Esperança sem Teologia

Transcrição

Esperança sem Teologia
ESPERANÇA
«Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!».1
Começamos esta reflexão acerca da esperança com uma citação
duríssima de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, que nos situa
imediatamente no campo do absoluto daquilo que está em causa quando se
fala de esperança. Temos vivido, vamos vivendo, e não é apenas agora –
este nosso agora é onde nós estamos e onde nos dói –, de um modo débil o
absoluto do acto que nos põe, absolutamente, em cada instante, contra o
possível, também em cada instante e também absoluto, nada de nós
próprios, e, connosco, de tudo, de todo o ser, na forma, única, do sentido,
do «logos», que isto que sou é e que é tudo comigo na forma do acto do
espírito. E não há outro acto, não para nós.
Como diz o Poeta, no mesmo poema, umas linhas mais à frente, à
parte esta memória lógica, em acto em nós ou em outros que nos tenham
presentes: «Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.» (ibidem, p.
24). A esperança é, muito agostiniana e paulinamente, modificando uma
expressão de Vieira, a memória do futuro, na forma do sentido absoluto do
também absoluto de sua possibilidade. Deste ponto de vista, a esperança é
tudo.
1
PESSOA Fernando, Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Ática, 1980, Poema «Se te queres matar, porque não te queres matar?», p. 22. 1 É tudo, pois é a forma lógica humana do poder-ser do futuro como
presença semântica em cada pessoa. Sem esta presença, semanticamente, a
pessoa não é possível e sabe-o. Não há, sequer, uma anterioridade lógica ou
ontológica da pessoa, do ser da pessoa, relativamente à esperança: são
absolutamente
coincidentes.
Prolepticamente,
no
acto
que
sou
presentemente, eu sou a esperança que em mim existe de, em absoluto,
poder ser.
Sem este absoluto de esperança, que coincide, no mais fundo do meu
ser, com a minha própria possibilidade metafisicamente entendida, não há
propriamente um eu. A esperança é, assim, a forma estrutural
transcendental metafísica da possibilidade da pessoa. Sem ela, aplica-se e
realiza-se o que o verso irónico de Campos põe: sem esperança, o ser
humano já está morto, é, quando muito, numa outra expressão de Pessoa,
um «cadáver adiado».
Como, prolepticamente, a pessoa é o seu absoluto poder-ser, isto é, em
última instância, Deus, metafisicamente entendido, não é de surpreender
que Deus seja a esperança em termos transcendentais e também
transcendentes. É esta a razão profunda pela qual a própria religião fala de
Deus como a esperança, é esta a razão profunda pela qual não pode haver
esperança sem Deus ou ilusão de esperança sem um «deus qualquer».
A
fórmula
anteriormente
aludida
«Mais
nada,
mais
nada,
absolutamente mais nada» consegue dar, de uma forma literária, o sentido
daquilo que é exactamente a absoluta ausência de sentido, que não é
racionalmente pensável, mas é poeticamente intuível. É para esta intuição
que este verso nos abre o espírito, espírito que é precisamente a realidade
que nega isso para que o verso aponta. Mas que é isso para que o verso
aponta?
2 Para o absoluto do nada.
Não se trata do absoluto da morte como algo de transitório, ou para a
fraca ideia de um adormecimento límbico, mas para a possibilidade da
aniquilação do que sou como, irredutivelmente, acto de «logos», acto
espiritual. Não é só para o absoluto divino que é válida a expressão joanina
«no princípio, era o “logos”», também para a pessoa humana o seu
princípio absoluto é um princípio lógico: é o absoluto de minha
possibilidade como coisa espiritual que me ergue como pessoa, não as
moleculazinhas, os atomozinhos ou as particulazinhas do que, sem «logos»,
é indiscernível de um cadáver. Este cadáver faz parte do tal «absolutamente
mais nada».
Sendo assim, a esperança só assume pleno sentido quando posta na
sua relação fundamental com a possibilidade da aniquilação. Isso que
esperamos é não ser aniquilados, o mais é irrisório, vaidade das vaidades.
Por tal, pode São Paulo falar da vanidade de tudo se Cristo não ressuscitou:
é que, se Cristo não ressuscitou, foi aniquilado, e, se Cristo foi aniquilado,
todos o seremos e tudo se resume a «absolutamente mais nada».
É mesmo angustiante. E é-o porque põe em causa o nosso acto, que é
toda a riqueza que possuímos. A grandeza própria da esperança só se
entende, assim, no contraste com a sua antítese absoluta que é a morte
como aniquilação.
Podemos, então, dizer que a esperança é o sentido lógico próprio da
vida como absoluto de sua possibilidade.
A plenitude da esperança é a plenitude da vida em acto que antegosta
a sua possível plenitude sem obstrução possível, a sua eterna e
metafisicamente ilimitada possibilidade própria. Esta eterna possibilidade
3 é, metafisicamente, Deus. De novo, percebemos que, no limite, a esperança
é Deus, na forma da possibilidade que nos outorga.
Mas a esperança não é apenas este acto duplo do que sou e do que sei
que posso vir a ser e do que esta possibilidade é como acto de possibilidade
minha em Deus: é também, a relação entre ambas. Ora, esta relação assume
quer o carácter da marca absoluta do acto do criador em mim quer a marca
da continuidade da presença do acto do criador em mim. A esperança é,
assim, absoluto de possibilidade como acto primeiro de criação, que
permite todo o poder-ser e, com ele, o saber desse poder-ser, mas é também
a providência de um acto criador que não abandona a criatura.
Este acto de providência, a tal presença que Agostinho descobriu
imanente no mais fundo de seu ser, é o que permite o antegosto da perene
possibilidade de ser sem reservas. Desaparecesse esta presença, e nada na
experiência humana poderia dar a noção de uma possível perenidade, pois a
nossa comum experiência é a de uma imparável e indominável
transitoriedade, correndo para um mar de absoluta indiferença ontológica,
caos ou nada. Álvaro de Campos continua a ter razão.
A evidência do absoluto da impossibilidade da continuidade do poderser da pessoa, isto é, a evidência da aniquilação, imediatamente gera o
contraditório da esperança, que é o desespero. Note-se que esperança e
desespero são contraditórios e não contrários. São ambos absolutos e
incompossíveis. Se há esperança, não há desespero, se há desespero, não há
esperança. Esta permite a continuação da vida: o realíssimo não nos
querermos matar, de que fala o Poeta. Mas o desespero imediatamente
implica que nos queiramos mesmo matar, pois, já nada faz ou pode fazer
qualquer sentido. É isto, no seu extremo semântico de que depende a vida
humana, que está aqui em causa.
4 Perspectivar esperança e desespero como se fossem contrários
permitiria que o ser humano viajasse na linha que os relaciona, umas vezes
tendo mais esperança ou menos desespero, outras o contrário. Mas a
realidade não é assim e quem desespera porque perdeu o seu sentido de
poder ser, neste acto, está semanticamente morto, e apenas a cobardia
implícita na ironia do verso inicial de Campos impede que retire a
conclusão prática coerente.
Mas que vida é esta de quem não tem esperança e continua
biologicamente vivo? Mas não é esta a realidade de muitas pessoas que se
mantêm vivas apenas como vegetais humanos, porque, para elas, já nada
tem sentido? Pensamos que sim. Ao não darem o passo lógico implicado
pela evidência nihilista que vivem, que são, pelo menos permitem que,
quem está de fora de tal acto, perceba que ainda há possibilidade para tal
ser. Mas não é uma questão de contemplação externa do acto de terceiros
que aqui está em causa, antes saber o que se pode fazer para ajudar esta
pessoa a poder ver que a vida é sempre um acto de possibilidade em
constante porvir.
No fim da sua República, sem usar o termo «elpis», «esperança» em
grego, Platão fala de precisamente o que é a sua esperança em que, na
pertinente tradução de Maria Helena da Rocha Pereira,2 o ser humano possa
ser feliz. É claro que, para além de todo o pormenor económico, ético,
político, pedagógico, uns melhores do que outros, que Platão põe nesta
monumental obra dedicada ao ser-possível da humanidade, isto é, à sua
metafísica esperança, o fulcro está na ancoragem de tal nobre esperança
num Bem transcendente e transcendental a toda a realidade, Bem que é o
divino para este Autor. Se eliminarmos o Bem da reflexão que é a
2
Platão, A república, «Introdução», tradução e notas, de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, [1980], 3ª ed., 621c-­‐d, p. 500. 5 República, eliminamos a possibilidade do ser humano e, com ele e com ela,
a sua esperança.
Por outro lado, e é uma grande lição em termos antropológicos e
políticos, o mito final de Er, o Panfílio, lembra-nos que não há
propriamente esperança digna de um ser humano se este não agir de forma
a cumprir o melhor possível de si próprio, como aquele que
metaforicamente se aproxima da perfeição do sol. Neste mito e, de uma
forma original para o seu tempo, aponta-se já para uma forma pessoal de
esperança e os seres humanos recebem nome próprio: não é uma esperança
genérica diluída num todo anónimo, mas a esperança de salvação de um
Ulisses ou a ausência de esperança de salvação de um tirano como Ardieu.3
Esta esperança como possibilidade de salvação é fruto não já de um
destino cego ou caótico ou bestialmente erótico, mas de uma escolha
inequivocamente pessoal. Platão põe nas mãos de cada ser humano a
possibilidade da esperança própria sua. O desespero humano não é fruto de
acção caprichosa ou penalizadora dos deuses, mas do acto do ser humano,
condicionado pelo que foi e, no que é, pelo que guarda monumental ou
memorialmente do que foi. Nas palavras literais do Mestre da Academia,
«deus é isento de culpa».4
A minha esperança é a minha possibilidade de ser perenemente, posta
nas minhas mãos pelo «deus», para que eu escolha, me escolha. O que a
minha esperança vai ser é o resultado desta escolha. O «deus» é o dador da
possibilidade da esperança. «Esperança da esperança», mas mais nada. O
ser humano é absolutamente livre, no que é e como é, de construir a sua
esperança e de se construir como esperança. Lição espantosa, lição perene.
3
4
Ibidem, 615d-­‐e, p. 490. Ibidem, 617e, p. 493. 6 Mas lição que não se encontra desacompanhada, pois uma outra, de
uma outra civilização, a acompanha e a completa. Estamos habituados a
considerar Job como, para mim muito mais do que Abraão, pai de fé. Mas
Job é, também, pai de esperança. E, também, pai da relação entre fé e
esperança, que, aliás, nele, se tornam, senão indiscerníveis, pelo menos
consubstanciais, e consubstanciais ao que o ser humano é no mais radical
de seu fundo ontológico, na relação, única, com Deus. De novo, invocamos
Campos: sem tal, mais nada, absolutamente mais nada.
Deus, através da acção técnica do Satã e da acção bestial da mulher e
dos falsos amigos de Job, bem como da sua própria acção tirânica quando
se lhe revela pela primeira vez, isola Job de tudo. Job não só está
absolutamente só como é absolutamente só. Sobram-lhe a confiança, a fé,
em Deus e a esperança de que tal fé não seja vã.
E este momento é um terrível abismo: se te queres matar?... Apenas a
esperança de que o seu amor por Deus, baseado na fé, no absoluto da
confiança que deposita no amor de Deus por ele, explica a razão pela qual
Job não se matou. A fé de Job, sem a esperança de Job, não se teria podido
manter. Mas que mais pode ser esta mesma esperança radical senão um
acto de amor pelo absoluto do acto que Deus lhe tinha dado? E, neste acto
de amor a tal bem, que nunca negou, um acto de amor ao próprio Deus?
Assim, a esperança é um acto de amor ao absoluto de possibilidade
de se ser.
Este absoluto é Deus. O Deus de Job – de Abraão, de Isaac e de Jacob,
como queria Pascal –, mas também o metafísico Deus dos filósofos,
princípio metafísico absoluto sem o qual nada faz sentido e não pode haver
esperança alguma, pois não há absoluto poder-ser algum (Pascal também
sabia disto…).
7 Nascida do ócio, diz-se (embora Tales fosse, ao que parece, bastante
trabalhador), ainda assim, compete à Filosofia ultrapassar a ociosidade
autocomplacente de discursividades e metadiscursividades bizantinas,
apontando, sempre que possível, caminhos, precisamente como os antigos
queriam, para a salvação dos seres humanos.
A questão da esperança requer uma resposta filosófica, sobretudo não
academista, que possa permitir aos seres humanos perceber o absoluto de
possibilidades
que,
em
cada
instante
considerável,
o
constitui,
possibilidades alicerçadas não num mítico nada, mas num esplendor
metafísico de dom de poder-ser. O caminho para o desespero, que,
cumprido, não tem retorno possível, só pode ser abandonado através
daquilo que faltou a Job, do amor que mostre, que manifeste, que
demonstre que, para além desse caminho, único, há infinitos outros,
bastando para tal corresponder com um sim à proposta de abrir os olhos
para o esplendor de um dom, e de um mundo em que se consubstancia, em
que, cruzando o nosso caminho de possível bem com o caminho de
possível bem de outros, perceberemos que não há um único caminho entre
nadas, mas uma infinitude de caminhos que reclamam um infinito que os
sustente, base metafísica de toda a esperança.
Grande parte do mundo moderno e contemporâneo é um mundo em
processo de desespero porque não pode sequer acreditar nesta dimensão
infinita que sustenta a possibilidade da esperança. Ter esperança em
possíveis bondades puramente imanentes, é ter esperança em algo que vai
deixar de ser, mais cedo ou mais tarde, isto é, é ter esperança em algo que
vai ser aniquilado, o que implica que é não ter esperança propriamente dita,
mas apenas a ilusão psicológica de que se tem esperança. A esperança em
ídolos é um acto de desespero disfarçado e mata semanticamente,
8 lentamente, quem o pratica. É este o retrato rápido da mundanidade que nos
rodeia e parece querer asfixiar.
Pensemos bem: se verdadeiramente acredito que tudo vai colapsar no
nada, de que serve ter esperança ou deixar alguém ter esperança? Por que
não ser coerente com tal intuição e começar já a tirar as consequências? Se
estamos já todos fundamentalmente mortos, por que não massacrar,
destruir, aniquilar tudo num só acto, para, pelo menos, acabar com este
absurdo com um estrondo tal que, se houvesse Deus, este teria de o ouvir?
Podemos procurar as postuladas causas que quisermos para o absurdo
presente no mundo, mas a grande causa reside na real falta de esperança em
algo que mereça, como o Bem de Platão ou o Deus de Job, que em tal se
espere.
Temos de voltar a esperar num absoluto de bem, ou, então, aceitar o
desafio de Campos.
O tempo dos fracos está a chegar ao fim.
É chegado o tempo dos que, ainda que frágeis, não são fracos e se
atrevem a ter esperança num bem infinito, sem desculpas, sem defecções,
na gratuidade absoluta de um acto uno de fé e de esperança, que é, se se
cumprir em sua potencial plenitude, um acto de caridade. Então, o mundo
metamorfosear-se-á e a esperança da Cidade de Deus encontrará a sua
justificação.
Ou podemos ficar a olhar para o frio espelho da nossa impotente falta
de esperança que nem matar-se consegue.
Américo Pereira
Fevereiro do Ano da Graça e da Esperança gratuitas de 2015
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