre as atividades desenvolvidas pelo
estagiário e as condições acordadas; e
1.4. a qualificação do Agente de Integração que, eventualmente, participe da sistemática do estágio, por vontade expressa das partes.
2. Termo de Compromisso de estágio entre a EMPRESA (concedente) e o estudante, com interveniência obrigatória da respectiva INSTITUIÇÃO DE ENSINO.
Verificar:
2.1. a qualificação e assinatura das partes (empresa e estudante)
e da instituição de ensino interveniente;
2.2. a indicação expressa de que o termo de compromisso
decorre do Acordo de Cooperação;
2.3. o número da apólice de seguro contra acidentes pessoais,
na qual o estagiário deverá estar incluído durante a vigência do
termo de compromisso do estágio, e o nome da companhia
seguradora;
2.4. o curso do estudante e a compatibilização do mesmo com
as atividades desenvolvidas na empresa;
02/2009
DOUTRINAS
2.5. a data de início e término do estágio; e
2.6. a qualificação do agente de integração, casa haja participação deste na sistemática do estágio.
3. Convênio entre a Empresa e o Agente de integração, quando
for constatada a participação deste no processo, onde estarão
acordadas as condições de relacionamento entre eles.
4. Carteira de trabalho e Previdência Social do estagiário, objetivando a verificação das anotações do estágio.
4.1. a anotação do estágio deverá ser feita nas páginas de anotações Gerais da CTPS do estudante, pela DRT ou por instituições
devidamente credenciada pelo MTB para tanto, com as indicações constantes do item 4.2; e
4.2. destas anotações, devem constar claramente o curso, ano e
instituição de ensino a que pertence o estudante. O nome do
concedente (empresa) e as datas de início e término do estágio.
O Fiscal do Trabalho, caso conclua pela descaracterização de
estágio, deverá exigir que a situação do estudante, como empregado da empresa, seja regularizada. Na hipótese de lavratura de
auto de infração, deverão ser mencionados no corpo do auto os
elementos de convicção do vínculo empregatício.
Caracterizando o estágio, o Fiscal limitar-se-á ao exame dos
documentos relacionados.
Quando se tratar de estudante estrangeiro, regularmente matriculado em instituições de ensino oficial ou reconhecida, os
documentos solicitados pela fiscalização para exame serão os
mesmos.
Atenciosamente,
PLÍNIO GUSTAVO ADRI SARTI
Secretário de Relações do Trabalho
MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL
GABINETE DO MINISTRO
Portaria N º 1.002 – DE 29 DE SETEMBRO DE 1967
O Ministro de Estado dos Negócios do Trabalho e Previdência
Social, RESOLVE:
Art. 1º – Fica instituída nas empresas a categoria de estagiário a
ser integrada por alunos oriundos das Faculdades ou Escolas
Técnicas de nível colegial.
Art. 2º – As empresas poderão admitir estagiários em suas
dependências, segundo condições acordadas com as Faculdades ou Escolas Técnicas, e fixadas em contratos-padrão de Bolsa
de Complementação Educacional, dos quais obrigatoriamente
constarão:
a) a duração e o objeto da bolsa que deverão coincidir com
programas estabelecidos pelas Faculdades ou Escolas Técnicas;
b) o valor da bolsa, oferecida pela empresa;
c) a obrigação da empresa de fazer, para os bolsistas, seguro de
acidentes pessoais ocorridos no local de estágio;
d) o horário do estágio;
Art. 3º – Os estagiários contratados através de Bolsas de Complementação Educacional não terão, para quaisquer efeitos,
33
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
vínculo empregatício com as empresas, cabendo a estas apenas
o pagamento da Bolsa, durante o período de estágio.
Art. 4º – Caberá às Faculdades ou Escolas Técnicas o encaminhamento dos bolsistas às empresas, mediante entendimento
prévio, não podendo ser cobrada nenhuma taxa pela execução
de tal serviço, tanto das empresas como dos bolsistas.
Art. 5º – O estagiário não poderá permanecer na empresa, na
qualidade de bolsista, por período superior àquele constante do
contrato de Bolsa de Complementação Educacional, por ele
firmado com a empresa.
Art. 6º – A expedição da Carteira Profissional de estagiário, por
especialidade, será feita pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, através de seus órgãos próprios, mediante apresentação de declaração fornecida pelo diretor do estabelecimento de ensino interessado.
Art. 7º – Esta Portaria entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
DO de 6 de outubro de 1967, pp. 10.161 e 10.162
DOUTRINAS
no contexto da promoção da integração ao mercado de trabalho, prevista na CF, artigos 1º, IV, e 170, VIII, realizar estudos e
apresentar conclusões sobre os programas de estágio acadêmico e de nível médio intermediados junto a órgãos e entidades
públicas e privadas.
II – Designar, para que componham a Comissão Temática Mista
ora instituída os seguintes Membros:
Representantes do Ministério Público do Trabalho:
Eliane Araque dos Santos – Procuradora Regional do Trabalho,
Presidente
Maria José Sawaya de Castro Pereira do Valle – Procuradora
Regional do Trabalho
Keley Kristiane Vago Cristo – Procuradora do Trabalho
Representantes do Centro de Integração Empresa Escola:
Luiz Carlos Eymael – Superintendente Operacional do CIEE/RS
Neusa Helena Menezes – Gerente de RH e Assuntos Jurídicos
do CIEE/SP
MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
Representantes do Instituto Euvaldo Lodi:
Portaria nº 219, de 5 de junho de 2001
José Carlos de Almeida – Professor
O PROCURADOR-GERAL DO TRABALHO, no uso de suas
atribuições, RESOLVE:
Fábio de Mello – Coordenador do Projeto Estágio Supervisionado
I – Instituir Comissão Temática Mista, composta por Membros
do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) e do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) para,
III – Fixar em 90 (noventa) dias, a contar desta data, o prazo
para a Comissão Temática Mista apresentar suas conclusões.
INFORME-SE
ADV – RESULTADO DE ENQUETE
Você é a favor das novas regras de contratação de estagiários, cujo teor, entre outros, limita a carga horária e assegura ao estagiário,
sempre que o estágio tenha duração igual ou superior a 1 ano, um período de recesso de 30 dias?
Sim, pois a atividade de estágio tem fins educacionais e a medida ajudará a melhorar o perfil dos profissionais no mercado na medida
em que eles terão mais tempo para as atividades e trabalhos acadêmicos.
70.1%
Não, pois a medida inibirá a contratação de estagiários em razão do aumento do custo para as empresas.
22.0%
Não tenho opinião formada sobre o tema.
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divulgadas no espaço Fale com a Red@ção.
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SELEÇÕES JURÍDICAS
PANORAMA
PANORAMA
OPINIÃO
ABORTO, RELIGIÃO E FÉ
Atahualpa Fernandez*
“Oh!, funesto erro..., por que fazes ver ao espírito
crédulo dos homens coisas que não são?”
SHAKESPEARE
Julio César
A
s crenças religiosas supõem na prática um universal da
natureza humana. Todas as culturas conhecidas contam
com a fé no sobrenatural como componente básico e comum
dentro de suas particularidades. Remontando-se atrás, as
primeiras manifestações de simbolismo – enterros, policromias,
representações pictóricas, etc. – podem ser vistas como práticas
mágicas; assim sucede com freqüência com suas interpretações
acadêmicas. Ter fé é algo, pois, muito comum entre os humanos
e suas tradições de pensamento. Talvez tenham sido os existencialistas quem melhor deram no alvo do por que: para fugir do
horror vacui, do pânico ao nada, da dissolução absoluta após a
morte. Admitida por todas as religiões exceto a budista, a vida
posterior confere ao crente uma esperança e lhe ajuda a superar
o vértigo da perspectiva da morte. Não é raro que os crentes se
mostrem nas estatísticas menos propícios à depressão, nem que
a fé religiosa seja um denominador comum em todos os círculos
sociais e culturais (para não mencionar o político).
O sofisma básico consiste em dizer
que abortar é matar a um humano,
cometer um homicídio, e, posto que
todas as pessoas civilizadas estamos
contra o assassinato, temos que estar
também contra o direito ao aborto,
que seria um direito ao homicídio.
Algo muito distinto é a tradução dessa fé em um credo concreto,
em uma doutrina como pode ser a cristã, a muçulmana ou a
judaica, por limitar-nos às três do Livro e deixando de lado suas
respectivas divisões em tendências. Para usar a definição de
religião dada por Ambrose Pierce, em seu famoso Devil´s
Dictionary, todas são filhas da “Esperança e o Medo, que lhe
explica à Ignorância a natureza do incognoscível”. E por mais
que sacerdotes e predicadores se aproveitem dessa dinâmica
explicativa para apelar à universalidade das crenças religiosas
em defesa de sua própria Igreja, o certo é que a dispersão de
credos particulares é um bom argumento em contra de qualquer
deles. Nada há de universal nem nos dogmas religiosos, nem na
Bíblia sequer. Mas os sacerdotes, e em especial os prelados
02/2009
brasileiros, andam metidos em uma espécie de cruzada que, se
seria discutível de limitar-se aos praticantes do catolicismo,
alcança limites intoleráveis quando pretende converter-se em
norma obrigatória para todos os cidadãos.
O último episódio desse disparate foi o da recente batalha em
relação com as células-tronco embrionárias para investigações
médicas e, já agora, o tema do aborto, casos – diga-se de passo –
que são qualificados não somente de pecaminosos senão inclusive de nada menos que de assassinatos ou “homicídio uterino”.
O sofisma básico consiste em dizer que abortar é matar a um
humano, cometer um homicídio, e, posto que todas as pessoas
civilizadas estamos contra o assassinato, temos que estar também
contra o direito ao aborto, que seria um direito ao homicídio.
Nada mais distante da realidade. O que de fato ocorre é que se
trata de uma crença completamente falsa, inventada e consolidada a partir da tentativa de usurpar para o campo do religioso
as decisões acerca do moralmente correto ou incorreto. O moralmente incorreto se equipara ao pecaminoso: atos que infringem o mandado divino. Como se verá ao longo deste artigo, em
temas como o do aborto, o matrimônio entre moral e religião
não só é forçado e perverso, senão que está pedindo a gritos o
divórcio (nosso sentido moral está construído em nosso cérebro
graças nossa herança evolutiva – M. Hauser).
O aborto está permitido e liberalizado em Estados Unidos,
Canadá, Rússia, França , Holanda, Inglaterra, Itália, China,
Noruega, Bélgica, Austrália, Áustria, Japão, Suécia e Cingapura,
assim como em tantos outros países nos quais o homicídio está
terminantemente proibido e gravemente apenado. Será verdade, então, que todos eles caem na flagrante contradição de
proibir e permitir ao mesmo tempo o homicídio, como pretendem os agitadores religiosos? Ou será mais bem que o aborto
não tem nada que ver com o homicídio? Parece óbvio que a
resposta a esta última pergunta só pode ser afirmativa. A tergiversação e a manipulação da realidade levadas a cabo em nome
da fé religiosa tem feito deste mundo um lugar pior.
De um modo geral, um dos verdadeiramente nefastos efeitos da
religião é que nos inculca como virtude o estar satisfeitos com o
desconhecimento (R. Dawkins). Mas os especialistas mais comprometidos, preferindo o assombro do entendimento frente ao
assombro da ignorância, não param de aconselhar aos governos
de “países em desenvolvimento” (para não dizer “pobres”) para
pôr em marcha políticas vigorosas de controle de natalidade
como requisito indispensável, ainda que não suficiente, para
escapar do círculo infernal da pobreza e a degradação do meio.
Muitos desses governos seguramente seguiriam tais conselhos
se não fosse pela pressão em contra que exerce o fanatismo religioso, e em especial a Igreja Católica. O Vaticano continua a
reafirmar a famosa encíclica Humanae vitae, que estabelece sua
oposição à planificação familiar, à anticoncepção e ao aborto.
35
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
De fato, a influência da Igreja Católica fez com que em toda a
América Latina o aborto siga proibido, e que os organismos
internacionais sejam incapazes de adotar uma política racional
de contenção da explosão demográfica e, conseqüentemente,
de redução da pobreza. A morbosa obsessão do Vaticano levou,
inclusive, a beatificar a Gianna Beretta, uma fanática antiabortista cujo único mérito foi morrer por negar-se a uma operação
de útero que lhe haveria salvado a vida, pois estava grávida e
pensava que a vida do feto é mais valiosa que a da mãe. Uma
opinião assim, seguida de uma política beatificadora, é um
insulto às mulheres e à inteligência, e mais digna de lástima que
de admiração (Mosterín).
Quando uma determinada
ideologia religiosa transpõe a esfera
do privado e do pessoal discutir
acerca de princípios e valores
éticos absolutos baseados em
crenças ou mitos religiosos é inútil.
Um ideal difícil de compartir, exceto para o Vaticano e os
fundamentalistas cristãos e islâmicos, que confiam na providência divina e depreciam a dignidade e a racionalidade da criatura
humana. Não há nenhuma razão moral, filosófica e nem política que autorize esse tipo de postura. Qualquer pessoa que
creia que os interesses de um blastocisto podem prevalecer
sobre o direito de uma mulher a decidir ou arbitrar sobre seu
corpo, está com seu senso moral cegado pela metafísica religiosa. Dito de outro modo, de que são necessárias doses consideráveis de obnubilação ideológica para negar a liberação das
mulheres do jugo de uma gravidez não desejada.
Como já disse em outra ocasião, quando o espermatozóide de
um homem penetra no óvulo maduro de uma mulher e os núcleos haplóides de ambos gametos se fundem para formar um
novo núcleo diplóide, se forma um zigoto que (em circunstâncias favoráveis) pode converter-se no início de uma linhagem
celular humano, de um organismo que em suas diversas etapas
pode ser – em termos simplificados – mórula, blástula, embrião,
feto e, finalmente, um humano em ato, homem ou mulher.
Ainda que estágios de um mesmo organismo, um zigoto não é
uma blástula, e um embrião não é um humano. Um embrião é
um agrupamente celular, que vive em um meio líquido e é incapaz por si mesmo de ingerir alimentos, respirar ou excretar – isso
para não dizer que “lhe” resulta absolutamente impossível
sentir ou pensar.
Por certo que encerra a portentosa potencialidade de desenvolver-se durante meses até converter-se em um homem ou mulher. Mas não passa de uma vida em potencial. Uma criança é
um ancião em potência, mas uma criança não é um ancião nem
tem direito à aposentadoria. Um homem vivo é um cadáver em
potência, mas um homem vivo não é um cadáver. Enterrar a um
homem vivo é algo muito distinto e de muita diversa gravidade
que enterrar a um cadáver. Aos vegetarianos, aos que está proibido comer carne, lhes está permitido comer ovos, porque os
ovos não são galinhas, ainda que tenham a potencialidade de
02/2009
PANORAMA
chegar a sê-lo. Um embrião não é um homem, e portanto interromper a gravidez não é matar a um homem. O aborto, durante
os primeiros meses de gravidez, não é um assassinato. Ademais,
uma vez que os embriões humanos nesse período não têm atividade cerebral, não há sequer razão para acreditar que eles
possam sentir qualquer tipo de sofrimento, de maneira alguma.
Como se vê, parece que a única razão que justifica a proibição
desse tipo de prática é o tabu imposto pelo fundamentalismo
religioso. Onde a Igreja Católica (ou o fundamentalismo islâmico, ou o evangélico) não é prepotente e dominante, onde os
dogmas e os valores absolutos de corte religioso já não ultrapassam os estritos limites da fé individual, o aborto está permitido.
Mas quando isso não ocorre, quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e pretende converter-se em norma obrigatória para todos os cidadãos,
discutir acerca de princípios e valores éticos absolutos baseados
em crenças ou mitos religiosos é inútil porque seus interlocutores, que não são poucos, se negam terminantemente a admitir
qualquer tipo de argumento que ponha em causa suas fantasias
teológicas fundadas em mandamentos “divinos”, isto é, que
priorize a liberdade e a autonomia humana em detrimento da
vontade de um Deus onipotente e misericordioso. Quando a
postura moral alude a valores que alguém tem por universais,
divinos, eternos, incondicionais e obrigatórios, esse alguém não
vai dar o braço a torcer baixo nenhuma circunstância: assim se
lhe torture, se lhe dê argumentos razoáveis ou se lhe enfrente
com as necessidades de outras pessoas; seus valores supremos
não sofrerão nenhum câmbio.
Entrar em polêmicas com os prelados, predicadores ou devotos de
qualquer facção religiosa resulta
uma perda de tempo e até um
absurdo de raiz.
Entrar em polêmicas com os prelados, predicadores ou devotos
de qualquer facção religiosa resulta uma perda de tempo e até
um absurdo de raiz. Se pensa que cada embrião humano tem
uma alma merecedora de preocupação moral, que existe alma
em cada um dos blastócitos e que os interesses de uma alma –
digamos, de uma mãe abandonada a sua sorte, sem recursos
para alimentar a seu filho, só os justos para alimentar-se a si
mesma – não podem predominar sobre os interesses de outra
alma, mesmo que essa alma sequer tenha ainda um cérebro,
então apaga tudo e vamo-nos descansar. Nada do que sustentem os cientistas, os políticos e os juristas esclarecidos, fará
mover nem um milímetro a opinião dos fariseus dessa aterrorizante combinação de um dogma religioso com uma grande
estupidez, para dizer o mínimo.
Resulta até inútil voltar a recordar que os valores eternos e absolutos não se mostram nem absolutos, nem por vezes eternos.
A consideração de “ser humano”, de “dignidade humana”, foi
cambiando ao longo da história inclusive, por exemplo, por
parte da própria Igreja. E, se não fora inútil, seria coisa de recordar algumas encíclicas como aquela na qual o papa Paulo III,
referindo-se aos protestantes, assegurava que “enforcarei, mata36
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
rei de fome, ferverei, esfolarei, estrangularei e enterrarei vivos a
esses hereges infames; desgarrarei os estômagos e os úteros de
suas mulheres e esmagarei as cabeças de seus filhos contra a
parede”. E nem sequer eram embriões.
Salvo que as mulheres e os filhos dos hereges, deixando de lado
aos próprios hereges, claro, não sejam considerados seres
humanos, parece que há aí um pequeno problema enquanto ao
absoluto dos valores. Certo é que sucedia em 1576, mas os valores que querem ser eternos, porque atemporais, não entendem
de séculos. Se não fora inútil, caberia argumentar que os papas
fundadores do Santo Ofício tinham suas razões para obrar como
obraram, na medida em que os valores não são nem tão eternos
nem tão absolutos como para rechaçar os matizes. Opôr-se a
Galileu era até razoável em 1633, quando se lhe obrigou a
enunciar sua cérebre retratação. Mas não o é hoje, nem ninguém na Igreja Católica, que eu tenha notícia, pretende fazê-lo.
Sucede que desde 1633 até hoje hão passado quase quatro
séculos. Talvez, pois, dentro de quatro mais a Igreja Católica e
as demais facções fundamentalistas – se é que existirão no
Brasil, porque os sacerdotes e predicadores seguro que sim –
entendam que o aborto, em um país onde o índice de miséria já
quase atinge o umbral do intolerável, não somente deveria ser
admissível senão que desejável.
O que se espera é que, em temas como a legalização do aborto,
se deixe de lado essas discussões inúteis acerca de valores eternos e absolutos fundados em idiossincrasias religiosas. Qualquer prelado, predicador ou devoto religioso que insista na
defesa de argumentos irracionais é um perigo para o exercício
pleno da cidadania e para a própria sobrevivência da humanidade. E em que pese sigam imperando entre as altas instâncias
da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita a natureza do homem e uma determinada ideologia religiosa, o melhor e mais prudente será, a partir
de agora, centrar-nos diretamente nas razões éticas, médicas,
jurídicas e sociais da legalização do aborto e reservarmos a
questão dogmática para os assuntos próprios do dogma: como
se há bases teológicas e litúrgicas para crer que as almas dos
embriões “assassinados” – a exemplo do que ocorre com as
almas das crianças mortas sem batizar – vão diretamente ao
paraíso; se há algum mandado divino que envie diretamente ao
inferno e sem escala os sacerdotes que abusam de menores
inocentes; ou até mesmo a oportunidade de devolver às mulheres a alma. Porque quanto a esta última não recordo quando,
nem por parte de quem, mas sim que me parece que lhes foi
negada por razões teológicas.
Em tema de aborto, o que realmente conta, no concernente à
liberdade e dignidade da mulher, é a sua autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não
passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência de qualquer dogma (religioso, moral, jurídico, etc.), são
motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto,
não nos são alheios (H. Frankfurt). Se é certo que em algumas
ocasiões uma gravidez imprevista será uma surpresa agradável
e inclusive maravilhosa, ou ao menos suportável, não menos
certo é que haverá circunstâncias em que representará partir
pela metade a vida de uma mulher, ou arruinar sua existência
pessoal, profissional ou o que seja. Somente à mulher interessada lhe é dado julgar essas circunstâncias, e não à caterva arrogante de políticos, prelados, predicadores, pastores, juízes,
médicos e burocratas empenhados em decidir por ela. O aborto
02/2009
PANORAMA
é um trauma. Nenhuma mulher o praticaria por gosto, de forma
impensada ou para satisfazer um capricho pessoal. Mas a
procriação e a maternidade são algo demasiado importante
como para deixá-lo à contingência de um erro ou um descuido
ou uma violação. O aborto, como o divórcio ou os bombeiros,
se inventou para quando as coisas falham.(Mosterín)
Já é hora de restituir às mulheres sua condição completa de ser
humano, reconhecendo direitos e garantias que até agora lhes
têm sido negados, direitos que assegurem (de forma inviolável,
autônoma e digna) a capacidade à esse coletivo humano concreto de plena e livre realização pessoal, familiar e social, isto é,
de pôr, no que se refere aos seus legítimos interesses, a autonomia e a autodeterminação ao efetivo serviço da eliminação ou
minimização da infelicidade e do sofrimento que padecem em
virtude de uma gravidez não desejada. De pôr os direitos humanos e fundamentais ao efetivo serviço de sua liberdade como
não interferência arbitrária, como princípio básico que assegura
e fundamenta a invariante axiológica do respeito incondicional
da dignidade da pessoa humana. Ainda que somente seja por
respeito aos valores absolutos.
É claro que em um terreno tão delicado como este a prudência
parece ser sempre uma boa atitude. Mas não deveríamos ser
prudentes por medo às mitologias ou dogmas religiosos senão
mais bem pela vontade de assegurar a liberdade plena a qualquer custo em benefício daquelas que as necessitam. Depois,
como agudamente observa Sam Harris, é claro que a posição da
Igreja não leva em conta os detalhes da biologia, assim como
não leva em conta a realidade do sofrimento humano. Já foi estimado que 50% de todas as concepções humanas terminam em
aborto espontâneo, em geral sem que a mulher sequer perceba
que estava grávida. Na verdade, 20% de todos os casos de gravidez reconhecidos terminam em aborto espontâneo. Existe aqui
uma verdade óbvia e gritante: se Deus existe, ele é o mais prolífico de todos os praticantes de abortos e o mais despiadado dos
homicidas uterino.
O direito a abortar é, para muitas
mulheres, ainda mais importante
que o direito a votar, e há de ser-lhes
reconhecido por todos os que estão
a favor da liberdade, da autonomia e
do respeito à dignidade humana
O certo é que a legalização do aborto tem por finalidade
desmascarar a tese daqueles que invocam o direito supremo à
vida sem entrar em matizes acerca da qualidade dessa vida e o
que se está pagando, em termos de sofrimento, por ela. O “direito à vida” se converte, assim, em uma bandeira defendida curiosamente por aqueles que parecem não ter, ou se negam a ter
quando o tema ronda a impessoalidade, uma dimensão real do
sofrimento humano. Isto é, de que aos prelados, predicadores e
devotos a quem afeta tal decisão não lhes importam muito esse
tipo de preocupação, desde que, no fundo, saiam beneficiados
aos olhos e aos caprichos de Deus. Algumas vezes a maldade e
37
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
a crueldade também podem disfarçar-se com uma proposta
“divinamente ética”.
Ademais, desde os próprios parâmetros dos dogmas religiosos,
que também estigmatizam o uso de anticoncepcionais e o vêem
como um pecado contra Deus, deveria resultar paradoxo que
um número absurdo de meninas tenham que recorrer aos hospitais públicos para tratar das complicações resultantes de aborto
feito por “marginais” (Drauzio Varella). Da mesma forma, e por
desgraça, também deveria resultar paradoxo o fato de que no
Brasil há um contingente imenso de mães forçadas com suas
vidas destroçadas e de crianças não desejadas, abandonadas à
indigência e a delinqüência, famintos, vivendo nas ruas em uma
situação de miséria extrema, com os cérebros malformados pela
carência alimentar e a falta de carinho e estímulo, carne de
trabalho para alguns empregadores inescrupulosos e submetidos a todo tipo de explorações prematuras.
O direito a abortar é, para muitas mulheres, ainda mais importante que o direito a votar, e há de ser-lhes reconhecido por
todos os que estão a favor da liberdade, da autonomia e do
respeito à dignidade humana (ainda que seja da mulher), inclusive por aqueles que pessoalmente jamais abortariam. Pretender impor uns dogmas muito particulares a qualquer, seja católico, protestante, judeu, muçulmano, animista ou agnóstico, é
um disparate sobre o que deveriam atuar os operadores do direito em nome da Constituição. É difícil ser religioso e não estar
disposto a submeter suas crenças a um exame crítico em uma
época em que a ciência derruba todas as barreiras. Mas sê-lo às
ordens de determinados indivíduos atrelados a dogmas, mitos
ou profecias do passado resulta, ademais de difícil, um exercício obrigatório de cinismo magistral.
02/2009
PANORAMA
Uma das mais surpreendentes condições da natureza humana é
a da tendência a persistir nos erros inclusive quando esses se
fazem patentes com uma contundência dolorosa. Claro que se
as conseqüências da abundância no erro fossem unicamente
para quem o comete, a coisa não passaria de ser grotesca mas
inofensiva. Sucede, sem embargo, que opôr-se à planificação
familiar, à anticoncepção, a utilização de células-tronco embrionárias para pesquisas com fins científicos e terapêuticos e
ao aborto trazem seqüelas (especialmente para os “países em
desenvolvimento”) que deveriam levar a que o próprio Tribunal
de Haya intervisse.
E não estou falando já de pura “semântica” ou de alguns prelados incapazes de entender que o pedir perdão a posteriori é o
menos que cabe fazer quando se levam a cabo determinadas
barbaridades. Trata-se de que a mensagem que chegue à cidadania seja outra, que ensinemos a nossos filhos que não constitui nenhuma virtude acrescentar o arrependimento à barbárie, o
empenho brutal e o perdão cínico à intolerância e aos equívocos constantes, o respeito tardio pela liberdade e autonomia dos
demais à falta de sentido comum, e, acima de tudo, de que há
poucas coisas mais perigosas que a certeza religiosa endogâmica.
* Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade
Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela
Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas
pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do
Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa
Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU – Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público
pela UFPa.; Professor Titular-Unama/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado); Advogado
38
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
PANORAMA
GESTÃO DE CARREIRA E MARKETING JURÍDICO
RELAÇÕES PÚBLICAS NA ADVOCACIA
O advogado precisa ser o principal promotor da marca
de seu escritório, com ética e espírito público
• Publicação de artigos.
Ari Lima*
• Produção de notícias de utilidade pública.
“Não fazer da banca balcão,
ou da ciência mercatura.”
Rui Barbosa, jurista e político
S
endo um profissional com importante função social, o
operador do Direito deve saber tratar sua comunicação com
a sociedade com a mesma relevância como que se prepara
tecnicamente para lidar com as leis. Neste sentido, todo escritório jurídico precisa ter um sistema organizado de relações públicas, não apenas para difundir a marca do escritório e se promover profissionalmente, mas, principalmente, como forma de
prestar um importante serviço à sociedade esclarecendo questões jurídicas relevantes e que tenham um impacto cotidiano na
vida das pessoas.
O advogado que desenvolve
adequadamente um sistema de
relações públicas pode construir
uma carreira de sucesso à
medida que busca atender
estas expectativas sociais de
informação e aconselhamento.
Muitos conflitos sociais e demandas jurídicas despertam comoção social, assim como diversas outras situações jurídicas interferem diretamente na vida das pessoas e geram expectativas de
esclarecimentos por parte da sociedade. Deste modo, o advogado que desenvolve adequadamente um sistema de relações
públicas pode construir uma carreira de sucesso à medida que
busca atender estas expectativas sociais de informação e aconselhamento.
Cada vez mais, a complexidade da sociedade exige esclarecimento de questões polêmicas. Assuntos como direito do consumidor, comércio via internet, direito de família, nova lei da
falência para pequenas empresas, assédio profissional, entre
outras demandas sociais, são motivos de dúvidas e necessitam
de aconselhamento adequado. Em todos estes casos o profissional capaz de oferecer estes esclarecimentos é o advogado.
Existe uma série de ações que podem ser incorporadas à gestão
de um escritório jurídico com o objetivo de promover sua
imagem junto à comunidade. Estas ações precisam estar em
sintonia com o código de ética da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), que em geral faz diversas restrições à forma como
um operador do Direito deve promover seus serviços, por ser
esta uma profissão com um forte cunho social. As principais
ações que podemos sugerir são:
02/2009
• Atuação em associações e entidades.
• Promover e ministrar palestras informativas.
• Desenvolver contínuo relacionamento com a imprensa.
A publicação de artigos de interesse de seu público alvo, em
sites, blogs e portais da internet, além do envio de matérias a
jornais e revistas, é um ótimo expediente, que pode ser utilizado
regularmente pelos escritórios de advocacia e seus profissionais. Certamente dentro da área de atuação do advogado existem diversos assuntos que despertam interesses em setores da
comunidade. Vejamos alguns:
• Advogados trabalhistas podem escrever sobre como as
empresas se prevenirem contra ações trabalhistas específicas, ou mesmo sobre possibilidades reais de empregados
protegerem seus direitos baseados em uma lei específica.
• Advogados tributaristas podem escrever sobre a regulamentação de novas leis de interesse de um setor específico,
ou formas de consumidores diminuírem o pagamento de
impostos.
• Advogados especializados em direito do consumidor
podem escrever artigos sobre novas formas de empresas
evitarem ações no PROCON, ou de consumidores protegerem seus direitos ao realizar contratos com empresas.
• Contratos com planos de saúde, operadoras de telefonia
celular, sistema bancário, consórcio de automóveis, etc.,
resultam, freqüentemente, em conflitos. Em geral, estas
questões necessitam de grande esclarecimento público.
Recentemente, houve uma grande polêmica em torno da atuação de escritórios de advocacia, que procuraram oferecer seus
serviços a parentes de vitimas de acidente aéreo num momento
imediatamente posterior ao fato. De maneira totalmente inadequada, estes profissionais acabaram causando transtorno em
um momento emocional delicado na vida destas pessoas. Tudo
que precisariam fazer para disponibilizar seus serviços seria
publicar artigos esclarecedores sobre os diretos destas pessoas
em caso de acidente aéreo mostrando a melhor forma de proceder nestas situações.
Certamente, as pessoas interessadas iriam procurar estes profissionais no momento oportuno para maiores esclarecimentos e
eventualmente solicitar seus serviços. Assim, o advogado, além
de prestar relevante serviço público, ainda estaria promovendo
de forma positiva a imagem de seu escritório.
Estes são apenas alguns exemplos, mas existem muitos temas
interessantes que podem ser explorados em artigos e despertar
interesse do público em geral, de consumidores e de possíveis
clientes. No entanto, é importante salientar que se devem evitar
conotações mercantilistas nestes artigos. O objetivo destas matérias é informar, e em função deste serviço prestado à comunidade, o profissional torna-se reconhecido como autoridade no
assunto.
39
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
A produção de notícias de utilidade pública também é um
ótimo expediente para promover a imagem de um escritório ou
advogado. Por exemplo, se um escritório resolve desenvolver
uma pesquisa independente sobre um determinado assunto de
interesse social, e em seguida publicar os resultados através de
artigos, ou mesmo enviando a pesquisa à imprensa, esta ação
pode gerar um interesse, caso seja de fato relevante para a
comunidade.
O desdobramento de uma ação como esta pode ser um convite
para participar de entrevistas na imprensa e apresentação do
tema em palestras e reuniões, gerando uma projeção da imagem do profissional na comunidade.
Estudos e estatísticas sobre soluções judiciais de relações de
família, conflitos de relações de consumo que resultam em
ações nos tribunais de pequenas causas, numero de ações de
assédio sexual ou profissional na atualidade ou estudos sobre
direitos do contribuinte, por exemplo, podem despertar grande
interesse popular e servir de base para a realização de matérias
na imprensa.
Outra forma de promover um escritório e seus profissionais é
atuar em associações, entidades e eventos. Se o advogado participa ativamente de alguma entidade de classe, eventualmente
ele poderá ser chamado para dar entrevistas ou comentar assuntos de interesse público relacionado à entidade junto a órgãos
de imprensa.
Juristas de renome como Rui Barbosa, Sobral Pinto e Miguel
Reale ganharam destaque não apenas pelas suas reconhecidas
competências jurídicas, mas também pela atuação que tiveram
em entidades, conferências e eventos de cunho social.
Rui Barbosa, além de ser um dos fundadores e ter participação
ativamente na Academia Brasileira de Letras, entidade de grande relevância nacional, sendo seu presidente de 1908 a 1919,
ficou internacionalmente conhecido por sua atuação na conferência de Haia, que teve como objetivo a solução pacífica de
importantes controvérsias internacionais, ganhando a alcunha
de “Águia de Haia”, no ano de 1907.
Sobral Pinto ficou conhecido por sua defesa intransigente dos
direitos humanos, participando de eventos e entidades que
promoviam a amparo destes direitos, e se envolvendo pessoalmente na defesa jurídica de presos ilustres com Luis Carlos Prestes, passou a ser uma referencia nacional e internacional na
defesa dos direitos humanos.
Miguel Reale foi supervisor da comissão elaboradora do Código
Civil Brasileiro de 2002, cujo projeto foi posteriormente sancionado. Participou de diversas conferências de Filosofia e de Direito no Brasil inteiro e no exterior. Na coluna quinzenal no jornal
O Estado de São Paulo escreveu sobre questões filosóficas, jurídicas, políticas e sociais da atualidade. Organizador de sete
Congressos Brasileiros de Filosofia (1950 a 2002) e do VIII
Congresso Interamericano de Filosofia (Brasília, 1972). Aravés
de todas estas atuações, acabou consolidando-se como um dos
mais importantes juristas que o Brasil Já teve.
Ministrar palestras é uma forma eficaz de relações públicas, pois
este é um modo útil de estar constantemente expondo e promovendo a imagem do profissional. Realizar conferências gratuitas
para entidades e associações pode ser um ótimo caminho, assim
como o próprio escritório organizar, periodicamente, eventos
02/2009
PANORAMA
em forma de palestras e cursos em parceria com associações,
para difundir idéias de utilidade social, que certamente trarão
ótimos resultados.
criar um sistema de relações públicas nada mais é do que incorporar
ao dia a dia do profissional, ações
que tenham como objetivo
desenvolver uma comunicação
adequada com a sociedade.
O contato com a imprensa e os meios de comunicação em
geral, é fundamental aprender a agir de maneira adequada e
transformar as ações citadas anteriormente em uma promoção
positiva da imagem do advogado e de seu escritório. Algumas
dicas importantes:
• Não tente vender seu produto para a imprensa.
• Apresente sempre informações relevantes e de interesse
social.
• Mantenha sua credibilidade, não “invente” notícias.
• Seja sociável, trate a imprensa com respeito, mesmo em
situações de tensão, quando estiver atuando em um caso
polêmico.
• Mantenha contato freqüente com a imprensa, um dia
poderá precisar dela.
• Mantenha a imprensa informada de todas as ações sociais
de seu escritório através de releases.
Como vimos, criar um sistema de relações públicas nada mais é
do que incorporar ao dia a dia do profissional, ações que tenham como objetivo desenvolver uma comunicação adequada
com a sociedade. Desta forma, além de prestar relevantes serviços sociais, o advogado e seu escritório conseguirão construir
uma reputação profissional positiva.
A maior parte destas ações podem ser praticadas por qualquer
advogado, pois não necessitam de grande investimento financeiro. Em geral o que o profissional precisará é ter uma boa
preparação, não apenas tecnicamente como operador do Direito, mas também desenvolvendo habilidades como escritor e
conferencista. Saber comunicar-se de maneira objetiva e agradável tanto na escrita como na comunicação oral, será fundamental neste processo.
A exemplo dos grandes juristas da história, o advogado que aprende a desenvolver um sistema de relações públicas para promover
sua própria carreira e a marca de seu escritório estará perfeitamente sintonizado com o código de ética da OAB e poderá em
pouco tempo colher os frutos destas ações de marketing jurídico.
* Empresário, engenheiro civil, escritor, e consultor especializado em
marketing jurídico e gestão de escritórios de advocacia
40
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
· HC 85.718-3/DF
DJ-E 5-12-2008
EMENTA
mento constitucional que abomina apenas as provas obtidas por meios ilícitos, não se pode priorizar a perícia como
único meio de comprovar a materialidade de crimes relacionados ao exercício ilegal de profissão da área da saúde.
AÇÃO PENAL – CONDENAÇÃO – CONCURSO MATERIAL – CRIMES DE EXERCÍCIO ILEGAL DA ARTE
FARMACÊUTICA E DE CURANDEIRISMO – INADMISSIBILIDADE – INCOMPATIBILIDADE ENTRE OS TIPOS PENAIS PREVISTOS NOS ARTIGOS 282 E 284
DO CÓDIGO PENAL – PACIENTES NÃO IGNORANTES NEM INCULTOS – COMPORTAMENTO CORRESPONDENTE, EM TESE, AO ARTIGO 282 DO CP –
FALTA, PORÉM, DE LAUDO PERICIAL SOBRE AS
SUBSTÂNCIAS APREENDIDAS – INADMISSIBILIDADE DE EXAME INDIRETO – ABSOLVIÇÃO DOS PACIENTES DECRETADA – HC CONCEDIDO PARA ESSE
FIM – INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 167 DO CPP –
PRECEDENTES.
Embora o curandeirismo seja prática delituosa típica de
pessoa rude, sem qualquer conhecimento técnico-profissional da medicina e que se dedica a prescrever
substâncias ou procedimentos com o fim de curar doenças,
não se pode descartar a possibilidade de existência do
concurso entre tal crime e o de exercício ilegal de arte
farmacêutica, se o agente também não tem habilitação
profissional específica para exercer tal atividade.
Excluindo-se, entre si, os tipos previstos nos artigos 282 e 284
do Código Penal, dos quais só primeiro se ajustaria aos fatos
descritos na denúncia, desse delito absolve-se o réu, quando
não tenha havido perícia nas substâncias apreendidas.
Habeas corpus denegado" (fl. 215).
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros
da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello, na conformidade da
ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade
de votos, em deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do
voto do Relator. Falou, pelos pacientes, o Dr. Marcelo Leal de
Lima Oliveira. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os
Senhores Ministros Ellen Gracie e Eros Grau.
Brasília, 18 de novembro de 2008.
Cezar Peluso – Relator
RELATÓRIO
O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): Trata-se de habeas
corpus, impetrado em favor de N.V.P. e A.F.O.R., contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao
julgar o HC nº 36.244, lhes denegou a ordem, em decisão assim
ementada:
“HABEAS CORPUS – EXERCÍCIO ILEGAL DE ARTE FARMACÊUTICA E CURANDEIRISMO – LAUDO PERICIAL –
EXIGÊNCIA – PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO
M OT IV A D O ( A RT I G O 1 58 , C / C 16 7 , C P P ) –
DIVERSIDADE, INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA DE
C ON D U T A S D EN U N C I A D A S – BI S I N I D E M ,
CONCURSO DE CRIMES E CONSUNÇÃO – NÃO
CONFIGURAÇÃO.
‘A falta de exame de corpo de delito direto não implica em
nulidade de processo penal, visto que, nos termos do artigo
158, c/c o artigo 167, do Código de Processo Penal, pode
ele ser suprido pelo indireto, sendo certo, ainda, que em
atenção ao princípio do livre convencimento e do manda02/2009
Reconhecida a prática de duas condutas distintas e independentes, não há como se proclamar ilegal a condenação
por cada uma delas, não se mostrando, in casu, ter havido
bis in idem ou indevida atribuição de concurso de crimes,
não cabendo, ainda, aplicação da consunção entre os delitos, tanto mais na estreita via do habeas corpus, por demandar incursão profunda e valorativa em seara fático-probatória.’
Alegam os impetrantes que a condenação dos pacientes é
ilegal, por apresentar os seguintes vícios: a) ausência de materialidade dos delitos, o que conduziria à incompetência da
Justiça Comum para processar e julgar o feito; b) impossibilidade de concurso material entre os delitos de exercício ilegal da
arte farmacêutica e curandeirismo; c) ilegalidades na fixação da
pena.
Requerem anulação do processo da Ação Penal nº
2000.01.1.078317-8, em trâmite na 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária Especial de Brasília/DF, nos termos do
disposto no artigo 564, III, “b”, do CPP; ou, por impossibilidade
de concurso material de delitos, a nulidade da sentença, com
remessa dos autos ao Juizado Criminal Especial competente
(artigo 2º da Lei nº 10.259/2001); ou, finalmente, a redução da
pena ao mínimo legal.
Pedi informações ao Superior Tribunal de Justiça, que as prestou
(fls. 214 e ss.)
Deferi liminar, para suspender os efeitos da condenação imposta aos pacientes, até o julgamento final deste pedido de writ
(fls. 238-241).
Pedi informações ao juízo de primeiro grau, o qual remeteu a
íntegra do Processo-Crime nº 2000.01.1.085123-2, que tramitou perante a 1ª Vara Criminal de Brasília (volumes em apenso).
A Procuradoria-Geral da República opinou pelo deferimento da
ordem (fls. 256-260).
É o relatório.
VOTO
O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): 1. Assiste razão aos
impetrantes.
Verifico, desde logo, haver contradição lógico-jurídica intrínseca às condenações impostas aos pacientes. É que foram
condenados ambos pela prática de exercício ilegal da arte
41
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
farmacêutica (artigo 282 do Código Penal) e de curandeirismo
(artigo 284). Mas vejamos o teor dos tipos penais:
“Art. 282 – Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão
de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização
legal ou excedendo-lhe os limites: Pena – detenção, de 6
(seis) meses a 2 (dois) anos”.
“Art. 284 – Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa".
Ora, os tipos são excludentes entre si, pois, no caso do artigo
282, exige-se que o agente apresente aptidões ou conhecimentos médicos, ainda que sem a devida autorização legal para
exercer o respectivo ofício, enquanto, para configurar-se o do
artigo 284, é preciso que o agente seja pessoa inculta ou ignorante. Veja-se, a respeito, a lição de HUNGRIA:
“Segundo o conceito tradicional ou vulgar, curandeiro é o
indivíduo inculto, ou sem qualquer habilitação técnicoprofissional, que se mete a curar, com o mais grosseiro
empirismo. Enquanto o exercente ilegal da medicina tem
conhecimentos médicos, embora não esteja devidamente
habilitado para praticar a arte de curar, e o charlatão pode
ser o próprio médico que abastarda a sua profissão com
falsas promessas de cura, o curandeiro (carimba, mezinheiro, raizeiro é o ignorante chapado, sem elementares conhecimentos de medicina, que se arvora em debelador dos
males corpóreos” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. RJ: Forense, 1958. Vol IX, p. 154, nº 83).
No mesmo sentido, DELMANTO entende que só pode ser sujeito ativo do crime de curandeirismo a pessoa “desprovida de
conhecimentos científicos” (in Código Penal Comentado, 7ª ed.,
p. 708). O autor ressalta, ainda, que, ”para que haja crime deve
haver comprovação de que o perigo de dano à saúde pública
efetivamente ocorreu” (idem, p. 709).
Assim, resta saber qual deles está, em tese, configurado pelos
fatos narrados na denúncia.
Ora, segundo a descrição desta, não se trata de ato cometido
por pessoas rudes, desprovidas de recursos técnicos, mas, sim,
por agentes que, mediante diagnóstico e manipulação de
substâncias, prescreviam “supostos medicamentos que eles
mesmos produziam e comercializavam (fls. 35-36). Confirma-o
a sentença condenatória, ao afirmar que as vítimas ”tiveram um
tratamento típico daqueles que se faz com um médico” (fl. 133).
Diante disso, tenho por errônea a qualificação dos fatos como
curandeirismo, cujo tipo penal não convém ao caso. Fazendo-se passar por médicos, os pacientes estariam sujeitos às
penas do artigo 282 do Código Penal.
Mas tal acusação não merece melhor sorte.
A denúncia assim descreve a primeira série de condutas que
encontrariam adequação típica no crime de exercício ilegal de
medicina, arte dentária ou farmacêutica:
“Os denunciados, com unidade de desígnios, sem qualquer
formação científico-profissional, praticaram, com a evidente
habitualidade, sem autorização legal e mediante remuneração em dinheiro, atos privativos da profissão de farmacêutico (...), que consistiram no desempenho da função de
dispensário (responsável por laboratório farmacêutico) e de
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
manipulação de fórmulas farmacopéicas (...), prestando
serviços diretamente ao consumidor final, tendo atendido
centenas de pacientes” (fl. 35).
Suposto não haja controvérsia sobre o fato de os pacientes não
serem farmacêuticos, o tipo penal somente se configuraria, se as
substâncias encontradas em seu poder fossem autênticos compostos alopáticos.
Por isso, os impetrantes sustentam, com razão, que o bom sucesso da acusação dependeria, inexoravelmente, de perícia das
substâncias, não bastando o Laudo de Exame de Local, efetuado
pelos peritos do Instituto de Criminalística (fls. 86 e ss.).
Mas o juízo de primeiro grau, afastando do âmbito da adequação típica os produtos classificados nas terapias ditas holísticas
sob o título “florais de Bach” (fl. 115) e afirmando que ”havia no
local grande quantidade de produtos e fórmulas farmacopéicas,
do tipo tinturas, extratos, florais, homeopáticos e fitoterápicos”
(fl. 117), entendeu que os depoimentos dos agentes da vigilância sanitária e a apreensão de provetas, frascos vazios, rótulos
separados, tinturas e instrumentos para fracionamento e medição, seriam “evidências claras” de que os pacientes ”faziam
surgir” remédios a partir de “seus produtos”. E remeteu-se à
conclusão do Laudo de Exame de Local: ”Assim, em face do
exposto, concluem os peritos que no local examinado estavam
sendo manipuladas substâncias com o objetivo de produzir
compostos de natureza medicamentosa” (fl. 123).
A leitura da íntegra do Processo-Crime nº 2000.01.1.085123-2
não permite saber os motivos pelos quais não se realizou perícia
nas substâncias apreendidas – cumprido o mandado de busca e
apreensão, apenas a CPU foi submetida à análise do Instituto de
Criminalística (fl. 27, Apenso nº 5). O fato é que perícia não
houve, e, assim, não vejo como concluir que os pacientes
“manipulavam extratos, florais, tinturas, essências, produtos
fitoterápicos e homeopáticos, misturando-os e obtendo remédios” (fl. 135). Aliás, ao que se colhe dos autos, não é absurdo
supor que as substâncias recolhidas fossem água, chás, sucos
etc., sem nenhum potencial medicamentoso.
E, diversamente do que afirma o acórdão atacado, neste caso a
ausência do exame de corpo de delito não pode ser suprida
mediante exame indireto, nos termos do artigo 167 do Código
de Processo Penal. É que, como se sabe, tal regra é aplicável aos
casos em que os vestígios hajam desaparecido. Mas, de acordo
com a sentença, os produtos foram apreendidos, mas não
submetidos a exame pericial para verificar-lhes a natureza das
substâncias. O objeto da prova estava à disposição do juízo,
que a não produziu!
Como bem lembrou o representante do Ministério Público
Federal, há precedentes desta Corte no sentido de que a
ausência de perícia, nos casos em que esteja disponível o
objeto material do crime, leva à nulidade absoluta do processo (cf. RHC nº 62.743, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de
2-8-85). A propósito, nem se entende o porquê o representante
do Ministério Público tenha, ao cabo das alegações finais,
requerido a decretação da perda de todos os documentos e
coisas apreendidos para efeito de destruição (fl. 110).
Está claro, pois, que a condenação pelo crime previsto no artigo
282 do Código Penal, fundada apenas nas conclusões do Laudo
de Exame Local, padece de nulidade, nos termos do artigo 564,
III, “b”, do Código de Processo Penal.
Anulada a condenação por prática de exercício ilegal da arte
farmacêutica, à míngua de exame de corpo de delito nas
substâncias apreendidas, e inaplicável ao caso o tipo penal de
curandeirismo, faz-se mister a absolvição dos pacientes.
42
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Ante ao exposto, concedo a ordem, para absolver, como absolvo, os pacientes, prejudicados os demais pedidos.
SEGUNDA TURMA
EXTRATO DE ATA
HABEAS CORPUS 85.718-3
PROCED.: DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO
PACTE.(S): NEWTON VIEIRA DE PAIVA
PACTE.(S): ANA FÁTIMA DE OLIVEIRA ROCHA
IMPTE.(S): MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de
habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelos
pacientes, o Dr. Marcelo Leal de Lima Oliveira. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Ellen
Gracie e Eros Grau. 2ª Turma, 18-11-2008.
Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello. Presentes à
sessão os Senhores Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa.
Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Ellen Gracie
e Eros Grau.
Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi.
Carlos Alberto Cantanhede – Coordenador
· Ag. Reg. Pet. 4.444-4-DF
DJ-E 19-12-2008
EMENTA
INTERPELAÇÃO JUDICIAL – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES AJUIZADO CONTRA DEPUTADO FEDERAL
(CP, ARTIGO 144) – POSSIBILIDADE DESSA MEDIDA CAUTELAR, NÃO OBSTANTE A GARANTIA DA
IMUNIDADE PARLAMENTAR, POR SE TRATAR DE
CONGRESSISTA-CANDIDATO – IMPUTAÇÕES ALEGADAMENTE OFENSIVAS – AUSÊNCIA, NO ENTANTO, DE DUBIEDADE, EQUIVOCIDADE OU AMBIGÜIDADE – INEXISTÊNCIA DE DÚVIDA OBJETIVA
EM TORNO DO CONTEÚDO MORALMENTE OFENSIVO DAS AFIRMAÇÕES – INVIABILIDADE JURÍDICA DO AJUIZAMENTO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL, POR FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL –
RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO – COMPETÊNCIA PENAL ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL PARA O PEDIDO DE EXPLICAÇÕES.
A competência penal originária do Supremo Tribunal Federal,
para processar pedido de explicações em juízo, deduzido com
fundamento no Código Penal (artigo 144), somente se concretizará quando o interpelado dispuser, ratione muneris, da prerrogativa de foro, perante a Suprema Corte, nas infrações penais
comuns (CF, artigo 102, I, “b” e “c”).
PEDIDO DE EXPLICAÇÕES CONTRA PARLAMENTAR QUE É
CANDIDATO: POSSIBILIDADE DE SEU AJUIZAMENTO.
– A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, artigo 53, caput) – destinada a viabilizar a
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
prática independente, pelo membro do Congresso Nacional, do
mandato legislativo de que é titular – não se estende ao congressista, quando, na condição de candidato a qualquer cargo
eletivo, vem a ofender, moralmente, a honra de terceira pessoa,
inclusive a de outros candidatos, em pronunciamento motivado
por finalidade exclusivamente eleitoral, que não guarda qualquer conexão com o exercício das funções congressuais. Precedentes.
– O postulado republicano – que repele privilégios e não tolera
discriminações – impede que o parlamentar-candidato tenha,
sobre seus concorrentes, qualquer vantagem de ordem jurídico-penal resultante da garantia da imunidade parlamentar, sob
pena de dispensar-se, ao congressista, nos pronunciamentos
estranhos à atividade legislativa, tratamento diferenciado e seletivo, capaz de gerar, no contexto do processo eleitoral, inaceitável quebra da essencial igualdade que deve existir entre todos
aqueles que, parlamentares ou não, disputam mandatos eletivos. Precedentes: Inq. 1.400-QO/PR, Rel. Min. Celso de Mello
(Pleno), v.g.
– Conseqüente possibilidade jurídica de o congressista-candidato sofrer, em tese, interpelação judicial para os fins e efeitos
a que se refere o artigo 144 do Código Penal, desde que atendidos os requisitos que condicionam a formulação do pedido de
explicações em juízo.
NATUREZA E FINALIDADE DO PEDIDO DE EXPLICAÇÕES
EM JUÍZO.
O pedido de explicações constitui típica providência de ordem
cautelar, destinada a aparelhar ação penal principal tendente a
sentença penal condenatória. O interessado, ao formulá-lo,
invoca, em juízo, tutela cautelar penal, visando a que se esclareçam situações revestidas de equivocidade, ambigüidade ou
dubiedade, a fim de que se viabilize o exercício futuro de ação
penal condenatória.
A notificação prevista no Código Penal (artigo 144) traduz mera
faculdade processual sujeita à discrição do ofendido. E só se
justifica na hipótese de ofensas equívocas.
O pedido de explicações em juízo acha-se instrumentalmente
vinculado à necessidade de esclarecer situações, frases ou
expressões, escritas ou verbais, caracterizadas por sua dubiedade, equivocidade ou ambigüidade. Ausentes esses requisitos
condicionadores de sua formulação, a interpelação judicial,
porque desnecessária, revela-se processualmente inadmissível.
– Onde não houver dúvida objetiva em torno do conteúdo
moralmente ofensivo das afirmações questionadas ou, então,
onde inexistir qualquer incerteza a propósito dos destinatários
de tais declarações, aí não terá pertinência nem cabimento a
interpelação judicial, pois ausentes, em tais hipóteses, os pressupostos necessários à sua utilização. Doutrina. Precedentes.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros
do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata de
julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de
votos e nos termos do voto do Relator, em negar provimento ao
recurso de agravo. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro
Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Senhor Ministro Marco
Aurélio e a Senhora Ministra Ellen Gracie.
43
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Brasília, 26 de novembro de 2008.
Celso de Mello – Relator
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se
de recurso de agravo, tempestivamente interposto, contra decisão que negou trânsito a “interpelação criminal” deduzida
contra o ora agravado, que é membro do Congresso Nacional.
Eis o teor da decisão, que, por mim proferida, sofreu a interposição do presente recurso de agravo (fls. 14/23):
“INTERPELAÇÃO JUDICIAL – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES AJUIZADO CONTRA DEPUTADO FEDERAL (CP, ARTIGO 144) –
POSSIBILIDADE, NÃO OBSTANTE A GARANTIA DA IMUNIDADE PARLAMENTAR, POR SE TRATAR DE CONGRESSISTA-CANDIDATO – IMPUTAÇÕES ALEGADAMENTE OFENSIVAS – AUSÊNCIA, NO ENTANTO, DE DUBIEDADE, EQUIVOCIDADE OU AMBIGÜIDADE – INEXISTÊNCIA DE DÚVIDA OBJETIVA EM TORNO DO CONTEÚDO MORALMENTE
OFENSIVO DAS AFIRMAÇÕES – INVIABILIDADE JURÍDICA
DO AJUIZAMENTO DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL, POR FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES
A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
– A questão do congressista-candidato e a impossibilidade de
invocação, por ele, em seu favor, e contra os demais concorrentes, da garantia da imunidade parlamentar em sentido material:
exigência de observância da igualdade de oportunidades, no
contexto do processo eleitoral, entre todos os candidatos, parlamentares ou não. Precedentes: Inq. 1.400-QO/PR, Rel. Min.
Celso de Mello, v.g..
– O pedido de explicações em juízo acha-se instrumentalmente
vinculado à necessidade de esclarecer situações, frases ou
expressões, escritas ou verbais, caracterizadas por sua dubiedade, equivocidade ou ambigüidade. Ausentes esses pressupostos, a interpelação judicial, porque desnecessária, revela-se
processualmente inadmissível.
– A interpelação judicial, por destinar-se, exclusivamente, ao
esclarecimento de situações dúbias ou equívocas, não se presta,
quando ausente qualquer ambigüidade no discurso contumelioso, à obtenção de provas penais pertinentes à definição da
autoria do fato delituoso.
– O pedido de explicações em juízo não se justifica quando o
interpelante não tem dúvida alguma sobre o caráter moralmente ofensivo das imputações que lhe foram dirigidas pelo
suposto ofensor. Doutrina. Precedentes.
DECISÃO: Trata-se de “interpelação criminal” deduzida, com
fundamento no artigo 144 do Código Penal, contra Leonardo
Quintão, que é membro do Congresso Nacional. Pretende-se
que este ofereça explicações necessárias ao esclarecimento de
afirmações que foram noticiadas no jornal “O Tempo” (edição
de 15-10-2008 – fls. 09).
O requerente assim justifica a presente interpelação judicial
(fls. 03/04):
“Como é fato público e notório, tanto o interpelante quanto o
interpelado são, atualmente, candidatos ao cargo de Prefeito do
Município de Belo Horizonte, no pleito de 2008, em sua disputa
de 2º Turno.
Dentro do contexto de campanha eleitoral, como é costumeiro,
vem sendo o interpelante vítima de ataques à sua honra, vinculados ao ‘denuncismo’ peculiar que sempre aflora nas proximidades dos debates para a escolha dos candidatos.
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
E, nesse diapasão, o interpelante tomou ciência de matéria
publicada no periódico ‘O Tempo’, com circulação nesta data,
que já anuncia, em sua manchete principal, o seguinte:
‘Eleição. Quintão chama Lacerda de preso comum em resposta
ao vídeo do chute na bunda.
SEGUNDO TURNO EM BH ENTRA EM CLIMA DE GUERRA.
Candidatos usam televisão, internet e debates para trocar acusações.
Os candidatos em Belo Horizonte partiram para a guerra.
Leonardo Quintão (PMDB) e Márcio Lacerda (PSB) trocam
acusações na TV, na internet e em debates. Ontem, na sabatina
de O Tempo, Quintão chamou Lacerda de preso comum, em
resposta à divulgação do vídeo em que o peemedebista diz que
vai chutar a bunda dos adversários’.
A matéria de fundo, localizada na página 3, traz o seguinte
conteúdo:
‘Sucessão. Candidatos abrem guerra na campanha de segundo
turno e começa a onda de denúncias.
QUINTÃO RESPONDE VÍDEO E DIZ QUE LACERDA FOI
PRESO COMUM.
PEEMEDEBISTA DIZ QUE ADVERSÁRIO ASSALTOU BANCO
E DEU CORONHADAS.
Desde anteontem à noite, o segundo turno da eleição em Belo
Horizonte está em clima de guerra, ao contrário do que aconteceu na primeira fase. O programa de televisão, a internet e os
debates transformaram-se em verdadeiras barricadas. Na tarde
de ontem, durante sabatina realizada pelo O Tempo, o candidato Leonardo Quintão (PMDB), ao se defender sobre um vídeo
divulgado no programa eleitoral do adversário Márcio Lacerda
(PSB) – em que aparece chutando o ar e afirmando que nós
vamos ganhar e chutar a bunda deles – disse que o socialista não
foi preso político e, sim, comum. Ele disse que Lacerda assaltou
banco e uma padaria e deu coronhadas durante suas ações. Ele
(Lacerda) fala que foi preso político e não foi. Ele foi preso
comum porque é assaltante de banco. E de uma padaria também,
disse, afirmando que acordo com militar não é coisa de preso
político. E repetiu preso comum, crime comum.
Lacerda disse ontem que realmente assaltou banco para obter
recursos para a resistência à ditadura militar. Ele ressaltou que as
declarações do rival demonstraram o total desconhecimento
dele sobre a história do Brasil.
O vice de Lacerda, Roberto Carvalho (PT) aconselhou Quintão
a se informar com a apoiadora Jô Moraes sobre a guerrilha no
Brasil.’
Como é óbvio, os fatos narrados são de notória inverdade, atentam contra a honra do interpelante e configuram, em tese, a
prática dos crimes de injúria e difamação.
Repare-se, a propósito, na seguinte afirmativa:
“Ele foi preso comum porque é assaltante de banco. E de uma
padaria também.”
Diante desse contexto, se infere que o interpelado vem se utilizando do espaço democrático, de debate político, para difamar
e injuriar o interpelante, jogando por terra a preciosa luta que
ele e tantos outros encamparam ao longo de sua juventude, com
o objetivo de propiciar a liberdade de expressão na República.
Mais do que isso: ao reputar como ‘crime comum’ uma ação
sabidamente revolucionária, o interpelado, irresponsavelmente,
jogou por terra a recente história de luta da população brasileira, por uma sociedade mais digna, na qual vários pagaram com
suas próprias vidas.
44
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Assim, considerando a publicação das declarações em periódico, com o intuito de esclarecimento, a fim de promover a
devida queixa-crime contra o referido Deputado Federal, necessário se fez o ajuizamento da presente interpelação, nos
estritos termos do artigo 144 C. Penal, que preconiza: “Se, de
referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou
injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em
juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as
dá satisfatórias, responde pela ofensa.”
Presente esse contexto, impõe-se verificar, preliminarmente, se
assiste, ou não, competência a esta Suprema Corte para processar, originariamente, este pedido de explicações.
A notificação, como se sabe, considerada a natureza cautelar de
que se reveste, deve processar-se perante o mesmo órgão judiciário que é competente para julgar a ação penal principal
eventualmente ajuizável contra o suposto ofensor.
Essa é a razão pela qual, tratando-se de Deputado Federal,
como o ora notificando, compete, ao próprio Supremo Tribunal
Federal, processar, originariamente, o pedido de explicações,
tal como formulado na espécie:
“COMPETÊNCIA PENAL ORIGINÁRIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL PARA O PEDIDO DE EXPLICAÇÕES.
– A competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, para processar pedido de explicações em juízo, deduzido
com fundamento na Lei de Imprensa (artigo 25) ou com apoio
no Código Penal (artigo 144), somente se concretizará
quando o interpelado dispuser, ratione muneris, da prerrogativa de foro, perante a Suprema Cor te, nas infrações penais
comuns (CF, artigo 102, I, ‘b’ e ‘c’).”
(RTJ 170/60-61, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)
Reconhecida, desse modo, a competência originária desta Suprema Corte, impende verificar se a garantia constitucional da
imunidade parlamentar em sentido material, de que é titular o
ora requerido, Leonardo Quintão, impede, ou não, a instauração deste processo de índole cautelar.
O fato de o ora requerido ostentar a condição de Deputado
Federal poderia inviabilizar, só por si, a formulação da presente
“interpelação criminal”, eis que inadmissível, contra os congressistas, a instauração de processo de natureza penal ou de
caráter civil, “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”
(CF, artigo 53, caput).
É que, como se sabe, o pedido de explicações qualifica-se como
verdadeira ação de natureza cautelar destinada a viabilizar o
exercício ulterior de ação principal (notadamente a ação penal),
cumprindo, desse modo, a interpelação judicial, uma típica
função instrumental inerente às providências processuais revestidas de cautelaridade.
Não se desconhece que, entre o pedido de explicações em
juízo, de um lado, e a causa principal, de outro, há uma
evidente relação de acessoriedade, pois a medida a que alude o
artigo 144 do Código Penal reveste-se, como salientado, de um
nítido caráter de instrumentalidade.
Tal observação se impõe porque a incidência da imunidade
parlamentar material – por tornar inviável o ajuizamento da
ação penal de conhecimento e da ação de indenização civil,
ambas de índole principal – afeta a possibilidade jurídica de
formulação e, até mesmo, de processamento do próprio pedido
de explicações, em face da natureza meramente acessória de
que se reveste tal providência de ordem cautelar, tal como esta
Suprema Corte tem reiteradamente proclamado e advertido
(Pet. 3.205/DF, Rel. Min. Eros Grau – Pet. 3.585/DF, Rel. Min.
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
Ricardo Lewandowski – Pet. 3.588/DF, Rel. Min. Nelson Jobim
– Pet. 3.686/DF, Rel. Min. Celso de Mello – Pet. 4.199/DF, Rel.
Min. Celso de Mello, v.g.).
Ocorre, no entanto, que o amparo da imunidade parlamentar
em sentido material, enquanto expressiva garantia de índole
constitucional dos membros do Congresso Nacional, não alcança nem protege o parlamentar, quando candidato, em pronunciamentos motivados por propósitos exclusivamente eleitorais,
considerada a essencial igualdade que deve existir entre todos
aqueles que, sejam parlamentares ou não, disputam mandatos
eletivos.
Essa compreensão em torno do alcance restrito da cláusula
constitucional de inviolabilidade, nos casos em que se delineia
a figura do parlamentar-candidato, tem o beneplácito do magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, como o
registra decisão proferida pelo Plenário desta Suprema Corte:
“– A garantia constitucional da imunidade parlamentar em
sentido material (CF, artigo 53, caput) – destinada a viabilizar a prática independente, pelo membro do Congresso
Nacional, do mandato legislativo de que é titular – não se
estende ao congressista, quando, na condição de candidato a qualquer cargo eletivo, vem a ofender, moralmente,
a honra de terceira pessoa, inclusive a de outros candidatos, em pronunciamento motivado por finalidade exclusivamente eleitoral, que não guarda qualquer conexão com
o exercício das funções congressuais. Precedentes.
O postulado republicano – que repele privilégios e não
tolera discriminações – impede que o parlamentar-candidato tenha, sobre seus concorrentes, qualquer
vantagem de ordem jurídico-penal resultante da garantia
da imunidade parlamentar, sob pena de dispensar-se, ao
congressista, nos pronunciamentos estranhos à atividade
legislativa, tratamento diferenciado e seletivo, capaz de
gerar, no contexto do processo eleitoral, inaceitável quebra
da essencial igualdade que deve existir entre todos aqueles
que, parlamentares ou não, disputam mandatos eletivos.”
(Inq. 1.400-QO/PR, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)
Essa é a razão pela qual não incide, na espécie, a garantia da
imunidade parlamentar em sentido material (o requerido, embora congressista, é candidato), o que torna possível, analisada
a questão sob essa específica perspectiva, o conhecimento da
presente “interpelação criminal”.
Impende analisar, agora, a natureza e a destinação da interpelação judicial em referência, fundada no artigo 144 do Código
Penal.
Cumpre ter em consideração, neste ponto, que o pedido de
explicações reveste-se de função instrumental, cuja destinação
jurídica vincula-se, unicamente, ao esclarecimento de situações impregnadas de dubiedade, equivocidade ou ambigüidade (CP, artigo 144), em ordem a viabilizar, tais sejam os esclarecimentos prestados, a instauração de processo penal de conhecimento tendente a obtenção de um provimento condenatório, consoante o reconhece a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“– O pedido de explicações constitui típica providência de
ordem cautelar, destinada a aparelhar ação penal principal, tendente à sentença penal condenatória. O interessado, ao formulá-lo, invoca, em juízo, tutela cautelar
penal, visando a que se esclareçam situações revestidas de
equivocidade, ambigüidade ou dubiedade, a fim de que se
viabilize o exercício futuro de ação penal condenatória.
45
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
A notificação prevista no Código Penal (artigo 144) e na Lei
de Imprensa (artigo 25) traduz mera faculdade processual,
sujeita à discrição do ofendido. E só se justifica na hipótese
de ofensas equívocas.”
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
O pedido de explicações em juízo não se justifica quando o
interpelante não tem dúvida alguma sobre o caráter moralmente ofensivo das imputações que lhe foram dirigidas
pelo suposto ofensor.”
(RTJ 142/816, Rel. Min. Celso de Mello)
(RT 709/401, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)
Também Júlio Fabbrini Mirabete, em preciso magistério sobre o
tema (Código Penal Interpretado, p. 1.138, 5ª ed., 2005, Atlas),
revela igual entendimento sobre os pressupostos legitimadores
da utilização do pedido de explicações em juízo:
“(...) as explicações a que alude o artigo 25 da Lei nº 5.250/67
– daí exigir-se manifestação do Poder Judiciário –, visam a
permitir se apure, objetivamente, se a inferência da calúnia,
difamação ou injúria resultante de referência, alusão ou
frase do notificado resulta, ou não, de imprecisão de
linguagem. Visam, apenas, a isso, e não a ensejar a verificação da existência de crime, em seus elementos objetivos ou
subjetivos, o que será objeto da ação penal própria, se
promovida. O que se procura saber, por meio da explicação, é o que realmente quis dizer o autor da referência, da
alusão ou da frase. Em outras palavras, as explicações do
notificado se destinam a esclarecer se a inferência do notificante corresponde ao que aquele pretendeu exteriorizar.
(...).”
“O pedido de explicações previsto no artigo 144 é uma
medida preparatória e facultativa para o oferecimento da
queixa, quando, em virtude dos termos empregados ou do
sentido das frases, não se mostra evidente a intenção de
caluniar, difamar ou injuriar, causando dúvida quanto ao
significado da manifestação do autor, ou mesmo para verificar a que pessoa foram dirigidas as ofensas.
Cabe, assim, nas ofensas equívocas e não nas hipóteses em
que, à simples leitura, nada há de ofensivo à honra alheia
ou, ao contrário, quando são evidentes as imputações caluniosas, difamatórias ou injuriosas.”
Essa mesma orientação – que sustenta a inviabilidade do pedido
de explicações, quando não houver situação de dubiedade ou
de equivocidade quanto ao conteúdo das imputações questionadas – é também observada por Guilherme de Souza Nucci
(Código Penal Comentado, p. 626, 7ª ed., 2007, RT), Aníbal
Bruno (Crimes Contra a Pessoa, pp. 323/324, 3ª ed., Editora
Rio), Fernando Capez/Stela Prado (Código Penal Comentado,
p. 281, item nº 1, 2007, Verbo Jurídico), Rogério Greco (Curso de
Direito Penal, vol. II/564, 2005, Impetus) e Cezar Roberto Bitencourt (Código Penal Comentado, p. 577, 4ª ed., 2007, Saraiva),
cabendo referir, por valioso, o magistério de Paulo José da Costa
Júnior (Código Penal Comentado, p. 442, 8ª ed., 2005, DPJ):
“Se a ofensa for equívoca, por empregar termos ou expressões dúbias, cabe o pedido de explicações previsto pelo
artigo 144.
Por vezes, o agente emprega frases ambíguas propositadamente, quiçá ‘para excitar a atenção dos outros e dar mais
efeito ao seu significado injurioso’.
Trata-se de medida facultativa, que antecede o oferecimento da queixa. Só tem cabimento o pedido nos casos de
ofensas equívocas.”
Impende acentuar que esse entendimento reflete-se, por igual,
na jurisprudência desta Suprema Corte e na dos Tribunais em
geral (RT 488/316 – RT 519/402 – RT 534/377 – JTACrSP 86/227 –
JTACrSP 97/287 – JTARGS 84/65, v.g.):
“O pedido de explicações em juízo acha-se instrumentalmente vinculado à necessidade de esclarecer situações,
frases ou expressões, escritas ou verbais, caracterizadas por
sua dubiedade, equivocidade ou ambigüidade. Ausentes
esses pressupostos, a interpelação judicial, porque desnecessária, revela-se processualmente inadmissível.
A interpelação judicial, por destinar-se, exclusivamente, ao
esclarecimento de situações dúbias ou equívocas, não se
presta, quando ausente qualquer ambigüidade no discurso
contumelioso, à obtenção de provas penais pertinentes à
definição da autoria do fato delituoso.
02/2009
(RTJ 79/718, 725, Rel. Min. Moreira Alves)
“CRIME DE IMPRENSA – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES – INDEFERIMENTO – ALUSÃO CONSIDERADA OFENSIVA
PELO REQUERENTE QUE NÃO SE REVESTE DE FORMA
DUBITATIVA – REJEIÇÃO IN LIMINE – DECISÃO
MANTIDA – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 144 DO CP DE
1940.”
(RT 607/334, Rel. Juiz Renato Mascarenhas)
Vê-se, portanto, que, onde não houver dúvida objetiva em torno
do conteúdo moralmente ofensivo das afirmações questionadas
ou, então, onde inexistir qualquer incerteza a propósito dos
destinatários de tais declarações, aí não terá pertinência nem
cabimento a interpelação judicial, pois ausentes, em tais hipóteses, os pressupostos necessários à sua utilização.
E é, precisamente, o que ocorre na espécie, pois a leitura da
publicação em referência, especialmente dos fragmentos abaixo reproduzidos, não permite qualquer dúvida, seja em torno
do destinatário das afirmações alegadamente ofensivas, seja em
torno do próprio conteúdo inequívoco e despojado de dubiedade das asseverações emanadas daquele contra quem se ajuizou a presente medida cautelar (fls. 3):
“QUINTÃO RESPONDE VÍDEO E DIZ QUE LACERDA FOI
PRESO COMUM.
PEEMEDEBISTA DIZ QUE ADVERSÁRIO ASSALTOU
BANCO E DEU CORONHADAS.
Desde anteontem à noite, o segundo turno da eleição em
Belo Horizonte está em clima de guerra, ao contrário do
que aconteceu na primeira fase. O programa de televisão, a
internet e os debates transformaram-se em verdadeiras
barricadas. Na tarde de ontem, durante sabatina realizada
pelo O Tempo, o candidato Leonardo Quintão (PMDB), ao
se defender sobre um vídeo divulgado no programa eleitoral do adversário Márcio Lacerda (PSB) – em que aparece
chutando o ar e afirmando que nós vamos ganhar e chutar a
bunda deles – disse que o socialista não foi preso político e,
sim, comum. Ele disse que Lacerda assaltou banco e uma
padaria e deu coronhadas durante suas ações. Ele (Lacerda)
fala que foi preso político e não foi. Ele foi preso comum
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COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
porque é assaltante de banco. E de uma padaria também,
disse, afirmando que acordo com militar não é coisa de
preso político. E repetiu preso comum, crime comum.
7. No caso em tela, a dúvida está, exatamente, na autoria
das declarações, que poderão, ou não, ser confirmadas
pelo interpelado.”
Lacerda disse ontem que realmente assaltou banco para
obter recursos para a resistência à ditadura militar.”
Por não me convencer das razões expostas pelo ora agravante,
submeto o presente recurso de agravo ao exame deste Egrégio
Plenário.
Em suma: o magistério da doutrina e a jurisprudência dos
Tribunais orientam-se, como precedentemente enfatizado,
no sentido de que não cabe o pedido de explicações, por
ausência de interesse processual, se não se registrar, quanto
às declarações questionadas, a situação de necessária
dubiedade, ambigüidade ou indeterminação subjetiva.
Não há, pois, em face das razões expostas, como dar trânsito à presente “interpelação criminal”, motivo pelo qual,
por entendê-la incabível, nego-lhe seguimento nesta
Suprema Corte.
Arquivem-se os presentes autos.
........................................................................................
Ministro Celso de Mello – Relator
Inconformada com esse ato decisório, a parte ora agravante
interpõe o presente recurso (fls. 25/27) apoiando-se, para
tanto, nos seguintes fundamentos (fls. 26/27):
“2. De fato, no momento da propositura da interpelação,
não havia dúvida alguma, como frisado por esse Douto
Relator, acerca do conteúdo moralmente ofensivo das
declarações prestadas por Leonardo Quintão.
3. Todavia, a ambigüidade e indeterminação subjetiva do
pleito estavam contidas, exatamente, no fato de que periódico jornalístico publicou, entre aspas, os dizeres atribuídos ao interpelado.
4. Ora, a partir do momento no qual o Jornal publica as afirmativas, isso não significa, a toda obviedade, que a pessoa
mencionada as tenha proferido. O conteúdo pode ser falso.
5. Incide, pois, diante dessa conclusão lógica, o conteúdo
do artigo 144 do Código Penal, porque da referência existente no periódico se infere calúnia, difamação e injúria,
devendo o interpelado confirmar se é, ou não, autor dos
aludidos dizeres.
6. Na precisa dicção de Guilherme de Souza Nucci, ‘inferir
significa um processo lógico consistente numa dedução.
Quando alguém profere uma frase dúbia, pela qual, por
dedução, consegue-se chegar à conclusão de que se trata
de uma ofensa, tem-se o mecanismo da inferência. Não há
certeza da intenção ofensiva – como no caso de o agente
dizer expressamente que Fulano é ladrão –, pois os meios
utilizados são mascarados. Ex.: numa roda de pessoas,
alguém diz: não sou eu o autor das subtrações que têm
ocorrido nesta repartição.
Pode ser difícil interpretar a frase. Por vezes, o seu autor
quer referir-se a alguém que ali está, ofendendo-o indiretamente. Noutras ocasiões, é apenas uma coincidência,
ou seja, quem falou não está com a intenção de macular a
imagem de ninguém, embora tenha deixado impressão
contrária. Para sanar a dúvida, faz-se o pedido de explicações’ (Código Penal Comentado. São Paulo: RT, 2007,
p. 576).
02/2009
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Não assiste razão à parte ora agravante, eis que a decisão agravada –
cujos fundamentos são ora reafirmados – ajusta-se, com integral
fidelidade, à diretriz jurisprudencial firmada pelo Supremo
Tribunal Federal na matéria ora em exame.
Como se sabe, o pedido de explicações reveste-se de função
instrumental, cuja destinação jurídica vincula-se, unicamente,
ao esclarecimento de situações impregnadas de dubiedade,
equivocidade ou ambigüidade (CP, artigo 144), em ordem a
viabilizar, tais sejam os esclarecimentos prestados, a instauração de processo penal de conhecimento tendente à obtenção
de um provimento condenatório, consoante o reconhece a
própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“– O pedido de explicações constitui típica providência de
ordem cautelar, destinada a aparelhar ação penal principal, tendente à sentença penal condenatória. O interessado, ao formulá-lo, invoca, em juízo, tutela cautelar
penal, visando a que se esclareçam situações revestidas de
equivocidade, ambigüidade ou dubiedade, a fim de que se
viabilize o exercício futuro de ação penal condenatória.
A notificação prevista no Código Penal (artigo 144) e na Lei
de Imprensa (artigo 25) traduz mera faculdade processual,
sujeita à discrição do ofendido. E só se justifica na hipótese
de ofensas equívocas.”
(RTJ 142/816, Rel. Min. Celso de Mello)
Também Júlio Fabbrini Mirabete, em preciso magistério
sobre o tema (Código Penal Interpretado, p. 1.138, 5ª ed.,
2005, Atlas), revela igual entendimento sobre os pressupostos legitimadores da utilização do pedido de explicações
em juízo:
“O pedido de explicações previsto no artigo 144 é uma
medida preparatória e facultativa para o oferecimento da
queixa, quando, em virtude dos termos empregados ou do
sentido das frases, não se mostra evidente a intenção de
caluniar, difamar ou injuriar, causando dúvida quanto ao
significado da manifestação do autor, ou mesmo para verificar a que pessoa foram dirigidas as ofensas.
Cabe, assim, nas ofensas equívocas e não nas hipóteses em
que, à simples leitura, nada há de ofensivo à honra alheia
ou, ao contrário, quando são evidentes as imputações caluniosas, difamatórias ou injuriosas.”
Essa mesma orientação – que sustenta a inviabilidade do pedido
de explicações, quando não houver situação de dubiedade ou
de equivocidade quanto ao conteúdo das imputações questionadas – é também observada por Guilherme de Souza Nucci
(Código Penal Comentado, p. 626, 7ª ed., 2007, RT), Aníbal
Bruno (Crimes Contra a Pessoa, pp. 323/324, 3ª ed., Editora
Rio), Fernando Capez/Stela Prado (Código Penal Comentado,
p. 281, item nº 1, 2007, Verbo Jurídico), Rogério Greco (Curso
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SELEÇÕES JURÍDICAS
de Direito Penal, vol. II/564, 2005, Impetus) e Cezar Roberto
Bitencourt (Código Penal Comentado, p. 577, 4ª ed., 2007,
Saraiva), cabendo referir, por valioso, o magistério de Paulo José
da Costa Junior (Código Penal Comentado, p. 442, 8ª ed., 2005,
DPJ):
“Se a ofensa for equívoca, por empregar termos ou expressões dúbias, cabe o pedido de explicações previsto pelo
artigo 144.
Por vezes, o agente emprega frases ambíguas propositadamente, quiçá ‘para excitar a atenção dos outros e dar mais
efeito ao seu significado injurioso’.
Trata-se de medida facultativa, que antecede o oferecimento da queixa. Só tem cabimento o pedido nos casos de
ofensas equívocas.”
Impende acentuar que esse entendimento reflete-se, por igual,
na jurisprudência desta Suprema Corte e na dos Tribunais em
geral (RT 488/316 – RT 519/402 – RT 534/377 – JTACrSP 86/227
– JTACrSP 97/287 – JTARGS 84/65, v.g.):
“O pedido de explicações em juízo acha-se instrumentalmente vinculado à necessidade de esclarecer situações,
frases ou expressões, escritas ou verbais, caracterizadas por
sua dubiedade, equivocidade ou ambigüidade. Ausentes
esses pressupostos, a interpelação judicial, porque desnecessária, revela-se processualmente inadmissível.
A interpelação judicial, por destinar-se, exclusivamente, ao
esclarecimento de situações dúbias ou equívocas, não se
presta, quando ausente qualquer ambigüidade no discurso
contumelioso, a obtenção de provas penais pertinentes à
definição da autoria do fato delituoso.
O pedido de explicações em juízo não se justifica quando o
interpelante não tem dúvida alguma sobre o caráter moralmente ofensivo das imputações que lhe foram dirigidas
pelo suposto ofensor.”
(RT 709/401, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)
“(...) as explicações a que alude o artigo 25 da Lei nº 5.250/67
– daí exigir-se manifestação do Poder Judiciário –, visam a
permitir se apure, objetivamente se a inferência da calúnia,
difamação ou injúria resultante de referência, alusão ou
frase do notificado resulta, ou não, de imprecisão de linguagem. Visam, apenas, a isso, e não a ensejar a verificação
da existência de crime, em seus elementos objetivos ou
subjetivos, o que será objeto da ação penal própria, se
promovida. O que se procura saber, por meio da explicação é o que realmente quis dizer o autor da referência, da
alusão ou da frase. Em outras palavras, as explicações do
notificado se destinam a esclarecer se a inferência do notificante corresponde ao que aquele pretendeu exteriorizar.
(...).”
(RTJ 79/718, 725, Rel. Min. Moreira Alves)
“CRIME DE IMPRENSA – PEDIDO DE EXPLICAÇÕES – INDEFERIMENTO – ALUSÃO CONSIDERADA OFENSIVA
PELO REQUERENTE QUE NÃO SE REVESTE DE FORMA
DUBITATIVA – REJEIÇÃO IN LIMINE – DECISÃO
MANTIDA – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 144 DO CP DE
1940.”
(RT 607/334, Rel. Juiz Renato Mascarenhas)
Vê-se, portanto, que, onde não houver dúvida objetiva em torno
do conteúdo moralmente ofensivo das afirmações questionadas
ou, então, onde inexistir qualquer incerteza a propósito dos
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ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
destinatários de tais declarações, aí não terá pertinência nem
cabimento a interpelação judicial, pois ausentes, em tais hipóteses, os pressupostos necessários à sua utilização.
E é, precisamente, o que ocorre na espécie, pois a leitura da
publicação em referência, especialmente dos fragmentos abaixo reproduzidos, não permite qualquer dúvida, seja em torno
do destinatário das afirmações alegadamente ofensivas, seja em
torno do próprio conteúdo inequívoco e despojado de dubiedade das asseverações emanadas daquele contra quem se ajuizou a presente medida cautelar (fls. 3):
“QUINTÃO RESPONDE VÍDEO E DIZ QUE LACERDA FOI
PRESO COMUM.
PEEMEDEBISTA DIZ QUE ADVERSÁRIO ASSALTOU
BANCO E DEU CORONHADAS.
Desde anteontem à noite, o segundo turno da eleição em
Belo Horizonte está em clima de guerra, ao contrário do
que aconteceu na primeira fase. O programa de televisão, a
internet e os debates transformaram-se em verdadeiras
barricadas. Na tarde de ontem, durante sabatina realizada
pelo O Tempo, o candidato Leonardo Quintão (PMDB), ao
se defender sobre um vídeo divulgado no programa eleitoral do adversário Márcio Lacerda (PSB) – em que aparece
chutando o ar e afirmando que nós vamos ganhar e chutar a
bunda deles – disse que o socialista não foi preso político e,
sim, comum. Ele disse que Lacerda assaltou banco e uma
padaria e deu coronhadas durante suas ações. Ele
(Lacerda) fala que foi preso político e não foi. Ele foi preso
comum porque é assaltante de banco. E de uma padaria
também, disse, afirmando que acordo com militar não é
coisa de preso político. E repetiu preso comum, crime
comum.
Lacerda disse ontem que realmente assaltou banco para
obter recursos para a resistência à ditadura militar.”
Em suma: o magistério da doutrina e a jurisprudência dos Tribunais orientam-se, como precedentemente enfatizado, no sentido de que não cabe o pedido de explicações, por ausência de
interesse processual, se não se registrar, quanto às declarações
questionadas, a situação de necessária dubiedade, ambiguidade ou indeterminação subjetiva.
Não há, pois, em face das razões expostas, como dar trânsito à
“interpelação criminal” deduzida pela parte ora agravante.
Sendo assim, e em face das razões expostas, nego provimento
ao presente recurso de agravo, mantendo, por seus próprios
fundamentos, a decisão de fls. 14/23.
É o meu voto.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do
Relator, negou provimento ao recurso de agravo. Ausentes,
licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Senhor Ministro Marco Aurélio e a Senhora Ministra
Ellen Gracie. Presidiu o julgamento o Senhor Ministro Gilmar
Mendes. Plenário, 26-11-2008 .
Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Presentes à
sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio,
Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski,
Eros Grau, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Fernando Barros e
Silva de Souza.
Luiz Tomimatsu – Secretário
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COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
· REsp. 577.573-SP
DJ-E 6-11-2008
EMENTA
RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA ARTIGOS 54 E 208 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE – MATRÍCULA E FREQÜÊNCIA DE
MENORES DE ZERO A SEIS ANOS EM CRECHE DA
REDE PÚBLICA MUNICIPAL.
1. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96, artigo 4º,
IV) asseguram o atendimento de crianças de zero a seis anos em
creches e pré-escolas da rede pública.
2. Compete à Administração Pública propiciar às crianças de
zero a seis anos acesso ao atendimento público educacional e a
freqüência em creches, de forma que, estando jungida ao princípio da legalidade, é seu dever assegurar que tais serviços
sejam prestados mediante rede própria.
3. “Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo
outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente,
em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma
ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas
condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse
direito e podem exigi-lo em juízo” (REsp. nº 575.280-SP, relator
para o acórdão Ministro Luiz Fux, DJ de 25-10-2004).
4. A consideração de superlotação nas creches e de descumprimento da Lei Orçamentária Municipal deve ser comprovada
pelo Município para que seja possível ao órgão julgador proferir
decisão equilibrada na busca da conciliação entre o dever de
prestar do ente público, suas reais possibilidades e as necessidades, sempre crescentes, da população na demanda por vagas no
ensino pré-escolar.
5. No caso específico dos autos, não obstante tenha a municipalidade alegado falta de vagas e aplicação in totum dos recursos
orçamentários destinados ao ensino fundamental, nada provou;
a questão manteve-se no campo das possibilidades. Por certo
que, em se tratando de caso concreto no qual estão envolvidas
apenas duas crianças, não haverá superlotação de nenhuma
creche.
6. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro
Humberto Martins, os Ministros da Segunda Turma do Superior
Tribunal de Justiça acordam, por maioria, dar provimento ao
recurso nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencida a Sra.
Ministra Eliana Calmon, os Srs. Ministros Castro Meira, Humberto
Martins e Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília, 17 de abril de 2007 (data do julgamento).
Ministro João Otávio de Noronha – Relator
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:
Os autos tratam de ação civil pública ajuizada pelo Ministério
Público do Estado de São Paulo em favor da menor K.B.S., para
que seja garantido o direito de matrícula e freqüência em creche
02/2009
municipal. A ação foi proposta em desfavor do Município de
Santo André, no Estado de São Paulo.
A liminar foi concedida. Todavia, requereu o Município a
suspensão da liminar que foi deferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A ação foi julgada procedente. O Município de Santo André
apelou e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria, negou provimento ao recurso, fato que ensejou a interposição de embargos infringes, os quais foram acolhidos, em acórdão assim ementado:
“EMBARGOS INFRINGENTES. Ação Civil Pública ajuizada
pelo Ministério Público em favor de menor – Sentença que
julgou procedentes pedido voltado à obrigação de fazer, consistente na criação e manutenção de vagas em creches municipais
para as crianças, menores de seis anos.
Recurso voluntário visando a reforma integral da sentença, sob
o fundamento de ingerência no Poder Executivo, negado, por
maioria de votos, pelo V. Acórdão embargando.
Inadmissibilidade da substituição da vontade da Administração
Pública – Inviabilidade de exame do mérito administrativo –
Os critérios governamentais, conveniência e oportunidade,
são próprios do Executivo, não podendo o Judiciário, sob qualquer pretexto, ir além do estrito exame da legalidade e da legitimidade, par e passo dos princípios informadores de cada qual,
pena de ingerência no Executivo, se imiscuindo em terreno
discricionário específico – Desobediência ao orçamento municipal que sequer foi alegada na petição inicial da ação civil
pública ajuízada, o que torna a matéria impossível de conhecimento em face da omissão da causa de pedir. Embargos Infringentes recebidos.”
O MP opôs sucessivamente dois embargos de declaração que
foram rejeitados, não obstante o Tribunal ter-se manifestado
expressamente pela inaplicabilidade dos artigos 208, III, e 213
do Estatuto da Criança e do Adolescente no julgamento dos
segundos embargos.
Assim, com base na violação desses dispositivos, bem como do
artigo 54, IV, 208, III, e 213 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), o Parquet interpôs o presente recurso especial, o qual, depois de contra-arrazoado, foi admitido,
conforme decisão constante das fls. 234/235.
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
(Relator):
Tratam os autos de ação civil pública proposta com o fim de assegurar a matrícula e freqüência de menor proveniente de família
sem recursos na rede municipal de creches.
O recurso especial foi aviado com base na alínea “a” do permissivo constitucional, sob a alegação de que o acórdão recorrido
incorreu em violação dos artigos 54, IV, 208, III, e 213 do ECA
(Lei nº 8.069/90).
No acórdão recorrido, sustentou-se que, não obstante haja
expressa delegação, constante em lei, outorgando aos Municípios a competência para implementação e supervisão das instituições de educação de crianças de zero a seis anos de idade, os
atos físicos de administração, tais como construção de obras e
contratações respectivas, estão jungidos ao critério de conveniência e oportunidade da municipalidade, não cabendo ao
Poder Judiciário intervir.
Prequestionada a lei federal, conheço do recurso.
49
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
A questão envolve, além das disposições do artigo 54 da Lei nº
8.069/90, dispositivos constitucionais, tendo o acórdão recorrido atido-se às disposições do artigo 211, § 2º, que estabelece:
“ Art. 211 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios organizarão em regime de colaboração seus
sistemas de ensino.
(...)
§ 2º – Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino
fundamental e na educação infantil.”
No que concerne ao atendimento na faixa pré-escolar, também
o artigo 208 da Lei Maior assegura:
“Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(...)
IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de
zero a seis anos de idade;"
Tais garantias constitucionais estão previstas no Estatuto da
Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 – que, em seu artigo
54, determina:
“É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive
para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
II – progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade
ao ensino médio;
III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de
ensino;
IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de
(zero) a 6 (seis) anos de idade;"
Verifica-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/90) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº
9.394/96, artigo 4º, IV) asseguram o atendimento de crianças de
zero a seis anos em creches e pré-escolas da rede pública.
Portanto, não há outra exegese a ser extraída de tais normativos
senão que constitui um dever da Administração Pública propiciar às crianças nessa faixa etária acesso ao atendimento público educacional, de forma que, estando jungida ao princípio
da legalidade, é seu dever assegurar que tais serviços sejam
prestados. A conveniência e discricionariedade, ao contrário do
consignado no acórdão recorrido, não constituem princípios
informadores da obrigatoriedade da prestação do serviço, mas
restringem-se ao modo de fazê-lo, pois é lícito à Administração
estabelecer critérios, por exemplo, de localização das crianças
em creches mais próximas de onde residam.
Celso Antonio Bandeira de Mello (in Curso de Direito Administrativo, p. 855) conceitua a discricionariedade administrativa da
seguinte forma:
“Discricionariedade é a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios
consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois
comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a
fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada
à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no
mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma
solução unívoca para a situação vertente.”
Partindo-se do ensino acima indicado para a análise do caso
concreto, observa-se que não cabe ao administrador municipal
escolher entre prestar ou não o serviço questionado, pois é seu
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
dever fazê-lo, dever que está estabelecido na Constituição
Federal, Lei Federal e Constituição Estadual (conforme dessume-se dos autos). Portanto, não resta dúvida de que trata-se de
atividade vinculada.
Assim, não há por que questionar a intervenção do Judiciário,
porquanto se trata de aferição acerca do cumprimento de
exigência estabelecida em lei, constituída em dever administrativo, que, de outra ponta, revela um direito assegurado ao
menor de ver-se assistido pelo Estado.
Esse Tribunal já teve oportunidade de decidir a questão, concluindo na forma do precedente abaixo indicado:
“DIREITO CONSTITUCIONAL À CRECHE EXTENSIVO AOS
MEN O R E S D E Z E R O A S E I S A N O S – N O R M A
CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ARTIGO 54 DO
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE –
NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO
PROGRAMÁTICA – EXIGIBILIDADE EM JUÍZO –
INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS
CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA – AÇÃO
CIVIL PÚBLICA – CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.
1. O direito constitucional à creche extensivo aos menores
de zero a seis anos é consagrado em norma constitucional
reproduzida no artigo 54 do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Violação de Lei Federal.
“É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para
os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II – progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino
médio; III – atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino; IV – atendimento em creche e pré-escola às
crianças de (zero) a 6 (seis) anos de idade.”
2. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da
vontade política nacional, erigida mediante consulta das
expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar,
por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena
de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel.
Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas
menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias,
Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos
consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais
altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a
segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche,
cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi
no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola
o país. O direito à creche é consagrado em regra com
normatividade mais do que suficiente, porquanto se define
pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.
3. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se,
pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da
jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito
corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que
todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em
juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito
em foco enseja a propositura da ação civil pública.
4. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não
encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem
admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia
pétrea.
50
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
5. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade
humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação
das crianças a um plano diverso daquele que o coloca,
como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.
6. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única
dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da
norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de
direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se
essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA,
inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa
constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional.
7. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não
são ainda direitos senão promessas de lege ferenda , encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual
a da oportunidade de sua implementação.
8. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o
explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade,
ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.
9. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à
Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que
isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime
democrático e no estado de direito o Estado soberano
submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim,
a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o
malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao
determinar a realização prática da promessa constitucional.
10. O direito do menor à freqüência em creche, insta o
Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede
própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e
atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais
violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da
sociedade democrática anunciada pela Carta Magna,
mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade
humana.
11. O Estado não tem o dever de inserir a criança numa
escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição.
O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando
ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio
iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade
privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu
encargo para o particular, quer incluindo o menor numa
‘fila de espera’, quer sugerindo uma medida que tangencia
a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular
somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou
delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa
manu do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe às
vezes.” (REsp. nº 575.280-SP, relator para acórdão Ministro
Luiz Fux, DJ de 25-10-2004).
Não obstante o exposto, há outra questão que merece análise.
Exsurgiu nos autos questão atinente à possibilidade de superlotação das creches e a impossibilidade de o Município atender à
demanda em face de restrições físicas e orçamentárias. A respeito, importa citar a decisão constante do acórdão que decidiu os
embargos declaratórios, no qual restou ressaltado o seguinte
(fl. 201):
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ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
“De qualquer modo, e para não alongar a perlenga, que em
nada contribui para o desfecho da causa, deixa-se enfatizado que o dever do Estado de assegurar às crianças o atendimento em creche foi reconhecido à luz do artigo 54,
inciso IV, do ECA, em combinação com o artigo 208, inciso
III, mais regra própria do artigo 213, todos da Lei nº
8.069/90. Mas, apesar disso, não se acolheu a tese desenvolvida longa e sabiamente no curso do processo, a partir
da peça inicial, por se entender que o tema tem profundidade bem maior e depende dos recursos financeiros de
cada Município, cujas receitas estão comprometidas com a
educação no montante de 25%.
Assim, são os critérios de conveniência e oportunidade,
próprios do Poder Executivo, que definem, em essência, a
questão, não podendo o Poder Judiciário, sob qualquer
pretexto, ir além do exame da legalidade, como se referiu,
com precisão, o Acórdão inicial, sem o que haveria invasão
da esfera de atribuições reservadas ao Sr. Prefeito, titular da
gestão municipal (cf. fl. 169, in fine)."
A este argumento somam-se as razões expendidas pelo Desembargador Márcio Bonilha na decisão de suspensão da liminar
(fls. 110/112) a respeito de inúmeras decisões determinando a
matrícula de crianças em creches sem a aferição do mérito da
questão (o que, in casu, foi superado) e da real capacidade que
as instituições existentes têm de receber crianças além das vagas
ordinárias, em razão da determinação do Poder Judiciário.
Essa questão causa certa inquietação. Se, por um lado, entendo
que não há sombra de dúvida acerca do dever do Município de
assegurar tal ensino às crianças residentes em seus limites, por
outro, é sobejamente sabido que a maioria dos municípios não
presta tais serviços a contendo, muitos por desídia administrativa, mas, tantos outros, por restrições orçamentárias.
“No caso específico dos autos, não obstante tenha a municipalidade alegado falta de vagas e possível descumprimento da lei
orçamentária, nada provou; a questão manteve-se no campo
das possibilidades. Por certo que, em se tratando de caso
concreto, no qual está envolvida apenas uma criança. Isso não
implicará superlotação de creche alguma.
O Município deveria ter trazido aos autos a real situação em que
se encontram seus estabelecimentos de ensino relativos à préescola, bem como a impossibilidade de se atender à demanda,
em face de eventual extrapolação orçamentária, para que as
instâncias ordinárias pudessem aferi-la frente ao que se postulou na presente ação.
Ante todo o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe
provimento a fim de estabelecer que deve o município assegurar a matrícula da menor em creche ou instituição similar da
rede pública municipal.
É como voto.
VOTO-VISTA
A EXMA. SRA. MINISTRA ELIANA CALMON: – O presente recurso tem como Relator o Ministro João Otávio de Noronha
que, em judicioso voto, deu provimento a recurso do Ministério
Público de São Paulo, consignando no seu voto o seguinte
trecho, o qual traduz o encaminhamento dado por Sua Excelência à questão constante dos autos:
“No caso específico dos autos, não obstante tenha a municipalidade alegado falta de vagas e aplicação in totum dos
recursos orçamentários destinados ao ensino fundamental,
nada provou; a questão manteve-se no campo das possibilidades. Por certo que, em se tratando de caso concreto no
qual estão envolvidas apenas duas crianças, não haverá
superlotação de nenhuma creche.
51
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Ao final, na parte dispositiva do voto, disse o Relator:
Ante todo o exposto, conheço do recurso especial e
dou-lhe provimento a fim de estabelecer que deve o município assegurar a matrícula da menor em creche ou instituição similar da rede pública municipal.”
Pedi vista por ter sobre o tema ponto de vista diverso do adotado
pelo Relator, o qual pode ser resumido na seguinte exposição, a
partir da análise do bem da vida que se busca atribuir ao menor
carente, aplicando-se o Estatuto da Criança e do Adolescente,
em interpretação principiológica diante das prioridades constitucionais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 54, IV e 208,
III, complementa a determinação constitucional que impõe ao
Estado o dever de atender com creche e pré-escola as crianças
de zero a seis anos de idade. Assim está previsto no Capítulo
“Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece a gratuidade
do ensino fundamental, direito público subjetivo (artigo 32 da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação e Lei 9.394, de 20-12-96),
devendo-se perquirir se a educação infantil também prevista no
mesmo diploma (artigos 30 e 31, Lei 9.394/96), é uma mera
referência ou pode ser considerada como obrigatória e gratuita,
como ocorre com o ensino fundamental.
Há para o governo obrigação de atender, em qualquer caso e
prioritariamente o ensino fundamental, inexistindo tal prioridade
para atenção à educação infantil, principalmente porque, nos
programas de educação pré-escolar, cabe ao Município atuar
com cooperação técnica e financeira da União e dos Estados.
A educação básica subdivide-se em:
a) infantil;
b) fundamental;
c) ensino médio; e
d) ensino superior.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação prioriza o ensino fundamental, mas não retira do Estado o dever de manter a educação
infantil. Em outras palavras, a prioridade de um não deixa ao
desabrigo o dever de prestar o ensino infantil, para o qual deve
estar direcionada a política educacional do Município.
É preciso considerar que a educação infantil, por não ser prioritária, deve inserir-se em um planejamento específico, estando
aí a força do MINISTÉRIO PÚBLICO para exigir que no planejamento municipal sejam traçadas as prioridades e dentro delas as
passíveis de atendimento. Sem essa ingerência, é inteiramente
impossível, sem deixar cair no vazio, a ordem judicial.
Conforme os novos paradigmas do Direito Administrativo, não
se pode mais tolerar o entendimento de que ao Poder Judiciário
não cabe imiscuir-se nas questões orçamentárias da municipalidade, mas também não é possível impor aos órgãos públicos
obrigação de fazer que importe gastos, sem que haja rubrica
própria para atender à determinação. É preciso ter o bom senso
de entender que os recursos são insuficientes para atender aos
deveres municipais, especialmente após a CF/88. Ademais,
ainda devem os ordenadores de despesa atender aos ditames da
Lei de Responsabilidade Fiscal.
Tendo em conta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a imposição de obrigações de fazer a ser imposta aos
diversos poderes nas esferas federal, estadual e municipal exige
moderação, a partir do cuidado quando da elaboração das políticas públicas e orçamentárias.
O MINISTÉRIO PÚBLICO mostrou que o município tem obrigação, sendo direito de todas as crianças exigir o cumprimento
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ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
dela. Entretanto, não demonstrou as condições de realização
dessas obrigações, nem se foram elas olvidadas de modo próprio, por desídia ou leviandade.
Pondero ainda que o recorrente, utilizando-se de um instrumento de proteção a direito coletivo, pretende proteger direito
individual de uma só criança, o que não me parece correto. A escolha, além de ter um caráter eminentemente subjetivo, coloca
em situação de desvantagem as crianças que, em situação idêntica à da criança substituída, ou quicá em situação social de
maior carência, não tiveram acesso ao representante do MP
que, ao seu talante, foi a juízo defender uma criança determinada. Entendo, em conclusão a tudo que foi dito, que em ações
que tenham conteúdo de defesa coletiva como a que se apresenta, cabe ao Parquet, em primeiro lugar, mostrar ao Judiciário
o desatendimento do governante às obrigações decorrentes da
execução do programa educacional do município ou a ausência de adequado programa educacional, como exigido constitucionalmente. Em segundo lugar, deve atuar o MP em favor da
comunidade à qual serve, em sentido geral, não se admitindo
possa priorizar esta ou aquela criança. Afinal, mesmo nas hipóteses em que a lei lhe outorga legitimidade de defender direito
individual, via ação coletiva, deve estar provado essa legitimação extraordinária visa defender interesse público.
Quero aqui registrar que outra é a situação em relação à saúde,
quando está necessitando um paciente de medicamento específico, porque o estado de saúde do portador da enfermidade não
pode aguardar a espera.
Por fim, lembro que bem recentemente, em uma das últimas
sessões desta Turma, abordei tema idêntico ao presente, concluindo por negar provimento ao recurso ministerial, sendo
acompanhada por todos os meus pares. Refiro-me ao Recurso
Especial 782.196/SP, cuja ementa, depois de sofrer correções
diante da atenta observação dos componentes da Turma, ficou
assim redigida:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL
PÚBLICA – PRESTAÇÃO DE EDUCAÇÃO INFANTIL –
D E V E R D O MUNICÍPIO – INEXISTÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE REALIZAÇÃO
DA OBRIGAÇÃO.
1. O ensino fundamental é prioritário, mas ao Estado
impõe-se a obrigação de prestar o ensino infantil, cabendo
ao Município incluí-lo na sua política educacional.
2. Aos órgãos públicos só pode ser imposto pelo Judiciário
obrigação de fazer que importe gastos imediatos, fora do
normal orçamento, em se tratando de urgentes necessidades, quando em perigo a vida.
3. Com referência à educação, dever estatal de urgência,
mas passível de espera razoável, a imposição da obrigação
de fazer pode aguardar o planejamento específico.
4. O Ministério Público não logrou demonstrar os meios
para a realização da obrigação de fazer, o que não impede
seja o Município coagido a cumprir a sua obrigação de
forma mediata.
5. Recurso especial improvido.
Não quero aqui fazer apologia ao entendimento exposto, mas
pondero que, em um Tribunal de precedentes como o STJ, é
importante caminharmos na mesma direção. Ademais, preocupo-me sobremaneira com a efetividade do processo, efetividade que não pode estar adstrita a critérios de escolhas subjetivas ou aproveitamento de situações episódicas e circunstanciais, ou seja, mais uma ou mais duas crianças não irão inviabilizar o funcionamento da creche, mas o papel do Ministério
52
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Público não é aproveitar brechas, e sim interferir e interceder
nas políticas públicas e sociais no seu nascedouro, contando
com o aval do Poder Judiciário.
Com essas considerações, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
VOTO-VISTA
O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA: Cuidam os autos de
ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de
São Paulo contra o Município de Santo André para garantir a
menor carente o direito de matricular-se em creche municipal.
A ação foi julgada procedente em primeira instância e reformada na Corte local.
Recorre o Ministério Público, com fundamento na alínea “a” do
permissivo constitucional, sob a alegação de que o aresto
contraria o disposto nos artigos 54, IV, 208, III, e 213 do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
Sustenta que “(...) o oferecimento de ensino infantil, por meio de
creches e pré-escolas, constitui, de um lado, um dever do Município (que poderá requerer em ação própria, a colaboração
técnica e financeira da União e do Estado-Membro respectivo –
cf. artigo 211, caput e § 1º, da CF), e, de outro lado, um direito,
líquido e certo, de toda criança brasileira na faixa de 0 a 6 anos
de idade” (fl. 210).
Alega que, “(...) se a lei diz taxativamente que o não oferecimento ou a oferta irregular do ensino infantil através de creches
e pré-escolas pode ser corrigido pela via acionária, não se pode
afirmar que o Juiz, ao sentenciar o feito, em estrita observância
aos mandamentos legais e constitucionais, esteja realizando
ingerência indevida na esfera discricionária do Executivo”
(fl. 212). O Ministro João Otávio de Noronha, Relator do feito,
deu provimento ao recurso, à consideração de que a falta de
disponibilidade orçamentária não restou provada pela municipalidade.
Do voto que proferiu Sua Excelência, destaca-se o fragmento
seguinte:
“Exsurgiu nos autos questão atinente à possibilidade de
superlotação das creches e a impossibilidade de o Município atender à demanda em face de restrições físicas e orçamentárias (...)
Essa questão me causa certa inquietação. Se, por um lado,
entendo que não há sombra de dúvida acerca do dever do
Município de assegurar tal ensino às crianças residentes em
seus limites, por outro, é sobejamente sabido que a maioria
dos municípios não presta tais serviços a contento, muitos
por desídia administrativa, mas, tantos outros, por restrições orçamentárias.
No caso específico dos autos, não obstante tenha a municipalidade alegado falta de vagas e possível descumprimento
da lei orçamentária, nada provou; a questão manteve-se no
campo das possibilidades. Por certo que, em se tratando de
caso concreto, no qual está envolvida apenas uma criança,
isso não implicará superlotação de creche alguma.
O Município deveria ter trazido aos autos a real situação
em que se encontram seus estabelecimentos de ensino relativos à pré-escola, bem como a impossibilidade de se atender à demanda, em face de eventual extrapolação orçamentária, para que as instâncias ordinárias pudessem
aferi-la frente ao que se postulou na presente ação."
A Ministra Eliana Calmon inaugurou a divergência, por entender que o Ministério Público autor não demonstrou as condi02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
ções necessárias à realização da obrigação de fazer postulada
na inicial. Da manifestação de Sua Excelência, transcreve-se a
seguinte passagem:
“(...) É preciso ter o bom senso de entender que os recursos
são insuficientes para atender aos deveres municipais,
especialmente após a CF/88. Ademais, devem os ordenadores de despesa atender aos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Tendo em conta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a imposição de obrigações de fazer a ser impostas aos diversos poderes na esfera federal, estadual e municipal exige moderação, a partir do cuidado quando da elaboração das políticas públicas e orçamentárias.
O Ministério Público mostrou que o município tem obrigação, sendo direito de todas as crianças exigir o cumprimento dela. Entretanto, não demonstrou as condições de
realização dessas obrigações, nem se foram elas olvidadas
de modo próprio, por desídia ou leviandade.”
Pedi vista dos autos para melhor refletir sobre o assunto.
Os votos que me antecederam divergem, tão-somente, quanto
ao ônus da prova. Não houve discordância quanto à obrigação
do Município de atender e implementar as políticas públicas
voltadas ao ensino infantil, nos termos do artigo 211, § 2º, da
CF/88. Também não se discute a legitimidade do Ministério
Público ou a adequação da via processual eleita.
Atenho-me, portanto, ao foco da divergência.
A cláusula da “reserva do possível” surgiu, na década de 70, em
julgamento realizado na Corte Constitucional alemã. Na ocasião,
discutia-se o direito de acesso às vagas em universidades públicas,
tendo aquele Tribunal considerado que as prestações que o cidadão pode exigir do Estado estão condicionadas aos limites do
razoável.
A “reserva do possível” representa um inescusável limite à atuação do Poder Judiciário.
A decisão judicial que imponha ao Estado determinada prestação será de pouca ou nenhuma exeqüibilidade se o Poder
Público puder escudar-se com a genérica afirmativa de carência
de recursos orçamentários.
Embora a “reserva do possível” represente um limite à atuação
jurisdicional quanto à implementação de políticas públicas e à
concretização de direitos sociais, não pode ser tomada como
obstáculo intransponível, à consideração de que ao Judiciário
compete sindicar a própria escusa governamental.
Se assim não fosse, bastaria a genérica alegação de que o Estado
não dispõe de recursos financeiros para que restassem aniquilados todos os direitos socais de segunda geração, que exigem
prestações positivas do Estado.
Sob esse prisma, será sempre possível ao Judiciário aferir,
concreta e objetivamente, se se faz presente a cláusula da
“reserva do possível”, diante da justificativa estatal e das provas
que tenha carreado aos autos.
Assim, deverá o órgão julgador negar aplicação à cláusula
sempre que o Poder Público dela se valer de forma genérica,
apenas para se eximir da responsabilidade constitucional que
lhe foi confiada.
O artigo 333 do Código de Processo Civil, que regula a distribuição do ônus da prova, atribui ao autor o ônus de provar o fato
constitutivo de seu direito (inciso I) e, ao réu, o fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II).
No caso, o ônus de provar a insuficiência orçamentária ou a
impossibilidade material de atender a obrigação de fazer postulada na ação era do réu, sob pena de inversão indevida do ônus
da prova.
53
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Na ação, pretendia o autor que o Município fosse condenado a
garantir matrícula de menor carente em creche próxima a sua
residência. Para tanto, invocou direito fundamental assegurado
na Constituição e disciplinado no Estatuto da Criança e do
Adolescente, bem como a Lei Orgânica do Município.
Cabia ao réu, em defesa, fazer prova concreta e objetiva da
indisponibilidade orçamentária ou da impossibilidade material
de cumprir a postulação lançada na inicial, nos termos do artigo
333, II, do CPC.
O Supremo Tribunal Federal, ao examinar o RE 410.715/SP,
interposto nos autos de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra o Município de
Santo André, também para garantir pré-escola a menor carente,
examinou a questão atinente à “reserva do possível” da seguinte
forma:
“Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à ‘reserva do
possível’ (...), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas
individuais e/ou coletivas.
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos,
sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em
grande medida, de um inescapável vínculo financeiro
subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de
tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de
incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal,
desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do
comando fundado no texto da Carta Política. Não se
mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese,
criar obstáculo artificial que revele a partir de indevida
manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de
fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a
preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel.
Min. Celso de Mello, Informativo/STF nº 345/2004).
Cumpre advertir, desse modo, na linha de expressivo
magistério doutrinário (...), que a cláusula da ‘reserva do
possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado,
com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente
quando, dessa conduta governamental negativa, puder
resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos
constitucionais impregnados de um sentido de essencial
fundamentalidade."
A insuficiência de recursos orçamentários não pode ser alegada
pelo gestor público como “mote mágico” para justificar a negativa do Estado em dar cumprimento às políticas públicas a que
está subordinado.
O princípio da “reserva do possível” somente eximirá a responsabilidade estatal se concreta e objetivamente demonstrada a
incapacidade financeira e o cumprimento das disposições constitucionais que obrigam a vinculação de parcela da receita
pública a certas despesas, como no caso da educação.
A prova da ausência de previsão orçamentária, da insuficiência
de recursos ou da impossibilidade material de cumprimento do
comando judicial compete ao Poder Público quando acionado
para garantir ou dar cumprimento aos direitos de segunda geração consagrados na Carta Republicana.
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ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
No presente caso, como reconheceu o Ministro Relator, “não
obstante tenha a municipalidade alegado falta de vagas e possível descumprimento da lei orçamentária, nada provou; a questão manteve-se no campo das possibilidades (...) O Município
deveria ter trazido aos autos a real situação em que se encontram seus estabelecimentos de ensino relativos à pré-escola,
bem como a impossibilidade de se atender à demanda, em face
de eventual extrapolação orçamentária, para que as instâncias
ordinárias pudessem aferi-la frente ao que se postulou na
presente ação.”
Ante o exposto, pedindo vênia à Ministra Eliana Calmon, acompanho o Relator para dar provimento ao recurso especial.
É como voto.
VOTO-VOGAL
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS:
Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator dentro do princípio do
Ministro Celso Mello, dando provimento ao recurso especial.
É como penso. É como voto.
Ministro Humberto Martins
· REsp. 1.024.128-PR
DJ-E 19-12-2008
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS À EXECUÇÃO
FISCAL – EFEITO SUSPENSIVO – LEI 11.382/2006 –
REFORMAS PROCESSUAIS – INCLUSÃO DO
ARTIGO 739-A NO CPC – REFLEXOS NA LEI
6.830/80 – “DIÁLOGO DAS FONTES”.
1. Após a entrada em vigor da Lei 11.382/2006, que incluiu no
CPC o artigo 739-A, os embargos do devedor poderão ser recebidos com efeito suspensivo somente se houver requerimento
do embargante e, cumulativamente, estiverem preenchidos os
seguintes requisitos: a) relevância da argumentação; b) grave
dano de difícil ou incerta reparação; e c) garantia integral do
juízo.
2. A novel legislação é mais uma etapa da denominada “reforma do CPC”, conjunto de medidas que vêm modernizando o
ordenamento jurídico para tornar mais célere e eficaz o processo como técnica de composição de lides.
3. Sob esse enfoque, a atribuição de efeito suspensivo aos
embargos do devedor deixou de ser decorrência automática de
seu simples ajuizamento. Em homenagem aos princípios da
boa-fé e da lealdade processual, exige-se que o executado
demonstre efetiva vontade de colaborar para a rápida e justa
solução do litígio e comprove que o seu direito é bom.
4. Trata-se de nova concepção aplicada à teoria geral do
processo de execução, que, por essa ratio, reflete-se na legislação processual esparsa que disciplina microssistemas de execução, desde que as normas do CPC possam ser subsidiariamente
utilizadas para o preenchimento de lacunas. Aplicação, no
âmbito processual, da teoria do “diálogo das fontes”.
5. A Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80) determina, em seu
artigo 1º, a aplicação subsidiária das normas do CPC. Não havendo disciplina específica a respeito do efeito suspensivo nos
embargos à execução fiscal, a doutrina e a jurisprudência
sempre aplicaram as regras do Código de Processo Civil.
6. A interpretação sistemática pressupõe, além da análise da
relação que os dispositivos da Lei 6.830/80 guardam entre si, a
54
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
respectiva interação com os princípios e regras da teoria geral
do processo de execução. Nessas condições, as alterações
promovidas pela Lei 11.382/2006, notadamente o artigo 739-A,
§ 1º, do CPC, são plenamente aplicáveis aos processos regidos
pela Lei 6.830/80.
7. Não se trata de privilégio odioso a ser concedido à Fazenda
Pública, mas sim de justificável prerrogativa alicerçada nos
princípios que norteiam o Estado Social, dotando a Administração de meios eficazes para a célere recuperação dos créditos
públicos.
Recurso Especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as
acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do
Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade,
negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a).
Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Carlos Fernando Mathias
(Juiz convocado do TRF 1ª Região), Eliana Calmon, Castro
Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 13 de maio de 2008 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin – Relator
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator):
Trata-se de Recurso Especial interposto, com fulcro no artigo
105, III, “a”, da Constituição da República, contra acórdão
assim ementado:
TRIBUTÁRIO – EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – EFEITO
SUSPENSIVO – RELEVÂNCIA DO FUNDAMENTO DO PEDIDO.
Os argumentos apresentados pelo agravante não são relevantes
e os bens penhorados são insuficientes a garantir a execução
fiscal. Por isso, nos termos do artigo 739-A, § 1º, do CPC, não há
como se atribuir efeito suspensivo aos embargos.
Acrescenta-se que a finalidade de se exigir garantia suficiente é,
exatamente, a efetividade do processo de execução para satisfação dos créditos executados. Por essa razão, não há como se
acolher a alegação de que bastam que os bens sejam suficientes
a garantir os valores apontados pela exeqüente na data da
propositura da execução.
A recorrente alega violação do artigo 739-A, § 1º, do CPC, com
o argumento de que esse dispositivo não se aplica às execuções
fiscais.
Foram apresentadas contra-razões.
O Recurso Especial foi admitido na origem.
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator):
Preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso, passo
ao exame do mérito.
O artigo 739-A foi introduzido no Código de Processo Civil pela
Lei 11.382, de 6 de dezembro de 2006, com a seguinte redação:
“Art. 739-A – Os embargos do executado não terão efeito
suspensivo.
§ 1º – O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução
manifestamente possa causar ao executado grave dano de
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ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já
esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.
§ 2º – A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a
requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, cessando as
circunstâncias que a motivaram.
§ 3º – Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos
disser respeito apenas a parte do objeto da execução, essa
prosseguirá quanto à parte restante.
§ 4º – A concessão de efeito suspensivo aos embargos
oferecidos por um dos executados não suspenderá a execução contra os que não embargaram, quando o respectivo
fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante.
§ 5º – Quando o excesso de execução for fundamento dos
embargos, o embargante deverá declarar na petição inicial
o valor que entende correto, apresentando memória do
cálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de
não conhecimento desse fundamento.
§ 6º – A concessão de efeito suspensivo não impedirá a
efetivação dos atos de penhora e de avaliação dos bens.”
A Lei 11.382/2006 consubstancia mais uma etapa da denominada “reforma do CPC”, isto é, o conjunto de medidas legislativas que, desde a década de 1990, vem modernizando o Direito
Processual Civil brasileiro com o escopo de fazer do processo
um instrumento célere e eficaz de pacificação social, mediante
a proteção do direito material violado ou exposto à lesão.
Fundamenta-se a ideologia que norteia as alterações processuais na concepção de que deve ser prestigiada a tutela do “bem
da vida” propriamente dito, com o objetivo de propiciar meios
para que a sua substituição pelas “perdas e danos” somente
ocorra em última hipótese.
Na esteira desse raciocínio, a reforma ora versada busca o
reequilíbrio das posições jurídicas ocupadas pelas partes processuais, revigorando a antiga premissa de que o título executivo goza da presunção de certeza e liquidez, para determinar
que a execução só deverá ser suspensa quando o executado
demonstrar relevantes fundamentos fáticos e jurídicos em seu
favor. Sem prejuízo, visando à celeridade e eficácia do processo
de execução, o efeito suspensivo somente será concedido se o
juízo estiver integralmente garantido.
Deduz-se que o escopo da reforma, nesse ponto, foi o de combater a utilização de expedientes meramente protelatórios.
Discute-se, nos autos, a respeito da incidência dessa nova concepção sobre os executivos fiscais regidos pela Lei 6.830/80.
A tese da recorrente é a de que o dispositivo não pode ser utilizado no âmbito da Execução Fiscal porque: a) a interpretação
sistemática da LEF leva à conclusão de que os Embargos à
Execução Fiscal são dotados de efeito suspensivo “automático”,
isto é, existente pelo seu simples ajuizamento; e b) o rito
previsto na Lei 6.830/80 já estabelece uma série de privilégios à
Fazenda Pública, não sendo concebível a extensão de mais um.
Os argumentos da recorrente, embora construídos com engenho e habilidade, não se sustentam.
Em primeiro lugar, reporto-me às considerações feitas acerca
das alterações efetuadas no Código de Processo Civil, para registrar que não se trata de estabelecer aqui uma metodologia aplicável exclusivamente a um determinado segmento do processo
de execução (o Estado, por exemplo), tomado em acepção
restrita no sentido subjetivo ou objetivo, mas, sim, de verdadeira releitura dos princípios processuais concernentes à teoria
geral do processo de execução. Não é, aliás, outra a razão pela
qual o legislador, ao disciplinar, na legislação processual esparsa, diferentes modalidades e ritos para o processo de execução,
consignou a utilização subsidiária das regras previstas no CPC.
55
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Tem-se, aqui, como plenamente aplicável a denominada “Teoria do Diálogo das Fontes”, mais desenvolvida no âmbito do
Direito do Consumidor, e que, na esteira das lições de Cláudia
Lima Marques, cuidou da inter-relação e dos efeitos da vigência
do Novo Código Civil sobre o Código de Defesa do Consumidor. Em linhas gerais, a mencionada teoria estuda as conseqüências que a alteração dos conceitos, princípios e institutos
jurídicos de uma norma geral desencadeia sobre normas inseridas em microssistemas jurídicos com aquela relacionados de
forma direta ou indireta.
Especificamente em relação às execuções fiscais, o artigo 1º da
Lei 6.830/80 dispõe que a execução judicial para cobrança da
Dívida Ativa da Fazenda Pública é por ela regida e “subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil”. Assim, se não houver
regra na LEF que discipline determinado assunto específico do
processo de execução, e, se a norma do CPC não for incompatível com o rito da LEF, as alterações feitas neste último poderão
repercutir na ação de execução fiscal.
Trasncrevo a lição da doutrina de Manoel Álvares:
“A Lei das Execuções Fiscais, ao instituir um procedimento
típico para a cobrança de crédito inscrito em dívida ativa,
não o fez, contudo, de forma exaustiva, porquanto
manteve, como fontes subsidiárias, as normas do Código
de Processo Civil.
Assim, parece-nos que o correto manejo da execução
fiscal, em que pese sua especialidade procedimental, há
que iniciar pela compreensão de sua inserção dentro de
nosso sistema jurídico, à luz do qual se revela como subespécie de execução singular por quantia certa, com base em
título executivo extrajudicial.
(...)
É bem de ver, portanto, que, ainda quando inexistisse
comando expresso nesse sentido, a aplicação subsidiária
das normas processuais comuns seria de rigor, porquanto a
Lei nº 6.830/80, como lei processual especial, restringe seu
universo normativo às regras específicas da cobrança judicial da dívida ativa, filiando-se ao Direito Processual
Comum, que lhe empresta apoio para a regulação do
procedimento no que não desfigure a sua singularidade,
através de evidente relação de espécie e gênero. (Execução
Fiscal: doutrina e jurisprudência . Manoel Álvares et al.
Coordenação de Vladimir Passos de Freitas. São Paulo:
Saraiva, 1988)”
Quanto aos Embargos à Execução Fiscal, a Lei 6.830/80 disciplina as condições (artigo 16, § 1º), o prazo para oferecimento
deles e o respectivo início da contagem (artigo 16, caput e incisos I, II e III); o prazo para sua impugnação (artigo 17); as matérias vedadas (artigo 16, § 3º) e as permitidas (artigo 16, § 2º) ao
enfrentamento. Nesse aspecto, as alterações feitas no CPC não
interferem no processamento das Execuções Fiscais, mantendo-se a aplicação da legislação específica.
Diferentemente, não há previsão a respeito dos efeitos dos
aludidos Embargos. Buscando a integração no regime geral do
processo de execução do CPC, em que então se encontrava
previsto o efeito suspensivo, a doutrina e a jurisprudência passaram a aplicá-lo aos Embargos à Execução Fiscal como conseqüência de seu tão-só oferecimento em juízo.
Também por outra disposição própria do CPC (artigo 520, V),
o efeito suspensivo cessaria apenas quando julgados improcedentes os Embargos, uma vez que o recurso cabível contra a
sentença seria dotado exclusivamente do efeito devolutivo, sem
alterar a natureza de execução definitiva do título extrajudicial.
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Cito precedentes de ambas as Turmas que compõem a Primeira
Seção desta Corte:
“PROCESSO CIVIL – RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO
FISCAL – PRACEAMENTO DE BENS DA EXECUTADA –
PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE RECURSO CONTRA
SENTENÇA QUE REJEITA OS EMBARGOS DO DEVEDOR –
POSSIBILIDADE – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
PROTELATÓRIOS – APLICAÇÃO DA MULTA DO
ARTIGO 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC –
LEGALIDADE.
1. Em sede de recurso especial, é vedado a esta Corte apreciar argüição de violação de dispositivos constitucionais,
em razão da rígida competência que lhe foi outorgada pelo
artigo 105, III, da Carta Magna.
2. Revela-se improcedente argüição de contrariedade ao artigo
535, inciso II, do Código de Processo Civil, quando o Tribunal
de origem, ainda que não aprecie todos os argumentos expendidos em sede recursal, pronuncia-se de forma adequada e
suficiente sobre as questões relevantes que delimitam a
controvérsia.
3. Restando caracterizado o nítido intuito protelatório dos
embargos de declaração, torna-se lícita a aplicação de
multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do CPC.
4. A teor do disposto no artigo 587 do CPC, é definitiva
execução fundada em título executivo judicial ou extrajudicial, ainda que pendente o julgamento de apelação interposta contra sentença que rejeita os embargos do devedor.
5. A oposição de embargos do devedor acarreta a suspensão (artigos 791, I, do CPC) – e não a provisoriedade – da
execução, cujo processo volta a prosseguir tão logo sejam
rejeitados os embargos, já que a apelação que impugna
essa sentença não tem efeito suspensivo (artigo 520, V, do
CPC).
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte,
não-provido.
(REsp. 406.082/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha,
Segunda Turma, julgado em 1-6-2006, DJ 2-8-2006 p. 230)
PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO
FISCAL – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO – SÚMULA Nº 282/STF – INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO –
EFEITO SUSPENSIVO – IMPOSSIBILIDADE – PRECEDENTES – PRINCÍPIO DA MENOR ONEROSIDADE –
SÚMULA 7/STJ.
1. Recurso especial interposto por Panal Produtos Alimentícios Naturais Ltda. contra acórdão do TRF da 4ª Região
segundo o qual: a) deve ser recebido apenas com efeito
devolutivo recurso de apelação interposto contra sentença
de indefere liminarmente a inicial de embargos à execução fiscal, consoante determina o artigo 520, V, do CPC;
b) somente tem aplicação o parágrafo único do artigo 558
do CPC quando presentes relevante fundamentação e a
possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação;
c) a observância ao princípio da menor onerosidade não
pode implicar prejuízo ao credor, cuja satisfação do crédito
é o objeto último da execução fiscal. A recorrente aponta
violação dos artigos 520, 558, 620 do CPC, 102 II, IV e 108,
do CTN. Defende, em síntese, que: a) é cabível o efeito
suspensivo a recurso de apelação interposto em sede de
embargos à execução fiscal quando justificada ameaça de
dano de difícil reparação, tal como se apresenta no caso,
em que se discute a ilegalidade da inclusão dos sócios da
empresa no pólo passivo do feito executivo; b) a concessão
de efeito suspensivo não trará qualquer prejuízo ao Fisco;
c) deve ser observado o princípio de que a arrecadação
deve ocorrer de forma menos onerosa ao contribuinte.
56
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
2. Se o acórdão recorrido não enfrenta a matéria dos artigos
102 II, IV e 108, do CTN , tem-se por não-suprido o requisito do prequestionamento, incidindo o óbice da Súmula
282 do STF.
3. A linha de pensar adotada pelo TRF da 4ª Região encontra-se no mesmo sentido da jurisprudência deste Tribunal,
confira-se: III – É evidente que, se o comando legal do artigo
520, inciso V, do CPC, determina o recebimento da apelação tão-somente no efeito devolutivo, quando julgados
improcedentes os embargos à execução (com apreciação
de mérito) ou rejeitados liminarmente (sem a análise do
meritum causae), tal dispositivo será aplicado, também, na
hipótese de extinção sem julgamento de mérito dos embargos (artigo 267 do CPC). (REsp. 924.552/MG, Rel. Min.
Francisco Falcão, DJ de 28-5-2007).
– A execução de título executivo extrajudicial é definitiva
quando os embargos do devedor são julgados improcedentes. A interposição de recurso recebido no efeito devolutivo
não afasta esta qualidade que lhe é intrínseca. Artigos 520,
V, e 587, primeira parte, do Código de Processo Civil. (REsp.
434.862/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de
2-8-2006).
– É definitiva a execução fiscal após o julgamento dos
embargos de devedor, ainda que pendente apelação que
deve ser recebida apenas no efeito devolutivo. Precedentes
desta Corte. (REsp. 764.963/MG, Rel. Min. Castro Meira, DJ
de 10-10-2005).
– A execução de título executivo extrajudicial é definitiva
quando os embargos do devedor são julgados improcedentes. A interposição de recurso, recebido no efeito devolutivo, não afasta esta qualidade que lhe é intrínseca. Artigos 520, V, e 587, primeira parte, do Código de Processo
Civil. (EREsp. 172.320/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 1-2-2005).
4. O enfrentamento da tese da recorrente de que a execução deve se processar em obediência ao que dispõe o artigo
620 do CPC (princípio da menor onerosidade) enseja a
análise de questões fáticas. Incidência da Súmula nº 7/STJ.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte,
não-provido.
(REsp. 954.992/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 16-10-2007, DJ
25-10-2007 p. 143)”
Inafastável a conclusão de que a alteração no CPC repercute na
execução fiscal. Em outras palavras, os Embargos à Execução
Fiscal oferecidos a partir da vigência da Lei 11.382/2006 não
mais gozam do efeito suspensivo automático. Há necessidade
de prévio requerimento do embargante e do preenchimento das
seguintes condições: a) relevância da argumentação; b) grave
dano de difícil ou incerta reparação; e c) garantia integral do
juízo.
Para encerrar, a recorrente justifica que a leitura dos artigos 18,
19 e 24 da LEF conduziria à ilação de que, implicitamente, a LEF
concedeu efeito suspensivo aos Embargos. O argumento é artificioso, pois tais dispositivos disciplinam outros assuntos, isto é, a
manifestação do exeqüente a respeito da garantia, o prosseguimento da execução em caso de garantia prestada por terceiro e,
finalmente, a possibilidade de adjudicação pela Fazenda Pública. O exercício de tais atos processuais ocorre somente a
partir do momento em que se entende que a execução fiscal
deve prosseguir, seja porque os Embargos não foram ajuizados,
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
seja porque foram julgados improcedentes (ainda que pendente
o julgamento de recursos interpostos).
Pois bem, no contexto das alterações feitas no CPC, o prosseguimento da execução não mais depende do julgamento dos
Embargos, mas, sim, da eventual concessão de efeito suspensivo. Portanto, a interpretação sistemática, que não se faz exclusivamente entre dispositivos internos de uma lei específica, mas
diante de sua inserção no ordenamento jurídico como um todo,
demonstra que a leitura dos artigos ventilados pela recorrente
deve ser conduzida sob a atual concepção, qual seja a de
concessão ou não do efeito suspensivo aos Embargos.
Quanto à alegação de que a Fazenda Pública já detém vários
privilégios, motivo por que não se justificaria a concessão de
mais um, verifico ser destituída de fundamento jurídico. Não se
trata de privilégios carecedores de razoabilidade, mas de prerrogativas que, sabidamente, foram conferidas com o propósito
de dotar o Estado-Fisco (e não só ele) de meios mais céleres e
eficazes para a recuperação de seus créditos. Percebe-se, em
última instância, disfarçado desejo de inversão de valores: o
legislador pretendeu conferir a todo e qualquer credor meios
mais adequados para atingir o resultado efetivo do processo de
execução. Seria paradoxal posicionar a Fazenda Pública, tão-somente por sua condição, em flagrante desvantagem em relação
aos demais credores. Numa palavra, em pleno Estado Social,
baseado na valorização do interesse público, colocar-se-ia o
Erário em posição de desvantagem no confronto com o crédito
privado.
Com essas considerações, em defesa do interesse publico, nego
provimento ao Recurso Especial.
É como voto.
· HC 92.136-RJ
DJ-E 3-11-2008
EMENTA
PENAL E PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS
SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO – ARTIGO 10, § 2º, DA LEI Nº 9.437/97 – PRAZO PARA A
REGULARIZAÇÃO DA ARMA – ARTIGOS 30, 31 E
32, DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO – PRAZO
REFERENTE ÀS HIPÓTESES DE POSSE DE ARMA DE
FOGO – NÃO SE CONFUNDE COM OS CASOS DE
PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO.
I – Não se pode confundir posse irregular de arma de fogo com o
porte ilegal de arma de fogo. Com o advento do Estatuto do
Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por
sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência
ou local de trabalho
II – Os prazos a que se referem os artigos 30, 31 e 32, da Lei nº
10.826/2003, só beneficiam os possuidores de arma de fogo,
i.e., quem a possui em sua residência ou emprego (v.g., artigo
12, da Lei nº 10.826/2003). Dessa maneira, até que finde tal
prazo, ninguém poderá ser preso ou processado por possuir (em
casa ou no trabalho) uma arma de fogo.
III – In casu, a conduta atribuída ao paciente foi a de portar arma de
fogo (artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/2003).
Logo, não se enquadra nas hipóteses excepcionais dos artigos 30,
57
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, que se referem aos casos de
posse de arma de fogo (Precedentes).
– O crime de porte ilegal de arma de fogo não foi abrangido
pela descriminante do artigo 32 da Lei nº 10.826/2003.
Writ denegado.
– “Narrando a denúncia, acolhida pela sentença condenatória, que o agravante transportava a arma de fogo no interior de seu veículo, não é de falar em posse irregular de
arma, mas de porte ilegal, não abrangido pela descriminalização temporária.” (precedente do STJ)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as
acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do
Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a ordem.
Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Napoleão
Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Brasília (DF), 26 de agosto de 2008 (Data do julgamento).
– Parecer pela denegação da ordem" (fl. 121).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de habeas
corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido liminar,
impetrado em benefício de L.O.D., atacando v. acórdão prolatado pela c. Oitava Câmara Criminal do e. Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, nos autos do Writ nº 2007.059.04705.
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Daí o presente writ,
pelo qual os impetrantes alegam que o paciente está sofrendo
constrangimento ilegal. Para tanto, aduzem que a conduta de
porte ilegal de arma passou a ser atípica, devido a Lei nº 9.437/97
ter sido revogada expressamente pela Lei nº 10.826/2003, que
estipulou prazo para que os possuidores ou proprietários de
armas de fogo possam efetuar seus registros ou mesmo entregá-las junto às autoridades. Requerem, em suma, que seja
declarada a abolitio criminis quanto ao crime do artigo 10, § 2º,
da Lei nº 9.437/97.
Depreende-se dos autos que o ora paciente possui, em execução, a carta de execução de sentença nº 2004/07193-2, expedida pela 17a Vara Criminal da Capital, onde foi condenado, por
delito cometido em 29-11-2002, à pena de 2 (dois) anos e 6
(seis) meses de reclusão, em regime semi-aberto, além de pagamento de pena pecuniária, pela prática do delito descrito no
artigo 10, § 2º, da Lei nº 9.437/97.
Não se pode confundir posse irregular de arma de fogo com o
porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. Com o advento
do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência
(ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo.
O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora
da residência ou local de trabalho.
Buscando a extinção da punibilidade do paciente sob o fundamento de abolitio criminis quanto ao crime do artigo 10, § 2º, da
Lei nº 9.437/97 (porte de arma de uso proibido), a defesa impetrou habeas corpus. Em sessão de julgamento realizada em
6-8-2007, o e. Tribunal a quo, à unanimidade, denegou a
ordem. Eis a ementa do v. acórdão:
No caso em tela, o ora paciente foi denunciado como incurso
nas sanções do artigo 10, § 2º, da Lei nº 9.437/97 (porte ilegal de
arma de fogo).
Ministro Felix Fischer – Relator
RELATÓRIO
“EMENTA: Habeas Corpus. Artigo 10, § 2º, da Lei 9.437/97.
Constrangimento ilegal decorrente da expedição do
mandado de prisão por condenação anterior, que não
subsistiria em razão da abolitio criminis sustentada pelo ora
paciente. Noticiam as informações, a condenação por
porte de arma de fogo de uso proibido. Demonstrada sua
origem ilícita, fica afastada a anistia temporária prevista no
artigo 32 da Lei 10.826/2003. Inocorrência de constrangimento ilegal. Denegação da ordem” (fl. 99).
Daí o presente writ, pelo qual os impetrantes alegam que o paciente está sofrendo constrangimento ilegal. Para tanto, aduzem
que a conduta de porte ilegal de arma passou a ser atípica,
devido à Lei nº 9.437/97 ter sido revogada expressamente pela
Lei nº 10.826/2003, que estipulou prazo para que os possuidores ou proprietários de armas de fogo possam efetuar seus registros ou mesmo entregá-las junto às autoridades. Requerem, em
suma, que seja declarada a abolitio criminis quanto ao crime do
artigo 10, § 2º, da Lei nº 9.437/97.
Liminar indeferida às fls. 46 e 65.
Informações prestadas às fls. 68/69.
A douta Subprocuradoria-Geral da República, às fls. 121/125,
manifestou-se pela denegação da ordem em parecer assim
ementado:
“– Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Crime
de porte ilegal de arma de fogo. Pretensão consistente em
obter o reconhecimento da extinção da punibilidade com
fundamento no artigo 32, da Lei nº 10.826/2003.
02/2009
Pois bem.
Alegam os impetrantes que a conduta do paciente é atípica, pois
foi praticada dentro do prazo para que os possuidores de arma
de fogo regularizassem sua situação.
Em que pese as argumentações dos combativos impetrantes,
tenho que a irresignação não prospera.
Ocorre que tais prazos (ou “anistia”, segundo Luiz Flávio Gomes),
só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a
possui em sua residência ou emprego (v.g., artigo 12, da Lei
nº 10.826/2003). Dessa maneira, somente até 23-6-2005 (consoante a Medida Provisória nº 229/2004, de 18-12-2004),
ninguém poderia ser preso ou processado por possuir (em casa
ou no trabalho) uma arma de fogo.
In casu, a conduta atribuída ao paciente foi a de portar arma de
fogo (artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/2003).
Logo, não se enquadra nas hipóteses excepcionais dos artigos
30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento que, insisto, se referem aos casos de posse de arma de fogo.
Nesse sentido, nesta Corte:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE
ARMA DE FOGO. ABOLITIO CRIMINIS TEMPORALIS.
INCABIMENTO. ATIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA.
IRRELEVÂNCIA.
1. A hipótese de abolitio criminis temporária deferida nos
artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/2003 não contemplou o
porte ilegal de arma de fogo, mas tão-somente o crime de
posse.
2. O desmuniciamento da arma não conduz à atipicidade
da conduta, bastando, como basta, para a caracterização
do delito, o porte de arma de fogo sem autorização e em
desacordo com determinação legal ou regulamentar.
58
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
3. Recurso improvido."
(RHC 17.561/DF, 6a Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 6-2-2006).
“PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – ARTIGO 14
DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO – PORTE DE
ARMA DE FOGO – TIPICIDADE DA CONDUTA –
VACATIO LEGIS INDIRETA NÃO OCORRENTE NA
HIPÓTESE – PRAZO PARA REGULARIZAÇÃO OU
ENTREGA DA ARMA RESTRITO ÀS HIPÓTESES DE POSSE
PREVISTAS NOS ARTIGOS 12 E 16 DA LEI 10.826/2003 –
INÉPCIA DA DENÚNCIA NÃO CONFIGURADA –
CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CARACTERIZADO –
INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO – PRISÃO PREVENTIVA –
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – ORDEM
PARCIALMENTE CONCEDIDA PARA DESCONSTITUIR A
PRISÃO PREVENTIVA.
1. O prazo concedido nos artigos 30 e 32 do Estatuto do
Desarmamento para que possuidores e proprietários de
arma de fogo regularizem a situação, no prazo de 180
(cento e oitenta) dias, por meio do registro ou entrega da
arma à Polícia Federal, restringe-se às hipóteses de posse de
arma, previstas nos artigos 12 e 16 da Lei 10.826/2003, que
não se confunde com o porte, previsto no artigo 14 da
citada norma. Precedentes.
2. Não há falar em inépcia da denúncia, quando a peça
acusatória preenche, satisfatoriamente, o disposto no artigo
41 do Código de Processo Penal, contendo a exposição
clara e objetiva dos fatos tidos como delituosos, com todas
as suas circunstâncias, permitindo ao acusado o pleno
exercício do seu direito de defesa.
3. Não se declara a nulidade de um ato se de seu defeito
não resultar prejuízo às partes. Inteligência do artigo 563
do Código de Processo Penal.
4. A simples reprodução das expressões ou dos termos
legais expostos na norma de regência, divorciada dos fatos
concretos ou baseada em meras suposições, não é suficiente para atrair a incidência do artigo 312 do Código de
Processo Penal, tendo em vista que o referido dispositivo
legal não admite conjecturas. A decretação da referida
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
medida restritiva de liberdade antecipada deve reger-se
sempre pela demonstração da efetiva necessidade no caso
concreto.
5. É indispensável que no decreto de prisão preventiva estejam devidamente consignadas, de forma específica e objetiva, as razões concretas pelas quais se mostra necessária a
custódia cautelar, evidenciando-se na decisão em que
ponto reside a ameaça à ordem pública ou os riscos para a
regular instrução criminal ou o perigo de se ver frustrada a
aplicação da lei penal.
6. Ordem parcialmente concedida, para desconstituir o
decreto prisional e determinar a expedição do alvará de
soltura, caso o paciente não esteja preso por outro motivo."
(HC 42.083/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
DJU de 5-12-2005).
“HABEAS CORPUS – PENAL – ESTATUTO DO DESARMAMENTO – (PORTE ILEGAL DE ARMA DE USO PERMITIDO
(ARTIGO 14 DA LEI 10.826/2003) – ABOLITIO CRIMINIS
TEMPORÁRIA – INOCORRÊNCIA – TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL – IMPOSSIBILIDADE.
1. Esta Corte vem entendendo que, diante da literalidade
dos artigos relativos ao prazo legal para regularização do
registro da arma (artigos 30, 31 e 32 da Lei 10.826/2003),
observa-se a descriminalização temporária exclusivamente em relação às condutas delituosas relativas à posse
de arma de fogo de uso permitido, tal como descrito no
artigo 12 da referida Lei;
2. “Afastado o argumento segundo o qual teria ocorrido a
abolitio criminis temporalis da conduta de ‘portar ilegalmente arma de fogo’ imputada ao paciente, praticada sob a
égide da Lei nº 10.826/2003, torna-se inviável o pretendido
trancamento da ação penal instaurada.” (HC 40.419/DF, 5a
Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 1-7-2005);
Ordem denegada."
(HC 40.422/DF, 6ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia
Barbosa, DJU de 26-9-2005)
Ante o exposto, denego writ.
É o voto.
59
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
· ROAR-2626/2005-000-01-00.8
DJ-E 12-12-2008
ACÓRDÃO
A autora interpôs recurso ordinário (fls. 269-275), insistindo na
procedência da pretensão desconstitutiva, ora baseada somente
na violação ao artigo 17 do CPC, que encerra o tema da condenação por litigância de má-fé no processo original.
AÇÃO RESCISÓRIA – AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM
PAGAMENTO AJUIZADA PELO EMPREGADOR ANTES DA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA PROPOSTA
PELA EMPREGADA – CONDENAÇÃO DA RECLAMANTE POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – VIOLAÇÃO
DO ARTIGO 17 DO CPC – CONFIGURAÇÃO.
Admitido o recurso (fl. 476), foram apresentadas contra-razões
às fls. 280-281.
Trata-se de pedido desconstitutivo de sentença que condenou a
reclamante por litigância de má-fé, imputação esta motivada
pelo trânsito em julgado de ação de consignação em pagamento anteriormente ajuizada pelo empregador, no qual fora
depositado o valor das verbas rescisórias devidas por suposta
dispensa com justa causa. A apreciação da ação consignatória
limita-se à constatação da suficiência, ou não, do numerário
consignado. É dizer: seu objeto é circunscrito à matéria relativa
à liberação do devedor. Disso decorre que a decisão proferida
nesta espécie de procedimento especial possui natureza declaratória. Aplicada no âmbito da Justiça do Trabalho, a ação de
consignação em pagamento deve ser vista como forma viável
de quitação do débito do empregador para com o empregado,
nos casos previstos no artigo 335 do Código Civil, porém jamais
pode obstar a via da reclamação trabalhista, dotada de natureza
condenatória. In casu, a empresa ajuizou ação de consignação
em pagamento a fim de se liberar das verbas rescisórias que
reputava cabíveis à empregada dispensada com suposta justa
causa. Todavia, é incabível que se condene por litigância de
má-fé a trabalhadora que pleiteie em reclamação trabalhista as
verbas rescisórias decorrentes de uma alegada dispensa sem
justa causa, mesmo que tenha figurado no pólo passivo de ação
consignatória postulada anteriormente pelo empregador, uma
vez que o motivo da extinção do contrato de trabalho admitido
nos autos da lide primeva não faz coisa julgada. Ademais, o
caso dos autos não se adequa a nenhuma das hipóteses de litigância de má-fé elencadas no artigo 17 do CPC, restando o
dispositivo violado e sendo descabida a condenação imposta à
reclamante pela decisão rescindenda.
VOTO
Recurso conhecido e provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Ordinário
em Ação Rescisória nº TST-ROAR-2626/2005-000-01-00.8, em
que é Recorrente M.J.C. e Recorrido Rei das Escadas Ltda.
M.J.C. ajuizou ação rescisória, com fundamento no inciso V do
artigo 485 do Código de Processo Civil, pretendendo a desconstituição da sentença proferida nos autos do Processo nº 1.992/01
(fls. 25-28), pela qual o Juízo da 52ª Vara do Trabalho do Rio de
Janeiro/RJ julgou parcialmente procedente a reclamatória trabalhista, condenando a reclamada a proceder à baixa na CTPS da
empregada, porém imputando à reclamante condenação por
litigância de má-fé em relação aos demais pedidos julgados
improcedentes. A autora indicou violação dos artigos 5º, XXXV,
da Constituição Federal e 17 do CPC.
O Regional, mediante o acórdão de fls. 264-268, julgou improcedente o pedido rescisório da autora, por entender não configurada a hipótese de rescindibilidade invocada.
02/2009
O representante do Ministério Público do Trabalho opinou pelo
conhecimento e provimento do recurso (fls. 286-291).
É o relatório.
I – CONHECIMENTO
Conheço do recurso ordinário, uma vez que preenchidos os
pressupostos de admissibilidade.
II – MÉRITO
Mediante a sentença proferida nos autos do Processo nº 1.992/2001
(fls. 25-28), o Juízo da 52ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro/RJ
julgou parcialmente procedente a reclamatória trabalhista, condenando a reclamada a proceder à baixa na CTPS da empregada, porém imputando à reclamante condenação por litigância de má-fé em relação aos demais pedidos julgados improcedentes. Esta decisão foi assim fundamentada:
“II.3 – Assiste razão à reclamada quando alega que a questão
relativa à forma da dispensa restou resolvida com o trânsito em
julgado da sentença proferida, à revelia da consignatária, pela
MMª 61ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, uma vez que os
documentos de fl. 45/46 mostram que aquele MMº Juízo,
naqueles autos, declarando a revelia da ora reclamante, reconheceu que esta foi confessa quanto à matéria de fato, o que
importa dizer que a dispensa se processou por justa causa, cuja
data é 17 de outubro de 2000, conforme documento colacionado pela demandante, à fl. 15.
Assim, impossível à autora reclamar pagamentos de aviso prévio, de diferença de décimo-terceiro salário do ano de 2000, de
férias proporcionais do ano de 2000 e seu respectivo acréscimo
de 1/3, de salários dos meses de novembro de 2000 a outubro
de 2001, de férias do ano de 2001 e respectivo adicional de 1/3,
de décimo-terceiro salário do ano de 2001, assim como a
entrega do TRCT, no código 01, indenização de 40% sobre tal
parcela e entrega da Comunicação de Dispensa para habilitação ao Seguro Desemprego, sendo indevidos todos os pedidos
retroapontados.
Contudo, tem a reclamante direito a que seja procedida à baixa
em sua CTPS, porém com data de 17 de outubro de 2000, como
deduzido na defesa, obrigação à qual não se negou a reclamada, conforme mostra a contestação.(...)
Por todo o exposto, entendo ter agido a reclamante como litigante de má-fé, ao menos neste autos, pois sabia da decisão do
Processo nº ACP 2028/2000, perante a MMª 61ª Vara do Trabalho desta cidade, o que não lhe permitiria rediscutir a matéria,
diante do trânsito em julgado daquela Ação de Consignação em
Pagamento.
Desta forma, condeno a reclamante a pagar multa de 1% sobre
o valor da causa, além de indenizar a reclamada pelas despesas
60
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
decorrentes do presente feito, arbitrando à indenização o valor
equivalente a dois salários mínimos.(...)
sentença no tocante à improcedência dos pedidos “2” a “12”
constantes da inicial da reclamatória trabalhista.
III – DECISUM
Ante a ausência de fundamentação para o corte rescisório da
sentença no particular, e em razão dos limites da devolutividade do recurso ordinário, afigura-se impossível o exame da
pretensão desconstitutiva e de novo julgamento da ação original quanto aos pedidos da reclamante julgados improcedentes
nos autos da decisão rescindenda.
Isto posto, rejeitando a argüição de incompetência da Justiça do
Trabalho, rejeitando a preliminar de extinção do processo sem
julgamento de mérito e declarando a litigância de má-fé da
autora, julgo procedentes em parte os pedidos, condenando a
reclamada a proceder à baixa na CTPS da reclamante e condenando esta a pagar à reclamada, após o trânsito em julgado,
como for apurado em liquidação de sentença, as parcelas
retrorreferidas, indevidos os honorários advocatícios, tudo na
forma da fundamentação supra, que este decisum integra, de
acordo com os parâmetros retroexpendidos” (fls. 193-195).
Pretendendo a desconstituição dessa decisão, a autora ajuizou
a presente ação rescisória, na forma preconizada no artigo 485,
V, do CPC, na qual argüiu a violação dos artigos 5º, XXXV, da
Constituição Federal e 17 do CPC. Nos termos da pretensão
rescindente, a violação ao mencionado dispositivo constitucional foi ocasionada pela negativa de prestação jurisdicional
operada na sentença rescindenda, ao passo que a afronta ao
artigo 17 do CPC decorreu da imputação de litigância de má-fé,
a despeito de não ter sido praticada nenhuma das hipóteses
elencadas no dispositivo legal tido por ofendido.
A Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal
Regional do Trabalho da 1ª Região julgou improcedente o
pedido formulado na ação rescisória, não considerando violados os aludidos dispositivos (fls. 264-268). O julgado assevera
que, no tocante à apontada violação do artigo 5º, XXXV, da
Constituição Federal, houve efetiva prestação jurisdicional.
Em relação à ofensa ao artigo 17 do CPC, o Regional assenta que
o questionamento acerca do enquadramento, ou não, da conduta da reclamante em uma das hipóteses de litigância de má-fé
redundaria em reexame do mérito do processo original, de
modo que não procede a pretensão desconstitutiva.
A autora postula a reforma da decisão recorrida, ora baseada
somente na afronta ao artigo 17 do CPC, que encerra o tema da
condenação por litigância de má-fé no processo original.
À análise.
Inicialmente, cumpre esclarecer que a decisão rescindenda em
exame abrange duas matérias distintas, as quais serão analisadas separadamente: 1) a improcedência dos pedidos “2” a “12”
constantes da inicial da reclamatória trabalhista; e 2) a condenação da reclamante por litigância de má-fé.
II.1 – IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS “2” A “12” CONSTANTES DA INICIAL DA RECLAMATÓRIA TRABALHISTA
Conforme relatado, o juízo prolator da sentença rescindenda
deu procedência somente ao pedido 1 (baixa na CTPS da reclamante por parte da reclamada), ao passo que julgou improcedentes todos os demais pedidos constantes da inicial da reclamatória trabalhista, enumeradas às fls. 40-41 dos autos.
Essa matéria foi atacada pela via da ação rescisória, com base
no artigo 485, V, do CPC, por violação ao artigo 5º, XXXV, da
Constituição Federal, que o Regional julgou improcedente. No entanto, em suas razões recursais, a autora não renovou o pedido
de análise do tema por esse viés, não apontando nenhuma
causa de rescinbilidade para fundamentar a desconstituição da
02/2009
II.2 – condenação da reclamante por litigância de má-fé
Em relação à apontada violação do artigo 17 do CPC, assiste
razão à autora-recorrente.
A apreciação da ação de consignação em pagamento limita-se à
constatação da suficiência, ou não, do numerário consignado.
É dizer: seu objeto é circunscrito à matéria relativa à liberação
do devedor. Disso decorre que a decisão proferida nesta espécie de procedimento especial possui natureza declaratória.
Aplicada no âmbito da Justiça do Trabalho, a ação consignatória deve ser vista como forma viável de quitação do débito do
empregador para com o empregado, nos casos previstos no
artigo 335 do Código Civil, porém jamais pode obstar a via da
reclamação trabalhista, dotada de natureza condenatória.
In casu, a empresa ajuizou ação de consignação em pagamento
a fim de se liberar das verbas rescisórias que reputava cabíveis à
empregada dispensada com suposta justa causa. Todavia, é incabível que se condene por litigância de má-fé a trabalhadora
que pleiteie em reclamação trabalhista as verbas rescisórias
decorrentes de uma alegada dispensa sem justa causa, mesmo
que tenha figurado no pólo passivo de ação consignatória
postulada anteriormente pelo empregador, uma vez que o motivo da extinção do contrato de trabalho admitido nos autos da
lide primeva não faz coisa julgada. Tal entendimento encontra
guarida neste Colegiado, conforme o teor do seguinte aresto:
“AÇÃO RESCISÓRIA – COISA JULGADA – ACORDO EM
AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO –
INOPONIBILIDADE EM RELAÇÃO À RECLAMAÇÃO
TRABALHISTA QUE DISCUTE O FUNDAMENTO DA
DISPENSA. Esta Corte tem precedentes no sentido da
impossibilidade de invocação da coisa julgada formada na
ação de consignação em pagamento (cujo objeto é exclusivamente o de solver o pagamento em juízo de verba que o
Devedor entende devida ao Credor, sem discussão da
questão de fundo relativa ao pagamento), como exceção
na ação que discute os direitos decorrentes da relação de
trabalho (cfr. TST-ROAR-352377/97, Rel. Min. Ronaldo
Leal, in DJU de 9-2-2001). Assim, se a Empresa dispensa o
empregado irregularmente e ajuíza ação consignatória
para que este receba as verbas rescisórias, o eventual acordo
diz respeito exclusivamente às verbas em seu valor, não
fazendo coisa julgada quanto à legalidade da dispensa,
pois não se dá, entre a ação de consignação em pagamento
e a reclamação trabalhista, a tríplice identidade exigida
para a caracterização da coisa julgada como repetição da
ação no tempo. Recurso ordinário provido e remessa de
ofício prejudicada” (TST-ROXFROAR-730036/2001.8, Min.
Rel. Ives Gandra Martins Filho, DJ 15-3-2002).
Ademais, o caso dos autos não se adequa a nenhuma das hipóteses de litigância de má-fé tratadas no artigo 17 do CPC, res61
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
tando o dispositivo violado e sendo descabida a condenação
imposta à reclamante pela decisão rescindenda.
tende inaplicável o disposto na Súmula 367 do C. TST. Aponta
ofensa ao artigo 458 da CLT e traz arestos a cotejo.
Diante do exposto, constatada a afronta ao artigo 17 do CPC, dou
provimento ao recurso ordinário para julgar procedente a ação
rescisória e, em juízo rescindente, desconstituo parcialmente a
sentença proferida nos autos do Processo nº 1.992/2001 (fls. 25-28).
O recurso de revista foi admitido pelo despacho de fls. 440-442,
por divergência jurisprudencial, no que diz respeito ao tema
horas in itinere.
Em juízo rescisório, excluo a condenação da reclamante por
litigância de má-fé, consubstanciada no pagamento de multa de
1% sobre o valor da causa e indenização no valor de dois salários mínimos. Inverte-se o ônus da sucumbência no tocante ao
pagamento das custas processuais neste processo.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário para, julgando procedente a ação rescisória, desconstituir parcialmente a sentença proferida nos autos do Processo nº 1.992/2001 (fls. 25-28)
e, em juízo rescisório, excluir a condenação da reclamante por
litigância de má-fé, consubstanciada no pagamento de multa de
1% sobre o valor da causa e indenização no valor de dois salários mínimos. Inverte-se o ônus da sucumbência no tocante ao
pagamento das custas processuais neste processo.
Brasília, 2 de dezembro de 2008.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
Emmanoel Pereira – Ministro Relator
· RR-506/2005-127-15-00.7
DJ-E 28-11-2008
ACÓRDÃO
RECURSO DE REVISTA – HORAS IN ITINERE –
TEMPO GASTO ENTRE O REFEITÓRIO DA EMPRESA
E O LOCAL DE SERVIÇO – DEVIDAS.
O tempo despendido pelo empregado no trajeto interno do
estabelecimento empresarial, do refeitório até o seu posto de
serviço, configura-se como hora in itinere e deve ser pago como
sendo horas extraordinárias, já que é considerado tempo à
disposição do empregador. Aplicação analógica da Orientação
Jurisprudencial nº 36 da SBDI-1–Transitória do TST. Recurso de
revista conhecido e provido no tema.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista
nº TST-RR-506/2005-127-15-00.7, em que é Recorrente O.C.
O. e Recorrida Construções e Comércio Camargo Corrêa S.A.
O Eg. Tribunal Regional do Trabalho, mediante o acórdão de fls.
378-385, dentre outros temas, reformou a r. sentença para excluir da condenação o pagamento de horas in itinere, o adicional e reflexos, bem como o pagamento do salário habitação.
O reclamante, inconformado, interpõe recurso de revista às fls.
387-398. Insurge-se contra o indeferimento de horas in itinere,
ante o argumento de que a ausência de regular transporte
público já enseja a condenação, de acordo com a Súmula
90/TST, bem como da Súmula 325, vigente à época da decisão.
Colaciona arestos para o confronto de teses. Quanto ao salário
in natura, afirma que a residência não era fornecida para o
trabalho, sendo verba de natureza salarial, razão por que en02/2009
As contra-razões não foram apresentadas, conforme certidão à
fl. 451v.
Os autos não foram remetidos ao Ministério Público do Trabalho para emissão de parecer, em virtude do previsto no artigo 82
do Regimento Interno deste Tribunal.
É o relatório.
VOTO
I – HORAS IN ITINERE
1. CONHECIMENTO
O Eg. Tribunal Regional do Trabalho concluiu pelo indeferimento do pagamento das horas in itinere relativas ao percurso
entre o refeitório e o local de prestação de serviços, por entender tratar-se de dependência interna da empresa.
A tal propósito consignou a Eg. Corte Regional:
“Na parte do trajeto da residência do reclamante até o refeitório da reclamada não há se falar em pagamento de hora
de percurso, pois não se tratava de local de difícil acesso
não servido por transporte público regular (§ 2º do artigo
58, da CLT).
Já no segundo trajeto, ainda que verificada a ausência de
transporte público para servir o reclamante, este corresponde às dependências internas da reclamada, lembrando
que o tempo despendido pelo trabalhador em condução
fornecida pelo empregador até o local de trabalho é que
caracteriza a hora in itinere, se preenchidos os demais
requisitos previstos no § 2º do artigo 58, da CLT, acrescentado pela Lei 10.243/2001.
Assim, o tempo gasto pelo reclamante do refeitório ao local
de trabalho, ainda que inexistente transporte público nesta
área, não tem o condão de autorizar seu pagamento como
hora in itinere, até porque a reclamada informou que a
distância do refeitório até o local mais distante da obra
(popularmente conhecido como ‘buracão’), é de 3 quilômetros, podendo facilmente ser vencido a pé, informação
não impugnada pelo autor.
Desta fora, reformo a r. sentença a quo para excluir da
condenação, o pagamento de 1h20min a título de horas in
itinere, o respectivo adicional e reflexos.” (fls. 382-383)
Nas razões de recurso de revista, o reclamante sustenta serem
devidas as horas in itinere no trajeto entre o local da prestação
de serviços e o refeitório, ante o argumento de que não era
servido por transporte público, mas tão-somente por transporte
fornecido pela empresa, razão por que aponta contrariedade às
Súmulas 90 e 325 (atualmente convertidas na Súmula 90, I e IV,
respectivamente). Transcreve arestos para o confronto de teses.
De início, cumpre registrar que desserve para o confronto de
teses pretendido julgado oriundo de Turma do C. TST ou do
mesmo Tribunal prolator da decisão recorrida (a teor do artigo
896, “a”, da CLT), bem como aquele que não indica a fonte
62
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
oficial ou o repositório autorizado em que foi publicado (óbice
da Súmula 337/TST).
nele refletido é perfeitamente aplicável à recorrida, haja vista
que idênticas as situações tratadas.
O único aresto apto ao confronto de teses pretendido (o segundo à fl. 393) é inespecífico, na medida em que não aborda o fato
de que se trata de trajeto percorrido nas dependências da empresa, questão tratada pelo Eg. TRT da 15ª Região como razão
de decidir. Incidência das Súmulas 23 e 296 do C. TST.
No caso concreto, somente existiam linhas regulares até o refeitório da Camargo Corrêa, sendo que daí até o local da prestação
dos serviços (conhecido como “buracão”), o trajeto era fornecido pela empresa, uma vez que não existia transporte público.
Dessa forma, procede o pedido de pagamento de horas in
itinere, relativas ao percurso do refeitório até o “buracão”,
sobretudo porque somente aí eram assinados os cartões-deponto.
Por outro lado, infere-se do v. acórdão impugnado a constatação da inexistência de transporte público no referido trajeto, a
caracterizar o direito às horas in itinere.
A Súmula nº 90 do C. Tribunal Superior do Trabalho encontra-se assim redigida:
“Horas in itinere. Tempo de serviço. (incorporadas as
Súmulas nos 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais nos
50 e 236 da SDI-1) – Res. 129/2005 – DJ 20-4-2005
I – O tempo despendido pelo empregado, em condução
fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e
para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.
(ex-Súmula nº 90 – RA 80/78, DJ 10-11-78)
(...)
IV – Se houver transporte público regular em parte do
trajeto percorrido em condução da empresa, as horas in
itinere remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado
pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 RA 17/1993, DJ
21-12-93)”
Cumpre esclarecer, que apesar de haver transporte público até
o local de trabalho, o Eg. Tribunal Regional deixou claro que no
percurso interno, a partir do refeitório, não existia transporte
público para os trabalhadores.
Tendo o Eg. Tribunal Regional afirmado categoricamente que
parte do trajeto percorrido em condução da empresa não é
servido por transporte público, o v. acórdão impugnado destoa
do item IV da Súmula nº 90 do C. Tribunal Superior do Trabalho,
o que propicia o conhecimento do recurso de revista.
Conheço do recuso de revista, por contrariedade à Súmula 90,
IV, do C. TST.
2. MÉRITO
Conforme relatado, foi indeferido o pagamento das horas in
itinere, não obstante evidenciado o tempo gasto pelo empregado no trajeto interno.
A questão das horas in itinere deve ser dirimida em vista do que
preceitua a Súmula nº 90 desta C. Corte, segundo a qual, de
acordo com o item IV, se houver transporte público regular em
parte do trajeto percorrido, as horas in itinere limitam-se ao
trecho não alcançado pelo transporte público.
Além disso, quanto ao tempo gasto entre o refeitório da empresa
e o local do serviço, vale citar a Orientação Jurisprudencial nº 36
da SBDI-1-Transitória deste C. Tribunal Superior do Trabalho,
in verbis:
“Configura-se como hora in itinere o tempo gasto pelo
obreiro para alcançar seu local de trabalho a partir da
portaria da Açominas”.
Cumpre ressaltar que, embora o verbete faça menção à empresa
Açominas e mais precisamente à sua portaria, o entendimento
02/2009
A caracterização de horas in itinere em razão do trajeto percorrido pelo empregado em condução da empresa, ficou assentada
mediante a Súmula nº 90, recebendo direta especificação quanto ao deslocamento no âmbito interior da empresa, na atual
jurisprudência deste Tribunal, mediante a edição da Orientação
Jurisprudencial nº 36, já transcrita. Repita-se, o fato de a referida
orientação fazer menção à empresa Açominas não é limitador,
apenas revelando a circunstância em que foi editada.
Assim sendo, estando delimitado que o reclamante gastou
tempo em trânsito dentro do estabelecimento da reclamada, as
horas consumidas nesse trajeto interno devem ser ressarcidas
como extras, na forma prevista na Orientação Jurisprudencial
nº 36 da SBDI-1-Transitória do C. TST.
No mesmo sentido os seguintes precedentes:
“RECURSO DE REVISTA – HORAS IN. Decisão em que se
adota o entendimento de que o tempo gasto pelo empregado no deslocamento no interior da empresa – área de
grande dimensão e não servida por transporte público regular – até o posto de trabalho caracteriza local de difícil
acesso e deve ser considerado à disposição do empregador.
Consonância com a orientação traçada no item I da Súmula
nº 90.” (RR 650.921/2003, DJ 20-4-2006, Ministro Relator
Gelson de Azevedo)
“RECURSO DE REVISTA. 1. HORAS IN ITINERE – PÁTIO
DA EMPRESA – SÚMULA Nº 90. APLICAÇÃO
ANALÓGICA DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº
36 DA SBDI-1 (TRANSITÓRIA). Correta a decisão que
adotou o entendimento de que o tempo gasto pelo empregado no deslocamento no interior da empresa, sendo esta
composta de área de grande dimensão e não servida por
transporte público regular, até o local de trabalho caracterizado como de difícil acesso, deve ser considerado como
tempo à disposição do empregador. Recurso de revista de
que não se conhece, no particular, encontra-se a decisão
em consonância com a orientação traçada no item I da
Súmula nº 90 do TST.” (RR 666397/2000, DJ 13-10-2006,
Juiz Convocado Relator Guilherme Bastos)
Dou provimento ao recurso de revista, no particular.
II – SALÁRIO IN NATURA
RAZÕES DE NÃO-CONHECIMENTO
O d. Colegiado a quo reformou a r. sentença para excluir da
condenação o pagamento do salário habitação ante os seguintes fundamentos:
“Diferentemente do entendimento da MMª Juíza de
origem, entendo que a reclamada se desincumbiu do ônus
que lhe competia de provar que a habitação fornecida se
63
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
dava de forma a possibilitar a prestação de serviços pelo
reclamante para a reclamada.
O argumento da origem de que o reclamante é quem
pagava o aluguel de sua moradia em Rosana, cidade que
morou antes de ser removido para uma das casas da vila na
cidade Primavera, local onde eram desenvolvidas as atividade do autor, data venia, não se extrai do cotejo dos depoimentos de fls. 112/113, vejamos: o depoimento pessoal do
reclamante ‘que quando o depoente começou a trabalhar o
depoente morou na cidade de Rosana-SP, sendo que a
reclamada pagava o aluguel que posteriormente a reclamada forneceu uma casa para o depoente na cidade de
Primavera’; depoimento pessoal do representante da reclamada: disse ‘que antes de construir a vila na cidade de
Primavera a reclamada pagava a todos os empregados
casados auxílio habitação, já os mesmos moravam na
cidade de Rosana-SP e algumas cidades do Paraná; que
quando foram cedidas para a reclamada as casas na cidade
de Primavera a reclamada cedeu a casa na cidade de
Primavera aos empregados e cortou o auxílio habitação’.
Ou seja, ainda que o reclamante alugasse a casa em
Rosana, a reclamada acabava custeando o aluguel por
intermédio do auxílio habitação, suprimido posteriormente
devido a remoção dos empregados para as casas da vila na
cidade de Primavera. Assim, tal fato indica sim que a moradia oferecida pela reclamada, seja em forma de auxílio seja
em habitação propriamente dita, era imprescindível para
que o trabalho fosse realizado. Nesse sentido, a Súmula nº
367 do C.TST, (...).” (fls. 381-382)
Nas razões do recurso de revista, o reclamante alega que a
moradia fornecida não pode ser considerada como para o trabalho e sim, pelo trabalho, uma vez que, ao ser contratado, sabia
que economizaria o valor do aluguel, o que representaria um
plus de natureza salarial. Nesse sentido, diz inaplicável o entendimento contido na Súmula 376/TST e colaciona arestos para o
confronto de teses.
Sem razão.
Consignou a Eg. Corte Regional que a habitação fornecida se
destinava às necessidades do serviço prestado e não às necessidades pessoais. Logo, a análise dos argumentos da parte no
sentido de que se trata de rendimento do empregado oriundo do
trabalho realizado demandaria o reexame de fatos e prova,
procedimento que esbarra no óbice da Súmula 126/TST.
Por outro lado, impende ressaltar que julgados oriundos do
mesmo Tribunal prolator da decisão recorrida e de Turma do C.
TST não se prestam para o cotejo de teses, ante o comando
inserto no artigo 896, “a”, da CLT.
O único julgado apto (fl. 397 oriundo do Eg. TRT da 9ª Região) é
inespecífico, porque não reflete a realidade dos autos, especialmente no que concerne à comprovação da essencialidade da
habitação para realização do trabalho.
Mesmo que assim não fosse, não há falar em comprovação de
divergência jurisprudencial, tendo em vista que a decisão recorrida deu a exata subsunção dos fatos ao entendimento preconizado na Súmula nº 367 deste Tribunal Superior. Hipótese de
incidência do artigo 896, § 4º, da Consolidação das Leis do
Trabalho.
Não conheço.
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Sexta Turma do Tribunal Superior
do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista
apenas quanto ao tema “horas in itinere”, por contrariedade à
Súmula nº 90, IV, do C. TST, e, no mérito, dar-lhe provimento
para deferir o pagamento das horas in itinere postuladas, com o
adicional e os reflexos.
Brasília, 19 de novembro de 2008.
Aloysio Corrêa da Veiga – Ministro Relator
· RR – 101/2003-012-18-01.6
DJU 17-10-2008
ACÓRDÃO
QUITAÇÃO – PROGRAMA DE INCENTIVO À
APOSENTADORIA – EFEITOS.
A quitação, no âmbito das relações do trabalho, é sempre relativa e alcança apenas os valores e as parcelas constantes do recibo de quitação, conforme disposições contidas nos §§ 1º e 2º
do artigo 477 da CLT. Assim, o Programa de Incentivo à Aposentadoria, inquestionavelmente, não tem o condão de quitar direitos pendentes, tampouco direitos nomeados de forma genérica
no termo de quitação. Essa quitação “quase em branco” –
porquanto não especificado o valor nominal da parcela a que
corresponde – revela-se incompatível com o Direito do Trabalho. Na trilha desse entendimento, o Tribunal Superior do
Trabalho, por meio da Subseção I Especializada em Dissídios
Individuais, editou a Orientação Jurisprudencial nº 270.
Recurso de revista conhecido e provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista
n° TST-RR-101/2003-012-18-01.6, em que é Recorrente J.A.M.
e são Recorridos BANCO BEG S.A. e BANCO ITAÚ S.A.
O Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, ao examinar o
recurso ordinário interposto pelo reclamante, negou-lhe provimento porque entendeu que a transação ocorrida no caso
importou a rescisão do contrato de trabalho por adesão do
empregado ao Plano de Demissão Voluntária, exonerando o
empregador da quitação dos direitos decorrentes do contrato de
trabalho, sem afrontar direitos e garantias fundamentais dos
trabalhadores.
O reclamante interpõe recurso de revista (fls. 120-128), com
fulcro no artigo 896, “a” e “c”, da CLT, apontando violação aos
artigos 1.025, 1.030 do Código Civil; 447, § 2º, 468 da CLT; 5º,
XXXV, XXXVI e 7º, I, § 1º da Constituição Federal. Insurge-se em
relação aos efeitos da adesão ao PDV, alegando dissenso de
teses e contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270 da
SBDI-1. Pretende a reforma da decisão do Regional, para que,
afastando-se a validade da transação referente à quitação geral
das verbas rescisórias, se determine o retorno dos autos à Primeira Instância, a fim de que seja julgada totalmente procedente a reclamatória.
A admissão do recurso se efetivou por meio do despacho de
fls. 132-133, por divergência jurisprudencial.
Contra-razões às fls. 137-148.
64
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do
Trabalho ante o disposto no artigo 83, § 2º, II do Regimento
Interno do Tribunal Superior do Trabalho.
É o relatório.
VOTO
I – CONHECIMENTO
Presentes os pressupostos extrínsecos de admissibilidade, passo
ao exame dos pressupostos específicos da revista.
QUITAÇÃO – PROGRAMA DE INCENTIVO À APOSENTADORIA – EFEITOS.
Conforme relatado, o Regional negou provimento ao recurso
ordinário interposto pelo reclamante ao fundamento de que a
transação ocorrida no caso importou a rescisão do contrato de
trabalho por adesão do empregado ao Plano de Demissão
Voluntária, exonerando o empregador da quitação dos direitos
decorrentes do contrato de trabalho, sem afrontar direitos e
garantias fundamentais dos trabalhadores. Para tanto, fundamentou:
“A adesão que fez ao Plano de Desligamento Voluntário
(PDV) exonera o empregador da quitação dos direitos
decorrentes do contrato de trabalho, sem afrontar direitos e
garantias fundamentais dos trabalhadores, notadamente, o
direito de ação.
Ora, não resta dúvida que a transação é um ato jurídico
bilateral, em virtude do qual, mediante concessões recíprocas, as partes interessadas extinguem obrigações litigiosas
ou duvidosas. A transação, em sua acepção rigorosamente
técnica, tem sentido específico e nomeia determinado
negócio jurídico, que vem à luz por meio de um acordo de
vontades como o escopo de extinguir a obrigação.
No presente caso, a transação fez-se em consonância com
a lei, foi concebida com eficácia liberatória, visando extinguir ou prevenir litígios, mediante concessões recíprocas
das partes transacionantes. Restou evidente o mútuo
acordo, com ciência integral e suas condições e livre
expressão volitiva, firmado por agentes capazes, ante prestações opostas (uma do empregado, outra do empregador),
por cessão recíproca, em vista de direitos incertos, já que
sobre eles não havia manifestação judiciária definitiva.
Sobreleva gizar que a incerteza necessária para fundamentar a transação pode consistir na contestabilidade da coisa
demandada, mas também consiste em ser duvidosa a existência futura, ou a extensão ou a realização do pretendido
direito, como na espécie. Mister, pois, enfatizar que não se
tratou o caso de renúncia de direitos. Ao tempo do ato
firmado pelas partes, as concessões mútuas não diziam
respeito a um direito certo e existente, ou mesmo futuro,
porém certo. De outro modo, a forma adotada pelas partes
não se exteriorizou em confronto com a lei.
Os autos revelam que o reclamante tomou conhecimento do
teor do PDV e das condições da transação e que o sindicato
de sua categoria profissional participou de seu trâmite. Sabia
o obreiro que o recebimento dos benefícios e vantagens
previstos no PDV dependia de uma contrapartida – quitação
de eventuais direitos adquiridos na vigência do contrato de
trabalho. Obteve pela adesão ao mesmo, uma vantagem
concreta – indenização pecuniária de R$ 56.605,24 – que
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
presumivelmente assegurava-lhe conveniência para efetivar a transação.
Assim sendo, havendo ato jurídico perfeito, ainda que
extrajudicial, firmado por agente capaz, com objeto lícito e
observando a forma prescrita em lei, não há se falar em
ofensa ao artigo 477, § 2º, da CLT, que trata do alcance da
quitação do TRCT, nem como atribuir-lhe qualquer nulidade, nos termos do artigo 9º, da CLT, admitindo-se a sua
plena eficácia.
Quanto à alegação recursal de ofensa a entendimentos
jurisprudenciais contidos nos Ens. 91 e 330 e na Orientação Jurisprudencial nº 270 do C. TST, não foram desrespeitados ou inobservados. Isto porque a controvérsia instalada
in casu não gravita em torno de conferir eficácia liberatória
a TRCT, mas sim de reconhecer a validade à transação
perpetrada pelas partes.
Ademais, a indenização do PDV não teve por finalidade
quitar englobadamente ou de forma complessiva vários
outros direitos legais ou contratuais do trabalhador –
prática que encontra resistência no Em. 91, do C. TST – nem
reparar a perda do emprego, mas sim, reduzir o impacto
social da dispensa coletiva que o momento conjuntural
exigia.
Ante o exposto, nada a reformar na sentença que atribuiu validade à transação firmada e, via de conseqüência, concluiu
pela improcedência dos pedidos de horas extras e reflexos”
(fls. 111-114).
O reclamante, nas razões de revista, insurgiu-se em relação aos
efeitos da adesão ao PDV, alegando dissenso de teses e contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270 da SBDI-1. Pretende a
reforma da decisão do Regional, para que, afastando-se a validade da transação referente à quitação geral das verbas rescisórias, se determine o retorno dos autos à Primeira Instância, a fim
de que seja julgada totalmente procedente a reclamatória.
Indica violação aos artigos 1.025, 1.030 do Código Civil; 447,
§ 2º, 468 da CLT; 5º, XXXV, XXXVI e 7º, I, § 1º, da Constituição
Federal e contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270 da
SBDI-1. Transcreve arestos.
Com razão o reclamante.
A interpretação da norma do artigo 477 da CLT é no sentido de
que a quitação plena, englobando todas as parcelas decorrentes
do contrato de trabalho, ofende a literalidade do § 2º do referido
dispositivo, uma vez que a quitação passada pelo empregado
tem eficácia liberatória tão-somente em relação às parcelas com
os respectivos valores expressamente consignados no recibo,
sem ressalvas.
A quitação, no âmbito das relações do trabalho, é sempre relativa e alcança apenas os valores e as parcelas constantes do
recibo de quitação, conforme disposições contidas nos §§ 1º e
2º do artigo 477 da CLT, nos quais se exige, para a validade do
recibo de quitação da rescisão do contrato de trabalho, a assistência do sindicato da categoria ou a presença da autoridade do
Ministério do Trabalho, com a especificação da natureza e do
valor de cada parcela paga ao empregado.
A disposição do artigo 1.025 do Código Civil de 1916 (atual
artigo 840) deve ser aplicada, observando-se os limites impostos no artigo 1.027 do mesmo código (atual artigo 843). Assim, o
Programa de Incentivo à Aposentadoria consiste em um ato de
liberalidade do empregador, que, inquestionavelmente, não
tem o condão de quitar direitos pendentes, tampouco direitos
nomeados de forma genérica no termo de quitação. Esta quita65
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ção, quase em branco – porquanto não especificado o valor
nominal da parcela a que corresponde –, revela-se incompatível com o Direito do Trabalho.
Esta Corte, por meio da Subseção I Especializada em Dissídios
Individuais, editou a Orientação Jurisprudencial nº 270, no
sentido de que a transação extrajudicial que importa rescisão do
contrato de trabalho ante a adesão do empregado a programa
de demissão voluntária implica quitação, exclusivamente, das
parcelas e dos valores constantes do recibo, aqui utilizada por
analogia.
Diante dos fundamentos expostos, conheço do recurso de
revista por contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270
da SBDI-1 desta Corte.
II – MÉRITO
QUITAÇÃO – PROGRAMA DE INCENTIVO À APOSENTADORIA – EFEITOS.
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
Conhecido do recurso de revista por contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270 da SBDI-1, corolário é seu provimento, para, afastada a validade da quitação geral do contrato
de trabalho, determinar o retorno dos autos à 12a Vara do Trabalho de Goiânia-GO, a fim de que profira nova decisão.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Quinta Turma do Tribunal Superior
do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista
por contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 270 da SBDI-1,
e, no mérito, dar-lhe provimento, para, afastada a validade da quitação geral do contrato de trabalho, determinar o retorno dos
autos à 12a Vara do Trabalho de Goiânia-GO, a fim de que
profira nova decisão.
Brasília, 1º de outubro de 2008.
Emmanoel Pereira – Ministro Relator
INFORME-SE
ADV – REPOSITÓRIO AUTORIZADO DE JURISPRUDÊNCIA
Tendo em vista o reconhecimento pelo STF e TST desta publicação como repositório autorizado de jurisprudência (Registros
nº 39/2008 e 32/2007, respectivamente), os acórdãos aqui publicados servem para comprovação de divergência jurisprudencial aptos
a justificar recursos junto a estes tribunais.
Os acórdãos na íntegra estão disponíveis no ADV Online – www.coad.com.br/advonline.
02/2009
66
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
TRIBUNAIS REGIONAIS DO TRABALHO
TRT-3ª REGIÃO
· RO 54-2008-048-03-00-4
DJ-MG 20-12-2008
EMENTA
DIFERENÇAS SALARIAIS – ACÚMULO DE FUNÇÕES.
Para o deferimento de diferenças salariais por acúmulo de
função, não basta a prova de prestação simultânea e habitual de
serviços distintos, mas principalmente a demonstração de que
as atividades exercidas não podem ser entendidas como compatíveis com a função para o qual o trabalhador foi contratado.
Assim, como não houve demonstração de existência de cláusula contratual (tácita ou expressa) que estipulasse a distinção,
entende-se que o autor obrigou-se a serviço compatível com
sua condição pessoal (CLT, artigo 456, parágrafo único), não se
podendo entender que a substituição eventual de motoristas
fosse totalmente incompatível com o exercício da função de
gerente de tráfego, mormente quando realizada dentro da
mesma jornada.
VISTOS, relatados e discutidos os presentes autos de Recurso
Ordinário, em que figuram como recorrente Eletrozema Ltda. e
como recorrido J.B.R.
RELATÓRIO
O MM. Juiz da Vara do Trabalho de Araxá/MG, através da r.
sentença de fls. 174-179, julgou procedentes, em parte, os pedidos formulados na inicial.
A reclamada interpõe recurso ordinário, pleiteando a exclusão do
acréscimo remuneratório deferido em razão do acúmulo de funções ou, caso assim não se entenda, a limitação da condenação,
reduzindo-se o percentual fixado na r. sentença (fls. 180-185).
Custas recolhidas e efetuado o depósito recursal às fls. 186-187.
Contra-razões às fls. 190-192.
É o relatório.
VOTO
1. ADMISSIBILIDADE
Conheço do recurso ordinário interposto, porque presentes os
pressupostos subjetivos e objetivos de admissibilidade.
2. MÉRITO
DIFERENÇAS SALARIAIS – ACÚMULO DE FUNÇÕES.
A reclamada pleiteia a exclusão do acréscimo remuneratório de
20%, decorrente de acúmulo de funções, aduzindo que, a partir
de 1-3-2005, o reclamante passou a exercer a função de “gerente de transporte”, com remuneração superior a 40% do salário de seus subordinados; que as substituições em razão de falta
ou doença dos motoristas ocorreram de forma esporádica; que
as referidas substituições não ocorriam por imposição da empresa, mas sim, por livre e espontânea vontade do reclamante;
que a função de gerência engloba inúmeras tarefas, compatíveis
com o cumprimento dos objetivos da empresa.
02/2009
Caso assim não se entenda, requer seja reduzido o percentual
fixado a título de acréscimo remuneratório, a fim de que seja
“atribuído critério de plus salarial mais consentâneo com a
realidade, de modo a não trazer ou não caracterizar enriquecimento ilícito por parte do autor” (fl. 185).
Na inicial, o reclamante afirmou que foi admitido pela ré em
10-10-2001, para o exercício da função de “encarregado de recepção”, tendo sido dispensado, sem justa causa, em 11-12-2006;
que, no período entre 1-3-2005 e 31-10-2006, a reclamada exigiu que desempenhasse, cumulativamente, a função de “motorista”, a fim de que realizasse o transporte de seus empregados, “objetivando com isso, evidente vantagem, posto que a
custo menor, obtinha a execução de um serviço que outro
empregado faria a custo maior, decorrentes de salários e encargos” (fl. 04).
Em defesa, a reclamada alegou que o reclamante não exerceu a
função de “encarregado de recepção” durante todo o período
trabalhado; que, no período de 1-3-2005 a 31-10-2006, foi
promovido, passando a exercer a função de “gerente de transporte”; que, em razão do exercício da referida função, pode ser
que o autor tenha feito o transporte dos colaboradores da
empresa, o que ocorreu em caráter eventual, em caso de
acidental ausência de motorista; que a execução de tal tarefa
jamais foi imposta pela empresa, tendo sido feita por livre e
espontânea vontade do autor, que era o chefe do setor de transporte (fls. 28 e 32).
Os documentos de fls. 53-59 indicam que, nos meses de março
e abril de 2005, o autor exerceu a função de “encarregado de
depósito” e, no período de maio de 2005 a outubro de 2006,
atuou como “gerente de transporte”.
O Exmo. Juiz Relator perquiria, se, em tais períodos, o reclamante teria trabalhado simultaneamente, como motorista.
Com efeito, as testemunhas ouvidas, comprovaram que o autor
chegou a substituir algum motorista, como ressaltou o Exmo.
Relator, em seu voto:
“Nesse sentido, a testemunha Cristiano afirmou que ”cerca de 3
vezes por mês o autor não podia gozar intervalo pois tinha que
substituir algum motorista;... que quando faltava algum motorista
por motivo de doença, o reclamante o substituía; que isso ocorreu durante todo o período em que o autor trabalhou" (fl. 167).
Por sua vez, a testemunha Paulo declarou que “o autor às vezes
cobria horário de almoço dos motoristas de ônibus dentro da
cidade, transportando funcionários da própria ré; que presenciou isso duas vezes” (fl. 167).
Por fim, a testemunha Luiz afirmou que “desde que o autor
passou a gerente, substituía motoristas por motivo de faltas,
atrasos, desvio destes para outros roteiros, etc; que isso ocorria
por 4/5 vezes por semana;... que o recte. dirigia ônibus de 20
lugares, de 33, pequenos caminhões, dentre outros; que nestas
circunstâncias o autor chegou a transportar os empregados da ré
durante o intervalo, que isso ocorria 3/4 vezes por semana, no
horário de 11 às 13h (fl. 168).”
Defendi as razões que formaram convencimento, no que fui
acompanhado pelo Exmo. Desembargador terceiro votante, no
67
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
sentido de que a prova não autoriza concluir que a função dita
acumulada implicava aumento de remuneração.
Primeiro porque, para o deferimento de diferenças salariais por
acúmulo de função, não basta a prova de prestação simultânea
e habitual de serviços distintos, mas principalmente que se
demonstre que as atividades exercidas não podem ser entendidas como compatíveis com a função para o qual o trabalhador
foi contratado.
Também porque como não houve demonstração de existência
de cláusula contratual (tácita ou expressa) que estipulasse a
distinção, entende-se que o autor obrigou-se a serviço compatível com sua condição pessoal (CLT, artigo 456, parágrafo
único), não se podendo entender que a substituição eventual de
motoristas fosse totalmente incompatível com o exercício da
função de gerente de tráfego, mormente quando realizada
dentro da mesma jornada.
Mais ainda quando a função de gerente que exercia, como
informação da testemunha da reclamada, era de maior fidúcia
do que a de motorista, uma vez que era o autor quem controlava
os horários desses últimos. (fl. 167).
Assim, dou provimento ao recurso para excluir da condenação
diferenças salariais por acúmulo de função e reflexos (20% da
remuneração).
CONCLUSÃO
Conheço do recurso e, no mérito, dou-lhe provimento para
excluir da condenação diferenças salariais por acúmulo de
função e reflexos. Mantenho o valor da condenação.
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
a inversão do ônus da prova quanto a ausência de vício da
comunicação de desligamento, especialmente porque no depoimento pessoal – fl. 29, item 1 – o Reclamante declarou, frente
ao Magistrado, que foi demitido pelo empregador. Não é o caso
de aplicação do Enunciado 138 do Conselho da Justiça Federal,
porque em momento algum ficou evidenciado nos autos o
discernimento suficiente do Reclamante para os atos invocados
pelo Reclamado.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de RECURSO ORDINÁRIO, provenientes da MM. 1a Vara do Trabalho de Paranaguá-PR, sendo Recorrente R.G.O. (Menor) e Recorrido Rancho
Comércio de Carnes e Mercearia Ltda.
I – RELATÓRIO
Irresignado com a sentença de fls. 49-58, recorre o Reclamante.
Em razões recursais às fls. 60-63, pleiteia a reforma da r. sentença quanto a modalidade rescisória e verbas decorrentes.
Contra-razões às fls. 69-72.
O Ministério Público do Trabalho manifestou-se à fl. 75 opinando pela ausência de interesse na causa.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. ADMISSIBILIDADE
Preenchidos os requisitos legais de admissibilidade, ADMITO o
recurso ordinário interposto, assim como as respectivas contrarazões.
2. MÉRITO
Fundamentos pelos quais,
Modalidade rescisória e verbas decorrentes
ACORDAM os Desembargadores do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, pela sua Terceira Turma, à unanimidade, conhecer do recurso e, no mérito, por maioria de votos,
vencido o Exmo. Desembargador Relator, dar-lhe provimento
para excluir as diferenças salariais por acúmulo de função,
mantido o valor da condenação, por compatível.
Sob o argumento de que o aviso prévio entregue ao empregador
padece de vícios: a) porque assinado por menor; b) porque com
dados divergentes no recibo de fl. 43; c) dado que unilateral,
produzido na realidade pelo empregador, o Recorrente invoca
a nulidade da demissão a pedido do empregado e, em decorrência, a alteração do desligamento para sem justa causa pelo
empregador, com deferimento das verbas consectárias desta
modalidade (fl. 61).
Belo Horizonte, 3 de dezembro 2008.
Danilo Siqueira de Castro Faria – Juiz Revisor e Redator Convocado
TRT-9ª REGIÃO
· RO 1528-2007-022-09-00-9
DJ-PR 2-12-2008
EMENTA
AVISO DE DEMISSÃO ASSINADO POR MENOR DE
16 ANOS SEM ASSISTÊNCIA DO REPRESENTANTE
LEGAL – AGENTE INCAPAZ – EFEITOS NO ÂMBITO
DO PROCESSO DO TRABALHO.
Os direitos trabalhistas decorrentes de contrato de emprego
firmado com menor de 16 anos sem assistência do representante legal, há de ser analisado sob o viés da nulidade relativa,
dada a impossibilidade de retorno ao status quo ante. Nesse
viés, o aviso de demissão dito formulado pelo trabalhador deve
transcender a questão da capacidade em razão da idade para
alcançar a proteção da capacidade da vontade do menor, aqui
tido como declarante da vontade de desligamento, o que enseja
02/2009
O MM. Juízo primeiro concluiu pela existência de vínculo de
emprego de 13-3-2005 a 6-6-2006 e, sob o fundamento de que
não comprovado vício volitivo no pedido de demissão assinado
pelo Reclamante (fl. 50), indeferiu pagamento de aviso prévio,
entrega de guias do seguro-desemprego, multa de 40% sobre o
saldo do FGTS e emissão de TRCT para o saque do depósito em
conta vinculada.
Verifico que na petição inicial a alegação é de trabalho até
20-6-2006, data em que teria sido o empregado desligado sem
justa causa.
Não há pedido de pagamento de aviso prévio, mas tão-somente
da multa sobre o saldo do FGTS e entrega das guias para saque
dos valores do FGTS e seguro-desemprego (fl. 11). Portanto, o
pedido recursal de pagamento de aviso prévio indenizado é
inovatório e não prospera.
Já quanto a validade da comunicação de desligamento pelo
empregado, apesar do recibo de verbas rescisórias estar assinado pela responsável legal do Reclamante – fl. 40 – PROCEDE
a pretensão recursal, data venia do entendimento primeiro.
Não se cuida aqui da aplicação do artigo 329 da CLT, voltado
ao trabalho do menor de 18 anos e maior de 16, atores sociais
68
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
de capacidade relativa, pois o Reclamante, com 15 anos, é, à
luz do CCB, incapaz, o que comina o documento de fl. 43 de
nulidade.
Este tema é delicado, porque não se pode simplesmente aplicar
a disposição dos artigos 182 e 104 do CCB, em face do agente
incapaz (artigo 3º deste CÓDEX), pois inviável o retorno da
força de trabalho despendida ao status quo ante.
A nulidade aqui, portanto, é absoluta apenas no campo teórico,
pois na prática os efeitos equiparam-se aos da nulidade relativa
(na lição de Volia Bomfim Cassar, In Direito do Trabalho. Niterói: Impetus, 2008, p. 543).
termos do fundamentado, ACRESCER à condenação: a) o pagamento indenizatório do valor devido a título de seguro-desemprego, bem como do pagamento da multa de 40% sobre o saldo
do FGTS; b) a entrega do TRCT com indicação de desligamento
sem justa causa, de forma a propiciar o saque do FGTS.
Custas na forma da Lei.
Intimem-se.
Curitiba, 19 de novembro de 2008.
Desª Márcia Domingues – Relatora
Jaime José Bilek Iantas – Procurador Regional do Trabalho
Isso porque negar ao trabalhador menor de idade o direito que
os maiores têm, seria desprotegê-lo, incentivando o abuso do
trabalho infantil.
A resolução da causa trazida ao Judiciário, portanto, não é fácil
e transcende a questão da capacidade em razão da idade para
alcançar a proteção da capacidade da vontade do menor, aqui
tido como declarante da vontade de desligamento.
Para tanto, inverte-se o ônus da prova de forma que cabe ao
Reclamado comprovar a ausência de vício da comunicação de
desligamento feito pelo menor, especialmente porque no depoimento pessoal – fl. 29, item 1 – o Reclamante declarou, frente
ao Magistrado, que foi demitido pelo empregador.
E de tal prova o Reclamado não se desincumbiu, não sendo suficiente o fato de que a Responsável pelo menor tenha assinado o
recibo de fl. 40, pois naquele documento não consta a modalidade do desligamento nem há indicação clara das parcelas que
compunham o total dito pago ao Reclamante.
O documento de fl. 41 não se presta a comprovar a modalidade
do desligamento, até porque não se encontra assinado/rubricado pelos interessados, mais especificamente a genitora do
Reclamante, de forma que não se pode inferir tenha sido do
conhecimento do Reclamante e da Representante legal a ausência de pagamento do aviso prévio ante aviso de demissão pelo
empregado. Cautela que cabia ao Reclamado.
A título de prequestionamento, destaco inaplicável ao caso a
disposição do Enunciado 138 do Conselho da Justiça Federal,
porque em momento algum ficou evidenciado nos autos o
discernimento suficiente do Reclamante para os atos invocados
pelo Reclamado, no caso, a comunicação de demissão com as
cominações legais tão bem destacadas no documento de fl. 43.
Ademais, e apenas a título de argumentação, ressalto a divergência entre as datas constantes nos documentos de fls. 43
(6-6-2006) e 40 (4-6-2006), o que enfraquece demais a tese
defensória.
DOU PROVIMENTO PARCIAL ao recurso para ACRESCER à
condenação: a) o pagamento indenizatório do valor devido a
título de seguro-desemprego, bem como do pagamento da
multa de 40% sobre o saldo do FGTS; b) a entrega do TRCT com
indicação de desligamento sem justa causa, de forma a propiciar o saque do FGTS.
III – CONCLUSÃO
Pelo que, ACORDAM os Desembargadores da 4a Turma do
Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, por unanimidade
de votos, ADMITIR O RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE, assim como as respectivas contra-razões e, no mérito,
por igual votação, DAR-LHE PROVIMENTO PARCIAL para, nos
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
TRT-12ª REGIÃO
· RO 1589-2007-007-12-00-7
DJ-SC 16-12-2008
EMENTA
UNICIDADE CONTRATUAL.
Atualmente prevalece o entendimento de que o simples fato de
o empregado ter sido readmitido pela empresa num curto
espaço de tempo da extinção do primeiro contrato de trabalho
não é suficiente para caracterizar a unicidade contratual. É ônus
do empregado comprovar a prestação de serviço nesse interregno.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Recurso Ordinário, provenientes da 1ª Vara do Trabalho de Lages, SC, sendo
recorrentes 1. Minusa Indústria e Comércio de Peças para Tratores LTDA. e 2. A.S.C. e recorridos 1. A.S.C. e 2. Minusa Indústria
e Comércio de Peças para Tratores LTDA.
Da decisão que julgou parcialmente procedentes os pedidos da
inicial recorrem as partes a este Tribunal.
Busca a reclamada, preliminarmente, a declaração de nulidade
da sentença alegando suspeição de testemunha. No mérito,
pugna pela reforma da decisão de origem no tocante ao reconhecimento de unicidade contratual, ao ressarcimento dos dias
de faltas descontados, aos honorários assistenciais, às custas
processuais e ao recolhimento previdenciário.
O autor, por sua vez, requer a condenação da ré ao pagamento
do adicional de insalubridade. Por conseguinte, pede a isenção
ao pagamento dos honorários periciais e das custas processuais.
Contra-razões são oferecidas pelas partes.
É o relatório.
VOTO
Satisfeitos os pressupostos legais de admissibilidade, conheço
dos recursos e das contra-razões.
Não conheço do documento de fls. 318-321, à luz do entendimento expresso na Súmula nº 8 do TST.
PRELIMINARMENTE
NULIDADE PROCESSUAL – SUSPEIÇÃO DE TESTEMUNHA
Suscita a ré a nulidade da sentença e o retorno dos autos à Vara
de origem, sob o fundamento de que a testemunha arrolada
pelo autor é suspeita (artigo 405, § 3º, incisos III e IV, do CPC),
por ter promovido ação contra ela com o mesmo objeto.
69
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
Na contradita efetuada em audiência (fls. 289-290), ficou consignado que a testemunha trazida a convite do autor – D.J.F. –
possui ação contra a ré. No entanto, não há nos autos demonstração de permuta imoral de vantagens por falsidades testemunhais mútuas.
de tempo da extinção do primeiro contrato de trabalho não é
suficiente para caracterizar a unicidade contratual. É ônus do
empregado comprovar a prestação de serviço nesse interregno.
Desse modo, aplico ao caso a orientação da Súmula nº 357 do
TST, a saber:
“RECURSO DE REVISTA – UNICIDADE CONTRATUAL. Após
o cancelamento da Súmula nº 20 do TST, mediante a Resolução
nº 106/2001, DJ de 21-3-2001, resulta inviável a declaração de
unicidade contratual, baseada em mera presunção de fraude
decorrente da dispensa seguida de imediata readmissão, cabendo ao empregado o ônus da prova. Precedentes do TST. (Ministra
Relatora Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, RR 735892/1001,
publicado no DJU de 14-12-2007).
TESTEMUNHA – AÇÃO CONTRA A MESMA RECLAMADA.
Não torna suspeita a testemunha o simples fato de estar litigando ou de ter litigado contra o mesmo empregador.
Por fim, não vislumbro afronta ao artigo 405, § 3º, incisos III e
IV, do CPC.
Rejeito a preliminar de nulidade processual.
MÉRITO
1. RECURSO DA RECLAMADA
1.1. UNICIDADE CONTRATUAL
Pugna a recorrente pela reforma da sentença quanto ao reconhecimento da unicidade contratual e respectivos consectários
legais, sob o argumento de que a decisão levou em consideração basicamente o depoimento da testemunha do autor, que foi
contraditada pelo fato de já demandar contra a ré em Juízo.
Sustenta que jamais houve acordo com o autor para simular as
rescisões contratuais havidas visando à liberação do FGTS dos
períodos. Salienta que, ao contrário do disposto na sentença,
não houve confissão ficta do preposto, tendo este comprovado
a veracidade das rescisões ocorridas. Assevera que, se o objetivo das fraudes nas rescisões fosse a liberação do FGTS, não
haveria motivo para o pedido de demissão do autor em 2004
(fl. 118), já que esse tipo de rescisão contratual não dá ensejo
àquela imediata liberação.
Razão parcial lhe assiste.
O autor foi admitido em 31-3-89, na função de mecânico montador, e demitido sem justa causa em 22-4-99. Foi readmitido
em 12-8-99 e demitido em 22-12-2004, em virtude de pedido
de demissão. Novamente foi admitido em 7-4-2005 e demitido
em 5-2-2007, também em razão de pedido de demissão.
O Juiz sentenciante considerou que as provas orais se mostraram convincentes para comprovar a existência de unicidade
contratual, a saber:
“O autor em depoimento pessoal (fl. 289) confirmou que as
rescisões contratuais foram efetivadas em ‘acordo’ para
liberação do FGTS, todavia a empresa retinha a multa de
40%. Já o preposto restou confesso quanto a esta matéria,
em virtude de não saber responder as indagações do Juízo a
esse respeito.
A testemunha do autor (fls. 289/290), que trabalhou por 30
anos na empresa, informou que também celebrou ‘acordo’
para liberação do FGTS.
Pela prova colhida, resta patente a celebração dos ditos
‘acordos’ para liberação do FGTS, sendo igualmente certo
que o autor permanecia desempenhando suas funções
normalmente, todavia sem registro. (fl. 293)”
Em decorrência do cancelamento da Súmula nº 20 do TST, que
presumia fraude nas rescisões contratuais quando o empregado
era readmitido em curto espaço de tempo, atualmente prevalece o entendimento no sentido de que o simples fato de o
empregado ter sido readmitido pela empresa num curto espaço
02/2009
Nesse sentido decide o TST:
A alegada unicidade contratual exige prova cabal, e, por ser fato
constitutivo de direito, é do reclamante o ônus de prová-lo, de
acordo com os termos do artigo 818 da CLT, combinado com o
artigo 333, inciso I, do CPC, do qual, a meu ver, não se desincumbiu suficientemente.
Ainda que tenha validade o depoimento da testemunha do
autor, conforme explicitado anteriormente, ela apenas informou que já tinha celebrado “acordo” com a empresa para liberação do FGTS, sem, contudo, precisar se o mesmo ocorrera
com o reclamante. A testemunha ouvida indica apenas não ter
havido solução de continuidade nas atividades prestadas pelo
autor à empresa (fl. 290).
Todavia, o autor não logrou desconstituir a validade da rescisão
contratual operada em 22-12-2004, conforme o TRCT da fl. 125
e aviso prévio da fl. 118, em que consta como causa de seu afastamento rescisão sem justa causa com iniciativa do empregado.
No mais, o autor não logrou comprovar a prestação de serviços
no período de 23-12-2004 a 6-4-2005.
Assim, tendo o autor recebido a indenização legal e não
comprovada a prestação de serviços no período acima referido,
sem registro, não há falar em unicidade contratual, em face do
previsto no artigo 453 da CLT.
Outrossim, a verificação da existência de unicidade contratual
é questão eminentemente fática, sendo que essa prática, por
questões óbvias, normalmente não é documentada. Diante da
fragilidade da prova produzida pelo autor, no tocante ao período de 23-12-2004 a 6-4-2005, prevalece a documental.
Todavia, o termo de rescisão da fl. 114 revela que a rescisão sem
justa causa foi de iniciativa da empresa, o que dá ensejo à liberação do FGTS. Nesse passo, tanto o depoimento pessoal do
autor quanto o de sua testemunha convergiram no sentido de
que a ré celebrava acordos com seus empregados com o intuito
de fornecer guias para a liberação do FGTS. E isso é possível
quando a rescisão contratual parte da empresa, hipótese prevista no artigo 20 da Lei nº 8.036/90. Nesse aspecto, merece ser
mantida a decisão de origem.
Assim, dou provimento parcial ao recurso para reconhecer a
validade da rescisão contratual ocorrida em 22-12-2004.
1.2. DEVOLUÇÃO DE DESCONTOS
Sob o argumento de que o recebimento de benefício previdenciário no período de afastamento do recorrido – 15 dias no mês
de outubro de 2004 – obsta o pagamento de salário, pede o
autor a reforma da sentença nesse aspecto.
Contudo, razão não lhe assiste.
70
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
Conforme preceitua o § 3º do artigo 60 da Lei 8.213/92,
“durante os primeiros quinze dias consecutivos ao do afastamento da atividade por motivo de doença, incumbirá à empresa
pagar ao segurado empregado o seu salário integral”.
Assim, conforme explanado na sentença, durante a interrupção
do contrato de trabalho, nos quinze primeiros dias de afastamento, o tempo de serviço é contado normalmente, e há obrigação do empregador de efetuar o pagamento dos salários do
período.
Nego provimento ao recurso nesse item.
1.3. HONORÁRIOS ASSISTENCIAIS E CUSTAS PROCESSUAIS
Em caso de reforma da decisão de origem, para que seja julgada
improcedente, requer a exclusão da condenação ao pagamento
dos honorários assistenciais e das custas processuais. Caso a
decisão de origem seja mantida, pede também a exclusão dos
honorários e das custas, pois restou caracterizada a sucumbência recíproca.
Razão não lhe assiste.
A decisão de origem foi apenas parcialmente reformada, restando a empresa-ré sucumbente na pretensão quanto à unicidade
contratual e à devolução de descontos efetuados.
Segundo deflui da Súmula nº 329 do TST, “mesmo após a
promulgação da Constituição da República de 1988, permanece válido e entendimento consubstanciado na Súmula nº 219
do Tribunal Superior do Trabalho”, ou seja, “na Justiça do
Trabalho, a condenação em honorários advocatícios, nunca
superiores a 15%, não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao
dobro do mínimo legal, ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio
sustento ou da respectiva família”, requisitos estes previstos na
Lei nº 5.584/70 e preenchidos no presente caso, já que há o
credenciamento sindical (fl. 09) e existe a declaração de insuficiência econômica do autor (fl. 10).
Nego provimento ao recurso no particular.
1.4. RECOLHIMENTO PREVIDENCIÁRIO
Igualmente, em caso de reforma da decisão, requer seja excluída da condenação a responsabilidade pelo recolhimento da
contribuição previdenciária. Se mantida a decisão de origem,
pede seja também determinado o recolhimento de contribuição
previdenciária da cota-parte do autor.
Resta prejudicado o primeiro pedido, diante da reforma parcial
da decisão de origem.
Assim, passo à analise do pedido sucessivo.
Os procedimentos relativos ao desconto do imposto de renda e
das parcelas previdenciárias encontram-se uniformizados pela
Súmula nº 368 do TST, publicada no DJU de 5-5-2005, p. 612,
assim estabelecendo o inciso III:
“III – Em se tratando de descontos previdenciários, o
critério de apuração encontra-se disciplinado no artigo
276, § 4º, do Decreto nº 3.048/99 que regulamentou a Lei
nº 8.212/91 e determina que a contribuição do empregado,
no caso de ações trabalhistas, seja calculada mês a mês,
aplicando-se as alíquotas previstas no artigo 198, observado o limite máximo do salário-de-contribuição. (ex-OJ nº
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
32, inserida em 14-3-94, e OJ nº 228, inserida em
20-6-2001)”
Consoante determina o § 7º do artigo 276 do Decreto nº 3.048/99,
com a redação dada pelo Decreto nº 4.032/2001, devem ser
exigidas as contribuições previdenciárias tanto do empregador
como do empregado.
Assim, a recorrente não responde integralmente pelos descontos previdenciários, devendo o autor sofrer o desconto de sua
cota-parte.
Dou provimento ao recurso no particular para atribuir ao autor a
responsabilidade pela sua cota-parte das contribuições previdenciárias.
2. RECURSO DO AUTOR
2.1. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE
Pugna o recorrente pela reforma da sentença no tocante ao
adicional de insalubridade, sob o argumento de que o laudo
pericial concluiu pela incidência de insalubridade de grau
máximo, o que não foi reconhecido pelo Juízo de origem.
Não merece reparos a sentença.
Afirmou o experto à fl. 153 que, além de o autor não utilizar o
creme de proteção com freqüência para evitar o contato com
hidrocarbonetos, o referido creme, por si só, não é suficiente
para elidir o contato do trabalhador com os agentes insalubres.
E concluiu, sob o ponto de vista de agentes químicos, que as
atividades exercidas pelo reclamante eram insalubres em grau
médio durante toda a contratualidade.
Por embasar-se o recurso do autor em reiteradas alegações e
pela precisão com que aborda a matéria o Juízo a quo, transcrevo parte da sentença que passo a adotar como razões de
decidir, in verbis (fl. 295):
“Quanto a eficácia do creme, divirjo do perito, uma vez
que o produto Maxi 3 recebeu o certificado de autorização
do Ministério do Trabalho, como EPI a elidir a insalubridade por contato cutâneo com óleos e graxas. Neste
sentido, a ré trouxe aos autos o laudo técnico (fls. 164/165)
que atesta a eficácia do produto. Por outro lado, o Ministério do Trabalho também realizou testes para certificar o
produto. Por fim, as especificações do produto – obtidas na
internet (fl. 172) – atestam sua destinação, inclusive informando que o produto não sai com o atrito do trabalho.
Neste diapasão, vejo com bastante temeridade as afirmações do perito no sentido de que o creme de proteção
Maxi 3 não atinge os fins para os quais foi fabricado
(proteção cutânea), uma vez que não realizou qualquer
tipo de exame físico e/ou químico e, simplesmente por
entender que o atrito do trabalho retiraria o protetor e
pela informação de alguns empregados, lançou suas
conclusões. O perito extrapolou seu mister ao proceder a
afirmações sem comprová-las, especialmente quando estas
afirmações vêm de encontro às especificações do produto,
certificação de autorização do Ministério do Trabalho e
confirmação de suas propriedades realizadas através de
laudo técnico próprio.
Neste sentido, vislumbro que o autor ao longo do contrato
recebeu e utilizou o EPI (creme protetor de mãos Maxi 3)
fornecido pela ré e que elidiu os efeitos nocivos dos hidrocarbonetos com que mantinha contato.”
Ante o exposto, nego provimento ao recurso nesse aspecto.
71
COAD
SELEÇÕES JURÍDICAS
2.2. HONORÁRIOS PERICIAIS
De acordo com a norma contida no artigo 790-B da CLT, a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da
parte sucumbente na pretensão objeto da perícia.
No caso, não tendo sido reconhecido o direito ao adicional de
insalubridade, o autor é sucumbente na pretensão objeto da
perícia e é beneficiário da justiça gratuita (já concedida na
sentença), o que impõe seja observado o teor da Portaria nº 595,
de 23-7-2008, na qual são fixados os critérios para a requisição
de recursos do orçamento vinculados à atividade “Assistência
Jurídica a Pessoas Carentes”, dispondo no artigo 1º que “a
responsabilidade pelo pagamento e antecipação dos honorários periciais, em caso de concessão do benefício da justiça
gratuita, no âmbito da Justiça do Trabalho de Primeiro e Segundo Graus da 12ª Região, fica regulamentada segunda as disposições desta Portaria”.
Esse, aliás, foi o entendimento perfilhado pela 3ª Turma do Egrégio
TST no acórdão da lavra do Ministro Alberto Bresciani, publicado
no DJ em 16-3-2007 com o número RR – 1585/2004-001-24-00
e assim ementado:
“RECURSO DE REVISTA – HONORÁRIOS PERICIAIS –
PARTE SUCUMBENTE NA PRETENSÃO OBJETO DA
PERÍCIA BENEFICIÁRIA DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA – RESPONSABILIDADE DA UNIÃO PELO
PAGAMENTO. O artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal
preceitua que o Estado prestará assistência jurídica integral
e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos,
assegurando-se ao necessitado a realização da prova
técnica indispensável à averiguação do direito controvertido. A garantia compreende inclusive a dispensa do pagamento dos honorários periciais, nos termos do artigo 3º, V,
da Lei nº 1.060/50.
No âmbito da Justiça do Trabalho, sucumbente o beneficiário da assistência judiciária gratuita quanto à pretensão
objeto da perícia, incumbe ao Estado, por meio da União, o
pagamento dos honorários periciais. Essa interpretação
vem corroborada pelas disposições da Lei nº 10.357/2002
que, sob a égide da atual Carta Magna, acrescentou o artigo
790-B à CLT, estabelecendo que a responsabilidade pelo
pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente
02/2009
ACÓRDÃOS NA ÍNTEGRA
na pretensão objeto da perícia, salvo se beneficiária de
justiça gratuita. Não compromete tal conclusão a circunstância de a União não figurar como parte no processo, em
face do comando da Lei Maior. Precedentes desta Corte.
Recurso de revista desprovido.” (para marcação original)
Diante do exposto, dou provimento ao recurso no particular
para inverter o ônus do pagamento dos honorários periciais,
isentando o autor e transferindo essa incumbência à União até o
limite de R$ 1.000,00 (estabelecido na Portaria nº 595/2008).
2.3. CUSTAS PROCESSUAIS
O pedido resta prejudicado, ante a ausência de condenação
nesse sentido.
Pelo que,
ACORDAM os Juízes da 3ª Turma do Tribunal Regional do
Trabalho da 12ª Região, por unanimidade, conhecer dos recursos, mas não dos documentos das fls. 318321; por igual votação, rejeitar a preliminar de nulidade processual, argüida pela
ré. No mérito, sem divergência, dar provimento parcial ao
recurso da ré para reconhecer a validade da rescisão contratual
ocorrida em 22-12-2004 e para atribuir ao autor a responsabilidade pela sua cota-parte das contribuições previdenciárias; por
maioria, vencido, parcialmente, o Exmo. Juiz Gerson Paulo
Taboada Conrado (Revisor), dar provimento parcial ao recurso
do autor para inverter o ônus dos honorários periciais, dos quais
fica isento, devendo o encargo ser suportado pela União, nos
termos da Portaria GP nº 595, de 23 de julho de 2008, deste
Regional. Custas de R$ 32,00 (trinta e dois reais) pela ré sobre o
valor da condenação alterado para R$ 1.600,00 (um mil e seiscentos reais).
Intimem-se.
Participaram do julgamento realizado na sessão do dia 11 de
novembro de 2008, sob a presidência do Exmo. Juiz Gerson
Paulo Taboada Conrado (Revisor), as Exmas. Juízas Lília Leonor
Abreu (Relatora) e Gisele Pereira Alexandrino. Presente a Exma.
Dra. Cristiane Kraemer Ghelen Caravieri, Procuradora do Trabalho.
Florianópolis, 4 de dezembro de 2008.
Lília Leonor Abreu – Relatora
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