Prémio Ser Saúde/ISAVE
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Prémio Ser Saúde/ISAVE
Editorial Quando colocado perante este projecto, a revista Ser Saúde, senti que era a concretização de um sonho antigo e estratégico para o ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave. De imediato o abracei e me disponibilizei para o promover e projectar para toda a comunidade académica/científica/ profissional em saúde. A revista que está nas vossas mãos é a imagem deste projecto que pretendemos desenvolver e divulgar. A liberdade foi dada a quem a dirige e quis que os princípios basilares que a criaram estivessem sempre presentes. Faz sentido para o ISAVE ter um meio livre, plural, que publique trabalhos de investigação nas áreas das ciências da saúde. Não queremos a revista do ISAVE, queremos a revista de ciência e investigação em saúde aberta ao meio, a todos os que investigam diariamente e tentam, de alguma forma, criar um caminho mais sólido para a saúde em diferentes áreas. Queremos que a qualidade da Ser Saúde seja como a do ensino que nestas novas instalações, construídas num meio natural único, belo, é ministrado com critérios rigorosos e de excelência. A Ser Saúde também será um elo de ligação dos profissionais e estudantes da área, à nossa instituição. Quero que a Ser Saúde traga aqui pessoas, que a curiosidade abra este espaço a todos os que o desejarem, e seja um veículo de referência em Portugal, África, América e onde nos encontrarmos. O ISAVE anunciará no próximo ano o Prémio Ser Saúde/ISAVE de Investigação e Ciência em Saúde. Sei que a ciência, a investigação, é o ramo forte do tronco do ensino nas mais diferentes áreas. E a Ser Saúde, com transformações que possa ter, fará parte deste ramo de credibilidade e liberdade. Quero o ISAVE como marca de ensino de qualidade em Portugal. Os passos que demos, ainda no início, são determinados pela vontade e onde pousam deixam raízes profundas. Raízes que os nossos primeiros licenciados levam no saber teórico, na destreza prática, na formação que sentem como cidadãos. A Ser Saúde fará parte do caminho do ISAVE, fará parte dos passos da ciência e investigação em saúde em Portugal e no Mundo. Sempre plural… sempre livre. José dos Santos Henriques Presidente do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave 08 36 Daniel Serrão A pessoa humana e o direito a cuidados de saúde Os direitos individuais são universais e igualitários, são reconhecidos por igual a todo e qualquer cidadão, mas o direito à protecção da saúde não o pode ser porque as pessoas não precisam sempre, nem na mesma medida, de cuidados de saúde. 18 Fábio Pereira, José Carlos Machado, Maria Daniel Vaz de Almeida Nutrigenética e nutrigenómica: em direcção à nutrição personalizada Numa era onde a medicina é cada vez mais preventiva, espera-se que a terapia nutricional seja a pedra angular dos futuros cuidados de saúde, transformando-se numa importante ferramenta terapêutica para a maximização da saúde e minimização do risco de doença em indivíduos susceptíveis. Nuno Penacho Terapia Génica: um medicamento chamado gene... O princípio básico subjacente à Terapia Génica consiste simplesmente em fazer chegar material genético às células para que o produto da sua expressão possa curar ou retardar a progressão da doença. E hoje a Terapia Génica pode incluir outro tipo de estratégias que vão além da simples substituição do gene defeituoso. No entanto, o conceito de Terapia Génica, que aparentemente se revela maliciosamente simples, encerra alguns problemas que são precisos ultrapassar de modo a que este tipo de terapia venha a ter sucesso. 46 Daniela Filipa Martins Gonçalves Reticulócitos O aumento de reticulócitos em circulação sanguínea é indicativo de regeneração sanguínea, enquanto que a sua diminuição, face a um estímulo, é um indicador muito importante para a avaliação clínica. 26 52 Entrevista a Alexandre Castro-Caldas As janelas do conhecimento As crianças ao desenvolverem o cérebro têm janelas de oportunidade para aprender. Se não fornecemos a informação na altura própria, altura que a criança está mais apta para receber determinado tipo de informação, a janela fecha-se e passou a oportunidade. Paula Gago, Veloso Gomes Via Verde Coronária na região do Sotavento Algarvio – Um projecto para a vida A doença coronária aguda é, pela sua prevalência, morbilidade e mortalidade, uma situação médica de urgência que justifica uma intervenção planeada da Emergência Médica. 62 101 Hugo Leite-Almeida , Armando Almeida Dor – Será o nosso cérebro masoquista? Há dores que vêm por bem, ilibando assim o nosso cérebro do cunho de masoquista, pelo menos em circunstâncias normais. Casos há em que a dor perde o seu carácter benéfico, já que se torna crónica tornando-se um fardo difícil de carregar. 80 Sérgio Aires Gonçalves Benzodiazepinas: aspectos farmacológicos e utilização clínica Para além do tratamento da ansiedade e da indução do sono as benzodiazepinas podem ainda ser utilizadas no tratamento de ataques de pânico, privação alcoólica, terrores nocturnos, sonambulismo, espasmos musculares, epilepsia, anestesia e sedação para manobras invasivas. 90 Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda Úlceras de pressão: prevenção e tratamento As úlceras de pressão constituem um grave problema de saúde que afecta o indivíduo em todos os aspectos físicos, psíquicos e sóciofamiliares. Adelaide Serra, Fernando Domingos Avaliação Nefrológica de uma população com Litíase Cálcica Idiopática Recorrente – Experiência de 7 anos da Consulta de Nefrolitíase do Serviço de Nefrologia do Hospital de Santa Maria Prémio Bial de Medicina Clínica 2004 A litíase cálcica idiopática recorrente é a forma mais frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade, verificando-se um aumento progressivo da sua incidência nas últimas décadas, sobretudo nos países industrializados. 106 Benedita Aguiar Psicologia da Saúde e Promoção da Saúde Psicologia da Saúde tem dado contributos bastante significativos em diversas áreas, directa e indirectamente relacionadas com a Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma série de trabalhos no âmbito da representação mental da doença, adesão terapêutica e relação stress/condição de doença. 118 Paulo Teixeira Síndrome de Asperger A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de problemas que algumas crianças (e adultos) têm quando tentam comunicar com outras pessoas. Poster Pacemaker definitivo: Ensino ao doente / família Actualidade ISAVE Conhecimento, Aprendizagem, Prática Com quatro anos de criação de profundos valores na sabedoria das tecnologias de saúde, o ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave, fundamenta os seus domínios num corpo de docentes nacionais e estrangeiros de reconhecido valor. Hoje, na nobreza de novas instalações, onde meio e homem se unem na leveza e beleza do espaço, os princípios de um ensino de qualidade, alicerçados na contínua investigação científica nas áreas ministradas, mantêm-se unidos ao homem no desejo de melhoria da saúde e da qualidade de vida da população. Com cursos de Enfermagem, Análises Clínicas e Saúde Pública, Farmácia, Higiene Oral, Radiologia, Prótese Dentária, Fisioterapia e Terapêutica da Fala, o ISAVE assume relevo regional e nacional na formação em tecnologias de saúde. Conhecimento, aprendizagem e prática são as palavras basilares de um ensino onde o Homem é o elo profundo de um saber presente que alargará horizontes no futuro. Estabelecidos amplos protocolos com instituições de ensino internacionais e nacionais, bem como com entidades prestadoras de cuidados de saúde, o ISAVE, nas raízes profundas da sabedoria, amplia os seus troncos na contínua formação dos seus docentes, no desejo de criação de novos cursos estudadas as necessidades reais da população. E alarga os seus ramos ao desporto, e outros domínios na vontade serão criados, sempre atento à formação de jovens e à população. Os 1600 alunos têm, nas novas instalações, para além da qualidade do ensino ministrado, das excelentes condições físicas, dotadas as salas de aulas com os meios tecnológicos de última geração, um espaço de saber onde conhecimento, aprendizagem e prática se unem na formação de jovens que formam o amanhã. No novo ISAVE, tem também à sua disposição um espaço de sonho para congressos, colóquios, palestras, os mais diversos eventos. Na Póvoa de Lanhoso, em Geraz do Minho, o ISAVE abre um conceito de ensino onde a natureza se integra no saber… Agenda Congressos e Eventos NOVEMBRO VI Jornadas de Cardiologia Pediátrica 01 de Novembro de 2006 Local: Porto Reunião Anual da Associação de Psiquiatria Biológica 2006 Attention – Deficit Hyperactivity Disorder Across The Life Span 03 a 05 de Novembro de 2006 Local: Faculdade de Ciências da Saúde Universidade da Beira Interior – Covilhã Organização: Associação de Psiquiatria Biológica VIII Congresso Técnico de Anatomia Patológica 04 a 05 de Novembro de 2006 Local: Hotel dos Templários – Tomar Organização:Associação Portuguesa de Técnicos de Anatomia Patológica Curso de Reumatologia para Medicina Familiar Professor Lopes Vaz 09 a 10 de Novembro de 2006 Local: Hotel Porto Palácio X Congresso Português de Obesidade 09 a 11 de Novembro de 2006 Local: Centro de Congressos Hotel Porto Palácio Organização: Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade «O Congresso Português de Obesidade pretende ser um fórum onde todos os interessados tenham um espaço para a livre expressão das suas ideias, para a discussão dos seus projectos e para dele nascerem programas de acção que nos mobilizem para enfrentar este flagelo». Conferências sobre a Genética da Obesidade ou Síndrome Metabólico ou Obesidade e factores cardiometabólicos são dois exemplos do que no X Congresso Português de Obesidade se vai debater. 1º Congresso Nacional Serviço Urgência e Emergências – 1º Encontro Nacional Associação Nacional Medicina de Urgência 09 a 11 de Novembro de 2006 Local: Centro de Congressos da Alfândega – Porto IX Jornadas Pneumológicas de Viseu 10 a 11 de Novembro de 2006 Local: Hotel Montebelo – Viseu Oncoanestesia 2006 10 a 11 de Novembro de 2006 Local: Universidade Lusíada – Lisboa Organização: Serviço de Anestesiologia IPO Lisboa Encontros de Medicina Interna 16 a 17 de Novembro de 2006 Local: Hospital Garcia de Orta – Almada IV Jornadas Transfronteiriças de Medicina Interna V Jornadas da Sociedade Estremenha de Medicina Interna 16 a 18 de Novembro de 2006 Local: Elvas – Centro de Negócios Transfronteiriço Organização – Secretaria do Serviço de Medicina Hospital de Santa Luzia |Rua Mariana Martins | 7350-954 Elvas | Telefone – 268.637.620 | Fax – 268.629.817 19º Curso de Doenças Hepatobiliares 24 a 25 de Novembro de 2006 Local: Auditório HUC – Hospitais da Universidade de Coimbra Largo Prof. Mota Pinto 3000 Coimbra Organização – Secretariado do Serviço III – HUC DEZEMBRO XXII Congresso de Pneumologia / IV Congresso-Luso Brasileiro 08 a 10 de Dezembro de 2006 Centro Congressos Estoril Organização – Sociedade Portuguesa de Pneumologia Paralisia Cerebral - Diagnóstico e Intervenção Congresso Comemorativo 30 + 22 a 23 de Novembro de 2006 Local: Auditório dos Hospitais da Universidade de Coimbra XIV Jornadas Internacionais do Instituto Português de Reumatologia 14 a 15 de Dezembro de 2006 Centro Congressos de Lisboa Organização – Instituto Português de Reumatologia Organização – Núcleo Regional do Centro da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral 6º Congresso Nacional de Enfermagem Oncológica 23 a 25 de Novembro de 2006 Local: Cine Teatro Caracas em Oliveira de Azeméis Organização – Sociedade Portuguesa de Enfermagem Oncológica Director Eugénio Pinto [email protected] [email protected] Editor Rui Castelar Corpo redactorial Isabela Vieira Director de arte e grafismo Ângelo Mendes [email protected] Fotografia Jorge Gomes Publicidade Celmira Dias Propriedade Ensinave – Educação e Ensino Superior do Alto Ave Campus Académico do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso NIF – 504 983 300 Impressão Orgal, impressores Rua do Godim, 272 4300-236 Porto Contactos Ser Saúde Campus Académico do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Quinta de Matos – Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253 639 800 Fax – 253 639 801 www.isave.edu.pt [email protected] [email protected] ISSN 1646-5229 Nº de Registo na ERC 124994 Daniel Serrão Professor jubilado da Faculdade de Medicina A capacidade estética permite ao homem descobrir a beleza, sentir o prazer da percepção do belo e ser capaz de o amar, nas pessoas e nas coisas, com alegria consciente. A Pessoa Humana e o Direito a Cuidados de Saúde O tema que vou desenvolver – A Pessoa Humana e o Direito a Cuidados de Saúde – é, ao mesmo tempo, uma questão de pós‑modernidade e uma antiquíssima imagem da relação humana no cuidar. Como escreveu o Mestre Ramiro Borges de Menezes, na sua dissertação de Mestrado1, que é um amplo e profundo estudo sobre o episódio do Bom Samaritano (Lucas, 10, 25‑37), esta parábola “casuisticamente nos dias de hoje, poderá ser narrada da seguinte forma: Um dia descobri (Samaritana) uma mulher «meio consumida» pelas ratazanas (desvalida no caminho) que agonizava, à chuva, num esgoto, perante a indiferen- ça dos transeuntes (sacerdotes, médicos, etc.) perto de um dos hospitais de Calcutá. Levei-a aos ombros e fui ao hospital para providenciar o seu internamento (estalajadeiro). O pessoal do Campbell Hospital recusou-a considerando-o um caso sem esperança. A Madre Teresa (Samaritana) foi a mais dois hospitais mas com resultado negativo. Não pôde ir a mais porque a «moribunda» expirou nos seus braços.” Há mais de 2.000 anos foi dito, assim, que a pessoa humana tem direito a cuidados de saúde. E que cuidar é usar da misericórdia para com o outro que é o nosso próximo, a quem devemos amar, como nos amamos a nós próprios. on ,otnatrop ,somidicnioC ratse-meb o é euq ed otiecnoc e ociuqísp ,ocisíf ,otelpmoc ed odatse o areg euq ,laicos oãçinfied adicehnoc an edúas ed laidnuM oãçazinagrO ad .edúaS 10 E neste alvor do Século XXI, como está este direito da pessoa humana a cuidados de saúde? Vamos começar pela pessoa humana. O que é? Durante milénios, sob a influência do Cristianismo, foi atribuída à pessoa humana uma suprema dignidade que era a de ser a obra-prima de Iavé, criada à Sua Imagem e à Sua Semelhança, como Homem e Mulher. A pessoalidade humana, manifestando-se nos dois géneros, masculino e feminino, adquire capacidade criadora como a de Iavé e por isso é Sua Imagem e Sua Semelhança – cria, incessantemente, outras pessoas e, pelo Espírito recebido de Iavé, tem como destino a imortalidade. Nesta concepção antropológica judaicocristã, à qual sou fiel, a Pessoa é corpo e é espírito, numa só e única substância unitária e numa só e única natureza. A relação que usamos por comodidade de comunicação, entre corpo e espírito, é puramente categorial. Um corpo diz-se humano quando nele se manifesta um espírito humano e um espírito, humano, não pode revelar-se aos outros senão mediante um corpo, igualmente humano. Um corpo de um antropóide, mesmo partilhando com o corpo humano mais de 95% da informação contida no seu genoma, não é um corpo humano, porque nele não se manifesta um espírito humano e, portanto, não é pessoa. A pessoa, já o afirmou S. Tomás de Aquino, é unidade substancial, e substantiva, de corpo e de espírito. Cabe agora perguntar o que é o espírito humano. Não sabemos o que é, sabemos como se manifesta. Manifesta-se nas capacidades específicas e exclusivas do corpo humano: a estética, a ética e a racionalidade. Coincidimos, portanto,no conceito de que é o bem-estar completo, físico, psíquico e social, que gera o estado de saúde na conhecida definição da Organização Mundial de Saúde. 11 A capacidade estética permite ao homem descobrir a beleza, sentir o prazer da percepção do belo e ser capaz de o amar, nas pessoas e nas coisas, com alegria consciente. A capacidade ética permite ao homem conhecer o mundo, transformando o conhecimento perceptivo em valores pessoais, segundo as categorias de Bem e de Mal, de Verdadeiro e de Falso, usando depois, esses valores para com eles orientar as suas decisões livres e conscientes. A capacidade racional permite ao Homem transformar todas as percepções do mundo em representações abstractas, às quais atribui um sentido, segundo a categoria lógica da inteligência humana e com as quais é possível construir uma cultura exterior simbólica, que é a cultura na qual, actualmente, nascemos, vivemos e morremos. Chama-se-lhe exterior porque ela está fora do corpo do homem e resulta da intervenção da inteligência do homem e do corpo do homem, sobre a natureza. Talhar um sílex, a partir da simbolização mental do seu uso, não difere, substancialmente, de construir e lançar um satélite espacial. Ambos são objectos intencionais que pertencem à cultura exterior simbólica, porque cada objecto exprime, simbolicamente, na sua forma, a ideia abstracta que o antecedeu no interior de uma inteligência humana. Por isso se afirma que toda a cultura humana é exterior e é simbólica. Mas também há uma cultura interior, simbólica, que é constituída pelas ideias abstractas inventadas pela inteligência reflexiva, constantemente, em cada um de nós e que se manifestam num espaço interior virtual ao qual chamo «campo da consciência reflexiva» ou «campo da auto-consciência». A auto-consciência – ou sentimento de si na formulação linguística de António Damásio2 – é onde tudo acontece; aí se pressente a emoção estética, aí se realiza a ponderação dos valores éticos, aí tumultua a constante reverberação das ideias abstractas, alimentada pela Os saberes sobre as doenças e sobre os processos de tratamento e cura evoluiu, fulgurantemente, na segunda metade do Século XX de modo que a ciência médica domina hoje a arte médica e os seus cultores, os médicos, passaram de bons práticos a cientistas exigentes e rigorosos. 12 memória consciente e subconsciente. Então, para mim, a auto-consciência, como estrutura virtual perceptiva, deliberativa e criadora, é a própria manifestação do espírito, ou da ruah, na nomenclatura hebraica. em mim, do Espírito de Iavé e tal como Iavé existe em si próprio e por si próprio, também o meu espírito se revela através do meu corpo físico e natural, com o qual constrói, em cada momento, a pessoa que eu sou. Auto-consciência é, pois, a designação moderna do conceito de pneuma entre os gregos e de spiritu para os de fala latina e que chegou até nós como espírito. As neuro-ciências, mesmo as mais avançadas e optimistas, não ousam afirmar que a auto-consciência, a percepção interior de um eu autónomo, é um produto da actividade cerebral, da activação de umas certas redes neuronais ou da circulação de mediadores químicas. Não são a dopamina, a serotonina ou as encefalinas que constroem a auto-consciência; manifestam-se nela, ajudam à sua expressão, mas não a constituem. Também não são os circuitos neuronais que memorizam simbolicamente as percepções e que, a qualquer momento, as tornam presentes na auto-consciência, que a constituem, embora lhe forneçam conteúdos para que ela se torne deliberativa e comunicacional. Por isto, assim resumidamente exposto para não ser maçador, a Pessoa Humana é unidade substancial e substantiva de corpo e espírito. Esta auto-consciência, como o mais íntimo da intimidade pessoal, é a revelação, em cada um de nós, do espírito. Podemos ficar neste patamar e dizer, apenas, que o espírito é, por ora, um mistério para os neuro-biologistas. Para mim,porém,que sou fiel ao ensinamento judaico-cristão, o meu espírito é revelação, Portanto, nenhuma Antropologia, com ou sem apelo a uma Transcendência para explicar a categoria espiritual da natureza substantiva da Pessoa, pode deixar de atribuir ao corpo humano a maior dignidade. Houve tempo em que o corpo humano foi visto como o causador de todos os males praticados pelos homens e mulheres e como sede do orgulho, da concupiscência, da violência assassina e da negação de Deus e, por isso, merecedor dos castigos mais violentos e das fogueiras da Inquisição. Este erro doutrinário, fatal para tantos homens e mulheres, baseavase na concepção dualista, que não era a da tradição hebraico-cristã, em que o corpo e a alma eram concebidos como duas realidades autónomas e distintas, que se combatiam uma na outra como inimigos inconciliáveis. Felizmente que João Paulo II restabeleceu a verdade e ensinou, oralmente e por escrito, uma teologia do corpo humano, que surpreendeu tanto os círculos romanos rotulados de «liberais» como os rotulados de «conservadores». No pensamento profundo de João Paulo ed sossecorp so erbos e saçneod sa erbos serebas sO adnuges an ,etnemetnarugluf ,uiulove aruc e otnematart animod acidém aicnêic a euq odom ed XX olucéS od edatem ed marassap ,socidém so ,serotluc sues so e acidém etra a ejoh .sosorogir e setnegixe satsitneic a socitárp snob II, contido no seu livro A Teologia do Corpo, a corporificação como macho e fêmea, no princípio, é uma porta aberta à natureza e aos objectivos de Deus, o Criador. Como escreve George Weigel3 na sua biografia do Papa João Paulo II: «Poucos ousaram expandir a intuição sacramental católica – o manifesto do invisível através do visível – tão longe como João Paulo II o fez ao ensinar que o amor de auto-entrega da comunhão sexual é uma imagem da vida interior de Deus. Poucos ousaram dizer tão directamente ao mundo: A sexualidade humana é muito mais grandiosa do que imaginam». Para os católicos, no seguimento da tradição hebraico-cristã, o corpo humano tem uma dignidade própria que cobre todas as suas funções, sem excluir nenhuma, porque ele é «templo» do espírito de Deus. Para os que não aceitam a Transcendência, o corpo tem igualmente uma dignidade própria que advém da sua natureza biológica, como suporte físico da pessoa psíquica e social. Coincidimos, portanto, no conceito de que é o bem-estar completo, físico, psíquico e social, que gera o estado de saúde na conhecida definição da Organização Mundial de Saúde. dora, o homem é uma máquina energética, dependente da luz solar, da água, do ar e dos materiais nutritivos captados na vida animal e vegetal e, por isso, é, biologicamente, frágil. E porque é, ao mesmo tempo, um ser inteligente e simbolizador, a fragilidade biológica é representada, na auto-consciência, como angústia vital, como insegurança e como temor. Não fora o mecanismo salutogénico cerebral, bem conhecido depois dos trabalhos de Antonowsky, e poucos seres humanos aguentariam sobreviver diariamente, sabendo-se seres finitos, seres irremediavelmente destinados a morrer. Desde Hipócrates de Cós que alguns homens assumiram a tarefa de acolher aqueles outros homens que, perturbados no seu corpo ou na sua mente, não conseguem suportar sozinhos o peso de uma vida difícil, afectada por males que desequilibram a relação do corpo consigo próprio e da pessoa com o mundo que a envolve. Esta foi a origem do cuidado médico: um ser humano perturbado dirige-se a outro ser humano e pede-lhe ajuda. Mas o homem é um ser frágil e perturbável. O progresso do conhecimento científico da biologia do corpo humano possibilitou a evolução do cuidar do outro para o tratar do outro e, quando possível, curá-lo. Imerso na natureza viva e com os pés assentes numa terra, tantas vezes movediça e ameaça- Os saberes sobre as doenças e sobre os processos de tratamento e cura evoluiu, fulgu- 13 14 rantemente, na segunda metade do Século XX de modo que a ciência médica domina hoje a arte médica e os seus cultores, os médicos, passaram de bons práticos a cientistas exigentes e rigorosos. O seu objectivo é o diagnóstico rigoroso da doença e, depois, a aplicação de todas as modernas técnicas de intervenção terapêutica. A pessoa, na qual está a acontecer a doença, fica em segundo plano, quase é esquecida; só a doença é o objecto efectivo das preocupações do médico-cientista. Para além desta espécie de des-humaniza ção do exercício da medicina, verifica-se, em particular nos últimos decénios, que o custo desta actividade médica cresce exponencialmente. Como pagá-lo se o consideramos um direito? Como escrevi noutro local4, esta é a «questão essencial» que se coloca às sociedades democráticas – social-democracia ou socialismo democrático. A questão essencial é a de o colectivo nacional, todos os cidadãos, ricos, remediados e pobres, decidirem sobre a natureza do direito fundamental à protecção da saúde e sobre as formas de lhe dar satisfação. É claro para os analistas e especialistas da Teoria dos Direitos, que este direito fundamental está enquadrado na categoria dos chamados direitos económicos, sociais e culturais, ou direitos de terceira geração após os direitos «negativos» e «positivos» respeitantes à liberdade de todos os seres humanos. Ora, os direitos da terceira geração, como é geralmente admitido, embora fundamentais, estão condicionados pela existência de recursos para os satisfazer e o legislador não deixará de cumprir a Constituição da República quando disponibilize apenas os recursos possíveis, cujo consumo não impeça a satisfação de outros direitos fundamentais ou não torne inviável o próprio Estado, minando o seu tecido económico e social. Os direitos individuais são universais e igualitários, são reconhecidos por igual a todo e qualquer cidadão, mas o direito à protecção da saúde não o pode ser porque as pessoas não precisam sempre, nem na mesma medida, de cuidados de saúde. O debate clarificador sobre a natureza limitada deste direito tem de ser feito, para que a população tome consciência de que dar tudo a todos em todo o território nacional não é uma exigência constitucional absoluta mas sim um direito limitado pelos meios financeiros disponíveis que podem ser inferiores aos necessários. O segundo aspecto desta questão essencial sobre a natureza do direito fundamental à protecção da saúde é o seguinte: enquanto que os direitos civis e políticos, como direitos fundamentais individuais se proclamam para defender os cidadãos contra toda e qualquer intervenção do Estado, os direitos sociais, de terceira geração, e, particularmente, o direito à protecção da saúde, proclamam-se para exigir a intervenção directa do Estado para a sua satisfação. Assim, o Estado pode e deve intervir para que todos os cidadãos tenham acesso aos meios que protegem a saúde.A questão essencial é: como intervir. O como intervir deve ser uma decisão dos cidadãos e não ser um acto de puro voluntarismo legislativo como aconteceu com a criação do Serviço Nacional de Saúde, apresentado (diria imposto) aos cidadãos (passivos) como a única forma de o direito à protecção da saúde ser satisfeito. Ora, porque se trata de um direito relativo, ele deve ser relacionado com o estado de desenvolvimento económico da sociedade e das sociedades envolventes e deve ter em conta a posição ocupada pelos sujeitos deste direito na estrutura económica, financeira e social da sociedade (são ricos?, remediados?, pobres?). Os direitos individuais são universais e igualitários, são reconhecidos por igual a todo e qualquer cidadão, mas o direito à protecção da saúde não o pode ser porque as pessoas não precisam sempre, nem na mesma medida, de cuidados de saúde. O Estado não pode obrigar os cidadãos a terem todos o mesmo nível de saúde, igual à melhor saúde; o que não só seria impossível como obrigaria a discriminar positivamente os cidadãos de forma inversamente proporcional ao nível de saúde de cada um. Por outro lado, os direitos individuais são exercidos de forma independente e pessoal mas o exercício do direito à protecção da saúde, por cada um, é interdependente, influencia e é influenciado pela forma como os outros exercem esse direito, particularmente no que se denomina saúde pública; em matéria de custos, pagar campanhas de promoção da saúde, acções de medicina preventiva, contracepção hormonal e, nalguns casos, fertilização in vitro, reduz, obviamente, a quantidade de recursos disponibilizados para o pagamento dos custos da medicina curativa individual. O cuidado de saúde, quando é oferecido como um bem comum tende a ser sobre-utilizado, massificado, saturado e a desvalorizar-se ou esgotar-se, como tem acontecido com outros bens comuns de livre utilização. Ao colocar-se, face a este direito fundamental, numa posição de liberdade passiva, o cidadão pressupõe a perfeição do Estado e a maturação democrática de todos os cidadãos, ou seja, coloca o direito à protecção da saúde na perspectiva da justiça. 15 16 Assim, o debate sobre a natureza deste direito implica o debate sobre as relações entre o Direito e o poder político, em ordem à efectivação da Justiça, que é um debate marcadamente ético. Quando a política promete aos cidadãos saúde, trabalho, educação, habitação, protecção do meio ambiente, porque são direitos invioláveis da existência humana, e estas promessas não aparecem integradas numa teoria da justiça que fundamente um novo contrato social entre os cidadãos e tenha em conta a diversidade das situações e das necessidades de uma sociedade irremediavelmente estratificada, esta promessa política é demagógica e não favorece a justa satisfação dos direitos de terceira geração particularmente o da promoção da saúde pela prevenção e tratamento das situações de doença. Natureza do direito e formas de o satisfazer no interior de uma sociedade democrática com instituições justas, constituem a questão essencial para que se possa debater, com seriedade, a estrutura do sistema de prestador de cuidados de saúde que os cidadãos desejam ter e aceitam pagar. É necessário que os cidadãos ricos, remediados ou pobres, exponham o seu ponto de vista, as suas expectativas e as suas opções. É indispensável que todos os agentes de saúde, com relevo para médicos, enfermeiros e outros técnicos, possam apresentar as suas posições quanto aos modos como desejam exercer a sua actividade profissional, numa clara definição de direitos e deveres. Também os responsáveis pelas infraestruturas deverão dizer de que forma as disponibilizam para que, nelas, os profissionais possam praticar os cuidados que os cidadãos procuram obter e dos quais necessitam. A satisfação do direito fundamental à protecção, em todos os seus aspectos, da saúde de todos os cidadãos é uma questão de Estado. Ao Governo cabe a responsabilidade de definir os grandes objectivos de uma política de protecção da saúde e de estruturar, com a intervenção dos destinatários dessa política, que são os cidadãos, e com os executores, que são os profissionais do sector, um Sistema que dê cumprimento aos diferentes aspectos da política aprovada. Cabe-lhe, ainda, decidir sobre as formas diversas de financiar o Sistema – que será um conjunto plural de acções estruturadas, com as quais serão atingidos os objectivos da política de protecção da saúde – e de avaliar a qualidade executiva de cada uma das peças do Sistema. Torna-se assim claro que se é certo que a Pessoa Humana tem o direito a cuidados de saúde, como um direito civilizacional, as formas de dar satisfação a este direito podem ser múltiplas, desde um Serviço Nacional de Saúde, monopolista, centralizado, pago pelo Orçamento Geral do Estado a partir dos impostos cobrados aos contribuintes, até um Sistema plural, desconcentrado, com ofertas múltiplas e formas de pagamento flexíveis. Bibliografia O que verdadeiramente importa a um Estado que promove a justiça é que o Governo que o administra se não arvore em produtor exclusivo de cuidados mas se assegure, em cada momento, de que nenhum cidadão fique privado de cuidados de saúde necessários, em tempo útil, porque não tem dinheiro para os pagar ou porque, sendo gratuitos no momento do uso, não tem acesso e aguarda meses ou anos em listas de espera saturadas. Daniel Serrão – A Questão Essencial. Prefácio ao livro “Prioridades na Saúde” de Rui Nunes e Guilhermina Rego. McGraw Hill. Lisboa, 2002 As listas de espera ofendem a dignidade da Pessoa Humana e são a expressão do mais injusto dos acolhimentos que podem ser dados a uma pessoa humana doente. E morrer na lista de espera por cuidados que podiam ser curativos é sofrer na carne, a ofensa irremediável a um direito de personalidade e um direito de cidadania numa sociedade democrática: o direito da Pessoa Humana a Cuidados de Saúde. Ramiro Délio Borges de Menezes – O Desvalido no Caminho (Lc 10, 25-37). Dissertação de Mestrado em Ciências Religiosas. Porto, 2004 António Damásio - O Sentimento de Si. Publicações Europa-América. Lisboa, 2000. George Weigel – Testemunho de Esperança. Bertrand Editora. Lisboa, 2000 Texto de uma conferência proferida a convite da Liga dos Amigos do Hospital de Angra do Heroísmo Notas Ramiro Délio Borges de Menezes – O Desvalido no Caminho (Lc 10, 25-37). Dissertação de Mestrado em Ciências Religiosas. Porto, 2004 2 António Damásio - O Sentimento de Si. Publicações Europa-América. Lisboa, 2000. 3 George Weigel – Testemunho de Esperança. Bertrand Editora. Lisboa, 2000 4 Daniel Serrão – A “Questão Essencial “. Prefácio ao livro Prioridades na Saúde de Rui Nunes e Guilhermina Rego. MacGrawl Hill. Lisboa,2002. 1 17 18 Fábio Pereira Nutricionista, Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, IPATIMUP José Carlos Machado Biólogo, Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, IPATIMUP Maria Daniel Vaz de Almeida Nutricionista, Professora Catedrática da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto Nutrigenética e nutrigenómica: em direção à nutrição personalizada O sucesso obtido no Projecto do Genoma Humano, aliado a poderosas ferramentas de biologia molecular, está a impulsionar uma nova era na medicina e na nutrição… 19 Introdução O Projecto do Genoma Humano (PGH), iniciado em 1990 como um esforço cooperativo internacional, tinha como objectivos a sequenciação completa de todo o genoma humano (cerca de 2.9 biliões de nucleótidos), a identificação dos genes e dos produtos por estes codificados, assim como a identificação da sua função, associação com patologias específicas e interacções com factores ambientais (1). ambiente (4). Apesar dos nutrientes influenciarem o desenvolvimento do ser humano e a evolução para determinados fenótipos, e como se sabe, este mecanismo diverge de indivíduo para indivíduo, o inverso deve também ser considerado. Isto é, o genótipo individual pode determinar a resposta a um determinado nutriente ou componente alimentar (3). Esta nova era emergente, a Nutrição Molecular, ou seja, as interacções gene-nutriente é, portanto, complexa e bi-direccional. O sucesso obtido no PGH, aliado a poderosas ferramentas de biologia molecular, está a impulsionar uma nova era na medicina e na nutrição, e a alterar de modo determinante a investigação nas ciências da saúde (2). Os segredos revelados pelo genoma estão a facilitar a criação de novas oportunidades de compreensão de como responde o ser humano aos estímulos provenientes do ambiente (3). Alguns dos dados obtidos, revelaram determinadas variações genéticas fundamentais na resposta metabólica inter-individual ao A genómica é um conceito amplo e vasto, que inclui o estudo dos genes, relativamente à sua estrutura, função, regulação e interacção com factores ambientais (5). Uma das primeiras definições, publicadas na literatura científica, para o termo nutrigenómica (ou “nutritional genomics”) foi proposta por DellaPenna em 1999 (6), mas muitas surgiram desde então (1, 2, 7, 8, 9, 10, 11), não fosse esta uma nova área de conhecimento científico (Tabela 1 – glossário de termos relacionados com genómica nutricional). 20 Assim, segundo Ordovas et al., a nutrigenómica considera “os estudos de interacção funcional dos alimentos e dos seus componentes com o genoma, ao nível molecular, celular e sistémico” (12). A finalidade da nutrigenómica é auxiliar a prevenção e o tratamento de doenças através da alimentação. A nutrigenética (ou “nutritional genetics”), considera os efeitos da variação genética individual na resposta aos nutrientes ou à alimentação, e oferece a promessa de uma “nutrição personalizada” para a constituição genética do indivíduo, baseada no conhecimento das variações do metabolismo dos nutrientes sobre os genes (2, 11, 12) (Figura 1). Mais recentemente, surgiu o conceito de metabolómica, ou seja, o estudo do metaboloma, que consiste no conjunto de metabolitos de uma célula ou de um organismo (13, 14). A expectativa subjacente à nutrigenómica e à nutrigenética é que será identificada e validada uma grande variedade de genes cuja expressão possa ser modificada por componentes alimentares - nutrientes ou não - a fim de serem incorporados em estratégias nutricionais que visem optimizar a saúde e prevenir a doença (2). Entre as várias doenças que poderão beneficiar com os avanços desta área, destacam-se a obesidade, o cancro, as doenças cardiovasculares, a osteoporose, a diabetes e várias outras doenças inflamatórias crónicas (15). É portanto baseado na concretização destas expectativas que surge o conceito de “nutrição inteligente”, ou seja, o conhecimento do estado nutricional, das necessidades nutricionais e do genótipo individual, que prometem revolucionar não só as Ciências da Nutrição, mas todas as áreas ligadas às ciências da saúde. Exemplo clássico O caso do ácido fólico é um dos exemplos mais bem estudados e descritos em genómica nutricional. Como se sabe, o ácido fólico, ou vitamina B9, é importante na prevenção dos defeitos do tubo neural e na regulação dos níveis séricos de homocisteína, sendo este último um factor de risco independente para a doença cardiovascular (16). De facto, a homocisteína plasmática está inversamente relacionada com as concentrações sanguíneas de ácido fólico. Uma vez que os folatos não são sintetizados pelos seres humanos, a alimentação assume um papel chave na concentração de folatos no organismo, e esta depende de interacções gene-nutriente (17). A enzima 5,10-metilenotetrahidrofolato reductase (MTHFR) é responsável pela A nutrigenética (ou “nutritional genetics”), considera os efeitos da variação genética individual na resposta aos nutrientes ou à alimentação, e oferece a promessa de uma “nutrição personalizada” para a constituição genética do indivíduo, baseada no conhecimento das variações do metabolismo dos nutrientes sobre os genes. 21 redução do 5-metilenotetrahidrofolato em 5-metiltetrahidrofolato (a forma circulante predominante do ácido fólico), que possibilita a remetilação da homocisteína em metionina (12). Um polimorfismo, relativamente comum, existente no nucleotídeo 677 do gene da MTHFR, caracterizado por uma substituição de uma citosina (C) por uma timina (T) (MTHFR 677CT), origina uma troca do aminoácido valina por uma alanina na cadeia proteica da enzima. Esta variante polimórfica da MTHFR é termolábil e mais instável, estando associada a uma menor actividade enzimática (1, 5, 12).Assim, os indivíduos homozigóticos para esta variante polimórfica (genótipo TT) apresentam níveis séricos mais elevados de homocisteína em comparação com os indivíduos com os restantes genótipos (CC e CT), uma vez que existe uma menor transformação da homocisteína em metionina. Esta situação torna-se especialmente crítica perante um défice acentuado de ácido fólico (1, 12). Ensaios clínicos controlados demonstraram que as diferentes variantes genotípicas são sensíveis à ingestão de ácido fólico no contexto da hiper-homocisteinémia, e que os indivíduos portadores do genótipo TT necessitam de maior aporte de folatos para atingirem nível séricos de homocisteína comparáveis aos indivíduos com genótipo CC e CT (17). O caso do ácido fólico e do polimorfismo da MTHFR coloca obviamente em causa as recomendações nutricionais generalizadas para a população, evidenciando a necessidade de um estudo individual para casos que, como este, são bastante comuns na população, e em que uma recomendação diferencial constitui um benefício evidente. Figura 1 - Esquema ilustrativo das interacções gene-nutriente como base da nutrição molecular. (adaptado de ref.2) Actualidade Quem pensa que a nutrigenómica está longe de se tornar realidade e desconhecida pela população, engana-se. A inclusão desta temática é já frequente em revistas e jornais mundialmente conhecidos como o The Guardian do Reino Unido (18) e a New York Times Magazine dos Estados Unidos da América (EUA) (19). As ideias são claras e apelativas: não mais será necessário ingerir suplementos vitamínicos que para nada servem mas somente aquelas vitaminas de que se necessita e, na quantidade exacta! A alimentação deve ser ajustada e à medida do perfil genético de cada indivíduo, para prevenir o aparecimento de doenças e promover a saúde. Enfim, a “dieta inteligente”! 22 Mas a revolução não fica por aqui.Apesar do Centre for Diseases Control (CDC) dos EUA ser de opinião contrária, já existe pelo menos uma empresa de biotecnologia dedicada a melhorar o estado de saúde humana utilizando as tecnologias moleculares mais recentes, combinando os conhecimentos sobre nutrição, patologia e genómica, para “prolongar a qualidade de vida”, através de uma “nutrição inteligente”. Esta empresa americana, fundada em Abril de 2002, possibilita já análises do perfil génico individual, assim como de polimorfismos e adequação de nutracêuticos e nutrientes (20). Os clientes pagam cerca de $1500 US para obter um “preventive health profile”. Segundo a opinião de alguns especialistas uma iniciativa discutível, mas aparentemente viável… Futuro Numa era onde a medicina é cada vez mais preventiva, espera-se que a terapia nutricional seja a pedra angular dos futuros cuidados de saúde, transformando-se numa importante ferramenta terapêutica para a maximização da saúde e minimização do risco de doença em indivíduos susceptíveis (1). Neste período de investigação pós-genómica, não há dúvidas que a nutrição será de interesse central à medida que os nutrientes e outros componentes alimentares se revelam factores importantes nas interacções gene-ambiente (21). Com o desenvolvimento da genómica nutricional, com a exportação de conhecimento do laboratório para o meio clínico, e à medida que a genética for integrada nos cuidados de saúde, a terapia nutricional será orientada de acordo com o genótipo de cada indivíduo. A Nutrição poderá ser, mais do que nunca, a chave para prevenir ou mitigar a expressão de doenças para as quais um indivíduo é susceptível (1, 15). Os profissionais de Nutrição deverão, portanto, possuir uma formação sólida em genética e estar familiarizados com o papel dos nutrientes e de outros constituintes alimentares na modulação da expressão génica assim como devem ser capazes de compreender a associação entre genes, doença e ambiente, a fim de desempenhar um papel proeminente na recomendação de terapia preventiva nutricional e de alteração dos estilos de vida (1, 21). O doente vai chegar à consulta de Nutrição “trazendo” o seu perfil genético. A balança vai pesar para o lado dos profissionais que tiverem aptidão para interpretar e associar determinado genótipo à susceptibilidade a determinada patologia, e serem capazes de seleccionar as estratégias terapêuticas mais eficazes na redução dessa susceptibilidade (1). O desenvolvimento de uma nova prática clínica vai permitir potenciar a maximização genética individual (15). A preparação para esta nova era da medicina genómica, incluirá não só a genética, mas também a biologia molecular, a bioquímica, o metabolismo (metabolómica) e outros campos da esfera das Ciências da Nutrição (Figura 2). A inclusão destas ciências na formação (graduação e pós-graduação) em Ciências da Nutrição será imprescindível! Os Nutricionistas têm agora uma oportunidade especial e única para redefinir o seu papel nos cuidados e no sistema de saúde. Neste contexto, o Nutricionista poderá assumir o papel de “nutrigenetic counselor”, para o que lhe será exigida uma nova formação e a correspondente responsabilidade (2). Os profissionais que reunirem as características descritas, serão certamente os mais procurados. Com o desenvolvimento da genómica nutricional, com a exportação de conhecimento do laboratório para o meio clínico, e à medida que a genética for integrada nos cuidados de saúde, a terapia nutricional será orientada de acordo com o genótipo de cada indivíduo. A Nutrição poderá ser, mais do que nunca, a chave para prevenir ou mitigar a expressão de doenças para as quais um indivíduo é susceptível. 23 Figura 2 - Representação esquemática dos passos envolvidos na expressão genica (centro), a modulação pela dieta (esquerda) e as técnicas moleculares utilizadas (direita). (adaptado de ref. 8) Bibliografia 24 1 – DeBusk RM. Introduction to nutritional genomics. In: Mahan LK, Escott-Stump S, editors. Krause´s Food, Nutrition & Diet Therapy. 11th ed. Philadelphia: Saunders; 2004. p.390-406. 2 – Gillies PJ. Nutrigenomics: the rubicon of molecular nutrition. J Am Diet Assoc 2003; 103(12 suppl 2):S50-S55. 3 - Paoloni-Giacobino A, Grimble R, Pichard C. Genetics and nutrition. Clin Nutr 2003; 22(5):429-435. 4 - NCMHD Center of Excellence for Nutritional Genomics. Nutrigenomics [homepage]. University of California at Davis; 2004 [citado em 2005 Mar 25]. Disponível em: 5 – Stover PJ. Nutritional genomics. Physiol Genomics 2004; 16:161-165. 6 – DellaPenna D. Nutritional Genomics: manipulating plant micronutrients to improve human health. Science 1999; 285:375-379. 7 – Chávez A, Muñoz de Chávez M. Nutrigenomics in public health nutrition: short-term perspectives. Eur J Clin Nutr 2003; 57(suppl 1):S97-S100. 8 – Elliot R, Ong TJ. Nutritional genomics. BMJ 2002; 324:1438-1442. 9 – van Ommen B. Nutrigenomics:exploiting systems biology in the nutrition and health arenas. Nutrition 2004; 20:4-8. 10 – Trayhurn P. Nutritional genomics – “Nutrigenomics”. Br J Nutr 2003; 89:1-2. 11 – Chadwick R. Nutrigenomics, individualism and public health. Proc Nutr Soc 2004; 63(1):161-166. Glossário Alelo – uma das cópias de um gene. Em organismos diplóides, como os humanos, cada indivíduo possui dois alelos para cada gene, excepto nos cromossomas X e Y em indivíduos do sexo masculino. ADN (ácido desoxirribonucleico) – material genético dos humanos e maior parte dos organismos vivos. Fenótipo – a expressão de um gene. Gene – segmento do ADN que normalmente contém a informação necessária para a produção de uma proteína ou ARN. Genoma – a totalidade da informação genética de um organismo ou célula. Genómica nutricional – o estudo das consequências da interacção entre nutrientes e componentes alimentares com o material genético; também denominada nutrigenómica. Genótipo – referente à constituição genética de um indivíduo. 12 – Ordovas JM, Corella D. Nutritional genomics. Annu Rev Genomics Hum Genet 2004; 5:71-118. 13 – Davis CD, Milner J. Frontiers in nutrigenomics, proteomics, metabolomics, and cancer prevention. Mut Res 2004; 551: 51-54. 14 – Corthésy-Theulaz JT, et al. Nutrigenomics : the impact of biomics technology on nutrition research. Ann Nutr Metab 2005; 49: 355-365. 15 – DeBusk RM, et al. Nutritional genomics in practice: where do we begin? J Am Diet Assoc 2005; 105 (4): 589598. 16 - Carke R, Daly L, Robinson K, et al. Hyperhomocysteinemia: an independent risk factor for cardiovascular disease. N Eng J Med 1991; 324(17):11491155. 17 – Ashfield-Watt P, Pullin CH, Whiting JM, et al. Methy lenetetrahydrofolate reductase 677CT genotype modulates homocysteine responses to a folate-rich diet or a low-dose folic acid supplement: a randomized controlled trial. Am J Clin Nutr 2002; 76:180–6. 18 – Grierson B. What your genes want you to eat. NY Times Magazine. 2003 Maio 4. 19 – Grierson B. Eat right for your genotype.The Guardian. 2003 Maio 15. 20 - Nutragenomics [homepage]. Chicago: Nutragenomics Inc; 2002 [citado em 2005 Mar 25]. Disponível em: 21 – Daniel H. Genomics and proteomics: importance for the future of nutrition research. Br J Nutr 2002; 87(suppl 2): S305-S311. Locus/Loci – representação abstracta de um gene ou marcador num cromossoma. Mutação – uma alteração da sequência de nucleótidos no ADN. Nucleotídeo – unidade que constitui o ADN e o ARN. Normalmente referida pelas letras ATCG para ADN e AUCG para ARN. Polimorfismo – variante de um gene que ocorre na população numa frequência superior a 1%. Promotor – sequência de nucleotídeos no ADN à qual a ARN polimerase se liga para iniciar a transcrição. Proteómica – estudo da estrutura e função das proteínas que podem ser expressas num organismo. SNP (single nucleotide polymorphism) – forma mais comum de variabilidade genética no genoma humano, correspondendo a uma única substituição de um nucleotídeo na sequência de ADN. Tabela 1 Alexandre Castro-Caldas Alexandre Castro-Caldas é neurologista, director do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, e dedicou parte da sua vida a estudos sobre o cérebro As janelas do conhecimento Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. É muito importante, para criar ligações dentro do cérebro, para desenvolver determinadas estruturas, que as pessoas aprendam a leitura e tudo o que está relacionado com ela. Alexandre Castro Caldas Grande prémio Bial de Medicina 2002 28 «Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. As crianças, ao desenvolverem o cérebro, têm janelas de oportunidade para aprenderem. Se a informação não é dada na altura própria, a janela fecha-se e a oportunidade passa». Assim, apesar das controvérsias, as crianças devem ter estímulos a partir dos 3 anos. Apesar do saber ocupar lugar, o cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço possível, tudo para não consumir energia. O treino mental, desde criança, ajuda nessa organização. E quanto mais matrizes para resolver os mesmos problemas, melhor. «O cérebro selecciona sempre o que é mais económico e rápido para processar informação». O Cérebro Analfabeto – A influência do conhecimento das regras de leitura e da escrita na função cerebral, Grande Prémio Bial de Medicina 2002, é um estudo sobre o cérebro. Pode-mo explicar? É o estudo sobre o cérebro das pessoas que não foram à escola e as implicações que cria essa falta. É a expressão das alterações biológicas que a aprendizagem provoca. Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. É muito importante, para criar ligações dentro do cérebro, para desenvolver determinadas estruturas, que as pessoas aprendam a leitura e tudo o que está relacionado com ela. No fundo, é um modelo para estudar no humano a influência do meio sobre a evolução cerebral. Isso permitiu publicar muitos trabalhos, bem aceites internacionalmente, e permitiu entrar na segunda fase do estudo: estudar pessoas que, sendo analfabetas a vida toda, resolveram apreender a ler em adultos. Se os analfabetos tinham problemas de organização cerebral, relacionados com a incapacidade de ler, como é que eles podiam depois aprender? Tem-se verificado que eles aprendem com áreas e regiões do cérebro diferentes daqueles com que aprenderiam se fossem pequenos. Os jovens usam um suporte de informação diferente dos adultos. Significa que uma criança utiliza uma parte do cérebro quando começa a estudar. Se alguém nunca estudou e quer aprender utilizará uma parte diferente? Exactamente. Um analfabeto está menos preparado para a vida em sociedade, para a realidade? Há uma falha importante, embora haja pessoas fantásticas, de uma inteligência brilhante, e que chegam a desenvolver os próprios métodos de registo de informação escrita. Reunimos algumas agendas e documentos de pessoas analfabetas onde vemos o desenvolvimento de métodos específicos que inventaram perante a dificuldade. Não aprendeu, inventa. 29 30 E como inventa? É a parte interessante. Temos uma certa capacidade de inventar e os analfabetos são capazes, perante a enorme necessidade de registar informação, de criar mecanismos próprios para o fazer. Inventaram processos de a registar que não são exactamente iguais ao da escola que são normalizados. Isso abriu a perspectiva sobre a criatividade, perceber se os analfabetos são mais criativos, um estudo que está a ser desenvolvido. Ainda não temos respostas. Em termos práticos, o analfabetismo implica o quê? Demoram mais tempo a resolver um problema, têm mais dificuldade na compreensão da linguagem. O último censo mostrava 11% de analfabetismo na população em geral. É imenso. Se pegar na população acima dos 50 anos corresponde, talvez, a 30%. Sabe-se o que é preciso fazer para uma criança se desenvolver? Neste momento discute-se com alguma intensidade o que é estimular crianças, o que é que as neurociências modernas trouxeram sobre o conhecimento do cérebro para saber o que é preciso fazer a uma criança para ela se desenvolver. De facto, estamos com um atraso grande nesse domínio. Existem publicações de ligação da pedagogia com as neurociências, uma área fundamental a desenvolver, e era importante que houvesse uma reflexão em Portugal, não para que as coisas sejam absorvidas como verdade, mas para que as pessoas sejam sensíveis a essa variável. É preciso que as pessoas que lidam com crianças tenham a perspectiva do que é a biologia e a plasticidade do sistema nervoso como órgão de adaptação à informação, para saberem trabalhar com isso, identificar e lidar com os problemas que surgem. A perspectiva psicológica utilizada em Portugal está antiquada nas suas referências bibliográficas. É pouco, temos de ter uma perspectiva mais neurobiológica, mas sem perder as outras. Existe em países da Europa essa preocupação? Saíram normas em Inglaterra no final dos anos 90 que defendem que os estímulos para o ensino se devem começar a fazer entre os 3 e os 6 anos de idade. Houve pessoas que protestaram, que dizem que nessa altura não há nada a estimular, outras disseram que é tarde demais para se começar. Há aqui uma discussão que está em cima da mesa e que é preciso fazer. As pessoas têm de começar a investir a partir dos 3 anos de vida, pois esse é o período mais rico de aquisições. Há momentos próprios para aprender? As crianças ao desenvolverem o cérebro têm janelas de oportunidade para aprender. Se não fornecemos a informação na altura própria, altura que a criança está mais apta para receber determinado tipo de informação, a janela fecha-se e passou a oportunidade. Quando quiser aprender já não vai aprender da mesma forma nem com a mesma facili- dade. O mesmo aconteceu com as pessoas que não foram à escola, fechou-se a janela. Conseguiram aprender mais tarde, mas com muita dificuldade e usaram outras regiões do cérebro, não foram as que a biologia tinha predisposto para isso. Pode-me dar um exemplo? A ligação da escrita e da leitura num adulto que aprende a ler é completamente diferente a ser quase como uma cópia de uma evocação da leitura, o que é extremamente difícil. Têm que evocar visualmente as palavras escritas e depois copiar a imagem interior. Os miúdos não fazem isso, têm uma imagem táctil da escrita e acabam por escrever sem pensar como se desenha um a, não têm de pensar nisso, o a está na mão deles, está no automatismo motor. Isso não acontece nas pessoas adultas analfabetas. Não conseguem desenvolver isso, por isso Temos uma certa capacidade de inventar e os analfabetos são capazes, perante a enorme necessidade de requisitar informação, de criar mecanismos próprios para registar de qualquer forma essa informação. da de uma criança. Ler e escrever são duas aptidões completamente distintas em termos neurobiológicos. Associamo-las porque as aprendemos ao mesmo tempo e fazemos essas associações. Mas quando as áreas envolvidas deixam de ser as habituais e passam a ser outras, o fenómeno torna-se completamente distinto um do outro, o que é fascinante como compreensão dos núcleos cerebrais. É muito difícil para um adulto analfabeto aprender a escrever. Ler ainda consegue. O escrever passa as letras são sempre muito elaboradas, muito imperfeitas. Podemos dizer que desde o momento que nascemos vamos tendo as janelas que vão abrindo para determinadas funções. Depois de se fecharem, a aprendizagem de determinadas funções torna-se árdua, mesmo impossível? De certa maneira, mas não devemos ser 31 32 construtivistas no sentido de que sejam necessárias as etapas todas. Evidentemente que se a criança não aprendeu numa determinada fase a matemática, que é um belíssimo exemplo, criou-se um problema à volta da matemática que não devia existir. No fundo, a matemática utiliza processos intuitivos de pensamento que as crianças têm. Essas operações que estão no cérebro, como operações básicas intuitivas, têm de ser trazidas para um nível consciente, de elaboração ancorada no sistema de representação que as crianças aprendem.As crianças têm de aprender o sistema de representação dos algarismos, da simbologia própria, e depois encaixar nesse sistema de representação aquilo que é o pensamento matemático intuitivo. A partir daí, o pensamento matemático vai sendo elaborado, vai aumentando. Essa passagem, essa colagem, tem tempos, tem de ser feita nas alturas próprias. É fundamental treinar a memória das crianças, coisa que as pessoas começaram a achar que não era necessário. O aprender a tabuada de cor não implica que não perceba a tabuada, pode aprender e perceber, é o desejável, mas é preciso que a decore também. Se tivermos alguns elementos decorados, o pensamento é muito mais rápido, não temos de ir buscar coisas mais complicadas, porque isso atrasa o raciocínio, modifica-o. É importante treinar a memória. Quanto mais estímulos, maior flexibilidade cerebral? Decorar os afluentes dos rios, por exemplo. As pessoas dizem agora que não é preciso para nada. Vai a um atlas, está lá tudo. É verdade. Mas se os decorar, o que não custa nada, com essa matriz, se resolver ser médico, torna-se mais simples e rápido decorar os ramos das artérias, é parecido e tenho lá a matriz. O saber não ocupa lugar? Ocupar ocupa, mas é capaz de criar metasistemas de arquivo que a criança organiza no cérebro. Posso aprender muita coisa e ser capaz de a organizar facilmente, tenho um organizador. Se tiver muita informação para lidar, organizo-a em áreas. Condenso a informação e, depois, pode ser puxada por uma pontinha e vem tudo.A preocupação biológica do cérebro, o seu grande objectivo, é não consumir muita energia, não se gastar muito. Quanto menos células nervosas estiverem a trabalhar melhor. O cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço e da forma mais racional possível. As pessoas treinadas desde crianças colocam a informação em lugares próprios, quem não tem treino nenhum tem de decorar uma informação imensa. Um analfabeto que não conhece os dígitos para decorar o número 9 tem de decorar o 9 no sentido de quantidade, 9 coisas, 9 árvores, 9 pauzinhos, e guarda isso dessa maneira, ocupa mais espaço do que decorar o símbolo 9. Não preciso da quantidade para guardar a informação, abro a janela do 9, tenho a posição sequencial do 9, vários valores, os que quiser, para o 9. O símbolo representa na quantidade determinada coisa, na sequência outra coisa. Isso é uma compactação da informação que traz enormes vantagens para o funcionamento do cérebro, a escola ajuda as pessoas a fazerem isso. As crianças ao desenvolverem o cérebro têm janelas de oportunidade para aprender. Se não fornecemos a informação na altura própria, altura que a criança está mais apta para receber determinado tipo de informação, a janela fecha-se e passou a oportunidade. A preocupação biológica do cérebro, o seu grande objectivo, é não consumir muita energia, não se gastar muito. Quanto menos células nervosas estiverem a trabalhar melhor. O cérebro tem sempre forma de arquivar informação no menor espaço e da forma mais racional possível. Quanto mais estímulos na escola, mais facilidade temos de aceder à informação? Mais facilidade temos de lidar com a informação. Se aprender várias regras para fazer as mesmas operações ainda melhor, porque tem processamentos paralelos de informações e o cérebro selecciona sempre o que é mais económico e é muito rápido a processar informação. Disse-me que o cérebro gasta muita energia a trabalhar? Gasta porque não tem reservas nenhumas, as células nervosas precisam de glucose e o oxigénio. O estudo disse que continuava, vai ter um caminho, que é qual? Que é sobre pessoas que aprenderam mais tarde. Tenho mais alguns estudos que novamente estou a fazer com analfabetos, coisas que ficaram para trás e que gostávamos de estudar. Uma pessoa que anda na escola até à quarta classe, depois não estuda mais, esse tempo ajuda? Apesar de tudo, as pessoas que andaram na escola e depois nunca mais pensaram em ler nem estudar nem fazer coisa nenhuma, têm soluções biológicas para as coisas, não são iguais às pessoas que nunca foram à escola. Se foram infectadas pelo vírus do conhecimento ficam com o vírus. A escola tem um efeito geral sobre o cérebro, quem tem mais estímulos tem um maior desenvolvimento celular. A escola só por si é um estímulo rico.As crianças interagem entre elas, surgem novas questões, só por si enriquece. Depois, aprendem-se coisas específicas. Se nunca for à escola não aprendo que o a é aquele boneco que corresponde ao som a, nem fico a saber que posso partir as palavras aos bocadinhos. Quem não vai à escola não sabe tirar o p de sapato, não faz as operações mentais de segmentação de linguagem para ter consciência da linguagem, do que está a dizer. 33 Para além destes estudos, sei também que tem outras áreas de interesse. Porquê a doença de Parkinson? É uma das primeiras doenças neurológicas, a seguir à epilepsia, uma doença degenerativa que foi possível começar a tratar. 34 Se foram infectadas pelo vírus do conhecimento ficam com o vírus. A escola tem um efeito geral sobre o cérebro, quem tem mais estímulos tem um maior desenvolvimento celular. A escola só por si é um estímulo rico. As crianças interagem entre elas, surgem novas questões, só por si enriquece. A doença de Parkinson é o quê? É uma doença degenerativa. Determinadas regiões do cérebro começam a perder células, determinadas células nervosas começam a desaparecer, entram num processo de morte celular programada. É um processo curioso, pois a morte celular não acontece toda ao mesmo tempo, mas são só um determinado tipo de células nalgumas regiões específicas. É um processo estranho, ninguém sabe porquê, embora se perceba que há apetência de algumas substâncias para essas células, mas não se sabe inteiramente qual é o mecanismo geral. Há alguma identificação de relação com os genes, é possível que factores genéticos estejam envolvidos.A genética cria uma fragilidade e o ambiente faz o resto, é possível que seja uma combinação de funções de sistemas destes que levam à doença. É uma doença que começa, em média, pelos 50/55 anos, podendo começar em jovens. Há formas juvenis, que são geralmente diferentes, e há formas mais tardias que surgem pelos 90 anos. À medida que a pessoa se vai tornando mais idosa a probabilidade de ter a doença é maior. Mais nos homens ou mulheres? É igual, não há diferença. Quem estudou está menos apto para a doença, quem não estudou está mais apto a ter Parkinson? Não. Isso tem-se discutido em relação à doença de Alzheimer. Aí há uma relação interessante entre as pessoas com mais estudos e as pessoas com menos. Nas pessoas com menos, a doença torna-se evidente com mais facilidade e mais cedo; nas outras acontece o inverso. No Parkinson isso não acontece. O ter estudado, utilizar o cérebro, pensar, atrasa a manifestação da doença de Alzheimer? Não atrasa ter a doença. Mas se tiver a doença as manifestações não são tão evidentes. A doença de Alzheimer começa pelos 60/65 anos e a partir dos 60 duplica a prevalência. Se isto fosse matemática pura, aos 120 anos 100% da população teria a doença. Mas não acontece isso. Mas, de facto, com a inversão da pirâmide etária da população, vamos ter cada vez mais pessoas com problemas destes de envelhecimento e a sociedade tem de criar sistemas de suporte. O que é preciso? Ter noção de que as pessoas quando chegam aos 65 anos não se vão sentar no banco do jardim. Têm de ter papel activo na sociedade, um outro papel, a sociedade tem de descobrir de que forma as pessoas podem ser úteis. E podem-no ser de imensas maneiras, nos próprios grupos etários, sistemas de convívio diferentes. Não as enfatizar, não são meninos, são adultos, têm experiência de vida, tem de se estimular isso. Uma das prioridades da Europa no envelhecimento é a preocupação com o envelhecer bem, deve ser invertido este sentido depreciativo de estar a ficar velho. Temos de ver como posso tirar partido de estar velho. A velhice pode ser uma boa fase da vida. Nuno Penacho 36 Licenciatura em Bioquímica pela Universidade de Coimbra. Estudante de doutoramento em tecnologia bioquímica. Departamento de Terapia Génica do Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra. Universidade de Coimbra O princípio básico subjacente à Terapia Génica consiste simplesmente em fazer chegar material genético às células para que o produto da sua expressão possa curar ou retardar a progressão da doença. E hoje a Terapia Génica pode incluir outro tipo de estratégias que vão além da simples substituição do gene defeituoso. No entanto, o conceito de Terapia Génica, que aparentemente se revela maliciosamente simples, encerra alguns problemas que são precisos ultrapassar de modo a que este tipo de terapia venha a ter sucesso. O conhecimento acerca dos genes e do seu modo de funcionamento tem aumentado de forma quase exponencial nos últimos tempos, especialmente desde que a totalidade do genoma humano foi desvendado quase completamente há uns anos atrás. A par com este conhecimento veio o facto de algumas doenças serem devidas precisamente a malformações genéticas, ou seja, serem consequência directa de mutações genéticas que dão origem a proteínas cuja função se encontra comprometida.Exemplos são doenças como a fibrose quística, a imunodeficiência combinada severa (SCID), etc. A partir do momento em que se tomou conhecimento de que algumas doenças têm origem genética, facilmente a ideia de um tratamento cujo alvo é o próprio gene mutado emergiu. Assim surge o conceito de terapia génica (TG), a próxima revolução da medicina moderna. O princípio básico subjacente à TG consiste simplesmente em fazer chegar material genético às células para que o produto da sua expressão possa curar ou retardar a progressão da doença. No entanto, para tal é necessário fazer chegar o gene até às células, surgindo assim o conceito de transfecção, processo de entrega e expressão de material genético com sucesso. A função da administração do gene correcto é a de compensar o gene defeituoso que a célula contém, para deste modo se conseguir recuperar a função celular, eliminando o foco de doença. O tratamento da doença é feito ao nível celular eliminando o foco de doença, enquanto a maior parte dos fármacos curam simplesmente os sintomas. No entanto, ao longo dos últimos tempos tem-se vindo a verificar um alargamento do conceito de TG. Hoje a TG pode incluir outro tipo de estratégias que vão além da simples substituição Um medicamento chamado gene Terapia Génica 37 do gene defeituoso. O gene transfectado pode não ser necessariamente para substituir outro malformado, mas o seu emprego ser terapêutico ou a administração exógena do produto da sua expressão ser difícil. 38 Deste modo é fácil de concluir que as possibilidades que se abrem para a aplicação da TG são inúmeras. Podemos realçar o tratamento de doenças hereditárias, doenças neurodegenerativas, cancro, doenças cardiovasculares, sida, etc. No entanto, o conceito de TG, que aparentemente se revela maliciosamente simples, encerra alguns problemas que são precisos ultrapassar de modo a que este tipo de terapia venha a ter sucesso. As próximas linhas irão abordar a questão do vector, ou seja, o veículo que leva o gene até à população celular alvo. Para que se possa fazer expressar ADN exógeno numa população celular é necessário fazer com que este chegue ao seu destino, como já foi referido, já que regra geral poucas células recebem e expressam ADN exógeno. Assim é necessário criar veículos que transportem, protejam e direccionem o ADN até à sua chegada à população celular alvo. Estes veículos são denominados vectores. Ao longo do tempo foram surgindo vários tipos de vectores que se encaixam em duas grandes famílias. Os vectores virais e os vectores nãovirais. Como é claro, dentro de cada tipo de vector viral encontra-se uma grande variedade de estratégias, o mesmo se aplicando aos vectores não virais. Também óbvia é a existência de vantagens e desvantagens de parte a parte. Na figura 1 poderemos encontrar a distribuição de protocolos por cada tipo de vector em ensaios clínicos realizados nos anos mais recentes. Fig.1 – Distribuição do tipo de vectores utilizados em ensaios clínicos (figura retirada do sítio: www.wiley. co.uk/genmed/clincal) Vectores Como se pode imaginar, os vírus são extremamente eficientes na entrega de material genético às células. Estas pequenas partículas possuem, como objectivo único da sua existência, a entrega do seu material genético às células e promovem a sua própria replicação de modo a iniciar um novo ciclo. Deste modo os vírus assumem-se como os melhores candidatos para promover a entrega de genes à célula. Quase todas as classes de vírus têm sido experimentadas para testar a sua eficácia para mediar transfecção (que neste caso é denominado de infecção). Em todos os vírus podemos encontrar uma componente genética que é essencial para a sua propagação. Os vectores virais são derivados de vírus por substituição dessa componente genética por genes terapêuticos. Um esquema representativo do processo de produção de vectores virais pode ser encontrado na figura 2. No entanto, essa manipulação é morosa e dispendiosa e nunca completamente segura, pois encontra-se sempre presente o risco de produzir partículas virais que venham a conter genes virais potencialmente patogénicos. Para que se possa fazer expressar ADN exógeno numa população celular é necessário fazer com que este chegue ao seu destino, como já foi referido, já que regra geral poucas células recebem e expressam ADN exógeno. Assim é necessário criar veículos que transportem, protejam e direccionem o ADN até à sua chegada à população celular alvo. Estes veículos são denominados vectores. Ao longo do tempo foram surgindo vários tipos de vectores que se encaixam em duas grandes famílias. Os vectores virais e os vectores não-virais. 39 Como se pode imaginar, os vírus são extremamente eficientes na entrega de material genético às células. Estas pequenas partículas possuem, como objectivo único da sua existência, a entrega do seu material genético às células e promovem a sua própria replicação de modo a iniciar um novo ciclo. 40 Vectores virais Os vectores virais podem ser divididos em duas categorias gerais – os que integram o seu material genético no genoma hospedeiro (integrantes) e aqueles que o não fazem (não integrantes). São dois os tipos de vectores virais que possuem a capacidade de integrar o seu material genético no ADN genómico das células recipientes (retrovírus, lentivírus), os vírus adeno-associados que se mantém como epissoma sendo por vezes o material genético integrado, mas não se sabe ainda de forma clara como se processa. No entanto, os vectores baseados em retrovírus apresentam algumas desvantagens como são a sua incapacidade para transfectar células que não estejam em processo de divisão, deixando de parte uma grande quantidade de células do organismo, como são exemplos: cérebro, pulmões e pâncreas, que não se dividem com tanta frequência ou que não se dividem de todo. Também a sua capacidade de transporte de material genético se limita a 8 kb e apresenta uma baixa eficiência na mediação de transfecção in vivo por serem rapidamente inactivados pelo sistema imunitário. Protocolos baseados em retrovírus continuam a ser os mais utilizados para transfectar células em processo de divisão, por exemplo células tumorais. Os lentivírus constituem outra forma de abordagem para o transporte de material genético. O vírus mais conhecido desta família é o vírus da imunodeficiência humana (VIH), que faz parte da família dos retrovírus, mas que possui a capacidade invulgar de transfectar células que não estejam em fase de divisão. Foram experimentados com grande precaução pelo risco de poderem sofrer recombinação e gerar uma infecção idêntica à que o vírus VIH nativo provocaria. Para minimizar este risco, muitos investigadores foram eliminando os genes acessórios deste vírus de modo a manter a sua capacidade de transfectar células que não estejam em processo de divisão. Assim, produziu-se um vector a partir de lentivírus que retém menos de 25% do genoma nativo durante a fase de construção e que apresenta menos de 5% na fase final de vector. No entanto, tal como outros vírus integrantes, este tipo de vector viral apresenta a desvantagem de integração não específica no genoma da célula hospedeira o que poderá levar à activação de oncogenes (genes cuja expressão descontrolada se encontra associada ao surgimento de neoplasias), uma capacidade limitada de transporte de material genético e activação do sistema imunitário. Durante os últimos anos tem-se tentado perceber de que modo este tipo de vírus levam a cabo a integração no genoma hospedeiro e de como poderão activar oncogenes, no entanto encontramo-nos ainda sem respostas esclarecedoras, sabendo-se somente que os vírus preferem integrar em áreas do genoma sujeitas a altas taxas de transcrição. Num dos ensaios clínicos utilizando este tipo de vectores em pacientes humanos, apesar de um grande sucesso na cura da doença em questão, resultou no desenvolvimento de leucemias nalguns dos pacientes tratados. Desta forma o uso deste tipo de vectores encontra-se ainda muito condicionado. Outro tipo de vírus utilizado são os vírus adeno-associados (VAA), são não patogénicos e possuem ADN de cadeia única que poderá constituir uma boa alternativa como veículo de entrega genética. Este tipo de vírus para se replicar necessita da presença de adenovírus (daqui a proveniência do nome de VAA) ou herpes vírus, que lhe fornecem a maquinaria proteica em falta para se poderem replicar. As maiores desvantagens que este vector apresenta são a grande dificuldade de manufactura e a sua capacidade de transporte de material genético que se resume a 4,4 kb, além de pouca experiência clínica ter sido realizada com este tipo de vector. Além do mais existe sempre o problema de que no final exista contaminação com os adenovírus necessários para a sua produção, que além de serem imunogénicos poderão ser patogénicos. Por fim temos ainda os adenovírus. Este tipo de vírus constitui a família de vírus tumorais que transportam ADN causando infecções benignas no tracto respiratório em humanos. O seu genoma é composto por mais de uma dúzia de genes, sendo a transfecção caracterizada pela manutenção do ADN epissomal no núcleo das células. Além disto, este é o vector viral de mais fácil produção para o uso comercial. O desafio com este tipo de vector é a manutenção da expressão do transgene, que normalmente é mantida durante um período de tempo entre 5 a 20 dias após a infecção. Reconhece-se que a curta duração da expressão do transgene está directamente relacionada com a resposta imunitária desencadeada. Apesar do referido, os vectores baseados em adenovírus são dos mais estudados em ensaios clínicos, talvez por possuírem uma elevada capacidade de transfecção quer in vivo, quer ex vivo. Correntemente são os sistemas virais aqueles que demonstram a maior capacidade de entrega genética (eficiência normalmente superior a 90%), devido ao envolvimento das suas estruturas altamente especializadas para o efeito. Devido a este facto não será de estranhar, que cerca de 70% dos protocolos clínicos recentes envolvendo TG, usem vectores baseados em vírus recombinantes para a entrega de ADN (Figura 1). A ineficácia da metodologia correntemente usada é atribuída às limitações da entrega genética mediada pelos vectores virais, que incluem toxicidade, restrição do endereçamento para certos tipos de células, capacidade limitada de transporte de material genético, produção e armazenamento, recombinação e altos custos. Além do mais, a elevada toxicidade e imunogenicidade produzida pelos sistemas virais dificultam o uso rotineiro desses sistemas. Fig. 2 – A produção de vectores virais é feita nas chamadas células produtoras, onde os genes responsáveis pela proliferação viral são substituídos por um gene terapêutico (figura retirada do sítio: http://www.uq.edu. au/vdu/) 41 42 Vectores não-virais Tradicionalmente os métodos de entrega genética por vectores não virais podem ser classificados nas seguintes categorias: físicos ou mecânicos e químicos. Contudo existem outros métodos que não se encaixam bem nesta classificação, como é a utilização de ADN livre. do ADN administrado (em células epidermais ou musculares) é o bastante para desencadear uma resposta imunitária primária. No entanto, devido à dificuldade de controlar a via de entrada do ADN, este procedimento é aplicado maioritariamente em células aderentes em cultura, não sendo ainda usado de um modo sistemático. Dos métodos físicos, aquele que se afigura com uma concepção mais simples e mais apelativa para a transfecção é a injecção de ADN livre directamente no núcleo celular através de micro-injecção. No entanto, a maior e derradeira desvantagem deste método consiste na morosidade da micro-injecção que só pode atingir uma célula de cada vez, o que implica um trabalho laborioso que não se torna praticável para a entrega de ADN in vivo. A electroporação é outro método físico usado para a entrega de ADN. Este método é baseado na aplicação de impulsos eléctricos para permeabilizar a membrana celular de um modo transiente, o que permite a incorporação de macromoléculas nas células como a molécula de ADN. Este método foi usado pela primeira vez em 1982 para a entrega de ADN em células de mamífero. A incorporação intramuscular de ADN feita por este método resulta em níveis de expressão do gene várias vezes acima daqueles conseguidos com simples injecção intramuscular e cuja expressão pode ir até 9 meses. Comparada com outros métodos de entrega genética, a electroporação é mais simples, segura e económica. No entanto, a sua aplicação in vivo é difícil, embora algum progresso tenha sido já feito em vários tecidos: pele, endotélio da córnea e músculo. Neste contexto salientamse alguns resultados obtidos no tratamento de pacientes com melanoma, nalguns casos com regressão completa dos tumores tratados. Apesar das contrariedades, várias técnicas têm sido apresentadas com o mesmo objectivo sem que seja necessária a aplicação da microinjecção. Uma das mais avançadas, designada por gene gun, utiliza um fluxo de alta pressão de hélio para introduzir no citoplasma partículas de ouro envolvidas por ADN. Um procedimento semelhante chamado Intraject ou Jetgun, usa líquido sob alta pressão para a entrega genética nos espaços intersticiais. O bombardeamento com partículas, também designado como entrega balística de partículas, pode introduzir ADN em muitas células simultaneamente. Nesta técnica, partículas revestidas com ADN (compostas por metais como ouro ou tungsténio) são aceleradas a alta velocidade para penetrar as membranas celulares. Este tipo de procedimento é aplicado em vacinação de ADN, onde uma expressão local Os métodos de entrega genética químicos operam fundamentalmente em três níveis: Condensação e complexação de ADN, endocitose, após entrada nas células e endereçamento/entrada para o núcleo. As moléculas carregadas negativamente de ADN são normalmente condensadas e/ou complexadas com reagentes catiónicos antes da entrega genética. Esses complexos são tomados pelas células, usualmente por endocitose, o que implica um passo subsequente de libertação do endossoma e tráfego do ADN até ao núcleo. Dos métodos químicos mais usados in vitro para a entrega de ADN em células ou mesmo bactérias, salienta-se a precipitação do ADN com Ca3(PO4)2 (fosfato de cálcio). No entanto, devido à formação dos precipitados, este sistema não é efectivo para ser utilizado in vivo. O princípio geral dos métodos químicos mais utilizados é baseado na formação de um complexo entre as cargas positivas existentes geralmente em polímeros ou lípidos catiónicos e as cargas negativas dos grupos fosfato do ADN. Os protocolos utilizados para a transfecção in vitro incluem a utilização de Como conclusão, não se poderá aclamar este ou aquele vector como melhor ou o mais promissor. No entanto, para cada tipo de vector haverá certamente um nicho onde a sua utilização se adequará melhor, ou seja, desenvolver-se-ão vectores específicos para a entrega de material genético para determinados locais e/ou patologias. Fig. 3 – Da interacção das cargas negativas do ADN com as cargas positivas do lipossoma catiónivco produzem-se partículas que são internalizadas pelas células através de endocitose. Após a entrada na célula o ADN terá que escapar do endossoma para ganhar acesso ao núcleo onde será expresso, caso contrário acabará por ser degradado no lisossoma (figura retirada do sítio: http://www. expertreviews.org/) 43 44 polielectrólitos. De entre os polielectrólitos utilizados incluem-se os seguintes compostos: o dextrano-DEAE, poli-lisina, polietilenimina (PEI) e dendrímeros. Todos eles apresentam a capacidade para condensar ADN por interacção electrostática entre os seus grupos carregados positivamente com as cargas negativas dos grupos fosfato das cadeias de ADN. Em geral, a complexação de ADN em forma de plasmídeo com polímeros catiónicos com uma elevada densidade de carga positiva resulta na formação de partículas com tamanhos reduzidos, o que poderá influenciar a eficiência da transfecção. Além do mais, pensa-se que o aumento na transfecção mediada por PEI está de alguma forma relacionado com a capacidade que este polímero catiónico possui em se comportar como uma esponja protónica em condições acídicas, o que poderá contribuir para a fuga do plasmídeo transportado do endossoma (que se vai tornando acídico à medida que vai maturando) até ao núcleo onde será expresso. polímeros catiónicos altamente ramificados. Os dendrímeros de PAMAM apresentam na sua superfície aminas primárias que têm a capacidade de associar, condensar e transportar ADN para uma grande variedade de tipos celulares, incluindo culturas primárias, sem que com isso induzam citotoxicidade significativa in vitro. A grande vantagem demonstrada por este sistema é a facilidade de produção e a versatilidade apresentada na sua manufactura, podendo-se produzir polímeros desta natureza com vários tamanhos e densidades de carga superficial, o que simplifica o processo de transfecção. Além do mais, o efeito esponja referido para a PEI também é característico deste polímero. Outra classe de polímeros catiónicos que estão a ser implementados como sistema de entrega genética são os dendrímeros de poliamidoamina (PAMAM), compostos por De todos os vectores não virais (tirando a administração de ADN nú), o mais utilizado envolve a condensação do ADN com lipossomas catiónicos (Figura 1). A ideia da utilização de lípido catiónico como suporte para entrega genética remonta a meados dos anos 80. Em 1986, Behr demonstra a capacidade que lipossomas catiónicos apresentam para a complexação e condensação de ADN; no ano seguinte Felgner e colaboradores (1987) propõem o uso de lipossomas catiónicos Glossário: Epissoma – Que se mantem no núcleo sem se integrar no genoma do hospedeiro. Web Sítios das associações europeia e americana de terapia génica: Transgene – É o gene transportado e entregue pelo vector DOTMA – (Cloreto de N-[1-(2,3dioleoil)propil] trimetilamónio) DOTAP – (1,2-dioleoil-3-propanoato de trimetilamónio) DC-Chol – (Colesterol 3 β-[N-(N’,N’dimetilamonioetano)carbamato]) Plasmídeo – Moléculas circulares duplas de DNA www.esgt.org www.asgt.org Bibliografia Vectores virais Verma, I. M. and N. Somia (1997). “Gene therapy -- promises, problems and prospects.” Nature 389(6648): 239-42. Snyder, R. O. and J. Francis (2005).“Adenoassociated viral vectors for clinical gene transfer studies.” Curr Gene Ther 5(3): 311-21. como transportadores eficientes para a entrega intracelular de material genético. O princípio utilizado é o mesmo para os polímeros catiónicos: os lipossomas catiónicos interagem de uma forma electrostática com os grupos fosfato do esqueleto do ADN carregados negativamente levando à formação do lipoplexo. Desta interacção resulta a condensação do ADN e, dependendo da quantidade de lípido relativamente à quantidade de ADN, protecção à degradação pelas DNases. Um esquema representativo deste processo pode ser visualizado na figura 3. Lípidos carregados positivamente, com excepção da esfingosina e alguns lípidos em formas de vida primitiva, praticamente não existem na natureza.Antes da explosão da síntese de novos lípidos catiónicos no princípio dos anos 90, detergentes catiónicos eram utilizados para a produção de lipossomas com carga positiva. O primeiro lípido catiónico a ser utilizado em transfecção foi o DOTMA por Felgner e colaboradores (1987). Posteriormente o DOTMA deu lugar ao DOTAP. O DOTAP apenas difere do DOTMA no facto das suas Gardlik, R., R. Palffy, et al. (2005). “Vectors and delivery systems in gene therapy.” Med Sci Monit 11(4): RA110-21. Vectores não-virais Mountain,A. (2000).“Gene therapy: the first decade.”Trends Biotechnol 18(3): 119-28. Audouy, S. and D. Hoekstra (2001).“Cationic lipid-mediated transfection in vitro and in vivo (review).” Mol Membr Biol 18(2): 129-43. Pedroso de Lima, M. C., S. Simoes, et al. (2001). “Cationic lipid-DNA complexes in gene delivery: from biophysics to biological applications.” Adv Drug Deliv Rev 47(2-3): 277-94. cadeias acílicas estarem ligadas ao grupo polar por ligações ester e não éter (como acontece no DOTMA). Poliaminas catiónicas naturais também começaram a ser usadas, como por exemplo a espermina4+ e a espermidina3+. Formulações com base em lípidos catiónicos associados a esterois também foram produzidas e testadas, sendo um exemplo conhecido o DC-Chol. Como conclusão, não se poderá aclamar este ou aquele vector como melhor ou o mais promissor. No entanto, para cada tipo de vector haverá certamente um nicho onde a sua utilização se adequará melhor, ou seja, desenvolver-se-ão vectores específicos para a entrega de material genético para determinados locais e/ou patologias. Apesar do texto já ser longo ficou muito ainda por falar sobre as várias estratégias para mediar a entrega de genes com função terapêutica. Desta forma, para obter informação mais detalhada sobre este tema recomendo vivamente a consulta da bibliografia que se apresenta em baixo. Piskin, E., S. Dincer, et al. (2004). “Gene delivery: intelligent but just at the beginning.” J Biomater Sci Polym Ed 15(9): 1181-202. Lungwitz, U., M. Breunig, et al. (2005). “Polyethylenimine-based non-viral gene delivery systems.” Eur J Pharm Biopharm 60(2): 247-66. Mehier-Humbert, S. and R. H. Guy (2005). “Physical methods for gene transfer: improving the kinetics of gene delivery into cells.” Adv Drug Deliv Rev 57(5): 733-53. 45 Monitora do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave Palavras-chave: Reticulócito; grau de maturação; método convencional; citometria de fluxo 46 eticulócito Daniela Filipa Martins Gonçalves Os reticulócitos são células eritróides formadas na Medula Óssea, antecedoras do eritrócito. Morfologicamente são células anucleadas, que contêm restos de substâncias basófilas, permitindo alguns dias de actividade sintética. Durante o desenvolvimento, os reticulócitos assumem diferentes estados de maturação: I, II, III e IV, descritos pela primeira vez por Heilmeyer. Actualmente, as técnicas laboratoriais hematológicas permitem uma análise qualitativa e quantitativa fiável dos reticulócitos. Introdução A eritropoiese é um processo dinâmico e sequencial, que se caracteriza pela formação de eritrócitos e síntese de hemoglobina, principal pigmento respiratório do organismo humano. Os reticulócitos são células eritróides antecedoras do eritrócito, sendo vulgarmente designados de «eritrócitos jovens». São formados na Medula Óssea, a partir do eritroblasto ortocromático, onde permanecem 2 a 3 dias, em condições normais, antes de serem libertados para a circulação periférica, na qual vão finalizar o processo de maturação, dentro de 24 horas, dando origem à célula eritróide madura (Dacie, 2001: 27). Os reticulócitos, morfologicamente, são células anucleadas com tamanho de cerca de 8-10μm, que contêm restos de substâncias basófilas, presentes em grandes quantidades nas células percursoras: RNA (ácido ribonucleico) ribossomal, complexo de Golgi, ribossomas e mitocôndrias, permitindo alguns dias de actividade sintética (Dacie, 2001: 27). 47 48 Maturação dos Reticulócitos A evolução de reticulócito a eritrócito envolve uma série sequencial de processos: redução moderada da superfície celular e do tamanho celular; desaparecimento da capacidade de adesividade, isto é, capacidade das células imaturas para se manterem juntas; desaparecimento das substâncias basófilas presentes no citoplasma. À medida que estas substâncias basófilas desaparecem, o reticulócito transforma-se em eritrócito, passando a uma célula passiva de transporte de hemoglobina, sustentada pela baixa energia de glicólise aeróbica. Durante o desenvolvimento, os reticulócitos assumem diferentes estados de maturação, descritos pela primeira vez por Heilmeyer em 1932. Segundo este, os reticulócitos são classificados em quatro estados de maturação: I, II, III e IV, identificados pelas suas características morfológicas (Rowan, 1991). O estado de maturação I corresponde ao estado reticulocitário mais imaturo que, segundo Heilmeyer, contém grande quantidade de granulações; o estado de maturação II apresenta uma extensa rede de retículo livre no citoplasma; no estado de maturação III verificam-se grânulos dispersos com algum retículo; no estado de maturação IV constata-se poucos grânulos dispersos, pelo que corresponde ao estado de maturação mais próximo do eritrócito, sendo o mais difícil de ser identificado (Rowan, 1991). O valor de reticulócitos em circulação constitui 0,5 a 4% da contagem de eritrócitos circulantes. Em 1953, Seip definiu a proporção de reticulócitos em cada estado de maturação em circulação sanguínea, num indivíduo saudável. Desta forma, a proporção de reticulócitos em cada estado de maturação é a seguinte: estado de maturação I – 0,1%; estado de maturação II – 7,0%; estado de maturação III – 32,0% e estado de maturação IV – 61,0% (Rowan, 1991). O aumento de reticulócitos em circulação sanguínea é indicativo de regeneração sanguínea, enquanto que a sua diminuição, face a um estímulo, é um indicador muito importante para a avaliação clínica. 49 Avaliação Clínica A actividade eritropoiética na Medula Óssea é proporcional ao ritmo de libertação de células eritróides para a circulação sanguínea. Desta forma, a contagem de reticulócitos é um reflexo exacto da actividade eritropoiética (Dacie, 2001: 27). Desde o momento em que surge o estímulo eritropoiético, é necessário cerca de cinco dias até ao surgimento de novos reticulócitos em circulação sanguínea. Este facto pode ser demonstrado laboratorialmente, sendo um critério utilizado clinicamente para avaliar algumas situações hematológicas. As seguintes situações hematológicas são exemplos da importância da determinação dos reticulócitos como parâmetro fundamental para a avaliação clínica: avaliação da actividade eritropoiética na Medula Óssea; diagnóstico e monitorização de doenças hematológicas, como por exemplo anemias; classificação das anemias; monitorização de doentes sob terapêutica com eritropoietina recombinante humana (rhEPO) e outros factores de crescimento hematológicos usados para estimular a produção dos elementos celulares na Medula Óssea; avaliação da capacidade de resposta medular frente a agentes citotóxicos (quimioterapia, radioterapia); avaliação da regeneração da Medula Óssea após transplante e tratamento de neoplasias (Vives, 2002: 110). O aumento de reticulócitos em circulação sanguínea é indicativo de regeneração sanguínea, enquanto que a sua diminuição, face a um estímulo, é um indicador muito importante para a avaliação clínica. A reticulocitose apresenta-se nas seguintes situações clínicas:anemias hemolíticas agudas e crónicas; hemorragias agudas e crónicas; resposta ao tratamento das anemias carenciais: anemia ferripriva e anemia megaloblástica (por deficiência de ácido fólico e vitamina B12); após tratamento com eritropoietina recombinante humana. As situações clínicas de reticulopenia podem apresentar-se nos seguintes casos: aplasia medular; leucemias; linfomas; insuficiência renal; doença hepática; anemia ferripriva; anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12 e ácido fólico; deficiência de eritropoietina (Vives, 2002: 114). Método Convencional vs Método Automatizado A determinação laboratorial dos reticulócitos pode ser efectuada mediante o método convencional ou o método automatizado, a partir de amostras de sangue total com anticoagulante EDTA (ácido etilenodiaminotetraacético). O método convencional consiste na determinação quantitativa dos reticulócitos num esfregaço, não fixado, corado pela técnica de coloração Supravital. O RNA residual, presente nos reticulócitos, reage com os corantes supravitais (ex. Azul Novo de Metileno, Azul Brilhante de Cresil), precipitando-se sob a forma de grânulos ou filamentos, de cor azul, visualizados ao microscópio óptico. 50 A Citometria de Fluxo, um dos métodos utilizados nos autoanalisadores hematológicos, utiliza fluorocromos (ex. Auramina O, Thiazole Orange) que reagem com o RNA residual, emitindo fluorescência a um determinado comprimento de onda. Este método permite uma análise dos seguintes parâmetros reticulocitários: contagem de reticulócitos; volume reticulocitário; concentração de hemoglobina; identificação e classificação de três subpopulações de reticulócitos: HFR (fluorescência elevada), MFR (fluorescência média) e LFR (fluorescência baixa), de acordo com a intensidade de fluorescência directamente proporcional ao conteúdo de RNA residual presente nos reticulócitos. A subpopulação HFR corresponde aos reticulócitos mais imaturos, sendo um indicador precose muito útil para avaliar a recuperação da hematopoiese após transplante da Medula Óssea e tratamento quimioterápico (Vives, 2002: 117). O método convencional, embora seja um método simples e de baixo custo, comparativamente à Citometria de Fluxo apresenta inúmeras desvantagens como: a falta de padronização da coloração prejudica a visualização microscópica dos reticulócitos; falta de uniformidade na identificação e classificação da célula como reticulócito; critério subjectivo dependendo de cada observador; distribuição irregular dos reticulócitos no esfregaço; erros estatísticos pela análise de um pequeno número de células; método de execução minucioso e moroso. A Citometria de fluxo permite uma análise fiável, uma vez que analisa um elevado número de células em pouco tempo, oferece uma quantificação precisa do conteúdo de RNA bem como a obtenção dos vários parâmetros reticulocitários (Vives, 2002: 116). A contagem de reticulócitos é uma prova hematológica simples, sendo um parâmetro muito importante para avaliação da actividade eritropoiética na Medula Óssea. Conclusão A contagem de reticulócitos é uma prova hematológica simples, sendo um parâmetro muito importante para avaliação da actividade eritropoiética na Medula Óssea. Nos últimos anos, assistiu-se ao aumento do número de autoanalisadores nos laboratórios hematológicos, os quais contribuíram de forma decisiva para a melhoria da fiabilidade da execução laboratorial e aumento da rapidez de execução.A Citometria de Fluxo contribui de forma significativa para a avaliação quantitativa e qualitativa dos reticulócitos, permitindo ao laboratório hematológico fornecer uma resposta mais efectiva e rápida face às necessidades impostas pela medicina. Bibliografia DACIE, S. J.V.; LEWIS, S. M. (2001), Pratical Haematology, London, Churchill Livingstone. ROWAN, R. M. (1991), Reference method, quality control and automation of reticulocyte count. [http://www.ipac.org/ publications/pac/1991/pdf/6308x1141.pdf – 12/12/2005 – 16:10]. VIVES, J. L; AGUILAR, J. L. (2002), Manual de Técnicas de laboratório en hematologia, Barcelona, Masson. 51 52 Paula Gago Médica, Serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Faro Veloso Gomes Médico, director do Serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Faro Via Verde Coronária Um projecto para a vida na região do Sotavento Algarvio O impacto da Doença Coronária nos países desenvolvidos A mortalidade por doença coronária continua a ser elevada nos países desenvolvidos, ocupando, na maioria, o primeiro lugar como causa de morte. No estudo epidemiológico europeu WHO MONICA,40% da mortalidade global em indivíduos com idade inferior a 75 anos era de causa cardiovascular, independentemente da fase em que ocorria (pré, intra ou pós hospitalar aos 30 dias). Em média, um terço de todos os casos de enfarte agudo do miocárdio (EAM) eram fatais antes da hospitalização, a maioria deles na primeira hora após início dos sintomas. Esta mortalidade é ainda mais significativa nos indivíduos com idade inferior a 50 anos, conforme estudo realizado na década de 90 em 3 cidades inglesas, em que mortalidade pré-hospitalar verso intra-hospitalar dos eventos coronários agudos, era de 15 para 1 para os indivíduos com idade inferior a 50 anos e de 2 para 1 para os indivíduos com idade de 70 a 74 anos. Como se pode constatar, um Serviço de Emergência Médica pré-hospitalar eficaz iria beneficiar sobretudo a população da faixa etária mais jovem. Os sobreviventes da fase aguda do EAM, admitidos no Hospital beneficiam, sem dúvida, das novas estratégias terapêuticas introduzidas na última década na prática clínica, resultando numa redução significativa da mortalidade e melhoria da sobrevida. No entanto, o grande investimento nas novas terapêuticas a nível hospitalar (ex. angioplastia primária ou fibrinoliticos mais recentes e com maior taxa de reperfusão) não têm contribuído de forma significativa para a redução da mortalidade global dos síndromes coronários agudos (SCA). A causa dos SCA é a aterotrombose intra-coronária. Esta caracteriza-se por uma laceração (rotura ou erosão) súbita (imprevisível) da placa aterosclerótica que dá origem à activação plaquetária e dos factores de coagulação, levando à formação de um trombo e consequente isquémia do miocárdio. O trombo pode ocluir total ou parcialmente o lumén da artéria e esse aspecto consegue-se diagnosticar na maioria das vezes no electrocardiograma. Quando a oclusão aguda é total, o electrocardiograma revela um enfarte com supra de ST e é nestes casos que o tratamento deve ser emergente na tentativa de reabrir a artéria, através da lise do trombo (lise química com fibrinoliticos ou através da angioplastia com balão/stent). Portanto, a utilização de fibrinoliticos só se coloca nos enfartes agudos do miocárdio com «supradesnivelamento de ST». Nos restantes SCA, como é o Enfarte sem supra de ST ou a angina instável (o trombo é parcialmente oclusivo) não existe indicação para a utilização de fibrinoliticos e na maioria dos casos também a coronariografia não tem de ser emergente. De salientar que o diagnóstico diferencial inicial faz-se sempre através do electrocardiograma (que deve ser o primeiro exame a realizar num doente com suspeita de enfarte). 53 54 A estratégia terapêutica nos EAM com supra de ST, é a reperfusão da artéria o mais precocemente possível a partir do momento em que se forma o trombo, de forma a diminuir o tempo de isquémia a que o miocárdio está submetido. Por isso é importante que os tempos sejam reduzidos de forma a salvar miocárdio. Estes tempos são: Tempo entre o surgimento da dor e o pedido de ajuda por parte do doente (em Portugal a média é de 3 horas), o Tempo de transporte até ao hospital e o Tempo desde a entrada no hospital até à administração do fibrinolitico door to needle ou até à insuflação do balão (angioplastia) door to baloon. Estes tempos estão para além do que é recomendado pelas guidelines e por isso a Comunidade Europeia e os Estados Unidos têm feito um esforço para melhorar a assistência pré-hospitalar, disponibilizando um maior número de recursos tecnológicos e humanos na tentativa de reduzir a mortalidade precoce dos doentes com EAM. Tem que haver por parte do Sistema de Emergência Médica, a capacidade de responder o mais rápida e eficazmente possível, tanto na abordagem da paragem cardíaca de causa arrítmica através da desfibrilhação, como no diagnóstico correcto de EAM com subsequente cadeia de actuação que visa reduzir o tempo que medeia entre o início de dor até à terapêutica de reperfusão. Cadeia de Sobrevivência Já foi delineada pela Task Force da Sociedade Europeia de Cardiologia e pelo Conselho Europeu de Ressuscitação, a cadeia de Sobrevivência da paragem cardiorespiratória. Esta cadeia tem 4 elos: • Acesso rápido: O primeiro requisito é o acesso facilitado a um centro de ambulâncias através de um número de telefone que seja universal. Foi decidido e acordado pelo Concelho Europeu de Ressuscitação que este número seria o 112. Por este meio é possível pedir ajuda e ao mesmo tempo possibilita a descrição por parte da testemunha ou da própria vítima da situação em que se encontra, ao Centro de Emergência Médica. Este decidirá se o caso exige prioridade ou não (ou seja, se envia de imediato ou não uma viatura médica ao local onde a vítima se encontra). • Ressuscitação cardiorespiratória precoce: Suporte Básico de Vida: está demonstrado que o suporte básico de vida aumenta a possibilidade de uma ressuscitação bem sucedida. O suporte básico de vida duplica a possibilidade de sobrevivência e possibilita a manutenção de circulação para os órgãos vitais (cérebro e coração) enquanto se aguarda a chegada de suporte avançado de vida/desfibrilhação. • Desfibrilhação precoce: a maioria dos casos de paragem cardíaca no contexto de EAM é devido a fibrilhação ventricular que é uma arritmia que é fatal se não fôr imediatamente tratada. Nestes casos, a desfibrilhação imediata é a terapêutica indicada (administração de um ou mais choque eléctricos). O intervalo de tempo entre o início desta arritmia e a tentativa de desfibrilhação é o principal indicador ou determinante da sobrevida. A probabilidade de recuperar da paragem sem sequelas, diminui à razão de 5% por cada minuto que passa. Por este motivo, nos locais em que haja maior concentração de pessoas, tais como os estádios, aeroportos etc. é importante que haja maior facilidade de acesso à desfibrilhação, havendo um maior número de pessoas a saber desfibrilhar. Na última década houve um avanço muito importante neste campo, com o surgimento dos desfibrilhadores automáticos externos (DAE). O DAE reconhecem a fibrilhação ventricular e decidem se o choque está indicado ou não, deixando de ser necessário que o reanimador tenha conhecimentos suficientes para identificar uma arritmia ventricular e decidir se deve ou não desfibrilhar. Com o DAE é praticamente impossível administrar um choque sem indicação, uma vez que a especificidade para ritmos desfibrilháveis é quase de 100%. Desta forma é possível conseguir diminuir a incidência de morte súbita na população se os primeiros respondedores (first responders), bombeiros, policia, agentes de segurança, etc., tiveram treino no uso dos DAE. • Suporte Avançado de Vida: na maior parte das situações, a RCP e desfibrilhação, não são suficientes para manter o doente estável após uma reanimação eficaz, pelo que se torna necessário o suporte avançado de vida (entubação endotraqueal e administração de medicamentos) para melhorar as hipóteses de sobrevivência. O transporte para uma Unidade de Cuidados Intensivos será o passo seguinte. Sistema de Emergência Médica na Europa e em Portugal Há uma grande variedade de sistemas de emergência médica na Europa. Na maioria dos países europeus, os médicos são os que têm papel principal na emergência pré-hospitalar, existindo algumas excepções, tal como a Inglaterra e países escandinavos (paramédicos) e Holanda (enfermeiros). Isto deve-se a que a legislação na maioria dos países apenas permita que a desfibrilhação seja feita ou decidida pelo médico. Alguns países já dispõem de equipas de emergência (sem elemento médico) equipadas com DAE o que permite estender a possibilidade de desfibrilhação com sucesso a um maior número de pessoas da comunidade. Este modelo tem-se revelado fácil e seguro. Em Portugal a legislação permite que apenas seja o médico a desfibrilhar ou alguém da equipa de emergência, mas sempre sob a decisão ou orientação do médico. Tem que haver por parte do Sistema de Emergência Médica, a capacidade de responder o mais rápida e eficazmente possível, tanto na abordagem da paragem cardíaca de causa arrítmica através da desfibrilhação, como no diagnóstico correcto de EAM com subsequente cadeia de actuação que visa reduzir o tempo que medeia entre o início de dor até à terapêutica de reperfusão. 55 56 Via Verde Coronária Na sequência de trabalhos iniciados, em 1998, na Direcção Geral de Saúde, com a colaboração da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, das administrações regionais de Saúde e do Instituto de Emergência Médica, foi criado em Portugal o programa da VIA VERDE CORONÁRIA. Este projecto é um modelo de intervenção a nível pré-hospitalar de atendimento imediato aos doentes vítimas de doença cardiovascular súbita (síndromas coronários agudos). A divulgação da Via Verde Coronária deve ser feita não só aos profissionais de saúde e locais de atendimento do SNS, mas também à população através de campanhas de sensibilização e de educação. Existem duas fases: Pré-Hospitalar e Hospitalar. Fase Pré-Hospitalar a) Nesta fase o doente ou a testemunha do evento liga para o 112 (número nacional de socorro); b) No caso de se tratar de dor torácica ou de paragem cardíaca a chamada é transferida para o CODU da respectiva área. A chamada é tríada no CODU sob supervisão médica e, caso se trate de um possível evento coronário agudo, é accionada a viatura de emergência médica VMER (viatura médica de emergência rodoviária) que se dirige de imediato ao local onde se encontra o doente; c) A equipa da VMER é constituída por 2 elementos treinados em emergência médica pré-hospitalar. Um dos elementos é sempre médico e o outro é um enfermeiro ou paramédico (conforme a região do país).AVMER está equipada com meios técnicos para o diagnóstico, tratamento inicial e correcção de eventuais complicações; d) Seguidamente, e caso se confirme o diagnóstico de SCA, o CODU contacta uma Unidade de Cuidados Intensivos Coronários que esteja disponível na área a que pertence. É dada informação sobre o diagnóstico e a situação clínica do doente. Este contacto directo via telefone permite a rápida admissão do doente nos Cuidados Intensivos Coronários, obviando perdas de tempo no serviço de urgência, que iria atrasar o tratamento e as possibilidades de sobrevivência da vítima; e) Finalmente, o transporte do doente para a Unidade Coronária é feito numa ambulância medicalizada acompanhado pelo médico da VMER. Fase Hospitalar Os Hospitais envolvidos na Via Verde Coronária têm de ter características específicas para este tipo de atendimento. Estas características passam pela organização de uma resposta eficaz e rápida a nível interno, abreviando do ponto de vista burocrático a admissão do doente coronário e preparando as equipas das unidades para as intervenções necessárias. Via Verde Coronária no Algarve O Serviço de Cardiologia do Hospital de Faro e a ARS do Algarve, com a colaboração do INEM, implementaram a nível da região do Sotavento Algarvio, desde 2004, o programa da Via Verde Coronária (VVC), com o objectivo principal de reduzir a mortalidade e morbilidade pré-hospitalar dos síndromes coronários agudos (SCA). Em Portugal e no âmbito da Via Verde Coronária, existe a CODU de Lisboa, Porto, Coimbra e Faro. Estas CODUs estão ligadas a diferentes hospitais com vocação em cuidados cardiológicos (disponham de Unidades Coronárias e de Cardiologia de Intervenção). Na região do Algarve, o projecto da VVC tem como centro o Serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Faro, considerado como serviço de referência na rede de referenciação cardiológica definida pelo Ministério da Saúde. Os centros de saúde da região e a VMER constituem os elementos a nível préhospitalar que se vão articular com o serviço de Cardiologia. Uma eficiente e adequada articulação é essencial para o bom funcionamento do projecto. As Unidades de Saúde envolvidas são as seguintes: 1 - Serviço de Cardiologia (UCIC e UHCI) do Hospital Distrital de Faro; 2 - O CODU e VMER de Faro; 3 - Os serviços de atendimento permanentes dos centros de saúde; 4 - Outros: Bombeiros. 57 1- Serviço de Cardiologia (UCIC e UHCI) do Hospital Distrital de Faro O Serviço de Cardiologia dispõe para o atendimento urgente destes doentes de uma Unidade de Cuidados Intensivos Coronários (UCIC) com 6 camas, e da Unidade de Hemodinâmica e de Cardiologia de Intervenção (UHCI). 58 Todo o equipamento destinado à Via Verde Coronária está colocado na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários. Destaca-se a central de recepção denominada Lifenet Receiving Station, que permite a recepção dos dados clínicos e dos electrocardiogramas de doentes dos dois centros de saúde pilotos de Albufeira e de Vila Real de Santo António. A visualização do traçado electrocardiográfico e o contacto telefónico imediato com troca de informações entre o médico do CS e o médico da UCIC, permite a tomada de decisões no que respeita ao diagnóstico e também à terapêutica a instituir. Vão ser instalados os modems de transmissão na VMER para possibilitar essa mesma continuidade da informação durante o transporte do doente. A UCIC tem capacidade para admitir todos os doentes com SCA trazidos pela VMER através da Via Verde Coronária. O laboratório de Hemodinâmica tem a possibilidade de proceder na maioria dos casos à angioplastia primária no EAM com supra de ST. Apesar desta disponibilidade, o número de doentes submetidos a angioplastia com menos de 4-6 horas de dor é muito baixa devido ao facto de recorrerem tardiamente ao hospital.A UHCI iniciou a sua actividade em Outubro de 2003 e, actualmente, realiza anualmente cerca de 90 angioplastias primárias no EAM. 2 - Instituto Nacional de Emergência Médica – CODU e VMER de Faro Recentemente, foi feita formação aos enfermeiros e médicos da VMER do Sotavento e Barlavento Algarvio sobre a «fibrinólise pré hospitalar». Este projecto é recente e é de âmbito nacional. Acompanha-se de registos nacionais a todos os doentes com enfarte com supradesnivelamento de ST admitidos através da Via Verde Coronária. Com estes registos tanto pré-hospitalares como intrahospitalares, vai ser possível saber o que em Portugal acontece no que respeita à abordagem pré-hospitalar do EAM com supra de ST, nomeadamente complicações durante o transporte (ex. paragem cardíaca), os tempos desde o início da dor até à chamada do 112, o tempo de transporte e, finalmente, o tempo desde a chegada ao hospital até à terapêutica (fibrinólise/angioplastia). O transporte através da VMER permite uma melhor segurança para o doente com EAM com supra de ST, porque permite o tratamento imediato de possíveis complicações como a fibrilhação ventricular, visto o doente ser acompanhado dentro da ambulância medicalizada pelo médico da VMER. Os monitores-desfibrilhadores Lifepack 12 da VMER deverão ser equipados com modems (não o são ainda) para permitir a continuidade da troca de informação com a UCIC durante o transporte. Caso haja indicação para fibrinólise esta poderá ser feita (respeitando protocolos existentes para o efeito). O transporte será assegurado para todo o percurso ou em regime de rendez-vous, conforme as circunstâncias clínicas e a disponibilidade dos meios. Os doentes com SCA têm acesso directo ao serviço de Cardiologia (UCIC ou UHCI), evitando a morosidade da admissão hospita- Na sequência de trabalhos iniciados, em 1998, na Direcção Geral de Saúde, com a colaboração da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, das administrações regionais de saúde e do Instituto de Emergência Médica, foi criado em Portugal o programa da VIA VERDE CORONÁRIA. Este projecto é um modelo de intervenção a nível pré-hospitalar de atendimento imediato aos doentes vítimas de doença cardiovascular súbita (síndromas coronários agudos). lar (SU) que por vezes é demasiado longa. A informação é transmitida pelo CODU enquanto decorre o transporte do doente, de forma a se proceder à disponibilização de uma cama na UCIC ou à preparação da sala de Hemodinâmica para cateterismo cardiaco imediato. De salientar, que a admissão dos SCA através da VVC no Registo Nacional dos Síndromes Coronários Agudos realizado pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia ainda é muito baixa (1.7%). Em relação ao Sotavento Algarvio, este número foi superior em relação à média (7%), no entanto ainda estamos muito abaixo do desejável. 3- Serviços de Atendimento Permanente dos Centros de Saúde (SAP) Foram seleccionados apenas dois Centros de Saúde «piloto» (Centro de Saúde de Albufeira e Centro de Saúde de Vila Real de Santo António) para integrarem o projecto da VVC. Esta escolha baseou-se no facto de serem centros de saúde com Serviço de Atendimento Permanente (SAP) 24 horas, e por serem os mais distanciados de Faro. Os referidos centros estão equipados com monitores-desfibrilhadores Lifepack 12, com modems que permitem a transmissão de dados clínicos (traçado electrocardiográfico) para a central de recepção da UCIC. A troca de informação entre os médicos dos centros de saúde e da UCIC permite a confirmação do diagnóstico e a decisão partilhada da terapêutica a administrar a cada doente individualmente. A aquisição de kits de diagnóstico de doseamento de biomarcadores de isquémia do miocárdio (ex. Troponina T) também foi contemplado no apetrechamento de equi- 59 60 pamento dos centros de saúde mencionados. Os centros de saúde piloto vão passar a dispor de terapêutica para o tratamento inicial dos SCA (aspirina, morfina, etc.) e também de fibrinolitico. Esta decisão deve-se ao facto de serem os centros de saúde mais distantes, o que permite que os doentes possam ser submetidos a fibrinólise pré-hospitalar mais cedo. O fibrinolitico que passará a existir nos centros de saúde e na VMER é o Teneteplase (TNK) por ser eficaz e sobretudo por ser de fácil administração (bólus único, endovenoso). A terapêutica com fibrinólise terá, obrigatoriamente, de seguir um protocolo bem definido e rigoroso (indicações e contra-indicações da fibrinólise) associado sempre à orientação do cardiologista da UCIC. Para avançar neste projecto, procedeu-se, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2004, a programas de formação pós-graduada a médicos e enfermeiros com actividade no Serviço de Urgência (SAP) dos referidos centros de saúde. O programa foi dividido por diferentes temas, todos relacionados com os síndromes coronários agudos. Monitor desfibrilhador Life pack 12 Unidade de Hemodinâmica e de Cardiologia de Intervenção 4- Outros: Bombeiros Futuramente, também está incluída a intervenção de paramédicos, designadamente os bombeiros, num programa de prevenção de morte súbita, com formação na utilização, fora das unidades de saúde, de desfibrilhadores automáticos externos (DAE). O projecto poderá interligar-se a um outro mais vasto, eventualmente da responsabilidade do INEM, que passa pela formação em suporte básico de vida e difusão de desfibrilhadores automáticos externos (DAE) aos bombeiros, grandes empresas como o aeroporto, recintos desportivos, etc., a serem utilizados por pessoal não médico, após formação específica e com supervisão médica. A doença coronária aguda é, pela sua prevalência, morbilidade e mortalidade, uma situação médica de urgência que justifica uma intervenção planeada da Emergência Médica. Conclusão A doença coronária aguda é, pela sua prevalência, morbilidade e mortalidade, uma situação médica de urgência que justifica uma intervenção planeada da Emergência Médica. O Serviço de Cardiologia envolveu-se activamente no projecto da Via Verde Coronária para a área do Sotavento Algarvio, por reconhecimento do impacto que este poderá ter na sobrevida dos doentes com patologia coronária aguda. Os doentes vão ter à sua disposição meios de reanimação cardio-respiratoria com suporte avançado de vida, terapêutica medicamentosa, incluindo a possibilidade de fibrinólise pré-hospitalar e acesso mais rápido à cardiologia de intervenção. As condições existentes actualmente, a nível das diferentes unidades de saúde (SAP) equipadas com sistemas de telemedicina, a existência da VMER/INEM e dum Serviço Hospitalar com Unidade de Cuidados Intensivos Coronários e com Cardiologia de Intervenção, permitem segundo opinião dos autores, o adequado tratamento dos doentes vítimas de enfarte agudo do miocárdio. Referências European Heart Journal (1997) 18, 1231-1248 European Heart Journal (1998) 19, 1140- 1164. Article nº 981106 Tunstall- Pedoe H, Kuulasmaa K, Mahonen M, Talonen H, Ruokoskohi E Amouyel P (for the WHO MONICA Project) 1999.The Lancet 353:1547-57 Registo Nacional de síndromes coronário agudos. 61 62 Hugo Leite-Almeida Bolseiro de Investigação | Equipe de investigação em Neurobiologia da Dor, Grupo de Neurociências Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) Escola de Ciências da Saúde Universidade do Minho Armando Almeida Professor Auxiliar | Responsável pela equipe de investigação em Neurobiologia da Dor, Grupo de Neurociências Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) Escola de Ciências da Saúde Universidade do Minho Dor Será o nosso cérebro masoq Às dores inventadas Prefere as reais. Doem muito menos Ou então muito mais… 63 In No Reino da Dinamarca, Alexandre O’Neill quista? Estar vivo, no sentido biológico da coisa, é um compromisso que acabará necessariamente com a morte do indivíduo. Este aparente dislate pode ser ilustrado de várias formas. Por exemplo, o oxigénio, símbolo de vida e de saúde, é também um potente veneno. Da mesma forma que este gás é imprescindível para que se liberte a energia contida num tronco de lenha nas nossa lareiras, também nós dependemos dele para fazer libertar a energia contida nos alimentos. Estamos assim sujeitos a um processo de combustão análogo àquele que ocorre nas nossas lareiras, embora mais lento e controlado. Deste, resultam cinzas designadas por espécies reactivas de oxigénio que reagem inespecificamente com vários tipos de moléculas alterando as suas propriedades normais causando assim graves prejuízos à saúde. Se se quiser, enferrujamos tal e qual o ferro que lentamente oxida quando exposto ao ar. Não obstante, a maioria dos seres vivos optou por um metabolismo baseado no oxigénio, não só pela sua abundância (outros gases há em muito maior quantidade) mas sobretudo pelo aproveitamento energético eficaz que estas reacções permitem. É nesse limbo entre o dano e a produção de energia que reside a vida. Note-se que organismos com baixo metabolismo vivem em geral mais tempo do que outros com taxas metabólicas elevadas. 64 Outro exemplo de compromisso biológico é aquele referente à nossa postura e locomoção (mais informação no artigo de divulgação de Ackerman, 2006). O bipedismo é sem dúvida um eficaz meio de locomoção e permite uma marcha que, em termos energéticos, é muito favorável. Mais a mais, permitiu aos nossos antepassados libertar as mãos para outras funções mais delicadas. Para que tal fosse possível, um certo número de alterações ocorreram na estrutura do esqueleto humano. Tal como no exemplo anterior, os prós são sempre caucionados pelos contras. Assim, os pés humanos perderam toda e qualquer outra função que não a locomoção. A alteração da estrutura da pélvis necessária para a postura bípede implicou o estreitamento do canal de parto humano, fazendo com que o nascimento passasse a ser uma arriscada peripécia. Mais a mais, inúmeras doenças surgem associadas à postura erecta e que muitas vezes se manifestam em terríveis dores lombares, o que nos leva ao próximo exemplo e principal foco deste artigo – a DOR. Alguns organismos evoluíram no sentido de associar a certos estímulos um carácter desagradável que alerta as defesas do corpo (a adjectivação desagradável aplica-se apenas ao Homem). A grande maioria desses estímulos é danosa para a integridade do organismo, sejam temperaturas muito elevadas ou muito frias, ferimentos na pele, contacto com substâncias irritantes ou corrosivas, movimentos anormais das vísceras, inflamações, entre outros. A essa sensação desagradável provocada por estímulos nóxicos chamamos Dor.A dor é um extraordinário mecanismo de defesa que funciona com base na premissa de que, a qualquer estímulo nóxico que cause uma sensação desagradável, reagiremos no sentido de a minimizar, ou seja, evitaremos o estímulo protegendo o organismo. A dor, tal como nos dois exemplos anteriores, tem associada à sua utilidade biológica – a protecção da integridade do indivíduo – um contra que decorre do mau funcionamento do sistema endógeno de controlo da dor. Como veremos adiante, este sistema funciona quer no sentido de inibir quer de potenciar a dor. Trata-se de um sistema finamente regulado que permite em situações de grande stress emocional que um soldado gravemente ferido faça a sua fuga do campo de batalha com uma dor substancialmente reduzida ou que, pelo contrário, obrigue à imobilização e consequente convalescença de um indivíduo que caiu do cavalo e fracturou um osso. O sistema mostra-se, portanto, plástico e auto-regulável. Mais, dos poucos casos descritos de indivíduos sem capacidade de sentir dor (analgesia congénita), pode facilmente perceber-se que a dor é vital para uma vida saudável e de boa qualidade. Todos estes indivíduos morreram cedo e com muitas mazelas no corpo: articulações destruídas, queimaduras extensas e ferimentos graves. Para que se perceba o penoso da situação, no simples acto de mastigação a língua era frequentemente trincada. A dor é portanto uma função vital. O revés surge quando por algum motivo o sistema endógeno de controlo da dor se descontrola. Nesses casos, que designamos por dor patológica (em oposição à dor fisiológica de carácter protector), o indivíduo está sujeito a dores crónicas que se podem prolongar indefinidamente no tempo, sendo profundamente perturbadoras. «It is evidently impossible to transmit the impression of pain by teaching, since it is only known to those who have experienced it. Moreover, we are ignorant of each type of pain before we have felt it». (É evidentemente impossível transmitir a sensação de dor ensinando-a, já que ela é apenas conhecida por aqueles que a experimentaram. Mais seremos desconhecedores de qualquer tipo de dor até a sentirmos). Galeno, século II. Citado de Origins of Neuroscience – A History of Explorations into Brain Function A perda de qualidade de vida reflecte-se em vários aspectos da vida quotidiana como um maior grau de dependência de terceiros, alterações comportamentais (por ex. depressão), faltas ao trabalho e, em situações mais graves, o suicídio. Entre as doenças deste tipo, a mais conhecida do grande público é sem dúvida, a fibromialgia, mas outras há como o síndrome do cólon irritável, as enxaquecas e a dor crónica da pélvis (Diatchenko et al., 2006), cuja causa da dor tem vindo a ser atribuída a falhas na regulação do sistema endógeno de dor. A favor desta hipótese existem medições efectuadas em doentes com este tipo de problemas onde se registaram alterações nas concentrações normais de neuropéptidos em diferentes regiões do sistema nervoso e da actividade neurofisiológica em algumas áreas encefálicas. No texto que se segue, começaremos por ver como é que o conceito de dor variou até aos nossos dias.Veremos que hoje em dia temos uma visão mais elaborada, embora incompleta, do fenómeno de regulação da dor pelo cérebro. Sabemos que essa regulação pode efectuar-se quer no sentido de diminuir (inibição) quer de aumentar (facilitação) a dor. A última parte do texto irá principalmente incidir sobre os mecanismos de facilitação, o que tem sido um tema caro ao nosso laboratório e sobre os potenciais benefícios e prejuízos decorrentes, respectivamente, do seu bom ou mau funcionamento. Desfrutar da experiência Dor – essa que ora nos atormenta, ora nos protege – é um benefício que poucos reconhecem como tal, mas que pode também ela ser implacavelmente penosa. Do castigo dos Deuses à moderna medicina A dor é definida pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a danos reais ou potenciais nos tecidos corporais ou descrita em termos de tais lesões. Esta definição, definitivamente académica, espelha a dificuldade em definir dor de uma forma concreta resultante da heterogeneidade da experiência. A dor é uma experiência pessoal, na qual pesam factores fisiológicos, vivências passadas, a educação do indivíduo e a personalidade própria de cada um. A definição destaca dois componentes, o sensorial e o emocional, correspondendo o primeiro ao estímulo doloroso propriamente dito e ao segundo a resposta associada à carga negativa associada à experiência. Ressalva também a não correspondência entre o estímulo e a dor sentida. Ou seja, o mesmo estímulo poderá ser classificado de diferentes maneiras (inócuo, moderadamente doloroso ou extremamente doloroso) por diferentes indivíduos. Também na ausência de estímulo nóxico, casos há em que indivíduos declaram sentir dor. O exemplo mais extremado desta última afirmação prende-se com a dor que alguns amputados dizem sentir em membros que já não possuem e cujo coto cicatrizou faz muito tempo – dor fantasma ou dor do membro fantasma. Esta forma cientificamente apoiada de olhar a dor é algo recente. A dor foi, durante muito tempo,considerada como uma entidade sobrenatural, controlada por Deuses que tinham o poder de castigar e perdoar. O termo usado 65 em língua inglesa para dor (pain), por exemplo, resulta dos termos Grego poine e Latino poena, que significam pena ou castigo (Finger, 1994). No século XVII, o filósofo francês René Descartes lançou aquela que se pode considerar a primeira teoria moderna sobre a dor. Descartes defendia que a um estímulo nóxico (doloroso) aplicado a um indivíduo ocorreria uma activação central equivalente (teoria da especificidade; Figura 1.). 66 Figura 1. Imagem de Traité de l´Homme (1664). Conceito de uma via de dor segundo o filósofo René Descartes. «Quando o fogo (A) e o pé (B) estão em proximidade, pequenas partículas de fogo dotadas de grande energia accionam pontos na pele fazendo deste modo puxar uma delicada corda (cc) que está ligada ao referido ponto na pele e que abre simultaneamente os poros (d e) na outra extremidade da corda. Assim, da mesma forma que um sino pode ser accionado num campanário, o fogo pode accionar o sino da consciência de forma instantânea» (retirado de Melzack and Wall, 1996). A constatação de que a dor é um evento plástico, individual e passível de ser tratado, é um feito do século XX. Henry Beecher, um médico que durante a Segunda Grande Guerra contactou com feridos dos campos de batalha, apercebeu-se que, de todos os soldados que regressavam do campo de batalha com ferimentos, alguns de grande gravidade, apenas um em cada cinco se queixava de dores ao ponto de precisar de morfina para o seu alívio. Já regressado ao Estados Unidos da América, Beecher constatou que entre a população civil, um em cada três casos de dores resultantes de ferimentos igualmente graves, teria que ser tratado com morfina. A explicação para tal fenómeno segundo Beecher prende-se com uma certa «contextualização da dor». Para o militar o ferimento seria sinónimo de ter escapado vivo do campo de batalha, mas para o civil o ferimento seria sinónimo de perda de qualidade de vida. Em 1965, Melzack e Wall publicaram a sua teoria do portão de controlo que é considerada como um dos marcos mais importantes no estudo da dor. Este artigo antevia a possibilidade de um controlo endógeno (isto é, do próprio corpo) da informação nóxica que chegava da periferia à medula espinhal (Melzack and Wall, 1965). Quatro anos mais tarde, Reynolds provou (em ratos) que era possível fazer cirurgias sem recorrer a qualquer anestésico, bastando para tal estimular com um eléctrodo inserido profundamente no parênquima cerebral uma área denominada de substância periaqueductal cinzenta (Reynolds, 1969). Estava definitivamente estabelecido que a percepção dolorosa podia ser modulada (alterada) centralmente a partir do encéfalo. A investigação sobre modelação descendente da dor que se seguiu ao trabalho de Reynolds foi exclusivamente focada na sua vertente inibitória.Vários factos contribuíram para isso. O primeiro, de ordem puramente «lógica», era o de não parecer natural que o cérebro pudesse provocar/aumentar a dor ou, se quisermos de outra maneira, era inaceitável pensar-se num cérebro masoquista. O segundo, prende-se com o facto de, quando a comunicação entre o cérebro e a medula espinhal é cortada (isto acontece nos paraplégico acarretando perda de movimentos voluntários e de sensibilidade), os reflexos espinhais (que apenas envolvem a medula espinhal e excluem o encéfalo) desencadeados por um qualquer estímulo capaz, como quando o médico aplica o martelo no joelho, estão aumentados. De facto, este fenómeno foi posteriormente explicado pela interrupção de vias descendentes inibitórias do encéfalo para a medula espinhal. Em terceiro lugar, a maioria dos estudos iniciais como o de Reynolds, onde se procede à estimulação de certas áreas do encéfalo, usavam estímulos demasiado intensos que, como mais adiante se verá, potenciam a inibição descendente mascarando a facilitação descendente da dor. Na secção seguinte veremos que a dor pode não só ser inibida mas também potenciada pelo encéfalo. Muitos trabalhos publicados a partir da década de noventa apontam várias áreas do encéfalo como focos indutores de facilitação.Veremos também que este aparente masoquismo do nosso próprio cérebro é biologicamente útil embora, quando desregulado possa ser extraordinariamente debilitante, estando na origem de vários síndromes de dor crónica. «Perhaps few persons who are not physicians can re alize the influence which long-continued and unendurable pain may have upon both body and mind… Under such torments the temper changes, the most amiable grow irritable, the soldier becomes a coward, and the strongest man in scarcely less nervous than the most hysterical girl». (Possivelmente apenas um pequeno número de pessoas, para além dos médicos, consegue conceber a influência que a dor prolongada e interminável pode exercer sobre o corpo e a mente… tais tormentos fazem o mais sereno tornar-se irritadiço, o soldado virar cobarde e o mais forte dos homens ficar tão somente um pouco menos nervoso que a mais histérica rapariga). S. Weir Mitchell, 1872. Citado de «The Challenge of Pain (1996)» 67 Desfrutar da experiência Dor – essa que ora nos atormenta, ora nos protege – é um benefício que poucos reconhecem como tal, mas que pode também ela ser implacavelmente penosa. 68 O cérebro masoquista A partir da década de noventa começou a ficar claro que a modulação (controlo) da dor resultava de um balanço entre influências inibitórias e facilitatórias que resultavam respectivamente, em antinocicepção e em pronocicepção. Antes de prosseguirmos com a nossa exposição, importa esclarecer que por nocicepção entendemos ser a activação de receptores (nociceptores) na pele ou vísceras preparados para responder a estímulos agressivos ao organismo (nóxicos) e a informação que se gera e que se transmite em impulsos eléctricos. Assim, a activação destes receptores é transformada num sinal eléctrico que se propaga pelas células nervosas até à medula espinhal. O sinal propaga-se rapidamente pelas fibras nervosas de maior calibre (fibras A ) e mais lentamente nas de menor calibre (fibras C) originando duas sensações diferentes – uma rápida (aguda) e outra mais lenta e que se propaga no tempo (moideira). Na medula espinhal organizamse dois processamentos quase simultâneos da informação nóxica aí chegada. Em primeiro lugar, o sinal eléctrico propaga-se em direcção aos músculos permitindo uma reacção rápida e inconsciente de fuga ao estímulo – reflexo (retirar a mão, dar um salto) – e, em segundo lugar, o impulso é conduzido ao encéfalo onde tomamos consciência do ocorrido quer em termos sensoriais – localização do estímulo (na mão, no braço, etc.), intensidade (fraco, moderado, intenso), modalidade (queimadura, picada, etc.), duração (curto, prolongado, etc.) – quer em termos das sensações emocionais que o estímulo desencadeia (o desagradável, a verbalização, os esgares faciais, o pânico, etc.). São estes aspectos sensoriais e emocionais que, no seu conjunto, constituem a experiência dolorosa (ver acima a definição da IASP). Assim sendo, nocicepção e dor designam dois fenómenos muito próximos e relacionados, mas que não devem de forma alguma ser confundidos. Retomando o raciocínio, no caso da antinocicepção a influência funciona por impedir a chegada do estímulo nóxico ao encéfalo resultando em analgesia. Já no caso da pronocicepção poderá haver uma facilitação dessa transmissão inibindo assim a analgesia ou aumentando o estado basal da dor (McNally, 1999). Do ponto de vista comportamental, o balanço entre estes dois estados funciona sob controlo apertado em indivíduos saudáveis, de modo a permitir a execução da tarefa mais premente. Por exemplo, em animais de laboratório, a exposição do animal a ambientes novos, a estimulação com choques eléctricos, o nadar forçado em água, a rotação centrifuga do animal, diversos tipos de ruído e a restrição de movimentos ou imobilização do animal, em suma qualquer estímulo agressivo indutor de stress para o animal, é susceptível de causar uma analgesia reversível. Com maior relevância no repertório de comportamentos do animal, o confronto agressivo com animais da mesma espécie, o odor de animais stressados da mesma espécie e a exposição visual a predadores são estímulos susceptíveis de também provocar analgesia. Nestes casos, é evidente que a dor (dentro de certos limites) face às situações com que o animal se depara, 69 é secundária, já que é fundamental escapar com sucesso. Por outro lado, noutras situações, existe a necessidade de proteger e promover a recuperação do organismo que foi de algum modo agredido e lesado.A dor nestas situações pode ser encarada como um meio do organismo se predispor a uma menor actividade do corpo, um factor essencial à recuperação. O balanço anti- e pronociceptivo pende agora em favor do último. Todos nós já sentimos a necessidade de diminuir a actividade ou até sermos acamados numa situação de doença devido a dores musculares generalizadas. Também é do conhecimento geral que face a uma lesão grave num membro, o procedimento habitual passa pela sua imobilização – a dor favorece a sua manutenção. A pronocicepção pode depender de modificações na fisiologia ou anatomia das estruturas envolvidas na transmissão da dor ou da actividade de variadas áreas do cérebro vocacionadas para a transmissão da dor Figura 2. Nesta figura encontram-se representados diferentes tipos de receptores nervosos (A). Quando activados pelo estímulo apropriado gera-se localmente um sinal que é transportado por prolongamentos (axónios) de neurónios localizados nos gânglios das raízes dorsais (B) e que estão representados por circunferências de diferentes tamanhos. Estas fibras entram então na medula espinhal pelas raízes dorsais (C) e terminam contactando neurónios localizados no corno dorsal (D). Os neurónios do corno ventral (E), por seu turno enviam axónios via raiz ventral (F) para enervar a musculatura (não representada na figura). As setas indicam o sentido da informação. Figura adaptada de Messlinger (1997). (neuroplasticidade). Por exemplo, no caso dos nociceptores (ver figura 2) é sabido que existe uma população destes que permanece em circunstâncias normais «adormecida» e que é activada quando localmente são libertadas certas substâncias activas. A libertação destas acontece quando ocorre um dano no tecido que desencadeia uma resposta inflamatória. Todos nós já sentimos alterações de sensi- 70 bilidade na área que circunda, por exemplo, uma pequena queimadura. Esta sensibilidade anormal deve-se numa primeira instância à actividade dos nociceptores que foram activados localmente, o que implica o acesso de uma quantidade maior de informação para a medula espinhal. Esta actividade aumentada vai fazer com que os neurónios espinhais alterem as suas propriedades fisiológicas com duas consequências imediatas. Em primeiro lugar, estes neurónios ficam mais activos, ou seja, para o mesmo estímulo periférico (a pele queimada) a sua resposta vai ser maior e mais prolongada no tempo e, portanto, maior será a informação transmitida ao encéfalo. Em segundo lugar, o campo receptivo destes neurónios alarga-se. Para aqueles menos familiarizados com a fisiologia dos neurónios da medula espinhal, importa esclarecer que cada neurónio do corno dorsal é activado quando uma área bem delimitada da pele é estimulada (Yaksh et al., 1999). Esta propriedade é designada de somatotopia e a área cuja estimulação é capaz de activar o neurónio é designada (no caso da pele) de dermátomo. Ao dizerse que o campo receptivo de um neurónio está alargado implica que o seu dermátomo esteja aumentado e, portanto, que a área envolvente da lesão, embora intacta, adquira novas propriedades. Uma vez mais pede-se ao leitor que invoque uma má experiência com uma queimadura. Certamente lembrar-se-á que o toque, ainda que suave, na proximidade da lesão era já por si doloroso. O fenómeno que sentiu é designado de alodínia, ou seja, dor que é provocada por um estímulo que em situações normais é inócuo e resulta de alterações nas propriedades normais dos seus neurónios da medula espinhal devido à sobrecarga de actividade. Uma outra modalidade de pronocicepção decorre da actividade de áreas do encéfalo cujos neurónios projectam para o corno dorsal da medula espinhal e que funcionam no sentido de permitir que a informação periférica aí chegada seja amplificada. Em termos da já referida teoria do portão controlo dirse-ia que a actividade destes neurónios tem a propriedade de «abrir o portão» e facilitar (aumentar) assim a transmissão para o encéfalo de informação nociceptiva, relacionada com a dor. Existem várias áreas actualmente descritas como sendo capazes de uma actividade facilitadora da dor. Debrucemo-nos sobre uma em particular: o núcleo reticular dorsal do bolbo raquidiano (DRt). «I was brought up in a medical generation in which… pain was [considered to be] a primary sensation dependent upon the stimulation of a specific sensory ending by a stimulus of a certain intensity, and conducted along a fixed pathway to ring a special bell in consciousness. Pain was as simple as that… the idea that anything might happen to sensory impulses within the central nervous system to alter their character, destination, or the sensation they registered in consciousness was utterly foreign to my concept. But in practise I found that it was incredibly difficult to make this concept consistent with clinical observations». (Fui educado numa geração de médicos em que a dor era considerada uma sensação primária dependente da estimulação de terminais específicos, por estímulos de determinada intensidade que seriam conduzidos por vias concretas até ao sistema nervoso central onde fariam soar na consciência uma campainha especial.A dor era tão simples quanto isso... a ideia de que algo pudesse acontecer aos impulsos sensoriais no sistema nervoso central que alterasse o seu carácter, destino ou a sensação que registavam era-me algo absolutamente estranho. Mas, na prática, era incrivelmente difícil fazer esse conceito consistente com as observações clínicas). William K. Livingston, 1943. Citado de «The Challenge of Pain (1996)». O núcleo reticular dorsal do bolbo raquidiano O primeiro trabalho publicado que atribuía uma actividade facilitadora da dor ao DRt data de 1996 (Almeida et al., 1996). Neste artigo descreve-se que a reacção à dor em dois testes de nocicepção aguda – teste de flexão da cauda e teste da placa quente1 – é mais demorada em ratos cujo DRt fora lesionado do que em ratos onde o DRt permaneceu intacto. Por outro lado, em ratos onde o DRt é estimulado, o tempo de resposta é mais rápido do que nos controlos onde não se interfere com a actividade do DRt. Num segundo artigo, de 1999 (Almeida et al., 1999), comprovou-se que a lesão do DRt, tal como no trabalho anterior, diminuía a resposta associada à dor, mas agora num teste de dor inflamatória – teste do formol. Adicionalmente, os autores procuraram ver a expressão de uma proteína designada de c-fos que vem de há muito sendo usada como um 71 marcador da actividade neuronal resultante na medula espinhal, do processamento da informação nóxica (Coggeshall, 2005). Assim, após a injecção de formol na pata do rato, o número de neurónios marcados com c-fos no corno dorsal da medula espinhal aumenta significativamente, indicando um aumento de informação proveniente da periferia. Voltando ao trabalho de 1999, os autores verificaram que a lesão do DRt diminuía o número de neurónios c-fos positivos no corno dorsal, logo activados pelo estímulo nóxico. Destes dois trabalhos resultaram duas conclusões. A primeira é que a actividade dos neurónios do DRt é necessária para que haja uma expressão completa do comportamento doloroso agudo e inflamatório. A segunda é que a actividade do DRt promove/facilita a actividade dos neurónios do corno dorsal e, concomitantemente,a passagem da informação 1. Os testes de flexão da cauda e da placa quente consistem, respectivamente, na aplicação de um estímulo térmico nóxico focado num ponto da cauda do animal até que haja um movimento reflexo de afastamento e na colocação do animal numa área restrita cuja base está quente, a uma temperatura indutora de dor (55ºC). No primeiro teste, o parâmetro medido é o tempo necessário para que haja o reflexo da cauda e, no segundo, o tempo necessário para o animal mostrar comportamentos indicativos de que está a sentir dor (por ex. lamber a pata). Em termos neurofisiológicos, o primeiro teste incide sobre processos que ocorrem ao nível da medula espinhal: chegada da informação e reflexo espinhal motor para flectir a cauda. O segundo teste implica uma maior complexidade para que ocorra uma reacção organizada, estando necessariamente dependente da actividade de muitas áreas encefálicas e de uma influência descendente sobre o «portão de controlo» da passagem de informação nociceptiva. 72 Figura 3. Cérebro de rato. Na imagem está representado um cérebro de rato dividido ao meio. As diferentes áreas encefálicas referidas no texto encontram-se assinaladas com diferentes cores. A vermelho temos o tronco cerebral, a azul o cerebelo, a amarelo o córtex, a verde o diencéfalo (tálamo e hipotálamo), a roxo a amígdala e a cinzento parte da medula espinhal. nociceptiva para o encéfalo – resultando no aumento da percepção consciente da dor. Note-se que, quando a actividade dos neurónios do DRt foi medida, esta estava de facto aumentada após o teste do formol (Porro et al., 1991) ou em ratos sujeitos a um modelo de dor crónica neuropática (Neto et al., 1999). Com estes trabalhos percebemos o papel do DRt no processamento da informação nóxica, embora a suspeita de que esta área estivesse ligada à modulação da dor, fosse mais antiga. O primeiro trabalho que deu uma indicação neste sentido foi um estudo anatómico, o que ilustra a importância que a anatomia pode ter no deslindar da função subjacente a uma dada área. Nesse estudo provou-se que o DRt recebia projecções de neurónios do corno dorsal, os mesmo que por sua vez recebem informação nociceptiva da periferia (Lima e Coimbra, 1985). Estes resultados foram confirmados posteriormente de forma mais detalhada (Almeida et al., 1995; Lima, 1990). Mais tarde provou-se a existência de comunicação no sentido inverso, ou seja do DRt para o corno dorsal e que os contactos (sinapses) existentes entre as projecções dos neurónios do DRt e os neurónios do corno dorsal eram assimétricos (Almeida and Lima, 1997), uma morfologia indicativa de uma sinapse excitatória (Gray, 1969). Ou seja, o impulso chegado a uma 73 Figura 4. Esquemas representando secções de cérebro de rato onde se localizam as principais áreas referidas no texto. DRt, núcleo reticular dorsal do bolbo; NTS, núcleo do tracto do solitário; LC, locus coeruleus; RVM, medula ventromedial rostral; PAG, substância periaqueductal cinzenta; th, tálamo; hy, hipotálamo; Amy, amígdala. Ver legenda figura 3 para código de cores; A área pré-tectal anterior não está representada. Esquemas adaptados de Paxinos e Watson (1998). sinapse deste tipo é propagado pelo neurónio seguinte, por oposição a uma sinapse do tipo inibitório, onde o impulso seria inibido. Destes dados, foi possível concluir que, uma vez chegada ao corno dorsal, a informação nociceptiva proveniente vinda da periferia era transmitida ao DRt – não esquecer que, apesar de omitidas, também outras áreas do encéfalo que não o DRt recebem essa informação – e do DRt essa informação era retransmitida para o corno dorsal, onde voltava a excitar os mesmos neurónios que haviam antes transmitido a informação. Ou seja, esta complicada frase resume-se a dizer que foi comprovada a existência de um circuito neuronal fechado entre o corno dorsal, o DRt e de novo, o corno dorsal. Mais, dado o carácter exitatório dos contactos, é possível inferir que a informação não só é transmitida em ciclo, como ainda é amplificada. Estas últimas conclusões fornecem um forte suporte para os resultados no comportamento animal que descrevemos acima e que sugerem que o DRt é uma área pronociceptiva dentro do sistema endógeno de controlo da dor. O DRt permite a amplificação da nocicepção, facilitando a transmissão da informação que chega da periferia.Assim, a sua destruição interrompe este circuito, abolindo a facilitação da dor com o consequente impacto no comportamento, como foi atrás descrito. Note-se que os neurónios do DRt projectam não só para o corno dorsal, mas 74 também para diversas áreas do encéfalo (LeiteAlmeida et al., 2006), fazendo antever uma complexa organização anátomo-funcional ainda por deslindar. Entre elas encontram-se outras áreas envolvidas no controlo da dor como o bolbo rostral ventromedial (RVM, do inglês rostral ventomedial medulla), a substância periaqueductal cinzenta (PAG, do inglês periaqueductal gray), o locus coeruleus (LC) e o núcleo do tracto do solitário (NTS), entre outras. Também áreas envolvidas no controlo motor da musculatura orofacial – núcleo do nervo facial, por exemplo – e áreas límbicas2 como o hipotálamo (hy) e a amígdala (Amy) recebem contactos provenientes do DRt. Por outro lado, o DRt recebe informação de variadas áreas do encéfalo onde se incluem novamente o RVM, PAG, LC, NTS, hy e Amy (Almeida et al., 2002). Adicionalmente, chega ao DRt e recebe informação de várias áreas corticais, como os córtices somatosensorial, motor, do cíngulo, pré- e infra-límbico. Um dado curioso recentemente publicado dá conta de que a estimulação do córtex do cíngulo facilita o comportamento doloroso (Zhang et al., 2005).Adicionalmente, comprovou-se que, para que este fenómeno se processasse, o DRt teria que estar intacto. Ou seja, a facilitação gerada a partir do córtex do cíngulo é feita via DRt. Este estudo veio a confirmar o papel do DRt como área encefálica pronociceptiva facilitadora da percepção dolorosa. Muitos trabalhos publicados a partir da década de noventa apontam várias áreas do encéfalo como focos indutores de facilitação. Veremos também que este aparente masoquismo do nosso próprio cérebro é biologicamente útil embora, quando desregulado possa ser extraordinariamente debilitante, estando na origem de vários síndromes de dor crónica. 2. A designação de sistema límbico engloba um número de áreas encefálicas ligadas à emoção. Não existe actualmente um consenso generalizado quanto à validade anatómica e/ou funcional do conceito (Heimer L, Van Hoesen GW. 2006. The limbic lobe and its output channels: implications for emotional functions and adaptive behavior. Neurosci Biobehav Rev 30(2):126-147.) Outras áreas com actividade facilitadora da dor Para além do DRt, é sabido actualmente que existem outras áreas do encéfalo com actividade facilitadora descendente. Ou seja, áreas cujos neurónios projectam para o corno dorsal e que facilitam a transmissão dos sinais eléctricos nociceptivos aí chegados pelas vias nervosas periféricas. Quando acima indicamos as três principais razões que afastaram o conceito de facilitação do estudo da dor nas décadas de 60-80, referimos o facto de em alguns estudos serem usados estímulos de tal forma intensos que mascaravam os efeitos facilitatórios. O fenómeno foi detectado no já referido RVM. Zhuo e Gebhart (1997) verificaram que, quando estimulavam neurónios desta área, um de dois fenómenos, dependendo do local estimulado, aconteciam: ou havia inibição/retardamento da flexão da cauda (analgesia) independentemente da intensidade do estímulo ou, por outro lado havia uma resposta dependente da intensidade que resultava em facilitação da dor para estímulos de baixa intensidade (o tempo de latência para a flexão da cauda era menor do que nos controlos) e inibidora para estímulos de elevada intensidade (o tempo de latência era maior que nos controlos). Dois tipos de células foram caracterizadas no RVM cuja actividade parece de alguma forma relacionar-se com activida- des facilitatórias e inibitórias geradas a partir desta área. O primeiro tipo é designado de OFF e é uma célula com actividade constante, apenas interrompida imediatamente antes do movimento. O segundo tipo, designado de ON, é uma célula silenciosa que é activada no instante que precede o início do reflexo de reacção a um estímulo doloroso. A actividade deste último tipo de células é consistente com um papel facilitatório (Porreca et al., 2002), tendo já sido confirmada uma relação entre estados hiperalgésicos e a actividade aumentada das células tipo ON (Bederson et al., 1990). Mais ainda, a inibição da actividade celular no RVM reverte a hiperalgesia (Kaplan and Fields, 1991). Das áreas do cérebro envolvidas no controlo da dor, o RVM é, indubitavelmente, a mais estudada e compreendida. Presentemente, são conhecidas outras áreas que participam nesse controlo e, de particular interesse no contexto deste artigo, áreas que possuem propriedades facilitadoras da dor. Não entraremos em detalhe quanto à fisiologia destas, mas, a título de exemplo poderemos citar o núcleo do tracto solitário e a área pré-tectal anterior (APTN; Rees et al., 1995). 75 76 Conclusões Iniciamos este texto dando exemplos de vantagens evolutivas e de alguns contras que surgiram associados a estas. Nestes termos, contextualizamos a dor enquanto sistema de alarme do organismo. Recorrendo a uma metáfora, a maioria de nós concordará que possuir um alarme sonoro ruidoso no carro é garantia de segurança acrescida, pese embora o facto de este poder disparar em situações que não aquelas inicialmente previstas. Da mesma maneira, a dor tem uma função protectora enquanto regulada pelo sistema endógeno de controlo da dor (ver também o artigo Como é que as emoções controlam a dor? publicado no número anterior desta revista). Quando por algum motivo estes mecanismos deixam de funcionar correctamente a dor, tal como na analogia de que nos servimos, «dispara» fora de contexto. Sabe-se hoje que os mecanismos de controlo podem funcionar no sentido de facilitar ou inibir a dor. Quer por questões de ordem experimental, quer por questões de fundamento, durante muito tempo a possibilidade de a modulação da dor incluir uma vertente facilitadora esteve excluída das teorias da dor. De facto, porque haveríamos de ter um cérebro masoquista? A resposta a esta questão reside não só em dados científicos mas também na intuição e na experiência quotidiana de todos nós, incluindo aqueles que se dedicam ao estudo da dor os quais, por motivos óbvios, estão mais sensibilizados para o problema. É hoje facto aceite que existem áreas do encéfalo que facilitam a percepção da dor, como o DRt, RVM, NTS e APTN. A relevância biológica deste dado prende-se com a nossa percepção do mundo que nos rodeia. Quais os estímulos perigosos? Que devemos ou não comer para evitar uma cólica? Quando devemos mudar de posição para não causar mazelas nas nossas articulações? Neste contexto, a dor pode ser uma importante força motriz de reconhecimento e aprendizagem. Por outro lado, a dor numa situação de doença deve impelir-nos ao repouso ou até à imobilização total, favorecendo nestes casos uma recuperação rápida do organismo. Referimos também que, quando relevante, o sistema nervoso central pode suprimir ou diminuir a dor (analgesia) para, por exemplo, facilitar a fuga a um ambiente hostil, mesmo havendo lesões de pequena ou média gravidade. Estes mecanismos de supressão serão possivelmen- 77 te os mesmos que estão activos em pessoas submetidas a hipnose e explicarão porque é que estas sentem menos dor do que pessoas que têm a sua atenção focada no estímulo doloroso. Da mesma forma, existem pessoas capazes de se sujeitarem a estímulos muito agressivos sem que sintam qualquer dor (ver Figura 5), não devendo isto ser confundido com o prazer que alguns indivíduos retiram da experiência dolorosa. Finalizamos este artigo concluindo que há dores que vêm por bem, ilibando assim o nosso cérebro do cunho de masoquista, pelo menos em circunstâncias normais. Casos há – e a eles fizemos atrás referência – em que a dor perde o seu carácter benéfico, já que se torna crónica tornando-se um fardo difícil de carregar. Figura 5. Churuk Puja. No Churuk Puja ou a cerimónia do balançar, alguns homens engatam ganchos na pele das costas e deixam-se pendurar, balançando depois diante da multidão. Na cara destes homens não se vislumbra qualquer sinal de dor. Este ritual religioso decorre anualmente em algumas aldeias remotas da Índia. Imagem obtida em British Library Images Online Bibliografia 78 Ackerman J. 2006. O imperfeito homem bípede. National Geographic (edição Portugal), Julho. Almeida A, Cobos A, Tavares I, Lima D. 2002. Brain afferents to the medullary dorsal reticular nucleus: a retrograde and anterograde tracing study in the rat. Eur J Neurosci 16(1):81-95. 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A biodisponibilidade das benzodiazepinas é afectada pela idade, função hepática e indução das enzimas microssómicas hepáticas. O seu 80 mecanismo de acção depende da potenciação da acção do GABA por receptores específicos. As benzodiazepinas são usadas no tratamento da ansiedade, na hipnoindução, na anestesia geral, para relaxamento muscular. O uso de benzodiazepinas pode levar ao surgimento de efeitos adversos como sonolência, confusão mental, amnésia e perturbação da capacidade de condução de máquinas, desinibição e comportamento paradoxal. A sua utilização continuada poderá produzir tolerância e dependência, assim como síndrome de abstinência, estes efeitos são mais marcados nas moléculas de semi-vida curta. A utilização de benzodiazepinas deve ser encarada após cuidadosa avaliação da situação clínica do doente e suas expectativas. Sérgio Aires Gonçalves Assistente de Clínica Geral Especialista de Medicina Geral e Familiar Docente da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Fernando Pessoa Palavras-chave: Benzodiazepinas; farmacocinética; revisão A ansiedade pode manifestar-se por uma queixa expressa, por efeitos somáticos e autonómicos ou por interferência com as actividades da vida diária. A sua abordagem terapêutica inclui quer tratamento farmacológico quer psicoterapia, esta especialmente útil na ansiedade crónica4. 1.Introdução As benzodiazepinas (bzd) surgiram em 1961 acidentalmente, com a descoberta do clordiazepóxido1, 2, 3. Os estados de ansiedade e os problemas do sono são problemas com elevada prevalência sendo os sedativos/hipnóticos os medicamentos globalmente mais prescritos. As benzodiazepinas são consumidas por mais de 10% da população nos países desenvolvidos. Os idosos na 7ª década de vida recebem 66% mais de prescrições que os indivíduos na 6ª década. Apenas 25% dos doentes ansiosos são tratados4. O medo de estabelecimento de dependência leva a que muitas vezes os doentes sejam tratados com doses subterapêuticas o que muitas vezes provoca um mau controlo sintomático ou sintomas de abstinência. Um ansiolítico deve reduzir a ansiedade e produzir um efeito calmante produzindo pouco efeito sedativo ou relaxante muscular. Um hipnótico deve provocar sonolência e induzir e manter o sono. Este efeito pode ser obtido por doses mais elevadas dos ansiolíticos mais potentes.Os sedativos-hipnóticos caracterizam-se por uma depressão dose-dependente do sistema nervoso central, diferindo os diferentes fármacos na relação dose/efeito. As benzodiazepinas diferem dos sedativos mais antigos como os barbitúricos e alcoóis pelo facto de, em doses elevadas, não produzirem anestesia dada a sua curva dose/efeito mais aplanada. Estes sedativos mais antigos em doses tóxicas provocam uma intensa depressão respiratória e vasomotora produzindo potencialmente coma e podendo mesmo ser letais. 2. Classificação química Todas as estruturas mostradas são 1,4 benzodiazepinas e contêm na sua maioria um grupo carboxiamida na sua estrutura heptagonal heterocíclica. Um radical halogenado ou um grupo nitrosamina são necessários à sua actividade ansiolítica/hipnótica. As estruturas do triazolam e alprazolam incluem a adição de um grupo triazol nos carbonos 1 e 2, sendo por isso designadas por triazolobenzodiazepinas.As diferenças farmacocinéticas entre as benzodiazepinas são o factor mais importante para a sua utilização terapêutica nas suas diferentes indicações 2. 81 3. Farmacocinética das benzodiazepinas. 82 3.1. Absorção As benzodiazepinas são geralmente utilizadas por via oral, dependendo a sua absorção entre outros factores da sua lipossolubilidade. É particularmente rápida a absorção oral do triazolam sendo que a o diazepam e do metabolito activo do clonazepam é mais rápida que das restantes (ver tabela I). Pelo contrário, o oxazepam, o temazepam e o lorazepam são mais lentamente absorvidos que as restantes benzodiazepinas. A biodisponibilidade das benzodiazepinas por via intramuscular é variável 1-3. 3.2. Distribuição A solubilidade lipídica desempenha um papel importante na penetração das diferentes benzodiazepinas no SNC. Por exemplo o diazepam e o triazolam são mais lipossolúveis que o clorodiazepóxido e o lorazepam, daí o mais lento início de acção destes últimos fármacos. Este facto explica o facto do lorazepam que tem uma menor semi-vida que o diazepam possa, numa toma isolada ter uma duração de efeito mais prolongada 6. Os níveis de diazepam atingidos são mais elevados no cortéx cerebral que no sistema límbico e nos núcleos da base 2. A redistribuição das benzodiazepinas dá-se em primeiro lugar para o músculo-esquelético e, posteriormente, para o tecido muscular esquelético e finalmente para o tecido adiposo. A lipossolubilidade das benzodiazepinas contribui para a sua acumulação no tecido adiposo 2. As benzodiazepinas atravessam a barreira placentária, sendo que o equilíbrio das concentrações sanguíneas é mais lento no feto que na mãe. A distribuição ao feto acarreta a possibilidade de depressão respiratória do feto. As benzodiazepinas são também excretadas pelo leite materno e podem exercer efeito depressor do SNC no lactente. Apesar da ligação das benzodiazepinas às proteínas plasmáticas ser de 60% a 95% daqui não parece resultar interacções medicamentosas significativas. 3.3. Biotransformação e excreção Para a excreção das benzodiazepinas é necessária a sua conversão em metabolitos mais hidrossolúveis. Esta transformação processa-se predominantemente nos microssomas hepáticos. A maior parte das benzodiazepinas sofre oxidação (reacções de fase I), apresentando a maioria destes compostos actividade sedativa ainda maior que o fármaco de que derivam. Estes metabolitos acumulam-se produzindo efeitos cumulativos com o uso prolongado. Os metabolitos de curta duração resultantes destas reacções são conjugados em compostos glucuronoconjugados que são excretados pela urina 2. O uso de benzodiazepinas pode levar ao surgimento de efeitos adversos como sonolência, confusão mental, amnésia e perturbação da capacidade de condução de máquinas, desinibição e comportamento paradoxal. 3.4. Biodisponibilidade Afectam a biodisponibilidade de um fármaco: a função hepática, a idade, a indução e a inibição das enzimas microssómicas hepáticas. Em doentes idosos com doença hepática grave o tempo de semi-vida destes medicamentos aumenta significativamente resultando em aumento da sedação. No idoso, a glucuronoconjugação parece estar menos atingida do que a oxidação. As benzodiazepinas podem ser agrupadas em três categorias a referir: a) de metabolização hepática e de longa semi-vida como o diazepam; o uso em múltiplas doses destas substâncias está sujeito a acumulação; b) outro grupo de benzodiazepinas inclui as que sofrem glucuronoconjugação como o oxazepam que está sujeito a uma menor acumulação, a sua metabolização é menos afectada pela idade, doença hepática ou pelo uso concomitante de inibidores metabólicos 4,10 ; c) um terceiro grupo inclui compostos sujeitos a nitrorredução e cuja semi-vida varia entre as 18 e as 50 horas, devem ser evitados em doentes com doença hepática ou renal 4. As benzodiazepinas não alteram a actividade das enzimas microssómicas hepáticas com a sua utilização. Os seus níveis podem aumentar quando administradas concomitantemente com estrogénios 5. 83 Benzodiazepinas 84 Longa duração Clordiazepóxido Diazepam Flurazepam Clorazepato Clonazepam Prazepam Halazepam Ketazolam Clobazam Medazepam Quazepam Mexazolam Loflazepato de etilo Nordazepam Rapidez de absorção Rápida * 48-96 h 48-96 h 48-72 h 48-96 h 48-72 h 48-96 h 48-96 h 34-52 h 35 h 30-200 h 30-100 h 130-200 h 75 h * Duração intermédia Nitrazepam Oxazepam Lorazepam Temazepam Alprazolam Bromazepam Lormetazepam Loprazolam Estazolam Cloxazolam Flunitrazepam Lenta Lenta intermédia Lenta a intermédia Intermédia Rápida * * Intermédia * * 16-48 h 8-12 h 10-20 h 10-20 h 14 h 8-19 h 9h 7h 10-24 h * 29 h Curta duração Brotizolam Triazolam Midazolam * Intermédia Intermédia 6h 2-5 h 2-3 h *Sem informação documentada11 Intermédia Rápida Intermédia a rápida Rápida Intermédia Intermédia a lenta Lenta a intermédia Lenta * * Intermédia Semi-vida 4. Neurofarmacologia As benzodiazepinas ligam-se aos componentes moleculares do GABAA presentes nas membranas dos neurónios do SNC. Este receptor é constituído por uma proteína heteroligomérica transmembrana que funciona como um canal de cloreto, activada pelo neutransmissor inibitório GABA 1,8. Este neurotransmissor constitui o mais importante neurotransmissor dos SNC. Estudos electrofisiológicos sugerem que as benzodiazepinas potenciam a inibição sináptica produzida pelo GABA (hiperpolarização neuronal) a todos os níveis do SNC. Esta acção conduz a uma diminuição da taxa de resposta neuronal em muitas regiões do cérebro. A sua acção efectua-se no sistema reticular ascendente (vigília), no sistema límbico (afecto), no fascículo longitudinal medial (recompensa/ castigo) e no hipotálamo 3. O efeito das benzodiazepinas não depende da activação directa dos receptores GABAérgicos ou dos canais de cloro associados, passando pelo aumento da frequência da abertura dos canais de cloreto, talvez por potenciarem o aumento da afinidade destes para o GABA. Os receptores das benzodiazepinas podem ser classificados em BZ1 e BZ2. A maior parte das benzodiazepinas actuam nos dois subtipos de receptores contudo as imidazolopiridinas, como o zolpidem actuam exclusivamente no BZ1. Desta forma o zolpidem exerce um efeito hipnoindutor com efeitos mínimos no relaxamento muscular, na actividade anti-convulsiva e com um possível menor potencial de estabelecimento de tolerância e de dependência 1,2. Sedação pode ser definida como a supressão da resposta a um nível constante de estimulação com diminuição da actividade espontânea e da ideação. As benzodiazepinas pelo seu efeito ansiolítico são capazes de desinibir um comportamento condicionado podendo provocar euforia, perturbação do juízo crítico e perda da auto-crítica. 85 5. Efeitos terapêuticos 86 5.1. Sedação / Ansiólise Sedação pode ser definida como a supressão da resposta a um nível constante de estimulação com diminuição da actividade espontânea e da ideação. As benzodiazepinas pelo seu efeito ansiolítico são capazes de desinibir um comportamento condicionado podendo provocar euforia, perturbação do juízo crítico e perda da auto-crítica. 5.2. Hipnoindução Com o uso de benzodiazepinas verifica-se diminuição do tempo necessário a adormecer (latência do sono) 1, 3, aumento da duração do sono NREM, diminuição do sono REM e da duração do sono de ondas lentas. Os dois primeiros efeitos são favoráveis, os restantes de valor não avaliado. A diminuição do sono REM aumenta a irritabilidade e a interrupção da terapêutica é seguida por um aumento compensatório do sono REM. A utilização durante uma ou duas semanas de benzodiazepinas conduz a uma melhor tolerância dos seus efeitos sobre o sono 1,2. 5.3. Anestesia O diazepam e o midazolam por via endovenosa podem ser utilizados na anestesia mas não são suficientes para a indução desta. 5.4. Acção anticonvulsiva O clonazepam, nitrazepam, lorazepam e o diazepam podem exercer uma acção anticonvulsiva sem exercerem uma depressão marcada do estado de consciência 2. 5.5. Relaxamento muscular As benzodiazepinas produzem efeito relaxante muscular e reduzem a coordenação dos movimentos. 5.6. Efeitos na respiração e função cardiovascular Normalmente a depressão respiratória produzida pelas benzodiazepinas é idêntica à produzida pelo sono. Depressão grave do centro respiratório pode resultar da sua utilização em doentes com doença pulmonar grave. Estes efeitos podem ser potenciados por outros depressores do SNC, especialmente o álcool. Em caso de intoxicação medicamentosa esta depressão respiratória pode ser letal. Em estados hipovolémicos, insuficiência cardíaca e doenças cardiovasculares pode existir o risco de colapso circulatório. 5.7. Efeitos laterais Entre os efeitos laterais encontram-se a sonolência, a confusão, a amnésia, a dificuldade de coordenação motora e visual-motora 10; a perda de capacidade para condução de máquinas e a potenciação dos efeitos depressores do álcool 2. Estes fármacos podem provocar comportamento paradoxal, alterações perceptivas e alucinações. Entre os efeitos indesejáveis mais raros encontram-se: cefaleias, tonturas, perturbações gastrointestinais, exantemas e redução da líbido 3. Os idosos são mais vulneráveis aos efeitos secundários da medicação 7. 6. Tolerância e dependência A tolerância é uma característica das benzodiazepinas e caracteriza-se pela necessidade de doses crescentes para manter o efeito terapêutico pretendido. É importante reconhecer a tolerância cruzada entre as diferentes benzodiazepinas e o etanol. A tolerância pode-se estabelecer do ponto de vista metabólico, ou seja, farmacocinético ou da resposta no sistema nervoso central, tolerância farmacodinâmica. Inicialmente, a dependência é similar ao comportamento do fumador inveterado, posteriormente estabelece-se uma dependência fisiológica e tolerância. A dependência fisiológica caracteriza-se pela necessidade de administração continuada de uma substância para evitar o surgimento de uma síndrome de abstinência. Esta síndrome é caracterizada por ansiedade, perda do apetite, insónia crescente, irritabilidade, confusão, delírio, despersonalização, trémulo, cefaleias, fasciculação muscular, sudação, diarreia e em casos extremos, confusão, delírio, psicose e convulsões1, 2, 3. O uso de altas doses e uma supressão abrupta contribuem para o aparecimento deste tipo de síndrome. Benzodiazepinas com semi-vidas mais longas estão associadas a menores sinais físicos de abstinência, pelo contrário as benzodiazepinas de acção curta geralmente utilizadas para fins hipnóticos podem ser acompanhadas destes sinais mesmo entre doses. Sintomas de privação podem ocorrer após 3 dias de uso de alprazolam e lorazepam e após 2 ou 3 semanas de diazepam 3. A descontinuação do tratamento com as benzodiazepinas deve ser gradual, após tratamentos com duração igual ou superior a 3 semanas 9. A descida das doses deve ser progressiva, diminuindo um oitavo de dose cada duas semanas, para um total de 6 a 12 semanas. No final deste processo o uso de uma benzodiazepina de longa duração poderá ser útil. A tolerância pode-se estabelecer do ponto de vista metabólico, ou seja, farmacocinético ou da resposta no sistema nervoso central, tolerância farmacodinâmica. Inicialmente, a dependência é similar ao comportamento do fumador inveterado, posteriormente estabelece-se uma dependência fisiológica e tolerância. 87 7. Outras indicações terapêuticas Para além do tratamento da ansiedade e da indução do sono as benzodiazepinas podem ainda ser utilizadas no tratamento de ataques de pânico, privação alcoólica, terrores nocturnos, sonambulismo, espasmos musculares, epilepsia, anestesia e sedação para manobras invasivas. 88 O uso de benzodiazepinas nas diferentes indicações deve ser encarado após uma cuidadosa avaliação médica da situação do doente tendo também em consideração a duração das queixas e as expectativas deste em relação aos fármacos prescritos 5. Bibliografia 1-Katzung. Basic and Clinical Pharmacology: sedativehypnotic drugs. 7ª edição; McGraw-Hill, 1998: 354-363. 2-Rang HP, Dale NM, Ritter JM. Pharmacology: anxiolytic and hypnotic drugs. 4ª edição. Churchill Livingstone, 1999: 528-538. 3- Laurence M, Ben PM, Brown MD. Clinical Pharmacology: hypnotic and anxiolytic sedatives. 8ª edição. Churchill Livingstone, 1997: 317-321. 4-Labelle A., Lapierre YD: Anxiety disorders. Canadian Family Physician 39:2205-2213, 1993. 5- Yonkers K, Kando JC, Cole JO, Blumenthal S: Gender differences in pharmacokinetic and pharmacodynamics in psychotropic medication. American Journal of Psychiatry 149: 587-595, 1992. 6-Greenblat DJ, Shader RI, Abernethy D: Drug therapy: current status of benzodiazepines (first of two parts). The New England Journal of Medicine 309: 354-358, 1983. 7- Prinz PN, Vitiello MV, Raskind MA, Thorpy MJ: Geriatrics: sleep disorders and aging. The New England Journal of Medicine 323: 520-526, 1990. 8- Zorumski CF, Isenberg KE: Insights into the structure and function of GABA-benzodiazepine receptor: ion channels and psychiatry. American Journal of Psychiatry 148:162-173, 1991. 9-Greenblat DJ, Harmatz JS, Zinny MA, Shader RI: Effect of gradual withdrawal on the rebound sleep disorder after discontinuation of triazolam. The New England Journal of Medicine 317: 722-728, 1987. 10-Gillin JC, Byerley WF: The diagnosis and management of insomnia. The New England Journa l of Medicine 322: 239-248, 1990. 11- S. Aires-Gonçalves, R Coelho: Perturbação de Ansiedade Generalizada em Cuidados de Saúde Primários: abordagem e tratamento. Revista Portuguesa de Psicossomática 13-14: 65-75, 2005. Prémio Ser Saúde/ISAVE Em 2007, será anunciado o prémio Ser Saúde/ISAVE de ciência e investigação em saúde. Contactos: ISAVE | Campus de Geraz - Quinta de Matos | Geraz do Minho 4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253.639.800 | Fax – 253.639.801 Email - [email protected] | [email protected] Gustavo Afonso Enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá. Responsável pela Assistência Domiciliária de Enfermagem Lara Costa Enfermeira graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá Marta Miranda Enfermeira. Pós-Graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá Úlceras de 90 Pressão: Introdução As úlceras de pressão (UP) constituem um grave problema de saúde que afecta o indivíduo em todos os aspectos físicos, psíquicos e sócio-familiares. As suas consequências são ainda mais abrangentes quando o problema é analisado na sua vertente económica, visto que exigem elevados custos, quer a nível de recursos materiais quer humanos. A nível nacional, não existe nenhum estudo de incidência e prevalência que permita caracterizar o impacto das UP. O Grupo Nacional para el Estúdio y Asesoriamento en Úlceras por Presión y Heridas Crónicas (GNEAUPP) realizou, em Espanha, um estudo de prevalência das UP. Segundo este estudo, a prevalência das UP em doentes hospitalizados é de 8,8% enquanto que no domicílio é de 8,3%. Um estudo sobre o custo das UP também realizado em Espanha (Posnett e Torra i Bou, 2001) diz-nos que o custo estimado por episódio de tratamento em doentes com UP de grau IV é de 16.660 euros e que o custo As úlceras de pressão (UP) constituem um grave problema de saúde que afecta o indivíduo em todos os aspectos físicos, psíquicos e sócio-familiares. Prevenção e Tratamento total estimado para o tratamento das UP em Espanha é de 1.687.000 euros. Este mesmo estudo diz-nos ainda que o custo da prevenção por doente durante 30 dias é de 1.200 euros. Estes dados permitem-nos afirmar que as repercussões são vastas quer a nível humano como para o orçamento das políticas de saúde, tornando-se também evidente que a prevenção é a chave para a correcta abordagem das UP. Definição Segundo a European Pressure Ulcer Advisory Panel (EPUAP), uma UP é «uma lesão localizada na pele e tecidos subjacentes, causada por pressão, torção ou deslizamento, fricção e/ou uma combinação destes». 91 A avaliação da pessoa doente com risco de desenvolver UP deve avaliação do seu estado físico, psíquico e social. É desta avaliação a implementar no sentido de solucionar os problemas e/ou 92 Etiopatogenia O aparecimento de uma UP é explicado pela conjugação de múltiplos factores extrínsecos e intrínsecos. Sendo os intrínsecos os determinantes para a predisposição dos indivíduos para as UP, são também os mais difíceis de controlar. Como factores intrínsecos podemos destacar: idade, imobilidade, estado nutricional e patologias com graves repercussões na perfusão tecidular. Dos factores extrínsecos fazem parte: pressão, fricção, torção, deslizamento e humidade (incontinência, sudorese e exsudado de feridas). A pressão (força que actua perpendicularmente à pele comprimindo-a entre dois planos – um externo, como a cama, e outro interno como as proeminências ósseas), e a sua relação com o factor tempo, surgem como factor determinante para o desenvolvimento das UP. A pressão capilar num indivíduo saudável pode variar entre 6 e 32 mmHg. Quando a pressão exercida nos tecidos é superior a 32 mmHg, ocorre oclusão capilar e consequente hipoxia que se não aliviada conduz a necrose tecidular. ser feita de uma forma holística e multidisciplinar, contemplando a que deve resultar o planeamento de todas as intervenções necessidades diagnosticados. 93 Classificação Actualmente, a classificação aceite a nível internacional por associações como a National Pressure Ulcer Advisory Panel (NPUAP), a GNEAUPP e pela EPUAP é a classificação em 4 graus: Grau I: eritema não branqueável (não reversível ao alívio da pressão). A pele está intacta, edemaciada ou endurecida, com alterações da temperatura e com aumento da sensibilidade. Grau II: destruição da epiderme e de parte da derme. Úlcera superficial como uma abrasão ou flictena. Foto 1: úlcera de pressão grau I. Fotos 2 e 3: úlcera de pressão grau II. 94 Grau III: destruição total da epiderme e derme com envolvimento e necrose de camadas subcutâneas mais profundas (sem atingimento da fascia subjacente). Grau IV: extensa destruição tecidular, com necrose, envolvendo músculo, tendões e osso. Foto 4: úlcera de pressão grau III. Foto 5: úlcera de pressão grau IV. Localizações mais frequentes Decorrentes dos factores etiológicos existem localizações em que as UP são mais frequentes visto corresponderem a áreas submetidas a maior pressão. Segundo o primeiro estudo nacional de prevalência de UP realizado pela GNEAUPP em Espanha, as percentagens a nível hospitalar surgem distribuídas da seguinte forma: 95 • Região sacrococcígea: 50,45% • Calcâneos: 19,26% • Trocanteres: 7,64% Prevenção A avaliação da pessoa doente com risco de desenvolver UP deve ser feita de uma forma holística e multidisciplinar, contemplando a avaliação do seu estado físico, psíquico e social. É desta avaliação que deve resultar o planeamento de todas as intervenções a implementar no sentido de solucionar os problemas e/ou necessidades diagnosticados. Relativamente aos cuidados com a pele, deve ser feita uma inspecção diária dando relevância aos pontos sujeitos a maior pressão. A pele deve estar limpa, seca e hidratada. Nas zonas de maior risco (como o sacro, calcâneos e trocanteres) está aconselhada a aplicação de ácidos gordos hiperoxigenados visto haver evidências científicas de que estes aumentam a tonicidade cutânea, melhoram a micro- Neste caso, assume particular importância a aplicação de Escalas de Avaliação do Risco de Úlceras de Pressão (exemplo, Escala de Braden). Sendo um grave problema de saúde e de causa multifactorial, as UP são também evitáveis daí que a sua abordagem deva ser efectuada prioritariamente a nível da prevenção. Os cuidados preventivos devem incidir sobre os cuidados com a pele e controlo da humidade da mesma, sobre a abordagem da pressão e ainda sobre a nutrição da pessoa doente. Foto 6: aplicação de ácidos gordos hiperoxigenados. A desempenhar também um papel importante na prevenção das UP, surge-nos a nutrição e hidratação que muitas vezes é relegada para segundo plano. No entanto, um bom suporte nutricional pode evitar o aparecimento de UP como também favorece a sua cicatrização. 96 circulação e evitam a desidratação da pele. O controlo da humidade na pele é importante para evitar a sua desidratação e/ou maceração, controlando ou minimizando consequências de incontinência, sudorese profusa, feridas muito exsudativas e estomas. Dos cuidados preventivos fazem parte medidas que diminuam os efeitos causados por forças mecânicas externas como fricção, torção deslizamento e pressão. Para tal devem efectuar-se reposicionamentos de duas em duas horas ou de três em três horas segundo uma rotação programada (decúbito dorsal, decúbito lateral esquerdo, decúbito lateral direito). Como auxiliares destas intervenções existem equipamentos para alívio e redução da pressão como é o caso dos colchões de ar, colchões viscoelásticos, colchões mono e multidensidade, almofadas de gel e calcanheiras. É importante dizer que estes equipamentos, embora sejam grandes aliados para a abordagem e diminuição da pressão, nunca substituem as mudanças posturais. A desempenhar também um papel importante na prevenção das UP, surge-nos a nutrição e hidratação que muitas vezes é relegada para segundo plano. No entanto, um bom suporte nutricional pode evitar o aparecimento de UP como também favorece a sua cicatrização. Idealmente deveriam ser efectuadas avaliações periódicas do estado nutricional com base na análise de dados antropométricos e parâmetros bioquímicos. Uma dieta adequada proporciona os nutrientes necessários para melhorar a capacidade de resistência a infecções e aumentar a resistência da pele a agressões externas como a fricção e a pressão. Relativamente ao tratamento local das UP, este deve ser efectuado segundo princípios de tratamento em meio húmido, temática abordada no número 1 desta publicação – «Abordagem da Ferida Crónica – Tratamento Local» (páginas 112 a 119). Foto 7: superfícies especiais para redução da pressão. Casos clínicos Caso 1 Idade: 79 anos. Sexo: masculino. Patologias e factores de risco associados: imobilidade (doença de Alzheimer). Localização: calcâneo direito. Classificação: UP Grau III. Tempo de evolução: 3 meses. Tratamento anterior: iodopovidona. Duração deste tratamento: 7 semanas. Tratamento: De 06/ 04/ 2005 a 04/ 05/ 2005: aplicação de hidrogel + hidropolímero 3x/semana (total de 13 tratamentos). De 04/ 05/ 2005 a 27/ 05/ 2005: aplicação de hidropolímero 2x/semana (total de 7 tratamentos). 97 Caso 2 Idade: 85 anos. 98 Sexo: masculino. Patologias e factores de risco associados: imobilidade (TCE). Localização: calcâneo direito. Classfificação: UP grau IV. Tempo de evolução: 1 mês. Duração deste tratamento: 12 semanas. Tratamento: De 20/ 04/ 2005 a 30/ 05/ 2005: aplicação de carboximetilcelulose sódica 3x/semana (total de 17 tratamentos). De 30/ 05/ 2005 a 12/ 07/ 2005: aplicação de carboximetilcelulose sódica 2x/semana (total de 13 tratamentos). Caso 3 Idade: 80 anos. Sexo: feminino. Patologias e factores de risco associados: imobilidade (Alzheimer, AVC); HTA. Localização: trocanter esquerdo. Classificação: UP Grau III. Duração deste tratamento: 13 semanas. Tratamento: De 03/ 08/ 2005 a 14/ 09/ 2005: aplicação de hidrogel + hidropolímero 3x/semana (total de 18 tratamentos). De 14/ 09/ 2005 a 02/ 11/ 2005: aplicação de hidropolímero 2x/semana (total de 13 tratamentos). 99 100 Bibliografia European Pressure Ulcer Advisory Panel. (1998a). Pressure Ulcer Prevention Guidelines. European Pressure Ulcer Advisory Panel. (1998b). Pressure Ulcer Treatment Guidelines. Grupo Nacional Para El Estudio Y Asesoramiento En Úlceras Por PesiónY Heridas Crónicas. (2003). Documentos GNEAUPP. MORISON, Moya J. (2004). Prevenção e tratamento de úlceras de pressão. Lusociência – Edições Técnicas e Científicas, Lda. Loures – Portugal. ISBN 972-8383-68-1. Royal College of Nursing. (2001). Pressure Ulcer risk assessment and prevention. Recommendations 2001. London: Royal College of Nursing. Sub-grupo Hospitalar dos Capuchos/ Desterro, (2002). Recomendações para o tratamento ambulatório de úlceras de pressão. 1.ª Edição, Lisboa, Portugal. Grupo Nacional Para El Estudio Y Asesoramiento En Úlceras Por Pesión Y Heridas Crónicas. TORRA I BOU e SOLDEVILLA (coord). (2004). Atención integral de las heridas crónicas. Madrid, Espanha. ISBN 84 – 95552-18-3. Adelaide Serra Médica, consulta de Litíase Renal no Hospital Fernando da Fonseca Fernando Domingos Médico, a preparar tese de doutoramento na Faculdade de Medicina de Lisboa Prémio Bial de Medicina Clínica 2004 Avaliação Nefrológica de uma população com Litíase Cálcica Idiopática Recorrente Experiência de 7 anos da Consulta de Nefrolitíase do Serviço de Nefrologia do Hospital de Santa Maria 101 102 A litíase cálcica idiopática recorrente é a forma mais frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade, verificando-se um aumento progressivo da sua incidência nas últimas décadas, sobretudo nos países industrializados. Nas últimas décadas, tem-se verificado um aumento significativo da incidência de cálculos renais em todos os países industrializados e também na população portuguesa. De todas as formas de litíase renal, a litíase cálcica (ou seja, a formação de cálculos renais contendo cálcio), é a mais frequente na actualidade. Os doentes com litíase cálcica e cólicas renais frequentes apresentam várias alterações metabólicas (hereditárias, desencadeadas pela dieta, pelo ambiente, etc), cujo conhecimento é fundamental para uma correcta prevenção e tratamento da doença. Tendo em conta que estas alterações não tinham ainda sido identificadas na nossa população, este trabalho teve como objectivo a caracterização das principais alterações metabólicas presentes na população portuguesa com litíase cálcica recorrente. São apresentados os resultados de um estudo efectuado pelos autores ao longo de 7 anos, que permitiu identificar alterações urinárias na grande maioria dos doentes com litíase renal cálcica recorrente, sendo as mais frequentes o aumento da excreção de ácido úrico e de oxalatos na urina; foram também detectadas modificações dos hábitos alimentares da nossa população, nomeadamente um consumo dietético elevado de proteínas e de sódio e um baixo consumo de cálcio, que poderão estar relacionados com o aumento recente da incidência da doença. Documentámos ainda que, na maioria dos casos, estes doentes não foram tratados ou o seu tratamento baseou-se em medidas empíricas de validade científica duvidosa, de que resultaram complicações várias, nomeadamente a nível ósseo e da função renal. Os resultados encontrados poderão permitir a modificação significativa da forma como esta doença é entendida, quer pela população quer pela própria comunidade médica, impondo a necessidade de investigação metabólica e posterior instituição de medidas de prevenção adequadas, que controlem a doença e reduzam os custos sócio-económicos com ela relacionados. 103 A prevalência global da nefrolitíase na população mundial é de cerca de 10%,com variações importantes em várias regiões, mesmo em populações com graus de desenvolvimento semelhantes. No continente europeu estão relatadas taxas de prevalência entre os 5% e 9% da população. Variações dietéticas, ambientais e genéticas poderão justificar aquelas diferenças. A litíase cálcica idiopática recorrente (LCIR) é a forma mais frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade, verificando-se um aumento progressivo da sua incidência nas últimas décadas, sobretudo nos países industrializados. Os motivos para este aumento parecem relacionar-se com a melhoria das condições de vida que se tem verificado após a Segunda Grande Guerra, nomeadamente com a melhoria dos parâmetros nutricionais. Também tem sido observado um aumento da incidência de LCIR na população portuguesa durante as últimas décadas. A dieta tradicional portuguesa era uma dieta de tipo mediterrânico, saudável. Essa dieta parece estar a modificar-se gradualmente nos últimos anos, principalmente junto das camadas mais jovens da população. Este estudo foi efectuado com o objectivo de perceber as causas mais frequentes de LCIR na população portuguesa e identificar os factores metabólicos que lhe estão associados. Efectuámos o estudo metabólico dos doentes com LCIR enviados à consulta de nefrolitíase dum Hospital Central de Lisboa durante um período de 7 anos consecutivos, entre Dezembro de 1996 e Dezembro de 2003. Todos os doentes com critérios diagnósticos de LCIR foram estudados consecutivamente durante este período, tendo sido avaliados os parâmetros clínicos e os resultados do estudo metabólico da nefrolitíase. Este último consistiu num mínimo de 3 avaliações laboratoriais, que incluíram um conjunto de parâmetros séricos e urinários habitualmente estudados nesta doença. Duas das avaliações foram efectuadas antes de qualquer intervenção terapêutica ou dietética, sendo a terceira realizada após correcção de eventuais erros dietéticos. Na maioria dos casos, a caracterização dos hábitos alimentares foi efectuada através de entrevista com uma dietista do Departamento de Nutrição. Foi ainda avaliada a densidade mineral óssea por densitometria e efectuados doseamentos dos marcadores bioquímicos de remodelação óssea. Concluímos que a litíase cálcica idiopática recorrente é uma doença frequentemente sub-diagnosticada e sub-tratada na população portuguesa, sendo o estudo e tratamento preventivo da recorrência frequentemente omitidos na prática clínica corrente. 104 Completaram o estudo 186 doentes, 85 homens e 101 mulheres, com média de idades de 48,7 ± 13,5 anos, tempo médio de doença de 10 anos e intervalo de tempo médio entre episódios de 7,5 meses. Em 37,6% dos casos havia história familiar de nefrolitíase, sendo a idade de início da doença significativamente menor neste grupo quando comparada com os doentes sem antecedentes familiares de litíase renal (32,0 ± 10,2 versus 39,3 ± 13,7 anos, respectivamente; P < 0,001). Dos doentes observados, 72,6% nunca tinha efectuado qualquer tratamento, 21,5% tinham feito tratamento urológico e 5,9% apenas tratamento médico. Havia registo de complicações major em 11,3% dos casos. Foram identificadas alterações metabólicas em 95,2% dos doentes e a maioria apresentava mais de uma alteração. Comparados com um grupo de controlos saudáveis, verificou-se que os doentes do grupo LCIR apresentaram fosfatase alcalina total mais elevada no sangue (P < 0,001), e cálcio (P < 0,05), sódio (P < 0,05) e cloro (P < 0,05) urinários mais elevados (P < 0,05), e pH (P < 0,05) e citrato (P < 0,001) urinário mais baixo. No grupo LCIR foi identificada hiperuricosúria (HU) em 56,5% dos casos, hiperoxalúria (HO) em 45,7%, hipercalciúria (HC) em 28,5%, hipocitratúria (HipoCit) em 28,5%, hipomagnesiúria (HipoMg) em 5,4% e baixo volume urinário (VOL) em 24,2% dos casos. Com excepção da HipoMg e VOL, todas as restantes alterações foram significativamente mais frequentes no grupo LCIR do que no grupo de controlo. Foi observada diminuição da massa óssea (osteopenia ou osteoporose) na densitometria de 53/94 doentes com LCIR. As alterações da densitometria foram mais frequentes no sexo masculino (38/53 homens e 15/41 mulheres tinham lesão óssea; P < 0,001). Nos homens verificou-se associação da lesão óssea com HC (P < 0,05). A HipoCit e o elevado consumo de proteínas estiveram associados a diminuição de massa óssea em ambos os sexos. 105 Os marcadores bioquímicos de reabsorção óssea não se revelaram úteis no estudo da doença óssea associada à LCIR. A maioria dos doentes com LCIR apresentava hipertensão arterial (55,4% do total), mas não identificámos relação directa com a LCIR, podendo a HTA estar associada a idade mais avançada e a maior consumo de proteínas. O estudo dos hábitos alimentares revelou que os doentes com LCIR apresentam ingestão média de cálcio inferior ao desejável, não havendo correlação com a sua excreção urinária. A excreção urinária de cálcio correlacionou-se positivamente com a excreção de sódio (r=0,366; P < 0,001) e de cloro (r=0,313; P < 0,001), que estavam também significativamente mais elevados nos doentes do grupo LCIR do que no grupo de controlo. O consumo de proteínas foi superior ao desejável (mediana = 17% do consumo calórico diário; percentil 25 e 75 = 15% e 19%, respectivamente). Após intervenção dietética verificou-se redução do número de alterações urinárias em 57 de 123 doentes que fizeram inquérito alimentar, facto que reforça o papel dos factores nutricionais na etiopatogenia da litíase cálcica. Concluímos que a LCIR é uma doença frequentemente sub-diagnosticada e sub-tratada na população portuguesa, sendo o estudo e tratamento preventivo da recorrência frequentemente omitidos na prática clínica corrente. A avaliação metabólica permite a identificação de alterações na grande maioria dos casos; a sua realização permite a instituição de terapêutica médica específica, prevenção de complicações e correcção de condições associadas à LCIR num elevado número de indivíduos afectados por esta doença. Os hábitos dietéticos parecem ter um papel importante na etiopatogenia da LCIR nesta população. Benedita Aguiar Docente do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto do Ave. Fundadora do GAPAS – Gabinete de Apoio Psicológico, Acompanhamento e Saúde do ISAVE, mestre em Psicologia da Saúde – Universidade do Minho; doutoranda em Psicologia Clínica e 107 Psicologia da Saúde e Promoção A Psicologia da Saúde: Definições A Psicologia da Saúde é o conjunto das contribuições explícitas,educativas/formativas, científicas e profissionais da Psicologia para a promoção e manutenção da saúde, prevenção e tratamento da doença, assim como, relativamente à identificação da etiologia da doença, com o objectivo de melhorar a prestação de cuidados de saúde e promover a formação ou desenvolvimento de uma política sanitária (Matarazzo, 1980). A Psicologia da Saúde é o «conjunto das contribuições específicas, educacionais, científicas e práticas da disciplina de Psicologia, para a promoção e manutenção da saúde, prevenção e tratamento da doença e disfunções relacionais» (Matarazzo, 1980:18). Segundo Ogden (1999) a Psicologia da Saúde tem dois objectivos centrais. O primeiro é compreender, explicar, desenvolver e testar teorias e o segundo é pôr em prática a teoria. A Psicologia da Saúde tem dado contributos bastante significativos em diversas áreas, directa e indirectamente relacionadas com a Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma série de trabalhos no âmbito da representação mental da doença, adesão terapêutica e relação stress/condição de doença. 108 da Saúde No primeiro pressupõe-se que a Psicologia da Saúde avalie o papel do comportamento na etiologia da doença, seleccione/identifique os comportamentos prejudiciais para a saúde, desta forma enquadram o papel da Psicologia da Saúde na representação e vivência da doença, e avalie o papel desta área, concretamente ao nível do tratamento da doença. Relativamente ao segundo objectivo traçado por Ogden prevê-se que o psicólogo da saúde promova comportamentos conducentes a uma melhoria do estado de saúde e previna o aparecimento da doença. Deste modo, «a Psicologia da Saúde veio desafiar a visão corpo-mente, ao propor um papel para a mente, tanto na causa como no tratamento da doença» (Ogden, 1999:18). A Psicologia da Saúde tem dado contributos bastante significativos em diversas áreas, directa e indirectamente relacionadas com a 109 Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma série de trabalhos no âmbito da representação mental da doença, adesão terapêutica e relação stress/condição de doença. Há ainda a salientar a descoberta de novos fenómenos que contribuem para o desenvolvimento de estudos sobre qualidade de vida (O`Boyle, McGee & Joyce, 1997; cit. por Johnston, 1997), os estudos sobre variáveis preditivas de estados de saúde e de doença (Haynes, Feinleib & Kannel, 1980; Barefoot, Lahlstrom & Williams, 1983; cit. por Johnston, 1997), os estudos que incidem na análise da relação entre variáveis psico-cognitivas e seus efeitos na saúde (Schwarzer, 1997; cit. por Johnston, 1997), nomeadamente a relação entre factores emocionais e a competência mental na terceira idade e a relação entre a Psicologia Social e a Psicologia da Saúde (Conner & Norman, 1996; cit. por Johnston, 1997). Outros estudos incidem sobre os benefícios do suporte social (Scott, Klaus e Klaus, 1999), nomeadamente no que diz respeito à prática do aleitamento materno (Raphael, 1989), bem como na prevenção da depressão pós-parto (Trotter e col., 1992). Citando alguns trabalhos na área da Psicologia da Saúde, podemos mencionar: a) Prevenção das doenças físicas ou fisiológicas (Odgen, 1999); b) Estudos sobre crenças de doentes crónicos (Hays e Stewart, 1990); c) Relação entre suporte social e estado de saúde (Campero e col. 1998), d) Relação entre a auto-eficácia e o comportamento aditivo (DiClemente, 1986); e) intervenção em grupo na promoção da saúde (Pereira, 2001); f) Variáveis psicológicas na gravidez (Pereira, Ramalho & Dias, 2002) e g) Prevenção primária da toxicodependência: avaliação de uma intervenção de grupo em crianças com idades entre os 8-9 anos (Pereira & Moreira, 2000). Para além destes aspectos dever-se-á focar as intervenções da Psicologia da Saúde,nomeadamente as que têm um carácter biopsicossocial e, por isso, multidisciplinar (prevenção da SIDA, das doenças cardiovasculares, redução dos sintomas na artrite reumatóide, trabalho de estratégias de redução do “stress”, entre outras). A Psicologia da Saúde tem dado contributos consideráveis no tratamento de doenças crónicas, na descrição de fenómenos, no desenvolvimento de técnicas/estratégias de promoção da saúde e prevenção da doença e nas relações preditivas em diversos factores e técnicas de intervenção terapêutica (Johnston, 1997). Segundo McGinis (1991, cit. por McIntyre, 1994) a agenda de política ao nível da saúde, nos Estados Unidos, contava com três áreas de intervenção prioritárias relativas à promoção da saúde, à protecção da doença e aos serviços preventivos. O Programa Multimodal de Preparação para o Parto enquadra-se numa lógica promotora da saúde materno-infantil e vai ao encontro de um objectivo fulcral dos psicólogos da saúde que é o de desenvolver programas comportamentais, no sentido de incrementar comportamentos de saúde (McIntyre, 1994). O local onde é proposta a sua implementação faz parte dos locais de trabalho do psicólogo da saúde e pressupõe uma lógica multidisciplinar. A promoção da saúde visa a melhoria da saúde e a prevenção da doença, sendo o seu principal foco de atenção a prevenção das perturbações físicas. O(s) Conceito(s) de Saúde e Doença O conceito de saúde induz, constantemente, a diferentes significados sendo, ao mesmo tempo, um constructo com alguma evolução histórica e contextual (Millstein, Petersen & Nighingale, 1991). Dentro desta evolução histórica e contextual o conceito de saúde adquire vários significados. De acordo com Gluck (1994): «teólogos e filósofos tomam a mente como um atributo especial dos seres humanos à parte do físico. Particularmente, desde Descartes, subdividiu-se a unidade essencial do homem em corpo e mente.Tudo o que fosse corpóreo podia ser relegado para a ciência, mas a mente humana, como atributo divino, não poderia ser submetida a tal escrutínio como o sistema circulatório (…). Condutas ou modos de pensar aberrantes eram considerados tecnologicamente como sinais de ´loucura divina`, ´possessões demoníacas`, etc. (…). O tratamento podia incluir o exorcismo, a oração, imolação ou confissão forçada. Os transtornos da mente eram terreno dos sacerdotes e inquisidores e o conteúdo da loucura não era interpretado à luz da história pessoal, mas sim de acordo com o dogma religioso em voga» (Gluck, 1994:2). Deste modo, como se pode constatar, o domínio da mente pertencia à Teologia, até que este aspecto gerou reacções que se fizeram sentir aquando do apogeu da Medicina Grega. Assim sendo, os processos mentais passam a ser vistos não como influenciados por instâncias divinas ou demoníacas,mas sim como manifestações de processos corpóreos. Os organicistas, ao contrário dos idealistas teólogos, centravam o seu interesse em aspectos fisio-patológicos observáveis e mensuráveis tendo-se caído num certo extremo redutor, que prevaleceu até aos anos 20/ 25 (Ribeiro, 1993). Nos finais do século XIX e não conseguindo evitar a evolução de descobertas científicas, o paradigma médico da Antiguidade dá lugar a uma visão mais focalizada no organismo humano e nas partes físicas que o constituem. Denominado de Modelo Biomédico, consi- 110 derava o conceito de saúde como ausência de doença ou disfunção fisiológica, passando por um tratamento da doença causada por agentes infecciosos (Noack, 1987). No período em que vigorava o Modelo Biomédico a doença era entendida apenas na sua dimensão biológica e reduzida a um processo simples. Deste modo, atribuía-se maior importância à doença em si, do que à preocupação revelada pelos danos causados pela mesma e estabelecia-se uma relação de poder do médico face ao paciente (Ribeiro, 1993). 111 Este Modelo também pretendia responder a algumas questões, nomeadamente, O que causa a doença? Quem é o responsável pela doença? Como deve ser tratada a doença? Quem é o responsável pelo tratamento? Qual é a relação entre saúde e doença? Qual é a relação mente e corpo? Qual é o papel da Psicologia na doença e na saúde? (Meyers & Benson, 1992). Hipócrates caracterizava a saúde como sendo um estado de equilíbrio dinâmico entre componentes psicológicos, biológicos e ambientais. Por sua vez, a doença caracterizava-se pelo desequilíbrio desta homeostasia. Esta visão «ecológica» sustentava o organismo no seu contexto social e ambiental (Noack, 1987;Taylor, 1999). Engel (1977) salientou a importância do Modelo Biopsicossocial em detrimento do Modelo Biomédico. Contudo, na década de 80, as imagens funcionais do cérebro revelamnos detalhes significativamente importantes da Neurofisiologia. Como se pode constatar passou-se para um outro extremo em que os factores psicológicos e sociais da doença são completamente alienados (Ribeiro, 1993). Aquando do aparecimento da Organização Mundial de Saúde – OMS – em 1948, esta define um novo conceito de saúde mais operacional. Neste sentido define saúde como Período Pré-cartesiano Até ao século XVII Período científico / M. Biomédico Século XVII: Rev. Industrial Pens. Científico • As doenças não são causadas por espíritos malignos, nem por Deuses; • A doença tem uma causa natural, que obedece a determinadas leis naturais; • Medicina afasta-se do soberano e cinge-se à observação naturalista e ao raciocínio dedutivo; •A doença poderia resultar do desequilíbrio de quatro humores ou então do desequilíbrio do meio onde ele está inserido: o ambiente e o estilo de vida influenciam a saúde; • Realçou a importância da relação médico – doente. • Baseia-se no pensamento científico; • Tem uma visão mecanicista e reducionista do homem e da natureza; • O homem é como uma máquina e cada peça constituinte (os órgãos) é estudada separadamente; • O organismo é a soma das partes; • Descartes: o homem é como um relógio; se o relógio se avaria o homem fica doente; • Curar a doença = reparar a máquina (Engel, 1977); • Nasce o modelo Biomédico: → Reduz o todo, pela soma das partes; • O homem deixa de ser o centro das atenções, passando este a ser as características universais da doença; • Os factores psicossociais perdem o valor. “o mais completo bem – estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou invalidez”. Ao contrário da definição anterior, esta já inclui a dimensão social e mental de saúde. Perante esta perspectiva da OMS, outros autores definiram o conceito de saúde como algo mais flexível em que o indivíduo saudável era mental e corporalmente equilibrado, bem ajustado ao seu meio físico e social com controlo total dos seus recursos pessoais» (Sigeist, 1991 cit por Ribeiro, 1994b). Esta visão do conceito de saúde ultrapassa a visão reducionista do Modelo Biomédico, pois a conceptualização de saúde evoluiu de um Modelo basicamente biológico para outro que incorpora não só aspectos físicos, mas também psicológicos e sócio-ambientais. Assim, a saúde é caracterizada segundo um Modelo Biopsicossocial (Engel, 1977; Seeman e col., 1984; Millstein, Petersen & Nightingale, 1993) como uma experiência de bem-estar pessoal que passa pela sensação de cumprir o próprio potencial de saúde individual. O Modelo Biopsicossocial definido por Engel (1977) representa uma tentativa de integrar o fisiológico e o meio ambiental no modelo de Saúde Biomédico tradicional, aliando os contributos biológicos e os contributos psicológicos da saúde e da doença aos contributos sociais ligados à saúde. Cada vez mais, este Modelo tem vindo a ser utilizado nas áreas de investigação em saúde, concretamente na área da Psicologia da Saúde (Odgen, 1999). Os termos saúde e doença não são condições estáveis mas sim conceitos vitais sujeitos a uma constante avaliação e mudança (Engel, 1977). Foi recentemente que o conceito de doença foi alterado, uma vez que este era mecanicamente definido como «ausência da saúde» e a saúde como «ausência da doença». Estas definições eram reducionistas, na medida em que descuravam outros aspectos essenciais na operacionalização do conceito (Ribeiro, 1993). 1ª Revolução em saúde Século XIX: Desenvolvimento da saúde pública 2ª Revolução em saúde Século XX (década de 70) • Nasce na sequência dos efeitos nefastos que a revolução industrial teve para a saúde; • Aumento das doenças com elevada mortalidade; • Advento da saúde pública, dada a necessidade de mudar os padrões de comportamento - hábitos e estilos de vida de grandes massas populacionais; • Aplicou-se o modelo Biomédico à saúde pública; • Continuaram a negligenciar-se os factores psicossociais com impacto nas condições de saúde e de doença. • A abordagem deixa de ter o seu centro na doença e respectiva prevenção, passando a centrar-se na saúde; • As doenças com etiologia comportamental tendem a aumentar no início do século XX (McIntyre, 1994) o que contribuiu para a necessidade de atender estes factores no estudo dos conceitos “saúde” e “doença”; • Outras causas: Ramos (1988) → Alterações demográficas; → Revolução tecnológica; • Surgem dois conceitos fundamentais: → “Promoção da saúde”; → “Estilo de vida”. Quadro 1 – Marcos na evolução dos conceitos de Saúde e Doença 112 As perspectivas redutoras levaram investigadores e profissionais a descurar os componentes emocionais e sociais da saúde e da doença (Bolander, 1998). Por sua vez, definições mais flexíveis e ecléticas têm em consideração muitos aspectos causais de doença e manutenção da saúde, bem como factores físicos, psicológicos e sociais (Seeman e col. 1984). 113 Pode-se entender que a presença ou ausência da doença é um problema pessoal e social. Pessoal porque a capacidade individual para trabalhar, ser produtivo, divertir-se, entre outras, está relacionada com a saúde física, mental da pessoa e social, pois a doença pode afectar o padrão de relacionamentos interpessoais (Odgen, 1999). De acordo com Meyers e Benson (1992) há duas concepções distintas que têm marcado a história da Medicina: a concepção fisiológica e a concepção ontológica.A primeira concepção foi iniciada por Hipócrates, a qual refere que o desequilíbrio de forças da natureza é que origina a doença. A segunda concepção entende as doenças com «entidades» exteriores ao organismo. Deste modo, procura classificar os processos de doença, elaborar um diagnóstico; identificar os órgãos que, por estarem perturbados provocam determinados sintomas. Ribeiro (1993) salienta quatro períodos na definição de saúde e de doença: período pré-cartesiano (até ao século XVII); período científico ou de desenvolvimento do modelo biomédico (coincide com o desenvolvimento do pensamento científico e com a resolução em saúde (século XIX: desenvolvimento de saúde pública) e segunda Revolução da Saúde (década de 70). Aos vários conceitos de saúde postulados pelos diversos autores, segue-se um novo paradigma (biopsicossocial) que enfatiza a realização dos potenciais da saúde para cada indivíduo. Assim, vamos debruçar-nos sobre a promoção da saúde no ponto que se segue. (ver quadro 1). A promoção da Saúde A promoção da saúde visa a melhoria da saúde e a prevenção da doença, sendo o seu principal foco de atenção a prevenção das perturbações físicas. Lalonde (1974; cit. por Ribeiro, 1994) definiu promoção da saúde como «o agregado de decisões individuais que afectam a vida (do indivíduo) e sobre as quais tem algum controlo». A Organização Mundial de Saúde definiu a promoção da saúde como «um aglomerado de padrões comportamentais (…) que dependem das condições económicas e sociais, da educação, da idade e de muitos outros factores» (WHO, 1988:14) Recentemente a promoção da saúde tem tido um papel mais efectivo e educacional, concentrando-se na mudança de comportamentos individuais, crenças e atitudes, isto é, a partir do que se considera determinantes do comportamento, apostou-se na promoção de um melhor estado de saúde (Bennet & Murphy, 1999). A promoção da saúde tem vindo a evoluir em diversas áreas, nomeadamente na área da educacional, económica, ambiental, social e legislativa, com vista a uma melhoria da saúde e bem-estar da população (Adler & Matthews, 1994). A educação (instrumento de promoção da saúde) para a saúde tem sido caracterizada como uma actividade promotora da aprendizagem, relacionando a saúde e a doença com o objectivo de diminuir qualquer factor que comprometa a saúde do indivíduo e que, por sua vez, seja permanente para a competência do mesmo (McGee, 1997). Deste modo, a aprendizagem de várias experiências permite a adopção de comportamentos voluntários à saúde (Adler & Matthews, 1994). Com a inclusão de outros organismos hierarquicamente superiores é facilitado um alargamento à população em geral (McGee, 1997). No decorrer desta perspectiva de carácter Através dos profissionais de saúde, dando-lhes competências especializadas, poder-se-á concretizar mais facilmente os objectivos da Promoção da Saúde. social encontram-se duas dimensões bastante distintas: 1) a regulacionista social que visa a educação para a saúde suportada pela estrutura social, promovendo assim a educação para a saúde modificando a percepção individual e, por sua vez, fornecendo as estratégias necessárias à alteração do comportamento de saúde (Caplan, 1993), e a perspectiva estruturalista radical que define más condições de saúde como o desequilíbrio de poder na sociedade. Assim, a educação para a saúde passará por uma reestruturação da sociedade e dos seus recursos (Caplan, 1993), de modo a torná-la acessível a todos. Neste contexto, a Psicologia tem um papel a desempenhar, designadamente nos programas dirigidos quer à mudança e promoção individual quer mais de ordem social (Ribeiro, 1993). A promoção de comportamentos saudáveis desencadeia atitudes de prevenção da doença nos utentes. Através dos profissionais de saúde, dandolhes competências especializadas, poder-se-á concretizar mais facilmente os objectivos da Promoção da Saúde. Kasl e Cobb (1996) definiram três tipos de comportamentos relacionados com a saúde: um comportamento de saúde tem como objectivo impedir o aparecimento de uma doença; um comportamento de doença encontra um tratamento, e um comportamento de utente tem como objectivo ficar saudável. Esta categorização permite tentar dar resposta a tudo o que se relacione directa e indirectamente com a doença na medida da prevenção/intervenção, e com a saúde na medida da sua promoção. De um modo mais geral pode dizer-se que os comportamentos de saúde estão na base da construção dos principais constructos que constituem a Psicologia da Saúde e que permitem caracterizar e definir comportamentos de saúde. Consequentemente, e de acordo com a Carta de Otawa (1986), a promoção para a saúde passaria por um processo devidamente desenvolvido e ajustado, capacitando as pessoas para aumentarem o seu «locus» de controlo. Deste modo, controlavam e regularizavam os 114 115 seus comportamentos e estilos de vida mais saudáveis, indo ao encontro de uma melhoria da sua sanidade física e mental. Como tal, pode considerar-se que a promoção da saúde tem como grande objectivo a mudança de comportamentos, estando estes associados à adopção de um estilo de vida mais saudável (Ribeiro, 1994). Assim, distingue-se comportamentos de saúde como sendo um conjunto de atitudes cujo objectivo é impedir uma doença (Kals & Cobb, 1996), estando relacionados com a protecção do estado de saúde do indivíduo (Matarazzo, 1984). Estes comportamentos podem ser prejudiciais para a saúde (comportamentos patogénicos) ou de protecção para a saúde (comportamentos imunogénicos) (Matarazzo, 1984). Caracterizando os focos de intervenção, a expressão «condições de vida» permitiu que a definição de «promoção da saúde» ultrapassasse factores estritamente comportamentais observáveis em geral durante o relacionamento interpessoal básico, para se prender a uma teoria de interacção mais complexa dentro do meio ambiente social em que o conjunto de normas sociais definiu um «estilo de vida». Assim a «promoção de saúde» alargou-se a uma combinação de dimensões ambiental, educacional, social, individual (Caplan, 1993). Associado ao tema da promoção para a saúde está o estilo de vida, que tem sido reconhecido como um «distinto e reconhecível modo de vida» (Carta de Otawa, 1986), isto para se alcançar um estado adequado de bemestar físico, mental e social. Assim, o estilo de vida caracteriza-se por comportamentos devidamente sustentados e postos em prática pelo indivíduo de modo controlado e frequente com vista à promoção do seu estado de saúde, reduzindo a probabilidade de doença. Deste modo, o seu bem-estar físico, psíquico e social entrariam em fase de equilíbrio. Iria, pois, ao encontro do postulado pelo Modelo Biopsicossocial, em que o potencial do indivíduo e do meio conduziam a comportamentos adequados à manutenção do bem-estar pessoal (Engel, 1977). Não caindo em reducionismos, a Psicologia da Saúde procura desencadear mudanças de comportamentos, designadamente ao nível individual, enquanto que a promoção da saúde visa provocar mudanças do comportamento organizacional, crenças em saúde e oportunidades de aprendizagem. A promoção da saúde é um investimento essencial visto que a saúde é um direito fundamental do ser humano e um factor indispensável para o desenvolvimento económico e social. Tem vindo a ser considerada, cada vez mais, como um elemento para conseguir ganhos em saúde. É um processo que visa aumentar a capacidade individual para um maior controlo e melhoria da sua preparação para a saúde. Assim, investindo e intervindo na saúde, está-se a contribuir para os ganhos em saúde, reduzir as desigualdades, promover os direitos do ser humano e contribuir para o desenvolvimento social, tendo como objectivo final aumentar as expectativas de vida saudável (4ª Conferência Internacional, 1997, Jacarta). As estratégias de promoção da saúde podem descrever e mudar estilos de vida e para atingir este patamar é necessário estabelecer protocolos públicos e saudáveis, criar ambientes favoráveis à saúde e reforçar a acção comunitária (Carta de Otawa, 1986). Actualmente, existe uma forte tendência para considerar as abordagens globais de desenvolvimento da saúde as mais efectivas, os ambientes específicos oferecem possibilidades correctas para a implementação de estratégias globais; a participação é indispensável para sustentar reforços e a aprendizagem em saúde favorece a participação. Estas estratégias são fundamentais para a promoção da saúde nos nossos dias. Ribeiro (1993) sublinha a promoção da saúde como uma aliança entre apoios educacionais e ambientais para alcançar objectivos com vista à saúde das pessoas. Tudo isto passa pela criação de condições ecológicas e pela intervenção dos órgãos de soberania e da sociedade civil para uma optimização e mudança de comportamentos e atitudes face à saúde. Para além de promover estas práticas, surgem, ainda, novas propostas para o futuro: promover a responsabilidade social no que diz respeito à saúde, reforçar os investimentos para o desenvolvimento em saúde, consolidar e expandir as parcerias em saúde, aumentar a capacidade da comunidade e do indivíduo e garantir uma infra-estrutura para a promoção da saúde.Todos os países devem dar condições 116 políticas, jurídicas, pedagógicas, económicas e sociais para a promoção da saúde, apelando para a acção em parceria com a Organização Mundial da Saúde (WHO, 1994). Não caindo em reducionismos, a Psicologia da Saúde procura desencadear mudanças de comportamentos, designadamente ao nível individual, enquanto que a promoção da saúde visa provocar mudanças do comportamento organizacional, crenças em saúde e oportunidades de aprendizagem. No decorrer desta linha de pensamento evidencia-se a importância do desenvolvimento de programas de promoção da saúde em diver117 Referências Adler, N., & Matthews, K. (1994). Health psychology: why do some people get sick and some stay well? Annual Review of Psychology, 45, 59-229. Bennet, P., & Murphy, S. (1999) Psicologia e promoção da saúde. Lisboa: Ed. Climepsis. Bolander, V. (1998). Enfermagem fundamental: abordagem psicofisiológica. Lisboa: Ed. Lusodidacta. Engel, G. (1976).The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science, 196, 129. Gluck, P. (1994). Modelo Biopsicossocial evolutivo en psiquiatria. Boletin da escola de medicina da Universidade Católica do Chile, 23, 86-91. 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Assim pretende-se também alcançar um maior número de pessoas, com a ajuda de pessoal especializado, através de um conjunto de contribuições educacionais, científicas e profissionais da Psicologia da Saúde para a promoção e a manutenção da saúde, a prevenção e tratamento de doenças, a identificação da etiologia e dos correlatos de saúde, doença e função relacionados, bem como com a melhoria da saúde (Matarazzo, 1980), juntamente com a participação de Entidades hierarquicamente superiores promover-se-á mudanças no comportamento da sociedade em geral. healding: a new prespective on an old debate. Behavioural Medicine, 18, 5-11. Millstein, A., Petersen, E., & Nightingale, O. (1991). Promoting the health of adolescents - New directions for the twenty-first century. New York: Oxford University Press. Ogden, J. (1999). Psicologia da Saúde. Manuais Universitários. Lisboa: Climepsi Editores. Pereira, M. G. (1998). Adesão aos regimes de tratamento na perspectiva dos modelos biopsicossocial. 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The effect of social support during labour on postpartum depression. South African Journal of Psycology, 17, 134-139. Os programas de preparação para o parto constituem um exemplo ilustrativo de programas de promoção da saúde (Becerro de Bengoa Callau, 1987).Tal como refere Spinelli e Endicott (2003) os programas de preparação para o parto, especialmente os que têm uma componente multidisciplinar, contribuem para minimizar o risco da depressão pré-natal e, por conseguinte, da depressão pós-parto, sendo que de acordo com os autores em questão, há uma correlação positiva entre ambas. Consideram, igualmente, que sendo programas de promoção da saúde, deverão incidir sobre grupos de riscos (grávidas com maior número de stressores; com problemas financeiros e/ou habitacionais e com inadequado suporte social), de uma forma particular. É importante, igualmente, o incentivo à prática do aleitamento materno, neste tipo de intervenções de promoção da saúde, em especial nas primíparas (Granzoto, 1992). De acordo com Matarazzo (1980), em algumas destas intervenções há a contribuição de profissionais de várias áreas (especificamente nos programas multidisciplinares), que objectivam a promoção e manutenção da saúde ao longo do ciclo gravídico-puerperal,idealmente na mulher e companheiro. Ao serem implementadas em Unidades de Saúde – entidades hierarquicamente superiores – poder-se-á favorecer mudanças no comportamento de outras pessoas, nomeadamente de profissionais de saúde, utentes e outros. 118 118 Síndrome A incessante procura de conhecer o ser humano, leva a uma busca por parte dos cientistas à necessidade de descobrir o processo psicológico do próprio Homem. A Síndrome de Asperger é uma desordem pouco comum, contudo importante na prevenção do processo psicológico de crianças, que tardimen- de te é diagnosticado devido à falta de conhecimento por parte dos profissionais, nomeadamente dos professores e educadores. Esta síndrome é uma categoria bastante recente na divulgação científica e encontra-se em uso geral nos últimos 15 anos. Este trabalho visa alguma informação acerca desta síndrome, visto que já por Asperger várias vezes foi confundida com uma Perturbação Obsessivo – Compulsiva, Depressão, Esquizofrenia, etc. Porém, não apresentam qualquer atraso significativo de desenvolvimento de fala ou cognitivo, podendo até mesmo passar a vida toda sendo apenas consideradas pessoas estranhas para os padrões típicos de comportamento. Embora essas pessoas não tenham um atraso significativo no desenvolvimento cognitivo, é importante que a criança receba educação especializada o mais cedo possível para auxiliar o indivíduo a contornar os problemas de comportamento que apresenta e também para ajudar a direccionar os campos de interesse e de estudo da criança. 119 Paulo Teixeira 120 Licenciado em Psicologia pela Universidade Lusíada do Porto, Portugal, 2005 A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de problemas que algumas crianças (e adultos) têm quando tentam comunicar com outras pessoas. Esta Síndrome foi identificada em 1944, mas só foi oficialmente reconhecida como critério de diagnóstico no DSM-IV em 1994. Como resultado, muitas crianças foram mal diagnosticadas com síndromes como Autismo, Perturbação Obsessivo – Compulsivo, etc. Ao longo dos tempos muitos foram os termos utilizados para definir esta síndrome, gerando grande confusão entre pais e educadores. Síndrome de Asperger é o termo aplicado ao mais suave e de alta funcionalidade daquilo que é conhecido como o espectro de desordens pervasivas (presentes e perceptíveis a todo o tempo) de desenvolvimento (espectro do Autismo). Esta síndrome parece representar uma desordem neurobiológica que é muitas vezes classificada como uma Pervasive Developmental Disorders (PDD). É caracterizada por desvios e anormalidades em três amplos aspectos do desenvolvimento: interacção social, uso da linguagem para a comunicação e certas características repetitivas ou perserverativas sobre um número limitado, porém intenso, de interesses. Apesar de existirem algumas semelhanças com o Autismo, as pessoas com Síndrome de Asperger geralmente têm elevadas habilidades cognitivas (pelo menos Q.I. normal, às vezes indo até às faixas mais altas) e por funções de linguagem normais, se comparadas a outras desordens ao longo do espectro. Apesar de poderem ter um extremo comando da linguagem e vocabulário elaborado, estão incapacitadas de o usar em contexto social e geralmente têm um tom monocórdico, com alguma nuance e inflexão na voz. Crianças com Síndrome de Asperger, podem ou não procurar uma interacção social, mas têm sempre dificuldades em interpretar e aprender as capacidades da interacção social e emocional com os outros. Hosbon (1995), postulou que crianças com SA (Síndrome de Asperger) têm incapacidade para interagir emocionalmente com os outros, portanto a criança com Autismo não recebe as experiências sociais necessárias para desenvolver as estruturas cognitivas para a compreensão. Baron – Cohen e colegas (1993), indicam que as primeiras experiências são as cognitivas. As teorias destes autores sobre a mente são basea das na ideia de que as crianças com Autismo falham no desenvolvimento da compreensão de que a mente e o estado mental relata o comportamento. A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de problemas que algumas crianças (e adultos) têm quando tentam comunicar com outras pessoas. Taer – Flusberg (1993), indicam que crianças com Autismo não desenvolvem uma compreensão de que a linguagem e comunicação existe para troca de informação. Muitos pesquisadores acham que há duas áreas de relativa intensidade que distinguem as SA de outras formas de Autismo e PDD e concorrem para um melhor prognóstico em SA. Não chegaram a consenso se existe alguma diferença entre as SA e o Autismo de Alta Funcionalidade (AAF). Alguns pesquisadores sugerem que o défice neuropsicológico básico é diferente para as duas condições, mas outros não estão convencidos de que alguma distinção significativa possa ser feita entre os dois. (Bauer, 1995) Epidemiologia Os melhores estudos que têm sido conduzidos até agora sugerem que SA é consideravelmente mais comum que o Autismo clássico. Enquanto que o Autismo tem tradicionalmente sido encontrado à taxa de 4 a cada 10 mil crianças, estima-se que a Síndrome de Asperger esteja na faixa de 20 a 25 por 10 mil. Isto significa que para cada caso de Autismo, as escolas devem esperar encontrar diversas crianças com o quadro SA. (Bauer, 1995) Todos os estudos concordam que a Síndrome de Asperger é muito mais comum em rapazes do que em raparigas.A razão para isso é desconhecida. SA é muito comummente associada com outros tipos de diagnóstico, novamente por razões desconhecidas, incluindo: tics como a desordem de Tourette, problemas de atenção e de humor como a depressão e ansiedade. Em alguns casos há um claro componente genético, onde um dos pais (normalmente o pai) mostra ou o quadro SA completo ou pelo menos alguns traços associados ao SA; factores genéticos parecem ser mais comuns em SA do que no Autismo clássico. (idem) Contudo uma coisa é certa, SA não é causada pela má educação dos pais ou problemas de família! Infelizmente muitos pais sentem-se culpados por uma desordem neurobiológica que não é culpa deles. 121 Definição O novo critério do DSM-IV para diagnóstico de SA, inclui a presença de: 122 A – Particularidades qualitativas na interacção social, envolvendo alguns ou todos de entre: • uso de peculiaridade no comportamento não-verbal para regular a interacção social; • falha no desenvolvimento de relações com pares da sua idade; • falta de interesse espontâneo em dividir experiências com outros; • falta de reciprocidade emocional e social. B – Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e actividades envolvendo: • preocupação com um ou mais padrões de interesse restritos e estereotipados; • inflexibilidade a rotinas e rituais não funcionais específicos; • maneirismos motores estereotipados ou repetitivos, ou preocupação com partes de objectos. De acordo com o DSM-IV os critérios para se poder diagnosticar a Síndrome de Asperger são: (ver Quadro 1). Quadro 1 Critérios Diagnósticos para F84.5 A. Prejuízo qualitativo na interacção social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes quesitos: (1) prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais como contacto visual directo, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interacção social. (2) fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de desenvolvimento com seus pares. (3) ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (por ex., deixar de mostrar, trazer ou apontar objectos de interesse a outras pessoas). (4) falta de reciprocidade social ou emocional. B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e actividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes quesitos: (1) insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesses, anormal em intensidade ou foco. Cristopher Gillberg, propõe seis critérios, sendo apenas aqui referidos quatro, para o diagnóstico que capturam o estilo único dessas crianças e que incluem: - 299.80 Transtorno de Asperger (2) adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais. (3) maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por ex., dar pancadinhas ou torcer as mãos ou os dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo). (4) insistente preocupação com partes de objectos. D. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na linguagem (por ex., palavras isoladas são usadas aos 2 anos, frases comunicativas são usadas aos 3 anos). E. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de habilidades de auto-ajuda apropriadas à idade, comportamento adaptativo (outro que não na interacção social) e curiosidade acerca do ambiente na infância. F. Não são satisfeitos os critérios para um outro Transtorno Invasivo do Desenvolvimento ou Esquizofrenia. 1 – Isolamento social, com extremo egocentrismo, que pode incluir: • falta de habilidades para interagir com os pares; • apreciação pobre da trança social; • respostas socialmente inapropriadas. 2 – Há interesses e preocupações limitadas: • mais rotinas que memorizações; • relativa exclusividade de interesses. 3 – Há rotinas e rituais que podem ser: • auto-impostos; • impostos por outros. 4 – Há problemas na comunicação nãoverbal como: • uso limitado de gestos; • linguagem corporal desajeitada; • expressões faciais limitadas ou impróprias; • olhar fixo peculiar; • dificuldades de ajuste a proximidade física. 123 Características clínicas O mais óbvio marco da Síndrome de Asperger, e a característica que faz dessas crianças tão únicas e fascinantes, é a sua peculiar idiossincrática área de interesse especial. Em contraste com o mais típico Autismo, onde os interesses são mais para objectos ou parte de objectos, na SA os interesses são mais frequentes por áreas intelectuais específicas. (Bauer, 1995) 124 Quando as crianças entram para a escola, ou mesmo antes, elas mostrarão interesse obsessivo numa determinada área como a matemática, aspectos de ciência, leitura (alguns têm histórico de hipelexia – leitura rotineira em idade precoce) ou algum aspecto de história ou geografia, querendo aprender tudo quanto for possível sobre o objecto e tendendo a insistir nisso em conversas e jogos livres. (Idem) Voltando à descrição de Hans Asperger em 1944, a área de transportes tem parecido ser de especial atenção. Embora os sintomas comportamentais do Síndrome de Asperger sejam bem estabelecidos, muito pouco é sabido sobre as raízes neurobiológicas da desordem. Alguns estudos mostraram que os povos diagnosticados com Autismo têm anormalidades nos lobos frontais e parietais. Os investigadores usaram uma técnica chamada ressonância magnética por emissão de protões (ou “ 1 H-Sra.”, porque “ 1 H” é o símbolo químico para um protão).Este método mede a concentração metabólica do cérebro (da “ruptura produtos para baixo”) envolvidos na produção de energia. A concentração de medição do metabolismo dá aos investigadores um retrato total do estado dos neurónios numa área particular do cérebro. Uma outra característica de SA é a deficiente socialização e isso também tende a ser algo diferente do que se vê no Autismo. Embora crianças com SA sejam frequentemente cono- tadas pelos pais e professores como estando no seu próprio mundo, elas raramente são distantes como as crianças com Autismo. (Bauer, 1995) Em geral, a proporção de casos de Autismo atribuíveis a afecções clínicas específicas é relativamente baixa.A relação, particularmente uma relação causal, de outras afecções clínicas com o Autismo é complexa. Muitas vezes, os relatos iniciais de tais associações baseiam-se em relatos de casos, e não em estudos controlados ou em amostras com base epidemiológica. Por exemplo, a impressão de uma forte relação entre Autismo e rubéola congénita teve de ser modificada quando se tornou aparente que tais casos tendiam a tornar-se menos semelhantes ao Autismo com o passar do tempo e que pelo menos uma parte dessa semelhança estava relacionada ao comprometimento sensorial e à severa deficiência mental exibida. In neuro Psico News, 2000. Todos os estudos concordam que a Síndrome de Asperger é muito mais comum em rapazes que em raparigas. A razão para isso é desconhecida. Para estudos de afecções clínicas associadas ao Autismo, a pergunta crítica não é se já foram observadas associações, mas se a associação é maior do que seria de se esperar, dada a taxa do transtorno na população geral. As taxas de afecções clínicas relatadas que poderiam relacionar-se casualmente com o Autismo têm variado amplamente, dependendo de vários factores. (Idem) Gillberg e Coleman (1996) relataram taxas de tais afecções clínicas que se aproximam de 25%, enquanto Rutter e colegas (1994) sugerem que 10% é uma percentagem mais representativa. Os dados não parecem sugerir mais que associações casuais do Autismo com O Treino de Competências Sociais é um dos mais importantes componentes do programa de tratamento. Síndrome de Down, a rubéola congénita, a paralisia cerebral, a fenilcetonúria e a nurofibromatose. (Idem) Por outro lado, tanto a Síndrome do X frágil quanto a esclesose tuberosa ocorrem em pessoas com Autismo, em taxas mais altas do que seria de esperar numa base casual. Aproximadamente uma em 100 pessoas com Autismo exibe a anomalia do X frágil. A taxa de Autismo na esclerose tuberosa também é elevada. (Idem) Crianças com deficiências congénitas (como cegueira ou surdez) podem apresentar uma questão de possível Autismo em virtude de movimentos não comuns ou dificuldades de linguagem, mas geralmente não são preenchidos os requisitos completos para o Autismo. (Idem) Os estudos post-motem em pessoas com Autismo demonstraram uma forte evidência de patologia no cérebro. Tomografia Axial Computorizada e Ressonância Magnética mostraram certas anormalidades no córtex cerebral, cerebelo e nos ventrículos do cérebro. Contudo, essas anormalidades não são consistentes. Estudos de neuroimagem, tais como Positron EmissionTomography (PET) e Single Photon Emission Tomography (SPECT) também não demonstraram qualquer anormalidade. Provavelmente, a anormalidade é muito subtil para ser projectada através das técnicas de investigação correntemente aplicáveis. Tratamento Devido ao facto de a Síndrome de Asperger ser relativamente recente no desenvolvimento da Psicologia e Psiquiatria, muitas das abordagens ainda estão em fase inicial e muito trabalho ainda necessita de ser feito nesta área. É óbvio para todos que quanto mais cedo o tratamento começar melhor será a sua recuperação. Isto implica tratamento a nível psicoterapêutico, a nível educacional e social. O Treino de Competências Sociais é um dos mais importantes componentes do programa de tratamento. Crianças com esta síndrome podem ser ajudadas na aprendizagem social através de psicólogos preparados. A linguagem corporal e a comunicação não-verbal podem ser ensinadas da mesma maneira que se ensina uma língua estrangeira. As crianças conseguem aprender a como interpretar expressões não-verbais, emoções e interacções sociais. Este procedimento assisteas nas interacções sociais e aproximações com as pessoas, prevenindo assim o isolamento e depressão que geralmente ocorre assim que entram na adolescência. Os adolescentes podem, algumas vezes, receber benefícios através do grupo terapêutico e podem ser ensinados a usar a mesma linguagem que as pessoas da sua idade. Porque as crianças com SA podem-se diferenciar em termos de Q.I. e níveis de habilidades, as escolas devem ter programas individualizados para essas crianças. Os profes- 125 126 sores devem estar atentos às necessidades especiais que estas crianças precisam, o que geralmente não acontece, pois elas precisam de maior apoio que as restantes crianças. terapeuta da fala na escola pode ser bastante útil como consultores para o resto do staff, sugerindo caminhos para endereçar problemas em áreas como linguagem pragmática. (Idem) O mais importante ponto de partida para ajudar os estudantes com SA a funcionar efectivamente na escola é que o staff (todos que tenham contacto com a criança) compreenda que a criança tem uma desordem de desenvolvimento que a leva a comportar-se e a responder de forma diferente dos demais estudantes. Muito frequentemente o compor- É sempre necessário ter especial atenção a este tipo de situações, uma vez que só tardiamente existe alertas por parte dos profissionais para este mesmo facto. É de salientar, tal como foi dito anteriormente, o alerta por parte dos profissionais da educação é relevante, bem como a colaboração do próprio staff. Muitas crianças e adultos com Síndrome de Asperger não precisam de algum tipo de fármacos, enquanto noutros, para serem tratados somaticamente, são utilizados os psicofármacos para tratar os problemas de crianças com Síndrome de Asperger, uma vez que não existem fármacos específicos para esta desordem. tamento dessas crianças é interpretado como emocional ou manipulativo ou alguns termos que confunde a forma como eles respondem diferentemente ao mundo e seus estímulos. Dessa compreensão segue que o staff da escola precisa individualizar a sua abordagem para cada uma dessas crianças; não funciona tratálos da mesma forma que os outros estudantes. (Bauer, 1995) O próprio Asperger compreendeu a importância central da atitude do professor no seu próprio trabalho com crianças. Ele escreveu em 1944: «estas crianças frequentemente mostram uma surpreendente sensibilidade à personalidade do professor (…) E podem ser ensinados, mas somente por aqueles que lhes dão verdadeira afeição e compreensão. Pessoas que mostrem delicadeza e, sim, humor. (…) A atitude emocional básica do professor influencia, involuntária e inconscientemente, o humor e o comportamento da criança.» (Idem) Embora seja sabido que muitas crianças com SA possam ser administradas em classes regulares, elas frequentemente precisam de algum suporte educacional. Serviços de fonoaudiologia podem ser desnecessários, mas um Existem alguns princípios que devem ser seguidos para crianças com este tipo de desordem, tais como: • as rotinas de classe devem ser mantidas tão consistentes, estruturadas e previsíveis quanto possível. Crianças com SA não gostam de surpresas. Devem ser preparadas previamente, para mudanças e transições, inclusive as relacionadas a paragens de agenda, dias de férias, etc.; • as regras devem ser aplicadas cuidadosamente. Muitas dessas crianças podem ser nitidamente rígidas quanto a seguir regras quase que literalmente. É útil expressar as regras e linhas mestre claramente, de preferência por escrito, embora devam ser aplicadas com alguma flexibilidade; • o staff deve tirar toda a vantagem das áreas de especial interesse quando leccionado. A criança aprenderá melhor quando a área de alto interesse pessoal estiver na agenda. Os professores podem conectar criativamente as áreas de interesse como recompensa para a criança por completar com sucesso outras tarefas em aderência a regras e comportamentos esperados; • muitas crianças respondem bem a estímulos visuais: esquemas, mapas, listas, figuras, etc. Sob esse aspecto são muito parecidas com crianças com PDD e Autismo; • tentar ensinar baseado no concreto. Evitar linguagem que possa ser interpretada erroneamente por crianças com SA, como sarcasmo, linguagem figurada confusa, etc. Procurar interromper e simplificar conceitos de linguagem mais abstractos; • ensino didáctico e explícito de estratégias pode ser muito útil para ajudar a criança a ganhar proficiência em “funções executivas” como organização e habilidades de estudo; • tentar evitar luta de forças. Essas crianças frequentemente não entendem demonstrações rígidas e teimosos se forçados. O eu comportamento pode ficar rapidamente fora de controle, e nesse ponto é normalmente melhor para o terapeuta interromper e deixar esfriar. É sempre preferível, se possível, antecipar essas situações e tomar acções preventivas para evitar a confrontação através de serenidade, negociação, apresentação de escolhas ou dispersão de atenção. (Bauer, 1995) As abordagens psicoterapêuticas com enfoque na terapia comportamental, a aprendizagem de competências sociais são mais efectivas do que as terapias centradas na emoção, que pode ser bastante desconfortável ou stressante para estas crianças. Aconselhamento e psicoterapia são bastante importantes pois ajuda as crianças a arranjar estratégias de coping para a situação de estarem socialmente em desvantagem. Saliento assim, instrução e treino parental, intervenção educacional, treino de competências sociais, etc. Muitas crianças e adultos com SA não precisam de algum tipo de fármacos, enquanto noutros, para serem tratados somaticamente, são utilizados os psicofármacos para tratar os problemas de crianças com SA, uma vez que não existem fármacos específicos para esta desordem. Muitos dos fármacos usados no tratamento de PDD tal como o Autismo, são usados para tratar também a SA, tais como: Ritalin, Addrerall, Paxil, Prozac, Risperal, entre outros. Temos ainda Desipramina e Nortiptylina (antidepressivos tricíclicos), estabilizadores de humor (Valproate, Lítio), beta – bloqueadores (Nadolol, Clonidina), temos ainda a Fluoxetina e a Clomipramina, entre outros. Tal como a maioria dos psicofármacos, estes têm efeitos secundários e o risco de adição pode ir contra o processo terapêutico e é necessário ter em atenção esse processo, pois o risco é maior em crianças. Referências American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and Statistical Manual of mental Disorders. 4ª ed. Washington, DC: Autores. Baron – Cohen, S. (1993). From attention – goal psychology to belif-desire psychology: the development of a theory of mind ant its dysfunction. In Understanding other Minds. Perspectives from Autism (eds. S. Baron – Choen, H. Tager – Flusberg & D. J. Cohen). Oxford: Oxford University Press. Bauer, S. (1995). Asperger Syndrome – trought the lifespan. New York, The developmental unit, Genesee Hospital Rochester. Hosborn, R. (1995). 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Definida de forma controversa pelo complexo aglomerado de sintomas psico-comportamentais envolvidos, o seu diagnóstico é ainda empírico e limitado pela inexistência de exames clínicos categóricos, capazes de correlacionar de forma inequívoca os sintomas manifestos. Sendo uma síndrome multideterminada e complexa, necessita de uma abordagem terapêutica multifacetada. Ilda Abreu, Helena Ribeiro e Manuela Oliveira Alergénios na atmosfera Nos últimos anos, na maioria dos países industrializados, as doenças respiratórias provocadas por partículas biológicas têm vindo a aumentar significativamente em número e severidade. A inalação de grãos de pólen e esporos fúngicos pode provocar sérios riscos para a saúde humana. A monitorização destas partículas na atmosfera pode melhorar as condições de vida das pessoas mais sensíveis às alergias. Conceição Antunes Domingues Formação em educação para a saúde: estudo com profissionais de enfermagem Tem-se assistido nas últimas décadas ao desenvolvimento de métodos de manutenção de promoção da saúde e do bem-estar das pessoas. A Educação para a Saúde (EPS) insere-se nesse contexto e constitui o domínio do estudo exploratório, do tipo qualitativo e quantitativo, realizado junto de profissionais de enfermagem nas instituições de referência da cidade de Braga. Os resultados revelam, entre outros, a existência de percursos académicos/formativos e de perfis da personalidade profissional pouco congruentes com as existências da carreira e das actividades dos enfermeiros na actualidade, em especial em EPS. Sérgio Aires Gonçalves Proporção de utilização das diferentes classes de anti-hipertensores na comunidade em Vila do Conde, no ano de 2001: um estudo piloto A hipertensão arterial é um factor de risco cardiovascular prevalente e modificável. Existe um número crescente de fármacos no mercado para o tratamento da hipertensão. Vítor Coutinho Álcool e alergia – uma questão de sensibilidade e (mau)gosto 129