Prémio Ser Saúde/ISAVE

Transcrição

Prémio Ser Saúde/ISAVE
Editorial
Quando colocado perante este projecto, a revista Ser Saúde, senti que era
a concretização de um sonho antigo e estratégico para o ISAVE – Instituto
Superior de Saúde do Alto Ave. De imediato o abracei e me disponibilizei
para o promover e projectar para toda a comunidade académica/científica/
profissional em saúde.
A revista que está nas vossas mãos é a imagem deste projecto que pretendemos desenvolver e divulgar. A liberdade foi dada a quem a dirige e quis que os
princípios basilares que a criaram estivessem sempre presentes.
Faz sentido para o ISAVE ter um meio livre, plural, que publique trabalhos de investigação nas áreas das ciências da saúde. Não queremos a revista
do ISAVE, queremos a revista de ciência e investigação em saúde aberta ao
meio, a todos os que investigam diariamente e tentam, de alguma forma, criar
um caminho mais sólido para a saúde em diferentes áreas. Queremos que a
qualidade da Ser Saúde seja como a do ensino que nestas novas instalações,
construídas num meio natural único, belo, é ministrado com critérios rigorosos
e de excelência.
A Ser Saúde também será um elo de ligação dos profissionais e estudantes da área, à nossa instituição. Quero que a Ser Saúde traga aqui
pessoas, que a curiosidade abra este espaço a todos os que o desejarem,
e seja um veículo de referência em Portugal, África, América e onde nos
encontrarmos.
O ISAVE anunciará no próximo ano o Prémio Ser Saúde/ISAVE de
Investigação e Ciência em Saúde. Sei que a ciência, a investigação, é o
ramo forte do tronco do ensino nas mais diferentes áreas. E a Ser Saúde,
com transformações que possa ter, fará parte deste ramo de credibilidade e
liberdade.
Quero o ISAVE como marca de ensino de qualidade em Portugal. Os passos
que demos, ainda no início, são determinados pela vontade e onde pousam
deixam raízes profundas. Raízes que os nossos primeiros licenciados levam no
saber teórico, na destreza prática, na formação que sentem como cidadãos.
A Ser Saúde fará parte do caminho do ISAVE, fará parte dos passos da
ciência e investigação em saúde em Portugal e no Mundo. Sempre plural…
sempre livre.
José dos Santos Henriques
Presidente do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto Ave
08 36
Daniel Serrão
A pessoa humana e o direito
a cuidados de saúde
Os direitos individuais são universais e
igualitários, são reconhecidos por igual a todo
e qualquer cidadão, mas o direito à protecção
da saúde não o pode ser porque as pessoas
não precisam sempre, nem na mesma medida,
de cuidados de saúde.
18
Fábio Pereira, José Carlos Machado, Maria
Daniel Vaz de Almeida
Nutrigenética e nutrigenómica: em direcção à nutrição
personalizada
Numa era onde a medicina é cada vez mais
preventiva, espera-se que a terapia nutricional
seja a pedra angular dos futuros cuidados de
saúde, transformando-se numa importante
ferramenta terapêutica para a maximização da
saúde e minimização do risco de doença em
indivíduos susceptíveis.
Nuno Penacho
Terapia Génica: um medicamento chamado gene...
O princípio básico subjacente à Terapia
Génica consiste simplesmente em fazer
chegar material genético às células para que
o produto da sua expressão possa curar ou
retardar a progressão da doença. E hoje a
Terapia Génica pode incluir outro tipo
de estratégias que vão além da simples
substituição do gene defeituoso. No entanto,
o conceito de Terapia Génica, que aparentemente se revela maliciosamente simples,
encerra alguns problemas que são precisos
ultrapassar de modo a que este tipo de terapia
venha a ter sucesso.
46
Daniela Filipa Martins Gonçalves
Reticulócitos
O aumento de reticulócitos em circulação
sanguínea é indicativo de regeneração
sanguínea, enquanto que a sua diminuição,
face a um estímulo, é um indicador muito
importante para a avaliação clínica.
26 52
Entrevista a Alexandre Castro-Caldas
As janelas do conhecimento
As crianças ao desenvolverem o cérebro
têm janelas de oportunidade para aprender.
Se não fornecemos a informação na altura
própria, altura que a criança está mais apta
para receber determinado tipo de informação,
a janela fecha-se e passou a oportunidade.
Paula Gago, Veloso Gomes
Via Verde Coronária na
região do Sotavento Algarvio – Um projecto para a
vida
A doença coronária aguda é, pela sua
prevalência, morbilidade e mortalidade, uma
situação médica de urgência que justifica
uma intervenção planeada da Emergência
Médica.
62 101
Hugo Leite-Almeida , Armando Almeida
Dor – Será o nosso cérebro
masoquista?
Há dores que vêm por bem, ilibando assim
o nosso cérebro do cunho de masoquista,
pelo menos em circunstâncias normais. Casos
há em que a dor perde o seu carácter benéfico, já que se torna crónica tornando-se um
fardo difícil de carregar.
80
Sérgio Aires Gonçalves
Benzodiazepinas: aspectos
farmacológicos e utilização
clínica
Para além do tratamento da ansiedade e da
indução do sono as benzodiazepinas podem
ainda ser utilizadas no tratamento de ataques
de pânico, privação alcoólica, terrores nocturnos, sonambulismo, espasmos musculares,
epilepsia, anestesia e sedação para manobras
invasivas.
90
Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda
Úlceras de pressão: prevenção e tratamento
As úlceras de pressão constituem um grave
problema de saúde que afecta o indivíduo em
todos os aspectos físicos, psíquicos e sóciofamiliares.
Adelaide Serra, Fernando Domingos
Avaliação Nefrológica de
uma população com Litíase
Cálcica Idiopática Recorrente – Experiência de 7
anos da Consulta de Nefrolitíase do Serviço de
Nefrologia do Hospital de Santa Maria
Prémio Bial de Medicina
Clínica 2004
A litíase cálcica idiopática recorrente
é a forma mais frequente de nefrolitíase
encontrada na actualidade, verificando-se
um aumento progressivo da sua incidência
nas últimas décadas, sobretudo nos países
industrializados.
106
Benedita Aguiar
Psicologia da Saúde e Promoção da Saúde
Psicologia da Saúde tem dado contributos
bastante significativos em diversas áreas,
directa e indirectamente relacionadas com a
Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma
série de trabalhos no âmbito da representação
mental da doença, adesão terapêutica e relação stress/condição de doença.
118
Paulo Teixeira
Síndrome de Asperger
A Síndrome de Asperger é o nome dado a
um grupo de problemas que algumas crianças
(e adultos) têm quando tentam comunicar
com outras pessoas.
Poster
Pacemaker definitivo:
Ensino ao doente / família
Actualidade
ISAVE
Conhecimento, Aprendizagem, Prática
Com quatro anos de criação de profundos
valores na sabedoria das tecnologias de saúde,
o ISAVE, Instituto Superior de Saúde do
Alto Ave, fundamenta os seus domínios num
corpo de docentes nacionais e estrangeiros de
reconhecido valor. Hoje, na nobreza de novas
instalações, onde meio e homem se unem na
leveza e beleza do espaço, os princípios de um
ensino de qualidade, alicerçados na contínua investigação
científica nas áreas ministradas,
mantêm-se unidos ao homem
no desejo de melhoria da
saúde e da qualidade de vida
da população.
Com cursos de Enfermagem,
Análises Clínicas e Saúde
Pública, Farmácia, Higiene Oral, Radiologia,
Prótese Dentária, Fisioterapia e Terapêutica
da Fala, o ISAVE assume relevo regional e
nacional na formação em tecnologias de
saúde. Conhecimento, aprendizagem e prática
são as palavras basilares de um ensino onde
o Homem é o elo profundo de um saber
presente que alargará horizontes no futuro.
Estabelecidos amplos protocolos com
instituições de ensino internacionais e nacionais, bem como com entidades prestadoras
de cuidados de saúde, o ISAVE, nas raízes
profundas da sabedoria, amplia os seus troncos
na contínua formação dos seus docentes, no
desejo de criação de novos cursos estudadas
as necessidades reais da população. E alarga os
seus ramos ao desporto, e outros domínios na
vontade serão criados, sempre atento à formação de jovens e à população.
Os 1600 alunos têm, nas novas instalações,
para além da qualidade do ensino ministrado,
das excelentes condições físicas, dotadas as salas
de aulas com os meios tecnológicos de última
geração, um espaço de saber onde conhecimento, aprendizagem e prática se unem na
formação de jovens que formam o amanhã.
No novo ISAVE, tem também à sua
disposição um espaço de sonho para
congressos, colóquios, palestras, os mais
diversos eventos.
Na Póvoa de Lanhoso, em Geraz do Minho,
o ISAVE abre um conceito de ensino onde a
natureza se integra no saber…
Agenda
Congressos
e Eventos
NOVEMBRO
VI Jornadas de Cardiologia Pediátrica
01 de Novembro de 2006
Local: Porto
Reunião Anual da Associação de
Psiquiatria Biológica 2006 Attention
– Deficit Hyperactivity Disorder
Across The Life Span
03 a 05 de Novembro de 2006
Local: Faculdade de Ciências da
Saúde Universidade da Beira Interior
– Covilhã
Organização: Associação de Psiquiatria Biológica
VIII Congresso Técnico de Anatomia
Patológica
04 a 05 de Novembro de 2006
Local: Hotel dos Templários – Tomar
Organização:Associação Portuguesa de Técnicos de
Anatomia Patológica
Curso de Reumatologia para
Medicina Familiar Professor Lopes
Vaz
09 a 10 de Novembro de 2006
Local: Hotel Porto Palácio
X Congresso Português de Obesidade
09 a 11 de Novembro de 2006
Local: Centro de Congressos Hotel
Porto Palácio
Organização: Sociedade Portuguesa para o Estudo da
Obesidade
«O Congresso Português de Obesidade pretende ser um
fórum onde todos os interessados tenham um espaço para
a livre expressão das suas ideias, para a discussão dos seus
projectos e para dele nascerem programas de acção que nos
mobilizem para enfrentar este flagelo». Conferências sobre
a Genética da Obesidade ou Síndrome Metabólico ou
Obesidade e factores cardiometabólicos são dois exemplos
do que no X Congresso Português de Obesidade se vai
debater.
1º Congresso Nacional Serviço
Urgência e Emergências – 1º Encontro
Nacional Associação Nacional
Medicina de Urgência
09 a 11 de Novembro de 2006
Local: Centro de Congressos da
Alfândega – Porto
IX Jornadas Pneumológicas de Viseu
10 a 11 de Novembro de 2006
Local: Hotel Montebelo – Viseu
Oncoanestesia 2006
10 a 11 de Novembro de 2006
Local: Universidade Lusíada – Lisboa
Organização: Serviço de Anestesiologia IPO Lisboa
Encontros de Medicina Interna
16 a 17 de Novembro de 2006
Local: Hospital Garcia de Orta
– Almada
IV Jornadas Transfronteiriças de
Medicina Interna
V Jornadas da Sociedade Estremenha
de Medicina Interna
16 a 18 de Novembro de 2006
Local: Elvas – Centro de Negócios
Transfronteiriço
Organização – Secretaria do Serviço de
Medicina
Hospital de Santa Luzia |Rua Mariana Martins | 7350-954
Elvas | Telefone – 268.637.620 | Fax – 268.629.817
19º Curso de Doenças Hepatobiliares
24 a 25 de Novembro de 2006
Local: Auditório HUC – Hospitais da
Universidade de Coimbra
Largo Prof. Mota Pinto
3000 Coimbra
Organização – Secretariado do Serviço III – HUC
DEZEMBRO
XXII Congresso de Pneumologia / IV
Congresso-Luso Brasileiro
08 a 10 de Dezembro de 2006
Centro Congressos Estoril
Organização – Sociedade Portuguesa de Pneumologia
Paralisia Cerebral - Diagnóstico
e Intervenção Congresso
Comemorativo 30 +
22 a 23 de Novembro de 2006
Local: Auditório dos Hospitais da
Universidade de Coimbra
XIV Jornadas Internacionais do
Instituto Português de Reumatologia
14 a 15 de Dezembro de 2006
Centro Congressos de Lisboa
Organização – Instituto Português de Reumatologia
Organização – Núcleo Regional do Centro da Associação
Portuguesa de Paralisia Cerebral
6º Congresso Nacional de
Enfermagem Oncológica
23 a 25 de Novembro de 2006
Local: Cine Teatro Caracas em Oliveira
de Azeméis
Organização – Sociedade Portuguesa de Enfermagem
Oncológica
Director
Eugénio Pinto
[email protected]
[email protected]
Editor
Rui Castelar
Corpo redactorial
Isabela Vieira
Director de arte e grafismo
Ângelo Mendes
[email protected]
Fotografia
Jorge Gomes
Publicidade
Celmira Dias
Propriedade
Ensinave – Educação e Ensino
Superior do Alto Ave
Campus Académico do ISAVE
– Instituto Superior de Saúde do
Alto Ave
Quinta de Matos – Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
NIF – 504 983 300
Impressão
Orgal, impressores
Rua do Godim, 272
4300-236 Porto
Contactos
Ser Saúde
Campus Académico do ISAVE
– Instituto Superior de Saúde do
Alto Ave
Quinta de Matos – Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
Telefone – 253 639 800
Fax – 253 639 801
www.isave.edu.pt
[email protected]
[email protected]
ISSN 1646-5229
Nº de Registo na ERC 124994
Daniel Serrão
Professor jubilado da Faculdade de Medicina
A capacidade estética permite ao
homem descobrir a beleza, sentir
o prazer da percepção do belo e
ser capaz de o amar,
nas pessoas e nas coisas,
com alegria consciente.
A
Pessoa
Humana
e o Direito
a Cuidados
de Saúde
O tema que vou desenvolver – A Pessoa
Humana e o Direito a Cuidados de Saúde – é,
ao mesmo tempo, uma questão de pós‑modernidade e uma antiquíssima imagem da
relação humana no cuidar.
Como escreveu o Mestre Ramiro Borges
de Menezes, na sua dissertação de Mestrado1,
que é um amplo e profundo estudo sobre
o episódio do Bom Samaritano (Lucas, 10,
25‑37), esta parábola “casuisticamente nos dias de
hoje, poderá ser narrada da seguinte forma: Um dia
descobri (Samaritana) uma mulher «meio consumida» pelas ratazanas (desvalida no caminho) que
agonizava, à chuva, num esgoto, perante a indiferen-
ça dos transeuntes (sacerdotes, médicos, etc.) perto de
um dos hospitais de Calcutá. Levei-a aos ombros e
fui ao hospital para providenciar o seu internamento
(estalajadeiro). O pessoal do Campbell Hospital
recusou-a considerando-o um caso sem esperança. A
Madre Teresa (Samaritana) foi a mais dois hospitais
mas com resultado negativo. Não pôde ir a mais
porque a «moribunda» expirou nos seus braços.”
Há mais de 2.000 anos foi dito, assim, que
a pessoa humana tem direito a cuidados de
saúde. E que cuidar é usar da misericórdia
para com o outro que é o nosso próximo, a
quem devemos amar, como nos amamos a nós
próprios.
on ,otnatrop ,somidicnioC
ratse-meb o é euq ed otiecnoc
e ociuqísp ,ocisíf ,otelpmoc
ed odatse o areg euq ,laicos
oãçinfied adicehnoc an edúas
ed laidnuM oãçazinagrO ad
.edúaS
10
E neste alvor do Século XXI, como está
este direito da pessoa humana a cuidados de
saúde?
Vamos começar pela pessoa humana.
O que é?
Durante milénios, sob a influência do
Cristianismo, foi atribuída à pessoa humana
uma suprema dignidade que era a de ser a
obra-prima de Iavé, criada à Sua Imagem e
à Sua Semelhança, como Homem e Mulher.
A pessoalidade humana, manifestando-se
nos dois géneros, masculino e feminino,
adquire capacidade criadora como a de Iavé
e por isso é Sua Imagem e Sua Semelhança
– cria, incessantemente, outras pessoas e, pelo
Espírito recebido de Iavé, tem como destino
a imortalidade.
Nesta concepção antropológica judaicocristã, à qual sou fiel, a Pessoa é corpo e é
espírito, numa só e única substância unitária
e numa só e única natureza. A relação que
usamos por comodidade de comunicação,
entre corpo e espírito, é puramente categorial.
Um corpo diz-se humano quando nele se
manifesta um espírito humano e um espírito,
humano, não pode revelar-se aos outros senão
mediante um corpo, igualmente humano.
Um corpo de um antropóide, mesmo partilhando com o corpo humano mais de 95%
da informação contida no seu genoma, não é
um corpo humano, porque nele não se manifesta um espírito humano e, portanto, não é
pessoa.
A pessoa, já o afirmou S. Tomás de Aquino,
é unidade substancial, e substantiva, de corpo
e de espírito.
Cabe agora perguntar o que é o espírito
humano.
Não sabemos o que é, sabemos como se
manifesta.
Manifesta-se nas capacidades específicas e
exclusivas do corpo humano: a estética, a ética
e a racionalidade.
Coincidimos, portanto,no
conceito de que é o bem-estar
completo, físico, psíquico e
social, que gera o estado de
saúde na conhecida definição
da Organização Mundial de
Saúde.
11
A capacidade estética permite ao homem
descobrir a beleza, sentir o prazer da percepção do belo e ser capaz de o amar, nas pessoas
e nas coisas, com alegria consciente.
A capacidade ética permite ao homem
conhecer o mundo, transformando o conhecimento perceptivo em valores pessoais,
segundo as categorias de Bem e de Mal, de
Verdadeiro e de Falso, usando depois, esses
valores para com eles orientar as suas decisões
livres e conscientes.
A capacidade racional permite ao Homem
transformar todas as percepções do mundo
em representações abstractas, às quais atribui
um sentido, segundo a categoria lógica da
inteligência humana e com as quais é possível
construir uma cultura exterior simbólica, que
é a cultura na qual, actualmente, nascemos,
vivemos e morremos.
Chama-se-lhe exterior porque ela está fora
do corpo do homem e resulta da intervenção
da inteligência do homem e do corpo do
homem, sobre a natureza. Talhar um sílex, a
partir da simbolização mental do seu uso, não
difere, substancialmente, de construir e lançar
um satélite espacial. Ambos são objectos
intencionais que pertencem à cultura exterior simbólica, porque cada objecto exprime,
simbolicamente, na sua forma, a ideia abstracta
que o antecedeu no interior de uma inteligência humana. Por isso se afirma que toda a
cultura humana é exterior e é simbólica.
Mas também há uma cultura interior,
simbólica, que é constituída pelas ideias
abstractas inventadas pela inteligência reflexiva, constantemente, em cada um de nós e que
se manifestam num espaço interior virtual ao
qual chamo «campo da consciência reflexiva»
ou «campo da auto-consciência».
A auto-consciência – ou sentimento de si na
formulação linguística de António Damásio2
– é onde tudo acontece; aí se pressente a
emoção estética, aí se realiza a ponderação dos
valores éticos, aí tumultua a constante reverberação das ideias abstractas, alimentada pela
Os saberes sobre as doenças e sobre os processos de
tratamento e cura evoluiu, fulgurantemente, na segunda
metade do Século XX de modo que a ciência médica domina
hoje a arte médica e os seus cultores, os médicos, passaram de
bons práticos a cientistas exigentes e rigorosos.
12
memória consciente e subconsciente. Então,
para mim, a auto-consciência, como estrutura
virtual perceptiva, deliberativa e criadora, é a
própria manifestação do espírito, ou da ruah,
na nomenclatura hebraica.
em mim, do Espírito de Iavé e tal como Iavé
existe em si próprio e por si próprio, também
o meu espírito se revela através do meu corpo
físico e natural, com o qual constrói, em cada
momento, a pessoa que eu sou.
Auto-consciência é, pois, a designação
moderna do conceito de pneuma entre os
gregos e de spiritu para os de fala latina e que
chegou até nós como espírito. As neuro-ciências, mesmo as mais avançadas e optimistas,
não ousam afirmar que a auto-consciência, a
percepção interior de um eu autónomo, é um
produto da actividade cerebral, da activação de
umas certas redes neuronais ou da circulação
de mediadores químicas. Não são a dopamina,
a serotonina ou as encefalinas que constroem a auto-consciência; manifestam-se nela,
ajudam à sua expressão, mas não a constituem.
Também não são os circuitos neuronais que
memorizam simbolicamente as percepções e
que, a qualquer momento, as tornam presentes
na auto-consciência, que a constituem, embora lhe forneçam conteúdos para que ela se
torne deliberativa e comunicacional.
Por isto, assim resumidamente exposto para
não ser maçador, a Pessoa Humana é unidade
substancial e substantiva de corpo e espírito.
Esta auto-consciência, como o mais íntimo
da intimidade pessoal, é a revelação, em cada
um de nós, do espírito.
Podemos ficar neste patamar e dizer, apenas,
que o espírito é, por ora, um mistério para os
neuro-biologistas.
Para mim,porém,que sou fiel ao ensinamento judaico-cristão, o meu espírito é revelação,
Portanto, nenhuma Antropologia, com ou
sem apelo a uma Transcendência para explicar
a categoria espiritual da natureza substantiva
da Pessoa, pode deixar de atribuir ao corpo
humano a maior dignidade.
Houve tempo em que o corpo humano
foi visto como o causador de todos os males
praticados pelos homens e mulheres e como
sede do orgulho, da concupiscência, da violência assassina e da negação de Deus e, por isso,
merecedor dos castigos mais violentos e das
fogueiras da Inquisição. Este erro doutrinário,
fatal para tantos homens e mulheres, baseavase na concepção dualista, que não era a da
tradição hebraico-cristã, em que o corpo e a
alma eram concebidos como duas realidades
autónomas e distintas, que se combatiam uma
na outra como inimigos inconciliáveis.
Felizmente que João Paulo II restabeleceu
a verdade e ensinou, oralmente e por escrito,
uma teologia do corpo humano, que surpreendeu tanto os círculos romanos rotulados de
«liberais» como os rotulados de «conservadores». No pensamento profundo de João Paulo
ed sossecorp so erbos e saçneod sa erbos serebas sO
adnuges an ,etnemetnarugluf ,uiulove aruc e otnematart
animod acidém aicnêic a euq odom ed XX olucéS od edatem
ed marassap ,socidém so ,serotluc sues so e acidém etra a ejoh
.sosorogir e setnegixe satsitneic a socitárp snob
II, contido no seu livro A Teologia do Corpo,
a corporificação como macho e fêmea, no
princípio, é uma porta aberta à natureza e aos
objectivos de Deus, o Criador. Como escreve
George Weigel3 na sua biografia do Papa João
Paulo II: «Poucos ousaram expandir a intuição
sacramental católica – o manifesto do invisível através do visível – tão longe como João Paulo II o fez
ao ensinar que o amor de auto-entrega da comunhão
sexual é uma imagem da vida interior de Deus.
Poucos ousaram dizer tão directamente ao mundo:
A sexualidade humana é muito mais grandiosa do
que imaginam».
Para os católicos, no seguimento da tradição
hebraico-cristã, o corpo humano tem uma
dignidade própria que cobre todas as suas
funções, sem excluir nenhuma, porque ele é
«templo» do espírito de Deus.
Para os que não aceitam a Transcendência, o
corpo tem igualmente uma dignidade própria
que advém da sua natureza biológica, como
suporte físico da pessoa psíquica e social.
Coincidimos, portanto, no conceito de
que é o bem-estar completo, físico, psíquico
e social, que gera o estado de saúde na conhecida definição da Organização Mundial de
Saúde.
dora, o homem é uma máquina energética,
dependente da luz solar, da água, do ar e dos
materiais nutritivos captados na vida animal e
vegetal e, por isso, é, biologicamente, frágil. E
porque é, ao mesmo tempo, um ser inteligente
e simbolizador, a fragilidade biológica é representada, na auto-consciência, como angústia
vital, como insegurança e como temor.
Não fora o mecanismo salutogénico cerebral, bem conhecido depois dos trabalhos de
Antonowsky, e poucos seres humanos aguentariam sobreviver diariamente, sabendo-se
seres finitos, seres irremediavelmente destinados a morrer.
Desde Hipócrates de Cós que alguns
homens assumiram a tarefa de acolher aqueles
outros homens que, perturbados no seu corpo
ou na sua mente, não conseguem suportar
sozinhos o peso de uma vida difícil, afectada
por males que desequilibram a relação do
corpo consigo próprio e da pessoa com o
mundo que a envolve.
Esta foi a origem do cuidado médico: um
ser humano perturbado dirige-se a outro ser
humano e pede-lhe ajuda.
Mas o homem é um ser frágil e perturbável.
O progresso do conhecimento científico
da biologia do corpo humano possibilitou a
evolução do cuidar do outro para o tratar do
outro e, quando possível, curá-lo.
Imerso na natureza viva e com os pés assentes
numa terra, tantas vezes movediça e ameaça-
Os saberes sobre as doenças e sobre os
processos de tratamento e cura evoluiu, fulgu-
13
14
rantemente, na segunda metade do Século XX
de modo que a ciência médica domina hoje
a arte médica e os seus cultores, os médicos,
passaram de bons práticos a cientistas exigentes
e rigorosos. O seu objectivo é o diagnóstico
rigoroso da doença e, depois, a aplicação de
todas as modernas técnicas de intervenção
terapêutica. A pessoa, na qual está a acontecer a doença, fica em segundo plano, quase é
esquecida; só a doença é o objecto efectivo das
preocupações do médico-cientista.
Para além desta espécie de des-humaniza
ção do exercício da medicina, verifica-se, em
particular nos últimos decénios, que o custo
desta actividade médica cresce exponencialmente. Como pagá-lo se o consideramos um
direito?
Como escrevi noutro local4, esta é a «questão essencial» que se coloca às sociedades
democráticas – social-democracia ou socialismo democrático. A questão essencial é a de
o colectivo nacional, todos os cidadãos, ricos,
remediados e pobres, decidirem sobre a natureza do direito fundamental à protecção da
saúde e sobre as formas de lhe dar satisfação.
É claro para os analistas e especialistas da
Teoria dos Direitos, que este direito fundamental está enquadrado na categoria dos
chamados direitos económicos, sociais e
culturais, ou direitos de terceira geração após
os direitos «negativos» e «positivos» respeitantes
à liberdade de todos os seres humanos.
Ora, os direitos da terceira geração, como
é geralmente admitido, embora fundamentais,
estão condicionados pela existência de recursos
para os satisfazer e o legislador não deixará de
cumprir a Constituição da República quando
disponibilize apenas os recursos possíveis, cujo
consumo não impeça a satisfação de outros
direitos fundamentais ou não torne inviável o
próprio Estado, minando o seu tecido económico e social.
Os direitos individuais são
universais e igualitários, são
reconhecidos por igual a todo
e qualquer cidadão, mas o
direito à protecção da saúde
não o pode ser porque as
pessoas não precisam sempre,
nem na mesma medida, de
cuidados de saúde.
O debate clarificador sobre a natureza limitada deste direito tem de ser feito, para que a
população tome consciência de que dar tudo
a todos em todo o território nacional não é
uma exigência constitucional absoluta mas
sim um direito limitado pelos meios financeiros disponíveis que podem ser inferiores aos
necessários.
O segundo aspecto desta questão essencial
sobre a natureza do direito fundamental à
protecção da saúde é o seguinte: enquanto
que os direitos civis e políticos, como direitos
fundamentais individuais se proclamam para
defender os cidadãos contra toda e qualquer
intervenção do Estado, os direitos sociais, de
terceira geração, e, particularmente, o direito à
protecção da saúde, proclamam-se para exigir
a intervenção directa do Estado para a sua
satisfação.
Assim, o Estado pode e deve intervir para
que todos os cidadãos tenham acesso aos
meios que protegem a saúde.A questão essencial é: como intervir.
O como intervir deve ser uma decisão dos
cidadãos e não ser um acto de puro voluntarismo legislativo como aconteceu com a criação
do Serviço Nacional de Saúde, apresentado
(diria imposto) aos cidadãos (passivos) como a
única forma de o direito à protecção da saúde
ser satisfeito.
Ora, porque se trata de um direito relativo,
ele deve ser relacionado com o estado de
desenvolvimento económico da sociedade e
das sociedades envolventes e deve ter em conta
a posição ocupada pelos sujeitos deste direito
na estrutura económica, financeira e social da
sociedade (são ricos?, remediados?, pobres?).
Os direitos individuais são universais e igualitários, são reconhecidos por igual a todo e
qualquer cidadão, mas o direito à protecção
da saúde não o pode ser porque as pessoas não
precisam sempre, nem na mesma medida, de
cuidados de saúde. O Estado não pode obrigar
os cidadãos a terem todos o mesmo nível de
saúde, igual à melhor saúde; o que não só seria
impossível como obrigaria a discriminar positivamente os cidadãos de forma inversamente
proporcional ao nível de saúde de cada um.
Por outro lado, os direitos individuais são
exercidos de forma independente e pessoal
mas o exercício do direito à protecção da saúde,
por cada um, é interdependente, influencia e
é influenciado pela forma como os outros
exercem esse direito, particularmente no
que se denomina saúde pública; em matéria
de custos, pagar campanhas de promoção da
saúde, acções de medicina preventiva, contracepção hormonal e, nalguns casos, fertilização
in vitro, reduz, obviamente, a quantidade de
recursos disponibilizados para o pagamento
dos custos da medicina curativa individual.
O cuidado de saúde, quando é oferecido como um bem comum tende a ser
sobre-utilizado, massificado, saturado e a
desvalorizar-se ou esgotar-se, como tem
acontecido com outros bens comuns de livre
utilização.
Ao colocar-se, face a este direito fundamental, numa posição de liberdade passiva, o
cidadão pressupõe a perfeição do Estado e a
maturação democrática de todos os cidadãos,
ou seja, coloca o direito à protecção da saúde
na perspectiva da justiça.
15
16
Assim, o debate sobre a natureza deste direito implica o debate sobre as relações entre
o Direito e o poder político, em ordem à
efectivação da Justiça, que é um debate marcadamente ético.
Quando a política promete aos cidadãos
saúde, trabalho, educação, habitação, protecção
do meio ambiente, porque são direitos invioláveis da existência humana, e estas promessas
não aparecem integradas numa teoria da
justiça que fundamente um novo contrato
social entre os cidadãos e tenha em conta a
diversidade das situações e das necessidades
de uma sociedade irremediavelmente estratificada, esta promessa política é demagógica e
não favorece a justa satisfação dos direitos de
terceira geração particularmente o da promoção da saúde pela prevenção e tratamento das
situações de doença.
Natureza do direito e formas de o satisfazer
no interior de uma sociedade democrática
com instituições justas, constituem a questão
essencial para que se possa debater, com seriedade, a estrutura do sistema de prestador de
cuidados de saúde que os cidadãos desejam ter
e aceitam pagar.
É necessário que os cidadãos ricos, remediados ou pobres, exponham o seu ponto de
vista, as suas expectativas e as suas opções.
É indispensável que todos os agentes de
saúde, com relevo para médicos, enfermeiros
e outros técnicos, possam apresentar as suas
posições quanto aos modos como desejam
exercer a sua actividade profissional, numa
clara definição de direitos e deveres.
Também os responsáveis pelas infraestruturas deverão dizer de que forma as
disponibilizam para que, nelas, os profissionais
possam praticar os cuidados que os cidadãos
procuram obter e dos quais necessitam.
A satisfação do direito fundamental à
protecção, em todos os seus aspectos, da saúde
de todos os cidadãos é uma questão de Estado.
Ao Governo cabe a responsabilidade de
definir os grandes objectivos de uma política
de protecção da saúde e de estruturar, com a
intervenção dos destinatários dessa política,
que são os cidadãos, e com os executores,
que são os profissionais do sector, um Sistema
que dê cumprimento aos diferentes aspectos
da política aprovada. Cabe-lhe, ainda, decidir
sobre as formas diversas de financiar o Sistema
– que será um conjunto plural de acções
estruturadas, com as quais serão atingidos os
objectivos da política de protecção da saúde
– e de avaliar a qualidade executiva de cada
uma das peças do Sistema.
Torna-se assim claro que se é certo que a
Pessoa Humana tem o direito a cuidados
de saúde, como um direito civilizacional, as
formas de dar satisfação a este direito podem
ser múltiplas, desde um Serviço Nacional de
Saúde, monopolista, centralizado, pago pelo
Orçamento Geral do Estado a partir dos
impostos cobrados aos contribuintes, até um
Sistema plural, desconcentrado, com ofertas
múltiplas e formas de pagamento flexíveis.
Bibliografia
O que verdadeiramente importa a um
Estado que promove a justiça é que o Governo
que o administra se não arvore em produtor
exclusivo de cuidados mas se assegure, em
cada momento, de que nenhum cidadão fique
privado de cuidados de saúde necessários, em
tempo útil, porque não tem dinheiro para os
pagar ou porque, sendo gratuitos no momento do uso, não tem acesso e aguarda meses ou
anos em listas de espera saturadas.
Daniel Serrão – A Questão Essencial. Prefácio ao livro
“Prioridades na Saúde” de Rui Nunes e Guilhermina Rego.
McGraw Hill. Lisboa, 2002
As listas de espera ofendem a dignidade da
Pessoa Humana e são a expressão do mais
injusto dos acolhimentos que podem ser
dados a uma pessoa humana doente. E morrer
na lista de espera por cuidados que podiam ser
curativos é sofrer na carne, a ofensa irremediável a um direito de personalidade e um direito
de cidadania numa sociedade democrática:
o direito da Pessoa Humana a Cuidados de
Saúde.
Ramiro Délio Borges de Menezes – O Desvalido no
Caminho (Lc 10, 25-37). Dissertação de Mestrado em
Ciências Religiosas. Porto, 2004
António Damásio - O Sentimento de Si. Publicações
Europa-América. Lisboa, 2000.
George Weigel – Testemunho de Esperança. Bertrand
Editora. Lisboa, 2000
Texto de uma conferência proferida a convite da Liga dos
Amigos do Hospital de Angra do Heroísmo
Notas
Ramiro Délio Borges de Menezes – O Desvalido no
Caminho (Lc 10, 25-37). Dissertação de Mestrado em
Ciências Religiosas. Porto, 2004
2
António Damásio - O Sentimento de Si. Publicações
Europa-América. Lisboa, 2000.
3
George Weigel – Testemunho de Esperança. Bertrand
Editora. Lisboa, 2000
4
Daniel Serrão – A “Questão Essencial “. Prefácio ao livro
Prioridades na Saúde de Rui Nunes e Guilhermina Rego.
MacGrawl Hill. Lisboa,2002.
1
17
18
Fábio Pereira
Nutricionista, Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto,
IPATIMUP
José Carlos Machado
Biólogo, Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto,
IPATIMUP
Maria Daniel Vaz de
Almeida
Nutricionista, Professora Catedrática da Faculdade de Ciências da Nutrição e
Alimentação da Universidade do Porto
Nutrigenética
e nutrigenómica:
em direção à nutrição personalizada
O sucesso obtido no Projecto do
Genoma Humano, aliado a poderosas
ferramentas de biologia molecular,
está a impulsionar uma nova era
na medicina e na nutrição…
19
Introdução
O Projecto do Genoma Humano (PGH),
iniciado em 1990 como um esforço cooperativo internacional, tinha como objectivos
a sequenciação completa de todo o genoma
humano (cerca de 2.9 biliões de nucleótidos),
a identificação dos genes e dos produtos por
estes codificados, assim como a identificação
da sua função, associação com patologias específicas e interacções com factores ambientais
(1).
ambiente (4). Apesar dos nutrientes influenciarem o desenvolvimento do ser humano
e a evolução para determinados fenótipos, e
como se sabe, este mecanismo diverge de indivíduo para indivíduo, o inverso deve também
ser considerado. Isto é, o genótipo individual
pode determinar a resposta a um determinado
nutriente ou componente alimentar (3). Esta
nova era emergente, a Nutrição Molecular, ou
seja, as interacções gene-nutriente é, portanto,
complexa e bi-direccional.
O sucesso obtido no PGH, aliado a poderosas ferramentas de biologia molecular, está
a impulsionar uma nova era na medicina
e na nutrição, e a alterar de modo determinante a investigação nas ciências da saúde (2).
Os segredos revelados pelo genoma estão a
facilitar a criação de novas oportunidades de
compreensão de como responde o ser humano aos estímulos provenientes do ambiente
(3). Alguns dos dados obtidos, revelaram
determinadas variações genéticas fundamentais na resposta metabólica inter-individual ao
A genómica é um conceito amplo e vasto,
que inclui o estudo dos genes, relativamente
à sua estrutura, função, regulação e interacção
com factores ambientais (5). Uma das primeiras
definições, publicadas na literatura científica,
para o termo nutrigenómica (ou “nutritional
genomics”) foi proposta por DellaPenna em
1999 (6), mas muitas surgiram desde então (1,
2, 7, 8, 9, 10, 11), não fosse esta uma nova área
de conhecimento científico (Tabela 1 – glossário de termos relacionados com genómica
nutricional).
20
Assim, segundo Ordovas et al., a nutrigenómica considera “os estudos de interacção
funcional dos alimentos e dos seus componentes com o genoma, ao nível molecular, celular
e sistémico” (12). A finalidade da nutrigenómica é auxiliar a prevenção e o tratamento de
doenças através da alimentação.
A nutrigenética (ou “nutritional genetics”), considera os efeitos da variação
genética individual na resposta aos nutrientes
ou à alimentação, e oferece a promessa de uma
“nutrição personalizada” para a constituição
genética do indivíduo, baseada no conhecimento das variações do metabolismo dos
nutrientes sobre os genes (2, 11, 12) (Figura
1). Mais recentemente, surgiu o conceito de
metabolómica, ou seja, o estudo do metaboloma, que consiste no conjunto de metabolitos
de uma célula ou de um organismo (13, 14).
A expectativa subjacente à nutrigenómica
e à nutrigenética é que será identificada e
validada uma grande variedade de genes cuja
expressão possa ser modificada por componentes alimentares - nutrientes ou não - a fim
de serem incorporados em estratégias nutricionais que visem optimizar a saúde e prevenir
a doença (2). Entre as várias doenças que
poderão beneficiar com os avanços desta área,
destacam-se a obesidade, o cancro, as doenças
cardiovasculares, a osteoporose, a diabetes e
várias outras doenças inflamatórias crónicas
(15).
É portanto baseado na concretização destas
expectativas que surge o conceito de “nutrição inteligente”, ou seja, o conhecimento do
estado nutricional, das necessidades nutricionais e do genótipo individual, que prometem
revolucionar não só as Ciências da Nutrição,
mas todas as áreas ligadas às ciências da saúde.
Exemplo clássico
O caso do ácido fólico é um dos exemplos
mais bem estudados e descritos em genómica nutricional. Como se sabe, o ácido fólico,
ou vitamina B9, é importante na prevenção
dos defeitos do tubo neural e na regulação
dos níveis séricos de homocisteína, sendo
este último um factor de risco independente
para a doença cardiovascular (16). De facto,
a homocisteína plasmática está inversamente
relacionada com as concentrações sanguíneas
de ácido fólico. Uma vez que os folatos não
são sintetizados pelos seres humanos, a alimentação assume um papel chave na concentração
de folatos no organismo, e esta depende de
interacções gene-nutriente (17).
A enzima 5,10-metilenotetrahidrofolato
reductase (MTHFR) é responsável pela
A nutrigenética (ou “nutritional genetics”), considera os efeitos
da variação genética individual na resposta aos nutrientes
ou à alimentação, e oferece a promessa de uma “nutrição
personalizada” para a constituição genética do indivíduo, baseada
no conhecimento das variações do metabolismo dos nutrientes
sobre os genes.
21
redução do 5-metilenotetrahidrofolato em
5-metiltetrahidrofolato (a forma circulante predominante do ácido fólico), que
possibilita a remetilação da homocisteína em
metionina (12). Um polimorfismo, relativamente comum, existente no nucleotídeo 677
do gene da MTHFR, caracterizado por uma
substituição de uma citosina (C) por uma
timina (T) (MTHFR 677CT), origina uma
troca do aminoácido valina por uma alanina
na cadeia proteica da enzima. Esta variante
polimórfica da MTHFR é termolábil e mais
instável, estando associada a uma menor actividade enzimática (1, 5, 12).Assim, os indivíduos
homozigóticos para esta variante polimórfica
(genótipo TT) apresentam níveis séricos mais
elevados de homocisteína em comparação
com os indivíduos com os restantes genótipos
(CC e CT), uma vez que existe uma menor
transformação da homocisteína em metionina. Esta situação torna-se especialmente crítica
perante um défice acentuado de ácido fólico
(1, 12). Ensaios clínicos controlados demonstraram que as diferentes variantes genotípicas
são sensíveis à ingestão de ácido fólico no
contexto da hiper-homocisteinémia, e que os
indivíduos portadores do genótipo TT necessitam de maior aporte de folatos para atingirem
nível séricos de homocisteína comparáveis aos
indivíduos com genótipo CC e CT (17).
O caso do ácido fólico e do polimorfismo
da MTHFR coloca obviamente em causa
as recomendações nutricionais generalizadas
para a população, evidenciando a necessidade
de um estudo individual para casos que, como
este, são bastante comuns na população, e em
que uma recomendação diferencial constitui
um benefício evidente.
Figura 1 - Esquema ilustrativo das interacções gene-nutriente como base da nutrição molecular. (adaptado de ref.2)
Actualidade
Quem pensa que a nutrigenómica está
longe de se tornar realidade e desconhecida
pela população, engana-se. A inclusão desta
temática é já frequente em revistas e jornais
mundialmente conhecidos como o The
Guardian do Reino Unido (18) e a New
York Times Magazine dos Estados Unidos da
América (EUA) (19).
As ideias são claras e apelativas: não mais será
necessário ingerir suplementos vitamínicos
que para nada servem mas somente aquelas
vitaminas de que se necessita e, na quantidade
exacta! A alimentação deve ser ajustada e à
medida do perfil genético de cada indivíduo,
para prevenir o aparecimento de doenças e
promover a saúde. Enfim, a “dieta inteligente”!
22
Mas a revolução não fica por aqui.Apesar do
Centre for Diseases Control (CDC) dos EUA
ser de opinião contrária, já existe pelo menos
uma empresa de biotecnologia dedicada a
melhorar o estado de saúde humana utilizando as tecnologias moleculares mais recentes,
combinando os conhecimentos sobre nutrição, patologia e genómica, para “prolongar a
qualidade de vida”, através de uma “nutrição
inteligente”. Esta empresa americana, fundada
em Abril de 2002, possibilita já análises do perfil
génico individual, assim como de polimorfismos e adequação de nutracêuticos e nutrientes
(20). Os clientes pagam cerca de $1500 US para
obter um “preventive health profile”. Segundo
a opinião de alguns especialistas uma iniciativa
discutível, mas aparentemente viável…
Futuro
Numa era onde a medicina é cada vez mais
preventiva, espera-se que a terapia nutricional
seja a pedra angular dos futuros cuidados de
saúde, transformando-se numa importante
ferramenta terapêutica para a maximização
da saúde e minimização do risco de doença
em indivíduos susceptíveis (1). Neste período
de investigação pós-genómica, não há dúvidas
que a nutrição será de interesse central à medida que os nutrientes e outros componentes
alimentares se revelam factores importantes
nas interacções gene-ambiente (21).
Com o desenvolvimento da genómica nutricional, com a exportação de conhecimento
do laboratório para o meio clínico, e à medida
que a genética for integrada nos cuidados de
saúde, a terapia nutricional será orientada de
acordo com o genótipo de cada indivíduo.
A Nutrição poderá ser, mais do que nunca, a
chave para prevenir ou mitigar a expressão de
doenças para as quais um indivíduo é susceptível (1, 15).
Os profissionais de Nutrição deverão,
portanto, possuir uma formação sólida em
genética e estar familiarizados com o papel dos
nutrientes e de outros constituintes alimentares
na modulação da expressão génica assim como
devem ser capazes de compreender a associação entre genes, doença e ambiente, a fim de
desempenhar um papel proeminente na recomendação de terapia preventiva nutricional e
de alteração dos estilos de vida (1, 21).
O doente vai chegar à consulta de Nutrição
“trazendo” o seu perfil genético. A balança vai
pesar para o lado dos profissionais que tiverem
aptidão para interpretar e associar determinado genótipo à susceptibilidade a determinada
patologia, e serem capazes de seleccionar as
estratégias terapêuticas mais eficazes na redução
dessa susceptibilidade (1). O desenvolvimento de uma nova prática clínica vai permitir
potenciar a maximização genética individual
(15). A preparação para esta nova era da medicina genómica, incluirá não só a genética, mas
também a biologia molecular, a bioquímica, o
metabolismo (metabolómica) e outros campos
da esfera das Ciências da Nutrição (Figura
2). A inclusão destas ciências na formação
(graduação e pós-graduação) em Ciências da
Nutrição será imprescindível!
Os Nutricionistas têm agora uma oportunidade especial e única para redefinir o seu papel
nos cuidados e no sistema de saúde. Neste
contexto, o Nutricionista poderá assumir o
papel de “nutrigenetic counselor”, para o que
lhe será exigida uma nova formação e a correspondente responsabilidade (2). Os profissionais
que reunirem as características descritas, serão
certamente os mais procurados.
Com o desenvolvimento da genómica nutricional, com a
exportação de conhecimento do laboratório para o meio
clínico, e à medida que a genética for integrada nos cuidados
de saúde, a terapia nutricional será orientada de acordo com
o genótipo de cada indivíduo. A Nutrição poderá ser, mais do
que nunca, a chave para prevenir ou mitigar a expressão de
doenças para as quais um indivíduo é susceptível.
23
Figura 2 - Representação esquemática dos passos envolvidos na expressão genica (centro),
a modulação pela dieta (esquerda) e as técnicas moleculares utilizadas (direita). (adaptado de
ref. 8)
Bibliografia
24
1 – DeBusk RM. Introduction to nutritional genomics.
In: Mahan LK, Escott-Stump S, editors. Krause´s Food,
Nutrition & Diet Therapy. 11th ed. Philadelphia: Saunders;
2004. p.390-406.
2 – Gillies PJ. Nutrigenomics: the rubicon of molecular
nutrition. J Am Diet Assoc 2003; 103(12 suppl 2):S50-S55.
3 - Paoloni-Giacobino A, Grimble R, Pichard C. Genetics
and nutrition. Clin Nutr 2003; 22(5):429-435.
4 - NCMHD Center of Excellence for Nutritional
Genomics. Nutrigenomics [homepage]. University of
California at Davis; 2004 [citado em 2005 Mar 25].
Disponível em:
5 – Stover PJ. Nutritional genomics. Physiol Genomics
2004; 16:161-165.
6 – DellaPenna D. Nutritional Genomics: manipulating
plant micronutrients to improve human health. Science
1999; 285:375-379.
7 – Chávez A, Muñoz de Chávez M. Nutrigenomics in
public health nutrition: short-term perspectives. Eur J Clin
Nutr 2003; 57(suppl 1):S97-S100.
8 – Elliot R, Ong TJ. Nutritional genomics. BMJ 2002;
324:1438-1442.
9 – van Ommen B. Nutrigenomics:exploiting systems
biology in the nutrition and health arenas. Nutrition 2004;
20:4-8.
10 – Trayhurn P. Nutritional genomics – “Nutrigenomics”.
Br J Nutr 2003; 89:1-2.
11 – Chadwick R. Nutrigenomics, individualism and public
health. Proc Nutr Soc 2004; 63(1):161-166.
Glossário
Alelo – uma das cópias de um gene. Em organismos diplóides, como os humanos, cada indivíduo possui dois alelos para
cada gene, excepto nos cromossomas X e Y em indivíduos
do sexo masculino.
ADN (ácido desoxirribonucleico) – material genético
dos humanos e maior parte dos organismos vivos.
Fenótipo – a expressão de um gene.
Gene – segmento do ADN que normalmente contém a
informação necessária para a produção de uma proteína ou
ARN.
Genoma – a totalidade da informação genética de um
organismo ou célula.
Genómica nutricional – o estudo das consequências da
interacção entre nutrientes e componentes alimentares com
o material genético; também denominada nutrigenómica.
Genótipo – referente à constituição genética de um indivíduo.
12 – Ordovas JM, Corella D. Nutritional genomics. Annu
Rev Genomics Hum Genet 2004; 5:71-118.
13 – Davis CD, Milner J. Frontiers in nutrigenomics, proteomics, metabolomics, and cancer prevention. Mut Res 2004;
551: 51-54.
14 – Corthésy-Theulaz JT, et al. Nutrigenomics : the impact
of biomics technology on nutrition research. Ann Nutr
Metab 2005; 49: 355-365.
15 – DeBusk RM, et al. Nutritional genomics in practice:
where do we begin? J Am Diet Assoc 2005; 105 (4): 589598.
16 - Carke R, Daly L, Robinson K, et al.
Hyperhomocysteinemia: an independent risk factor for
cardiovascular disease. N Eng J Med 1991; 324(17):11491155.
17 – Ashfield-Watt P, Pullin CH, Whiting JM, et al. Methy
lenetetrahydrofolate reductase 677CT genotype modulates
homocysteine responses to a folate-rich diet or a low-dose
folic acid supplement: a randomized controlled trial. Am J
Clin Nutr 2002; 76:180–6.
18 – Grierson B. What your genes want you to eat. NY
Times Magazine. 2003 Maio 4.
19 – Grierson B. Eat right for your genotype.The Guardian.
2003 Maio 15.
20 - Nutragenomics [homepage]. Chicago: Nutragenomics
Inc; 2002 [citado em 2005 Mar 25]. Disponível em:
21 – Daniel H. Genomics and proteomics: importance for
the future of nutrition research. Br J Nutr 2002; 87(suppl 2):
S305-S311.
Locus/Loci – representação abstracta de um gene ou
marcador num cromossoma.
Mutação – uma alteração da sequência de nucleótidos no
ADN.
Nucleotídeo – unidade que constitui o ADN e o ARN.
Normalmente referida pelas letras ATCG para ADN e
AUCG para ARN.
Polimorfismo – variante de um gene que ocorre na população numa frequência superior a 1%.
Promotor – sequência de nucleotídeos no ADN à qual a
ARN polimerase se liga para iniciar a transcrição.
Proteómica – estudo da estrutura e função das proteínas
que podem ser expressas num organismo.
SNP (single nucleotide polymorphism) – forma mais
comum de variabilidade genética no genoma humano,
correspondendo a uma única substituição de um nucleotídeo na sequência de ADN.
Tabela 1
Alexandre Castro-Caldas Alexandre Castro-Caldas é neurologista, director do Instituto de Ciências da Saúde da
Universidade Católica Portuguesa, e dedicou parte da sua vida a estudos sobre o cérebro
As janelas do
conhecimento
Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. É muito
importante, para criar ligações dentro do cérebro, para
desenvolver determinadas estruturas, que as pessoas aprendam
a leitura e tudo o que está relacionado com ela.
Alexandre Castro Caldas
Grande prémio Bial de Medicina 2002
28
«Ir à escola e aprender a ler modifica o cérebro. As crianças, ao desenvolverem o cérebro,
têm janelas de oportunidade para aprenderem. Se a informação não é dada na altura própria,
a janela fecha-se e a oportunidade passa». Assim, apesar das controvérsias, as crianças devem
ter estímulos a partir dos 3 anos. Apesar do saber ocupar lugar, o cérebro tem sempre forma
de arquivar informação no menor espaço possível, tudo para não consumir energia. O treino
mental, desde criança, ajuda nessa organização. E quanto mais matrizes para resolver os mesmos
problemas, melhor. «O cérebro selecciona sempre o que é mais económico e rápido para
processar informação».
O Cérebro Analfabeto – A influência
do conhecimento das regras de
leitura e da escrita na função
cerebral, Grande Prémio Bial de
Medicina 2002, é um estudo sobre o
cérebro. Pode-mo explicar?
É o estudo sobre o cérebro das pessoas
que não foram à escola e as implicações que
cria essa falta. É a expressão das alterações
biológicas que a aprendizagem provoca. Ir à
escola e aprender a ler modifica o cérebro. É
muito importante, para criar ligações dentro
do cérebro, para desenvolver determinadas
estruturas, que as pessoas aprendam a leitura
e tudo o que está relacionado com ela. No
fundo, é um modelo para estudar no humano
a influência do meio sobre a evolução cerebral. Isso permitiu publicar muitos trabalhos,
bem aceites internacionalmente, e permitiu
entrar na segunda fase do estudo: estudar
pessoas que, sendo analfabetas a vida toda,
resolveram apreender a ler em adultos. Se os
analfabetos tinham problemas de organização
cerebral, relacionados com a incapacidade de
ler, como é que eles podiam depois aprender?
Tem-se verificado que eles aprendem com
áreas e regiões do cérebro diferentes daqueles
com que aprenderiam se fossem pequenos.
Os jovens usam um suporte de informação
diferente dos adultos.
Significa que uma criança utiliza uma
parte do cérebro quando começa a
estudar. Se alguém nunca estudou
e quer aprender utilizará uma parte
diferente?
Exactamente.
Um analfabeto está menos
preparado para a vida em sociedade,
para a realidade?
Há uma falha importante, embora haja
pessoas fantásticas, de uma inteligência
brilhante, e que chegam a desenvolver os
próprios métodos de registo de informação
escrita. Reunimos algumas agendas e documentos de pessoas analfabetas onde vemos o
desenvolvimento de métodos específicos que
inventaram perante a dificuldade. Não aprendeu, inventa.
29
30
E como inventa?
É a parte interessante. Temos uma certa
capacidade de inventar e os analfabetos são
capazes, perante a enorme necessidade de
registar informação, de criar mecanismos
próprios para o fazer. Inventaram processos
de a registar que não são exactamente iguais
ao da escola que são normalizados. Isso abriu
a perspectiva sobre a criatividade, perceber se
os analfabetos são mais criativos, um estudo
que está a ser desenvolvido. Ainda não temos
respostas.
Em termos práticos, o analfabetismo
implica o quê?
Demoram mais tempo a resolver um
problema, têm mais dificuldade na compreensão da linguagem. O último censo mostrava
11% de analfabetismo na população em geral.
É imenso. Se pegar na população acima dos 50
anos corresponde, talvez, a 30%.
Sabe-se o que é preciso fazer para
uma criança se desenvolver?
Neste momento discute-se com alguma
intensidade o que é estimular crianças, o que
é que as neurociências modernas trouxeram
sobre o conhecimento do cérebro para saber
o que é preciso fazer a uma criança para ela se
desenvolver. De facto, estamos com um atraso
grande nesse domínio. Existem publicações
de ligação da pedagogia com as neurociências,
uma área fundamental a desenvolver, e era
importante que houvesse uma reflexão em
Portugal, não para que as coisas sejam absorvidas como verdade, mas para que as pessoas
sejam sensíveis a essa variável. É preciso que
as pessoas que lidam com crianças tenham a
perspectiva do que é a biologia e a plasticidade
do sistema nervoso como órgão de adaptação
à informação, para saberem trabalhar com
isso, identificar e lidar com os problemas que
surgem. A perspectiva psicológica utilizada
em Portugal está antiquada nas suas referências bibliográficas. É pouco, temos de ter uma
perspectiva mais neurobiológica, mas sem
perder as outras.
Existe em países da Europa essa
preocupação?
Saíram normas em Inglaterra no final dos
anos 90 que defendem que os estímulos para
o ensino se devem começar a fazer entre os 3 e
os 6 anos de idade. Houve pessoas que protestaram, que dizem que nessa altura não há nada
a estimular, outras disseram que é tarde demais
para se começar. Há aqui uma discussão que
está em cima da mesa e que é preciso fazer. As
pessoas têm de começar a investir a partir dos
3 anos de vida, pois esse é o período mais rico
de aquisições.
Há momentos próprios para
aprender?
As crianças ao desenvolverem o cérebro
têm janelas de oportunidade para aprender.
Se não fornecemos a informação na altura
própria, altura que a criança está mais apta
para receber determinado tipo de informação,
a janela fecha-se e passou a oportunidade.
Quando quiser aprender já não vai aprender
da mesma forma nem com a mesma facili-
dade. O mesmo aconteceu com as pessoas
que não foram à escola, fechou-se a janela.
Conseguiram aprender mais tarde, mas com
muita dificuldade e usaram outras regiões do
cérebro, não foram as que a biologia tinha
predisposto para isso.
Pode-me dar um exemplo?
A ligação da escrita e da leitura num adulto
que aprende a ler é completamente diferente
a ser quase como uma cópia de uma evocação
da leitura, o que é extremamente difícil. Têm
que evocar visualmente as palavras escritas e
depois copiar a imagem interior. Os miúdos
não fazem isso, têm uma imagem táctil da
escrita e acabam por escrever sem pensar como
se desenha um a, não têm de pensar nisso, o a
está na mão deles, está no automatismo motor.
Isso não acontece nas pessoas adultas analfabetas. Não conseguem desenvolver isso, por isso
Temos uma certa capacidade
de inventar e os analfabetos
são capazes, perante a enorme
necessidade de requisitar informação, de criar mecanismos
próprios para registar de qualquer forma essa informação.
da de uma criança. Ler e escrever são duas
aptidões completamente distintas em termos
neurobiológicos. Associamo-las porque as
aprendemos ao mesmo tempo e fazemos essas
associações. Mas quando as áreas envolvidas
deixam de ser as habituais e passam a ser
outras, o fenómeno torna-se completamente
distinto um do outro, o que é fascinante como
compreensão dos núcleos cerebrais. É muito
difícil para um adulto analfabeto aprender a
escrever. Ler ainda consegue. O escrever passa
as letras são sempre muito elaboradas, muito
imperfeitas.
Podemos dizer que desde o
momento que nascemos vamos
tendo as janelas que vão abrindo
para determinadas funções. Depois
de se fecharem, a aprendizagem
de determinadas funções torna-se
árdua, mesmo impossível?
De certa maneira, mas não devemos ser
31
32
construtivistas no sentido de que sejam necessárias as etapas todas. Evidentemente que se a
criança não aprendeu numa determinada fase
a matemática, que é um belíssimo exemplo,
criou-se um problema à volta da matemática
que não devia existir. No fundo, a matemática
utiliza processos intuitivos de pensamento que
as crianças têm. Essas operações que estão no
cérebro, como operações básicas intuitivas, têm
de ser trazidas para um nível consciente, de
elaboração ancorada no sistema de representação que as crianças aprendem.As crianças têm
de aprender o sistema de representação dos
algarismos, da simbologia própria, e depois
encaixar nesse sistema de representação aquilo
que é o pensamento matemático intuitivo. A
partir daí, o pensamento matemático vai sendo
elaborado, vai aumentando. Essa passagem, essa
colagem, tem tempos, tem de ser feita nas alturas próprias. É fundamental treinar a memória
das crianças, coisa que as pessoas começaram
a achar que não era necessário. O aprender a
tabuada de cor não implica que não perceba a tabuada, pode aprender e perceber, é o
desejável, mas é preciso que a decore também.
Se tivermos alguns elementos decorados, o
pensamento é muito mais rápido, não temos
de ir buscar coisas mais complicadas, porque
isso atrasa o raciocínio, modifica-o. É importante treinar a memória.
Quanto mais estímulos, maior
flexibilidade cerebral?
Decorar os afluentes dos rios, por exemplo.
As pessoas dizem agora que não é preciso para
nada. Vai a um atlas, está lá tudo. É verdade.
Mas se os decorar, o que não custa nada, com
essa matriz, se resolver ser médico, torna-se
mais simples e rápido decorar os ramos das
artérias, é parecido e tenho lá a matriz.
O saber não ocupa lugar?
Ocupar ocupa, mas é capaz de criar metasistemas de arquivo que a criança organiza no
cérebro. Posso aprender muita coisa e ser capaz
de a organizar facilmente, tenho um organizador. Se tiver muita informação para lidar,
organizo-a em áreas. Condenso a informação
e, depois, pode ser puxada por uma pontinha e
vem tudo.A preocupação biológica do cérebro,
o seu grande objectivo, é não consumir muita
energia, não se gastar muito. Quanto menos
células nervosas estiverem a trabalhar melhor.
O cérebro tem sempre forma de arquivar
informação no menor espaço e da forma mais
racional possível. As pessoas treinadas desde
crianças colocam a informação em lugares
próprios, quem não tem treino nenhum tem
de decorar uma informação imensa. Um analfabeto que não conhece os dígitos para decorar
o número 9 tem de decorar o 9 no sentido de
quantidade, 9 coisas, 9 árvores, 9 pauzinhos, e
guarda isso dessa maneira, ocupa mais espaço
do que decorar o símbolo 9. Não preciso da
quantidade para guardar a informação, abro
a janela do 9, tenho a posição sequencial do
9, vários valores, os que quiser, para o 9. O
símbolo representa na quantidade determinada coisa, na sequência outra coisa. Isso é uma
compactação da informação que traz enormes
vantagens para o funcionamento do cérebro, a
escola ajuda as pessoas a fazerem isso.
As crianças ao desenvolverem o cérebro têm
janelas de oportunidade para aprender. Se não
fornecemos a informação na altura própria,
altura que a criança está mais apta para receber
determinado tipo de informação, a janela fecha-se
e passou a oportunidade.
A preocupação biológica do cérebro, o
seu grande objectivo, é não consumir
muita energia, não se gastar muito.
Quanto menos células nervosas estiverem
a trabalhar melhor. O cérebro tem sempre
forma de arquivar informação no menor
espaço e da forma mais racional possível.
Quanto mais estímulos na escola,
mais facilidade temos de aceder à
informação?
Mais facilidade temos de lidar com a informação. Se aprender várias regras para fazer
as mesmas operações ainda melhor, porque
tem processamentos paralelos de informações
e o cérebro selecciona sempre o que é mais
económico e é muito rápido a processar
informação.
Disse-me que o cérebro gasta muita
energia a trabalhar?
Gasta porque não tem reservas nenhumas,
as células nervosas precisam de glucose e o
oxigénio.
O estudo disse que continuava, vai
ter um caminho, que é qual?
Que é sobre pessoas que aprenderam mais
tarde. Tenho mais alguns estudos que novamente estou a fazer com analfabetos, coisas
que ficaram para trás e que gostávamos de
estudar.
Uma pessoa que anda na escola até
à quarta classe, depois não estuda
mais, esse tempo ajuda?
Apesar de tudo, as pessoas que andaram na
escola e depois nunca mais pensaram em ler
nem estudar nem fazer coisa nenhuma, têm
soluções biológicas para as coisas, não são
iguais às pessoas que nunca foram à escola. Se
foram infectadas pelo vírus do conhecimento
ficam com o vírus. A escola tem um efeito
geral sobre o cérebro, quem tem mais estímulos tem um maior desenvolvimento celular. A
escola só por si é um estímulo rico.As crianças
interagem entre elas, surgem novas questões,
só por si enriquece. Depois, aprendem-se
coisas específicas. Se nunca for à escola não
aprendo que o a é aquele boneco que corresponde ao som a, nem fico a saber que posso
partir as palavras aos bocadinhos. Quem não
vai à escola não sabe tirar o p de sapato, não
faz as operações mentais de segmentação de
linguagem para ter consciência da linguagem,
do que está a dizer.
33
Para além destes estudos, sei
também que tem outras áreas
de interesse. Porquê a doença de
Parkinson?
É uma das primeiras doenças neurológicas,
a seguir à epilepsia, uma doença degenerativa
que foi possível começar a tratar.
34
Se foram infectadas pelo vírus
do conhecimento ficam com o
vírus. A escola tem um efeito
geral sobre o cérebro, quem
tem mais estímulos tem um
maior desenvolvimento celular.
A escola só por si é um estímulo
rico. As crianças interagem entre
elas, surgem novas questões, só
por si enriquece.
A doença de Parkinson é o quê?
É uma doença degenerativa. Determinadas
regiões do cérebro começam a perder células,
determinadas células nervosas começam a
desaparecer, entram num processo de morte
celular programada. É um processo curioso,
pois a morte celular não acontece toda ao
mesmo tempo, mas são só um determinado
tipo de células nalgumas regiões específicas. É
um processo estranho, ninguém sabe porquê,
embora se perceba que há apetência de algumas substâncias para essas células, mas não se
sabe inteiramente qual é o mecanismo geral.
Há alguma identificação de relação com os
genes, é possível que factores genéticos estejam
envolvidos.A genética cria uma fragilidade e o
ambiente faz o resto, é possível que seja uma
combinação de funções de sistemas destes que
levam à doença. É uma doença que começa,
em média, pelos 50/55 anos, podendo começar em jovens. Há formas juvenis, que são
geralmente diferentes, e há formas mais tardias
que surgem pelos 90 anos. À medida que a
pessoa se vai tornando mais idosa a probabilidade de ter a doença é maior.
Mais nos homens ou mulheres?
É igual, não há diferença.
Quem estudou está menos apto para
a doença, quem não estudou está
mais apto a ter Parkinson?
Não. Isso tem-se discutido em relação à
doença de Alzheimer. Aí há uma relação interessante entre as pessoas com mais estudos e as
pessoas com menos. Nas pessoas com menos,
a doença torna-se evidente com mais facilidade e mais cedo; nas outras acontece o inverso.
No Parkinson isso não acontece.
O ter estudado, utilizar o cérebro,
pensar, atrasa a manifestação da
doença de Alzheimer?
Não atrasa ter a doença. Mas se tiver a
doença as manifestações não são tão evidentes.
A doença de Alzheimer começa pelos 60/65
anos e a partir dos 60 duplica a prevalência.
Se isto fosse matemática pura, aos 120 anos
100% da população teria a doença. Mas não
acontece isso. Mas, de facto, com a inversão
da pirâmide etária da população, vamos ter
cada vez mais pessoas com problemas destes
de envelhecimento e a sociedade tem de criar
sistemas de suporte.
O que é preciso?
Ter noção de que as pessoas quando chegam
aos 65 anos não se vão sentar no banco do
jardim. Têm de ter papel activo na sociedade,
um outro papel, a sociedade tem de descobrir de que forma as pessoas podem ser úteis.
E podem-no ser de imensas maneiras, nos
próprios grupos etários, sistemas de convívio
diferentes. Não as enfatizar, não são meninos,
são adultos, têm experiência de vida, tem de se
estimular isso. Uma das prioridades da Europa
no envelhecimento é a preocupação com o
envelhecer bem, deve ser invertido este sentido depreciativo de estar a ficar velho. Temos
de ver como posso tirar partido de estar velho.
A velhice pode ser uma boa fase da vida.
Nuno Penacho
36
Licenciatura em Bioquímica pela Universidade de Coimbra. Estudante
de doutoramento em tecnologia bioquímica. Departamento de Terapia
Génica do Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra.
Universidade de Coimbra
O princípio básico subjacente à Terapia Génica
consiste simplesmente em fazer chegar material
genético às células para que o produto da sua
expressão possa curar ou retardar a progressão
da doença. E hoje a Terapia Génica pode incluir
outro tipo de estratégias que vão além da simples
substituição do gene defeituoso. No entanto, o
conceito de Terapia Génica, que aparentemente
se revela maliciosamente simples, encerra alguns
problemas que são precisos ultrapassar de modo a
que este tipo de terapia venha a ter sucesso.
O conhecimento acerca dos genes e do
seu modo de funcio­namento tem aumentado
de forma quase exponencial nos últimos
tempos, especialmente desde que a totalidade
do genoma humano foi desvendado quase
completamente há uns anos atrás. A par
com este conhecimento veio o facto de
algumas doenças serem devidas precisamente
a malformações genéticas, ou seja, serem
consequência directa de mutações genéticas
que dão origem a proteínas cuja função se
encontra comprometida.Exemplos são doenças
como a fibrose quística, a imunodeficiência
combinada severa (SCID), etc. A partir do
momento em que se tomou conhecimento
de que algumas doenças têm origem genética,
facilmente a ideia de um tratamento cujo alvo
é o próprio gene mutado emergiu. Assim
surge o conceito de terapia génica (TG), a
próxima revolução da medicina moderna.
O princípio básico subjacente à TG consiste
simplesmente em fazer chegar material
genético às células para que o produto da sua
expressão possa curar ou retardar a progressão
da doença. No entanto, para tal é necessário
fazer chegar o gene até às células, surgindo
assim o conceito de transfecção, processo
de entrega e expressão de material genético
com sucesso. A função da administração
do gene correcto é a de compensar o gene
defeituoso que a célula contém, para deste
modo se conseguir recuperar a função celular,
eliminando o foco de doença. O tratamento
da doença é feito ao nível celular eliminando
o foco de doença, enquanto a maior parte dos
fármacos curam simplesmente os sintomas. No
entanto, ao longo dos últimos tempos tem-se
vindo a verificar um alargamento do conceito
de TG. Hoje a TG pode incluir outro tipo de
estratégias que vão além da simples substituição
Um medicamento chamado gene
Terapia Génica
37
do gene defeituoso. O gene transfectado
pode não ser necessariamente para substituir
outro malformado, mas o seu emprego ser
terapêutico ou a administração exógena do
produto da sua expressão ser difícil.
38
Deste modo é fácil de concluir que as possibilidades que se abrem para a aplicação da TG
são inúmeras. Podemos realçar o tratamento de
doenças hereditárias, doenças neurodegenerativas, cancro, doenças cardiovasculares, sida, etc.
No entanto, o conceito de TG, que aparentemente se revela maliciosamente simples,
encerra alguns problemas que são precisos
ultrapassar de modo a que este tipo de terapia
venha a ter sucesso.
As próximas linhas irão abordar a questão
do vector, ou seja, o veículo que leva o gene
até à população celular alvo.
Para que se possa fazer expressar ADN
exógeno numa população celular é necessário
fazer com que este chegue ao seu destino,
como já foi referido, já que regra geral poucas
células recebem e expressam ADN exógeno.
Assim é necessário criar veículos que transportem, protejam e direccionem o ADN até
à sua chegada à população celular alvo. Estes
veículos são denominados vectores. Ao longo
do tempo foram surgindo vários tipos de
vectores que se encaixam em duas grandes
famílias. Os vectores virais e os vectores nãovirais. Como é claro, dentro de cada tipo de
vector viral encontra-se uma grande variedade de estratégias, o mesmo se aplicando aos
vectores não virais. Também óbvia é a existência de vantagens e desvantagens de parte
a parte. Na figura 1 poderemos encontrar a
distribuição de protocolos por cada tipo de
vector em ensaios clínicos realizados nos anos
mais recentes.
Fig.1 – Distribuição do
tipo de vectores utilizados
em ensaios clínicos (figura
retirada do sítio: www.wiley.
co.uk/genmed/clincal)
Vectores
Como se pode imaginar, os vírus são extremamente eficientes na entrega de material
genético às células. Estas pequenas partículas
possuem, como objectivo único da sua existência, a entrega do seu material genético às
células e promovem a sua própria replicação
de modo a iniciar um novo ciclo. Deste
modo os vírus assumem-se como os melhores
candidatos para promover a entrega de genes à
célula. Quase todas as classes de vírus têm sido
experimentadas para testar a sua eficácia para
mediar transfecção (que neste caso é denominado de infecção).
Em todos os vírus podemos encontrar uma
componente genética que é essencial para a sua
propagação. Os vectores virais são derivados
de vírus por substituição dessa componente
genética por genes terapêuticos. Um esquema
representativo do processo de produção de
vectores virais pode ser encontrado na figura
2. No entanto, essa manipulação é morosa e
dispendiosa e nunca completamente segura,
pois encontra-se sempre presente o risco de
produzir partículas virais que venham a conter
genes virais potencialmente patogénicos.
Para que se possa fazer expressar ADN exógeno numa população
celular é necessário fazer com que este chegue ao seu destino, como
já foi referido, já que regra geral poucas células recebem e expressam
ADN exógeno. Assim é necessário criar veículos que transportem,
protejam e direccionem o ADN até à sua chegada à população
celular alvo. Estes veículos são denominados vectores. Ao longo do
tempo foram surgindo vários tipos de vectores que se encaixam em
duas grandes famílias. Os vectores virais e os vectores não-virais.
39
Como se pode imaginar, os vírus são extremamente eficientes na
entrega de material genético às células. Estas pequenas partículas
possuem, como objectivo único da sua existência, a entrega do seu
material genético às células e promovem a sua própria replicação de
modo a iniciar um novo ciclo.
40
Vectores virais
Os vectores virais podem ser divididos em
duas categorias gerais – os que integram o
seu material genético no genoma hospedeiro
(integrantes) e aqueles que o não fazem (não
integrantes). São dois os tipos de vectores
virais que possuem a capacidade de integrar
o seu material genético no ADN genómico
das células recipientes (retrovírus, lentivírus),
os vírus adeno-associados que se mantém
como epissoma sendo por vezes o material
genético integrado, mas não se sabe ainda de
forma clara como se processa. No entanto, os
vectores baseados em retrovírus apresentam
algumas desvantagens como são a sua incapacidade para transfectar células que não estejam
em processo de divisão, deixando de parte
uma grande quantidade de células do organismo, como são exemplos: cérebro, pulmões
e pâncreas, que não se dividem com tanta
frequência ou que não se dividem de todo.
Também a sua capacidade de transporte de
material genético se limita a 8 kb e apresenta
uma baixa eficiência na mediação de transfecção in vivo por serem rapidamente inactivados
pelo sistema imunitário. Protocolos baseados
em retrovírus continuam a ser os mais utilizados para transfectar células em processo de
divisão, por exemplo células tumorais.
Os lentivírus constituem outra forma de
abordagem para o transporte de material
genético. O vírus mais conhecido desta família é o vírus da imunodeficiência humana
(VIH), que faz parte da família dos retrovírus,
mas que possui a capacidade invulgar de
transfectar células que não estejam em fase
de divisão. Foram experimentados com grande precaução pelo risco de poderem sofrer
recombinação e gerar uma infecção idêntica
à que o vírus VIH nativo provocaria. Para
minimizar este risco, muitos investigadores
foram eliminando os genes acessórios deste
vírus de modo a manter a sua capacidade de
transfectar células que não estejam em processo de divisão. Assim, produziu-se um vector a
partir de lentivírus que retém menos de 25%
do genoma nativo durante a fase de construção e que apresenta menos de 5% na fase final
de vector. No entanto, tal como outros vírus
integrantes, este tipo de vector viral apresenta
a desvantagem de integração não específica
no genoma da célula hospedeira o que poderá
levar à activação de oncogenes (genes cuja
expressão descontrolada se encontra associada
ao surgimento de neoplasias), uma capacidade
limitada de transporte de material genético
e activação do sistema imunitário. Durante
os últimos anos tem-se tentado perceber de
que modo este tipo de vírus levam a cabo a
integração no genoma hospedeiro e de como
poderão activar oncogenes, no entanto encontramo-nos ainda sem respostas esclarecedoras,
sabendo-se somente que os vírus preferem
integrar em áreas do genoma sujeitas a altas
taxas de transcrição. Num dos ensaios clínicos
utilizando este tipo de vectores em pacientes humanos, apesar de um grande sucesso
na cura da doença em questão, resultou no
desenvolvimento de leucemias nalguns dos
pacientes tratados. Desta forma o uso deste
tipo de vectores encontra-se ainda muito
condicionado.
Outro tipo de vírus utilizado são os vírus
adeno-associados (VAA), são não patogénicos
e possuem ADN de cadeia única que poderá
constituir uma boa alternativa como veículo
de entrega genética. Este tipo de vírus para se
replicar necessita da presença de adenovírus
(daqui a proveniência do nome de VAA) ou
herpes vírus, que lhe fornecem a maquinaria
proteica em falta para se poderem replicar. As
maiores desvantagens que este vector apresenta são a grande dificuldade de manufactura e a
sua capacidade de transporte de material genético que se resume a 4,4 kb, além de pouca
experiência clínica ter sido realizada com este
tipo de vector. Além do mais existe sempre o
problema de que no final exista contaminação com os adenovírus necessários para a sua
produção, que além de serem imunogénicos
poderão ser patogénicos.
Por fim temos ainda os adenovírus. Este tipo
de vírus constitui a família de vírus tumorais
que transportam ADN causando infecções
benignas no tracto respiratório em humanos.
O seu genoma é composto por mais de uma
dúzia de genes, sendo a transfecção caracterizada pela manutenção do ADN epissomal
no núcleo das células. Além disto, este é o
vector viral de mais fácil produção para o uso
comercial. O desafio com este tipo de vector é
a manutenção da expressão do transgene, que
normalmente é mantida durante um período
de tempo entre 5 a 20 dias após a infecção.
Reconhece-se que a curta duração da expressão do transgene está directamente relacionada
com a resposta imunitária desencadeada.
Apesar do referido, os vectores baseados em
adenovírus são dos mais estudados em ensaios
clínicos, talvez por possuírem uma elevada
capacidade de transfecção quer in vivo, quer
ex vivo.
Correntemente são os sistemas virais aqueles que demonstram a maior capacidade de
entrega genética (eficiência normalmente
superior a 90%), devido ao envolvimento
das suas estruturas altamente especializadas
para o efeito. Devido a este facto não será de
estranhar, que cerca de 70% dos protocolos
clínicos recentes envolvendo TG, usem vectores baseados em vírus recombinantes para a
entrega de ADN (Figura 1). A ineficácia da
metodologia correntemente usada é atribuída
às limitações da entrega genética mediada
pelos vectores virais, que incluem toxicidade,
restrição do endereçamento para certos tipos
de células, capacidade limitada de transporte
de material genético, produção e armazenamento, recombinação e altos custos. Além do
mais, a elevada toxicidade e imunogenicidade
produzida pelos sistemas virais dificultam o
uso rotineiro desses sistemas.
Fig. 2 – A produção de vectores
virais é feita nas chamadas
células produtoras, onde os genes
responsáveis pela proliferação
viral são substituídos por um
gene terapêutico (figura retirada
do sítio: http://www.uq.edu.
au/vdu/)
41
42
Vectores não-virais
Tradicionalmente os métodos de entrega
genética por vectores não virais podem ser
classificados nas seguintes categorias: físicos
ou mecânicos e químicos. Contudo existem
outros métodos que não se encaixam bem
nesta classificação, como é a utilização de
ADN livre.
do ADN administrado (em células epidermais
ou musculares) é o bastante para desencadear
uma resposta imunitária primária. No entanto, devido à dificuldade de controlar a via de
entrada do ADN, este procedimento é aplicado maioritariamente em células aderentes em
cultura, não sendo ainda usado de um modo
sistemático.
Dos métodos físicos, aquele que se afigura
com uma concepção mais simples e mais
apelativa para a transfecção é a injecção de
ADN livre directamente no núcleo celular
através de micro-injecção. No entanto, a
maior e derradeira desvantagem deste método consiste na morosidade da micro-injecção
que só pode atingir uma célula de cada vez, o
que implica um trabalho laborioso que não
se torna praticável para a entrega de ADN in
vivo.
A electroporação é outro método físico
usado para a entrega de ADN. Este método
é baseado na aplicação de impulsos eléctricos
para permeabilizar a membrana celular de um
modo transiente, o que permite a incorporação de macromoléculas nas células como
a molécula de ADN. Este método foi usado
pela primeira vez em 1982 para a entrega de
ADN em células de mamífero. A incorporação intramuscular de ADN feita por este
método resulta em níveis de expressão do
gene várias vezes acima daqueles conseguidos
com simples injecção intramuscular e cuja
expressão pode ir até 9 meses. Comparada
com outros métodos de entrega genética,
a electroporação é mais simples, segura e
económica. No entanto, a sua aplicação in vivo
é difícil, embora algum progresso tenha sido
já feito em vários tecidos: pele, endotélio da
córnea e músculo. Neste contexto salientamse alguns resultados obtidos no tratamento de
pacientes com melanoma, nalguns casos com
regressão completa dos tumores tratados.
Apesar das contrariedades, várias técnicas
têm sido apresentadas com o mesmo objectivo
sem que seja necessária a aplicação da microinjecção. Uma das mais avançadas, designada
por gene gun, utiliza um fluxo de alta pressão de hélio para introduzir no citoplasma
partículas de ouro envolvidas por ADN. Um
procedimento semelhante chamado Intraject
ou Jetgun, usa líquido sob alta pressão para a
entrega genética nos espaços intersticiais. O
bombardeamento com partículas, também
designado como entrega balística de partículas, pode introduzir ADN em muitas células
simultaneamente. Nesta técnica, partículas
revestidas com ADN (compostas por metais
como ouro ou tungsténio) são aceleradas a alta
velocidade para penetrar as membranas celulares. Este tipo de procedimento é aplicado em
vacinação de ADN, onde uma expressão local
Os métodos de entrega genética químicos operam fundamentalmente em três
níveis: Condensação e complexação de
ADN, endocitose, após entrada nas células
e endereçamento/entrada para o núcleo.
As moléculas carregadas negativamente de
ADN são normalmente condensadas e/ou
complexadas com reagentes catiónicos antes
da entrega genética. Esses complexos são
tomados pelas células, usualmente por endocitose, o que implica um passo subsequente de
libertação do endossoma e tráfego do ADN
até ao núcleo.
Dos métodos químicos mais usados in
vitro para a entrega de ADN em células ou
mesmo bactérias, salienta-se a precipitação do
ADN com Ca3(PO4)2 (fosfato de cálcio). No
entanto, devido à formação dos precipitados,
este sistema não é efectivo para ser utilizado
in vivo.
O princípio geral dos métodos químicos
mais utilizados é baseado na formação de
um complexo entre as cargas positivas existentes geralmente em polímeros ou lípidos
catiónicos e as cargas negativas dos grupos
fosfato do ADN. Os protocolos utilizados para
a transfecção in vitro incluem a utilização de
Como conclusão, não se poderá
aclamar este ou aquele vector
como melhor ou o mais promissor. No entanto, para cada tipo
de vector haverá certamente um
nicho onde a sua utilização se
adequará melhor, ou seja, desenvolver-se-ão vectores específicos
para a entrega de material genético para determinados locais
e/ou patologias.
Fig. 3 – Da interacção das
cargas negativas do ADN
com as cargas positivas
do lipossoma catiónivco
produzem-se partículas
que são internalizadas
pelas células através de
endocitose. Após a entrada
na célula o ADN terá que
escapar do endossoma
para ganhar acesso ao
núcleo onde será expresso,
caso contrário acabará
por ser degradado no
lisossoma (figura retirada
do sítio: http://www.
expertreviews.org/)
43
44
polielectrólitos. De entre os polielectrólitos
utilizados incluem-se os seguintes compostos:
o dextrano-DEAE, poli-lisina, polietilenimina
(PEI) e dendrímeros. Todos eles apresentam a
capacidade para condensar ADN por interacção
electrostática entre os seus grupos carregados
positivamente com as cargas negativas dos
grupos fosfato das cadeias de ADN. Em geral, a
complexação de ADN em forma de plasmídeo
com polímeros catiónicos com uma elevada
densidade de carga positiva resulta na formação
de partículas com tamanhos reduzidos, o que
poderá influenciar a eficiência da transfecção.
Além do mais, pensa-se que o aumento na
transfecção mediada por PEI está de alguma
forma relacionado com a capacidade que este
polímero catiónico possui em se comportar
como uma esponja protónica em condições
acídicas, o que poderá contribuir para a fuga
do plasmídeo transportado do endossoma
(que se vai tornando acídico à medida que vai
maturando) até ao núcleo onde será expresso.
polímeros catiónicos altamente ramificados. Os
dendrímeros de PAMAM apresentam na sua
superfície aminas primárias que têm a capacidade de associar, condensar e transportar ADN
para uma grande variedade de tipos celulares,
incluindo culturas primárias, sem que com isso
induzam citotoxicidade significativa in vitro. A
grande vantagem demonstrada por este sistema é a facilidade de produção e a versatilidade
apresentada na sua manufactura, podendo-se
produzir polímeros desta natureza com vários
tamanhos e densidades de carga superficial, o
que simplifica o processo de transfecção. Além
do mais, o efeito esponja referido para a PEI
também é característico deste polímero.
Outra classe de polímeros catiónicos que
estão a ser implementados como sistema
de entrega genética são os dendrímeros de
poliamidoamina (PAMAM), compostos por
De todos os vectores não virais (tirando
a administração de ADN nú), o mais utilizado envolve a condensação do ADN com
lipossomas catiónicos (Figura 1). A ideia da
utilização de lípido catiónico como suporte
para entrega genética remonta a meados dos
anos 80. Em 1986, Behr demonstra a capacidade que lipossomas catiónicos apresentam para
a complexação e condensação de ADN; no
ano seguinte Felgner e colaboradores (1987)
propõem o uso de lipossomas catiónicos
Glossário:
Epissoma – Que se mantem no núcleo sem
se integrar no genoma do hospedeiro.
Web
Sítios das associações europeia e americana
de terapia génica:
Transgene – É o gene transportado e entregue pelo vector
DOTMA – (Cloreto de N-[1-(2,3dioleoil)propil] trimetilamónio)
DOTAP – (1,2-dioleoil-3-propanoato de
trimetilamónio)
DC-Chol – (Colesterol 3 β-[N-(N’,N’dimetilamonioetano)carbamato])
Plasmídeo – Moléculas circulares duplas de
DNA
www.esgt.org
www.asgt.org
Bibliografia
Vectores virais
Verma, I. M. and N. Somia (1997). “Gene
therapy -- promises, problems and prospects.”
Nature 389(6648): 239-42.
Snyder, R. O. and J. Francis (2005).“Adenoassociated viral vectors for clinical gene transfer
studies.” Curr Gene Ther 5(3): 311-21.
como transportadores eficientes para a entrega
intracelular de material genético. O princípio
utilizado é o mesmo para os polímeros catiónicos: os lipossomas catiónicos interagem
de uma forma electrostática com os grupos
fosfato do esqueleto do ADN carregados
negativamente levando à formação do lipoplexo. Desta interacção resulta a condensação do
ADN e, dependendo da quantidade de lípido
relativamente à quantidade de ADN, protecção à degradação pelas DNases. Um esquema
representativo deste processo pode ser visualizado na figura 3.
Lípidos carregados positivamente, com
excepção da esfingosina e alguns lípidos em
formas de vida primitiva, praticamente não
existem na natureza.Antes da explosão da síntese de novos lípidos catiónicos no princípio dos
anos 90, detergentes catiónicos eram utilizados
para a produção de lipossomas com carga positiva. O primeiro lípido catiónico a ser utilizado
em transfecção foi o DOTMA por Felgner
e colaboradores (1987). Posteriormente o
DOTMA deu lugar ao DOTAP. O DOTAP
apenas difere do DOTMA no facto das suas
Gardlik, R., R. Palffy, et al. (2005). “Vectors
and delivery systems in gene therapy.” Med Sci
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Pedroso de Lima, M. C., S. Simoes, et al.
(2001). “Cationic lipid-DNA complexes in
gene delivery: from biophysics to biological
applications.” Adv Drug Deliv Rev 47(2-3):
277-94.
cadeias acílicas estarem ligadas ao grupo polar
por ligações ester e não éter (como acontece
no DOTMA).
Poliaminas catiónicas naturais também
começaram a ser usadas, como por exemplo a
espermina4+ e a espermidina3+. Formulações
com base em lípidos catiónicos associados a
esterois também foram produzidas e testadas,
sendo um exemplo conhecido o DC-Chol.
Como conclusão, não se poderá aclamar este
ou aquele vector como melhor ou o mais
promissor. No entanto, para cada tipo de
vector haverá certamente um nicho onde a sua
utilização se adequará melhor, ou seja, desenvolver-se-ão vectores específicos para a entrega
de material genético para determinados locais
e/ou patologias.
Apesar do texto já ser longo ficou muito
ainda por falar sobre as várias estratégias para
mediar a entrega de genes com função terapêutica. Desta forma, para obter informação
mais detalhada sobre este tema recomendo
vivamente a consulta da bibliografia que se
apresenta em baixo.
Piskin, E., S. Dincer, et al. (2004). “Gene
delivery: intelligent but just at the beginning.” J
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the kinetics of gene delivery into cells.” Adv
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45
Monitora do ISAVE, Instituto Superior de Saúde do Alto Ave
Palavras-chave:
Reticulócito; grau de maturação; método convencional;
citometria de fluxo
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eticulócito
Daniela Filipa
Martins Gonçalves
Os reticulócitos são células eritróides formadas na Medula Óssea,
antecedoras do eritrócito. Morfologicamente são células anucleadas, que
contêm restos de substâncias basófilas, permitindo alguns dias de actividade
sintética. Durante o desenvolvimento, os reticulócitos assumem diferentes
estados de maturação: I, II, III e IV, descritos pela primeira vez por Heilmeyer.
Actualmente, as técnicas laboratoriais hematológicas permitem uma análise
qualitativa e quantitativa fiável dos reticulócitos.
Introdução
A eritropoiese é um processo dinâmico e
sequencial, que se caracteriza pela formação
de eritrócitos e síntese de hemoglobina, principal pigmento respiratório do organismo
humano.
Os reticulócitos são células eritróides
antecedoras do eritrócito, sendo vulgarmente
designados de «eritrócitos jovens». São
formados na Medula Óssea, a partir do
eritroblasto ortocromático, onde permanecem
2 a 3 dias, em condições normais, antes de
serem libertados para a circulação periférica,
na qual vão finalizar o processo de maturação,
dentro de 24 horas, dando origem à célula
eritróide madura (Dacie, 2001: 27). Os
reticulócitos, morfologicamente, são células
anucleadas com tamanho de cerca de 8-10μm,
que contêm restos de substâncias basófilas,
presentes em grandes quantidades nas células
percursoras: RNA (ácido ribonucleico)
ribossomal, complexo de Golgi, ribossomas
e mitocôndrias, permitindo alguns dias de
actividade sintética (Dacie, 2001: 27).
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Maturação dos Reticulócitos
A evolução de reticulócito a eritrócito
envolve uma série sequencial de processos:
redução moderada da superfície celular e do
tamanho celular; desaparecimento da capacidade de adesividade, isto é, capacidade das
células imaturas para se manterem juntas; desaparecimento das substâncias basófilas presentes
no citoplasma. À medida que estas substâncias
basófilas desaparecem, o reticulócito transforma-se em eritrócito, passando a uma célula
passiva de transporte de hemoglobina, sustentada pela baixa energia de glicólise aeróbica.
Durante o desenvolvimento, os reticulócitos assumem diferentes estados de maturação,
descritos pela primeira vez por Heilmeyer em
1932. Segundo este, os reticulócitos são classificados em quatro estados de maturação: I, II,
III e IV, identificados pelas suas características
morfológicas (Rowan, 1991). O estado de
maturação I corresponde ao estado reticulocitário mais imaturo que, segundo Heilmeyer,
contém grande quantidade de granulações; o
estado de maturação II apresenta uma extensa
rede de retículo livre no citoplasma; no estado de maturação III verificam-se grânulos
dispersos com algum retículo; no estado de
maturação IV constata-se poucos grânulos
dispersos, pelo que corresponde ao estado de
maturação mais próximo do eritrócito, sendo
o mais difícil de ser identificado (Rowan,
1991).
O valor de reticulócitos em circulação
constitui 0,5 a 4% da contagem de eritrócitos
circulantes. Em 1953, Seip definiu a proporção
de reticulócitos em cada estado de maturação
em circulação sanguínea, num indivíduo
saudável. Desta forma, a proporção de reticulócitos em cada estado de maturação é a
seguinte: estado de maturação I – 0,1%; estado
de maturação II – 7,0%; estado de maturação
III – 32,0% e estado de maturação IV – 61,0%
(Rowan, 1991).
O aumento de reticulócitos em circulação sanguínea é
indicativo de regeneração sanguínea, enquanto que a sua
diminuição, face a um estímulo, é um indicador muito
importante para a avaliação clínica.
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Avaliação Clínica
A actividade eritropoiética na Medula Óssea
é proporcional ao ritmo de libertação de células eritróides para a circulação sanguínea. Desta
forma, a contagem de reticulócitos é um reflexo exacto da actividade eritropoiética (Dacie,
2001: 27). Desde o momento em que surge o
estímulo eritropoiético, é necessário cerca de
cinco dias até ao surgimento de novos reticulócitos em circulação sanguínea. Este facto
pode ser demonstrado laboratorialmente,
sendo um critério utilizado clinicamente para
avaliar algumas situações hematológicas.
As seguintes situações hematológicas são
exemplos da importância da determinação dos
reticulócitos como parâmetro fundamental
para a avaliação clínica: avaliação da actividade
eritropoiética na Medula Óssea; diagnóstico
e monitorização de doenças hematológicas,
como por exemplo anemias; classificação
das anemias; monitorização de doentes sob
terapêutica com eritropoietina recombinante
humana (rhEPO) e outros factores de crescimento hematológicos usados para estimular a
produção dos elementos celulares na Medula
Óssea; avaliação da capacidade de resposta
medular frente a agentes citotóxicos (quimioterapia, radioterapia); avaliação da regeneração
da Medula Óssea após transplante e tratamento de neoplasias (Vives, 2002: 110).
O aumento de reticulócitos em circulação
sanguínea é indicativo de regeneração sanguínea, enquanto que a sua diminuição, face a um
estímulo, é um indicador muito importante
para a avaliação clínica. A reti­culocitose apresenta-se nas seguintes situações clínicas:anemias
hemolíticas agudas e crónicas; hemorragias
agudas e crónicas; resposta ao tratamento das
anemias carenciais: anemia ferripriva e anemia
megaloblástica (por deficiência de ácido fólico
e vitamina B12); após tratamento com eritropoietina recombinante humana. As situações
clínicas de reticulopenia podem apresentar-se
nos seguintes casos: aplasia medular; leucemias;
linfomas; insuficiência renal; doença hepática;
anemia ferripriva; anemia megaloblástica por
deficiência de vitamina B12 e ácido fólico;
deficiência de eritropoietina (Vives, 2002:
114).
Método Convencional vs Método
Automatizado
A determinação laboratorial dos reticulócitos pode ser efectuada mediante o
método convencional ou o método automatizado, a partir de amostras de sangue total com
anticoagulante EDTA (ácido etilenodiaminotetraacético). O método convencional consiste
na determinação quantitativa dos reticulócitos
num esfregaço, não fixado, corado pela técnica de coloração Supravital. O RNA residual,
presente nos reticulócitos, reage com os corantes supravitais (ex. Azul Novo de Metileno,
Azul Brilhante de Cresil), precipitando-se sob
a forma de grânulos ou filamentos, de cor azul,
visualizados ao microscópio óptico.
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A Citometria de Fluxo, um dos métodos
utilizados nos autoanalisadores hematológicos, utiliza fluorocromos (ex. Auramina O,
Thiazole Orange) que reagem com o
RNA residual, emitindo fluorescência a um
determinado comprimento de onda. Este
método permite uma análise dos seguintes
parâmetros reticulocitários: contagem de reticulócitos; volume reticulocitário; concentração
de hemoglobina; identificação e classificação
de três subpopulações de reticulócitos: HFR
(fluorescência elevada), MFR (fluorescência
média) e LFR (fluorescência baixa), de acordo
com a intensidade de fluorescência directamente proporcional ao conteúdo de RNA
residual presente nos reticulócitos. A subpopulação HFR corresponde aos reticulócitos mais
imaturos, sendo um indicador precose muito
útil para avaliar a recuperação da hematopoiese
após transplante da Medula Óssea e tratamento
quimioterápico (Vives, 2002: 117).
O método convencional, embora seja um
método simples e de baixo custo, comparativamente à Citometria de Fluxo apresenta
inúmeras desvantagens como: a falta de padronização da coloração prejudica a visualização
microscópica dos reticulócitos; falta de uniformidade na identificação e classificação da
célula como reticulócito; critério subjectivo
dependendo de cada observador; distribuição
irregular dos reticulócitos no esfregaço; erros
estatísticos pela análise de um pequeno número de células; método de execução minucioso
e moroso. A Citometria de fluxo permite uma
análise fiável, uma vez que analisa um elevado
número de células em pouco tempo, oferece
uma quantificação precisa do conteúdo de
RNA bem como a obtenção dos vários parâmetros reticulocitários (Vives, 2002: 116).
A contagem de reticulócitos é uma prova hematológica
simples, sendo um parâmetro muito importante para
avaliação da actividade eritropoiética na Medula Óssea.
Conclusão
A contagem de reticulócitos é uma prova
hematológica simples, sendo um parâmetro
muito importante para avaliação da actividade
eritropoiética na Medula Óssea.
Nos últimos anos, assistiu-se ao aumento do
número de autoanalisadores nos laboratórios
hematológicos, os quais contribuíram de
forma decisiva para a melhoria da fiabilidade
da execução laboratorial e aumento da rapidez
de execução.A Citometria de Fluxo contribui
de forma significativa para a avaliação quantitativa e qualitativa dos reticulócitos, permitindo
ao laboratório hematológico fornecer uma
resposta mais efectiva e rápida face às necessidades impostas pela medicina.
Bibliografia
DACIE, S. J.V.; LEWIS, S. M. (2001), Pratical Haematology, London, Churchill Livingstone.
ROWAN, R. M. (1991), Reference method, quality control and automation of reticulocyte count. [http://www.ipac.org/
publications/pac/1991/pdf/6308x1141.pdf – 12/12/2005 – 16:10].
VIVES, J. L; AGUILAR, J. L. (2002), Manual de Técnicas de laboratório en hematologia, Barcelona, Masson.
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Paula Gago
Médica, Serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Faro
Veloso Gomes
Médico, director do Serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Faro
Via Verde
Coronária
Um projecto para
a vida
na região do
Sotavento
Algarvio
O impacto da Doença Coronária nos países desenvolvidos
A mortalidade por doença coronária continua a ser elevada
nos países desenvolvidos, ocupando, na maioria, o primeiro lugar
como causa de morte. No estudo epidemiológico europeu WHO
MONICA,40% da mortalidade global em indivíduos com idade
inferior a 75 anos era de causa cardiovascular, independentemente
da fase em que ocorria (pré, intra ou pós hospitalar aos 30 dias). Em
média, um terço de todos os casos de enfarte agudo do miocárdio
(EAM) eram fatais antes da hospitalização, a maioria deles na
primeira hora após início dos sintomas. Esta mortalidade é ainda
mais significativa nos indivíduos com idade inferior a 50 anos,
conforme estudo realizado na década de 90 em 3 cidades inglesas,
em que mortalidade pré-hospitalar verso intra-hospitalar dos eventos
coronários agudos, era de 15 para 1 para os indivíduos com idade
inferior a 50 anos e de 2 para 1 para os indivíduos com idade de 70 a
74 anos. Como se pode constatar, um Serviço de Emergência Médica
pré-hospitalar eficaz iria beneficiar sobretudo a população da faixa
etária mais jovem.
Os sobreviventes da fase aguda do EAM, admitidos no Hospital
beneficiam, sem dúvida, das novas estratégias terapêuticas introduzidas
na última década na prática clínica, resultando numa redução
significativa da mortalidade e melhoria da sobrevida. No entanto,
o grande investimento nas novas terapêuticas a nível hospitalar (ex.
angioplastia primária ou fibrinoliticos mais recentes e com maior
taxa de reperfusão) não têm contribuído de forma significativa para
a redução da mortalidade global dos síndromes coronários agudos
(SCA).
A causa dos SCA é a aterotrombose intra-coronária. Esta
caracteriza-se por uma laceração (rotura ou erosão) súbita
(imprevisível) da placa aterosclerótica que dá origem à activação
plaquetária e dos factores de coagulação, levando à formação de um
trombo e consequente isquémia do miocárdio. O trombo pode ocluir
total ou parcialmente o lumén da artéria e esse aspecto consegue-se
diagnosticar na maioria das vezes no electrocardiograma. Quando a
oclusão aguda é total, o electrocardiograma revela um enfarte com
supra de ST e é nestes casos que o tratamento deve ser emergente na
tentativa de reabrir a artéria, através da lise do trombo (lise química
com fibrinoliticos ou através da angioplastia com balão/stent).
Portanto, a utilização de fibrinoliticos só se coloca nos enfartes agudos
do miocárdio com «supradesnivelamento de ST». Nos restantes SCA,
como é o Enfarte sem supra de ST ou a angina instável (o trombo
é parcialmente oclusivo) não existe indicação para a utilização de
fibrinoliticos e na maioria dos casos também a coronariografia não
tem de ser emergente. De salientar que o diagnóstico diferencial
inicial faz-se sempre através do electrocardiograma (que deve ser o
primeiro exame a realizar num doente com suspeita de enfarte).
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A estratégia terapêutica nos EAM com
supra de ST, é a reperfusão da artéria o mais
precocemente possível a partir do momento
em que se forma o trombo, de forma a diminuir o tempo de isquémia a que o miocárdio
está submetido. Por isso é importante que os
tempos sejam reduzidos de forma a salvar
miocárdio. Estes tempos são: Tempo entre o
surgimento da dor e o pedido de ajuda por
parte do doente (em Portugal a média é de 3
horas), o Tempo de transporte até ao hospital
e o Tempo desde a entrada no hospital até à
administração do fibrinolitico door to needle ou
até à insuflação do balão (angioplastia) door to
baloon. Estes tempos estão para além do que
é recomendado pelas guidelines e por isso a
Comunidade Europeia e os Estados Unidos
têm feito um esforço para melhorar a assistência pré-hospitalar, disponibilizando um maior
número de recursos tecnológicos e humanos
na tentativa de reduzir a mortalidade precoce
dos doentes com EAM.
Tem que haver por parte do Sistema de
Emergência Médica, a capacidade de responder o mais rápida e eficazmente possível, tanto
na abordagem da paragem cardíaca de causa
arrítmica através da desfibrilhação, como no
diagnóstico correcto de EAM com subsequente cadeia de actuação que visa reduzir o
tempo que medeia entre o início de dor até à
terapêutica de reperfusão.
Cadeia de Sobrevivência
Já foi delineada pela Task Force da Sociedade
Europeia de Cardiologia e pelo Conselho
Europeu de Ressuscitação, a cadeia de
Sobrevivência da paragem cardiorespiratória.
Esta cadeia tem 4 elos:
• Acesso rápido: O primeiro requisito é
o acesso facilitado a um centro de ambulâncias através de um número de telefone que
seja universal. Foi decidido e acordado pelo
Concelho Europeu de Ressuscitação que este
número seria o 112. Por este meio é possível
pedir ajuda e ao mesmo tempo possibilita a
descrição por parte da testemunha ou da
própria vítima da situação em que se encontra,
ao Centro de Emergência Médica.
Este decidirá se o caso exige prioridade
ou não (ou seja, se envia de imediato ou não
uma viatura médica ao local onde a vítima se
encontra).
• Ressuscitação
cardiorespiratória
precoce: Suporte Básico de Vida: está
demonstrado que o suporte básico de vida
aumenta a possibilidade de uma ressuscitação
bem sucedida. O suporte básico de vida
duplica a possibilidade de sobrevivência e
possibilita a manutenção de circulação para
os órgãos vitais (cérebro e coração) enquanto
se aguarda a chegada de suporte avançado de
vida/desfibrilhação.
• Desfibrilhação precoce: a maioria
dos casos de paragem cardíaca no contexto
de EAM é devido a fibrilhação ventricular
que é uma arritmia que é fatal se não fôr
imediatamente tratada. Nestes casos, a desfibrilhação imediata é a terapêutica indicada
(administração de um ou mais choque eléctricos). O intervalo de tempo entre o início
desta arritmia e a tentativa de desfibrilhação
é o principal indicador ou determinante da
sobrevida. A probabilidade de recuperar da
paragem sem sequelas, diminui à razão de 5%
por cada minuto que passa. Por este motivo,
nos locais em que haja maior concentração de
pessoas, tais como os estádios, aeroportos etc. é
importante que haja maior facilidade de acesso
à desfibrilhação, havendo um maior número
de pessoas a saber desfibrilhar. Na última
década houve um avanço muito importante
neste campo, com o surgimento dos desfibrilhadores automáticos externos (DAE). O
DAE reconhecem a fibrilhação ventricular e
decidem se o choque está indicado ou não,
deixando de ser necessário que o reanimador
tenha conhecimentos suficientes para identificar uma arritmia ventricular e decidir se deve
ou não desfibrilhar. Com o DAE é praticamente impossível administrar um choque sem
indicação, uma vez que a especificidade para
ritmos desfibrilháveis é quase de 100%.
Desta forma é possível conseguir diminuir
a incidência de morte súbita na população se
os primeiros respondedores (first responders),
bombeiros, policia, agentes de segurança, etc.,
tiveram treino no uso dos DAE.
• Suporte Avançado de Vida: na maior
parte das situações, a RCP e desfibrilhação,
não são suficientes para manter o doente estável após uma reanimação eficaz, pelo que se
torna necessário o suporte avançado de vida
(entubação endotraqueal e administração de
medicamentos) para melhorar as hipóteses de
sobrevivência. O transporte para uma Unidade
de Cuidados Intensivos será o passo seguinte.
Sistema de Emergência Médica na
Europa e em Portugal
Há uma grande variedade de sistemas de
emergência médica na Europa. Na maioria
dos países europeus, os médicos são os que
têm papel principal na emergência pré-hospitalar, existindo algumas excepções, tal como a
Inglaterra e países escandinavos (paramédicos)
e Holanda (enfermeiros). Isto deve-se a que a
legislação na maioria dos países apenas permita que a desfibrilhação seja feita ou decidida
pelo médico.
Alguns países já dispõem de equipas de
emergência (sem elemento médico) equipadas com DAE o que permite estender a
possibilidade de desfibrilhação com sucesso a
um maior número de pessoas da comunidade.
Este modelo tem-se revelado fácil e seguro.
Em Portugal a legislação permite que
apenas seja o médico a desfibrilhar ou alguém
da equipa de emergência, mas sempre sob a
decisão ou orientação do médico.
Tem que haver por parte do Sistema de Emergência Médica, a
capacidade de responder o mais rápida e eficazmente possível,
tanto na abordagem da paragem cardíaca de causa arrítmica
através da desfibrilhação, como no diagnóstico correcto de EAM com subsequente cadeia de actuação que visa reduzir o
tempo que medeia entre o início de dor até à terapêutica de
reperfusão.
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Via Verde Coronária
Na sequência de trabalhos iniciados, em
1998, na Direcção Geral de Saúde, com a
colaboração da Sociedade Portuguesa de
Cardiologia, das administrações regionais de
Saúde e do Instituto de Emergência Médica,
foi criado em Portugal o programa da VIA
VERDE CORONÁRIA. Este projecto é um
modelo de intervenção a nível pré-hospitalar
de atendimento imediato aos doentes vítimas
de doença cardiovascular súbita (síndromas
coronários agudos).
A divulgação da Via Verde Coronária deve
ser feita não só aos profissionais de saúde e
locais de atendimento do SNS, mas também à
população através de campanhas de sensibilização e de educação.
Existem duas fases: Pré-Hospitalar e
Hospitalar.
Fase Pré-Hospitalar
a) Nesta fase o doente ou a testemunha do
evento liga para o 112 (número nacional de
socorro);
b) No caso de se tratar de dor torácica ou
de paragem cardíaca a chamada é transferida
para o CODU da respectiva área. A chamada
é tríada no CODU sob supervisão médica e,
caso se trate de um possível evento coronário
agudo, é accionada a viatura de emergência
médica VMER (viatura médica de emergência rodoviária) que se dirige de imediato ao
local onde se encontra o doente;
c) A equipa da VMER é constituída por 2
elementos treinados em emergência médica
pré-hospitalar. Um dos elementos é sempre
médico e o outro é um enfermeiro ou paramédico (conforme a região do país).AVMER
está equipada com meios técnicos para o
diagnóstico, tratamento inicial e correcção de
eventuais complicações;
d) Seguidamente, e caso se confirme o
diagnóstico de SCA, o CODU contacta uma
Unidade de Cuidados Intensivos Coronários
que esteja disponível na área a que pertence. É
dada informação sobre o diagnóstico e a situação clínica do doente. Este contacto directo via
telefone permite a rápida admissão do doente
nos Cuidados Intensivos Coronários, obviando perdas de tempo no serviço de urgência,
que iria atrasar o tratamento e as possibilidades
de sobrevivência da vítima;
e) Finalmente, o transporte do doente para a
Unidade Coronária é feito numa ambulância
medicalizada acompanhado pelo médico da
VMER.
Fase Hospitalar
Os Hospitais envolvidos na Via Verde
Coronária têm de ter características específicas
para este tipo de atendimento. Estas características passam pela organização de uma resposta
eficaz e rápida a nível interno, abreviando do
ponto de vista burocrático a admissão do
doente coronário e preparando as equipas das
unidades para as intervenções necessárias.
Via Verde Coronária no Algarve
O Serviço de Cardiologia do Hospital de
Faro e a ARS do Algarve, com a colaboração
do INEM, implementaram a nível da região
do Sotavento Algarvio, desde 2004, o programa da Via Verde Coronária (VVC), com o
objectivo principal de reduzir a mortalidade
e morbilidade pré-hospitalar dos síndromes
coronários agudos (SCA).
Em Portugal e no âmbito da Via Verde
Coronária, existe a CODU de Lisboa, Porto,
Coimbra e Faro. Estas CODUs estão ligadas
a diferentes hospitais com vocação em cuidados cardiológicos (disponham de Unidades
Coronárias e de Cardiologia de Intervenção).
Na região do Algarve, o projecto da VVC
tem como centro o Serviço de Cardiologia do
Hospital Distrital de Faro, considerado como
serviço de referência na rede de referenciação cardiológica definida pelo Ministério
da Saúde. Os centros de saúde da região e a
VMER constituem os elementos a nível préhospitalar que se vão articular com o serviço
de Cardiologia. Uma eficiente e adequada
articulação é essencial para o bom funcionamento do projecto.
As Unidades de Saúde envolvidas são as
seguintes:
1 - Serviço de Cardiologia (UCIC e UHCI)
do Hospital Distrital de Faro;
2 - O CODU e VMER de Faro;
3 - Os serviços de atendimento permanentes dos centros de saúde;
4 - Outros: Bombeiros.
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1- Serviço de Cardiologia (UCIC e UHCI)
do Hospital Distrital de Faro
O Serviço de Cardiologia dispõe para o
atendimento urgente destes doentes de uma
Unidade de Cuidados Intensivos Coronários
(UCIC) com 6 camas, e da Unidade
de Hemodinâmica e de Cardiologia de
Intervenção (UHCI).
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Todo o equipamento destinado à Via Verde
Coronária está colocado na Unidade de
Cuidados Intensivos Coronários. Destaca-se
a central de recepção denominada Lifenet
Receiving Station, que permite a recepção dos
dados clínicos e dos electrocardiogramas de
doentes dos dois centros de saúde pilotos de
Albufeira e de Vila Real de Santo António. A
visualização do traçado electrocardiográfico
e o contacto telefónico imediato com troca
de informações entre o médico do CS e o
médico da UCIC, permite a tomada de decisões no que respeita ao diagnóstico e também
à terapêutica a instituir. Vão ser instalados os
modems de transmissão na VMER para possibilitar essa mesma continuidade da informação
durante o transporte do doente.
A UCIC tem capacidade para admitir todos
os doentes com SCA trazidos pela VMER
através da Via Verde Coronária.
O laboratório de Hemodinâmica tem a
possibilidade de proceder na maioria dos casos
à angioplastia primária no EAM com supra de
ST. Apesar desta disponibilidade, o número de
doentes submetidos a angioplastia com menos
de 4-6 horas de dor é muito baixa devido ao
facto de recorrerem tardiamente ao hospital.A
UHCI iniciou a sua actividade em Outubro
de 2003 e, actualmente, realiza anualmente
cerca de 90 angioplastias primárias no EAM.
2 - Instituto Nacional de Emergência
Médica – CODU e VMER de Faro
Recentemente, foi feita formação aos enfermeiros e médicos da VMER do Sotavento e
Barlavento Algarvio sobre a «fibrinólise pré
hospitalar». Este projecto é recente e é de
âmbito nacional. Acompanha-se de registos
nacionais a todos os doentes com enfarte
com supradesnivelamento de ST admitidos
através da Via Verde Coronária. Com estes
registos tanto pré-hospitalares como intrahospitalares, vai ser possível saber o que em
Portugal acontece no que respeita à abordagem pré-hospitalar do EAM com supra de
ST, nomeadamente complicações durante o
transporte (ex. paragem cardíaca), os tempos
desde o início da dor até à chamada do 112,
o tempo de transporte e, finalmente, o tempo
desde a chegada ao hospital até à terapêutica
(fibrinólise/angioplastia).
O transporte através da VMER permite
uma melhor segurança para o doente com
EAM com supra de ST, porque permite o
tratamento imediato de possíveis complicações como a fibrilhação ventricular, visto o
doente ser acompanhado dentro da ambulância medicalizada pelo médico da VMER.
Os monitores-desfibrilhadores Lifepack 12 da
VMER deverão ser equipados com modems
(não o são ainda) para permitir a continuidade
da troca de informação com a UCIC durante
o transporte. Caso haja indicação para fibrinólise esta poderá ser feita (respeitando protocolos
existentes para o efeito). O transporte será
assegurado para todo o percurso ou em regime de rendez-vous, conforme as circunstâncias
clínicas e a disponibilidade dos meios.
Os doentes com SCA têm acesso directo
ao serviço de Cardiologia (UCIC ou UHCI),
evitando a morosidade da admissão hospita-
Na sequência de trabalhos iniciados, em 1998, na Direcção
Geral de Saúde, com a colaboração da Sociedade Portuguesa
de Cardiologia, das administrações regionais de saúde e do
Instituto de Emergência Médica, foi criado em Portugal o
programa da VIA VERDE CORONÁRIA. Este projecto é um
modelo de intervenção a nível pré-hospitalar de atendimento
imediato aos doentes vítimas de doença cardiovascular súbita
(síndromas coronários agudos).
lar (SU) que por vezes é demasiado longa.
A informação é transmitida pelo CODU
enquanto decorre o transporte do doente,
de forma a se proceder à disponibilização de
uma cama na UCIC ou à preparação da sala
de Hemodinâmica para cateterismo cardiaco
imediato.
De salientar, que a admissão dos SCA
através da VVC no Registo Nacional dos
Síndromes Coronários Agudos realizado pela
Sociedade Portuguesa de Cardiologia ainda é
muito baixa (1.7%). Em relação ao Sotavento
Algarvio, este número foi superior em relação
à média (7%), no entanto ainda estamos muito
abaixo do desejável.
3- Serviços de Atendimento
Permanente dos Centros de Saúde
(SAP)
Foram seleccionados apenas dois Centros
de Saúde «piloto» (Centro de Saúde de
Albufeira e Centro de Saúde de Vila Real de
Santo António) para integrarem o projecto
da VVC. Esta escolha baseou-se no facto
de serem centros de saúde com Serviço de
Atendimento Permanente (SAP) 24 horas, e
por serem os mais distanciados de Faro. Os
referidos centros estão equipados com monitores-desfibrilhadores Lifepack 12, com modems
que permitem a transmissão de dados clínicos
(traçado electrocardiográfico) para a central
de recepção da UCIC. A troca de informação
entre os médicos dos centros de saúde e da
UCIC permite a confirmação do diagnóstico
e a decisão partilhada da terapêutica a administrar a cada doente individualmente.
A aquisição de kits de diagnóstico de
doseamento de biomarcadores de isquémia
do miocárdio (ex. Troponina T) também foi
contemplado no apetrechamento de equi-
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60
pamento dos centros de saúde mencionados.
Os centros de saúde piloto vão passar a dispor
de terapêutica para o tratamento inicial dos
SCA (aspirina, morfina, etc.) e também de
fibrinolitico. Esta decisão deve-se ao facto de
serem os centros de saúde mais distantes, o que
permite que os doentes possam ser submetidos a fibrinólise pré-hospitalar mais cedo. O
fibrinolitico que passará a existir nos centros
de saúde e na VMER é o Teneteplase (TNK)
por ser eficaz e sobretudo por ser de fácil
administração (bólus único, endovenoso). A
terapêutica com fibrinólise terá, obrigatoriamente, de seguir um protocolo bem definido
e rigoroso (indicações e contra-indicações da
fibrinólise) associado sempre à orientação do
cardiologista da UCIC.
Para avançar neste projecto, procedeu-se,
nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2004, a
programas de formação pós-graduada a médicos e enfermeiros com actividade no Serviço
de Urgência (SAP) dos referidos centros de
saúde. O programa foi dividido por diferentes
temas, todos relacionados com os síndromes
coronários agudos.
Monitor desfibrilhador Life pack 12
Unidade de Hemodinâmica e de Cardiologia de
Intervenção
4- Outros: Bombeiros
Futuramente, também está incluída a intervenção de paramédicos, designadamente os
bombeiros, num programa de prevenção de
morte súbita, com formação na utilização,
fora das unidades de saúde, de desfibrilhadores
automáticos externos (DAE).
O projecto poderá interligar-se a um outro
mais vasto, eventualmente da responsabilidade
do INEM, que passa pela formação em suporte básico de vida e difusão de desfibrilhadores
automáticos externos (DAE) aos bombeiros,
grandes empresas como o aeroporto, recintos
desportivos, etc., a serem utilizados por pessoal
não médico, após formação específica e com
supervisão médica.
A doença coronária aguda é, pela sua prevalência, morbilidade
e mortalidade, uma situação médica de urgência que justifica
uma intervenção planeada da Emergência Médica.
Conclusão
A doença coronária aguda é, pela sua prevalência, morbilidade e mortalidade, uma situação
médica de urgência que justifica uma intervenção planeada da Emergência Médica.
O Serviço de Cardiologia envolveu-se activamente no projecto da Via Verde Coronária para
a área do Sotavento Algarvio, por reconhecimento do impacto que este poderá ter na sobrevida
dos doentes com patologia coronária aguda.
Os doentes vão ter à sua disposição meios de reanimação cardio-respiratoria com suporte
avançado de vida, terapêutica medicamentosa, incluindo a possibilidade de fibrinólise pré-hospitalar e acesso mais rápido à cardiologia de intervenção.
As condições existentes actualmente, a nível das diferentes unidades de saúde (SAP) equipadas
com sistemas de telemedicina, a existência da VMER/INEM e dum Serviço Hospitalar com
Unidade de Cuidados Intensivos Coronários e com Cardiologia de Intervenção, permitem
segundo opinião dos autores, o adequado tratamento dos doentes vítimas de enfarte agudo do
miocárdio.
Referências
European Heart Journal (1997) 18, 1231-1248
European Heart Journal (1998) 19, 1140- 1164. Article nº
981106
Tunstall- Pedoe H, Kuulasmaa K, Mahonen M, Talonen
H, Ruokoskohi E Amouyel P (for the WHO MONICA
Project) 1999.The Lancet 353:1547-57
Registo Nacional de síndromes coronário agudos.
61
62
Hugo Leite-Almeida
Bolseiro de Investigação | Equipe de investigação em Neurobiologia da Dor, Grupo de
Neurociências
Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS)
Escola de Ciências da Saúde
Universidade do Minho
Armando Almeida
Professor Auxiliar | Responsável pela equipe de investigação em Neurobiologia da Dor,
Grupo de Neurociências
Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS)
Escola de Ciências da Saúde
Universidade do Minho
Dor
Será o nosso cérebro
masoq
Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais…
63
In No Reino da Dinamarca, Alexandre O’Neill
quista?
Estar vivo, no sentido biológico da coisa, é um compromisso que acabará necessariamente com
a morte do indivíduo. Este aparente dislate pode ser ilustrado de várias formas. Por exemplo, o
oxigénio, símbolo de vida e de saúde, é também um potente veneno. Da mesma forma que este
gás é imprescindível para que se liberte a energia contida num tronco de lenha nas nossa lareiras,
também nós dependemos dele para fazer libertar a energia contida nos alimentos. Estamos assim
sujeitos a um processo de combustão análogo àquele que ocorre nas nossas lareiras, embora
mais lento e controlado. Deste, resultam cinzas designadas por espécies reactivas de oxigénio
que reagem inespecificamente com vários tipos de moléculas alterando as suas propriedades
normais causando assim graves prejuízos à saúde. Se se quiser, enferrujamos tal e qual o ferro que
lentamente oxida quando exposto ao ar. Não obstante, a maioria dos seres vivos optou por um
metabolismo baseado no oxigénio, não só pela sua abundância (outros gases há em muito maior
quantidade) mas sobretudo pelo aproveitamento energético eficaz que estas reacções permitem.
É nesse limbo entre o dano e a produção de energia que reside a vida. Note-se que organismos
com baixo metabolismo vivem em geral mais tempo do que outros com taxas metabólicas
elevadas.
64
Outro exemplo de compromisso biológico
é aquele referente à nossa postura e locomoção
(mais informação no artigo de divulgação de
Ackerman, 2006). O bipedismo é sem dúvida um eficaz meio de locomoção e permite
uma marcha que, em termos energéticos,
é muito favorável. Mais a mais, permitiu aos
nossos antepassados libertar as mãos para
outras funções mais delicadas. Para que tal
fosse possível, um certo número de alterações
ocorreram na estrutura do esqueleto humano.
Tal como no exemplo anterior, os prós são
sempre caucionados pelos contras. Assim, os
pés humanos perderam toda e qualquer outra
função que não a locomoção. A alteração da
estrutura da pélvis necessária para a postura
bípede implicou o estreitamento do canal de
parto humano, fazendo com que o nascimento
passasse a ser uma arriscada peripécia. Mais a
mais, inúmeras doenças surgem associadas à
postura erecta e que muitas vezes se manifestam em terríveis dores lombares, o que nos leva
ao próximo exemplo e principal foco deste
artigo – a DOR.
Alguns organismos evoluíram no sentido
de associar a certos estímulos um carácter
desagradável que alerta as defesas do corpo (a
adjectivação desagradável aplica-se apenas ao
Homem). A grande maioria desses estímulos é
danosa para a integridade do organismo, sejam
temperaturas muito elevadas ou muito frias,
ferimentos na pele, contacto com substâncias
irritantes ou corrosivas, movimentos anormais
das vísceras, inflamações, entre outros. A essa
sensação desagradável provocada por estímulos
nóxicos chamamos Dor.A dor é um extraordinário mecanismo de defesa que funciona com
base na premissa de que, a qualquer estímulo
nóxico que cause uma sensação desagradável,
reagiremos no sentido de a minimizar, ou seja,
evitaremos o estímulo protegendo o organismo.
A dor, tal como nos dois exemplos anteriores,
tem associada à sua utilidade biológica – a
protecção da integridade do indivíduo – um
contra que decorre do mau funcionamento do
sistema endógeno de controlo da dor. Como
veremos adiante, este sistema funciona quer
no sentido de inibir quer de potenciar a dor.
Trata-se de um sistema finamente regulado
que permite em situações de grande stress
emocional que um soldado gravemente ferido
faça a sua fuga do campo de batalha com uma
dor substancialmente reduzida ou que, pelo
contrário, obrigue à imobilização e consequente convalescença de um indivíduo que
caiu do cavalo e fracturou um osso. O sistema
mostra-se, portanto, plástico e auto-regulável.
Mais, dos poucos casos descritos de indivíduos sem capacidade de sentir dor (analgesia
congénita), pode facilmente perceber-se que a
dor é vital para uma vida saudável e de boa
qualidade. Todos estes indivíduos morreram
cedo e com muitas mazelas no corpo: articulações destruídas, queimaduras extensas e
ferimentos graves. Para que se perceba o penoso da situação, no simples acto de mastigação
a língua era frequentemente trincada. A dor
é portanto uma função vital. O revés surge
quando por algum motivo o sistema endógeno de controlo da dor se descontrola. Nesses
casos, que designamos por dor patológica (em
oposição à dor fisiológica de carácter protector), o indivíduo está sujeito a dores crónicas
que se podem prolongar indefinidamente no
tempo, sendo profundamente perturbadoras.
«It is evidently impossible to transmit the impression of pain by teaching, since it is only known
to those who have experienced it. Moreover, we are ignorant of each type of pain before we have
felt it». (É evidentemente impossível transmitir a sensação de dor ensinando-a, já que ela é apenas
conhecida por aqueles que a experimentaram. Mais seremos desconhecedores de qualquer tipo
de dor até a sentirmos).
Galeno, século II. Citado de Origins of Neuroscience – A History of Explorations into Brain Function
A perda de qualidade de vida reflecte-se em
vários aspectos da vida quotidiana como um
maior grau de dependência de terceiros, alterações comportamentais (por ex. depressão),
faltas ao trabalho e, em situações mais graves,
o suicídio. Entre as doenças deste tipo, a mais
conhecida do grande público é sem dúvida,
a fibromialgia, mas outras há como o síndrome do cólon irritável, as enxaquecas e a dor
crónica da pélvis (Diatchenko et al., 2006),
cuja causa da dor tem vindo a ser atribuída
a falhas na regulação do sistema endógeno
de dor. A favor desta hipótese existem medições efectuadas em doentes com este tipo de
problemas onde se registaram alterações nas
concentrações normais de neuropéptidos em
diferentes regiões do sistema nervoso e da
actividade neurofisiológica em algumas áreas
encefálicas.
No texto que se segue, começaremos por
ver como é que o conceito de dor variou
até aos nossos dias.Veremos que hoje em dia
temos uma visão mais elaborada, embora
incompleta, do fenómeno de regulação da
dor pelo cérebro. Sabemos que essa regulação
pode efectuar-se quer no sentido de diminuir
(inibição) quer de aumentar (facilitação) a dor.
A última parte do texto irá principalmente
incidir sobre os mecanismos de facilitação, o
que tem sido um tema caro ao nosso laboratório e sobre os potenciais benefícios e prejuízos
decorrentes, respectivamente, do seu bom ou
mau funcionamento. Desfrutar da experiência
Dor – essa que ora nos atormenta, ora nos
protege – é um benefício que poucos reconhecem como tal, mas que pode também ela
ser implacavelmente penosa.
Do castigo dos Deuses à moderna
medicina
A dor é definida pela Associação
Internacional para o Estudo da Dor (IASP)
como uma experiência sensorial e emocional
desagradável associada a danos reais ou potenciais nos tecidos corporais ou descrita em
termos de tais lesões. Esta definição, definitivamente académica, espelha a dificuldade em
definir dor de uma forma concreta resultante
da heterogeneidade da experiência. A dor é
uma experiência pessoal, na qual pesam factores fisiológicos, vivências passadas, a educação
do indivíduo e a personalidade própria de cada
um. A definição destaca dois componentes, o
sensorial e o emocional, correspondendo o
primeiro ao estímulo doloroso propriamente
dito e ao segundo a resposta associada à carga
negativa associada à experiência. Ressalva
também a não correspondência entre o
estímulo e a dor sentida. Ou seja, o mesmo
estímulo poderá ser classificado de diferentes
maneiras (inócuo, moderadamente doloroso
ou extremamente doloroso) por diferentes
indivíduos. Também na ausência de estímulo
nóxico, casos há em que indivíduos declaram
sentir dor. O exemplo mais extremado desta
última afirmação prende-se com a dor que
alguns amputados dizem sentir em membros
que já não possuem e cujo coto cicatrizou
faz muito tempo – dor fantasma ou dor do
membro fantasma.
Esta forma cientificamente apoiada de olhar
a dor é algo recente. A dor foi, durante muito
tempo,considerada como uma entidade sobrenatural, controlada por Deuses que tinham o
poder de castigar e perdoar. O termo usado
65
em língua inglesa para dor (pain), por exemplo,
resulta dos termos Grego poine e Latino poena,
que significam pena ou castigo (Finger, 1994).
No século XVII, o filósofo francês René
Descartes lançou aquela que se pode considerar a primeira teoria moderna sobre a dor.
Descartes defendia que a um estímulo nóxico
(doloroso) aplicado a um indivíduo ocorreria
uma activação central equivalente (teoria da
especificidade; Figura 1.).
66
Figura 1. Imagem de Traité de l´Homme (1664).
Conceito de uma via de dor segundo o filósofo René
Descartes. «Quando o fogo (A) e o pé (B) estão em
proximidade, pequenas partículas de fogo dotadas
de grande energia accionam pontos na pele fazendo
deste modo puxar uma delicada corda (cc) que está
ligada ao referido ponto na pele e que abre simultaneamente os poros (d e) na outra extremidade da
corda. Assim, da mesma forma que um sino pode ser
accionado num campanário, o fogo pode accionar o
sino da consciência de forma instantânea» (retirado
de Melzack and Wall, 1996).
A constatação de que a dor é um evento
plástico, individual e passível de ser tratado,
é um feito do século XX. Henry Beecher,
um médico que durante a Segunda Grande
Guerra contactou com feridos dos campos de
batalha, apercebeu-se que, de todos os soldados
que regressavam do campo de batalha com
ferimentos, alguns de grande gravidade, apenas
um em cada cinco se queixava de dores ao
ponto de precisar de morfina para o seu alívio.
Já regressado ao Estados Unidos da América,
Beecher constatou que entre a população
civil, um em cada três casos de dores resultantes de ferimentos igualmente graves, teria que
ser tratado com morfina. A explicação para tal
fenómeno segundo Beecher prende-se com
uma certa «contextualização da dor». Para
o militar o ferimento seria sinónimo de ter
escapado vivo do campo de batalha, mas para
o civil o ferimento seria sinónimo de perda de
qualidade de vida. Em 1965, Melzack e Wall
publicaram a sua teoria do portão de controlo
que é considerada como um dos marcos mais
importantes no estudo da dor. Este artigo
antevia a possibilidade de um controlo endógeno (isto é, do próprio corpo) da informação
nóxica que chegava da periferia à medula
espinhal (Melzack and Wall, 1965). Quatro
anos mais tarde, Reynolds provou (em ratos)
que era possível fazer cirurgias sem recorrer a
qualquer anestésico, bastando para tal estimular
com um eléctrodo inserido profundamente no
parênquima cerebral uma área denominada de
substância periaqueductal cinzenta (Reynolds,
1969). Estava definitivamente estabelecido
que a percepção dolorosa podia ser modulada
(alterada) centralmente a partir do encéfalo.
A investigação sobre modelação descendente
da dor que se seguiu ao trabalho de Reynolds
foi exclusivamente focada na sua vertente
inibitória.Vários factos contribuíram para isso.
O primeiro, de ordem puramente «lógica», era
o de não parecer natural que o cérebro pudesse
provocar/aumentar a dor ou, se quisermos de
outra maneira, era inaceitável pensar-se num
cérebro masoquista. O segundo, prende-se
com o facto de, quando a comunicação entre
o cérebro e a medula espinhal é cortada (isto
acontece nos paraplégico acarretando perda
de movimentos voluntários e de sensibilidade),
os reflexos espinhais (que apenas envolvem a
medula espinhal e excluem o encéfalo) desencadeados por um qualquer estímulo capaz,
como quando o médico aplica o martelo
no joelho, estão aumentados. De facto, este
fenómeno foi posteriormente explicado pela
interrupção de vias descendentes inibitórias do
encéfalo para a medula espinhal. Em terceiro
lugar, a maioria dos estudos iniciais como o
de Reynolds, onde se procede à estimulação
de certas áreas do encéfalo, usavam estímulos
demasiado intensos que, como mais adiante
se verá, potenciam a inibição descendente
mascarando a facilitação descendente da dor.
Na secção seguinte veremos que a dor pode
não só ser inibida mas também potenciada
pelo encéfalo. Muitos trabalhos publicados a
partir da década de noventa apontam várias
áreas do encéfalo como focos indutores de
facilitação.Veremos também que este aparente masoquismo do nosso próprio cérebro é
biologicamente útil embora, quando desregulado possa ser extraordinariamente debilitante,
estando na origem de vários síndromes de dor
crónica.
«Perhaps few persons
who are not physicians
can re alize the influence
which long-continued and
unendurable pain may have
upon both body and mind…
Under such torments the
temper changes, the most amiable
grow irritable, the soldier becomes
a coward, and the strongest man in
scarcely less nervous than the most
hysterical girl». (Possivelmente apenas
um pequeno número de pessoas, para
além dos médicos, consegue conceber
a influência que a dor prolongada e
interminável pode exercer sobre o
corpo e a mente… tais tormentos
fazem o mais sereno tornar-se irritadiço, o soldado virar cobarde e o mais
forte dos homens ficar tão somente
um pouco menos nervoso que a mais
histérica rapariga).
S. Weir Mitchell, 1872. Citado de «The
Challenge of Pain (1996)»
67
Desfrutar da experiência Dor – essa que ora nos atormenta, ora
nos protege – é um benefício que poucos reconhecem como
tal, mas que pode também ela ser implacavelmente penosa.
68
O cérebro masoquista
A partir da década de noventa começou
a ficar claro que a modulação (controlo) da
dor resultava de um balanço entre influências inibitórias e facilitatórias que resultavam
respectivamente, em antinocicepção e em
pronocicepção. Antes de prosseguirmos
com a nossa exposição, importa esclarecer
que por nocicepção entendemos ser a
activação de receptores (nociceptores) na
pele ou vísceras preparados para responder a
estímulos agressivos ao organismo (nóxicos) e
a informação que se gera e que se transmite
em impulsos eléctricos. Assim, a activação
destes receptores é transformada num sinal
eléctrico que se propaga pelas células nervosas até à medula espinhal. O sinal propaga-se
rapidamente pelas fibras nervosas de maior
calibre (fibras A ) e mais lentamente nas de
menor calibre (fibras C) originando duas
sensações diferentes – uma rápida (aguda) e
outra mais lenta e que se propaga no tempo
(moideira). Na medula espinhal organizamse dois processamentos quase simultâneos da
informação nóxica aí chegada. Em primeiro
lugar, o sinal eléctrico propaga-se em direcção
aos músculos permitindo uma reacção rápida
e inconsciente de fuga ao estímulo – reflexo
(retirar a mão, dar um salto) – e, em segundo
lugar, o impulso é conduzido ao encéfalo
onde tomamos consciência do ocorrido quer
em termos sensoriais – localização do estímulo (na mão, no braço, etc.), intensidade (fraco,
moderado, intenso), modalidade (queimadura,
picada, etc.), duração (curto, prolongado, etc.)
– quer em termos das sensações emocionais
que o estímulo desencadeia (o desagradável, a
verbalização, os esgares faciais, o pânico, etc.).
São estes aspectos sensoriais e emocionais que,
no seu conjunto, constituem a experiência
dolorosa (ver acima a definição da IASP).
Assim sendo, nocicepção e dor designam dois
fenómenos muito próximos e relacionados,
mas que não devem de forma alguma ser
confundidos. Retomando o raciocínio, no
caso da antinocicepção a influência funciona
por impedir a chegada do estímulo nóxico ao
encéfalo resultando em analgesia. Já no caso da
pronocicepção poderá haver uma facilitação
dessa transmissão inibindo assim a analgesia ou
aumentando o estado basal da dor (McNally,
1999). Do ponto de vista comportamental, o
balanço entre estes dois estados funciona sob
controlo apertado em indivíduos saudáveis,
de modo a permitir a execução da tarefa mais
premente. Por exemplo, em animais de laboratório, a exposição do animal a ambientes
novos, a estimulação com choques eléctricos,
o nadar forçado em água, a rotação centrifuga
do animal, diversos tipos de ruído e a restrição
de movimentos ou imobilização do animal,
em suma qualquer estímulo agressivo indutor de stress para o animal, é susceptível de
causar uma analgesia reversível. Com maior
relevância no repertório de comportamentos
do animal, o confronto agressivo com animais
da mesma espécie, o odor de animais stressados da mesma espécie e a exposição visual
a predadores são estímulos susceptíveis de
também provocar analgesia. Nestes casos, é
evidente que a dor (dentro de certos limites)
face às situações com que o animal se depara,
69
é secundária, já que é fundamental escapar
com sucesso. Por outro lado, noutras situações,
existe a necessidade de proteger e promover a
recuperação do organismo que foi de algum
modo agredido e lesado.A dor nestas situações
pode ser encarada como um meio do organismo se predispor a uma menor actividade
do corpo, um factor essencial à recuperação.
O balanço anti- e pronociceptivo pende agora
em favor do último. Todos nós já sentimos a
necessidade de diminuir a actividade ou até
sermos acamados numa situação de doença
devido a dores musculares generalizadas.
Também é do conhecimento geral que face
a uma lesão grave num membro, o procedimento habitual passa pela sua imobilização – a
dor favorece a sua manutenção.
A pronocicepção pode depender de
modificações na fisiologia ou anatomia das
estruturas envolvidas na transmissão da dor
ou da actividade de variadas áreas do cérebro vocacionadas para a transmissão da dor
Figura 2. Nesta figura encontram-se representados diferentes tipos de receptores nervosos (A). Quando activados
pelo estímulo apropriado gera-se localmente um sinal que
é transportado por prolongamentos (axónios) de neurónios
localizados nos gânglios das raízes dorsais (B) e que estão
representados por circunferências de diferentes tamanhos.
Estas fibras entram então na medula espinhal pelas raízes
dorsais (C) e terminam contactando neurónios localizados
no corno dorsal (D). Os neurónios do corno ventral (E), por
seu turno enviam axónios via raiz ventral (F) para enervar
a musculatura (não representada na figura). As setas indicam
o sentido da informação. Figura adaptada de Messlinger
(1997).
(neuroplasticidade). Por exemplo, no caso dos
nociceptores (ver figura 2) é sabido que existe
uma população destes que permanece em
circunstâncias normais «adormecida» e que
é activada quando localmente são libertadas
certas substâncias activas. A libertação destas
acontece quando ocorre um dano no tecido
que desencadeia uma resposta inflamatória.
Todos nós já sentimos alterações de sensi-
70
bilidade na área que circunda, por exemplo,
uma pequena queimadura. Esta sensibilidade
anormal deve-se numa primeira instância à
actividade dos nociceptores que foram activados localmente, o que implica o acesso de
uma quantidade maior de informação para a
medula espinhal. Esta actividade aumentada
vai fazer com que os neurónios espinhais
alterem as suas propriedades fisiológicas com
duas consequências imediatas. Em primeiro
lugar, estes neurónios ficam mais activos, ou
seja, para o mesmo estímulo periférico (a
pele queimada) a sua resposta vai ser maior e
mais prolongada no tempo e, portanto, maior
será a informação transmitida ao encéfalo.
Em segundo lugar, o campo receptivo destes
neurónios alarga-se. Para aqueles menos familiarizados com a fisiologia dos neurónios da
medula espinhal, importa esclarecer que cada
neurónio do corno dorsal é activado quando
uma área bem delimitada da pele é estimulada
(Yaksh et al., 1999). Esta propriedade é designada de somatotopia e a área cuja estimulação
é capaz de activar o neurónio é designada
(no caso da pele) de dermátomo. Ao dizerse que o campo receptivo de um neurónio
está alargado implica que o seu dermátomo
esteja aumentado e, portanto, que a área
envolvente da lesão, embora intacta, adquira
novas propriedades. Uma vez mais pede-se ao
leitor que invoque uma má experiência com
uma queimadura. Certamente lembrar-se-á
que o toque, ainda que suave, na proximidade
da lesão era já por si doloroso. O fenómeno
que sentiu é designado de alodínia, ou seja,
dor que é provocada por um estímulo que
em situações normais é inócuo e resulta de
alterações nas propriedades normais dos seus
neurónios da medula espinhal devido à sobrecarga de actividade.
Uma outra modalidade de pronocicepção
decorre da actividade de áreas do encéfalo
cujos neurónios projectam para o corno
dorsal da medula espinhal e que funcionam
no sentido de permitir que a informação periférica aí chegada seja amplificada. Em termos
da já referida teoria do portão controlo dirse-ia que a actividade destes neurónios tem
a propriedade de «abrir o portão» e facilitar
(aumentar) assim a transmissão para o encéfalo
de informação nociceptiva, relacionada com a
dor. Existem várias áreas actualmente descritas
como sendo capazes de uma actividade facilitadora da dor. Debrucemo-nos sobre uma em
particular: o núcleo reticular dorsal do bolbo
raquidiano (DRt).
«I was brought up in a medical generation in which… pain was [considered to be] a primary
sensation dependent upon the stimulation of a specific sensory ending by a stimulus of a certain
intensity, and conducted along a fixed pathway to ring a special bell in consciousness. Pain was
as simple as that… the idea that anything might happen to sensory impulses within the central
nervous system to alter their character, destination, or the sensation they registered in consciousness was utterly foreign to my concept. But in practise I found that it was incredibly difficult to
make this concept consistent with clinical observations». (Fui educado numa geração de médicos
em que a dor era considerada uma sensação primária dependente da estimulação de terminais
específicos, por estímulos de determinada intensidade que seriam conduzidos por vias concretas
até ao sistema nervoso central onde fariam soar na consciência uma campainha especial.A dor era
tão simples quanto isso... a ideia de que algo pudesse acontecer aos impulsos sensoriais no sistema
nervoso central que alterasse o seu carácter, destino ou a sensação que registavam era-me algo
absolutamente estranho. Mas, na prática, era incrivelmente difícil fazer esse conceito consistente
com as observações clínicas).
William K. Livingston, 1943. Citado de «The Challenge of Pain (1996)».
O núcleo reticular dorsal do bolbo
raquidiano
O primeiro trabalho publicado que atribuía
uma actividade facilitadora da dor ao DRt data
de 1996 (Almeida et al., 1996). Neste artigo
descreve-se que a reacção à dor em dois testes
de nocicepção aguda – teste de flexão da cauda
e teste da placa quente1 – é mais demorada
em ratos cujo DRt fora lesionado do que em
ratos onde o DRt permaneceu intacto. Por
outro lado, em ratos onde o DRt é estimulado,
o tempo de resposta é mais rápido do que nos
controlos onde não se interfere com a actividade do DRt. Num segundo artigo, de 1999
(Almeida et al., 1999), comprovou-se que a
lesão do DRt, tal como no trabalho anterior,
diminuía a resposta associada à dor, mas agora
num teste de dor inflamatória – teste do formol.
Adicionalmente, os autores procuraram ver a
expressão de uma proteína designada de c-fos
que vem de há muito sendo usada como um
71
marcador da actividade neuronal resultante
na medula espinhal, do processamento da
informação nóxica (Coggeshall, 2005). Assim,
após a injecção de formol na pata do rato, o
número de neurónios marcados com c-fos no
corno dorsal da medula espinhal aumenta
significativamente, indicando um aumento de
informação proveniente da periferia.
Voltando ao trabalho de 1999, os autores
verificaram que a lesão do DRt diminuía
o número de neurónios c-fos positivos no
corno dorsal, logo activados pelo estímulo
nóxico. Destes dois trabalhos resultaram duas
conclusões. A primeira é que a actividade dos
neurónios do DRt é necessária para que haja
uma expressão completa do comportamento
doloroso agudo e inflamatório. A segunda é
que a actividade do DRt promove/facilita a
actividade dos neurónios do corno dorsal e,
concomitantemente,a passagem da informação
1. Os testes de flexão da cauda e da placa quente consistem, respectivamente, na aplicação de um estímulo térmico nóxico
focado num ponto da cauda do animal até que haja um movimento reflexo de afastamento e na colocação do animal numa
área restrita cuja base está quente, a uma temperatura indutora de dor (55ºC). No primeiro teste, o parâmetro medido é o
tempo necessário para que haja o reflexo da cauda e, no segundo, o tempo necessário para o animal mostrar comportamentos
indicativos de que está a sentir dor (por ex. lamber a pata). Em termos neurofisiológicos, o primeiro teste incide sobre processos
que ocorrem ao nível da medula espinhal: chegada da informação e reflexo espinhal motor para flectir a cauda. O segundo
teste implica uma maior complexidade para que ocorra uma reacção organizada, estando necessariamente dependente da
actividade de muitas áreas encefálicas e de uma influência descendente sobre o «portão de controlo» da passagem de informação
nociceptiva.
72
Figura 3. Cérebro de rato. Na imagem está representado
um cérebro de rato dividido ao meio. As diferentes áreas
encefálicas referidas no texto encontram-se assinaladas com
diferentes cores. A vermelho temos o tronco cerebral, a azul
o cerebelo, a amarelo o córtex, a verde o diencéfalo (tálamo e
hipotálamo), a roxo a amígdala e a cinzento parte da medula
espinhal.
nociceptiva para o encéfalo – resultando
no aumento da percepção consciente da
dor. Note-se que, quando a actividade dos
neurónios do DRt foi medida, esta estava
de facto aumentada após o teste do formol
(Porro et al., 1991) ou em ratos sujeitos a um
modelo de dor crónica neuropática (Neto et
al., 1999).
Com estes trabalhos percebemos o papel do
DRt no processamento da informação nóxica, embora a suspeita de que esta área estivesse
ligada à modulação da dor, fosse mais antiga.
O primeiro trabalho que deu uma indicação
neste sentido foi um estudo anatómico, o que
ilustra a importância que a anatomia pode ter
no deslindar da função subjacente a uma dada
área. Nesse estudo provou-se que o DRt recebia projecções de neurónios do corno dorsal,
os mesmo que por sua vez recebem informação nociceptiva da periferia (Lima e Coimbra,
1985). Estes resultados foram confirmados
posteriormente de forma mais detalhada
(Almeida et al., 1995; Lima, 1990). Mais tarde
provou-se a existência de comunicação no
sentido inverso, ou seja do DRt para o corno
dorsal e que os contactos (sinapses) existentes
entre as projecções dos neurónios do DRt e os
neurónios do corno dorsal eram assimétricos
(Almeida and Lima, 1997), uma morfologia
indicativa de uma sinapse excitatória (Gray,
1969). Ou seja, o impulso chegado a uma
73
Figura 4. Esquemas representando secções de cérebro de rato
onde se localizam as principais áreas referidas no texto. DRt,
núcleo reticular dorsal do bolbo; NTS, núcleo do tracto do
solitário; LC, locus coeruleus; RVM, medula ventromedial
rostral; PAG, substância periaqueductal cinzenta; th, tálamo;
hy, hipotálamo; Amy, amígdala. Ver legenda figura 3 para
código de cores; A área pré-tectal anterior não está representada. Esquemas adaptados de Paxinos e Watson (1998).
sinapse deste tipo é propagado pelo neurónio seguinte, por oposição a uma sinapse do
tipo inibitório, onde o impulso seria inibido.
Destes dados, foi possível concluir que, uma
vez chegada ao corno dorsal, a informação
nociceptiva proveniente vinda da periferia era
transmitida ao DRt – não esquecer que, apesar
de omitidas, também outras áreas do encéfalo
que não o DRt recebem essa informação
– e do DRt essa informação era retransmitida
para o corno dorsal, onde voltava a excitar os
mesmos neurónios que haviam antes transmitido a informação. Ou seja, esta complicada
frase resume-se a dizer que foi comprovada
a existência de um circuito neuronal fechado
entre o corno dorsal, o DRt e de novo, o
corno dorsal. Mais, dado o carácter exitatório
dos contactos, é possível inferir que a informação não só é transmitida em ciclo, como
ainda é amplificada. Estas últimas conclusões
fornecem um forte suporte para os resultados
no comportamento animal que descrevemos
acima e que sugerem que o DRt é uma área
pronociceptiva dentro do sistema endógeno
de controlo da dor. O DRt permite a amplificação da nocicepção, facilitando a transmissão
da informação que chega da periferia.Assim, a
sua destruição interrompe este circuito, abolindo a facilitação da dor com o consequente
impacto no comportamento, como foi atrás
descrito. Note-se que os neurónios do DRt
projectam não só para o corno dorsal, mas
74
também para diversas áreas do encéfalo (LeiteAlmeida et al., 2006), fazendo antever uma
complexa organização anátomo-funcional
ainda por deslindar. Entre elas encontram-se
outras áreas envolvidas no controlo da dor
como o bolbo rostral ventromedial (RVM, do
inglês rostral ventomedial medulla), a substância periaqueductal cinzenta (PAG, do inglês
periaqueductal gray), o locus coeruleus (LC) e
o núcleo do tracto do solitário (NTS), entre
outras. Também áreas envolvidas no controlo
motor da musculatura orofacial – núcleo do
nervo facial, por exemplo – e áreas límbicas2
como o hipotálamo (hy) e a amígdala (Amy)
recebem contactos provenientes do DRt.
Por outro lado, o DRt recebe informação de
variadas áreas do encéfalo onde se incluem
novamente o RVM, PAG, LC, NTS, hy e Amy
(Almeida et al., 2002). Adicionalmente, chega
ao DRt e recebe informação de várias áreas
corticais, como os córtices somatosensorial,
motor, do cíngulo, pré- e infra-límbico. Um
dado curioso recentemente publicado dá conta
de que a estimulação do córtex do cíngulo
facilita o comportamento doloroso (Zhang et
al., 2005).Adicionalmente, comprovou-se que,
para que este fenómeno se processasse, o DRt
teria que estar intacto. Ou seja, a facilitação
gerada a partir do córtex do cíngulo é feita
via DRt. Este estudo veio a confirmar o papel
do DRt como área encefálica pronociceptiva
facilitadora da percepção dolorosa.
Muitos trabalhos publicados
a partir da década de
noventa apontam várias
áreas do encéfalo como
focos indutores de facilitação.
Veremos também que este
aparente masoquismo do
nosso próprio cérebro é
biologicamente útil embora,
quando desregulado possa
ser extraordinariamente
debilitante, estando na
origem de vários
síndromes de dor
crónica.
2. A designação de sistema límbico engloba um número de áreas encefálicas ligadas à emoção. Não existe actualmente um
consenso generalizado quanto à validade anatómica e/ou funcional do conceito (Heimer L, Van Hoesen GW. 2006. The
limbic lobe and its output channels: implications for emotional functions and adaptive behavior. Neurosci Biobehav Rev
30(2):126-147.)
Outras áreas com actividade
facilitadora da dor
Para além do DRt, é sabido actualmente
que existem outras áreas do encéfalo com
actividade facilitadora descendente. Ou seja,
áreas cujos neurónios projectam para o corno
dorsal e que facilitam a transmissão dos sinais
eléctricos nociceptivos aí chegados pelas vias
nervosas periféricas. Quando acima indicamos as três principais razões que afastaram o
conceito de facilitação do estudo da dor nas
décadas de 60-80, referimos o facto de em
alguns estudos serem usados estímulos de tal
forma intensos que mascaravam os efeitos
facilitatórios. O fenómeno foi detectado no já
referido RVM. Zhuo e Gebhart (1997) verificaram que, quando estimulavam neurónios
desta área, um de dois fenómenos, dependendo do local estimulado, aconteciam: ou havia
inibição/retardamento da flexão da cauda
(analgesia) independentemente da intensidade do estímulo ou, por outro lado havia
uma resposta dependente da intensidade que
resultava em facilitação da dor para estímulos
de baixa intensidade (o tempo de latência
para a flexão da cauda era menor do que nos
controlos) e inibidora para estímulos de elevada intensidade (o tempo de latência era maior
que nos controlos). Dois tipos de células foram
caracterizadas no RVM cuja actividade parece
de alguma forma relacionar-se com activida-
des facilitatórias e inibitórias geradas a partir
desta área. O primeiro tipo é designado de
OFF e é uma célula com actividade constante,
apenas interrompida imediatamente antes do
movimento. O segundo tipo, designado de
ON, é uma célula silenciosa que é activada no
instante que precede o início do reflexo de
reacção a um estímulo doloroso. A actividade
deste último tipo de células é consistente com
um papel facilitatório (Porreca et al., 2002),
tendo já sido confirmada uma relação entre
estados hiperalgésicos e a actividade aumentada das células tipo ON (Bederson et al., 1990).
Mais ainda, a inibição da actividade celular
no RVM reverte a hiperalgesia (Kaplan and
Fields, 1991).
Das áreas do cérebro envolvidas no controlo
da dor, o RVM é, indubitavelmente, a mais
estudada e compreendida. Presentemente, são
conhecidas outras áreas que participam nesse
controlo e, de particular interesse no contexto
deste artigo, áreas que possuem propriedades
facilitadoras da dor. Não entraremos em detalhe quanto à fisiologia destas, mas, a título de
exemplo poderemos citar o núcleo do tracto
solitário e a área pré-tectal anterior (APTN;
Rees et al., 1995).
75
76
Conclusões
Iniciamos este texto dando exemplos de
vantagens evolutivas e de alguns contras que
surgiram associados a estas. Nestes termos,
contextualizamos a dor enquanto sistema de
alarme do organismo. Recorrendo a uma
metáfora, a maioria de nós concordará que
possuir um alarme sonoro ruidoso no carro é
garantia de segurança acrescida, pese embora o
facto de este poder disparar em situações que
não aquelas inicialmente previstas. Da mesma
maneira, a dor tem uma função protectora
enquanto regulada pelo sistema endógeno de
controlo da dor (ver também o artigo Como
é que as emoções controlam a dor? publicado no
número anterior desta revista). Quando por
algum motivo estes mecanismos deixam de
funcionar correctamente a dor, tal como na
analogia de que nos servimos, «dispara» fora
de contexto. Sabe-se hoje que os mecanismos
de controlo podem funcionar no sentido de
facilitar ou inibir a dor. Quer por questões de
ordem experimental, quer por questões de
fundamento, durante muito tempo a possibilidade de a modulação da dor incluir uma
vertente facilitadora esteve excluída das
teorias da dor. De facto, porque haveríamos
de ter um cérebro masoquista? A resposta a
esta questão reside não só em dados científicos mas também na intuição e na experiência
quotidiana de todos nós, incluindo aqueles
que se dedicam ao estudo da dor os quais, por
motivos óbvios, estão mais sensibilizados para
o problema. É hoje facto aceite que existem
áreas do encéfalo que facilitam a percepção
da dor, como o DRt, RVM, NTS e APTN.
A relevância biológica deste dado prende-se
com a nossa percepção do mundo que nos
rodeia. Quais os estímulos perigosos? Que
devemos ou não comer para evitar uma cólica?
Quando devemos mudar de posição para não
causar mazelas nas nossas articulações? Neste
contexto, a dor pode ser uma importante força
motriz de reconhecimento e aprendizagem.
Por outro lado, a dor numa situação de doença
deve impelir-nos ao repouso ou até à imobilização total, favorecendo nestes casos uma
recuperação rápida do organismo. Referimos
também que, quando relevante, o sistema
nervoso central pode suprimir ou diminuir
a dor (analgesia) para, por exemplo, facilitar a
fuga a um ambiente hostil, mesmo havendo
lesões de pequena ou média gravidade. Estes
mecanismos de supressão serão possivelmen-
77
te os mesmos que estão activos em pessoas
submetidas a hipnose e explicarão porque é
que estas sentem menos dor do que pessoas
que têm a sua atenção focada no estímulo
doloroso. Da mesma forma, existem pessoas
capazes de se sujeitarem a estímulos muito
agressivos sem que sintam qualquer dor (ver
Figura 5), não devendo isto ser confundido
com o prazer que alguns indivíduos retiram
da experiência dolorosa.
Finalizamos este artigo concluindo
que há dores que vêm por bem, ilibando assim o nosso cérebro do cunho de
masoquista, pelo menos em circunstâncias normais. Casos há – e a eles fizemos
atrás referência – em que a dor perde
o seu carácter benéfico, já que se torna
crónica tornando-se um fardo difícil de
carregar.
Figura 5. Churuk Puja. No Churuk Puja ou a cerimónia do
balançar, alguns homens engatam ganchos na pele das costas
e deixam-se pendurar, balançando depois diante da multidão.
Na cara destes homens não se vislumbra qualquer sinal de
dor. Este ritual religioso decorre anualmente em algumas
aldeias remotas da Índia. Imagem obtida em British Library
Images Online
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As benzodiazepinas pertencem ao grupo dos
sedativos‑hipnóticos sendo os medicamentos globalmente
mais prescritos. A sua utilização deve-se à sua acção calmante
e sedativa-hipnótica. As benzodiazepinas são geralmente
administradas por via oral sendo a rapidez da sua absorção e
distribuição determinada por factores como a lipossolubilidade.
A biodisponibilidade das benzodiazepinas é afectada
pela idade, função hepática e indução
das enzimas microssómicas
hepáticas. O seu
80
mecanismo
de acção depende da
potenciação da acção do GABA por
receptores específicos.
As benzodiazepinas são usadas no tratamento da ansiedade,
na hipnoindução, na anestesia geral, para relaxamento
muscular.
O uso de benzodiazepinas pode levar ao surgimento de
efeitos adversos como sonolência, confusão mental, amnésia
e perturbação da capacidade de condução de máquinas,
desinibição e comportamento paradoxal.
A sua utilização continuada poderá produzir tolerância e
dependência, assim como síndrome de abstinência, estes
efeitos são mais marcados nas moléculas de semi-vida curta.
A utilização de benzodiazepinas deve ser encarada após
cuidadosa avaliação da situação clínica do doente e suas
expectativas.
Sérgio Aires Gonçalves
Assistente de Clínica Geral
Especialista de Medicina Geral e Familiar
Docente da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Fernando Pessoa
Palavras-chave:
Benzodiazepinas;
farmacocinética; revisão
A ansiedade pode manifestar-se por uma
queixa expressa, por efeitos somáticos e
autonómicos ou por interferência com as
actividades da vida diária. A sua abordagem
terapêutica inclui quer tratamento farmacológico quer psicoterapia, esta especialmente útil
na ansiedade crónica4.
1.Introdução
As benzodiazepinas (bzd) surgiram em
1961 acidentalmente, com a descoberta do
clordiazepóxido1, 2, 3.
Os estados de ansiedade e os problemas
do sono são problemas com elevada prevalência sendo os sedativos/hipnóticos os
medicamentos globalmente mais prescritos.
As benzodiazepinas são consumidas por mais
de 10% da população nos países desenvolvidos. Os idosos na 7ª década de vida recebem
66% mais de prescrições que os indivíduos na
6ª década.
Apenas 25% dos doentes ansiosos são
tratados4. O medo de estabelecimento de
dependência leva a que muitas vezes os doentes sejam tratados com doses subterapêuticas
o que muitas vezes provoca um mau controlo
sintomático ou sintomas de abstinência.
Um ansiolítico deve reduzir a ansiedade
e produzir um efeito calmante produzindo
pouco efeito sedativo ou relaxante muscular.
Um hipnótico deve provocar sonolência e
induzir e manter o sono. Este efeito pode ser
obtido por doses mais elevadas dos ansiolíticos
mais potentes.Os sedativos-hipnóticos caracterizam-se por uma depressão dose-dependente
do sistema nervoso central, diferindo os diferentes fármacos na relação dose/efeito.
As benzodiazepinas diferem dos sedativos
mais antigos como os barbitúricos e alcoóis
pelo facto de, em doses elevadas, não produzirem anestesia dada a sua curva dose/efeito
mais aplanada. Estes sedativos mais antigos em
doses tóxicas provocam uma intensa depressão
respiratória e vasomotora produzindo potencialmente coma e podendo mesmo ser letais.
2. Classificação química
Todas as estruturas mostradas são 1,4 benzodiazepinas e contêm na sua maioria um grupo
carboxiamida na sua estrutura heptagonal heterocíclica. Um radical halogenado ou um grupo
nitrosamina são necessários à sua actividade ansiolítica/hipnótica. As estruturas do triazolam e
alprazolam incluem a adição de um grupo triazol nos carbonos 1 e 2, sendo por isso designadas
por triazolobenzodiazepinas.As diferenças farmacocinéticas entre as benzodiazepinas são o factor
mais importante para a sua utilização terapêutica nas suas diferentes indicações 2.
81
3. Farmacocinética das benzodiazepinas.
82
3.1. Absorção
As benzodiazepinas são geralmente utilizadas por via oral, dependendo a sua absorção
entre outros factores da sua lipossolubilidade.
É particularmente rápida a absorção oral do
triazolam sendo que a o diazepam e do metabolito activo do clonazepam é mais rápida que
das restantes (ver tabela I). Pelo contrário, o
oxazepam, o temazepam e o lorazepam são
mais lentamente absorvidos que as restantes
benzodiazepinas. A biodisponibilidade das
benzodiazepinas por via intramuscular é variável 1-3.
3.2. Distribuição
A solubilidade lipídica desempenha um
papel importante na penetração das diferentes
benzodiazepinas no SNC. Por exemplo o
diazepam e o triazolam são mais lipossolúveis
que o clorodiazepóxido e o lorazepam, daí
o mais lento início de acção destes últimos
fármacos. Este facto explica o facto do lorazepam que tem uma menor semi-vida que o
diazepam possa, numa toma isolada ter uma
duração de efeito mais prolongada 6.
Os níveis de diazepam atingidos são mais
elevados no cortéx cerebral que no sistema
límbico e nos núcleos da base 2.
A redistribuição das benzodiazepinas dá-se
em primeiro lugar para o músculo-esquelético e, posteriormente, para o tecido muscular
esquelético e finalmente para o tecido adiposo. A lipossolubilidade das benzodiazepinas
contribui para a sua acumulação no tecido
adiposo 2.
As benzodiazepinas atravessam a barreira
placentária, sendo que o equilíbrio das concentrações sanguíneas é mais lento no feto que na
mãe. A distribuição ao feto acarreta a possibilidade de depressão respiratória do feto. As
benzodiazepinas são também excretadas pelo
leite materno e podem exercer efeito depressor do SNC no lactente. Apesar da ligação das
benzodiazepinas às proteínas plasmáticas ser de
60% a 95% daqui não parece resultar interacções medicamentosas significativas.
3.3. Biotransformação e excreção
Para a excreção das benzodiazepinas é
necessária a sua conversão em metabolitos mais
hidrossolúveis. Esta transformação processa-se
predominantemente nos microssomas hepáticos.
A maior parte das benzodiazepinas sofre
oxidação (reacções de fase I), apresentando a
maioria destes compostos actividade sedativa
ainda maior que o fármaco de que derivam.
Estes metabolitos acumulam-se produzindo
efeitos cumulativos com o uso prolongado.
Os metabolitos de curta duração resultantes
destas reacções são conjugados em compostos
glucuronoconjugados que são excretados pela
urina 2.
O uso de benzodiazepinas
pode levar ao surgimento
de efeitos adversos como
sonolência, confusão mental,
amnésia e perturbação da
capacidade de condução
de máquinas, desinibição e
comportamento paradoxal.
3.4. Biodisponibilidade
Afectam a biodisponibilidade de um fármaco: a função hepática, a idade, a indução e a
inibição das enzimas microssómicas hepáticas.
Em doentes idosos com doença hepática grave
o tempo de semi-vida destes medicamentos
aumenta significativamente resultando em
aumento da sedação. No idoso, a glucuronoconjugação parece estar menos atingida do
que a oxidação.
As benzodiazepinas podem ser agrupadas
em três categorias a referir:
a) de metabolização hepática e de longa
semi-vida como o diazepam; o uso em
múltiplas doses destas substâncias está sujeito
a acumulação;
b) outro grupo de benzodiazepinas inclui
as que sofrem glucuronoconjugação como
o oxazepam que está sujeito a uma menor
acumulação, a sua metabolização é menos
afectada pela idade, doença hepática ou pelo
uso concomitante de inibidores metabólicos
4,10
;
c) um terceiro grupo inclui compostos
sujeitos a nitrorredução e cuja semi-vida varia
entre as 18 e as 50 horas, devem ser evitados
em doentes com doença hepática ou renal 4.
As benzodiazepinas não alteram a actividade
das enzimas microssómicas hepáticas com a
sua utilização. Os seus níveis podem aumentar
quando administradas concomitantemente
com estrogénios 5.
83
Benzodiazepinas
84
Longa duração
Clordiazepóxido
Diazepam
Flurazepam
Clorazepato
Clonazepam
Prazepam
Halazepam
Ketazolam
Clobazam
Medazepam
Quazepam
Mexazolam
Loflazepato de etilo
Nordazepam
Rapidez de absorção
Rápida
*
48-96 h
48-96 h
48-72 h
48-96 h
48-72 h
48-96 h
48-96 h
34-52 h
35 h
30-200 h
30-100 h
130-200 h
75 h
*
Duração intermédia
Nitrazepam
Oxazepam
Lorazepam
Temazepam
Alprazolam
Bromazepam
Lormetazepam
Loprazolam
Estazolam
Cloxazolam
Flunitrazepam
Lenta
Lenta
intermédia
Lenta a intermédia
Intermédia
Rápida
*
*
Intermédia
*
*
16-48 h
8-12 h
10-20 h
10-20 h
14 h
8-19 h
9h
7h
10-24 h
*
29 h
Curta duração
Brotizolam
Triazolam
Midazolam
*
Intermédia
Intermédia
6h
2-5 h
2-3 h
*Sem informação documentada11
Intermédia
Rápida
Intermédia a rápida
Rápida
Intermédia
Intermédia a lenta
Lenta a intermédia
Lenta
*
*
Intermédia
Semi-vida
4. Neurofarmacologia
As benzodiazepinas ligam-se aos componentes moleculares do GABAA presentes
nas membranas dos neurónios do SNC.
Este receptor é constituído por uma proteína heteroligomérica transmembrana que
funciona como um canal de cloreto, activada
pelo neutransmissor inibitório GABA 1,8. Este
neurotransmissor constitui o mais importante
neurotransmissor dos SNC. Estudos electrofisiológicos sugerem que as benzodiazepinas
potenciam a inibição sináptica produzida pelo
GABA (hiperpolarização neuronal) a todos
os níveis do SNC. Esta acção conduz a uma
diminuição da taxa de resposta neuronal em
muitas regiões do cérebro.
A sua acção efectua-se no sistema reticular
ascendente (vigília), no sistema límbico (afecto),
no fascículo longitudinal medial (recompensa/
castigo) e no hipotálamo 3. O efeito das benzodiazepinas não depende da activação directa
dos receptores GABAérgicos ou dos canais de
cloro associados, passando pelo aumento da
frequência da abertura dos canais de cloreto,
talvez por potenciarem o aumento da afinidade destes para o GABA.
Os receptores das benzodiazepinas podem
ser classificados em BZ1 e BZ2. A maior parte
das benzodiazepinas actuam nos dois subtipos
de receptores contudo as imidazolopiridinas,
como o zolpidem actuam exclusivamente no
BZ1. Desta forma o zolpidem exerce um efeito
hipnoindutor com efeitos mínimos no relaxamento muscular, na actividade anti-convulsiva
e com um possível menor potencial de estabelecimento de tolerância e de dependência 1,2.
Sedação pode ser definida como a supressão da resposta a um
nível constante de estimulação com diminuição da actividade
espontânea e da ideação. As benzodiazepinas pelo seu efeito
ansiolítico são capazes de desinibir um comportamento condicionado podendo provocar euforia, perturbação do juízo crítico
e perda da auto-crítica.
85
5. Efeitos terapêuticos
86
5.1. Sedação / Ansiólise
Sedação pode ser definida como a supressão
da resposta a um nível constante de estimulação com diminuição da actividade espontânea
e da ideação. As benzodiazepinas pelo seu
efeito ansiolítico são capazes de desinibir um
comportamento condicionado podendo
provocar euforia, perturbação do juízo crítico
e perda da auto-crítica.
5.2. Hipnoindução
Com o uso de benzodiazepinas verifica-se
diminuição do tempo necessário a adormecer
(latência do sono) 1, 3, aumento da duração do
sono NREM, diminuição do sono REM e
da duração do sono de ondas lentas. Os dois
primeiros efeitos são favoráveis, os restantes
de valor não avaliado. A diminuição do sono
REM aumenta a irritabilidade e a interrupção
da terapêutica é seguida por um aumento
compensatório do sono REM. A utilização
durante uma ou duas semanas de benzodiazepinas conduz a uma melhor tolerância dos
seus efeitos sobre o sono 1,2.
5.3. Anestesia
O diazepam e o midazolam por via endovenosa podem ser utilizados na anestesia mas não
são suficientes para a indução desta.
5.4. Acção anticonvulsiva
O clonazepam, nitrazepam, lorazepam e
o diazepam podem exercer uma acção anticonvulsiva sem exercerem uma depressão
marcada do estado de consciência 2.
5.5. Relaxamento muscular
As benzodiazepinas produzem efeito relaxante muscular e reduzem a coordenação dos
movimentos.
5.6. Efeitos na respiração e função
cardiovascular
Normalmente a depressão respiratória
produzida pelas benzodiazepinas é idêntica
à produzida pelo sono. Depressão grave do
centro respiratório pode resultar da sua utilização em doentes com doença pulmonar
grave. Estes efeitos podem ser potenciados por
outros depressores do SNC, especialmente o
álcool. Em caso de intoxicação medicamentosa esta depressão respiratória pode ser letal. Em
estados hipovolémicos, insuficiência cardíaca e
doenças cardiovasculares pode existir o risco
de colapso circulatório.
5.7. Efeitos laterais
Entre os efeitos laterais encontram-se a
sonolência, a confusão, a amnésia, a dificuldade
de coordenação motora e visual-motora 10; a
perda de capacidade para condução de máquinas e a potenciação dos efeitos depressores do
álcool 2.
Estes fármacos podem provocar comportamento paradoxal, alterações perceptivas e
alucinações. Entre os efeitos indesejáveis mais
raros encontram-se: cefaleias, tonturas, perturbações gastrointestinais, exantemas e redução
da líbido 3. Os idosos são mais vulneráveis aos
efeitos secundários da medicação 7.
6. Tolerância e dependência
A tolerância é uma característica das benzodiazepinas e caracteriza-se pela necessidade de
doses crescentes para manter o efeito terapêutico pretendido. É importante reconhecer a
tolerância cruzada entre as diferentes benzodiazepinas e o etanol.
A tolerância pode-se estabelecer do ponto
de vista metabólico, ou seja, farmacocinético
ou da resposta no sistema nervoso central,
tolerância farmacodinâmica. Inicialmente,
a dependência é similar ao comportamento do fumador inveterado, posteriormente
estabelece-se uma dependência fisiológica e
tolerância.
A dependência fisiológica caracteriza-se
pela necessidade de administração continuada
de uma substância para evitar o surgimento de uma síndrome de abstinência. Esta
síndrome é caracterizada por ansiedade, perda
do apetite, insónia crescente, irritabilidade,
confusão, delírio, despersonalização, trémulo, cefaleias, fasciculação muscular, sudação,
diarreia e em casos extremos, confusão, delírio, psicose e convulsões1, 2, 3. O uso de altas
doses e uma supressão abrupta contribuem
para o aparecimento deste tipo de síndrome.
Benzodiazepinas com semi-vidas mais longas
estão associadas a menores sinais físicos de
abstinência, pelo contrário as benzodiazepinas de acção curta geralmente utilizadas para
fins hipnóticos podem ser acompanhadas
destes sinais mesmo entre doses. Sintomas de
privação podem ocorrer após 3 dias de uso de
alprazolam e lorazepam e após 2 ou 3 semanas
de diazepam 3.
A descontinuação do tratamento com
as benzodiazepinas deve ser gradual, após
tratamentos com duração igual ou superior
a 3 semanas 9. A descida das doses deve ser
progressiva, diminuindo um oitavo de dose
cada duas semanas, para um total de 6 a 12
semanas. No final deste processo o uso de uma
benzodiazepina de longa duração poderá ser
útil.
A tolerância pode-se estabelecer do ponto de vista
metabólico, ou seja, farmacocinético ou da resposta
no sistema nervoso central,
tolerância farmacodinâmica.
Inicialmente, a dependência
é similar ao comportamento
do fumador inveterado,
posteriormente estabelece-se
uma dependência fisiológica e
tolerância.
87
7. Outras indicações terapêuticas
Para além do tratamento da ansiedade e da indução do sono as benzodiazepinas podem ainda
ser utilizadas no tratamento de ataques de pânico, privação alcoólica, terrores nocturnos, sonambulismo, espasmos musculares, epilepsia, anestesia e sedação para manobras invasivas.
88
O uso de benzodiazepinas nas diferentes indicações deve ser encarado após uma cuidadosa
avaliação médica da situação do doente tendo também em consideração a duração das queixas e
as expectativas deste em relação aos fármacos prescritos 5.
Bibliografia
1-Katzung. Basic and Clinical Pharmacology: sedativehypnotic drugs. 7ª edição; McGraw-Hill, 1998: 354-363.
2-Rang HP, Dale NM, Ritter JM. Pharmacology: anxiolytic
and hypnotic drugs. 4ª edição. Churchill Livingstone, 1999:
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3- Laurence M, Ben PM, Brown MD. Clinical Pharmacology:
hypnotic and anxiolytic sedatives. 8ª edição. Churchill
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Family Physician 39:2205-2213, 1993.
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psychotropic medication. American Journal of Psychiatry
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6-Greenblat DJ, Shader RI, Abernethy D: Drug therapy:
current status of benzodiazepines (first of two parts). The
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7- Prinz PN, Vitiello MV, Raskind MA, Thorpy MJ:
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and psychiatry. American Journal of Psychiatry 148:162-173,
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9-Greenblat DJ, Harmatz JS, Zinny MA, Shader RI: Effect
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discontinuation of triazolam. The New England Journal of
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10-Gillin JC, Byerley WF: The diagnosis and management
of insomnia. The New England Journa l of Medicine 322:
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11- S. Aires-Gonçalves, R Coelho: Perturbação de Ansiedade
Generalizada em Cuidados de Saúde Primários: abordagem
e tratamento.
Revista Portuguesa de Psicossomática 13-14: 65-75, 2005.
Prémio Ser Saúde/ISAVE
Em 2007, será anunciado o prémio Ser Saúde/ISAVE de ciência e
investigação em saúde.
Contactos: ISAVE | Campus de Geraz - Quinta de Matos | Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso Telefone – 253.639.800 | Fax – 253.639.801
Email - [email protected] | [email protected]
Gustavo Afonso
Enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá.
Responsável pela Assistência Domiciliária de Enfermagem
Lara Costa
Enfermeira graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá
Marta Miranda
Enfermeira. Pós-Graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde de Braga
– Unidade de Saúde do Carandá
Úlceras de
90
Pressão:
Introdução
As úlceras de pressão (UP) constituem um
grave problema de saúde que afecta o indivíduo em todos os aspectos físicos, psíquicos
e sócio-familiares. As suas consequências são
ainda mais abrangentes quando o problema
é analisado na sua vertente económica, visto
que exigem elevados custos, quer a nível de
recursos materiais quer humanos.
A nível nacional, não existe nenhum estudo
de incidência e prevalência que permita caracterizar o impacto das UP.
O Grupo Nacional para el Estúdio y
Asesoriamento en Úlceras por Presión y
Heridas Crónicas (GNEAUPP) realizou, em
Espanha, um estudo de prevalência das UP.
Segundo este estudo, a prevalência das UP em
doentes hospitalizados é de 8,8% enquanto
que no domicílio é de 8,3%.
Um estudo sobre o custo das UP também
realizado em Espanha (Posnett e Torra i Bou,
2001) diz-nos que o custo estimado por
episódio de tratamento em doentes com UP
de grau IV é de 16.660 euros e que o custo
As úlceras de pressão
(UP) constituem um grave
problema de saúde que afecta
o indivíduo em todos os
aspectos físicos, psíquicos e
sócio-familiares.
Prevenção
e Tratamento
total estimado para o tratamento das UP em
Espanha é de 1.687.000 euros. Este mesmo
estudo diz-nos ainda que o custo da prevenção
por doente durante 30 dias é de 1.200 euros.
Estes dados permitem-nos afirmar que as
repercussões são vastas quer a nível humano
como para o orçamento das políticas de saúde,
tornando-se também evidente que a prevenção
é a chave para a correcta abordagem das UP.
Definição
Segundo a European Pressure
Ulcer Advisory Panel (EPUAP), uma
UP é «uma lesão localizada na pele e
tecidos subjacentes, causada por pressão, torção ou deslizamento, fricção
e/ou uma combinação destes».
91
A avaliação da pessoa doente com risco de desenvolver UP deve
avaliação do seu estado físico, psíquico e social. É desta avaliação
a implementar no sentido de solucionar os problemas e/ou
92
Etiopatogenia
O aparecimento de uma UP é explicado pela
conjugação de múltiplos factores extrínsecos
e intrínsecos. Sendo os intrínsecos os determinantes para a predisposição dos indivíduos
para as UP, são também os mais difíceis de
controlar. Como factores intrínsecos podemos
destacar: idade, imobilidade, estado nutricional
e patologias com graves repercussões na perfusão tecidular.
Dos factores extrínsecos fazem parte: pressão, fricção, torção, deslizamento e humidade
(incontinência, sudorese e exsudado de feridas).
A pressão (força que actua perpendicularmente à pele comprimindo-a entre dois planos
– um externo, como a cama, e outro interno
como as proeminências ósseas), e a sua relação
com o factor tempo, surgem como factor
determinante para o desenvolvimento das
UP.
A pressão capilar num indivíduo saudável
pode variar entre 6 e 32 mmHg. Quando
a pressão exercida nos tecidos é superior
a 32 mmHg, ocorre oclusão capilar e
consequente hipoxia que se não aliviada
conduz a necrose tecidular.
ser feita de uma forma holística e multidisciplinar, contemplando a
que deve resultar o planeamento de todas as intervenções
necessidades diagnosticados.
93
Classificação
Actualmente, a classificação aceite a nível internacional por associações como a
National Pressure Ulcer Advisory Panel (NPUAP), a GNEAUPP e pela EPUAP é a
classificação em 4 graus:
Grau I: eritema não branqueável (não reversível ao alívio da pressão). A pele está intacta,
edemaciada ou endurecida, com alterações da
temperatura e com aumento da sensibilidade.
Grau II: destruição da epiderme e de parte da
derme. Úlcera superficial como uma abrasão
ou flictena.
Foto 1: úlcera de pressão grau I.
Fotos 2 e 3: úlcera de pressão grau II.
94
Grau III: destruição total da epiderme e
derme com envolvimento e necrose de
camadas subcutâneas mais profundas (sem
atingimento da fascia subjacente).
Grau IV: extensa destruição tecidular, com
necrose, envolvendo músculo, tendões e osso.
Foto 4: úlcera de pressão grau III.
Foto 5: úlcera de pressão grau IV.
Localizações mais frequentes
Decorrentes dos factores etiológicos existem
localizações em que as UP são mais frequentes
visto corresponderem a áreas submetidas a
maior pressão.
Segundo o primeiro estudo nacional de
prevalência de UP realizado pela GNEAUPP
em Espanha, as percentagens a nível hospitalar
surgem distribuídas da seguinte forma:
95
• Região sacrococcígea: 50,45%
• Calcâneos: 19,26%
• Trocanteres: 7,64%
Prevenção
A avaliação da pessoa doente com risco de
desenvolver UP deve ser feita de uma forma
holística e multidisciplinar, contemplando a
avaliação do seu estado físico, psíquico e social.
É desta avaliação que deve resultar o planeamento de todas as intervenções a implementar
no sentido de solucionar os problemas e/ou
necessidades diagnosticados.
Relativamente aos cuidados com a pele,
deve ser feita uma inspecção diária dando
relevância aos pontos sujeitos a maior pressão.
A pele deve estar limpa, seca e hidratada. Nas
zonas de maior risco (como o sacro, calcâneos
e trocanteres) está aconselhada a aplicação de
ácidos gordos hiperoxigenados visto haver
evidências científicas de que estes aumentam
a tonicidade cutânea, melhoram a micro-
Neste caso, assume particular importância
a aplicação de Escalas de Avaliação do Risco
de Úlceras de Pressão (exemplo, Escala de
Braden).
Sendo um grave problema de saúde e de
causa multifactorial, as UP são também evitáveis daí que a sua abordagem deva ser efectuada
prioritariamente a nível da prevenção. Os
cuidados preventivos devem incidir sobre os
cuidados com a pele e controlo da humidade
da mesma, sobre a abordagem da pressão e
ainda sobre a nutrição da pessoa doente.
Foto 6: aplicação de ácidos gordos hiperoxigenados.
A desempenhar também um papel importante na prevenção
das UP, surge-nos a nutrição e hidratação que muitas vezes é
relegada para segundo plano. No entanto, um bom suporte
nutricional pode evitar o aparecimento de UP como também
favorece a sua cicatrização.
96
circulação e evitam a desidratação da pele. O
controlo da humidade na pele é importante
para evitar a sua desidratação e/ou maceração,
controlando ou minimizando consequências
de incontinência, sudorese profusa, feridas
muito exsudativas e estomas.
Dos cuidados preventivos fazem parte
medidas que diminuam os efeitos causados
por forças mecânicas externas como fricção,
torção deslizamento e pressão. Para tal devem
efectuar-se reposicionamentos de duas em
duas horas ou de três em três horas segundo
uma rotação programada (decúbito dorsal,
decúbito lateral esquerdo, decúbito lateral
direito). Como auxiliares destas intervenções
existem equipamentos para alívio e redução
da pressão como é o caso dos colchões de
ar, colchões viscoelásticos, colchões mono e
multidensidade, almofadas de gel e calcanheiras.
É importante dizer que estes equipamentos, embora sejam grandes aliados para a
abordagem e diminuição da pressão, nunca
substituem as mudanças posturais.
A desempenhar também um papel importante na prevenção das UP, surge-nos a
nutrição e hidratação que muitas vezes é
relegada para segundo plano. No entanto, um
bom suporte nutricional pode evitar o aparecimento de UP como também favorece a sua
cicatrização.
Idealmente deveriam ser efectuadas avaliações periódicas do estado nutricional com
base na análise de dados antropométricos e
parâmetros bioquímicos.
Uma dieta adequada proporciona os
nutrientes necessários para melhorar a capacidade de resistência a infecções e aumentar a
resistência da pele a agressões externas como a
fricção e a pressão.
Relativamente ao tratamento local das UP,
este deve ser efectuado segundo princípios
de tratamento em meio húmido, temática
abordada no número 1 desta publicação –
«Abordagem da Ferida Crónica – Tratamento
Local» (páginas 112 a 119).
Foto 7: superfícies especiais para redução da pressão.
Casos clínicos
Caso 1
Idade: 79 anos.
Sexo: masculino.
Patologias e factores de risco
associados: imobilidade (doença de
Alzheimer).
Localização: calcâneo direito.
Classificação: UP Grau III.
Tempo de evolução: 3 meses.
Tratamento anterior: iodopovidona.
Duração deste tratamento:
7 semanas.
Tratamento:
De 06/ 04/ 2005 a 04/ 05/ 2005:
aplicação de hidrogel + hidropolímero
3x/semana (total de 13 tratamentos).
De 04/ 05/ 2005 a 27/ 05/ 2005:
aplicação de hidropolímero 2x/semana
(total de 7 tratamentos).
97
Caso 2
Idade: 85 anos.
98
Sexo: masculino.
Patologias e factores de risco associados: imobilidade (TCE).
Localização: calcâneo direito.
Classfificação: UP grau IV.
Tempo de evolução: 1 mês.
Duração deste tratamento:
12 semanas.
Tratamento:
De 20/ 04/ 2005 a 30/ 05/ 2005:
aplicação de carboximetilcelulose sódica
3x/semana (total de 17 tratamentos).
De 30/ 05/ 2005 a 12/ 07/ 2005:
aplicação de carboximetilcelulose sódica
2x/semana (total de 13 tratamentos).
Caso 3
Idade: 80 anos.
Sexo: feminino.
Patologias e factores de risco associados: imobilidade (Alzheimer, AVC);
HTA.
Localização: trocanter esquerdo.
Classificação: UP Grau III.
Duração deste tratamento:
13 semanas.
Tratamento:
De 03/ 08/ 2005 a 14/ 09/ 2005:
aplicação de hidrogel + hidropolímero
3x/semana (total de 18 tratamentos).
De 14/ 09/ 2005 a 02/ 11/ 2005:
aplicação de hidropolímero 2x/semana
(total de 13 tratamentos).
99
100
Bibliografia
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1.ª Edição, Lisboa, Portugal.
Grupo Nacional Para El Estudio Y Asesoramiento En
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SOLDEVILLA (coord). (2004). Atención integral de las heridas
crónicas. Madrid, Espanha. ISBN 84 – 95552-18-3.
Adelaide Serra
Médica, consulta de Litíase Renal no Hospital Fernando da Fonseca
Fernando Domingos
Médico, a preparar tese de doutoramento na Faculdade de Medicina de Lisboa
Prémio Bial
de Medicina Clínica 2004
Avaliação Nefrológica
de uma população
com Litíase Cálcica
Idiopática Recorrente
Experiência de 7 anos da
Consulta de Nefrolitíase do
Serviço de Nefrologia do
Hospital de Santa Maria
101
102
A litíase cálcica idiopática recorrente é a forma
mais frequente de nefrolitíase encontrada na
actualidade, verificando-se um aumento
progressivo da sua incidência nas
últimas décadas, sobretudo nos
países industrializados.
Nas últimas décadas,
tem-se verificado um
aumento significativo
da incidência de cálculos
renais em todos os países
industrializados e também
na população portuguesa.
De todas as formas de litíase renal, a litíase cálcica (ou
seja, a formação de cálculos
renais contendo cálcio), é a
mais frequente na actualidade.
Os doentes com litíase cálcica e
cólicas renais frequentes apresentam várias alterações metabólicas
(hereditárias, desencadeadas pela
dieta, pelo ambiente, etc), cujo
conhecimento é fundamental para
uma correcta prevenção e tratamento
da doença. Tendo em conta que estas
alterações não tinham ainda sido identificadas na nossa população, este trabalho
teve como objectivo a caracterização das
principais alterações metabólicas presentes na população portuguesa com litíase
cálcica recorrente.
São apresentados os resultados de um estudo efectuado pelos autores ao longo de 7 anos,
que permitiu identificar alterações urinárias na
grande maioria dos doentes com litíase renal
cálcica recorrente, sendo as mais frequentes
o aumento da excreção de ácido úrico e de
oxalatos na urina; foram também detectadas
modificações dos hábitos alimentares da nossa
população, nomeadamente um consumo
dietético elevado de proteínas e de sódio e
um baixo consumo de cálcio, que poderão
estar relacionados com o aumento recente da
incidência da doença. Documentámos ainda
que, na maioria dos casos, estes doentes não
foram tratados ou o seu tratamento baseou-se
em medidas empíricas de validade científica
duvidosa, de que resultaram complicações
várias, nomeadamente a nível ósseo e da
função renal.
Os resultados encontrados poderão permitir
a modificação significativa da forma como esta
doença é entendida, quer pela população quer
pela própria comunidade médica, impondo
a necessidade de investigação metabólica e
posterior instituição de medidas de prevenção adequadas, que controlem a doença e
reduzam os custos sócio-económicos com ela
relacionados.
103
A prevalência global da nefrolitíase na população mundial é de cerca de 10%,com variações
importantes em várias regiões, mesmo em
populações com graus de desenvolvimento
semelhantes. No continente europeu estão
relatadas taxas de prevalência entre os 5% e 9%
da população. Variações dietéticas, ambientais
e genéticas poderão justificar aquelas diferenças. A litíase cálcica idiopática recorrente
(LCIR) é a forma mais frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade, verificando-se
um aumento progressivo da sua incidência nas
últimas décadas, sobretudo nos países industrializados. Os motivos para este aumento
parecem relacionar-se com a melhoria das
condições de vida que se tem verificado após
a Segunda Grande Guerra, nomeadamente
com a melhoria dos parâmetros nutricionais.
Também tem sido observado um aumento
da incidência de LCIR na população portuguesa durante as últimas décadas. A dieta
tradicional portuguesa era uma dieta de tipo
mediterrânico, saudável. Essa dieta parece estar
a modificar-se gradualmente nos últimos anos,
principalmente junto das camadas mais jovens
da população.
Este estudo foi efectuado com o objectivo
de perceber as causas mais frequentes de LCIR
na população portuguesa e identificar os
factores metabólicos que lhe estão associados.
Efectuámos o estudo metabólico dos doentes
com LCIR enviados à consulta de nefrolitíase dum Hospital Central de Lisboa durante
um período de 7 anos consecutivos, entre
Dezembro de 1996 e Dezembro de 2003.
Todos os doentes com critérios diagnósticos
de LCIR foram estudados consecutivamente
durante este período, tendo sido avaliados os
parâmetros clínicos e os resultados do estudo
metabólico da nefrolitíase. Este último consistiu num mínimo de 3 avaliações laboratoriais,
que incluíram um conjunto de parâmetros
séricos e urinários habitualmente estudados
nesta doença. Duas das avaliações foram
efectuadas antes de qualquer intervenção terapêutica ou dietética, sendo a terceira realizada
após correcção de eventuais erros dietéticos.
Na maioria dos casos, a caracterização dos
hábitos alimentares foi efectuada através de
entrevista com uma dietista do Departamento
de Nutrição. Foi ainda avaliada a densidade
mineral óssea por densitometria e efectuados
doseamentos dos marcadores bioquímicos de
remodelação óssea.
Concluímos que a litíase cálcica
idiopática recorrente é uma
doença frequentemente
sub-diagnosticada e sub-tratada
na população portuguesa,
sendo o estudo e tratamento
preventivo da recorrência
frequentemente omitidos na
prática clínica corrente.
104
Completaram o estudo 186 doentes, 85
homens e 101 mulheres, com média de idades
de 48,7 ± 13,5 anos, tempo médio de doença
de 10 anos e intervalo de tempo médio entre
episódios de 7,5 meses. Em 37,6% dos casos
havia história familiar de nefrolitíase, sendo a
idade de início da doença significativamente
menor neste grupo quando comparada com
os doentes sem antecedentes familiares de
litíase renal (32,0 ± 10,2 versus 39,3 ± 13,7
anos, respectivamente; P < 0,001). Dos doentes observados, 72,6% nunca tinha efectuado
qualquer tratamento, 21,5% tinham feito tratamento urológico e 5,9% apenas tratamento
médico. Havia registo de complicações major
em 11,3% dos casos.
Foram identificadas alterações metabólicas
em 95,2% dos doentes e a maioria apresentava
mais de uma alteração. Comparados com um
grupo de controlos saudáveis, verificou-se
que os doentes do grupo LCIR apresentaram
fosfatase alcalina total mais elevada no sangue
(P < 0,001), e cálcio (P < 0,05), sódio (P <
0,05) e cloro (P < 0,05) urinários
mais elevados (P < 0,05), e pH (P <
0,05) e citrato (P < 0,001) urinário mais
baixo. No grupo LCIR foi identificada
hiperuricosúria (HU) em 56,5% dos casos,
hiperoxalúria (HO) em 45,7%, hipercalciúria
(HC) em 28,5%, hipocitratúria (HipoCit) em
28,5%, hipomagnesiúria (HipoMg) em 5,4%
e baixo volume urinário (VOL) em 24,2%
dos casos. Com excepção da HipoMg e VOL,
todas as restantes alterações foram significativamente mais frequentes no grupo LCIR do
que no grupo de controlo.
Foi observada diminuição da massa óssea
(osteopenia ou osteoporose) na densitometria
de 53/94 doentes com LCIR. As alterações
da densitometria foram mais frequentes no
sexo masculino (38/53 homens e 15/41
mulheres tinham lesão óssea; P < 0,001). Nos
homens verificou-se associação da lesão óssea
com HC (P < 0,05). A HipoCit e o elevado
consumo de proteínas estiveram associados a
diminuição de massa óssea em ambos os sexos.
105
Os marcadores bioquímicos de reabsorção óssea não se
revelaram úteis no estudo da doença óssea
associada à LCIR.
A maioria dos doentes com LCIR apresentava hipertensão arterial (55,4% do total), mas
não identificámos relação directa com a LCIR,
podendo a HTA estar associada a idade mais
avançada e a maior consumo de proteínas.
O estudo dos hábitos alimentares revelou que os doentes com LCIR apresentam
ingestão média de cálcio inferior ao desejável,
não havendo correlação com a sua excreção
urinária. A excreção urinária de cálcio correlacionou-se positivamente com a excreção
de sódio (r=0,366; P < 0,001) e de cloro
(r=0,313; P < 0,001), que estavam também
significativamente mais elevados nos doentes
do grupo LCIR do que no grupo de controlo. O consumo de proteínas foi superior ao
desejável (mediana = 17% do consumo calórico diário; percentil 25 e 75 = 15% e 19%,
respectivamente). Após intervenção dietética
verificou-se redução do número de alterações
urinárias em 57 de 123 doentes que fizeram
inquérito alimentar, facto que reforça o papel
dos factores nutricionais na etiopatogenia da
litíase cálcica.
Concluímos que a LCIR é uma doença frequentemente sub-diagnosticada e
sub-tratada na população portuguesa, sendo o
estudo e tratamento preventivo da recorrência
frequentemente omitidos na prática clínica
corrente. A avaliação metabólica permite a
identificação de alterações na grande maioria
dos casos; a sua realização permite a instituição
de terapêutica médica específica, prevenção
de complicações e correcção de condições
associadas à LCIR num elevado número
de indivíduos afectados por esta doença.
Os hábitos dietéticos parecem ter um papel
importante na etiopatogenia da LCIR nesta
população.
Benedita Aguiar
Docente do ISAVE – Instituto Superior de Saúde do Alto do Ave. Fundadora do GAPAS
– Gabinete de Apoio Psicológico, Acompanhamento e Saúde do ISAVE, mestre em
Psicologia da Saúde – Universidade do Minho; doutoranda em Psicologia Clínica e
107
Psicologia da Saúde e
Promoção
A Psicologia da Saúde: Definições
A Psicologia da Saúde é o conjunto das
contribuições explícitas,educativas/formativas,
científicas e profissionais da Psicologia para a
promoção e manutenção da saúde, prevenção
e tratamento da doença, assim como, relativamente à identificação da etiologia da doença,
com o objectivo de melhorar a prestação de
cuidados de saúde e promover a formação
ou desenvolvimento de uma política sanitária
(Matarazzo, 1980).
A Psicologia da Saúde é o «conjunto das
contribuições específicas, educacionais, científicas e práticas da disciplina de Psicologia,
para a promoção e manutenção da saúde,
prevenção e tratamento da doença e disfunções relacionais» (Matarazzo, 1980:18).
Segundo Ogden (1999) a Psicologia da
Saúde tem dois objectivos centrais. O primeiro
é compreender, explicar, desenvolver e testar
teorias e o segundo é pôr em prática a teoria.
A Psicologia da Saúde tem dado contributos bastante significativos em diversas áreas, directa e indirectamente relacionadas
com a Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma série
de trabalhos no âmbito da representação mental da doença,
adesão terapêutica e relação stress/condição de doença.
108
da Saúde
No primeiro pressupõe-se que a Psicologia
da Saúde avalie o papel do comportamento
na etiologia da doença, seleccione/identifique
os comportamentos prejudiciais para a saúde,
desta forma enquadram o papel da Psicologia
da Saúde na representação e vivência da
doença, e avalie o papel desta área, concretamente ao nível do tratamento da doença.
Relativamente ao segundo objectivo traçado
por Ogden prevê-se que o psicólogo da saúde
promova comportamentos conducentes a
uma melhoria do estado de saúde e previna o
aparecimento da doença.
Deste modo, «a Psicologia da Saúde veio
desafiar a visão corpo-mente, ao propor um
papel para a mente, tanto na causa como no
tratamento da doença» (Ogden, 1999:18).
A Psicologia da Saúde tem dado contributos bastante significativos em diversas áreas,
directa e indirectamente relacionadas com a
109
Saúde. Entre outras áreas destaca-se toda uma
série de trabalhos no âmbito da representação mental da doença, adesão terapêutica e
relação stress/condição de doença. Há ainda
a salientar a descoberta de novos fenómenos
que contribuem para o desenvolvimento de
estudos sobre qualidade de vida (O`Boyle,
McGee & Joyce, 1997; cit. por Johnston,
1997), os estudos sobre variáveis preditivas
de estados de saúde e de doença (Haynes,
Feinleib & Kannel, 1980; Barefoot, Lahlstrom
& Williams, 1983; cit. por Johnston, 1997),
os estudos que incidem na análise da relação
entre variáveis psico-cognitivas e seus efeitos
na saúde (Schwarzer, 1997; cit. por Johnston,
1997), nomeadamente a relação entre factores
emocionais e a competência mental na terceira idade e a relação entre a Psicologia Social
e a Psicologia da Saúde (Conner & Norman,
1996; cit. por Johnston, 1997).
Outros estudos incidem sobre os benefícios
do suporte social (Scott, Klaus e Klaus, 1999),
nomeadamente no que diz respeito à prática
do aleitamento materno (Raphael, 1989), bem
como na prevenção da depressão pós-parto
(Trotter e col., 1992).
Citando alguns trabalhos na área da
Psicologia da Saúde, podemos mencionar: a)
Prevenção das doenças físicas ou fisiológicas
(Odgen, 1999); b) Estudos sobre crenças de
doentes crónicos (Hays e Stewart, 1990); c)
Relação entre suporte social e estado de saúde
(Campero e col. 1998), d) Relação entre a
auto-eficácia e o comportamento aditivo
(DiClemente, 1986); e) intervenção em
grupo na promoção da saúde (Pereira, 2001);
f) Variáveis psicológicas na gravidez (Pereira,
Ramalho & Dias, 2002) e g) Prevenção
primária da toxicodependência: avaliação de
uma intervenção de grupo em crianças com
idades entre os 8-9 anos (Pereira & Moreira,
2000).
Para além destes aspectos dever-se-á focar as
intervenções da Psicologia da Saúde,nomeadamente as que têm um carácter biopsicossocial
e, por isso, multidisciplinar (prevenção da
SIDA, das doenças cardiovasculares, redução
dos sintomas na artrite reumatóide, trabalho
de estratégias de redução do “stress”, entre
outras).
A Psicologia da Saúde tem dado contributos consideráveis no tratamento de
doenças crónicas, na descrição de fenómenos,
no desenvolvimento de técnicas/estratégias de
promoção da saúde e prevenção da doença e
nas relações preditivas em diversos factores e
técnicas de intervenção terapêutica (Johnston,
1997).
Segundo McGinis (1991, cit. por McIntyre,
1994) a agenda de política ao nível da saúde,
nos Estados Unidos, contava com três áreas de
intervenção prioritárias relativas à promoção
da saúde, à protecção da doença e aos serviços preventivos. O Programa Multimodal de
Preparação para o Parto enquadra-se numa
lógica promotora da saúde materno-infantil e
vai ao encontro de um objectivo fulcral dos
psicólogos da saúde que é o de desenvolver
programas comportamentais, no sentido
de incrementar comportamentos de saúde
(McIntyre, 1994). O local onde é proposta
a sua implementação faz parte dos locais de
trabalho do psicólogo da saúde e pressupõe
uma lógica multidisciplinar.
A promoção da saúde visa a melhoria da saúde e a prevenção
da doença, sendo o seu principal foco de atenção a prevenção
das perturbações físicas.
O(s) Conceito(s) de Saúde e Doença
O conceito de saúde induz, constantemente, a diferentes significados sendo, ao mesmo
tempo, um constructo com alguma evolução
histórica e contextual (Millstein, Petersen &
Nighingale, 1991).
Dentro desta evolução histórica e contextual o conceito de saúde adquire vários
significados.
De acordo com Gluck (1994):
«teólogos e filósofos tomam a mente como um
atributo especial dos seres humanos à parte do físico.
Particularmente, desde Descartes, subdividiu-se a
unidade essencial do homem em corpo e mente.Tudo
o que fosse corpóreo podia ser relegado para a ciência,
mas a mente humana, como atributo divino, não
poderia ser submetida a tal escrutínio como o sistema
circulatório (…). Condutas ou modos de pensar
aberrantes eram considerados tecnologicamente como
sinais de ´loucura divina`, ´possessões demoníacas`,
etc. (…). O tratamento podia incluir o exorcismo, a
oração, imolação ou confissão forçada. Os transtornos
da mente eram terreno dos sacerdotes e inquisidores
e o conteúdo da loucura não era interpretado à luz
da história pessoal, mas sim de acordo com o dogma
religioso em voga» (Gluck, 1994:2).
Deste modo, como se pode constatar, o
domínio da mente pertencia à Teologia, até
que este aspecto gerou reacções que se fizeram
sentir aquando do apogeu da Medicina Grega.
Assim sendo, os processos mentais passam a ser
vistos não como influenciados por instâncias
divinas ou demoníacas,mas sim como manifestações de processos corpóreos. Os organicistas,
ao contrário dos idealistas teólogos, centravam
o seu interesse em aspectos fisio-patológicos
observáveis e mensuráveis tendo-se caído
num certo extremo redutor, que prevaleceu
até aos anos 20/ 25 (Ribeiro, 1993).
Nos finais do século XIX e não conseguindo evitar a evolução de descobertas científicas,
o paradigma médico da Antiguidade dá lugar
a uma visão mais focalizada no organismo
humano e nas partes físicas que o constituem.
Denominado de Modelo Biomédico, consi-
110
derava o conceito de saúde como ausência de
doença ou disfunção fisiológica, passando por
um tratamento da doença causada por agentes
infecciosos (Noack, 1987).
No período em que vigorava o Modelo
Biomédico a doença era entendida apenas
na sua dimensão biológica e reduzida a um
processo simples. Deste modo, atribuía-se
maior importância à doença em si, do que
à preocupação revelada pelos danos causados
pela mesma e estabelecia-se uma relação de
poder do médico face ao paciente (Ribeiro,
1993).
111
Este Modelo também pretendia responder
a algumas questões, nomeadamente, O que
causa a doença? Quem é o responsável pela
doença? Como deve ser tratada a doença?
Quem é o responsável pelo tratamento? Qual
é a relação entre saúde e doença? Qual é a
relação mente e corpo? Qual é o papel da
Psicologia na doença e na saúde? (Meyers &
Benson, 1992).
Hipócrates caracterizava a saúde como
sendo um estado de equilíbrio dinâmico
entre componentes psicológicos, biológicos
e ambientais. Por sua vez, a doença caracterizava-se pelo desequilíbrio desta homeostasia.
Esta visão «ecológica» sustentava o organismo
no seu contexto social e ambiental (Noack,
1987;Taylor, 1999).
Engel (1977) salientou a importância do
Modelo Biopsicossocial em detrimento do
Modelo Biomédico. Contudo, na década de
80, as imagens funcionais do cérebro revelamnos detalhes significativamente importantes
da Neurofisiologia. Como se pode constatar
passou-se para um outro extremo em que os
factores psicológicos e sociais da doença são
completamente alienados (Ribeiro, 1993).
Aquando do aparecimento da Organização
Mundial de Saúde – OMS – em 1948, esta
define um novo conceito de saúde mais operacional. Neste sentido define saúde como
Período Pré-cartesiano
Até ao século XVII
Período científico / M. Biomédico
Século XVII: Rev. Industrial
Pens. Científico
• As doenças não são causadas por espíritos malignos, nem
por Deuses;
• A doença tem uma causa natural, que obedece a determinadas leis naturais;
• Medicina afasta-se do soberano e cinge-se à observação
naturalista e ao raciocínio dedutivo;
•A doença poderia resultar do desequilíbrio de quatro
humores ou então do desequilíbrio do meio onde ele está
inserido: o ambiente e o estilo de vida influenciam a saúde;
• Realçou a importância da relação médico – doente.
• Baseia-se no pensamento científico;
• Tem uma visão mecanicista e reducionista do homem e
da natureza;
• O homem é como uma máquina e cada peça constituinte
(os órgãos) é estudada separadamente;
• O organismo é a soma das partes;
• Descartes: o homem é como um relógio; se o relógio se
avaria o homem fica doente;
• Curar a doença = reparar a máquina (Engel, 1977);
• Nasce o modelo Biomédico:
→ Reduz o todo, pela soma das partes;
• O homem deixa de ser o centro das atenções, passando este
a ser as características universais da doença;
• Os factores psicossociais perdem o valor.
“o mais completo bem – estar físico, mental e
social, e não apenas a ausência de doença ou invalidez”. Ao contrário da definição anterior, esta já
inclui a dimensão social e mental de saúde. Perante
esta perspectiva da OMS, outros autores definiram o
conceito de saúde como algo mais flexível em que o
indivíduo saudável era mental e corporalmente equilibrado, bem ajustado ao seu meio físico e social com
controlo total dos seus recursos pessoais» (Sigeist,
1991 cit por Ribeiro, 1994b).
Esta visão do conceito de saúde ultrapassa
a visão reducionista do Modelo Biomédico,
pois a conceptualização de saúde evoluiu
de um Modelo basicamente biológico para
outro que incorpora não só aspectos físicos,
mas também psicológicos e sócio-ambientais.
Assim, a saúde é caracterizada segundo um
Modelo Biopsicossocial (Engel, 1977; Seeman
e col., 1984; Millstein, Petersen & Nightingale,
1993) como uma experiência de bem-estar
pessoal que passa pela sensação de cumprir o
próprio potencial de saúde individual.
O Modelo Biopsicossocial definido por
Engel (1977) representa uma tentativa de
integrar o fisiológico e o meio ambiental
no modelo de Saúde Biomédico tradicional,
aliando os contributos biológicos e os contributos psicológicos da saúde e da doença aos
contributos sociais ligados à saúde. Cada vez
mais, este Modelo tem vindo a ser utilizado
nas áreas de investigação em saúde, concretamente na área da Psicologia da Saúde (Odgen,
1999).
Os termos saúde e doença não são condições estáveis mas sim conceitos vitais sujeitos
a uma constante avaliação e mudança (Engel,
1977). Foi recentemente que o conceito de
doença foi alterado, uma vez que este era
mecanicamente definido como «ausência da
saúde» e a saúde como «ausência da doença».
Estas definições eram reducionistas, na medida
em que descuravam outros aspectos essenciais
na operacionalização do conceito (Ribeiro,
1993).
1ª Revolução em saúde
Século XIX: Desenvolvimento da
saúde pública
2ª Revolução em saúde
Século XX (década de 70)
• Nasce na sequência dos efeitos nefastos que a revolução
industrial teve para a saúde;
• Aumento das doenças com elevada mortalidade;
• Advento da saúde pública, dada a necessidade de mudar os
padrões de comportamento - hábitos e estilos de vida de
grandes massas populacionais;
• Aplicou-se o modelo Biomédico à saúde pública;
• Continuaram a negligenciar-se os factores psicossociais
com impacto nas condições de saúde e de doença.
• A abordagem deixa de ter o seu centro na doença e respectiva prevenção, passando a centrar-se na saúde;
• As doenças com etiologia comportamental tendem a
aumentar no início do século XX (McIntyre, 1994) o que
contribuiu para a necessidade de atender estes factores no
estudo dos conceitos “saúde” e “doença”;
• Outras causas: Ramos (1988)
→ Alterações demográficas;
→ Revolução tecnológica;
• Surgem dois conceitos fundamentais:
→ “Promoção da saúde”;
→ “Estilo de vida”.
Quadro 1 – Marcos na evolução dos conceitos de Saúde e Doença
112
As perspectivas redutoras levaram investigadores e profissionais a descurar os componentes
emocionais e sociais da saúde e da doença
(Bolander, 1998). Por sua vez, definições mais
flexíveis e ecléticas têm em consideração
muitos aspectos causais de doença e manutenção da saúde, bem como factores físicos,
psicológicos e sociais (Seeman e col. 1984).
113
Pode-se entender que a presença ou
ausência da doença é um problema pessoal e
social. Pessoal porque a capacidade individual
para trabalhar, ser produtivo, divertir-se, entre
outras, está relacionada com a saúde física,
mental da pessoa e social, pois a doença pode
afectar o padrão de relacionamentos interpessoais (Odgen, 1999).
De acordo com Meyers e Benson (1992) há
duas concepções distintas que têm marcado a
história da Medicina: a concepção fisiológica
e a concepção ontológica.A primeira concepção foi iniciada por Hipócrates, a qual refere
que o desequilíbrio de forças da natureza é
que origina a doença. A segunda concepção
entende as doenças com «entidades» exteriores ao organismo. Deste modo, procura
classificar os processos de doença, elaborar
um diagnóstico; identificar os órgãos que, por
estarem perturbados provocam determinados
sintomas.
Ribeiro (1993) salienta quatro períodos
na definição de saúde e de doença: período
pré-cartesiano (até ao século XVII); período
científico ou de desenvolvimento do modelo
biomédico (coincide com o desenvolvimento
do pensamento científico e com a resolução
em saúde (século XIX: desenvolvimento de
saúde pública) e segunda Revolução da Saúde
(década de 70).
Aos vários conceitos de saúde postulados
pelos diversos autores, segue-se um novo
paradigma (biopsicossocial) que enfatiza a
realização dos potenciais da saúde para cada
indivíduo. Assim, vamos debruçar-nos sobre a
promoção da saúde no ponto que se segue.
(ver quadro 1).
A promoção da Saúde
A promoção da saúde visa a melhoria da
saúde e a prevenção da doença, sendo o seu
principal foco de atenção a prevenção das
perturbações físicas.
Lalonde (1974; cit. por Ribeiro, 1994) definiu promoção da saúde como «o agregado de
decisões individuais que afectam a vida (do
indivíduo) e sobre as quais tem algum controlo». A Organização Mundial de Saúde definiu
a promoção da saúde como «um aglomerado
de padrões comportamentais (…) que dependem das condições económicas e sociais, da
educação, da idade e de muitos outros factores» (WHO, 1988:14)
Recentemente a promoção da saúde tem
tido um papel mais efectivo e educacional,
concentrando-se na mudança de comportamentos individuais, crenças e atitudes, isto é,
a partir do que se considera determinantes
do comportamento, apostou-se na promoção
de um melhor estado de saúde (Bennet &
Murphy, 1999).
A promoção da saúde tem vindo a evoluir
em diversas áreas, nomeadamente na área da
educacional, económica, ambiental, social e
legislativa, com vista a uma melhoria da saúde
e bem-estar da população (Adler & Matthews,
1994).
A educação (instrumento de promoção da
saúde) para a saúde tem sido caracterizada
como uma actividade promotora da aprendizagem, relacionando a saúde e a doença com
o objectivo de diminuir qualquer factor que
comprometa a saúde do indivíduo e que, por
sua vez, seja permanente para a competência
do mesmo (McGee, 1997). Deste modo, a
aprendizagem de várias experiências permite
a adopção de comportamentos voluntários
à saúde (Adler & Matthews, 1994). Com a
inclusão de outros organismos hierarquicamente superiores é facilitado um alargamento
à população em geral (McGee, 1997).
No decorrer desta perspectiva de carácter
Através dos
profissionais de
saúde, dando-lhes
competências
especializadas,
poder-se-á
concretizar mais
facilmente os
objectivos da
Promoção da Saúde.
social encontram-se duas dimensões bastante
distintas: 1) a regulacionista social que
visa a educação para a saúde suportada pela
estrutura social, promovendo assim a educação
para a saúde modificando a percepção individual e, por sua vez, fornecendo as estratégias
necessárias à alteração do comportamento de
saúde (Caplan, 1993), e a perspectiva estruturalista radical que define más condições
de saúde como o desequilíbrio de poder na
sociedade. Assim, a educação para a saúde
passará por uma reestruturação da sociedade
e dos seus recursos (Caplan, 1993), de modo
a torná-la acessível a todos. Neste contexto,
a Psicologia tem um papel a desempenhar,
designadamente nos programas dirigidos quer
à mudança e promoção individual quer mais
de ordem social (Ribeiro, 1993). A promoção
de comportamentos saudáveis desencadeia
atitudes de prevenção da doença nos utentes.
Através dos profissionais de saúde, dandolhes competências especializadas, poder-se-á
concretizar mais facilmente os objectivos da
Promoção da Saúde.
Kasl e Cobb (1996) definiram três tipos
de comportamentos relacionados com a
saúde: um comportamento de saúde tem
como objectivo impedir o aparecimento de
uma doença; um comportamento de doença
encontra um tratamento, e um comportamento de utente tem como objectivo ficar
saudável. Esta categorização permite tentar
dar resposta a tudo o que se relacione directa
e indirectamente com a doença na medida
da prevenção/intervenção, e com a saúde na
medida da sua promoção.
De um modo mais geral pode dizer-se que
os comportamentos de saúde estão na base
da construção dos principais constructos que
constituem a Psicologia da Saúde e que permitem caracterizar e definir comportamentos de
saúde. Consequentemente, e de acordo com
a Carta de Otawa (1986), a promoção para a
saúde passaria por um processo devidamente
desenvolvido e ajustado, capacitando as pessoas
para aumentarem o seu «locus» de controlo.
Deste modo, controlavam e regularizavam os
114
115
seus comportamentos e estilos de vida mais
saudáveis, indo ao encontro de uma melhoria da sua sanidade física e mental. Como tal,
pode considerar-se que a promoção da saúde
tem como grande objectivo a mudança de
comportamentos, estando estes associados
à adopção de um estilo de vida mais saudável (Ribeiro, 1994). Assim, distingue-se
comportamentos de saúde como sendo um
conjunto de atitudes cujo objectivo é impedir
uma doença (Kals & Cobb, 1996), estando
relacionados com a protecção do estado de
saúde do indivíduo (Matarazzo, 1984). Estes
comportamentos podem ser prejudiciais para
a saúde (comportamentos patogénicos) ou
de protecção para a saúde (comportamentos
imunogénicos) (Matarazzo, 1984).
Caracterizando os focos de intervenção, a
expressão «condições de vida» permitiu que
a definição de «promoção da saúde» ultrapassasse factores estritamente comportamentais
observáveis em geral durante o relacionamento interpessoal básico, para se prender a uma
teoria de interacção mais complexa dentro
do meio ambiente social em que o conjunto
de normas sociais definiu um «estilo de vida».
Assim a «promoção de saúde» alargou-se a
uma combinação de dimensões ambiental,
educacional, social, individual (Caplan, 1993).
Associado ao tema da promoção para a
saúde está o estilo de vida, que tem sido reconhecido como um «distinto e reconhecível
modo de vida» (Carta de Otawa, 1986), isto
para se alcançar um estado adequado de bemestar físico, mental e social. Assim, o estilo de
vida caracteriza-se por comportamentos devidamente sustentados e postos em prática pelo
indivíduo de modo controlado e frequente
com vista à promoção do seu estado de
saúde, reduzindo a probabilidade de doença.
Deste modo, o seu bem-estar físico, psíquico
e social entrariam em fase de equilíbrio. Iria,
pois, ao encontro do postulado pelo Modelo
Biopsicossocial, em que o potencial do indivíduo e do meio conduziam a comportamentos
adequados à manutenção do bem-estar pessoal
(Engel, 1977).
Não caindo em reducionismos, a Psicologia da Saúde procura
desencadear mudanças de comportamentos, designadamente
ao nível individual, enquanto que a promoção da saúde visa
provocar mudanças do comportamento organizacional, crenças
em saúde e oportunidades de aprendizagem.
A promoção da saúde é um investimento essencial visto que a saúde é um direito
fundamental do ser humano e um factor indispensável para o desenvolvimento económico
e social. Tem vindo a ser considerada, cada
vez mais, como um elemento para conseguir
ganhos em saúde. É um processo que visa
aumentar a capacidade individual para um
maior controlo e melhoria da sua preparação
para a saúde. Assim, investindo e intervindo
na saúde, está-se a contribuir para os ganhos
em saúde, reduzir as desigualdades, promover
os direitos do ser humano e contribuir para o
desenvolvimento social, tendo como objectivo
final aumentar as expectativas de vida saudável
(4ª Conferência Internacional, 1997, Jacarta).
As estratégias de promoção da saúde podem
descrever e mudar estilos de vida e para atingir
este patamar é necessário estabelecer protocolos públicos e saudáveis, criar ambientes
favoráveis à saúde e reforçar a acção comunitária (Carta de Otawa, 1986). Actualmente,
existe uma forte tendência para considerar as
abordagens globais de desenvolvimento da
saúde as mais efectivas, os ambientes específicos oferecem possibilidades correctas para
a implementação de estratégias globais; a
participação é indispensável para sustentar
reforços e a aprendizagem em saúde favorece
a participação. Estas estratégias são fundamentais para a promoção da saúde nos nossos dias.
Ribeiro (1993) sublinha a promoção da saúde
como uma aliança entre apoios educacionais
e ambientais para alcançar objectivos com
vista à saúde das pessoas. Tudo isto passa pela
criação de condições ecológicas e pela intervenção dos órgãos de soberania e da sociedade
civil para uma optimização e mudança de
comportamentos e atitudes face à saúde.
Para além de promover estas práticas,
surgem, ainda, novas propostas para o futuro:
promover a responsabilidade social no que
diz respeito à saúde, reforçar os investimentos
para o desenvolvimento em saúde, consolidar
e expandir as parcerias em saúde, aumentar a
capacidade da comunidade e do indivíduo e
garantir uma infra-estrutura para a promoção
da saúde.Todos os países devem dar condições
116
políticas, jurídicas, pedagógicas, económicas
e sociais para a promoção da saúde, apelando
para a acção em parceria com a Organização
Mundial da Saúde (WHO, 1994).
Não caindo em reducionismos, a Psicologia
da Saúde procura desencadear mudanças de
comportamentos, designadamente ao nível
individual, enquanto que a promoção da
saúde visa provocar mudanças do comportamento organizacional, crenças em saúde
e oportunidades de aprendizagem. No
decorrer desta linha de pensamento evidencia-se a importância do desenvolvimento de
programas de promoção da saúde em diver117
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a ajuda de pessoal especializado, através de um
conjunto de contribuições educacionais, científicas e profissionais da Psicologia da Saúde
para a promoção e a manutenção da saúde, a
prevenção e tratamento de doenças, a identificação da etiologia e dos correlatos de saúde,
doença e função relacionados, bem como
com a melhoria da saúde (Matarazzo, 1980),
juntamente com a participação de Entidades
hierarquicamente superiores promover-se-á
mudanças no comportamento da sociedade
em geral.
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Os programas de preparação para o parto
constituem um exemplo ilustrativo de programas de promoção da saúde (Becerro de
Bengoa Callau, 1987).Tal como refere Spinelli
e Endicott (2003) os programas de preparação
para o parto, especialmente os que têm uma
componente multidisciplinar, contribuem
para minimizar o risco da depressão pré-natal
e, por conseguinte, da depressão pós-parto,
sendo que de acordo com os autores em questão, há uma correlação positiva entre ambas.
Consideram, igualmente, que sendo programas de promoção da saúde, deverão incidir
sobre grupos de riscos (grávidas com maior
número de stressores; com problemas financeiros e/ou habitacionais e com inadequado
suporte social), de uma forma particular. É
importante, igualmente, o incentivo à prática
do aleitamento materno, neste tipo de intervenções de promoção da saúde, em especial
nas primíparas (Granzoto, 1992).
De acordo com Matarazzo (1980), em algumas destas intervenções há a contribuição de
profissionais de várias áreas (especificamente
nos programas multidisciplinares), que objectivam a promoção e manutenção da saúde ao
longo do ciclo gravídico-puerperal,idealmente
na mulher e companheiro. Ao serem implementadas em Unidades de Saúde – entidades
hierarquicamente superiores – poder-se-á
favorecer mudanças no comportamento de
outras pessoas, nomeadamente de profissionais
de saúde, utentes e outros.
118
118
Síndrome
A incessante procura de conhecer o
ser humano, leva a uma busca por
parte dos cientistas à necessidade de
descobrir o processo psicológico do
próprio Homem.
A Síndrome de Asperger é uma
desordem pouco comum, contudo
importante na prevenção do processo
psicológico de crianças, que tardimen-
de
te é diagnosticado devido à falta de
conhecimento por parte dos profissionais, nomeadamente dos professores e
educadores. Esta síndrome é uma categoria bastante recente na divulgação
científica e encontra-se em uso geral
nos últimos 15 anos.
Este trabalho visa alguma informação
acerca desta síndrome, visto que já por
Asperger
várias vezes foi confundida com uma
Perturbação Obsessivo – Compulsiva,
Depressão, Esquizofrenia, etc. Porém,
não apresentam qualquer atraso significativo de desenvolvimento de fala ou
cognitivo, podendo até mesmo passar
a vida toda sendo apenas consideradas
pessoas estranhas para os padrões
típicos de comportamento.
Embora essas pessoas não tenham um
atraso significativo no desenvolvimento
cognitivo, é importante que a criança
receba educação especializada o mais
cedo possível para auxiliar o indivíduo
a contornar os problemas de comportamento que apresenta e também
para ajudar a direccionar os campos de
interesse e de estudo da criança.
119
Paulo Teixeira
120
Licenciado em Psicologia pela Universidade Lusíada
do Porto, Portugal, 2005
A Síndrome de Asperger é o nome dado a
um grupo de problemas que algumas crianças
(e adultos) têm quando tentam comunicar com
outras pessoas.
Esta Síndrome foi identificada em 1944,
mas só foi oficialmente reconhecida como
critério de diagnóstico no DSM-IV em 1994.
Como resultado, muitas crianças foram mal
diagnosticadas com síndromes como Autismo,
Perturbação Obsessivo – Compulsivo, etc.
Ao longo dos tempos muitos foram os
termos utilizados para definir esta síndrome,
gerando grande confusão entre pais e educadores. Síndrome de Asperger é o termo aplicado
ao mais suave e de alta funcionalidade daquilo
que é conhecido como o espectro de desordens pervasivas (presentes e perceptíveis a todo
o tempo) de desenvolvimento (espectro do
Autismo).
Esta síndrome parece representar uma
desordem neurobiológica que é muitas vezes
classificada como uma Pervasive Developmental
Disorders (PDD). É caracterizada por desvios
e anormalidades em três amplos aspectos do
desenvolvimento: interacção social, uso da
linguagem para a comunicação e certas características repetitivas ou perserverativas sobre um
número limitado, porém intenso, de interesses.
Apesar de existirem algumas semelhanças
com o Autismo, as pessoas com Síndrome de
Asperger geralmente têm elevadas habilidades
cognitivas (pelo menos Q.I. normal, às vezes
indo até às faixas mais altas) e por funções de
linguagem normais, se comparadas a outras
desordens ao longo do espectro.
Apesar de poderem ter um extremo comando da linguagem e vocabulário elaborado, estão
incapacitadas de o usar em contexto social e
geralmente têm um tom monocórdico, com
alguma nuance e inflexão na voz.
Crianças com Síndrome de Asperger, podem
ou não procurar uma interacção social, mas têm
sempre dificuldades em interpretar e aprender
as capacidades da interacção social e emocional
com os outros.
Hosbon (1995), postulou que crianças com
SA (Síndrome de Asperger) têm incapacidade
para interagir emocionalmente com os outros,
portanto a criança com Autismo não recebe as
experiências sociais necessárias para desenvolver
as estruturas cognitivas para a compreensão.
Baron – Cohen e colegas (1993), indicam
que as primeiras experiências são as cognitivas.
As teorias destes autores sobre a mente são basea­
das na ideia de que as crianças com Autismo
falham no desenvolvimento da compreensão
de que a mente e o estado mental relata o
comportamento.
A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de problemas
que algumas crianças (e adultos) têm quando tentam comunicar
com outras pessoas.
Taer – Flusberg (1993), indicam que crianças
com Autismo não desenvolvem uma compreensão de que a linguagem e comunicação
existe para troca de informação.
Muitos pesquisadores acham que há duas
áreas de relativa intensidade que distinguem
as SA de outras formas de Autismo e PDD
e concorrem para um melhor prognóstico
em SA. Não chegaram a consenso se existe
alguma diferença entre as SA e o Autismo de
Alta Funcionalidade (AAF). Alguns pesquisadores sugerem que o défice neuropsicológico
básico é diferente para as duas condições, mas
outros não estão convencidos de que alguma
distinção significativa possa ser feita entre os
dois. (Bauer, 1995)
Epidemiologia
Os melhores estudos que têm sido
conduzidos até agora sugerem que SA é
consideravelmente mais comum que o
Autismo clássico. Enquanto que o Autismo
tem tradicionalmente sido encontrado à taxa
de 4 a cada 10 mil crianças, estima-se que a
Síndrome de Asperger esteja na faixa de 20
a 25 por 10 mil. Isto significa que para cada
caso de Autismo, as escolas devem esperar
encontrar diversas crianças com o quadro SA.
(Bauer, 1995)
Todos os estudos concordam que a Síndrome
de Asperger é muito mais comum em rapazes
do que em raparigas.A razão para isso é desconhecida. SA é muito comummente associada
com outros tipos de diagnóstico, novamente
por razões desconhecidas, incluindo: tics como
a desordem de Tourette, problemas de atenção
e de humor como a depressão e ansiedade.
Em alguns casos há um claro componente
genético, onde um dos pais (normalmente o
pai) mostra ou o quadro SA completo ou pelo
menos alguns traços associados ao SA; factores
genéticos parecem ser mais comuns em SA do
que no Autismo clássico. (idem)
Contudo uma coisa é certa, SA não é causada pela má educação dos pais ou problemas
de família! Infelizmente muitos pais sentem-se
culpados por uma desordem neurobiológica
que não é culpa deles.
121
Definição
O novo critério do DSM-IV para diagnóstico de SA, inclui a presença de:
122
A – Particularidades qualitativas na
interacção social, envolvendo alguns ou
todos de entre:
• uso de peculiaridade no comportamento
não-verbal para regular a interacção social;
• falha no desenvolvimento de relações com
pares da sua idade;
• falta de interesse espontâneo em dividir
experiências com outros;
• falta de reciprocidade emocional e social.
B – Padrões restritos, repetitivos e
estereotipados de comportamento, interesses e actividades envolvendo:
• preocupação com um ou mais padrões de
interesse restritos e estereotipados;
• inflexibilidade a rotinas e rituais não
funcionais específicos;
• maneirismos motores estereotipados ou
repetitivos, ou preocupação com partes de
objectos.
De acordo com o DSM-IV os critérios para
se poder diagnosticar a Síndrome de Asperger
são: (ver Quadro 1).
Quadro 1
Critérios Diagnósticos para F84.5
A. Prejuízo qualitativo na interacção
social, manifestado por pelo menos dois dos
seguintes quesitos:
(1) prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais
como contacto visual directo, expressão
facial, posturas corporais e gestos para regular a interacção social.
(2) fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de
desenvolvimento com seus pares.
(3) ausência de tentativa espontânea de
compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (por ex., deixar
de mostrar, trazer ou apontar objectos de
interesse a outras pessoas).
(4) falta de reciprocidade social ou
emocional.
B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e
actividades, manifestados por pelo menos
um dos seguintes quesitos:
(1) insistente preocupação com um ou
mais padrões estereotipados e restritos de
interesses, anormal em intensidade ou foco.
Cristopher Gillberg, propõe seis critérios, sendo apenas aqui referidos quatro,
para o diagnóstico que capturam o estilo
único dessas crianças e que incluem:
- 299.80 Transtorno de Asperger
(2) adesão aparentemente inflexível a
rotinas e rituais específicos e não funcionais.
(3) maneirismos motores estereotipados
e repetitivos (por ex., dar pancadinhas ou
torcer as mãos ou os dedos, ou movimentos
complexos de todo o corpo).
(4) insistente preocupação com partes de
objectos.
D. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na linguagem (por ex.,
palavras isoladas são usadas aos 2 anos, frases
comunicativas são usadas aos 3 anos).
E. Não existe um atraso clinicamente
significativo no desenvolvimento cognitivo
ou no desenvolvimento de habilidades de
auto-ajuda apropriadas à idade, comportamento adaptativo (outro que não na
interacção social) e curiosidade acerca do
ambiente na infância.
F. Não são satisfeitos os critérios
para um outro Transtorno Invasivo do
Desenvolvimento ou Esquizofrenia.
1 – Isolamento social, com extremo egocentrismo, que pode incluir:
• falta de habilidades para interagir com os
pares;
• apreciação pobre da trança social;
• respostas socialmente inapropriadas.
2 – Há interesses e preocupações limitadas:
• mais rotinas que memorizações;
­• relativa exclusividade de interesses.
3 – Há rotinas e rituais que podem ser:
­• auto-impostos;
• impostos por outros.
4 – Há problemas na comunicação nãoverbal como:
• uso limitado de gestos;
• linguagem corporal desajeitada;
• expressões faciais limitadas ou impróprias;
• olhar fixo peculiar;
• dificuldades de ajuste a proximidade física.
123
Características clínicas
O mais óbvio marco da Síndrome de
Asperger, e a característica que faz dessas
crianças tão únicas e fascinantes, é a sua peculiar idiossincrática área de interesse especial. Em
contraste com o mais típico Autismo, onde os
interesses são mais para objectos ou parte de
objectos, na SA os interesses são mais frequentes por áreas intelectuais específicas. (Bauer,
1995)
124
Quando as crianças entram para a escola, ou
mesmo antes, elas mostrarão interesse obsessivo
numa determinada área como a matemática,
aspectos de ciência, leitura (alguns têm histórico de hipelexia – leitura rotineira em idade
precoce) ou algum aspecto de história ou
geografia, querendo aprender tudo quanto for
possível sobre o objecto e tendendo a insistir
nisso em conversas e jogos livres. (Idem)
Voltando à descrição de Hans Asperger em
1944, a área de transportes tem parecido ser de
especial atenção.
Embora os sintomas comportamentais do
Síndrome de Asperger sejam bem estabelecidos, muito pouco é sabido sobre as raízes
neurobiológicas da desordem. Alguns estudos
mostraram que os povos diagnosticados com
Autismo têm anormalidades nos lobos frontais
e parietais.
Os investigadores usaram uma técnica
chamada ressonância magnética por emissão
de protões (ou “ 1 H-Sra.”, porque “ 1 H” é o
símbolo químico para um protão).Este método
mede a concentração metabólica do cérebro
(da “ruptura produtos para baixo”) envolvidos
na produção de energia. A concentração de
medição do metabolismo dá aos investigadores um retrato total do estado dos neurónios
numa área particular do cérebro.
Uma outra característica de SA é a deficiente socialização e isso também tende a ser algo
diferente do que se vê no Autismo. Embora
crianças com SA sejam frequentemente cono-
tadas pelos pais e professores como estando no
seu próprio mundo, elas raramente são distantes
como as crianças com Autismo. (Bauer, 1995)
Em geral, a proporção de casos de Autismo
atribuíveis a afecções clínicas específicas é
relativamente baixa.A relação, particularmente
uma relação causal, de outras afecções clínicas
com o Autismo é complexa. Muitas vezes, os
relatos iniciais de tais associações baseiam-se
em relatos de casos, e não em estudos controlados ou em amostras com base epidemiológica.
Por exemplo, a impressão de uma forte relação
entre Autismo e rubéola congénita teve de ser
modificada quando se tornou aparente que
tais casos tendiam a tornar-se menos semelhantes ao Autismo com o passar do tempo e
que pelo menos uma parte dessa semelhança
estava relacionada ao comprometimento
sensorial e à severa deficiência mental exibida.
In neuro Psico News, 2000.
Todos os estudos concordam
que a Síndrome de Asperger é
muito mais comum em rapazes
que em raparigas. A razão para
isso é desconhecida.
Para estudos de afecções clínicas associadas
ao Autismo, a pergunta crítica não é se já foram
observadas associações, mas se a associação é
maior do que seria de se esperar, dada a taxa
do transtorno na população geral. As taxas de
afecções clínicas relatadas que poderiam relacionar-se casualmente com o Autismo têm
variado amplamente, dependendo de vários
factores. (Idem)
Gillberg e Coleman (1996) relataram taxas
de tais afecções clínicas que se aproximam
de 25%, enquanto Rutter e colegas (1994)
sugerem que 10% é uma percentagem mais
representativa. Os dados não parecem sugerir
mais que associações casuais do Autismo com
O Treino de Competências Sociais é um dos mais importantes
componentes do programa de tratamento.
Síndrome de Down, a rubéola congénita, a
paralisia cerebral, a fenilcetonúria e a nurofibromatose. (Idem)
Por outro lado, tanto a Síndrome do X
frágil quanto a esclesose tuberosa ocorrem
em pessoas com Autismo, em taxas mais altas
do que seria de esperar numa base casual.
Aproximadamente uma em 100 pessoas com
Autismo exibe a anomalia do X frágil. A taxa
de Autismo na esclerose tuberosa também é
elevada. (Idem)
Crianças com deficiências congénitas
(como cegueira ou surdez) podem apresentar
uma questão de possível Autismo em virtude
de movimentos não comuns ou dificuldades
de linguagem, mas geralmente não são preenchidos os requisitos completos para o Autismo.
(Idem)
Os estudos post-motem em pessoas com
Autismo demonstraram uma forte evidência
de patologia no cérebro. Tomografia Axial
Computorizada e Ressonância Magnética
mostraram certas anormalidades no córtex
cerebral, cerebelo e nos ventrículos do cérebro.
Contudo, essas anormalidades não são consistentes. Estudos de neuroimagem, tais como
Positron EmissionTomography (PET) e Single
Photon Emission Tomography (SPECT)
também não demonstraram qualquer anormalidade. Provavelmente, a anormalidade é
muito subtil para ser projectada através das
técnicas de investigação correntemente aplicáveis.
Tratamento
Devido ao facto de a Síndrome de Asperger
ser relativamente recente no desenvolvimento
da Psicologia e Psiquiatria, muitas das abordagens ainda estão em fase inicial e muito
trabalho ainda necessita de ser feito nesta área.
É óbvio para todos que quanto mais cedo
o tratamento começar melhor será a sua
recuperação. Isto implica tratamento a nível
psicoterapêutico, a nível educacional e social.
O Treino de Competências Sociais é um dos
mais importantes componentes do programa
de tratamento. Crianças com esta síndrome
podem ser ajudadas na aprendizagem social
através de psicólogos preparados. A linguagem
corporal e a comunicação não-verbal podem
ser ensinadas da mesma maneira que se ensina
uma língua estrangeira.
As crianças conseguem aprender a como
interpretar expressões não-verbais, emoções e
interacções sociais. Este procedimento assisteas nas interacções sociais e aproximações com
as pessoas, prevenindo assim o isolamento e
depressão que geralmente ocorre assim que
entram na adolescência.
Os adolescentes podem, algumas vezes,
receber benefícios através do grupo terapêutico e podem ser ensinados a usar a mesma
linguagem que as pessoas da sua idade.
Porque as crianças com SA podem-se
diferenciar em termos de Q.I. e níveis de
habilidades, as escolas devem ter programas
individualizados para essas crianças. Os profes-
125
126
sores devem estar atentos às necessidades
especiais que estas crianças precisam, o que
geralmente não acontece, pois elas precisam
de maior apoio que as restantes crianças.
terapeuta da fala na escola pode ser bastante
útil como consultores para o resto do staff,
sugerindo caminhos para endereçar problemas
em áreas como linguagem pragmática. (Idem)
O mais importante ponto de partida para
ajudar os estudantes com SA a funcionar
efectivamente na escola é que o staff (todos
que tenham contacto com a criança) compreenda que a criança tem uma desordem de
desenvolvimento que a leva a comportar-se
e a responder de forma diferente dos demais
estudantes. Muito frequentemente o compor-
É sempre necessário ter especial atenção a
este tipo de situações, uma vez que só tardiamente existe alertas por parte dos profissionais
para este mesmo facto. É de salientar, tal como
foi dito anteriormente, o alerta por parte dos
profissionais da educação é relevante, bem
como a colaboração do próprio staff.
Muitas crianças e adultos com Síndrome de Asperger não precisam de
algum tipo de fármacos, enquanto noutros, para serem tratados somaticamente, são utilizados os psicofármacos para tratar os problemas de
crianças com Síndrome de Asperger, uma vez que não existem fármacos
específicos para esta desordem.
tamento dessas crianças é interpretado como
emocional ou manipulativo ou alguns termos
que confunde a forma como eles respondem
diferentemente ao mundo e seus estímulos.
Dessa compreensão segue que o staff da escola
precisa individualizar a sua abordagem para
cada uma dessas crianças; não funciona tratálos da mesma forma que os outros estudantes.
(Bauer, 1995)
O próprio Asperger compreendeu a importância central da atitude do professor no seu
próprio trabalho com crianças. Ele escreveu
em 1944: «estas crianças frequentemente mostram
uma surpreendente sensibilidade à personalidade do
professor (…) E podem ser ensinados, mas somente por aqueles que lhes dão verdadeira afeição e
compreensão. Pessoas que mostrem delicadeza e, sim,
humor. (…) A atitude emocional básica do professor influencia, involuntária e inconscientemente, o
humor e o comportamento da criança.» (Idem)
Embora seja sabido que muitas crianças
com SA possam ser administradas em classes
regulares, elas frequentemente precisam de
algum suporte educacional. Serviços de fonoaudiologia podem ser desnecessários, mas um
Existem alguns princípios que devem ser
seguidos para crianças com este tipo de desordem, tais como:
­• as rotinas de classe devem ser mantidas tão
consistentes, estruturadas e previsíveis quanto
possível. Crianças com SA não gostam de
surpresas. Devem ser preparadas previamente,
para mudanças e transições, inclusive as relacionadas a paragens de agenda, dias de férias,
etc.;
• as regras devem ser aplicadas cuidadosamente. Muitas dessas crianças podem ser
nitidamente rígidas quanto a seguir regras
quase que literalmente. É útil expressar as
regras e linhas mestre claramente, de preferência por escrito, embora devam ser aplicadas
com alguma flexibilidade;
­• o staff deve tirar toda a vantagem das áreas
de especial interesse quando leccionado. A
criança aprenderá melhor quando a área de
alto interesse pessoal estiver na agenda. Os
professores podem conectar criativamente
as áreas de interesse como recompensa para
a criança por completar com sucesso outras
tarefas em aderência a regras e comportamentos esperados;
­• muitas crianças respondem bem a estímulos visuais: esquemas, mapas, listas, figuras,
etc. Sob esse aspecto são muito parecidas com
crianças com PDD e Autismo;
• tentar ensinar baseado no concreto. Evitar
linguagem que possa ser interpretada erroneamente por crianças com SA, como sarcasmo,
linguagem figurada confusa, etc. Procurar
interromper e simplificar conceitos de linguagem mais abstractos;
• ensino didáctico e explícito de estratégias
pode ser muito útil para ajudar a criança a
ganhar proficiência em “funções executivas”
como organização e habilidades de estudo;
­• tentar evitar luta de forças. Essas crianças
frequentemente não entendem demonstrações rígidas e teimosos se forçados. O eu
comportamento pode ficar rapidamente fora
de controle, e nesse ponto é normalmente
melhor para o terapeuta interromper e deixar
esfriar. É sempre preferível, se possível, antecipar essas situações e tomar acções preventivas
para evitar a confrontação através de serenidade, negociação, apresentação de escolhas ou
dispersão de atenção. (Bauer, 1995)
As abordagens psicoterapêuticas com
enfoque na terapia comportamental, a
aprendizagem de competências sociais são
mais efectivas do que as terapias centradas na
emoção, que pode ser bastante desconfortável
ou stressante para estas crianças.
Aconselhamento e psicoterapia são bastante
importantes pois ajuda as crianças a arranjar
estratégias de coping para a situação de estarem socialmente em desvantagem. Saliento
assim, instrução e treino parental, intervenção
educacional, treino de competências sociais,
etc.
Muitas crianças e adultos com SA não
precisam de algum tipo de fármacos, enquanto noutros, para serem tratados somaticamente,
são utilizados os psicofármacos para tratar os
problemas de crianças com SA, uma vez que
não existem fármacos específicos para esta
desordem.
Muitos dos fármacos usados no tratamento de PDD tal como o Autismo, são usados
para tratar também a SA, tais como: Ritalin,
Addrerall, Paxil, Prozac, Risperal, entre outros.
Temos ainda Desipramina e Nortiptylina
(antidepressivos tricíclicos), estabilizadores de
humor (Valproate, Lítio), beta – bloqueadores
(Nadolol, Clonidina), temos ainda a Fluoxetina
e a Clomipramina, entre outros.
Tal como a maioria dos psicofármacos, estes
têm efeitos secundários e o risco de adição
pode ir contra o processo terapêutico e é
necessário ter em atenção esse processo, pois
o risco é maior em crianças.
Referências
American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and
Statistical Manual of mental Disorders. 4ª ed. Washington,
DC: Autores.
Baron – Cohen, S. (1993). From attention – goal psychology
to belif-desire psychology: the development of a theory of
mind ant its dysfunction. In Understanding other Minds.
Perspectives from Autism (eds. S. Baron – Choen, H. Tager
– Flusberg & D. J. Cohen). Oxford: Oxford University
Press.
Bauer, S. (1995). Asperger Syndrome – trought the lifespan.
New York, The developmental unit, Genesee Hospital
Rochester.
Hosborn, R. (1995). Autism and the Development of Mind.
Hove: Lawrence Erlbaum.
Tager – Flusberg, H. (1993). What language reveals about
the understanding of minds in children with autism. In
Undestanding Other Minds. Perspectives from Autism (eds.
S. Baron – Cohen, H. Tiger – Flusberg, & D. J. Cohen).
Oxford: University Press.
Outras referências
www.neuropsiconews.com
www.psychnet-uk.com
www.nativeremedies.com
127
Walter Osswald
Ética de terapêuticas
e cultura da sociedade
moderna contemporânea
Manuel Sobrinho Simões
O cancro é um clone anormal
de nós mesmos
Entrevista
Denise Araújo, Flora Correia
128
Nutrição na síndrome de
hiperactividade/défice de
atenção
A síndrome de hiperactividade / défice
de atenção afecta actualmente milhões de
crianças e adultos em todo mundo. Definida
de forma controversa pelo complexo aglomerado de sintomas psico-comportamentais
envolvidos, o seu diagnóstico é ainda empírico e limitado pela inexistência de exames
clínicos categóricos, capazes de correlacionar
de forma inequívoca os sintomas manifestos.
Sendo uma síndrome multideterminada
e complexa, necessita de uma abordagem
terapêutica multifacetada.
Ilda Abreu, Helena Ribeiro e Manuela Oliveira
Alergénios na atmosfera
Nos últimos anos, na maioria dos países
industrializados, as doenças respiratórias
provocadas por partículas biológicas têm
vindo a aumentar significativamente em
número e severidade. A inalação de grãos
de pólen e esporos fúngicos pode provocar
sérios riscos para a saúde humana. A monitorização destas partículas na atmosfera pode
melhorar as condições de vida das pessoas
mais sensíveis às alergias.
Conceição Antunes Domingues
Formação em educação
para a saúde: estudo com
profissionais de enfermagem
Tem-se assistido nas últimas décadas ao
desenvolvimento de métodos de manutenção
de promoção da saúde e do bem-estar das
pessoas. A Educação para a Saúde (EPS) insere-se nesse contexto e constitui o domínio
do estudo exploratório, do tipo qualitativo e
quantitativo, realizado junto de profissionais
de enfermagem nas instituições de referência
da cidade de Braga. Os resultados revelam,
entre outros, a existência de percursos
académicos/formativos e de perfis da personalidade profissional pouco congruentes com
as existências da carreira e das actividades dos
enfermeiros na actualidade, em especial em
EPS.
Sérgio Aires Gonçalves
Proporção de utilização
das diferentes classes
de anti-hipertensores na
comunidade em Vila do
Conde, no ano de 2001: um
estudo piloto
A hipertensão arterial é um factor de
risco cardiovascular prevalente e modificável.
Existe um número crescente de fármacos no
mercado para o tratamento da hipertensão.
Vítor Coutinho
Álcool e alergia – uma
questão de sensibilidade e
(mau)gosto
129

Documentos relacionados