RSTJ 232.indd - Superior Tribunal de Justiça

Transcrição

RSTJ 232.indd - Superior Tribunal de Justiça
Jurisprudência
Corte Especial
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO N. 11.712-AL
(2013/0050400-0)
Relator: Ministro Presidente do STJ
Agravante: Arnaldo Fontan Silva
Advogados: André Luiz Souza da Silveira
Flavio de Moraes Jardim
Saulo Lima Brito
Agravado: Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de
Alagoas
Interessado: Ministério Público do Estado de Alagoas
EMENTA
Agravo regimental na reclamação. Usurpação da competência
do Superior Tribunal de Justiça. Inexistência. Discussão de matéria
aparentemente constitucional na ação principal.
I - A reclamação tem cabimento para preservar a competência
do eg. Superior Tribunal de Justiça ou garantir a autoridade das suas
decisões (art. 105, inciso I, alínea f, da Constituição Federal e art. 187
do RISTJ).
II - In casu, o Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado
de Alagoas suspendeu decisão proferida por Desembargador daquela
Corte, nos autos de mandado de segurança.
III - Idêntica reclamação foi manejada, simultaneamente,
perante o eg. Supremo Tribunal Federal, com o mesmo objeto,
evidenciando a possibilidade de existência de discussão acerca de
matéria constitucional nos autos principais.
IV - O fundamento do mandamus, qual seja, o cumprimento
do art. 29, inciso IV, da Constituição Federal, relativo ao número de
vereadores na composição da Câmara Legislativa, aparentemente,
é constitucional (Precedente), motivo pelo qual o órgão competente
para apreciar uma eventual reclamação seria o Pretório Excelso e, por
conseguinte, o pedido de suspensão de liminar ou sentença que ele se
refere.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
V - A desistência da reclamação ajuizada perante a Suprema
Corte não implica alteração do entendimento firmado.
Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Eliana Calmon,
Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Herman
Benjamin, Sidnei Beneti e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Impedido o Sr. Ministro Humberto Martins.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, João Otávio
de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura e Napoleão Nunes Maia Filho.
Convocado o Sr. Ministro Jorge Mussi.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Gilson Dipp.
Brasília (DF), 16 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Gilson Dipp, Presidente
Ministro Felix Fischer, Relator
DJe 23.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de agravo regimental interposto
por Arnaldo Fontan Silva em face de decisão proferida por esta Presidência, às
fls. 69-73, que negou seguimento à reclamação, nos termos do art. 38 da Lei n.
8.038/1990.
Naquela ocasião, verificou-se que idêntica reclamação havia sido apresentada
ao eg. Supremo Tribunal Federal, em que se pleiteava, da mesma forma, a cassação
do decisum proferido pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de
Alagoas, que suspendeu liminar proferida nos autos de mandado de segurança.
Tal provimento liminar determinou fosse observado o número de 31 (trinta e
um) vereadores no Município de Maceió-AL.
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
No pedido apresentado a esta Presidência, neguei seguimento, nos
seguintes termos:
O pedido não comporta seguimento.
De fato, segundo o disposto no art. 4º, § 4º, da Lei n. 8.437/1992: ‘Se
do julgamento do agravo de que trata o § 3º resultar a manutenção ou o
restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido
de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual
recurso especial ou extraordinário”.
Com base nessa previsão normativa que se aponta usurpada a competência
desta Corte. Entretanto, do dispositivo acima transcrito decorre regra inafastável
segundo a qual será cabível pedido de suspensão para esta Corte ou para o
Pretório Excelso. Em outras palavras, o pedido de suspensão será de competência
do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a depender da
matéria que seja objeto da ação principal. A toda evidência, mesma sorte seguirá
a reclamação correspondente.
Nesse sentido, confira-se:
“Vale ressaltar, ainda, ser irrelevante, para fixação da competência desta
Suprema Corte, o fato de, no pedido de suspensão, ter sido suscitada ofensa a
normas constitucionais. É que, ‘para a determinação da competência do Tribunal,
o que se tem de levar em conta, até segunda ordem, é - segundo se extrai, mutatis
mutandis, do art. 25 da Lei n. 8.038/1990 - o fundamento da impetração: se este
é de hierarquia infraconstitucional, presume-se que, da procedência do pedido,
não surgirá questão constitucional de modo a propiciar recurso extraordinário”
(Rcl n. 543, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 29.9.1995). (SS n. 2.918-SP, Rel.
Min. Ellen Gracie, DJ de 25.5.2006, grifei).
Na mesma senda, dispõe o art. 25, caput, da Lei n. 8.038/1990, ao estatuir que
compete ao Presidente do e. Superior Tribunal de Justiça a suspensão de execução
de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança proferida, em
única ou última instância, pelos tribunais federais ou locais, para evitar grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, salvo, porém, quando a
causa tiver por fundamento matéria constitucional.
Assim, se se tratar de tema constitucional, mesmo que concomitante à matéria
infra, nesse caso, ainda assim, a competência para exame do incidente será
da Suprema Corte. Isso significa que as portas do Superior Tribunal de Justiça
somente abrir-se-ão se não houver qualquer assunto constitucional em debate.
A propósito do tema, trago à colação precedente emanado da Corte Especial:
“(...) se a ação principal possui fundamento constitucional, a competência é
do Supremo Tribunal Federal, ao qual eventualmente caberá apreciar o recurso
extraordinário. In casu, a causa de pedir, na ação coletiva, ostenta índole
constitucional, pois envolve questão relativa ao direito de greve dos servidores
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públicos, tendo como parâmetro recentes decisões proferidas pela Suprema Corte,
a exemplo do MI n. 670-ES, cujo acórdão encontra-se pendente de publicação,
além da aplicação dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla
defesa. Havendo concorrência de matéria constitucional e infraconstitucional, o
entendimento desta Corte é no sentido de que ocorre a vis atrativa da competência
do em. Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, sendo ‘irrelevante que o
acórdão contenha fundamentos constitucional e infraconstitucional” (AgRg na Pet
n. 1.310-AL, relator Ministro Paulo Costa Leite). (SLS n. 823-RS, Rel. Min. Barros
Monteiro, DJ de 14.2.2008, grifei).
Pois bem, no caso em exame, verifico que idêntica reclamação foi manejada
perante o eg. Supremo Tribunal Federal, com o mesmo objeto, qual seja, a
cassação da decisão proferida pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça do
Estado de Alagoas. Porém, lá se alega que a matéria é constitucional.
Naquela Reclamação (n. 15.117-Alagoas), foi indeferida a liminar pleiteada, em
5 de fevereiro de 2013.
O em. Presidente da Suprema Corte, Ministro Joaquim Barbosa, indeferiu a
liminar valendo-se, dentre outros, do seguinte fundamento:
“Assim, as informações disponíveis no presente momento não permitem
afirmar que tenha havido usurpação da competência desta Presidência, uma
vez que a decisão reclamada limitou-se a interpretar a legislação municipal
apresentada como fundamento para o pedido.
Ante o exposto, indefiro a medida cautelar requerida pelo reclamante.” (Rcl n.
15.117, DJE de 5.2.2013)
Não obstante essa afirmação - no sentido de não haver matéria constitucional
em debate - sabe-se que essa decisão possui caráter precário, pois limitada ao
exame do pleito liminar, de modo que seu mérito ainda será decidido pelo
Relator, Ministro Gilmar Mendes.
Esse o quadro processual, constato que falece competência a esta Corte,
neste momento, para apreciar o mérito da reclamação em exame. Isso porque,
é necessário que haja manifestação definitiva do Pretório Excelso quanto a sua
eventual competência para apreciação do pedido de suspensão decidido pelo
em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça local, e por conseguinte, da reclamação
que se seguiu. Ou seja, o eg. Supremo Tribunal Federal deve afirmar se existe ou
não matéria constitucional no writ.
Impende destacar, por necessário, que incumbe, no caso concreto, ao Supremo
Tribunal Federal a última palavra acerca da existência de matéria constitucional
na ação a que se refere o pedido de suspensão formulado na origem. Dessarte,
somente se negada essa possibilidade é que poderá esta Presidência deliberar
sobre o objeto da reclamação em exame.
Caso contrário, se neste momento se pudesse afirmar a natureza meramente
infraconstitucional da matéria tratada no mandamus, esta Corte é que usurparia
a competência do Pretório Excelso para decidir a natureza da causa originária,
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
uma vez que previamente provocado a sobre ela decidir nos autos da referida
reclamação (Rcl n. 15.117-AL) em trâmite perante o eg. Supremo Tribunal Federal.
Em suma, afirmar a natureza infraconstitucional seria o mesmo que negar
a existência de questão constitucional e, portanto, sobrepor-se ao juízo que
compete exclusivamente à Suprema Corte.
Ante o exposto, nego seguimento à presente reclamação, nos termos do art. 38,
da Lei n. 8.038/1990.
P. e I.
Nas razões do presente agravo, Arnaldo Fontan Silva alega que optou por
desistir da reclamação apresentada no eg. Supremo Tribunal Federal, “para
evitar que uma decisão proferida por magistrado absolutamente incompetente
produza efeitos no tempo, efeitos esses que representam dano irreparável ao
reclamante” (fl. 86).
Sustenta ser a matéria discutida no mandado de segurança, em trâmite no
eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, de cunho infraconstitucional, tendo
em vista que “a decisão reclamada se limitou a interpretar a legislação municipal
apresentada como fundamento para o pedido” (fl. 86). Segue afirmando que
“quem dispõe sobre o número de vereadores de um determinado município é
a sua Lei Orgânica, sendo certo que a Constituição Federal traz apenas uma
limitação que deve ser seguida, não expressamente fixando a quantidade de
cadeiras” (fl. 86).
Aduz que “a matéria de fundo dessa demanda, abordada perante as
instâncias ordinárias, diz respeito à interpretação da Lei Orgânica do Município
de Maceió, relativa ao aumento do número de cadeiras na Câmara Municipal,
a revelar a ausência de envergadura constitucional que justifique a atuação do e.
STF no presente contexto” (fl. 89).
Requer, ao final, a reconsideração da decisão agravada a fim de que se
conceda a liminar inicialmente pleiteada, “para o fim de suspender, em caráter
preventivo e até o julgamento final do feito, a decisão proferida pelo Presidente
do TJAL (fl. 91).
Por manter a decisão agravada, submeto o feito à c. Corte Especial.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): O inconformismo não procede.
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De acordo com o texto constitucional (art. 105, inciso I, alínea f), compete
ao col. Superior Tribunal de Justiça julgar a reclamação para a preservação de sua
competência e garantia da autoridade de suas decisões.
No mesmo sentido, dispõe o art. 187 do Regimento Interno desta eg. Corte
Superior, abaixo transcrito:
“Art. 187. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a
autoridade das suas decisões, caberá reclamação da parte interessada ou do
Ministério Público.
Parágrafo único. A reclamação, dirigida ao Presidente do Tribunal e
instruída com prova documental, será autuada e distribuída ao relator da causa
principal, sempre que possível.”
In casu, pretende o agravante, sob a alegação de preservar a competência
do eg. Superior Tribunal de Justiça, a suspensão do decisum proferido pelo em.
Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, nos autos de pedido
de Suspensão de Segurança formulado pelo Ministério Público local.
A tese do agravante é de que o Presidente do eg. Tribunal de origem não
poderia ter decidido pedido de suspensão formulado contra decisão proferida
por Desembargador integrante do mesmo Tribunal.
Ocorre que, a depender da matéria tratada no mandado de segurança, a
competência, em tese usurpada, pode ser tanto desta Corte como do Supremo
Tribunal Federal. E, como assinalei na decisão ora agravada, ao que tudo indica,
há questão constitucional em discussão no mandado de segurança, circunstância que,
ao mesmo tempo que atrai a competência do Supremo Tribunal Federal, afasta
a desta Corte.
Isso porque, conforme já sublinhado, havendo matéria constitucional em
debate na ação principal, o pedido de suspensão que eventualmente venha a ser
aviado, deverá ser manejado perante a Suprema Corte.
Vê-se, a propósito, que a decisão proferida no mandado de segurança
fundou-se na interpretação do art. 29, inciso IV, da Constituição Federal (fl. 21).
Além disso, cumpre destacar, por necessário, precedente emblemático,
oriundo da Suprema Corte, em sede de recurso extraordinário, que tratou
exatamente da composição de Câmara Legislativa, a evidenciar a natureza
constitucional da matéria tratada no mandamus:
Recurso extraordinário. Municípios. Câmara de vereadores. Composição.
Autonomia municipal. Limites constitucionais. Número de vereadores
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
proporcional à população. CF, artigo 29, IV. Aplicação de critério aritmético rígido.
Invocação dos princípios da isonomia e da razoabilidade. Incompatibilidade entre
a população e o número de vereadores. Inconstitucionalidade, incidenter tantum,
da norma municipal. Efeitos para o futuro. Situação excepcional.
1. O artigo 29, inciso IV da Constituição Federal, exige que o número de
Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites
mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c.
2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição
das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos
do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa
da proporcionalidade.
3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm
mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior.
Casos em que a falta de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos
legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia.
4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma
municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância
da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso
do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente.
5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição
Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer afronta aos
demais princípios constitucionais e nem resulte formas estranhas e distantes da
realidade dos Municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade,
impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37).
6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da
República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do
número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo
de composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF,
artigos 27 e 45, § 1º).
7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da lei local que fixou em 11 (onze)
o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2.600
habitantes somente comporta 09 representantes.
8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que
a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave
ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para
assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de
inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido (RE
n. 19.7917-SP, Pleno, Rel. Min. Maurício Correa, DJ de 7.5.2004).
Desse modo, conforme já enfatizado, se julgada a presente reclamação por
esta Corte, aí sim, configurar-se-ia usurpação de competência, aparentemente,
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pertencente ao Pretório Excelso. Por tal razão, inexiste a alegada afronta à
competência destinada a este eg. Tribunal Superior.
Ademais, não houve no caso vertente manifestação expressa da Suprema
Corte no sentido de que ela não seria competente, pois ainda que sinalizada a
possibilidade da matéria não ser constitucional, o pedido liminar foi apreciado.
Além disso, nada altera, o pedido de desistência formulado nos autos da
reclamação lá ajuizada, eis que remanesce o mesmo cenário: a probabilidade de
existência de matéria constitucional tratada na ação principal parece indicar a
competência do Supremo Tribunal Federal.
Assim, somente com a manifestação peremptória da Suprema Corte,
afastando sua competência, serão abertas as portas deste Tribunal.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE
SENTENÇA N. 1.681-SP (2012/0237482-7)
Relator: Ministro Presidente do STJ
Agravante: Buffet Grecia Antiga Ltda - ME
Advogado: Fabio Lousada Gouvea
Agravado: Companhia do Metropolitano de São Paulo Metrô
Advogado: Eduardo Hiroshi Iguti
Requerido: Desembargador Relator do Agravo de Instrumento n.
2104059720128260000 do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo
EMENTA
Agravo regimental na suspensão de liminar e de sentença. Grave
lesão à ordem e economia públicas. Existência. Pedido de suspensão
deferido. Agravo regimental do particular desprovido.
I - Consoante a legislação de regência (v.g. Lei n. 8.437/1992
e n. 12.016/2009) e a jurisprudência deste Superior Tribunal e do c.
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Pretório Excelso, somente será cabível o pedido de suspensão quando a
decisão proferida contra o Poder Público puder provocar grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
II - Na hipótese, causa lesão à ordem e à economia públicas a decisão
que impede, em ação de desapropriação de imóvel por utilidade pública,
a imissão provisória na posse pelo ente expropriante, em virtude da
ausência de indenização prévia referente ao fundo de comércio, pois
tal decisão paralisa obra de suma importância para a cidade de São
Paulo-SP, qual seja, a expansão de seu sistema metroviário.
III - A indenização pelo fundo de comércio, apesar de devida,
não pode obstar a imissão provisória da posse pelo ente expropriante,
cujos requisitos são a declaração de urgência e o depósito do valor
estabelecido conforme o art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941.
Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Nancy Andrighi, Castro
Meira, Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins, Maria Thereza de Assis
Moura, Herman Benjamin, Sidnei Beneti, Jorge Mussi, Raul Araújo e Sebastião
Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, Laurita
Vaz, João Otávio de Noronha e Napoleão Nunes Maia Filho.
Licenciado o Sr. Ministro Gilson Dipp, sendo substituído pelo Sr. Ministro
Jorge Mussi.
Convocados os Srs. Ministros Raul Araújo e Sebastião Reis Júnior.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Eliana Calmon.
Brasília (DF), 17 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministra Eliana Calmon, Presidente
Ministro Felix Fischer, Relator
DJe 1º.2.2013
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RELATÓRIO
O Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de agravo regimental interposto por
Buffet Grécia Antiga Ltda, em face de decisão proferida por esta Presidência às
fls. 325-329, que deferiu o pedido de suspensão formulado pla Companhia do
Metropolitano de São Paulo - Metro, sob os seguintes termos:
Trata-se de pedido de suspensão de liminar e de sentença formulado por
Companhia do Metropolitano de São Paulo - Metrô, em face de r. decisão proferida
pelo em. Desembargador Carlos Malheiros, do eg. Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento n. 0210405-97.2012.8.26.0000.
Depreende-se dos autos que a ora interessada, Buffet Grecia Antiga Ltda ME, ajuizou, na origem, ação de indenização em desfavor da ora requerente,
por discordar do valor de avaliação de seu imóvel, objeto de desapropriação,
anteriormente declarado como de utilidade pública para fins de expansão do
sistema metroviário da cidade de São Paulo.
O D. Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo proferiu a
seguinte decisão:
“2. Fls. 173-182: tendo em vista que a expropriante, requerida nesta demanda,
assume os custos com o transporte dos bens de titularidade da autora para o
local em que se instalará, a avaliação prévia determinada a fls. 77, que tinha como
único quesito o valor deste transporte, perde seu objeto. Em assim sendo, defiro
a expedição de mandado de imissão na posse do imóvel expropriado, devendo
a requerida, no ato da imissão, responsabilizar-se pela remoção do acervo físico
da autora (mobiliário e equipamentos) para local por ela (autora) indicado. 3.
esclareço, novamente, que a imissão na posse pela expropriante não impede
que se promova, após a consumação do ato, a valoração do fundo de comércio
discutido nesta demanda, motivo por que nenhum óbice existe ao cumprimento
da imissão.” (fl. 03)
Irresignada, interpôs a ora interessada recurso de agravo de instrumento, o
qual foi recebido no efeito suspensivo, impedindo-se a imissão provisória na
posse do imóvel pela expropriante, ora requerente, tendo em vista a ausência de
avaliação prévia do fundo de comércio do imóvel objeto de desapropriação para
expansão do metrô da cidade de São Paulo.
Veja-se, oportunamente, o seguinte excerto da r. decisão vergastada:
“Vistos.
1) A agravante requer a reconsideração da decisão de fls. 247. Alega que
há acórdão proferido por esta Egrégia 3ª Câmara de Direito Público, referente
ao Agravo de Instrumento n. 0000450-26.2012.8.26.0000, interposto pelo ora
agravado, contra decisão proferida a fls. 104 dos autos principais, que determinou
a suspensão da imissão na posse até oportuna avaliação provisória do fundo de
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
comércio, e depósito judicial da quantia apurada. Referido agravo foi julgado
improvido, mantendo-se a decisão agravada em seus exatos termos.
[...]
Por tais razões, reconsidero a decisão de fls. 247, e o faço para suspender os
efeitos da decisão recorrida, bem como a realização da imissão na posse, até que
sejam cumpridas as providências determinadas na decisão de fls. 104 dos autos
principais.” (fl. 307)
Sobre a obra de expansão do metrô em questão, alega a requerente que “Na
Linha 5 - Lilás (pertinente ao imóvel em que se pretende a imediata imissão), em
operação com 8,4 km de extensão, com as obras de expansão e modernização,
serão construídos mais 11,5 km, permitindo a interligação com a rede metroviária
[...]” (fl. 05), que “O trecho encontra-se nesse momento em fase final de demolição
dos 224 imóveis já desapropriados” (fl. 05), e que “a imissão na posse de referido
imóvel já se encontra muito atrasada”. (fl. 05)
Afirma, no caso, que “a obra somente se iniciará na área ora em comento
quando houver a imissão na posse, pois, sem isso, não será possível desviar o
viário e, consequentemente, não será possível abrir a vala, escavar os poços,
construir o viaduto e a estação de metrô.” (fl. 06)
Sustenta, ainda, que “o atraso na obra pode resultar em desequilíbrio
econômico financeiro do contrato com a empresa responsável pela execução
da obra, por força dos custos indiretos inerentes à paralisação do trecho em
comento.” (fl. 09)
Argumenta, ademais, quanto ao mérito da questão, que “uma vez atendidos
os requisitos para imissão provisória na posse, quais sejam, alegação de urgência
e depósito prévio, não compete ao Ilustre Desembargador impor mais um: a
apuração do fundo de comércio da atividade empresarial [...]” (fl. 12), concluindo
no sentido de que em sendo a prova eminentemente contábil, seria “totalmente
dispensável obstar a imissão na posse pelo Poder Expropriante.” (fl. 14).
Postula, ao final, pelo reconhecimento da “regularidade dos atos praticados
[...], a reforçar o argumento de que há necessidade imperiosa de sobrestarem-se
os efeitos da decisão ora impugnada, que está causando dano inquestionável à
economia e ao interesse públicos.” (fl. 16)
Requer, desta forma, a suspensão da r. decisão acima colacionada.
É o relatório.
Decido.
A Lei n. 8.437/1992 estabelece que compete ao em. Presidente do e. Tribunal
ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho
fundamentado, a execução de liminar em caso de manifesto interesse público ou
de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, saúde, segurança
e economia públicas. Contudo, mais que a mera alegação da ocorrência de cada
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
uma dessas situações, é necessária a efetiva comprovação do dano apontado
(v.g. AgRg na SLS n. 1.100-PR, Corte Especial, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJe de
4.3.2010).
Verifica-se, na hipótese, que o que se busca com o presente pedido é a
suspensão da r. decisão recorrida, a fim de possibilitar à requerente a imissão na
posse do imóvel objeto de desapropriação para expansão do sistema metroviário
da cidade de São Paulo-SP.
Assiste razão à requerente, pois está suficientemente demonstrado o risco de grave
lesão à economia e à ordem públicas.
Isto porque pode-se depreender dos autos, inequivocamente, quanto à obra de
extensão do metrô da cidade de São Paulo-SP, que a r. decisão atacada privilegia
o interesse privado em detrimento do público. Ademais, tenho que o r. decisum
reprochado, além de prejudicar a população, resulta em desequilíbrio econômicofinanceiro do contrato firmado com a empresa responsável pelo serviço.
Mister asseverar que não se está aqui a negar o direito de indenização
do particular decorrente da desapropriação por utilidade pública do imóvel,
notadamente no que concerne à indenização pelo fundo de comércio.
Quanto ao tema, aliás, cumpre inclusive ressaltar que é firme na jurisprudência
desta Corte no sentido de que deve ser incluído na indenização por
desapropriação o valor do fundo de comércio (v.g. REsp n. 1.076.124-RJ, 2ª Turma,
Relª. Minª. Eliana Calmon, DJe de 3.9.2009).
Entretanto, entendo que tal discussão deve possuir guarida em ação própria
para tal fim, onde será possível uma cognição exauriente dos procedimentos
necessários à apuração dos valores devidos referentes à desapropriação.
Desta forma, a r. decisão que agora se pretende suspender causa prejuízo à
ordem e economia públicas, na medida em que, a uma, impede a continuação
de obra de suma importância para melhoria do transporte público da cidade
de São Paulo, prejudicando milhares de cidadãos que serão beneficiados pelo
empreendimento, e a duas, causa prejuízos aos cofres públicos inerentes ao
desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Acerca do tema, veja-se, oportunamente, o seguinte precedente da c. Corte
Especial:
“Pedido de suspensão de liminar e de sentença. Imissão na posse de área declarada
de utilidade pública para fins de desapropriação. Lesão à economia pública. Causa
lesão à economia pública a decisão que impede a imissão do Estado do Ceará
na posse de área destinada à expansão de complexo industrial-portuário, que
abrigará refinaria de petróleo, privando o Estado dos investimentos decorrentes
das obras e dos tributos a serem arrecadados das empresas que ali se instalarem.
Agravo regimental não provido” (AgRg na SLS n. 1.296-CE, Corte Especial, DJe de
11.3.2011).
30
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a r. decisão proferida pelo eg.
Tribunal a quo nos autos do Agravo de Instrumento n. 0210405-97.2012.8.26.0000.
P. e I.”
Em suas razões, alega o agravante que, “para obter êxito no pedido de
suspensão de liminar, não é suficiente a simples afirmação de que a decisão
do Tribunal a quo pode causar grave lesão aos bens jurídicos listados no art.
4º da Lei n. 4.348/1964. Cabe nesse sentido ao Metrô comprovar, de forma
inequívoca, que o cumprimento imediato da liminar atacada provocaria sério
prejuízo à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública, o que não ocorreu
no caso em tela” (fl. 351).
Afirma que “não há como pressupor e nem elementos nos autos para
concluir-se que este único imóvel de titularidade da ora Agravante esteja
obstando o início das obras pelo Agravado” (fl. 358).
Reforça que, “caso persista a suspensão concedida, haverá clara
contrariedade a jurisprudência desta C. Corte no sentido de incluir na
desapropriação o fundo de comércio, eis que abarcado pelo primado da justa e
prévia indenização” (fl. 360).
Aduz, ainda, que “O não pagamento do valor do fundo de comércio
pressupõe indenização injusta, negando a pronta reparação ao dano ou prejuízo
sofrido quer pelo locatário ou proprietário do imóvel. Retirar-lhes a possibilidade
de exercerem o comércio no local em que se estabeleceram há muitos anos é
trazer-lhes indiscutível perda a que não pode ficar insensível o Estado” (fl. 367).
Conclui que “o Judiciário não pode mais conceber que os comerciantes
sejam assim tratados, pois exercem função social de muito maior relevo que
a propriedade imóvel. Esta, às vezes, é usada para especulação e para acrescer
rendimentos individuais quando alugada. Já o negócio comercial, só se constrói
com o esforço perene de indivíduo ou grupo, para impostos mais elevados e
traduz-se na mola mestre da economia.” (fl. 368), sustentando, também, que em
virtude da desapropriação, tem perdido clientela, havendo, inclusive, demissão
de funcionários.
Requer, ao final, o indeferimento da medida intentada pelo ora agravado.
Por manter a decisão agravada, submeto o feito à eg. Corte Especial.
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
31
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): O agravo regimental não merece
prosperar.
Verifico, do teor das razões recursais ora apresentadas, que o recorrente não
trouxe argumentos suficientes para a modificação da decisão ora atacada, que
deve ser mantida por seus próprios fundamentos.
Inicialmente, alega o agravante a ausência, no caso, de comprovação
inequívoca, pelo ora agravado, de que o cumprimento imediato da liminar
atacada provocaria sério prejuízo à ordem, à saúde, à segurança ou à economia
pública.
Contudo, como restou consignado na decisão agora agravada, está
suficientemente demonstrado o risco de grave lesão à economia e à ordem públicas.
Isto porque pode-se depreender dos autos, quanto à obra de extensão
do metrô, que a r. decisão objeto do presente pedido de suspensão claramente
privilegia o interesse privado em detrimento do público.
Ademais, entendo o r. decisum reprochado, além de prejudicar a população,
atrasando obra de suma importância para a melhoria do transporte público e
consequentemente da situação caótica em que se encontra o tráfego da cidade
de São Paulo-SP, resultaria em desequilíbrio econômico-financeiro do contrato
firmado com a empresa responsável pelo serviço, em virtude dos custos inerentes
ao atraso na execução da obra, gerando, consequentemente, prejuízos aos cofres
públicos.
De outro plano, cumpre asseverar que, como frisei na decisão ora agravada,
não se está aqui a negar o direito de indenização do particular decorrente da
desapropriação por utilidade pública do imóvel, no que concerne à indenização
pelo fundo de comércio. Ressaltei, inclusive, a existência de jurisprudência
pacificada desta eg. Corte no sentido de que deve ser incluído na indenização
por desapropriação o valor do fundo de comércio.
Veja-se:
Administrativo. Desapropriação. Indenização. Fundo de comércio.
Possibilidade. Juros compensatórios. Percentual. Necessidade de observância
da vigência da MP n. 1.577/1997. Juros moratórios. Termo inicial. Art. 15-B do
Decreto-Lei n. 3.365/1941. Aplicação imediata às ações em curso.
1. É firme na jurisprudência desta Corte a orientação de que deve ser incluído na
indenização por desapropriação o valor do fundo de comércio. Precedentes.
32
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
2. A Primeira Seção pacificou o entendimento de que a limitação dos juros
compensatórios em 6% ao ano, prevista no art. 15-A do Decreto-Lei n. 3.365/1941,
deve ser aplicada apenas no período entre a inovação legislativa promovida
pela Medida Provisória n. 1.577/1997 (11.6.1997), e sua suspensão pelo Supremo
Tribunal Federal, em virtude da medida liminar proferida na ADI n. 2.332-DF
(13.9.2001).
3. Ocorrida a imissão na posse do imóvel desapropriado em 10.4.2002, são
devidos juros compensatórios no percentual de 12% (doze por cento) ao ano.
4. Consoante entendimento pacífico da Primeira Seção, a norma constante
do art. 15-B do Decreto-Lei n. 3.365/1941, que determina a incidência dos juros
de mora somente a partir de 1º de janeiro do exercício financeiro seguinte
àquele em que o pagamento deveria ser efetuado, tem aplicação imediata às
desapropriações em curso no momento em que editada a MP n. 1.577/1997.
5. Recurso especial parcialmente provido (REsp n. 1.076.124-RJ, 2ª Turma, Relª.
Minª. Eliana Calmon, DJe de 3.9.2009).
Entretanto, não obstante o reconhecido direito de indenização decorrente de
fundo de comércio, tenho que tal discussão não pode obstar a imissão provisória
na posse pelo ente expropriante, como quer ver reconhecida a agravante, já
que, conforme o disposto no art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941, “Se o
expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com
o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente
na posse dos bens;”.
Assim sendo, a discussão sobre a indenização e seus valores deve ocorrer em
seara própria para tal finalidade, possibilitando precisa apuração e garantindo-se
a justa e prévia indenização.
Importante frisar, quanto à prévia e justa indenização, o magistério de José
dos Santos Carvalho Filho, in “Manual de Direito Administrativo”, Ed. Lumen
Juris, 23ª edição, no seguinte sentido:
Indenização prévia significa que deve ser ultimada antes da consumação da
transferência do bem. Todavia, o advérbio antes tem o sentido de uma verdadeira
fração de segundo. Na prática, o pagamento da indenização e a transferência do
bem se dão, como vimos, no mesmo momento. Só por mera questão de causa
e efeito se pode dizer que aquele se operou antes desta. De qualquer forma,
deve entender-se o requisito como significado que não se poderá considerar
transferida a propriedade antes de ser paga a indenização (fls. 925-926).
Sobre o tema, ainda, o seguinte precedente do c. Pretório Excelso:
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
33
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ementa: - 1. Preliminar de prejudicialidade rejeitada, ante a diversidade
dos procedimentos respectivos e da modalidade de execução, entre a imissão
provisoria na posse (a que se refere o mandado de segurança ora em grau
de recurso extraordinário) e o julgamento definitivo da ação expropriatoria.
2. Subsiste, no regime da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXIV), a
jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal sob a egide das Cartas anteriores,
ao assentar que só a perda da propriedade, no final da ação de desapropriação - e
não a imissão provisoria na posse do imóvel - esta compreendida na garantia da
justa e previa indenização.
(RE n. 195.586-DF, Primeira Turma, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 26.4.1996)
Assim, pode-se perceber que o instituto da imissão provisória na posse não
depende de prévia e justa indenização, que se dará apenas ao final do processo
de desapropriação, mas apenas, como dito, da declaração de urgência e do
depósito prévio nos termos do Decreto-Lei n. 3.365/1941.
Por último, argumenta o agravante a impossibilidade de deferimento do
pedido de suspensão, uma vez que a r. decisão atacada pelo incidente apenas deu
cumprimento a aresto anteriormente proferido pelo eg. Tribunal a quo, o qual
consignou que “a imissão na posse ficou condicionada a indenização do fundo
de comércio” (fl. 374).
Afirma, neste sentido, que “a decisão pertinente ao Agravo anterior já
transitou em julgado, portanto, afigura-se insuscetível, em sede de suspensão de
liminar e de sentença, alterar a coisa julgada” (fl. 374).
Contudo, no ponto, verifico que melhor sorte não socorre o agravante.
É que, segundo de depreende da r. decisão proferida pelo d. Juízo da 3ª
Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, a avaliação prévia do fundo
de comércio tinha como único quesito os custos de transporte de mobiliários e
equipamentos (fl. 113).
No entanto, como a ora agravada assumiu os custos decorrentes do referido
transporte, “a avaliação prévia determinada a fls. 77, que tinha como único
quesito o valor desse transporte, perde seu objeto” (fl. 225).
Desta forma, entendo que não há descumprimento do decidido
anteriormente pelo eg. Tribunal a quo, uma vez que, de maneira superveniente,
perdeu-se o objeto daquela decisão.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
34
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
MANDADO DE SEGURANÇA N. 18.514-DF (2012/0098820-5)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Impetrante: Angela Maria Guedes Pinto
Advogado: Anthony Gonçalves e outro(s)
Impetrado: Ministro Relator da Reclamação n. 7.840 do Superior Tribunal
de Justiça
EMENTA
Mandado de segurança. Impugnação de decisão judicial.
Requisitos: inexistência de recurso judicial cabível e ilegalidade patente
ou teratologia. Decisão monocrática que nega conhecimento a agravo
regimental. Recurso interposto contra decisão irrecorrível assim
reconhecida na Resolução-STJ n. 12/2009. Ausência de teratologia.
1.- Para que seja admissível mandado de segurança contra ato
judicial, exige-se, além de inexistência de recurso apto a combatê-lo
(Súmula n. 267-STF), que o decisum impugnado seja manifestamente
ilegal ou teratológico. Precedentes.
2.- Nos termos do artigo 6º da Resolução-STJ n. 12/2009,
é irrecorrível a decisão do Relator havida na reclamação ajuizada
contra decisão de Turma Recursal dos Juizados Especiais. Trata-se de
regra específica que se sobrepõe ao artigo 258 do RISTJ que prevê o
cabimento de agravo regimental contra decisão do relator.
3.- Assim, não se revela teratológica a negativa de conhecimento
do Agravo Regimental interposto contra decisão monocrática havida
no julgamento da Reclamação de que trata a Resolução n. 12/2009,
mesmo que essa negativa se apresente em uma decisão monocrática.
4.- Afirmar que julgamento monocrático do agravo regimental,
nesses casos, representaria usurpação da competência do órgão
colegiado seria emprestar aparência de regularidade a um recurso que
não deve existir.
5.- Denegada a ordem.
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
35
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, denegar a ordem, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Gilson Dipp, Eliana Calmon,
Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha, Castro Meira, Arnaldo Esteves
Lima, Humberto Martins e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Ari Pargendler, Francisco
Falcão, Laurita Vaz, Herman Benjamin e Napoleão Nunes Maia Filho.
Convocado o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques.
Brasília (DF), 5 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministro Felix Fischer, Presidente
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 25.6.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Angela Maria Guedes Pinto impetra
mandado de segurança contra decisão do E. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
que decidiu monocraticamente Agravo Regimental interposto na Reclamação
n. 7.840-RJ e, bem assim, os embargos de declaração que se seguiram.
2.- Trata-se, na origem, de uma ação ordinária proposta por Angela Maria
Guedes Pinto contra Elvas Empreendimentos Imobiliários Ltda, Di Carmen
Empreendimentos Imobiliários Ltda e Patrimovel Consultoria Imobiliária S.A.
visando à restituição de valores pagos para a aquisição de imóvel à título de
“sinal” que teria sido lançado como “comissão de corretagem” (fls. 19-25).
3.- A ação, proposta pelo rito sumaríssimo, foi distribuída ao Terceiro
Juizado Especial Cível da Comarca de Niterói, e teve o seu pedido julgado
improcedente por sentença (fls. 47-48).
4.- O recurso inominado (fls. 51-60), dirigido ao Conselho Recursal dos
Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio de Janeiro, também foi julgado
improcedente (fls. 80).
36
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
5.- A Autora ajuizou, então, com fundamento na Resolução-STJ n.
12/2009, uma Reclamação perante esta Corte Superior, a qual foi distribuída
ao E. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Reclamação n. 7.840-RJ), alegado
dissídio jurisprudencial em relação a julgados desta Corte Superior e também
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
6.- Essa Reclamação foi decidida monocraticamante pelo E. Relator, em
13.2.2012, nos seguintes termos (fls. 82-84):
Trata-se de reclamação, amparada na Resolução n. 12-STJ, proposta por Angela
Maria Guedes Pinto contra acórdão proferido pela Terceira Turma do Conselho
Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado do Rio de Janeiro, assim
sumulado:
Acordam os Juízes que integram a Turma Recursal dos JECs, por
unanimidade, em conhecer do recurso e, por maioria, negar-lhe provimento
para manter a sentença por seus próprios fundamentos, na forma prevista
no art. 46 da Lei de Regência, não reconhecendo qualquer violação
de princípios jurídico-constitucionais de garantia e destacando que as
questões aduzidas no recurso foram debatidas oralmente pelos integrantes
do colegiado, com a percuciência necessária, não sendo transcritas as
conclusões em homenagem aos princípios informativos previstos no art. 2º
da Lei n. 9.099/1995, condenando-se o recorrente nas custas e honorários
de 10% do valor da causa, valendo esta súmula como acórdão. Vencido
o Exmo. Juiz Tiago Mascarenhas que dava provimento ao recurso para
condenar os réus a devolverem em dobro a quantia cobrada a título de
comissão de corretagem imobiliária (e-STJ fl. 83).
Aduz a reclamante, em síntese, que o acórdão impugnado diverge da
jurisprudência desta Corte Superior e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e dos Territórios consolidada no sentido da ilicitude da transferência do ônus do
empreendimento (comissão de corretagem imobiliária) ao consumidor sem a sua
aquiescência.
É o relatório.
Decido.
A irresignação não merece prosperar.
De início, registre-se que a reclamação ajuizada perante esta Corte, com
fulcro no art. 1º, da Resolução STJ n. 12/2009, é instrumento reservado a
hipóteses extremas, tendo como pressuposto de admissibilidade ofensa frontal
à jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não
bastando, para fins de configuração da divergência, a existência de precedentes
contrários à decisão da Turma Recursal dos Juizados especiais.
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
37
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A propósito:
Reclamação. Resolução n. 12/2009-STJ. Divergência entre Turma Recursal
e a jurisprudência desta Corte. Dano moral. Quantum indenizatório.
1.- A expressão “jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” constante
no art. 1º da Resolução n. 12/2009-STJ, deve ser interpretada em sentido estrito,
admitindo-se como tal, apenas o entendimento reiterado e sedimentado no
âmbito desta Egrégia Corte, no que se refere à aplicação da lei, ou seja, para a
qual não haja a necessidade do reexame dos fatos ou das provas coligidas ao
processo.
2.- Para a verificação da razoabilidade do quantum indenizatório,
necessário avaliar a extensão do dano, sua repercussão na esfera moral
dos Autores, a capacidade econômica das partes, entre outros fatores
considerados no Acórdão recorrido, isto é, situações peculiares de cada
demanda.
3.- Não é o caso de cabimento da Reclamação, instrumento reservado
a hipóteses extremas, em que se patenteie frontal ofensa a julgados deste
Tribunal, cuja solução decorra da aplicação da lei federal e não da melhor ou
pior interpretação que se possa dar aos fatos da causa.
4.- Agravo Regimental improvido.
(AgRg na Rcl n. 4.260-SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção,
julgado em 8.9.2010, DJe 15.9.2010).
Nesse passo, a Segunda Seção desta Corte, no julgamento das Reclamações n.
6.721-MT e n. 3.812-ES, na sessão do dia 9 de novembro de 2011, em deliberação
quanto à admissibilidade da Reclamação disciplinada pela Resolução n. 12, firmou
posicionamento no sentido de que a expressão “jurisprudência consolidada”
entende-se apenas por: (i) precedentes exarados no julgamento de recursos
especiais em controvérsias repetitivas (art. 543-C do CPC) ou (ii) enunciados de
Súmula da jurisprudência desta Corte. Não se admite, com isso, a propositura
de reclamações com base apenas em precedentes oriundos do julgamento de
recursos especiais.
No caso dos autos, a matéria não está disciplinada em enunciado de Súmula
deste Tribunal, tampouco há indicação, na petição inicial, de julgamento acerca
do tema submetido ao regime dos recursos repetitivos. Além disso, não se
evidencia hipótese de teratologia que justifique a relativização desses critérios.
Ante o exposto, indefiro de plano a reclamação (artigos 34, inciso XVIII, do
RISTJ e 1º, § 2º, da Resolução n. 12-STJ).
Publique-se.
Intimem-se.
Arquive-se.
Brasília-DF, 13 de fevereiro de 2012.
38
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
7.- Contra essa decisão monocrática foi interposto Agravo Regimental
(fls. 86-89) que, todavia, não foi levado a julgamento pelo órgão colegiado em
princípio competente para tanto, mas decidido monocraticamente pelo próprio
Relator, em decisão exarada nos seguintes termos (fls. 90-91):
Trata-se de agravo regimental interposto contra a decisão de fls. 92-94
(e-STJ), que indeferiu de plano o processamento da Reclamação, amparada na
Resolução STJ n. 12/2009, firme em que “No caso dos autos, a matéria não está
disciplinada em enunciado de Súmula deste Tribunal, tampouco há indicação, na
petição inicial, de julgamento acerca do tema submetido ao regime dos recursos
repetitivos”.
É o relatório.
Decido.
A pretensão recursal não merece prosperar.
Nos termos no artigo 6º da Resolução STJ n. 12/2009, são irrecorríveis as
decisões proferidas pelo relator, em sede de reclamação destinada a dirimir
divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido: AgRg na Reclamação n. 5.953-DF, Relator Ministro Sidnei Beneti,
julgado em 16.6.2011; AgRg na Reclamação n. 5.795-BA, Relator Ministro Luis
Felipe Salomão, julgado em 28.6.2011; AgRg na Reclamação n. 5.593-MG, Relatora
Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 1º.7.2011 e AgRg na Reclamação n.
5.743-GO, Relator Ministro Sidnei Beneti, DJe de 2.6.2011, este último, assim
ementado:
Agravo regimental. Resolução n. 12/2009 do STJ. Decisões do relator
proferidas em reclamação. Irrecorribilidade. Precedentes. Decisão agravada
mantida. Improvimento.
I. Conforme determina o art. 6º da Resolução n. 12/2009 desta Corte,
as decisões do relator proferidas nas reclamações destinadas a dirimir
divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a
jurisprudência desta Corte Superior são irrecorríveis (AgRg na Rcl n. 4.753RS, Relª. Minª. Nancy Andrighi, DJe 21.10.2010 e RCDESP na Rcl n. 4.223-SP,
Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 3.8.2010).
II. O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a
conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos.
Agravo Regimental improvido.
Ademais, é de ser reiterado o fundamento de que, ao apreciar as Reclamações
n. 3.812-ES e n. 6.721-MT, em 9.11.2011, a Segunda Seção deliberou que a
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
39
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
expressão “jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, contida no art. 1º da
Resolução n. 12/2009, deve ser entendida como a veiculada tão somente nos
precedentes surgidos no julgamento de recursos especiais em controvérsias
repetitivas (art. 543-C do CPC) ou por súmulas da Corte.
Ante o exposto, não conheço do presente agravo regimental.
Publique-se.
Intimem-se.
Brasília-DF, 15 de março de 2012.
8.- Contra essa decisão foi interposto novo Agravo Regimental, também
rejeitado monocraticamente, pelos mesmos fundamentos (fls. 96-97).
9.- Os Embargos de Declaração que se seguiram foram rejeitados
igualmente por decisão monocrática (fls. 100-102).
10.- No presente mandado de segurança a Impetrante sustenta, em síntese,
que o ato impugnado está revestido de ilegalidade, pois impediu que o Agravo
Regimental fosse analisado por órgão colegiado competente, juiz natural da
questão.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 11.- A irresignação não merece
prosperar.
12.- Na linha dos precedentes desta Corte, para que seja admissível
mandado de segurança contra ato judicial, exige-se, além de ausência de recurso
apto a combatê-lo (Súmula n. 267-STF “Não cabe mandado de segurança
contra ato judicial passível de recurso ou correição”) que o decisum impugnado
seja manifestamente ilegal ou teratológico.
Nesse sentido: AgRg no MS n. 18.404-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi,
Corte Especial, julgado em 5.9.2012, DJe 18.9.2012; AgRg no MS n. 17.942RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Segunda Seção, julgado em 27.6.2012, DJe
1º.8.2012; RMS n. 38.721-RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira
Turma, julgado em 11.12.2012, DJe 18.12.2012; RMS n. 38.833-MG, Rel.
Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 18.9.2012, DJe 25.9.2012;
RMS n. 10.209-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 8.5.2012, DJe 16.5.2012; AgRg no RMS n. 37.436-SP, Rel. Ministra
Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 22.5.2012, DJe 29.5.2012.
40
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
13.- No caso dos autos, a opção da autoridade Coatora, o E. Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva, de negar conhecimento ao Agravo Regimental
interposto na Reclamação n. 7.840-RJ por meio de decisão monocrática não se
revela, teratológica.
14.- A negativa de conhecimento destacada encontra previsão expressa no
artigo 6º da Resolução n. 12/2009. Trata-se de regra específica que se sobrepõe
à regra genérica do artigo 258 do RISTJ, que prevê o cabimento de agravo
regimental contra decisão do relator.
A respeito da irrecorribilidade desse tipo de decisão já há precedentes desta
Corte Superior:
Agravo regimental. Reclamação. Resolução n. 12-STJ. Decisão do relator.
Irrecorribilidade. Art. 6º. Dissídio jurisprudencial não demonstrado.
1. O art. 6º da Resolução n. 12/2009 desta Corte é taxativo ao dispor que as
decisões do relator proferidas nas reclamações destinadas a dirimir divergência
entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência desta
Corte Superior são irrecorríveis.
2. De qualquer forma, não se encontra presente o pressuposto de
admissibilidade contido no art. 1º da Resolução n. 12 do STJ, consubstanciado na
comprovação de divergência do ato atacado com a jurisprudência consolidada
desta Corte.
(AgRg na Rcl n. 6.489-CE, Rel. Ministro Og Fernandes, Terceira Seção, julgado
em 13.6.2012, DJe 21.6.2012)
Agravo regimental na reclamação. Resolução n. 12/2009 do STJ. Art. 6º.
Irrecorribilidade da decisão agravada. Ausência de similitude fática entre os
julgados. Impossibilidade de reexame de aspectos fáticos. Não cabimento.
1. Dispõe o art. 6º da Resolução n. 12/2009 do STJ: “As decisões proferidas pelo
relator são irrecorríveis”. Entendimento pacífico da Segunda Seção.
2. A ausência de similitude fática entre o acórdão impugnado e os paradigmas
colacionados impede o exame da reclamação manejada nos moldes da Resolução
n. 12/2009 do STJ.
(AgRg na Rcl n. 6.580-RJ, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção,
julgado em 9.11.2011, DJe 24.11.2011)
15.- O fato de essa negativa de conhecimento ter vindo a lume por meio
de uma decisão monocrática e não por uma decisão colegiada, como ocorrido
nos precedentes destacados, não configura ilegalidade patente ou teratologia. A
rigor tal circunstância não configura nem mesmo inversão procedimental.
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
41
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com efeito, não é possível sustentar que o Agravo Regimental, nesses casos,
deveria ser levado a julgamento pelo órgão colegiado em princípio competente
para apreciar esse tipo de recurso, porque, repita-se, a decisão do relator que
aprecia a reclamação é impassível de recurso (artigo 6º, da Resolução-STJ n.
12/2009).
Admitir que existe um órgão colegiado competente para apreciar o agravo
regimental nesses casos é emprestar aparência de regularidade a um recurso que
não não deve existir.
Perceba-se que há uma contradição em termos quando se afirma que a
decisão do Relator, nesse tipo de situação, é irrecorrível e, ao mesmo tempo,
que o agravo regimental interposto contra ela deve ser apreciado pelo órgão
colegiado competente. Se a decisão é irrecorrível, não importa que a parte
insatisfeita venha a atacá-la por agravo regimental, recurso extraordinário,
recurso de revista, ou qualquer outra modalidade recursal, todas elas serão
igualmente incabíveis. E para o reconhecimento dessa circunstância não será
necessário remeter o recurso à apreciação do órgão colegiado, do Supremo
Tribunal Federal ou do Tribunal Superior do Trabalho.
Imagine-se que, em primeiro grau de jurisdição, o réu interponha recurso
extraordinário contra sentença de procedência do pedido. Pergunta-se: o
magistrado estará impedido de rejeitar liminarmente o recurso, negando-lhe
conhecimento? Decerto que não. E se na justiça comum estadual, a parte
interpõe recurso de revista contra acórdão do Tribunal de Justiça, o relator estará
obrigado a remeter esse recurso para que o TST se manifeste quanto ao seu
descabimento? A resposta, mais uma vez, só pode ser negativa.
Nesses dois exemplo, o que justifica a rejeição in limine do recurso é a
manifesta ausência do primeiro pressuposto recursal: o cabimento. Essa mesma
ausência se faz sentir no caso dos autos, pois o artigo 6º da Resolução STJ n.
12/2009 consigna expressamente que: “As decisões proferidas pelo relator são
irrecorríveis”.
16.- A Corte Especial já se posicionou nesse sentido, confira-se:
Processual Civil. Agravo em mandado de segurança. Ato judicial. Reclamação.
Resolução STJ n. 12/2009. Indeferimento. Decisão unipessoal. Irrecorribilidade.
- Mandado de segurança impetrado contra decisão que não conheceu de
agravo interposto nos autos de reclamação proposta contra acórdão proferido
por Turma Recursal.
42
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
- Ausência de teratologia ou ilegalidade na decisão impugnada.
- A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que não cabem recursos
contra decisão unipessoal que indefira liminarmente reclamação ajuizada
com base na Resolução STJ n. 12/2009, ante a ausência dos pressupostos de
admissibilidade.
- Agravo não provido.
(AgRg no MS n. 18.443-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado
em 17.12.2012, DJe 1º.2.2013).
17.- Dessa forma, afastada a teratologia da decisão, descabida sua
impugnação por meio de mandado de segurança.
18.- Ante o exposto, denega-se a segurança.
RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013
43
Primeira Seção
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL N. 1.254.710-SE
(2012/0211060-2)
Relator: Ministro Ari Pargendler
Embargante: Veículos e Máquinas União Ltda
Advogado: Guilherme Mignone Gordo e outro(s)
Embargado: Fazenda Nacional
Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
EMENTA
Processo Civil. Mandado de segurança. Direito líquido e certo.
O art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951, a cujo teor o mandado de
segurança protegerá ‘direito líquido e certo’, não é uma senha que abre
as portas do recurso especial; o único efeito dessa regra é o de que o
‘direito’ que dependa de dilação probatória está excluído do âmbito do
writ.
Há infração a essa regra quando a sentença ou o acórdão deixam
de conhecer do mandado de segurança porque o thema decidendum é
erroneamente identificado como questão de fato.
Tributário. Compensação. A compensação de créditos e débitos
em matéria tributária supõe quantificação dos respectivos valores,
exigindo prova incompatível com o rito do mandado de segurança;
já a mera declaração de créditos e débitos, identificados por suas
espécies, podem ser compensados depende de juízo a respeito de
questão eminentemente de direito, suscetível de exame no writ sem
necessidade de prova preconstituída.
Se, como no caso, o reconhecimento do crédito supõe a declaração
de inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 2.445 e do Decreto-Lei
n. 2.449, a constituição do direito à compensação tributária se dá pela
sentença proferida no mandado de segurança, sujeita a quantificação
dos valores à fiscalização no procedimento do lançamento.
Embargos de divergência providos para que o tribunal a quo
prossiga no julgamento da apelação.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, conhecer dos embargos e dar-lhes provimento, nos termos
do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Eliana Calmon e os Srs.
Ministros Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins, Herman Benjamin,
Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Sérgio Kukina votaram com
o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Napoleão
Nunes Maia Filho.
Brasília (DF), 22 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Relator
DJe 2.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ari Pargendler: Os embargos de divergência foram opostos
contra o seguinte acórdão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça,
relator o Ministro Herman Benjamim:
“Processual Civil e Tributário. Mandado de segurança. Compensação de
tributos. PIS. Cofins. CSLL. Recurso especial. Alínea c. Não demonstração da
divergência. Direito líquido e certo. Verificação. Reexame do conjunto fáticoprobatório. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Ausência de prequestionamento.
Súmula n. 282-STF.
1. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem
recorre demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os
casos confrontados, com indicação da similitude fático-jurídica entre eles.
Indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos
recorrido e paradigma, realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com o
intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente. O desrespeito a
esses requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art.
255 do RI-STJ) impede o conhecimento do Recurso Especial, com base na
alínea c do inciso III do art. 105 da Constituição Federal.
2. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a apreciação da
suposta violação do art. 1º da Lei n. 1.533/1951, com a consequente verificação
48
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
da existência ou não de direito líquido e certo amparado por Mandado de
Segurança, tem sido inadmitida em Recurso Especial, pois exige reexame de
matéria fático-probatória, o que é vedado ao Superior Tribunal de Justiça, nos
termos da sua Súmula n. 7.
3. A alegação sobre ofensa ao art. 74 da Lei n. 9.430/1996 não foi analisada
pelo acórdão recorrido. Dessa forma, não se observou o requisito indispensável
do prequestionamento em relação a essa questão. Incidência, por analogia, da
Súmula n. 282-STF.
4. Agravo Regimental não provido.” (e-stj, fl. 480).
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (e-stj, fl. 512-513).
As razões do recurso dizem que o acórdão embargado divergiu do que foi
decidido pela Primeira Seção no julgamento do Recurso Especial n. 1.111.164,
BA, da relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki, assim ementado:
“Tributário e Processual Civil. Mandado de segurança. Compensação
tributária. Impetração visando efeitos jurídicos próprios da efetiva realização da
compensação. Prova pré-constituída. Necessidade.
1. No que se refere a mandado de segurança sobre compensação tributária,
a extensão do âmbito probatório está intimamente relacionada com os limites
da pretensão nele deduzida. Tratando-se de impetração que se limita, com base
na Súmula n. 213-STJ, a ver reconhecido o direito de compensar (que tem
como pressuposto um ato da autoridade de negar a compensabilidade), mas sem
fazer juízo específico sobre os elementos concretos da própria compensação, a
prova exigida é a da “condição de credora tributária” (EREsp n. 116.183-SP, 1ª
Seção, Min. Adhemar Maciel, DJ de 27.4.1998).
2. Todavia, será indispensável prova pré-constituída específica quando,
à declaração de compensabilidade, a impetração agrega (a) pedido de juízo
sobre os elementos da própria compensação (v.g.: reconhecimento do indébito
tributário que serve de base para a operação de compensação, acréscimos
de juros e correção monetária sobre ele incidente, inexistência de prescrição
do direito de compensar), ou (b) pedido de outra medida executiva que tem
como pressuposto a efetiva realização da compensação (v.g.: expedição de
certidão negativa, suspensão da exigibilidade dos créditos tributários contra
os quais se opera a compensação). Nesse caso, o reconhecimento da liquidez
e certeza do direito afirmado depende necessariamente da comprovação dos
elementos concretos da operação realizada ou que o impetrante pretende
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
49
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
realizar. Precedentes da 1ª Seção (EREsp n. 903.367-SP, Min. Denise Arruda,
DJe de 22.9.2008) e das Turmas que a compõem.
3. No caso em exame, foram deduzidas pretensões que supõem a efetiva
realização da compensação (suspensão da exigibilidade dos créditos tributários
abrangidos pela compensação, até o limite do crédito da impetrante e expedição
de certidões negativas), o que torna imprescindível, para o reconhecimento
da liquidez e certeza do direito afirmado, a pré-constituição da prova dos
recolhimentos indevidos.
4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do
CPC e da Resolução STJ n. 8/2008.” (DJe de 25.5.2009).
Os embargos de divergência foram impugnados (e-stj, fl. 568-570).
O Ministério Público Federal, na pessoa da Subprocuradora-Geral Darcy
Santana Vitobello, opinou pelo não conhecimento do recurso (e-stj, fl. 575577).
VOTO
O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): 1. Diferentemente das instâncias
ordinárias, em que o trabalho do juiz consiste em identificar no litígio os fatos
que o distinguem dos demais, para que tanto quanto possível a lei seja aplicada
sob um viés circunstanciado, na instância especial o julgamento é inspirado pela
uniformização.
Os embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça constituem
a última etapa da uniformização jurisprudencial, e pressupõem casos idênticos
ou assemelhados tais como dimensionados no acórdão embargado e no acórdão
indicado como paradigma.
Em função disso, o conhecimento dos embargos de divergência está sujeito
a duas regras:
(a) a de que o acórdão impugnado e aquele indicado como paradigma
discrepem a respeito do desate da mesma questão de direito, sendo indispensável
para esse efeito a identificação do que neles foi a razão de decidir;
(b) a de que esse exame se dê a partir da comparação de um e de outro
acórdão, nada importando os erros ou acertos dos julgamentos anteriores
(inclusive, portanto, os do julgamento do recurso especial), porque os embargos
de divergência não constituem uma instância de releitura do processo.
50
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
No âmbito dos embargos de divergência não se rejulga o recurso especial. O
respectivo acórdão é simplesmente confrontado com um ou mais julgados com a
finalidade de harmonizar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
2. Os presentes embargos de divergência atacam o acórdão embargado na
parte em que deixou de conhecer do recurso especial, pela alínea a, por violação
do art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951.
A esse respeito, o acórdão embargado assim decidiu:
“A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a apreciação da
suposta violação do art. 1º da Lei n. 1.533/1951, com a consequente verificação
da existência ou não de direito líquido e certo amparado por Mandado de
Segurança, tem sido inadmitida em Recurso Especial, pois exige reexame de
matéria fático-probatória, o que é vedado ao Superior Tribunal de Justiça, nos
termos da sua Súmula n. 7” (e-stj, fl. 480).
Já para o acórdão indicado como paradigma:
“No que se refere a mandado de segurança sobre compensação tributária, a
extensão do âmbito probatório está intimamente relacionada com os limites da
pretensão nele deduzida. Tratando-se de impetração que se limita, com base na
Súmula n. 213-STJ, a ver reconhecido o direito de compensar (que tem como
pressuposto um ato da autoridade de negar a compensabilidade), mas sem fazer
juízo específico sobre os elementos concretos da própria compensação, a prova
exigida é a da “condição de credora tributária” (EREsp n. 116.183-SP, 1ª Seção,
Min. Adhemar Maciel, DJ de 27.4.1998)”.
Salvo melhor juízo, uma orientação discrepa da outra.
3. O art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951, a cujo teor o mandado de segurança
protegerá ‘direito líquido e certo’, não é uma senha que abre as portas do recurso
especial; o único efeito dessa regra é o de que o ‘direito’ que dependa de dilação
probatória está excluído do âmbito do writ. Há infração a essa regra quando
sentença ou acórdão deixam de conhecer do mandado de segurança, porque
a questão é ‘complexa’, ou porque o direito não é ‘translúcido’ ou porque é
‘controvertido” - e também o thema decidendum é erroneamente identificado
como questão de fato.
Na lição de Celso Agrícola Barbi, “o conceito de direito líquido e certo é
tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no
processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir
não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
51
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no
processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois esta
é adequada a uma demonstração imediata e segura dos fatos” (Do Mandado de
Segurança, Forense, Rio de Janeiro, 1976, p. 85).
No Agravo Regimental no Mandado de Segurança n. 211.881, DF, o
relator p/o acórdão, Ministro Carlos Velloso, redigiu, a esse respeito, ementa
didática, a saber:
“Direito líquido e certo, que autoriza o ajuizamento do mandado de
segurança diz respeito aos fatos. Se estes estão comprovados, de plano, é possível
o aforamento do writ’. Segue-se, então, a fase de acertamento da relação fáticojurídica, na qual o juiz faz incidir a norma objetiva sobre os fatos. Se, dessa
incidência, entender o juiz nascido o direito subjetivo, deferirá a segurança” (DJ,
19. 4.1991).
4. A espécie, todavia, é sui generis, porque para o efeito declaratório do
direito à compensação, basta a alegação do crédito, que mais tarde estará sujeito
à fiscalização tributária no procedimento de homologação do lançamento,
sendo destituída de qualquer fundamento a peculiaridade destacada no acórdão
embargado, a saber:
“(...) consoante a pacífica jurisprudência do STJ, é cabível a impetração
de Mandado de Segurança com vistas à declaração do direito à compensação
tributária, conforme Enunciado da Súmula n. 213-STJ: “O mandado de
segurança constitui ação adequada para a declaração do direito à compensação
tributária.” Entretanto, excepcionam-se os casos em que inexiste prova préconstituída, tendo em vista ser impossível dilação probatória em mandamus.
In casu, o Tribunal a quo consignou que (fl. 250, e-STJ):
‘Da análise do pedido deduzido na exordial evidencia-se que inexiste
direito líquido e certo. O crédito invocado depende de constituição no próprio
Mandado de Segurança em que a parte postula autorização para efetuar a
compensação’.” (e-stj. fl. 484-485).
Com efeito, nada impede que o direito à compensação seja constituído no
próprio mandado de segurança. Como reconhecer o direito à compensação do
que foi pago indevidamente a título de PIS por força do Decreto-Lei n. 2.445
e 2.449, no período de julho de 1988 a outubro de 1995, sem decretar-lhes a
inconstitucionalidade?
Voto, por isso, no sentido de conhecer dos embargos de divergência para
que o tribunal a quo prossiga no julgamento da apelação.
52
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
MANDADO DE SEGURANÇA N. 17.370-DF (2011/0152234-7)
Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima
Impetrante: Jorge Elias da Silva
Advogado: Sidney Seixas de Santana
Impetrado: Ministro de Estado da Saúde
Interessado: União
EMENTA
Administrativo. Mandado de segurança. Servidor público.
Processo administrativo disciplinar - PAD. Anulação da pena de
suspensão, já cumprida pelo servidor, e aplicação de pena mais grave,
de demissão, por orientação da Controladoria-Geral da União. Bis
in idem e reformatio in pejus. Impossibilidade. Pedido de reintegração
julgado procedente. Efeitos funcionais. Retroação à data da demissão.
Efeitos financeiros. Retroação limitada à data da impetração.
Segurança concedida.
1. “A Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de
demissão, vincula-se aos fatos apurados e não à capitulação legal
proposta pela Comissão Processante. Da mesma forma, o indiciado se
defende dos fatos contra ele imputados, não importando a classificação
legal inicial, mas sim a garantia da ampla defesa e do contraditório.
Por isso, a modificação na tipificação das condutas pela Autoridade
Administrativa não importa nem em nulidade do PAD, nem no
cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008).
2. O novo julgamento do processo administrativo disciplinar
ofende o devido processo legal, por não encontrar respaldo na Lei n.
8.112/1990, que prevê sua revisão tão somente quando constatado
vício insanável ou houver possibilidade de abrandamento da sanção
disciplinar aplicada ao servidor público.
3. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento
do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa,
à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
53
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público
punido não pode remanescer sujeito a novo julgamento do feito
para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir
orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo
administrativo disciplinar.
4. “É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada
no mesmo processo em que se fundou a primeira” (Súmula n. 19STF).
5. Hipótese em que a anulação, pelo Presidente da Funasa, da
pena de suspensão aplicada ao Impetrante, após seu cumprimento,
não teve por escopo corrigir eventual vício insanável e/ou beneficiá-lo,
na medida em que resultou da orientação firmada pela CorregedoriaGeral da União - CGU que, ao reexaminar o mérito das conclusões
firmadas pela Comissão processante, entendeu necessária a aplicação
de pena mais grave, de demissão.
6. Segurança concedida para anular a pena de demissão aplicada
ao Impetrante e determinar à Autoridade Impetrada que o reintegre
ao serviço público. Efeitos funcionais que devem retroagir à data da
demissão do servidor. Os efeitos financeiros, todavia, devem retroagir
à data da impetração, conforme as Súmulas n. 269 e 271-STF,
reservando-se a cobrança das diferenças remuneratórias anteriores à
impetração às vias ordinárias.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, conceder a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro
Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler, Eliana
Calmon e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator
DJe 10.9.2013
54
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de mandado de segurança,
com pedido de liminar, impetrado por Jorge Elias da Silva contra suposto ato
ilegal do Sr. Ministro de Estado da Saúde, consubstanciado na Portaria-MS n.
781, publicado no D.O.U. de 14.4.2011, que o demitiu do cargo de Analista
de Suporte do quadro de pessoal da Fundação Nacional de Saúde - Funasa,
uma vez que teria ele se valido do cargo para lograr profeito de outrem em
detrimento da dignidade da função pública, além de ter causado leão ao erário.
Narra o Impetrante, em apertada síntese, que:
a) o procedimento administrativo disciplinar que resultou em sua demissão
foi instaurado para apurar atos ocorridos no período de 14.6.2006 a 24.10.2006,
ou seja, quando ele não mais ocupava, a título eventual a Chefia da Seção de
Recursos Logísticos da Coordenação Regional da Funasa no Rio de Janeiro
(período de 3.2.2006 a 18.5.2006) ou a Chefia da Divisão de Administração
da Coordenação Regional da Funasa naquela mesma localidade (período de
16.2.2006 a 19.5.2006);
b) restaria demonstrado que jamais participou do processo de licitação
supostamente eivado de irregularidades, mormente porque (fl. 2e):
[...] a adesão à ata de registro de preços - Pregão n. 020/2005, do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sobre os bens móveis e serviços
a serem adquiridos se deu a partir da autorização da Coordenadora-Geral de
Logística e Administração para o Coordenador Regional da Funasa no Rio de
Janeiro (DOC. 10).
[...] Sua participação no procedimento administrativo limitou-se a preparar
a aquisição de bens móveis e serviços, no período compreendido de 10.3.2006
até 18.5.2006, Processo n. 25245.003.526/2006-01, na fase interna do processo
licitatório (DOCs. 8D, 9A, 11).
c) após ser-lhe aplicada uma pena de suspensão de 30 (trinta) dias, a
qual foi cumprida integralmente no período de 16.10.2007 a 14.11.2007,
ingressou com um procedimento revisional daquela punição em 17.12.2007, e
que resultou na anulação da pena de suspensão;
d) o encaminhamento do processo administrativo disciplinar à Autoridade
Impetrada “só poderia se referir aos demais partícipes do procedimento”, mas
“[n]unca ao ora impetrante, relativamente a quem fora reconhecida a nulidade
do procedimento” (fl. 4e); tal equívoco, outrossim, foi agravado pelo fato de que
(fl. 4e):
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
55
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Ministro, ignorando que as instâncias inferiores, por falta de atenção ou
desconhecimento estavam a repristinar processo findo, relativamente ao ora
impetrante, sem nova oitiva da parte a quem supostamente se imputava algo,
nem reabrir contraditório, resolveu apená-lo, aplicando-lhe a mais grave das
penas: a demissão do serviço público, consoante Diário Oficial da União - Seção 2,
n. 72, de 14.4.2011 (DOC. 18).
À luz desses fatos, afirma que o ato de demissão ora impugnado teria
afrontado aos arts. 5º, LIV, LV e LVII da Constituição Federal e 22, 128, 143,
153 e 182, parágrafo único, da Lei n. 8.112/1990, pois não bastasse o fato de que
sequer estava a responder a um procedimento administrativo disciplinar, não lhe
foi assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Por fim, além dos pedidos de estilo, requer o Impetrante:
1) Seja concedida liminar, inaudita altera parte, ab initio litis; em favor do
impetrante, com a expedição de mandado determinando a sua imediata
reintegração no efetivo exercício do seu cargo com o pagamento da remuneração
e vantagens correspondentes, até o final da presente lide;
2) No mérito a procedência do presente mandamus para decretação
da nulidade de todos os atos praticados no Procedimento Administrativo
Disciplinar no 25100.002.645/2007-64, após a decisão do Presidente da Funasa,
consubstanciada na Portaria n. 836, de 14.8.2007, anulando a pena de suspensão
aplicada a Jorge Elias da Silva (DOC. 12);
Em decisão proferida em 5.7.2011, o em. Min. Felix Fischer deferiu o
pedido de justiça gratuita e indeferiu o pedido de liminar (fls. 55-56e).
Informações da Autoridade Impetrada às fls. 61-80e, acompanhada de
documentos (fls. 81-565e).
Manifestação da União à fl. 569e.
O Ministério Público Federal, em parecer do Procurador Regional da
República Francisco Rodrigues dos Santos Sobrinho, no exercício do cargo de
Subprocurador-Geral da República, opinou pela denegação da segurança (fls.
574-584e).
Em atendimento ao pedido incidental formulado pelo Impetrante, a
Autoridade Impetrada fez juntar aos autos a cópia integral do processo revisional
instaurado por solicitação do servidor (fls. 600-6.166e).
É o relatório.
56
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
VOTO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): Como relatado, cuidase a espécie de mandado de segurança impetrado por Jorge Elias da Silva
contra suposto ato ilegal do Sr. Ministro de Estado da Saúde, consubstanciado
na Portaria-MS n. 781, publicado no D.O.U. de 14.4.2011, que o demitiu do
cargo de Analista de Suporte do quadro de pessoal da Fundação Nacional de
Saúde - Funasa, uma vez que teria ele se valido do cargo para lograr profeito de
outrem em detrimento da dignidade da função pública, além de ter causado leão
ao erário.
Nada obstante os vários fatos narrados pelo Impetrante na petição inicial,
observa-se que a questão jurídica trazida à apreciação desta Corte é a seguinte:
poderia o Impetrante, após cumprir a pena de suspensão de 30 (trinta) dias que,
outrossim, foi anulada pela Administração, sofrer nova punição pelos mesmos fatos,
sem a prévia abertura de novo procedimento investigatório em que fosse assegurado ao
servidor a ampla defesa e o contraditório?
Delimitada a controvérsia, para sua adequada compreensão faz-se
necessário fixar algumas questões fáticas essenciais, a saber:
1) como narrado pelo Impetrante, foi ele submetido a um procedimento
administrativo disciplinar (n. 25100.621.430/2006-66), no qual foi apurado
“possíveis irregularidades nos procedimentos para aquisição, pagamento e
estocagem de mobiliário adquiridos das empresas Marelli Móveis para
Escritório Ltda e Complemento Planejamento e Decorações Ltda” (fl. 5.793e);
2) ao fim desse procedimento disciplinar, restou apurada a culpabilidade
do ora Impetrante, uma vez que fora responsável pelas inúmeras irregularidades
descritas no relatório final da Comissão Processante (fls. 5.903-5.906e), dentre
as quais se destaca:
[deixou o servidor] de realizar pesquisa de preços de mercado visando avaliar
preliminarmente os preços registrados na ata de Pregão n. 020/2005 (fls. 25-26
e 769), para formar juízo sobre a continuidade ou suspensão do processo de
aquisição, preferindo fixar o valor estimativo no PBS n. 04, datado de 20.3.2006
(fl. 660) exatamente igual àquele estipulado pelos fornecedores em 13.6.2006 (fls.
69.691), acarretando em prejuízo aparente estimado de R$ 934.891,28 (fls. 4.8394.840).
3) diante desses fatos, a Comissão sugeriu que fosse aplicado ao ora
Impetrante uma pena de suspensão de 30 (trinta) dias, nos seguintes termos (fl.
5.906e):
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
57
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A conduta deste servidor acarretou em lesão ao dever funcional, subsumindose aos tipos dos artigos 116, I, II, III, e IX da Lei n. 8.112/1990, razão porque esta
Comissão sugere para o mesmo a penalidade de suspensão, por 30 dias, restando
declinar que, além de considerar ser o servidor possuidor de bons antecedentes
funcionais (fls. 955-958), o conjunto das faltas apuradas, apesar de causadoras
de lesão ao erário, não se subsumiram ao tipo de improbidade administrativa,
conforme inferido deste relatório, pelo que afasta-se sugestão de pena de
demissão por irreconciliável quebra de confiança na sua conduta funcional;
4) diante das conclusão da Comissão Processante e dos Pareceres Técnicos
formulados por sua respectiva assessoria, o Sr. Presidente da Funasa decidiu
aplicar ao ora Impetrante a pena de suspensão recomendada (fls. 5.933-5.944e),
o que de fato ocorreu por meio da Portaria-Funasa n. 836, de 14.8.2007 (fl.
5.936e);
5) a suspensão foi cumprida no período de 16.10.2007 a 14.11.2007 (fl.
5.952e);
6) em setembro de 2007, diante do prejuízo apurado pela Comissão
Processante, decorrente do sobrepreço na aquisição de mobiliário, entendeu o
Sr. Presidente da Funasa pela necessidade de instauração de um procedimento
de tomada de contas especial em desfavor do Impetrante e outros, “visando o
ressarcimento do prejuízo causado ao erário” (fl. 5.944e), o que ocorreu por meio
da Portaria-Funasa n. 184, de 18.9.2007 (fl. 5.946e);
7) em dezembro de 2007, por sua vez, o próprio Impetrante requereu a
abertura de um processo de revisão da penalidade de suspensão, argumentando,
em apertada síntese, que não poderia ser responsabilizado pelas irregularidades
apuradas pela Comissão Processante uma vez que à época dos fatos não era ele
responsável pelo órgão (fls. 606-609e);
8) em março de 2008 a Controladoria-Geral da União, por meio do
Corregedor-Geral, oficiou ao Sr. Presidente da Funasa informando que,
diante dos fatos apurados pela Comissão Processante nos autos do PAD n.
25100.621.430/2006-66, em especial o sobrepreço na aquisição dos bens, o ora
Impetrante estaria sujeito à pena de demissão prevista no art. 132, X, da Lei n.
8.112/1990, motivo pelo qual recomendou a anulação do (fl. 771e):
[...] julgamento do referido processo no que tange ao servidor Jorge Elias da
Silva, e que seja realizado novo julgamento, com aplicação da penalidade cabível,
em conformidade com as provas contidas nos autos do processo.
58
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
9) diante da recomendação formulada pela CGU e dos pareceres técnicos
de sua assessoria jurídica, entendeu o Sr. Presidente da Funasa em 13.6.2008
pela necessidade de anular parcialmente o julgamento proferido no mencionado
processo administrativo disciplinar, tornando sem efeito a pena de suspensão
aplicada ao Impetrante, bem como encaminhar os respectivos autos ao Ministro
de Estado da Saúde, ora Impetrado, para julgamento do feito (fl. 791e);
10) a Autoridade Impetrada, por sua vez, acatando o parecer formulado
pela Consultoria Jurídica quanto à regularidade do processo administrativo
disciplinar e gravidade dos fatos imputados ao ora Impetrante, proferiu
julgamento no sentido de aplicar-lhe a pena de demissão, com base nos arts.
117, IX, X e XIII, c.c. 136 e 137, caput, e parágrafo único, da Lei n. 8.112/1990,
e, naquele mesmo ato, não conhecer do pedido administrativo de revisão do
Impetrante (fls. 6.103-6.107e).
Pois bem.
Verifica-se, de início, ser irrelevante perquirir se as irregularidades
imputadas ao Impetrante ocorreram quando ele não ocupava cargo de Chefia,
uma vez que, consoante constou do relatório final da Comissão Processante,
sua culpa está vinculada justamente ao fato de que ele atuou diretamente na
execução de vários contratos de compra de material, que causaram prejuízos ao
erário, “sem dar conhecimento ao chefe da DIADM” ou, ainda, “sem promover
prévias reuniões com as chefias dos setores” (fl. 5.904e).
Nesse contexto, aferir em detalhes o nível de participação do Impetrante
nos fatos a ele imputados vai além dos limites do mandado de segurança, haja
vista que demandaria dilação probatória.
De outro lado, ao contrário do que foi alegado pelo Impetrante, a
anulação da pena de suspensão ocorreu ex officio pela Administração Pública,
tanto assim que o processo revisional instaurado a pedido do servidor foi
considerado prejudicado com o novo julgamento do PAD (fls. 6.103-6.107e).
Por conseguinte, não há falar em equivoco da Administração, pois o Impetrante
efetivamente estava indiciado no PAD levada a julgamento pela Autoridade
Impetrada.
Por sua vez, também não procede a tese de cerceamento de defesa do
Impetrante, haja vista que a pena de demissão aplicada refere-se aos fatos
apurados no PAD n. 25100.621.430/2006-66, durante o qual lhe foi assegurada
a ampla defesa e o contraditório.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
59
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com efeito, é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que “A
Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de demissão, vincula-se aos
fatos apurados e não à capitulação legal proposta pela Comissão Processante.
Da mesma forma, o indiciado se defende dos fatos contra ele imputados, não
importando a classificação legal inicial, mas sim a garantia da ampla defesa
e do contraditório. Por isso, a modificação na tipificação das condutas pela
Autoridade Administrativa não importa nem em nulidade do PAD, nem no
cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008). Nesse mesmo sentido:
Administrativo. Servidor público federal. Processo administrativo disciplinar.
Ministro de Estado da Previdência Social. Preliminares desacolhidas. Alegação
de cerceamento de defesa. Não ocorrido processamento regular. Ausência de
proporcionalidade na sanção. Ocorrência. Anulação da portaria demissional.
1. Cuida-se de writ impetrado com o fito de anular processo administrativo
disciplinar, bem como portaria de demissão; a penalidade derivou de um
complexo processo administrativo, instaurado após operação da Polícia Federal,
que visava punir servidores por irregularidades na emissão de certidões
previdenciárias.
2. A via mandamental mostra-se adequada para perseguir a anulação de ato
demissional quando se alega e comprova que este mostrou-se excessivo, e não
amparado nas provas dos autos. Rejeito a preliminar de inadequação. Precedente:
MS n. 14.993-DF, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe
16.6.2011.
(...)
5. Quanto ao mérito, cabe frisar que a alegação de cerceamento da defesa
está baseada no fato de que a autoridade julgadora o puniu com demissão,
acatando o parecer da consultoria jurídica, que reinterpretou as provas dos autos;
a comissão processante havia - também fundamentadamente - recomendado a
punição com advertência ou suspensão. No entanto, não procede a pretensão de
que a alteração da capitulação legal obrigue a abertura de nova defesa, já que o
indiciado se defende dos fatos, e não dos enquadramentos legais. Precedente: MS
n. 14.045-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 29.4.2010.
(...)
8. Prejudicado o agravo regimental. Segurança parcialmente concedida. (MS n.
15.810-DF, Rel. Min. Humberto Martins, Primeira Seção, DJe 30.3.2012)
Impende ressaltar, todavia, que “no Direito brasileiro aplica-se a teoria da
substanciação, por meio da qual apenas os fatos vinculam o julgador, que poderá
atribuir-lhe a qualificação jurídica que entender adequada ao acolhimento ou à
60
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
rejeição do pedido, como fruto dos brocardos iura novit curia, e da mihi factum
dabo tibi ius. Nesse sentido cfr. REsp n. 1.153.656-DF, Rel. Ministro Teori
Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 18.5.2011; AgRg no Ag n. 1.351.484-RJ,
Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe 26.3.2012; REsp n. 1.043.163SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 28.6.2010” (REsp n.
1.316.634-ES, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 19.12.2012).
Nesse extensão, é possível observar que o Impetrante narrou na petição
inicial, de forma clara e precisa, fatos que consubstanciam um indevido bis in
idem na punição de infração administrativa.
Registro, desde logo, que não desconheço acórdãos do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça segundo os quais a vedação preconizada
no enunciado da Súmula n. 19-STF (“É inadmissível segunda punição de
servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira”) não
incide quando a pena anterior é anulada, para que em seu lugar se imponha uma
mais grave. A propósito:
Previsão legal da pena de demissão. Aplicação errônea da pena de suspensão.
A hipótese não é de revisão para beneficiar (art. 174 da Lei n. 8.112/1990) mas
de ato da Administração Pública proferido contra expressa letra da lei e passível
de correção ex officio. Inaplicabilidade da Súmula n. 19 do STF. Precedente: MS n.
23.146. Nenhuma mácula ocorre com relação ao devido processo legal, à ampla
defesa e ao contraditório, se preservada toda a matéria produzida nos autos
do processo administrativo onde esses princípios foram observados. Agravo
improvido. (RMS-AgRg n. 24.308, Rel. Min. Ellen Gracie, Primeira Turma, DJ de
25.4.2003)
Mandado de segurança. Administrativo. Servidor público federal. Processo
administrativo disciplinar. Cumprimento da pena de suspensão por trinta
dias. Posterior nulidade da suspensão e aplicação da pena de demissão. Nãoocorrência de bis in idem. Precedentes. Legitimidade passiva do Ministro de
Estado. Ausência de notificação do servidor para se manifestar acerca da anulação
da suspensão e da aplicação da demissão. Ofensa aos princípios constitucionais
da ampla defesa e do contraditório.
1. A aplicação inadequada a servidor público federal da pena de suspensão,
quando anulada e em seu lugar imposta a pena de demissão prevista na Lei
n. 8.112/1991, não incorre na vedação estabelecida pela Súmula n. 19 do
Excelso Pretório (“É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada
no mesmo processo em que se fundou a primeira”). Precedentes do Supremo
Tribunal Federal e desta Corte.
2. Embora disponha o artigo 141, I, da Lei n. 8.112/1990 que compete ao
Presidente da República impor a penalidade de demissão a servidor público
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
61
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
federal vinculado ao Poder Executivo, é possível sua delegação a Ministro de
Estado. Precedentes.
3. Incorre em ofensa aos princípios do contraditório e ampla defesa a
aplicação de demissão a servidor público federal, após a anulação de prévia
pena de suspensão, sem sua prévia notificação a fim de que se manifestasse
acerca daquela anulação e da possibilidade de aplicação de pena mais severa.
Ocorrência de prejuízo à defesa do impetrante, a determinar a anulação da
portaria de sua demissão.
4. Segurança concedida para que seja anulada a portaria que demitiu o
impetrante e para que seja ele notificado a fim de que se manifeste acerca da
anulação da pena de suspensão e da possibilidade de aplicação de pena mais
severa. (MS n. 7.034-DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJ
de 22.10.2007)
Ocorre que, de acordo com o disposto art. 174, caput, da Lei n. 8.112/1990,
a revisão do PAD poderá ocorrer de ofício, pela Autoridade competente, quando
apresentados fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do
servidor punido ou a inadequação da penalidade aplicada.
A propósito, confira-se o mencionado dispositivo legal:
Art. 174. O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido
ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de
justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada.
É necessário consignar, todavia, que a única interpretação para esse
dispositivo, capaz de harmonizá-lo com o princípio do devido processo legal, é
que será admitida a revisão da penalidade aplicada quando for para beneficiar o
servidor punido, e nunca para prejudicá-lo.
Outra, aliás, não é a regra que prevalece no tocante à revisão de processos
administrativos de forma geral, conforme dispõe a Lei n. 9.784/1999:
Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser
revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos
ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção
aplicada.
Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da
sanção.
In casu, observa-se que o PAD n. 25100.621.430/2006-66 já havia sido
encerrado mediante aplicação da pena cabível ao Impetrante (suspensão), motivo
62
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
pelo qual não poderia o Presidente da Funasa, ainda que por recomendação da
Controladoria-Geral da União, anular a pena anterior a fim de encaminhar o
PAD a um novo julgamento.
A adoção de entendimento diverso importaria a revogação tácita da
Súmula n. 19-STF, uma vez bastaria a simples anulação de uma penalidade já
aplicada ao servidor para permitir que a Administração Pública, baseada em um
mesmo fato já apenado, aplicasse uma segunda pena, como se a primeira fosse.
Também não se olvida que, havendo indícios de ilegalidade em seus atos,
cabe à Administração Pública exercer seu poder-dever de autotutela, com
fundamento nas Súmulas n. 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, que
preconizam:
A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos
(Súmula n. 346-STF).
A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios
que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por
motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e
ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (Súmula n. 473-STF).
No entanto, em se tratando de processo administrativo disciplinar, há
considerar limites à revisão de atos administrativos, diante da submissão ao
devido processo legal e aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela
autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que
ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de
definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a novo
julgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de
seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo
administrativo disciplinar.
Por conseguinte, tem-se que o novo julgamento da causa não encontra
respaldo na Lei n. 8.112/1990, que prevê a revisão do processo disciplinar tão
somente quando, diante de elementos novos a serem considerados, houver
possibilidade de abrandamento da sanção aplicada ao servidor público federal.
Desse modo, pode-se concluir que o ordenamento jurídico proíbe bis in idem e o
reformatio in pejus. Nesse sentido, cito o seguinte precedente:
Administrativo. Recurso especial. Servidor público. Processo administrativo
disciplinar - PAD. Anulação da pena de suspensão, já cumprida pelas servidoras,
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
63
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e aplicação de pena mais grave, de demissão, por orientação da ControladoriaGeral da União. Bis in idem e reformatio in pejus. Impossibilidade. Pedido de
reintegração julgado procedente. Recurso especial conhecido e provido.
1. É certo que “A Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de
demissão, vincula-se aos fatos apurados e não à capitulação legal proposta pela
Comissão Processante. Da mesma forma, o indiciado se defende dos fatos contra
ele imputados, não importando a classificação legal inicial, mas sim a garantia
da ampla defesa e do contraditório. Por isso, a modificação na tipificação das
condutas pela Autoridade Administrativa não importa nem em nulidade do PAD,
nem no cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008).
2. O novo julgamento do processo administrativo disciplinar ofende o devido
processo legal, por não encontrar respaldo na Lei n. 8.112/1990, que prevê sua
revisão tão somente quando constatado vício insanável ou houver possibilidade
de abrandamento da sanção disciplinar aplicada ao servidor público.
3. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela
autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que
ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de
definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a novo
julgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de
seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo
administrativo disciplinar.
4. “É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo
processo em que se fundou a primeira” (Súmula n. 19-STF).
5. Hipótese em que a anulação, pelo Presidente do Incra, da pena de suspensão
aplicada às servidoras não teve por escopo corrigir eventual vício insanável
e/ou beneficiá-las, na medida em que resultou da orientação firmada pela
Corregedoria-Geral da União (CGU) que, ao reexaminar o mérito das conclusões
firmadas pela Comissão processante, entendeu necessária a aplicação de pena
mais grave, de demissão.
6. Tendo em vista a ilegalidade do ato que importou na aplicação da pena de
demissão das servidoras, é de rigor a reintegração destas aos seus respectivos
cargos públicos, com todos os efeitos funcionais e financeiros daí decorrentes
(inclusive quanto à pena de suspensão anteriormente aplicada).
(...)
10. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.216.473-PR, minha
relatoria, Primeira Turma, DJe 9.5.2011)
O reconhecimento da ilegalidade da demissão do servidor importa, por
via de consequência, no dever de a Autoridade Impetrada reintegrá-lo ao seu
64
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
respectivo cargo público, com todos os efeitos funcionais retroativos à data do
afastamento do serviço público; quanto aos efeitos financeiros, entretanto, eles
retroagem apenas à impetração, devendo a cobrança dos valores anteriores a ela
ser realizada nas vias ordinárias. Nesse sentido:
Administrativo. Processual Civil. Agravo regimental no recurso em mandado
de segurança. Magistério estadual do Rio Grande do Sul. Promoção na carreira.
Pagamento de diferenças remuneratórias. Retroatividade. Impossibilidade.
Súmulas n. 269 e 271-STF. Agravo regimental desprovido.
1. A Primeira Turma, no julgamento do RMS n. 40.065-RS, na sessão de
21.5.2013, Rel. Min. Benedito Gonçalves, acórdão pendente de publicação, firmou
compreensão no sentido de que os efeitos financeiros, quando da concessão da
segurança, devem retroagir à data de sua impetração, sendo inviável a cobrança
de valores pretéritos no mesmo mandamus, conforme disposto no art. 14, § 4º, da
Lei n. 12.016/2009 e Súmulas n. 269/271-STF.
2. Agravo regimental desprovido, ressalvando-se o acesso à via ordinária,
se for o caso. (AgRg no RMS n. 40.369-RS, minha relatoria, Primeira Turma, DJe
21.6.2013)
Administrativo. Agravo regimental no recurso em mandado de segurança.
Servidor público estadual. Magistério. Promoção na carreira publicada no Diário
Oficial de 14 de setembro de 2011. Retroação dos efeitos das promoções relativas
ao ano de 2002. Efeitos financeiros. Impossibilidade. Incidência das Súmulas n.
269 e 271 do STF.
1. A Primeira Turma, ao analisar caso idêntico ao dos autos, cujo precedente
é de minha relatoria, já se manifestou no sentido de que “os efeitos financeiros,
quando da concessão da segurança, devem retroagir à data de sua impetração,
sendo inviável a cobrança de valores pretéritos no mesmo mandamus, nos termos
do 14, § 4º, da Lei n. 12.016/2009” (RMS n. 40.065-RS, Rel. Ministro Benedito
Gonçalves, Primeira Turma, DJe 5.6.2013).
2. Agravo regimental não provido. (AgRg no RMS n. 40.100-RS, Rel. Min.
Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 26.6.2013)
Ante o exposto, concedo a segurança a fim de reconhecer a nulidade da pena
de demissão aplicada ao Impetrante e determinar à Autoridade Impetrada que
proceda a imediata reintegração do servidor, com todos os efeitos funcionais
retroativos à data do afastamento do serviço público. Quanto aos efeitos
financeiros, deverão eles retroagir à data da impetração, nos termos das Súmulas
n. 269 e 271-STF, reservando-se às vias ordinárias a cobrança das diferenças
remuneratórias anteriores à impetração. É o voto.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MANDADO DE SEGURANÇA N. 17.811-DF (2011/0274288-1)
Relator: Ministro Humberto Martins
Impetrante: Aldo Pinheiro da Fonseca
Advogado: Luiz Cesar Barbosa Lopes e outro(s)
Impetrado: Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia
Interessado: União
EMENTA
Constitucional e Administrativo. Destituição de cargo em
comissão. Imputação de valimento do cargo em detrimento da
dignidade da função pública.
1. O mandado de segurança investe contra ato administrativo que
aplicou a pena de destituição de cargo em comissão por intermédio de
procedimento administrativo disciplinar.
2. Ao impetrante foi imputado o valimento do cargo público para
lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da
função pública, nos termos do art. 117, IX, da Lei n. 8.112/1990,
porque, exercendo o cargo em comissão de Coordenador-Geral
de Apoio Técnico, indicou para contratação irmão, nora, genro e
sobrinhos.
3.O valimento do cargo publico foi constatado pela ControladoriaGeral da União, quando da investigação preliminar, e pela Comissão
que conduziu o procedimento administrativo disciplinar.
4. O art. 168 da Lei n. 8.112/1990 permite que a autoridade
julgadora contrarie as conclusões da comissão processante, desde
que o faça com a devida motivação, para retificação do julgamento
em atenção aos fatos e provas. Precedentes: MS n. 15.826-DF, Rel.
Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 22.5.2013,
DJe 31.5.2013; MS n. 16.174-DF, Rel. Ministro Castro Meira,
Primeira Seção, DJe 17.2.2012.
5. A existência de dano ao erário é desinfluente para a
caracterização do valimento do cargo para obtenção de vantagem
pessoal ou de outrem (MS n. 14.621-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho, Terceira Seção, DJe 30.6.2010).
66
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
6. Os antecedentes funcionais do impetrante não são suficientes
para impedir a aplicação da penalidade porque “A Administração
Pública, quando se depara com situações em que a conduta do
investigado se amolda nas hipóteses de demissão ou cassação de
aposentadoria, não dispõe de discricionariedade para aplicar pena
menos gravosa por tratar-se de ato vinculado” (MS n. 15.517-DF, Rel.
Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 18.2.2011).
Segurança denegada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça
“A Seção, por unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Napoleão Nunes
Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina,
Ari Pargendler, Eliana Calmon e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Brasília (DF), 26 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministro Humberto Martins, Relator
DJe 2.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de mandado de segurança
impetrado por Aldo Pinheiro da Fonseca contra ato praticado pelo Ministro de
Estado da Ciência e Tecnologia, consubstanciado em sua destituição do cargo
em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico, Código DAS 101.4,
da Assessoria de Coordenação dos Fundos Setoriais - ASCOF da Secretaria
Executiva do respectivo Ministério.
O impetrante investe contra os termos da Portaria n. 617, de 9 de agosto
de 2011, que o destituiu do cargo comissionado de Coordenador-Geral de apoio
técnico “sem fundamento plausível e em detrimento do que preceitua o art. 128
da Lei n. 8.112/1990, haja vista restar patente a carência de fundamentação da
decisão da autoridade impetrada” (fl. 4, e-STJ).
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
67
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Eis o teor do ato reputado coator (fl. 169, e-STJ):
Portaria n. 617 de 9 de agosto de 2011
O Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação, no uso da competência
que lhe foi delegada pelo inciso I do art. 1º do Decreto n. 3.035, de 27.4.1999, de
acordo com os artigos 117, inciso IX, 132, XIII, combinado com os artigos 135 e
137, caput, e art. 168, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e tendo em vista
o que consta do Processo Administrativo Disciplinar n. 01200.004030/2010-81, do
Ministério da Ciência e Tecnologia, resolve
Destituir do cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico,
Código DAS 101.4, da Assessoria de Coordenação dos Fundos Setoriais - ASCOF da
Secretaria Executiva, deste Ministério, o servidor Aldo Pinheiro da Fonseca, matrícula
SIAPE n. 7041058, por se valer do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem,
em detrimento da dignidade da função pública, observando-se, em conseqüência,
o disposto no art. 137, caput, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Relata o impetrante que foi instaurado procedimento administrativo
disciplinar para apurar infrações relacionadas à “celebração e à execução dos
convênios SIAFI n. 522769 e 562409 firmados entre a Financiadora de Estudos
e Projetos - FINEP e a Associação Brasileira das Instituições de Pesquisas
Tecnológica - ABIPTI para fins de suporte à Assessoria de Coordenação de
Fundos Setoriais - ASCOF” (fl. 9, e-STJ).
Argui o impetrante que, “após a realização de atos instrutórios, a comissão
de processo administrativo entendeu por bem indiciar o Impetrante por
entender presente a violação do Art. 117, IX da Lei n. 8.112/1990, sob o
argumento de ter sido comprovado nos autos do PAD que o Impetrante valeuse do cargo para indicar parentes seus para serem contratados no âmbito dos
convênios objeto, conforme se abstrai do termo de indiciamento” (fl. 9, e-STJ).
Concluídos os trabalhos, a referida Comissão processante sugeriu a
aplicação da penalidade de advertência, por não ter havido comprovação de
dano ao erário e, ainda, de que as pessoas contratadas, embora indicadas pelo
impetrante, desempenharam suas atribuições a contento. Contudo, a autoridade
coatora, valendo-se da faculdade conferida pelo art. 168, parágrafo único, da Lei
n. 8.112/1990, não acatou tal conclusão e decidiu pela destituição do impetrante
do cargo em comissão.
Para o impetrante, a penalidade aplicada pela autoridade coatora violou
o art. 128 da Lei n. 8.112/1990 porque em nenhum momento fez constar
na fundamentação do ato administrativo a natureza e gravidade da infração
68
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
cometida e muito menos os danos causados ao serviço público, bem como as
circunstâncias agravantes ou atenuantes e os seus antecedentes funcionais.
Considera que essa omissão macula o ato coator porque malfere
os postulados da legalidade, moralidade, motivação, razoabilidade,
proporcionalidade e impessoalidade, haja vista que “tanto a autoridade que
determinou a instauração do PAD, quando a autoridade coatora, não indicou
qual a conduta praticada pelo impetrante que se amoldasse ao que preceitua o
inciso IX do Art. 117 da L ei n. 8.112/1990” (fl. 12, e-STJ).
Aduz ainda que a Comissão constatou que não houve nenhum proveito
pecuniário ao impetrante, não houve dano ao erário e os contratados
desempenharam suas atribuições com eficiência. Esses fatos não teriam sido
levados em consideração pela autoridade coatora, que teria, ao aplicar a pena
combatida, praticado nítida arbitrariedade, à margem da legalidade.
Sustenta também a ausência de ilicitude da conduta. Quando muito,
admite mera irregularidade desprovida de tipicidade para a aplicação de tão
drástica penalidade. Sustenta ademais que “a Súmula Vinculante n. 13, editada
pelo Supremo Tribunal Federal e que tratou da questão do nepotismo na
administração pública direta ou indireta não dispôs sobre proibição de servidor
público informar ou até mesmo indicar funcionário para ser contratado por
entidade privada” (fl. 29, e-STJ).
Por derradeiro, menciona que o ato administrativo que culminou com a
destituição do impetrante do cargo em comissão está desprovido de motivação
porque “a ilustre autoridade coatora, sem qualquer fundamentação e com afronta
ao preceito constante do Art. 128 da Lei n. 8.112/1990, entendeu por bem não
acatar a proposta da comissão processante e aplicar ao Impetrante a penalidade
de destituição do cargo” (fls. 37-38, e-STJ).
Pediu a concessão de medida liminar para obter a suspensão dos efeitos do
ato coator. Quanto ao mérito, pleiteou a declaração de nulidade do ato coator
e, por outro lado, a declaração de validade do pedido de dispensa da função que
efetuou em 25.7.2011.
A medida liminar foi indeferida nos termos da seguintes ementa (fl. 294,
e-STJ):
Direito Processual e Administrativo. Mandado de segurança. Apuração
de responsabilidade feita por intermédio de processo administrativo disciplinar.
Destituição de cargo em comissão. Inexistências do fumus boni iuris e do periculum
in mora. Liminar negada.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
69
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Prestadas as informações (fls. 306-383, e-STJ), defendeu a autoridade
coatora o seguinte:
(a) a legalidade do ato coator porque “fundamentado em decisão
devidamente motivada e baseada em escorreito PAD, que lhe garantiu ampla
defesa e contraditório, não havendo, por conseguinte, violação de direito líquido
do autor” (fl. 308, e-STJ);
(b) o impetrante “valeu-se do cargo de Coordenador-Geral de Apoio
Técnico da ASCOF em proveito próprio e para beneficiar terceiros, pois
viabilizou a admissão e manutenção de seu irmão, sua nora, um genro, dois
sobrinhos e outras pessoas em contrato de prestação de serviços terceirizados
realizado pelo MCTI com a empresa Enhanced Value Soluções e Softwares
(EVSS) e, após, com a empresa Visual Locação Serviço Construção Civil e
Mineração Ltda (VISUAL), ambos decorrentes de convênio celebrado entre
o MCTI e a Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica
(ABIPTI)” (fl. 308, e-STJ);
(c) “a decisão de destituir o impetrante do cargo comissionado que ocupava
nessa Pasta (fls. 88-89) embasou-se no próprio relatório do Colegiado, em
Parecer da Consultoria Jurídica do MCTI, no interrogatório do acusado e
em outros documentos existentes no PAD, notadamente os emitidos pela
Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Ministério Público Federal
(MPF), que foram suficientes, para justificar a aplicação da pena capital ao ora
impetrante” (fl. 308, e-STJ);
(d) o MPF moveu ação de improbidade administrativa contra o impetrante
perante a 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, tombada sob
o número 2009.34.00.036868-3, por conta das indicações ilícitas de parentes e
outras pessoas de seu relacionamento pessoal para possibilitar a contratação de
todos no período de 2003 a 2008;
(e) o impetrante privilegiou interesses particulares e se valeu da sua
graduada posição na Administração do MCTI em benefício próprio e de
terceiros, em prejuízo do interesse público primário;
(f ) os atos praticados pelo impetrante violaram o princípio da moralidade
porque possibilitou que terceiros lograssem proveito pessoal em detrimento da
dignidade da função pública;
(g) a aplicação da penalidade pela autoridade coatora não está adstrita à
sugestão da Comissão que conduz o procedimento administrativo disciplinar,
70
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
pelo que pode aplicar outra penalidade, nos termos do art. 168 da Lei n.
8.112/1990;
(h) a Administração Pública, constatando a prática de infração, está
vinculada à aplicação da penalidade, que, no caso, foi a destituição do cargo em
comissão, porque o impetrante estava aposentado do cargo público.
O Ministério Público Federal, ouvido a respeito da controvérsia, opinou
pela denegação da segurança (fls. 388-393, e-STJ).
É, no essencial, o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Eis os fundamentos da Lei n.
8.112/1990 evocados pela autoridade coatora para aplicar a pena de destituição
do cargo em comissão exercido pelo impetrante (fl. 169, e-STJ):
Art. 117. Ao servidor é proibido:
(...)
IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento
da dignidade da função pública;
(...)
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
(...)
XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.
(...)
Art. 135. A destituição de cargo em comissão exercido por não ocupante
de cargo efetivo será aplicada nos casos de infração sujeita às penalidades de
suspensão e de demissão.
(...)
Art. 137. A demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência
do art. 117, incisos IX e XI, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em
cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos.
(...)
Art. 168. O julgamento acatará o relatório da comissão, salvo quando contrário
às provas dos autos.
Parágrafo único. Quando o relatório da comissão contrariar as provas dos
autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade
proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
71
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Para o impetrante, esses fundamentos legais do ato coator não se sustentam
porque:
(a) está desprovido de fundamentação, violando o art. 128 da Lei n.
8.112/1990 e malferindo ainda os postulados da legalidade, moralidade,
motivação, rezoabilidade, proporcionalidade e impessoabilidade;
(b) não houve proveito pecuniário ao impetrante nem dano ao erário, e os
contratados desempenharam as atividades para as quais foram designados;
(c) não há ilicitude na conduta, havendo, quando muito, mera irregularidade.
Em suma, são essas as alegações do impetrante que buscam desconstituir a
pena aplicada pela autoridade coatora.
Analiso cada qual, de per si.
(a) ausência de fundamentação do ato coator
Não procede a alegação de que o ato coator está desprovido de
fundamentação.
A Portaria n. 617, de 9 de agosto de 2011, menciona expressamente o
conteúdo do Procedimento Administrativo Disciplinar n. 01200.004030/201081 como fundamento para a aplicação da penalidade de destituição do cargo em
comissão.
Por sua vez, antes de expedir o ato indigitado coator, a autoridade coatora
exarou circunstanciada decisão em que consigna expressamente o seguinte (fls.
171-172, e-STJ):
Sob o argumento de que a conduta do indiciado “não teria gerado qualquer
prejuízo ao erário ou serviço publico federal”, a Comissão propôs a aplicação da
pena de advertência.
Ocorre, todavia, que a pena proposta pela Comissão contraria a prova por
ela própria produzida nos autos, por isso, com fundamento no art. 168 da Lei n.
8.112/1990 e no entendimento contido no Parecer n. 251/2011, da Consultoria
Jurídica, e nos Pareceres n. QG 149/98, QG-156/98, QG-176/98, QG-139/98, QG141/98, QG-167/98, QG-177/98, QG-183/98, GM-03/2000 e GM-05/2000, da
Advocacia-Geral da União, que possuem caráter vinculante para a Administração
Pública (art. 40 da LC n. 73/1993), decido não acatar a proposta da Comissão de
inflição da pena de advertência, mas aplicar ao servidor Aldo Pinheiro da Fonseca
a pena de destituição do cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio
Técnico, Código DAS 101.4, da Secretaria-Executiva deste Ministério, prevista
no art. 132, XIII, combinado com o art. 135 e 137, caput, da Lei n. 8.112/1990,
72
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
por violação ao disposto no inciso IX do art. 117 da mesma Lei, uma vez que o
indiciado exerce cargo em comissão, sem vinculo efetivo por estar aposentado.
Publique-se este Despacho e a portaria, ora assinada, no Boletim de Pessoal
e, em seguida, encaminhe-se o processo ao Coordenador do Sistema CGU - PAD
neste Ministério, para fins do disposto nos arts. 3º e 4º, do Anexo aprovado pela
Portaria-MCT n. 111/08.
O Ministério Público Federal, ao opinar sobre essa alegação do impetrante,
foi enfático (fl. 390, e-STJ):
Assim, verifica-se que a alegação do impetrante de ausência de fundamentação
da decisão que o destituiu do cargo em comissão que ocupava não prospera, eis
que a autoridade impetrada divergiu, fundamentadamente, da conclusão da
comissão processante quanto à penalidade a ser aplicada, considerando, segundo
deflui da leitura do ato que o impetrante quer anular, a natureza e a gravidade do
ato - o nepotismo - bem como a agravante de sua reiteração, contaminando os
antecedentes funcionais do servidor.
A jurisprudência desta Corte considera que a autoridade coatora pode
discordar das conclusões da Comissão processante, desde que devidamente
fundamentada. Confira-se:
Constitucional. Administrativo. Processual Civil. Servidor público federal.
Processo disciplinar. Demissão. Fiscalização de obras. Omissão no dever funcional.
Prejuízo ao erário. Ministro de Estado do Controle e Transparência. Avocação.
Possibilidade. Previsão legal. Modificação do julgamento pela autoridade.
Possibilidade. Improbidade. Possível aplicação nos feitos disciplinares. Devido
processo legal. Observado. Ausência de direito líquido e certo.
1. Designado para fiscalizar a execução de três obras de reforma e de ampliação
da sede da repartição, o impetrante foi demitido do serviço público federal, após
procedimento administrativo disciplinar, por se omitir na fiscalização e atestar a
realização do serviço, causando ao erário prejuízo de elevada monta, porquanto
diversos pagamentos foram realizados indevidamente.
2. A avocação do procedimento administrativo disciplinar pelo Ministério
do Controle e da Transparência possui fundamento na Lei n. 10.683/2003 e no
Decreto n. 5.480/2005, razão pela qual não há falar em malferimento do direito
à ampla defesa. Precedentes: AgRg no MS n. 14.123-DF, Rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 25.5.2009; MS n. 14.534-DF, Rel. Ministro
Felix Fischer, Terceira Seção, DJe 4.2.2010.
3. O art. 168 da Lei n. 8.112/1990 permite que a autoridade contrarie as conclusões
da comissão processante, desde que o faça com a devida motivação, para retificação
do julgamento em atenção aos fatos e provas. Precedente: MS n. 16.174-DF, Rel.
Ministro Castro Meira, Primeira Seção, DJe 17.2.2012.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
73
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. A improbidade administrativa pode ser evocada pela Administração Pública
federal como fundamento para aplicar a pena de demissão, não se exigindo
que o Poder Judiciário se pronuncie previamente sobre a sua caracterização.
Precedentes: MS n. 14.140-DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, DJe
8.11.2012; REsp n. 981.542-PE, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma,
DJe 9.12.2008.
5. Como demonstrado nos autos, a observância da garantia ao silêncio foi
respeitada pela comissão processante, não se justificando, portanto, a alegação
de violação ao devido processo legal.
6. Caracterizada a desídia do servidor público e, em razão disso, a ocorrência
de prejuízo de elevada monta ao erário, mostra-se adequada a aplicação da pena
de demissão, cuja previsão expressa está contemplada nos arts. 117, XV, e 132,
XIII, da Lei n. 8.112/1990, do qual a autoridade não pode se afastar. Precedente.
Segurança denegada.
(MS n. 15.826-DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em
22.5.2013, DJe 31.5.2013)
Processual Civil e Administrativo. Mandado de segurança. Processo disciplinar.
Relatório da comissão processante. Reconhecimento da prescrição da pretensão
punitiva. Infração capitulada como passível de demissão. Encaminhamento dos
autos ao Ministro de Estado da Justiça. Ilegalidade. Inexistência. Mandado de
segurança denegado.
1. Na esfera do Poder Executivo Federal, a competência para aplicar a pena de
demissão é do Ministro de Estado a que se vincula o servidor indiciado, por força
do que dispõe o art. 1º do Decreto n. 3.035/1999.
2. A mera remessa e o recebimento dos autos de processo administrativo
disciplinar não é suficiente para embasar a impetração preventiva, eis que não se
pode presumir que a autoridade ora impetrada haveria de praticar ato ilegal ou
abusivo que poderia vulnerar direito líquido e certo do servidor ora impetrante.
3. Ademais, não há ilegalidade no ato da Corregedoria-Geral da Polícia
Rodoviária Federal que, mesmo reconhecendo a prescrição da pretensão punitiva,
encaminhou os autos do processo disciplinar ao Ministro de Estado da Justiça, a
quem compete julgá-lo, já que a infração atribuída ao impetrante é punida, em
tese, com a pena de demissão.
4. A comissão que preside o inquérito administrativo não pode se sobrepor
à autoridade julgadora, aplicando de imediato as conclusões propostas em seu
relatório, ao reconhecer a prescrição da pretensão punitiva, pois não ostenta
função judicante.
5. A autoridade julgadora não está atrelada às conclusões propostas pela
comissão, podendo delas discordar, motivadamente, quando o relatório contrariar
a prova dos autos, nos termos do art. 168 da Lei n. 8.112/1990.
74
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
6. Mandado de segurança denegado.
(MS n. 16.174-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, julgado em
14.12.2011, DJe 17.2.2012)
Constato que, ao contrário do que defende o impetrante, o ato coator
sobeja em fundamentos e motivos para aplicar a pena de demissão ao servidor
público.
(b) ausência de proveito pecuniário ao impetrante, inexistência de dano
ao erário e realização dos serviços contratados
O impetrante considera que a viabilização da contratação de terceiros
(irmão, nora, genro, sobrinhos) não ocasionou prejuízo algum ao erário porque
os contratados desempenharam suas atribuições com eficiência.
Não procede a alegação do impetrante.
Primeiro, um dos fundamentos utilizados pela autoridade coatora para a
aplicação da penalidade recai no art. 117, IX, da Lei n. 8.112/1990, que proíbe
o servidor público de valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem,
em detrimento da dignidade da função pública. O dispositivo claramente não elege
o dano ao erário como razão suficiente para estabelecer referida proibição ao
servidor público, como pretende o impetrante.
Além disso, considero desnecessária a constatação de eventual prejuízo
porque, como já decidiu esta Corte, “o ilícito administrativo de valer-se do cargo
para obter para si vantagem pessoal em detrimento da dignidade da função
pública, nos termos do art. 117, IX da Lei n. 8.112/1990 é de natureza formal,
de sorte que é desinfluente, para sua configuração, que os valores tenham sido
posteriormente restituídos aos cofres públicos após a indiciação do impetrante; a
norma penaliza o desvio de conduta do agente, o que independe dos resultados”
(MS n. 14.621-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe
30.6.2010).
Segundo, a Controladoria-Geral da União, por intermédio de investigação
preliminar, concluiu que o impetrante realmente valeu-se do cargo para indicar
irmão, nora, genro e sobrinhos para executar serviços pagos pelo erário. Se não,
veja-se (fl. 367, e-STJ):
148. Diante de todo o exposto, há indícios de que várias pessoas foram
contratadas, com recursos dos convênios, sem a devida impessoalidade no
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
75
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
processo de seleção, bem como de que algumas dessas pessoas podem ter
desempenhado atividades estranhas ao objeto do convênio. Tais contratações
teriam sido realizadas por determinação do coordenador da SETEF/ASCOF
à época, senhor Aldo Pinheiro da Fonseca, cuja conduta e enquadramento legal
correspondente serão objeto de detalhamento no tópico IV deste Relatório Final.
Terceiro, embora o impetrante tenha negado em depoimento a indicação
de parentes para serem contratados, a Controladoria-Geral da União constatou
o oposto, como se infere da seguinte passagem (fl. 364, e-STJ):
137. Ao realizar fiscalização nos Convênios n. 10.05.0027.00 e 01.06.0325.00,
a SFC/CGU constatou que “(...) 41 (quarenta e uma) pessoas foram contratadas [no
Convênio n. 01.06.0325.00] em decorrência de ofícios expedidos pelo Coordenador
da Secretaria Técnica dos Fundos Setoriais [Aldo Pinheiro da Fonseca] à ABIPTI,
constando o nome da pessoa a ser contratada. bem como o salário a ser pago” (fl. 8,
grifo nosso).
Ressai evidente a participação direta do impetrante no processo de escolha
das pessoas que deveriam ser contratadas por empresas remuneradas com verba
pública, embora tenha ele negado tal fato, como se infere da fl. 111, e-STJ.
Quarto, considero que essa conduta do impetrante amolda-se ao nepotismo,
afrontando a moralidade e a impessoalidade da Administração Pública.
Nesse sentido, precedentes desta Corte:
Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Nepotismo.
Violação a princípios da Administração Pública. Ofensa ao art. 11 da Lei n.
8.429/1992. Desnecessidade de dano material ao erário.
1. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa
Catarina em razão da nomeação da mulher do Presidente da Câmara de
Vereadores, para ocupar cargo de assessora parlamentar desse da mesma Câmara
Municipal.
2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que o ato de
improbidade por lesão aos princípios administrativos (art. 11 da Lei n. 8.249/1992),
independe de dano ou lesão material ao erário.
3. Hipótese em que o Tribunal de Justiça, não obstante reconheça
textualmente a ocorrência de ato de nepotismo, conclui pela inexistência de
improbidade administrativa, sob o argumento de que os serviços foram prestados
com “dedicação e eficiência”.
4. O Supremo Tribunal, por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de
Constitucionalidade n. 12-DF, ajuizada em defesa do ato normativo do Conselho
76
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Nacional de Justiça (Resolução n. 7/2005), se pronunciou expressamente no sentido
de que o nepotismo afronta a moralidade e a impessoalidade da Administração
Pública.
5. O fato de a Resolução n. 7/2005 - CNJ restringir-se objetivamente ao âmbito
do Poder Judiciário, não impede – e nem deveria – que toda a Administração
Pública respeite os mesmos princípios constitucionais norteadores (moralidade e
impessoalidade) da formulação desse ato normativo.
6. A prática de nepotismo encerra grave ofensa aos princípios da Administração
Pública e, nessa medida, configura ato de improbidade administrativa, nos
moldes preconizados pelo art. 11 da Lei n. 8.429/1992.
7. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.009.926-SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em
17.12.2009, DJe 10.2.2010)
Processual Civil e Administrativo. Processo administrativo disciplinar.
Nepotismo. Princípio da moralidade administrativa. Princípio da impessoalidade.
Violação dos princípios do contraditório e da ampla-defesa. Inexistência.
Manutenção da pena de censura aplicada a Juiz de Direito por nomear o pai de
sua companheira para o múnus de perito. Art. 41 da Loman. Art. 125, I e III do CPC.
1. Hipótese em que Juiz de Direito impetrou, na origem, Mandado de
Segurança, objetivando invalidar a pena de censura que lhe foi aplicada pelo
Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por ter nomeado o
pai de sua companheira para oficiar em diversas perícias médicas em processos
de sua responsabilidade, na Vara onde é Titular.
2. A sindicância administrativa prescinde da observância ampla dos princípios
do contraditório e da ampla defesa, por se tratar de procedimento inquisitorial,
anterior e preparatório à acusação e ao processo administrativo disciplinar, ainda
sem a presença obrigatória do investigado.
3. Inexiste nulidade sem prejuízo. Se é assim no processo penal, com maior
razão no âmbito administrativo.
4. Na arguição de nulidade, a parte deve indicar claramente o prejuízo que
sofreu, bem como a vinculação entre o ato ou omissão impugnados e a ofensa à
apuração da verdade substancial, daí decorrendo inequívoco reflexo na decisão
da causa (CPP, art. 566). Além disso, cabe observar que, como regra geral, as
nulidades consideram-se sanadas se não arguidas em tempo oportuno, por
inércia do prejudicado.
5. Juízes auxiliares podem participar da fase instrutória, desde que norma do
Tribunal preveja expressamente a possibilidade de o Relator ou o Presidente da
Corte Julgadora (in casu, o Corregedor-Geral de Justiça) designar Magistrado de
categoria igual ou superior à do interessado.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
77
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
6. É certo que a Loman dispõe que o magistrado não pode ser punido ou
prejudicado “pelo teor das decisões que proferir” (art. 41), mas implícita nessa
norma está a exigência de que essas mesmas decisões não infrinjam os valores
primordiais da ordem jurídica e os deveres de conduta impostos ao juiz com o
desiderato de assegurar a sua imparcialidade.
7. A Loman não se presta a acobertar, legitimar ou proteger atos judiciais que
violem o princípio da moralidade administrativa, o princípio da impessoalidade
ou as regras de boa conduta que se esperam do juiz.
8. A independência dos juízes não pode transmudar-se em privilégio para
a prática de atos imorais. A garantia é conferida ao Poder Judiciário como
instituição, em favor da coletividade, e deve ser por ele mesmo fiscalizada.
9. O fato de os despachos saneadores que nomearam o pai da companheira
do recorrente serem de natureza judicial e, na hipótese, não terem recebido
impugnação por recurso, em nada impede a abertura de processo disciplinar e, ao
final, a punição do infrator.
10. O nepotismo e o compadrio são práticas violadoras dos mais comezinhos
fundamentos do Estado Democrático de Direito e, por isso mesmo, exigíveis não só do
Executivo e do Legislativo, mas, com maior razão, também do Judiciário.
11. É aberrante a nomeação, pelo juiz, de parente, cônjuge, consanguíneo ou
afim, bem como de amigo íntimo, como perito do juízo, comportamento esse
que macula a imagem do Poder Judiciário, corrói a sua credibilidade social e
viola frontalmente os deveres de “assegurar às partes igualdade de tratamento” e
“prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça” (CPC, art. 125,
I e III).
12. Nos termos da Constituição Federal, a união estável é reconhecida como
unidade familiar (art. 226, § 3º).
13. Recurso Ordinário não provido.
(RMS n. 15.316-SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em
1º.9.2009, DJe 30.9.2009)
Quinto e último, fere a moralidade administrativa e até o senso comum
médio imaginar que a Administração Pública possa ser transformada em negócio
de família, como, aliás, adverte Emerson Garcia (Improbidade Administrativa,
4ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 401-407).
(c) alegação de ausência de ilicitude
Registro ainda que não se pode defender, como de fato defende a inicial, a
ausência de ilicitude, porque o nepotismo acarreta ofensa grave aos postulados
da Administração Pública. Como decidiu o STF, “A vedação do nepotismo
78
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
não exige a edição de lei formal para coibir a prática, uma vez que decorre
diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal”
(Rcl n. 6.702 MC-AgR-PR, relator Min. Ricardo Lewandowski).
Por derradeiro, os antecedentes funcionais do impetrante não são
suficientes para impedir a aplicação da penalidade porque “A Administração
Pública, quando se depara com situações em que a conduta do investigado se
amolda nas hipóteses de demissão ou cassação de aposentadoria, não dispõe
de discricionariedade para aplicar pena menos gravosa por tratar-se de ato
vinculado” (MS n. 15.517-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira
Seção, DJe 18.2.2011). No mesmo sentido: MS n. 16.567-DF, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 18.11.2011). No mesmo
sentido: MS n. 15.951-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, DJe
27.9.2011.
Não identifico o direito líquido e certo evocado pelo impetrante.
Ante o exposto, denego a segurança.
É como penso. É como voto.
MANDADO DE SEGURANÇA N. 19.827-DF (2013/0051873-2)
Relator: Ministro Sérgio Kukina
Impetrante: Romildo Antonio Ribeiro
Advogado: Rarisio Rodrigues Pereira
Impetrado: Ministro de Estado da Justiça
Interessado: União
EMENTA
Mandado de segurança. Anistia. Ato de revisão da portaria
concessória. Possibilidade. Inexistência de direito líquido e certo.
Denegação da ordem.
1. A redação do art. 53 da Lei n. 9.784/1999 não proíbe – antes,
impõe – à administração o dever de rever seus próprios atos. Logo, nula
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
79
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
seria uma eventual decisão no sentido de cercear a legítima atividade
administrativa revisora, nas hipóteses – como a ora examinada – em
que não existe um ato concreto capaz de causar efetiva lesão a direito
adquirido.
2. O direito sujeito à decadência, por força do que dispõe essa
norma, é o de anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis
para os administrados de boa fé, mas não o direito-dever de instaurar o
procedimento administrativo de revisão que, acaso obstado, impediria
até mesmo a eventual comprovação da má-fé a que se refere o artigo
54 da Lei n. 9.784/1999.
3. Não há direito líquido e certo, a ser protegido pela via
mandamental, o que afasta, de imediato, a incidência do art. 1º da
Lei n. 12.016/2009, impondo-se, em decorrência, a denegação da
segurança.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a segurança,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler,
Eliana Calmon, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Herman Benjamin,
Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques e Benedito Gonçalves
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Sérgio Kukina, Relator
DJe 3.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Trata-se de mandado de segurança
impetrado por Romildo Antônio Ribeiro, militar reformado, apontando
como autoridade coatora o Ministro de Estado da Justiça e como ato coator o
Despacho n. 2.251, publicado no DOU de 19.12.2012, que autorizou a abertura
de processo administrativo de anulação da Portaria MJ n. 1.784, de 29 de
setembro de 2006, instrumento este pelo qual lhe foi reconhecida a qualidade de
anistiado político.
80
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Alega, em síntese, a impossibilidade de instauração de qualquer
procedimento tendente à anulação da portaria de concessão da anistia, pois
alcançada pela decadência de que trata o artigo 54 da Lei n. 9.784/1999.
Requereu o benefício da assistência judiciária gratuita e, ainda, a concessão
de liminar para garantir a manutenção da prestação mensal continuada, por seu
caráter alimentar.
O pedido de gratuidade foi deferido pela presidência (fl. 39) e a liminar
indeferida, nos termos da decisão às fls. 56.
O Ministério Público Federal, pelo parecer de fls. 874 a 876, manifestou-se
pela denegação da segurança.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): A pretensão ora veiculada, matéria
muitas vezes já debatida nesta Primeira Seção, não comporta acolhimento, pois
não configurado, na espécie, o direito líquido e certo que a via mandamental
requer.
A propósito:
Administrativo e Processual Civil. Mandado de segurança. Anistia política.
Portaria Interministerial MJ/AGU n. 134/2011. Revisão dos atos de anistia.
Súmula n. 266-STF. Fato superveniente. Alteração do pedido e causa de pedir.
Impossibilidade. Precedentes da Primeira Seção.
1. A Primeira Seção firmou entendimento de que a revisão determinada pela
Portaria Interministerial MJ-AGU n. 134/2011, por consubstanciar-se em simples
fase de estudos acerca de eventuais irregularidades nas concessões das anistias
com base na Portaria n. 1.104/GM3/1964, não afeta a esfera individual de direitos
dos impetrantes. Incidência, por analogia, da Súmula n. 266-STF.
2. Hipótese em que a impetração se dirige contra a própria autorização do
Ministro de Estado da Justiça de que fosse instaurado processo de anulação da
anistia, mediante o Grupo de Trabalho Interministerial criado pela Portaria MJAGU n. 134/2011.
[...]
5. Agravo regimental da União contra decisão concessiva da liminar
prejudicado.
6. Mandado de segurança denegado.
(MS n. 17.639-ES, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJe 5.11.2012)
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
81
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na mesma linha, veja-se também o MS n. 8.691-DF, DJe de 7.12.2009, da
relatoria do Ministro Mauro Campbel Marques, aprovado à unanimidade dos
votos da Primeira Seção.
Ademais, a redação do art. 53 da Lei n. 9.784/1999, na verdade, não proíbe
– antes, impõe – à administração o dever de rever seus próprios atos.
Logo, nula seria uma eventual decisão no sentido de cercear a legítima
atividade administrativa revisora, nas hipóteses – como a ora examinada – em
que não existe um ato concreto capaz de causar efetiva lesão a direito adquirido.
Por sua vez, o art. 54 da referida norma – dispositivo invocado para
fundamentar a tese de impossibilidade de revisão do ato anistiador – encontrase assim redigido:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que
decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados
da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
Tem-se, daí, que o direito sujeito à decadência, por força do que dispõe
essa norma, é o de anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis para os
administrados de boa fé, mas não o direito-dever de instaurar o procedimento
administrativo de revisão que, acaso obstado, impediria até mesmo a eventual
comprovação da má-fé a que se refere o mencionado artigo.
Em tempo, registro que questão idêntica foi recentemente submetida
ao exame da Primeira Seção desta Corte, restando o acórdão, unânime, assim
ementado:
Processual Civil e Administrativo. Mandado de segurança. Anistia política.
Despacho que, com base na Portaria Interministerial n. 134/2011, autoriza
instauração de procedimento tendente a rever as anistias concedidas com amparo
na Portaria n. 1.104/64. Ausência de ameaça de lesão a direito. Manifestação do
poder de autotutela.
1. A impetração insurge-se contra despacho do Ministro de Estado da Justiça
que, com base na Portaria Interministerial n. 134, de 15.2.2011, determinou
instauração de procedimento de revisão de anistias concedidas com fulcro na
Portaria GM3 n. 1.104/64.
2. A Portaria Interministerial n. 134/2011 limita-se a: a) determinar que se
proceda à revisão das anistias concedidas com fulcro na Portaria n. 1.104GM3/1964 (art. 1º); b) instituir Grupo de Trabalho para promover a averiguação
individual das anistias sujeitas à revisão (art. 2º) - o qual funcionará na Consultoria
Jurídica do Ministério da Justiça (art. 6º) -, conferindo-lhe competência para
82
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
deflagrar procedimento contraditório e decidir sobre as questões de mérito
relativas às suas atribuições (art. 7º); e c) indicar que, após a revisão, será aberto
novo procedimento para anulação das portarias concessivas de anistia, nos casos
em que se verificar que o afastamento das Forças Armadas não decorreu de
perseguição política (art. 5º).
3. Para que, eventualmente, seja anulada a portaria que concedeu a anistia,
será necessário instalar procedimento próprio, conforme o art. 5º da Portaria
Interministerial n. 134/2011.
4. Nesse contexto, fica claro que o despacho emitido pela autoridade
impetrada, por si, é incapaz de atingir diretamente qualquer direito. Não há
sequer ameaça de cassação de anistia ou suspensão dos pagamentos da
reparação mensal.
5. Ademais, o reexame das anistias concedidas constitui legítima manifestação
do poder de autotutela da Administração, consubstanciado no direito de rever
seus próprios atos. Saliente-se novamente que a própria Portaria Interministerial
n. 134 evidencia que, tanto na revisão como em eventual procedimento de
cassação das anistias, haverá oportunidade de manifestação dos interessados,
permitindo o contraditório e a ampla defesa.
6. A Primeira Seção firmou entendimento de que “a análise da tese de
decadência administrativa somente terá relevância naquelas hipóteses em que,
após realizada a primeira fase de estudos, a Administração vier a instaurar os
processos de cassação previstos no art. 5º da Portaria Interministerial n. 134, de
15.2.2011, mormente se considerado que apenas após realizados tais estudos
será possível aferir a possibilidade de aplicação da primeira parte do art. 54 da Lei
n. 9.784/1999, ou, até mesmo, eventualmente, a exceção prevista em sua parte
final, que afasta a decadência nas hipóteses de ‘comprovada má-fé’” (AgRg no MS
n. 16.219-DF).
7. Posição adotada pela Primeira Seção do STJ, em 8.6.2011, no julgamento dos
Mandados de Segurança n. 16.425-DF e 16.543-DF, de relatoria do e. Min. Arnaldo
Esteves Lima.
8. Mandado de Segurança denegado.
(MS n. 17.576-DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 1º.2.2013)
Não há, pois, direito líquido e certo, a ser protegido pela via mandamental, o
que afasta, de imediato, a incidência do art. 1º da Lei n. 12.016/2009, impondose, em decorrência, a denegação da segurança.
Sem honorários advocatícios, nos termos do art. 25 da Lei n. 12.016/2009
e Súmula n. 105-STJ.
Recolhimento das custas, pelo impetrante, dispensado em função da
concessão do benefício da assistência judiciária (art. 3º, II, da Lei n. 1.060/1950).
É como voto.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
83
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 1.217.234-PB (2010/0181699-2)
Relator: Ministro Ari Pargendler
Recorrente: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - Ibama
Procurador: André de Souza Melo Teixeira e outro(s)
Recorrido: Município de Pitimbu
Advogado: Said Abel da Cunha
Recorrido: Maria Joserlane Dantas de Oliveira
Advogado: Sem representação nos Autos
EMENTA
Administrativo. Auto-executoriedade dos atos de polícia.
Os atos de polícia são executados pela própria autoridade
administrativa, independentemente de autorização judicial.
Se, todavia, o ato de polícia tiver como objeto a demolição de uma
casa habitada, a respectiva execução deve ser autorizada judicialmente
e acompanhada por oficiais de justiça.
Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Decidiu, ainda,
cancelar a submissão do recurso ao rito do art. 543-C do CPC, nos termos do
voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Arnaldo Esteves
Lima, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell
Marques, Benedito Gonçalves e Sérgio Kukina votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Ausente, ocasionalmente, a Sra. Ministra Eliana Calmon.
Compareceu à sessão, o Dr. Cleiton Cursino Cruz, pelo recorrente.
84
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Brasília (DF), 14 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Relator
DJe 21.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ari Pargendler: Trata-se de recurso especial interposto pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Ibama, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região,
assim ementado:
“Ação civil pública. Ambiental. Interesse de agir. Provimento em parte. I - O
embargo de obra irregular por violação a norma ambiental, bem como a sua
demolição, constitui sanção de natureza administrativa, cuja competência para
sua aplicação é privativa da Administração, descabendo a sua substituição pelo
Judiciário. II - Ainda que a demolição se cuidasse de prerrogativa inserida
no campo da exigibilidade, seria necessária a sua aplicação em procedimento
administrativo regular, o que não restou aqui demonstrado, para, em havendo
resistência do particular, ser ativada a jurisdição para a sua execução. III Diversamente, a imposição da obrigação de reparar possível dano ambiental se
situa na alçada do Poder Judiciário. IV - Apelação provida em parte” (e-stj, fl. 55).
Opostos embargos de declaração (e-stj, fl. 64-68), foram rejeitados (e-stj,
fl. 110-115).
As razões do recurso especial dizem violado o art. 535 do Código de
Processo Civil, o art. 150 do Código Penal e o art. 72, VIII, da Lei n. 9.605,
de 1998 alegando “o interesse de agir do Ibama para ação civil pública e para o
pedido de demolição nela formulado” (e-stj, fl. 128).
O Ministro Francisco Falcão decidiu submeter o presente recurso ao
julgamento da Primeira Seção, como representativo da controvérsia, in verbis:
“Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, contra o acórdão
proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no qual se discutiu acerca
da auto-executoriedade de ato administrativo emanado pela autarquia ambiental
que determina o embargo de obra irregular e sua respectiva demolição, a afastar
a atuação do Judiciário” (e-stj, fl. 181).
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
85
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Vieram-me os autos conclusos, por atribuição (e-stj, fl. 195).
O Ministério Público Federal na pessoa da Subprocuradora-Geral da
República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos, opinou pelo provimento do
recurso (e-stj, fl. 188-194).
VOTO
O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): As noções de exequibilidade e de
auto-executoriedade expostas na sentença e no acórdão estão de acordo com a
melhor doutrina.
“A exequibilidade ou operatividade” - leciona Hely Lopes Meirelles - “é
a possibilidade presente no ato administrativo de ser posto imediatamente em
execução” (Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, São Paulo,
35ª edição, p. 162).
“A auto-executoriedade” - segundo o mesmo jurista - “consiste na
possibilidade que certos atos administrativos ensejam de imediata e direta
execução pela própria Administração, independentemente de ordem judicial.
Os autores mais modernos não se cansam de apontar esse atributo nos
atos administrativos que o possuem. Entretanto, as nossas Administrações se
mostram tímidas na sua utilização e a nossa Justiça, nem sempre atualizada
com o Direito Público, em pronunciamentos felizmente raros, tem pretendido
condicionar a execução de atos tipicamente auto-executórios a prévia apreciação
judicial. Mas, em contraposição a esses julgados esporádicos e errôneos,
firma-se cada vez mais a jurisprudência na boa doutrina, reconhecendo à
Administração - especialmente quanto aos atos de polícia - o poder de executar
direta e imediatamente seus atos imperativos, independentemente de pedido
cominatório ou mandado judicial” (op. cit., p. 164).
Essa crítica vale para os nossos dias tumultuados em que as autoridades
administrativas aguardam decisão judicial para desfazer o bloqueio de estradas.
Atos de polícia, como esse, não dependem de intervenção judicial.
Quid, como no caso, em que a demolição de uma casa edificada em área
vedada legislação ambiental está habitada?
Para situações tais, o art. 112, § 3º, do Decreto n. 6.514, de 12 de julho de
2008, dispõe:
“Art. 112 - A demolição de obra, edificação ou construção não habitada e
utilizada diretamente para a infração ambiental dar-se-á excepcionalmente no
86
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
ato da fiscalização nos casos em que se constatar que a ausência da demolição
importa em iminente risco de agravamento do dano ambiental ou de graves
riscos à saúde.
§ 3º - A demolição de que trata o caput não será realizada em edificações
residenciais”.
Voto, por isso, no sentido de conhecer do recurso especial e de dar-lhe
provimento para que a ação seja processada e julgada nos termos da petição
inicial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.369.832-SP (2013/0063165-9)
Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima
Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogado: Procuradoria-Geral Federal - PGF
Recorrido: Henrique Monte do Nascimento
Advogado: Jose Wagner Correia de Sampaio
EMENTA
Previdenciário. Processual Civil. Recurso especial representativo
de controvérsia. Omissão do Tribunal a quo. Não ocorrência. Pensão
por morte. Lei em vigor por ocasião do fato gerador. Observância.
Súmula n. 340-STJ. Manutenção a filho maior de 21 anos e não
inválido. Vedação legal. Recurso provido.
1. Não se verifica negativa de prestação jurisdicional quando
o Tribunal de origem examina a questão supostamente omitida “de
forma criteriosa e percuciente, não havendo falar em provimento
jurisdicional faltoso, senão em provimento jurisdicional que desampara
a pretensão da embargante” (REsp n. 1.124.595-RS, Rel. Min. Eliana
Calmon, Segunda Turma, DJe de 20.11.2009).
2. A concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma
vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
87
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
exigidas para tanto. Inteligência da Súmula n. 340-STJ, segundo a
qual “A lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é
aquela vigente na data do óbito do segurado”.
3. Caso em que o óbito dos instituidores da pensão ocorreu,
respectivamente, em 23.12.1994 e 5.10.2001, durante a vigência do
inc. I do art. 16 da Lei n. 8.213/1991, o qual, desde a sua redação
original, admite, como dependentes, além do cônjuge ou companheiro
(a), os filhos menores de 21 anos, os inválidos ou aqueles que tenham
deficiência mental ou intelectual.
4. Não há falar em restabelecimento da pensão por morte ao
beneficiário, maior de 21 anos e não inválido, diante da taxatividade
da lei previdenciária, porquanto não é dado ao Poder Judiciário legislar
positivamente, usurpando função do Poder Legislativo. Precedentes.
5. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art.
543-C do Código de Processo Civil.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin,
Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves,
Sérgio Kukina e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Ari Pargendler.
Compareceu à sessão, a Dra. Karina Teixeira de Azevedo, pelo recorrente.
Brasília (DF), 12 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator
DJe 7.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de recurso especial
manifestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, com base no art.
88
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
105, III, a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região assim ementado (fls. 97-99e):
Previdenciário. Pensão por morte. Legislação aplicável. Presentes todos os
requisitos. Consectários. Apelação da parte autora parcialmente conhecida e, na
parte conhecida, provida.
- Não conhecida parte da apelação do autor em que requer a condenação do
INSS à concessão de aposentadoria por invalidez ou auxílio- doença, por não se
tratar do objeto da demanda.
- A legislação aplicada na concessão do beneficio pensão por morte é aquela
vigente na época do evento morte. Assim, a fruição da pensão por morte, em
análise, tem como pressupostos a implementação de todos os requisitos previstos
na legislação previdenciária para a concessão do beneficio, quais sejam, a
existência de um vínculo jurídico entre o segurado mantenedor do dependente e
a instituição previdenciária, a dependência econômica entre a pessoa beneficiária
e o segurado e a morte do segurado.
- Neste caso, versam os autos acerca de estudante universitário que percebia
os benefícios de pensão por morte em razão do falecimento de seus genitores,
havendo sido estes cancelados por ter alcançado a maioridade. Com efeito, a Lei
Previdenciária não prevê a manutenção do beneficio de pensão por morte para
aqueles que completam 21 anos de idade, à exceção para os que são inválidos
(Lei n. 8.213/1991, art. 77, § 2º). No entanto, entendo que ao decidir a demanda
posta em Juízo, o julgador não deve se ater tão-somente à interpretação literal da
lei, mas, antes de tudo, deve buscar a sua aplicação de forma que possa atender
às aspirações da Justiça e do bem comum, atendendo aos fins sociais a que ela se
dirige.
- Por fim, se por um lado a maioridade civil implica na habilitação do indivíduo
para a prática de todos os atos da vida civil, ela não implica, de outra parte e
necessariamente, na sua independência no âmbito econômico, sendo certo
que, na grande maioria dos casos, os filhos permanecem economicamente
dependentes dos pais quando alcançam a maioridade e estão cursando, com in
casu, o curso universitário. Destarte, suspender o beneficio de pensão por morte
neste momento, para se ater tão-somente à interpretação literal, da lei, não se
coaduna com os princípios constitucionais que resguardam o direito à educação.
Assim, entendo que o filho de segurado da Previdência Social faz jus à
pensão por morte até os 24 anos de idade, desde que comprovados o ingresso
em universidade à época em que completou a maioridade e a dependência
econômica.
- Restou comprovado que o autor era filho de Sinval do Nascimento e de
Cássia Helena Monte do Nascimento, consoante certidão de nascimento. E sua
condição de estudante universitário restou amplamente demonstrada pelo
demonstrativo de pagamento de mensalidade da universidade e pelo atestado
emitido pela instituição de ensino, pelo que se verifica que o autor deixou o curso
em 31.12.2004.
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
89
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
- Do extrato trimestral de beneficio e da consulta ao Sistema CNIS, verificase que o autor recebeu os beneficios de pensão por morte - NB 0683702467 (a
partir de 23.12.1994) e NB 1213248156 (a partir de 5.10.2001). Destarte, restou
comprovado que os falecidos, no tempo de seu óbito, possuíam qualidade de
segurado.
- Quanto ao termo inicial do beneficio, fixo-o na data em que foi cessado
indevidamente (9.7.2003), e determino, quanto ao termo final do beneficio,
que ele será devido apenas até o momento em que o autor comprovou estar
devidamente matriculado em curso universitário (31.12.2004).
- A correção monetária das parcelas vencidas se dará, nos termos da legislação
previdenciária, das Súmulas n. 8 desta Corte e 148 do C. STJ, bem como da
Resolução n. 561/2007 do Conselho da Justiça Federal, da data em que se tomou
devido o beneficio.
- Os juros de mora são devidos no percentual de 1% ao mês, a partir da citação,
na forma do art. 406 da Lei n. 10.406/2002 - Honorários advocatícios fixados
em 10% sobre o valor das parcelas vencidas até a data da sentença, conforme
orientação desta Turma e observando-se os termos dos §§ 3º e 4º do art. 20 do
CPC e o disposto na Súmula n. 111 do C. Superior Tribunal de Justiça.
- Apelação da parte autora parcialmente conhecida e, na parte conhecida,
provida.
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 109-115e).
Sustenta o recorrente, em preliminar, afronta ao art. 535 do CPC, na
medida em que os embargos de declaração objetivavam o esclarecimento acerca
dos dispositivos legais infra.
No mérito, alega violação aos arts. 16, I, e 77, § 2º, II, ambos da Lei n.
8.213/1991, e 4º e 5º do Decreto-Lei n. 4.657/1942 (LINDB), por considerar
indevida a manutenção de pensão por morte a filho maior de 21 anos e não
inválido. Aduz, ainda, que “não há lacuna no sistema normativo a permitir a
aplicação de quaisquer das formas de integração da norma” (fl. 122e). Por fim,
em reforço de sua tese, aponta dissídio jurisprudencial com o REsp n. 639.487RS.
Sem contrarrazões (fl. 177e).
Embora tenha sido dada vista ao Ministério Público Federal, a
Coordenadoria da Primeira Seção certifica que não houve apresentação de
parecer (fl. 197e).
É o relatório.
90
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
VOTO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): Narram os autos que o
recorrido ajuizou ação ordinária em 14.7.2003, postulando o restabelecimento
de seus benefícios de pensão por morte, deferidos em 23.12.1994 e 5.10.2001,
respectivamente pelo falecimento de seu pai e de sua mãe, cessados em 9.7.2003
devido ao implemento de seus 21 anos de idade.
Sustentou, na exordial, que, por não exercer atividade remunerada, e diante
da sua condição de órfão e estudante universitário, faz jus ao benefício até
completar seus estudos. Contudo, o pedido foi julgado improcedente, ante a
falta a vedação legal prevista no art. 16 da Lei n. 8.213/1991.
Em grau de apelação, a sentença foi reformada sob o fundamento de que,
embora na lei previdenciária não haja previsão de continuidade do benefício
para os não inválidos que completam 21 anos de idade, a decisão deve ser
norteada pelo princípio da razoabilidade. E, dessa forma, considerou razoável o
limite de 24 anos para a percepção da pensão, de forma a permitir a conclusão
do nível superior.
Irresignada, a autarquia insurge-se neste recurso especial, defendendo que,
em momento algum a Lei n. 8.213/1991 excepciona o estudante universitário
para prorrogação da idade máxima fixada para o recebimento de pensão por
morte.
No tocante à apontada omissão, razão não assiste ao recorrente.
Verifica-se que “o Tribunal de origem examinou a questão supostamente
omitida de forma criteriosa e percuciente, não havendo falar em provimento
jurisdicional faltoso, senão em provimento jurisdicional que desampara a
pretensão da embargante” (REsp n. 1.124.595-RS, Rel. Min. Eliana Calmon,
Segunda Turma, DJe de 20.11.2009).
No mérito, entretanto, razão assiste ao recorrente.
É cediço que a concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma
vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições exigidas para
tanto. Na esteira desse raciocínio, a Terceira Seção desta Corte fez editar a
Súmula n. 340-STJ, segundo a qual “A lei aplicável à concessão de pensão
previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado”.
No caso concreto, como visto, o óbito dos instituidores da pensão ocorreu,
respectivamente, em 23.12.1994 e 5.10.2001, durante a vigência do inc. I do
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
91
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
art. 16 da Lei n. 8.213/1991, o qual, desde a sua redação original, admite, como
dependentes, além do cônjuge ou companheiro (a), os filhos menores de 21 anos,
os inválidos ou aqueles que tenham deficiência mental ou intelectual.
Impende ressaltar, apenas a título de registro, que, na legislação anterior,
a Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS, expedida pelo Decreto
n. 89.312/1984, fazia distinção etária, garantindo a condição de dependente
da filha, se solteira, até os 21 anos, enquanto ao filho, somente até os 18 anos,
excetuada a invalidez.
A referida diferenciação foi corrigida a partir do advento da Constituição
Federal, que, no § 6º do art. 227, determinou que “os filhos, havidos ou não da
relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Dessa forma, a extinção da relação jurídica previdenciária ocorreu,
consoante art. 77, II, da Lei n. 8.213/1991, com a maioridade do recorrido.
Nesse sentido, transcrevo o ensinamento de Raimundo Nonato Bezerra Cruz
(Pensão por Morte do Direito Positivo Brasileiro, 1ª ed., São Paulo: Livraria
Paulista, 2005, p. 133):
A perda da qualidade de dependente faz desaparecer o status de beneficiário
e, via de conseqüência, perece seu direito a qualquer prestação. Temos, neste
caso, a perda da vinculação que coloca o dependente fora da incidência da
proteção social inerente aos benefícios. A qualidade jurídica de dependente é
condição para integrar a relação jurídica de proteção para fazer jus ao benefício
da pensão por morte.
Não há falar, portanto, em restabelecimento da pensão por morte ao
beneficiário, maior de 21 anos e não inválido diante da taxatividade da lei
previdenciária, porquanto não é dado ao Poder Judiciário legislar positivamente,
usurpando função do Poder Legislativo.
A propósito, confiram-se os precedentes transcritos a seguir:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Fundamentos insuficientes para
reformar a decisão agravada. Análise de ofensa a dispositivos constitucionais.
Competência exclusiva do STF. Direito Previdenciário. Pensão por morte. Filho
maior de 21 anos. Estudante universitário. Prorrogação do benefício até a idade
de 24 anos. Impossibilidade. Ausência de previsão legal. Súmula n. 83 do STJ.
1. O agravante não trouxe argumentos novos capazes de infirmar os
fundamentos que alicerçaram a decisão agravada, razão que enseja a negativa de
provimento ao agravo regimental.
92
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
2. A análise de suposta ofensa a dispositivos constitucionais compete
exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, inciso III,
da Constituição da República, sendo defeso o seu exame em âmbito de recurso
especial.
3. A jurisprudência do STJ pacificou o entendimento de que a pensão por morte
rege-se pela lei vigente à época do óbito do segurado. Na hipótese dos autos,
o falecimento do pai do agravante ocorreu em 16.2.1997, na vigência da Lei n.
8.213/1991, que prevê em seu artigo 77, § 2º, inciso II, a cessação da pensão por morte
ao filho, quando completar 21 anos de idade, salvo se for inválido.
4. A perfeita harmonia entre o acórdão recorrido e a jurisprudência dominante
desta Corte Superior impõe a aplicação, à hipótese dos autos, do Enunciado n. 83
da Súmula do STJ.
5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag n. 1.076.512-BA,
Rel. Min. Vasco Della Giustina (Des. conv. TJ-RS), Sexta Turma, DJe 3.8.2011, grifo
nosso)
Recurso especial. Previdenciário. Pensão por morte. Lei n. 8.213/1991. Idade
limite. 21 anos. Estudante. Curso universitário.
A pensão pela morte do pai será devida até o limite de vinte e um anos
de idade, salvo se inválido, não se podendo estender até os 24 anos para os
estudantes universitários, pois não há amparo legal para tanto.
Recurso provido. (REsp n. 639.487-RS, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta
Turma, DJ 1º.2.2006)
Previdenciário e Processual Civil. Ofensa ao art. 535 do CPC. Inexistência.
Pensão por morte. Dependente de segurado. Filha maior de 21 anos de idade.
Perda da qualidade de beneficiária. Extinção do benefício. Caráter alimentar.
Restituição. Impossibilidade. Recurso especial parcialmente provido.
1. O Tribunal a quo, ao analisar os embargos declaratórios do INSS, apreciou
todas as questões relevantes para o deslinde da controvérsia. Ademais, não há
confundir decisão contrária ao interesse da parte com a falta de pronunciamento
do órgão julgador.
2. É cediço que a concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma
vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições exigidas para
tanto. Na esteira desse raciocínio, vê-se que o fato gerador para a concessão da
pensão por morte é o óbito do segurado, instituidor do benefício.
3. O art. 16 da Lei n. 8.213/1991, em sua redação original, não admite, como
beneficiários, na condição de dependentes de segurado, indivíduos maiores de
21 anos e menores de 60 anos, exceto se comprovadamente inválidos.
4. Não há falar, portanto, em restabelecimento da pensão por morte à
beneficiária, maior de 21 anos e não-inválida, uma vez que, diante da taxatividade
RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013
93
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do diploma legal citado, não é dado ao Poder Judiciário legislar positivamente,
usurpando função do Parlamento.
5. A Terceira Seção desta Corte, no âmbito da Quinta e da Sexta Turma, firmou
entendimento no sentido da impossibilidade da devolução, em razão do caráter
alimentar dos proventos percebidos a título de benefício previdenciário. Aplicase, in casu, o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.
6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. (REsp n.
771.993-RS, de minha relatoria, Quinta Turma, DJ 23.10.2006)
Registro, ademais, que a pretensão de extensão da pensão devida a
dependente de servidor público, de igual modo, já foi afastada na Corte Especial
pelos mesmos fundamentos, verbis:
Administrativo. Mandado de segurança. Pensão temporária por morte da
genitora. Termo final. Prorrogação. Ausência de previsão legal.
1. A Lei n. 8.112/1990 prevê, de forma taxativa, quem são os beneficiários
da pensão temporária por morte de servidor público civil, não reconhecendo o
benefício a dependente maior de 21 anos, salvo no caso de invalidez. Assim, a
ausência de previsão normativa, aliada à jurisprudência em sentido contrário,
levam à ausência de direito líquido e certo a amparar a pretensão do impetrante,
estudante universitário, de estender a concessão do benefício até 24 anos.
Precedentes: (v.g., REsp n. 639.487-RS, 5ª T., Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ
1º.2.2006; RMS n. 10.261-DF, 5ª T., Min. Felix Fischer, DJ 10.4.2000).
2. Segurança denegada. (MS n. 12.982-DF, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte
Especial, DJe 31.3.2008)
Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para julgar
improcedente o pedido inicial do autor. Deixo de condená-lo nos ônus de
sucumbência em razão de ser beneficiário da assistência judiciária gratuita (fl.
18e). Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil.
É o voto.
94
Primeira Turma
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 36.422-MT
(2011/0267646-2)
Relator: Ministro Sérgio Kukina
Recorrente: Gabriel Cardim Pazim
Advogado: Márcia Niederle e outro(s)
Recorrido: Estado de Mato Grosso
Procurador: Ana Cristina Costa de Almeida B Teixeira e outro(s)
EMENTA
Administrativo. Concurso público para formação de oficiais.
Idade mínima. Regra editalícia. Interpretação. Violação de princípios.
Nulidade. Recurso provido.
1. A menos de dez dias de completar dezoito anos e já emancipado,
o recorrente foi eliminado do concurso para oficial da polícia militar,
com fundamento em cláusula do edital, porque não apresentava,
na data de publicação, a idade mínima requerida no instrumento
convocatório.
2. A Lei n. 9.784/1999, que esta Corte tem entendido aplicar-se
aos Estados, como o Mato Grosso, que não dispõem de lei própria
para disciplinar o processo administrativo, delineia, no seu artigo 2º,
princípios a serem observados quando da execução dos procedimentos.
Portanto, a atividade administrativa deve pautar-se, dentre outros,
pelos princípios da razoabilidade, assim entendido como adequação
entre meios e fins, e do interesse público, como vetor de orientação
na interpretação de qualquer norma administrativa, inclusive editais.
3. No caso ora examinado, o simples cotejo entre a norma legal
inserta no texto do art. 11 da Lei Complementar Estadual n. 231/2005
e o instrumento convocatório é bastante para afirmar que a restrição
editalícia – dezoito anos na data da matrícula no curso de formação
– decorreu de mera interpretação da Lei, que limitou a idade para
ingresso na carreira militar. Em outras palavras, o que a lei dispôs
como ingresso na carreira, foi interpretado pelo edital como data da
matrícula no curso de formação.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. Essa interpretação foi aplicada com tal rigor no caso concreto
que, a pretexto de cumprir a lei, terminou por ferí-la, porque: (a)
desconsiderou a adequação entre meios e fins; (b) impôs uma restrição
em medida superior àquela estritamente necessária ao atendimento do
interesse público e, também por isso, (c) não interpretou a lei da forma
que melhor garantisse o atendimento do fim público a que se dirige.
5. O ato administrativo de exclusão do impetrante, no contexto
em que foi produzido, violou o disposto no art. 2º, parágrafo único,
incisos VI e XIII da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e, em
consequência, feriu direito líquido e certo do impetrante.
6. Recurso provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento
ao recurso ordinário em mandado de segurança, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Arnaldo Esteves Lima e
Benedito Gonçalves votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro Sérgio Kukina, Relator
DJe 4.6.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Cuida-se, na origem, de mandado de
segurança impetrado por Gabriel Cardim Pazim, apontando como autoridade
coatora o Comandante Geral da Polícia Militar de Mato Grosso, a quem imputa,
como ato coator, a exclusão do impetrante do rol dos candidatos convocados
para o curso de formação de oficiais policiais militares daquele estado.
A exclusão combatida teria se dado porque o edital de convocação para
ingresso no curso foi publicado no dia 10 de março de 2011, nove dias antes
do décimo oitavo aniversário do impetrante, que se deu em 19 de março
98
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
daquele ano. Daí, por não ter dezoito anos completos no dia da convocação
para o programa de formação, foi o impetrante eliminado, com fundamento em
cláusula restritiva do edital.
O Tribunal de origem, por decisão unânime, denegou a segurança, pelos
fundamentos do acórdão que recebeu a seguinte ementa:
Mandado de segurança. Administrativo. Concurso público. Ingresso na carreira
policial militar. Fixação de limite de idade. Possibilidade. Segurança denegada.
É perfeitamente admissível dispor em edital sobre os limites de idade para o
ingresso no quadro das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiro Militar, se há
previsão em lei, sem que isso configure afronta a preceitos constitucionais.
O recorrente, nas razões do recurso ordinário, sustenta que a decisão
administrativa atacada não se mostra razoável e tampouco atende aos princípios
que regem a Administração Pública, mormente porque já havia antecipado sua
emancipação e tratava-se de inscrição em curso de formação, não de posse em
cargo público.
Acrescenta que, em hipótese análoga (MS n. 34.547/2011), o mesmo
Tribunal de Justiça concedeu a segurança ao fundamento de que “nos termos
da Lei Complementar n. 231/2005, o Curso de Formação de Oficiais é fase do
certame e, desse modo, a exigência de idade mínima deve ser na data da posse,
ou seja, no final do curso” (fl. 183).
O Estado do Mato Grosso apresentou contrarrazões ao recurso (fls. 228
a 239), nas quais defende a manutenção do acórdão recorrido, reafirmando a
legalidade do limite mínimo de idade para ingresso na carreira militar.
O Ministério Público Federal, pelo parecer de fls. 267 a 271, manifestou-se
pelo não conhecimento do recurso mas, se conhecido, pelo desprovimento.
Na última manifestação nos autos, protocolizada em 8 de maio de 2012,
o recorrente informou que, amparado em medida liminar, “já concluiu, com
louvor, o 1º ano do Curso de Formação e desde a data de 3.2.2012 se encontra
matriculado no 2º ano do referido Curso, conforme Ata de Matrícula que vai
junto” (fl. 280).
Requer, assim, a concessão da segurança para “garantir a matrícula no
Curso de Formação de Oficiais de que trata o Edital n. 001 DGP-PMMT/
DEIP-CBMT/2010, com os corolários em direito” (fl. 193).
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
99
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): Consta dos autos que Gabriel
Cardim Pazim inscreveu-se no concurso público para ingresso na carreira dos
oficiais da Polícia Militar do Estado do Mato Grosso, regido pelo Edital n. 001
DGP-PMMT/DEIP-CBMT/2010 que, dentre outras, trouxe as seguintes
exigências:
25.1.1 São requisitos para ingresso nas carreiras militares:
I - ser brasileiro;
II - estar, no mínimo, com 18 (dezoito) anos na data da matrícula do curso de
formação (6ª fase) e, no máximo, com 25 (vinte e cinco) anos no ato da inscrição para
o concurso vestibular, de acordo com o Art. 11, II, da Lei Complementar n. 231, de 15
de dezembro de 2005;
III - possuir ilibada conduta pública e privada;
IV - estar quite com as obrigações eleitorais e militares;
V - não ter sofrido condenação criminal com pena privativa da liberdade ou
qualquer condenação incompatível com a função militar;
VI - não ter sido isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva;
VII - obter a aprovação nos exames médicos, físicos, psicológicos e intelectual
exigidos para a inclusão, nomeação ou matrícula;
VIII - ser considerado aprovado em sindicância sobre sua vida pregressa, onde
lhe será exigida a apresentação de toda documentação necessária, a fim de que
comprove o não impedimento para o ingresso na corporação;
IX - possuir, no mínimo, ensino médio completo.
O art. 11, inciso II, da Lei Complementar n. 231/2005, referido na cláusula
editalícia, dispõe:
Art. 11 São requisitos para ingresso nas carreiras militares:
I - ser brasileiro;
II - estar, no mínimo, com 18 (dezoito) e, no máximo, com 30 (trinta) anos;
III - possuir ilibada conduta pública e privada;
IV - estar quite com as obrigações eleitorais e militares;
V - não ter sofrido condenação criminal com pena privativa da liberdade ou
qualquer condenação incompatível com a função militar;
VI - não ter sido isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva;
VII - obter a aprovação nos exames médicos, físicos, psicológicos e intelectual,
exigidos para a inclusão, nomeação ou matrícula;
100
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
VIII - ser considerado aprovado em sindicância sobre sua vida pregressa, onde
lhe será exigida a apresentação de toda documentação necessária, a fim de que
comprove o não impedimento para o ingresso na corporação;
IX - possuir, no mínimo, ensino médio completo.
A norma acima apresenta-se com a redação dada pela Lei Complementar
n. 366/2009. A redação original limitava aos vinte cinco anos a idade máxima
para ingresso. A alteração legislativa, portanto, é irrelevante para o deslinde da
presente controvérsia.
O autos trazem também, às fls. 18 a 20, a emancipação do recorrente,
registrada aos 4 de março de 2011.
Eis, então, o resumo do quadro fático: em 10 de março de 2011, a menos de
dez dias de completar dezoito anos e já emancipado, o recorrente foi eliminado
do concurso para oficial da polícia militar, com fundamento na cláusula 25.1.1
do Edital n. 01/2010, porque não apresentava, na data de publicação do edital
complementar, a idade mínima requerida no instrumento convocatório. Mesmo
assim e por força de liminar, matriculou-se no curso e tem obtido, desde então,
bom desempenho.
Essa a razão de sua irresignação, que, segundo penso, merece ser acolhida
porque o ato administrativo impugnado fere princípios cuja observância é
imposta à Administração.
Explico.
A peça exordial apontou, em essência, dois fundamentos, verbis:
Não se mostra razoável e nem atende aos demais princípios que regem a
Administração Pública que se negue assento no Curso de Formação de Oficiais ao
candidato que vai atingir 18 anos na semana seguinte ao ato de convocação.
Ademais do fato de o requerente completar 18 anos no final dessa semana
(19.3.2011), cabe anotar também que já prevenindo a possibilidade da ocorrência
de eventual óbice na convocação o requerente providenciou a sua emancipação,
conforme consta da Escritura Pública de Emancipação. Lavrada no Cartório do 2º
Oficio de Santo Antônio de Leverger Livro n. 92. Folhas 144. inserida no Registro
de Emancipação n. 119. Livro n. E-02 Folhas 117.
Portanto, ainda que se pudesse aplicar pura e simplesmente a letra fria do edital e
afastar o candidato aprovado que completa 18 anos em 19.3.2011, a controvérsia se
encontraria solucionada pela emancipação lograda justamente com a finalidade
de transpor o entrave editalício.
(destaquei)
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
101
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No contexto dos autos, o acolhimento de qualquer dessas razões é suficiente
para conceder a segurança.
Examina-se, assim, a violação de princípios.
A Lei n. 9.784/1999, que esta Corte tem entendido aplicar-se aos Estados,
como o Mato Grosso, que não dispõem de lei própria para disciplinar o processo
administrativo, delineia, no seu artigo 2º, princípios a serem observados quando
da execução dos procedimentos. Da referida norma colhe-se:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da
legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade,
ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros,
os critérios de:
[...]
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições
e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do
interesse público;
[...]
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o
atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova
interpretação.
(destaquei).
Portanto, por força de expressa disposição legal, a atividade administrativa
deve pautar-se, dentre outros, pelos princípios da razoabilidade, assim entendido
como adequação entre meios e fins, e do interesse público, como vetor de
orientação na interpretação de qualquer norma administrativa, inclusive editais.
No caso ora examinado, o simples cotejo entre a norma legal inserta no
texto do art. 11 da Lei Complementar Estadual n. 231/2005 e o instrumento
convocatório, ambos acima transcritos, é bastante para afirmar que a restrição
editalícia – dezoito anos na data da matrícula no curso de formação – decorreu de
mera interpretação da Lei, que limitou a idade para ingresso na carreira militar.
Em outras palavras, o que a lei dispôs como ingresso na carreira, foi interpretado
pelo edital como data da matrícula no curso de formação.
Essa interpretação – que em outro contexto poderia ser tida como lícita
– foi aplicada com tal rigor no caso concreto que, a pretexto de cumprir a lei,
terminou por ferí-la. Isso porque: (a) desconsiderou a adequação entre meios
(idade mínima) e fins (posto que a limitação se explica pela maioridade penal,
102
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
já suprida pelo transcurso temporal quando do início do curso de formação);
(b) impôs uma restrição em medida superior àquela estritamente necessária ao
atendimento do interesse público, pois em nada interessa à sociedade ver um
jovem, em tese capacitado porque aprovado em várias etapas de um concurso
público extremamente restritivo, ser impedido de ingressar nas fileiras da polícia
militar por conta de literal aplicação de uma norma editalícia de questionável
legalidade e, também por isso; (c) não interpretou a lei da forma que melhor
garantisse o atendimento do fim público a que se dirige.
Eis porque, no meu sentir, o ato administrativo de exclusão do impetrante,
no contexto em que foi produzido, violou o disposto no art. 2º, parágrafo único,
incisos VI e XIII da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e, em consequência,
feriu direito líquido e certo do impetrante.
Diante do que se expôs, dou provimento ao presente recurso ordinário para,
cassando o acórdão recorrido, conceder a segurança, anular o ato administrativo
de exclusão do concurso e tornar definitiva a tutela inicialmente concedida na
origem, de sorte a confirmar a matrícula do impetrante no Curso de Formação
de Oficiais de que trata o Edital n. 01 DGP-PMMT/DEIT-CBMT/2010.
Custas pelo órgão a que pertence a autoridade coatora.
É como voto.
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 43.273-MG
(2013/0220620-0)
Relator: Ministro Benedito Gonçalves
Recorrente: Neiva Martins e outros
Advogado: Humberto Lucchesi de Carvalho
Recorrido: Estado de Minas Gerais
Procurador: Valmir Peixoto Costa e outro(s)
EMENTA
Administrativo e Processual Civil. Recurso ordinário em
mandado de segurança. Divulgação da remuneração dos magistrados
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
103
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e servidores, vinculando-as a seus nomes. Determinação do Conselho
Nacional de Justiça - CNJ. Resolução n. 151/2012. Ilegitimidade do
Presidente do Tribunal de Justiça para figurar como autoridade coatora.
1. Mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, em cumprimento ao
que foi estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça por meio
da Resolução n. 151/2012, determinou a divulgação de informações
referentes à remuneração dos magistrados e servidores do Tribunal,
vinculando-as aos seus nomes.
2. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o Presidente
do Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora,
quando mero executor de decisão do Conselho Nacional de justiça.
A respeito, dentre outros: RMS n. 30.561-GO, Rel. Ministro Teori
Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 20.9.2012; RMS n. 33.468MS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 23.4.2012;
RMS n. 30.314-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe
1º.12.2011.
3. Recurso ordinário não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário em mandado de
segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sérgio
Kukina, Ari Pargendler, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho
(Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 19 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator
DJe 27.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso ordinário
interposto por Neiva Martins, Márcia Helena da Silva, Rosalva Imaculada
104
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Gomes, Filomena Corrêa de Oliveira Silveira, José Márcio de Resende, Rogério
Resende de Oliveira, Rogério Fernandes Coelho, Jacqueline Ribeiro Von
Atzingen, Débora Lúcia de Souza Oliveira e José Gumercindo de Oliveira
contra acórdão proferido pelo TJ-MG, cuja ementa é a seguinte:
Agravo regimental. Argumentos insubsistentes. Decisão monocrática que se
mantém.
Não há como prover o agravo regimental se insubsistentes os argumentos
expendidos pela parte e, ademais, porque se encontra esta devidamente
fundamentada e amparada pela legislação que rege a espécie.
Os recorrentes alegam que o acórdão recorrido não procedeu à correta
interpretação do art. 6º, § 3º, da Lei n. 12.016/2009, porquanto, ao se insurgirem
contra a Portaria TJ-MG n. 2.771/2012, o Presidente do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais têm legitimidade para constar como autoridade coatora no
mandamus. Defende-se ser inconstitucional a determinação de divulgação de
informações a respeito da remuneração dos magistrados e servidores do Poder
Judiciário, que, no caso, vincula o nome completo do agente público a sua
remuneração bruta.
Contrarrazões do Estado de Minas Geras às fls. 165 e seguintes, nas quais
se suscita que, “em situações similares, que envolviam a mera execução de atos
cujo conteúdo provinha do Conselho Nacional de Justiça, este colendo Superior
Tribunal de Justiça já sufragou a tese de ilegitimidade passiva do Presidente
do Tribunal de Justiça estadual” (fl. 168), “admitir viável a tese da legitimidade
passiva da autoridade nomeada coatora levaria ao absurdo de se proclamar que
o Presidente do Tribunal de Justiça tem competência para alterar ou suplantar
disposições da citada Resolução n. 151/2012 do Conselho Nacional de Justiça,
hipótese essa que a toda evidência se mostra insubsistente” (fl. 170).
O Ministério Público Federal opina pelo não provimento do recurso, por
considerar que o Presidente do Tribunal de Justiça é mero executor material da
Resolução n. 151 do CNJ.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Os recorrentes impetraram
mandado de segurança contra ato do Presidente do Tribunal de Justiça de Minas
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
105
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Gerais, que, em cumprimento ao que foi estabelecido pelo Conselho Nacional
de Justiça por meio da Resolução n. 151/2012, determinou a divulgação de
informações referentes à remuneração dos magistrados e servidores do Tribunal,
vinculando-as aos seus nomes.
Na petição inicial, indicam como ato coator a Resolução CNJ n. 151/2012
e a Portaria n. 2.771/2012, indicando o Presidente do Tribunal de Justiça
como autoridade coatora, em razão de o executor da medida. Pretendem que
as informações disponibilizadas não vinculem o nome do agente público à
remuneração, ao argumento de que violados os direitos à intimidade, à
privacidade e à segurança.
Do que se observa, a pretensão não merece prosperar.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o Presidente do
Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora, quando mero
executor de decisão do Conselho Nacional de justiça.
Nesse sentido, dentre outros:
Processual Civil. Recurso em mandado de segurança. Autoridade apontada
como coatora. Mera executora de decisão proferida pelo Conselho Nacional de
Justiça. Ilegitimidade passiva.
Recurso ordinário a que se nega provimento (RMS n. 30.561-GO, Rel. Ministro
Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 20.9.2012).
Processual Civil. Associação. Direitos individuais e conflitantes dos associados.
Ilegitimidade ativa. Autoridade coatora. Cumprimento de determinação do CNJ.
Ilegitimidade passiva.
1. Controverte-se quanto a medidas adotadas para atender à Resolução n. 80
do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que contrariaria o disposto no art. 16 da
Lei n. 8.935/1994, no que respeita à ordem a ser observada no preenchimento das
serventias.
2. Não há legitimidade ou interesse jurídico do ocupante da serventia a título
precário, já que, aberto certame para ambas as espécies - ingresso e remoção
-, acha-se em vias de perder sua titularidade qualquer que seja o resultado do
mandamus.
Restar-lhe-ia mero interesse econômico de protelar a realização do certame,
incompatível com o princípio constitucional que estabelece a prévia aprovação
em concurso público como forma regular de provimento de cargo e emprego
público (art. 37, II, da Constituição Federal).
3. Tratando-se de concurso para ingresso e remoção nas serventias
extrajudiciais, existem interesses meramente particulares e, até mesmo,
106
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
conflitantes, dos associados, o que inviabiliza a tutela coletiva do direito pela
entidade representante da categoria.
4. Ademais, ainda que assim não fosse, a própria legitimidade das
autoridades apontadas como coatoras também não parece existir, uma vez que
a jurisprudência desta Corte tem reconhecido que o “ato normativo de Tribunal
de Justiça que se destina a cumprir determinação advinda de decisão do CNJ
representa simples execução administrativa, o que acarreta a ilegitimidade do
Presidente do Tribunal para figurar no polo passivo de mandado de segurança”
(RMS n. 29.719-GO, de minha relatoria, DJe 26.2.2010).
5. Recurso ordinário não provido (RMS n. 33.468-MS, Rel. Ministro Castro Meira,
Segunda Turma, DJe 23.4.2012).
Administrativo. Processual Civil. Auxílio moradia para magistrados. Suspensão
para todos por determinação do Conselho Nacional de Justiça. Retomada do
pagamento a partir do exame de cada caso concreto. Juízes casados entre si.
Deferimento apenas ao cônjuge mais antigo na magistratura. Aplicação
subsidiária do art. 5º, inciso VI, da Portaria n. 251/08 do CNJ. Presidente do Tribunal
de Justiça. Legitimidade passiva ad causam. Reconhecida.
1. A autoridade coatora é o agente que, no exercício de atribuições do Poder
Público, é responsável pela prática do ato impugnado, contra quem se deve
impetrar a ação mandamental.
2. O Presidente de Tribunal de Justiça não pode ser apontado como autoridade
coatora em mandado de segurança, quando o ato impugnado é oriundo do
cumprimento de determinação do Conselho Nacional de Justiça, mas, na
hipótese, há legitimação para compor o pólo passivo da lide, na medida em que
os atos contra os quais se dirige a pretensão não foram levados a efeito como
corolário direto de comando emanado do CNJ.
3. Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e provido (RMS n.
30.314-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 1º.12.2011).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.196.451-MG (2010/0099047-4)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Recorrido: Maria Lúcia Silveira Junqueira e outro
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
107
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Advogado: Márcio Inácio Franco e outro(s)
Interessado: Município de Congonhal
Advogado: Denilson Marcondes Venâncio e outro(s)
EMENTA
Administrativo. Improbidade administrativa. Ofensa ao art.
508 do CPC não configurada. Desnecessidade de ratificação dos
embargos infringentes após o julgamento dos declaratórios, quando
não há modificação do acórdão recorrido. Inovação da causa de pedir
em sede de alegações finais. Violação ao art. 264 do CPC configurada.
Art. 509 do CPC. Efeito expansivo do recurso. Ainda que inexista
litisconsórcio unitário.
1. Em homenagem aos princípios da instrumentalidade da forma
e celeridade processual, desnecessária a ratificação dos Embargos
Infringentes opostos contra acórdão proferido em sede de apelação
após o julgamento de Aclaratórios, quando não houve modificação do
acórdão recorrido.
2. Na hipótese dos autos, o Ministério Público, na exordial, limitouse a requerer a condenação das rés, enquadrando-as no art. 9º da Lei n.
8.429/1992, porque haveria auferido vantagem patrimonial indevida;
em alegações finais, após concluir que as provas colhidas não seriam
suficientes para comprovar o enriquecimento ilícito, o requerimento do
Parquet para condenação das acusadas nas sanções descritas nos incisos
II e III do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, que correspondem às condutas
tipificadas nos arts. 10 e 11 da mesma Lei, modifica a causa de pedir,
violando o art. 264 do Diploma Processual Civil.
3. Correto o entendimento do Tribunal a quo, no julgamento
dos Embargos Infringentes, pela impossibilidade de modificação da
causa de pedir em alegações finais. Eventual condenação com base em
dispositivo legal diverso do indicado na inicial violaria os princípios
da ampla defesa e contraditório, uma vez que as rés se defenderam das
acusações descritas na peça vestibular.
4. Ainda que não haja litisconsórcio passivo unitário, há o efeito
expansivo subjetivo do recurso interposto por um dos litisconsortes,
quando a defesa deles for comum.
5. Nega-se provimento ao Recurso Especial.
108
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina e Arnaldo Esteves
Lima votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ari Pargendler.
Brasília (DF), 13 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 30.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Cuida-se de Recurso
Especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com
fundamento na alínea a inciso III do art. 105 da Constituição Federal, em
adversidade ao acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
proferido em sede de Embargos Infringentes, ementado nos seguintes termos:
Embargos infringentes. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Alteração
do pedido formulado na petição inicial. Impossibilidade. Não comprovação do
enriquecimento ilícito. Pretensão improcedente (fls. 2.096).
2. Nas razões do Apelo Nobre, alegou o recorrente violação aos arts. 508
do CPC; 264 do CPC; 509 do CPC, sob os seguintes fundamentos: (a) os
Embargos Infringentes interpostos pela requerida encontram-se intempestivos,
pois não foram ratificados após o julgamento dos Aclaratórios; (b) não infringe
o princípio da congruência a decisão judicial que enquadra o ato de improbidade
em dispositivo diverso do indicado na inicial; (c) o acolhimento dos Embargos
Infringentes interpostos por uma das rés não poderia atingir a outra, que não
recorreu.
3. Não foram apresentadas contrarrazões, conforme certidão de fls. 2.180.
4. Parecer de lavra do douto Subprocurador-Geral da República, Moacir
Guimarães Morais Filho, opinando pelo provimento do Recurso Especial, a fim
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
109
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de anular os acórdãos proferidos nos Embargos Infringentes, para que a Turma
julgadora prossiga na análise das condutas das rés, à luz do disposto nos arts. 10
e 11, VI da Lei n. 8.429/1992 (fls. 2.198-2.202).
5. É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Cuida-se, na
origem, de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público em face de
Maria Lúcia Silveira Junqueira, ex-prefeita do Município de Congonhal, e Ceila
Maria de Souza Mariano, ex-secretária de saúde do mesmo Município. Narrou
o Parquet na inicial que entre o período de janeiro de 1997 a julho de 1999, as
rés, agindo em conluio e de forma continuada, desviaram e se apropriaram da
importância de R$ 15.646,60, destinada pelo SUS aos pacientes inscritos no
Programa de Tratamento Fora do Domicílio.
2. O douto Julgador singular julgou improcedentes os pedidos, ao
fundamento de que não haveria restado provado que as requeridas utilizaram
dos valores em proveito próprio. Insurgindo-se contra a sentença, o Ministério
Público e o Município de Congonhal interpuseram recurso de Apelação, em
cujo julgamento a Turma, por maioria, reformou a sentença para reconhecer a
prática de improbidade administrativa e, por voto médio, condenar as acusadas
ao ressarcimento do dano.
3. Em seguida, a ré Maria Lúcia Silveira Junqueira, com o fim de fazer
prevalecer o voto minoritário, interpôs Embargos Infringentes, os quais foram
acolhidos, nos termos a seguir ementado:
Embargos infringentes. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Alteração
do pedido formulado na petição inicial. Impossibilidade. Não comprovação do
enriquecimento ilícito. Pretensão improcedente (fls. 2.096).
4. Inicialmente, acerca da alegação de intempestividade dos Embargos
Infringentes opostos por Maria Lúcia Silveira Junqueira, sob o argumento de
que não haveriam sido ratificados após o julgamento dos Aclaratórios, constatase inexistir a suposta ofensa ao art. 508 do CPC.
5. Em homenagem aos princípios da instrumentalidade das formas e
celeridade do processo, entende-se desnecessária a ratificação dos Embargos
Infringentes opostos contra acórdão proferido em sede de Apelação, antes do
110
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
julgamento de Embargos Declaratórios, quando o julgamento dos Aclaratórios
não resultou em modificação do acórdão recorrido.
6. In casu, os Embargos de Declaração foram acolhidos somente para
sanar o erro material do acórdão, referente ao nome do advogado que proferiu
a sustentação oral, mantendo-se inalterada a decisão no restante. Exigir a
ratificação dos Embargos Infringentes após o julgamento dos Declaratórios,
quando este nem nada modificou o julgado recorrido, seria prestigiar o o excesso
de apego ao formalismo, o que não se coaduna com os princípios que regem o
processo moderno. Nesse sentido, já se pronunciou este Superior Tribunal de
Justiça, confiram-se os precedentes:
Processual Civil. Agravo regimental. Embargos infringentes interpostos antes
do julgamento dos embargos de declaração. Desnecessidade de ratificação.
Princípio da instrumentalidade das formas. Concurso público. Limitação de
idade. A imposição de limite etário em concurso público para as Forças Armadas
depende de lei em sentido formal. Impossibilidade de estipulação de critério
restritivo mediante edital ou regulamento. Precedentes do STJ. Orientação
confirmada pelo STF no regime de repercussão geral. RE n. 600.885-RS. Declarada
a não recepção do art. 10 da Lei n. 6.880/1980. Modulação temporal de efeitos.
Ressalva da eficácia subjetiva.
(...).
3. Preliminarmente, quanto à necessidade de ratificação dos Embargos
Infringentes interpostos antes do julgamento dos Embargos de Declaração,
sem posterior ratificação, aplica-se, por analogia, o entendimento de que “não
se faz impositiva a interposição de novo recurso especial após o julgamento dos
embargos de declaração, somente sendo necessária nova interposição quando
os embargos declaratórios impliquem na modificação do julgado recorrido,
alterando as premissas atacadas no apelo nobre, o que inocorreu no caso” (AgRg
no REsp n. 789.341-RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJ 6.3.2006). Precedentes:
EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ
28.10.2002; AgRg no REsp n. 474.513-RJ, Rel. Ministro José Delgado, Primeira
Turma, DJ 9.6.2003; AgRg no Ag n. 757.130-SC, Rel. Ministro José Delgado,
Primeira Turma, DJ 22.6.2006.
(...).
10. Dou provimento aos Agravos Regimentais para reconhecer a invalidade da
limitação etária imposta pelo regulamento, conforme decidiu o Supremo Tribunal
Federal no RE n. 600.885-RS (AgRg no AREsp n. 165.640-CE, Rel. Min. Herman
Benjamin, DJe 11.9.2012)
Processual Civil e Tributário. Embargos de declaração. Acórdão proferido em
embargos de declaração que dirimiu divergência em voto proferido por maioria.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
111
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Interposição de recurso especial. Fundamentos impugnados. Desnecessidade de
ratificação das razões do recurso especial. IPI. Isenção e alíquota zero. Princípio da
não-cumulatividade.
1. O recurso especial interposto antes do julgamento dos embargos de
declaração opostos pela parte contrária está sujeito à pena de não conhecimento
se não impugnar os fundamentos do acórdão recorrido. Portanto, devidamente
impugnados os argumentos tecidos na instância a quo, torna-se desnecessária a
ratificação das razões do recurso especial, em respeito ao princípio da economia
processual.
(...)
6. Embargos de declaração da Fazenda providos, prestando-lhes efeitos
infringentes, desprovidos os embargos opostos pela empresa (EDcl no AgRg no
Ag n. 459.472-SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 4.4.2005, p. 169).
Embargos declaratórios. Omissão. Desnecessidade de ratificação do recurso
especial.
- Inexistência de omissão.
- Exigência descabida de ratificação do recurso especial após o julgamento dos
embargos de declaração opostos pela parte contrária. Excessivo apego à forma,
que contraria os princípios da celeridade processual e da instrumentalidade
das formas. Embargos rejeitados (EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Min. Barros
Monteiro, DJ 28.10.2002, p. 323).
Agravo regimental. Recurso especial. Oposição de embargos. Ratificação das
razões do recurso. Princípio da instrumentalidade das formas.
1. Dispensável a ratificação das razões do recurso especial quando este
foi interposto dentro do prazo de interrupção ocasionado pela oposição de
embargos de declaração da parte contrária.
2. Excesso de rigor formal que não se coaduna com o objetivo do direito
processual moderno, em homenagem ao princípio da instrumentalidade das
formas. (art. 244, do Código de Processo Civil).
3. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp n. 474.513-RJ, Rel. Min. José
Delgado, DJ 9.6.2003, p. 183).
Processual Civil. Recurso especial interposto antes do julgamento dos
embargos declaratórios. Desnecessidade de ratificação quando impugnados os
fundamentos do acórdão recorrido.
I - Não se faz impositiva a interposição de novo recurso especial após
o julgamento dos embargos de declaração, somente sendo necessária nova
interposição quando os embargos declaratórios impliquem na modificação
do julgado recorrido, alterando as premissas atacadas no apelo nobre, o que
112
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
inocorreu no caso. Precedentes: EDcl no AgRg no Ag n. 459.472-SC, Rel. Min. Luiz
Fux, DJ de 4.4.2005 e EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de
28.10.2002.
II - O julgamento dos embargos de declaração em nada influenciou a matéria
tratada no apelo nobre, eis que aquele decidiu somente acerca dos limites
impostos à compensação pelas Leis n. 9.032/1995 e 9.129/1995 e o recurso
especial sustentava a impossibilidade da efetivação de compensação de tributos
por meio de liminar em mandado de segurança, ou em ação cautelar, ou, ainda,
via antecipação de tutela, tendo em vista o caráter satisfativo do provimento.
III - Agravo regimental improvido (AgRg no REsp n. 789.341-RJ, Rel. Min.
Francisco Falcão, DJ 6.3.2006, p. 237).
7. No tocante ao art. 264 do CPC, correta se mostra sua aplicação pelo
Tribunal a quo, que acolheu os Embargos Infringentes para fazer prevalecer
o voto minoritário do ilustre Desembargador Moreira Diniz, cujo trecho
transcrevo a seguir:
Da leitura da petição inicial, verifica-se que o Ministério Público requereu
a condenação das requeridas, no que couber, nas sanções do art. 12, I, da Lei
n. 8.429/1992 (fl. 10). O referido dispositivo refere-se às sanções aplicadas aos
agentes públicos, quando verificada a hipótese de enriquecimento ilícito (art.
9º). Dessa forma, o Ministério Público limitou-se a requerer a condenação das rés,
porque auferiram vantagem patrimonial indevida.
No decorrer da lide, o órgão Ministerial concluiu que não havia documentação
suficiente para comprovar o enriquecimento ilícito, e, em alegações finais,
requereu a condenação das rés nos termos do artigo 12, II e III, da Lei n. 8.429/1992
(fl. 1.647).
Constata-se que houve alteração da causa de pedir, violando o disposto no
artigo 264 do Código de Processo Civil. Nesse ponto, ressalto que não há como
falar em subsunção da norma de menor gravidade na de maior gravidade. As
condutas descritas nos artigos 9º, 10 e 11, da Lei n. 8.429/1992, são distintas
e as condenações também; portanto, se o Ministério Público pretendia que
as requeridas fossem condenadas nos termos do artigo 12, II e III, deveria ter
formulado pedido nesse sentido na petição inicial.
Na verdade, as rés se defenderam da acusação que lhes foi imputada pelo
Ministério Público, ou seja, enriquecimento ilícito (artigo 12, I), não havendo
defesa quanto às demais modalidades de improbidade, porque não foram
acusadas, na petição inicial, de tais práticas. Dessa forma, a alteração posterior
do pedido representa violação do principio da ampla defesa e do contraditório
(fls. 1.999).
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
113
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
8. Na hipótese dos autos, o Ministério Público, na exordial, limitou-se a
requerer a condenação das rés, enquadrando-as no art. 9º da Lei n. 8.429/1992,
porque haveriam auferido vantagem patrimonial indevida.
9. No decorrer da instrução, após concluir que as provas carreadas aos autos
não seriam suficientes para comprovar o enriquecimento ilícito das requeridas,
pleiteou o órgão Ministerial, em alegações finais, a condenação das acusadas nas
sanções descritas nos incisos II e III do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, as quais
correspondem às condutas tipificadas nos arts. 10 e 11 da mesma Lei, alterando,
dessa forma, a causa de pedir, e incorrendo, consequentemente, em ofensa
ao art. 264 do Diploma Processual Civil. Sobre o aludido dispositivo leciona
respeitável doutrina de NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE
ANDRADE NERY:
Feita a citação, nos termos do CPC 264, é defeso ao autor modificar o pedido
ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas
partes, salvo as substituições permitidas em lei. Da citação decorre a estabilização
do processo, não sendo, dessa forma, permitida a alteração das partes litigantes,
salvo nos casos expressamente permitidos em lei (Código de Processo Civil
comentado e Legislação Extravagante, São Paulo, RT, 2013, p. 603).
10. Com efeito, constata-se que eventual condenação com base em
dispositivo legal diverso do indicado na inicial violaria os princípios da ampla
defesa e contraditório, uma vez que as rés se defenderam das acusações e
condutas imputadas na exordial.
11. Ademais, em que pese as condutas descritas nos arts. 10 e 11 da Lei de
Improbidade possuírem sanções mais brandas que as do art. 9º da mesma Lei,
percebe-se que os requisitos caracterizadores dos tipos citados são diferentes.
O art. 9º tipifica os atos de improbidade administrativa que importam
enriquecimento ilícito; enquanto os arts. 10 e 11 tratam, respectivamente, dos
atos de improbidade que causam prejuízo ao erário e dos que atentam contra os
princípios da administração pública.
12. Segundo as lições de MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS,
para que reste tipificada conduta descrita no art. 9º, deverão estar presentes os
seguintes requisitos: dolo do agente público ou de terceiro; vantagem patrimonial
oriunda de um comportamento ilegal do agente público ou de terceiro; nexo de
causalidade entre a ilicitude da vantagem obtida e o exercício funcional do agente
114
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
público ou de terceiro (O Limite da Improbidade Administrativa, Rio de Janeiro,
Forense, 2010, p. 182). No que tange aos requisitos das condutas descritas nos
arts. 10, ressalta o mencionado autor: a conduta do agente público, ainda que seja
omissa, dolosa ou culposa, deverá acarretar prejuízo para o erário, causando-lhe lesão
(op. cit., p. 264). Já quanto ao art. 11 da mesma Lei, os requisitos caracterizadores
consistem em: ação ou omissão do agente público que viole os princípios éticos
(constitucionais) da Administração; comportamento funcional devasso, desonesto,
de má-fé, caracterizado por ato ilícito ou ilegal; dolo, caracterizado pela manifesta
vontade omissiva ou comissiva de violar princípio constitucional regulador da
Administração Pública (op. cit., p. 376-377).
13. Diante desse panorama, constata-se correta a aplicação do art. 264 pela
4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em sede de
Embargos Infringentes, pela impossibilidade de alteração da causa de pedir em
alegações finais, inexistindo ofensa ao aludido dispositivo federal.
14. Em relação à suposta violação ao art. 509 do CPC, ao argumento de
que o recurso interposto por uma das rés não poderia estender seus efeitos
para a outra, por não se tratar de hipótese de litisconsórcio passivo unitário,
necessário tecer algumas considerações. Apesar de o caput do art. 509 do CPC
se aplicar, em tese, somente aos casos de litisconsórcio unitário, vejamos o que
dispõe o seu parág. único, in verbis: Havendo solidariedade passiva, o recurso
interposto por um devedor aproveitará aos outros, quando as defesas opostas ao credor
lhes forem comuns.
15. Desse modo, ainda que não se trate de litisconsórcio unitário, constatase que as defesas e interesses das requeridas são comuns, razão pela qual o
recurso interposto por uma delas, aproveita a outra. Trata-se do efeito expansivo
subjetivo do recurso, sobre o qual comenta NELSON NERY JÚNIOR, citando
os ensinamentos de Barbosa Moreira:
Ainda que o litisconsórcio não seja unitário, há o efeito expansivo subjetivo
do recurso interposto por apenas um dos litisconsortes, quando as defesas deles
forem comuns. O recurso do litisconsorte se estende ao outro, ainda que este
tenha aquiescido à decisão ou renunciado ao recurso (Código de Processo Civil
comentado e Legislação Extravagante, São Paulo, RT, 2013, p. 1.010).
16. Diante do exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. É como
voto.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
115
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 1.377.728-CE (2012/0259096-0)
Relator: Ministro Benedito Gonçalves
Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
Advogado: Procuradoria-Geral Federal - PGF
Recorrido: Manuel Pontes de Medeiros
Advogados: Flávio Jacinto da Silva
Marilia de Paula
EMENTA
Previdenciário. Recurso especial. Aposentadoria por invalidez.
Cumulação com subsídio decorrente do exercício de mandato eletivo.
Possibilidade.
1. É possível a percepção conjunta do subsídio decorrente do
exercício de mandato eletivo (vereador), por tempo determinado, com
o provento de aposentadoria por invalidez, por se tratarem de vínculos
de natureza diversa, uma vez que a incapacidade para o trabalho não
significa, necessariamente, invalidez para os atos da vida política.
2. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Arnaldo Esteves Lima e
Napoleão Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ari Pargendler.
Brasília (DF), 18 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator
DJe 2.8.2013
116
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso especial
interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS contra acórdão,
assim ementado (fl. 138-139):
Previdenciário. Segurado aposentado por invalidez. Exercício de mandato
como vereador. Artigo 46 da Lei n. 8.213/1991. Cancelamento do benefício
com base na presunção de recuperação da capacidade laboral. Ilegalidade.
Cumulação. Possibilidade.
1. O exercício de cargo eletivo com mandato por tempo certo, não configura
retorno às atividades laborais do segurado, nem comprova a aptidão do
impetrante para o exercício das atividades laborais que exercia antes de ser
acometido pela invalidez.
2. O fato de o segurado titular da aposentadoria por invalidez estar exercendo
mandato eletivo não enseja o cancelamento do benefício, pois para que haja a
cessação e o retorno do segurado a atividade laborativa, imperiosa a observação
do procedimento disposto no art. 47 da Lei n. 8.213/1991.
3. É possível a percepção conjunta dos subsídios da atividade de vereança
com os proventos de aposentadoria por invalidez, por se tratar de vínculos de
natureza diversa, uma vez que, a incapacidade para o trabalho não significa,
necessariamente, invalidez para os atos da vida política.
4. Por se tratar de ação previdenciária, incidem os juros de mora de 1% (um
por cento) ao mês, até a entrada em vigor da Lei n. 11.960/2009, quando haverá
a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de
remuneração básica e juros aplicados à Caderneta de Poupança.
5. Honorários advocatícios fixados no percentual de 10% (dez por cento)
sobre o valor da condenação, nos termos da sentença, devendo ser observado o
disposto na Súmula n. 111 do STJ.
6. Apelação parcialmente provida para determinar o restabelecimento do
benefício de aposentadoria por invalidez, com efeitos retroativos a partir da
cessação.
No recurso especial, a parte recorrente alega, além de dissídio jurisprudencial,
violação dos artigos 42 e 46 da Lei n. 8.213/1991, sob o argumento de que o
aposentado por invalidez que retornar à atividade laboral voluntariamente deve
ter seu benefício previdenciário de aposentadoria cancelado, a contar da data do
retorno às atividades.
Defende, ainda, que o exercício de cargo eletivo configura retorno às
atividades laborais, o que autoriza o cancelamento da aposentadoria por invalidez,
uma vez que a atividade gera renda que garante a subsistência do segurado.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
117
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Contrarrazões às fls. 158-164.
O presente recurso foi inadmitido pela Corte de origem, ascendendo a esta
Corte por força de agravo, no qual determinou-se a reautuação como recurso
especial (decisão de fl. 202-203).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): O cerne da demanda se
concentra em saber se o segurado do INSS, aposentado por invalidez, pode
cumular tal aposentadoria com o subsídio decorrente do exercício de mandato
eletivo, por tempo determinado.
No caso dos autos, o ora recorrido, após sofrer acidente em serviço (foi
alvejado na região da coluna cervical por disparo de arma de fogo durante
assalto à agencia bancária em que trabalhava) aposentou-se por invalidez em
1º.10.1997. Contudo, nas eleições de 2004 foi eleito para o cargo político
de vereador na Câmara de Vereadores da cidade de Pacatuba-CE, cargo que
perdurou de 2005 a 2008.
Em 14.6.2010, o INSS cancelou a aposentadoria por invalidez.
Como se sabe, o agente político (Presidente da República, Governador,
Prefeito, Ministro, Secretário, Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual e
vereador) não mantém vínculo profissional com a Administração Pública, sendo
o exercício de suas atividades um munus público, ainda que considerada, para
fins previdenciários, de contribuição obrigatória.
Ademais, como ensina Bandeira de Mello, para o exercício das atividades
políticas não há necessidade de capacitação técnica ou profissional. Assim, o
exercício da atividade temporária de vereança não pressupõe a aptidão do ora
recorrido para o exercício das atividades laborais antes desempenhadas.
A propósito, transcrevo trecho da obra:
São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores,
Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto
é, Ministros e Secretários das diversas pastas, bem como os Senadores, Deputados
federais e estaduais e os Vereadores.
O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza
profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o
118
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação
profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e,
por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da sociedade.
A relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional,
estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o
Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis. Donde,
são por elas modificáveis, sem que caiba procedente oposição às alterações
supervenientes, sub color de que vigoram condições diversas aos tempo das
respectivas investiduras (Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores. 2003, P. 229-230) (grifos nosso).
Dessa forma, não há que se falar em vedação da percepção conjunta do
subsídio da atividade de vereança com os proventos de aposentadoria por
invalidez decorrente de acidente de trabalho, uma vez que, sendo os vínculos de
natureza distinta, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente,
incapacidade para os atos da vida política.
O exercício de cargo eletivo não representa atividade laboral remunerada
para fins de cassação da aposentadoria por invalidez, segundo ilustram os
seguintes precedentes:
Previdenciário. Vereador. Aposentadoria por invalidez. Cumulação.
Possibilidade.
1. É possível a percepção conjunta dos subsídios da atividade de vereança com
os proventos de aposentadoria por invalidez, por se tratar de vínculos de natureza
diversa, uma vez que, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente,
invalidez para os atos da vida política.
2. Agravo interno ao qual se nega provimento (AgRg no Ag n. 1.027.802-RS,
Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Sexta Turma,
DJe 28.9.2009, grifo nosso).
Previdenciário. Cancelamento de aposentadoria por invalidez. Segurado eleito
vereador. Inobservância do devido processo legal.
1. O fato de o segurado titular da aposentadoria por invalidez estar exercendo
mandato eletivo não enseja o cancelamento do benefício, especialmente quando
não comprovada sua recuperação.
2. O ato de cancelamento do benefício sem observar os princípios do devido
processo legal e da ampla defesa autorizam a impetração do mandado de
segurança, por traduzir ato abusivo e ilegal.
3. Recurso especial a que se nega provimento (REsp n. 626.988-PR, Rel. Ministro
Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 18.4.2005, grifo nosso).
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
119
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No mesmo sentido, a decisão monocrática no REsp n. 1.307.425-SC, Min.
Castro Meira, publicada no DJe de 28.3.2012.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.406.267-RN (2011/0202207-3)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte
Recorrido: Fernando de Moura Cordeiro
Advogado: Tertuliano Cabral Pinheiro e outro(s)
EMENTA
Administrativo e Processual Civil. Recurso especial. Ação civil
pública de improbidade administrativa. Ex-motorista da Companhia
de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte. Subtração de cartão de
abastecimento de veículos pertencentes à CAERN, que estava sob a
responsabilidade de um servidor da companhia, em horário de almoço.
Ausência de nexo causal entre a conduta ilegal e o exercício das funções
inerentes à relação empregatícia. Atipicidade da conduta. Ilicitude
apenasmente administrativa, que já obteve regular e proporcional
penalidade no âmbito interno da CAERN (suspensão de 29 dias e
imposição de devolução da quantia de R$ 159,90, indevidamente
debitada no referido cartão). Agravo conhecido. Recurso especial
parcialmente conhecido e, neste aspecto, desprovido.
1. A mera alegação de ofensa aos arts. 1º, 9º, 10 e 11 da Lei n.
8.429/1992, sem que haja demonstração do em que consiste a violação
aos referidos dispositivos legais, atrai o óbice da Súmula n. 284 do
STF.
2. In casu, o Órgão Ministerial Estadual ajuizou Ação Civil
Pública de Improbidade Administrativa contra a parte recorrida
120
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
(motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do
Norte CAERN), imputando-lhe a conduta de ter subtraído cartão de
abastecimento da Companhia, destinado ao abastecimento do veículo
Mercedes 608, placa MYC 9488, de responsabilidade do servidor
Francisco Pinto Ferreira Neto, quando este se encontrava em horário
de almoço, apontando, ainda, que a conduta do recorrente causou
prejuízo ao Erário no importe de R$ 159,90, decorrente da utilização
indevida do cartão mencionado.
3. Irretocável se mostra o entendimento exarado pelo Tribunal a
quo, que desproveu a Apelação do Ministério Público, concluindo pela
impossibilidade da procedência do pleito constante na exordial, por
não ter o recorrido poder de gestão de bens ou recursos públicos, sequer
realizando o ato no exercício de suas atividades laborais, o que inviabiliza
a incidência da Lei de Improbidade Administrativa ao caso em exame.
4. Recurso Especial parcialmente conhecido e, neste aspecto,
desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da
Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos
e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer parcialmente do
recurso especial e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler e
Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 8 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 24.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. O Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Norte interpõe Recurso Especial, lastreado nas alíneas
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
121
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a e c do inciso III da CF/1988, interposto contra acórdão da 3ª Câmara Cível
do TJRN, que julgou improcedente a Ação Civil Pública de Improbidade
Administrativa, nos termos da ementa abaixo:
Constitucional. Administrativo. Ação de improbidade administrativa ajuizada
pelo Ministério Público. Vantagem patrimonial indevida em razão do exercício
de emprego público. Ato de gestão não configurado. Não aplicação da Lei de
Improbidade Administrativa. Conhecimento e desprovimento do recurso.
1 - Os atos de improbidade administrativa referem-se aos atos, realizados pelo
gestor público, que ferem princípios constitucionais, causam danos ao erário ou
importam enriquecimento ilícito.
2 - Não se constatando que o ato passível de repressão tenha sido realizado
no exercício de função de gestão, não se configura a improbidade, devendo
a conduta do agente público ser reprimida por outras vias, que não a ação de
improbidade.
3 - Recurso conhecido e desprovido. (fls. 244).
2. Nas razões do Raro Apelo de fls. 254-269, aponta o membro do Parquet,
além de dissídio jurisprudencial, ofensa aos arts. 1º, 2º, 4º, 9º, 10 e 11, todos da
Lei n. 8.429/1992, sustentando, em suma, que, apesar de o recorrido não deter
poder de gestão sobre dinheiro público, sua conduta é plenamente enquadrável
nos fatos típicos descritos no art. 9º, caput e art. 10, I da LIA. Assevera que a
Lei n. 8.492/1992 alcança todos os agentes públicos, independentemente do nível
hierárquico que ocupam.
3. O douto Ministério Público Federal, em parecer de lavra do ilustre
Subprocurador-Geral Moacir Guimarães Morais Filho (fls. 321-324), opinou
pelo conhecimento do Agravo, para que o Nobre Apelo seja conhecido e
provido, conforme o teor da seguinte ementa:
1) Administrativo. Processual Civil. Ação Civil Pública. Improbidade
Administrativa. Sentença que determinou extinção sem resolução do mérito sob
o argumento que apenas os atos de gestão, praticados pelos administradores,
são sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa. Acórdão do Tribunal de origem
que manteve a sentença. Violação ao art. 4º da Lei n. 8.429/1992 que estabelece
a incidência da Lei de Improbidade Administrativa aos Agentes Públicos,
independente de nível ou hierarquia. Aplicabilidade do conceito “agente público”
aos empregados públicos da Administração Indireta, por força dos arts. 1º e 2º, da
Lei n. 8.429/1992.
2) Divergência jurisprudencial. Conhecimento e provimento para prevalecer
entendimento do TJE-RS. Devido cotejamento do acórdão hostilizado com
122
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
paradigma do tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Similitude
de caso, que envolve uso indevido de abastecimento de veículo particular com
recursos do erário público, com interpretações diversas, o aresto guerreado
considera que não se aplica a Lei n. 8.429/1992, ao contrário do paradigma que
entende pela configuração da improbidade administrativa.
3) Parecer pela convolação do Agravo em Recurso Especial para que, conhecido
e provido este, seja reformada a decisão recorrida. (fls. 321).
4. É o que havia de importante para ser relatado.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Inicialmente, no
tocante à alegada ofensa aos arts. 1º, 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.429/1992, constatase que o recorrente não demonstrou em que consiste a alegada ofensa aos
referidos dispositivos legais, atraindo o óbice da Súmula n. 284 do STF.
2. Em relação ao alegado dissídio jurisprudencial e à suposta negativa de
vigência aos arts. 2º e 4º da LIA, o Raro Apelo merece conhecimento.
3. Da análise dos autos, dessumem-se os seguintes fatos: o Órgão
Ministerial Estadual ajuizou Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa
contra a parte recorrida, Fernando de Moura Cordeiro (motorista da Companhia
de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte CAERN), devido ao fato de, em
21.8.2004, o recorrido ter subtraído cartão de abastecimento da Companhia,
destinado ao abastecimento do veículo Mercedes 608, placa MYC 9488, de
responsabilidade do servidor Francisco Pinto Ferreira Neto, quando este se
encontrava em horário de almoço.
4. Os fatos narrados foram apurados em Sindicância instaurada junto
à CAERN, que averiguou ter havido o abastecimento de 116,71 litros de
combustível, totalizando a quantia de R$ 159,90, tendo o frentista do Posto de
Gasolina reconhecido, prontamente, Fernando como o autor do abastecimento
com o cartão mencionado. Consequentemente, impuseram-lhe a penalidade de
suspensão, pelo prazo de 29 dias, bem como determinaram a devolução do valor
apurado.
5. A Sentença extinguiu o processo, sem julgamento de mérito, asseverando
que, apesar de o Acusado possuir vínculo empregatício com a Administração
Pública, não possuía nenhum dever funcional de administração e não praticou o ato
que lhe é imputado no exercício das funções inerentes ao emprego que ocupa.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
123
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
6. Em sede de Apelação, o Tribunal a quo manteve o entendimento da
Sentença acerca da inexistência de ato de improbidade, mas alterou a parte
dispositiva do desicum, para julgar improcedente o pedido constante na exordial,
negando provimento, dest’arte, ao Recurso Ministerial.
7. Cinge-se a controvérsia em saber se o conceito de Agente Público,
delineado nos termos da Lei n. 8.429/1992, engloba a conduta do recorrido,
que, ao menos na época, era Motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio
Grande do Norte e não praticou o ato no exercício funcional administrativo.
8. Nessa seara, constata-se que a aludida conduta do Motorista, apesar
de tipificar, em tese, ato criminoso, não legitima o ajuizamento de Ação Civil
Pública por ato de improbidade administrativa; em uma análise perfunctória
do caso, não se vislumbra o dolo específico de causar prejuízo ao erário, elemento
imprescindível para configurar ato de improbidade.
9. Ademais, constata-se que a Lei Improbidade Administrativa foi editada
para punir as condutas dos gestores de recursos públicos, ou seja, daqueles que
detém o mínimo de poder decisório. Sobre o assunto, destacam-se as lições de
MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS:
A Lei de Improbidade nasceu do Projeto de Lei n. 1.446/1991, enviado pelo
então Presidente Fernando Collor de Mello, que necessitava dar um basta à onde
de corrupção que assolava o País naquela época. Sob o rótulo da moralidade, o
Ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, do citado governo, deixou registrado em
sua Exposição de Motivos que o combate à corrupção era necessário, pois se trata
de uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País. Sempre foi
uma cultura nefasta em nosso país, como nos países da América do Sul, ver os
homens públicos rompendo a coletividade pelos seus maus tratos à coisa pública.
(...).
A Lei de Improbidade veio à superfície com a finalidade de combater atos que
afetem a moralidade e maltratem a coisa pública. Todavia, como a lei em comento
possui comandos muito abertos, é necessário que haja uma certa prudência no
manejo indiscriminado de ações de improbidade administrativa para que não
seja enfraquecida e se torne impotente, pelo excesso da sua utilização, para os
casos que não comportem o devido enquadramento (O Limite da Improbidade
Administrativa, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 27).
10. Não se discute a possibilidade de o Motorista ser terceiro beneficiário
da conduta de improbidade. Contudo, por não ostentar cargo de gestão e não possuir
qualquer poder decisório, entende-se, em princípio, não ser legitimado passivo para
figurar na Ação de Improbidade como sujeito ativo do ato.
124
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
11. Destaca-se, ademais, que o próprio Tribunal de origem asseverou que
a subtração do Cartão de Abastecimento da CAERN, pelo recorrido, não teve
qualquer liame com as atribuições exercidas pelo Empregado junto à Administração
Pública, conforme atesta o seguinte trecho do Voto do Relator:
No caso em comento, observo, pelo conjunto probatório produzido nos autos,
que não restou configurado ato de improbidade, pois o réu não realizava ato de
gestão de bens ou recursos públicos, nem realizou o ato reportado como ilícito no
exercício de suas atividades laborais (...). (fls. 249).
12. Entendimento contrário implicaria condenar, indiscriminadamente,
por Ato de Improbidade, todo Agente Público que cometesse qualquer ilícito
penal, pela simples condição de possuir vínculo com a Administração Pública,
desvirtuando-se, dessa maneira, a utilização da referida Ação Civil Pública
de sua finalidade precípua de combater condutas violadoras da moralidade
administrativa e da coisa pública.
13. Diante do exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial interposto
pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.
14. É o voto.
RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013
125
Segunda Turma
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO ESPECIAL N. 1.216.168-RS (2010/0189304-9)
Relator: Ministro Humberto Martins
Embargante: Ministério Público Federal
Embargado: Yeda Rorato Crusius
Advogado: Fábio Medina Osório
Interessado: José Otávio Germano
Interessado: João Luiz dos Santos Vargas
Interessado: Luiz Fernando Salvador Zachia
Interessado: Frederico Cantori Antunes
Interessado: Delson Luiz Martini
Interessado: Walma Vilarins Menezes
Interessado: Rubens Salvador Bordini
Interessado: Carlos Augusto Crusius
EMENTA
Administrativo e Processual Civil. Embargos de declaração
recebido como agravo regimental. Improbidade administrativa. Agente
político. Aplicação da Lei n. 8.429/1992. Possibilidade. Precedentes.
1. É possível o recebimento de embargos de declaração como agravo
regimental, quando constatado que o pleito recursal é marcadamente
infringente. Precedentes: EDcl no REsp n. 1.178.156-RS, Rel.
Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 2.5.2013,
DJe 10.5.2013; EDcl no AREsp n. 301.702-PE, Rel. Ministro Sérgio
Kukina, Primeira Turma, julgado em 11.4.2013, DJe 16.4.2013.
2. Discute-se nos autos a possibilidade de aplicação da Lei n.
8.429, de 1992 a agente político que exerce o cargo de Governador de
Estado.
3. O Tribunal de origem decidiu que “a Lei n. 8.429/1992,
que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos por atos
de improbidade administrativa, não se aplica aos agentes políticos,
porquanto estes, nesta condição, não respondem por improbidade
administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade”.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. A jurisprudência desta Corte, ao contrário do que decidiu
o acórdão recorrido, firmou-se no sentido da “possibilidade de
ajuizamento de ação de improbidade em face de agentes políticos,
em razão da perfeita compatibilidade existente entre o regime
especial de responsabilização política e o regime de improbidade
administrativa previsto na Lei n. 8.429/1992, cabendo, apenas e tãosomente, restrições em relação ao órgão competente para impor as
sanções quando houver previsão de foro privilegiado ratione personae
na Constituição da República vigente” (REsp n. 1.282.046-RJ, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em
16.2.2012, DJe 27.2.2012).
5. No mesmo sentido são os precedentes: AgRg no AREsp n.
141.623-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado
em 6.12.2012, DJe 4.2.2013; REsp n. 1.130.584-PB, Rel. Ministro
Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 18.9.2012, DJe
21.9.2012; AgRg no REsp n. 1.127.541-RN, Rel. Ministro Humberto
Martins, Segunda Turma, julgado em 4.11.2010, DJe 11.11.2010.
6. Por fim, na sessão do dia 16.9.2013, no julgamento do AgRg
na Rcl n. 12.514-MT, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, a Corte
Especial firmou orientação no sentido de que o foro por prerrogativa
de função prerrogativa de função não se estende ao processamento das
ações de improbidade administrativa.
Embargos de declaração recebidos como agravo regimental e
provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A
Turma, por unanimidade, recebeu os embargos de declaração como agravo
regimental e deu-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques
(Presidente) e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 24 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Humberto Martins, Relator
DJe 4.10.2013
130
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de embargos de declaração
interpostos pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática deste
relator, cuja ementa guarda os seguintes termos (fl. 288, e-STJ):
Processual Civil e Administrativo. Foro competente para processar e julgar a
demanda de improbidade administrativa contra Governador de Estado.
Entendimento da Corte Especial do STJ no sentido de que o Governador de Estado não
se submete à demanda de improbidade administrativa perante o juízo de primeiro
grau de jurisdição (Rcl n. 2.790-SC). Agravo regimental provido.
Alega o embargante que houve julgamento extra petita, haja vista que “a
questão debatida nos autos diz respeito à aplicabilidade da Lei n. 8.429/1992
aos agentes políticos, e não à existência de foro por prerrogativa de função nas
ações de improbidade administrativa” (fl. 303, e-STJ).
Aduz ainda o embargante que “a parte recorrida não mais ocupa o cargo
de Governadora do Estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista que não
foi reeleita no pleito de outubro de 2010”, razão por que “o Superior Tribunal
de Justiça não detém competência originária para processar e julgar ação de
improbidade intentada contra ex-ocupante do cargo que atraía o foro especial”
(fl. 307, e-STJ).
Pleiteia o embargante a supressão das máculas apontadas.
Ouvida a respeito, a embargada impugnou os embargos de declaração,
sustentando a necessidade de manutenção da decisão embargada.
É, no essencial, o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Inicialmente, considerando
o pleito completamente infringente dos embargos de declaração, recebo o
recurso como agravo regimental, fundado em inúmeros precedentes desta Corte.
A esse título, v.g.: EDcl no REsp n. 1.178.156-RS, Rel. Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 2.5.2013, DJe 10.5.2013; EDcl no AREsp
n. 301.702-PE, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em
11.4.2013, DJe 16.4.2013.
Ao apreciar o recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal,
monocraticamente, considerei, fundado em precedentes desta Corte, que a Lei
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
131
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
n. 8.429/1992 aplica-se de aos agentes políticos, a exemplo de Governador de
Estado, que é o caso dos autos (fls. 183-185, e-STJ).
Ao questionar essa decisão monocrática, a agravada argumentou que “o
acórdão do Tribunal de origem seguiu o mesmo entendimento dos precedentes
firmados pelo Pretório Excelso e seguidos por esse egrégio STJ (inclusive por
sua Corte Especial), no sentido da incompetência do juízo de primeiro grau
para processar e julgar pretensão deduzida em ação de improbidade ajuizada
em face de Governadora de Estado, por ostentar prerrogativa de foro por
crimes comuns perante o STJ (art. 105, inciso I, alínea a, da CF) e para crimes
de responsabilidade perante a Assembleia Legislativa (arts. 53, inciso V, da
Constituição Estadual e art. 75 da Lei Federal n. 1.079/1950)” (fl. 208, e-STJ).
Nova decisão monocrática foi mim proferida, reformando a anterior e
mantendo os termos do acórdão de origem (fls. 288-297, e-STJ).
Após incisiva manifestação do Ministério Público Federal, via embargos
de declaração (fls. 301-307, e-STJ), volto a analisar a questão.
Observo que o Tribunal de origem, exclusivamente, restringiu-se a afastar
a aplicação da Lei n. 8.429/1992 em autos onde se discute a improbidade
administrativa da agravada e de outras pessoas, cujo trâmite ocorre perante Juízo
Federal de primeira instância. A ementa do julgado sintetiza a controvérsia (fl.
99, e-STJ):
Processual Civil e Administrativo. Ação civil pública. Improbidade
administrativa. Agentes políticos. Inaplicabilidade.
A Lei n. 8.429/1992, que regula a ação de improbidade administrativa, não se
aplica aos agentes políticos que, nesta condição, não respondem por improbidade
administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade.
Põe-se em discussão, assim, a aplicação ou não da Lei n. 8.429/1992 à agravada.
Ao analisar detidamente os embargos de declaração interpostos pelo
Ministério Público Federal, aqui recebidos como agravo regimental, considero,
em melhor análise dos autos, que lhe assiste inteira razão.
Primeiramente, reformulo o meu entendimento de que a questão foi
decidida sob o enfoque exclusivamente constitucional. Assim o faço por
identificar claramente no acórdão recorrido a seguinte passagem (fl. 95, e-STJ):
Na esfera infraconstitucional, a Lei n. 1.079/1950, que define os crimes de
responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento, estabelece:
132
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Art. 75. É permitido a todo cidadão denunciar o Governador perante a
Assembléia Legislativa, por crime de responsabilidade.
Logo, a Lei n. 8.429/1992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes
públicos por atos de improbidade administrativa, não se aplica aos agentes
políticos, porquanto estes, nesta condição, não respondem por improbidade
administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade.
Houve, portanto, pelo acórdão de origem, rejeição à possibilidade de
incidência e aplicação da Lei n. 8.429/1992, relativamente aos atos praticados
pela agravada, considerados ímprobos pelo Ministério Público Federal, que
aforou a respectiva demanda perante a Seção Judiciária da Justiça Federal em
Santa Maria, Rio Grande do Sul. Houve, por outro lado, pela Corte de origem,
o reconhecimento de que a agravada submeter-se-ia exclusivamente aos termos
da Lei n. 1.079/1950, que “define os crimes de responsabilidade e regula o
respectivo processo de julgamento”.
Com outras palavras, instaurou-se debate acerca de incidência e aplicação
de legislação federal ao caso de que se cuida, circunstância suficiente à abertura
de instância perante esta Corte para a apreciação do recurso especial.
Por sua vez, o recurso especial investe contra a violação dos arts. 1º, 2º, 3º,
4º e 12, da Lei n. 8.429/1992. Considera que “merece ser afastada a alegação
de inaplicabilidade da Lei n. 8.429/1992 em relação aos agentes políticos,
pois, como visto acima, as previsões de sanções pela Lei de Improbidade
Administrativa, coincidentes com sanções também previstas em outras esferas
de responsabilidade, não a descaracterizam impedem a sua aplicação” (fl. 143,
e-STJ).
Quanto a esse aspecto específico, consubstanciado na aplicação da LIA à
agravada, então ocupante do cargo de Governador de Estado, registro que “esta
Corte Superior admite a possibilidade de ajuizamento de ação de improbidade em face
de agentes políticos, em razão da perfeita compatibilidade existente entre o regime
especial de responsabilização política e o regime de improbidade administrativa
previsto na Lei n. 8.429/1992, cabendo, apenas e tão-somente, restrições em relação ao
órgão competente para impor as sanções quando houver previsão de foro privilegiado
ratione personae na Constituição da República vigente” (REsp n. 1.282.046RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em
16.2.2012, DJe 27.2.2012).
No mesmo sentido, outros precedentes desta Corte:
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
133
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Administrativo. Ação de improbidade administrativa. Tipificação.
Indispensabilidade do elemento subjetivo (dolo, nas hipóteses dos artigos
9º e 11 da Lei n. 8.429/1992 e culpa, nas hipóteses do art. 10). Precedentes.
Demonstração do elemento subjetivo da conduta. Reexame de matéria fáticoprobatória. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ.
1. Está assentado na jurisprudência do STJ, inclusive da Corte Especial que, por
unanimidade, o entendimento segundo o qual, “excetuada a hipótese de atos de
improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento
se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional
alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade,
de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4º. Seria
incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional
que impusesse imunidade dessa natureza” (Rcl n. 2.790-SC, DJe de 4.3.2010 e Rcl n.
2.115, DJe de 16.12.2009).
2. Também está afirmado na jurisprudência do STJ, inclusive da sua Corte
Especial, o entendimento de que “a improbidade é ilegalidade tipificada e
qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo,
a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de
improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das
condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992, ou pelo menos eivada
de culpa grave, nas do artigo 10” (AIA n. 30, DJe de 28.9.2011).
3. Não é compatível com essa jurisprudência a tese segundo a qual, mesmo
nas hipóteses de improbidade capituladas no art. 10 da Lei n. 8.429/1992, é
indispensável a demonstração de dolo da conduta do agente, não bastando
a sua culpa. Tal entendimento contraria a letra expressa do referido preceito
normativo, que admite o ilícito culposo. Para negar aplicação a tal preceito,
cumpriria reconhecer e declarar previamente a sua inconstitucionalidade (Súmula
Vinculante n. 10-STF), vício de que não padece. Realmente, se a Constituição
faculta ao legislador tipificar condutas dolosas mesmo para ilícitos penais, não se
mostra inconstitucional a norma que qualifica com tipificação semelhante certos
atos de improbidade administrativa.
4. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram expressamente a conduta
culposa do agente, conclusão que não pode desfazer sem afronta à Súmula n.
7-STJ.
5. Recurso Especial a que se nega provimento.
(REsp n. 1.130.584-PB, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma,
julgado em 18.9.2012, DJe 21.9.2012)
Processual Civil. Administrativo. Magistrado. Lei n. 8.492/1992, art. 2º.
Conceito de agente político. Compatibilidade com a legislação de improbidade
administrativa.
1. Esta Corte Superior tem posicionamento pacífico no sentido de que não existe
norma vigente que desqualifique os agentes políticos – incluindo os magistrados
134
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
– da possibilidade de figurar como parte legítima no pólo passivo de ações de
improbidade administrativa. Precedentes: AgRg no REsp n. 1.088.258-GO, Rel. Min.
Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16.9.2009; EDcl no AgRg na AIA n. 26-SP, Rel.
Ministra Denise Arruda, Corte Especial, DJe 1º.7.2009.
2. Por mais que seja considerada a aplicabilidade da legislação especial
relacionada com o crime de responsabilidade, também subsumem-se os
magistrados ao conceito de improbidade administrativa, quando for o caso, na
mansa jurisprudência desta Corte Superior. Precedentes: Rcl n. 2.790-SC, Rel. Min.
Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 4.3.2010; REsp n. 1.169.762-RN, Rel. Min.
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 10.9.2010.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp n. 1.127.541-RN, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda
Turma, julgado em 4.11.2010, DJe 11.11.2010)
Processual. Agravo regimental. Violação do art. 535 do CPC. Alegações
genéricas. Súmula n. 284-STF. Submissão à lei de improbidade. Agentes políticos.
Possibilidade.
1. Alegações genéricas de violação do artigo 535 do CPC não são suficientes
para viabilizar o conhecimento do recurso especial. Inteligência da Súmula n.
284-STF.
2. Os agentes políticos submetem-se aos ditames da Lei n. 8.429/1992.
Precedentes.
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp n. 141.623-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma,
julgado em 6.12.2012, DJe 4.2.2013)
O acórdão de origem, portanto, não consoa com a jurisprudência desta
Corte, já que excluiu a possibilidade de a agravada, então detentora do cargo de
governador de estado, responder por atos de improbidade nos termos da Lei de
Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992).
Por derradeiro, relativamente ao pleito de reconhecimento da competência
jurisdicional da primeira instância jurisdicional para processar e julgar a
demanda de improbidade contra a agravada, julgo-o prejudicado, já que não
houve a sua recondução ao cargo de governador de estado.
Ante o exposto, recebo os embargos de declaração como agravo regimental
e dou-lhe provimento para reconhecer que a agravada deve se sujeitar aos
termos da Lei n. 8.429/1992.
É como penso. É como voto.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
135
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 1.243.356-SP (2011/0054357-1)
Relator: Ministro Castro Meira
Relator para o acórdão: Ministro Herman Benjamin
Recorrente: Orestes Quércia - Espólio
Representado por: Alaide Cristina Barbosa Ulson Quércia - Inventariante
Advogado: Flávio Cascaes de Barros Barreto e outro(s)
Recorrido: Fazenda do Estado de São Paulo
Procurador: Iso Chaitz Scherkerkewitz e outro(s)
Recorrido: Luiz Antônio Fleury Filho
Advogado: Manoel Giacomo Bifulco
Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo
EMENTA
Administrativo. Processual. Ação civil pública. Improbidade
administrativa. Cetesb. Contratação de aproximadamente 250
funcionários sem concurso público. Autorização do Governador.
Ilegalidade. Recurso especial. Ausência de prequestionamento. No
mérito, presença do nexo.
INTRODUÇÃO
1. Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública por
improbidade administrativa contra Orestes Quércia e outros, em
decorrência de terem autorizado a contratação de aproximadamente
500 pessoas na Cetesb, sem concurso público, ao longo de seis anos
(5.10.1988 a 21.12.1994).
2. A sentença de improcedência foi reformada no Tribunal de
origem. No que diz respeito ao presente Recurso, entendeu-se pela
responsabilidade do recorrente Orestes Quércia e outros corréus pela
contratação em razão das autorizações expressas por eles concedidas.
3. Acompanho o Relator na parte em que não conhece do
Especial em relação às alegações de legitimidade e exigibilidade do
concurso público. Divirjo, com a devida vênia, da parte final, em que se
afirma a falta de nexo de causalidade.
136
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ESPECIAL
4. Inicialmente, sobre a questão do nexo, o eminente Relator,
Ministro Castro Meira, não identificou qual dispositivo de lei teria
sido afrontado, a justificar a reforma do acórdão recorrido. Com a
leitura do trecho do acórdão que discorre sobre a responsabilidade
do recorrente, verifica-se não haver menção a qualquer lei violada.
Tampouco apontou-se contrariedade ao art. 535 do CPC. Incidem,
portanto, as Súmulas n. 282 e 356-STF.
5. O Recurso Especial também não suscita ofensa a artigo de lei
que verse sobre “nexo de causalidade”. No trecho recursal referente ao
tema, o recorrente defende a ilegitimidade passiva à luz da natureza
jurídica da Cetesb, discussão que não deve ser realizada em Recurso
Especial, diante de óbices sumulares bem levantados no voto do
eminente Ministro Castro Meira. Logo, o Especial propõe debate por
ótica (da qual não se pode conhecer por impedimentos sumulares)
diversa da encartada no voto do eminente Ministro Relator (que não
foi prequestionada).
PRESENÇA DO NEXO DE CAUSALIDADE
6. Caso vencido nessa parte, o acórdão recorrido atesta a presença
de nexo por pressupostos irretocáveis. Afirma-se ali que “o Governador
não é o administrador direto, todavia, (...) assume para si o poder de
autorizar as contratações”. Ao fazer dessa forma, deixa claro que o fato
do qual decorre o ato que justificou a condenação (a autorização das
contratações) era de competência do recorrente e que, sem ele, tais
contratações não teriam sido realizadas.
7. É desnecessário revolver legislação local ou fatos para conceber
que as contratações dependiam de tal autorização. O Acórdão é
expresso em afirmar isso, nos seguintes termos: “Toda investidura
de cargo ou emprego público após a promulgação da Constituição
Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso se o
Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar
contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do
Poder Executivo Estadual. As autorizações emanadas de Orestes Quércia
estão provadas documentalmente a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
137
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
dúvida quanto a sua conduta. (...) Se contratações ou investiduras
em emprego público ocorreram por autorização do co-réu, e elas
aconteceram sem o devido concurso público, ele deve responder por
isto. Provado está nos autos que a CETESB solicitou autorização para
várias contratações, não havendo nenhuma indicação de cargos em comissão
criados por lei, e que o co-réu expressando a excepcionalidade autorizou as
mesmas.” (fls. 197-219v).
8. Assumir tais fatos como verdadeiros é acatar premissa
estabelecida pela decisão objurgada; questioná-los, sim, exige
revolvimento de legislação local ou de fatos, inviável em Recurso
Especial.
9. O Governador não se exime da responsabilidade pela
contratação contrária aos ditames da Administração Pública pela
simples razão de que competia à Cetesb recusar o cumprimento
de imposição ilegal. Há notícia de que o requerimento para a
contratação partiu da própria empresa pública, motivo pelo qual cabia
ao Governador rechaçá-lo de plano, de forma a preservar o princípio
do concurso público. Mais ainda, a ilegalidade está tanto na requisição
quanto na anuência, dado que ambos os fatos são determinantes para
a produção do resultado ilegal. Posição contrária poderia gerar um
insustentável jogo de empurra, incompatível com a realidade dos autos.
10. A chamada “mera autorização” do chefe do executivo já
conduziu a condenações análogas, uma delas em demanda praticamente
idêntica à dos presentes autos (Cfr. REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra
Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 1º.7.2013; REsp n. 1.151.884SC, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 25.5.2012;
REsp n. 490.259-RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda
Turma, DJe 4.2.2011).
CONCLUSÃO
11. Diante do exposto, com vênias ao eminente Ministro Castro
Meira, que vota pelo provimento do Recurso Especial por identificar
falta de nexo de causalidade, voto por não conhecer do Recurso e, caso
vencido nessa parte, por não provê-lo.
138
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:
“Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Herman
Benjamin, divergindo do Sr. Ministro-Relator, a Turma, por maioria, não
conheceu do recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Herman Benjamin,
que lavrará acórdão. Vencido o Sr. Ministro Castro Meira.” Votaram com o Sr.
Ministro Herman Benjamin os Srs. Ministros Humberto Martins e Mauro
Campbell Marques.
Não participou do julgamento a Sra. Ministra Eliana Calmon, nos termos
do Art. 162, § 2º, do RISTJ.
Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin, Relator
DJe 4.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Castro Meira: O recurso especial foi interposto contra
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim sintetizado:
Agravo retido. Apreciação das preliminares de incompetência da Vara
da Fazenda Pública, competência de uma das Varas Cíveis, inépcia da inicial,
litisconsórcio necessário, inexistência de interesses difusos ou coletivos,
ilegitimidade do Ministério Público, inadequação da via processual eleita e
carência de ação. Preliminares afastadas. Agravo desprovido.
Ação civil pública. Ex-governadores do Estado de São Paulo que autorizaram
a contratação de pessoal para trabalharem na Cetesb, sem concurso público.
Sentença de improcedência. Decisão reformada. Responsabilidade de exgovernadores pela contratação em razão das autorizações por eles concedidas.
Ocorrência de dano moral e material à Administração Pública. Necessidade de
ressarcimento. Recursos oficial e voluntário da Fazenda providos (e-STJ fl. 3.773).
Os embargos de declaração opostos foram julgados nos termos a seguir
sumariado:
Embargos declaratórios do Ministério Público
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
139
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Alegação de omissão em razão do acórdão não ter analisado o pedido de
restituição dos encargos sociais pagos ao pessoal contratado, bem como por não
ter aplicado as demais sanções previstas no art. 37, § 4º, da Constituição Federal.
Os valores recolhidos a título de encargos sociais não são devidos por nenhum
dos réus. Os encargos sociais são obrigações que independem da legalidade
da contratação, e lato senso integram o salário do servidor. Inaplicabilidade das
penas cumulativamente.
Embargos parcialmente acolhidos para declarar que fica afastada a
condenação para pagamento de encargos sociais.
Embargos declaratórios do réu Antônio Fleury Filho
Alegação de omissão, contradição e obscuridade. Inocorrência. Acórdão
que de forma concisa rebateu toas as questões alegadas. Prequestionamento.
Impossibilidade. Inocorrência dos requisitos legais do artigo 535, do Código de
Processo Civil.
Embargos rejeitados.
Embargos declaratórios do réu Orestes Quércia
Prequestionamento. Impossibilidade. Inocorrência dos requisitos legais do
artigo 535, do Código de Processo Civil. Embargos rejeitados (e-STJ fl. 3.881).
Luiz Antônio Fleury Filho e Orestes Quércia interpuseram embargos
infringentes, os quais foram providos, consoante a seguinte ementa:
Ação civil pública. Dano moral coletivo. Inocorrência. Ato imputado aos réus
não causou agressões aos interesses transindividuais, ao patrimônio valorativo da
comunidade, de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico.
Recursos providos (e-STJ fl. 3.954).
No especial, o espólio de Orestes Quércia alega violação do arts. 267, VI,
do Código de Processo Civil, aduzindo:
a) ilegitimidade ad causam do Ministério Público para propor a Ação Civil
Pública com o fim de tutelar interesse individual da Companhia de Tecnologia
de Saneamento Ambiental, ao argumento de que essa companhia não conta
com servidores públicos em seus quadros, mas apenas empregados celetistas,
contratados mediante sistema de seleção próprio, nos termos da Lei Estadual n.
118/73 (e-STJ fl. 4.262 e 4.264);
b) sua ilegitimidade passiva, por inexistir nexo causal entre a sua conduta
de autorizar a contratação de servidores sem prévio concurso público e o
alegado prejuízo aos cofres públicos, já que não foi o responsável direto pelas
contratações, mas sim a própria Cetesb. (e-STJ fls. 4.266-4.267).
140
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Assevera, outrossim, maltrato aos artigos 1º e 3º, da Lei n. 7.347/1985,
sustentando:
a) inexistir “nexo causal entre as ações do Recorrente e os atos impugnados
pelo Parquet”, porque “as autorizações foram dadas em razão de justificada
solicitação e mediante realização do competente processo seletivo” (e-STJ fl.
4.268 e 4.269);
b) não ser exigível o concurso público, porque “no caso vertente, foram
contratados funcionários para uma sociedade anônima, pelo regime da CLT,
nos termos expressos da Lei n. 118/73, que estabelece serem os empregados da
Cetesb celetistas, contratados mediante seleção, e sem direito aos benefícios do
servidor” (e-STJ fl. 4.270);
c) que a ausência de dano impede a condenação relativa às rescisões
trabalhistas decorrentes das contratações indevidamente autorizadas (e-STJ
fl. 4.268). Afirma que se o Tribunal a quo reconheceu ser devido o pagamento
dos salários, a despeito de as contratações terem sido irregulares, “da mesma
forma, os funcionários só fizeram jus a verbas rescisórias porque trabalharam e,
por diversos motivos, tiveram seus contratos de trabalho rescindidos” (e-STJ fl.
4.273).
O Estado de São Paulo e o Parquet Estadual ofertaram contrarrazões
alegando, em preliminar, o não conhecimento do recurso. No mérito, pleitearam
a manutenção do aresto impugnado (e-STJ fls. 4.345-4.353 e 4.412-4.422).
Inadmitido o apelo, subiram os autos por força de provimento ao AG n.
1.350.015-SP (e-STJ fl. 4.474).
Em parecer firmado pela ilustre Subprocuradora-Geral da República Dra.
Maria Caetana Cintra Santos, o Ministério Público Federal opinou pelo não
provimento do recurso especial (e-STJ fls. 4.491-4.501).
É o relatório.
VOTO
Ementa: Administrativo. Ação civil pública. Sociedade de
economia mista. Contratação sem concurso público. Ex-Governador.
Mera autorização. Nexo de causalidade. Inexistência.
1. O recurso especial foi interposto nos autos de ação civil
pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
141
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ato de improbidade administrativa supostamente praticado por exGovernador do Estado, por ter autorizado a contratação de pessoal
sem concurso público para os quadros da Companhia de Tecnologia
de Saneamento Ambiental - Cetesb.
2. Não é possível examinar a tese de ilegitimidade ad causam do
Parquet Estadual para a propositura da presente demanda tampouco
sobre a prescindibilidade de realização de concurso público no caso
dos autos, visto que ambas são suscitadas com base na Lei Estadual
Paulista n. 118/73, impondo-se a aplicação da Súmula n. 280-STF.
3. Para constatar a veracidade das assertivas do recorrente de
que “as autorizações foram dadas em razão de justificada solicitação
e mediante realização do competente processo seletivo”, bem como
que existiram “diversos motivos” para a rescisão dos contratos e não
apenas as contratações irregulares, seria imperioso que se realizasse
pormenorizado reexame dos documentos coligidos, o que se mostra
vedado nesta instância especial, em virtude do impedimento da
Súmula n. 7-STJ.
4. A partir da promulgação da Constituição da República de
1988, passou a ser obrigatória a realização de concurso público para o
ingresso nos quadros da Administração Pública direta e indireta, nos
termos do artigo 37, inciso II. Precedentes do STF e STJ.
5. Do aresto recorrido, verifica-se que o falecido governador
limitou-se a autorizar a contratação de pessoal pela sociedade de
economia mista, não se podendo inferir que tenha determinado a
admissão ao arrepio das normas constitucionais. Ademais, ainda
que houvesse ordem contrária ao ordenamento jurídico, caberia aos
dirigentes da entidade, máxime em razão da autonomia gerencial,
orçamentária e financeira prevista no § 8º do art. 37 da CF/1988,
zelar pelo respeito às normas legais, princípios e regras constitucionais
quando da contratação do pessoal, não estando obrigados a obedecer
a ordens supostamente ilegais.
6. Revela-se ausente o nexo de causalidade entre as contratações
ilegais e os prejuízos causados ao erário público relativos às verbas
trabalhistas de dispensa imputadas ao gestor.
7. Recurso especial conhecido em parte e provido.
142
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
O Sr. Ministro Castro Meira (Relator): O recurso especial foi interposto
nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de
São Paulo por ato de improbidade administrativa supostamente praticado por
ex-Governador do Estado, Orestes Quércia, por ter autorizado a contratação de
pessoal, sem concurso público, para os quadros da Companhia de Tecnologia de
Saneamento Ambiental - Cetesb, sociedade de economia mista.
A ação foi julgada improcedente em primeiro grau (e-STJ fls. 3.671-3.680)
e, em grau de apelação, por maioria, a sentença foi reformada para condenar o
ora recorrente a restituir “a quantia gasta com as verbas rescisórias das pessoas
contratadas mediante sua autorização, conforme as autorizações encartadas
nos autos, e indenizar por dano moral, por ferir a moralidade administrativa no
valor correspondente a 20 vezes o valor da última remuneração recebida como
Governador de Estado, devidamente atualizada pela Tabela do Tribunal de
Justiça, com aplicação do artigo 406 do Código Civil, a partir da citação, com
fundamento no artigo 3º, da Lei n. 7.347/1985, que regula a ação civil pública”
(e-STJ fl. 3.792).
Passo seguinte, o Tribunal de origem, ao acolher os embargos infringentes,
excluiu a condenação por danos morais (e-STJ fls. 3.952-3.957).
No especial, o espólio de Orestes Quércia alega violação do arts. 267, VI,
do Código de Processo Civil e artigos 1º e 3º, da Lei n. 7.347/1985.
Passo a apreciar os requisitos de admissibilidade do recurso relativamente a
cada uma das irresignações.
A análise da alegação de ilegitimidade ad causam do Ministério Público
para propor a Ação Civil Pública, ao argumento de que o Parquet vislumbrava
defender interesse individual da Cetesb, esbarra no impedimento da Súmula
n. 280-STF, porque a tese do recorrente demanda o exame da Lei Estadual n.
118/73. No ponto, aduz que, nos termos do diploma estadual, essa companhia
não conta com servidores públicos em seus quadros, mas apenas empregados
celetistas contratados mediante sistema de seleção próprio, o que caracterizaria
mero interesse individual da referida empresa pública.
Além disso, a Corte de origem assentou a legitimidade do Parquet
Estadual com base no exame de documentos oficiais, Lei Estadual Paulista e
em fundamento constitucional, consoante se extrai do seguinte excerto do voto
condutor do aresto recorrido:
Depois alega-se carência de ação sob a alegação de que a Cetesb é sociedade
anônima não sendo sociedade de economia mista, que em seus quadros não
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
143
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
há servidor público, portanto, não há interesse que justifique a legitimidade do
Ministério Público para propor a ação.
Da leitura do documento de fls. 83 (cópia da publicação do Diário Oficial do
Estado – Poder Executivo), faz perceber a composição acionária da Cetesb, com
participação de 100% da Fazenda do Estado de São Paulo, tendo base legal a
companhia como sociedade anônima de economia mista e de capital fechado, que
foi constituída nos termos da Lei n. 118, de 29.6.1973.
O documento oficial afasta a alegação quanto a forma de constituição da
companhia e por consequência as demais alegações, porque são decorrentes.
No tocante a destinação de eventual condenação os valores serão para o erário
público, independente do pedido do Ministério Público, que é uma questão que
deve ser apreciada ao final da ação, se julgada procedente.
O interesse de agir está presente, pois ao ver do representante do Ministério
Público os reús causaram prejuízo ao patrimônio público, portanto devem reparar
o dano que causaram.
Nos termos do art. 129, III, da Constituição Federal, entre outras, é função do
Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
O interesse e a legitimidade estão presentes, e não há que se falar que se tenta
propor ação popular, porque como está bem expresso na Constituição a ação civil
pública também se destina a proteger o patrimônio público, que deve ser entendido
não só o patrimônio econômico, mas na sua globalidade, isto é, o patrimônio como
a soma de bens materiais, abstratos, econômicos e não só os econômicos que
pertencem ao poder público, ou seja, a coletividade.
É certo que as duas ações destinam-se ao mesmo campo de ação, e por isso
cabível a lembrança de J.M.Othon Sidou ‘de que pontos de similitude aproximam,
como dissemos, a ação civil da ação popular, e a própria lei assim dá a entender,
no mencionado art. 1º, ao antepor o ‘sem prejuízo’ da última, o que significa que a
interposição de uma não impede a impetração da outra’.
Assim, não prevalece a alegação. (e-STJ fls. 3.779-3.780 - sem destaques no
original).
Como se vê, para infirmar as premissas assentadas no aresto recorrido, seria
imperioso analisar a controvérsia à luz de dispositivos constitucionais e locais e
reexaminar as provas dos autos, providências vedadas sob pena de usurpação de
competência do Pretório Excelso e em razão dos óbices contidos nas Súmulas n.
7-STJ e 280-STF.
Por óbvio, também em virtude do impedimento da Súmula n. 280-STF,
não logra êxito a alegação de que “não era exigível o concurso público in casu”, ao
144
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
argumento de que “no caso vertente, foram contratados funcionários para uma
sociedade anônima, pelo regime da CLT, nos termos expressos da Lei n. 118/73,
que estabelece serem os empregados da Cetesb celetistas, contratados mediante
seleção, e sem direito aos benefícios do servidor” (e-STJ fl. 4.270).
Outrossim, em virtude da impossibilidade de revolver o contexto fáticoprobatório, não logra êxito a assertiva de ser indevida a condenação do recorrente
ao ressarcimento das verbas rescisórias trabalhistas pagas aos funcionários da
Cetesb, ao fundamento de que existiram “diversos motivos” que justificaram a
rescisão dos contratos e não só as contratações irregulares por ele autorizadas,
consoante consta do acórdão recorrido.
Com efeito, o Tribunal a quo, ao condenar o recorrente ao ressarcimento
das verbas rescisórias, levou em consideração somente as contratações irregulares,
segundo se extrai do seguinte fragmento do acórdão:
Não consta dos autos que os contratados tenham recebido seus salário sem
trabalhar, ao contrário, a conclusão é de que trabalharam, assim, a Cetesb não
sofreu danos financeiros, pois o que pagou foi em contraprestação ao serviço
executado.
Quem recebeu não deve restituir porque trabalhou e nem os réus, porque não
houve o dano financeiro ao erário.
Agora, quanto às rescisões contratuais a situação é outra, pois se as
contratações inconstitucionais não tivessem ocorrido, os gastos com as verbas
trabalhistas de dispensa também não existiriam.
Assim, se ainda há alguém trabalhando a situação é inconstitucional precisa
ser resolvida pela Administração Pública e quanto aos demitidos o ônus financeiro
deve ser arcado pelos réus.
Portanto, para os dois réus há a obrigação de ressarcirem a Cetesb os danos
causados com as rescisões trabalhistas das contratações que autorizaram (e-STJ fls.
3.789-3.790).
Revela-se notório, portanto, que para combater essa premissa seria preciso
revisar as provas e fatos dos autos, o que se mostra vedado nos termos da
Súmula n. 7-STJ.
Na mesma esteira, não é possível conhecer da alegação de maltrato
aos artigos 1º e 3º da Lei da Ação Civil Pública, ao fundamento de que
“as autorizações foram dadas em razão de justif icada solicitação e mediante
realização do competente processo seletivo” (e-STJ fl. 4.268 e 4.269), porque, para
verificar a veracidade da assertiva do recorrente, seria imperioso que se realizasse
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
145
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
pormenorizado exame dos documentos coligidos, o que se mostra vedado nesta
instância especial.
Por fim, em vista do prequestionamento da tese acerca da suposta
ilegitimidade passiva, bem como por se tratar de mera revaloração jurídica das
condutas especificadas no aresto recorrido, conheço do recurso no ponto.
O recorrente afirma inexistir nexo causal entre a sua conduta de autorizar a
contratação de servidores sem prévio concurso público e o alegado prejuízo aos
cofres públicos, já que não foi o responsável direto pelas contratações, mas sim a
própria Cetesb (e-STJ fls. 4.266-4.267).
O Tribunal a quo, com riqueza de detalhes, descreveu assim a conduta do
recorrente:
Passo a apreciar a responsabilidade pretendida quanto ao co-réu Orestes
Quércia.
Em ofício expedido pela Cetesb ao Ministério Público consta o
encaminhamento das listas das pessoas contratadas no período de outubro de
1988 a dezembro de 1990 e de janeiro de 1991 a dezembro de 1994, consignando
que todas as contratações foram efetivadas mediante autorização expressa dos
senhores Governadores do Estado de São Paulo, dos referidos períodos (fls. 137-138).
As listas estão encartadas nos autos, bem como as cópias das autorizações
expressas assinadas pelos réus, no exercício da função pública de Poder, como
Governador de Estado.
Tratando-se a Cetesb de sociedade de economia mista atrelada ao Governo
do Estado é evidente que o Governador não é o administrador direto, todavia,
quando assume para si o poder de autorizar as contratações deve responder pelo
ato praticado.
Toda investidura de cargo ou emprego público após a promulgação
da Constituição Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso
se o Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar
contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do Poder
Executivo Estadual.
As autorizações emanadas de Orestes Quércia estão provadas documentalmente
a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo dúvida quanto a sua conduta (e-STJ
fls.3.785-3.787);
O mesmo Ofício que indica as listas e expressa a autorização de Orestes Quércia
expressa a autorização de Luiz Antônio Fleury Filho, e o conteúdo deste ofício está
corroborado pelas autorizações encartadas nos autos, já indicadas.
Desse modo tanto a responsabilização de Orestes Quércia como de Luiz
Antônio Fleury Filho são inevitáveis, devendo os mesmos responderem pelas
consequências de todas as contratações da Cetesb que foram autorizadas
146
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
expressamente por eles, nos respectivos mandatos, e que estejam
documentalmente provadas nos autos, isto é, que as cópias das autorizações
estejam nos autos (e-STJ fl. 3.789).
Da mera leitura, verifica-se, de fato, que as contratações sem concurso
público pela citada empresa pública só se aperfeiçoaram após as expressas
autorizações do governador. Todavia, merece reparos a solução jurídica
engendrada pelo acórdão recorrido.
Como cediço, a partir da promulgação da Constituição da República de
1988, passou a ser obrigatória a realização de concurso público para o ingresso
tanto nos quadros da Administração Pública direta como indireta, nos termos
do artigo 37, inciso II, ora reproduzido:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios
de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,
ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998)
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia
em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza
e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas
as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração.
Nessa senda, colaciono os seguintes precedentes do Pretório Excelso sobre
o tema:
Constitucional. Administrativo. Agravo regimental em recurso extraordinário.
Concurso público. Experiência profissional. Necessidade de lei. Precedentes.
1. É irrelevante para o desate da questão o objeto da investidura, quando em
debate a violação direta do art. 37, I, da Constituição Federal.
2. A exigência de experiência profissional prevista apenas em edital importa
em ofensa constitucional. Precedentes.
3. A investidura em cargo ou emprego das empresas públicas e sociedades de
economia mista, regidas pela CLT, nos termos do art. 173, § 1º, da Constituição
Federal, submete-se à regra constitucional do art. 37, II.
4. Agravo regimental improvido (RE n. 558.833 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie,
Segunda Turma, julgado em 8.9.2009, DJe de 24.9.2009);
Agravo regimental no agravo de instrumento. Administração pública indireta.
Sociedade de economia mista. Concurso público. Inobservância. Nulidade do
contrato de trabalho. Efeitos. Saldo de salário.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
147
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Após a Constituição do Brasil de 1988, é nula a contratação para a investidura
em cargo ou emprego público sem prévia aprovação em concurso público. Tal
contratação não gera efeitos trabalhistas, salvo o pagamento do saldo de salários
dos dias efetivamente trabalhados, sob pena de enriquecimento sem causa do
Poder Público. Precedentes.
2. A regra constitucional que submete as empresas públicas e sociedades de
economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas - art. 173, § 1º, II da
CB/1988 não elide a aplicação, a esses entes, do preceituado no art. 37, II, da CB/1988,
que se refere à investidura em cargo ou emprego público.
3. Agravo regimental a que se nega provimento (AI n. 680.939 AgR, Rel. Min.
Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 27.11.2007, DJe de 31.1.2008).
Na mesma seara, são os julgados desta Corte:
Direito Administrativo. CODEVASF. Empresa estatal prestadora de serviço
público. Atuação essencialmente estatal. Influxo maior de normas de direito
público. Prescrição quinquenal. Decreto n. 20.910/1932. Aplicabilidade da Súmula
n. 39-STJ restrita a empresas que explorem a atividade econômica.
(...)
3. As empresas estatais podem atuar basicamente na exploração da atividade
econômica ou na prestação de serviços públicos, e coordenação de obras públicas.
4. Tais empresas que exploram a atividade econômica - ainda que se submetam
aos princípios da administração pública e recebam a incidência de algumas normas
de direito público, como a obrigatoriedade de realizar concurso público ou
de submeter a sua atividade-meio ao procedimento licitatório - não podem
ser agraciadas com nenhum beneplácito que não seja, igualmente, estendido
às demais empresas privadas, nos termos do art. 173, § 2º da CF, sob pena de
inviabilizar a livre concorrência.
(...)
Recurso especial conhecido em parte e improvido (REsp n. 929.758-DF,
Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 7.12.2010, DJe
14.12.2010);
Direito Administrativo e Processual Civil. Mandado de segurança. Lei n.
8.878/1994. Anistia. Retorno de empregado originário de extinta empresa pública
ao serviço. Ilegitimidade passiva do Ministro de Estado das Cidades. (...)
1. Mandado de segurança no qual os impetrantes, anistiados pela Lei n.
8.874/1994, questionam ato que determinara o retorno ao serviço para compor
quadro especial em extinção do Ministério das Cidades, sob o regime celetista.
2. “Compete à e. Primeira Seção o julgamento de ações que discutem a
concessão de anistia a empregados públicos de empresas públicas e de sociedades
de economia mista, que a despeito de se submeterem a concurso público, não
148
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
são equiparáveis aos servidores públicos da Administração direta e indireta
fundacional ou autárquica, sujeitos ao Regime Jurídico Único” (CC n. 68.777-DF,
Corte Especial, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 11.12.2006, suscitado no
MS n. 10.781-DF).
7. Ordem denegada (MS n. 14.828-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,
Primeira Seção, julgado em 8.9.2010, DJe 14.9.2010).
Dessa maneira, revela-se inconteste a necessidade de realização de concurso
público para a admissão de pessoal nos quadros da administração pública
indireta após a Constituição da República de 1988.
No entanto, não há como imputar a prática de ato ilícito ao então Chefe
do Poder Executivo pelo simples fato de haver autorizado as contratações pela
sociedade de economia mista. Isso porque, de acordo com o acórdão recorrido,
o governador limitou-se a autorizar a contratação, não se podendo inferir que
tenha determinado a admissão ao arrepio das normas constitucionais.
Por outro lado, ainda que houvesse ordem contrária ao ordenamento
jurídico, caberia aos dirigentes da entidade, máxime em razão da autonomia
gerencial, orçamentária e financeira prevista no § 8º do art. 37 da CF/1988,
zelar pelo respeito às normas legais, princípios e regras constitucionais
quando da contratação do pessoal, não estando obrigados a obedecer a ordens
supostamente ilegais.
Assim, forçoso concluir pela ausência de nexo de causalidade entre as
contratações ilegais e os prejuízos causados ao erário público relativos às verbas
trabalhistas de dispensa imputadas ao gestor.
Ante o exposto, conheço em parte do recurso e dou-lhe provimento.
É como voto.
VOTO-VENCEDOR
O Sr. Ministro Herman Benjamin: Os autos foram recebidos neste
Gabinete em 7.12.2012.
1. Relatório
Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública por improbidade
administrativa contra Orestes Quércia e outros, em decorrência de terem
autorizado a contratação de aproximadamente 500 pessoas para a Cetesb, sem
concurso público, ao longo de seis anos (5.10.1988 a 21.12.1994).
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
149
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A sentença reconheceu que “os cargos preenchidos através de processo
seletivo não público não eram de confiança, assim entendidos como aqueles que
a lei de regência os classifica como tais e nem foram preenchidos para atender
a uma temporária e excepcional necessidade. Os contratos internacionais de
cooperação com a Alemanha e Japão informados pela Cetesb não foram os
responsáveis pelas contratações ora discutidas. Tampouco ficou demonstrado
que outros acordos ou convênios ensejaram excepcional e premente necessidade
que dispensasse a exigência da realização do concurso público” (fl. 3.675-STJ);
contudo, julgou o feito improcedente.
No Tribunal de origem, a sentença foi reformada. Entendeu-se pela
responsabilidade do recorrente Orestes Quércia e outros pela contratação em
razão das autorizações por eles concedidas, pela ocorrência de dano moral e
material à Administração Pública, com o dever de ressarcir a Cetesb pelas
verbas rescisórias dos contratados e pagar indenização por danos morais no
valor de 20 vezes a última remuneração como Governador.
O acórdão desafiou Embargos de Declaração, parcialmente acolhidos para
afastar a condenação à restituição de encargos sociais.
Sobrevieram Embargos Infringentes, acolhidos para afastar a indenização
por dano moral coletivo.
O Recurso Especial foi interposto com fundamento no art. 105, III, a, da
Constituição da República. O recorrente alega a) ilegitimidade do Ministério
Público para propor a Ação Civil Pública; b) ilegitimidade passiva, em razão de
falta de nexo entre a autorização de contratação de servidores e o prejuízo aos
cofres públicos; c) inexistência de “nexo causal entre as ações do Recorrente e os
atos impugnados pelo Parquet”, dado que “as autorizações foram dadas em razão
de justificada solicitação e mediante realização do competente processo seletivo”;
d) inexigibilidade do concurso público para contratação de funcionários de
sociedade anônima, pelo regime da CLT; e) que a ausência de dano impede a
condenação pelas rescisões trabalhistas.
O Recurso teve seu trânsito determinado por Agravo AG n. 1.350.015-SP.
O Ministério Público Federal opina pelo desprovimento do Recurso.
O Eminente Relator vota no sentido de não conhecer da seguinte
motivação: a) incabível verificar a legitimidade do Parquet, porquanto
requer averiguação de lei estadual, de documentos oficiais e de fundamentos
constitucionais (Súmulas n. 7-STJ e 280-STF); b) a exigibilidade do concurso
público também esbarra na Súmula n. 280-STF, dada a necessidade de análise
da Lei n. 118/1973; c) impossível revisar a condenação ao ressarcimento das
150
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
verbas rescisórias por contratações irregulares por força da Súmula n. 7-STJ; d)
o exame da fundamentação das autorizações demanda reexame fático. Contudo,
entendeu pela ilegitimidade passiva ao argumento de que o simples fato de haver
autorizado as contratações pela sociedade de economia mista não caracterizaria
ato ilícito e que de tal ato não se pode inferir a admissão ao arrepio das normas
constitucionais. Aponta ainda que caberia aos dirigentes da Cetesb zelar pelo
respeito à ordem legal e recusar o cumprimento de ordens ilegais. Ao final,
atesta a falta de nexo entre as contratações ilegais e os prejuízos causados.
Ciente da complexidade do feito, pedi vista para melhor exame dos autos.
2. Não conhecimento integral do Recurso Especial
Acompanho o eminente Relator na parte em que não conhece do Especial
no que tange à legitimidade do Parquet e reforça a obrigatoriedade do concurso
público in casu, pelos fundamentos expostos em seu voto. Contudo, com a devida
vênia, divirjo da parte final em que se afirma a falta de nexo de causalidade.
O eminente Relator não identificou qual dispositivo de lei teria sido
violado, a justificar a reforma do acórdão recorrido. Com a leitura do trecho
do acórdão recorrido que discorre sobre a responsabilidade do recorrente (fls.
3.786-3.789-STJ), verifica-se não haver menção a lei violada. Tampouco se
apontou ofensa ao art. 535 do CPC.
Incidem, portanto, as Súmulas n. 282 e 356-STF.
O Recurso Especial também não suscita ofensa a artigo de lei que verse
sobre “nexo de causalidade”. No trecho recursal referente ao tema, o recorrente
defende a ilegitimidade passiva à luz da natureza jurídica da Cetesb, debate que
não deve ser realizado em Recurso Especial, diante de óbices sumulares bem
levantados no voto do eminente Relator.
Logo, o Especial propõe discussão por ótica (da qual não se pode conhecer
por impedimentos sumulares) diversa da encartada no voto do eminente
Ministro Relator (que não foi prequestionada).
Por essa razão, voto pelo não conhecimento integral do Recurso.
3. Presença de nexo de causalidade
Caso vencido nessa parte, prossigo com o exame do nexo de causalidade.
O acórdão recorrido recebeu a seguinte fundamentação:
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
151
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em Oficio expedido pela Cetesb ao Ministério Público consta o
encaminhamento das listas das pessoas contratadas no período de outubro de
1988 a dezembro de 1990 e de janeiro de 1991 a dezembro de 1994, consignando
que todas as contratações foram efetivadas mediante autorização expressa dos
senhores Governadores do Estado de São Paulo, dos referidos períodos (fls. 137138).
As listas estão encartadas nos autos, bem como as cópias das autorizações
expressas assinadas pelos réus, no exercício da função pública de Poder, como
Governador de Estado.
Tratando-se a Ceteb de sociedade de economia mista atrelada ao Governo
do Estado é evidente que o Governador não é o administrador direto, todavia,
quando assume para si o poder de autorizar as contratações deve responder pelo
ato praticado.
Toda investidura de cargo ou emprego público após a promulgação
da Constituição Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso
se o Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar
contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do Poder
Executivo Estadual.
As autorizações emanadas de Orestes Quércia estão provadas
documentalmente a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo dúvida quanto a sua
conduta.
(...)
Como expresso o Governador do Estado não administra a Cetesb, por isso não
praticou o ato de contratar, mas como autoridade superior do Poder Executivo
no Estado de São Paulo autorizou as contratações contrárias ao mandamento
constitucional, desse modo praticou ato de responsabilidade.
Se as autorizações não tivessem sido dadas as contratações não teriam
ocorrido, e somente o Governador estava investido no poder de autorizar, isto por
Decreto por ele assinado.
Enfim, se contratações ou investiduras em emprego público ocorreram por
autorização do co-réu, e elas aconteceram sem o devido concurso público, ele
deve responder por isto.
Provado está nos autos que a Cetesb solicitou autorização para várias
contratações, não havendo nenhuma indicação de cargos em comissão criados
por lei, e que o co-réu expressando a excepcionalidade autorizou as mesmas (fls.
197-219v).
O mesmo Oficio que indica as listas e expressa a autorização de Orestes
Quércia expressa a autorização de Luiz Antonio Fleury Filho, e o conteúdo deste
oficio está corroborado pelas autorizações encartadas nos autos, já indicadas.
Desse modo tanto a responsabilização de Orestes Quercia como de Luiz
Antonio Fleury Filho são inevitáveis, devendo os mesmos responderem pelas
152
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
conseqüências de todas as contratações da Cetesb que foram autorizadas
expressamente por eles, nos respectivos mandatos, e que estejam
documentalmente provadas nos autos, isto é, que as cópias das autorizações
estejam nos autos.
Insta afirmar que a ofensa aos princípios constitucionais faz gerar
responsabilidade a quem os ofendem, independentemente do elemento
subjetivo. Portanto, a conduta dos réus dá respaldo a suas responsabilizações. (fls.
3.786-3.789-STJ).
Meu posicionamento converge com o do eminente Relator em relação
à necessidade de realização de prévio concurso para investidura em empregos
públicos da Cetesb. Conduto, divirjo na parte em que se afirma que não teria
havido ilegalidade na contratação.
O acórdão atesta que “o Governador não é o administrador direto, todavia,
(...) assume para si o poder de autorizar as contratações”. Ao fazer dessa forma,
deixa claro que o fato do qual decorre o ato que justificou a condenação (a
autorização das contratações) era de competência do recorrente e que, sem ele,
tais contratações não teriam sido realizadas.
Desnecessário revolver legislação local ou fatos para assumir que as
contratações dependiam de tal autorização. O Acórdão é expresso em afirmar
isso. Assumir tal fato como verdadeiro é acatar premissa estabelecida pela
decisão objurgada; questioná-lo, sim, exigiria o revolvimento de legislação local
ou fatos, inviável em Recurso Especial.
O recorrente, ao autorizar a contratação, afronta o art. 37 caput e inciso
II, que afirma: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e,
também, ao seguinte: (...) “II - a investidura em cargo ou emprego público depende
de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo
com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em
lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre
nomeação e exoneração”.
Por fim, o Governador não se exime da responsabilidade pela contratação
contrária aos ditames da administração pública pela simples razão de que
competia à Cetesb recusar o cumprimento de imposição ilegal.
Há notícia de que o requerimento para a contratação partiu da própria
empresa pública, motivo pelo qual cabia ao Governador rechaçá-lo de plano,
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
153
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de forma a preservar o princípio do concurso público. Mais ainda, a ilegalidade
está tanto na requisição quanto na anuência, dado que ambos os fatos são
determinantes para a produção do resultado ilegal. Posição contrária poderia
gerar um insustentável jogo de empurra, incompatível com a realidade dos autos.
Acresço que, em outras hipóteses, a mera autorização já conduziu a
condenações análogas:
Administrativo. Ato de improbidade. Aquisição de caminhão pela prefeitura.
Pagamento efetuado. Veículo alienado fiduciariamente e penhorado. Registro em
nome do Município. Impossibilidade. Art. 10 da Lei n. 8.429/1992. Ocorrência de
dano ao erário. Culpa da ex-Prefeita. Negligência. Recurso não provido.
1. A ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público do Estado de
Santa Catarina em face da ex-Prefeita do Município de Bocaina do Sul, por
supostos atos de improbidade administrativa, decorrentes de irregularidades em
procedimentos licitatórios.
(...)
4. O acórdão recorrido considerou evidenciada a atuação negligente da
gestora pública, ao autorizar o pagamento de um bem sem avaliar a existência de
gravames que impossibilitaram a transferência da propriedade. Nesse contexto,
tem-se que a prefeita municipal descumpriu com o dever de zelo com a coisa
pública, pois efetuou a despesa sem tomar a mínima cautela de aferir que o
automóvel estava alienado fiduciariamente, bem como penhorado à instituição
financeira. Por outro lado, o dano ao erário está caracterizado pela impossibilidade
de se transferir o bem para o patrimônio municipal. In casu, estão presentes os
elementos necessários à configuração do ato de improbidade.
5. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.151.884-SC, Rel. Ministro Castro
Meira, Segunda Turma, DJe 25.5.2012)
Recurso especial. Ação civil pública. Improbidade. Violação de deveres de
moralidade jurídica e lealdade às instituições. Consultoria jurídica e representação
judicial simultânea do Município e dos servidores. Conflito de interesses público e
privado. Dano in re ipsa ao patrimônio público incorpóreo.
1. Considerando que o Município contratou advogado exclusivamente
para defender interesses da Administração, caracteriza ato de improbidade
administrativa a autorização do Prefeito aos seus subalternos, permitindo-lhes a
utilização dos serviços jurídicos do causídico para duvidosa finalidade pública defesa em relação à acusação penal e com denúncia recebida por prática de crime
de falsificação de documento público, dispensa irregular de licitação, contratação
e designação irregular de servidores, desvio e emprego ilegal de verbas públicas
e formação de quadrilha -, evidenciando forte indício de conflito de interesses
público e privado.
154
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
(...)
5. Recurso Especial provido tão-somente para anular o acórdão de origem,
determinando-se nova apreciação do recurso de apelação do Ministério Público
local, observadas as diretrizes de hermenêutica do art. 11, caput, da Lei n.
8.429/1992. (REsp n. 490.259-RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,
DJe 4.2.2011)
Em situação análoga à presente, confira-se ainda recente julgamento proferido
no REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, (DJ em
1º.7.2013) que tem a seguinte ementa:
Administrativo e Processual Civil. Ação civil pública. Improbidade
administrativa. Violação do art. 535 do CPC não caracterizada. Legitimidade do
Ministério Público e propriedade da via eleita. Foro por prerrogativa de função.
Inexistência. Aplicação da Lei n. 8.429/1992 aos agentes políticos. Contratação
sem concurso público. Extinta empresa estadual. Art. 11 da Lei n. 8.429/1992.
Configuração do dolo genérico. Prescindibilidade de dano ao erário. Cominação
das sanções. Art. 12 da LIA. Redução da multa civil.
1. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide,
fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide.
2. O Ministério Público possui legitimidade para ajuizar ação civil pública
objetivando a defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa.
3. Descabe falar em foro por prerrogativa de função, em ação de improbidade
administrativa, ante o julgamento da ADIn n. 2.797 pelo STF, que declarou a
inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/2002, que alterou a redação do art. 84, §§
1º e 2º, do CPP.
4. Os sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa não são apenas
os servidores públicos, mas todos aqueles que estejam abarcados no conceito
de agente público, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n. 8.429/1992. Precedentes.
5. Aplica-se a Lei n. 8.429/1992 aos agentes políticos. Precedente.
6. A caracterização do ato de improbidade por ofensa a princípios da
administração pública exige a demonstração do dolo lato sensu ou genérico.
Precedentes.
7. O ilícito previsto no art. 11 da Lei n. 8.249/1992 dispensa a prova de dano,
segundo a jurisprudência desta Corte.
8. Multa civil reduzida para 25 (vinte e cinco) vezes o valor percebido pelo
agente no cargo de governador de Estado à época dos fatos.
9. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe
1º.7.2013).
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
155
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A transcrição de trechos do voto é imperiosa para a constatação da
similitude dos casos (grifei):
Cuida-se, na origem, de ação civil pública promovida pelo Ministério Público
do Estado de São Paulo, objetivando a responsabilização por improbidade
administrativa contra Luiz Antônio Fleury Filho, Jeandernei Luiz Ribeiro e Paschoal
Thomeu, em razão da contratação de funcionários junto à Eletropaulo, sem concurso
público, no período compreendido entre 15 de março de 1991 e 31 de dezembro de
1994.
O Tribunal de origem concluiu pela parcial procedência da ação, apenas em
relação a Luiz Antônio Fleury Filho, impondo as sanções de multa civil no valor 50
(cinquenta) vezes a remuneração por ele percebida no cargo, a suspensão de seus
direitos políticos e a proibição de contratar e receber benefícios ou inventivos da
Administração, por 3 (três) anos.
Feitas essas considerações, passo ao exame do recurso especial.
(...)
Referente à suposta necessidade de comprovação de má-fé ou dolo, para
fins de condenação por ato de improbidade, ressalto que esse tema encontra-se
pacificado nesta Corte.
O posicionamento firmado pela Primeira Seção é que se exige dolo, ainda
que genérico, nas imputações fundadas nos arts. 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992
(enriquecimento ilícito e violação a princípio), e ao menos culpa, nas hipóteses do
art. 10 da mesma norma (lesão ao erário).
(...)
In casu, a instância ordinária afirmou categoricamente que o agente, apesar
de não ter intenção comprovada de lesionar o erário, agiu conscientemente
em ofensa aos princípios da administração, ao contratar inúmeras pessoas
sem concurso público, que é suficiente para o reconhecimento da presença do
elemento subjetivo na hipótese.
Apenas para que fique claro, colaciono trecho do aresto recorrido sobre essa
questão (fls. 795-808):
No caso em julgamento, não há dúvida de que pessoas, todas
nominadas nos autos, foram contratadas, por expressa determinação de
um dos recorridos, e que elas não se enquadram na exceção legal. Ora, se
este favo é veraz e, como acima foi afirmado, era indispensável o concurso,
ao meu juízo, houve violação à lei.
Interessante notar que existem documentos, especialmente no Anexo
de n. 12, que demonstram ter havido o cuidado de efetuar contratação
por concurso público. Há, desta maneira, prova, que não se invalida de que
156
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
era hábito da empresa efetuar concursos, os quais eram promovidos com
alusão ao Governo do Estado.
Adotaram-se, desta maneira, critérios diversos para o mesmo fim,
independente da função a ser exercida, e isto é violador do princípio
constitucional. Não se poderiam adotar critérios diversos para o mesmo fim.
Não há justificativa legal para este procedimento.
(...)
Julgo que o recorrido não teve a intenção de liberar verba de forma
indevida. Ao determinar as contratações, não teve este escopo. Não agiu de
forma deliberada para impor a liberação de verba, outra era a finalidade da
contratação.
Não ficando patenteada esta intenção, ao meu juízo, é de ser rejeitada a
possibilidade de aplicação desta norma, que é específica e que exige prova
plena daquela intenção.
No entanto, não se pode rejeitar que, no que concerne ao artigo 11, I, outra é
a solução. Aqui há o desvio da atividade do Administrador.
(...)
O acusado, como reconhecido acima, ao admitir a contratação sem
concurso público, ao meu juízo, violou a Constituição Federal, por não observar
os critérios que norteiam o ingresso ao serviço público. Houve, outrossim,
como consequência, violação a princípio isonômico, pois somente uma
parcela de pessoas obteve essa possibilidade.
Este agir fere a moralidade da administração. Foram realizados atos sem
fundamento na lei e, para este caso, existe a submissão do ato com a lei.
Afigura-se típica a ação e, portanto, incide esta norma. (grifei).
Também se firmou o entendimento de que os atos de improbidade por lesão a
princípios administrativos, previstos no art. 11 da Lei n. 8.249/1992, independem
da ocorrência de dano ou lesão ao erário. Precedentes: REsp n. 799.094-SP,
Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 16.9.2008, DJe
22.9.2008; REsp n. 988.374-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado
em 6.5.2008, DJe 16.5.2008; REsp n. 433.888-SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira
Turma, julgado em 1º.4.2008, DJe 12.5.2008; REsp n. 1.011.710-RS, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 11.3.2008, DJe 30.4.2008; REsp
n. 757.205-GO, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
27.2.2007, DJ 9.3.2007 p. 299; e REsp n. 695.718-SP, Rel. Ministro José Delgado,
Primeira Turma, julgado em 16.8.2005, DJ 12.9.2005 p. 234.
Ressalto que a alegação do recorrente, no sentido de que apenas teria autorizado
as contratações, e não as determinado, é contrária à expressa afirmação do acórdão
recorrido, e inviável de modificação nesta via, ante o óbice da Súmula n. 7-STJ.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
157
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Por fim, no tocante à dosimetria das sanções aplicadas, considerando as
peculiaridades dos autos, entendo por bem reduzir o quantum devido à título
de multa civil. O máximo da multa, como estabelecido em abstrato é 100 (cem)
vezes o valor do salário percebido pelo agente no cargo de governador do
Estado à época dos fatos. O acórdão fixou em 50 (cinqüenta vezes). a fim de evitar
exacerbação da multa considero que hum quarto do valor máximo permitido
coloca-se em patamar razoável.
Assim, fixando a multa em 25 (vinte e cinco) vezes o valor percebido pelo
agente no cargo de governador de Estado à época dos fatos.
4. Conclusão
Diante do exposto, com vênias ao eminente Ministro Castro Meira, que
vota pelo provimento do Recurso Especial por identificar falta de nexo de
causalidade, voto por não conhecer do Apelo e, caso vencido, por não provê-lo.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.286.466-RS (2011/0058560-5)
Relatora: Ministra Eliana Calmon
Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Recorrido: Odilon Almeida Mesko
Advogado: Luiz Geraldo Telesca Mota
EMENTA
Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa.
Assédio moral. Violação dos princípios da administração pública. Art.
11 da Lei n. 8.429/1992. Enquadramento. Conduta que extrapola
mera irregularidade. Elemento subjetivo. Dolo genérico.
1. O ilícito previsto no art. 11 da Lei n. 8.249/1992 dispensa a
prova de dano, segundo a jurisprudência do STJ.
2. Não se enquadra como ofensa aos princípios da administração
pública (art. 11 da LIA) a mera irregularidade, não revestida do
elemento subjetivo convincente (dolo genérico).
158
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
3. O assédio moral, mais do que provocações no local de trabalho
– sarcasmo, crítica, zombaria e trote –, é campanha de terror psicológico
pela rejeição.
4. A prática de assédio moral enquadra-se na conduta prevista
no art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrativa, em razão
do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à
impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém.
5. A Lei n. 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da
atividade pública os agentes que demonstrem caráter incompatível
com a natureza da atividade desenvolvida.
6. Esse tipo de ato, para configurar-se como ato de improbidade
exige a demonstração do elemento subjetivo, a título de dolo lato sensu
ou genérico, presente na hipótese.
7. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A
Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do(a)
Sr(a). Ministro(a)-Relator(a), sem destaque e em bloco.” Os Srs. Ministros
Castro Meira, Humberto Martins, Herman Benjamin e Mauro Campbell
Marques (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 3 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Eliana Calmon, Relatora
DJe 18.9.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de recurso especial fundado na
alínea a do permissivo constitucional contra acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado (fl. 499):
Apelação cível. Ação de improbidade. Ato atentatório aos princípios da
administração pública. Punição indevida a funcionário municipal. Inexistência de
ato de improbidade para os fins da Lei n. 8.42911992.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
159
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Conforme abalizada doutrina, a probidade administrativa é uma forma de
moralidade administrativa, que mereceu consideração especial e da Constituição,
que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos. Consiste no dever
de o funcionário, no exercício de suas funções, servir a Administração com
honestidade, sem se aproveitar dos poderes e facilidades delas decorrentes em
proveito pessoal ou de outrem.
Não é qualquer falta funcional que dá ensejo à condenação nas penas da Lei
da Improbidade.
No caso, a indevida punição de funcionário não guarda qualquer relação com
a moralidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n2’ 8.429/1992.
Improcedência da demanda.
Apelação provida.
O recorrente aponta ofensa ao art. 11, caput, da Lei n. 8.429/1992, sob o
argumento de ocorrência de ato atentatório aos princípios da Administração
Pública, com a consequente aplicação das sanções cabíveis.
Sem contrarraazões (certidão de fl. 517), subiram os autos a esta Corte por
força de decisão no AREsp n. 9.031-RS (fl. 558). Nesta instância, o Ministério
Público Federal pronunciou-se consoante parecer com ementa nos seguintes
termos (fl. 569):
Administrativo e Processo Civil. Ação Civil Pública. Improbidade Administrativa.
Ato atentatório aos princípios da administração pública.
2. Punição indevida a funcionário municipal impedindo-a de trabalhar em
suas funções regulares sem qualquer sindicância ou procedimento administrativo
disciplinar.
3. Violação aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade
administrativa. Desvio de finalidade do cargo público de prefeito municipal.
4. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso especial, a fim
de reformar o acórdão hostilizado e restabelecer a sentença.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Cuida-se, na origem, de
ação civil pública de responsabilidade por ato de improbidade administrativa,
proposta pelo Parquet estadual contra Odilon Almeida Mesko, ex-Prefeito de
Canguçu-RS.
160
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
O TJ-RS concluiu pela improcedência da ação, reformando integralmente
a sentença, que havia condenado o réu à suspensão dos direitos políticos por
3 (três) anos; ao pagamento de multa civil de 5 (cinco) anos no valor da
remuneração percebida à época do fato e a proibição de contratar com o Poder
Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou
indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos.
Busca o recorrente, o reenquadramento das condutas imputadas
ao réu como ato de improbidade, por ofensa aos princípios norteadores da
Administração Pública (art. 11 da LIA).
Inicialmente, destaco que o recurso especial não depende de incursão no
acervo fático-probatório, sabidamente obstada pela Súmula n. 7-STJ, pois os
contornos fáticos estão muito bem delimitados nos provimentos judiciais da
instância ordinária, notadamente, na sentença de fls. 454-457.
Feitos esses breves esclarecimentos, passo ao exame do recurso especial.
O caput do art. 11 da Lei n. 8.429/1992 define como ato de improbidade
a conduta “que atenta contra os princípios da administração pública qualquer
ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade,
e lealdade às instituições”.
Sobre o referido dispositivo, já assentou esta Corte, que a tipificação dessas
condutas independe da ocorrência de prejuízo ao erário.
Também se pondera neste Tribunal Superior, que nem toda ilicitude é, por
si só, ato de improbidade. Ficam de fora do conceito de ato ímprobo as meras
irregularidades, não revestidas do elemento subjetivo convincente, que, segundo
pacificado nesta Casa, se trata do dolo genérico ou lato sensu, consubstanciado
na consciência da ilicitude.
Diante desse cenário hermenêutico, cabe a análise dos fatos imputados ao
réu na presente ação.
Para tanto, aproveito-me de trecho da sentença (fls. 454-455):
O Ministério Público ajuizou ação civil pública em desfavor de Odilon Almeida
Mesko, já qualificado, aduzindo ter o réu praticado ato de improbidade, por ter
atentado contra os princípios da administração pública (art. 11, caput, da Lei
n. 8.429/1992). Alegou ter o réu se valido da função de Prefeito Municipal para
vingar-se da funcionária pública municipal Célis Terezinha Bitencourt Madrid,
obrigando-a a permanecer “de castigo” na sala de reuniões da Prefeitura nos dias
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
161
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
19, 20, 21 e 22 de junho de 2001. Relatou ter o réu sido movido por sentimento de
vingança, vez que referida servidora teria levado ao conhecimento do Ministério
Público a existência de dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria
dos Servidores Públicos. Referiu ter o réu ameaçado colocar a servidora em
disponibilidade, bem como ter-lhe concedido, sem solicitação, férias de 30 dias.
Argumentou ter referido fato dado ensejo à matérias jornalísticas e a instauração
de uma comissão especial na Câmara Municipal de Canguçu. Ressaltou ter o réu
ofendido os princípios que norteiam a Administração Pública, em especial o da
legalidade e o da impessoalidade. Requereu a procedência da ação, ao efeito
de declarar o fato imputado ao réu como ato de improbidade administrativa,
bem como condenar o réu às sanções previstas no art. 12, inciso III, da Lei n.
8.429/1992.
(...)
O fato imputado ao réu vem fartamente comprovado através dos documentos
juntados com a inicial. Com efeito, as reportagens jornalísticas de fls. 23-24
demonstram, de forma clara, o fato ocorrido, tendo a reportagem do jornal
“Zero Hora” exibido, inclusive, uma fotografia da servidora (fl. 23). Ademais,
as reportagens referem não se tratar de fato isolado, tendo o réu agido de forma
semelhante com, ao menos, cinco servidores. O próprio réu, entrevistado pelo jornal
“Zero Hora”, afirma ter agido nos termos descritos na inicial, referindo, inclusive, que
“três dias foi muito pouco para ela” (fl. 23).
A servidora atingida pelo ato do réu, ao depor perante a Comissão Especial da
Câmara de Vereadores local, confirmou os fatos descritos na inicial, asseverando
ter denunciado dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos
servidores públicos municipais, tendo, então, lhe sido determinado pelo réu que
permanecesse sentada no seu gabinete e, posteriormente, na sala de reuniões,
contígua a este. Referiu ter o “castigo” sido presenciado por diversas pessoas ao
longo dos quatro dias (fls. 123-125).
O restante dos documentos juntados referem, modo contundente, a prática
do ato descrito na inicial pelo réu. Cumpre citar os depoimentos dos servidores
Genes Gentil Bento e Amadelino da Silva, bem como o servidor Ênio Daniel J.
Heinemann (fls. 126-128, 136 e 146-147).
Ademais, além da farta prova acerca da ocorrência e da autoria do fato, o próprio
réu, representado por advogado, admitiu sua prática em sede de contestação, se
limitando a argumentar não se tratar de ato de improbidade (fl. 420) (grifei).
Assim, é incontroverso nos autos, inclusive com confissão do próprio
acusado, ter o réu, na qualidade de Prefeito, imposto à funcionária pública
municipal Célis Terezinha Bitencourt Madrid “castigo”, ao afastá-la de suas
funções e obrigando-a a permanecer três dias na sala de reuniões da Prefeitura
em junho de 2001.
162
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Também restou comprovado os motivos determinantes de sua conduta:
sentimento de vingança, em razão da referida servidora ter denunciado ao
Ministério Público a existência de dívida do Município com o Fundo de
Aposentadoria dos Servidores Públicos.
Os fatos se tornaram públicos e amplamente noticiados na mídia local.
A meu sentir, estamos diante de caso clássico de assédio moral, agravado
por motivo torpe.
O assédio moral, mais do que apenas provocações no local de trabalho
– sarcasmo, crítica, zombaria e trote –, é uma campanha de terror psicológico,
com o objetivo de fazer da vítima uma pessoa rejeitada. O indivíduo-alvo é
submetido a difamação, abuso verbal, comportamento agressivo e tratamento
frio e impessoal. Esses elementos, se não todos, estão presentes na hipótese.
A conduta do agente foi tão danosa, que já lhe rendeu, na seara civil,
decisão indenizatória em favor da servidora, conforme noticiado pelo juízo de
1º grau (fl. 456):
É bem de ver, ainda, ter o fato praticado pelo réu prejudicado a servidora
pública em questão, estando seu prejuízo individual descoberto pela Lei de
Improbidade Administrativa, tanto que esta ingressou com ação ordinária
indenizatória em desfavor do réu, a qual foi julgada procedente e confirmada pela
Superior Instância, estando em fase de cumprimento (Processo n. 042/1.03.00029898). Todavia, o prejuízo causado à servidora não afasta o prejuízo público, este sim
protegido pela Lei de Improbidade Administrativa (grifei).
A questão é saber se o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa
também abrange atos como o presente, configuradores de assédio moral.
A Lei n. 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pública
todos os agentes que demonstrem pouco apreço pelo princípio da juridicidade,
denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da
atividade desenvolvida.
A partir dessas premissas, não tenho dúvida de que comportamentos como
o presente, enquadram-se em “atos atentatórios aos princípios da administração
pública”, pois “violam os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade,
e lealdade às instituições”, em razão do evidente abuso de poder, desvio de
finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em
prejuízo de alguém.
Ademais, consoante já mencionado, está absolutamente caracterizado o
elemento subjetivo na hipótese, a título de dolo genérico.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
163
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Agiu com acerto, portanto, o juízo de 1º grau, ao concluir pela procedência
da demanda, pelo reconhecimento de improbidade administrativa, prevista no
art. 11 da Lei 8.429/1992.
Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer
a sentença de fls. 454-457.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.365.433-MG (2013/0016585-3)
Relator: Ministro Herman Benjamin
Recorrente: Itaú Unibanco S/A
Advogados: Landulfo de Oliveira Ferreira Junior
Antônio Chaves Abdalla
Estefânia Trad
Marcelo Alves Cavalcante e outro(s)
Alvaro José Eliazar Ubaldo
Recorrido: Município de Oliveira
Procuradores: Tadahiro Tsubouchi e outro(s)
Carlos Alberto de Faria Lobato
EMENTA
Processual Civil e Tributário. Depósito judicial. Levantamento
parcial pelo Município. Instituição de fundo de reserva e preenchimento
dos requisitos da Lei n. 10.819/2003. Hipótese que não caracteriza
conversão em renda.
1. Cuida-se de Recurso Especial no qual a parte busca reformar
acórdão que garantiu o levantamento parcial de depósito judicial pelo
Município, consoante expressa autorização do art. 1º, § 2º, da Lei n.
10.819/2003.
2. A Lei n. 10.819/2003 concede ao Município que instituir fundo
de reserva destinado a garantir eventual obrigação de ressarcimento o
164
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
repasse de parcela correspondente a 70% do valor dos depósitos em
instituição financeira referentes a créditos tributários controvertidos de
competência municipal efetuados a partir de sua vigência (arts. 1º e 2º).
3. O STJ já teve a oportunidade de reconhecer a existência desse
direito, desde que fosse criado o aludido fundo de reserva e firmado
termo de compromisso pelo Chefe do Poder Executivo Municipal,
nos moldes do art. 2º da Lei n. 10.819/2003 (REsp n. 773.066-RS,
Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 30.8.2006, p. 175;
AgRg na MC n. 9.617-SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma,
DJ 30.5.2005, p. 209).
4. In casu, o Tribunal a quo atestou que o Município instituiu o
fundo de reserva previsto no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.819/2003 e
concluiu que se encontram atendidos os requisitos impostos pelo art.
2º do aludido diploma legal, sobretudo a existência de capital suficiente
para garantir a devolução dos recursos, se o ente público vir a sucumbir:
“In casu, tanto o termo de compromisso, quanto a apresentação
dos gastos municipais e da receita disponível ao Município foram
carreadas à f. 53-58 - TJ, comprovando que a Administração Pública
do Município de Oliveira dispõe de capital suficiente para efetuar o
levantamento do percentual de 70% e devolvê-lo, se for o caso” (fl.
230).
5. Ao contrário do que alega o recorrente, o repasse do percentual
em questão não caracteriza hipótese de conversão de depósito em
renda (art. 156, VI, do CTN), mas levantamento parcial sob a condição
resolutiva de que o contribuinte venha a ser vencedor no processo.
Com efeito, estabelece o art. 4º da Lei n. 10.819/2003: “Encerrado o
processo litigioso com ganho de causa para o depositante, mediante
ordem judicial, o valor do depósito efetuado nos termos desta Lei,
acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída, será
colocado à disposição do depositante pela instituição financeira
responsável, no prazo de três dias úteis (...)”.
6. O recorrente sustenta que o art. 535, II, do CPC foi violado,
mas aponta omissão acerca de normas que não foram debatidas nos
aclaratórios opostos na origem. Essa dissociação entre as razões
apresentadas na preliminar do Recurso Especial e aquelas veiculadas
nos Embargos de Declaração interpostos no Tribunal a quo implica a
incidência, por analogia, da Súmula n. 284-STF.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
165
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
7. O argumento de que a lei ordinária conflita com o disposto
no CTN (arts. 151, II, e 156, IV, do CTN), que tem natureza de lei
complementar, é matéria de cunho constitucional, motivo pelo qual
não pode ser apreciada no âmbito do Recurso Especial, sob pena
de usurpação da competência do STF (REsp n. 1.151.573-SP, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 24.6.2013;
AgRg no Ag n. 1.248.980-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,
Primeira Turma, DJe 19.8.2011).
8. Não houve prequestionamento dos arts. 827 e 828 do CPC,
de modo que se aplica, nesse ponto, o óbice da Súmula n. 211-STJ:
“Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da
oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal
a quo”.
9. Por fim, não há como rever a conclusão do Tribunal a quo sobre
o preenchimento dos requisitos legais para o levantamento parcial
do depósito pelo Município, porquanto seria necessário revolver o
contexto fático-probatório, o que não é admitido pela Súmula n.
7-STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso
especial”.
10. Recurso Especial conhecido parcialmente e, nessa parte, não
provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negoulhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os
Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Eliana Calmon, Castro
Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin, Relator
DJe 26.9.2013
166
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Herman Benjamin: Trata-se de Recurso Especial interposto,
com fundamento no art. 105, III, a e c, da Constituição da República, contra
acórdão assim ementado:
Ementa: Agravo de instrumento. Execução fiscal. Cobrança de ISSQN, taxa
de publicidade, TLL e IPTU. Depósito do valor integral da dívida. Levantamento
de 70% do importe. Possibilidade. Lei Federal n. 10.819/2003 e Lei Municipal
n. 3.043/2011. Comprometimento e garantia de reversibilidade da medida.
Ocorrência. Decisão mantida.
Nas execuções fiscais em que o valor da dívida é depositado integralmente, o
Município que institui o Fundo de Reserva Especial, fica autorizado a levantar 70%
desta quantia, desde que se comprometa e garanta a reversibilidade da medida,
nos moldes das Leis Federal n. 10.819/2003 e Municipal n. 3.043/2011 (fl. 225).
Os Embargos de Declaração foram rejeitados (fls. 248-252).
O recorrente alega que houve, além de divergência jurisprudencial, violação
dos arts. 9º, II, § 3º, da LEF; 128, 535, 620, 827 e 828 do CPC; 151, II, e 156,
VI, do CTN. Apresenta os seguintes fundamentos:
a) o Tribunal a quo incorreu em omissão:
b) a Lei n. 10.819/2003, ao versar sobre crédito tributário, contraria o
CTN;
c) o depósito é causa de suspensão da exigibilidade, de modo que, enquanto
pendente a Ação Anulatória, não pode haver sua conversão em renda (arts. 151,
II, e 156, VI);
d) não foram preenchidos os requisitos necessários para o levantamento do
depósito;
e) há divergência jurisprudencial quanto à obrigatoriedade de o Município
comprovar as condições de devolver os recursos imediatamente, caso saia
vencido na demanda;
f ) ocorreu violação do contraditório e da ampla defesa pela ausência
de intimação antes da decisão que determinou o levantamento de parte do
depósito.
Contrarrazões nas fls. 391-403.
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
167
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator): Os autos foram recebidos
neste Gabinete em 23.5.2013.
A irresignação não merece acolhida.
Cuida-se de Recurso Especial no qual a parte busca reformar acórdão que
garantiu o levantamento parcial de depósito judicial pelo Município, consoante
autorização expressa do art. 1º, § 2º, da Lei n. 10.819/2003, in verbis:
Art. 1º Os depósitos judiciais, em dinheiro, referentes a tributos e seus acessórios,
de competência dos Municípios, inclusive os inscritos em dívida ativa, serão efetuados,
a partir da data da publicação desta Lei, em instituição financeira oficial da União ou
do Estado a que pertença o Município, mediante a utilização de instrumento que
identifique sua natureza tributária.
§ 1º Os municípios poderão instituir fundo de reserva, destinado a garantir a
restituição da parcela dos depósitos referidos no caput que lhes seja repassada
nos termos desta Lei.
§ 2º Ao município que instituir o fundo de reserva de que trata o § 1º, será
repassada pela instituição financeira referida no caput a parcela correspondente
a setenta por cento do valor dos depósitos de natureza tributária nela realizados a
partir da vigência desta Lei.
§ 3º A parcela dos depósitos não repassada nos termos do § 2º será mantida
na instituição financeira recebedora, que a remunerará segundo os critérios
originalmente atribuídos aos depósitos.
O Tribunal a quo atestou que o Município instituiu o fundo de reserva de
que trata o § 1º do art. 1º da Lei n. 10.819/2003 e concluiu que se encontram
atendidos os requisitos impostos pelo art. 2º do aludido diploma legal, sobretudo
a existência de capital suficiente para garantir a devolução dos recursos, caso o
ente público venha a sucumbir. Confira-se:
In casu, tanto o termo de compromisso, quanto a apresentação dos gastos
municipais e da receita disponível ao Município foram carreadas à f. 53-58 - TJ,
comprovando que a Administração Pública do Município de Oliveira dispõe de
capital suficiente para efetuar o levantamento do percentual de 70% e devolvê-lo,
se for o caso.
Não prevalece, portanto, as insurgências de que aludido Fundo de Reserva
foi instituído sem prévia autorização e de inconstitucionalidade formal das Leis
n. 10.819/2003 e 3.043/2011, pela impossibilidade de utilização da garantia
até a decisão final do litígio, haja vista que aludido levantamento não se pauta
168
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
em confiscatoriedade da propriedade do contribuinte, mas tão somente de
recolhimento temporário, eis que reversível a qualquer tempo pelo Município,
sem prejuízo às partes.
Importante anotar que seria outro o deslinde caso o Município não
demonstrasse, através da receita disponível, a possibilidade de devolver importe
quando requisitado.
Desta forma, tenho que merece ser mantida a decisão, porquanto não há risco
de prejuízos financeiros ao agravante que impeçam o desfazimento da medida
(fl. 230).
O recorrente sustenta que o art. 535, II, do CPC foi violado, mas aponta
omissão acerca de normas que não foram debatidas nos aclaratórios opostos na
origem. Essa dissociação entre as razões apresentadas na preliminar do Recurso
Especial e aquelas veiculadas nos Embargos de Declaração interpostos no
Tribunal a quo implica a incidência, por analogia, da Súmula n. 284-STF.
O argumento de que a lei ordinária conflita com o disposto no CTN (arts.
151, II, e 156, IV, do CTN), que tem natureza de lei complementar, é matéria
de cunho constitucional, razão pela qual não pode ser apreciada no âmbito do
Recurso Especial, sob pena de usurpação da competência do STF (REsp n.
1.151.573-SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe
24.6.2013; AgRg no Ag n. 1.248.980-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,
Primeira Turma, DJe 19.8.2011).
Não houve prequestionamento dos arts. 827 e 828 do CPC, de modo que
se aplica, nesse ponto, o óbice da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso
especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios,
não foi apreciada pelo tribunal a quo”.
A Lei n. 10.819/2003 concede ao Município que instituir fundo de reserva
destinado a garantir eventual obrigação de ressarcimento o repasse de parcela
correspondente a setenta por cento do valor dos depósitos em instituição
financeira referentes a créditos tributários controvertidos de competência
municipal efetuados a partir de sua vigência (arts. 1º e 2º).
O STJ já teve a oportunidade de reconhecer a existência desse direito, desde
que fosse criado o aludido fundo de reserva e firmado termo de compromisso
pelo Chefe do Poder Executivo Municipal, nos moldes do art. 2º da Lei n.
10.819/2003. Nesse sentido:
Tributário. Lei n. 10.819/2003. Depósitos judiciais. Repasse aos municípios.
Fundo de reserva.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
169
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Nos termos do art. 1º da Lei n. 10.819/2003, o município terá direito ao
repasse, em dinheiro, de 70% (setenta por cento) do valor dos depósitos judiciais
realizados, referentes a tributos de competência municipal e seus acessórios,
desde que institua fundo de reserva, destinado a garantir eventual restituição da
parcela. Os outros 30% (trinta por cento) ficam mantidos na instituição financeira
recebedora.
2. Contudo, conforme dispõe o § 2º da mesma lei, a habilitação para o
recebimento das transferências fica condicionada à apresentação de termo de
compromisso firmado pelo Prefeito, que preveja, a cada repasse, a destinação
automática ao fundo de reserva do valor correspondente à parcela dos depósitos
judiciais mantida na instituição financeira. Em síntese, dos 70% (setenta por cento)
repassados ao município 30% (trinta por cento) têm “destinação automática” para
o fundo de reserva.
3. Recurso especial improvido.
(REsp n. 773.066-RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 30.8.2006,
p. 175).
Processual Civil. Medida cautelar para emprestar efeito suspensivo a recurso
especial. Levantamento, pelo Município, de valores depositados à conta do juízo.
Lei n. 10.819/2003. ISS. Leasing. Incidência. Súmula n. 138-STJ.
1. É legitimo o levantamento do depósito, pelo Município, na forma da Lei n.
10.819/2003, máxime quando ostenta o fundo de reserva, autorizado por lei, e
que garante a restituição integral, diante do insucesso da demanda.
2. É sumulado no Eg. STJ que: “O ISS incide na operação de arrendamento
mercantil de coisas móveis”.
3. Sobressai o periculum in mora, da ordem mandamental que impõe a
devolução de importâncias consumidas com os interesses dos munícipes, em prol
de débito consagrado pelo Eg. STJ.
4. Deveras, a ratio essendi da Lei n. 10.819/2003 é explícita na exposição de
motivos ao justificar o diploma assentando: “o presente projeto de lei tem por
objetivo dar finalidade útil aos recursos que forem objeto de depósito judicial
ou extrajudicial de valores referentes a débitos tributários em litígio. A absoluta
indisponibilidade destas receitas contrastam com a grave situação financeira dos
municípios, legítimos credores de tais quantias, na maior parte dos casos. Não
há mais espaço para a ociosidade de tamanho montante de recursos, enquanto
processos judiciais tramitam por anos a fio pelas instâncias judiciais do País.”
5. Agravo Regimental desprovido.
(AgRg na MC n. 9.617-SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 30.5.2005,
p. 209).
170
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Ao contrário do que alega o recorrente, o repasse do percentual em
questão não caracteriza a hipótese de conversão de depósito em renda (art. 156,
VI, do CTN), mas levantamento parcial sob a condição resolutiva de que o
contribuinte venha a ser vencedor no processo. Com efeito, estabelece o art. 4º
da Lei n. 10.819/2003: “Encerrado o processo litigioso com ganho de causa para
o depositante, mediante ordem judicial, o valor do depósito efetuado nos termos
desta Lei, acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída, será
colocado à disposição do depositante pela instituição financeira responsável, no
prazo de três dias úteis (...)”.
Por fim, não há como rever a conclusão do Tribunal a quo sobre o
preenchimento dos requisitos legais para o levantamento parcial do depósito
pelo Município, porquanto seria necessário revolver o contexto fático-probatório,
o que não é admitido pela Súmula n. 7-STJ: “A pretensão de simples reexame de
prova não enseja recurso especial”.
A divergência jurisprudencial apontada se refere aos pontos acima aludidos,
os quais não ultrapassam o juízo de admissibilidade recursal.
Diante do exposto, conheço parcialmente do Recurso Especial e, nessa parte,
nego-lhe provimento.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.371.114-PE (2013/0057369-5)
Relatora: Ministra Eliana Calmon
Recorrente: União
Recorrido: Município de Brejo da Madre de Deus
Advogado: Bruno Romero Pedrosa Monteiro
EMENTA
Administrativo. FUNDEB. Complementação da União. Valor
mínimo nacional por aluno. Ajuste. Prazo quadrimestral. Art. 6º, §
2º, da Lei n. 11.494/2007. Marco temporal não peremptório. Prazo
mínimo. Art. 54 da Lei n. 9.784/1999. Submissão.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
171
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Cabe à União, a complementação de recursos do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação - FUNDEB, instituído pela Emenda
Constitucional n. 53/2006 (que deu nova redação ao art. 60 do
ADCT), regulamentada pela Lei n. 11.494/2007, a fim de garantir o
valor mínimo nacional por aluno/ano no âmbito de cada Estado e do
Distrito Federal, nos casos em que esse limite não for alcançado com
os recursos dos próprios entes federativos.
2. O prazo quadrimestral previsto no art. 6º, § 2º, da Lei n.
11.494/2007, para que a União proceda ao ajuste de complementação
de valores, não tem caráter peremptório, deixando o legislador de
prever qualquer penalidade em caso de descumprimento.
3. O referido marco temporal deve ser compreendido como prazo
mínimo, a fim conferir estabilidade e equilíbrio às relações dos entes
participativos do Fundo, aplicando-se, por analogia, o prazo previsto
no art. 54 da Lei n. 9.784/1999, para a União rever seus próprios atos.
4. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça
“A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto
do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Humberto Martins,
Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques (Presidente) votaram com a
Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 24 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Eliana Calmon, Relatora
DJe 1º.10.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de recurso especial fundado na
alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal
Regional Federal da 5ª Região, assim ementado (fl. 429):
172
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Administrativo e Constitucional. FUNDEB. Ajuste de repasse do FUNDEB
decorrente da Portaria n. 1.462/2008 do Ministério da Educação. Violação literal
do art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007. Apelação e remessa improvidas.
I - Ausência da obrigatoriedade de formação de litisconsórcio passivo, tendo
em vista que o ato impugnado foi praticado pela União Federal, única responsável
pelo ato impugnado.
II - Nos termos da redação do art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, os ajustes
no pagamento da complementação para o FUNDEB devem ser efetuados até o
término do primeiro quadrimestre do exercício financeiro seguinte, razão pela
qual, com relação aos valores quitados em 2007, tal medida deveria ter lugar até
30 de abril de 2008, não devendo ser determinado pela Portaria n. 1.462, editada
em dezembro de 2008.
IV - Apelação provida. Sentença reformada.
Ambos os embargos de declaração opostos pela União foram parcialmente
acolhidos, os primeiros para suprir omissão quanto aos juros moratórios, os
quais devem incidir nos termos do art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997, com a redação
conferida pela Lei n. 11.960/2009, já os segundos para esclarecer que na fixação
dos honorários advocatícios, quando vencida a Fazenda Pública, a despeito do §
4º do art. 20 do CPC, pode o juiz estabelecê-los dentro dos limites previstos no
§ 3º (fls. 478-482 e 493-496).
A recorrente aponta contrariedade ao art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007,
ao argumento de prever o dispositivo o ajuste da complementação repassada
pela União, a maior ou a menor, a ser realizado no primeiro quadrimestre do ano
seguinte ao ano de referência do repasse.
Sustenta que no presente caso, o ajuste realizado em dezembro de 2008,
referente ao repasse de 2007, com base na Portaria n. 1.462/2008, conferiu ao
Município prazo superior à previsão legal para devolver os valores que não lhe
pertenciam, inexistindo, deste modo, qualquer prejuízo.
Aduz que os cálculos de ajuste apenas podem ser realizados após a
consolidação do valor nacional do Fundo, “desdobrado por Estado, já que
a forma como se estruturou o FUNDEB impõe a observação de critérios
nacionais e regionais” (fl. 511), sendo o atraso motivado pelo fato de os dados
não terem sido fornecidos tempestivamente pelos Estados.
De outra parte, defende a negativa de vigência ao art. 20, § 4º, do CPC,
na medida em que a fixação dos honorários advocatícios na importância de 5%
(cinco por cento) sobre o valor da causa revela-se exorbitante, por se tratar de
causa de baixa complexidade.
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
173
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com contrarrazões às fls. 525-536, o Tribunal de origem admitiu o recurso
especial (fls. 538-539).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Inicialmente, entendo
necessário tecer alguns breves esclarecimentos acerca do Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação - FUNDEB, instituído pela Emenda Constitucional n. 53/2006 (que
deu nova redação ao art. 60 do ADCT), regulamentada pela Lei n. 11.494/2007
(oriunda da conversão da Medida Provisória n. 339/2006), que por sua vez, foi
regulamentada pelo Decreto n. 6.253/2007.
Enquanto o FUNDEF, que vigorou de 1998 a 2006, se limitava ao ensino
fundamental, o FUNDEB, seu substituto, abrange a educação básica, nela
compreendida a educação infantil, o ensino fundamental e médio, e a educação
de jovens e adultos, além de estender a remuneração proporcional a todos os
trabalhadores da educação, e não apenas aos do magistério.
O F UNDEB, em seu aspecto contábil, se constitui de recursos
provenientes de impostos e de transferências dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, destinados à educação (art. 212 da CF), e de parcela de recursos
federais (União), a título de complementação financeira.
Como se vê, o objetivo primordial do Fundo é promover a redistribuição
dos recursos vinculados à educação, que se dá proporcionalmente ao número
de alunos das diversas etapas e modalidades da educação básica presencial,
matriculados nas respectivas redes de ensino. O cálculo da proporcionalidade
está definido no art. 212 da Constituição Federal.
De acordo com os arts. 44 e 48 da Lei n. 11.494/2007, a vigência do fundo
compreende o período 2007 a 2020, sendo que a partir do seu terceiro ano a
alíquota de retenção do fundo atingirá o patamar de 20% (vinte por cento),
calculada sobre as seguintes fontes de impostos e transferências de ordem
constitucional (art. 3º do mesmo diploma legal):
1) Fundo de Participação dos Estados - FPE;
2) Fundo de Participação dos Municípios - FPM;
3) Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre prestação de Serviços
- ICMS;
174
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
4) Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações IPIexp;
5) Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações de quaisquer bens
ou direitos - ITCMD;
6) Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores - IPVA;
7) Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (cota-parte dos
Municípios) - ITRm;
8) Recursos relativos à desoneração de exportações de que trata a LC n.
87/1996;
9) Arrecadação de imposto que a União eventualmente instituir no
exercício de sua competência (cotas-partes dos Estados, Distrito Federal e
Municípios);
10) Receita da dívida ativa tributária, juros e multas relativas aos impostos
acima relacionados.
A complementação da União, não inferior a 10% (dez por cento) do total
dos recursos apresentados acima, tem por escopo garantir o valor mínimo
nacional por aluno/ano no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, nos
casos em que esse limite não for alcançado com os recursos dos próprios entes
federativos.
Isso significa que a União complementará o fundo tão-somente nos
Estados cujo per capita se situe abaixo do mínimo nacional, o qual é calculado
levando em consideração os seguintes fatores: total geral da receita prevista para
o Fundo, em vista das contribuições de Estados, DF e Municípios; número
de alunos matriculados nos vários segmentos da educação básica; fatores de
diferenciação; e valor da complementação da União para o exercício.
O Manual de Orientação do FUNDEB, expedido pelo Fundação Nacional
do Desenvolvimento da Educação - FNDE (disponível em www.fnde.gov.br),
em relação à estimativa da complementação da União, esclarece:
Apenas os repasses da complementação da União têm os seus valores
previamente conhecidos, já que os valores mensais são calculados e publicados
no início do exercício, por meio de Portaria Interministerial dos Ministérios da
Educação e da Fazenda.
No final de cada ano, são realizadas estimativas dos valores anuais do
Fundo de cada estado para o ano seguinte. Essas estimativas servem de base
à realização dos cálculos dos valores por aluno/ano de cada estado e do valor
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
175
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mínimo nacional por aluno/ano. No final de cada exercício, entretanto, essas
estimativas são confrontadas com os valores efetivamente arrecadados. As
diferenças identificadas são contornadas por meio de ajustes de contas anuais
do Fundo, podendo gerar valores financeiros a creditar ou a debitar aos estados
e municípios.
Assim, o ajuste da contas do Fundo, levado a efeito pela União, realiza-se
com o confronto dos valores estimados com os efetivamente arrecadados pelos
Entes Federativos, permitindo, conforme o caso, creditar ou debitar quantias
dos municípios e estados.
Feitas essas considerações, passo ao exame da presente demanda.
Cuida-se, na origem, de ação ordinária ajuizada pelo Ente Municipal,
objetivando a declaração de ilegalidade da dedução do valor de R$ 97.492,95
(noventa e sete mil e quatrocentos e noventa e dois reais e noventa e cinco
centavos) da conta do FUNDEB, a título de ajuste financeiro, em razão da
incidência da Portaria n. 1.462/2008-MEC, editada pelo Ministro da Educação,
por suposta violação do prazo previsto no § 2º do art. 6º da Lei n. 11.494/2007,
que limita o referido ajuste ao primeiro quadrimestre do exercício financeiro
seguinte.
Sobrevindo sentença pela improcedência do pedido, apelou o município,
ora recorrido, reafirmando direito ao estorno da retenção da cota do FUNDEB
com base na citada portaria, em razão da ilegalidade do procedimento adotado.
O Tribunal de origem deu provimento à apelação do município, sob o
fundamento seguinte (fls. 426-427):
Consoante o texto legal, é permitido à União proceder a ajustes nos valores
da complementação para o FUNDEB, mas desde que realizados dentro do 1º
(primeiro) quadrimestre do exercício financeiro seguinte.
Não foi o que ocorreu no caso dos autos. Tratando-se das complementações
quitadas durante o exercício de 2007, os ajustes, na forma prevista no dispositivo
legal transcrito, somente poderiam ocorrer até o primeiro quadrimestre do ano
seguinte, ou seja, até 30 de abril de 2008.
Por outro lado, observa-se, com clareza, do teor da Portaria n. 1.462/2008,
mais precisamente do seu art. 1º, § 1º, a determinação de ajustes nos valores
repassados aos municípios.
No caso em tela, tal ocorreu em dezembro de 2008, mês no qual fora editada
a Portaria n. 1.462/2008, de modo que houve violação literal ao art. 6º, § 2º, da Lei
n. 11.494/2007.
176
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
(...)
É induvidoso que, em cabendo ao município o direito de não ver executado
o ajuste a que se refere à referida Portaria, há de restaurado seu direito ao
recebimento do que lhe era devido, não se podendo cogitar de qualquer ofensa
ao art. 167, IV, da Lei Maior.
Com essas considerações, dou provimento à apelação para condenar a União
a estornar, em favor do município, acima epigrafado, o quantum debitado de
sua conta do FUNDEB, a título de complementação da União, em virtude do
afastamento da incidência da Portaria n. 1.462/2008, editada pelo Ministro da
Educação.
A Corte a quo considerou que o ajuste fora do prazo, levado a cabo
pela União, violou o § 2º art. 6º da Lei n. 11.494/2007, devendo o débito ser
restituído à conta municipal.
De fato, a Portaria n. 1.462/2008, editada pelo Ministério da Educação, foi
publicada em dezembro de 2008, além do prazo conferido pela Lei para realizar
o ajuste financeiro.
A questão controversa pode ser assim sintetizada: é possível o acerto de
contas pela União fora do período fixado na lei (1º quadrimestre do exercício
seguinte)?
Transcrevo o teor do dispositivo tido por violado:
Lei n. 11.494/2007
Art. 6º A complementação da União será de, no mínimo, 10% (dez por cento)
do total dos recursos a que se refere o inciso II do caput do art. 60 do ADCT.
(...)
2º A complementação da União a maior ou a menor em função da diferença
entre a receita utilizada para o cálculo e a receita realizada do exercício de
referência será ajustada no 1º (primeiro) quadrimestre do exercício imediatamente
subseqüente e debitada ou creditada à conta específica dos Fundos, conforme o
caso (grifei).
Pela literalidade da norma, não há indicação de que o prazo em questão seja
peremptório, nem há previsão de penalidade em caso de seu descumprimento.
Decerto que o marco temporal tem a finalidade de fazer com que as
relações entre os entes participativos do Fundo sejam marcadas pela estabilidade
e equilíbrio das contas públicas, pois se é certo que um determinado município
recebeu a complementação da União a maior, não é menos certo deduzir que
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
177
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
outro recebeu a menor, e é justamente neste lapso de tempo que, ordinariamente,
acontece a realocação desses recursos, de forma que nenhum dos participantes
sofram prejuízos ou se locupletem com o que não lhe é de direito, em respeito ao
equilíbrio federativo.
No caso dos autos, a União aduz que o ajuste foi publicado a destempo
em razão de vários Estados não terem enviado tempestivamente os dados à
Secretaria do Tesouro Nacional, o que gerou atraso na publicação da Portaria,
definidora da complementação e redistribuição dos recursos.
Como bem explica a União, “os Estados, no início do ano seguinte ao
exercício financeiro do FUNDEB, deverão informar as diferenças entre o
valor projetado da arrecadação e os valores efetivamente arrecadados, para que
o repasse do FUNDEB seja o espelho da realidade e não realizado através de
meras suposições. Assim, o ajuste adequa o repasse ao que cada ente federativo
arrecadou, sendo, acima de tudo, um instrumento de justiça no aprimoramento
do custeio da educação” (fl. 508).
Com efeito, o artigo 15 e seu parágrafo único da referida norma estabelecem
prazos para a União, os Estados e o Distrito Federal, nos seguintes termos:
Lei n. 11.494/2007
Art. 15. O Poder Executivo federal publicará, até 31 de dezembro de cada
exercício, para vigência no exercício subseqüente:
I - a estimativa da receita total dos Fundos;
II - a estimativa do valor da complementação da União;
III - a estimativa dos valores anuais por aluno no âmbito do Distrito Federal e
de cada Estado;
IV - o valor anual mínimo por aluno definido nacionalmente.
Parágrafo único. Para o ajuste da complementação da União de que trata o §
2º do art. 6º desta Lei, os Estados e o Distrito Federal deverão publicar na imprensa
oficial e encaminhar à Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, até o
dia 31 de janeiro, os valores da arrecadação efetiva dos impostos e das transferências
de que trata o art. 3º desta Lei referentes ao exercício imediatamente anterior (grifei).
Ocorre que não foi ventilada na instância ordinária, nem mesmo foi
objeto de alegação do município em sua exordial, haver descumprimento desses
prazos pelos Estados e Distrito Federal – referentes à divulgação dos dados de
arrecadação – a justificar a extemporaneidade do acerto realizado pela União.
De toda forma, o certo é que o ajuste financeiro de contas referentes
em questão decorre de previsão legal, não sendo imprescindível a instauração
178
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
de processo administrativo, o que afasta as alegações formuladas pelo Ente
Municipal, no sentido de se garantir eventual contraditório e ampla defesa.
Todavia, apesar de o prazo estabelecido no art. 6º, § 2º, da Lei n.
11.494/2007 não ser peremptório, isso não quer dizer que seja indefinido. Assim,
atendendo aos ditames da segurança jurídica, para evitar que o erário federal
faça ajustes ad eternum, tenho que deve ser aplicada à União, por analogia, o
prazo previsto no art. 54 da Lei n. 9.784/1999, o qual estipula prazo decadencial
de 5 (cinco) anos para rever os seus atos.
Essa interpretação não tem o condão de esvaziar o conteúdo da lei em
referência, mas o termo previsto (1º quadrimestre do exercício subsequente)
deve ser compreendido como “prazo mínimo” para que a União proceda esse
acerto, notadamente quando implicar no estorno de valor já depositado, a fim de
evitar o efeito surpresa nos cofres municipais.
É de relevo mencionar que outros tribunais adotam essa mesma
interpretação legal. Cito precedentes:
Constitucional, Financeiro e Processual Civil. FUNDEB (EC n. 53/2006). Portaria
MEC n. 1.462/2008 (Lei n. 11.494/2007). Litisconsórcio necessário com o FNDE:
inexistência. Competência do Ministro da Educação para a edição do ato.
1 - O FNDE não tem pertinência subjetiva passiva necessária em ações em que
se busca o estorno de valores deduzidos por ato do Ministro da Educação, pois
agente vinculado à União, a qual deve ser a única ré do processo, notadamente
porque a ela compete efetuar as complementações às cotas do FUNDEB.
2 - Inexiste a alegada incompetência do Ministro da Educação para editar a
portaria impugnada, pois compete a sua “pasta”, como órgão superior do Poder
Executivo Federal, efetuar os ajustes no FUNDEB, monitorar a aplicação dos
recursos e divulgar orientações sobre a sua operalização (art. 6º, § 2º, e art. 30
da Lei n. 11.494/2007), não se podendo olvidar, ainda, de sua competência de
expedir instruções para execução das leis correlatas a suas atribuições (art. 87 da
CF/1988).
3 - A EC n. 53, de 19 de dezembro de 2006, regulamentada pela Lei n.
11.494/2007, instituiu, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, um Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação - FUNDEB.
4 - Segundo a Lei n. 11.494/2007, os recursos do FUNDEB são compostos de
percentuais da arrecadação dos impostos estaduais (art. 3º), devendo a União
complementá-los sempre que o valor médio ponderado por aluno não alcançar o
mínimo definido nacionalmente (art. 4º).
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
5 - A Portaria n. 1.462, de 1º de dezembro de 2008, do Ministro de Estado
da Educação, foi editada com o objetivo de divulgar a o demonstrativo da
distribuição dos recursos do FUNDEB no ano de 2007 e os ajustes decorrentes
da diferença entre os valores estimado se as receitas efetivas do fundo. A União
deduziu parcelas das cotas dos municípios com fundamento no § 2º do art. 1º da
portaria.
6 - Os ajustes promovidos pela portaria fundaram-se em autorização [“rectius”:
dever/obrigação] de a União recuperar os valores por ela repassados a maior
quando das complementações ao FUNDEF e são presumidamente corretos.
7 - O ajuste na distribuição da complementação da União está previsto em lei
e o espaço temporal previsto no art. 6º, parágrafo 2º, da Lei n. 11.494/2007 (1º
quadrimestre do exercício imediatamente subseqüente) representa o lapso mínimo
em que deve ser realizada a compensação, inexistindo o alegado prazo “decadencial”
para a promoção dos ajustes. Nesse sentido: AI n. 2009.01.00.017178-6-MA, Rel. Juiz
Federal Osmane Antônio dos Santos (Conv.), T8-TRF1, DJe 4.9.2009.
8 - A verba honorária fixada na sentença em R$ 1.000,00 não se mostra
excessiva, pois representa somente 0,69% do valor das deduções que o autor
pretendia ver estornadas.
9 - Apelação não provida.
10 - Peças liberadas pelo Relator, em Brasília, 22 de janeiro de 2013, para
publicação do acórdão.
(Tribunal Regional da 1ª Região. Processo: AC n. 0020472-90.2010.4.01.3400DF, Relator: Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, Sétima Turma,
e-DJF1. p. 417, 1º.2.2013, grifei)
Constitucional e Administrativo. Município. FUNDEB. Portaria n. 1.462/2008,
editada pelo Ministério da Educação. Estorno. Lei n. 11.494/2007. Ajustes de
débitos. Prazo quadrimestral inobservado. Presunção de legalidade dos atos
administrativos. Possibilidade de desconto ulterior. Princípios da razoabilidade e
da vedação ao enriquecimento ilícito. Honorários. Manutenção.
1. Trata-se de apelações cíveis interpostas tanto pelo Município de Exu-PE
quanto pela União, contra sentença prolatada pelo douto Juízo da 9ª Vara Federal
da SJ-PE, que julgou improcedente o pedido que visava à declaração da nulidade
da Portaria n. 1.462, de 1º.12.2008, do Ministério da Educação do Brasil, e o
conseqüente ressarcimento da quantia deduzida da cota-parte da Edilidade do
FUNDEB, em face do referido texto normativo. Fixou honorários advocatícios
sucumbenciais no valor de R$ 700,00, com fulcro no art. 20, parágrafo 4º do CPC.
2. Da leitura do disposto nos artigos 4º, 5º, 6º e 15, da Lei n. 11.494/2007, infere-se
claramente que a União detém a prerrogativa de realizar o ajuste da complementação
a seu cargo efetivada, para mais ou para menos, em função da diferença entre a
receita utilizada para o cálculo e a receita realizada no exercício de referência, sendo
certo que dito ajuste haverá de ser procedido no primeiro quadrimestre do exercício
imediatamente subseqüente, é dizer, entre os meses de janeiro e abril.
180
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
3. Ao fixar um período determinado para o exercício daquele direito, de natureza
meramente programática, a lei não instituiu um prazo decadencial em prejuízo da
União, dado que ali não existe a previsão de qualquer penalidade na hipótese de sua
inobservância. Aliás, a Lei n. 11.494 foi promulgada com o propósito de resguardar
direitos da União, não restringi-los.
4. Ainda que os descontos tenham sido realizados intempestivamente, tem-se que
tal fato, só por si, não é suficiente para o reconhecimento do alegado direito invocado
pelo Município, uma vez que o ente, em questão, era sabedor que os valores recebidos
a maior seriam passíveis de estorno e, portanto, esperava que isso ocorresse.
5. Desse modo, não há que se falar em ilegalidade da Portaria n. 1.462, a
qual está em conformidade com a lei do FUNDEB (Lei n. 11.494), consoante
vem entendendo a jurisprudência deste TRF, do que são exemplos os seguintes
precedentes: APELREEX n. 200980000037676, Rel. Des. Federal Francisco Barros
Dias, DJU 16.6.2011 e AC n. 502.579-AL, Rel. Des. Federal Francisco Wildo, Julgado
em 21 de setembro de 2010.
6. Honorários mantidos no valor de R$ 700,00.
7. Apelações a que se nega provimento.
(Tribunal Regional da 5ª Região. Processo: 00034095120114058300, AC n.
557.755-PE, Relatora: Desembargadora Federal Niliane Meira Lima (convocada),
Primeira Turma, julgamento: 6.6.2013, publicação: DJe 13.6.2013 - p. 189, grifei)
Assim, diversamente da conclusão adotada pelo Tribunal a quo, entendo
que o acerto realizado pela União, ainda que transcorrido 8 (oito) meses após o
termo previsto no art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, não gera automaticamente
ao município o direito de reter os respectivos valores, sob pena de evidente
enriquecimento ilícito.
Com essas considerações, dou provimento ao recurso da União, invertendo os
ônus sucumbenciais, nos moldes fixados na sentença (fls. 328-332).
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.372.512-PR (2013/0064955-0)
Relator: Ministro Mauro Campbell Marques
Recorrente: Município de Toledo
Advogados: Assis Corrêa
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Wilma Moreira da Cruz
Gilson Goulart Júnior e outro(s)
Recorrido: Unibanco União de Bancos Brasileiros S/A
Advogado: Adilson de Castro Junior
Advogados: Daniella Letícia Broering e outro(s)
Ivy Manfredini Barbosa
EMENTA
Processual Civil. Recurso especial. Tributário. ISS. Tributo
sujeito a lançamento por homologação. Não ocorrência de pagamento
antecipado. Aplicação do art. 173, I, do CTN. Alíquota máxima de
5% prevista na LC n. 100/1999. Limitação que se aplica ao serviço de
exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários.
1. A orientação da Primeira Seção desta Corte firmou-se no
sentido de que, em regra, o prazo para se efetuar o lançamento é
o previsto no art. 173, I, do CTN, ou seja, cinco anos contados do
primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento
poderia ter sido efetuado. Contudo, tratando-se de tributo sujeito
a lançamento por homologação, cujo pagamento ocorreu de modo
antecipado, o prazo de que dispõe o Fisco para constituir o crédito
tributário é de cinco anos, contados a partir do fato gerador. No
caso concreto, não havendo pagamento antecipado, aplica-se a regra
prevista no art. 173, I, do CTN (EREsp n. 413.265-SC, 1ª Seção, Rel.
Min. Denise Arruda, DJ de 30.10.2006).
2. A Lei Complementar n. 100/1999 alterou o Decreto-Lei n.
406/1968 e a Lei Complementar n. 56/1987, acrescentando serviço
sujeito ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101),
qual seja, “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários,
envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos
para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração,
assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão
ou de permissão ou em normas oficiais”. No que concerne ao serviço
mencionado, a referida Lei Complementar uniformizou a cobrança
do ISS em todo território nacional, estipulando para tal serviço – e tão
somente para ele – uma alíquota máxima de 5%. Essa alíquota máxima
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Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim,
apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999.
Nesse sentido: REsp n. 1.182.860-ES, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, DJe 23.6.2010.
3. No caso dos autos, em se tratando de serviços bancários
cobrados com base no Decreto-Lei n. 406/1968 (regime anterior à
vigência da LC n. 116/2003), não é aplicável a limitação prevista no
art. 4º da LC n. 100/1999.
4. A reforçar essa tese, há que se destacar que, apenas com o
advento da EC n. 37/2002 - que, entre outras disposições, alterou o
art. 156, § 3º, I, da CF/1988 - foi estabelecida a previsão de fixação
das alíquotas máximas e mínimas do ISS através de lei complementar
(federal), em relação aos serviços sujeitos à incidência desse imposto,
o que se efetivou apenas com a vigência da LC n. 116/2003 (que
regulamentou o preceito constitucional referido). No mesmo sentido,
em sede doutrinária, destaca-se o entendimento de Roque Antônio
Carrazza.
5. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte
resultado de julgamento: “A Turma, por unanimidade, deu parcial provimento
ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).”
Os Srs. Ministros Castro Meira, Humberto Martins e Herman Benjamin
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques.
Brasília (DF), 10 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator
DJe 17.9.2013
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
183
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de recurso especial
interposto pelo Município de Toledo em face de acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado:
Tributário. Apelação cível. Embargos a execução fiscal. ISS. Serviços bancários.
Incidência de alíquota no percentual de 5% para os meses de maio de 2002 a
julho de 2003 nos termos da LC n. 100/1999. Legislação que se aplica ao imposto
em geral e não apenas para determinado serviço. Recurso desprovido.
Em relação aos meses de maio de 2002 a julho de 2003 é de se aplicar a
alíquota no importe de 5%, conforme previsão trazida pela LC n. 100199, que se
aplica ao caso já que a mesma se refere ao ISS e não a determinado serviço.
Houve a oposição de aclaratórios, os quais foram rejeitados pelo Tribunal
de origem.
No recurso especial, manifestado com fulcro nas alíneas a e c do permissivo
constitucional, sustenta o recorrente que “a interpretação dada pelo acórdão
recorrido afronta diretamente o conteúdo do o entendimento exposto no acórdão
recorrido afronta diretamente o parágrafo único do art. 173 do CTN, que disciplina
a matéria”.
Aduz, ainda, que “o acórdão posicionou-se no sentido de que a limitação de
alíquota prevista na LC n. 100/1999 se aplica ao ISS e não a determinado serviço.
Todavia, este E. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em sentido contrário,
definindo que a alíquota máxima não foi estendida aos demais serviços constantes da
lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999”.
Contrarrazões às fls. 729-745 (e-STJ).
Juízo positivo de admissibilidade às fls. 747-750 (e-STJ).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): Merece parcial
acolhida a pretensão recursal.
De início, verifica-se que o entendimento adotado pelo Tribunal de origem
está em consonância com a orientação da Primeira Seção desta Corte que se
firmou no sentido de que, em regra, o prazo para se efetuar o lançamento é o
184
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
previsto no art. 173, I, do CTN, ou seja, cinco anos contados do primeiro dia
do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.
Contudo, tratando-se de tributo sujeito a lançamento por homologação, cujo
pagamento ocorreu de modo antecipado, o prazo de que dispõe o Fisco para
constituir o crédito tributário é de cinco anos, contados a partir do fato gerador.
No caso concreto, não havendo pagamento antecipado, aplica-se a regra prevista
no art. 173, I, do CTN. Nesse sentido:
Tributário. Embargos de divergência. Embargos à execução fiscal. Extinção
do processo de execução. Decadência. Tributo sujeito a lançamento por
homologação declarado e não-pago. Correta aplicação do art. 173, I, do CTN.
Precedentes. Recurso desprovido.
1. Esta Corte tem-se pronunciado no sentido de que o prazo decadencial
para constituição do crédito tributário pode ser estabelecido da seguinte
maneira: (a) em regra, segue-se o disposto no art. 173, I, do CTN, ou seja, o prazo
é de cinco anos contados “do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que
o lançamento poderia ter sido efetuado”; (b) nos tributos sujeitos a lançamento
por homologação cujo pagamento ocorreu antecipadamente, o prazo é de cinco
anos contados do fato gerador, nos termos do art. 150, § 4º, do CTN.
2. No caso dos autos, não houve antecipação do pagamento pela contribuinte,
razão pela qual se aplica a orientação no sentido de que, em se tratando de tributo
sujeito a lançamento por homologação cujo pagamento não foi antecipado pelo
devedor, incide a regra do art. 173, I, do CTN.
3. Desse modo, conforme bem salientado no acórdão proferido pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, mantido pelo aresto embargado, “declarado o
débito e não pago, em dezembro/1991, o Fisco tinha cinco anos, contados a partir de
1º.1.1992 para constituir o crédito; não o fazendo, configurada está a decadência”.
4. Embargos de divergência desprovidos.
(EREsp n. 413.265-SC, 1ª Seção, Rel. Min. Denise Arruda, DJ de 30.10.2006)
Assevera mais o recorrente que o aresto recorrido diverge da orientação
desta Corte Superior sobre a matéria. Sustenta que “o acórdão posicionou-se
no sentido de que a limitação de alíquota prevista na LC n. 100/1999 se aplica ao
ISS e não a determinado serviço. Todavia, este E. Superior Tribunal de Justiça já se
manifestou em sentido contrário, definindo que a alíquota máxima não foi estendida
aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei
Complementar n. 100/1999”.
No ponto, assiste razão ao recorrente.
Dispõe a Lei Complementar n. 100/1999:
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
185
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 3º A Lista de serviços anexa ao Decreto-Lei n. 406, de 31 de dezembro de
1968, com a redação dada pela Lei Complementar n. 56, de 15 de dezembro de
1987, passa a vigorar acrescida do seguinte item:
101 - exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários,
envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos
para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração,
assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de
permissão ou em normas oficiais.
Art. 4º A alíquota máxima de incidência do imposto de que trata esta Lei
Complementar é fixada em cinco por cento. (grifo nosso)
A Lei Complementar n. 100/1999 alterou o Decreto-Lei n. 406/1968
e a Lei Complementar n. 56/1987, acrescentando serviço sujeito ao Imposto
sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101), qual seja, “exploração de
rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de
conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança
de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em
contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”.
No que concerne ao serviço mencionado, a referida Lei Complementar
uniformizou a cobrança do ISS em todo território nacional, estipulando para tal
serviço – e tão somente para ele – uma alíquota máxima de 5%. Essa alíquota
máxima não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim,
apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999.
A corroborar esse entendimento, destaca-se:
Processual Civil. Tributário. Ausência de violação ao art. 535 do CPC. Súmula n.
284-STF. ISS. Alíquota máxima de 5%. Exploração de rodovia mediante cobrança
de preço dos usuários. Art. 4º da Lei Complementar n. 100/1999. Lei Municipal n.
2.461/2001. Confronto entre lei local e lei federal. Análise de direito local por esta
Corte Superior. Impossibilidade. Súmula n. 280-STF. Ausência de violação ao art.
111, inciso I, do CTN.
1. Se o recorrente não aponta o relevante vício capaz de ensejar a nulidade
do acórdão, restringindo-se à afirmação genérica no sentido de que não houve
esclarecimento das omissões apontadas nos embargos declaratórios, há
incidência da Súmula n. 284 do STF.
2. A Lei Complementar n. 100/1999, - que alterou o Decreto-Lei no 406/1968
e a Lei Complementar no 56/1987, acrescentando serviço sujeito ao Imposto
sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101), qual seja, “exploração de
rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de
186
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de
capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos
usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão
ou em normas oficiais”-, uniformizou a cobrança do ISS em todo território
nacional, estipulando para o referido serviço – e tão somente para ele – uma
alíquota máxima de 5%, ou seja, não estendeu tal alíquota máxima aos demais
serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei
Complementar n. 100/1999. Dessa forma, tal alíquota máxima não é aplicada
ao serviço de motel prestado pelo recorrente.
3. Não há que se falar em violação ao art. 111, inciso I, do CTN, uma vez que
a Lei Complementar n. 100/1999 não dispôs acerca da exclusão ou suspensão
do crédito tributário, apenas alterou o Decreto-Lei n. 406/1968 para acrescentar
um serviço sujeito ao ISS e fixar sua alíquota máxima em 5%, percentual esse não
aplicável aos demais serviços previstos na lista do ISS.
4. A pretensão da parte recorrente é confrontar a Lei Municipal n. 2.461/2001,
que estabeleceu a alíquota do ISS em 12% no Município de Serra-ES, com o art.
4º da Lei Complementar n. 100/1999, que estabeleceu alíquota máxima de 5% ao
serviço de exploração de rodovia mediante preço dos usuários.
5. Mesmo que assim não fosse, confrontar a Lei Municipal n. 2.461/2001
(Código Tributário do Município de Serra) com o art. 4º da Lei Complementar
n. 100/1999, como pretende o recorrente, não é possível nesta Corte Superior,
tendo em vista ser incabível rediscussão de matéria decidida com base em direito
local, sendo devida a aplicação, por analogia, do Enunciado n. 280 da Súmula do
Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Por ofensa a direito local, não cabe recurso
extraordinário”. Precedentes: AgRg no REsp n. 745.269-MA, Rel. Min. Humberto
Martins, DJ 19.9.2008; REsp n. 782.394, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 2.8.2007.
Ademais, a Emenda Constitucional n. 45/2004 modificou a alínea b do art. 105, III,
para atribuir ao STJ apenas os casos em que se julgar válido ato de governo local
contestado em face de lei federal, restando a competência acerca do confronto
entre lei local e lei federal conferida ao Supremo Tribunal Federal (art. 102, III, d,
da CF/1988).
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
(REsp n. 1.182.860-ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe
23.6.2010 - grifou-se)
No caso dos autos, em se tratando de serviços bancários cobrados com base
no Decreto-Lei n. 406/1968 (regime anterior à vigência da LC n. 116/2003),
não é aplicável a limitação prevista no art. 4º da LC n. 100/1999.
A reforçar essa tese, há que se destacar que, apenas com o advento da EC
n. 37/2002 - que, entre outras disposições, alterou o art. 156, § 3º, I, da CF/1988
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
- foi estabelecida a previsão de fixação das alíquotas máximas e mínimas do
ISS através de lei complementar (federal), em relação aos serviços sujeitos à
incidência desse imposto, o que se efetivou apenas com a vigência da LC n.
116/2003 (que regulamentou o preceito constitucional referido).
Sobre a matéria, invoco, ainda, a lição do renomado tributarista Roque
Antônio Carrazza:
O art. 156, § 3º, I, da CF, com a redação que lhe foi dada pela Emenda
Constitucional n. 37/2002, atribui à lei complementar competência para fixar as
alíquotas máximas e mínimas do imposto sobre serviços de qualquer natureza
(ISS).
(...)
De qualquer modo, enquanto tal lei complementar não foi editada, os
Municípios eram livres para, atendidos seus peculiares interesses, estabelecer
as alíquotas do ISS que bem lhes aprouvessem. Só não poderiam, por óbvio,
imprimir a tal imposto feições confiscatórias, para que não houvesse infringência
ao art. 150, IV, da CF.
(Curso de Direito Constitucional Tributário. 25ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009, p. 988-999).
Quanto aos ônus sucumbenciais, mantenho o valor fixado no acórdão de
fls. 597-628 (e-STJ), apenas redistribuindo-os, a fim de que o recorrido seja
condenado em 60% do valor devido e o recorrente em 40% sobre o montante
das custas processuais e dos honorários advocatícios.
Do exposto, voto por dar parcial provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.382.954-PR (2013/0120920-0)
Relator: Ministro Mauro Campbell Marques
Recorrente: Banco Volkswagen S/A
Advogado: Sílvio Osmar Martins Júnior e outro(s)
Recorrido: Fazenda Nacional
Advogado: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
188
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
EMENTA
Recurso especial. Processual Civil. Tributário. Aduaneiro. Pena
de perdimento de veículo objeto de alienação fiduciária. Possibilidade.
Convenção particular não oponível à Fazenda Pública. Aplicação
do art. 123, do CTN. Princípios da eticidade e da função social do
contrato. Arts. 421 e 2.035, do CC/2002. Jurisprudência do extinto
Tribunal Federal de Recursos. Compatibilidade com a Súmula n. 138TFR.
1. É admitida a aplicação da pena de perdimento de veículo objeto
de alienação fiduciária. Precedentes: REsp n. 1.268.210-PR, Primeira
Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21.2.2013; REsp
n. 1.153.767-PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado
em 17.8.2010; extinto TFR, ACR n. 7.962-SP, Primeira Turma, Rel.
Min. Costa Leite, julgado em 26.4.1988.
2. Tal ocorre porque o contrato de alienação fiduciária não é
oponível ao Fisco, na forma do que preceitua o art. 123, do Código
Tributário Nacional: “Salvo disposições de lei em contrário, as convenções
particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não
podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do
sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.
3. Desse modo, perante o Fisco e para a aplicação da pena de
perdimento, o contrato de alienação fiduciária não produz o efeito de
retirar a propriedade do devedor fiduciante, subordinando o bem à
perda como se dele fosse, sem anular o contrato de alienação fiduciária
em garantia efetuado entre credor e devedor que haverão de discutir
os efeitos dessa perda na esfera civil.
4. Acaso fosse entregue o bem para a instituição financeira,
dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se
livraria tanto da pena de perda quanto da dívida perante a instituição
financeira, pois esta seria paga com o produto da alienação do bem, e
o fiduciante infrator ainda ficaria com o saldo do produto da venda em
flagrante confronto com os Princípios de Eticidade e Função Social
dos Contratos (art. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC/2002), além
de retirar a efetividade da legislação tributária.
5. Revisão de entendimento pessoal, restando superados os
seguintes precedentes que entendiam de forma contrária: AgRg no
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
189
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REsp n. 1.313.331-PR, Segunda Tuma, Rel. Min. Castro Meira,
julgado em 11 de junho de 2013; AgRg no REsp n. 952.222-RS,
Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em
1º.9.2009, DJe 16.9.2009.
6. Posição compatível com o enunciado da Súmula n. 138, do
extinto TFR (“A pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando
ou descaminho somente é aplicada se demonstrada a responsabilidade do
proprietário na prática do delito”) porque a súmula opera em situação
outra onde o direito de propriedade invocado produz efeitos contra a
Fazenda Pública, diferente da situação em discussão.
7. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte
resultado de julgamento: “Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista da
Sra. Ministra Eliana Calmon, acompanhando o Sr. Ministro Mauro Campbell
Marques, a Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos
do voto do Sr. Ministro-Relator.”
A Sra. Ministra Eliana Calmon (voto-vista) e o Sr. Ministro Humberto
Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Não participou do julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes, nos termos do
Art. 162, § 2º, do RISTJ.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Herman Benjamin.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques.
Brasília (DF), 3 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator
DJe 8.11.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de recurso especial
interposto com fulcro no permissivo do art. 105, III, a e c, da Constituição
190
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Federal de 1988, contra acórdão que ao reconhecer a aplicação da pena de
perdimento a veículo sob alienação fiduciária restou assim ementado (e-STJ fls.
324-329):
Tributário. Veículo utilizado como instrumento de ilícito. Contrabando/
descaminho. Aplicação da pena de perdimento. Contrato de alienação fiduciária.
Possibilidade.
O contrato de alienação fiduciária não impede, por si só, a aplicação da pena
de perdimento devida a veículo transportador de mercadoria contrabandeada,
haja vista a primazia do interesse público sobre o particular. Precedentes desta
Corte.
Alega a recorrente que houve violação ao art. 513, V e § 2º, e ao art. 688,
do Regulamento Aduaneiro (Decreto n. 6.759/2009). Afirma que o credor
fiduciário é terceiro de boa-fé que não teve participação na infração cometida
pelo agente e que o direito de propriedade do credor fiduciário deve se sobrepor
aos interesses econômicos do fisco. Procura demonstrar o dissídio (e-STJ fls.
357-384).
Contrarrazões nas e-STJ fls. 467-471.
Recurso regularmente admitido na origem (e-STJ fls. 477).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): Devidamente
prequestionados, ainda que implicitamente, os dispositivos legais questionados,
conheço do recurso especial. Prejudicado o exame pela alínea c.
Quanto ao mérito, observo que o tema não é pacífico neste STJ. Por um
lado, há julgados exclusivamente da Segunda Turma deste Superior Tribunal de
Justiça no sentido de que a pena de perdimento de veículo não pode alcançar
aqueles que são objeto de alienação fiduciária. Esta jurisprudência parte da
premissa de que para haver a perda é necessário provar que o credor fiduciário
proprietário (normalmente instituição financeira) agiu em concurso, ou com
dolo ou culpa na infração cometida pelo devedor fiduciante (normalmente
pessoa física), ou dela se beneficiou. Invoca-se, nessa linha jurisprudencial, a
aplicação da Súmula n. 138, do extinto Tribunal Federal de Recursos: “A pena
de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
191
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
se demonstrada a responsabilidade do proprietário na prática do delito”. Seguem
precedentes:
Tributário e Aduaneiro. Apreensão de veículo alienado fiduciariamente.
Transporte de mercadorias internadas irregularmente. Perdimento.
1. Somente é cabível a aplicação de pena de perdimento de veículo quando
houver clara demonstração da responsabilidade do proprietário na prática do
ilícito. Precedentes.
2. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 1.313.331-PR, Segunda
Tuma, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 11 de junho de 2013).
Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental. Pena de perdimento de
veículo. Súmula n. 138 do extinto TFR. Argumento não combatido nas razões
do recurso especial. Incidência da Súmula n. 283 do STF. Veículo objeto de
contrato de alienação fiduciária. Necessidade de demonstração de participação
do proprietário do veículo na prática do ato ilícito. Precedente. Revolvimento do
contexto fático-probatório dos autos. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ.
1. Da análise dos autos, verifica-se que em momento algum a Corte a quo
exclui a possibilidade de aplicação da legislação aduaneira, mormente quanto à
pena de perdimento de veículo com base no art. 617, V, do RA, quando o bem
for objeto de contrato de alienação fiduciária, antes, o entendimento adotado
foi no sentido de que, nesses casos, deve ser demonstrada a participação do
proprietário na prática ilícita que motivou a aplicação da referida pena, nos
termos da Súmula n. 138 do extinto TFR.
2. [...]
3. Por outro lado, cumpre registrar que a pena de perdimento de veículo
utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada,
em procedimento regular, a responsabilidade do proprietário na prática do ilícito,
consoante previsão expressa no § 2º do art. 617 do RA. Precedentes.
4. O Tribunal a quo, para chegar a conclusão de que não houve
responsabilidade do proprietário do veículo na prática do ato ilícito, pautou-se no
conjunto fático-probatório dos autos. Portanto, não é possível a esta Corte adotar
entendimento diverso do aresto hostilizado, haja vista que tal procedimento
esbarra na orientação consagrada na Súmula n. 7 desta Corte.
5. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 952.222-RS, Segunda
Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 1º.9.2009, DJe
16.9.2009).
Por outro lado, na linha de julgado do extinto Tribunal Federal de
Recursos, há posicionamento da Primeira Turma e também da Segunda Turma,
no sentido de que a pena de perdimento pode ser aplicada a veículo objeto de
alienação fiduciária. Transcrevo:
192
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Administrativo. Recurso especial. Veículo objeto de contrato de leasing.
Transporte irregular. Descaminho. Perdimento de bem. Possibilidade.
Proporcionalidade da sanção. Habitualidade.
1. A pena de perdimento de veículo por transporte de mercadorias objeto de
descaminho ou contrabando pode atingir os veículos sujeitos a contrato de
arrendamento mercantil que possuam cláusula de aquisição ao seu término,
pois ainda que, nessas hipóteses, o veículo seja de propriedade da instituição
bancária arrendadora, é o arrendatário o possuidor direto do bem e, portanto, o
responsável por sua guarda, conservação e utilização regular.
2. Como já preconizado por ocasião do julgamento do REsp n. 1.153.767-PR,
Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26.8.2010, “admitir que veículo
objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro
salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais”, com veículos sujeitos a tal regime
contratual.
3. “A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a reiteração da conduta
ilícita dá ensejo à pena de perdimento, ainda que não haja proporcionalidade
entre o valor das mercadorias apreendidas e o do veículo” (AgRg no REsp n.
1.302.615-GO, Rel. Ministro Teori Zavascki, Primeira Turma, DJe 30.3.2012).
4. Recurso especial não provido (REsp n. 1.268.210-PR, Primeira Turma, Rel.
Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21.2.2013).
Administrativo. Pena de perdimento de veículo. Transporte irregular de
mercadorias. Possibilidade. Veículo adquirido em contrato de leasing.
1. Não se aplica a Súmula n. 7-STJ, quando a matéria a ser decidida é
exclusivamente de direito.
2. A pena de perdimento de veículo por transporte irregular de mercadoria
pode atingir os veículos adquiridos em contrato de leasing, quando há cláusula de
aquisição ao final do contrato.
3. A pena de perdimento não altera a obrigação do arrendatário do veículo, que
continua vinculado ao contrato.
4. Admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de
perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais.
5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido (REsp n.
1.153.767-PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 17.8.2010).
Processo Penal. Veiculo apreendido. Deposito.
I- O contrato de alienação fiduciária opera efeito apenas entre o credor
e o devedor, além do que o veiculo apreendido, com pena de perdimento
decretada na esfera administrativa, foi especialmente adaptado para o transporte
de mercadorias descaminhadas, não sendo o caso, pois, de nomear-se o requerente
fiel depositário do mesmo.
II- Apelação provida (extinto TFR, ACR n. 7.962-SP, Primeira Turma, Rel. Min.
Costa Leite, julgado em 26.4.1988).
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
193
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Esta segunda posição parte do pressuposto firmado pelo extinto TFR de
que o contrato de alienação fiduciária não é oponível ao Fisco, na forma do que
preceitua o art. 123, do Código Tributário Nacional, a saber:
Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares,
relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas
à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das
obrigações tributárias correspondentes.
Desse modo, perante o Fisco e para a aplicação da pena de perdimento, o
contrato de alienação fiduciária não produz o efeito de retirar a propriedade do
devedor fiduciante, subordinando o bem à perda como se dele fosse, sem anular
o contrato de alienação fiduciária em garantia efetuado entre credor e devedor
que haverão de discutir os efeitos dessa perda na esfera civil.
Com efeito, depois de muito refletir sobre o tema, com a devida vênia,
revejo minha posição adotada no suso transcrito AgRg no REsp n. 952.222RS, de minha relatoria, para adotar o entendimento que historicamente já
vinha sendo construído pelo extinto TFR. Isto dada à grande proliferação
dos contratos de alienação fiduciária em garantia que se generalizaram em
casos que tais onde o infrator se escuda da pena de perda atrás de um contrato
firmado com instituição financeira que lhe garante, por lei, somente em caso
de inadimplemento, a venda do bem para o pagamento de sua dívida (art. 66,
§ 4º, da Lei n. 4.728/1965; art. 2º do Decreto-Lei n. 911/1969; art. 1.364, do
CC/2002). Transcrevo:
Lei n. 4.728/1965
Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio
resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da
tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto
e depositário com tôdas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de
acordo com a lei civil e penal. (Redação dada pelo Decreto n. 911, de 1º.10.1969)
(Revogado pela Lei n. 10.931, de 2004)
[...]
§ 4º No caso de inadimplemento da obrigação garantida, o proprietário
fiduciário pode vender a coisa a terceiros e aplicar preço da venda no pagamento
do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o
saldo porventura apurado, se houver. (Redação dada pelo Decreto n. 911, de
1º.10.1969)
[...]
194
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Decreto-Lei n. 911/1969
Art. 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais
garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá
vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação
prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição
expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no
pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o
saldo apurado, se houver.
Lei n. 10.406/2002 - CC/2002
Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial
ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu
crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor.
Nessa toada, acaso fosse entregue o bem para a instituição financeira,
dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se livraria das
duas coisas: da perda (pois o bem pertence à instituição financeira) e da dívida
perante a instituição financeira (pois seria paga com o produto da alienação do
bem). E mais, se sobejasse algum valor, o devedor fiduciante ainda ficaria com o
saldo!!!
À toda evidência, esse resultado é indesejável, não só sob o ponto de vista
de política fiscal e de prevenção geral e especial da infração tributária cometida,
como também do ponto de vista negocial, já que opera contra a Função Social
do Contrato (arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC/2002) e contra o
Princípio da Eticidade desejável nas relações civis. Transcrevo:
Lei n. 10.406/2002 - CC/2002
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato.
[...]
Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes
da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores,
referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste
Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas
partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos
de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a
função social da propriedade e dos contratos.
A solução, portanto, é aplicar a pena de perdimento de veículo em favor da
Fazenda Nacional e manter o direito do credor em reaver o seu crédito junto ao
RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013
195
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
devedor fiduciário, consoante o art. 123, do CTN. Tal caminho traz os benefícios
de manter a efetividade da legislação tributária e, simultaneamente, preservar
o direito de crédito da instituição financeira contra o devedor fiduciante.
Considero não haver compreensão melhor para preservar o interesse público.
Por fim, registro que o entendimento é perfeitamente compatível com
o Enunciado da Súmula n. 138, do extinto TFR (“A pena de perdimento de
veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada
a responsabilidade do proprietário na prática do delito”). Tal se dá porque a súmula
opera em situação outra onde o direito de propriedade invocado produz efeitos
contra a Fazenda Pública, diferente da situação em discussão.
Desse modo, entendo correta a posição firmada pelo Tribunal de Origem a
qual passo a acolher em meus julgados.
Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso especial. É como voto.
VOTO-VISTA
A Sra. Ministra Eliana Calmon: O presente recurso especial tem como
relator o Ministro Mauro Campbell Marques que em judicioso voto negou
provimento ao recurso do Banco Volkswagen S.A. para proclamar a possibilidade
de ser aplicada a pena de perdimento de veículo, quando usado em operação de
contrabando ou descaminho, mesmo que tenha sido adquirido na modalidade
de alienação fiduciária em garantia, considerando não ser possível oponível ao
fisco, nos termos do artigo 123 do CTN, convenção particular. Apoiou-se o
relator, para tanto, em inúmeros precedentes da Primeira e da Segunda Turmas.
Pedi vista dos autos em razão de uma das últimas considerações do relator
no final do seu voto quando afirma: “caso fosse entregue o bem para a instituição
financeira, dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se
livraria das duas coisas: da perda (pois o bem pertence à instituição financeira)
e da dívida perante a instituição financeira (pois seria paga com o produto da
alienação do bem), ficando o devedor fiduciante com o que sobejasse do valor
da dívida.
Verifico que a posição adotada pelo relator é firme na jurisprudência
reiterada desta Corte, razão pela qual acompanho o relator, negando provimento
ao recurso especial.
É o voto.
196
Terceira Turma
RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 31.942-SP (2012/0008871-4)
Relator: Ministro João Otávio de Noronha
Recorrente: D de S
Advogado: Marcio Bastiglia
Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo
EMENTA
Recurso em habeas corpus. Alimentos. Aceitação de herança
pelos credores. Renúncia translativa operada pelo executado. Art.
1.813 do CC. Iliquidez da dívida. Inexistência. Necessidade de
simples cálculos matemáticos. Inadimplência de débito alimentar
atual. Inadimplemento dos três últimos meses e dos vencidos após o
ajuizamento da execução. Súmula n. 309-STJ.
1. Os credores de prestações alimentícias podem aceitar a herança
deixada ao devedor de alimentos e à qual ele renunciou (art. 1.813 do
Código Civil).
2. A aceitação de herança pelos credores não importa em alteração
de rito da ação de execução, sendo cabível apenas que o valor recebido
seja subtraído do valor cobrado.
3. Não carece de liquidez a dívida de alimentos quantificável por
simples cálculos matemáticos.
4. É cabível o decreto de prisão civil em razão do inadimplemento
de dívida atual, assim consideradas as parcelas alimentares vencidas
nos três meses antecedentes ao ajuizamento da execução, bem como
aquelas que se vencerem no curso da lide. Súmula n. 309-STJ.
5. Recurso em habeas corpus desprovido. Ordem concedida de
ofício para que o decreto de prisão se adeque à Súmula n. 309-STJ.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por
unanimidade, negar provimento ao recurso em habeas corpus, concedendo de
ofício a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros
Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy
Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro João Otávio de Noronha, Relator
DJe 13.6.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se de recurso em habeas
corpus interposto por D de S contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo e assim ementado:
Execução de alimentos. Possibilidade de adoção do rito do art. 733 do Código
de Processo Civil. Abatimento do débito que não impede a prisão do devedor.
Ordem denegada (fl. 283).
Dessume-se dos autos que o recorrente foi condenado ao pagamento de
pensão alimentícia em favor de seus dois filhos, no valor total de 7,47 salários
mínimos. Em razão do inadimplemento, em 25.9.2002, foi ajuizada ação de
execução em desfavor do recorrente para a cobrança dos alimentos devidos
desde dezembro de 2001.
A prisão foi decretada em 10.12.2003 pela dívida referente a todo o
período executado (fl. 18).
No ano de 2006, o genitor do recorrente faleceu, deixando herança.
O recorrente renunciou ao seu quinhão em favor de outra herdeira, mas os
exequentes aceitaram herança na condição de credores do renunciante, na forma
do art. 1.813 do CC.
Neste recurso, a parte alega que houve alteração tácita de ritos, uma vez que
a execução iniciou-se pelo rito do art. 733 do CPC, com o pedido de prisão, mas
foi alterada para a modalidade do art. 732, do CPC, com a efetiva expropriação
de bens no inventário.
Afirma também a ausência de liquidez do débito, tendo em vista que o
valor dos bens excutidos não foi abatido da dívida.
200
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não provimento do
recurso:
- Recurso ordinário em habeas corpus objetivando a revogação do decreto
prisional.
- O pagamento parcial do débito não afasta a possibilidade de prisão civil
do devedor de alimentos. Apenas o pagamento integral da dívida alimentar
pode afastar a ordem de prisão decretada com base no art. 733, § 1º, do CPC.
Precedentes do STJ.
- Parecer, preliminarmente, pelo conhecimento do presente recurso ordinário
em habeas corpus e, no mérito, pelo seu não provimento (fl. 341).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): A pretensão não merece
prosperar.
De início, destaca-se que a forma de execução adotada pelos exequentes é
a do art. 733 do CPC, pela qual o devedor é chamado para efetuar o pagamento,
provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo, cabendo o decreto
de prisão caso o devedor não pague nem se escuse.
O recorrente assevera que os credores teriam expropriado bens seus.
Como a expropriação é incompatível com o pedido de prisão civil, o rito teria
se alterado para a forma da execução por quantia certa contra devedor solvente
(art. 732 do CPC).
Em verdade, não houve expropriação de bens do recorrente, mas aceitação
de herança, nos moldes tratados pelo art. 1.813 do CC, que coíbe a renúncia
lesiva aos credores:
Art. 1.813. Quando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando à
herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante.
O dispositivo legal mencionado protege aquelas situações em que a
renúncia do direito hereditário conflite com direitos de terceiros, ou seja, tenha a
aptidão de fraudar credores. Nessa situação, os credores podem aceitar a herança
em nome do renunciante até o limite dos seus créditos.
No caso dos autos, o genitor do recorrente faleceu, deixando herança,
mas este realizou renúncia translativa em favor de outra herdeira. Ao tomar
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
201
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
conhecimento do fato, os exeqüentes, na qualidade de credores, valeram-se da
prerrogativa legal e aceitaram a herança em nome do renunciante.
O ato de aceitação da herança deu-se nos autos da ação de inventário e foi
tomado tão somente para evitar a fraude que o recorrente tentou levar a efeito.
Em momento nenhum da execução houve ato dos exeqüentes que importassem
em transmudação do rito para aquele previsto no art. 732 do CPC.
A conseqüência da aceitação, aqui, é tão somente a subtração do valor
recebido daquele valor que vem sendo cobrado.
Também não prospera a alegação de ausência de liquidez do título em
razão do não abatimento do valor da herança do montante da dívida.
A liquidez é a possibilidade de quantificação do valor da dívida. No
caso dos autos, não há nenhuma dificuldade em se determinar o valor devido,
bastando, para tanto, que se proceda a simples cálculos matemáticos.
Por outro lado, observo que a ação foi ajuizada em 25.9.2002 para executar
as prestações vencidas desde dezembro de 2001. A prisão foi decretada por todo
o período cobrado, que representa 10 (dez) meses antes do ajuizamento da ação.
A Súmula n. 309-STJ dispõe que “o débito alimentar que autoriza a
prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao
ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.
A súmula mencionada preceitua que a prisão pode ser decretada pelo
inadimplemento das três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e
daquelas que se vencerem no curso do processo. Logo, a decisão que decreta a
prisão pelo inadimplemento de dez prestações contraria a determinação e deve
se adequar ao comando sumular.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso em habeas corpus e, de ofício,
concedo a ordem para que se adeque a execução ao enunciado da Súmula n. 309-STJ.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 594.404-DF (2003/0168857-8)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Condomínio Conjunto Nacional
202
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Advogado: Gilberto Ferraro e outro(s)
Recorrido: Ancar Gestão de Empreendimentos Ltda
Advogado: Arnaldo Versiani Leite Soares e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação de abstenção de uso. Nome empresarial.
Nome de domínio na internet. Registro. Legitimidade. Contestação.
Ausência de má-fé. Divergência jurisprudencial não demonstrada.
Ausência de similitude fática.
1. A anterioridade do registro no nome empresarial no órgão
competente não assegura, por si só, ao seu titular o direito de
exigir a abstenção de uso do nome de domínio na rede mundial de
computadores (internet) registrado por estabelecimento empresarial
que também ostenta direitos acerca do mesmo signo distintivo.
2. No Brasil, o registro de nomes de domínio na internet é regido
pelo princípio “First Come, First Served”, segundo o qual é concedido
o domínio ao primeiro requerente que satisfizer as exigências para o
registro.
3. A legitimidade do registro do nome do domínio obtido pelo
primeiro requerente pode ser contestada pelo titular de signo distintivo
similar ou idêntico anteriormente registrado - seja nome empresarial,
seja marca.
4. Tal pleito, contudo, não pode prescindir da demonstração
de má-fé, a ser aferida caso a caso, podendo, se configurada,
ensejar inclusive o cancelamento ou a transferência do domínio e a
responsabilidade por eventuais prejuízos.
5. No caso dos autos, não é possível identificar nenhuma
circunstância que constitua sequer indício de má-fé na utilização do
nome pelo primeiro requerente do domínio.
6. A demonstração do dissídio jurisprudencial pressupõe a
ocorrência de similitude fática entre o acórdão atacado e os paradigmas.
7. Recurso especial não provido.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
203
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
A Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi,
Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 11.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto pelo Condomínio Conjunto Nacional, com fundamento nas alíneas a e
c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
Noticiam os autos que, em 12.2.2001, o ora recorrente, Condomínio
Conjunto Nacional, situado em São Paulo, propôs ação contra Ancar - Gestão
de Empreendimentos Ltda., nova denominação de Âncora Planejamento e
Gerência de Empreendimentos Ltda., estabelecida em Brasília, objetivando
pronunciamento judicial que determinasse a abstenção pela ré do uso do signo
distintivo “Conjunto Nacional” em sítios da internet, especialmente como nome
de domínio.
O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido (e-STJ fls. 574580).
Os embargos de declaração opostos à sentença foram parcialmente
acolhidos para a correção de erro material (e-STJ fls. 585-588).
Irresignado, o autor interpôs recurso de apelação, não provido pelo Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios em acórdão assim ementado:
Processual Civil. Civil. Nome de domínio na internet. Registro. Atribuição da
FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por delegação
do Comitê Gestor Internet do Brasil. Primazia do direito do primeiro requerente.
Inexistência de prática de concorrência desleal. Sentença confirmada.
204
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
I - O registro de nome de domínio ou concessão de endereço IP na rede
internet é função atribuída à FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo, por delegação do Comitê Gestor Internet do Brasil, órgão a quem
incumbe coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços Internet no país,
consoante os termos da Portaria Interministerial MCT/MC n. 147/95.
II - Dessa forma, diante da especificidade da matéria que encontra fundamento
na Resolução n. 001, de 15.4.1998, do Comitê Gestor Internet do Brasil, à resolução
da lide é indiferente as disposições da legislação que cuida da propriedade
industrial e do registro público de empresas mercantis e atividades afins,
respectivamente, Leis n. 9.279/1996 e 8.934/1994.
III - Assim, é de se conferir proteção judicial a quem primeiramente registrou o
nome de domínio no referido órgão, que na hipótese foi a apelada.
IV - Sem comprovação a alegação de prática de ilícito penal, qual seja,
concorrência desleal, é de rigor a rejeição de tal pretensão.
V - Recurso improvido (e-STJ fls. 665-666).
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 680-691).
No recurso especial (e-STJ fls. 694-706), o recorrente aponta, além
de dissídio jurisprudencial, violação dos artigos 34 e 35, inciso V, da Lei n.
8.934/1995, 124, inciso V, da Lei n. 9.279/1996 e 8º da Convenção de Paris.
Sustenta, em síntese, que o registro no nome comercial “Condomínio
Conjunto Nacional” no órgão competente (13º Cartório de Registro de Imóveis
da Comarca da Capital do Estado de São Paulo) desde 1956 lhe assegura o
direito de utilização exclusiva do nome de domínio equivalente na internet.
Com as contrarrazões (e-STJ fls. 755-759), e admitido o recurso na origem
(e-STJ fls. 767-769), subiram os autos a esta colenda Corte.
O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do recurso
especial (e-STJ fls. 811-817).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): A irresignação não
merece prosperar.
Cinge-se a controvérsia a perquirir se a anterioridade do registro no nome
empresarial no órgão competente confere automaticamente ao seu titular o
direito de utilização exclusiva do nome de domínio equivalente na internet.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
205
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Relevante, para a compreensão do debate, a enumeração dos registros
envolvidos na causa, em ordem cronológica:
1) o autor teve o seu nome empresarial “Condomínio Conjunto Nacional”
registrado no cartório de registro de imóveis da comarca de São Paulo em
4.9.1956 (e-STJ fl. 586);
2) a ré requereu o depósito no Instituto Nacional da Propriedade Industrial
- INPI para o registro da marca “Conjunto Nacional Brasília” em 5.3.1997,
tendo sido concedido o registro em 20.7.1999 (e-STJ fl. 449);
3) a ré efetuou o registro do nome de domínio “www.conjuntonacional.
com.br” na internet em 11.11.1997 (e-STJ fls. 224 e 406) e
4) o autor efetuou o registro do nome de domínico “www.
condominioconjuntonacional.com.br” na internet em 16.4.1999 (e-STJ fl. 448).
Segundo a argumentação da inicial, o autor é “titular do nome empresarial
‘Condomínio Conjunto Nacional’ desde quando concluiu o empreendimento em
4.9.1956, conforme se extrai da Escritura Pública de Especificação, Divisão
e Convenção do mesmo, em 16.6.1969 - oportunidade em que o tabelião
reportava-se ao registro do plano geral do Condomínio em 4.9.1956 (13º Registro de imóveis da Capital do Estado de São Paulo - (...)” (e-STJ fl. 10).
Sob a ótica do autor, a precedência do registro no nome empresarial
lhe conferiria o direito de uso exclusivo sobre o signo distintivo “Conjunto
Nacional” no âmbito da internet.
Invoca, para tanto, a infringência dos seguintes dispositivos da Lei n.
8.934/1994 (que dispõe sobre o registro público de empresas mercantis e
atividades afins), da Lei n. 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial) e da
Convenção de Paris:
Lei n. 8.934/1994
Art. 34. O nome empresarial obedecerá aos princípios da veracidade e da
novidade
Art. 35. Não podem ser arquivados:
(...)
V - os atos de empresas mercantis com nome idêntico ou semelhante a outro
já existente;
Lei n. 9.279/1996
Art. 124. Não são registráveis como marca:
206
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
(...)
V - reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de
título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar
confusão ou associação com estes sinais distintivos;
Convenção de Paris
Art. 8º - O nome comercial será protegido em todos os países da União sem
obrigações de depósito ou de registro, quer faça ou não parte de uma marca de
fábrica ou de comércio.
Da simples leitura dos dispositivos apontados como violados no apelo
nobre nota-se que não fazem referência específica sobre a proteção do nome
empresarial em relação ao nome de domínio - matéria em debate nos presentes
autos -, o que por si só seria suficiente para ensejar o não conhecimento
do recurso especial por ausência de comando normativo suficiente para
fundamentar a tese defendida nas razões recursais.
A despeito disso, e considerando a razoabilidade da invocação da legislação
relativa à proteção marcária e ao nome empresarial, na ausência de dispositivos
legislativos infraconstitucionais específicos acerca dos nomes de domínio no
ordenamento jurídico, tenho que merece ser conhecido o mérito da insurgência
recursal que se passa a analisar.
O nome empresarial é a denominação que identifica o empresário no
exercício de suas atividades e, segundo o art. 1.166 do Código Civil, sua inscrição
no registro próprio assegura o uso exclusivo do nome nos limites do respectivo
Estado.
Já o nome de domínio é o conjunto de caracteres utilizado para facilitar
a localização de endereços eletrônicos na rede mundial de computadores
(internet). No âmbito empresarial, muitas vezes assume função semelhante
à do nome empresarial, qual seja, a de permitir a identificação da atividade
econômica desenvolvida por determinada sociedade empresária.
O registro de nomes de domínio no Brasil é feito pelo Comitê Gestor
da Internet - CGI e, à época do ajuizamento da presente ação, era regrado
pela Resolução n. 1/1998 que, em seu artigo 1º, dispõe que o direito ao nome
do domínio será conferido ao primeiro requerente que satisfizer, quando do
requerimento, as exigências para o registro do nome.
Trata-se do princípio “First Come, First Served”, segundo o qual
o registro é atribuído ao primeiro requerente que preencher os requisitos,
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
207
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
independentemente da análise mais aprofundada acerca da eventual colidência
com marcas ou nomes comerciais registrados anteriormente em outros órgãos
(Fonte: http://www.cgi.br/faq/problemas.htm).
A adoção de tal preceito não significa, contudo, que a legitimidade do
registro do nome do domínio obtido pelo primeiro requerente não possa ser
contestada pelo titular de signo distintivo similar ou idêntico anteriormente
registrado - seja nome empresarial, seja marca.
Tal pleito, contudo, não pode prescindir da demonstração de má-fé, a ser
aferida caso a caso, podendo, se configurada, ensejar inclusive o cancelamento
ou a transferência do domínio e a responsabilidade por eventuais prejuízos.
No caso dos autos, não é possível identificar nenhuma circunstância que
constitua sequer indício de má-fé na utilização do nome do domínio pelo
primeiro requerente - Conjunto Nacional Brasília.
Em primeiro lugar porque, segundo constatado pelas instâncias de
cognição plena, nenhuma das partes comprovou o registro específico do termo
isolado “Conjunto Nacional” em Junta Comercial, no INPI ou em qualquer
outro órgão de registro (e-STJ fl. 578).
Além disso, o domínio obtido pela ré (www.conjuntonacional.com.br)
identifica-se, ainda que parcialmente, com o signo do qual ela é titular no INPI
(“Conjunto Nacional Brasília”);
Ademais, não há sequer alegação de que o registro de domínio tenha
sido requerido com o objetivo de prejudicar a atividade comercial do autor ou
de desviar clientela a fim de auferir lucros indevidos. Até porque as atividades
empresariais do autor e da ré são desenvolvidas em unidades federativas distintas
(respectivamente São Paulo e Distrito Federal).
Outrossim, o registro do nome de domínio “www.conjuntonacional.com.
br” obtido pela ré não impediu que o autor obtivesse nome de domínio idêntico
ao seu nome empresarial (“www.condominioconjuntonacional.com.br”) (e-STJ
fl. 448), que permite, nos mais populares mecanismos de busca da internet, a
rápida localização do sítio pelos usuários, já na primeira página da pesquisa.
Tampouco foi identificada pelas instâncias de cognição plena situação que
pudesse criar confusão entre os estabelecimentos, o que poderia ensejar crime de
concorrência desleal.
Vale colacionar, no ponto, as considerações da sentença e do acórdão
recorrido que ora se reproduzem, respectivamente:
208
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
(...)
Alega o Autor que o uso de domínio idêntico ou semelhante com sua marca
“Condomínio Conjunto Nacional” causa confusão aos usuários da Internet que
procuram obter informações sobre o empreendimento paulista.
Todavia, tal alegação não merece acolhida vez que não há nos autos qualquer
comprovação da ocorrência de concorrência desleal. A utilização do referido nome
de domínio com o termo “Conjunto Nacional” não evidenciou em momento algum
a intenção de confundir ou desviar clientes da Autora para o empreendimento da
Ré. Ademais, a veiculação do termo conforme documentação acostada aos autos
sempre faz referência à cidade de Brasília impedindo a alegada confusão.
(...)
Pela documentação acostada aos autos às folhas 324-329, verifica-se que a
expressão de busca “conjunto nacional” na Internet faz espelhar ao usuário lista
de endereços de diversos sites que fazem referência a tais palavras. Note-se que ao
proceder tal busca o usuário encontra na listagem que apresenta os nomes de ambos
os empreendimentos referidos nos presentes autos, inclusive com referência à cidade
em que exercem suas atividades, restando evidente a distinção entre ambos.
Certo é que o fato de o domínio estar intimamente ligado ao nome empresarial
e ao título do estabelecimento comercial, seja esta virtual ou não, aquele indivíduo
que astuciosamente registra endereço eletrônico para confundir usuário ou
consumidor, registrando como núcleo marca ou título de estabelecimento
comercial de outrem, objetivando assim iludir ou induzir a erro o consumidor,
e também lesionar e obter vantagens pecuniárias das empresas titulares das
respectivas marcas e títulos, estará praticando o crime de concorrência desleal.
Todavia, este não é o caso dos presentes autos. Não há que se falar em
impossibilidade da ré em utilizar-se do domínio www.conjuntonacional.com.
br pois não registrou o domínio com o intuito fraudulento de vender ao Autor o
domínio registrado ou desviar em proveito próprio a clientela de outrem, apenas
procurou difundir suas atividades por essa nova via eletrônica e utilizando como
núcleo de domínio nome que já é conhecido em sua localidade. Não há confusão
entre os dois empreendimentos, pois sempre faz alusão à cidade em que se localiza,
Brasília, e evidencia suas características próprias. Desse modo, a parte autora não
pode pretender impedir a utilização do desígnio “conjunto nacional” num nome
de domínio da Internet ou fora dela, pois o registro do domínio foi efetuado pela
Ré antecipadamente e a utilização da expressão referida pelo Conjunto Nacional
Brasília se concilia com os bons costumes, pois trata-se de um empreendimento
que se situa no centro da capital federal como sempre registrado nos meios de
publicidade que veicula (e-STJ fls. 578-579).
(...)
Cumpre salientar que o site pelo qual a apelada se identificou na rede internet
guarda íntima relação com seu estabelecimento comercial que a individualiza no
trânsito comercial - sendo conhecido shopping em Brasília -, não havendo sinal
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
209
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de que tenha se apropriado indevidamente de um nome sem qualquer liame com
suas atividades ou fins, apenas com a finalidade de auferir ilicitamente benefício
econômico em detrimento alheio, ou promover confusão entre estabelecimentos
ou nome comercial com conseqüente desvio de clientela, fato que se comprovado
tipificaria o delito de concorrência desleal, nos moldes do art. 195 da Lei n.
9.279/1996 (e-STJ fl. 671).
Acrescente-se, por fim, que, nos termos dos artigos 541, parágrafo único,
do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do
Superior Tribunal de Justiça, inviável o conhecimento do recurso especial
pela alínea c do permissivo constitucional quando não demonstrada, como na
hipótese, a similitude fática entre as hipóteses confrontadas, inviabilizando a
análise da divergência de interpretação da lei federal invocada.
Assim, sob qualquer ângulo que se analise a matéria, o não provimento do
recurso desponta como única solução possível.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.198.168-RJ (2010/0112326-9)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Odmar Loesch Pereira - Espólio
Representado por: Leila Harbache Loesch Pereira - Inventariante
Advogado: Maria Helena de Carvalho Bulcão - Defensora Pública e
outros
Recorrido: Paulo Henrique Machado Pereira e outro
Advogado: José Roberto Branco de Oliveira e outro(s)
EMENTA
Processual Civil. Civil. Recurso especial. Sucessão. Doação.
Validade. Doação de pais a filhos. Inoficiosidade. Existência. Arts.:
134, 1.176, 1.576, 1.721 e 1.722 do CC-1916.
1. Recurso especial, concluso ao Gabinete em 20.7.2010, no qual
se discute a validade de doação tida como inoficiosa, efetuada pelo de
210
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
cujus aos filhos do primeiro casamento. Inventário de O.L.P., aberto
em 1999.
2. A existência de sentença homologatória de acordo, em
separação judicial, pela qual o antigo casal doa imóvel aos filhos, tem
idêntica eficácia da escritura pública. Precedentes.
3. A caracterização de doação inoficiosa é vício que, se não
invalida o negócio jurídico originário – doação –, impõe ao donatárioherdeiro, obrigação protraída no tempo: de, à época do óbito do
doador, trazer o patrimônio à colação, para igualar as legítimas, caso
não seja herdeiro necessário único, no grau em que figura.
4. A busca da invalidade da doação, ante o preterimento dos
herdeiros nascidos do segundo relacionamento do de cujus, somente é
cabível se, e na medida em que, seja constatado um indevido avanço
da munificência sobre a legítima, fato aferido no momento do negócio
jurídico.
5. O sobejo patrimonial do de cujus é o objeto da herança, apenas
devendo a fração correspondente ao adiantamento da legítima, in
casu, já embutido na doação aos dois primeiros descendentes, ser
equalizado com o direito à legítima dos herdeiros não contemplados
na doação, para assegurar a esses outros, a respectiva quota da legítima,
e ainda, às respectivas participações em eventuais sobras patrimoniais.
6. Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs.
Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e
Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 22.8.2013
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
211
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Odmar Loesch Pereira - Espólio, fundamentado na alínea a do permissivo
constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ-RJ.
Ação: inventário de Odmar Loesch Pereira.
Decisão interlocutória: após sucessivas manifestações da inventariante,
quanto aos bens componentes do monte-mor, notadamente com alterações
relativas à loja comercial, foi reconhecida a nulidade da doação feita a dois
herdeiros, considerando-a inoficiosa por violação da legítima.
Acórdão: por unanimidade, deu provimento ao agravo de instrumento
interposto interposta pelos recorridos, nos termos da seguinte ementa:
Inventário. Doação inoficiosa.
1. A doação de bem imóvel é negócio jurídico consensual, porque se aperfeiçoa
com o acordo de vontades entre doador e donatário, independentemente da
entrega da coisa.
A doação de pais aos filhos não segue a regra geral da inoficiosidade uma
vez que o referido ato, na forma do artigo 1.171 do Código Civil de 1916, implica
adiantamento de legítima.
3. Os donatários estão obrigados a conferir no inventário do doador, por meio
de colação, os bens recebidos, pelo valor que lhes atribuir o ato de liberalidade
ou a estimativa feita naquela época, para que sejam igualados os quinhões dos
herdeiros necessários, conforme artigo 1.792, § 1º do Código Civil de 1916. (fl. 230,
e-STJ).
Acórdão em Embargos de Declaração: por unanimidade, rejeitou os
embargos de declaração interpostos pelos recorrentes.
Recurso especial: Alega violação dos arts. 535 do CPC; 134, 1.721, 1.722,
1.176 e 1.576 do CC-1916.
Aponta a falta de prequestionamento de vários dispositivos de lei, que
deram suporte ao recurso especial, apesar de ter, na origem, interposto embargos
de declaração para sanar a falta.
Sustenta que a doação não foi perfectibilizada porquanto não cumpridas
as formalidades legais e, ainda que essa tese não seja corroborada, teria ocorrido
doação inoficiosa, pelo desrespeito à legítima, fato que daria ensejo à anulação
da doação.
212
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Inadmitido o recurso na origem, foi dado provimento ao agravo de
instrumento interposto, para melhor exame da matéria (fl. 165, e-STJ).
Às fls. 179-182, Parecer do Ministério Público Federal, de lavra do
Subprocurador-Geral da República Antônio Fonseca, pelo não provimento do
recurso especial.
Relatado o processo, decide-se.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia em
dizer da validade de doação de imóvel feita a descendentes, no momento da
separação do casal, tanto pelo seu aspecto formal, quanto pela sua regularidade
em face da vedação à doação inoficiosa.
De se ressaltar que, independentemente da manifestação expressa do
Tribunal de origem quanto a todos os dispositivos de lei tidos por violados, é fato
que houve debate na origem sobre os motes de lastro do recurso especial, o que
torna inócua possível discussão quanto ao prequestionamento dos dispositivos
legais e, por conseguinte, a análise da alegada violação do art. 535 do CPC.
I. Lineamentos Gerais.
Historiando os eventos, para melhor compreensão da controvérsia, verificase que o imóvel, que está no centro da discussão, foi doado aos recorridos quando
seus pais se separaram, com reserva de usufruto ao ex-cônjuge varão, declaração
de vontade que foi parte integrante de acordo de separação homologado
judicialmente, mas da qual não foi feita a correspondente escritura pública
nem formalizada, junto ao Registro Público, a correspondente transferência de
propriedade.
À época da manifestação da vontade, tinha o doador – de cujus –
conhecimento da existência do nascituro – B.H.P., que não foi contemplado na
doação.
II. Da validade da doação.
A primeira questão que impõe o enfrentamento diz respeito à validade
da doação efetuada pelo casal, no ato de sua separação, que foi homologada em
juízo, mas não teve o correspondente ato solene de transmissão da propriedade.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
213
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Aqui se confronta a necessidade da efetiva escritura pública para efeitos de
validade do negócio jurídico doação, como pugnava o art. 134, II, do CC-1916
– vigente à época, e uma situação fático-jurídica consolidada sob os auspícios do
Estado-Juiz, por meio de sentença homologatória de acordo.
Nessa senda, não se nega a relevância e necessidade de efetuação do devida
escritura pública, como aliás, é repetidamente afirmado, tanto na doutrina
quanto na jurisprudência. No entanto, não se pode ignorar a válida manifestação
de vontade, mormente quando formalizada em Juízo, até mesmo, porque é
razoável se dessumir que essa doação fosse uma condição pré-acertada para a
separação consensual do casal, e para a amigável composição sobre o patrimônio
mobiliário e imobiliário que seria dividido.
Note-se, não se trata aqui de promessa de doação, fórmula repelida pelo
ordenamento jurídico, porquanto o que não existiu foi a formalização cartorial
do ato, que pode ser suprida, quando a doação estiver inserida em acordo de
separação judicial.
Nesse sentido, cita-se posicionamento já cristalizado nesta Turma, do que é
exemplo o (REsp n. 32.895-SP, Rel. Min. Castro Filho, DJ 1º.7.2002).
Direito Civil. Separação consensual. Partilha de bens. Doação pura e simples de
bem imóvel ao filho. Homologação. Sentença com eficácia de escritura pública.
Admissibilidade.
Doado o imóvel ao filho do casal, por ocasião do acordo realizado em autos
de separação consensual, a sentença homologatória tem a mesma eficácia da
escritura pública, pouco importando que o bem esteja gravado por hipoteca.
Recurso especial não conhecido, com ressalvas do relator quanto à
terminologia.
Nesse toada, mantém-se o acórdão, quanto ao ponto.
III. Da doação inoficiosa.
A caracterização de doação inoficiosa é vício que, se não invalida o negócio
jurídico originário – doação –, impõe ao donatário-herdeiro, obrigação protraída
no tempo, de que, à época do óbito do doador, deverá trazer o patrimônio à
colação, para igualar as legítimas, caso não seja herdeiro necessário único, no
grau em que figura.
A razão de ser da fórmula é a necessidade de igualdade entre os
descendentes e o cônjuge supérstite – quando este concorre na herança -,
fórmula de há muito adotada pelo Direito pátrio, que consolidou a ideia de
214
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
que mesmo quando, por qualquer razão o ascendente quiser privilegiar algum
de seus possíveis herdeiros, com quinhão diferenciado, fica limitado em sua
liberalidade pela legítima.
Nessa senda, e tomando por premissa que a doação inoficiosa é aferida no
momento da liberalidade, nota-se claramente que houve preterição do nascituro
B.H.P., que não foi elencado como donatário por seu pai.
No entanto, tal fato, por si, não gera a invalidade perseguida pelo espólio
recorrente porque, nos termos do art. 1.171 do CC-1916 – aplicável à espécie
por força do momento em que foi entabulado o negócio jurídico doação – a
legítima do não-donatário, individualmente tomada, é o quantum que deve
estar salvaguardado da doação, sob pena de caracterizar a inoficiosidade da
liberalidade.
Três eram os herdeiros necessários à época da doação: os recorridos (filhos
do primeiro casamento do de cujus) e o nascituro – prole de um segundo
relacionamento –, e apenas os dois primeiros foram contemplados com a
liberalidade.
Nesse contexto, podia ser doado, para os dois descendentes, até,
aproximadamente 83,3% (oitenta e três inteiros e três décimos por cento) do
patrimônio total (50% da parte disponível acrescido das correspondentes frações
da legítima, que importavam em, aproximadamente, 33,2% (aproximadamente
trinta e três inteiros e dois décimos por cento).
Como a doação não atingiu 57% do patrimônio existente à época, doação
inoficiosa não houve, cabendo, agora, apenas se trazer o bem doado à colação,
para fins de equilibrar ou igualar a legítima.
Note-se que aqui, o sobejo patrimonial do de cujus é o objeto da herança,
apenas devendo a fração correspondente ao adiantamento da legítima, já
embutido na doação aos dois primeiros descendentes, ser equalizado com o
direito à legítima dos herdeiros não contemplados na doação, para assegurar a
esses outros, a respectiva quota da legítima, e ainda, às respectivas participações
em eventuais sobras patrimoniais.
Cita-se nesse sentido o posicionamento de Arnaldo Rizzardo:
Daí depreender-se que o art. 549 (art. 1.176 do Código anterior) não proíbe a
doação que ultrapassar a metade dos bens, e sim a que ultrapassar o valor que o
testador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Necessário,
pois, que se tenha em vista a norma do art. 1.846 (art. 1.721 do Código revogado):
“Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da
herança, constituindo a legítima’. De onde se chega a que, possuindo um pai viúvo
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
215
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
cem mil metro quadrados de terra apenas, e doando a um estranho sessenta por
cento do imóvel, configurar-se-á doação inoficiosa. Mas não se o pai tem dois
filhos, e o beneficiado for um deles. Isto porque, segundo ilustra Agostinho Alvim, a
legítima dos descendentes é a metade do patrimônio, ou seja, cinquenta por cento
dos bens, que, no caso, equivale ao disponível. Portanto, cada filho fará jus a vinte e
cinco por cento do patrimônio, o que importa em afirmar que a um deles faculta-se
ao pai doar toda a sua parte disponível (cinquenta por cento) e mais a legítima do
filho (vinte e cinco por cento), atingindo o quanto de setenta e cinco por cento.
Assim, a busca da invalidade da doação, ante o preterimento dos herdeiros
nascidos do segundo relacionamento do de cujus, somente seria cabível se, e na
medida em que, fosse constatado um indevido avanço da munificência sobre a
legítima que, repita-se, no debate envolvendo a inoficiosidade da doação, deve
ser aferida no momento do negócio jurídico.
No mais, o instituto da colação irá, por primeiro, assegurar que os não
contemplados com a doação possam, ainda assim, terem resguardo o seu quinhão
na legítima, mesmo que seja por redução na doação e, de outra banda, garantir
que a vontade do doador seja respeitada no limite da possibilidade legal.
Essa é a essência da construção teórica que desagua na fórmula da colação,
pois não se pode tolher a liberdade do indivíduo em beneficiar alguém com
o patrimônio que lhe é próprio, desde que respeite os limites legais – 50% do
patrimônio.
Se terceiros podem ser alvo dessa munificência, quanto mais os
descendentes, mesmo porque, pode o ascendente doador querer, em face de
relações peculiares de gratidão, ou situação pessoal do donatário, diferenciar
positivamente, na parte que lhe é disponível, o quinhão hereditário de um dos
seus filhos.
Dessa forma, não merece reforma o acórdão recorrido.
Forte em tais razões, nego provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.209.474-SP (2010/0148220-2)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Edson Coelho - Espólio e outro
Representado por: Durvalino Coelho - Inventariante
216
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Advogado: Eugênio Carlos Barboza e outro(s)
Recorrido: Tempo Serviços Ltda
Advogado: Álvin Figueiredo Leite e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Responsabilidade civil. Dano moral. Contrato
de cartão de crédito celebrado após a morte do usuário. Inscrição
indevida nos órgãos de proteção ao crédito. Eficácia post mortem dos
direitos da personalidade. Legitimidade ativa da viúva para postular a
reparação dos prejuízos causados à imagem do falecido. Inteligência
do artigo 12, parágrafo único, do Código Civil.
1. Contratação de cartão de crédito após a morte do usuário,
ensejando a inscrição do seu nome nos cadastros de devedores
inadimplentes.
2. Propositura de ação declaratória de inexistência de contrato
de cartão de crédito, cumulada com pedido de indenização por danos
morais, pelo espólio e pela viúva.
3. Legitimidade ativa da viúva tanto para o pedido declaratório
como para o pedido de indenização pelos prejuízos decorrentes da
ofensa à imagem do falecido marido, conforme previsto no art. 12,
parágrafo único, do Código Civil.
4. Ausência de legitimidade ativa do espólio para o pedido
indenizatório, pois a personalidade do “de cujus” se encerrara com seu
óbito, tendo sido o contrato celebrado posteriormente.
5. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
6. Restabelecimento dos comandos da sentença acerca da
indenização por dano moral.
7. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
217
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Justiça, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy
Andrighi, a Terceira Turma, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso
especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo
Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi (voto-vista), João Otávio de Noronha e
Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 10 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 23.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto pelo Espólio de Edson Coelho e por Auciliadora Maria Pereira
Coelho contra acórdão da 13ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo.
Na origem, o Espólio de Edson Coelho e Auciliadora Maria Pereira
Coelho, viúva de Edson, ajuizaram contra American Express Tempo e Cia. ação
declaratória de inexigibilidade de cobrança de valores indevidos cumulada com danos
morais e antecipação de tutela.
Os pedidos da inicial eram (i) a declaração de inexistência de contrato,
supostamente, havido entre o falecido e a parte ré; (ii) a indenização pelos
prejuízos morais sofridos da cobrança indevida e do apontamento indevido do
nome do de cujus nos órgãos de proteção ao crédito.
Alegaram que tomaram conhecimento, nos idos de 2006, via cobrança
extrajudicial feita pela ré, de um débito em nome do falecido no valor de
R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três reais e vinte centavos),
decorrente de contrato de cartão de crédito adquirido após a sua morte (2004).
Por fim, noticiaram o apontamento do nome do falecido nos cadastros de maus
pagadores.
Citada, a empresa ré arguiu a ilegitimidade ativa da parte para a pretensão
indenizatória pelos danos morais, vez que se trata de direito personalíssimo que
não se transmite ao espólio, além da ilegitimidade ativa da viúva tanto para o
pedido declaratório, quanto indenizatório, por não ter havido envolvimento do
seu nome nem na cobrança, nem no apontamento litigioso.
218
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Em julgamento antecipado, a sentença acolheu a preliminar de
ilegitimidade ativa da viúva, ora recorrente, quanto à pretensão declaratória,
sob o fundamento de que não há menção ao seu nome quanto à alegada falsa
contratação, carecendo, assim, inclusive de interesse jurídico.
Na mesma linha, acolheu também, a preliminar de ilegitimidade ativa
do espólio, também ora recorrente, quanto à pretensão indenizatória, sob o
fundamento de que os danos extrapatrimoniais dizem com a dignidade da
pessoa humana, tendo esta findado com o passamento do Sr. Edson, ou seja,
encerrou-se com a morte.
No mérito, a sentença julgou parcialmente procedente o pedido do espólio
de ver declarado inexistente o contrato havido entre o falecido e a empresa
administradora de cartão de crédito, bem como acolheu o pleito indenizatório
da viúva, condenando a ré no pagamento de indenização por danos morais no
valor arbitrado em R$ 5.700,00 (cinco mil e setecentos reais), acrescidos de
juros de mora da data do apontamento e correção monetária do arbitramento.
Irresignadas, as duas partes apelaram da sentença.
O Tribunal a quo, no julgamento das apelações cíveis, negou provimento ao
recurso da parte autora e deu parcial provimento à apelação da administradora
de cartão de crédito, reformando a sentença no tocante à condenação da ré
no pagamento de indenização, sob o fundamento de que a viúva não sofreu
cobrança vexatória, atribuída esta exclusivamente ao seu falecido marido, não
constando o nome dela em órgãos de proteção ao crédito, mantendo, no mais, a
sentença recorrida, em acórdão ementado nos seguintes termos:
Declaratória de inexistência de débito. Indenização por danos morais. Dívida
atribuída à pessoa já falecida à época da celebração do contrato. Inexigibilidade
inequívoca. Inexistência de danos morais, entretanto, nem com relação ao morto e
nem com relação à viúva, cujo nome não foi envolvido, não sofrendo pessoalmente
cobrança alguma. Apelo da ré provido em parte, não provido o dos autores.
Na seqüência, os autores (espólio e viúva) interpuseram o presente
recurso especial, defendendo, em síntese, que há legitimidade ativa de ambos
para a ação indenizatória. Por fim, postularam a indenização pelos prejuízos
extrapatrimoniais sofridos decorrentes da cobrança e do apontamento indevidos
em nome do falecido.
Em suas razões, a parte recorrente sustentou que o acórdão violou os
artigos 5º, X e XXXV, e 104, I a III, da Constituição Federal; 113, 139, 159, 166
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
219
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e 169 do Código Civil/1916; 186 do Código Civil de 2002; 3º, 12, 535, I e II, do
Código de Processo Civil e 39, 46 e 51 do Código de Defesa do Consumidor,
bem como apontou dissídio jurisprudencial. Requereu a reforma do julgado
com a condenação da parte recorrida para que a indenize pelos prejuízos
extrapatrimoniais sofridos.
Presentes as contrarrazões, o recurso especial não foi admitido na origem,
ensejando a interposição de agravo de instrumento, que foi provido pelo Min.
Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ-BA).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas,
adianto que merece parcial acolhimento a irresignação recursal.
O caso dos autos é peculiar, situando-se em torno de pretensão
indenizatória por danos morais em face da celebração de contrato de cartão de
crédito entre a administradora demandada e pessoa já falecida quando da sua
falsa pactuação.
Tem-se tornado fato corriqueiro a ação de pessoas inescrupulosas
especializadas na contratação de cartões de crédito com o CPF de pessoas
já falecidas. Esses estelionatários utilizam-se do número do CPF de pessoa
falecida para adquirir um cartão de crédito e utilizá-lo até a sua suspensão
pelo inadimplemento das faturas. Como o titular do cartão já faleceu e, até o
momento da cobrança do valor da fatura perante os sucessores, passa um tempo
razoável, o ilícito é de demorada constatação e de difícil repressão.
A administradora de cartão de crédito, que normalmente celebra seus
contratos via telefone ou internet, sem exigir a presença física do consumidor
usuário do cartão de crédito, só toma conhecimento da fraude quando deflagra
os procedimentos de cobrança extrajudicial.
A jurisprudência desta Corte é tranquila no sentido de que o apontamento
indevido do nome de consumidores em órgãos de proteção ao crédito produz
danos morais, gerando obrigação de indenizar por quem procede à inscrição.
No presente caso, porém, a peculiaridade é a celebração do contrato de
cartão de crédito após o óbito do usuário, ensejando a inscrição do seu nome nos
órgãos de proteção ao crédito como devedor inadimplente.
220
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
A legitimidade para a postulação de danos morais nessas situações constitui
matéria bastante complexa, que enseja debate doutrinário a luz das normas do
Código Civil acerca dos direitos da personalidade.
Antes, porém, de enfrentar essa questão, relembro que, na presente
demanda, foram cumuladas duas pretensões (art. 292 do CPC).
A primeira pretensão de natureza declaratória busca o reconhecimento da
inexistência de contrato entre o de cujus e a empresa administradora do cartão de
crédito, que, naturalmente, foi julgada procedente, não ensejando mais discussão.
A segunda pretensão, de cunho indenizatório, refere-se à cobrança e ao
consequente apontamento indevido do nome do falecido nos órgãos de proteção
ao crédito como devedor inadimplente, tendo sido formulada tanto pelo espólio,
quanto pela viúva.
Com efeito, a sentença julgou procedente o pedido do espólio de declaração
de inexistência da dívida, mas afastou o pedido de indenização por danos
morais. Em relação à viúva, inversamente, afastou a sua legitimidade para o
pedido declaratório, mas acolheu o seu pedido indenizatório.
O acórdão recorrido, ao negar provimento ao apelo dos autores e dar
parcial provimento ao recurso de apelação da administradora de cartões de
crédito, reformou, em parte, a sentença, afastando a condenação da ré ao
pagamento de indenização também à viúva, por considerá-la parte ilegítima
para postular indenização por danos morais ao seu falecido esposo.
Asseverou-se, no acórdão recorrido, que o morto não poderia ter sido
vítima de danos morais por ter sido o ato praticado depois de sua morte, não
reconhecendo, também, legitimidade ao espólio para postular indenização nesse
sentido.
Manteve, assim, apenas a procedência da pretensão declaratória de
inexistência de contrato por ter sido pactuado após o passamento do devedor, o
que não é objeto de discussão neste recurso especial.
Desse modo, a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte situase em torno de estabelecer a legitimidade das duas partes autoras (espólio e
viúva) para o pedido de indenização por danos morais, bem como a legitimidade
da viúva para o pedido de declaração de inexistência do contrato.
Primeiro, quanto à pretensão declaratória de inexistência de contrato,
não há falar em ilegitimidade da viúva ou em falta de interesse processual em
ver declarado inexistente o contrato que poderia repercutir em seu quinhão
hereditário.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
221
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Prevê o enunciado normativo do art. 597 do Código de Processo Civil:
Art. 597. O espólio responde pelas dívidas do falecido; mas, feita a partilha,
cada herdeiro responde por elas na proporção da parte na herança que lhe coube.
(grifei)
Incontroverso nos autos que foi cobrado, extrajudicialmente, dos autores,
dívida no montante de R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três
reais e vinte centavos), supostamente contraída pelo de cujus.
Portanto, tanto o espólio, quanto a viúva tinham interesse e legitimidade
de ver declarada inexistente a obrigação. Esta, enquanto herdeira legítima (art.
1.829, I, II e II, do CC), e, aquele, como responsável por responder pelas dívidas
deixadas pelo falecido (art. 597 do CPC).
De todo modo, julgado procedente o pedido de declaração de inexistência
de contrato formulado pelo espólio, restou prejudicado o mesmo pedido
declaratório formulado pela viúva.
O cerne do recurso especial concentra-se, assim, na fixação da legitimidade
para o pedido indenizatório, exigindo o debate estabelecido nos autos resposta
para duas complexas questões:
1. Pode o espólio sofrer dano moral?
2. Pode a viúva postular a reparação de dano moral por ofensa à imagem do
falecido esposo?
Antes de responder a tais questionamentos, deve-se distinguir o presente
caso das hipóteses já julgadas por esta Corte Superior, quando a ofensa moral
ocorre antes do passamento do ofendido, sendo a demanda proposta após a sua
morte.
Esta Terceira Turma, em acórdão anterior ao Código Civil de 2002,
enfrentou a questão no julgamento do Recurso Especial n. 302.029-TJ, relatoria
da Ministra Nancy Andrighi, não reconhecendo a legitimidade ativa dos
herdeiros, sendo a seguinte a sua ementa:
Recurso especial. Processual Civil. Acórdão. Omissão. Invalidade. Inexistência.
Divergência jurisprudencial. Comprovação. Dano moral. Ação de indenização.
Herdeiro da vítima. Legitimidade ativa ad causam. Inexistência de invalidade do
acórdão recorrido, o qual, de forma clara e precisa, pronunciou-se acerca dos
fundamentos suficientes à prestação jurisdicional invocada. Não se conhece
o Recurso Especial pela divergência se inexiste a confrontação analítica dos
222
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
julgados. Na ação de indenização de danos morais, os herdeiros da vítima
carecem de legitimidade ativa ad causam.
(REsp n. 302.029-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
29.5.2001, DJ 1º.10.2001, p. 212)
Diversamente, porém, no presente caso, a violação moral ocorreu após o
passamento da vítima. Ou seja, a contratação irregular do cartão de crédito, a
cobrança indevida da dívida constante das faturas e o apontamento indevido
nos órgãos de proteção ao crédito, deram-se após a morte do suposto devedor.
O acórdão recorrido entendeu que nem o espólio, nem a viúva poderiam
postular indenização por ofensa contra o nome e a imagem do falecido.
Penso que, nesse ponto, o acórdão recorrido merece parcial reforma.
Diz um vetusto adágio jurídico: mors omnia solvit (a morte tudo resolve).
Isso inclui os direitos da personalidade, que se encerram com a morte da
pessoa natural, consoante expresso na norma do artigo 6º do Código Civil (a
existência da pessoa natural termina com a morte).
Remanesce, porém, divergência doutrinária acerca da possibilidade de uma
eficácia post mortem dos direitos da personalidade.
Na doutrina, três correntes foram construídos acerca do tema, merecendo
lembrança a didática síntese feita por Ney Rodrigo Lima Ribeiro, em seu
artigo denominado Direito à proteção de pessoas falecidas. Enfoque luso-brasileito,
na obra Direitos da Personalidade, coordenada pelos Professores Jorge Miranda,
Otávio Luiz Rodrigues Junior e Gustavo Bonato Fruet, (São Paulo: Atlas, 2012,
p. 442):
a) sustentam que a personalidade cessa com a morte (art. 6º do CC), ou seja,
que é uma regra absoluta e, por conseguinte, a morte tudo resolve (mors omnia
solvit), bem como não há extensão dos direitos de personalidade, os seguintes
doutrinadores: Sílvio de Salvo Venosa; Cristiano Chaves; Pontes de Miranda e
Silvio Romero Beltrão;
b) defendem que a personalidade cessa com a morte (art. 6º do CC), entretanto,
é uma regra relativa e, por decorrência, o brocardo jurídico mors omnia solvit não
é absoluto, há extensão dos direitos de personalidade após a morte e também
é cabível a indenização diante de lesão à pessoa falecida, os seguintes autores:
Álvaro Villaça, Silmara J. Chinellato; Ruibens Limongi França; Ingo Wolfgang Sarlet;
Gustavo Tepedino; Maria Helena Diniz; Flávio Tartuce; Paulo Lôbo; Francisco
Amaral e José Rogério Cruz e Tucci;
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
223
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
c) a doutrina brasileira é quase uníssona em afirmar que o princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988) é o sustentáculo de proteção
das pessoas falecidas.
No Direito português, o Código Civil de 1966, em seu art. 71, n. 1, prevê
uma permanência genérica dos direitos da personalidade post mortem, nos
seguintes termos, verbis:
Art. 71º (Ofensa a pessoas já falecidas)
1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da
morte do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.
2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente,
irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar da falta de consentimento, só as pessoas que
o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer
as providências a que o número anterior se refere.
Na mesma linha, no Direito brasileiro, apesar do encerramento dos direitos
da personalidade com a morte de seu titular, há previsão legal expressa de
proteção post mortem desses direitos em alguns casos específicos.
O Código Civil brasileiro de 2002 estatuiu duas formas de tutela póstuma
dos direitos da personalidade nos parágrafos únicos dos seus artigos 12 e 20,
verbis:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e
reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimidade para requerer a
medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em
linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra,
ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão
ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se
lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas
para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
(grifos meus)
224
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Na I e na V Jornada de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça
Federal do Superior Tribunal de Justiça, foram aprovados proposições acerca
desse tema, mediante os Enunciados n. 5 e 275, verbis:
Enunciado n. 5:
1) as disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se, inclusive, às
situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade
para requerer as medidas nele estabelecidas;
2) as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a finalidade específica de
regrar a projeção dos bens personalíssimos nas situações nele enumeradas. Com
exceção dos casos expressos de legitimação que se conformem com a tipificação
preconizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras
instituídas no art. 12.
Enunciado n. 12: O rol dos legitimados de que tratam os art. 12, parágrafo único,
e 20, parágrafo único, do Código Civil também compreende o companheiro.”
Na jurisprudência do STJ, destaca-se acórdão da Quarta Turma, relatoria
do Ministro Cesar Asfor Rocha, que se pronunciou sobre o tema, reconhecendo
proteção à honra de pessoa falecida, em conhecido caso envolvendo a filha da
escritora Glória Perez, que fora assassinada e que teve publicada a sua foto pela
editora carioca “O Dia”, ao lado de matéria denominada “O Beijo da Traição”. A
ementa do acórdão foi a seguinte, verbis:
Civil. Danos morais e materiais. Direito à imagem e à honra de pai falecido.
Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam
como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo,
deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem
coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias,
como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima
desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o
direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha
de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua
memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão
que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos
econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por
direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano
moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente
conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das
autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido.
(REsp n. 521.697-RJ, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em
16.2.2006, DJ 20.3.2006, p. 276)
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
225
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com efeito, o espólio não pode sofrer dano moral por constituir uma
universalidade de bens e direitos, sendo representado pelo inventariante (art. 12,
V, do CPC) para questões relativas ao patrimônio do de cujus.
Entretanto, o cônjuge sobrevivente e os herdeiros da pessoa falecida podem
postular uma reparação pelos prejuízos causados, após a sua morte, por um ato
ilícito que atinge a imagem e a memória da pessoa falecida, conforme previsto
no art. 12, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
Assim, no presente caso, apenas a viúva detém legitimidade para reclamar
a indenização pelos prejuízos decorrente da ofensa à imagem (direito de
personalidade) do falecido marido.
Incontroverso o fato de que foi cobrado, extrajudicialmente, da viúva,
dívida indevida de R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três reais e
vinte centavos), supostamente, contraída pelo de cujus, além do apontamento do
nome dele nos cadastros de maus pagadores.
Desse modo, impõe-se o provimento do recurso especial em relação à viúva,
restabelecendo-se os comandos da sentença no que concerne à indenização por
dano moral.
Ante todo exposto, voto pelo parcial provimento do recurso para julgar
procedente o pedido indenizatório formulado por Auciliadora Maria Pereira
contra American Express Tempo e Cia, condenando a ré no pagamento da
indenização por danos morais arbitrada na sentença.
Quanto à sucumbência, considerando-a recíproca em diferentes
percentuais, condeno o réu no pagamento de três quartos (75%) das custas
processuais e honorários advocatícios, que ora arbitro em 15% sobre o valor
atualizado da condenação. Arcará a parte autora com um quarto (25%) das
custas e honorários advocatícios de quinhentos reais, autorizada a compensação,
nos termos da Súmula n. 306-STJ.
Em síntese, voto no sentido do parcial provimento do recurso especial.
VOTO-VISTA
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial, nos autos
de ação declaratória de inexigibilidade de cobrança de valores indevidos c/c
compensação por danos morais, ajuizada por Edson Coelho - Espólio e Auciliadora
Maria Pereira Coelho (viúva), em face de American Express Tempo e Cia (Tempo
Serviços Ltda).
226
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Sentença (fls. 254-262, e-STJ): preliminarmente, reconheceu a
ilegitimidade ativa da viúva para a pretensão declaratória, bem como a do espólio,
para a pretensão indenizatória. No mérito, julgou parcialmente procedentes
os pedidos, para declarar a inexistência do contrato de cartão de crédito e a
inexigibilidade dos débitos dele decorrentes (pedido formulado pelo espólio)
e condenar a ré a pagar a Auciliadora Maria Pereira Coelho indenização por
danos morais, arbitrada em R$ 5.700,00 (cinco mil e setecentos reais).
Acórdão (fls. 363-365, e-STJ): negou provimento ao recurso dos autores
e deu parcial provimento ao recurso interposto por Tempo Serviços Ltda, para
excluir da condenação a indenização por danos morais.
Recurso especial (fls. 379-405, e-STJ): interposto pelos autores, com
fundamento na alínea a do permissivo constitucional, em cujas razões alegam
violação do art. 186 do CC/2002 e negativa de prestação jurisdicional.
Juízo de admissibilidade (fls. 1.011-1.013, e-STJ): o recurso foi
inadmitido na origem, dando azo à interposição de agravo de instrumento,
provido pelo Min. Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ-BA), em
decisão de fl. 451, e-STJ.
Voto do Relator: dá parcial provimento ao recurso especial para
restabelecer a sentença, no que concerne à indenização pelos danos morais
suportados pela viúva, e, considerando a sucumbência recíproca, em diferentes
percentuais, condenar o réu ao pagamento de 75% das custas processuais
e honorários advocatícios, arbitrados em 15% sobre o valor atualizado da
condenação, arcando os autores com os 25% restantes das custas e com verbas
honorárias de R$ 500,00 (quinhentos reais).
Revisados os fatos, decido.
Inicialmente, consigno que acompanho o Min. Relator, nos termos do
voto proferido na sessão de 5.9.2013, pedindo vênia, apenas, para tecer algumas
considerações acerca da legitimidade ativa de Auciliadora Maria Pereira Coelho
para pleitear a indenização por danos morais.
Na hipótese, o dano moral suportado pela viúva, reconhecido na sentença
que foi restabelecida pelo Relator, refere-se à ofensa ao próprio direito da
personalidade, efeito da cobrança de dívida inexistente, de elevada quantia, e da
inscrição indevida do nome do falecido marido nos cadastros de proteção ao
crédito.
Com efeito, o parágrafo único do art. 12 do CC/2002 não prevê hipótese
de substituição processual do falecido pelo cônjuge supérstite ou por parentes,
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
227
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mas de exercício do direito próprio destes, quando afetados pela ofensa a um
direito da personalidade daquele, após a sua morte. Esses legitimados são, em
verdade, lesados indiretos, pois sofrem os efeitos do dano causado à pessoa morta,
um dano moral reflexo, portanto.
Nesse contexto, deve ser ressaltado que não se está diante de pretensão
compensatória do dano moral da pessoa morta por lesão à honra ou à
imagem desta, mas do dano indireto que essa circunstância causou ao cônjuge
sobrevivente, consubstanciado na angústia e indignação sofridas por ele.
Forte nessas razões, acompanho o Min. Relator e dou parcial provimento
ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.234.887-RJ (2011/0016624-7)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: STM Networks Inc
Advogados: Gustavo Fernandes de Andrade e outro(s)
André Luiz Souza da Silveira e outro(s)
Maria Azevedo Salgado
Recorrente: STM Wireless Telecomunicações Ltda
Advogados: Antônio Carlos Amorim e outro(s)
Cairo Roberto Bittar Hamú Silva Júnior e outro(s)
Recorrido: Os mesmos
EMENTA
Recursos especiais. Processual Civil. Negativa de prestação
jurisdicional. Não ocorrência. Violação do art. 273, § 1º, do Código de
Processo Civil. Ausência de prequestionamento. Artigo 273, § 6º, do
CPC. Antecipação de tutela para levantamento do valor incontroverso
do crédito. Possibilidade. Consectários da condenação. Cabimento.
1. Não importa negativa de prestação jurisdicional o acórdão que
adotou, para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém
228
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
diversa da pretendida pela recorrente, para decidir de modo integral
a controvérsia posta. De tanto resulta que não há falar, na espécie, em
violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, visto que inexiste
qualquer vício a ser sanado em sede de embargos de declaração.
2. A tese recursal vinculada ao § 1º do artigo 273 do CPC,
diversa da suscitada nas razões dos aclaratórios, não foi debatida no
acórdão hostilizado, sequer de modo implícito, não tendo servido
de fundamento à conclusão adotada pelo Tribunal de origem. Resta
desatendido, portanto, o requisito específico de admissibilidade do
recurso especial concernente ao prequestionamento, o que atrai o
óbice constante na Súmula n. 211 desta Corte (v.g.: REsp n. 775.841RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 26.3.2009).
3. Se um dos pedidos, ou parte deles, já se encontre comprovado,
confessado ou reconhecido pelo réu, não há razão que justifique o
seu adiamento até a decisão final que aprecie a parte controversa da
demanda que carece de instrução probatória, podendo ser deferida a
antecipação de tutela para o levantamento da parte incontrovesa (art.
273, § 6º, do Código de Processo Civil).
4. Não se discute que a tutela prevista no § 6º do artigo 273 do
CPC atende aos princípios constitucionais ligados à efetividade da
prestação jurisdicional, ao devido processo legal, à economia processual
e à duração razoável do processo, e que a antecipação em comento não
é baseada em urgência, nem muito menos se refere a um juízo de
probabilidade (ao contrário, é concedida mediante técnica de cognição
exauriente após a oportunidade do contraditório). Porém, por questão
de política legislativa, a tutela do incontroverso, acrescentada pela
Lei n. 10.444/2002, não é suscetível de imunidade pela coisa julgada,
inviabilizando o adiantamento dos consectários legais da condenação
(juros de mora e honorários advocatícios).
6. Recursos especiais da STM Networks Inc. e da STM Wireless
Telecomunicações Ltda. não providos.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
A Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento a ambos os recursos
especiais, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
229
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Andrighi, João Otávio de Noronha e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com
o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti.
Brasília (DF), 19 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 2.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: STM Networks Inc. e STM
Wireless Telecomunicações Ltda. interpõem recursos especiais, ambos com
fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro assim ementado:
1. Agravo inominado em agravo de instrumento.
2. O valor incontroverso do crédito discutido pode ser levantado pelo credor.
3. Precedentes.
4. Recurso provido (fl. 241).
Foram acolhidos os declaratórios opostos pela ré e rejeitados os da parte
autora (fls. 275-280).
Na origem, a STM Wireless Telecomunicações Ltda. propôs ação de cobrança
contra a STM Networks Inc. buscando o pagamento de diferenças de comissões,
porquanto seria representante e distribuidora exclusiva no Brasil dos produtos
de comunicação de satélites pertencentes à empresa ré, situada nos Estados
Unidos, percebendo, a princípio, como comissão, 20% (vinte por cento) sobre
toda e qualquer venda realizada no território brasileiro.
Sustenta STM Wireless que, no curso da negociação do contrato com a
Brasil Telecom, firmou um aditivo ao contrato principal com a ré reduzindo a
sua comissão para 2,5% (dois vírgula cinco por cento) apenas em relação a dois
projetos (PGMU 2005 da Brasil Telecom e da Telemar). A STM Networks, por
sua vez, resiste à pretensão, afirmando que o percentual de 2,5% abrange todo o
contrato e não somente os dois projetos citados.
Em linhas gerais, é essa a controvérsia principal.
Em sede cautelar, foi determinado o depósito, em juízo, do valor total
pretendido (20% sobre todos os contratos).
230
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Inconformada com a decisão que indeferiu o pedido de levantamento do
montante incontroverso (2,5%), ao fundamento de inexistência de liquidez e
certeza do crédito, a STM Wirelles interpôs agravo de instrumento que, por
maioria, foi provido para deferir o levantamento pela autora/recorrente do valor,
em moeda nacional, correspondente a US$ 1.616.765,34 (um milhão seiscentos
e dezesseis mil setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos),
observada a cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento.
É contra esse acórdão que se insurgem as partes.
A autora, STM Wireless Telecomunicações Ltda. aponta como violado o
artigo 273, § 6º, do Código de Processo Civil, pois,
(...)
Apesar da discordância no que tange a alguns pontos da demanda, é certo
que as partes jamais divergiram sobre os 2,5% de comissão devidos à Recorrente.
(...)
Ao conceder o levantamento do valor correspondente à parcela incontroversa
da demanda, a 4ª CCTJ nada mais fez do que aplicar o § 6º do artigo 273, do CPC,
que assim dispõe:
Art. 273 - (...)
§ 6º - A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou
mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
No entanto, ao aplicar tal dispositivo, o v. acórdão deveria ter incluído na
indenização, obrigatoriamente, os juros legais e os honorários advocaticios.’
A explicação é simples: nos casos de reconhecimento parcial do pedido não há
antecipação dos efeitos da tutela final, mas verdadeiro julgamento antecipado de
parte do mérito da demanda. (...) E é assim porque nada mais resta a decidir em
relação a essa parte da demanda, que se exauriu quando a Recorrida reconheceu
a procedência parcial do pedido formulado pela Recorrente.
Dessa forma, o r. decisum proferido pelo c. Tribunal de origem não consiste
em mera cognição sumária, mas em provimento exauriente, capaz, inclusive,
de produzir coisa julgada material. Por consequência, a execução do julgado é
definitiva, e não provisória, não se aplicando o art. 475-O, do CPC.
(...)
Sendo definitivo o julgado, não existe fundamento para retardar a incidência dos
juros e dos honorários para ocasião da sentença, que decidirá somente a parcela do
mérito não enfrentada na ocasião da antecipação.
(...)
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
231
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Dessa forma, os juros de mora, não há dúvidas, deverão incidir a partir da
citação inicial.
(...)
Sendo indiscutível que a Recorrida reconheceu em parte a procedência dos
pedidos formulados pela Recorrente - tanto que formulou pedido de procedência
de parte deles (fls. 75) -, e certo que o julgado equivocou-se ao deixar de arbitrar a
verba honorária. (...) (fls. 282-297 - grifou-se).
Por sua vez, a segunda recorrente, STM Networks Inc. (fls. 306-320), afirma
que, além da negativa de prestação jurisdicional (art. 535, II, do Código de
Processo Civil), restou violado o artigo 273, §§ 1º e 6º, do Código de Processo
Civil, pois
(...) o levantamento de tal quantia, fixada em moeda estrangeira, exige, como
antecedente lógico, a sua conversão para o valor correspondente na moeda
nacional (Real). Esta conversão, contudo, está atrelada à cotação da moeda
estrangeira, que, como se sabe, é altamente variável, estando sujeita a constantes
flutuações, mesmo em um curto espaço de tempo. Como é intuitivo, a noção de
variação cambial traz em seu âmago a idéia de inconstância e instabilidade, o que
afasta qualquer tentativa de se atribuir precisão e certeza a algo extremamente
mutável.
Considerando-se que a constante variação cambial pode alterar o valor
correspondente em reais da apontada quantia de US$ 1,616,765.34 de dólares,
de acordo com o dia em que a conversão seja realizada, inexiste hoje liquidez
quanto ao valor que se pretende imediatamente levantar, pelo singelo motivo
que a cotação da moeda estrangeira na presente data muito provavelmente não
será a mesma do dia de amanhã, muito menos será igual a do dia do trânsito
em julgado desta ação ordinária, o que dá boa mostra dos prejuízos que ambas
as partes podem sofrer em razão da conversão antecipada desses valores, antes
mesmo que a perícia já determinada em primeira instância indique os valores
efetivamente devidos.
(...)
Nem uma única linha foi dedicada à descrição da forma pela qual foi superada
a indefinição acerca da conversão da dita quantia em dólares norte-americanos
para a moeda corrente no Brasil (Real).
(...)
Ao não explicitar, de forma clara e expressa, os motivos que permitem afastar
a imprecisão e inexatidão sobre os valores que se pretendem antecipadamente
levantar (...) o v. acórdão hostilizado acabou violando o dever legal inserto no § 1º,
do art. 273, do CPC (fls. 315-319).
232
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Recursos respondidos (fls. 344-356 e 357-375) e admitidos (fls. 377-379 e
433-435).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): As razões recursais
permitem a exata compreensão da controvérsia, não exigindo revolvimento
probatório a atrair o óbice da Súmula n. 7-STJ. Posto isso, para melhor clareza,
analiso os pontos suscitados nas razões recursais, iniciando pelo especial
interposto pela STM Networks Inc.
I. Negativa de prestação jurisdicional
Aduz o recorrente que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
violou o art. 535, II, do CPC, pois “não enfrentou a questão da variação cambial”
suscitada nas razões dos aclaratórios.
Contudo, ao que se tem dos autos, entendeu o Tribunal local que “(...)
o valor final permanece ilíquido, porém a parte ré, aqui agravada, desde a
contestação reconheceu como devido o percentual de 2,5% (dois e meio por cento), e
quantifica essa dívida em US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil,
setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos). Ora, se esse valor é
indiscutível e se há quantia depositada superior na nossa moeda, nada impede o
correspondente levantamento pelo credor” (fl. 243).
Assim, deferiu o levantamento pela autora “do valor em reais,
correspondente a US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil,
setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos), observada a
cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento” (fl. 245 - grifou-se).
Ora, os embargos declaratórios não se prestam ao reexame de matéria já
decidida à luz dos fundamentos jurídicos e legais aplicados, tampouco servem
para forçar o ingresso na instância extraordinária se não houver omissão,
contradição ou obscuridade a serem supridas no acórdão, nem fica o juiz obriga
a responder todas as alegações das partes quando já encontrou motivo suficiente
para fundar a decisão.
Com efeito, não importa negativa de prestação jurisdicional o acórdão que
adotou, para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém diversa da
pretendida pela recorrente, para decidir de modo integral a controvérsia posta.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
233
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em resumo, não há falar, na espécie, em violação do artigo 535 do Código
de Processo Civil, visto que inexiste vício a ser sanado em sede de embargos de
declaração.
II. Violação do artigo 273, § 1º, do Código de Processo Civil.
A tese recursal vinculada ao § 1º do artigo 273 do CPC, diversa da
suscitada nas razões dos aclaratórios, não foi debatida no acórdão hostilizado,
sequer de modo implícito, não tendo servido de fundamento à conclusão
adotada pelo Tribunal de origem.
Resta desatendido, portanto, o requisito específico de admissibilidade
do recurso especial concernente ao prequestionamento, o que atrai o óbice
constante na Súmula n. 211 desta Corte (v.g.: REsp n. 775.841-RS, Rel. Min.
Nancy Andrighi, DJe 26.3.2009).
Registre-se, outrossim, que a questão federal ventilada somente no voto
vencido não atende ao pressuposto do prequestionamento (Súmula n. 320-STJ).
III. Violação do artigo 273, § 6º, do Código de Processo Civil.
Em virtude da conexão das teses recursais atinentes ao referido dispositivo,
as razões dos dois apelos especiais são analisadas concomitantemente.
Buscando atender ao preceito constitucional que assegura a todos a duração
razoável do processo e os meios que garantam a celeridade em sua tramitação
(art. 5º, LXXVIII), a Lei n. 10.444, de 7 de maio de 2002, inseriu o § 6º ao
artigo 273 do Código de Processo Civil:
§ 6º A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais
dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
À primeira vista, com essa nova disposição legal, permitiu-se ao
juiz antecipar a tutela jurisdicional quando uma parte da demanda restar
incontroversa. Porém, o que parece ser de simples interpretação, acabou por
desafiar abalizada doutrina, que se dividiu quanto à natureza e efeitos da
referida decisão.
Na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n. 3.476, que originou a Lei
n. 10.444/2002, lê-se que tal dispositivo “explicita a possibilidade de o juiz,
nos casos em que uma parte do pedido ou dos pedidos se torne incontroversa,
conceder desde logo a esse respeito a tutela antecipada. Essa sugestão apresentase consentânea com as preocupações de eficiência do novo processo civil”.
234
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Criou-se, assim, uma nova modalidade de tutela antecipatória, como bem
observa Wilson Alves de Souza:
Disciplinou-se expressamente a possibilidade de mais uma hipótese de
concessão da tutela antecipada. Já estavam expressamente previstas as hipóteses
de antecipação assecuratória (fundada na situação de urgência – “receio de
dano irreparável ou de difícil reparação”, nos termos do art. 273, I) e antecipação
punitiva (fundada no “abuso do direito de defesa ou manifesto propósito
protelatório do réu”, nos termos do art. 273, II). A nova hipótese está fundada na
incontrovérsia parcial da demanda. (Tutela antecipada em caso de incontrovérsia
parcial da demanda - breves comentários à proposta do Poder Executivo de
alteração do § 1º do art. 273 do Código de Processo Civil - a segunda etapa da
reforma processual civil, - Coordenadores Luiz Guilherme Marinoni e Fredie Didier
Jr., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 54)
Como observa Marinoni, seria “injusto obrigar o autor a esperar a realização
de um direito que não se mostra mais controvertido”. Assim, “se o processo
prosseguir, não obstante a evidência de um direito, a tutela antecipatória é
o único instrumento, dentro do atual sistema processual, que permite que o
procedimento comum atenda ao direito constitucional à tempestividade da tutela
jurisdicional, evitando que o autor seja obrigado a esperar indevidamente a tutela
de um direito incontrovertido” (Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e
Execução Imediata da Sentença. São Paulo: RT, 1997, p. 162-163).
Indiscutível, por conseguinte, a clara intenção do legislador de “acelerar” a
prestação jurisdicional de um direito manifestamente evidente, incontroverso,
que, por circunstâncias meramente processuais, está atrelado a outro direito,
controvertido.
Vale dizer, enquanto nos demais casos de antecipação de tutela são
indispensáveis os requisitos do perigo de dano, da aparência e da verossimilhança
para a sua concessão, na tutela antecipada prevista no § 6º do art. 273 do CPC
basta a incontrovérsia de uma parte dos pedidos.
Com efeito, a tutela antecipada, se vista apenas a regra do caput do art. 273
do estatuto processual civil, confere ao autor, desde que preenchidos os requisitos
autorizadores, a antecipação dos efeitos da decisão final de mérito a fim de
que, tutelado desde o início, possa suportar todo o trâmite processual até que
seus efeitos sejam confirmados pela sentença. O parágrafo 6º do mencionado
dispositivo, ao contrário, permite a antecipação baseada na incontrovérsia, seja
esta por reconhecimento parcial do pedido pelo réu, pela confissão, pela revelia e
ainda pela própria prova inequívoca.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
235
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
É o que elucida Cândido Rangel Dinamarco (A reforma da reforma, São
Paulo, Malheiros, 6ª ed., 2003): “Diante do disposto no § 6º do art. 273 e da
pujante segurança para julgar, emergente da incontrovérsia sobre fatos, nessa
hipótese se dispensa o periculum in mora, ou ‘fundado receio de dano irreparável
ou de difícil reparação’, ordinariamente exigido pelo inc. I desse artigo.”
Na prática, é a tutela do direito evidente, objetivando a celeridade da
prestação jurisdicional.
Quanto ao reconhecimento parcial do pedido, hipótese que interessa ao
caso, Rogéria Dotti Doria esclarece que “é verdadeira adesão do réu ao pedido
do autor, ensejando autocomposição do litígio e dispensando o juiz de dar a sua
própria solução ao mérito. O juiz apenas encerra o processo, reconhecendo que
a lide se extinguiu por eliminação da resistência do réu à pretensão do autor.”
(A tutela antecipada em relação à parte incontroversa da demanda, 2ª ed. São
Paulo: RT, 2004)
Isto é, se um dos pedidos, ou parcela deles, já se encontre comprovado,
confessado ou reconhecido, não há razão que justifique o seu adiamento até
a decisão final que aprecie a parte controversa da demanda que carece de
instrução probatória.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery bem exemplificam a
situação:
Havendo admissão parcial da pretensão pelo réu, quando, por exemplo, o
autor pede 200 e o réu admite a dívida mas diz que o valor é de 100, na verdade
há parte de pretensão sobre a qual não houve controvérsia. Nada consta que
o autor peça adiantamento da parte incontrovertida, sob a forma de tutela
antecipatória, como, aliás, vem previsto no art. 186 bis do Código de Processo
Civil italiano (...) (Código de processo civil comentado e legislação extravagante,
São Paulo: RT, 2003, p. 652).
Neste ponto, por necessário, volta-se ao caso sob análise. O Tribunal de
origem determinou o levantamento da quantia que entendeu incontroversa,
“observada a cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento” (fl.
245), haja vista que “a parte ré, aqui agravada, desde a contestação reconheceu como
devido o percentual de 2,5% (dois e meio por cento), e quantifica essa dívida em
US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil, setecentos e sessenta
e cinco dólares e trinta e quatro centavos). Ora, se esse valor é indiscutível e
se há quantia depositada superior na nossa moeda, nada impede o correspondente
levantamento pelo credor” (fl. 243 - grifou-se).
236
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Extraem-se dos autos, sem nenhum revolvimento probatório, porquanto
constantes das petições da empresa americana, as seguintes afirmações:
STM Networks INC., nos autos da ação de cobrança que lhe move STM Wireless
Telecomunicações Ltda. (...) vem expor e requerer a V.Exa, o que se segue:
(...)
As partes reconhecem que celebraram um Acordo de Distribuição Internacional
e posteriormente um aditivo ao mesmo Acordo, em que o percentual de comissão
da autora foi reduzido de 20% (vinte por cento) para 2,5% (dois e meio por cento).
Não existe nenhuma controvérsia sobre esses dois pontos.
(...)
Assim, reiterando os termos de sua contestação e demais manifestações
constantes dos autos e estando a causa madura para julgamento, requer, nos
termos do r. despacho de fls. 407, que seja proferida a sentença, julgando/
condenando:
a) procedente o pedido formulado na peça inicial, referente ao percentual de 2,5%
sobre os contratos celebrados pela ré, sem condenação em honorários, tendo em
vista que, quanto a aquele percentual, nunca houve lide;
b) improcedente o pedido formulado, referente ao percentual de 20%; (...) (fls. 7684 - grifou-se).
O que reconhece a agravada e sempre reconheceu, é o direito da agravante de
receber a comissão de 2,5% sobre o valor do contrato, ou seja, das vendas efetivas
dos equipamentos efetuadas pela agravada a Brasil Telecom no tal de (...) o
que corresponde a US$ 1,616,765.34. Em todas as petições apresentadas pela ora
agravada, somente houve o reconhecimento deste valor. Na petição de fls. 418, a
agravante, no item 19, reconhece expressamente somente este valor (...) (fl. 90 grifou-se).
Sendo, portanto, indubitavelmente incontroversa essa quantia, cujo valor, a
ser levantado, será apurado pela conversão da moeda no dia do pagamento, é de
ser reconhecido o direito do autor, não havendo falar em iliquidez do montante.
Em outras hipóteses, o STJ tem reconhecido a possibilidade de
levantamento parcial, referente à parte incontroversa do crédito:
Processual Civil. Administrativo. Agravo regimental no recurso especial.
Desapropriação. Execução de sentença. Expedição de precatório. Valor
incontroverso. Violação do art. 535 do CPC. Não-ocorrência. Reexame de matéria
fática. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Expedição de precatório alusivo à parte
incontroversa da dívida. Possibilidade.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
237
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...)
3. Qualquer conclusão em sentido contrário ao que decidiu o aresto atacado,
relativamente à existência ou não de manifestação expressa contra a expedição
do precatório, envolve o reexame do contexto fático-probatório dos autos,
inviável em sede de recurso especial, conforme o disposto na Súmula n. 7-STJ.
4. A orientação que tem sido adotada no âmbito desta Superior Corte de Justiça
é no sentido de que a impugnação parcial da dívida torna incontroversa a parte
que não foi objeto de contestação, havendo, em relação a ela, o efetivo trânsito
em julgado, requisito indispensável para a expedição do competente precatório,
conforme o disposto no art. 100, § 1º, da Constituição Federal, com a redação
dada pela EC n. 30/2000.
5. Agravo regimental desprovido (AgRg no REsp n. 1.073.490-PE, Rel. Ministra
Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 3.3.2009, DJe 1º.4.2009 - grifou-se).
Agravo regimental. Execução de título judicial. Embargos do devedor
parciais. Omissão do acórdão recorrido. Inexistência. Levantamento da parcela
incontroversa. Possibilidade. Art. 739, § 2º, do CPC.
I - Consoante dispõe o artigo 535 do Código de Processo Civil, destinam-se os
embargos de declaração a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade
ou contradição, não se caracterizando via própria à rediscussão do mérito da
causa.
II - Embora o devedor tenha oferecido embargos à execução alegando a iliquidez
do título, tal fato não tem o condão de impedir o levantamento do valor incontroverso
da dívida, reconhecido como tal pelos cálculos que foram apresentados pelo
próprio embargante. Ademais, o fato de haver diferença entre o valor executado e o
efetivamente devido não torna nula a execução.
Agravo improvido (AgRg no Ag n. 831.868-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti,
Terceira Turma, julgado em 26.5.2009, DJe 9.6.2009 - grifou-se).
Processo Civil. Negativa de prestação jurisdicional. Omissão não verificada.
Impugnação ao cumprimento de sentença. Valor incontroverso. Levantamento.
Desnecessidade de caução. Coisa julgada.
(...)
2. A Jurisprudência desta Corte já assentou que não é necessária caução para
levantamento de valores incontroversos, mesmo em sede de execução provisória.
Com muito maior razão não há de se exigir caução quando se tratar de execução
definitiva com impugnação ao cumprimento de sentença recebida no efeito
suspensivo. Isso porque o efeito suspensivo só alcança a parte controvertida da
dívida.
3. Os demais temas trazidos no Recurso Especial esbarram na existência de
coisa julgada.
238
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
4. Recurso Especial a que se nega provimento (REsp n. 1.069.189-DF, Rel.
Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 4.10.2011, DJe 17.10.2011).
Processo Civil. CPC arts. 126 e 515. Reconhecimento parcial do pedido. Pedidos
remanescentes. Se o reu, após interposta a apelação, reconhece parcialmente o
pedido, não pode o tribunal julgar prejudicado o recurso. Impõe-se-lhe o julgamento
da apelação, na parte remanescente, não atingida pelo reconhecimento (CPC, arts.
126 e 515). Recurso provido para que o Tribunal a quo prossiga no julgamento da
apelação (REsp n. 13.678-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira
Turma, julgado em 2.10.1991, DJ 4.11.1991).
Diante do exposto, nego provimento ao recurso da STM Networks Inc.
Por outro lado, ao argumento de decisão exauriente, pretende a STM
Wireless a incidência dos consectários legais da condenação sobre a parte
incontroversa, ou seja, os juros de mora e a fixação da verba honorária.
Quanto ao tema, entendeu o Tribunal de origem que os juros de mora e
os honorários advocatícios “não são compatíveis com o momento processual e
deverão ser decididas na sentença” (fl. 280).
É de se recordar que a tutela antecipada, antes da reforma trazida pela Lei
n. 10.442/2002, sempre foi vista como medida provisória, oriunda de cognição
sumária, na qual o juiz realizava, para sua concessão, um juízo de verossimilhança
da alegação, desde que houvesse prova inequívoca do direito alegado.
Não se olvide, contudo, que a nova regra trouxe novidade ao tema, quando
passou a retratar um caso típico de julgamento antecipado parcial ou fracionado
da própria lide.
Joel Dias Figueira Junior (Comentários à novíssima reforma do CPC Lei 10.444, de 07 de maio de 2002 -, Ed. Forense, 2002), por exemplo, afirma
que “se a antecipação da tutela tomou como fundamento o reconhecimento
parcial do pedido, ou, no caso de cumulação de ações, o reconhecimento integral
de uma das demandas, a decisão concessiva dos efeitos fáticos, nada obstante
interlocutória (de mérito), não será provisória, mas satisfativa definitiva, sendo
impossível, por conseguinte, o juiz modificar o conteúdo decisório, quando da prolação
de sentença de mérito. Nesse caso, estamos diante, na realidade, não de tutela
antecipada, mas de verdadeiro julgamento antecipado e fracionado da lide
com execução imediata da decisão em sua parte incontroversa, decorrente do
reconhecimento do pedido (parcial) ou integral de uma das ações cumuladas”.
Na mesma linha, Marinoni esclarece que, “segundo o § 4º do art. 273,
‘a tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
239
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
decisão fundamentada’. Este preceito não se aplica à hipótese de tutela antecipatória
em caso de não contestação ou de reconhecimento jurídico do pedido. Nestes casos,
a tutela antecipatória é fundada em cognição exauriente, e não em cognição
sumária. A cognição sumária é a cognição típica dos juízos de probabilidade
e de verossimilhança, e somente um juízo provável, porque provisório, pode
racionalmente justificar a revogação ou modificação da tutela.” (Tutela
antecipatória e julgamento antecipado - parte incontroversa da demanda - RT,
5ª ed., p. 105)
Fredie Didier Jr., analisando o mesmo artigo, afirma que a decisão
“interlocutória que versa sobre parte do mérito, é definitiva, fundada em cognição
exauriente (juízo de certeza, não de verossimilhança), apta a ficar imune pela
coisa julgada material e passível de execução também definitiva.” (Inovações
na antecipação dos efeitos da tutela e a resolução parcial do mérito. Revista
Gênesis de Direito Processual Civil, n. 26, out. 2002, p. 717)
Igualmente, Luiz Rodrigues Wambier defende que “Na hipótese do 6º,
vai-se ainda mais longe: parte do objeto do processo tornou-se incontroversa de modo
tal que não fosse a necessidade de instrução probatória quanto à outra parte, ainda
incontroversa já seria possível proferir sentença de procedência.” (Curso avançado de
processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. 1. 11.
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 384 - grifou-se)
A contrario sensu, parte da doutrina entende que o dispositivo encerra
tão somente um novo caso de antecipação de tutela, exatamente por não ser
possível, na atual sistemática do Código de Processo Civil brasileiro, fracionar
ou cindirem momentos distintos do julgamento, mesmo com a nova definição
de sentença contida no art. 162, § 1º, do Código de Processo Civil, dada pela
Lei n. 11.232/2005.
Em verdade, seguindo a nova escola italiana e passando a conceituar os
tipos de provimento judicial pelo seu conteúdo, avançamos pouco em relação à
celeridade processual, mormente pelo fato de que, no sistema italiano vigente,
afastou-se a necessidade de a sentença ter seus capítulos julgados em um único
momento, justamente visando evitar o retardamento e o prejuízo ao processo.
Conceituou-se sentenza non-definitiva como “la sentenza che non definisce il
giudizio, cosiché il processo debba continuare dopo la sua pronuncia (cfr. art. 279,
secondo comma, n. 4); con essa il giudice decide una parte della materia controversa,
che può riguardare tanto il merito, quanto le questioni preliminari” (tradução livre:
“a sentença que não define o julgamento, assim o processo deve continuar
depois de sua pronúncia (cf. art. 279, segundo parágrafo, n. 4); com ela, o juiz
240
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
decide uma parte da matéria controvertida, que pode concernir tanto ao mérito,
quanto a questões preliminares”).
Como bem lembra Rogéria Dotti Dória, contudo, “sempre predominou em
nosso ordenamento jurídico o princípio chiovendiano ‘della unità e unicità della
decisione’. Isso significava que mesmo diante de um pedido referente a questão
unicamente de direito e outro dependente de instrução probatória, o juiz deveria
proferir uma única decisão ao final do processo e após a colheita das provas. Em
outras palavras, não lhe era permitido antecipar o julgamento daquele pedido
que já se encontrava ‘maduro’ para aprecição” (A Tutela antecipada em relação à
parte incontroversa da demanda, São Paulo: RT, 2000, p. 92).
No mesmo sentido, a ponderação de Teori Albino Zavascki ao argumentar
que “para a imediata tutela da parte incontroversa do pedido, talvez a melhor
solução tivesse sido a da cisão do julgamento, permitindo sentença parcial, mas
definitiva, de mérito. Ter-se-ia, com essa solução, a possibilidade de outorgar,
relativamente ao pedido incontroverso, a imediata, completa e definitiva tutela
jurisdicional. Não foi essa, todavia, a opção do legislador, que preferiu o caminho
da tutela antecipada provisória. Com isso, limitou-se o âmbito da antecipação
aos efeitos executivos da tutela pretendida.” (Antecipação da tutela em face de
pedido incontroverso. Revista Jurídica, n. 301, Nov/2002, p. 30-35)
Também exigindo a expressa e inequívoca previsão normativa para o fim
do princípio da unidade da sentença, posicionou-se Athos Gusmão Carneiro,
porquanto “a melhor solução, pelo menos no aguardo de novidades legislativas
(...), será manter sobre o caráter de antecipação propriamente dita as parcelas dos
pedidos não contestados, portanto, sem formação de coisa julgada, subsistindo
a possibilidade de sua alteração ou revogação na pendência da demanda. A
decisão interlocutória será confirmada, ou não, na sentença a ser prolatada após
o contraditório pleno.” (Da antecipação da tutela. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
p. 64)
Cândido Rangel Dinarmarco, no mesmo sentido, lembra que “o legislador
não quis ousar mais, a ponto de autorizar nesses casos um parcial julgamento
antecipado do mérito, prevalecendo à rigidez do procedimento brasileiro, no
qual o mérito deve ser julgado em sentença e a sentença será sempre uma só no
processo (Art. 459, c/c art. 269, II, e art. 162, § 1º)” (Tutela jurisdicional, vol. 81,
São Paulo, Revista dos Tribunais).
Assim, a despeito das reformas que se sucederam visando à modernização
do sistema processual pátrio, deixou o legislador de prever expressamente a
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
241
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
possibilidade de cisão da sentença. Daí a diretiva de que o processo brasileiro
não admite sentenças parciais, recaindo sobre as decisões não extintivas o
conceito de “decisão interlocutória de mérito”.
Outra não tem sido a linha de pensamento adotada por esta Corte,
conforme se verifica nos seguintes precedentes:
- A jurisprudência desta Corte admite a Ação Rescisória no caso de falsa decisão
interlocutória, isto é, de sentenças substancialmente de mérito, entendido como o
núcleo da pretensão deduzida em Juízo, o que se evidencia em situações como a
de rejeição de pedidos cumulados ou julgamento incidental de reconvenção (REsp
n. 628.464-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi) (REsp n. 685.738-PR, Rel. Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 24.11.2009, DJe 3.12.2009 - grifou-se).
- A ação rescisória pode ser utilizada para a impugnação de decisões com
conteúdo de mérito e que tenham adquirido a autoridade da coisa julgada material.
Em que pese incomum, é possível que tais decisões sejam proferidas incidentalmente
no processo, antes da sentença.
Isso pode ocorrer em três hipóteses: (i) em diplomas anteriores ao CPC/1973; (ii)
nos processos regulados pelo CPC em que, por algum motivo, um dos capítulos da
sentença a respeito do mérito é antecipadamente decidido, de maneira definitiva;
e, finalmente (iii) sempre que surja uma pretensão e um direito independentes do
direito em causa, para serem decididos no curso do processo. Exemplo desta última
hipótese é a definição dos honorários dos peritos judiciais e do síndico na falência:
o direito à remuneração desses profissionais nasce de forma autônoma no curso do
feito, e no próprio processo é decidido, em caráter definitivo. Não há por que negar a
via da ação rescisória para impugnar tal decisão (REsp n. 711.794-SP, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5.10.2006, DJ 23.10.2006 - grifou-se).
Desse último precedente vale destacar o seguinte excerto:
Mesmo no processo de conhecimento regulado pelo CPC, é comumente aceita na
doutrina a idéia de que a sentença, ainda que, materialmente, consista de um ato uno,
pode ser compartimentalizada e, do ponto de vista substancial, dividir-se em tantos
capítulos quantos sejam os pedidos formulados pelo autor (ou pelo réu, em hipótese
de reconvenção, declaração incidental ou pedido contraposto). Essa idéia, que tem
sua origem no pensamento de Chiovenda, foi amplamente desenvolvida no
direito italiano. Nada obsta, porém, que ela seja também aplicada no âmbito do
direito brasileiro. Nesse sentido, confira-se, por todos, Cândido Rangel Dinamarco,
Capítulos da sentença, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 63.
O mais comum é que todos esses capítulos sejam decididos ao mesmo tempo,
no mesmo ato. Mas é possível que haja a antecipação da decisão em relação a
algum ou alguns deles. Nessas hipóteses, não há por que negar ao prejudicado o
direito à propositura da ação rescisória. Essa é a opinião de Flávio Luis Yarshell (Ação
242
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
rescisória: Juízos rescindente e rescisório, Malheiros, 2005, p. 187), para quem “o
julgamento de cada capítulo ganha autonomia, de tal sorte, inclusive, que o trânsito
em julgado passa, na hipótese de fracionamento, a se operar em momentos diversos,
com implicações importantes, uma das quais – talvez a mais evidente – é atinente ao
prazo para o ajuizamento da ação rescisória”.
Uma situação como essa, naturalmente, seria excepcional. Porém, não se pode
afastar a possibilidade de sua ocorrência. A 4ª Turma do STJ já a enfrentou, por
ocasião do julgamento do REsp n. 100.902-BA, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de
29.9.1997, assim ementado:
Processual Civil. Ação rescisória. Decisão rescindenda tomada em agravo
de instrumento.
Se a prestação jurisdicional principal pode ser compartimentalizada, no
caso de cumulação de pedidos, de sorte ser dirimida por etapas, qualquer
decisão parcial que destrama o mérito de cada pedido, ainda que seja tomada
em agravo de instrumento e mesmo que tenha natureza processual, enseja, em
tese, o ingresso de ação rescisória.
Hipótese em que a decisão rescindenda, improvendo agravo de
instrumento, desconstituiu a garantia hipotecária e criou intransponível
obstáculo capaz de impedir que prosperasse a pretensão do então
exeqüente deduzida na execução, pelo menos na parte de ter o seu crédito
assegurado com a garantia hipotecária daquele bem.
Recurso conhecido e provido. (grifou-se).
Com efeito, Flávio Luiz Yarshell, bem lembrado no referido voto, já
defendia que “situação diversa ocorre se a antecipação da tutela se dá porque
parte da demanda é incontroversa, conforme dicção do § 6º do art. 273 do CPC.
É que, nesse caso, conforme anteriormente acenado, parece lícito afirmar que não
há mais o caráter de ‘provisório’ no ato; tanto que a doutrina tem afirmado que,
nessa hipótese, não vigora o limite do ‘perigo de irreversibilidade’ de que fala o
§ 2º do art. 273 da lei processual”. E, conclui, afirmando que, “mesmo veiculado
por decisão interlocutória, há julgamento do mérito, a ensejar desconstituição
por ação rescisória”. (Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 197).
Ao que se tem, portanto, a decisão que antecipa a tutela da parte
incontroversa da demanda, a bem da verdade, é de natureza meritória e
satisfativa, porém, por questão de política legislativa, foi mantida no rol do
artigo 273 do Código de Processo Civil, relacionando-se, erroneamente, com o
juízo de cognição sumária.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
243
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Corroborando tal entendimento, Marinoni ensina que:
É obvio que esta tutela antecipatória é fundada em cognição exauriente, e não
em cognição sumária. Se o julgamento ocorre quando não faltam provas para a
elucidação da matéria fática, não há juízo de probabilidade, mas sim juízo capaz
de permitir a declaração da existência do direito. No presente caso, em que é
aplicável o § 6º do art. 273, somente não há coisa julgada material em razão de uma
questão de política legislativa. Em outros termos, tendo permanecido inalterado
o art. 273 quanto ao aspecto da possibilidade de revogação e modificação da
tutela (art. 273, § 4º), esta pode ser revogada ou modificada ao final, muito embora
somente possa ser concedida no caso de cognição exauriente (Tutela antecipatória
e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 146 - grifou-se).
Daniel Amorim Assunção Neves, na mesma linha, assevera que a
“necessidade de julgamento antecipado de parte da lide, embora se reconheça
poder de fato trazer mais benefícios à efetividade da entrega jurisdicional,
necessita obrigatoriamente de mudança legislativa, de forma a recepcionar
circunstâncias com modificações procedimentais e mesmo de conceituação
de alguns institutos processuais.” (A reforma do CPC, São Paulo: RT, 2003 grifou-se)
Em vista do quanto exposto, não se discute que a tutela prevista no § 6º do
artigo 273 do CPC atende aos princípios constitucionais ligados à efetividade
da prestação jurisdicional, ao devido processo legal, à economia processual e à
duração razoável do processo, e que a antecipação em comento não é baseada em
urgência, nem muito menos se refere a um juízo de probabilidade (ao contrário,
é concedida mediante técnica de cognição exauriente após a oportunidade do
contraditório). Porém, como já dito, por questão de política legislativa a tutela
acrescentada pela Lei n. 10.444/2002 não é suscetível de imunização pela coisa
julgada.
Assim sendo, não há como na fase de antecipação da tutela, ainda que
com fundamento no § 6º do artigo 273 do CPC, permitir o levantamento dos
consectários legais (juros de mora e honorários advocatícios), que deverão ser
decididos em sentença.
Caso é, portanto, de negar provimento também ao recurso especial
interposto por STM Wireless Telecomunicações Ltda.
Em vista de todo o exposto, nego provimento aos dois recursos especiais.
É o voto.
244
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
RECURSO ESPECIAL N. 1.291.808-SP (2011/0142982-9)
Relator: Ministro João Otávio de Noronha
Recorrente: Ricardo Priolli da Cunha
Advogados: Marcio de Oliveira Risi e outro(s)
Marcus Vinicius Souza Mamede
Igor Carneiro de Matos
Recorrido: Advocacia Gonçalves Coelho S/C e outros
Advogado: Cândido da Silva Dinamarco e outro(s)
EMENTA
Processual Civil. Execução. Intimação com hora certa.
Equiparação ao procedimento de citação. Comunicado previsto no
art. 229 do CPC.
1. O procedimento de intimação da penhora com hora certa, na
vigência da Lei n. 8.953/1994, é perfeitamente admissível nos casos
em que, como o dos autos, caracterizar-se o intuito de ocultação do
devedor.
2. Na citação com hora certa, o prazo da contestação começa
a fluir com a juntada aos autos do mandado respectivo, e não do
comprovante de recepção do comunicado a que se refere o art. 229 do
CPC.
3. Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino,
Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro
Relator.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
245
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Dr(a). Marcio de Oliveira Risi, pela parte recorrente: Ricardo Priolli da
Cunha
Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro João Otávio de Noronha, Relator
DJe 7.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Ricardo Priolli da Cunha interpõe
recurso especial com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Carta
Magna, a fim de que seja reformado acórdão do TJSP que julgou intempestivos
embargos à execução, afastando a nulidade de penhora realizada com base
no art. 227 e segs. do CPC (intimação com hora certa), por entender que a
comunicação prevista no art. 229 (“Feita a citação com hora certa, o escrivão
enviará ao réu carta, telegrama ou radiograma, dando-lhe de tudo ciência”), não
obstante obrigatória, não invalida o ato se realizada após o prazo de 48 horas a
que se refere o art. 190.
Eis a ementa do julgado:
Execução. Contrato de honorários advocatícios. Embargos do devedor
rejeitados por intempestivos. Prazo para oposição dos embargos iniciado no
dia seguinte ao da juntada aos autos da execução do mandado de intimação do
devedor dos termos da penhora. Intimação que, no caso, se deu com hora certa.
Alegação de que a comunicação prevista no artigo 229, do Código de Processo
Civil, não ocorreu no prazo previsto pelo artigo 190 do mesmo codex, nem dentro
do prazo para oposição dos embargos. Nulidade não reconhecida. Recurso não
provido (e-STJ, fl. 131).
Nas razões do especial, pugna o recorrente pela tempestividade dos
embargos do devedor, aduzindo violação dos arts. 190 e 229 do CPC, além de
divergência jurisprudencial.
Argumenta, em síntese, que a intimação com hora certa somente
se aperfeiçoa com os procedimentos previstos nos arts. 190 e 229 do CPC.
Assevera que, “no caso em tela, temos que o cumprimento pelo serventuário
[...] se deu após mais de trinta dias da realização do ato, o que o torna inócuo
para o fim que se destina, pois, em tese, já havia a muito se escoado o prazo para
eventual defesa” (fl. 149).
246
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
As contrarrazões foram apresentadas às fls. 229-253.
Inadmitido o recurso no Juízo de origem (fls. 255-256) e interposto o
respectivo agravo (AREsp) da citada decisão, foram os autos encaminhados ao
STJ, tendo o Ministro Massami Uyeda, então relator do feito, “convertido os
autos em recurso especial para melhor análise da matéria” (fl. 343).
É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): Ab initio, cumpre
salientar que o procedimento de intimação da penhora com hora certa, na
vigência da Lei n. 8.953/1994, é perfeitamente admissível nos casos em que,
como o dos autos, ficar caracterizado o intuito de ocultação do devedor.
Confiram-se os seguintes precedentes do STJ:
Processo Civil. Penhora. Intimação com hora certa.
- A intimação da penhora com hora certa é admissível, desde que presentes os
pressupostos a que alude o art. 227 do CPC.
- Recurso não conhecido. (REsp n. 38.127-SP, relator Ministro Antônio Torreão
Braz, DJ de 21.2.1994.)
Civil/Processual penhora. Intimação com hora certa.
A intimação do art. 669 pode ser feita pela forma prevista no art. 227, ambos
do Código de Processo Civil, verificados os pressupostos, não exigindo este último
que se consigne na certidão do Oficial de Justiça as horas em que procurado o
intimando em seu endereço. (REsp n. 7.737-SP, relator Ministro Dias Trindade, DJ
de 22.4.1991.)
Do último, destaco os seguintes fundamentos:
O art. 227 do Código de Processo Civil estabelece a forma de intimação com
hora certa, quando há suspeita de ocultação do intimando, procurado por três
vezes em seu endereço. E essa forma de intimação, tanto quanto as demais
previstas no Código é aplicável não apenas ao processo de conhecimento, mas
dado o seu caráter de norma geral, a todas as outras dos demais processos,
inclusive o de execução.
Daí se conclui que também a intimação a que se refere o art. 669, para dar
ciência da intimação da penhora ao devedor, pode ser feita pela forma prescrita
no art. 227, não havendo incompatibilidade entre os dois dispositivos, que, ao
contrário, se completam.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
247
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Esclarecida a questão, passo ao exame da matéria de fundo suscitada no
especial, que diz respeito ao aperfeiçoamento da citação (no caso, intimação)
realizada com base no art. 227 do CPC.
Ao justificar a intempestividade dos embargos à execução opostos pelo ora
recorrente, pontuou o acórdão recorrido que a comunicação prevista no art. 229
do CPC “não interfere no prazo da contestação, constituindo mera formalidade
complementar” (fl. 133).
Tal entendimento está em perfeita harmonia com a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstram os seguintes precedentes:
Processual Civil. Citação. Hora certa. Prazo de defesa. Cômputo. Comunicado
do art. 229 do CPC. Relação. Inexistência.
1. O comunicado previsto no art. 229 do CPC serve apenas para incrementar
a certeza de que o réu foi efetivamente cientificado acerca dos procedimentos
inerentes à citação com hora certa, sendo uma formalidade absolutamente
desvinculada do exercício do direito de defesa pelo réu. Sendo assim, a expedição
do referido comunicado não tem o condão de alterar a natureza jurídica da
citação com hora certa, que continua sendo ficta, tampouco interfere na fluência
do prazo de defesa do réu.
2. O comunicado do art. 229 do CPC não integra os atos solenes da citação com
hora certa, computando-se o prazo de defesa a partir da juntada do mandado
citatório aos autos. Precedentes.
3. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.084.030-MG, relatora Ministra
Nancy Andrighi, DJe de 18.10.2011.)
Processual Civil. Citação com hora certa. Prazo. O prazo da contestação, na
citação com hora certa, inicia-se a partir da juntada do mandado aos autos e
não da data da recepção da carta enviada pelo escrivão. Recurso especial não
conhecido. (REsp n. 180.917-SP, relator Ministro Ari Pargendler, DJ de 16.6.2003.)
Processual Civil. Citação com hora certa. Validade.
I - Na citação com hora certa o prazo da contestação começa a fluir da juntada
do mandado e não do comprovante de recepção da correspondência do escrivão.
II - Recurso conhecido e provido para anular o processo a partir do saneador.
(REsp n. 8.633-MG, relator Ministro Waldemar Zveiter, DJ de 29.4.1991).
Na mesma linha, veja-se a doutrina de Humberto Theodoro Júnior:
Recebido o mandado, o escrivão procederá à sua juntada aos autos e expedirá,
em seguida, carta, telegrama ou radiograma, dando ao réu ciência da citação
concluída por hora certa (art. 229).
248
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Essa comunicação é obrigatória, mas não integra os atos de solenidade da
citação, tanto que o prazo de contestação começa a fluir da juntada do mandado
e não do comprovante de recepção da correspondência do escrivão (art. 241,
n. I). Trata-se, na verdade, de reforço das cautelas impostas ao oficial de justiça
e que tendem a diminuir o risco de que a ocorrência não chegue ao efetivo
conhecimento do réu.
A citação em causa, no entanto, não depende do conhecimento real do
citando, pois o Código a trata como forma de citação ficta e presumida, tanto que
dá curador especial à parte, caso incorra em revelia (art. 9º, n. II). (Curso de Direito
Processual Civil, 50ª ed. Forense, 2009, vol. 1, p. 266).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Srs. Ministros, acompanho
integralmente o voto do Sr. Ministro Relator.
Na verdade, a citação por hora certa é ficta até certo ponto, porque o art.
228 determina a ciência de uma pessoa da família ou de algum vizinho.
Então, na verdade, de algum modo, ele teve conhecimento, não havendo
impugnação da citação por hora certa em si, apenas da questão relativa à
comunicação.
Além disso, segundo uma certidão do escrivão judicial, ele não era o único
réu; havia o coexecutado, Fábio, que foi citado em momento processual anterior,
em função de uma petição juntada aos autos.
Então, com certeza, ele já tinha tido ciência anterior e estava realmente se
ocultando; com isso, fica bem claro que as providências foram todas legais.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.321.739-SP (2012/0088797-0)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Mapfre Vera Cruz Seguradora S/A
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
249
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Advogado: Magda Lúcia das Neves e outro(s)
Recorrido: Butoh Restaurante Ltda
Advogado: Paulo Alves Esteves e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Civil, Processual Civil e Consumidor.
Responsabilidade civil. Roubo de veículo. Manobrista de restaurante
(valet). Ruptura do nexo causal. Fato exclusivo de terceiro. Ação
regressiva da seguradora. Excludente da responsabilidade civil.
Consumidora por sub-rogação (seguradora).
1. Ação de regresso movida por seguradora contra restaurante
para se ressarcir dos valores pagos a segurado, que teve seu veículo
roubado quando estava na guarda de manobrista vinculado ao
restaurante (valet).
2. Legitimidade da seguradora prevista pelo artigo 349 do
Código Civil/2002, conferindo-lhe ação de regresso em relação a
todos os direitos do seu segurado.
3. Em se tratando de consumidor, há plena incidência do Código
de Defesa do Consumidor, agindo a seguradora como consumidora
por sub-rogação, exercendo direitos, privilégios e garantias do seu
segurado/consumidor.
4. A responsabilidade civil pelo fato do serviço, embora exercida
por uma seguradora, mantem-se objetiva, forte no artigo 14 do CDC.
5. O fato de terceiro, como excludente da responsabilidade pelo
fato do serviço (art. 14, § 3º, II, do CDC), deve surgir como causa
exclusiva do evento danoso para ensejar o rompimento do nexo causal.
6. No serviço de manobristas de rua (valets), as hipóteses de roubo
constituem, em princípio, fato exclusivo de terceiro, não havendo
prova da concorrência do fornecedor, mediante defeito na prestação
do serviço, para o evento danoso.
7. Reconhecimento pelo acórdão recorrido do rompimento
do nexo causal pelo roubo praticado por terceiro, excluindo
a responsabilidade civil do restaurante fornecedor do serviço do
manobrista (art. 14, § 3º, II, do CDC).
8. Recurso especial desprovido.
250
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A
Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas
Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 10.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto por Mapfre Vera Cruz Seguradora S.A. contra acórdão da 32ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, dando
provimento ao recurso da parte recorrida (Butoh Restaurante Ltda.), reformou
a sentença que a condenara em ação de regresso a ressarcir a seguradora os
valores pagos a consumidor que teve o seu veículo roubado, quando estava sendo
conduzido por manobrista (valet) do restaurante réu, ementado nos seguintes
termos:
Seguradora. Ação Regressiva. Roubo de Veículo conduzido por motorista
de serviço de estacionamento valet. Culpa do proprietário do estabelecimento
ou qualquer preposto não configurada. Força maior. Excludente reconhecida.
Indenização indevida. Sentença reformada. Recurso provido.
Em suas razões, a seguradora/recorrente sustentou que o acórdão recorrido
violou os artigos 186 e 349 do Código Civil, bem como apontou dissídio
jurisprudencial com precedentes específicos do Superior Tribunal de Justiça,
onde a interpretação acenou para o sentido de que roubo ou furto não configuram
caso fortuito, por se tratar de evento previsível. Postulou conhecimento e
provimento do recurso.
Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido.
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas.
O caso dos autos merece destaque por duas questões jurídicas relevantes
devolvidas ao conhecimento desta Corte.
A primeira delas é a possibilidade de a seguradora atuar como consumidora,
por sub-rogação, em ação de regresso, pleiteando direitos e garantias do seu
segurado/consumidor contra o causador do dano (fornecedor de serviço).
A segunda questão diz com a ocorrência de força maior ou fato exclusivo
de terceiro, como causa de rompimento do nexo de causalidade e consequente
afastamento da responsabilidade civil na hipótese do roubo de veículo conduzido
por manobrista de restaurante (serviço de valet).
Na origem, a seguradora, ora recorrente, ajuizou ação de regresso contra
restaurante que oferecera serviço de manobrista ao seu segurado, momento em
que o veículo foi roubado.
A sentença julgou procedente o pedido, condenando o restaurante a
ressarcir à seguradora os gastos tidos com o seu segurado, reconhecendo defeito
na prestação do serviço prestado, por entender não haver quebra do nexo
causal o roubo ocorrido com o veículo do consumidor, sendo a seguinte a sua
motivação:
O furto e/ou roubo de veículo na região dos Jardins, em São Paulo, é fato
absolutamente previsível. Até por isso há na região inúmeros estacionamentos e
restaurantes que proporcionam serviço de manobrista para os veículos de seus
clientes.
É a insegurança quanto à possibilidade de furto e roubo que fez gerar a
necessidade de oferecimento desse serviço diferencial aos clientes dos
restaurantes daquela região.
Portanto, não é possível afirmar que a ocorrência de um fato esperado possa
ser eximente de responsabilidade objetiva.”
O Tribunal de origem, dando provimento ao recurso de apelação do
restaurante, reformou a sentença, julgando improcedente o pedido da seguradora,
reconhecendo a quebra do nexo causal, com a seguinte fundamentação, verbis:
Ocorre, porém, que a excepcionalidade do evento que resultou no
despojamento da coisa, que difere da ocorrência de simples furto, ou mesmo
de qualquer descuido de preposto da ré, é bastante para a configuração da
excludente de responsabilidade.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Com efeito, respeitado o entendimento do magistrado a quo, é forçoso
reconhecer que a ação violenta, praticada mediante emprego de arma de fogo,
embora previsível, torna inevitável o ato, levando ao desaparecimento do nexo
causal, valendo anotar que a obrigação de cuidar da segurança pública incumbe
ao estado e não ao particular.
Destaco ainda, que no acórdão recorrido, da sua ementa, extrai-se a
análise da ausência de prova de participação culposa, tanto do proprietário do
restaurante, quanto do seu preposto/manobrista, verbis:
Seguradora. Ação Regressiva. Roubo de Veículo conduzido por motorista
de serviço de estacionamento valet. Culpa do proprietário do estabelecimento
ou qualquer preposto não configurada. Força maior. Excludente reconhecida.
Indenização indevida. Sentença reformada. Recurso provido.” (grifos meus)
Eis a moldura fática desenhada pelas instâncias de origem, que permite
reconhecer que o roubo do veículo foi a causa exclusiva do evento danoso,
independentemente de se qualificá-lo como força maior ou como fato exclusivo
de terceiro.
Adianto não merecer provimento ao recurso especial.
O primeiro ponto a destacar é a possibilidade de a seguradora aturar como
consumidor por sub-rogação.
O dispositivo do artigo 349 do Código Civil/2002 legitima a seguradora a
pleitear em ação de regresso todos os direitos do seu segurado, que, no caso, era
consumidor do restaurante, verbis:
Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações,
privilégios e garantias do primitivo, em relação à divida, contra o devedor principal
e os fiadores. (grifei)
Assim, no caso, há plena incidência do Código de Defesa do Consumidor,
pois a hipótese dos autos é de responsabilidade civil pelo fato do serviço (art. 14
do CDC).
Nesse sentido, merecem lembrança alguns precedentes desta Corte:
Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Ação de reparação por perdas
e danos. Aplicação do CDC. Súmula n. 83 do STJ. Responsabilidade da recorrente.
Súmula n. 283-STF.
1. A relação entre a segurada e a recorrente é de consumo. Assim, incide o Código
de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora - que se sub-rogou nos
direitos da segurada - e a recorrente. Incidência da Súmula n. 83 desta Corte.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Ademais, a recorrente não cuidou de impugnar o fundamento do acórdão
recorrido de que sua responsabilidade permaneceria, ainda que afastada a
inversão do ônus da prova prevista no CDC, uma vez que não demonstrou a
existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da recorrida.
Incidência da Súmula n. 283-STF.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp n. 271.489-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 11.4.2013, DJe 17.4.2013)
Agravo regimental. Recurso especial. Responsabilidade civil. Ação regressiva
da seguradora contra o causador do dano. Transporte marítimo. Relação de
consumo. Prescrição. Inocorrência. Súmula n. 83-STJ. Decisão agravada mantida.
Improvimento.
I. A relação entre a segurada e a transportadora é de consumo. Assim, incide o
Código de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora - que se sub-rogou
nos direitos da segurada - e a transportadora, aplicando-se o prazo prescricional do
artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Incidência da Súmula n. 83 desta
Corte.
II. O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a
conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos.
III. Agravo Regimental improvido.
(AgRg no REsp n. 1.202.756-RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado
em 14.12.2010, DJe 17.2.2011)
Agravo regimental. Extravio de bagagem. Indenização. Ação regressiva.
Seguradora. Inversão do ônus da prova. Falta de prequestionamento. Súmulas n.
282 e 356-STF. CDC. Código Brasileiro de Aeronáutica. Inaplicável.
- A inversão do ônus da prova não foi objeto de discussão na formação do
acórdão recorrido. Súmulas n. 282 e 356-STF.
- Em casos de extravio de bagagem incide o CDC, não mais se aplicando os limites
indenizatórios do Código Brasileiro de Aeronáutica, ainda que em ações regressivas
movidas por seguradoras. Precedentes.
(AgRg no AgRg no Ag n. 256.225-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros,
Terceira Turma, julgado em 24.5.2005, DJ 27.6.2005, p. 361)
Dessa forma, a responsabilidade civil do restaurante recorrido, embora
diante de uma seguradora, permanece objetiva, forte no artigo 14 do Código de
Defesa do Consumidor:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da culpa,
pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços (...)” (grifei).
254
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Assim, não se discute a culpa do restaurante, devendo a sua defesa ser
concentrada nas hipóteses previstas no parágrafo 3º do artigo supracitado, que
constituem as causas de exclusão da responsabilidade civil do fornecedor, verbis:
§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.” (grifei)
O fato exclusivo de terceiro, que importa ao deslinde da demanda, para ser
caracterizado, para excluir a responsabilidade objetiva, deve ser a causa adequada
e exclusiva do dano, sem a concorrência de outros fatores, especialmente o
defeito na prestação do serviço pelo fornecedor demandado, hipótese em que
persistiria a plena responsabilidade do fornecedor de serviços.
Em síntese, o fato de terceiro ou a força maior, como reconhecido pelo
acórdão recorrido, devem surgir como causa adequada e exclusiva do dano
sofrido pelo prejudicado para ensejar o rompimento do nexo causal.
Nos serviços de manobristas (valets) ofertados por restaurantes nas grandes
cidades, deve-se estabelecer uma distinção entre a ocorrência de furto ou roubo
de veículo para efeito de responsabilidade civil.
Nas hipóteses de roubo, caracteriza-se o fato de terceiro ou a força maior,
podendo-se discutir apenas eventual concorrência do demandado, mediante
uma prestação defeituosa do seu serviço, para o evento danoso (fato exclusivo ou
concorrrente).
Nas hipóteses de furto, em que não há violência, permanece a
responsabilidade, pois o serviço prestado mostra-se defeituoso por não
apresentar a segurança legitimamente esperada pelo consumidor.
No caso concreto, a sentença entendeu não ter sido rompido o nexo
causal entre o roubo do veículo e o serviço de manobrista oferecido dada a
previsibilidade pelo restaurante da ocorrência desse tipo de evento danoso
naquela localidade, devendo responder tanto pelo furto, quanto pelo roubo.
O Tribunal de origem, diversamente, entendeu que o caso de roubo, embora
previsível, é inevitável, rompendo esse fato de terceiro o nexo de causalidade
entre o dano causado ao consumidor (perda patrimonial) e o serviço prestado
pelo estabelecimento (manobrista).
Correta a conclusão do acórdão recorrido, esposando a orientação
jurisprudencial tradicional desta Corte Superior, traçada pelo eminente Ministro
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Eduardo Ribeiro, acerca da distinção entre a previsibilidade e a inevitabilidade
do fato para caracterização da força maior, verbis:
Automóvel. Roubo ocorrido em posto de lavagem. Força maior. Isenção de
responsabilidade. O fato de o artigo 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor
não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de
responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por
ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código
Civil. A inevitabilidade e não a imprevisibilidade é que efetivamente mais importa
para caracterizar o fortuito. E aquela há de entender-se dentro de certa relatividade,
tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigirse. (REsp n. 120.647-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em
16.3.2000, DJ 15.5.2000, p. 156)
Em recente julgamento, esta Terceira Turma, em acórdão da minha
relatoria, analisou a hipótese do roubo em estacionamento de supermercado,
quando não se reconheceu a ocorrência de quebra do nexo causal, sendo a
decisão ementada nos seguintes termos:
Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade civil. Consumidor.
Roubo de veículo em estacionamento de supermercado. Denunciação à lide da
seguradora do estabelecimento comercial. Danos materiais e morais.
1. Roubo de camionete, mediante assalto a mão armada, em estacionamento
de supermercado.
2. A ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade
civil nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor
é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial.
3. Reconhecimento da ocorrência de danos materiais e morais.
4. Procedência do pedido formulado na denunciação da lide da seguradora, na
forma do art. 101, II, do CDC respeitados os limites da apólice de seguro.
5. Jurisprudência atual do STJ acerca do tema.
6. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.182.072-PR, desta relatoria, Terceira Turma, julgado em 3 de outubro de
2012).
Como pode ser observado, a tese jurídica esposada naquele julgado
foi no sentido de que a ocorrência de roubo não constitui causa excludente
de responsabilidade civil nos casos em que a garantia de segurança física e
patrimonial do consumidor é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento
comercial. Assim, o serviço prestado mostrou-se defeituoso por não atender à
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
segurança legitimamente esperada pelo consumidor, não sendo o roubo a causa
exclusiva do evento danoso.
Na mesma linha, merecem referência dois acórdãos desta Terceira Turma,
cujas ementas são as seguintes, verbis:
Recurso especial. Ação de indenização por danos morais em razão de roubo
sofrido em estacionamento de supermercado. Procedência da pretensão. Força
maior ou caso fortuito. Não reconhecimento. Conduta omissiva e negligente do
estabelecimento comercial. Verificação. Dever de propiciar a seus clientes integral
segurança em área de seu domínio. Aplicação do direito à espécie. Possibilidade,
in casu. Dano moral. Comprovação. Desnecessidade. “Damnum in re ipsa”, na
espécie. Fixação do quantum. Observância dos parâmetros da razoabilidade.
Recurso especial provido.
I - É dever de estabelecimentos como shoppings centers e hipermercados zelar
pela segurança de seu ambiente, de modo que não se há falar em força maior para
eximi-los da responsabilidade civil decorrente de assaltos violentos aos consumidores;
II - Afastado o fundamento jurídico do acórdão a quo, cumpre a esta Corte
Superior julgar a causa, aplicando, se necessário, o direito à espécie;
III - Por se estar diante da figura do “damnum in re ipsa”, ou seja, a configuração
do dano está ínsita à própria eclosão do fato pernicioso, despicienda a
comprovação do dano.
IV - A fixação da indenização por dano moral deve revestir-se de caráter
indenizatório e sancionatório, adstrito ao princípio da razoabilidade e, de outro
lado, há de servir como meio propedêutico ao agente causador do dano;
V - Recurso Especial conhecido e provido.
(REsp n. 582.047-RS, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
17.2.2009, DJe 4.8.2009)
Responsabilidade civil. Ação de conhecimento sob o rito ordinário.
Assalto à mão armada iniciado dentro de estacionamento coberto
de hipermercado. Tentativa de estupro. Morte da vítima ocorrida fora do
estabelecimento, em ato contínuo. Relação de consumo. Fato do serviço. Força
maior. Hipermercado e shopping center. Prestação de segurança aos bens e à
integridade física do consumidor. Atividade inerente ao negócio. Excludente
afastada. Danos materiais.
Julgamento além do pedido. Danos morais. Valor razoável. Fixação em saláriosmínimos. Inadmissibilidade. Morte da genitora. Filhos.
Termo final da pensão por danos materiais. Vinte e quatro anos.
- A prestação de segurança aos bens e à integridade física do consumidor é
inerente à atividade comercial desenvolvida pelo hipermercado e pelo shopping
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
center, porquanto a principal diferença existente entre estes estabelecimentos e
os centros comerciais tradicionais reside justamente na criação de um ambiente
seguro para a realização de compras e afins, capaz de induzir e conduzir o
consumidor a tais praças privilegiadas, de forma a incrementar o volume de
vendas.
- Por ser a prestação de segurança e o risco ínsitos à atividade dos hipermercados e
shoppings certers, a responsabilidade civil desses por danos causados aos bens ou à
integridade física do consumidor não admite a excludente de força maior derivada de
assalto à mão arma ou qualquer outro meio irresistível de violência.
- A condenação em danos materiais e morais deve estar adstrita aos limites do
pedido, sendo vedada a fixação dos valores em salários-mínimos.
- O termo final da pensão devida aos filhos por danos materiais advindos de
morte do genitor deve ser a data em que aqueles venham a completar 24 anos.
- Primeiro e segundo recursos especiais parcialmente providos e terceiro
recurso especial não conhecido.
(REsp n. 419.059-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
19.10.2004, DJ 29.11.2004, p. 315)
Na colenda Quarta Turma do STJ, no mesmo sentido, monocraticamente,
o ilustre Ministro Luis Felipe Salomão, reforçou esse entendimento de
que a ocorrência de roubo não constitui força maior como causa excludente de
responsabilidade civil de hipermercado, nos casos em que o risco e a prestação de
segurança são inerentes à atividade do estabelecimento, verbis:
Processual Civil. Direito Civil. Recurso especial. Ausência. Preqüestionamento.
Súmula n. 211-STJ. Ação de indenização por danos materiais e morais. Força maior
ou caso fortuito. Não-reconhecimento. Roubo. Estacionamento. Hipermercado.
Responsabilidade objetiva. Aplicação. Direito à espécie. Danos morais. Fixação.
Quantum. Danos materiais. Apuração. Liquidação por arbitramento. Recurso
conhecido em parte e, na extensão, provido. (REsp n. 601.026-SP, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, decisão monocrática, julgado em 30.4.2010).
Nesse mesmo sentido, foi a alegação da parte recorrente sustentando
dissídio jurisprudencial entre o acórdão recorrido e a orientação acima assinalada.
Todavia, tanto a jurisprudência indicada no recurso especial, quanto a
acima aludida acenam para hipóteses de responsabilização de supermercados,
bancos, shopping centers, enfim, empresas que fornecem estacionamentos aos
seus consumidores como técnica para captação de clientela, não apenas em face
do conforto, mas também da segurança oferecida, que se torna uma legítima
expectativa do público consumidor.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No caso dos autos, diferentemente, há um restaurante que oferta serviço de
manobrista (valet) aos seus clientes. Não há exploração de um estacionamento
cercado com grades, tratando-se de simples comodidade ao cliente que não
deseja ficar rodando com seu veículo na busca de uma vaga para estacionar o seu
carro na rua.
Evidente que a diligência na guarda da coisa, preservando a sua integridade
material, é incluída neste serviço.
Entretanto, as exigências de garantia da segurança física e patrimonial do
consumidor são menos contundentes do que os estacionamentos de shopping
centers e hipermercados, pois o serviço é prestado na via pública, não podendo
responder pela ocorrência de assalto a mão armada (roubo).
Portanto, mostrou-se correta a conclusão do acórdão recorrido, que deve
ser mantida.
Ante todo exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.353.907-RJ (2012/0152053-4)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Cavalo Marinho Comestíveis Ltda
Advogados: Luiz Eduardo Marinho de Brito Chaves e outro(s)
Gustavo Coutinho Barros da Silva e outro(s)
Mario Victor Vida Azevedo e outro(s)
Recorrido: João Correa de Mendonça e outros
Advogados: Leonardo Orsini de Castro Amarante e outro(s)
Thalles Messias de Andrade
EMENTA
Recurso especial. Direito Processual Civil. Impugnação ao
cumprimento de sentença. Garantia integral do juízo. Exigência.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1.- Os embargos opostos contra a execução fundada em título
extrajudicial dispensam, para o seu conhecimento e processamento, que
o Juízo esteja seguro, mas o mesmo não ocorre, na fase de cumprimento
de sentença, em relação à impugnação a esse cumprimento. Precedentes.
2.- A garantia integral do juízo é pressuposto para o processamento
da impugnação ao cumprimento de sentença, não bastando que tenha
havido penhora de valor correspondente a apenas parte da dívida.
Inteligência do Art. 475-J, § 1º, do CPC.
3.- Recurso Especial improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo
Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e João Otávio de Noronha votaram com o
Sr. Ministro Relator. Dr(a). Mario Victor Vida Azevedo, pela parte recorrente:
Cavalo Marinho Comestíveis Ltda
Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento)
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 21.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Cavalo Marinho Comestíveis Ltda
interpõe Recurso Especial com fundamento nas alíneas a do inciso III, do artigo
105, do permissivo constitucional, manejado contra Acórdão do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Relator o Desembargador Marcelo Lima
Buhatem, assim ementado (fls. 612-614):
Agravo interno no agravo de instrumento decisão monocrática que deu
parcial provimento ao recurso, nos termos do art. 557, § 1º-A, do CPC. Recurso
de agravo interno de mérito próprio, ora dialogando com os requisitos genéricos
da aplicação do art. 557 do CPC, ora com o próprio mérito do recurso originário.
Essência infringente do recurso de agravo interno. Necessidade de levar ao
260
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
colegiado decisão monocrática proferida pelo relator. Decisão unipessoal que
deve ser mantida já que preencheu os requisitos para a sua aplicação no mérito.
Processual Civil. Agravo de instrumento. Demanda indenizatória em fase de
cumprimento de sentença. Impugnação. Rejeição liminar. Garantia do juízo.
Valor integral do crédito exequendo. Requisito de admissibilidade precedentes.
Hipótese de não conhecimento. Recurso principal que restou assim subementado:
1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos da demanda
indenizatória, em fase de cumprimento de sentença, rejeitou liminarmente a
impugnação sob o argumento de que o impugnante não garantiu o Juízo pelo
valor total da execução.
2. Alega a agravante, em síntese, que a garantia do juízo não é requisito de
admissibilidade da impugnação, ressaltando, a título de argumentação, que não
há norma ou dispositivo legal prevendo que a garantia deva ser integral.
3. Aduz que o juízo se encontra devidamente garantido, uma vez que o
valor penhorado, já levantado pelos agravados, corresponde a 84% do valor
incontroverso.
4. Ab initio, rejeito a preliminar arguida pelos agravados, uma vez que o juízo a
quo informou às fls. 548 que a agravante cumpriu o disposto no art. 526, do CPC.
5. Pela nova sistemática do CPC, introduzida pela Lei n. 11.232/2005, na
execução de sentença, que se faz pelo instituto do cumprimento da sentença,
o oferecimento da impugnação pressupõe a prévia garantia do juízo, mediante
a penhora ou depósito integral do valor exequendo, consoante o disposto no
art.475-J, § 1º do CPC.
6. Ressalta-se, que o tratamento aqui dispensado é diverso daquele previsto
para os embargos do devedor à execução por título extrajudicial, que não
exige a garantia do juízo. Tal distinção se faz ante a necessidade de se impor
maior garantia ao cumprimento de um título executivo formado sob o pálio do
contraditório e da ampla defesa, onde foi oportunizada à parte a defesa de seus
interesses e a produção probatória.
7. In casu, a penhora efetuada apurou um valor menor do que o crédito
executado, de modo que o juízo não se encontra totalmente garantido.
8. Não obstante, tratando-se de requisito formal, a ausência de garantia do
juízo enseja apenas o não conhecimento da impugnação, e não sua rejeição, sob
pena de se furtar ao devedor discutir o quantum exequendo.
9. Assim, impõe-se a reforma da decisão agravada apenas para afastar a liminar
rejeição da impugnação viabilizando, de tal forma, posterior conhecimento da
mesma, desde que garantido integralmente o juízo.
Nega-se provimento ao agravo interno.
2.- O agravante, nas razões do especial, sustenta em síntese, que a
admissibilidade da impugnação ao cumprimento da sentença não está
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
condicionada ao depósito ou penhora da integralidade do valor requerido na
execução como forma de garantia da execução. O Tribunal de origem, assim não
o reconhecendo, teria violado o artigo 475-J, § 1º, do Código de Processo Civil
o qual mencionaria apenas a necessidade de que tenha havido penhora, para que
possa ser apresentada a impugnação, sem exigir que essa penhora corresponda
ao total da dívida.
Acrescenta que, na hipótese dos autos, com maior razão seria necessário
apreciar a impugnação ao cumprimento de sentença, porque verificada a garantia
parcial do juízo pela penhora on line.
3.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por
forma de Agravo ao qual se deu provimento em sede de embargos declaratórios
com efeitos infringentes (fls. 714-717 e 748-749).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4.- Trata-se, na origem, de ação
ordinária pelo rito sumário proposta em 1999 por João Correa de Mendonça,
Terezinha Maria de Mendonça e Jorge Diego de Mendonça contra Cavalo Marinho
Comestíveis Ltda, visando ao recebimento de indenização por danos morais e
materiais decorrentes do falecimento de ente querido ocorrido no naufrágio do
barco “Bateau Mouche IV”, no litoral do estado do Rio de Janeiro, durante o
reveillon de 1988/1989 (fls. 20-31).
5.- A Sentença (fls. 51-56) julgou procedente o pedido condenando a Ré
ao pagamento: a) de pensão correspondente à 1/3 dos vencimentos da vítima,
desde o seu falecimento até a idade em que completaria 65 anos, b) indenização
pelos custos do funeral, e c) danos morais no importe de R$ 20.000,00 (vinte
mil reais) para cada um dos autores.
6.- Em sede de apelação, a pensão mensal foi majorada para 2/3 dos
vencimentos da vítima e a indenização por danos morais, para R$ 36.000,00
(trinta e seis mil reais) (fls. 60-70).
7.- Em 12.7.2006 os Autores pleitearam o cumprimento da sentença, na
forma do artigo 475-A, § 1º, do Código de Processo Civil (fls. 86-87) trazendo
planilha que indicou, como valor da execução, o total de R$ 717.754,42
(setecentos e dezessete mil, setecentos e cinquenta e quatro reais e quarenta e
dois centavos) (fls. 94).
262
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
8.- Intimada a efetuar o pagamento do valor indicado no prazo de 15 dias
(fls. 98) a Ré ofereceu bens à penhora (fls. 127-130) que foram recusados pelos
Exequentes (fls. 152). Deu-se, então, nova intimação da Ré para que efetuasse
o pagamento voluntário da dívida, sob pena de incidência da multa prevista no
artigo 475-J (fls. 173). Não verificado o pagamento voluntário, deu-se a penhora
on line, com bloqueio de R$ 369.251,77 (fls. 334), sento que a Executada
admitiu como devida a quantia de R$ 436.366,00 (fls. 366).
9.- Tendo em vista a ausência de garantia total do juízo, sobreveio a
rejeição da impugnação ao cumprimento da sentença ofertada pelo Recorrido
(fls. 381-390).
10.- No presente Recurso Especial importa saber em primeiro lugar
se é necessário garantir o juízo para que se possa apresentar impugnação ao
cumprimento da sentença e, em segundo lugar, admitindo-se que seja necessária
essa garantia, se ela deve corresponder à totalidade ad dívida ou se, ao contrário,
basta que a penhora represente uma parcela dessa mesma dívida.
11.- A turmas que compõe a 2ª Seção desta Corte já se manifestaram
no sentido de que os embargos opostos contra a execução fundada em título
extrajudicial dispensam, para o seu conhecimento e processamento, que o Juízo
esteja garantido, mas que o mesmo não ocorre, na fase de cumprimento de
sentença, em relação à impugnação ao cumprimento da sentença.
Na linha desses precedentes, a garantia do juízo é condição de
admissibilidade para a impugnação ao cumprimento da sentença.
Nesse sentido:
Recurso especial. Fase de cumprimento de sentença. Impugnação. Garantia do
juízo. Insurgência da executada.
1. Violação aos artigos 165, 458, II e 535 do CPC não configurada. Acórdão
hostilizado que enfrentou, de modo fundamentado, todos os aspectos essenciais
à resolução da lide.
2. A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao
cumprimento de sentença, nos termos do art. 475-J, § 1º do CPC. “Se o dispositivo
- art. 475-J, § 1º, do CPC - prevê a impugnação posteriormente à lavratura do
auto de penhora e avaliação, é de se concluir pela exigência de garantia do juízo
anterior ao oferecimento da impugnação”. (REsp n. 1.195.929-SP, Rel. Ministro
Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 24.4.2012).
(REsp n. 1.303.508-RS, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em
21.6.2012, DJe 29.6.2012);
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
263
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recurso especial. Direito Processual Civil. Cumprimento de sentença. Garantia
do juízo. Exigência. Exegese do art. 475-J, § 1º, do Código de Processo Civil.
Impugnação. Cabimento. Registro da penhora. Necessidade. Recurso provido.
I - A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao
cumprimento de sentença. Inteligência do Art. 475-J, § 1º, do CPC.
II - No cumprimento de sentença, executa-se título executivo judicial, em que a
instrução probatória é ampla. Por seu turno, nos embargos do devedor, de título
executivo extrajudicial, a situação difere-se, sensivelmente, na medida em que o
embargante não tem oportunidade de contraditório e ampla defesa.
III - Se o dispositivo - art. 475-J, § 1º, do CPC - prevê a impugnação
posteriormente à lavratura do auto de penhora e avaliação, é de se concluir
pela exigência de garantia do juízo anterior ao oferecimento da impugnação. Tal
exegese é respaldada pelo disposto no inciso III do artigo 475-L do Código de
Processo Civil, que admite como uma das matérias a serem alegadas por meio da
impugnação a penhora incorreta ou avaliação errônea, que deve, assim, preceder
à impugnação.
(REsp n. 1.195.929-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
24.4.2012, DJe 9.5.2012).
12.- Dessa forma, assentada a necessidade de que o juízo deve estar seguro
para que seja admitida a impugnação ao cumprimento da sentença é possível
avançar e afirmar que a admissibilidade da impugnação pressupõe a garantia
integral do Juízo.
Não se pode interpretar a lei de modo a se permitir que a exigência
destacada é apenas parcial, porque isso abriria as portas para uma série de
manobras as quais, em última análise, acabariam por esvaziar o próprio escopo
da regra, que é o de abreviar a realização, em concreto, de um direito que foi
depurado a longo de todo um processo de conhecimento no qual observada a
ampla defesa, o contraditório e a cognição plena e exauriente, em mais de um
grau de jurisdição.
13.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.383.354-SP (2013/0074298-9)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Citizen Watch do Brasil S/A
264
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Advogado: Eduardo de Freitas Alvarenga
Recorrido: Mercadolivre.com Atividades de Internet Ltda e outro
Advogados: Antônio de Figueiredo Murta Filho e outro(s)
André Luiz Souza da Silveira e outro(s)
Luis Henrique do Carmo Porangaba e outro(s)
Daniele Maia Teixeira Coelho
Conrado Steinbruck Frazao e outro(s)
EMENTA
Civil e Comercial. Comércio eletrônico. Site voltado para a
intermediação de venda e compra de produtos. Violação de marca.
Inexistência. Princípio do exaurimento da marca. Aplicabilidade.
Natureza do serviço. Provedoria de conteúdo. Prévia fiscalização da
origem dos produtos anunciados. Desnecessidade. Risco não inerente
ao negócio. Ciência da existência de violação de propriedade industrial.
Remoção imediata do anúncio. Dever. Disponibilização de meios para
identificação de cada usuário. Dever.
1. O art. 132, III, da Lei n. 9.279/1996 consagra o princípio
do exaurimento da marca, com base no qual fica o titular da marca
impossibilitado de impedir a circulação (revenda) do produto, inclusive
por meios virtuais, após este haver sido regularmente introduzido no
mercado nacional.
2. O serviço de intermediação virtual de venda e compra de
produtos caracteriza uma espécie do gênero provedoria de conteúdo,
pois não há edição, organização ou qualquer outra forma de
gerenciamento das informações relativas às mercadorias inseridas
pelos usuários.
3. Não se pode impor aos sites de intermediação de venda e
compra a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos
anunciados, na medida em que não constitui atividade intrínseca ao
serviço prestado.
4. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de
conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade
à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
265
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a
garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º,
da CF/1988, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje,
importante veículo de comunicação social de massa.
5. Ao ser comunicado da existência de oferta de produtos com
violação de propriedade industrial, deve o intermediador virtual de
venda e compra agir de forma enérgica, removendo o anúncio do site
imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor
direto do dano, em virtude da omissão praticada.
6. Ao oferecer um serviço virtual por meio do qual se possibilita o
anúncio para venda dos mais variados produtos, deve o intermediador
ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar
cada um dos usuários, a fim de que eventuais ilícitos não caiam
no anonimato. Sob a ótica da diligência média que se espera desse
intermediador virtual, deve este adotar as providências que, conforme
as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para
a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização
subjetiva por culpa in omittendo.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das
notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento
ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs.
Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino
e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a).
Antônio de Figueiredo Murta Filho, pela parte recorrida: Mercadolivre.Com
Atividades de Internet Ltda.
Brasília (DF), 27 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 26.9.2013
266
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Citizen Watch do Brasil S.A., com fulcro no art. 105, III, a e c, da CF, contra
acórdão proferido pelo TJ-SP.
Ação: medida cautelar inominada, ajuizada pela recorrente em desfavor de
Mercadolivre.com Atividades de Internet Ltda. e Ebazar.com.br Ltda., objetivando
impedir as recorridas de praticarem, em seus sites na Internet, atos de comércio
tendentes à venda de produtos com a marca “Citizen”.
Decisão interlocutória: o Juiz de primeiro grau de jurisdição deferiu o
pedido liminar, impedindo a comercialização de produtos da marca “Citizen”
por meio dos sites eletrônicos mercadolivre.com.br e arremate.com.br, mantidos
pelas recorridas.
A decisão foi impugnada pelas recorridas via agravo de instrumento.
Acórdão: o TJ-SP deu provimento ao agravo, revogando a liminar, nos
termos do acórdão (fls. 480-483, e-STJ) assim ementado:
Medida cautelar destinada a obstar o uso da marca “Citizen” em comércio
eletrônico. Revogação da liminar concedida para este fim. Possibilidade de regular
comercialização de produtos por terceiros, sem violação dos direitos da marca.
Providência que fica condicionada à comprovação de efetiva violação de direitos.
Embargos de declaração: interpostos pelas recorridas, foram rejeitados
pelo TJ-SP (fls. 500-503, e-STJ).
Recurso especial: alega violação dos arts. 476, I, e 535, I e II, do CPC; e
129 e 132, III, da Lei n. 9.279/1996, além de dissídio jurisprudencial (fls. 506524, e-STJ).
Prévio juízo de admissibilidade: o TJ-SP negou seguimento ao especial,
dando azo à interposição do AREsp n. 314.602-SP, conhecido para determinar
o julgamento do recurso principal (fl. 598, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a determinar
se a intermediação de compra e venda de produtos via Internet, sem autorização
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
267
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
dos titulares das respectivas marcas, caracteriza violação de propriedade
industrial.
I. Da negativa de prestação jurisdicional. Violação dos arts. 476, II, e
535, I e II, do CPC.
Da análise do acórdão recorrido verifica-se que a prestação jurisdicional
dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a
ser sanado. O TJ-SP se pronunciou de maneira a abordar todos os aspectos
fundamentais do julgado, dentro dos limites que lhe são impostos por lei, tanto
que integram o objeto do próprio recurso especial e serão enfrentados adiante.
O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade,
contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que
ele entender relevante à lide. Não está o Tribunal obrigado a julgar a matéria
posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre
convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC.
Constata-se, em verdade, a irresignação da recorrente com o resultado
do julgamento e a tentativa de emprestar aos embargos de declaração efeitos
infringentes, o que não se mostra viável no contexto do art. 535 do CPC.
Outrossim, no que tange à suposta violação do art. 476, II, do CPC, a
simples recusa do TJ-SP, ainda que de forma implícita, de instaurar o incidente
de uniformização de jurisprudência permite inferir pela inexistência de
similitude entre o acórdão recorrido e os julgados alçados a paradigma pela
recorrente.
Dessa forma, não se vislumbra a violação dos arts. 476 e 535 do CPC.
II. Da intermediação de compra e venda de produtos via Internet.
Violação dos arts. 129 e 132, III, da Lei n. 9.279/1996.
Inicialmente, cumpre delimitar a controvérsia posta a desate nestes autos.
Na espécie, estamos diante de empresas que mantêm sites voltados para a
intermediação de venda e compra de produtos via Internet.
Sendo assim, o presente julgamento examinará a alegação de violação de
propriedade industrial única e exclusivamente à luz dessa modalidade de serviço
virtual – intermediação de venda e compra de produtos – de maneira que as
conclusões aqui alcançadas, salvo melhor juízo, a ser exercido oportunamente
em processos específicos, não se aplicam a outras espécies de serviços de venda
268
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
e compra via Internet, notadamente aqueles prestados por sites especializados na
venda direta de produtos ou na pesquisa e comparação de preços e de produtos
anunciados on-line.
A recorrente ajuizou medida cautelar objetivando – segundo transcrição
feita nas razões recursais, do próprio pedido formulado na petição inicial –
compelir as recorridas a “se absterem de praticar quaisquer atos de comércio,
tais como a exposição à venda e compra, diretamente ou a pedido de terceiros,
em qualquer meio material e, principalmente, em seus sites de compra e venda
(...) quaisquer produtos assinalados com a marca nominativa “Citizen” e suas
variações figurativas (...), bem como de todo material de propaganda e impressos
onde as mesmas apareçam, a qualquer título” (fl. 508, e-STJ).
A liminar pleiteada pela recorrente foi deferida, mas revogada pelo TJ-SP
em sede de agravo de instrumento, sob a alegação de que “a comercialização de
produtos com a marca “Citizen”, por si, não configura violação dos direitos da
marca”, ressalvando que “nada obsta que aqueles que os tenham adquirido de
forma regular, os vendam. Nem configura ilícito algum a atividade comercial
especializada de compra de relógios desta marca para subsequente revenda” (fl.
482, e-STJ).
Na ótica da recorrente, porém, o acórdão recorrido negou vigência aos
arts. 129 e 132, III, da LPI, na medida em que “a proteção conferida ao titular
do registro [da marca] lhe garante o direito de uso exclusivo no território
nacional, podendo este, por consequência, determinar distribuidores e vedar
as importações paralelas”, acrescentando que, na espécie, “os contratos de
distribuição firmados pelo titular da marca em outros territórios não permitem a
exportação dos produtos para o Brasil” (fls. 516-517, e-STJ). Acrescenta, ainda,
que “a procedência ilícita dos produtos vendidos, tanto de contrafação como
de importação paralela, pode ser extraída, por exemplo, dos próprios preços
anunciados” (fl. 513, e-STJ).
Nota-se, em primeiro lugar, que as razões recursais induzem a modificação
do pedido, uma aparente tentativa de correção da pretensão inicial, com vistas a
infirmar os fundamentos do acórdão recorrido.
Nesse aspecto, vale repisar que, originalmente, a recorrente buscou impedir
as recorridas de praticarem atos de comércio oriundos de “quaisquer produtos
assinalados com a marca nominativa “Citizen” e suas variações figurativas” (fl.
508, e-STJ), ou seja, não foi feita nenhuma ressalva limitando a proibição a
produtos de procedência ilícita, como os fruto de contrafação ou importação
paralela.
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
269
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O próprio TJ-SP destaca que a pretensão da recorrente foi “deduzida de
forma genérica, contra qualquer referência à sua marca” (fl. 482, e-STJ).
Ainda que se possa supor que, entre os milhares de anunciantes dos sites
das recorridas, exista a oferta de produtos de procedência ilícita, constitui fato
notório que a grande maioria dos usuários está atuando dentro da legalidade,
bastando que qualquer um acesse as respectivas páginas na Internet para
confirmar a existência de inúmeras mercadorias originais, novas e usadas, postas
a venda ou revenda não apenas por pessoas jurídicas, mas também por pessoas
físicas.
Não bastasse isso, o acórdão recorrido afasta categoricamente qualquer
demonstração de que tenha havido a violação de direitos marcários da recorrente,
de sorte que o acolhimento da tese recursal exigiria o revolvimento do substrato
fático-probatório dos autos, procedimento que encontra óbice no Enunciado n.
7 da Súmula-STJ.
Quanto à assertiva de que os preços anunciados dos produtos evidenciariam
a origem ilícita dos produtos, não se pode esquecer que os sites em questão
possibilitam vendas na forma de leilão, em que o vendedor assume o risco no
oferecimento de produtos a preço inicial bastante reduzido. Assim, cumpria à
recorrente demonstrar nos autos em que circunstâncias houve o oferecimento de
produtos com a sua marca a preços supostamente baixos, e não apenas formular
alegações genéricas que, vale repisar, não foram acompanhadas das devidas
provas.
Seja como for, a procedência ou não do presente recurso especial deve
ser analisada a partir da pretensão contida na petição inicial, de impedir a
intermediação da venda e compra virtual, pelas recorridas, de todo e qualquer
produto da marca “Citizen”.
Assim posta a questão, e partindo da premissa adrede fixada de que,
na sua maioria, os produtos ofertados em sites como os das recorridas são de
origem lícita (ou pelo menos de que inexiste prova em sentido contrário),
não há como livrar a hipótese dos autos da incidência do comando do art.
132, III, da LPI, segundo o qual o titular da marca não poderá impedir a livre
circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com
seu consentimento.
Cuida-se do denominado princípio do exaurimento da marca, pelo qual,
após a primeira venda do produto no mercado, o direito sobre a marca se
esvazia, impedindo o seu titular de invocar a exclusividade para obstar as vendas
subsequentes.
270
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Ao comentar o mencionado dispositivo legal, Luiz Guilherme Loureiro
esclarece haver o “esgotamento do direito de propriedade industrial”, salientando
que “se ele [titular da marca], ou um seu licenciado, promoveu a venda do
produto onde se encontra aposta a marca, não pode impedir que este produto
seja redistribuído pelo comprador” (A lei de propriedade industrial comentada.
São Paulo: LEJUS, 1999, p. 276).
Também o STJ já teve a oportunidade de se manifestar acerca da “exaustão
do direito à marca”, consignando tratar-se da “impossibilidade de o titular da
marca impedir a circulação do produto após este haver sido introduzido no
mercado nacional” (REsp n. 930.491-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti,
DJe de 19.4.2011).
Dessarte, depois de os produtos da recorrente serem lançados no mercado
nacional por intermédio de distribuidores oficiais, não há como impedir a livre
revenda dessa mercadoria por pessoas físicas e jurídicas, inclusive pelo meio
virtual.
Por outro lado, ainda que, apenas para argumentar, se pudesse admitir
a tese recursal de impedir as recorridas de promoverem atos de comércio
envolvendo produtos de procedência ilícita, não se pode ignorar que os sites
por elas mantidos – mercadolivre.com.br e arremate.com.br – se dedicam
exclusivamente a intermediar a venda e compra de produtos, aproximando as
partes interessadas, disponibilizando ferramentas que, em princípio, tornam o
negócio mais fácil, rápido e seguro.
Em outras palavras, esses sites disponibilizam ofertas criadas por terceiros,
interessados em vender produtos, recebendo o acesso de outras pessoas,
interessadas em compra-los, qualificando-se, no âmbito da Internet, ao menos de
forma preponderante, como uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois
não editam, organizam ou de qualquer outra forma gerenciam as informações
relativas às mercadorias inseridas pelos usuários.
Nesse contexto, não se lhes pode impor a responsabilidade de realizar a
prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos cuja venda intermediam,
por não se tratar de atividade intrínseca ao serviço prestado. Vale dizer, sites
como os mantidos pelas recorridas em momento algum garantem a qualidade
ou a procedência dos produtos, limitando-se a estabelecer mecanismos para que
o próprio comprador, sentindo-se de alguma forma insatisfeito ou ludibriado
pelo vendedor, não conclua a negociação.
Rui Stocco bem observa que quando o provedor de Internet age “como
mero fornecedor de meios físicos, que serve apenas de intermediário, repassando
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
271
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mensagens e imagens transmitidas por outras pessoas e, portanto, não as
produziu nem sobre elas exerceu fiscalização ou juízo de valor, não pode ser
responsabilizado por eventuais excessos” (Tratado de responsabilidade civil, 6ª
ed. São Paulo: RT, 2004, p. 901).
Conforme destaquei no julgamento do REsp n. 1.316.921-RJ, 3ª Turma,
minha relatoria, DJe de 29.6.2012, “não se pode, sob o pretexto de dificultar
a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da
coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial
de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da
liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/1988, sobretudo
considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação
social de massa”.
O serviço prestado pelas recorridas não deixa de ter caráter informativo,
propiciando, por exemplo, a aproximação de pessoas com interesses comuns e a
obtenção do histórico de vendedores e compradores.
Oportuna, também, menção a voto vista que proferi no julgamento do
REsp n. 1.125.739-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 10.2.2012,
versando sobre os limites de responsabilidade de proprietários e administradores
de shopping center pela comercialização de produtos contrafeitos nos espaços
por eles alugados. Ainda que na espécie estejamos em um ambiente virtual, me
parece que as recorridas podem ser de alguma forma equiparadas a “locadoras”
de espaço em seus sites para o desenvolvimento do comércio eletrônico.
Naquela ocasião, ponderei que “não há como imputar ao locador o dever
de fiscalizar a atividade efetivamente desenvolvida por cada locatário, de sorte
a confirmar a eventual prática de algum ilícito civil ou criminal. A relação
locatícia não confere ao locador poder de polícia sobre os locatários”.
O raciocínio se aplica ao meio virtual. Não há como impor àquele que
mantém site de intermediação de vendas o dever de prévia fiscalização das
atividades desenvolvidas por cada um dos anunciantes, de modo a verificar se o
produto oferecido é de procedência lícita.
Note, por oportuno, que isso não significa deixar a sociedade, notadamente
empresários, desamparada frente à prática crescente de contrafação e importação
paralela.
Além do dever do Estado de atuar na fiscalização, controle e repressão de
atividades ilícitas, sobretudo aquelas notórias, nada impede o próprio titular
272
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
da marca ou até mesmo terceiros de denunciarem a oferta de produtos com
violação de propriedade industrial, hipótese em que, ciente da ilegalidade,
caberá ao provedor providenciar a imediata remoção do anúncio do site, sob
pena, aí sim, de responder solidariamente com o autor direto do dano, em
virtude da omissão praticada.
Outra não foi a solução encontrada por esta Corte para a responsabilidade
dos provedores de rede social de relacionamento via Internet pelo conteúdo das
informações veiculadas nos respectivos sites, em relação à qual se considerou
razoável “exigir dos provedores um controle posterior, vinculado à sua efetiva
ciência quanto à existência de conteúdo ilícito” (REsp n. 1.308.830-RS, 3ª
Turma, minha relatoria, DJe de 19.6.2012. No mesmo sentido: AgRg no
AREsp n. 308.163-RS, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 21.5.2013;
AgRg no AREsp n. 137.944-RS, 4ª Turma, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira,
DJe de 8.4.2013; e 1.300.161-RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 26.6.2012.)
No caso específico dos autos, por exemplo, o próprio Mercadolivre admite
disponibilizar um veículo para que qualquer interessado denuncie gratuitamente
a violação de direitos do autor, marcas, patentes, modelos e desenhos industriais,
bem como solicite a remoção do respectivo anúncio.
Mais do que isso, de forma análoga ao que foi decidido em relação aos
provedores de rede social de relacionamento, mostra-se razoável exigir que sites
de intermediação de venda de produtos mantenham condições de identificar
cada um de seus anunciantes, a fim de que nenhum ilícito caia no anonimato.
Portanto, sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve
este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada
caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob
pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo.
Como tenho ressalvado em outros processos envolvendo direito digital,
ainda que não ideais, certamente incapazes de conter por completo a utilização
da rede para fins nocivos, a solução ora proposta se afigura como a que melhor
equaciona os direitos e deveres dos diversos players do mundo virtual.
Na análise de Newton De Lucca “a implementação de medidas drásticas
de controle de conteúdos na Internet deve ser reservada para casos extremos,
quando estiver presente manifesto interesse público e desde que ponderado o
potencial prejuízo causado a terceiros, não havendo de ser adotada nas demais
hipóteses, principalmente quando se tratar de interesse individual, salvo em
situações absolutamente excepcionais, que representarão exceções raríssimas”
(op. cit., p. 400).
RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013
273
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
As adversidades indissociáveis da tutela das inovações criadas pela era
digital dão origem a situações cuja solução pode causar certa perplexidade. Há
de se ter em mente, no entanto, que a Internet é reflexo da sociedade e de seus
constantes avanços. Se, ainda hoje, não conseguimos tutelar com total equidade
direitos seculares e consagrados, seria utópico contar com resultados mais
eficientes nos conflitos relativos à rede mundial de computadores.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial.
274
Quarta Turma
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL N. 1.232.385-MG
(2011/0012085-6)
Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira
Agravante: Nutrivip do Brasil Comércio de Alimentos Construção
Papelaria e Eletro Eletrônicos Ltda.
Advogado: Maria Cláudia Salles Nogueira e outro(s)
Agravado: Millenium S/A Fomento Mercantil Ltda.
Advogado: Mário Cezar Pedrosa Soares e outro(s)
EMENTA
Processual Civil. Agravo regimental no recurso especial.
Recolhimento de custas e porte de remessa e retorno via internet.
Possibilidade. Ausência de impugnação em contrarrazões. Petição
enviada por fax. Falta de página. Não conhecimento. Decisão mantida.
1. A Resolução do STJ n. 4/2010, vigente à época da interposição
do especial, admite a emissão das guias de recolhimento por meio da
internet. Quanto ao recolhimento, o referido texto normativo não veda
o pagamento por meio da rede mundial de computadores.
2. O próprio sítio do Tesouro Nacional, cuja utilização é
recomendada pela referida Resolução, estabelece que a GRU Simples
poderá ser paga no Banco do Brasil por meio da internet. Não pode a
parte de boa-fé ser prejudicada, devendo ser admitido o recolhimento
pela internet, com a juntada de comprovante emitido pelo sítio do
banco. Aplicação, ademais, do art. 11 da Lei n. 11.419/2006.
3. Havendo dúvida acerca da autenticidade do comprovante
de recolhimento de custas, pode-se determinar, de ofício ou a
requerimento da parte, a apresentação de documento idôneo. Não
suprida a irregularidade, será reconhecida a deserção.
4. No caso, não houve impugnação da parte em contrarrazões de
recurso especial, mas somente no agravo regimental, após o provimento
da irresignação da parte contrária.
5. No mérito recursal, nos termos da pacífica jurisprudência do
STJ, a falta de página da petição enviada por fax desrespeita o art. 4º
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
da Lei n. 9.800/1999 e impede o conhecimento do correspondente
recurso.
6. Agravo regimental a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo
regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros
Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo Filho e Maria Isabel Gallotti
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 6 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator
DJe 22.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de agravo regimental
(e-STJ fls. 670-685) interposto contra decisão desta relatoria que deu
provimento ao recurso especial para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a
sentença.
Em suas razões, a agravante aponta deserção do recurso especial (e-STJ fl.
670):
Cabe informar que Vossa Excelência deu provimento a um recurso deserto,
nulidade absoluta que poderá ser reconhecida de ofício, posto que as custas
processuais (guia GRU) foram recolhidas pela internet (fls. 500), o que deixa
dúvidas sobre a fé pública do documento.
No mérito, argumenta a aplicabilidade, ao seu recurso, do princípio da
instrumentalidade, tendo em vista que a ausência de página na petição enviada
por fax não acarretaria prejuízo ao cabal entendimento da apelação (e-STJ fls.
678-679).
Ao final, requer o provimento do presente agravo regimental, para não se
conhecer do recurso especial.
É o relatório.
278
Jurisprudência da QUARTA TURMA
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): A insurgência não
merece ser acolhida.
A agravante não trouxe nenhum argumento capaz de afastar os termos
da decisão agravada, razão pela qual deve ser mantida por seus próprios
fundamentos (e-STJ fls. 666-667):
Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJMG assim
ementado (e-STJ 456-457):
Ação ordinária. Duplicata. Inexistência de relação negocial. Cobrança
e protesto. Irregularidade. Consectários. Demonstrado nos autos que as
duplicatas levadas a protesto padecem de lastro, isto é bastante para
autorizar o acolhimento da pretensão declaratória de inexistência de
relação jurídica, bem assim a reparação de danos morais à vista disto
experimentados por cuja indenização respondem endossante e
endossatário, este último porque cientificado a respeito do desfazimento
do negócio jurídico.
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ 494-497).
Nas razões do recurso, fundamentado no art. 105, III, alíneas a e c, da CF, a
recorrente alega ofensa aos arts. 7º, 13 e 15 da Lei n. 5.474/1968, 515 e 535 do
CPC, 4º da Lei n. 9.800/1999, 96 e 188 do CC/2002.
É o relatório.
Decido.
O recurso merece provimento.
De acordo com a jurisprudência desta Corte, “é ônus da parte, ao utilizar
mecanismos digitais ou mecânicos de remessa de petições ao STJ, zelar pela
integridade, idoneidade e conformação adequada das peças” (AgRg no AREsp n.
2.857-PE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 5.5.2011,
DJe 12.5.2011). Nesse sentido, entende-se que, “ausente uma das páginas da
petição encaminhada por fax, resta descumprida a norma do art. 4º da Lei n.
9.800/1999” (AgRg nos EDcl na Pet n. 4.772-RJ, Rel. Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito, Corte Especial, julgado em 9.11.2006, DJ 5.2.2007, p. 175), não
podendo ser conhecido o recurso.
Assim, sendo incontroverso que a petição de apelação interposta via fax não
estava completa (e-STJ fl. 470), o recurso não podia ter sido conhecido.
Diante do exposto, com fundamento no art. 557 do CPC, dou provimento
ao recurso especial, para cassar o acórdão recorrido e restaurar a sentença de
primeiro grau.
Publique-se e intimem-se.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
279
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em relação ao argumento de deserção do recurso especial, não assiste razão
à agravante. De início, cumpre registrar que realmente existem precedentes
desta Corte inadmitindo o pagamento das despesas processuais via internet.
Esta egrégia Quarta Turma teve a oportunidade de enfrentar a questão no
julgamento do AgRg no REsp n. 1.103.021-DF, julgado em 26.5.2009, DJe
8.6.2009.
Naquela ocasião, prevaleceu o entendimento do relator, o eminente
Ministro Luis Felipe Salomão, segundo o qual os comprovantes de pagamento
das despesas processuais extraídos, pela internet, do sítio do banco, seriam
incapazes de comprovar a autenticidade do preparo.
Contudo, naquele caso, havia uma peculiaridade, pois o comprovante
juntado pela parte não possuía cabeçalho nem rodapé, circunstância que
conduzia a dúvidas acerca de sua idoneidade, dando a entender que poderia ter
sido criado em editor de textos.
Importante, a propósito, reportar-se ao voto vencido, proferido no
mencionado julgamento pelo eminente Ministro João Otávio de Noronha, no
qual Sua Excelência afirma:
Por ocasião da Lei n. 11.636/2007, quando este Tribunal passou a cobrar custas
judiciais em processos originários e também recursais, foi editada a Resolução n.
1-STJ, segundo a qual as custas deverão ser recolhidas mediante GRU disponível
no site deste Tribunal (...).
Como se vê, a resolução indica que o pagamento deve ser realizado no Banco
do Brasil, mas não faz nenhuma restrição quanto a que seja feito via internet.
Não se pode descartar que a utilização do meio eletrônico para pagamento
de quaisquer débitos/contas que necessitem de intermediação bancária avança
freneticamente.
Trata-se de uma realidade e pode-se dizer que a sociedade está passando por
uma espécie de desmaterialização de documentos. Isso é fato e não pode ser
olvidado pelo julgador.
Nesse contexto, não creio que possa ser contestada a validade jurídica
dos documentos de fls. 990-991 tão-somente porque foram impressos pelo
contribuinte, que preferiu a utilização da internet para recolhimento das custas.
Soma-se a isso mais um fator: o de que as relações sociais partem do
pressuposto de que há boa-fé entre seus co-partícipes. Nas mais diversas áreas
das relações humanas, esse princípio vigora. Ele vai desde as relações íntimas
pessoais, tal como a confiança que se deposita em parentes e amigos, cujos
compromissos são selados por um mero aperto de mãos, estendendo-se às
relações obrigacionais reguladas pelo direito.
280
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Na esfera jurídica, passando pelas relações contratuais, chega-se ao direito
processual de forma geral, o qual não constitui exceção à regra de que as
partes, em princípio, agem de boa-fé. Tanto é assim que a exceção é prevista
expressamente nos artigos 14 e seguintes do Código de Processo Civil,
outorgando-se poderes ao julgador para penalizar aquele que foge à regra geral,
ou seja, aquele que age de má-fé.
Penso que a orientação contida no citado voto vencido deva ser adotada no
presente agravo regimental.
De fato, no caso concreto, os comprovantes de pagamento das custas e do
porte de remessa e retorno foram extraídos da internet. Todavia, tal circunstância,
por si só, não é suficiente para conduzir à deserção do recurso.
O processo civil brasileiro vem passando por contínuas alterações
legislativas, de modo a se modernizar e a buscar celeridade, visando a efetivar
o princípio da razoável duração do processo. Nesse contexto, insere-se a Lei n.
11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial.
Na vida cotidiana, é cada vez mais frequente a realização de múltiplas
transações por meio dos mecanismos oferecidos pelos avanços da tecnologia da
informação, particularmente no meio bancário (internet banking), em razão das
facilidades e da celeridade que essas modalidades de operação proporcionam.
Há, inclusive, um forte incentivo das instituições financeiras nesse sentido.
No que diz respeito ao recolhimento das despesas processuais, no âmbito
deste Superior Tribunal, a Resolução n. 4/2010, vigente à época da interposição
do especial, estabelecia, em seu art. 6º, § 1º, que as guias de recolhimento das
custas e do porte e remessa e retorno deveriam ser emitidas no sítio do Tesouro
Nacional (o mesmo se verifica nas posteriores resoluções). Confira-se:
Art. 6º O recolhimento das custas judiciais e do porte de remessa e retorno dos
autos será realizado mediante Guia de Recolhimento da União – GRU Simples.
§ 1º A GRU é emitida no sítio do Tesouro Nacional, podendo ser acessada por
meio do sítio do Tribunal: http://www.stj.jus.br/.
Como se vê, a referida resolução expressamente previa a utilização da
internet como o meio para emissão das guias referentes às despesas processuais.
Quanto ao pagamento, o referido texto normativo não fixava a maneira pela
qual deveria ocorrer, isto é, não estabelecia se o pagamento deveria ser feito
obrigatoriamente na agência bancária, ou se poderia ser utilizado outro modo.
Em tais condições, não há como deixar de admitir o pagamento das guias
por meio da internet. Parece ser um contrassenso o uso do meio eletrônico na
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
281
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
tramitação do processo judicial, a emissão das guias por meio da rede mundial
de computadores e, ao mesmo tempo, coibir o seu pagamento pela mesma via,
obrigando o jurisdicionado a se dirigir a uma agência bancária.
Com efeito, não há, na legislação de regência, norma que vede
expressamente o pagamento pela internet ou determine que este ocorra na
agência bancária ou em terminal de auto atendimento.
No caso dos autos, o recorrente recolheu as custas pela internet e juntou o
comprovante, de forma eletrônica.
O próprio sítio do Tesouro Nacional, cuja utilização é recomendada pela
Resolução n. 4/2010, informa ao contribuinte, in verbis:
“Quais são os tipos de GRU?
Existem 2 tipos de GRU: a GRU Simples e a GRU Cobrança, cada qual com uma
aplicação específica. A GRU Cobrança pode ser paga em qualquer instituição
financeira até a data de vencimento. Já no caso da GRU Simples, seu pagamento
tem de ser efetuado exclusivamente no Banco do Brasil por meio da internet, dos
terminais de auto-atendimento, diretamente no guichê do caixa ou, em casos
específicos, por meio de depósito (GRU Depósito) ou de DOC ou TED (GRU DOC/
TED).
(...)
Como efetuar o pagamento da GRU em caso de greve do Banco do Brasil?
“O contribuinte que for cliente do Banco do Brasil poderá efetuar o pagamento
da GRU pela internet ou por meio dos terminais de auto-atendimento. O
contribuinte que não for cliente do Banco do Brasil deverá entrar em contato
com o Órgão Público para o qual será efetuado o pagamento a fim de obter
orientações sobre como proceder. O Órgão é o responsável por fornecer uma
alternativa para o pagamento como, por exemplo, a autorização do pagamento
por meio de DOC/TED” (https://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt/politica-fiscal/
gru, acesso em 17.4.2013).
Com a devida vênia, o argumento segundo o qual o comprovante emitido
pela internet não goza de fé pública não pode conduzir à deserção do recurso
especial. A legislação processual presume a boa-fé dos atos praticados pelas
partes e por seus procuradores. Nesse sentido, os arts. 365, IV, e 736, parágrafo
único, do CPC preveem a possibilidade de o próprio advogado declarar como
autênticas cópias de peças processuais juntadas aos autos.
Ademais, cabe lembrar a Lei n. 11.419/2006:
282
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Art. 11. Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos
eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida
nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais.
Por essas razões, penso ser possível admitir o recolhimento das custas
e do porte de remessa e retorno por meio da internet, com a consequente
possibilidade de juntada de comprovantes emitidos pelo sítio do banco.
Não pode a parte de boa-fé ser surpreendida com a declaração de deserção
do recurso apenas pelo fato de ter optado pelo pagamento das custas por meio
da internet, sobretudo porque, (i) inexiste norma que expressamente vede
que o recolhimento ocorra dessa forma, (ii) a informatização do processo é
uma realidade, positivada na Lei n. 11.419/2006, devendo o Poder Judiciário
prestigiar os instrumentos que facilitem o cumprimento das formalidades
processuais por meio eletrônico e (iii) o próprio Tesouro Nacional autoriza o
pagamento pela internet.
Tratando de situação análoga e reconhecendo a possibilidade de uso de
guias recolhidas pela internet, o seguinte recente julgado do egrégio TST:
Recurso de revista. Recurso ordinário. Deserção.
Na hipótese, o Tribunal de origem não conheceu do Recurso Ordinário, por
deserção.
O protocolo do Recurso Ordinário foi realizado pelo sistema e-doc, razão pela
qual fica dispensada a autenticação das guias de recolhimento de custas e do
depósito recursal.
Recurso de Revista conhecido e provido.
(Processo: RR-1170-96.2010.5.18.0012, Data de julgamento: 29.5.2013, Relator:
Desembargador convocado João Pedro Silvestrin, 8ª Turma, DEJT 3.6.2013).
Contudo, por óbvio, havendo dúvida acerca da autenticidade do
comprovante (como no precedente desta Quarta Turma antes mencionado),
o Tribunal a quo ou o relator poderá, de ofício ou a requerimento da parte
contrária, determinar a apresentação de documento idôneo e, caso não suprida a
irregularidade, declarar a deserção.
No caso concreto, todavia, não vislumbro indício de irregularidades
nos comprovantes de fls. 549-552 (e-STJ), especialmente considerando a
identidade entre o código de barras constante da guia GRU e aquele presente
no comprovante de pagamento emitido pelo banco.
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283
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Além disso, o recorrente não impugnou o recolhimento das custas nas
contrarrazões do recurso especial, mas apenas no agravo regimental, após o
provimento do recurso da parte contrária.
Assim, rejeito a preliminar de deserção do recurso especial.
Quanto ao mérito recursal, em que pese a argumentação apresentada pela
agravante, o recurso não deve prosperar.
Com efeito, a egrégia Corte Especial pacificou o entendimento segundo o
qual a falta de uma das páginas da petição encaminhada por fax descumpre o art.
4º da Lei n. 9.800/1999 e impede o conhecimento do recurso. Nesse sentido:
Agravo regimental. Embargos de divergência. Súmula n. 315-STJ. Fax.
Indeferimento liminar.
1. Ausente uma das páginas da petição encaminhada por fax, resta
descumprida a norma do art. 4º da Lei n. 9.800/1999.
2. “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento
que não admite recurso especial” (Súmula n. 315-STJ).
3. Não há ilegalidade no indeferimento liminar dos embargos de divergência
quando não satisfeita a norma do art. 4º da Lei n. 9.800/1999 ou quando não
cabível o mencionado recurso.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg nos EDcl na Pet n. 4.772-RJ, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito, Corte Especial, julgado em 9.11.2006, DJ 5.2.2007, p. 175).
Processo Civil. Agravo regimental nos embargos de divergência.
Fac-símile. Ilegível. Impossibilidade de verificar a identidade entre a petição
enviada e a via original. Responsabilidade do recorrente. Não conhecimento.
1. É dever das partes zelar pela qualidade e fidelidade do material transmitido
via fac-símile, nos termos do art. 4º da Lei n. 9.800/1999.
2. Sendo a peça transmitida via fax ilegível, por conter diversas páginas com
letras extremamente reduzidas ao ponto de inviabilizar sua leitura, não é possível
verificar a identidade entre o material transmitido e seu original, o que impede o
conhecimento do recurso.
3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg nos EAg n. 777.376-MS, de minha relatoria, Segunda Seção, julgado em
14.3.2012, DJe 20.3.2012).
Processual Civil. Recurso especial. Medida cautelar. Apelação. Intempestividade.
Não comprovação de apresentação da via fac-símile. Agravo regimental
improvido.
284
Jurisprudência da QUARTA TURMA
I. Nos termos do art. 4º da Lei n. 9.800/1999, a parte que fizer uso de sistema de
transmissão via fax torna-se responsável pela qualidade e fidelidade do material
transmitido, e por sua entrega ao órgão judiciário.
II. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg na MC n. 12.458-DF, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta
Turma, julgado em 6.3.2007, DJ 2.4.2007, p. 273).
Portanto, a decisão agravada, no mérito, encontra-se em consonância com
a pacífica jurisprudência desta Corte Superior, razão pela qual deve ser mantida
por seus próprios fundamentos.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Srs. Ministros, acompanharei o
voto do eminente Relator e justificarei a alteração do entendimento, porque
naquela ocasião em que proferido o voto e que acabou prevalecendo no
Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.103.021, no sentido de que os
comprovantes de pagamentos das despesas extraídas da Internet, no sítio do
Banco, seriam incapazes de comprovar a autenticidade do preparo, já, hoje, não
mais se justificam, primeiro pelos motivos invocados pelo Ministro Relator.
Além dessas circunstâncias, que tornaram aquele caso peculiar e além dos
fundamentos que traz V. Exa., apenas justifico que o olhar para a questão da
admissibilidade, naquele momento, em 2009, era um, e o julgador não pode
estar afastado do momento em que decide. Hoje, a situação é outra. A segurança
em relação ao tema avançou bastante, e também a questão da admissibilidade do
recurso já não se faz mais, pelo menos em relação à guia, tão rigorosa como se
fez no passado.
De modo que com essa fundamentação, a justificar a mudança de
posicionamento, diante da peculiaridade do caso, dos fundamentos que traz
V. Exa. e das novas circunstâncias que advieram depois da prolação daquele
voto, acompanho o voto de V. Exa. no sentido de negar provimento ao agravo
regimental.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
285
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 684.648-RS (2004/0114530-1)
Relator: Ministro Raul Araújo
Recorrente: Banco do Brasil S/A
Advogado: Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz e outro(s)
Recorrido: Egídio Tranquilo Piaia
Advogado: Vera Regina Alves Adegas - Defensora Pública
Interessado: Délcio Afonso Swarowski
EMENTA
Recurso especial. Civil. Execução por quantia certa. Cédula rural
pignoratícia. Garantia do penhor não honrada. Penhora de área de
terras rurais anteriormente hipotecada ao mesmo credor em execução
diversa. Embargos à execução. Alegação de impenhorabilidade do
bem (CF, art. 5º, XXVI; CPC, art. 649, VIII (antes inciso X); DecretoLei n. 167/1967, art. 69). Procedência. Recurso desprovido.
1 - A pequena propriedade rural, ainda que oferecida
anteriormente em hipoteca ao mesmo credor, não pode ser penhorada
para pagamento de cédula rural pignoratícia, não honrada com o
penhor inicialmente contratado.
2 - Em harmonia com o disposto no art. 5º, XXVI, da Constituição
da República, a nova redação do inciso VIII (antigo inciso X) do art.
649 do CPC suprimiu a anterior exceção legal, afastando qualquer
dúvida: nem mesmo eventual hipoteca é capaz de excepcionar a regra
que consagra a impenhorabilidade da pequena propriedade rural sob
exploração familiar.
3 - Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
a Quarta Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti,
Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr.
Ministro Relator.
286
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Brasília (DF), 8 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Relator
DJe 21.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Banco do Brasil S/A ajuizou ação de execução
por quantia certa contra Egídio Tranquilo Piaia, em junho de 2002, com
fundamento em uma cédula rural pignoratícia no valor de R$ 7.260,00 (sete
mil, duzentos e sessenta reais), com garantia constituída na colheita da lavoura
de milho, especificada à fl. 4 dos autos em apenso.
À fl. 28, também em apenso, consta certidão do Oficial de Justiça acerca
do não pagamento do débito e da ausência de nomeação de bens, o que levou
a que se procedesse a buscas no Cartório de Registro de Imóveis local, tendo
ocorrido a consequente penhora de uma área de terras rurais de propriedade do
executado (71.250 metros quadrados), que já estavam hipotecadas ao Banco do
Brasil em razão de anterior dívida entre as mesmas partes.
Egídio Tranquilo Piaia opôs embargos à execução, alegando, na parte
que interessa ao presente julgamento, que a penhora não poderia recair sobre
o referido imóvel de sua propriedade, por se tratar da única área de terra que
possui, da qual retira o seu sustento e de sua família, sendo o bem, por isso,
impenhorável.
A r. sentença (fls. 71-77) julgou parcialmente procedentes os embargos, tão
somente para determinar a limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano.
Acerca da questão da impenhorabilidade, que é o que efetivamente interessa ao
presente julgamento, assim decidiu o magistrado de piso:
Não há que se falar em impenhorabilidade do imóvel constrito, pois o
embargante, juntamente com sua esposa, ofereceram em hipoteca o imóvel
penhorado na fl. 21 dos autos da execução, renunciando, desta forma, ao
beneficio insculpido na Lei n. 8.009/1990. Por ter o embargante a liberdade de
dispor de seus bens, tinha ele a faculdade, como o fez, de dar em hipoteca a
pequena propriedade, abrindo mão da impenhorabilidade legalmente instituída.
A hipoteca cedular do imóvel rural penhorado foi convencionada pelas partes,
onde seguramente consta a anuência expressa do embargante e sua esposa
com a constituição do direito real de garantia, tendo sido o mesmo devidamente
registrado, consoante se depreende da fl. 21 da execução apensa.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
287
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assim, por já ter sido o bem constrito dado em hipoteca, para garantia de
outra dívida contraída junto ao embargado, a impenhorabilidade não pode ser
oposta pelo embargante também no presente caso, nos exatos termos do art. 3º,
inc. V, da Lei n. 8.009/1990, aplicado por analogia.
Dessa forma, sendo penhorável o imóvel constrito, é perfeitamente válida a
penhora efetivada nos autos da execução, até porque o embargante não ofereceu
nenhum outro bem para garantir o processo executivo.
Interpostas apelações por ambas as partes, a 12ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por unanimidade de votos, deu
parcial provimento ao recurso do embargante e negou provimento ao do Bancoembargado, em aresto que guarda a seguinte ementa:
Ação revisional. Cédula de crédito rural. Contra-razões de apelação.
Intempestividade.
A interposição das contra-razões de apelação fora do prazo previsto no art. 508
do CPC leva ao seu não-conhecimento.
Formulação de pedido diverso dos submetidos à apreciação do magistrado “a
quo”. Inovação. Não-conhecimento, sob pena de supressão de instância.
Não se conhece de pedido formulado em sede recursal diverso daqueles
submetidos à apreciação do 1º Grau, sendo vedada a inovação, sob pena de
supressão de instância.
Aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Diante do teor do art. 3º, § 2º, do CDC, não há qualquer dúvida de que as
operações bancárias estão sujeitas à aplicação de tal diploma legal.
Juros remuneratórios.
Os juros remuneratórios são limitados a 12% ao ano, observado o caso
concreto.
Capitalização.
A capitalização mensal é vedada, a não ser nas operações com nota de crédito
comercial, industrial ou rural, desde que pactuada, como no presente caso.
Multa moratória.
A redução da multa moratória para 2% somente é possível nas cédulas e
contratos celebrados após a alteração do art. 52 do CDC, ocorrida em 1º.8.1996.
Impenhorabilidade. Hipoteca. Imóvel rural. Aplicação dos artigo 5º, XXVI,
da CF e 649, X, do CPC. Não caracterização da renúncia prevista na Lei n.
8.009/1990.
Não é admissível a penhora de propriedade rural quando se tratar de terras que
servem de sustento para a família do pequeno agricultor, aplicando-se ao caso o
288
Jurisprudência da QUARTA TURMA
disposto no artigo 5º, XXVI, da CF e artigo 649 , X, do CPC, desimportando que o
mesmo tenha sido oferecido para hipoteca, não havendo que se falar em renúncia ao
benefício insculpido na Lei n. 8.009/1990.
Prequestionamento.
A apresentação de questões para fins de prequestionamento não induz
à resposta de todos os artigos referidos pela parte, mormente porque foram
analisadas todas as questões que entendeu o julgador pertinentes para solucionar
a controvérsia posta na apelação.
Apelação do autor parcialmente conhecida e provida em parte. Desprovida a
apelação do demandado. (fls. 138-139).
Opostos embargos de declaração pelo Banco do Brasil S/A, foram rejeitados
(fls. 164-168).
Banco do Brasil S/A interpõe, então, o presente recurso especial, com
fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, sustentando,
preliminarmente, violação ao art. 535, II, do CPC, por negativa de prestação
jurisdicional.
No mérito, alega violação aos arts. 649, X, do CPC (com a redação existente
à época), e 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, e, para tanto, defende o seguinte:
Dispõe o art. 649, X, do CPC, que são absolutamente impenhoráveis, entre
outros, “o imóvel até um módulo, desde que seja o único de que disponha o
devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.”
Vê-se, claramente, que o legislador definiu com bastante precisão os bens,
absolutamente insuscetíveis de penhora, dentre eles a pequena propriedade
rural - até um módulo -, excepcionando a hipótese do proprietário ter dado esse
bem em garantia de financiamento agropecuário, exatamente, como na espécie.
(..)
De outro lado, a Lei n. 8.009/1990, que trata da impenhorabilidade do bem de
família, regulamentando o art. 5º, XXVI da Carta Magna, dispõe no seu art. 3º, V:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer de execução civil,
fiscal, previdenciária, trabalhista, ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia
real pelo casal ou pela entidade familiar;
A interpretação sistemática dos diversos dispositivos infraconstitucionais
que tratam da justa impenhorabilidade do bem de família, enquanto regra, ao
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
289
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
contrário do entendimento esposado no acórdão recorrido, permite a penhora
da pequena propriedade desde que dada em garantia real de financiamento
agropecuário, sendo inaplicável à espécie o § 2º, art. 4º da Lei n. 8.009/1990 que,
aliás, em artigo precedente - art. 3º, V - admite esta exceção.
Impende observar que a Lei n. 8.009/1990, veio a regulamentar o art. 5º, XXVI,
definindo o que é pequena propriedade rural, outrossim, como e quando deve
ser protegida.
Assim, o pressuposto fundamental que resta ínsito em toda legislação acerca
da proteção ao bem de família, no caso, uma pequena propriedade rural, é a sua
impenhorabilidade, ressalvada a hipótese do devedor, livremente, dela dispor,
dando em garantia de financiamento agrícola.
Destarte, temos que a proteção à pequena propriedade rural, discutida
no presente recurso, não encontra respaldo na legislação infraconstitucional,
devendo o devedor responder pelas dividas que assumiu, com as demais
propriedades (...).
A impenhorabilidade de bens do devedor é uma exceção, enquanto a regra é
a penhorabilidade, de tal sorte que a interpretação do art. 649, VI (sic), deverá ser
restrita.
De outra parte, necessário considerar que o imóvel penhorado foi hipotecado
ao Banco em diversas operações.
As conseqüências que daí resultam atingem diretamente o benefício da
impenhorabilidade de todos os bens que a tenham, por força de lei. Parece óbvio
que, ao indicar o bem de sua propriedade para garantia do empréstimo que fez
junto a uma Instituição Financeira, o devedor entende que o bem é supérfluo. Ou,
ainda, pode o devedor necessitar do financiamento para negócios próprios, e tirar
vantagens outras com ditos negócios, assim dá em garantia os bens que possui,
para poder alcançar os benefícios que comina.
Assim, apresenta-se procedimento eivado de má-fé, aquele do Recorrido
que, após indicar imóvel para garantia do financiamento, e obter os recursos
desejados, vem alegar, em Embargos, sua impenhorabilidade.
Ora, há que se ressalvar que no art. 649, inc. X, a indicação de bem à
penhora equivale à ressalva feita quanto à hipoteca para fins de financiamento
agropecuário, onde o módulo, a princípio impenhorável, perde tal qualidade,
podendo ser excutido para pagamento de obrigações contratadas.
A v. decisão recorrida merece reforma também se analisada, por analogia,
sob o aspecto regulado pela Lei n. 8.009190, que em seu art. 3º, excepciona a
impenhorabilidade do bem de família, quando ocorrente “execução de hipoteca
sobre o imóvel, oferecido como garantia real (....)”
Tal dispositivo aplica-se ao caso presente, eis que a exceção funda-se, em
espécie, sobre a existência de oferecimento do imóvel (em tese impenhorável)
como garantia da dívida em execução.
290
Jurisprudência da QUARTA TURMA
(...)
Aqui, referimos, especialmente, o art. 3º, inc. V, da Lei n. 8.009/1990 que
excepciona a regra geral sobre a impenhorabilidade, sendo certo que, tendo
sido o imóvel oferecido como garantia real, inaplicável a Lei n. 8.009/1990, com o
objetivo de declarar insubsistente penhora.
Como bem relatado e demonstrado nos autos, a penhora foi concretizada
sobre bem dado como garantia espontaneamente pelo devedor. A letra da
lei é clara, e inequívoca sua interpretação. A vontade do devedor afasta a
impenhorabilidade de um bem, quando este é oferecido à penhora. (fls. 179-182)
Apresentadas contrarrazões (fls. 205-228), o recurso foi admitido (fls. 241244) e encaminhado a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): De início, em relação à suposta
ofensa ao artigo 535, II, do CPC, cumpre salientar que o recorrente fez apenas
alegação genérica de sua vulneração, apresentando uma fundamentação
deficiente que impede a exata compreensão da controvérsia. Incide, na hipótese,
a Súmula n. 284-STF.
Nesse sentido, salienta o Ministro Sidnei Beneti, que “a ausência de
demonstração de como ocorreu a ofensa ao art. 535, do CPC é deficiência, com
sede na própria fundamentação da insurgência recursal, que impede a abertura
da instância especial, a teor do Enunciado n. 284 da Súmula do Supremo
Tribunal Federal, aplicável por analogia, também ao Recurso Especial” (AgRg
no Ag n. 1.162.073-MG, Terceira Turma, DJe de 12.5.2010).
No mérito, o thema decidendum é apenas o referente à impenhorabilidade
do bem em questão. No ponto, como relatado, assim decidiu o v. aresto recorrido:
Com relação à impenhorabilidade dos bens, merece provimento a apelação
do autor, uma vez que descabe a penhora de propriedade rural quando se
tratar de terras que servem de sustento para a família do pequeno agricultor,
aplicando-se ao caso o disposto no artigo 5º, XXVI, da CF e artigo 649, X, do CPC,
desimportando que o mesmo tenha sido oferecido para hipoteca, não havendo que
se falar em renúncia ao benefício insculpido na Lei n. 8.009/1990 (fls. 146-147).
São os seguintes os dispositivos legais apontados como violados nas razões
de recurso especial.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
291
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Do Código de Processo Civil:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
(...)
X - O imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha
o devedor, ressalvadas a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.
Os incisos do referido artigo do CPC tiveram nova redação e renumeração
a partir da Lei n. 11.382/2006, tendo agora o inciso VIII, antes inciso X, acima
transcrito, o seguinte teor:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
(...)
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada
pela família; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
Da Lei n. 8.009/1990, são questionados os seguintes dispositivos:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução
civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real
pelo casal ou pela entidade familiar;
(...)
Portanto, não está em discussão a caracterização do bem penhorado como
sendo pequena propriedade rural, ressaltando-se, inclusive, que o Banco não
impugnou tal alegação. Cinge-se a controvérsia em determinar se a pequena
propriedade rural oferecida primeiramente em hipoteca, como garantia de
pagamento de dívida anterior entre as mesmas partes, pode ser posteriormente
penhorada para pagamento de cédula rural pignoratícia, não honrada com o
penhor inicialmente contratado.
Em relação ao mencionado art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, sua análise
não é pertinente ao caso dos autos, pois não se trata, como dispõe o texto
de lei, de execução da hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real
(na primeira dívida entre as partes), mas sim de execução da cédula rural
pignoratícia (segunda dívida entre as mesmas partes), na qual foi penhorado o
imóvel rural em virtude de não ter sido honrado o pagamento da cédula apesar
da garantia pignoratícia.
292
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Ressalte-se, ademais, que a regra é a impenhorabilidade e as suas exceções
devem ser interpretadas restritivamente. Nesse sentido, confira-se:
Recurso especial. Ação anulatória. Acordo homologado judicialmente.
Oferecimento de bem em garantia. Pequena propriedade rural.
Impenhorabilidade. Equiparação à garantia real hipotecária. Descabimento.
1. - A proteção legal assegurada ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990 não
pode ser afastada por renúncia, por tratar-se de princípio de ordem pública, que
visa a garantia da entidade familiar.
2. - A ressalva prevista no art. 3º, inciso V, da Lei n. 8.009/1990 não alcança a
hipótese dos autos, limitando-se, unicamente, à execução hipotecária, não podendo
benefício da impenhorabilidade ser afastado para a execução de outras dívidas. Por
tratar-se de norma de ordem pública, que visa a proteção da entidade familiar, e não
do devedor, a sua interpretação há de ser restritiva à hipótese contida na norma.
3. - Recurso Especial improvido.
(REsp n. 1.115.265-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em
24.4.2012, DJe de 10.5.2012).
É importante citar também o disposto no art. 69 do Decreto-Lei n.
167/1967, que dispõe sobre títulos de crédito rural e dá outras providências,
nestes termos:
Art. 69. Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de
crédito rural não serão penhorados, arrestados ou seqüestrados por outras dívidas
do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente
ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula
às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de
responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão.
É simples e clara a redação da aludida norma, tendo o Superior Tribunal
de Justiça se pronunciado, quando de sua análise, nos seguintes precedentes,
dentre outros:
Processual Civil. Execução. Embargos de terceiro. Penhora incidente sobre bem
hipotecado com base em cédula de crédito rural. Inexistência de concordância
do credor privilegiado. Interesse processual. Existência. Nulidade da constrição.
Decreto-Lei n. 167/1967, art. 69. Verba honorária. Manutenção.
I. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento pacífico no sentido da
impossibilidade de penhora de bem já hipotecado por força de cédula de crédito
rural, ex vi da vedação contida no art. 69 do Decreto-Lei n. 167/1967.
II. Hipótese em que não foi demonstrado ter havido anuência do credor
hipotecário, ainda que intimado o credor para manifestar-se na execução,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
293
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
circunstância que possibilitaria a atenuação da regra (REsp n. 13.682-SP, 4ª Turma,
Rel. Min. Barros Monteiro, unânime, DJU de 16.5.1994).
III. Recurso especial conhecido e desprovido.
(REsp n. 471.313-MT, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma,
julgado em 18.2.2003, DJ de 14.4.2003, p. 231).
Cédula rural. Hipoteca. Execução de terceiro. Penhora dos bens hipotecados.
Imunidade.
Os bens hipotecados em garantia de cédula rural estão imunes à penhora por
outras dívidas do devedor.
Inocorrência, no caso dos autos, das circunstâncias que poderiam ser
consideradas para abrandamento do privilégio (vencimento da dívida hipotecária;
anuência do credor).
Precedentes.
A alegação de insolvência de terceira pessoa não tem importância para o
julgamento da causa.
Recurso conhecido e provido para acolhimento dos embargos de terceiro
oferecidos pelo banco credor da cédula rural.
(REsp n. 325.079-RO, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado
em 12.3.2002, DJ de 20.5.2002, p. 149).
Crédito rural. Penhora. Art. 69 do Decreto-Lei n. 167/1967.
Precedentes da Corte.
1. Na linha de precedentes da Corte, os bens “vinculados à cédula de crédito rural
não podem ser penhorados em execução de outra dívida”.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 255.092-SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira
Turma, julgado em 17.5.2001, DJ de 13.8.2001, p. 147).
Analisando controvérsia análoga, esta eg. Quarta Turma, no julgamento
do REsp n. 262.641-RS, da relatoria do saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, concluiu que “a parte final do art. 649, X, CPC não restou recepcionada
pela Constituição de 1988, cujo art. 5º, XXVI, considera impenhorável a pequena
propriedade rural de exploração familiar”. Entendeu-se, naquela ocasião, que o
art. 649, X, do CPC, estava em desconformidade com a norma inserta no art.
5º, XXVI, da CF/1988, a qual dispõe que “a pequena propriedade rural, assim
definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora
para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a
lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.
294
Jurisprudência da QUARTA TURMA
A nova redação do inciso VIII do art. 649 do CPC suprimiu a anterior
exceção legal, não restando nenhuma dúvida: nem mesmo eventual hipoteca
é capaz de excepcionar a regra que consagra a impenhorabilidade da pequena
propriedade rural sob exploração familiar.
Portanto, não há violação aos dispositivos legais apontados nas razões de
recurso especial.
Por fim, o alegado dissídio jurisprudencial não foi comprovado nos moldes
exigidos pelo RISTJ, pois foram colacionadas apenas ementas dos julgados
paradigmas, sem que tenha havido menção às circunstâncias que identificam ou
assemelham os acórdãos confrontados. Não procedeu, portanto, ao devido cotejo
analítico entre os arestos paradigmas trazidos no especial e a hipótese dos autos,
de modo que não ficou evidenciada a sugerida divergência pretoriana.
Por todo o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 959.213-PR (2007/0132051-3)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Relator para o acórdão: Ministra Maria Isabel Gallotti
Recorrente: R M K T e outro
Advogados: Andréa Gomes e outro(s)
Vanessa Cristina Cruz Scheremeta e outro(s)
Recorrido: N K V
Advogado: Carlos Joaquim de Oliveira Franco e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. União estável. Início anterior e dissolução
posterior à edição da Lei n. 9.278/1996. Bens adquiridos onerosamente
antes da vigência da norma legal.
1. Não configura ofende o art. 535 do CPC a decisão que
examina, de forma fundamentada, todas as questões submetidas à
apreciação judicial.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
295
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Demonstrado que as instâncias de origem não apreciaram
a efetiva contribuição de um dos conviventes para a construção do
patrimônio comum, prova considerada irrelevante para o deslinde da
controvérsia, mas entenderam aplicável a presunção legal do esforço
comum prevista na Lei n. 9.278/1996, também em relação aos bens
adquiridos antes de sua entrada em vigor, não tem incidência, no caso
presente, o óbice da Súmula n. 7-STJ.
3. A violação aos princípios do direito adquirido, ato jurídico
perfeito e coisa julgada encontra vedação em dispositivo constitucional
(art. 5º XXXVI), mas seus conceitos são estabelecidos em lei ordinária
(LINDB, art. 6º). Dessa forma, não havendo na Lei n. 9.278/1996
comando que determine a sua retroatividade, mas decisão judicial
acerca da aplicação da lei nova a determinada relação jurídica existente
quando de sua entrada em vigor - hipótese dos autos - a questão será
infraconstitucional, passível de exame mediante recurso especial.
Precedentes do STF e deste Tribunal.
4. A presunção legal de esforço comum na aquisição do
patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei n. 9.278/1996,
devendo os bens amealhados no período anterior a sua vigência,
portanto, serem divididos proporcionalmente ao esforço comprovado,
direito ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo
ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula
n. 380-STF).
5. Os bens adquiridos anteriormente à Lei n. 9.278/1996 têm
a propriedade - e, consequentemente, a partilha ao cabo da união disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva
aquisição, que ocorre no momento em que se aperfeiçoam os requisitos
legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade não pode ser
alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato
jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI e Lei de Introdução ao Código
Civil, art. 6º).
6. Os princípios legais que regem a sucessão e a partilha de bens
não se confundem: a sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data
do óbito; a partilha de bens, ao contrário, seja em razão do término, em
vida, do relacionamento, seja em decorrência do óbito do companheiro
ou cônjuge, deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico
vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar.
296
Jurisprudência da QUARTA TURMA
7. A aplicação da lei vigente ao término do relacionamento
a todo o período de união implicaria expropriação do patrimônio
adquirido segundo a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao
direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
8. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Ministra Maria Isabel
Gallotti, dando parcial provimento ao recurso, divergindo do relator, e o voto
do Ministro Antonio Carlos Ferreira, no mesmo sentido, e a refificação do voto
do Ministro Raul Araújo, para acompanhar a divergência, e o voto do Ministro
Marco Buzzi, acompanhando a divergencia, a Quarta Turma, por maioria, deu
parcial provimento ao recurso. Vencido o relator. Lavrará o acórdão a Ministra
Maria Isabel Gallotti, nos termos do art. 52, II, do RISTJ. Votaram com a Sra.
Ministra Maria Isabel Gallotti os Srs. Ministros Raul Araújo Filho, Antonio
Carlos Ferreira e Marco Buzzi.
Brasília (DF), 6 de junho de 2013 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora p/ acórdão
DJe 10.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. N. K. do V. ajuizou ação de
dissolução de união estável cumulada com partilha de bens em face dos herdeiros
de seu falecido companheiro J. R. F. T. Narra que após a dissolução da sociedade
conjugal que mantinha, passou a viver com J. R. F. T, constituindo nova entidade
familiar. Afirma que a união foi mantida publicamente, perdurando do início
do ano de 1985 até o falecimento de seu companheiro, em outubro de 1998.
Assevera que a união era notória, inclusive perante a comunidade, tendo sido
inscrita pelo de cujus em órgãos previdenciários, na qualidade de sua dependente.
Sustenta ser psicóloga, com cursos de especialização e mestrado, e que ministra
aulas, participa de congressos, seminários e treinamentos. Alega que consta do
testamento público, providenciado pelo seu falecido companheiro, que instrui a
inicial, o reconhecimento da união e os invocados direitos patrimoniais.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
297
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de Curitiba prolatou decisão
interlocutória, antecipando a questão de mérito, manifestando o entendimento
de que, “comprovada a existência de união estável, deve a sua dissolução ser
regida pela Lei n. 9.278/1996, que instituiu a presunção de condomínio sobre os
bens adquiridos pelos companheiros”. (fls. 28-32)
Interpuseram as rés R. M. K. T. e T. C. K. T. agravo de instrumento para o
Tribunal de Justiça do Paraná, que negou provimento ao recurso.
O acórdão tem a seguinte ementa:
Agravo de instrumento. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável
c.c. partilha de bens. Procedência do pedido com determinação de partilha dos
bens amealhados pelo casal. Agravo das herdeiras do de cujus alegando que
não houve comprovação do esforço comum para aquisição do patrimônio como
requer a Lei n. 8.971/1994. Desprovimento. Se a união estável nasceu em 1985 e
teve seu término em 1998, aplica-se a Lei n. 9.278/1996, mesmo que constituída
anteriormente à sua publicação, uma vez que a lei tem efeito imediato e geral.
Presunção de que o patrimônio foi adquirido em comum esforço de ambos os
conviventes. Recurso desprovido.
A Lei n. 9.278/1996, tem aplicação imediata e geral, conforme preconiza o
art. 6º da LICC, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua
publicação e que não estava rompida quando surgiu a Lei, portanto a Lei n.
9.278/1996 deve ser aplicada no caso concreto, pois a convivência more uxório
nasceu em 1985 e somente terminou em 1998.
É irrelevante saber, se a Agravada tinha condições de contribuir
financeiramente direta ou indiretamente para a formação do patrimônio, pois
uma vez reconhecida a união estável se aplica a regra da comunhão parcial.
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.
Inconformadas com a decisão colegiada, interpuseram as rés recurso
especial com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição
Federal, sustentando divergência jurisprudencial e violação dos artigos 6º da Lei
de Introdução à Normas do Direito Brasileiro e 5º da Lei n. 9.278/1996.
Afirmam que a questão em discussão influencia diretamente a fase
probatória, porquanto se discute nos autos justamente a necessidade de
comprovação do esforço comum, no que tange aos bens adquiridos na constância
da união.
Alegam que a questão central é quanto aos efeitos criados pela Lei n.
9.278/1996, se podem atingir as uniões iniciadas onze (11) anos antes de sua
vigência.
298
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Sustentam, ademais, o que se poderia admitir em relação à comunhão dos
bens é unicamente a presunção do esforço comum quanto aqueles adquiridos
após a vigência da Lei n. 9.278/1996, mas não em relação aos absorvidos
anteriormente ao advento do referido diploma legal.
Asseveram que o de cujus, quando se uniu a recorrida, já era advogado de
renome, fundador de um dos maiores escritórios de advocacia trabalhista do
Paraná.
Expõem ter havido o prequestionamento da tese recursal, todavia, caso
se entenda que não houve, requerem a anulação do acórdão dos embargos de
declaração, por violação do artigo 535 do Código de Processo Civil.
Em contrarrazões, afirma a recorrida que: a) o recurso veicula tese
contrária à jurisprudência do STJ; b) não houve demonstração da divergência
jurisprudencial; c) não houve violação do princípio da irretroatividade da lei,
pois a união foi extinta pelo falecimento do companheiro após a vigência da Lei
n. 9.278/1996.
Opina o Ministério Público Federal pelo “improvimento do presente
recurso”.
É o relatório.
VOTO VENCIDO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Preliminarmente, observo
que, conforme decidido à fl. 238 pelo ilustre Vice-Presidente do Tribunal de
origem, não é caso de retenção do recurso especial, pois a decisão recorrida
apreciou a tese de mérito central, que constitui a causa de pedir da ação, de
modo que a decisão interlocutória enseja o exaurimento do objeto do próprio
recurso especial (nesse sentido, são os seguintes precedentes: AgRg na MC
n. 18.176-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma; REsp n.
966.163-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma).
Ademais, a questão tem reflexos no inventário que, segundo narrado pela
autora na inicial, encontra-se em trâmite em outro Juízo, visto que os bens que
pertencerem à companheira não integram o acervo hereditário:
Direito Civil e Processual Civil. Família e sucessões. Inventário e partilha. Agravo
de instrumento. Tempestividade e correta formação do recurso. Reserva de bens
sobre a provável meação da ex-companheira anteriormente deferida. Posse e
administração dos bens que a integram. Princípio da dignidade da pessoa humana.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
299
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Consiste o litígio entre o inventariante, sobrinho do falecido, e aquela que
afirma ser ex-companheira do autor da herança, pelo período de 37 anos, até seu
falecimento, tendo por base fática a estabelecida pelo TJ-BA, no sentido de que é
alta a probabilidade de que a união estável perdurou o tempo aludido, pendente
ainda de julgamento ação para o seu reconhecimento.
2. A administração pelo inventariante do acervo hereditário, tornado indivisível
pelas regras do Direito das Sucessões, não esbarra no direito de meação, este
oriundo do Direito de Família, e que é conferido ao companheiro quando da
dissolução da união estável ou pela morte de um dos consortes.
3. O art. 1.725 do CC/2002 estabelece o regime da comunhão parcial de
bens para reger as relações patrimoniais entre os companheiros, excetuando
estipulação escrita em contrário. Assim, com a morte de um dos companheiros, do
patrimônio do autor da herança retira-se a meação do companheiro sobrevivente,
que não se transmite aos herdeiros do falecido por ser decorrência patrimonial do
término da união estável, conforme os postulados do Direito de Família. Ou seja,
entrega-se a meação ao companheiro sobrevivo, e, somente então, defere-se
a herança aos herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o Direito
Sucessório.
4. Frisa-se, contudo, que, sobre a provável ex-companheira, incidirão
as mesmas obrigações que oneram o inventariante, devendo ela requerer
autorização judicial para promover qualquer alienação, bem como prestar contas
dos bens sob sua administração.
5. Recurso especial conhecido, mas não provido. (REsp n. 975.964-BA, Rel. Min.
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.2.2011, DJe 16.5.2011).
Outrossim, o acórdão recorrido obtempera a respeito do perigo de dano de
difícil reparação:
Entretanto, se não for apreciado o agravo de instrumento transformando-o em
retido, tudo indica, que as ora Agravantes, como herdeiras da herança, poderão
ter um prejuízo irremediável, pois estes bens uma vez partilhados pertencerão
aos seus respectivos beneficiários, nada impedindo a alienação, o que exigiriam
delas um enorme esforço jurídico para tentar recuperar o prejuízo.
Destarte, o presente recurso deve ser apreciado como agravo de instrumento,
para que se evite às Agravantes, lesão grave e de difícil reparação. (fl. 163)
3. A questão controvertida consiste em saber se podem ser aplicadas
as mesmas regras da Lei n. 9.278/1996, no que tange à comunhão de bens
adquiridos por união estável (“concubinato puro”) iniciada antes de sua vigência,
mas que perdurou e encerrou-se em outubro/1998, com a morte do varão.
A decisão de primeira instância dispôs:
300
Jurisprudência da QUARTA TURMA
A persistência em produzir provas inúteis, me obriga a antecipar a questão de
mérito. O que se busca com a presente ação é tão somente o reconhecimento da
união estável com os efeitos patrimoniais sobre a meação dos bens adquiridos
durante a união. No máximo, além do reconhecimento da união, será decidido
se os bens indicados na exordial foram adquiridos durante a união e podem ser
objeto de partilha no inventário.
[...]
3) Outrossim, cumpre destacar que qualquer prova no sentido de saber se
a autora tinha condições de contribuir financeiramente para a formação do
patrimônio é irrelevante, pois uma vez reconhecida a união estável, se aplica a
regra da comunhão parcial. Irrelevante o elemento dependência econômica para
a configuração da união livre estável, ao contrário do sistema anterior em que a
divisão dependia da prova de colaboração conjunta para a formação do acervo
patrimonial.
[...]
Cumpre destacar que a Lei n. 9.278/1996 aplica-se às uniões estáveis existentes
quando da sua vigência, ainda que iniciada a convivência anteriormente, mas não
atinge as relações extintas até 29.12.1994. Como no presente caso a união inicouse em 1984 e somente se extinguiu em 1998, por certo a ela se aplicam as regras
do § 3º, do artigo 226 da CF., posteriormente regulamentada pela Lei n. 9.278, de
10 de maio de 1996 e atualmente pelo artigo 1.723 do Código Civil. (fls. 28-30).
O acórdão recorrido, por seu turno, consigna:
Quanto ao mérito, sem razão as ora Agravantes, que tentam crer que a ora
Agravada não possui direito a meação, sob o pressuposto que a união estável
foi constituída anteriormente a Lei n. 9.278/1996, necessitando de prova da
contribuição efetiva da companheira nos bens adquiridos durante a união estável.
Dispõe o artigo 5º, da Lei n. 9.278/1996, que: Os bens móveis e imóveis
adquiridos por um ou pro ambos os conviventes, na constância da união
estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração
comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo
estipulação contrário e em contrato escrito.
Conforme denota-se dos autos, a união estável do casal já existia desde 1985,
e durante a vigência da união estável do casal, presumi-se que os bens foram
contraídos pelo esforço de ambos.
Por outro lado, não há como acolher a pretensão das Agravantes, de que a Lei
somente regularia situações futuras, não podendo ter seus efeitos estendidos em
relações anteriores a sua vigência, ainda que essas relações jurídicas tivessem
continuidade após o nascimento da Lei.
[...]
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
301
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Desta feita, percebe-se que a Lei n. 9.278/1996 tem aplicação imediata e
geral, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua publicação,
conseqüentemente deve ser aplicada ao caso concreto, pois, frisa-se a convivência
more uxório começou em 1985 e teve seu término em 1998, com o falecimento do
companheiro J. R.
Dessa forma, é irrelevante saber se a Agravada tinha condições de contribuir
financeiramente para a formação do patrimônio, afinal uma vez reconhecida a
união estável se aplica a regra da comunhão parcial.
Assim, tendo em vista que os bens foram adquiridos por esforço comum dos
conviventes, agiu bem o Magistrado (....)
[...]
A douta Procuradoria Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 134-146, esgotou
o tema, pois vejamos: “É totalmente sem suporte algum tal teoria levantada pelas
agravantes, uma vez que era aplicada ao caso sub judice as regras da união estável
apontada na Lei n. 9.278/1996 (atualmente é o Código Civil de 2002) que não
estabelecia prazo mínimo para constituição de uma união estável, devendo esta ser
apenas duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida
com objetivo de constituição de família, conforme estabelece o art. 1º da referida Lei,
não apontando qualquer lapso temporal mínimo para sua constituição.
Outrossim, mesmo que fosse aplicada a Lei n. 8.971/1994, que estabelecia que o
prazo mínimo para que se constituísse uma união estável era de cinco anos, sabe-se
que a sentença que reconhece a união estável é uma sentença declaratória e que,
portanto, tem seus efeitos ex tunc, retroagindo a data do início do convívio, sendo
absurdo pensar que a união estável só teria início após os cinco anos. Portanto todo
patrimônio adquirido por qualquer dos companheiros a título oneroso deve ser
partilhado entre ambos” (fls. 145-146)
Diante do exposto, voto pelo desprovimento do agravo de instrumento,
mantendo-se inalterada a decisão monocrática, por esses e por seus próprios
fundamentos. (fls. 164-168).
Não controvertem as partes, portanto, quanto ao fato de que houve união
estável entre o genitor das recorrentes e a recorrida, no período de 1985 a 1998,
tendo a convivência se findado em decorrência do falecimento daquele.
3.1. O concubinato, anteriormente à Constituição Federal de 1988 (que
reconhece, no artigo 226, § 3º, a união estável como entidade familiar) e às
Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996, já era realidade social reconhecida pela
jurisprudência, inclusive do STF, que editara várias súmulas dispondo a respeito
do tema.
Igualmente, havia normas infraconstitucionais dispondo a respeito
de algumas questões relativas ao concubinato, bem como a Súmula n. 159
302
Jurisprudência da QUARTA TURMA
- do extinto TFR -, a qual estabelecia que “é legitima a divisão da pensão
previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”.
Como havia lacuna na legislação, nos termos dos artigos 126 do Código de
Processo Civil e 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o caso deve
ser solucionado de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Com efeito, para colmatar a lacuna, o STF veio a editar o Enunciado da
Súmula n. 380-STF, no já distante ano de 1964:
As lacunas voluntárias ou intencionais são as que o legislador,
propositadamente, deixa em aberto, porque a matéria, por ser assaz complexa,
exigiria normas excessivamente minuciosas ou porque, por não se sentir em
condições adequadas, entende ser mais propício confiar ao juiz a missão de
encontrar a norma mais específica. As não-intencionais ou involuntárias são
as que podem surgir quando o elaborador da norma não observou o direito
cabalmente (lacuna da previsão), seja porque a matéria não existia na época
(lacuna desculpável), seja porque não examinou o caso corretamente (lacuna
indesculpável). Por outras palavras, as lacunas podem ser intencionais ou
involuntárias conforme resultem da deliberação do legislador em não regular
certas situações por não reputá-las amadurecidas, deixando-as entregue à
decisão judicial, ou da omissão decorrente da pouca visão do elaborador de
normas.
[...]
Endossando essas idéias, podemos dizer que a elaboração das normas
individuais, no cumprimento da missão integradora, não é uma criação
autônoma do juiz, mas conforme o sistema, recorrendo-se tão-somente às pautas
autorizadas pela norma.
Além disso, o processo judicial não tem por escopo acabar com ressentimentos,
eliminar conflitos, mas pôr-lhes fim. A decisão, em seu conceito moderno,
soluciona uma questão sem eliminá-la, pois ressentimentos, decepções não
podem ser institucionalizados. A decisão jurídica distingue-se das demais, porque
é idônea para terminar conflitos, pondo-lhes um “fim”. Pôr fim não quer dizer
eliminar incompatibilidades; significa tão-somente que os conflitos não podem
mais ser retomados no plano institucional (coisa julgada), não tendo, portanto, o
poder de eliminar as dúvidas, que podem subsistir após a decisão dos conflitos.
(DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, ps.
87 e 106)
Dessarte, embora seja certo que, anteriormente às Leis n. 8.971/1994 e n.
9.278/1996, não havia normatização dispondo a respeito dos bens adquiridos
durante a sociedade conjugal; existia, inequivocamente, o reconhecimento
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
303
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de que da união exsurgia direitos de natureza patrimonial, que deveriam ser
reconhecidos, no caso de sua dissolução.
A doutrina esclarece:
Desfeito o equívoco de que união estável não é família, ela deixa o campo
meramente do Direito das Obrigações para ser tratado, convenientemente, pelo
Direito de Família. É Orlando Gomes, muito antes da Constituição de 1988, quem
nos garante: “Não deixam de ser de família as relações ente concubinos e entre
eles e sua prole”.
Não é o ato formal de casamento que que realmente interessa ao Estado,
mas o que ele representa como forma de união duradoura entre um homem
e uma mulher para finalidades essenciais à vida social (...). Da mesma forma
não se pode condenar a política de reconhecimento dos efeitos da união
livre, em nome de falsos pressupostos éticos.
[...]
Nas palavras do cientista de Direito João Baptista Villela, em trabalho intitulado
Concubinato e Sociedade de Fato:
fenômeno presumivelmente tão antigo quanto as primeiras
manifestações gregárias do ser humano, o concubinato adquiriu na
sociedade contemporânea, depois de ter sido exorcizado, a princípio
pelo casamento e logo depois pelo casamento civil, ampla extensão e
importância decididamente singular.
Esta importância tem sido cada vez mais absorvida pelo Direito. Podemos
observar isto, principalmente, pelas decisões dos Tribunais, que são os grandes
responsáveis pelo estabelecimento dos parâmetros de proteção a estes
casamentos informais, já que a normatização e textos legislativos esbarra em
dificuldades e contradições, como se disse no capítulo anterior.
As tendências e as tentativas de estabelecer os efeitos da união estável são sempre
no sentido de equipará-la a um casamento oficial, fazendo-se uma analogia às
regras definidas de um casamento civil, mas com as peculiaridades e os cuidados
morais, às vezes até mesmo moralistas, de cada Tribunal.
Podemos dizer, então, que de um casamento informal, ou seja, de uma união
estável, estabelecem-se relações pessoais e patrimoniais com conseqüentes
efeitos jurídicos.
[...]
Provavelmente, os motivos pelos quais se opta pelo não-casamento
transcendem uma simples escolha consciente, se considerarmos os efeitos
jurídicos das relações pessoais de união estável.
304
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[...]
Mas o que está no cerne dessa relação é a comunhão de afetos, e esta não se
rompe sem dor, sem sofrimento.
[...]
Alguns autores chegam a enumerar como causa da opção pela união estável
alguns fatores de ordem prática e de conveniência, como leis previdenciárias que
favorecem a mulher solteira e viúvas pensionistas, empresas que não admitem
mulheres casadas etc.
[...]
Apesar de todas as tentativas de regulamentar este tipo de relação, não há,
no Direito brasileiro, um estatuto que discipline ou regule por completo a união
estável.
[...]
Os textos legislativos, ou dispositivos em leis esparsas, surgiram em decorrência
de uma evolução jurisprudencial, como as normas em matéria previdenciária ou os
dispositivos da lei de locação.
Os efeitos patrimoniais dessas relações foram demarcados, em nosso Direito,
principalmente pela jurisprudência. Esta, por muito tempo, foi vacilante em
relação à matéria.
[...]
O “espírito” jurisprudencial sobre o direito concubinário, para suas
conseqüentes repercussões patrimoniais, teve como esteio, por muito tempo, três
súmulas do Supremo Tribunal Federal, que contêm os elementos balizadores e
refletem uma evolução que se vem fazendo.
[...]
A partir daí temos os elementos referenciais, nos quais os Tribunais sempre
se pautaram. É certo que há posições diferenciadas sobre o assunto e mesmo
interpretações menos e mais extensivas sobre essas súmulas. Por exemplo,
quando se fala, na Súmula n. 380, em “esforço comum” para efeitos de partilha, o
entendimento mais recente é de que não é necessário que a contribuição de uma das
partes tenha sido financeira. Basta que uma delas tenha dado suporte doméstico
para que a outra pudesse construir ou realizar, ou seja, basta que tenha sido uma
contribuição indireta. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável.
7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65).
A começar de 1950, alcançou a matéria grande desenvolvimento, gerando
debates e dirigindo-se para o reconhecimento do direito da mulher – (...)
chegando a culminar no Supremo Tribunal Federal que, num dos muitos
julgamentos, assentou: “A jurisprudência do STF predomina no sentido de
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
305
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
que se for reconhecida no curso da união livre more uxorio a existência de
uma sociedade de fato, pela conjugação de esforços entre os concubino na
formação do patrimônio, tem direito a mulher à partilha dos bens. A medida
maior ou menor da colaboração da mulher naqueles esforços é secundária e se
reconhecida pelo Tribunal que julgou os fatos, não pode ser reexaminada em
recurso extraordinário”.
Ao homem se estendeu o mesmo direito, em tempos pretéritos: “O
concubinário tem o direito de pleitear a partilha dos bens do casal, adquiridos
com as economias de ambos durante a mancebia”.
Ficou praticamente cristalizado o direito com a Súmula n. 380 do STF, que
assegurava: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos,
é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo
esforço comum”.
[...]
Foi com a Constituição Federal de 1988 que se tornou dogma o direito a ponto
de inserir o concubinato estável em uma forma de família, proclamando o artigo
226, § 3º:
[...]
Nada mais fez a Carta Federal que reconhecer um fenômeno social comum e
generalizado em todo o país, tornando-se necessária a sua regulamentação.
Seguiram-se, nesse intento, a Lei n. 8.971, de 29.12.1994, tratando dos direitos dos
companheiros a alimentos e a sucessões; e a Lei n. 9.278, de 13.5.1996, com regras
sobre a conversão da união estável em casamento.
[...]
Não entram na comunhão, os bens que um dos conviventes trouxe, o que é
um paradigma universal, segundo revela Humberto Ruiz:
[...]
No mínimo há de se comprovar a presença do convivente no lar, dando
suporte à vida do outro convivente, nem que seja em atividades domésticas,
como desde o início pontifica na antiga jurisprudência:
[...]
O Superior Tribunal de Justiça implantou essa mesma linha: “Constatada
a contribuição indireta da ex-companheira na constituição do patrimônio
amealhado durante o período de convivência more uxório, a contribuição
consistente na realização das tarefas necessárias ao regular gerenciamento da casa,
aí incluída a prestação de serviços domésticos, admissível o reconhecimento da
existência da sociedade de fato e conseqüente direito à partilha proporcional”. Este o
ponto de vista defendido por Álvaro Villaça Azevedo, autor do anteprojeto da Lei
n. 9.278, reportando-se em vasta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
306
Jurisprudência da QUARTA TURMA
“Mesmo a admitir-se, com a citada Súmula n. 380, que é indispensável o esforço
comum dos concubinos nessa formação do seu patrimônio, há que entender-se
esse esforço em sentido amplo, pois nem sempre ele resulta de natureza econômica,
podendo implicar estreita colaboração de ordem pessoal, às vezes de muito maior
valia”. Realça-se, no Superior Tribunal de Justiça, “a contribuição indireta” do (a)
companheiro (a), podendo essa contribuição consistir “na realização das tarefas
necessárias ao regular gerenciamento da casa, aí incluída a prestação de serviços
domésticos”.
Importa, ainda, que, durante a administração do lar por qualquer um dos
conviventes, se formem ou ampliem as economias das quais resultará o patrimônio
comum, o que não acontece na hipótese do companheiro ou da companheira,
antes da união de fato, já ser rico e não tendo havido, posteriormente, um
acréscimo de bens em virtude da concorrência, na sua formação, da outra pessoa
a quem se ligou. (RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 6 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008, ps. 913-925).
A jurisprudência do STF, sintetizando as decisões retiradas das Cortes locais,
firmou, nas suas súmulas, as seguintes teses em relação ao concubinato:
a) Súmula n. 382: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é
indispensável à caracterização do concubinato”.
b) Súmula n. 35: “Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a
concubina tem direito a ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não
havia impedimento para o matrimônio”.
c) Súmula n. 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum”.
[...]
A Constituição Federal de 1988 elevou a união estável entre o homem e a
mulher ao status de entidade familiar, a merecer a proteção do Estado.
[...]
A inovação foi amplamente louvável. Como afirmamos antes, não era possível
ignorar o concubinato.
[...]
O Min. Carlos Alberto Direito, em trabalho a respeito da matéria, afirmou que:
“Ora, se a união estável é entidade familiar, como determinado pela
Constituição, não se pode mais tratar a união entre homem e a mulher, sem
o ato civil do casamento, como sociedade de fato, ou concubinato, eis que
não se trata mais de mancebia, amasiamento, mas de entidade familiar.
[...]
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
307
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Tivemos o ensejo de historiar a evolução do concubinato/união estável,
evidenciando que, por longo tempo, só ensejou restrições por parte do legislador
e que, finalmente, a partir da década de 1960, quando ainda não se admitia o
divórcio em nosso país, a doutrina e a jurisprudência foram, aos poucos, afastando
as sanções que pesavam sobre a relação entre companheiros, especialmente
quando não envolvendo o adultério, com a conseqüência de admitir que os
efeitos patrimoniais de uma sociedade de fato deveriam ser reconhecidos mesmo
quando tinha suas origens na coabitação entre um homem e uma mulher que,
embora não casados, viviam como se o fossem. Na mesma fase houve uma
evolução quanto aos direitos não patrimoniais, admitindo-se, em virtude da Lei n.
6.515, de 26.12.1977, que a concubina pudesse usar o nome do companheiro no
caso de união estável.
[...]
Na realidade, também surgiram dúvidas quanto ao efeito imediato do art.
226, § 3º, da CF, entendendo alguns que a sua vigência deveria depender de
regulamentação pela lei ordinária, enquanto outros preferiam considerá-lo de
caráter auto-aplicável.
[...]
Para maior segurança jurídica, formou-se rapidamente um consenso no sentido
de ser aconselhável a elaboração de uma lei que completasse o texto constitucional,
permitindo a uniformização da jurisprudência e o consenso da doutrina. Foi
respondendo a esses anseios do mundo jurídico que veio a ser aprovada a Lei n.
8.971, de 29.12.1994, que introduziu definitivamente o concubinato no direito de
família e no direito sucessório. (WALD, Arnold. O Novo Direito de Família. 16 ed.
São Paulo: Saraiva, 2005, ps. 297-305).
Além disso, antes mesmo da edição dessas duas Leis da entidade familiar, a
doutrina e a jurisprudência vinham concedendo aos companheiros os mesmos
direitos dos casados, não havendo razoabilidade, pois, em edificar-se um retrocesso
social.
[...]
Porém, se a entidade familiar foi desfeita antes da Constituição Federal de 1988,
aí não poderão ser aplicadas as Leis n. 8.971/1994, n. 9.278/1996 e o Código Civil
de 2002, visto que somente a partir da maior Carta Jurídica do País é que foi criado
um estatuto legal, que resguardou os direitos dos casados aos companheiros.
Em outros termos, se a união estável foi criada e dissolvida antes da
Constituição Federal de 1988, aplica-se o Direito das Obrigações. Agora, se
a entidade familiar foi criada e desfeita a contar da Carta Magna, ou, ainda,
se edificada e rompida durante a vigência dessa Carta Cidadã, aí sim se aplicam
todas as regras do Direito de Família. (WELTER, Pedro Belmiro. Estatuto da União
Estável. 2 ed.: Porto Alegre: Síntese, 2003, ps. 111-113).
308
Jurisprudência da QUARTA TURMA
3.2. Desse modo, não é despiciendo consignar que, em data mais próxima
ao início do concubinato mantido pela recorrida e o de cujus - e, portanto, da
realidade social dentro da qual foi mantida a união estável, o legislador, suprindo
a omissão de outrora, veio a regular a matéria.
As Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996 vieram a regulamentar as matérias
relativas à união estável, atinentes aos alimentos, sucessão e ao regime de bens.
Prescreve o artigo 5º da Lei n. 9.278/1996, dispositivo tido por violado:
Art. 5º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os
conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados
fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em
condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Como bem observa Reinaldo Franceschini, no que diz respeito ao
patrimônio, em relação à jurisprudência dos Tribunais pátrios, esse dispositivo
apenas explicitou a presunção de que a aquisição decorreu do esforço comum:
No que diz respeito ao patrimônio, o art. 5º da referida lei trata dos bens móveis
e imóveis adquiridos pelos conviventes na constância da união estável e a título
oneroso, considerando-os fruto do trabalho e da colaboração comum, passando
a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação
escrita em contrário. O disposto neste artigo já era o entendimento do Judiciário,
externado na Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal. Com a redação do art.
5º da Lei n. 9.278/1996, criou a presunção de que o patrimônio adquirido durante
a união estável foi gerado pelo esforço comum, devendo ser partilhado em partes
iguais, na hipótese de dissolução da união estável, caso não tenha sido ajustado
nada em sentido contrário, por escrito.
Essa presunção é relativa, como ressalva Euclides Benedito de Oliveira, pois
o condomínio se exclui por estipulação contratual em contrário, e pode haver
a hipótese de o bem ter sido adquirido com o produto da venda de outros
adquiridos anteriormente à união. (FREIRE, Reinaldo Franceschini. Concorrência
Sucessória na União Estável. Curitiba: Juruá, 2009, p. 38).
Rodrigo da Cunha Pereira, com propriedade, pondera que a presunção
do esforço comum é um tardio reconhecimento ao papel historicamente
desempenhado pelas mulheres na sociedade brasileira, visto que significa
conferir o necessário e merecido valor ao suporte doméstico (esforço indireto)
prestado pelo convivente que, evidentemente, não se restringe ao mesmo
trabalho realizado por uma empregada doméstica:
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309
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O “espírito” jurisprudencial sobre o direito concubinário, para suas
conseqüentes repercussões patrimoniais, teve como esteio, por muito tempo, três
súmulas do Supremo Tribunal Federal, que contêm os elementos balizadores e
refletem uma evolução que se vem fazendo.
[...]
A partir daí temos os elementos referenciais, nos quais os Tribunais sempre
se pautaram. É certo que há posições diferenciadas sobre o assunto e mesmo
interpretações menos e mais extensivas sobre essas súmulas. Por exemplo,
quando se fala, na Súmula n. 380, em “esforço comum” para efeitos de partilha,
o entendimento mais recente é de que não é necessário que a contribuição de
uma das partes tenha sido financeira. Basta que uma delas tenha dado suporte
doméstico para que a outra pudesse construir ou realizar, ou seja, basta que tenha
sido uma contribuição indireta:
[...]
Com isto e sempre refletindo as alterações dos costumes, o Superior Tribunal
de Justiça, por sua 4ª Turma, em acórdão do Ministro Fontes de Alencar, inclinou-se a
adotar a posição mais liberal, reconhecendo a contribuição indireta para a formação
do patrimônio formado durante a relação conbinária, na seguinte decisão em um
Recurso Especial:
[...]
Parece-nos ser mesmo esta a posição mais moderna do Direito corroborada mais
de uma vez pelo Superior tribunal de Justiça.
[...]
O significado e a importância da contribuição indireta estão muito além
das relações decorrentes de uma união estável. Este entendimento significa
o reconhecimento do necessário suporte doméstico, historicamente dado pelas
mulheres. Significa atribuir um conteúdo econômico a esse tão desvalorizado
trabalho. A atribuição de um “valor econômico” a esse trabalho significa dar-lhe
seu merecido valor.
[...]
Suporte doméstico não significa as tarefas desenvolvidas muitas vezes por
uma “empregada doméstica”. É muito mais que isso. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha.
Concubinato e união estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65).
3.3. No caso, são possíveis, em tese, duas soluções jurídicas para o período de
vazio legal, isto é, anteriormente ao instituto jurídico da união estável: adotar a
literalidade da vetusta Súmula n. 380-STF, ou aplicar as regras da lei que veio a
ser editada no decurso do concubinato.
No que tange à Súmula n. 380-STF, embora não se cuide de regra legal,
o escólio de Eros Roberto Grau é valioso para a compreensão de seu texto
contemporaneamente:
310
Jurisprudência da QUARTA TURMA
33. A atualização do direito
Um outro aspecto reclama ponderação. É que a interpretação do direito
encaminha a atualização do direito.
Ela sempre, necessariamente, se dá no quadro de uma situação determinada
e, por isso, deve expor o enunciado semântico do texto no contexto histórico
presente (não no contexto da redação do texto).
Todo texto pretende ser compreendido em cada momento e em cada situação
concreta de uma maneira nova e distinta. Isto - observa Marí [1991:243] - e a
afirmação de Gadamer, de que compreender e aplicar constituem o anverso e o
reverso de uma mesma medalha.
As leis - segundo Gadamer [1991:380 e ss.] - não pretendem ser
interpretadas historicamente, cabendo à interpretação torná-las concretas
em sua validade jurídica. O texto deve ser compreendido em cada
situação concreta de maneira nova e distinta. A mobilidade histórica da
compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica romântica,
representa o verdadeiro centro de uma hermenêutica adequada à
consciência histórica (o intérprete tem de apreender a tensão natural entre
o momento da construção do texto - o passado- e o momento da construção
da norma - o presente- e, assim, enfrentar a mobilidade da situação concreta
à qual se há de aplicar essa norma) [p. 380]. O intérprete não pretende outra
coisa senão compreender o texto, compreender o que diz a tradição e o que
dá sentido e significação a ele. Para compreender isso não lhe é dado querer
ignorar-se a si próprio e à situação hermenêutica em que se encontra. Está
obrigado a relacionar o texto a esta situação, se é que pretende discernir algo
nele [p. 396].
[...]
Pelo contrário, está obrigado a reconhecer que as circunstâncias sofreram
alterações e, conseqüentemente, a determinar em novos termos a função
normativa da lei [pp. 389-390]. A tarefa da interpretação consiste em dar
concreção à lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.
Linhas acima afirmei que se dá na interpretação de textos normativos
algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única
interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida
por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por Von
Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais romântica,
mais derramada, a outra mais longilínea as duas são autênticas - e corretas. Mais
do que isso ocorre, pois se altera, no tempo, o “modo de ouvir” as sinfonias, de
modo que poderíamos dizer que o intérprete da Sexta Sinfonia a interpreta em
coerência com as circunstâncias determinantes dessas alterações no “modo de
ouvir” a música, e - paradoxalmente - a interpretação, hoje, sob a regência do
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
311
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
próprio Beethoven, da Sexta Sinfonia não seria tida como correta (...) (GRAU, Eros
Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4 ed.
São Paulo: Malheiros, 2006, ps. 120-122).
A matéria, relativa à regulação de fatos pretéritos do concubinato puro, com base
na solução ulteriormente conferida pelo legislador, foi apreciada por este colegiado
no julgamento do REsp n. 397.168-SP, assim ementado:
Civil. Recurso especial. União estável. Herança. Falecimento do companheiro
sem ascendentes ou descendentes. Aplicabilidade da Lei n. 8.971/1994 a fatos
pendentes. Possibilidade. Sociedade de fato. Comunhão de aqüestos. Inexistência
de retroatividade (art. 6º da LICC).
1 - A união estável, quer antes, quer depois da edição da Lei n. 8.971/1994, gera
direitos e obrigações, já que é um fato jurídico, e, como tal, desafia a proteção
estatal. Logo, tais relações foram equiparadas as sociedades de fato, sendo os
bens sujeitos ao chamado regime de comunhão de aqüestos.
2 - Se tal relação, que se perpetua durante um longo período, configura-se
pelo animus que inspira os companheiros a viverem como casados fossem, não
se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao regular a matéria acerca dos alimentos
e da sucessão de tais pessoas, somente surtiria efeitos futuros, deixando ao
desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia.
Inexistindo referência na lei do termo inicial da contagem do prazo qüinqüenal
para aquisição do direito, deve-se aplicá-la, revestida que é do caráter benéfico, a
todos os fatos pendentes.
3 - Assim, no caso concreto, já que dúvidas não há nos autos de que a autora
era companheira do falecido por longos 07 (sete) anos; que o mesmo não deixou
descendentes e ascendentes; que nos termos da lei esta é herdeira da totalidade
dos bens deixados (art. 2º, III, da Lei n. 8.971/1994), porquanto a mesma atinge as
situações pendentes; não há que se falar em violação ao art. 6º da LICC.
4 - Recurso não conhecido.
(REsp n. 397.168-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em
26.10.2004, DJ 6.12.2004, p. 315).
No mencionado precedente, relatado pelo eminente Ministro Jorge
Scartezzini, Sua Excelência - mencionando precedentes desta Corte e do STF, da
relatoria do Ministro Moreira Alves conferindo solução que destoa da literalidade da
Súmula n. 380-STF - alertou que, desprezar o disposto na Lei n. 8.971/1994,
significaria “deixar ao desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que
se tem noticia”:
312
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Inicialmente, anoto que o cerne da questão no presente recurso especial
cinge-se na aplicabilidade imediata ou não da Lei n. 8.971/1994 aos direitos
sucessórios das pessoas que vivem no regime de comunhão estável.
A comunhão de bens entre marido e mulher, ou entre companheiros, não
tem antecedentes romanos, como alguns pensam (Digesto XXXIV, 1, 16, 3), mas
sim, têm suas origens nos costumes germânicos da idade média (in, “Direito de
Família”, SILVIO RODRIGUES, p. 165). Chegou ao nosso ordenamento, através
das Ordenações Afonsinas (Livro 4, Título 12, parág. 5º) e, posteriormente, as
Manuelinas e Filipinas.
Antes mesmo da edição da Lei n. 8.971/1994 e da própria Constituição
Federal da 1988, mais exatamente a cinco decênios, a jurisprudência pontificou
o reconhecimento da sociedade de fato entre concubinos para fins patrimoniais,
havendo inclusive, verbete sumular no Pretório Excelso (Súmula n. 380-STF).
Alguns dizem que os direitos da concubina ou da companheira são frutos da
criação jurisprudencial, consolidados pela Magna Carta de 1988.
Todavia, conforme ensina-nos ANTÔNIO CHAVES (in, RT 623/13), “(...) assim
terá sido a princípio. Mas José Tavares (‘O Concubinato’, Suplemento Jurídico do DER,
PJ, 108, julho-setembro/1982) enumera a série de textos legais que já regulamentam
a matéria: reconhecimento de filhos (Lei n. 6.515, de 26.12.1977); Lei de Acidentes do
Trabalho (Dec.-Lei n. 7.036, de 10.11.1944); seguro de acidentes do trabalho (Lei n.
6.367, de 19.10.1976); renda do presidiário (Lei n. 2.699, de 17.6.1954); em matéria
previdenciária (Lei n. 4.297, de 23.12.1963), Dec. n. 76.022, de 24.7.1975 e n. 77.077,
de 24.1.1976; salário-família do funcionário público, a pensão de viúva, tanto a
de servidor com a de empregado vinculado ao Sistema da Previdência Social, e o
imposto de renda (onde a concubina pode ser considerada dependente para efeitos
de isenção) (...)”.
Desta forma, dúvidas não há que a união estável, quer antes, quer depois
da edição da Lei n. 8.971/1994, irradia direitos e obrigações, já que é um fato
jurídico, e, como tal, desafia a proteção estatal. Logo, equiparou-se tais relações
as sociedades de fato, sendo os bens sujeitos ao chamado regime de comunhão
de aqüestos.
MOURA BITTENCOURT, com precisão, assevera acerca da colaboração da
companheira na aquisição ou manutenção dos bens, o seguinte:
Se o dever de consciência não chega a ditar o cumprimento da
obrigação natural, pelo espontâneo atendimento, - terá lugar a obrigação
jurídica. Os repertórios de jurisprudência dão notícia de decisões assim
norteadoras. É suficiente a permanência da concubina no lar, nas lides
domésticas, em cooperação útil e, só com isso, reconhecem-se efeitos
patrimoniais à sociedade more uxorio, não se precisando exigir participação
da companheira fora do lar, em trabalho produtivo.
Serve, pois, para demonstração da sociedade de fato a colaboração
da concubina no lar, deduzida de uma abnegada vida em comum, ou da
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
313
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
convivência more uxorio, por muitos anos, já decidiu o Supremo Tribunal.
(in, “Concubinato”, 3a. edição, 1985, p. 104).
Na mesma esteira, ou seja, pela contribuição indireta, voto do ilustre Ministro
Moreira Alves, in RSTJ 25/335, ao registrar que “(....) admite-se que essa
colaboração possa decorrer do próprio labor doméstico, nos casos em que,
graças à administração do lar pela mulher, se façam, ou se ampliem economias,
graças as quais se forma o patrimônio comum”.
Elucidativas, neste particular, as palavras do Ministro Athos Carneiro, quando
Relator do REsp n. 13.785-PR: “Realmente, se do trabalho e da atividade de duas
pessoas em conjunto surge um patrimônio, ou resultam acréscimos ao patrimônio já
existente de uma delas, é evidente que no plano do direito das obrigações e do direito
das coisas resultou um condomínio sobre o patrimônio surgido, ou sobre a parcela
acrescida, pouco importando se um dos partícipes na formação do patrimônio já
é casado, e pouco importando se os partícipes mantêm ou não convivência more
uxório.”
No mesmo sentido, os precedentes contidos nos REsp n. 60.073-DF, Rel. p/
acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, DJU 15.5.2000 e REsp n. 38.657-SP, Rel.
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 25.4.1994.
Logo, se a união estável se configura pelo animus que inspira os companheiros
a viverem como casados fossem, não se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao
regular a matéria acerca dos alimentos e da sucessão de tais pessoas, somente
surtiria efeitos futuros, deixando ao desabrigo toda a construção legislativa e
pretoriana de que se tem noticia. Inexistindo referência na lei do termo inicial
da contagem do prazo qüinqüenal para aquisição do direito, deve-se aplica-la,
revestida que é do caráter benéfico, a todos os fatos pendentes.
Nesse passo, cabe destacar que, no caso, não há falar em conflito, pois isso só
se poderia ser cogitado caso houvesse norma anterior versando acerca do patrimônio
adquirido pelos conviventes, pois há “possibilidade de conflito somente entre
duas normas positivas que se achem em pé de igualdade”. (MAXIMILIANO,
Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 27)
A doutrina esclarece esse fenômeno de aparente retroatividade da Lei:
Realmente, fosse o “mundo jurídico” de outra natureza, e não seria possível
falar-se em retroatividade, ao menos nesta acepção. No mundo físico ou material,
ninguém pode “voltar ao passado”, de forma que aquilo que aconteceu não mais
aconteça, ou aquilo que se processou de uma certa forma deixe de ter assim se
processado. Não há como “retro-agir” neste particular campo da realidade.
O mesmo, todavia, não acontece no universo dos fenômenos ideais.
314
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[...]
Hoje, em pensamento, é perfeitamente possível se considerar que o passado
não se fez idealmente realizar desta ou daquela forma, para os fins presentes que
de momento se pretendem ver alcançados.
É o que ocorre com o universo formado pelas normas jurídicas. Por serem
realidades ideais, podem agir valorativamente sobre o passado, para disciplinar
condutas no tempo presente. Valoram o que ocorreu no tempo anterior à sua própria
existência, para hoje ditarem comandos ou prescrições acerca do que pode, deve ou
não ser realizado de forma lícita.
Tal constatação, aliás, nos é bem esclarecida, com inigualável maestria, por
Gaetano Pace. Sustentando que a retroatividade deve sempre ser entendida como
uma “valoração jurídica do passado” (“valutazione giurídica del passato”), afirma
que “se la norma, come comando, é rivolta essenzialmente verso il futuro, la norma
come valutazione (cioé come criterio di valutazione dei fatti umani), puó anche
rivolgersi verso il passato”. Assim, acaba por concluir, “la valutazione retroattiva viene
a consistere in uma nuova e diversa valutazione che si sostituisce a quella originária
cioé in una rivalutazione giuridica”.
Claro, assim, ao contrário do que parecem mesmo pensar alguns, a retroatividade
de uma lei não implica que se pretenda “comandar” (dirigir comandos) o passado,
visto que tal seria impossível. Sua “invasão” ao período anterior à sua vigência implica
unicamente que juridicamente o passado será “valorado” diferentemente, para fins de
que no presente sejam dadas de certa forma as condutas humanas que se pretende
prescrever. Valorará um passado (positivo ou negativo), anteriormente considerado
como juridicamente irrelevante, como relevante, (ou vice-versa); afirmará que os
efeitos de um fato jurídico passado, definidos de acordo com a lei de seu tempo,
passam a ser valorativamente outros, desde o início da sua projeção.
[...]
Seu conceito recai unicamente na função “valorativa” destas normas, e nunca
propriamente na sua função de prescrever condutas, também chamada por
alguns de “imperativa”.
Por fim, para que não passe sem o devido realce, torna-se importante assentar
a constatação que resta implícita em tudo que acabamos de afirmar, que é a de
que a valoração que decorre da ação retroativa da lei nova é sempre uma ação
jurídica modificadora do passado. Uma norma que em nada altera juridicamente
o período que antecedeu a sua vigência não pode, por conseguinte, ser entendida
como retroativa.
[...]
Realmente, sendo a lei o instrumento pelo qual se institui em um dado plano
hierárquico do ordenamento jurídico certas normas de direito positivo, nada mais
óbvio que o “agir retroativo” de um diploma legislativo seja, em última instância,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
315
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
o “agir sobre o passado” das próprias normas que o integram. E sendo assim, nada
mais evidente, ainda, que o modus pelo qual uma norma valorativamente “invade”
o período jurídico decorrido antes da sua vigência deva ser, em alguma medida,
ditado pelos próprios elementos que constituem a sua estrutura.
Donde decorrer a necessidade, para a precisa delimitação conceitual da
retroatividade, do estudo dos componentes da norma jurídica que, em princípio,
podem dar ensejo à própria configuração da ação pretérita de uma lei, em uma
dada situação concreta de alteração legislativa. (CARDOZO, José Eduardo Martins.
Da Retroatividade da Lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, ps. 257-260).
Calha novamente a abalizada lição de Carlos Maximiliano, quanto aos
fatos, que os classifica como “pendentes”, em regra, prevalece a norma recente.
Outrossim, o renomado doutrinador observa que a norma recente, que
reconhece um princípio de justiça ou que cria um novo instituto jurídico, aplica-se
aos fatos pretéritos; fazendo, ainda, com menção à lição de Ihering, ponderação
que reputo, no caso em apreço, irretorquível: “A conservação de institutos caducos,
inspirada pelo respeito a indivíduo, não corresponde à idéia do Direito; ofende-a;
porquanto, onde esta impera, tôda injustiça, uma vez reconhecida, cessa.
Desarrazoado seria mantê-los, quando ‘não passam de máscaras vazias, das quais
a vida se retirou desde que as doutrinas e os princípios aos quais êles deviam a
existência, sucumbiram sob a anátema da História’.”:
A lei aplica-se imediatamente. A regra, para o juiz, é fazer observar o Direito
vigente, salvo nos casos em que o Direito revogado conserva uma certa ultraatividade. O princípio dominante consiste em que as leis novas se aplicam às
relações jurídicas permanentes, ou constituídas depois de entrar em vigor a
norma recente, isto é, as relações que surgem ou perduram na vigência do último
diploma. (20)
[...]
9- Retroatividade é o transporte da aplicação da lei a uma data anterior à de sua
publicação, a ficção da preexistência da lei.
[...]
Não há conflito entre Costumes, nem entre Jurisprudências.
[...]
Efeitos de situações anteriores, os quais se desenvolvem ainda e não chegaram ao
seu estado final antes do advento da lei nova, pela mesma se regem.
[...]
Quanto aos fatos pendentes (facta pendentia) em geral, prevalece a norma
recente. Ocorrem quatro espécies ou possibilidades: a) situações jurídicas em
316
Jurisprudência da QUARTA TURMA
curso de constituição no momento do advento da lei nova; b) situação jurídica
em curso de efeitos, isto é, efeitos posteriores ao momento referido; c) situação
jurídica em curso de extinção, ao tempo em que sobrevem o diploma modificador
das condições de extinção; d) situações de puro fato, de caráter durável, que, na
vigência das regras abrogadas, não haviam produzido a constituição, nem a
extinção de uma situação jurídica, e que estavam ainda em curso ao surgirem os
últimos mandamentos atribuindo-lhes aquêle poder de constituir ou extinguir.
Nas quatro hipóteses formuladas a solução é uma só: imperam os derradeiros
preceitos.
[...]
44 - O excesso de cautela em evitar o parcel de retroatividade levaria o temeroso
de Silas a esbarrar em Caribides; fugindo de um mal, cairia em outro, e maior: o direito
do povo à vida, o da consciência geral de desenvolver-se e expandir-se, correria o
risco de ser sacrificado pela superabundância de cuidados e atenções para com
prerrogativas individuais.
Um direito, embora concreto, que pretenda ilimitada, eterna duração, assemelhase á criança que levanta a mão contra a própria mãe; pois tôda franquia jurídica
advém do perpétuo evolver.
Aplica-se aos fatos que nasceram sob o domínio da lei antiga, a norma recente
que reconhece um princípio científico ou de justiça: por exemplo, supressão da
pena cominada para certos atos; investigação da paternidade.
Não há direito adquirido no tocante a instituições, ou institutos jurídicos. Aplicase logo, não só a lei abolitiva, mas também a que, sem os eliminar, lhes modifica
essencialmente a natureza. Em nenhuma hipótese granja acolhida qualquer
alegação de retroatividade, posto que, às vêzes, tais institutos envolvam certas
vantagens patrimoniais que, por equidade, o diploma último ressalve ou mande
indenizar.
45 - A conservação de institutos caducos, inspirada pelo respeito a indivíduo, não
corresponde à idéia do Direito; ofende-a; porquanto, onde esta impera, tôda injustiça,
uma vez reconhecida, cessa. Desarrazoado seria mantê-los, quando “não passam de
máscaras vazias, das quais a vida se retirou desde que as doutrinas e os princípios aos
quais êles deviam a existência, sucumbiram sob a anátema da História”.
Não se acoima de retroativa a aplicação integral e imediata de uma lei abolitiva
da escravidão, da enfiteuse, do fideicomisso perpétuo, da hereditariedade de
funções públicas, de equiparação de ginasios particulares aos oficiais. A norma
que ampara os filhos naturais, observa-se em relação ao tempo anterior, favorece
- a prole nascida antes da promulgação.
[...]
A lei criadora de um instituto jurídico observa-se com amplitude, sem restrição
alguma; não há perigo de incorrer em retroatividade, de prejudicar situação
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
317
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
estabelecida. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da
Retroatividade das Leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, ps. 20-63).
Fábio Ulhoa Coelho leciona que, pela analogia, o magistrado deve buscar
no ordenamento uma norma que diga respeito à situação assemelhada, já que
é de se pressupor que o Poder, com competência para disciplinar a matéria,
tenderia a prestigiar os mesmos valores ou adotar iguais critérios aos que o
inspiraram na edição de norma regulando situação semelhante:
Pela analogia, o juiz deve buscar, no ordenamento em vigor, uma norma jurídica
que diga respeito à situação semelhante à do caso em julgamento. Já que não existe
nenhuma norma que trate especificamente do caso, determina a lei que o juiz se
valha de norma aplicável a fatos assemelhados. O emprego da analogia pressupõe
que a autoridade com competência para disciplinar em termos gerais aquela
matéria, quando fosse fazê-lo, tenderia a prestigiar os mesmos valores ou adotar
iguais critérios aos que a inspiraram na edição de outra norma para uma situação
próxima. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: parte geral. 3 ed.: São
Paulo, Saraiva, vol. 1, 2009, p. 75).
No mesmo diapasão:
Direito Civil. Previdência privada. Embargos de declaração no recurso especial.
Benefícios. Complementação. Pensão post mortem. União entre pessoas do
mesmo sexo. Princípios fundamentais. Emprego de analogia para suprir lacuna
legislativa. Necessidade de demonstração inequívoca da presença dos elementos
essenciais à caracterização da união estável, com a evidente exceção da
diversidade de sexos. Igualdade de condições entre beneficiários.
[...]
- Conquanto questionável a premissa constitucional fixada pelo TJ-RJ, de que o
conceito de união estável não contempla uniões entre pessoas do mesmo sexo, o
recurso especial trouxe debate diverso e sob viés igualmente distinto foi a matéria
tratada no STJ, porquanto ao integrar a lei por meio da aplicação analógica do art.
1.723 do CC/2002, o acórdão embargado decidiu a temática sob ótica nitidamente
diversa daquela adotada no acórdão recorrido sem necessidade de tanger o
fundamento constitucional nele inserto, porque não definiu a união homoafetiva
como união estável, mas apenas emprestou-lhe as consequências jurídicas dela
derivadas.
- Vale dizer, a decisão do STJ terá plena eficácia não sendo, de forma alguma,
limitada em seu alcance pela fixação da tese constitucional, transitada em
julgado, ainda que o STF viesse a referendar a conclusão de índole constitucional
albergada pelo TJ-RJ.
- Assim, inaplicável, na hipótese julgada, o entendimento da Súmula n. 126
do STJ, que apenas aponta a inviabilidade de recurso especial quando o recurso
extraordinário que veicule idêntica temática for obstado na origem. Aí sim,
318
Jurisprudência da QUARTA TURMA
ocorrendo efetiva prejudicialidade entre possível decisão do STJ e a existência,
na origem, de fundamento constitucional inatacado, é de rigor a incidência do
aludido óbice.
- A embargante pretende, em suas ponderações, tão somente rediscutir
matéria jurídica já decidida, sem concretizar alegações que se amoldem às
particularidades de que devem se revestir as peças dos embargos declaratórios.
- A tentativa obstinada no sentido de que incidam óbices ao conhecimento do
recurso especial deve ser contemporizada quando em contraposição a matéria de
inegável relevo social e humanitário.
- Ao STJ não é dado imiscuir-se na competência do STF, sequer para
prequestionar questão constitucional suscitada em sede de embargos de
declaração, sob pena de violar a rígida distribuição de competência recursal
disposta na CF/1988.
Embargos de declaração rejeitados.
(EDcl no REsp n. 1.026.981-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 22.6.2010, DJe 4.8.2010).
Nesse passo, é conveniente trazer novamente à baila as lições de Maria
Helena Diniz e Eros Roberto Grau:
A analogia legis ou individual, na terminologia de Karl Larenz, consiste
na aplicação de uma norma existente destinada a reger caso semelhante ao
não previsto, importando uma maior vinculação a uma determinada norma,
partindo da similitude entre as hipóteses (prevista e não prevista) quanto a seus
aspectos essenciais, chegando assim à conclusão da igualdade da conseqüência
jurídica. Gostaríamos de trazer à colação os dizeres de Del vecchio: “merced a la
analogía, el ámbito de aplicación de la ley, se extiende más allá del repertorio de caso,
originariamente, previsto, con tal de que se trata de supuesto similar o afin a aquéllo,
y siempre que la ratio legis valga igualmente para un y para otro”.
A analogia legis apóia-se num dispositivo legal existente, que é aplicável
à hipótese similar, constituindo-se, portanto, num argumento lógico, numa
autêntica reconstrução normativa, produto, por um lado, de uma segurança e
estabilidade jurídica e, de outro lado, da flexibilidade do direito. Procura encontrar
um fundamento valorativo da norma que permita que nela se englobe a situação
não regulada, que, por sua vez, apresenta certa semelhança com o fato contido
nessa norma. (DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 8 ed. São Paulo:
Saraiva, 2007, ps. 87 e 106).
35. A “vontade do legislador”
[...]
A respeito dela Carlos Maximiliano [1957:33-51] produziu libelo
contundente: “A lei não brota do cérebro de seu elaborador, completa,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
319
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo” [p. 35].
“O legislador não tira do nada, como se fora um Deus; é apenas o órgão
da consciência nacional” - daí por que pode a lei ser mais sábia do que o
legislador (...)
[...]
“Em uma das forjas da lei, no Parlamento, composto, em regra, de duas
Câmaras, fundem-se opiniões múltiplas, o conjunto resulta de frações de
idéias, amalgamadas; cada representante do povo aceita por um motivo
pessoal a inclusão de palavra ou frase, visando a um objetivo particular
a que a mesma se presta; há o acordo aparente, resultado de profundas
contradições. Bastas vezes a redação final resulta imprecisa, ambígua,
revelando-se o produto da inelutável necessidade de transigir com exigências
pequeninas a fim de conseguir a passagem da idéia principal” [p. 39]. “O
projeto peregrina pelos dois ramos do Poder Legislativo, em marchas e
contramarchas, recebendo retoques de toda ordem, a ponto de renegar
afinal, espantado do aspecto definitivo da própria obra, o autor primitivo da
medida. Como descobrir, naquele labirinto de idéias contraditórias e todas
parcialmente vencedoras, a vontade, o pensamento, a intenção diretora e
triunfante?” [p. 40].
[...]
“Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa;
separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata
e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na
prática, mais previdente que o seu autor” [p. 48].
[...]
A lei, aliás - o texto normativo, em verdade -, já foi dito, costuma ser mais
inteligente do que o legislador. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a
Interpretação/Aplicação do Direito. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, ps. 124127).
4. O caso em julgamento é peculiar, pois há norma tratando da mesma
situação jurídica que, inclusive, inequivocamente a abrange, pois o concubinato
perdurou durante a sua vigência.
Bem por isso, salta aos olhos a seguinte indagação: em havendo constatação
de que havia inequívoca lacuna da lei a respeito da matéria em debate, é razoável
conferir duas soluções para a mesma situação jurídica?!
Ademais, cabe consignar haver também outra singularidade que reputo
relevante: o artigo 5º, caput, da Lei n. 9.278/1996 previu que os conviventes
poderiam dispor a respeito do patrimônio adquirido na constância da união
para que, portanto, não se presumisse o esforço comum:
320
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Art. 5º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os
conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados
fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em
condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
§ 1º Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer
com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.
§ 2º A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a
ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Ora, se no período de incidência da Lei, o de cujus, que segundo aduzem
as recorrentes, era advogado conceituado, não buscou afastar a presunção de
haver um condomínio - no que tange ao acervo patrimonial obtido no decorrer
da união - é prudente, e coerente com a autonomia da vontade, presumir,
desprezando a solução oferecida pela lei, que quisesse afastar a presunção para o
período de lacuna da lei?!
5. Ademais, em recente julgado da Segunda Seção, relativo ao EREsp n.
964.780-SP, ficou definido que, quando o legislador é silente a respeito do efeito
temporal de determinado instituto jurídico que vem a ser consagrado pela lei
(caso do instituto da união estável, criado para disciplinar o concubinato puro),
por técnica de política judiciária, cabe ao Poder Judiciário suprir a lacuna:
Processo Civil. Embargos de divergência em recurso especial. Deserção e
ausência de representação processual inocorrentes. Civil. Propriedade industrial.
Marca. Caducidade. Efeitos prospectivos (ex nunc). Finalidade da lei.
[...]
3. Denomina-se técnica de política judiciária a discussão sobre a direção para frente (ex nunc) ou para trás (ex tunc) - e a extensão - limitada ou ilimitada
- da atividade temporal dos efeitos de determinado instituto jurídico. Quando o
legislador é silente acerca de sua definição, cabe ao Poder Judiciário preencher
essa lacuna. Precedente do STF.
[...]
6. A prospectividade dos efeitos da caducidade é a mais adequada à finalidade
do registro industrial, pois confere maior segurança jurídica aos agentes
econômicos e desestimula a contrafação.
7. Embargos de divergência acolhidos para prevalecer a orientação do REsp
n. 330.175-PR, que reconhece efeitos prospectivos (ex nunc) da declaração de
caducidade da marca industrial.
(EREsp n. 964.780-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em
10.8.2011, DJe 29.8.2011).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
321
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No mencionado precedente, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, Sua
Excelência dispôs:
Antes de se fazer essa distinção, devemos compreender a finalidade que se
pretende conferir à compreensão da mens legis. Essa finalidade é denominada
técnica de política judiciária. Ou seja: quando o legislador não optou por definir
de forma explícita a atividade temporal de determinado instituto jurídico, cabe ao
Poder Judiciário delimitar sua direção – para frente (ex nunc) ou para trás (ex tunc)
– e sua extensão – limitada a um ponto no tempo ou ilimitada.
Essa técnica advém da jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Unidos
e foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 2.240-BA.
Naquela situação, o STF – diante de uma situação fática consolidada no tempo
(criação do Município Luis Eduardo Magalhães-BA) – debateu a atividade dos
efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei estadual que formalizou
o novo ente municipal. A precitada técnica foi esmiuçada no voto-vista do Min.
Gilmar Mendes na seguinte passagem (fl. 315 do acórdão):
(...) a jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão
de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados
(limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling),
que tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicável aos processos
iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada
(pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem.
Vê-se, pois, que o sistema difuso ou incidental mais tradicional
do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura
declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro.
[...]
Diante dessas premissas, a direção temporal dos efeitos da caducidade mais
adequada à finalidade do registro industrial é – sem dúvidas – a prospectividade
(ex nunc).
Nesse passo, como a Corte local apura que houve esforço (direto) comum
na formação do acervo patrimonial, é também Rodrigo da Cunha Pereira que
alerta sobre a dificuldade de se chegar a outra decisão que não seja a de dividir o
patrimônio por igual:
É nesse pressuposto que a nossa jurisprudência evoluiu. É aí que a Súmula
n. 380 do STF se assenta, considerando a comunhão da companheira como
participação em uma sociedade de fato e que, dissolvida, deve ter o conseqüente
partilhamento patrimonial. É justo que da vida em comum, da comunhão de
322
Jurisprudência da QUARTA TURMA
interesses, quando de sua dissolução, se busque, uns contra os outros, o arrimo
necessário aos seus direitos. Nesta sociedade há também uma comunhão de
direitos e obrigações.
É com base na teoria da sociedade de fato que os Tribunais buscaram,
inicialmente, o suporte de suas decisões. Foi no campo do Direito das
obrigações que eles se sustentaram. Com o art. 226, § 3º, da Carta Constitucional
estabelecendo que a união estável também é família, a doutrina tomou outro
rumo. Mas a evolução vem se fazendo. Basta voltarmos aos exemplos de
reconhecimento da participação indireta na construção do patrimônio do casalde-fato e o da Súmula n. 382 do STF, que diz ser dispensável, na caracterização do
concubinato, a vida sob o mesmo teto.
O art. 3º da Lei n. 8.971/1994 e o art. 5º da Lei n. 9.278/1996 constituem a
síntese e o reflexo dessa evolução quando estabelecem que se “os bens deixados
pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração
do (a) companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens”, e “os bens
móveis e imóveis adquiridos por um ou ambos os conviventes, na constância
da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da
colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em
partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”. O Código Civil de
2002 consolidou esse entendimento, estabelecendo que na “União Estável, salvo
convenção válida entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no
que couber, o regime da comunhão parcial de bens” (art. 1.725).
3.1 Critério de partilhamento
Uma outra dificuldade que vinham encontrando os julgadores para estar mais
próximos do justo, já que se esteiavam na teoria da sociedade de fato, diz respeito ao
critério de partilha, ou seja, se se poderá dividir em partes iguais, ou qual o percentual
que caberá a cada um no partilhamento. Na verdade, são raros os casos em que
se torna possível, mesmo por estimativa, chegar a percentuais que não sejam de
50% para cada um. É que essas sociedades têm como essência a informalidade e
longe estão de controles contábeis, embora em alguns raros casos seja possível
proceder a uma medição contábil. Mas a maioria das decisões são no sentido de
se estabelecer uma meação, à semelhança de um casamento pelo regime da
comunhão parcial de bens.
[...]
Em síntese, se os conviventes nada pactuarem, serão condôminos dos bens
cuja origem for a aquisição onerosa, isto é, exclui-se doações ou heranças
recebidas. Cessa, também, a comunhão em caso de sub-rogação, isto é, aquisição
de um acervo, durante a convivência, com o produto de bens, cuja aquisição
data anteriormente à união. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união
estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
323
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A solução legislativa, além de ser a mais razoável para disciplinar a situação
jurídica dos companheiros, mostra-se sábia e de todo conveniente.
É que o afastamento da presunção de que o patrimônio - adquirido na
constância da união - foi amealhado por meio do trabalho e da colaboração
comum dos companheiros traria, nos casos em que a união for dissolvida pela
morte de um dos conviventes, em regra, desequilíbrio processual em prejuízo
dos herdeiros do de cujus; visto que, normalmente, terão maior dificuldade - se
comparado ao companheiro sobrevivente -, em demonstrar quais são os bens
adquiridos pelo esforço direto de cada um dos companheiros.
6. Igualmente, em julgado realizado neste ano, referente ao REsp n.
1.171.820-PR, a Terceira Turma se valeu, sem qualquer ressalva, da presunção
constante no artigo 5º da Lei n. 9.278/1996 para a partilha de patrimônio
adquirido no decorrer de união iniciada anteriormente à vigência desse Diploma
legal:
Direito Civil. Família. Alimentos. União estável entre sexagenários. Regime de
bens aplicável. Distinção entre frutos e produto.
1. Se o TJ-PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio
necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões
são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal.
2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo
qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na
constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição
decorreu do esforço comum de ambos os companheiros.
3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável
é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem
interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso.
4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o
regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória
de bens, segue esse regime temperado pela Súmula n. 377 do STF, com a
comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo
presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão
parcial.
6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens
adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei
n. 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos
particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou
324
Jurisprudência da QUARTA TURMA
pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V,
do CC/2002, correspondente ao art. 271, V, do CC/1916, aplicável na espécie.
7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do excompanheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto
de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a
comunicação desses frutos para fins de partilha.
8. Recurso especial de G. T. N. não provido.
9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido.
(REsp n. 1.171.820-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7.12.2010, DJe 27.4.2011).
No invocado precedente, cuja relatora para o acórdão foi a ilustre Ministra
Nancy Andrighi, Sua Excelência registrou:
Vale dizer, a lide resume-se a perquirir acerca da necessidade ou não da
comprovação do esforço comum para a aquisição do patrimônio a ser partilhado,
com a peculiaridade de que, no início da união estável, assim reconhecida pelo
TJ-PR pelo período de 12 anos (de 1990 a 2002), um dos companheiros era
sexagenário.
[...]
E é exatamente nesse ponto do voto do i. Min. Relator que rogo as máximas
vênias para dele divergir, pois, ao mesmo tempo em que adere ao posicionamento
sufragado pela 3ª Turma e também pelo STF, a considerar presumido o esforço
comum para a aquisição do patrimônio do casal, declara não haver espaço para
presunções ante a afirmação contida no acórdão recorrido de que a companheira
não teria contribuído para a constituição do patrimônio a ser partilhado.
Ora, se a hipótese é de presunção do esforço comum, é irrelevante a declaração
contida no acórdão impugnado de que inexistente a colaboração mútua. Se essa
contribuição é legalmente presumida, não há necessidade de ser perquirida a
sua existência. Afinal, a questão jurídica posta a desate é exatamente a de se a
hipótese é de presunção ou de comprovação do esforço comum. Aderindo-se ao
posicionamento de que o esforço é presumido, afasta-se, por decorrência lógica,
a necessidade de sua comprovação ou, ainda, de sua ausência, ou qualquer
declaração a esse respeito contida no acórdão recorrido.
Avançando-se nessa ordem de ideias para adentrar nas peculiaridades da lide
em julgamento e verificando-se que o patrimônio é composto apenas de bens
imóveis e rendas provenientes de aluguéis oriundos desses mesmos imóveis,
chega-se à conclusão de que, do ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais,
não há diferença no que se refere à partilha dos bens com base no regime da
comunhão parcial ou no da separação legal contemporizado pela Súmula n. 377
do STF.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
325
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assim acontece porque, ao sofrer essa contemporização, o regime da
separação legal adquire contornos idênticos aos da comunhão parcial de bens,
que permite a comunicação dos aquestos. As feições de ambos os regimes – o
da comunhão parcial e o da separação legal – portanto, confundem-se, ante a
incidência da Súmula n. 377 do STF.
Reputo pertinente, por fim, a distinção entre a incomunicabilidade do produto
dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da
Lei n. 9.278, de 1996, e da comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos
particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes
ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/2002,
correspondente ao art. 271, V, do CC/1916, aplicável na espécie.
Essa diferenciação é salutar para o julgamento deste processo, porque o
acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do excompanheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto
de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, o que
permite, por assim dizer, a comunicação desses frutos para fins de partilha, com
a já mencionada contemporização permitida pela incidência, na espécie, da
Súmula n. 377 do STF, que tem o condão de desvirtuar o regime da separação
legal para igualá-lo ao da comunhão parcial de bens.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial interposto por G. T. N.,
pedindo vênia ao i. Min. Rel. para divergir apenas no tocante ao recurso especial de
M. DE L. P. S., dando-lhe provimento e determinando, por consequência, o retorno
do processo à origem a fim de que se proceda à partilha dos bens comuns do casal,
declarando, por conseguinte, a presunção do esforço comum para a sua aquisição.
No mesmo diapasão, confiram-se precedentes desta Turma:
Recurso especial. União estável. Reconhecimento judicial. Término da
relação após a edição da Lei n. 9.278/1996. Partilha de bens. Impossibilidade
de responsabilizar a recorrida pelos débitos da empresa. Recurso especial
parcialmente conhecido e nessa parte não provido.
1. Não há que se falar em ofensa ao artigo 535 do CPC, se o Tribunal recorrido
examinou as questões pertinentes ao litígio, sabendo-se que ao órgão julgador é
suficiente que apresente os fundamentos de sua convicção.
2. Esbarra no óbice na Súmula n. 7-STJ, o exame de afronta ao § 1º do artigo
5º da Lei n. 9.278/1996, alegada ao fundamento de que os bens havidos na
constância da união estável, foram adquiridos por sub-rogação.
3. Afirmando o acórdão que inexiste responsabilidade solidária da convivente
pelas dívidas da empresa, por não haver a comprovação que qualquer dos
débitos tenha sido contraído em data anterior a 1999, época do término da união,
impossível se afigura a apreciação dessa matéria em sede de recurso especial.
4. Incontroversa a união estável pelo período de 18 anos, cujo término se
deu sob a vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos
durante o convívio.
326
Jurisprudência da QUARTA TURMA
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
(REsp n. 986.290-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 22.2.2011, DJe 28.2.2011).
Recurso especial. Reexame de prova.
I - Impossibilidade de reexame de prova em recurso especial.
II - Não ofende o art. 1719, III, do Codigo Civil o acordão que, tendo admitido o
“companheirato”, “reconheceu a presunção do esforço comum na aquisição daquele
imovel, pouco importando que a companheira (obreira sem empregada) não
exercesse, ao tempo de sua aquisição, trabalho remunerado”.
III - Conflito pretoriano não demonstrado.
IV - Recurso não conhecido. Decisão unanime.
(REsp n. 361-RJ, Rel. Ministro Fontes de Alencar, Quarta Turma, julgado em
25.9.1989, DJ 30.10.1989, p. 16.510).
7. Destarte, incontroversa a união estável, cujo término se deu sob a
vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos durante o
convívio, nos termos desse Diploma.
Ademais, o acórdão recorrido pondera, à fl. 165, que “tendo em vista que
os bens foram adquiridos por esforço comum dos conviventes, agiu bem o
Magistrado”.
Desse modo, fica límpido que o Tribunal reconhece a contribuição da
recorrente na construção do patrimônio comum dos conviventes, nos moldes da
literalidade do Enunciado da Súmula n. 380-STF; e que a decisão tomada pelo
Tribunal de origem decorreu de fundamentada convicção amparada na análise
dos elementos existentes nos autos, de modo que a eventual revisão da decisão
recorrida esbarraria no óbice intransponível imposto pela Súmula n. 7 desta
Corte.
Note-se:
Processo Civil. Recurso especial. Causa decidida à base de fatos, segundo a
solução pretoriana consolidada na Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal,
in verbis: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos,
é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo
esforço comum”. Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 92.131-ES, Rel. Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em
16.12.1999, DJ 21.2.2000, p. 119).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
327
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Agravo. Sociedade de fato. Patrimonio comum. Dissidio. Ausencia. Não
provimento. Sociedade de fato entre concubinos e formação do patrimonio resultante
do esforço comum reconhecidas com apoio nas provas dos autos. Inadmissibilidade
de reexame das provas e dos fatos atraves do recurso extremo. Inexistencia de dissidio
com a Sumula n. 380 do STF.
Agravo desprovido.
(AgRg no Ag n. 9.206-RS, Rel. Min. Claudio Santos, Terceira Turma, julgado em
21.6.1991, DJ 2.9.1991, p. 11.811).
8. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
VOTO-VISTA
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de recurso especial
interposto por R.M.K.T e outra, com base nas alíneas a e c, do art. 105, da
Constituição, contra acórdão proferido pela 11ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Paraná, que, em agravo de instrumento, confirmou decisão de
indeferimento de provas em ação de reconhecimento de união estável e partilha
de bens entre o pai das recorrentes e N.K.V, ora recorrida, com início em 1985
e dissolução em 1998, em razão da morte do varão, considerando aplicáveis
as regras estabelecidas pela Lei n. 9.278/1996 durante todo o período. A
referida decisão declarou o direito à meação da companheira sobrevivente em
decorrência da presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio
constituído durante todo o relacionamento, inclusive em relação aos bens
adquiridos em período anterior à vigência da referida lei (13.5.1996).
Alegam as recorrentes violação aos arts. 535, do CPC, em razão de o
acórdão recorrido não ter se manifestado sobre o princípio da irretroatividade
das leis; 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga
LICC), sob o argumento de que os dispositivos da Lei n. 9.278/1996 não
podem retroagir para atingir e modificar relações patrimoniais definitivamente
constituídas quando de sua edição; e 5º, da Lei n. 9.278/1996, porque aplicado a
situação por ele não abrangida, que, segundo entende, passou a dispensar a prova
do esforço comum na constituição do patrimônio dos companheiros apenas em
relação aos bens adquiridos a partir de sua vigência.
Afirmam, ainda, que o acórdão recorrido adotou entendimento divergente
do TJMG e do TJRJ.
328
Jurisprudência da QUARTA TURMA
O relator, Ministro Luís Felipe Salomão, preliminarmente, afastou a
retenção do recurso especial (CPC, art. 542, § 3º), por considerar que a decisão
interlocutória confirmada pelo acórdão recorrido examinou o mérito da questão
submetida à apreciação judicial, esgotando, dessa forma, o próprio mérito da
causa.
Em relação às demais alegações, conheceu do recurso e a ele negou
provimento, entendendo aplicável a regra da Lei n. 9.278/1996 relativa à
presunção de condomínio dos bens dos companheiros adquiridos durante toda
a união estável, iniciada em data anterior à referida lei e extinta em 1998, com a
morte de um dos conviventes.
Após vista dos autos, passo a proferir meu voto.
Anoto, inicialmente, que N. K. V. ajuizou ação de reconhecimento e
dissolução de união estável com J.R.F.T., cumulada com partilha dos bens
adquiridos onerosamente durante de convivência, que alegou compreender o
período de janeiro de 1985 a outubro de 1998, reconhecendo-se o direito à
meação da autora da ação (fls. 53-67). Mediante a decisão interlocutória de fls.
28-32, foi determinada a aplicação das regras de condomínio estabelecidas pela
Lei n. 9.278/1996, em relação aos bens adquiridos a título oneroso durante todo
o período da união estável, abrangido o patrimônio constituído em data anterior
à vigência da referida lei, independentemente da comprovação do esforço
comum, posicionamento confirmado pelos acórdãos de fls. 160-168 e 180-186,
ora impugnados.
O presente recurso tem por objeto, portanto, a aplicação das regras de
presunção do esforço comum aos bens adquiridos em data anterior à vigência da
Lei n. 9.278/1996, nas hipóteses de uniões estáveis iniciadas em data anterior,
mas dissolvidas já na vigência da referida lei.
I
Assim delimitada a questão, acompanho o entendimento do relator de
afastar a retenção de recurso especial.
Rejeito, igualmente, a alegação de ofensa ao art. 535 do CPC.
Com efeito, o voto condutor do acórdão proferido nos embargos de
declaração opostos pelas oras recorrentes examinou a questão relativa à alegação
de violação ao princípio a irretroatividade da lei, como se observa na seguinte
passagem (fls. 183-184):
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
329
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ora, se a Câmara entendeu que a Lei n. 8.278/1996, embora tenha sido editada
após o início da união estável versada nos autos teria aplicabilidade ao caso
concreto, porque passou a viger antes do término da convivência comum, não se
há de falar em omissão na análise específica do principio da irretroatividade das
leis, conforme pretende fazer crer as embargantes.
Ao reconhecer que a Lei n. 8.278/1996 aplica-se à união estável havida entre
a Agravada e seu finado companheiro, porque o término da convivência entre
ambos findou-se quando já editada e em pleno vigor a referida lei, evidentemente
entendeu-se também que não houve infringência ao princípio da irretroatividade
das leis, sendo desnecessário a abordagem desse tema.
Não existe, pois, ofensa ao art. 535 do CPC.
II
O voto do eminente relator, após tecer minuciosa análise da questão
jurídica posta no recurso especial - aplicabilidade do regime de comunhão
parcial aos bens adquiridos onerosamente, durante a união estável, mas antes
da entrada em vigor da Lei n. 9.278/1996 - afirma que o Tribunal de origem
reconheceu a contribuição da recorrente na construção do patrimônio comum
dos conviventes, nos moldes da literalidade do Enunciado da Súmula n. 380STF, convicção esta formada com base nos elementos de prova existentes nos
autos, o que atrairia o óbice da Súmula n. 7.
Com a devida vênia, as instâncias de origem não concluíram, com base na
análise das provas dos autos, tenham sido os bens descritos na inicial adquiridos
por esforço comum dos conviventes. Decidiu-se pela existência de presunção
legal de esforço comum, com base na aplicação do regime da Lei n. 9.278/1996,
também em relação aos bens adquiridos antes de sua entrada em vigor, sendo
precisamente este o motivo pelo qual a decisão agravada, confirmada pelo
acórdão recorrido, indeferiu o pedido de produção de provas. A prova de esforço
comum foi considerada irrelevante para o deslinde da controvérsia, como se
observa das seguintes passagens da referida decisão (fls. 28-30):
“A persistência em produzir provas inúteis me obriga a antecipar questão de
mérito. O que se busca com a presente ação é tão somente o reconhecimento da
união estável com os efeitos patrimoniais sobre a meação dos bens adquiridos
durante a união. No máximo, além do reconhecimento da união, será decidido
se os bens indicados na exordial foram adquiridos durante a união e podem ser
objeto de partilha no inventário.
A inicial e contestação limitam os termos da entrega da atividade jurisdicional.
Vale dizer, que a lide se limita a discutir se houve a união pelo período apontado,
330
Jurisprudência da QUARTA TURMA
bem como que bens foram efetivamente adquiridos durante o período da união
ou se foram adquiridos no período, mas com recursos anteriores a existência da
união. Qualquer outra questão, deve ser discutida em ação própria em sede do
Juízo universal do Inventário.
Outrossim, cumpre destacar que qualquer prova no sentido de se saber
se a autora tinha condições de contribuir financeiramente para formação do
patrimônio é irrelevante, pois uma vez reconhecida a união estável, se aplica à
regra da comunhão parcial. Irrelevante o elemento dependência econômica para
a configuração da união livre estável, ao contrário do sistema anterior em que a
divisão de bens entre os parceiros dependia de prova de colaboração conjunta
para formação do acervo patrimonial.
A Lei n. 9.278/1996 confere aos conviventes a co-propriedade dos bens
adquiridos na constância da união estável e a título oneroso; presumem juris
tantum fruto do trabalho e da colaboração comum. A luz do quanto disposto na
Lei n. 9.278/1996 que regulamentou o § 3º do art. 226 da Constituição Federal, há
que se partilhar igualmente entre as partes todo o patrimônio na constância da
união estável ainda que, para tanto, a mulher só tenha contribuído indiretamente
através da prestação de serviço doméstico.
Cumpre destacar que a Lei n. 9.278/1996, aplica-se às uniões estáveis existentes
quando da sua vigência, ainda que iniciada a convivência anteriormente, mas não
atinge as relações extintas até 29.12.1994. Como no presente caso a união iniciouse em 1984 e somente se extinguiu em 1998, por certo a ela se aplicam as regras
do § 3º, do artigo 226 da CF, posteriormente regulamentada pela Lei n. 9.278, de
10 de maio de 1996 e atualmente pelo artigo 1.723 do Código Civil.
Vale dizer, que comprovada a existência da união estável, deve a sua dissolução
ser regida pela Lei n. 9.278/1996, que instituiu a presunção de condomínio sobre
os bens adquiridos pelos companheiros, sendo desnecessária, a partir de então, a
comprovação da contribuição econômica à formação do patrimônio erguido na
vigência da sociedade de fato.
E do voto condutor do acórdão recorrido (fls. 164-167):
Quanto ao mérito, sem razão as ora Agravantes, que tentam crer que a ora
Agravada não possui direito a meação, sob o pressuposto de que a união estável
foi constituída anteriormente a Lei n. 9.278/1996, necessitando de prova da
contribuição efetiva da companheira nos bens adquiridos durante a união estável.
Dispõe o artigo 50, da Lei no. 9.278/1996, que: Os bens móveis e imóveis
adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união
estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração
comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo
estipulação contrário e em contrato escrito.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
331
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Conforme, denota-se dos autos, a união estável do casal já existia, desde 1985,
e durante a vigência da união estável do casal, presume- se que os bens, foram
contraídos pelo esforço de ambos.
Por outro lado, não há como acolher a pretensão das Agravantes, de que a Lei
somente regularia situações futuras, não podendo ter seus efeitos estendidos em
relações anteriores a sua vigência, ainda que essas relações jurídicas tivessem
continuidade após o nascimento da Lei.
(...)
Desta feita, percebe-se que a Lei n. 9.278/1996 tem aplicação imediata e
geral, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua publicação,
conseqüentemente deve ser aplicada ao caso concreto, pois, frisa-se a convivência
more uxório começou em 1985 e teve seu término em 1998, com o falecimento
do companheiro João Regis.
Dessa forma, é irrelevante saber se a Agravada tinha condições de contribuir
financeiramente para formação do patrimônio, afinal um vez reconhecida a união
estável se aplica a regra da comunhão parcial.
Afasto, portanto, o óbice da Súmula n. 7-STJ.
III
Em relação ao art. 6º da Lei de Introdução, disciplinador do ato jurídico
perfeito e do direito adquirido, e ao art. 5º da Lei n. 9.278/1996, anoto, em
primeiro lugar, que foi atendido o prequestionamento da questão federal, sendo
certo, de outra parte, que o deslinde da controvérsia não demanda reexame do
conjunto fático-probatório dos autos.
Embora não seja pacífico o tema, reconheço que há acórdãos do STJ
segundo os quais, havendo dispositivo constitucional com o mesmo conteúdo
da regra legal cuja violação se alega, como é o caso do direito adquirido e do ato
jurídico perfeito, a questão é constitucional, não susceptível de apreciação na via
do recurso especial.
Orienta-se a jurisprudência do Supremo Tribunal, todavia, no sentido de
que não cabe recurso extraordinário por ofensa aos princípios constitucionais da
legalidade, do devido processo legal, da coisa julgada, do direito adquirido, entre
outros, se, para apreciá-la, for necessária a interpretação de legislação ordinária.
É elucidativo o acórdão no AgRg no AG n. 135.632-RS, cuja ementa,
lavrada pelo eminente Ministro Celso de Mello, tem o seguinte teor:
332
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Agravo de instrumento. Recurso extraordinário. Servidores administrativos.
Vantagens pecuniárias. Alegação de ofensa à constituição. Inocorrência de
conflito direto e imediato com o texto da lei fundamental. Aspectos meramente
legais pertinentes à noção de direito adquirido (LICC, art. 6º, § 2º). Ofensa à
constituição por via reflexa. Ausência de impugnação dos fundamentos em que
se assentou o ato decisório questionado. Pretendido desdobramento do recurso
extraordinário em recurso especial. Impossibilidade. Recurso improvido.
Caráter ordinário do conceito de direito adquirido.
- O sistema constitucional brasileiro, em cláusula de salvaguarda, impõe que
se respeite o direito adquirido (CF, art. 5º, XXXVI). A Constituição da República, no
entanto, não apresenta qualquer definição de direito adquirido, pois, em nosso
ordenamento positivo, o conceito de direito adquirido representa matéria de
caráter meramente legal.
Não se pode confundir, desse modo, a noção conceitual de direito adquirido
(tema da legislação ordinária) com o princípio inerente à proteção das situações
definitivamente consolidadas (matéria de extração constitucional), pois é apenas
a tutela do direito adquirido que ostenta natureza constitucional, a partir da
norma de sobredireito inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política.
Tendo-se presente o contexto normativo que vigora no Brasil, é na lei, e
nesta, somente - que repousa o delineamento dos requisitos concernentes à
caracterização do significado da expressão direito adquirido.
É ao legislador comum, portanto - sempre a partir de uma livre opção
doutrinária feita dentre as diversas correntes teóricas que buscam determinar o
sentido conceitual desse instituto - que compete definir os elementos essenciais à
configuração do perfil e da noção mesma de direito adquirido.
Cabe ter presente, por isso mesmo, a ampla discussão, que, travada entre
os adeptos da teoria subjetiva e os seguidores da teoria objetiva, influenciou,
decisivamente, o legislador ordinário brasileiro na elaboração da Lei de Introdução
ao Código Civil (LICC), pois, como se sabe, a LICC de 1916 (que entrou em vigor
em 1917) consagrou a doutrina sustentada pelos subjetivistas (art. 3º), enquanto
a LICC de 1942, em seu texto, prestigiou a teoria formulada pelos objetivistas (art.
6º), muito embora o legislador, com edição da Lei n. 3.238/1957), que alterou a
redação do art. 6º da LICC/42, houvesse retomado os cânones inspiradores da
formulação doutrinária de índole subjetivista que prevaleceu, sob a égide dos
princípios tradicionais, na vigência da primeira Lei de Introdução ao Código Civil
(1916).
Em suma: se é certo que a proteção ao direito adquirido reveste-se de
qualificação constitucional, consagrada que foi em norma de sobredireito que
disciplina os conflitos das leis no tempo (CF, art. 5º, XXXVI), não é menos exato
- considerados os dados concretos de nossa própria experiência jurídica - que
a positivação do conceito normativo de direito adquirido, ainda que veiculável
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333
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
em sede constitucional, submete-se, no entanto, de lege lata, ao plano estrito da
atividade legislativa comum. (...) (DJ 3.9.1999).
Os conceitos de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada
são dados por lei ordinária (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º), sem
aptidão, portanto, para inibir o legislador infraconstitucional.
Assim, se a lei ordinária contiver regra de cujo texto se extraia ordem de
retroatividade, em prejuízo de situação jurídica anteriormente constituída, a
ofensa será direta ao art. 5º inciso XXXVI da Constituição, passível de exame
em recurso extraordinário.
Diversamente, caso se cuide de decidir acerca da aplicação da lei nova a
determinada relação jurídica existente quando de sua edição, a questão será
infraconstitucional, impugnável mediante recurso especial. É precisamente este
o caso dos autos.
Com efeito, não há dispositivo algum na Lei n. 9.278/1996 que determine
a aplicação retroativa de seus dispositivos. O art. 10 estabelece sua vigência a
partir da correspondente publicação (13.5.1996), sem ordenar a retroatividade
de nenhum de seus preceitos. Dessa forma, se ofensa houve ao direito adquirido
e ao ato jurídico perfeito - questão debatida no presente recurso especial - ela
não decorre do texto da Lei n. 9.278/1996 (caso em que haveria alegação
de ofensa direta ao art. 5º inciso XXXVI da CF), mas da interpretação feita
pelo acórdão recorrido dos conceitos legais de direito adquirido e ato jurídico
perfeito (possível ofensa ao art. 6º da LICC), ensejadora da aplicação de lei nova
(Lei n. 9.278/1996) à situação jurídica já constituída quando de sua edição.
Conheço, pois, do recurso especial em relação à violação de ambos os
dispositivos legais (art. 6º da Lei de Introdução e art. 5º da Lei n. 9.278/1996) e
passo a examinar o mérito.
IV
A despeito da existência de precedente desta Turma no REsp n. 986.290RS, também da relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, penso que a questão
merece mais profunda reflexão, instigada pelo bem elaborado voto de Sua
Excelência no presente caso.
Divirjo, com a devida vênia, do eminente relator, quando entende que,
antes da edição da Lei n. 9.278/1996, havia lacuna legal acerca do regime de
bens dos conviventes não casados, passível de suprimento pelo Poder Judiciário,
334
Jurisprudência da QUARTA TURMA
mediante a aplicação retroativa da referida lei para disciplinar a partilha dos
bens adquiridos antes de sua entrada em vigor.
Até a entrada em vigor da Constituição de 1988, as relações patrimoniais
entre pessoas não casadas eram regidas por regras de direito civil estranhas ao
direito de família. O entendimento jurisprudencial sobre a matéria encontravase consolidado no Enunciado n. 380 da Súmula do STF, assim redigido:
Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível
a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum.
Como se extrai dos precedentes da referida súmula, notadamente o RE
n. 9.855, relator o Ministro Orozimbo Nonato, a partilha do patrimônio se
dava não como reconhecimento de direito derivado de convivência familiar,
mas de contrato informal de sociedade civil, cujos frutos fossem resultado de
contribuição direta dos conviventes (sócios de fato) por meio de trabalho e/ou
dinheiro.
É certo que a evolução da realidade social foi ensejando normas legais
e jurisprudência protegendo a companheira, em matéria previdenciária
e acidentária (Súmulas n. 159-TFR e n. 35-STF). No campo das relações
patrimoniais entre conviventes, não havia, porém, até outubro de 1988,
fundamento para a invocação, sequer por analogia, de princípios de direito de
família.
Editada a Constituição de 1988, seu art. 226 reconheceu “a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua
conversão em casamento.”
Friso que a Constituição não equiparou a união estável ao casamento, tanto
que preconizou fosse facilitada, por lei, a sua conversão em matrimônio.
O compromisso formal assumido com o casamento evidencia a estabilidade
jurídica da relação, dando segurança recíproca aos cônjuges e também aos
terceiros que com eles mantém relações jurídicas, favorecendo, portanto, a
organização da vida social.
Por força da nova Constituição, os litígios cuja causa de pedir seja a relação
entre os conviventes passaram a ser da competência de varas de família, tendo
suas decisões inspiradas, nos limites do compatível com as leis em vigor, por
princípios extraídos analogicamente do direito de família.
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335
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A interpretação do que fosse “contribuição para a formação do patrimônio
comum” tornou-se mais abrangente, compreendendo não apenas a contribuição
direta em determinada atividade econômica, por meio de trabalho ou capital, e
a indireta, por meio de serviços domésticos que resultassem em economia para
a família, mas também a solidariedade e o apoio recíprocos no âmbito familiar.
Esta evolução jurisprudencial, com base na Constituição de 1988, está bem clara
no seguinte precedente:
Direito Civil. Sociedade de fato. Reconhecimento de participação indireta
da ex-companheira na formação do patrimônio adquirido durante a vida em
comum. Partilha proporcional. Cabimento. Fixação nesta instância. Possibilidade.
Critérios. Indenização por serviços prestados. Ressalva. Recurso parcialmente
provido.
I - Constatada a contribuição indireta da ex-companheira na constituição
do patrimônio amealhado durante o período de convivência “more uxório”,
contribuição consistente na realização das tarefas necessárias ao regular
gerenciamento da casa, aí incluída a prestação de serviços domésticos, admissível
o reconhecimento da existência de sociedade de fato e conseqüente direito à
partilha proporcional.
II - Verificando-se que haja diminuição de despesas (economia) proporcionada
pela execução das atividades de cunho doméstico pela ex-companheira, há que
se reconhecer patenteado o “esforço comum” a que alude o Enunciado n. 380 da
Súmula-STF.
III - Salvo casos especiais, a exemplo de inexistência de patrimônio a partilhar,
a concessão de uma indenização por serviços domésticos prestados, prática
de longa data consagrada pela jurisprudência, não se afeiçoa à nova realidade
constitucional, que reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar” (art. 226, § 3º, da Constituição).
IV - O arbitramento da parcela devida à companheira pode ser fixado nesta
instância, buscando dar solução definitiva ao caso, com objetivo de evitar
inconvenientes e atraso na solução jurisdicional.
V - Na fixação do percentual, que necessariamente não implica meação no
seu sentido estrito (50%), recomendável que o seu arbitramento seja feito com
moderação, proporcionalmente ao tempo de duração da sociedade, a idade das
partes e a contribuição indireta prestada pela concubina, orientando-se o juiz
pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade,
valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às
peculiaridades de cada caso.
(REsp n. 183.718-SP, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 18.12.1998).
336
Jurisprudência da QUARTA TURMA
A Lei n. 8.971, de 29.12.1994, foi a primeira a regulamentar o direito
dos companheiros a alimentos e à sucessão. A condição de companheiro foi
reconhecida desde que comprovado prazo de convivência de mais de cinco anos
ou a existência de prole em comum (art. 1º). Quanto à sucessão, foi reconhecido
ao companheiro, enquanto não constituir nova união, o direito de usufruto de
parte dos bens da herança e, na falta de descendentes ou ascendentes, o direito
à totalidade da herança (art. 2º). Dispôs o art. 3º que “quando os bens deixados
pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a)
companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens.”
Até então, não se cogitava de presunção legal de esforço comum, para
efeito de partilha igualitária de patrimônio entre os conviventes. A partilha de
bens, ao cabo da união estável, dava-se mediante a comprovação, e na proporção
respectiva, do esforço de cada companheiro, direto ou indireto, para a formação
do patrimônio amealhado durante a convivência.
Foi, então, editada a Lei n. 9.278, de 10.5.1996, a partir da qual o
reconhecimento da união estável não mais depende de tempo de convivência e
nem da existência de prole, sendo seus requisitos legais “a convivência duradoura,
pública e contínua, de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituição
de família”.
A Lei n. 9.278/1996 estabeleceu presunção legal relativa de comunhão dos
bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Não há esta presunção
se a aquisição se der com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início
da união. Trata-se de regime legal dispositivo, na medida em que podem os
conviventes estipular em sentido contrário (art. 5º).
O entendimento de ambas as Turmas que compõem a 2ª Seção deste
Tribunal encontra-se pacificado no sentido de que as regras relativas ao
patrimônio dos companheiros estabelecidas pela Lei n. 9.278/1996 não se
aplicam às uniões estáveis dissolvidas antes de sua vigência, devendo a partilha
de bens submeter-se à prova do esforço comum (REsp n. 147.098-DF, 4ª
Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 7.8.2000; REsp n. 174.051RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 1º.7.2002; REsp n. 1.097.581-GO, 3ª
Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 9.12.1999).
Nessa mesma linha, a 2ª Seção, ao examinar o REsp n. 914.811-SP,
pacificou a orientação de que, na hipótese de sociedade de fato dissolvida antes
da vigência da Lei n. 9.278/1996 e de participação indireta na constituição
do patrimônio, afasta-se a meação, devendo a partilha ser estabelecida com
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337
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
observância dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, encontrando-se
a ementa do acórdão assim redigida:
Processual Civil e Civil. Recurso especial. Concubinato. Reconhecimento
e dissolução. Art. 6º, § 1º, da LICC. Ausência de prequestionamento. Súmula
n. 7 do STJ. Inaplicabilidade. Partilha de bens. Contribuição indireta. Lei n.
9.278/1996. Não-incidência. Percentual compatível. Princípios da razoabilidade e
proporcionalidade. Precedentes do STJ.
1. É inviável o conhecimento de suposta ofensa a norma infraconstitucional se
não houve prequestionamento nem a oposição de embargos declaratórios para
provocar o seu exame pelo Tribunal de origem.
2. Afasta-se o óbice da Súmula n. 7 do STJ quando não se está a perquirir as
circunstâncias fáticas do feito, mas tão-somente saber se a maternidade, criação e
formação dos filhos pela concubina, bem como a dedicação por ela proporcionada
ao réu para o exercício de suas atividades – como reconhecidamente albergado
no aresto de origem –, mostram-se aptas, bastantes por si sós, para embasar a
meação dos bens arrolados na peça preambular.
3. Demonstrado no acórdão recorrido, de forma inconteste, que a contribuição
da concubina-autora para formação do patrimônio comum dos conviventes
ocorreu de forma indireta, impõe-se o afastamento da meação, por sucumbir
frente à prevalência da partilha dos bens que, a par das circunstâncias dos autos,
não há que ser em partes iguais.
4. Inaplicabilidade, ainda que por analogia, das disposições prescritas na Lei n.
9.278/1996.
5. Incidência de normas legais e orientações jurisprudenciais que versam sobre
concubinato, especialmente a Lei n. 8.971/1994 e a Súmula n. 380 do Supremo
Tribunal Federal, delimitando que a atribuição à companheira ou ao companheiro
de metade do patrimônio vincula-se diretamente ao esforço comum, consagrado
na contribuição direta para o acréscimo ou a aquisição de bens mediante o aporte
de recursos ou força de trabalho.
6. Levando-se em conta a moderação e o bom senso recomendados para a
hipótese em apreço, o arbitramento, no percentual de 40% (quarenta por cento)
sobre o valor dos bens adquiridos na constância do concubinato e apurados na
instância ordinária, apresenta-se compatível com o caso em apreço, por encontrar
amparo nos sempre requeridos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
7. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
(Rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJ de 21.11.2008).
Destaco do voto condutor do referido acórdão as seguintes passagens:
Ausente a demonstração da ocorrência de igualitárias participações ou
esforços comuns direcionados à aquisição de bens constitutivos do acervo
338
Jurisprudência da QUARTA TURMA
patrimonial em nome do recorrente, a concubina-autora, ora recorrida, está
a carecer da pretensão formulada no juízo a quo, diante da ausência de fato
gerador permissivo do estabelecimento de seu direito à metade dos bens.
E assim quero entender, porque, somente a partir do regime da Lei n.
9.278/1996 – cuja aplicação fora afastada na espécie, ainda que por analogia –, é
que se estabeleceu que os bens adquiridos na constância da união estável por um
ou pelos conviventes passariam a pertencer a ambos, em condomínio ou partes
iguais.
Não no caso destes autos, pois as normas legais e orientações jurisprudenciais
versando especificamente sobre concubinato, entre as quais a Lei n. 8.971/1994 e a
Súmula n. 380 do Pretório Excelso, bem delimitam que a atribuição à companheira
ou ao companheiro de metade do patrimônio vincula-se diretamente ao esforço
comum, consagrado na contribuição direta para o acréscimo ou aquisição de
bens, mediante o aporte de recursos ou força de trabalho.
A propósito do tema, leio SÍLVIO RODRIGUES, in “Direito Civil Aplicado”, volume
8, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 85:
Portanto, até o advento da Lei de 1996 e do preceito acima transcrito,
a mera existência da união estável não gerava a presunção de serem
comuns os bens adquiridos em nome de um dos conviventes durante
aquela convivência. Continuava a viger, em sua plenitude, a Súmula n.
380 do Supremo Tribunal Federal, que para possibilitar a divisão daquele
patrimônio exigia a demonstração do concurso de esforço comum. Tal
situação não foi alterada pela superveniência da Constituição de 1988,
porque o § 3º do art. 226 daquela Carta não era auto-aplicável e dependia
de regulamentação. Tanto que dependia de regulamentação que o
legislador ordinário, por duas vezes, a regulamentou. Fê-lo, a primeira vez,
na Lei n. 8.971/1994 e fê-lo, pela segunda vez, na Lei n. 9.278/1996. E só
a partir da publicação desta última é que se dispensou o companheiro,
ou a companheira, de provar sua participação no granjeio do patrimônio
comum, para poder pleitear sua divisão (Súmula n. 380 do STF).
(...)
Destarte, levando-se em conta a moderação e o bom senso recomendados
para a hipótese em apreço, o arbitramento, no percentual de 40% (quarenta
por cento) sobre o valor dos bens adquiridos na constância do concubinato
e apurados na instância ordinária, apresenta-se compatível com o caso em
apreço, por encontrar amparo nos sempre requeridos critérios de razoabilidade e
proporcionalidade (...)
Esta era a regência legal e jurisprudencial das relações patrimoniais entre
companheiros até a entrada em vigor da Lei n. 9.278/1996: não havia presunção
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
339
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
legal de esforço comum para a partilha de bens. Ao final do relacionamento,
os bens amealhados no período eram divididos proporcionalmente ao esforço
comprovado, direto ou indireto, de cada convivente.
Com a edição da Lei n. 9.278/1996, os bens a partir de então adquiridos
por pessoas em união estável passaram a pertencer a ambos em meação, salvo
se houvesse estipulação em sentido contrário ou se a aquisição patrimonial
decorresse do produto de bens anteriores ao início da união.
Os bens adquiridos anteriormente à Lei n. 9.278/1996 têm a propriedade
- e, consequentemente, a partilha ao cabo da união - disciplinada pelo
ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição (Súmula n. 380 do
STF).
Com efeito, a aquisição da propriedade dá-se no momento em que se
aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade
não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato
jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art.
6º).
O tema é analisado de forma exaustiva por Francisco José Cahali, em seu
livro “Contrato de Convivência na União Estável”, do qual transcrevo:
Com o advento da Lei n. 9.278/1996, pelo seu art. 5º, foi criado um novo
sistema jurídico para prevalecer quanto às relações patrimoniais decorrentes da
união estável.
Até então não existia comando normativo próprio para a questão, sendo
alicerçada a repercussão patrimonial da união estável pela jurisprudência,
consagrando a Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, com sua diversidade
de interpretação até mesmo nos Tribunais Superiores.
Em transitório momento, também por criação doutrinária e jurisprudencial,
estendeu-se à dissolução em vida da união o primeiro dispositivo legal sobre
os efeitos patrimoniais da relação, consistente na participação do viúvo nos
bens adquiridos durante a convivência, quando do falecimento do convivente,
introduzido pela Lei n. 8.971/1994.
De qualquer forma, sua interpretação coincidia com aquela dada ao enunciado
sumular, de tal sorte que a polêmica para a aferição da “contribuição” ou
“colaboração” recíproca ainda longe estava de encontrar unidade no pensamento
jurídico refletido pela doutrina e jurisprudência.
Daí por que se ter na Lei n. 9.278/1996 a pioneira previsão legislativa de efeitos
patrimoniais da união estável, introduzindo, enquanto fonte normativa, o regime
jurídico próprio dessa relação.
340
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Como lei nova, sua incidência segue o princípio geral de irretroatividade
previsto no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, admitida a aplicação
imediata à situação jurídica em curso.
Esse panorama, em superficial análise, poderia levar a crer que a lei nova
incide diretamente nas uniões estáveis em curso, fazendo prevalecer o comando
contido na norma a todos os efeitos jurídicos da união.
Entretanto, a amplitude na produção de efeitos encontra limite na disposição
maior, contida no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Compatibilizando essas duas regras, temos a imediata aplicação da novel
legislação à situação em curso, mas sem atingir os efeitos da união estável já
produzidos e os atos jurídicos já aperfeiçoados antes da lei.
A hipótese de incidência da norma é a aquisição patrimonial durante a
convivência; e o preceito é a previsão de participação conjunta sobre os bens, a
partir do momento em que entrar em vigor a presunção legal.
Nesse contexto, o regime patrimonial criado só pode ter incidência com
relação aos bens adquiridos a partir de então. Sobre o patrimônio preexistente,
tem aplicação o ordenamento jurídico então vigente (STF, Súmula n. 380, e,
posteriormente, Lei n. 8.971/1994).
Isto porque a titularidade dos bens se consuma no momento da respectiva
aquisição, tornando-se um ato jurídico perfeito, com a realidade jurídica então
existente, além de outorgar ao titular o direito adquirido, tornando o negócio
jurídico imune à nova legislação.
Exemplificando, o domínio sobre um imóvel adquirido em 1970 segue as
regras da época quanto à sua constituição. Uma vez aperfeiçoado o ato pelo
sistema normativo então vigente, o ato jurídico fica imune à modificação
legislativa, conferindo ao respectivo titular o direito adquirido de fazer prevalecer
a sua propriedade regularmente constituída.
A seu turno, a união estável vivenciada em 1970 possuía a repercussão
patrimonial existente à época, irradiando efeitos patrimoniais das luzes refletidas
pela Súmula n. 380.
Assim, aquele imóvel adquirido pelo convivente em 1970 terá sua situação
jurídica realizada pelo sistema normativo da época, imune às modificações
posteriores.
Em linhas gerais, pois, em função da irretroatividade da norma ao
patrimônio adquirido anteriormente à Lei n. 9.278/1996 não se aplica a regra
de comunicabilidade nesta prevista, presumindo a participação comum e
outorgando o condomínio em partes iguais de 50%.
Concluindo taxativamente pela inaplicabilidade da Lei n. 9.278/1996 às
situações patrimoniais pretéritas, YUSSEF SAID CAHALI assim se manifestou em
parecer:
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
341
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
“Estamos agora diante de um direito novo, modificador do anterior”.
(...) “Ora, essa presunção, que assim se pretenda absoluta (‘juris et de jure’),
irrefragável, de participação igualitária dos companheiros na formação
do patrimônio durante a união estável, consubstancia uma inovação legal
relevante em favor da concubina. E como tal, somente pode ser aplicada em
relação aos bens adquiridos após a Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, que
regulou o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988. Pois
de outra forma, estaria sendo violado o direito de propriedade exclusiva do
bem adquirido pelo esforço único de um dos concubinos, direito adquirido
de propriedade exclusiva este definitivamente adquirido antes da entrada
em vigor da referida Lei; portanto, com ofensa a um direito adquirido de
propriedade individual e exclusiva, diante da imposição, por lei posterior,
de um condomínio ou co-propriedade ou perda da metade daquele direito
exclusivo de propriedade, que resultaria do artigo 5º da mencionada
Lei.” (...) “Uma coisa é a união concubinária que, facta pendenti, sujeita-se
à regência do direito adquirido; e coisa diversa é o ato de aquisição da
propriedade – conceitualmente unus actus, representando facta pretérita,
que, ocorrido na vigência do direito anterior, assegura ao respectivo titular
a plenitude dos direitos enunciados no artigo 524 do Código Civil, na sua
condição de proprietário exclusivo do bem por ele então adquirido com
seu único esforço. Essa distinção em nada interfere no princípio de efeito
imediato da lei nova: ‘Dans cette situation, chacune des deus lois en présence,
la loi ancienne et la loi nouvelle, s’applique strictement dans son domaine: la
loi nouvelle respecte tous les effets juridiques produits dans le passé, mais elle
gouverne seule et sans partage l’avenir à compter du jour de as promulgation
(PAUL ROUBIER, Le Droit Transitoire, p. 10; 2ª Ed., Éd.Dalloz, 1960)”.
Nesse sentido escreve GUILHERME CALMON NOGUEIRA GAMA, com preciosa
profundidade na análise da questão, como é a tônica de seu completo trabalho:
“Uma observação é importante no que se refere ao regime de bens: mesmo
que em 30 de dezembro de 1994 ainda vigorasse a união extramatrimonial
fundada no companheirismo com aquisição patrimonial anterior à vigência da
lei, é de se notar que com relação aos bens adquiridos anteriores àquela data
não prevalece o disposto no artigo 3º, da Lei n. 8.971/1994, pois caso contrário
haveria retroatividade, o que é vedado no ordenamento jurídico brasileiro nestas
situações, aplicando-se, portanto, o sistema vigente na época da aquisição
do bem (Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, com a interpretação
jurisprudencial mais consentânea com a realidade, admitindo-se a contribuição
indireta) (...) Quanto aos bens adquiridos a partir de 30 de dezembro de 1994,
prevalece o disposto no artigo 3º, da Lei citada, inclusive quanto ao critério
de partilhamento dos bens, ou seja, a metade. Todas as ponderações feitas
relativamente às inovações da Lei n. 8.971/1994, são válidas para às matérias
introduzidas pela Lei n. 9.278/1996”.
342
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Também CLAUDIA GRIECO TABOSA PESSOA: “(...) a criação de um regime
de bens para as uniões estáveis não teve o condão de puramente suprimir as
hipóteses de incidência da Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, que
ainda continuará sendo pertinente para todos os casos de uniões concubinárias
extintas anteriormente ao Estatuto do Concubinato (ou, no tocante às uniões
ainda subsistentes, para os bens adquiridos anteriormente ao advento do novo
diploma legal)”.
EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA: “Incidem os mesmos princípios da
irretroatividade quanto ao direito de meação, desde sua previsão nas Leis n.
8.971/1994 e n. 9.278/1996. Mas com importante ressalva quanto às situações
anteriores, que já eram admitidas na jurisprudência, nos termos da Súmula n.
380 do STF (partilha dos bens adquiridos pelo esforço comum, na dissolução
da sociedade de fato), de tal sorte que a disposição legal sobre meação ou
condomínio não constitui propriamente uma inovação, mas simples explicitação
do direito e dos pressupostos para a sua aquisição”.
E SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA: “É evidente que tal regime, que inclui tanto
os bens móveis quanto imóveis, só se aplica a partir da vigência da Lei n. 9.278.
Assim sendo, aqueles bens adquiridos por um dos companheiros antes de 10 de
maio de 1996 não serão alcançados por esta presunção de esforço comum, não
se considerando em condomínio, e sua partilha, entre os companheiros, uma vez
dissolvida a união, obedecerá às regras do sistema antigo, aplicando-se a Súmula
n. 380 do STF, que exige a prova da efetiva contribuição para a aquisição”. (Saraiva,
2002, p. 153-158).
Em idêntico sentido, o parecer do Ministro Eduardo Ribeiro, exarado
em caso semelhante de partilha de bens adquiridos antes da vigência da Lei n.
9.478/1996, cuja união estável perdurou após a sua edição:
“A primeira lei que, no âmbito do direito privado, cuidou da situação jurídica
dos companheiros foi a que tomou o n. 8.971, de dezembro de 1994. Nela se
reconheceu direito a alimentos e, em certas circunstâncias, a usufruto dos bens
do companheiro ou companheira, em caso de morte de um deles. Estabeleceu,
ainda, que teria o(a) companheiro(a) sobrevivente direito a metade dos bens
deixados pelo autor(a) da herança se “resultarem de atividade em que haja
colaboração do(a) companheiro(a).
(...)
Com a edição da Lei n. 9.278, de 10.5.1996, é que se estabeleceu que os bens
adquiridos por um ou por ambos os conviventes, a título oneroso, na constância
da união estável, seriam considerados fruto do trabalho e da colaboração comum,
a ambos passando a pertencer em condomínio. Como se verifica do § 1º do artigo
5º, estabeleceu-se uma presunção, que só se afasta se a aquisição se fizer com o
produto de bens adquiridos antes de iniciada a união.
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343
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil, que dispôs ser
aplicável aos conviventes o regime da comunhão parcial, salvo se houver contrato
escrito.
Isso posto, cumpre verificar qual o direito incidente, quanto aos bens
adquiridos no período em que, segundo o acórdão, houve união estável, ou seja,
de 1974 a setembro de 2004, quando se deu o óbito de MG.
Não parece seja possível contestar que, quando LB, uma vez realizados os
pressupostos a isso necessários, adquiriu determinado bem, passou a ter direito
adquirido em relação à propriedade desse, que ingressou em seu patrimônio.
Não estando em vigor a Lei n. 9.278/1996, tornou-se sua proprietária exclusiva. A
acolher-se a tese do acórdão, ter-se-ia de admitir, como juridicamente aceitável,
que, por força de lei superveniente, parte ideal, correspondente a metade desse
bem, teria sido retirada de seu patrimônio e transferida para o companheiro. Ora,
se o bem integra o patrimônio de alguém e dele é retirado, em virtude de lei
ulteriormente editada, parece manifesto que configurado desrespeito frontal ao
direito adquirido.
O acórdão recorrido, como assinalado, sustentou que o relacionamento entre
as partes havia de ser encarado como um todo, não podendo “ser seccionado em
vários momentos como se ele houvesse se iniciado e acabado conforme foram
sendo editadas e derrogadas as várias leis que se sucederam ao longo de sua
duração”. O argumento, pede-se vênia para ponderar, é de manifesta fragilidade.
Não há dúvida de que o relacionamento foi um só, protraído no tempo. A
regulamentação jurídica, entretanto, variou, daí advindo consequências
diferenciadas. A solução nada tem de surpreendente ou de heterodoxa. É isso
mesmo que se verifica, quando há sucessão de leis. Inúmeras relações perduram
por largos períodos e os direitos vão sendo adquiridos, em seu curso, tendo
em vista as normas que sucessivamente as regulem. De todo injustificável que
se aplique a lei por último vigente a todo o tempo em que se deu a relação
continuativa, de molde a desconstituir direitos já formados, integrantes do
patrimônio dos respectivos titulares.
Note-se, ainda, que nem mesmo se poderia invocar a doutrina, aceita por
alguns, embora contrastante com o direito brasileiro, de que o princípio do
respeito aos direitos adquiridos não se aplicaria, quando se tratasse de lei de
ordem pública. Com efeito, da regulamentação da matéria relativa a regime de
bens resulta que disponível o direito dos companheiros. De acordo com o artigo
5º da Lei n. 9.278/1996 e, de igual modo, com o artigo 1.725 do Código Civil, é
possível, mediante contrato escrito, afastar a incidência das normas legais que
cuidam da comunicação dos bens havidos durante a união.
Em suma, aplicar a lei nova, de maneira a transferir significativa parcela do
patrimônio de uma pessoa para outra, constitui violência a direito adquirido,
que não é tolerado por nosso ordenamento jurídico (nomes abreviados pela
signatária).
344
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Este entendimento em nada é confrontante com o acórdão da 4ª Turma,
da relatoria do Ministro Jorge Scartezzini no REsp n. 397.168-SP, assim
ementado:
Civil. Recurso especial. União estável. Herança. Falecimento do companheiro
sem ascendentes ou descendentes. Aplicabilidade da Lei n. 8.971/1994 a fatos
pendentes. Possibilidade. Sociedade de fato. Comunhão de aqüestos. Inexistência
de retroatividade (art. 6º da LICC).
1 - A união estável, quer antes, quer depois da edição da Lei n. 8.971/1994, gera
direitos e obrigações, já que é um fato jurídico, e, como tal, desafia a proteção
estatal. Logo, tais relações foram equiparadas às sociedades de fato, sendo os
bens sujeitos ao chamado regime de comunhão de aqüestos.
2 - Se tal relação, que se perpetua durante um longo período, configura-se
pelo animus que inspira os companheiros a viverem como casados fossem, não
se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao regular a matéria acerca dos alimentos
e da sucessão de tais pessoas, somente surtiria efeitos futuros, deixando ao
desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia.
Inexistindo referência na lei do termo inicial da contagem do prazo qüinqüenal
para aquisição do direito, deve-se aplicá-la, revestida que é do caráter benéfico, a
todos os fatos pendentes.
3 - Assim, no caso concreto, já que dúvidas não há nos autos de que a autora
era companheira do falecido por longos 07 (sete) anos; que o mesmo não deixou
descendentes e ascendentes; que nos termos da lei esta é herdeira da totalidade
dos bens deixados (art. 2º, III, da Lei n. 8.971/1994), porquanto a mesma atinge as
situações pendentes; não há que se falar em violação ao art. 6º da LICC.
4 - Recurso não conhecido.
(REsp n. 397.168-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em
26.10.2004, DJ 6.12.2004, p. 315).
A união estável caracteriza-se como sequência de fatos contínuos cujo
conjunto é qualificado pelo direito. Aos que já viviam ou passassem a viver em
união estável por cinco anos a lei conferiu os direitos nela especificados a partir
do momento em que entrou em vigor. Às uniões pendentes, quando da edição
da Lei n. 8.971/1994 e, depois, da Lei n. 9.278/1996, aplicam-se imediatamente
as respectivas regras em relação aos fatos ocorridos após a respectiva entrada em
vigor.
Assim, no dia da entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994, os que se
encontravam em união estável há mais de cinco anos (ou tinham prole comum),
passaram, imediatamente, a ter direito a alimentos recíprocos em caso de
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
345
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
necessidade, sem ter que esperar o decurso de outros cinco anos após a lei para
obter tal tipo de amparo. Igualmente, a sucessão do companheiro morto após
a entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994 é regida por tal diploma legal. Com
a edição da Lei n. 9.278/1996, deixou de ser necessário o prazo de convivência
de 5 anos para a caracterização de união estável. Assim, dada a conjugação da
Lei n. 8.971/1994 com a Lei n. 9.278/1996, conviventes há menos de 5 anos,
sem prole, passaram a integrar a ordem de vocação hereditária um do outro se o
óbito ocorreu após a edição da lei de 1996.
É importante distinguir, todavia, os princípios legais que regem a sucessão
dos aplicáveis à partilha de bens.
A sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data do óbito. Sendo o óbito
posterior à Lei n. 8.971/1994, naturalmente o companheiro terá direito à
herança desde que satisfeitos os requisitos legais nela prescritos. Daí o acórdão
no REsp n. 397.168-SP ter deferido o direito à sucessão em favor de quem, na
data do óbito, qualificava-se como companheira do falecido, ou seja, possuía,
com ele, vida em comum, independentemente de o período haver sido iniciado
antes da entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994.
A partilha de bens, ao contrário, seja em razão do término, em vida, do
relacionamento, seja em decorrência do óbito do companheiro ou cônjuge, deve observar
o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem
a partilhar. A aplicação da lei vigente ao término do relacionamento a todo o
período de união implicaria expropriação do patrimônio adquirido segundo
a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao direito adquirido e ao ato
jurídico perfeito, como já longamente demonstrado, além de causar insegurança
jurídica, podendo atingir até mesmo terceiros.
O caso dos autos é emblemático da expropriação e insegurança jurídica
que resultariam do acolhimento da tese sustentada na inicial, a saber, meação
de patrimônio adquirido pelo companheiro desde os primeiros dias de união
estável, quando não vigorava sequer a Constituição de 1988, sem necessidade de
prova de esforço comum.
Com efeito, a recorrida ajuizou ação em face dos herdeiros de seu falecido
companheiro, afirmando que “por volta de janeiro de 1985”, passou a viver com
João Régis Fassbender Teixeira, relacionamento que perdurou até o seu óbito
em outubro de 1998 (e-STJ fl. 54).
Narra que ele a inscreveu como sua dependente junto aos órgãos
previdenciários e fez lavrar testamento público, no qual lhe legou o usufruto de
346
Jurisprudência da QUARTA TURMA
dois imóveis e a totalidade das suas cotas no escritório de advocacia “Professor
João Régis Fassbender Teixeira Sociedade de Advogados”, conforme contrato
social, além de designá-la como beneficiária de seguros de vida e pensões
previdenciárias. (e-STJ fl. 55).
Passa, então, a descrever o patrimônio acumulado durante a convivência,
enumerando diversos imóveis, dois deles adquiridos no próprio ano de 1985
quando iniciada a convivência (discriminados nas letra “l” e “m”, à fl. e-STJ
59). Prossegue afirmando que, além dos doze imóveis descritos no capítulo
anterior da inicial, o falecido doou, por ato unilateral, a filhos seus, três imóveis,
adquiridos em agosto de 1986, em setembro de 1986 e em dezembro de 1987.
Ressalva a possibilidade de existência de outros bens cuja existência desconheça
adquiridos durante a convivência, os quais se reserva o direito de trazer aos autos
uma vez localizados (e-STJ fl. 60).
As instâncias de origem reconheceram o direito de meação da recorrida
sobre todos os bens adquiridos de 1985 até o óbito de João Régis Fassbender.
Somente não foram deferidas providências em relação aos bens registrados
em nome dos dependentes do falecido, os quais entendeu o juízo de primeiro
grau não poderem ser objeto de decisão nestes autos, devendo os direitos da
autora ser buscados em “ação própria, para posteriormente ser efetuada eventual
partilha em sede de inventário (adiantamento de legítima)”. (e-STJ fl. 28).
Isso significa que bens adquiridos pelo falecido no próprio ano em que
iniciada a convivência, muitos anos antes da promulgação da Constituição,
foram declarados como propriedade comum da autora e seu companheiro,
independentemente de prova de esforço comum, a serem partilhados meio a
meio. Nesta época, a legislação em vigor não reconhecia a existência de união
estável. A divisão do patrimônio dependia do reconhecimento da existência de
sociedade de fato, segundo normas de direito civil, alheias ao direito de família
(Súmula n. 380-STF). Esses bens pertenciam apenas ao falecido e, se ele deles
dispôs, o fez validamente de acordo com as leis da época. Hoje podem estar sob
o domínio de seus filhos ou de qualquer terceiro, não sendo jurídico que seus
titulares sejam expropriados por força de aplicação retroativa de lei editada em
1996.
Observo que o falecido legou o usufruto de bens imóveis e cotas societárias
à recorrida, buscando ampará-la, em época na qual a partilha de bens entre
conviventes dependia de prova de esforço comum. É de se indagar se tomaria
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347
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a iniciativa de legar-lhe bens, se pudesse antever, à luz do direito então vigente,
que seria ela titular da metade de todos os bens adquiridos desde 1985, aí
incluídos os que doou a seus filhos.
Penso, pois, com a devida vênia, que o entendimento do eminente relator,
no sentido da existência de lacuna legislativa ensejadora da retroação da Lei n.
9.278/1996, por analogia, para atingir a propriedade de bens adquiridos em data
anterior à sua edição, representa radical alteração de antiga orientação do STF e
deste Tribunal sobre o tema, consolidada desde a Súmula n. 380-STF, publicada
em 3.4.1964. Anoto que esse mesmo posicionamento poderia ser invocado para
sustentar o direito à meação também nas uniões dissolvidas antes da Lei n.
9.278/1996, presumindo-se o condomínio em todos os casos.
Ademais, antes da edição da Lei n. 9.278/1996, os companheiros não
dispunham de instrumento eficaz, caso desejassem dispor sobre a forma de
aquisição do patrimônio durante a união estável, sendo certo que a presunção
relativa do condomínio e a possibilidade de celebração de contrato escrito em
sentido contrário foram inseridas no ordenamento jurídico em conjunto pela
norma do art. 5º da referida lei, vigendo, até então, a regra da comprovação do
esforço comum dos conviventes, baseada em sólida orientação jurisprudencial,
inclusive do STF. Antes disso, não havendo presunção legal de meação de bens
entre conviventes, não haveria sequer razão para que os conviventes fizessem
estipulação escrita em contrário a direito dispositivo inexistente.
Assinalo que a convicção manifestada no presente voto limita-se a afastar
a presunção de condomínio dos bens adquiridos onerosamente antes da
vigência da Lei n. 9.278/1996 contida no acórdão recorrido, o que não significa
vedar qualquer possibilidade de partilha de bens, mas apenas estabelecer os
parâmetros para que as instâncias de origem, após a fase de instrução, examinem
a presença do esforço comum e estabeleçam, como entenderem de direito e com
a observância dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, a forma de
divisão do patrimônio adquirido antes da vigência da referida lei.
Em face do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para
determinar que a partilha dos bens adquiridos onerosamente antes da entrada
em vigor da Lei n. 9.278/1996 obedeça a critérios norteados pelo esforço
comum.
É como voto.
348
Jurisprudência da QUARTA TURMA
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, inicialmente
cumprimento V. Exa. e a Sra. Ministra Isabel Gallotti pelos votos primorosos
e instigantes. Independentemente das características deste caso, nossa decisão
contribuirá para a uniformização da interpretação do Direito Federal sobre as
diversas repercussões patrimoniais que podem advir das situações da espécie da
que ora se trata.
Com a devida vênia de V. Exa., acompanho a divergência no sentido de
observar, porque na partilha dos bens inventariados, o regime jurídico vigente
à época da aquisição do patrimônio na forma delineada pelo voto da Sra.
Ministra Isabel Gallotti. Entendo que essa é a maneira mais justa de resolver as
controvérsia da espécie e de respeitar o direito adquirido.
Peço vênia a V. Exa., e acompanho o voto da Sra. Ministra Isabel Gallotti
no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial.
RETIFICAÇÃO DE VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, com a devida vênia de V. Exa.,
modifico meu voto anterior e adiro à divergência.
Dou parcial provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.155.395-PR (2009/0170609-0)
Relator: Ministro Raul Araújo
Recorrente: Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho
Advogado: Mariana Lobato Silva Matida e outro(s)
Recorrido: Caixa Econômica Federal - CEF
Advogado: Augusto Carlos Carrano Camargo
EMENTA
Civil e Consumidor. Recurso especial. Contrato de penhor.
Joias. Furto. Fortuito interno. Reconhecimento de abuso de cláusula
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349
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
contratual que limita o valor da indenização em face de extravio dos
bens empenhados. Violação ao art. 51, I, do CDC. Ocorrência de
danos materiais e morais. Recurso especial provido.
1. No contrato de penhor é notória a hipossuficiência do
consumidor, pois este, necessitando de empréstimo, apenas adere a um
contrato cujas cláusulas são inegociáveis, submetendo-se à avaliação
unilateral realizada pela instituição financeira. Nesse contexto, deve-se
reconhecer a violação ao art. 51, I, do CDC, pois mostra-se abusiva a
cláusula contratual que limita, em uma vez e meia o valor da avaliação,
a indenização devida no caso de extravio, furto ou roubo das joias que
deveriam estar sob a segura guarda da recorrida.
2. O consumidor que opta pelo penhor assim o faz pretendendo
receber o bem de volta, e, para tanto, confia que o mutuante o guardará
pelo prazo ajustado. Se a joia empenhada fosse para o proprietário um
bem qualquer, sem valor sentimental, provavelmente o consumidor
optaria pela venda da joia, pois, certamente, obteria um valor maior.
3. Anulada a cláusula que limita o valor da indenização, o quantum
a título de danos materiais e morais deve ser estabelecido conforme as
peculiaridades do caso, sempre com observância dos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade.
4. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
a Quarta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti,
Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator.
Impedido o Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira.
Brasília (DF), 1º de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Relator
DJe 29.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Cuida-se de recurso especial interposto
por Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho, com fundamento nas alíneas a e c do
350
Jurisprudência da QUARTA TURMA
permissivo constitucional, contra v. acórdão proferido pelo eg. Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF - 4ª Região).
Narram os autos que, em 2.10.2007, Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho
propôs ação declaratória de nulidade de cláusula de contrato de penhor
cumulada com reparação de danos materiais e morais contra a Caixa Econômica
Federal, doravante Caixa, ora recorrida, tendo em vista o furto de joias que o
promovente penhorara perante a ora recorrida.
Em sentença às fls. 123-139, o il. magistrado de piso julgou parcialmente
procedente o pedido para condenar a Caixa ao pagamento de indenização a
título de danos materiais de até 4 (quatro) vezes o valor das avaliações das joias
empenhadas, observado o limite de 100% (cem por cento) do valor de mercado
destes bens, abatendo-se o valor do empréstimo não quitado.
Inconformadas, ambas as partes interpuseram apelações. O recurso da
Caixa foi provido, ao passo que o apelo do ora recorrente foi desprovido, nos
termos do v. acórdão assim ementado (fl. 205):
Responsabilidade civil. Dano material e moral contrato de penhor de jóias.
Furto. Indenização. CDC. Validade. Ausência de nexo causal. Indenização indevida.
Sucumbência. Honorários advocatícios.
Ausência de mácula que invalide a cláusula de contrato de penhor de jóias,
que limita o valor da indenização devida em caso de furto, roubo ou, extravio dos
objetos. Situação justificável, amparada pelo Código de Defesa do Consumidor
(art. 51, inciso I, segunda parte). Precedentes desta Turma.
A indenização correspondente a 1,5 vezes o valor de avaliação dos bens
empenhados, acrescida da devida atualização, se mostra razoável e proporcional
à perda material sofrida pela autora.
Ausentes os requisitos previstos na legislação civil que justifiquem a
condenação da ré à reparação dos abalos emocionais sofridos em face do evento
danoso.
Sucumbência da Autora. Honorários advocatícios fixados com base no art. 20,
§ 4º, do CPC.
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (acórdão às fls. 221232).
Irresignado, Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho interpôs o presente recurso
especial, no qual alega violação aos arts. 4º, 6º, IV e VI, 14, § 3º, 24, 25 e 51, I,
do CDC.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
351
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assevera que a cláusula do contrato de penhor que limita a indenização a
1,5 vezes o valor de avaliação do bem empenhado é abusiva e, por consequência,
deve ser considerada nula, pois visa limitar a responsabilidade civil do fornecedor
do serviço. Aduz que a própria Caixa admite a existência do dano material, pois
o extravio das joias é decorrente do furto ocorrido em sua agência bancária.
Sustenta também a ocorrência de dano moral.
Aduz, ainda, que a responsabilidade do fornecedor somente pode ser
afastada se comprovada a culpa do consumidor ou de terceiro, o que não teria
ocorrido no caso em liça.
Pela divergência jurisprudencial, o recorrente aponta dois paradigmas que,
no seu entender, corroboram suas alegações.
Sem contrarrazões (certidão à fl. 342).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): Inicialmente, não se discute no
presente recurso o dever da recorrida de indenizar os danos materiais sofridos
pelo recorrente.
Os bens empenhados estavam sob a guarda da Caixa e se deve levar em
consideração a natureza da atividade exercida pela instituição financeira. Dessa
forma, o furto ocorrido deve ser entendido como fortuito interno, inerente à
atividade explorada pela ora recorrida.
Nesse sentido, confira-se precedente desta eg. Quarta Turma que reconhece
a responsabilidade de instituição financeira em caso de furto a seu cofre:
Recurso especial (art. 105, III, a e c da CFRB). Ação de indenização de danos
morais e materiais. Furto a cofre de banco. Inocorrência de caso fortuito. Aresto
estadual reconhecendo a responsabilidade civil da instituição financeira.
(...)
6. A disponibilização de cofre em banco a clientes evidencia nítida relação
contratual com multiplicidade de causas, defluentes da concorrência de elementos
comuns aos ajustes de locação, de depósito e de cessão de uso, sem que qualquer
dessas modalidades prepondere sobre as demais, decorrendo dessa natureza
heterogênea um plexo de deveres aos quais se aderem naturalmente uma infinidade
de riscos.
352
Jurisprudência da QUARTA TURMA
7. Por isso, mais do que mera cessão de espaço ou a simples guarda, a efetiva
segurança e vigilância dos objetos depositados nos cofres pelos clientes são
características essenciais a negócio jurídico desta natureza, razão pela qual o desafio
de frustrar ações criminosas contra o patrimônio a que se presta a resguardar
constitui ônus da instituição financeira, em virtude de o exercício profissional deste
empreendimento torná-la mais suscetível aos crimes patrimoniais, haja vista a
presunção de que custodia capitais elevados e de que mantém em seus cofres, sob
vigilância, bens de clientes.
8. Daí porque é inarredável a conclusão de que o roubo ou furto perpetrado contra
a instituição financeira, com repercussão negativa ao cofre locado ao consumidor,
constitui risco assumido pelo fornecedor do serviço, haja vista compreender-se na
própria atividade empresarial, configurando, assim, hipótese de fortuito interno.
(...)
11. Recurso especial desprovido.
(REsp n. 1.250.997-SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em
5.2.2013, DJe de 14.2.2013).
O cerne da irresignação, no tocante à indenização por danos materiais,
consiste em definir se a cláusula que limita a indenização pelo furto, roubo
ou extravio da joia empenhada no contrato de penhor celebrado entre o ora
recorrente e a Caixa é abusiva e, por consequência, nula.
Acerca do tema, assim assentou o v. acórdão regional (fl. 202):
A cláusula contratual que estabelece o valor da indenização devida pela
Caixa - nos casos de roubo, furto ou extravio das jóias empenhadas - era de
pleito conhecimento da contratante, que anuiu às condições estabelecidas para
a obtenção do empréstimo e resgate da dívida, quando necessitou dos serviços
oferecidos pela instituição financeira reconhecida.
À luz da regra de proteção do consumidor, para que seja reconhecida a
nulidade da referida cláusula, impõe-se demonstrar que o limite da indenização
esteja relacionado a presença de vícios (de qualquer natureza) nos produtos ou
serviços prestados, renúncia ou disposição de direitos, conforme refere a primeira
parte da redação do inciso I do art. 51.
Todavia, tais hipóteses não se confirmam no caso destes autos. Do contrário,
na interpretação deste Relator, o limite imposto pela Caixa está relacionado
a situações excepcionais (roubo, furto ou extravio), plenamente justificáveis,
conforme ressalva introduzida pelo legislador na segunda parte do inciso I.
Pelo que, não vislumbro a presença de mácula que invalide a regra contratual,
tampouco de condição demasiadamente desproporcional e equidistante dos
princípios da boa-fé e da livre vontade, que devem balizar o contrato.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
353
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Por conseguinte, reputo razoável e proporcional o valor correspondente a 1,5
vezes o de avaliação das jóias, para fim de reparação da perda material sofrida
pela autora, uma vez que os bens objeto do penhor não receberam classificação
superior, que denotasse a presença de complementos preciosos, valor inestimável
ou marca superavaliada pelo mercado.
O entendimento exarado pelo eg. Tribunal a quo, data venia, não parece
acertado.
Com efeito, no contrato de penhor celebrado com a Caixa, é notória
a hipossuficiência do consumidor, pois este, necessitando de empréstimo,
apenas adere a um contrato cujas cláusulas são inegociáveis, submetendo-se,
inclusive, à avaliação unilateral realizada pela instituição financeira. Nesse
avença, a avaliação, além de unilateral, é focada precipuamente nos interesses da
recorrida, sendo que o valor da avaliação é sempre inferior ao preço cobrado do
consumidor no mercado varejista de joias.
Nesse contexto, mostra-se abusiva a cláusula contratual que limita, em uma
vez e meia o valor da avaliação, a indenização devida no caso de extravio, furto
ou roubo das joias que devem estar sob a segura guarda da recorrida (v. CC/202,
art. 1.435: CC/1916, art. 774).
Note-se que, ao submeter-se ao contrato de penhor perante a Caixa, que
detém o monopólio de empréstimo sob penhor de bens pessoais, o consumidor
demonstra não estar interessado em vender as joias empenhadas, preferindo
transferir apenas a posse temporária delas ao agente financeiro, em garantia do
empréstimo. Pago o empréstimo, tem plena expectativa de retorno dos bens.
Por isso mesmo, é muito comum que pessoas de classe média recorram a
tal modalidade de empréstimo, justamente por terem alguma estima pelas joias
que, às vezes, são até de tradição familiar, confiando no retorno certo dos bens
após a quitação do empréstimo.
Na hipótese, o promovente trouxe, com a inicial, avaliação que aponta
o valor de mercado das joias como sendo de R$ 29.688,00 (vinte e nove mil,
seiscentos e oitenta e oito reais). Por sua vez, a Caixa, segundo o autor, se
propôs a pagar o montante de R$ 3.280,59 (três mil, duzentos e oitenta reais e
cinquenta e nove centavos) pelas joias, descontado o valor do empréstimo.
Na mesma linha de raciocínio ora estabelecida, convém destacar o
julgamento do REsp n. 273.089-SP, de relatoria do em. Ministro Raphael de
354
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Barros Monteiro, DJ de 24.10.2005, desta eg. Quarta Turma, de cujo judicioso
voto se extrai o seguinte excerto:
O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras – dilo a Súmula n. 297 desta Casa.
Se o é, pode reputar-se como abusiva a cláusula que limita o quantum
indenizatório a 1,5 da avaliação unilateral procedida pela ora recursante. Invocável,
a respeito, o disposto no art. 51, inciso IV, da Lei n. 8.078, de 11.9.1990. A propósito,
confira-se o que já teve ocasião de decidir esta Turma quando do julgamento
do REsp n. 83.717-MG, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, cujo voto
focou o caráter de adesão celebrado entre as partes, assim como a situação de
dependência do consumidor em relação à entidade financeira, a despeito de
o CDC não ser aplicável àquele caso por ter sido a avença firmada antes de sua
edição.
No mesmo sentido, confira-se o seguinte julgado da eg. Terceira Turma:
Direito Civil. Penhor. Danos morais e materiais. Roubo/furto de jóias
empenhadas. Contrato de seguro. Direito do Consumidor. Limitação da
responsabilidade do fornecedor. Cláusula abusiva. Ausência de indício de fraude
por parte da depositante.
I - O contrato de penhor traz embutido o de depósito do bem e, por
conseguinte, a obrigação acessória do credor pignoratício de devolver esse bem
após o pagamento do mútuo.
II - Nos termos do artigo 51, I, da Lei n. 8.078/1990, são abusivas e, portanto,
nulas, as cláusulas que de alguma forma exonerem ou atenuem a responsabilidade
do fornecedor por vícios no fornecimento do produto ou do serviço, mesmo que o
consumidor as tenha pactuado livre e conscientemente.
III - Inexistente o menor indício de alegação de fraude ou abusividade de
valores por parte da depositante, reconhece-se o dever de ressarcimento integral
pelos prejuízos morais e materiais experimentados pela falha na prestação do
serviço.
IV - Na hipótese dos autos, em que o credor pignoratício é um banco e o bem
ficou depositado em cofre desse mesmo banco, não é possível admitir o furto ou
o roubo como causas excludentes do dever de indenizar. Há de se levar em conta
a natureza específica da empresa explorada pela instituição financeira, de modo
a considerar esse tipo de evento, como um fortuito interno, inerente à própria
atividade, incapaz de afastar, portanto, a responsabilidade do depositário.
Recurso Especial provido.
(REsp n. 1.133.111-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em
6.10.2009, DJe de 5.11.2009).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
355
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assim, reconhecida a violação ao art. 51, I, do CDC, deve-se estabelecer o
valor justo da indenização por danos materiais, a qual deve atender estritamente
aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. No caso em liça,
considerando-se suas peculiaridades, em que as joias furtadas foram avaliadas
pela Caixa em menos de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), mostrase adequada a fixação da referida indenização segundo os dois parâmetros
limitadores fixados na r. sentença, a qual determinou “(...) o valor da indenização
por danos materiais em quatro vezes o valor da avaliação, para atingir os
100% (cem por cento) do valor de mercado, devendo ser abatido o valor do
empréstimo ainda não quitado” (fl. 128).
Por sua vez, anulada a referida cláusula contratual, deve-se examinar a
responsabilidade da Caixa no tocante também aos danos morais pleiteados.
Quanto a essa temática, assim assentou o v. acórdão vergastado (fl. 203):
No tocante aos danos morais alegados, não há dúvida de que o furto das
jóias tenha promovido dissabores à autora, em razão da impossibilidade de
resgate futuro dos bens. No entanto, não estão presentes os requisitos legais
que autorizam a responsabilização da ré pelos abalos emocionais sofridos, quais
sejam, ausência de conduta imputável e, consequentemente, de nexo causal em
relação ao evento danoso, conforme já referido nesta decisão, com base nos arts.
186, 1.188 e 927 do Código Civil.
Novamente, merece reforma o v. acórdão vergastado, porque a cláusula
que restringia a responsabilidade da Caixa já foi anulada, por ser considerada
abusiva, nos termos do art. 51, I, do CDC.
Conforme já salientado, o consumidor que decide pelo penhor assim o
faz pretendendo receber o bem de volta, e, para tanto, confia que o mutuante
o guardará pelo prazo ajustado. Se a joia empenhada fosse para o proprietário
um bem qualquer, sem nenhum valor sentimental, provavelmente o consumidor
optaria pela venda da joia, e, certamente, obteria um valor maior.
Assim, entende-se presente o dano moral pleiteado, o qual, nas
circunstâncias do caso, deve corresponder ao valor do dano material apurado, o
que, no panorama formado nos autos, mostra-se proporcional e razoável.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para, reconhecendo a
violação ao art. 51, I, do CDC, condenar a Caixa ao pagamento de indenização
a título de danos materiais de até 4 (quatro) vezes o valor das avaliações das joias
empenhadas, observado o limite de 100% (cem por cento) do valor de mercado
desses bens, abatendo-se o valor do empréstimo não quitado, bem como fixar
356
Jurisprudência da QUARTA TURMA
o quantum devido a título de danos morais no valor correspondente aos danos
materiais apurados, sem o abate do valor do empréstimo, invertendo-se os ônus
da sucumbência, com honorários advocatícios de 20% do valor da condenação
(CPC, art. 20, § 3º).
É como voto.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho, inclusive
quando à indenização, tendo em vista os parâmetros dados pela sentença
restaurada por V. Exa., que se baseia nas peculiaridades do caso e, também, em
depoimento de servidor da Caixa Econômica Federal.
Portanto, dou provimento ao recurso especial, acompanhando o voto de
Vossa Excelência.
RECURSO ESPECIAL N. 1.170.239-RJ (2009/0240262-7)
Relator: Ministro Marco Buzzi
Recorrente: Luciana Couto Sanches e outros
Advogado: Diogo Gomes de Oliveira e outro(s)
Recorrente: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda.
Advogado: Renato José Lagun e outro(s)
Recorrido: Os mesmos
Recorrido: Centro Radiológico da Lagoa Ltda.
Advogado: Sílvio Viola
EMENTA
Recursos especiais. Ação de indenização por danos morais,
decorrentes de exame médico, cujo resultado indicou, erroneamente,
ser o feto portador de “síndrome de down”. Transação celebrada entre
um dos devedores solidários e os demandantes. Instâncias ordinárias
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
357
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
que condenaram o codevedor solidário ao pagamento de indenização
aos pais, excluída a hipótese de reparação à filha, então nascituro à
época dos fatos.
Insurgência dos demandantes e da operadora de plano de saúde.
1. Hipótese em que pais e filho ingressaram em juízo postulando
danos morais suportados durante a gestação, em razão de erro médico,
consistente em diagnóstico indicativo de ser o feto portador de
“Síndrome de Down”. Exames posteriores que afastaram a aludida
patologia cromossômica. Demanda deflagrada contra a operadora de
plano de saúde e nosocômio. Transação entabulada entre os autores e
este último, único não insurgente.
2. Irresignação interposta por Golden Cross S/A.
2.1 Violação ao art. 535 do CPC inocorrente. Acórdão local
devidamente fundamentado, tendo enfrentado os aspectos fáticojurídicos essenciais à resolução da controvérsia. Desnecessidade de
a autoridade judiciária enfrentar todas as alegações veiculadas pelas
partes, quando invocada motivação suficiente ao escorreito desate da
lide.
Não há vício que possa nulificar o acórdão recorrido ou ensejar
negativa de prestação jurisdicional, mormente na espécie em que
houve exame explícito do tema reputado não analisado.
2.2 Extinção da obrigação (dever de indenizar) ante a transação
e quitação parcial firmada entre os demandantes e um dos devedores
solidários (hospital). Tese afastada. Subsistência da obrigação quanto
ao codevedor solidário, não abrangido pelo instrumento liberatório,
cujos efeitos devem ser aquilatados por meio de interpretação restritiva
(art. 843 do CPC). Precedentes.
2.2.1 A quitação da dívida outorgada pelo credor a um dos
devedores solidários por meio de transação, não aproveita aos
codevedores, senão até a concorrência da quota-parte pela qual era
responsável, sobretudo quando o acordo expressamente exclui de sua
abrangência o codevedor, no caso, a operadora do plano de saúde, a
qual responde pelo saldo, pro rata.
3. Apelo extremo dos autores.
3.1 Em que pese entender o STJ “que o nascituro também tem
direito a indenização por danos morais” (Ag n. 1.268.980-PR, Rel.
358
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Ministro Herman Benjamin, DJ de 2.3.2010), não são todas as
situações jurídicas a que submetidas o concebido que ensejarão o
dever de reparação, senão aquelas das quais decorram consequências
funestas à saúde do nascituro ou suprimam-no do convívio de seus
pais ante a morte destes. Precedentes.
3.2 Na hipótese dos autos, o fato que teria ocasionado danos
morais àquela que era nascituro à época dos fatos, seria o resultado
equivocado do exame de ultrassonografia com Translucência Nucal,
que indicou ser ela portadora de “Síndrome de Down”. Contudo,
segundo a moldura fática delineada pela Corte a quo, a genitora, no
dia seguinte ao recebimento do resultado equivocado, submeteu-se,
novamente, ao mesmo exame, cujo diagnóstico mostrou-se diverso,
isto é, descartou a sobredita patologia. Não se ignora o abalo psíquico
que os pais suportaram em virtude de tal equívoco, dano, contudo, que
não se pode estender ao nascituro.
3.3. Almejada majoração do quantum indenizatório fixado a título
de reparação pelos danos morais suportados pelos pais. Inviabilidade.
Necessidade, para tal reconhecimento, de revolvimento dos aspectos
fáticos delineados nas instâncias ordinárias. Inadmissibilidade em
sede de recurso especial, ante o óbice da Súmula n. 7 do STJ.
3.4 O vínculo que une as partes e do qual exsurge o dever de
indenizar é, inequivocamente, contratual, razão pela qual os juros
moratórios referentes à reparação por dano moral, em tal caso, incidem
a partir da citação. A correção monetária do valor da indenização pelo
dano moral dá-se a partir da data em que restou arbitrada, no caso,
do acórdão que julgou a apelação, consoante o Enunciado n. 362 da
Súmula do STJ.
4. Recursos especiais improvidos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
maioria, negar provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do Senhor
Ministro Relator.
Vencidos os Senhores Ministros Maria Isabel Gallotti e Raul Araujo que
davam provimento ao recurso da Golden Cross e julgava prejudicado o recurso
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
359
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de Luciana Couto Sanches e outros. Votaram vencidos os Srs. Ministros Raul
Araújo e Maria Isabel Gallotti.
Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 21 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Presidente
Ministro Marco Buzzi, Relator
DJe 28.8.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de recursos especiais, interpostos
por Luciana Couto Sanches e Outros, de um lado, e Golden Cross Assistência
Internacional de Saúde Ltda., de outro, no intuito de reformar o acórdão proferido
pela colenda Sétima Câmara Cível do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro.
Na origem, Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela
Sanches Corrêa promoveram ação de indenização em face de Centro Radiológico
da Lagoa e Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., tendo por
desiderato a condenação das empresas rés ao pagamento de indenização por
danos morais a ser fixada judicialmente, em virtude da elaboração de exame
de ultrassonografia com Translucência Nucal, cujo resultado, erroneamente,
indicou que o feto gestado por Luciana seria portador de Síndrome de Down.
Expuseram os autores, em sua peça exordial, que Luciana Couto Sanches,
grávida de quatorze semanas da terceira autora, em 13.9.2003, procedeu ao
exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, destinado a identificar a
ocorrência ou não de síndromes cromossômicas no feto, dentre elas, a Síndrome
de Down. Noticiaram que o referido exame, ministrado por médica e funcionária
do Centro Radiológico da Lagoa, apontou, como resultado, translucência nucal
de 3 mm de espessura, o que indicaria ser o feto portador de Síndrome de
Down (diagnóstico que se dá aos resultados de translucência nucal superiores
a 2,5 mm). Narraram os autores que, diante do referido resultado, a médica
recomendou que a primeira autora realizasse outros exames (Amniocentese e
biópsia de vilo corial), os quais trariam riscos à gestação, além de não serem
indicados para gestantes com idade inferior a trinta e cinco anos de idade, caso
360
Jurisprudência da QUARTA TURMA
da primeira autora. Alegaram que tal situação lhes causou indescritível estado
de aflição, consternação e drama emocional, a ponto de a primeira autora, no dia
seguinte ao do exame (4.9.2003), ter sido levada à emergência do Hospital Reno
Lambert, em decorrência do grande estresse e nervosismo em que se encontrava.
Relataram, ainda, que, nesse mesmo dia, segundo a orientação de uma médica
particular, a primeira autora efetuou novo exame de ultrassonografia, ocasião
em que se constatou diagnóstico não indicativo de Síndrome de Down, pois o
exame apresentou, como resultado, translucência nucal normal, medindo 1,4 mm
de espessura, com a identificação da presença de osso nasal. Ressaltaram, no ponto,
que o exame do osso nasal restou completamente desconsiderado na primeira
oportunidade, o que evidencia a ocorrência de erro grosseiro. Anotaram que a
primeira autora repetiu o retrocitado exame (pela terceira vez, portanto), ocasião
em que obtiveram a confirmação de que os réus incorreram em inadmissível
equívoco. Não obstante, afirmaram que o abalo emocional perdurou durante
todo o período gestacional. Por tais fatos, sustentaram a legitimidade passiva
dos réus para responder pelos danos morais suportados, anotando, ainda a
possibilidade de a terceira autora (filha dos primeiros autores, sobre quem recaiu
o diagnóstico) fazer jus à pretendida indenização (fls. 03-44).
Em sede de contestação, Centro Radiológico da Lagoa Ltda. rechaçou
integralmente a pretensão expendida na inicial. Apontou a ilegitimidade da
terceira autora, que, à época dos fatos ainda era um nascituro, não se afigurando
possível, por isso, suportar danos morais. No mérito, consignou, citando doutrina
médica, que, “quando se detecta um aumento da translucência nucal, deve-se
fazer exames de acompanhamento até a 20ª semana de gestação para ver se
ela desapareceu ou evolui para um espessamento nucal”. Conclui, assim, que,
em se tratando de responsabilidade de médico, curial a demonstração de culpa,
inocorrente na espécie (fls. 139-155).
Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., em sua contestação,
aduziu não ser parte legítima para responder pelos danos descritos na inicial,
notadamente por ser mera administradora de planos de saúde. Ressaltou, ainda,
que a primeira ré não é sua preposta, tampouco sua representante autônoma,
o que inviabiliza, de acordo com a legislação consumerista, a responsabilidade
solidária. No mérito, aponta a inexistência de erro laboratorial, afirmando que a
margem de erro do exame em tela é de 3 a 4% (fls. 158-166).
Os autores e a ré, Centro Radiológico da Lagoa Ltda., firmaram, entre si,
acordo, homologado judicialmente, culminando na extinção do processo, com
fulcro no artigo 269, III, do CPC, apenas em relação a esta (fls. 317-320 e 326).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
361
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O r. juízo a quo (37ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ), ao final,
entendeu por bem julgar improcedente o pedido indenizatório delineado na
inicial, sob os seguintes fundamentos: I) inviabilidade da ocorrência de abalo
psicológico da terceira autora, na condição de nascituro, à época dos fatos; II) o
diagnóstico de existência de anomalia só surgiu das conclusões dos dois primeiros
autores da ação, já que nada nos autos contribui para que se infira que a médica
houvesse aventado essa possibilidade, III) o acordo celebrado entre os autores e o
devedor solidário, aproveita o outro, extinguindo, por conseguinte, a obrigação (fls.
131-133).
Irresignados, os autores apresentaram recurso de apelação, ao qual o egrégio
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro conferiu parcial provimento,
para condenar a ré, Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda.
a pagar aos dois primeiros autores, “a título de danos morais a quantia de R$
6.000,00 (seis mil reais), divididos em partes iguais entre eles, corrigida a partir
desta decisão e com juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, a partir da
citação, impondo-se à apelada os ônus sucumbenciais, arbitrados em 10% (dez
por cento) sobre o valor da condenação”. O aresto restou assim ementado:
Responsabilidade civil. Erro de diagnóstico médico. Falha na prestação do
serviço. Dever de indenizar. Dano moral.
A falha na prestação do serviço, concernente a diagnóstico, que indicou
equivocadamente feto portador de anomalia genética, enseja o dever de
reparação moral. Provimento parcial do apelo.
Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados (fls. 581-585).
Os autores da ação interpõem recurso especial, fundamentado nas alíneas
a e c, do permissivo constitucional, apontando dissídio jurisprudencial e ofensa
aos artigos 2º, 286, 255, 277 e 927, todos do Código Civil; e 4º, I, do Pacto de
São José da Costa Rica. Pugnam pela majoração da verba indenizatória, ao
argumento de que fazem jus à integral reparação do dano, não se revelando
razoável a fixação R$ 6.000,00 (seis mil reais), tão-somente por ter sido este o
valor, objeto de transação, que redundou na extinção do processo em relação à
ré, Centro Radiológico da Lagoa Ltda. Insurgem-se contra a improcedência do
pedido indenizatório, em relação à terceira autora, nascituro à época dos fatos,
ao argumento de que este ser, já dotado de personalidade jurídica, passou por
“dor, sofrimento e constrangimento o suficiente para ter sua vida ameaçada e
colocada em risco”. Aduzem, ainda, que, em se tratando de débito decorrente de
ato ilícito, a correção monetária e os juros de mora devem incidir desde o evento
danoso. Por fim, suscita a existência de dissenso jurisprudencial (fls. 587-616).
362
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., em seu apelo nobre,
fundado na alínea a, inciso III, do artigo 105 da CF, indica violação dos
artigos 535 do Código de Processo Civil; 275 e 844, § 3º, do Código Civil.
Preliminarmente, alega que o Tribunal de origem incorreu em omissão, pois,
embora instado, deixou de se manifestar sobre o argumento consistente na
inexistência de dívida comum, notadamente porque o quantum perseguido
deveria ser arbitrado judicialmente. No mérito, aduz, em suma, que, “inexistindo
cobrança de valor certo ou determinado, a título de indenização por danos
morais, jamais se poderia afirmar que a transação celebrada entre os recorridos e
a 1ª ré compreenderia pagamento parcial de dívida” (fls. 664-676).
Após decisão de admissão do recurso especial, em razão do provimento
do Agravo de Instrumento n. 1.112.751-RJ (fl. 730), exarado pelo eminente
Ministro João Otávio de Noronha, os autos ascenderam a esta egrégia Corte de
Justiça.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): As insurgências recursais não
merecem prosperar.
1. Passa-se, inicialmente, à analise do recurso especial interposto por
Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., já que veicula questões que,
a depender do desfecho a elas conferido, repercutem no recurso contraposto
pela parte adversa.
1.1. Sobre a prefacial aventada, a alegação de negativa de prestação
jurisdicional não encontra respaldo nos autos.
Efetivamente, o Tribunal de origem enfrentou, detidamente, as matérias
que lhe foram submetidas em sede de recurso de apelação, adotando, segundo
sua convicção, fundamentação suficiente, porém, contrária às pretensões
exaradas pela parte recorrente, o que não autoriza, a toda evidência, a oposição
dos embargos de declaração, os quais, como é de sabença, têm cabimento apenas
quando a decisão objurgada apresentar qualquer dos vícios de julgamento
constantes do artigo 535 do Código de Processo Civil.
Na hipótese dos autos, ao contrário do sustentado pela recorrente, a Corte
de Justiça Estadual reconheceu expressamente a existência de dívida comum,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
363
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
consistente na obrigação solidária de ressarcir os danos morais sofridos pelos
autores da ação, conforme se denota, claramente, do seguinte excerto do acórdão
recorrido:
[...] Apesar de se tratar de uma pretensão de reparação moral decorrente de
obrigação solidária, o seu valor foi dimensionado em quantia certa no pedido
inicial. Destarte, a transação com um dos réus não impede que os autores
busquem a reparação integral, cobrando a diferença da outra co-obrigada,
conforme dispõe o artigo 275 do Código Civil: “O credor tem direito a exigir e
receber de um dou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida
comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam
obrigados solidariamente pelo resto” Ademais, na avença celebrada às fls. 252255 há expressa referência (itens “2” e “4”) que o conflito se encerraria tão somente
em relação ao transacionante (Centro Radiológico da Lagoa) e que os autores
continuariam a demanda em face da Apelada, para reparar integralmente os
danos que sofreram.
Vê-se, portanto, que a apontada omissão atribuída ao acórdão objurgado
revela-se insubsistente.
1.2. No mérito, controverte-se, no presente recurso especial, se a transação
efetivada entre os credores e o codevedor de obrigação solidária (consistente
no ressarcimento dos prejuízos, de ordem moral, suportados por aqueles), em
que se consigna expressamente que a quitação não é extensiva ao codevedor
remanescente, tem o condão de extinguir, como um todo, a dívida.
Esclareça-se, de plano, que a recorrente não se insurge quanto ao
reconhecimento de sua responsabilidade solidária, tampouco em relação à
ocorrência dos danos morais suportados pelos recorridos. Tais matérias estão,
portanto, preclusas.
Enfatize-se: não houve impugnação quanto aos mencionados temas,
motivo pelo qual não se pode considera-los devolvidos a esta instância Superior.
Não obstante, apenas para efeito de esclarecimento, a relação existente
entre as requeridas, segundo veiculado na petição inicial (f. 27), dá-se pelo fato
de a Clínica Centro Radiológico da Lagoa Ltda. consubstanciar serviço médico
credenciado pela Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda.,
operadora do plano de saúde contratado pelos autores da ação.
Como é de sabença, o Superior Tribunal de Justiça perfilha o posicionamento de
ser solidária a responsabilidade entre a operadora de plano de saúde e o hospital (ou
clínica) conveniado/credenciado, decorrente da má prestação de serviço, pelos prejuízos
daí percebidos pelo contratante do plano.
364
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Nesse sentido:
Responsabilidade solidária das operadoras de plano de saúde. Erro médico.
Defeito na prestação do serviço. Dano moral reconhecido. Valor da indenização.
Majoração. Recurso provido.
1. Se o contrato for fundado na livre escolha pelo beneficiário/segurado
de médicos e hospitais com reembolso das despesas no limite da apólice,
conforme ocorre, em regra, nos chamados seguros-saúde, não se poderá falar
em responsabilidade da seguradora pela má prestação do serviço, na medida
em que a eleição dos médicos ou hospitais aqui é feita pelo próprio paciente ou
por pessoa de sua confiança, sem indicação de profissionais credenciados ou
diretamente vinculados à referida seguradora. A responsabilidade será direta do
médico e/ou hospital, se for o caso.
2. Se o contrato é fundado na prestação de serviços médicos e hospitalares
próprios e/ou credenciados, no qual a operadora de plano de saúde mantém
hospitais e emprega médicos ou indica um rol de conveniados, não há como afastar
sua responsabilidade solidária pela má prestação do serviço.
3. A operadora do plano de saúde, na condição de fornecedora de serviço,
responde perante o consumidor pelos defeitos em sua prestação, seja quando
os fornece por meio de hospital próprio e médicos contratados ou por meio de
médicos e hospitais credenciados, nos termos dos arts. 2º, 3º, 14 e 34 do Código
de Defesa do Consumidor, art. 1.521, III, do Código Civil de 1916 e art. 932, III,
do Código Civil de 2002. Essa responsabilidade é objetiva e solidária em relação
ao consumidor, mas, na relação interna, respondem o hospital, o médico e a
operadora do plano de saúde nos limites da sua culpa.
4. Tendo em vista as peculiaridades do caso, entende-se devida a alteração do
montante indenizatório, com a devida incidência de correção monetária e juros
moratórios.
5. Recurso especial provido. (REsp n. 866.371-RS, Rel. Ministro Raul Araújo,
Quarta Turma, julgado em 27.3.2012, DJe 20.8.2012).
Agravo regimental. Recurso especial. Ação de indenização. Erro médico.
Falecimento do paciente. Preliminar de negativa de prestação jurisdicional
afastada. Ausência de contradição e omissão no acórdão recorrido.
Responsabilidade solidária. Empresa prestadora do plano de assistência à saúde.
Legitimidade passiva para figurar na ação indenizatória. Dano moral. Quantum
indenizatório fixado dentro dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade.
Recurso improvido.
1. Ausente a ocorrência de contradição e omissão no julgado recorrido, afastase a preliminar de negativa de prestação jurisdicional.
2. Em caso de erro cometido por médico credenciado à empresa prestadora do
plano de assistência à saúde, esta é parte legítima para figurar no pólo passivo da
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
365
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ação indenizatória movida pelo associado, respondendo solidariamente pela má
prestação do serviço médico.
3. A revisão por esta Corte do montante fixado pelas Instâncias ordinárias a
título de dano moral, exige que o valor tenha sido arbitrado de forma irrisória ou
exorbitante, circunstância que não se verifica no caso concreto. A condenação
solidária das rés por dano moral em R$ 380.000,00 (trezentos e oitenta mil reais),
tendo em vista o erro médico que resultou em óbito do paciente, não se encontra
fora dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade. Precedentes.
4. Recurso improvido. (AgRg no REsp n. 1.037.348-SP, Terceira Turma, Rel. Min.
Massami Uyeda, DJe de 17.8.2011).
Civil e Processual. Ação de reparação de danos. Plano de saúde. Erro em
tratamento odontológico. Responsabilidade civil. Litisconsórcio necessário não
configurado. Cerceamento de defesa inocorrente. Matéria de prova. Reexame.
Impossibilidade. Prequestionamento. Ausência. Súmulas n. 282 e n. 356-STF.
I. A empresa prestadora do plano de assistência à saúde é parte legitimada
passivamente para a ação indenizatória movida por filiado em face de erro
verificado em tratamento odontológico realizado por dentistas por ela
credenciados, ressalvado o direito de regresso contra os profissionais responsáveis
pelos danos materiais e morais causados.
II. Inexistência, na espécie, de litisconsórcio passivo necessário.
III. Cerceamento de defesa inocorrente, fundado o acórdão em prova técnica
produzida nos autos, tida como satisfatória e esclarecedora, cuja desconstituição,
para considerar-se necessária a colheita de testemunhos, exige o reexame do
quadro fático, com óbice na Súmula n. 7 do STJ.
IV. Ausência de suficiente prequestionamento em relação a tema suscitado.
V. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 328.309-RJ, Quarta Turma, Rel. Min.
Aldir Passarinho Junior, DJ de 17.3.2003.
Civil e Processual. Ação de indenização. Erro médico. Cooperativa de assistência
de saúde. Legitimidade passiva. CDC, arts. 3º e 14.
I. A Cooperativa que mantém plano de assistência à saúde é parte legitimada
passivamente para ação indenizatória movida por associada em face de
erro médico originário de tratamento pós-cirúrgico realizado com médico
cooperativado.
II. Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 309.760-RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de
18.3.2002).
Civil e Processual. Ação indenizatória. Ressarcimento de despesas médicohospitalares. Plano de saúde. Alegação de erro de diagnóstico no atendimento
366
Jurisprudência da QUARTA TURMA
pela rede credenciada. Cirurgia de urgência realizada em nosocômio diverso.
Cobertura negada. Extinção do processo por ilegitimidade passiva ad causam.
Incorreção. Procedimento da lide.
I. A prestadora de serviços de plano de saúde é responsável, concorrentemente,
pela qualidade do atendimento oferecido ao contratante em hospitais e por
médicos por ela credenciados, aos quais aquele teve de obrigatoriamente se
socorrer sob pena de não fruir da cobertura respectiva.
II. Recurso conhecido e provido, para reconhecer a legitimidade passiva da ré
e determinar o prosseguimento do feito. (REsp n. 164.084-SP, Quarta Turma, Rel.
Min. Aldir passarinho Junior, DJ de 17.4.2000).
Civil. Responsabilidade civil. Prestação de serviços médicos. Quem se compromete
a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável
pelos serviços que estes prestam. Recurso especial não conhecido. (REsp n.
138.059-MG, Relator Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma Data do Julgamento
13.3.2001).
Ressalte-se novamente, a questão da origem da solidariedade está preclusa.
Fez-se a ponderação acima apenas para delimitar a controvérsia ora em exame.
Retomando o tema principal.
A insurgente questiona, tão-somente, os reflexos da transação operada
entre os credores e o codevedor, que, segundo sua compreensão, por se tratar de
obrigação solidária, ensejariam a quitação do débito também em relação a sua
obrigação, na dicção do § 3º do artigo 844 do Código Civil.
Razão, entretanto, não lhe assiste.
Na realidade, a transação realizada entre codevedor solidário e o credor
somente enseja a extinção da dívida em relação aos demais devedores, nos
termos do § 3º do artigo 844 do Código Civil, se a referida contratação abarcar a
dívida em comum, como um todo. Diversamente, caso a quitação decorrente da
transação referir-se, apenas, à parte da dívida, os demais devedores permanecerão
vinculados ao débito, solidariamente, descontado, contudo, o valor afeto ao
pagamento parcial.
Os efeitos jurídicos decorrentes do pagamento parcial, efetivado por um
dos devedores solidários, no tocante à subsistência da obrigação comum em
relação aos demais obrigados, são peremptoriamente delimitados pelo Código
Civil, especificamente em seus artigos 275 e 277. Pela pertinência, transcreve-se
os mencionados dispositivos legais:
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
367
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos
devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido
parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo
resto.
Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura da
ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores.
Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por
ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da
quantia paga ou relevada.
Na solidariedade passiva, constituída para atender os interesses do credor,
a este é dada a possibilidade de cobrar integralmente o débito de um dos
devedores solidários, sem que tal proceder encerre qualquer ato de liberação
em relação aos demais devedores. Da mesma forma, o credor pode cobrar de
cada devedor a respectiva quota-parte da dívida em comum, hipótese em que
o pagamento por um dos devedores (de sua parte, tão-somente) não importa,
a toda evidência, na quitação integral da obrigação. Por óbvio, nesse caso, os
demais devedores permanecerão obrigados solidariamente pelo remanescente
do débito (descontado, portanto, o valor referente ao pagamento parcial). Na
hipótese dos autos, como se trata de apenas dois devedores solidários, a liberação
do devedor que, por meio da transação, obteve a quitação de sua quota parte, faz
com que o devedor remanescente responda pelo saldo, pro rata.
Caio Mário, referindo-se à abrangência do pagamento parcial efetivado
por um dos devedores solidários, ou à remissão por ele obtida, é assente em fixar
a aludida linha de exegese, evidenciando a conservação da obrigação em relação
aos demais, deduzido desta o valor afeto à parcial quitação:
todos os devedores continuam obrigados pelo remanescente, acrescendo que o
vínculo continua com as mesmas características, isto é, subsiste a solidariedade entre
todos os devedores pelo saldo devedor. Daí a consequência imediata: efetuando um
dos devedores pagamento parcial, ficam os demais exonerados até a concorrência da
quantia paga, e solidariamente devedores do restante (...).
A remissão, obtida por um dos devedores, prevalece na extensão em que foi
concedida, aproveitando aos demais co-devedores, até a concorrência da quantia
relevada (Código Civil de 2002, art. 277). Há, pois, diferença nos efeitos da remissão,
na solidariedade ativa e na passiva, pois que, se naquela a que concede qualquer
credor extingue a obrigação, nesta opera a extinção até a concorrência da quantia
remitida, ou seja, na parte correspondente ao devedor perdoado. Por isso é que
a doutrina aconselha uma ressalva: em se tratando de remissão pessoal, isto é,
368
Jurisprudência da QUARTA TURMA
o perdão dado pelo credor a um determinado devedor, somente este se exonera
da obrigação, e nada mais deve, cabendo tão-somente abater, na totalidade da
dívida, a parte correspondente ao devedor forro (...). Se o credor houver perdoado
toda a dívida, extingue-se a obrigação, e é oponível a todos os co-obrigados. Sendo
a remissão dada a um dos co-devedores, Fica este liberado, mas a faculdade de
demandar o pagamento aos demais co-obrigados está subordinada à dedução
da parte relevada. Se o credor exigir de qualquer delas a solução da obrigação, o
devedor demandado pode opor ao credor a remissão, somente até à concorrência da
parte remetida, pois quanto ao remanescente a solidariedade sobrevive. O mesmo
que ocorre com a remissão estende-se a qualquer outra modalidade de solução da
obrigação (...). Renunciando em favor de um ou de alguns dos devedores, altera-se
a situação de todos os coobrigados, em situação análoga a do credor que recebe
pagamento parcial de um dos devedores, ou lhe remite parte da dívida. Exonerando
da solidariedade um ou mais devedores, subsiste ela quanto aos demais. A redação
do parágrafo único do art. 282 do Código Civil de 2002 não foi feliz. Reproduzindo
sempre, quase literalmente, o velho Código, deixou uma dúvida que ele afastava.
Dizia, então, que ao credor renunciante somente era lícito acionar aos demais,
abatendo no crédito a parte correspondente ao devedor remitido. Embora não o
diga expressamente, outro não deve ser o entendimento do parágrafo. Se ao credor,
renunciando à solidariedade em favor de um dos co-devedores, fosse lícito reclamar
a dívida toda contra qualquer dos outros, estaria realizando uma renúncia apenas
nominal, sem efeito prático. Demais disso, beneficiando um credor com a renúncia,
estaria agravando a situação dos demais, contra o disposto no art. 278 do novo
Diploma. O conceito de renúncia é o mesmo que advém do art. 114 do Código Civil
de 2002. Pode ser expressa, quando o credor declara, sem reservas, que abre mão
da solidariedade e restitui aos devedores a faculdade de solver por partes. É tácita
quando resulta de uma atitude ou comportamento do credor, incompatível com
a solidariedade. Lembram os autores, como casos de renúncia tácita: a) receber o
credor quota parte de um devedor, dando-lhe quitação; b) demandar judicialmente
um dos devedores, pela sua parte na dívida: não se confunde a situação com a do
credor que ajuíza ação contra um devedor pela dívida toda; c) receber o credor,
habitualmente, a partir de um dos devedores nos juros e frutos. Essas outras hipóteses
ocorrentes deixam, entretanto, de constituir uma renúncia à solidariedade, se o
credor ressalvar o direito de manter o vínculo da solidariedade (Código Civil de 2002,
art. 282) (Instituições de direito civil, vol. 02. Teoria geral das obrigações. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, 20ª ed. pp. 96, 104).
Outro não é o escólio de Sílvio de Salvo Venosa:
[...] Se o credor já recebeu parcialmente a dívida, não poderá exigir dos demais
codevedores a totalidade, mas deverá abater o que já recebeu. O credor pode
exigir parcialmente a dívida apenas se desejar, porque a obrigação não é essa. No
entanto, se já foi paga parcialmente, por iniciativa de um dos devedores e com a
concordância do credor, os demais devedores podem pagar o saldo, não sendo
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
369
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mais obrigados pela dívida toda (cf. MONTEIRO, 1979, v. 4, p. 188, LOPES, 1966,
v. 2, p. 162; e WALD, 1979, P. 41, entre outros). Da mesma forma operamos com
a remissão parcial. Ocorre o contrário, porém, do que sucede na solidariedade
ativa (art. 269). Quando o credor perdoa a dívida em relação a um dos devedores
solidários, isso não faz com que a dívida desapareça com relação aos demais
devedores, que permanecem vinculados à solução da dívida, com abatimento
daquela parte que foi dispensada pelo credor. Se, contudo, a remissão ocorrer
totalmente e sem ressalvas, atinge toda a dívida e todos os devedores. O mesmo
contexto se aplica a todas as modalidades de extinção das obrigações (Código
Civil Interpretado, Editora Atlas, São Paulo, 2010, p. 308).
Na espécie, o instrumento particular de transação celebrado entre os recorridos
e o Centro Radiológico da Lagoa Ltda., conforme reconhecido pelo Tribunal de
origem, não deixa margem de dúvida acerca da abrangência do pacto, consignando
expressamente que o acordo teve por finalidade encerrar o conflito de interesse
existente entre as partes contratantes, tão-somente, “perdurando assim o litígio
somente em face de Golden Cross”.
Conforme preceitua o artigo 843 da lei adjetiva civil, os termos de uma
transação devem ser interpretados restritivamente. Nessa medida, os direitos
declarados ou reconhecidos em tal contratação produzem efeitos em relação
às partes nela envolvidas, sem beneficiar ou prejudicar terceiros que dela não
fizeram parte (“res inter alios acta”).
Assim, atendo-se aos termos pactuados, não se afigura possível estender
os efeitos da quitação conferida ao devedor solidário, relativa, única e
exclusivamente, à sua quota-parte da dívida em comum, ao codevedor que, na
transação, não interveio.
Em situação similar a tratada nos autos, destaca-se os seguintes precedentes
desta Corte:
Responsabilidade civil. Indenização. Explosão de navio. Derramamento de óleo.
Contenção. Não ocorrência. Responsabilidade solidária entre a administradora do
porto e empresa proprietária do navio. Transação. Quitação parcial. Exclusão de
um dos devedores. Quantum indenizatório remanescente. Divisão pro rata.
1. A quitação dada a um dos responsáveis pelo fato, réu da ação indenizatória,
no limite de sua responsabilidade, não inibe a ação contra o outro devedor
solidário.
2. Quando o credor dá quitação parcial da dívida - mesmo que seja por meio de
transação - tal remissão por ele obtida não aproveita aos outros devedores, senão até
a concorrência da quantia paga ou relevada.
370
Jurisprudência da QUARTA TURMA
3. Fica explicitado que a transação significou a liberação do devedor que dela
participou com relação à quota-parte pela qual era responsável. Em razão disso,
a ação contra a Recorrida somente pode ser pelo saldo que, pro rata, à esta cabe.
4. Recurso Especial não provido. (REsp n. 1.079.293-PR, Relator Ministro Carlos
Fernando Mathias - Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região, Quarta Turma, DJe
28.10.2008) grifos desta Relatoria.
Dirieto Civil. Solidariedade passiva. Transação com um dos co-devedordes.
Outorga de quitação plena. Presunção de renúncia à solidariedade. Direito Civil.
Indenização. Dano efetivo. Danos morais. Alteração pelo STJ. Valor exorbitante
ou ínifmo. Possibilidade. Direito Processual Civil. Sucumbência. Fixação. Pedidos
formulados e pedidos efetivamente procedentes.
- Na solidariedade passiva o credor tem a faculdade de exigir e receber, de qualquer
dos co-devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum. Havendo pagamento
parcial, todos os demais co-devedores continuam obrigados solidariamente pelo
valor remanescente. O pagamento parcial efetivado por um dos co-devedores e
a remissão a ele concedida, não alcança os demais, senão até a concorrência da
quantia paga ou relevada.
- Na presente lide, contudo, a sobrevivência da solidariedade não é possível,
pois resta apenas um devedor, o qual permaneceu responsável por metade
da obrigação. Diante disso, a conseqüência lógica é que apenas a recorrida
permaneça no pólo passivo da obrigação, visto que a relação solidária era
constituída de tão-somente dois co-devedores.
- O acolhimento da tese da recorrente, no sentido de que a recorrida
respondesse pela integralidade do valor remanescente da dívida, implicaria, a rigor,
na burla da transação firmada com a outra devedora. Isso porque, na hipótese da
recorrida se ver obrigada a satisfazer o resto do débito, lhe caberia, a teor do que
estipula o art. 283 do CC/2002, o direito de exigir da outra devedora a sua quota,
não obstante, nos termos da transação, esta já tenha obtido plena quitação em
relação à sua parte na dívida. A transação implica em concessões recíprocas,
não cabendo dúvida de que a recorrente, ao firmá-la, aceitou receber da outra
devedora, pelos prejuízos sofridos (correspondentes a metade do débito total), a
quantia prevista no acordo. Assim, não seria razoável que a outra devedora, ainda
que por via indireta, se visse obrigada a despender qualquer outro valor por conta
do evento em relação ao qual transigiu e obteve quitação plena.
- Os arts. 1.059 e 1.060 do CC/2002 exigem dano material efetivo como
pressuposto do dever de indenizar. O dano deve, por isso, ser certo, atual e
subsistente. Precedentes.
- A intervenção do STJ, para alterar valor fixado a título de danos morais, é
sempre excepcional e justifica-se tão-somente nas hipóteses em que o quantum
seja ínfimo ou exorbitante, diante do quadro delimitado pelas instâncias
ordinárias. Precedentes.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
371
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
- A proporcionalidade da sucumbência deve levar em consideração o número
de pedidos formulados na inicial e o número de pedidos efetivamente julgados
procedentes ao final da demanda. Precedentes. Recurso especial parcialmente
conhecido e, nesse ponto, provido. (REsp n. 1.089.444-PR, Relatora Ministra Nancy
Andrighi, Terceira Turma DJe 3.2.2009) grifos desta Relatoria.
Direito Civil. Responsabilidade solidária. Acordo entre as partes. Quitação
parcial. Exclusão de um dos devedores
1. O art. 844, § 3º, do Código Civil estabelece que a transação não aproveita
nem prejudica senão aos que nela intervierem. Contudo, se realizada entre um
dos devedores solidários e seu credor, extingue-se a dívida em relação aos codevedores.
2. A quitação parcial da dívida dada pelo credor a um dos devedores solidários por
meio de transação, tal como ocorre na remissão não aproveita aos outros devedores,
senão até a concorrência da quantia paga.
3. Se, na transação, libera-se o devedor que dela participou com relação
à quota-parte pela qual era responsável, ficam os devedores remanescentes
responsáveis somente pelo saldo que, pro rata, lhes cabe.
4. Agravo provido. (AgRg no REsp n. 1.002.491-RN, Relator Ministro João Otávio
de Noronha, Quarta Turma, DJe 1º.7.2011) grifos desta relatoria.
Ressalta-se, ainda, que a argumentação expendida pela recorrente, no
sentido de que a dívida não poderia ser considerada comum, pois pendente de
fixação do valor devido no bojo da ação indenizatória, não prospera, pois carente
de amparo legal.
Assinala-se, no ponto, restar incontroverso nos autos que Golden Cross
Assistência Internacional de Saúde Ltda. e Centro de Radiológico da Lagoa
Ltda. são solidariamente responsáveis pela obrigação de ressarcir os prejuízos, de
ordem moral, suportados pelos ora recorridos. Assim, o fato de o valor do débito
depender de definição judicial, efetivamente, não desnatura a obrigação que é
solidária, tampouco leva à conclusão de que a retrocitada transação abarcaria,
como um todo, o valor devido.
Em se tratando de ação de indenização por danos morais, não é demasiado
destacar que, mesmo que os autores tivessem requerido a condenação dos réus
ao pagamento de determinado valor, este seria meramente estimativo, e, como
tal, igualmente dependente de fixação judicial. Não obstante, a solidariedade da
obrigação remanesceria incólume.
No caso em exame, levando-se em conta o valor despendido pelo codevedor,
Centro de Radiológico da Lagoa Ltda., para quitar a sua parcela do débito (R$
372
Jurisprudência da QUARTA TURMA
6.000,00 - seis mil reais), devidamente aceito pelos recorridos, o Tribunal de
origem arbitrou, de forma equânime, como seria de rigor, a mesma quantia,
referente à parte da dívida de responsabilidade da ora recorrente, Golden Cross
Assistência Internacional de Saúde Ltda. Referido quantum consiste justamente
no saldo, pro rata, da obrigação.
Conclui-se, portanto, que a transação entabulada entre os credores e
o codevedor solidário, por se referir exclusivamente a sua quota-parte do
débito, não enseja a extinção da obrigação em relação ao outro devedor, não se
aplicando à espécie o § 3º do artigo 844 do Código Civil, tal como pretendido
pela recorrente.
2. Passa-se, doravante, a sopesar as razões do recurso especial interposto
por Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela Sanches
Corrêa.
Discute-se, no presente apelo nobre, se a terceira autora, à época dos fatos,
na condição de nascituro, faz jus à indenização por danos morais, em virtude
da elaboração de exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, cujo
resultado, erroneamente, indicou que seria portadora de Síndrome de Down.
Debate-se, também, se a fixação de R$ 6.000,00, a título de indenização por
danos morais, relativo à quota-parte do débito da Golden Cross, revela-se
irrisório. Questiona-se, ainda, o termo a quo para a incidência da correção
monetária e dos juros de mora.
2.1. No ponto, os insurgentes proclamam a possibilidade de a terceira
recorrente sofrer danos morais, mesmo ostentando a qualidade de nascituro
quando do erro de diagnóstico já aludido, o qual teria lhe impingido efeitos
psicológicos deletérios.
A insurgência não merece prosperar.
Primeiramente, ressalte-se o inequívoco avanço, na doutrina, assim como
na jurisprudência, acerca da proteção dos direitos do nascituro. A par das teorias
que objetivam definir, com precisão, o momento em que o indivíduo adquire
personalidade jurídica, assim compreendida como a capacidade de titularizar
direitos e obrigações (em destaque, as teorias natalista, da personalidade
condicional e a concepcionista), é certo que o nascituro, ainda que considerado
como realidade jurídica distinta da pessoa natural, é, igualmente, titular de
direitos das personalidade (ao menos, reflexamente).
Os direitos da personalidade, por sua vez, abrangem todas as situações
jurídicas existenciais que se relacionam, de forma indissociável, aos atributos
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
373
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
essenciais do ser humano. Segundo a doutrina mais moderna sobre o tema, não
há um rol, uma delimitação de tais direitos. Tem-se, na verdade, uma cláusula
geral de tutela da pessoa humana, que encontra fundamento no princípio da
dignidade da pessoa humana, norteador do Estado democrático de direito.
Nesse sentido, manifesta-se autorizada doutrina:
Em especial, a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana no
texto constitucional permitiu que fosse superada a controvérsia entre as teorias
pluralistas, defensora da existência de múltiplos direitos da personalidade, e
monista, que sustentava a existência de um único direito de personalidade,
originário e geral. Ambas revelam-se insuficientes, mostrando-se vinculadas ao
paradigma dos direitos subjetivos patrimoniais, em especial ao modelo do direito
de propriedade (Gustavo Tepedino, “A tutela da Personalidade”, p. 45). [...] Como
ressalta Pietro Perlingieri: “A esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo
elaborado sobre a categoria do ter. Na categoria do ‘ser’ não há a dualidade entre
sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional,
orgânica (Perfis, p. 155)”. Portanto o princípio previsto no artigo 1º, III, da
Constituição funciona como uma cláusula geral da personalidade, permitindo
a utilização dos mais diversos instrumentos jurídicos para sua salvaguarda
(Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloísa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de,
Código Civil Interpretado conforme à Constituição da República, Vol I, 2ª Edição
Revista e Atualizada, Ed. Renovar, 2007, p.33)
Assim, a retrocitada cláusula geral permite ao magistrado, com esteio no
princípio da dignidade da pessoa humana, conferir, em cada caso concreto,
proteção aos bens da personalidade, consistentes na composição da integridade
física, moral e psíquica do indivíduo, compatível com o contexto cultural e social
de seu tempo.
Nessa linha de raciocínio, é certo que o nascituro, compreendido como
o ser já concebido, mas ainda inserido no ventre materno, por guardar em si
a potencialidade de se tornar a pessoa humana, é merecedor de toda proteção do
ordenamento jurídico, destinada a garantir o desenvolvimento digno e saudável
no meio intra-uterino e o conseqüente nascimento com vida.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, em decisão célebre e
paradigmática, exarada no bojo da Ação Direita de Inconstitucionalidade sobre
a Lei de Biossegurança (ADI n. 3.510-DF), bem delimitou o parâmetro de
proteção que se deve conferir à vida, em desenvolvimento no meio intra-uterino.
Traz-se à colação a ementa do julgado, deveras esclarecedora, no que importa à
controvérsia:
374
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[....]
III - A Proteção constitucional do direito à vida e os direitos infraconstitucionais
do embrião pré-implanto. O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início
da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e
qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida
que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria “natalista”, em
contraposição às teorias “concepcionista” ou da “personalidade condicional”). E
quando se reporta a “direitos da pessoa humana” e até dos “direitos e garantias
individuais” como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do
indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, entre outros direitos
e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade
(como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional
hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a
legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é
meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas
levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três
realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa
humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas
embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança (“in vitro”
apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto
lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as
quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e
irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa
do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana
anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O
embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido
biográfico a que se refere a Constituição. [...] (STF, ADI n. 3.510-DF, Relator Ministro
Ayres Brito, DJ. 28.5.2010).
Delineados tais apontamentos, reconhece-se a possibilidade, em tese, de o
nascituro vir a sofrer danos morais, decorrentes da violação da dignidade da pessoa
humana (em potencial), desde que estes, de alguma forma, comprometam o seu
desenvolvimento digno e saudável no meio intra-uterino e o consequente nascimento
com vida, ou repercutam na vida após o nascimento.
É bem verdade que a possibilidade de o nascituro ser indenizado por danos
extrapatrimoniais é excepcional, somente se justificando a condenação, na linha
de precedentes deste Superior Tribunal de Justiça, ante a projeção de danos por
sobre a qualidade da gestação, aptos a afetarem a saúde fetal, ou que resultem
na privação da convivência com seus genitores (AREsp n. 150.297-DF, Rel.
Ministro Sidnei Beneti, DJ de 10.12.2012; Ag n. 1.268.980-PR; AgRg no
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
375
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ag n. 1.092.134-SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, julgado em 17.2.2009, DJe
6.3.2009; e, REsp n. 931.556-RS, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira
Turma, DJe 5.8.2008).
Assim, em que pese entender o STJ “que o nascituro também tem direito
a indenização por danos morais” (Ag n. 1.268.980-PR, Rel. Ministro Herman
Benjamin, DJ de 2.3.2010), não é toda situação jurídica a que submetida o
concebido que ensejará o dever de reparação, senão aquelas, conforme enfatizado,
das quais decorram consequências funestas à saúde do nascituro ou suprimamno do convívio de seus pais ante a morte destes (REsp n. 399.028-SP, Rel. Min.
Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 15.4.2002).
Na hipótese dos autos, o fato que teria ocasionado danos morais à terceira
autora, nascituro à época dos fatos, seria o resultado equivocado do exame de
ultrassonografia com Translucência Nucal, que indicou ser ela portadora de
“Síndrome de Down”.
Ocorre que, segundo a moldura fática delineada pela Corte a quo, a genitora,
no dia seguinte ao recebimento do resultado do exame que trazia a equivocada
informação quanto à síndrome cromossômica, submeteu-se, novamente, ao
mesmo exame, cujo resultado mostrou-se diverso, isto é, descartou a sobredita
patologia. Não se olvida, tampouco se minimiza, o abalo psíquico que os pais
suportaram em virtude de tal equívoco, dano, contudo, que não se pode estender
ao nascituro, na esteira dos precedentes desta Corte Superior.
Portanto, não há se falar em dano moral suportado pelo nascituro, pois, dos
contornos fáticos estabelecidos pelas instâncias ordinárias, sobressai clarividente
que tal erro não colocou em risco a gestação, e tampouco repercutiu na vida da
terceira autora, após seu nascimento.
No ponto, registre-se que os exames que poderiam colocar a gravidez
em risco (Amniocentese e biópsia de vilo corial), como sustentado, não foram
realizados. Mesmo o mal-estar suportado pela primeira-autora, após o
recebimento da notícia, não importou em riscos à gravidez, a considerar a
documentação colacionada aos autos e levada em conta pelo Tribunal de piso.
Assim, irretorquível as decisões exaradas pelas instâncias ordinárias, que,
de forma uníssona, afastaram o pedido de indenização por dano moral efetivado
pela terceira autora, na condição de nascituro, à época dos fatos.
2.2. Da mesma forma, razão não assiste aos recorrentes, no que se refere à
pretensão de majorar a verba indenizatória a ser paga pela codevedora Golden
Cross, fixada pela Corte de Justiça Estadual em R$ 6.000,00 (seis mil reais).
376
Jurisprudência da QUARTA TURMA
A argumentação expendida pelos recorrentes, em que se argumenta ser
ínfimo o quantum indenizatório, além de encerrar inequívoca contradição no
proceder dos recorrentes, que reputaram tal valor absolutamente suficiente para
reparar o dano moral suportado, em relação à parte da obrigação de responsabilidade
da outra codevedora, desconsidera, em absoluto, o regramento pertinente às
obrigações solidárias, já exposto.
Efetivamente, não há uma razão lógica para que os recorrentes, ao mesmo
tempo em que consideram justo e razoável o valor de R$ 6.000,00 (seis mil
reais), para que a devedora solidária (Centro de Radiológico do Lago Ltda.)
quite sua quota-parte da obrigação, conforme acordado nos termos da transação
entre eles entabulada, reputem irrisório tal valor, em relação à parte da obrigação
a ser suportada pelo devedor remanescente (Golden Cross).
Como assinalado, quando da análise do recurso especial da Golden Cross,
em se tratando de apenas dois devedores solidários, a liberação do devedor que,
por meio da transação, obteve a quitação de sua quota parte, faz com que o
devedor remanescente responda pelo saldo, pro rata.
Desta forma, o Tribunal de origem, ao fixar o referido valor, também
para o devedor solidário, bem observou, como seria de rigor, os efeitos gerados
pelo pagamento parcial efetuado por um devedor, em se tratando de obrigação
solidária.
Ademais, o quantum indenizatório arbitrado, isoladamente considerado,
não pode ser considerado ínfimo.
Não obstante o grau de subjetivismo que envolve o tema, uma vez que
não existem critérios predeterminados para a quantificação do dano moral,
esta Corte Superior tem reiteradamente se pronunciado no sentido de que a
indenização deve ser suficiente a restaurar o bem estar da vítima, desestimular
o ofensor em repetir a falta, não podendo, ainda, constituir enriquecimento sem
causa ao ofendido.
Com a apreciação reiterada de casos semelhantes, concluiu-se que a
intervenção desta Corte ficaria limitada aos casos em que o quantum fosse
irrisório ou excessivo, diante do quadro fático delimitado em primeiro e segundo
graus de jurisdição. Assim, se o arbitramento do valor da compensação por
danos morais foi realizado com moderação, proporcionalmente ao grau de
culpa, ao nível sócio-econômico do recorrido e, ainda, ao porte econômico do
recorrente, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela
jurisprudência, com razoabilidade, fazendo uso de sua experiência e do bom
senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, o STJ tem
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
377
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
por coerente a prestação jurisdicional fornecida (REsp n. 259.816-RJ, Rel. Min.
Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 27.11.2000).
Na espécie, em que pese o abalo psíquico suportado pelos dois primeiros
autores, decorrente do resultado da ultrassonografia que indicava, erroneamente,
ser o feto portador de Síndrome de Down, é certo que, já no dia seguinte,
mediante a repetição do exame, a verdade dos fatos foi restabelecida. Um terceiro
exame, efetuado imediatamente, dissipou, conforme noticiado, as dúvidas do
casal sobre a saúde do filho vindouro. Ainda que se repute verossímil a alegação
de que o sentimento de angústia dos pais tenha perdurado por algum tempo, o
equívoco do exame, em si, não influiu no sadio desenvolvimento da gestação.
Assim, a quantia de R$ 6.000,00 (seis mil reais), somada ao valor despendido pela
outra devedora solidária (Centro Radiológico do Lago Ltda. (no mesmo valor),
perfazendo a importância de R$ 12.000,00 (doze mil reais), revela-se razoável e
proporcional aos danos suportados, guardadas as peculiaridades do caso.
Portanto, o pedido de majoração da verba indenizatória, por todos os
ângulos que se aborde a questão, não comporta acolhimento.
2.3. Por fim, os recorrentes insurgem-se contra o termo a quo, fixado,
pelo Tribunal de origem, para a incidência da correção monetária e dos juros
moratórios.
Conforme relatado, a Corte de Justiça Estadual condenou a ora recorrida,
ao pagamento, a título de danos morais, no importe de R$ 6.000,00, a ser
corrigido a partir daquela decisão e com juros de mora de 1% ao mês, a incidir
da citação.
O vínculo que une as partes e do qual exsurge o dever de indenizar é,
inequivocamente, contratual, razão pela qual os juros moratórios referentes à
reparação por dano moral, em tal caso, incidem a partir da citação. A correção
monetária do valor da indenização pelo dano moral dá-se a partir da data em
que restou arbitrada, no caso, por ocasião da prolação do acórdão que julgou a
apelação, consoante o Enunciado n. 362 da Súmula do STJ.
Nesse sentido:
Agravo regimental em recurso especial. Ação de indenização por danos morais.
Erro médico. Negativa de prestação jurisdicional. Responsabilidade contratual.
Juros moratórios. Correção monetária. Termo inicial.
1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem
motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação
do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela
parte.
378
Jurisprudência da QUARTA TURMA
2. Os juros moratórios referentes à reparação por dano moral, na
responsabilidade contratual, incidem a partir da citação.
3. A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a
data do arbitramento, consoante a Súmula n. 362-STJ.
4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.132.658-MG, Relator
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 29.8.2012). E ainda: AgRg
no AREsp n. 182.174-PA, Relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe
29.8.2012, REsp n. 933.067-MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
Terceira Turma DJe 17.12.2010; REsp n. 1.127.279 Relator Ministro Luis Felipe
Salomão, Data da Publicação 19.2.2013; Ag n. 1.390.524 Relator Ministro Raul
Araújo, Data da Publicação 9.3.2012.
Escorreito, portanto, os termos iniciais da correção monetária e dos juros
monetários fixados na origem.
3. Do exposto, nego provimento aos recursos especiais interpostos por
Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela Sanches Corrêa e
Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda.
É como voto.
VOTO VENCIDO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, reputo relevantes salientar os
aspectos que restam preclusos, nos termos do voto do eminente Relator, para
evitar que repassemos determinados pontos envolvidos na lide.
Peço vênia para acompanhar a divergência inaugurada pela eminente
Ministra Isabel Gallotti. Entendo também que a regra do § 3º do art. 844 do
Código de Processo Civil tem o exato significado para situações como essa
que temos sob julgamento, e não para aquelas referidas no judicioso voto do
eminente Relator.
Temos aqui a solidariedade entre a clínica e o plano de saúde, mas, na
cadeia interna, a causadora única do dano sendo a clínica, a Golden Cross
poderia, mediante ação regressiva, cobrar o que tivesse de pagar ao consumidor
em razão da solidariedade. A cadeia externa é de solidariedade, mas a interna é
regressiva. Neste caso, pode-se facilmente distinguir entre a cadeia externa e a
cadeia interna, sendo aplicável a regra do § 3º do art. 844.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
379
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO-ANTECIPADO (VENCIDO)
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho as
teses expostas pelo eminente Relator, quando afirma que se trata de relação de
consumo e que, portanto, há relação de solidariedade entre o hospital e o plano
de saúde.
Se o plano de saúde credenciou o hospital e o hospital cometeu um vício
de serviço - e aqui não se discute se esse exame com resultado errado foi um
vício de serviço, isso já está precluso, se houve dano moral a despeito de no
dia seguinte ter sido refeito o exame, tudo isso é matéria preclusa que não está
em discussão - então, de fato, temos um serviço prestado defeituosamente
pelo Hospital da Lagoa, que causou dano moral. E temos a responsabilidade
solidária do plano de saúde que credenciou esse hospital.
Toda essa parte do voto do Relator não me causa dúvida, está na linha da
jurisprudência deste Tribunal.
Mas na solidariedade, que pode resultar da lei ou do contrato, há uma
relação interna e uma relação externa.
Na relação externa, ou seja, dos devedores solidários em relação a esse casal,
não há dúvida de que o casal poderia cobrar toda a reparação só da Golden
Cross, só do hospital ou de ambos.
Minha divergência se situa quanto à relação interna. Ensina Caio Mário da
Silva Pereira:
Também uma consequência da distinção entre as relações internas e as
relações externas na solidariedade passiva é esta: independentemente de ser
a dívida solidária do interesse de um só dos devedores, o credor pode havê-la
de qualquer deles. Mas, internamente, se for do interesse exclusivo de um só,
responderá este por toda ela para com aquele que houver pago (Código Civil de
2002, art. 285). Neste ponto, abre o Código exceção à regra do art. 283. Ao aludir
à divida que interessar exclusivamente a um dos devedores, o Código refere-se
ao fato de, pelo título, ou pelas circunstâncias, um dos devedores for o obrigado
principal. É o que ocorre com a solidariedade decorrente de fiança ou aval, em
que a dívida interessa ao devedor principal. Solvida a obrigação pelo fiador ou
avalista, tem o direito de ser reembolsado, na sua totalidade, contra o afiançado
ou avalizado. Corolário deste princípio é que, se a obrigação for solvida pelo
devedor principal, não tem direito a agir contra os fiadores ou avalistas para deles
haver sua quota na dívida, embora esta, em relação ao credor, seja comum a
todos os sujeitos ao vínculo de solidariedade.
380
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Então, em relação ao credor, havia uma dívida comum que ele poderia
exigir tanto do plano de saúde quanto do hospital.
Ele tinha essa opção. Fez, então, uma transação com um dos devedores
solidários, que era o hospital. O hospital foi o causador direto do dano; era
o devedor principal. O plano somente era responsável por haver credenciado
o hospital. Nenhum outro ato era imputado ao plano. Essa transação não
foi parcial, foi total, porque deu plena quitação àquele devedor solidário, ao
causador do dano. Entendo que essa quitação foi total, porque, a partir dela,
eximiu-se totalmente a responsabilidade da Clínica da Lagoa.
É certo que, no instrumento de transação, expressou o credor que pretendia
continuar com a ação contra a Golden Cross. Isso, a meu ver, não torna a
quitação parcial. Parcial seria se o credor afirmasse “estou dando quitação só
dos danos materiais, mas não dos morais”, caso em que poderia prosseguir em
relação à parte não quitada perante ambos os devedores solidários. Mas não, ele
deu quitação total para o Hospital da Lagoa e disse que pretendia prosseguir em
relação à Golden Cross.
Impõe-se, portanto, a aplicação do art. 844, § 3º, do Código Civil,
fundamento do recurso especial, segundo o qual:
A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem,
ainda que diga respeito a coisa indivisível.
(...)
§ 3º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em
relação aos codevedores.
O Relator citou precedentes deste Tribunal, um deles é bastante
interessante, do Ministro João Otávio de Noronha (REsp n. 1.002.491-RN),
em que havia um dano causado por um erro médico, e a ação foi proposta contra
o anestesista e contra a clínica. Houve um acordo entre a vítima e o anestesista.
A vítima prosseguiu com a ação contra a clínica e se entendeu que o fato de
ter sido dada a quitação ao anestesista não impedia o prosseguimento da ação
contra a clínica.
A solução foi perfeita, no caso julgado pelo Ministro João Otávio de
Noronha, porque havia a imputação de responsabilidade à clínica por uma
circunstância diversa da imputada ao anestesista. No citado precedente, houve
um erro do médico, e, além desse erro, a clínica contribuiu para o resultado
danoso, porque não tinha suporte para prestar socorro em caso de eventual
reação adversa.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
381
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Houve, portanto, duas causas as quais contribuíram para o resultado: o erro
do médico e a falta de estrutura da clínica.
Quando o credor fez o acordo com o médico, o médico, naturalmente, só
pode responder pelo erro que cometeu, e não pela falta de estrutura da clínica.
Por isso afirma o voto do Ministro João Otávio de Noronha, que a ação
contra a clínica pode prosseguir em relação a sua quota-parte de responsabilidade.
Ele concluiu que a clínica ficava liberada apenas no limite da quota-parte
do médico por ele já quitada, e disse o seguinte na ementa:
A quitação parcial da dívida dada pelo credor a um dos devedores
solidários por meio de transação não aproveita aos outros devedores, senão
até a concorrência da quantia paga. Se, na transação, libera-se o devedor que
dela participou com relação à quota-parte pela qual era responsável, ficam os
devedores remanescentes responsáveis somente pelo saldo que, pro rata, lhes
cabe.
O acórdão do Ministro Carlos Mathias (REsp n. 1.079.293) também
aprecia circunstância muito parecida, em que é possível verificar um ato ilícito
ou um defeito praticado por ambos os elementos da cadeia. Aqui foi acidente
em que um navio explodiu. A ação de indenização foi proposta contra o
proprietário do navio que explodiu e contra a empresa responsável pelo porto.
Houve um acordo com o proprietário do navio e prosseguiu-se com ação contra
o porto. E se concluiu que o acordo com o proprietário do navio não isentava,
não abrangia a quota-parte do porto, porque o porto falhou na contenção de
óleo em caso de vazamento. Houve uma falta de serviço da empresa do porto.
Nesses dois casos, e naquele da relatoria da Ministra Nancy Andrighi,
também referente a esse acidente no porto, pode-se dizer que o dano decorreu
de uma conduta do dono do navio e de outra do porto, ou uma do médico e
outra do hospital. Assim, das circunstâncias de fato da causa, na relação interna
da solidariedade, não se pode dizer que o médico, ao indenizar, tenha respondido
também pela deficiência de estrutura do hospital e nem que o dono do navio, ao
indenizar, tenha respondido pela deficiência da estrutura do porto.
O credor poderia exigir a composição do dano plenamente de cada um dos
dois. Mas não se pode dizer que cada um dos responsáveis fosse o responsável
único na relação interna. Na relação interna da solidariedade, ambos eram
responsáveis, e na falta de especificação no título judicial, presume-se que meio
a meio era a responsabilidade.
382
Jurisprudência da QUARTA TURMA
No caso ora em julgamento, o que acontece? Houve erro de diagnóstico
em um exame. Esse erro não foi causado pelo plano de saúde. O plano de saúde
está respondendo apenas porque ele garante o serviço prestado pelo hospital
que ele credenciou. Ou seja, o hospital fez o exame, houve um erro no exame,
o hospital pagou a indenização pactuada com a vítima. Fez uma transação por
meio da qual nada mais poderá ser exigido dele, hospital, porque ele fez uma
composição.
O autor pretende que essa composição seja parcial, porque ele pretende
mais um pouco de indenização da parte do plano de saúde. Mas não se
alega, por exemplo, que o plano tenha atrasado dias na expedição de uma
guia de autorização ou tenha cometido qualquer falha que pudesse justificar
responsabilidade própria, que não a de garante da qualidade do serviço do
profissional credenciado.
Poderia, em tese, haver a situação de uma pessoa doente pedindo ao plano
uma guia para tratamento, e o plano demorasse dez dias para liberar a guia, e
depois o médico ainda cometesse um erro de procedimento, e ele viesse a sofrer
lesão grave ou até morrer. Nesta hipótese figurada, a culpa seria do plano que
atrasou a autorização para o tratamento e do médico que cometeu o erro de
procedimento, e, na relação interna da solidariedade, haveria responsabilidade
de ambas as partes. Neste caso, não. O erro foi todo do hospital. O hospital
recebeu quitação plena.
Por este motivo, penso que quando é dada quitação integral ao devedor
principal, nada mais pode ser exigido contra aquele que tinha obrigação solidária
em face do credor, mas que tinha o direito de ser ressarcido em face daquele que
pagou.
O que vai acontecer nesse caso? Se entendermos que essa obrigação da
Golden Cross não é apenas de garante da qualidade do serviço prestado pelo seu
credenciado, se entendermos o autor pode exigir uma indenização autônoma da
Golden Cross, a Golden Cross terá direito de cobrar dele, hospital, em regresso,
porque ela foi condenada a esse pagamento simplesmente porque o credenciado
prestou mal o serviço. E, neste ponto, lembro o acórdão do Ministro Aldir
Passarinho Junior, no REsp n. 328.309-RJ, também citado no voto do eminente
Relator, em que ele diz:
A empresa prestadora do plano de assistência à saúde é parte legitimada
passivamente em ação de indenização movida por filiado em face de
erro verificado em tratamento odontológico realizado por dentistas por ela
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
383
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
credenciados, ressalvado o direito de regresso contra os profissionais responsáveis
pelos danos materiais e morais causados. (grifo não constante do original).
Ou seja, se o dano já foi indenizado pelos profissionais credenciados, nada
mais pode ser cobrado do garante, no caso, o plano de saúde, tendo em vista o
disposto no art. 844, § 3º, do Código Civil.
No presente caso, já houve quitação dada ao Hospital da Lagoa. Não se
imputa nenhum ato ao plano de saúde, exceto haver credenciado esse hospital.
Se não se considerar, na linha do que dispõe o art. 844, § 3º, do Código Civil,
que a quitação dada ao hospital que cometeu o erro não abrange a quitação do
plano de saúde e se condenar o plano de saúde a uma indenização autônoma,
que, ao meu ver, se justificaria se houvesse uma parcela de sua responsabilidade
na relação interna da solidariedade, estar-se-á dando margem para que o plano
vá exercer direito de regresso contra o Hospital da Lagoa, único causador do
erro de procedimento.
Figuro outro exemplo de cadeia de consumo. Se alguém compra um carro
com vício de fabricação, respondem pelo defeito do carro, perante o consumidor,
tanto o fabricante quanto a concessionária. Ambos respondem solidariamente.
Pode ser exigido um carro novo tanto da fábrica quanto da concessionária. Mas,
se a fábrica compuser o dano, fornecendo um carro novo, não se pode exigir
um outro carro da concessionária. Ao contrário, se a concessionária repuser o
carro, ela poderá pedir à fábrica o ressarcimento pelo prejuízo de ter tido que
recompor. Isso porque a obrigação é de interesse exclusivo da fábrica, única
causadora do dano.
Se houver uma transação entre o consumidor e a fábrica, mediante a qual
o consumidor aceite ficar com o carro defeituoso e mais metade do valor de
um carro novo, sendo dada quitação à fábrica, não poderá o consumidor exigir
mais valor algum da concessionária, a qual respondia solidariamente, na relação
externa, perante o consumidor, mas nenhuma responsabilidade tinha, pelo
defeito de fabricação, na relação interna da solidariedade.
Em síntese: no caso dos autos foi dada quitação ao devedor principal. A
despeito da afirmação feita no termo de quitação de que pretendia o consumidor
prosseguir com seu pleito perante o plano de saúde, nada mais pode ser exigido
daquele que responderia apenas como garante, com direito de regresso contra o
causador do dano.
A circunstância de haver solidariedade entre todos os integrantes da cadeia
de consumo não significa que, na relação interna entre eles, não se deva observar
384
Jurisprudência da QUARTA TURMA
quem foi o causador do dano; se ambos têm parcela de culpa pelo evento e quais
estão respondendo apenas como garantes em razão do privilégio que a lei dá ao
consumidor de poder se ressarcir plenamente perante cada um dos integrantes
da cadeia de fornecedores.
Pedindo vênia ao relator, dou provimento ao recurso especial da Golden
Cross e julgo prejudicados os demais recursos.
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, com a devida vênia
da divergência, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator.
RECURSO ESPECIAL N. 1.327.619-MG (2012/0114670-9)
Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti
Recorrente: Samarco Mineração S/A
Advogado: João Dácio de Souza Pereira Rolim e outro(s)
Recorrido: Ana Maria da Costa Pereira
Advogado: Antônio Marques Carraro Júnior e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Juízo arbitral. Cassação de sentença extintiva
sem exame de mérito. Reforma. Maioria. Embargos infringentes.
Descabimento. Instâncias ordinárias esgotadas. Cláusula
compromissória cheia. Vício de consentimento alegado. Artigo 8º,
parágrafo único, 20, 32 e 33, da Lei n. 9.307/1996. Recurso especial
provido.
1. Não são cabíveis embargos infringentes contra acórdão que,
conquanto por maioria, cassa a sentença extintiva e determina a
reapreciação da questão na primeira instância.
2. Tratando-se de cláusula compromissória “cheia”, na qual
é designado o órgão arbitral eleito, estabelecida em documento
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
385
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
escrito, por partes maiores e capazes, acerca direitos disponíveis,
devem as questões acerca de sua interpretação, validade e eficácia
ser, em princípio, dirimidas pelo árbitro, restando à parte interessada
a possibilidade de impugnação da sentença arbitral nas hipóteses
previstas no art. 33 da Lei n. 9.307/1996.
3. Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deulhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros
Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão e Raul Araújo
Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 20 de agosto de 2013 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora
DJe 28.8.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Samarco Mineração S/A interpõe
recurso especial, no qual se alega violação aos artigos 535, 267, V, 269, III,
467, 468, 471, do Código de Processo Civil, 104, 171, 849, do Código Civil,
4º, 8º, parágrafo único, 20 e 33, da Lei n. 9.307/1996, associada a dissídio
jurisprudencial, em face de acórdão com a seguinte ementa (e-stj fl. 921):
Apelação cível. Ação anulatória. Agravo retido. Não conhecimento. Recurso.
Negativa de seguimento. Hipóteses. Não caracterização. Acordo. Compromisso
arbitral. Nulidade. Competência do Poder Judiciário. Sentença cassada. Não se
conhece o agravo retido interposto pela parte se não existe, em sede de apelação
ou contrarrazões, pedido expresso de sua apreciação. O recurso de apelação
deve ser admitido quando as alegações da parte são suficientes à demonstração
do interesse pela reforma do julgado. “Cabe ao Poder Judiciário decidir sobre
nulidade de cláusula compromissória fundada em vício de consentimento”.
V.v. A sentença de mérito demanda, pela sua natureza e forma, meios próprios
de rescisão ou anulação de seu conteúdo e não pode expor-se, depois de
transitada em julgado, a demanda anulatória de ato jurídico cumulada com
indenização.
386
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Seguiram-se-lhe embargos de declaração, rejeitados.
Colhe-se dos autos que a recorrida, Ana Maria da Costa Pereira, ajuizou
ação visando à anulação de cláusula de arbitragem, cumulada com outros
pedidos.
A sentença extinguiu o processo sem resolução de mérito, nos termos do
artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, ao fundamento de que o pedido
anulatório há de ser apreciado no juízo arbitral, haja vista a existência da referida
cláusula de arbitragem homologada judicialmente.
Assim consignou o Tribunal Estadual, à e-stj fl. 923:
Trata-se de apelação interposta à sentença que, nos autos da “ação anulatória
de ato jurídico, cumulada com indenização e com medida cautelar de bloqueio
de honorários periciais”, movida por Ana Maria da Costa Pereira em face de
Samarco Mineração S/A, julgou extinto o processo sem resolução do mérito,
por entender que a existência de compromisso arbitral afasta a competência da
Justiça Estadual para o exame das pretensões, inclusive aquela correspondente à
anulação do compromisso arbitral.
A Corte mineira, todavia, cassou a sentença, determinando-se a apreciação
do mérito.
Afirmou o acórdão local “que foi celebrado acordo em medida cautelar
de Produção Antecipada de Provas, homologado em audiência perante o Juízo
de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Ponte Nova, no qual se instituiu a
cláusula compromissória de arbitragem” (e-stj fl. 933).
Entendeu, contudo, o Tribunal de origem que, “a despeito da existência
de cláusula compromissória em negócio jurídico homologado judicialmente,
a ação de origem veicula pretensão de sua anulação com fundamento em
vício de consentimento, o que devolve ao Poder Judiciário o monopólio da
jurisdição, afastada a incidência do artigo 267, inciso VII do CPC” (e-stj fl.
933). Isso porque “o suposto vício da referida cláusula precede à instauração do
juízo arbitral” (e-stj fl. 935), a par de que “a própria sentença do Juízo Arbitral
está sujeita ao crivo do Poder Judiciário, quando questionada a validade do
compromisso, a teor do disposto nos arts. 32, I e 33 da Lei n. 9.307/1996 (...)”.
Concluiu, assim, que “se a parte interessada pode pleitear a nulidade da
sentença arbitral sob a alegação de nulidade do compromisso, nada obsta que
desde logo peça que este seja anulado” (e-stj fl. 936).
O acórdão deu provimento à apelação por maioria, vencido o revisor, que
mantinha a sentença, daí o recurso especial, no qual se sustenta omissão pelo
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
387
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Tribunal local, violação à coisa julgada e competência do juízo arbitral para
decidir a questão acerca da validade da cláusula de arbitragem.
A recorrida apresentou contrarrazões, nas quais alega o cabimento de
embargos infringentes, de modo que instância ordinária não estaria esgotada,
requerendo que não se conheça do recurso especial.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): Com razão o recorrente.
De início, afasta-se a alegação de que a instância ordinária não foi exaurida.
Isso porque não houve apreciação de mérito pela sentença e nem pelo acórdão
estadual, que se limitou ao juízo de cassação, o qual antecede, como se sabe,
ao de reforma, determinando-se o prosseguimento do processo na primeira
instância.
Nesse caso, ainda que por maioria o julgamento proferido pelo Tribunal
de segundo grau, são incabíveis embargos infringentes. Para exame, mutatis
mutandis:
Processual Civil. Violação do art. 530 do CPC. Acórdão que, por maioria, anula
sentença. Não cabimento dos embargos infringentes.
1. O art. 530 do CPC dispõe que “cabem embargos infringentes quando o
acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de
mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória”.
2. Portanto, para o cabimento dos embargos infringentes, deve haver uma
reforma da sentença de mérito. O juízo de reforma, mediante um julgamento em
que se reconhece um error in judicando, não se confunde com o juízo de anulação,
em que há a constatação de error in procedendo.
3. O juízo de anulação jamais poderia levar à reforma da sentença, pois,
em razão dele, esta deixaria de existir. Não há a substituição da sentença pelo
acórdão, mas simplesmente a decretação da sua inexistência jurídica em razão da
nulidade processual.
4. Assim, quando a lei condiciona a interposição dos embargos infringentes à
reforma da sentença de mérito, não inclui a situação na qual o acórdão exerce um
juízo de anulação, ainda que proferido em processo de execução.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp n. 1.296.769-AL, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda
Turma, julgado em 13.11.2012, DJe 20.11.2012).
388
Jurisprudência da QUARTA TURMA
No mérito, a mesma sorte lhe assiste.
Esta Corte Superior, por meio das Turmas que compõem a Segunda Seção,
tem sufragado a tese de que quando pactuada cláusula compromissória cheia, ou
seja, ao menos com a eleição do órgão arbitral, cabe ao juízo arbitral o exame de
eventual vício da cláusula de arbitragem ou compromisso arbitral.
Assim, é prematuro o ajuizamento de ação anulatória antes que o juízo
arbitral instituído livremente pelas partes, ao menos em princípio, analise suas
alegações, haja vista que, nos termos do artigo 8º, parágrafo único, 20, 32 e 33,
da Lei n. 9.307/2006, cabe ao árbitro decidir acerca da existência, validade e
eficácia do compromisso arbitral ou da cláusula compromissória. Para exame:
Processo Civil. Convenção arbitral. Violação ao art. 535 do CPC não configurada.
Análise da validade de cláusula compromissória “cheia”. Competência exclusiva
do juízo convencional na fase inicial do procedimento arbitral. Possibilidade de
exame pelo judiciário somente após a sentença arbitral.
1. Não ocorre violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil quando o
Juízo, embora de forma sucinta, aprecia fundamentadamente todas as questões
relevantes ao deslinde do feito, apenas adotando fundamentos divergentes da
pretensão do recorrente. Precedentes.
2. A cláusula compromissória “cheia”, ou seja, aquela que contém, como
elemento mínimo a eleição do órgão convencional de solução de conflitos, tem
o condão de afastar a competência estatal para apreciar a questão relativa à
validade da cláusula arbitral na fase inicial do procedimento (parágrafo único do
art. 8º, c.c. o art. 20 da LArb).
3. De fato, é certa a coexistência das competências dos juízos arbitral e togado
relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia
da convenção de arbitragem. Em verdade - excluindo-se a hipótese de cláusula
compromissória patológica (“em branco”) -, o que se nota é uma alternância de
competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos
procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário
é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral, nos termos dos arts.
32, I e 33 da Lei de Arbitragem.
4. No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da Câmara de Arbitragem
Empresarial Brasil (Camarb) como tribunal arbitral para dirimir as questões
oriundas do acordo celebrado, o que aponta forçosamente para a competência
exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral,
impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito,
consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso.
Precedentes da Terceira Turma do STJ.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
389
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
5. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.278.852-MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 21.5.2013, DJe 19.6.2013).
Direito Civil e Processual Civil. Arbitragem. Acordo optando pela arbitragem
homologado em juízo. Pretensão anulatória. Competência do juízo arbitral.
Inadmissibilidade da judicialização prematura.
1. - Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem a alegação
de nulidade da cláusula arbitral instituída em Acordo Judicial homologado e,
bem assim, do contrato que a contém, deve ser submetida, em primeiro lugar,
à decisão do próprio árbitro, inadmissível a judicialização prematura pela via
oblíqua do retorno ao Juízo.
2. - Mesmo no caso de o acordo de vontades no qual estabelecida a cláusula
arbitral no caso de haver sido homologado judicialmente, não se admite
prematura ação anulatória diretamente perante o Poder Judiciário, devendo ser
preservada a solução arbitral, sob pena de se abrir caminho para a frustração do
instrumento alternativo de solução da controvérsia.
3. - Extingue-se, sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VII), ação que visa
anular acordo de solução de controvérsias via arbitragem, preservando-se a
jurisdição arbitral consensual para o julgamento das controvérsias entre as partes,
ante a opção das partes pela forma alternativa de jurisdição.
4. - Recurso Especial provido e sentença que julgou extinto o processo judicial
restabelecida.
(REsp n. 1.302.900-MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em
9.10.2012, DJe 16.10.2012).
No caso em exame, a cláusula compromissória, estabelecida em acordo
homologado em juízo, elegeu a Câmara Arbitral Empresarial - Brasil - Camarb,
com foro em Belo Horizonte, para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias
decorrentes dos fatos em questão (implantação do mineroduto).
Não questiona a recorrida haver celebrado o acordo no qual contida a
cláusula. Igualmente não há dúvidas acerca de sua capacidade civil. Conforme
ressaltado pela sentença, a cláusula compromissória é formalmente válida, consta
de acordo escrito, celebrado por partes maiores e capazes, acerca de direitos
disponíveis, e foi, inclusive, homologada em audiência (Lei n. 9.307/1996, arts.
1º e 2º).
Trata-se de “cláusula cheia”, de forma que correta a extinção do processo
judicial sem exame do mérito (CPC, art. 267, VII). As questões referentes
ao alegado vício de consentimento deverão ser apreciadas pelo juízo arbitral,
390
Jurisprudência da QUARTA TURMA
restando à parte interessada a possibilidade de impugnação da respectiva decisão
final nas hipóteses previstas no art. 33 da Lei n. 9.307/1996.
Em face do exposto, conheço e dou provimento ao recurso especial para
restabelecer a sentença, que extinguira o processo sem exame de mérito.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.334.097-RJ (2012/0144910-7)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Recorrente: Globo Comunicações e Participações S/A
Advogados: José Perdiz de Jesus e outro(s)
João Carlos Miranda Garcia de Sousa e outro(s)
Recorrido: Jurandir Gomes de França
Advogado: Pedro D’alcântara Miranda Filho e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de
imprensa vs. Direitos da personalidade. Litígio de solução transversal.
Competência do Superior Tribunal de Justiça. Documentário exibido
em rede nacional. Linha Direta-Justiça. Sequência de homicídios
conhecida como Chacina da Candelária. Reportagem que reacende
o tema treze anos depois do fato. Veiculação inconsentida de nome
e imagem de indiciado nos crimes. Absolvição posterior por negativa
de autoria. Direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram
pena e dos absolvidos. Acolhimento. Decorrência da proteção legal
e constitucional da dignidade da pessoa humana e das limitações
positivadas à atividade informativa. Presunção legal e constitucional
de ressocialização da pessoa. Ponderação de valores. Precedentes de
direito comparado.
1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em
demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
391
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente,
ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de
ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões
essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal
Federal.
2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência
de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu
antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança
da sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do
seu direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra
sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de
natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente,
fora inocentado.
3. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação
do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o
mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto
para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por
exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações
e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas
sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
4. Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a
progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas
do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo
que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os
“riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados
da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também
o inverso], e sua gradual mas incessante transformação numa espécie
de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN,
Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013,
pp. 111-113). Diante dessas preocupantes constatações, o momento é
de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos
direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.
5. Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade
de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda
392
Jurisprudência da QUARTA TURMA
se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza
contínua e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade,
é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de
otimização a partir do qual nada se terá a agregar. Esse processo
interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo, nem as
instituições democráticas -, encontra na imprensa livre um vital
combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima
cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente
consigo reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade
democrática.
6. Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo
qual passou a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de
sua inegável virtude histórica, a mídia do século XXI deve fincar a
legitimação de sua liberdade em valores atuais, próprios e decorrentes
diretamente da importância e nobreza da atividade. Os antigos
fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não se possa
esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa
desprendida de regras e princípios a todos impostos.
7. Assim, a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir
de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro,
de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana
quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela
constitucional de ambos os valores.
8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade
de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade,
honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista
no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988,
parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de
especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção
constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora
o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades
do caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o
fato de que, a despeito de a informação livre de censura ter sido
inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso
IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no
momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III),
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
393
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um
fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados
os demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11,
20 e 21 do Código Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana,
base da teoria da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o ser
humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas”.
9. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio
imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos
e personagens capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos,
sociais ou culturais de determinada época. Todavia, a historicidade da
notícia jornalística, em se tratando de jornalismo policial, há de ser
vista com cautela. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos;
mas também há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente
históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um
populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões, que
simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido”
vs. “cidadão de bem”.
10. É que a historicidade de determinados crimes por vezes é
edificada à custa de vários desvios de legalidade, por isso não deve
constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos
como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla
e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados
indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato –
pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana,
simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por
isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode
significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do
passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos
e injustos, seja da exploração populista da mídia.
11. É evidente o legítimo interesse público em que seja dada
publicidade da resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante,
é imperioso também ressaltar que o interesse público – além de ser
conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do
público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração
pública, praceamento da pessoa humana, condenação sumária e
vingança continuada.
394
Jurisprudência da QUARTA TURMA
12. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa
a aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com
base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais
e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do
direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia
lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não
tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões
em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é
exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrandose ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. Precedentes de
direito comparado.
13. Nesse passo, o Direito estabiliza o passado e confere
previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos:
prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito
ao direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, prazo máximo
para que o nome de inadimplentes figure em cadastros restritivos
de crédito, reabilitação penal e o direito ao sigilo quanto à folha de
antecedentes daqueles que já cumpriram pena (art. 93 do Código
Penal, art. 748 do Código de Processo Penal e art. 202 da Lei de
Execuções Penais). Doutrina e precedentes.
14. Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao
sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros
da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores
razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse
estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.
15. Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso
contrário nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-seiam nos domínios da responsabilidade civil. E esse interesse público,
que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo
penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta
estatal que será dada ao fato. Se é assim, o interesse público que
orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que
também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual,
certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou
com a absolvição, ambas consumadas irreversivelmente. E é nesse
interregno temporal que se perfaz também a vida útil da informação
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
395
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
criminal, ou seja, enquanto durar a causa que a legitimava. Após essa
vida útil da informação seu uso só pode ambicionar, ou um interesse
histórico, ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a
perpetuar no tempo as misérias humanas.
16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento
dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo,
dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma
evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento
jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o
passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente
–, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao
esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade,
como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção
legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos
genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em
concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem
do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer
impraticável.
18. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária
ter se tornado – com muita razão – um fato histórico, que expôs as
chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção
estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em
situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada
e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor
precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de
imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se
ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores
que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.
19. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido
que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade
do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender
a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não
teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do
nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda
396
Jurisprudência da QUARTA TURMA
ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado,
uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do
crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida
“vergonha” nacional à parte.
20. Condenação mantida em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais),
por não se mostrar exorbitante.
21. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial,
nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo
Filho, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator
DJe 10.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Jurandir Gomes de França
ajuizou ação de reparação de danos morais em face da TV Globo Ltda. (Globo
Comunicações e Participações S.A.).
Informou o autor ter sido indiciado como coautor/partícipe da sequência
de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro,
conhecidos como Chacina da Candelária, mas que, ao final, submetido a Júri, foi
absolvido por negativa de autoria pela unanimidade dos membros do Conselho
de Sentença.
Noticiou que a ré o procurou com o intuito de entevistá-lo em programa
televisivo (Linha Direta - Justiça) - posteriormente veiculado -, tendo sido
recusada a realização da referida entrevista e mencionado o desinteresse do autor
em ter sua imagem apresentada em rede nacional. Porém, em junho de 2006, foi
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
397
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ao ar o programa, tendo sido o autor apontado como um dos envolvidos na
chacina, mas que fora absolvido.
Segundo entende, levou-se a público situação que já havia superado,
reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio
social, ferindo, assim, seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal, com
prejuízos diretos também a seus familiares. Alega que essa situação o prejudicou
sobremaneira em sua vida profissional, não tendo mais conseguido emprego,
além de ter sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e abandonar a
comunidade para não ser morto por “justiceiros” e traficantes e também para
proteger a segurança de seus familiares.
Por entender que a exposição de sua imagem e nome no mencionado
programa foi ilícita e causou-lhe intenso abalo moral, pleiteou o autor
indenização no valor de 300 (trezentos) salários mínimos.
O Juízo de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ, sopesando,
de um lado, o interesse público da notícia acerca de “evento traumático da
história nacional” e que repercutiu “de forma desastrosa na imagem do país
junto à comunidade internacional”, e, de outro, o “direito ao anonimato e
ao esquecimento” do autor, entendeu por bem mitigar o segundo, julgando
improcedente o pedido indenizatório (fls. 130-137).
Em grau de apelação, a sentença foi reformada, por maioria, nos termos da
seguinte ementa:
Apelação. Autor que, acusado de envolvimento na Chacina da Candelária, vem
a ser absolvido pelo Tribunal do Júri por unanimidade. Posterior veiculação do
episódio, contra sua vontade expressa, no programa Linha Direta, que declinou
seu nome verdadeiro e reacendeu na comunidade em que vivia o autor o
interesse e a desconfiança de todos. Conflito de valores constitucionais. Direito
de Informar e Direito de Ser Esquecido, derivado da dignidade da pessoa humana,
prevista no art.1º, III, da Constituição Federal.
I - O dever de informar, consagrado no art. 220 da Carta de 1988, faz-se no
interesse do cidadão e do país, em particular para a formação da identidade
cultural deste último.
II - Constituindo os episódios históricos patrimônio de um povo, reconhece-se
à imprensa o direito/dever de recontá-los indefinidamente, bem como rediscutilos, em diálogo com a sociedade civil.
III - Do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, e do direito
que tem todo cidadão de alcançar a felicidade, restringe-se a informação,
contudo, no que toca àqueles que, antes anônimos, foram absolvidos em
processos criminais e retornaram ao esquecimento.
398
Jurisprudência da QUARTA TURMA
IV - Por isto, se o autor, antes réu, viu-se envolvido em caráter meramente
lateral e acessório, em processo do qual foi absolvido, e se após este voltou ao
anonimato, e ainda sendo possível contar a estória da Chacina da Candelária
sem a menção de seu nome, constitui abuso do direito de informar e violação
da imagem do cidadão a edição de programa jornalístico contra a vontade
expressamente manifestada de quem deseja prosseguir no esquecimento.
V - Precedentes dos tribunais estrangeiros. Recurso ao qual se dá provimento
para condenar a ré ao pagamento de R$ 50.000,00 a título de indenização (fls.
195-196).
Opostos embargos infringentes, também por maioria, foram eles rejeitados
nos termos da seguinte ementa:
Embargos infringentes. Indenizatória. Matéria televisivo-jornalística: “chacina
da Candelária”. Pessoa acusada de participação no hediondo crime e, alfim,
inocentada. Uso inconsentido de sua imagem e nome. Conflito aparente entre
princípios fundamentais de Direito: Informação “vs” Vida Privada, Intimidade e
Imagem. Direito ao esquecimento e direito de ser deixado em paz: sua aplicação.
Proteção da identidade e imagem de pessoa não-pública. Dados dispensáveis
à boa qualidade jornalística da reportagem. Dano moral e dano à imagem:
distinção e autonomia relativa. Indenização. Quantificação: critérios.
1. Trata-se de ação indenizatória por dano moral e à imagem, fundada não
em publicação caluniosa ou imprecisa, mas no só revolver de fatos pretéritos
que impactaram drasticamente a esfera da vida privada do autor - acusado que
fora, injustamente, de participação na autoria de crime de inglória lembrança, a
“chacina da Candelária”.
Por isto mesmo, não aproveita à ré a alegação de cuidado com a verdade dos
fatos e sua não distorção - alegação que, conquanto veraz, não guarda relação
com a causa de pedir.
2. Conquanto inegável seja o interesse público na discussão aberta de fatos
históricos pertencentes à memória coletiva, e de todos os pormenores a ele
relacionados, é por outro lado contestável a necessidade de revelarem-se nome
completo e imagem de pessoa envolvida, involuntariamente, em episódio
tão funesto, se esses dados já não mais constituem novidade jornalística nem
acrescem substância ao teor da matéria vocacionada a revisitar fatos ocorridos há
mais de década.
Não é leviano asseverar que, atendido fosse o clamor do autor de não
ter revelados o nome e a imagem, o distinto público não estaria menos bem
informado sobre a Chacina da Candelária e o desarranjado inquérito policial que
lhe sucedeu, formando uma vergonha nacional à parte.
3. Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para solver conflito (aparente)
de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a proteger o interesse
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
399
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
privado do veículo de comunicação voltado ao lucro, e o interesse público dos
destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da intimida- de, da imagem e da
vida privada.
A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um pseudônimo
(como se faz, em observância a nosso ordenamento, para proteção de menores
infratores) consistiria em sacrifício mínimo à liberdade de expressão, em favor de
um outro direito fundamental que, no caso concreto, merecia maior atenção e
preponderância.
4. Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem assim
do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram a doutrina e a
jurisprudência de diversos países, como uma sua derivação, o chamado “direito
ao esquecimento”, também chamado pelos norte-amercianos de “direito de ser
deixado em paz”.
Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez- se a bem da
ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados ou
em vias de o serem.
Se o direito ao esquecimento beneficia os que já pagaram por crimes que de
fato cometeram, com maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes,
involuntariamente tragados por um furacão de eventos nefastos para sua vida
pessoal, e que não se convém revolver depois que, com esforço, a vítima logra
reconstruir sua vida.
5. Analisado como sistema que é, nosso ordenamento jurídico, que protege
o direito de ressocialização do apenado (art. 748 do CPP) e o direito do menor
infrator (arts. 17 e 18 do ECA), decerto protegerá também, por analogia, a vida
privada do inocente injustamente acusado pelo Estado.
6. O direito de imagem não se confunde com o direito à honra: para a violação
daquele, basta o uso inconsentido da imagem, pouco importando se associada
ou não a um conteúdo que a denigra.
Não sendo o autor pessoa pública, porque a revelação de sua imagem já não
traz novidade jornalística alguma (pois longínqua a data dos fatos), o uso de sua
imagem, a despeito da expressa resistência do titular, constitui violação de direito
a todos oponível, violação essa que difere da ofensa moral (CF. art. 5º, V, da CF).
7. Tomando em linha de conta a centralidade do princípio da dignidade da
pessoa humana, a severidade dos danos decorrentes da exibição do programa
televisivo na vida privada do autor (relançado na persona de “suspeito” entre
as pessoas de sua convivência comunal), e o conteúdo punitivo-pedagógico
do instituto da indenização por dano moral, a verba aparentemente exagerada
de R$ 50.000,00 se torna adequada - tanto mais em se tratando do veículo de
comunicação de maior audiência e, talvez, de maior porte econômico.
Desprovimento do recurso (fls. 297-299).
400
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Opostos embargos de declaração (fls. 315-320), foram eles rejeitado (fls.
323-326).
Sobrevieram, assim, recursos especial e extraordinário.
O recurso especial está apoiado na alínea a do permissivo constitucional,
no qual se alegou ofensa aos artigos 333, inciso I, e 535 do Código de Processo
Civil e artigos 186, 188, inciso I, 927 e 944 do Código Civil.
Sustenta a recorrente, Globo Comunicações e Participações S.A., inexistir
dever de indenizar por ausência de ilicitude, uma vez que a ideia do programa
Linha Direta Justiça é absolutamente comum no Brasil e no exterior e que
incontáveis vezes veículos de comunicação divulgaram programas jornalísticos
sobre casos criminais célebres (livros, jornais, revistas, rádio, cinema e televisão se
dedicam rotineiramente a publicar matérias sobre crimes de grande repercussão
no passado).
Aduz, por outro lado, não ter havido nenhuma invasão à privacidade/
intimidade do autor, porque os fatos noticiados já eram públicos e fartamente
discutidos na sociedade, fazendo parte do acervo histórico do povo. Argumenta
que se tratou de programa jornalístico, sob forma de documentário, acerca de
acontecimento de relevante interesse público, tendo a emissora se limitado a
narrar os fatos tais como ocorridos, sem dirigir nenhuma ofensa à pessoa do
autor, ao contrário, deixando claro que teria sido inocentado.
Assim, mostrar-se-ia incabível o acolhimento de “um direito ao esquecimento
ou o direito de ser deixado em paz”, que sobrepujaria o direito de informar da
recorrente.
Informa também que não seria possível retratar a trágica história dos
homicídios da Candelária sem mencionar o recorrido, porque se tornou,
infelizmente, uma peça chave do episódio e do conturbado inquérito policial.
Assim, a ocultação do recorrido ou dos demais inocentados pelo crime “seria
o mesmo que deixar o programa jornalístico sem qualquer lógica, pois um dos
mais relevantes aspectos que envolveram o crime foi justamente a conturbada e
incompetente investigação promovida pela policia” (fl. 343).
Nesse passo, sintetiza a recorrente que “o simples fato da pessoa se
relacionar com a notícia ou fato histórico de interesse coletivo já é suficiente
para mitigar seu direito à intimidade, tornando lícita a divulgação de seu nome e
de sua imagem independentemente de autorização”.
Pleiteia, subsidiariamente, o reconhecimento de inexistência de dano
moral ou a exorbitância da indenização.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
401
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na origem, negou-se seguimento aos recursos especial e extraordinário (fls.
444-460) em decisão contra a qual foram opostos agravos para o STJ e para o
STF (fl. 462).
Os autos ascenderam a esta Corte por força de decisão proferida no Ag. n.
1.306.644-RS, ao qual dei provimento para melhor exame da matéria (fl. 519).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Em termos de
conhecimento deste recurso especial, uma observação inicial se impõe.
É inegável que o conflito aparente entre a liberdade de expressão/
informação, ora materializada na liberdade de imprensa, e atributos individuais
da pessoa humana - como intimidade, privacidade e honra - possui estatura
constitucional (art. 5º, incisos IV, V, IX, X e XIV, arts. 220 e 221 da Constituição
Federal), não sendo raras as decisões apoiadas predominantemente no cotejo
hermenêutico entre os valores constitucionais em confronto.
Porém, em contrapartida, é de alçada legal a exata delimitação dos
valores que podem ser, eventualmente, violados nesse conflito, como a honra,
a privacidade e a intimidade da pessoa, o que, em última análise, atribui à
jurisdição infraconstitucional a incumbência de aferição da ilicitude de condutas
potencialmente danosas e, de resto, da extensão do dano delas resultante.
Forma-se, a partir daí, um cenário perigoso ao jurisdicionado, que, em não
raras vezes, tem subtraídas ambas as vias recursais, a do recurso especial e a do
recurso extraordinário.
Diversos precedentes há, nesta Corte Superior de Justiça, a afirmar que
a celeuma instalada entre a alegação de dano moral e a liberdade de imprensa
resolve-se pela via do recurso extraordinário, ora negando o especial interposto,
ora exigindo a interposição de recurso extraordinário simultâneo, por força da
Súmula n. 126-STJ.
Nesse sentido, entre muitos outros, são os seguintes precedentes, nos
quais se afirmou ser de índole parcial ou totalmente constitucional controvérsia
análoga à que ora se analisa: AgRg no Ag n. 1.340.505-SP, Rel. Ministro
Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10.4.2012; REsp n. 1.001.923PB, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13.3.2012;
402
Jurisprudência da QUARTA TURMA
AgRg no Ag n. 1.185.400-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma,
julgado em 19.5.2011; AgRg no REsp n. 1.125.127-RJ, Rel. Ministro João
Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.5.2011.
Não obstante, quando a controvérsia chega ao Supremo Tribunal Federal
não se conhece do recurso extraordinário interposto, quase sempre por se
entender que a celeuma instalou-se no âmbito infraconstitucional e a violação à
Constituição Federal, se existente, seria reflexa. Nesse sentido, apenas a título de
exemplos, confiram-se os seguintes precedentes: AI n. 685.054 AgR, Relator(a):
Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 21.8.2012; AI n. 763.284
AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12.6.2012; RE
n. 597.962 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado
em 27.3.2012; AI n. 766.309 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda
Turma, julgado em 10.11.2009; Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado
em 16.9.2008; AI n. 631.548 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira
Turma, julgado em 6.4.2010.
Apenas para registro, o primeiro precedente acima citado corresponde,
no STJ, ao Ag. n. 1.394.533-DF, ao qual foi negado provimento por razões já
mencionadas. Por sua vez, o Ag. n. 851.325-RJ (referente ao conhecido caso
“Doca Street”), também foi negado no STJ por fundamentos análogos, por
entender que a controvérsia era exclusivamente constitucional, e, ascendendo
os autos ao STF, também não se conheceu do recurso (AI n. 679.343 AgR,
Relator(a): Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 11.12.2012).
Na verdade, a mesma controvérsia ocorre quando se analisam questões
alusivas, por exemplo, a direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito,
institutos todos regulados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Introdução
ao Código Civil (atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro LINDB).
É certo que há diversos precedentes do STJ entendendo que a matéria
contida no art. 6º da LINDB, relativa à preservação do ato jurídico perfeito, por
exemplo, tem natureza constitucional. E, ao reverso, o STF, de forma incisiva,
abraça entendimento de que a “alegação de ofensa aos princípios da legalidade,
prestação jurisdicional, direito adquirido, ato jurídico perfeito, limites da coisa
julgada, devido processo legal, contraditório e ampla defesa configura, quando
muito, ofensa meramente reflexa às normas constitucionais” (RE n. 563.816
AgR, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 26.10.2010).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
403
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Adota-se a doutrina segundo a qual constituem coisas diversas a proteção
constitucional de determinado princípio e o alcance normativo do seu
conteúdo. De fato, diversas vezes o Poder Constituinte, sem embargo de indicar
determinado valor como objeto de proteção constitucional, não aprofundou sua
definição conceitual ou seu alcance.
Nessa linha, é Rubens Limongi França quem delimita, de um lado, a
proteção constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa
julgada, e, de outro, o nítido contorno infraconstitucional adotado no sistema
brasileiro no que tange a esses valores:
A Constituição vigente determina simplesmente o respeito ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Não apresenta, como se
deu com a Lei de Introdução ao Código Civil, bem assim a Lei n. 3.238, de 1957,
uma definição de Direito Adquirido. De onde a questão: o conceito de Direito
Adquirido constitui matéria constitucional ou de caráter ordinário?
[...]
A previsão, no texto constitucional, que não existe, ainda que houvesse, não
traria como consequência o corolário de que de natura o assunto apresenta caráter
constitucional. Por outro lado, a realidade jurídica, à face das leis extravagantes e
do teor dos pronunciamentos dos nossos colégios judicantes, nos mostra que,
muito embora a Constituição tenha consagrado um instituto de bases assentadas
na consciência jurídica nacional, essas bases não são rígidas e absolutas, mas
sujeitas, em vários dos seus aspectos, a mutações e aprimoramentos.
Desse modo, formular na Constituição um conceito de Direito Adquirido
implicaria em subtrair-lhe muitas das suas possibilidades de progresso, tanto
através da Doutrina e da Jurisprudência, como da própria legislação extravagante
(FRANÇA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da
irretroatividade das leis e do direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1968, p. 403-404).
Na Corte Especial, questão análoga já foi enfrentada, recebendo tratamento
sintetizado na seguinte ementa (nas partes que interessam):
Processual Civil. Embargos de divergência. Dissenso interno a respeito da
interpretação de normas processuais que disciplinam o incidente de declaração
de inconstitucionalidade. CPC, arts. 480 a 482. Controle por recurso especial.
Cabimento.
[...]
2. A concretização das normas constitucionais depende, em muitos casos, da
intermediação do legislador ordinário, a quem compete prover o sistema com
404
Jurisprudência da QUARTA TURMA
indispensáveis preceitos complementares, regulamentares ou procedimentais.
Dessa pluralidade de fontes normativas resulta a significativa presença, em nosso
sistema, de matérias juridicamente miscigenadas, a ensejar (a) que as decisões
judiciais invoquem, simultaneamente, tanto as normas primárias superiores,
quanto as normas secundárias e derivadas e (b) que também nos recursos possa
ser alegada, de modo concomitante, ofensa a preceitos constitucionais e a
infraconstitucionais, tornando problemática a definição do recurso cabível para as
instâncias extraordinárias (STF e STJ).
[...]
4. [...] Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar
também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenômeno inafastável,
cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei federal
ao caso, admitindo o recurso especial.
5. Embargos de divergência conhecidos e providos.
(EREsp n. 547.653-RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado
em 15.12.2010, DJe 29.3.2011).
Com efeito, avulta a responsabilidade do Superior em demandas
cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente,
uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à
fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do
contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são
apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse passo, a partir dessa reflexão, penso que a jurisprudência do STJ deve
ser atualizada e harmonizada, principalmente porque:
a) com a Emenda Constitucional n. 45, o cenário tornou-se objetivamente
diverso daquele que antes circunscrevia a interposição de recursos especial e
extraordinário, pois, se anteriormente todos os fundamentos constitucionais que
serviram ao acórdãos eram impugnáveis - e deviam ser, nos termos da Súmula
n. 126-STJ - mediante recurso extraordinário, agora, somente as questões
que, efetivamente, ostentarem repercussão geral (art. 102, § 3º, da Constituição
Federal) é que podem ascender à Suprema Corte (art. 543-A, § 1º, do CPC);
b) no atual momento de desenvolvimento do direito é inconcebível a análise
encapsulada dos litígios, de forma estanque, como se os direitos civil, penal ou
processual pudessem ser “encaixotados” de modo a não sofrer ingerências do
direito constitucional.
Esta Turma já afirmou, no julgamento do REsp. n. 1.183.378-RS, que,
depois da publicização do direito privado, vive-se a chamada constitucionalização
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
405
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do direito civil, momento em que o foco transmudou-se definitivamente do
Código Civil para a própria Constituição Federal, de modo que os princípios
constitucionais alusivos a institutos típicos de direito privado (como
família e propriedade) passaram a condicionar a interpretação da legislação
infraconstitucional.
Na expressão certeira de Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa
humana assume dimensão transcendental e normativa, e a Constituição passa
a ser não somente “o documento maior do direito público, mas o centro de
todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade”
(BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2 ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60).
Nessa linha de evolução, penso que também por essa ótica deva ser
analisado o papel do Superior Tribunal de Justiça, notadamente das Turmas de
Direito Privado.
Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito
infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito
privado, não me parece possível a esta Corte de Justiça analisar as celeumas que
lhe aportam “de costas” para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao
jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior.
Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de
uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma
interpretação que não seja constitucionalmente aceita (REsp n. 1.183.378-RS,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25.10.2011);
e assim o fazendo, não se há falar também em usurpação de competência do
Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, já decidiu o STF não haver usurpação, pelo STJ,
no julgamento de demanda com “causa de pedir fundada em princípios
constitucionais genéricos, que encontram sua concreta realização nas normas
infraconstitucionais” (Rcl n. 2.252 AgR-ED, Relator(a): Min. Maurício Corrêa,
Tribunal Pleno, julgado em 18.3.2004).
Na mesma direção, afirmou-se na Suprema Corte que “o Superior
Tribunal de Justiça, ao negar seguimento ao recurso especial com fundamento
constitucional, exerc[e] o chamado controle difuso de constitucionalidade, que
é possibilitado a todos os órgãos judiciais indistintamente” (Rcl n. 8.163 AgR,
Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 3.11.2011).
406
Jurisprudência da QUARTA TURMA
No último precedente acima citado, o eminente Ministro Marco Aurélio
interveio aduzindo que, “ultrapassada a barreira de conhecimento do especial,
o Superior Tribunal de Justiça, como todo e qualquer órgão investido do
ofício judicante, exerce e deve exercer - não está compelido a aplicar uma lei
inconstitucional - o controle difuso de constitucionalidade”.
Nessa ordem de ideias, em artigo jurídico recém publicado, o eminente
Ministro Teori Albino Zavascki também lança novas luzes sobre a celeuma e
esquadrinha com clareza a possibilidade de jurisdição constitucional no âmbito
do recurso especial, sobretudo em questões interdisciplinares, com soluções
apoiadas transversalmente em diversos setores do direito, concluindo que,
no mais das vezes, as posições simplificadoras que afirmam, peremptoriamente,
ser competência exclusiva do STF o conhecimento de questões constitucionais
partem de uma má compreensão do sistema.
Nesse sentido, confiram-se as palavras de Sua Exa.:
Foi talvez a dificuldade de acomodação a essa nova sistemática, inédita em
nossa história, o fator determinante da acentuada tendência a estratificar, de
modo quase absoluto, a competência das duas Cortes Superiores, como se não
houvesse a abertura de vasos comunicantes entre as suas principais funções
institucionais.
Há certamente equívocos e exageros nessas posições estremadas,
notadamente se considerarmos o sentido amplo de que se reveste o conceito de
“guarda da Constituição” e, por consequência, o vasto domínio jurídico em que
atua a jurisdição constitucional. Realmente, a força normativa da Constituição a
todos vincula e a todos submete.
[...]
Pois bem: qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da
inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo
Poder Judiciário. Aí reside justamente a essência do que se denomina jurisdição
constitucional: é a atividade jurisdicional do Poder Judiciário na interpretação
e aplicação da Constituição. Nessa seara, não há dúvida que ao STF cabe,
precipuamente, a guarda da Constituição; todavia, também é certo que essa
não é atribuição exclusivamente sua. Pelo contrário, se nos tocasse apontar um
signo marcante e especial do Poder Judiciário brasileiro, esse certamente é o da
competência difusa atribuída a todos os seus órgãos e a todos os seus agentes
para, até mesmo de ofício, cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais,
anulando, se necessário, atos jurídicos, particulares ou administrativos, concretos
ou normativos, com elas incompatíveis. Em outras palavras: todos os órgãos
do Poder Judiciário estão investidos da jurisdição constitucional, não se podendo
imaginar que tal atribuição seja estranha ao plexo de competência de um dos
principais tribunais da Federação, que é o STJ.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
407
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
[...]
Não parece equivocado, de qualquer modo, o alvitre segundo o qual o
controle de constitucionalidade de normas é uma função subutilizada no STJ,
o que se explica, em alguma medida, pelo desconhecimento de seu manejo e
das suas virtualidades, mas, sobretudo, porque, não sendo uma de suas funções
típicas, o Tribunal prefere devolver o julgamento da matéria constitucional às
instâncias ordinárias, a exemplo do que faz com as questões de fato e de prova,
em hipóteses em que é indispensável um novo julgamento da causa.
[...]
É preciso anotar, todavia, que as estatísticas registram apenas os incidentes de
inconstitucionalidade efetivamente instaurados e levados à apreciação da Corte
Especial, em observância à norma do art. 97 da CF (LGL 1988\3) (princípio da
reserva de plenário). Ora, essa é uma - talvez a menos significativa - das várias faces
com que se apresenta a jurisdição constitucional do Tribunal. Referidos incidentes,
com efeito, somente são instaurados nas limitadas situações em que um dos
órgãos fracionários, valendo-se da técnica da declaração de inconstitucionalidade
com redução de texto, faz juízo positivo de ilegitimidade da norma; não, porém,
quando faz juízo negativo, hipótese em que a apreciação da questão se esgota
no âmbito do próprio órgão fracionário, dispensada a observância da reserva
de plenário. E certamente há jurisdição constitucional também nessa segunda
hipótese. O incidente é dispensado, ademais, quando há precedente do STF ou
da própria Corte Especial a respeito da questão constitucional (art. 481, parágrafo
único, CPC (LGL 1973\5)).
[...]
Se acrescentarmos a todas essas situações as muitas e muitas outras em
que as normas e princípios constitucionais são invocados na jurisprudência do STJ
como parâmetro para a adequada interpretação e aplicação das leis federais e dos
tratados, haveremos de concluir que, mesmo em julgamentos de recursos especiais,
é muito mais fecunda do que parece a jurisdição constitucional do STJ (ZAVASCKI,
Teori Albino. Jurisdição Constitucional do Superior Tribunal de Justiça. In. Revista de
Processo, v. 212, Set/2012. p. 13).
De fato, o que se veda é o conhecimento do recurso especial com base em
alegação de ofensa a dispositivo constitucional, não sendo defeso ao STJ - aliás,
é bastante aconselhável - que, admitido o recurso, aplique o direito à espécie,
buscando na própria Constituição Federal o fundamento para acolher ou
rejeitar a violação do direito infraconstitucional invocado ou para conferir à lei a
interpretação que melhor se ajusta ao texto constitucional.
Por exemplo, em demandas de responsabilidade civil, como no caso em
exame, o comando legal segundo o qual aquele que, por ato ilícito, causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo (art. 927 do CC/2002), somente é bem
408
Jurisprudência da QUARTA TURMA
aplicado se a aventada ilicitude for investigada em todo ordenamento jurídico,
no plano legal e constitucional.
No caso em apreço, o confronto entre liberdade de informação e os
direitos da personalidade, a par de transitar também pelos domínios do direito
constitucional, pode ser bem solucionado a partir da exegese dos arts. 11, 12, 17,
20 e 21, do Código Civil.
3. No mérito, afasto a alegação de ofensa ao art. 535 do Código de Processo
Civil, tendo em vista que o acórdão ora hostilizado enfrentou todas as questões
essenciais ao desate da controvérsia, não havendo ponto omisso, obscuro ou
contraditório apto a nulificá-lo.
Na verdade, tanto os acórdãos proferidos em grau de apelação e embargos
infringentes quanto a sentença ostentam fundamentações robustas, tendo sido
o delicado tema ora em exame enfrentado com bastante esmero e profundidade
em todas as instâncias - embora com soluções opostas -, um sinal de que o
Poder Judiciário, a despeito da avalanche de processos que o soterra, mostra-se
sensível a demandas paradigmáticas como a presente.
4. Nesse passo - e já avançando para a questão de fundo -, a controvérsia
ora instalada nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito de valores e
direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento jurídico, mas
que as transformações sociais, culturais e tecnológicas encarregaram-se de lhe
atribuir também uma nova feição, confirmando a máxima segundo a qual o ser
humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito
legislado.
Neste campo, o Judiciário foi instado a resolver os conflitos por demais
recorrentes entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos inerentes
à personalidade, ambos de estatura constitucional.
Na verdade, o mencionado conflito é mesmo imanente à própria opção
constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais, em
última análise, representam, de um lado, o legítimo interesse de “querer ocultarse” e, de outro, o também legítimo interesse de se “fazer revelar”.
Diversos precedentes deste Superior Tribunal de Justiça analisaram casos
de confronto entre publicações jornalísticas e alegadas ofensas aos direitos da
personalidade. As soluções conferidas, nesses casos, quase sempre estiveram
inseridas em um contexto de ilicitude da publicação - em razão de conteúdo
difamatório ou inverídico - e em um cenário de contemporaneidade da notícia.
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409
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Bem por isso esta Quarta Turma, analisando os contornos de eventual
ilicitude de matérias jornalísticas, abraçou a tese segundo a qual a liberdade
de imprensa, por não ser absoluta, encontra algumas limitações, como: “(I)
o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos
chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à
honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de
crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus
injuriandi vel diffamandi)” (REsp n. 801.109-DF, Rel. Ministro Raul Araújo,
Quarta Turma, julgado em 12.6.2012).
Por outro enfoque, assinalando o traço da contemporaneidade que, de regra,
marca a atividade jornalística, no REsp n. 680.794-PR, de minha relatoria, desta
Turma, julgado em 17.6.2010, afirmei que, embora não se permitam leviandades
por parte do jornalista, também não são exigidas verdades absolutas, provadas
previamente em sede de investigações no âmbito administrativo, policial ou
judicial. Exige-se - como assinalado no voto condutor do citado precedente
-, com a rapidez e velocidade possíveis, uma diligência séria que vai além de
meros rumores, razão por que reafirmei também o dito popular segundo o qual
“informação velha não vira notícia”, adágio que a história, nos presentes autos,
parece estar a desmentir.
Agora, uma vez mais, o conflito entre liberdade de informação e direitos
da personalidade ganha a tônica da modernidade, analisado por outro prisma,
desafiando o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, ancorada
na informação massificada que, diariamente, se choca com a invocação de novos
direitos, hauridos que sejam dos já conhecidos direitos à honra, à privacidade
e à intimidade, todos eles, por sua vez, resultantes da proteção constitucional
conferida à dignidade da pessoa humana.
Nos presentes autos, o cerne da controvérsia transita exatamente na
ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo
o entendimento do autor, reabriu antigas feridas já superadas e reacendeu a
desconfiança da sociedade quanto à sua índole, circunstância que lhe teria
causado abalo cuja reparação ora se pleiteia.
O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um direito
de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a
fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que,
posteriormente, fora inocentado.
5. A tese do direito ao esquecimento ganha força na doutrina jurídica
brasileira e estrangeira, tendo sido aprovado, recentemente, o Enunciado n. 531
410
Jurisprudência da QUARTA TURMA
na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF-STJ, cujo teor e justificativa
ora se transcrevem:
Enunciado n. 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da
informação inclui o direito ao esquecimento.
Artigo: 11 do Código Civil
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação
vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem
histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante
do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de
apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade
de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e
a finalidade com que são lembrados.
5.1. Cabe desde logo separar o joio do trigo e assentar uma advertência.
A ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade - mas
também se torna mais complexa - quando aplicada à internet, ambiente que,
por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações
honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado, sendo desnecessário lembrar
o alcance potencializado de divulgação próprio desse cyberespaço. Até agora, temse mostrado inerente à internet - mas não exclusivamente a ela - a existência de
um “resíduo informacional” que supera a contemporaneidade da notícia e, por
vezes, pode ser, no mínimo, desconfortante àquele que é noticiado.
Em razão da relevância supranacional do tema, os limites e possibilidades
do tratamento e da preservação de dados pessoais estão na pauta dos mais
atuais debates internacionais acerca da necessidade de regulação do tráfego
informacional, levantando-se, também no âmbito do direito comparado, o
conflituoso encontro entre o direito de publicação - que pode ser potencialmente
mais gravoso na internet - e o alcance da proteção internacional dos direitos
humanos.
A União Europeia, depois de mais de quinze anos da adoção da Diretiva
n. 46/1995/CE (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao
tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação), que foi seguida
pela Diretiva n. 2002/58/CE (concernente à privacidade e às comunicações
eletrônicas), acendeu, uma vez mais, o debate acerca da perenização de
informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de
seu uso - sobretudo na internet.
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A Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane
Reding, apresentou proposta de revisão das diretivas anteriores, para que se
contemple, expressamente, o direito ao esquecimento dos usuários de internet,
afirmando que “al modernizar la legislación, quiero clarificar específicamente que las
personas deben tener el derecho, y no sólo la posibilidad, de retirar su consentimiento
al procesamiento de datos [...]”, e que o primeiro pilar da reforma será el derecho
a ser olvidado: “un conjunto completo de reglas nuevas y existentes para afrontar
mejor los riesgos para la privacidad en Internet” (http://www.20minutos.es/
noticia/991340/0/derecho/olvido/facebook/. Acesso em 2 de maio de 2013).
Na mesma linha, em recente palestra proferida na Universidade de Nova
York, o alto executivo da Google Eric Schmidt afirmou que a internet precisa de
um botão de delete. Informações relativas ao passado distante de uma pessoa
podem assombrá-la para sempre, causando entraves, inclusive, em sua vida
profissional, como no exemplo dado na ocasião, de um jovem que cometeu um
crime em relação ao qual as informações seriam expurgadas de seu registro
na fase adulta, mas que o mencionado crime poderia permanecer on-line,
impedindo a pessoa de conseguir emprego.
“Na América” - afirmou Schimidt -, “há um senso de justiça que é
culturalmente válido para todos nós. A falta de um botão delete na internet é
um problema significativo. Há um momento em que o apagamento é uma coisa
certa” (Google’s Schmidt: The Internet needs a delete button. Google’s Executive
Chairman Eric Shmidt says mistakes people make when young can haut them
forever. (Disponível em: <http://news.cnet.com/8301-1023_3-57583022-93/
googles-schmidt-the-internet-needs-a-delete-button/>. Acesso em 10 de maio
de 2013).
Em maio de 2011, o espanhol El País, por intermédio da jornalista
Milagros Pérez Oliva, também publicou interessante reportagem acerca do
denominado derecho al olvido, retratando caso da ginasta Marta Bobo, noticiada
no ano de 1984, no mesmo El País, em uma matéria curta, mas categórica:
“Marta Bobo sufre anorexia”. A reportagem dava conta de que três atletas,
entre elas Marta Bobo, disputariam as medalhas de ginástica rítmica nos Jogos
Olímpicos, “pero Marta, con 29 kilos a sus 18 años, con anorexia diagnosticada,
se encuentra en Los Ángeles en contra de los consejos del psiquiatra. Su situación,
no ya anímica, sino física, ha podido ser peligrosa”. Agora, com 45 (quarenta
e cinco) anos, Marta Bobo convive com a mencionada notícia, que garante
ser falsa, em páginas da internet, que converte o passado em um presente
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contínuo. Tal circunstância, noticia Milágros Pérez, tem dado lugar a uma nova
demanda social - “el derecho al olvido” - que afeta a todos, em relação à qual
se espera que a União Européia se pronuncie (Disponível: http://elpais.com/
diario/2011/05/15/opinion/1305410404_850215.html. Acesso em 2 de maio
de 2013).
Com efeito, é atual e relevante o debate acerca do chamado direito ao
esquecimento, seja no Brasil, seja nos discursos estrangeiros, debate que, no
caso em exame, é simplificado por não se tratar de informações publicadas na
internet, cujo domínio do tráfego é evidentemente mais complicado e reclama
mesmo uma solução - legislativa ou judicial - específica.
Portanto, a seguir, analisa-se a possível adequação (ou inadequação)
do mencionado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo
debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que
desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade
de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o
que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
6. Grosso modo, entre outras assertivas contrárias à tese do direito ao
esquecimento, afirmam-se que: i) o acolhimento do chamado direito ao
esquecimento constitui atentado à liberdade de expressão e de imprensa; ii) o
direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa
perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento
afronta o direito à memória de toda a sociedade; iii) cogitar de um direito
ao esquecimento é sinal de que a privacidade é a censura do nosso tempo;
iv) o mencionado direito ao esquecimento colidiria com a própria ideia de
direitos, porque estes têm aptidão de regular a relação entre o indivíduo e a
sociedade, ao passo que aquele finge que essa relação não existe - um “delírio da
modernidade”; v) o direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer
registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história
social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público; vi) ou
uma coisa é, na sua essência, lícita ou é ilícita, não sendo possível que uma
informação lícita transforme-se em ilícita pela simples passagem do tempo; vii)
quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção
à intimidade e privacidade em benefício do interesse público e, ademais, uma
segunda publicação (a lembrança, que conflita com o esquecimento) nada
mais faz do que reafirmar um fato que já é de conhecimento público; viii) e,
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finalmente, que programas policiais relatando acontecimentos passados, como
crimes cruéis ou assassinos célebres, são e sempre foram absolutamente normais
no Brasil e no exterior, sendo inerentes à própria atividade jornalística.
7. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, unanimemente reconhecido
como um dos mais perspicazes pensadores do nosso tempo e preciso intérprete
dos sinais da modernidade - por ele nomeada de “modernidade líquida” -, lança
novas luzes acerca da atual configuração do antigo conflito entre os espaços
público e privado - entre a informação e a privacidade.
Com boa dose de desesperança, Bauman afirma que um dos danos colaterais
dessa “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão,
antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere
à vida humana”, tendo nascido uma inédita sociedade confessional, em que
espaços antes reservados à exploração de questões de interesses e preocupações
comuns são agora utilizados como “depositórios geradores dos segredos mais
secretos, aqueles a serem divulgados apenas a Deus ou a seus mensageiros e
plenipotenciários terrestres”:
Se você quer saber qual dos lados [das esferas pública e privada] está hoje
na ofensiva e qual está (tenaz ou tibiamente) tentando defender dos invasores
seus direitos herdados ou adquiridos, há coisas piores a fazer que meditar sobre
o profético pressentimento de Peter Ustinov (expresso em 1956): “Este é um país
livre, madame. Nós temos o direito de compartilhar a sua privacidade no espaço
público” (BAUMAN, Zygmunt. Privacidade, sigilo, intimidade, vínculos humanos - e
outras baixas colaterais da modernidade líquida. In. Danos colaterais: desigualdades
sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013, p. 110).
De fato, na atual sociedade da hiperinformação parecem evidentes os “riscos
terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura
da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual
mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à
diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 113).
Por outro lado, o antigo conflito entre o público e o privado ganha uma
nova roupagem na modernidade: a inundação do espaço público com questões
estritamente privadas decorre, a um só tempo, da expropriação da intimidade/
privacidade por terceiros, mas também da voluntária entrega desses bens à arena
pública. Constroem-se “amizades” em redes sociais em um dia, em número
superior ao que antes se construía em uma vida, e essa fragilidade de vínculos
humanos contribui para o processo erosivo da privacidade.
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa
da privacidade à arena pública, como uma nova mercadoria para o consumo da
coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes
um anônimo que pretende assim permanecer.
Essa tem sido uma importante - se não a mais importante - face do atual
processo de esgarçamento da intimidade e da privacidade, e o que estarrece é
perceber certo sentimento difuso de conformismo, quando se assiste a olhos nus
a perda de bens caros ao ser humano, conquistados não sem enorme esforço por
gerações passadas; sentimento difundido por inédita “filosofia tecnológica” do
tempo atual pautada na permissividade, para a qual ser devassado ou espionado
é, em alguma medida, tornar-se importante e popular, invertendo-se valores e
tornando a vida privada um prazer ilegítimo e excêntrico, seguro sinal de atraso
e de mediocridade.
Como bem observa Paulo José da Costa Júnior, dissertando acerca do
direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só (the right to be let alone):
Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso
presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de
investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas.
O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma
deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente,
na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade,
contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de
assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas (COSTA
JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 16-17).
Portanto, diante dessas preocupantes constatações acerca do talvez
inevitável - mas Admirável - Mundo Novo do hiperinformacionismo, o momento é
de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou
novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.
8. Outro aspecto a ser analisado é a aventada censura à liberdade de
imprensa.
No ponto, nunca é demais ressaltar o estreito e indissolúvel vínculo entre
a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda
se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua
e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para
sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do
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qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode
descurar - nem o povo nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa
livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima
cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo
reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática.
É sintomática, nesse sentido, a mensagem conjunta de Ban Ki-moon,
Secretário-Geral da ONU, e Irina Bokova, Diretora-Geral da Unesco, proferida
no dia 3 de maio de 2013 (Dia Mundial da Liberdade de Imprensa), dando
conta de que, nos últimos dez anos, mais de 600 (seiscentos) jornalistas foram
mortos, muitos em cobertura de situações não conflituosas, e que nove entre
dez casos de homicídios de jornalistas permanecem impunes, circunstância
que renova a preocupação com a liberdade de imprensa ainda na atualidade
(Íntegra da mensagem disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/
about-this-office/single-view/news/joint_message_ununesco_on_the_ocasion_
of_world_press_freedom_day_2013/, acesso em 10.3.2013).
Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou
a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude
histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em
valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da
atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não
se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa
desprendida de regras e princípios a todos impostos.
O novo cenário jurídico subjacente à atividade da imprensa apoia-se no
fato de que a Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e de
manifestação do pensamento, assim o faz traçando as diretrizes principiológicas
de acordo com as quais essa liberdade será exercida, reafirmando, assim
como a doutrina sempre afirmou, que os direitos e garantias protegidos pela
Constituição, em regra, não são absolutos.
Desse modo, depois de a Carta da República afirmar, no seu art. 220, que
“[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, logo cuida
de explicitar alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a inviolabilidade
da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º). Na mesma
direção, como que o § 3º do art. 222, em alguma medida, dirigisse o exercício
de tal liberdade, afirma-se que “[os] meios de comunicação social eletrônica,
independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão
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observar os princípios enunciados no art. 221”, princípios dos quais se destaca o
“respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (inciso IV).
Com isso, afirma-se com todas as letras que, não obstante a Carta estivesse
rompendo com o paradigma do medo e da censura impostos à manifestação do
pensamento, não se poderia hipertrofiar a liberdade de informação, doravante
garantida, à custa do atrofiamento dos valores que apontam para a pessoa
humana.
E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de
dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo
menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de
imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os
valores.
Nos primeiros quadrantes do século passado, a atividade informativa - não
obstante fosse diariamente confrontada pela força opressiva do próprio Estado não o era com valores antes desprotegidos, e que só vieram a receber relevância
constitucional em 1988. Basta lembrar que a doutrina brasileira, em tempos
pretéritos, embora cogitasse da reparabilidade em tese do dano moral, resistia em
reconhecer o acolhimento desse direito no ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, confira-se o registro histórico de Yussef Said Cahali acerca
do tema:
Uma coisa é admitir a tese da reparabilidade do dano moral; outra coisa é
reconhecer que o nosso direito civil, em suas fases anteriores, a tivesse perfilhado.
Na fase da legislação pré-codificada, Lacerda de Almeida manifestou-se
adepto da teoria negativista da reparação: “As cousas inestimáveis repelem a
sanção do Direito Civil que com elas não se preocupa”.
Também Lafayette: “O mal causado pelo delito pode constituir simplesmente
em um sofrimento físico ou moral, sem relação direta com o patrimônio do
ofendido, como é o que resulta do ferimento leve que não impede de exercer a
profissão, ou de ataque à honra. Nestes casos não há necessidade de satisfação
pecuniária. Todavia, não tem faltado quem queira reduzir o simples sofrimento
físico ou moral a valor: são extravagâncias do espírito humano”.
[...]
Assim Orlando Gomes, reconhecendo que já então prevalecia a doutrina da
reparabilidade do dano moral, mas como o Código Civil de 1916 não inseria
qualquer preceito alusivo a ele, contestava os que se manifestavam no sentido de
que, perante o nosso direito, o dano moral poderia ser reparado (CAHALI, Yussef
Said. Dano moral. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 39-40).
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Vale dizer, o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é
extraído diretamente da Constituição converge para a liberdade de “expressão, da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade
da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º,
inciso X).
Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação,
fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de
resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e
no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente
entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação
ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora
o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso
concreto.
Essa constatação se mostra consentânea, a meu juízo, com o fato de que, a
despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos
direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua
vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada
(art. 1º, inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito
- um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os
demais direitos posteriormente reconhecidos.
A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que
o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas
criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado,
edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância
que legitima, em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos,
sempre em vista os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que
algum sacrifício possa ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e
direitos.
Na verdade, essa ideia de que o ser humano tem um valor em si que
supera o das “coisas humanas”, além de ser a base da construção da doutrina
da dignidade da pessoa humana, é ensinamento que já vai para mais de dois
séculos, e pode ser condensado nas seguintes palavras de Kant:
Agora eu afirmo: o homem - e, de uma maneira geral, todo o ser racional - existe
como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou
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daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas
a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre
considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm um
valor apenas condicional, pois se não existissem as inclinações e as necessidades que
nelas se fundamentam seria sem valor o seu objeto. As próprias inclinações, porém,
como fontes das necessidades, tão longe estão de possuir um valor absoluto que
as torne desejáveis em si mesmas que, muito pelo contrário, melhor deve ser
o desejo universal de todos os seres racionais em libertar-se totalmente delas.
Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é
sempre condicional. Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas
na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo,
como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais
denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si
mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio
e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)
(KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Guido
Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009, pp. 58-59).
Na legislação infraconstitucional, adota-se com suficiente clareza essa
pauta, em regra, preferencial pela dignidade da pessoa humana quando em
conflito com outros valores, como, por exemplo, os arts. 11, 20 e 21 do Código
Civil de 2002:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade
são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação
voluntária.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra,
ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão
ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se
lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas
para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento
do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar
ato contrário a esta norma.
No Supremo Tribunal Federal, por ocasião da análise de um conflito entre
as normas do Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro da
Aeronáutica, juntamente com tratados internacionais, prevaleceu o primeiro por
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razões de natureza constitucional fundadas na proteção da pessoa em detrimento
do serviço (RE n. 351.750, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/
Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 17.3.2009).
Colho do voto do Ministro Cezar Peluso o seguinte trecho:
Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor tem por escopo, não regrar
determinada matéria, mas proteger certa categoria de sujeito, ainda que também
protegido por outros regimes jurídicos (art. 7º). Daí seu caráter especialíssimo.
Enquanto as normas que compõem o chamado Direito Aeronáutico são especiais
por força da modalidade de prestação de serviço, o Código é especial em razão
do sujeito tutelado. E, como advém logo do princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana, há de, em caso de conflito aparente de normas, preponderar
o sistema direto protetivo da pessoa em dano do regime jurídico do serviço ou do
produto.
Resolvendo controvérsia idêntica, na relatoria do REsp n. 1.281.090-SP,
Quarta Turma, julgado em 7.2.2012, asseverei, com amparo da doutrina do
Ministro Herman Benjamin, que “enquanto o CBA consubstancia-se como
disciplina especial em razão da modalidade do serviço prestado, o CDC é
norma especial em razão do sujeito tutelado, e, como não poderia deixar de ser,
em um modelo constitucional cujo valor orientador é a dignidade da pessoa
humana, prevalece o regime protetivo do indivíduo em detrimento do regime
protetivo do serviço” (BENJAMIN, Antônio Herman V.. O transporte aéreo e
o Código de Defesa do Consumidor. in. Revista de direito do consumidor, n. 26,
abril/julho, 1998, Editora Revista dos Tribunais, p. 41).
Com efeito, no conflito entre a liberdade de informação e direitos da
personalidade - aos quais subjaz a proteção legal e constitucional da pessoa
humana -, eventual prevalência pelos segundos, após realizada a necessária
ponderação para o caso concreto, encontra amparo no ordenamento jurídico,
não consubstanciando, em si, a apontada censura vedada pela Constituição
Federal de 1988.
9. Outro aspecto a ser abordado é o suposto comprometimento da
historicidade de um tempo com o acolhimento do direito vindicado no presente
caso - crimes e criminosos que entraram para a história poderiam simplesmente
desaparecer -, assim também o conflito entre a tutela ora buscada e o inegável
interesse público que há por trás de noticiários criminais.
9.1. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial
do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de
determinada época.
Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos
da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por
inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento
político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trages
de banho, por exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato
de determinado momento e revelam as características de um povo na época
retratada.
Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar
uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride,
especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim
também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo
modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia.
E, de fato, é com uma inegável sensação de progresso ético e moral que
as páginas de Cesare Beccaria são lidas atualmente, quando dão notícia de um
gênero particular de delito:
[...] que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras,
onde corpos vivos serviam de pasto às chamas. Era um alegre espetáculo e uma
grata harmonia para a cega multidão ouvir os gemidos dos miseráveis, que saíam
dos vórtices negros de fumaça, fumaça de membros humanos, entre o ranger dos
ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes [...] (BECCARIA, Cesare
Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013 (Coleção RT - Textos Fundamentais), p. 132).
O que se espera é mesmo que as futuras gerações, por intermédio do
registro histórico de crimes presentes e passados, experimentem idêntico
sentimento de evolução cultural, quando, na posteridade, se falar em Chacina
da Candelária, Chacina do Carandiru, Massacre de Realengo, Doroty Stang,
Galdino Jesus dos Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel,
Honestino Guimarães ou Vladimir Herzog.
E há também quem queira exatamente o caminho inverso ao esquecimento,
o de perpetuar no imaginário de todos suas tragédias particulares até como
forma de reivindicação por mudanças do sistema criminal, fazendo de suas
feridas uma bandeira, como foi o caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes, importante personagem das reformas legislativas concernentes à
punição e prevenção da histórica violência doméstica e familiar contra a mulher,
cuja luta contribuiu para a edição da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
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A historicidade da notícia jornalística, todavia, em se tratando de jornalismo
policial, há de ser vista com cautela por razões bem conhecidas por todos.
Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos, mas também há
crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos,
obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo
dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal
às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. No ponto, fazse necessário desmistificar a postura da imprensa no noticiário criminal, a
qual - muito embora seja uma instituição depositária de caríssimos valores
democráticos - não é movida por um desinteressado compromisso social de
combate ao crime.
Essa característica da imprensa voltada para o noticiário criminal é muito
bem explicitada pela Juíza Federal Simone Schreiber, em tese de doutorado
apresentada na UERJ sob a orientação de Luís Roberto Barroso, que traz
diversos estudos na área do jornalismo e do processo penal. Como exemplo,
a autora citou o trabalho da jornalista e professora da Universidade Federal
Fluminense Sylvia Moretzohn, acerca da lógica que guia a atividade de
imprensa, pondo novas luzes na falsa ideia de “mídia cidadã”:
A jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn,
em acurado estudo sobre a lógica empresarial da fabricação de notícia e a
construção da verdade jornalística, põe em discussão algumas premissas de
matriz iluministas que supostamente norteariam a atuação da mídia e que, na
verdade, cumprem a função (mistificadora) de conferir à imprensa um lugar de
autoridade, pairando acima das contradições sociais e ao mesmo tempo livre das
burocracias e controles que amarram as instituições estatais.
Segundo a autora, a ideia de que, no estado democrático, a imprensa cumpre
a função social de esclarecer os cidadãos, reportando-lhes a verdade de forma
desinteressada e neutra, esconde o fato de que as empresas de comunicação
agem, como não poderia deixar de ser, sob uma lógica empresarial; de que
as eleições de pauta envolvem decisões políticas (e não técnicas); e de que
a “verdade” reportada nada mais é do que uma versão dos fatos ocorridos,
intermediada pela linha editorial do veículo e pela subjetividade dos jornalistas
que redigem a matéria (SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de
julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358).
O programa chamado Linha Direta - que guarda alguma semelhança
com o seu posterior Linha Direta Justiça -, veiculado pela emissora parte nos
presentes autos, também ganhou especial atenção no mencionado trabalho.
Segundo Schreiber, o programa valia-se das seguintes técnicas:
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
1. Em primeiro lugar, pontua flashes das cenas violentas protagonizadas por
atores (apenas flashes da reconstituição dramatizada dos fatos, retratando o
momento exato do cometimento do crime, pois a reconstituição integral será
apresentada ao longo do programa) e a apresentação da vítima, sua biografia,
geralmente através de depoimentos de seus parentes e amigos, e naturalmente
ressaltando suas qualidades e seus sonhos, dramaticamente interrompidos pela
tragédia ocorrida.
2. A estória começa a ser contada através de dramatização, conjugada com
depoimentos das testemunhas (estas reais). Aquele que é apontado como autor
do fato criminoso raramente é ouvido e quando o é, sua versão dos fatos é
imediatamente colocada em dúvida pelos esquetes de dramatização. O ator
que desempenha o papel de criminoso, além de guardar sempre traços físicos
parecidos com os do próprio, semelhança que é acentuada pela constante
transposição entre os arquivos jornalísticos e a dramatização, geralmente é
apresentado como uma pessoa cruel, fria, qualidades destacadas pelo sorriso
irônico, pelo olhar, pela fala, e ainda pelos recursos sonoros utilizados.
3. A principal técnica utilizada pelo Linha Direta é a conjugação de
jornalismo e dramatização. A transposição de imagens e dados jornalísticos
(fotos dos suspeitos, depoimentos dos familiares da vítima e de testemunhas,
depoimentos de policiais e promotores responsáveis pelo caso) para o ambiente
de dramatização se faz muitas vezes de maneira bastante sutil, de modo a criar
no telespectador a certeza de que os fatos se passaram exatamente da maneira
como estão sendo mostrados pelos esquetes de simulação.
Ao final do programa, o telespectador estará convencido da versão apresentada,
não restando qualquer dúvida de que os fatos se passaram daquela forma. A culpa
do criminoso está definitivamente comprovada. Saltam aos olhos, entretanto, os
riscos que podem advir de tal certeza. Não é difícil verificar em alguns casos a
fragilidade da versão dos fatos apresentados na televisão (SCHREIBER, Simone.
Op. cit., p. 362-363).
Ainda conforme noticiado por Schreiber, o programa foi inclusive objeto
de aprofundada pesquisa pela cadeira “Laboratório de Direitos Humanos”,
oferecida pelo Programa de Pós-Graduação da UERJ, tendo sido constatados
episódios em que “determinados fatos apresentados na reconstituição não
pod[iam] ser confirmados por ninguém, a não ser pelos próprios criminosos,
que, até então, estavam foragidos e portanto não foram ouvidos pela polícia
ou pela Justiça”, assim também “algumas cenas de simulação inspiradas em
suposições, pois a verdade dos fatos apontados é simplesmente impossível de
ser confirmada” (MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência. Um estudo do
linha direta. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2002).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
423
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Outra perniciosa disfunção da exploração midiática do crime é a potencial
influência direta no resultado do julgamento de delitos submetidos ao Júri, e,
mais grave, mediante a veiculação de provas inadmissíveis em juízo.
Não é novidade o uso, pelo jornalismo investigativo, de microcâmeras,
de interceptação de som ambiente ou de depoimento de “testemunhas”
não identificadas, espécies de prova cuja utilização em processo criminal é
unanimemente rechaçada pela jurisprudência e doutrina.
Porém, em um crime de repercussão nacional, a notícia jornalística
frequentemente está apoiada nessas provas colhidas informalmente, às quais o
popular - que posteriormente comporá o Conselho de Sentença - terá prévio
acesso direto de forma massificada, insistente e cansativa.
Em crimes dolosos contra a vida de grande repercussão, a exploração
midiática exacerbada faz com que o Conselho de Sentença tenha contato
com a “verdade jornalística” em tempo imensamente superior à “verdade dos
autos”, extraída da prova legitimamente produzida no processo e submetida
ao contraditório, circunstância que influencia - quando não efetivamente
compromete - o julgamento justo, do ponto de vista do devido processo legal
substantivo, a que todo acusado tem direito.
Pelo menos em meia dúzia de crimes noticiados nacionalmente na última
década, não se pode negar, os acusados já iniciaram o julgamento condenados,
e com essa condenação popular prévia e sumária, certamente, contribuiu a
natural permeabilidade dos jurados ao hiperinformacionismo a que tiveram amplo
contato anteriormente.
Com efeito, a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada
à custa das mencionadas vicissitudes, e, por isso, penso que a historicidade
do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento
de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão
ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados
indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar
permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro
já fora cometido no passado.
Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode
significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja
de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da
exploração populista da mídia.
424
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para
o desate de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso,
devendo ser aferida também a possível artificiosidade da história criada na
época.
9.2. Quanto ao interesse público subjacente ao delito, assim também
na cobertura do processo criminal, cumpre ressaltar que, pelo menos nos
crimes de ação penal pública, esse interesse sempre existirá, caso contrário nem
seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam nos domínios da
responsabilidade civil.
Nesses casos, além de violação a direitos individuais, o crime eleito pela lei
como de ação penal pública constitui lesão a interesses da própria sociedade –
ou no mínimo uma ameaça.
Assim, há legítimo interesse público em que seja dada publicidade da
resposta estatal ao fenômeno criminal, na esteira do alerta de Martin Luther
King, para quem “a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos.
A injustiça que se comete em um lugar é uma ameaça à justiça em todos os
lugares”.
Não obstante, é imperioso também ressaltar que o interesse público –
além de ser conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do
público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração pública,
praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada.
Essa é a doutrina constitucionalista sobre o tema:
Decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse
do público. O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias
relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio,
notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para
prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que
postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar
a garantia da privacidade (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 373).
Por outro lado, dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação
de casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos
envolvidos pode confrontar a própria letra da Constituição, que prevê solução
exatamente contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, inciso LX):
A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa
da intimidade ou o interesse social o exigirem.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
425
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A solução que harmoniza esses dois interesses em conflito é a preservação
da pessoa, com a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a
resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença
ou do julgamento, nos termos do art. 155 do Código de Processo Civil e art. 93,
inciso IX, da Constituição Federal.
10. Cabe agora enfrentar a tese de aplicação do direito ao esquecimento no
direito brasileiro.
No ponto, ressalto que é pelo Direito que o homem, cravado no
tempo presente, adquire a capacidade de retomada reflexiva do passado –
estabilizando-o – e antecipação programada do futuro – ordenando-o e
conferindo-lhe previsibilidade. Tempo e Direito, portanto, são fenômenos que
guardam relação intrínseca, de modo que tanto o Direito confere significação à
passagem do tempo, quanto este interfere na manifestação do Direito.
Caso contrário, o tempo, para o ser humano, seria mero “tempo cronológico,
uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida” (FERRAZ JUNIOR,
Tércio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. In. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n. 3. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica
Jurídica, 2005, p. 265).
Sobre o tema, François Ost, filósofo do direito e professor na Faculdade
Saint Louis, Bruxelas, assevera que a “justa medida temporal” à que o Direito
visa:
[...] permite entrever, na verdade, o duplo temor suscitado pela ação
coletiva: de uma parte, do lado do passado, o perigo de permanecer fechado na
irreversibilidade do já advindo, um destino de carência ou de infelicidade, por
exemplo, condenada a perpetuar-se eternamente; de outra parte, do lado do futuro,
o pavor inverso que suscita um futuro indeterminado, cuja radical imprevisibilidade
priva de qualquer referência. Nenhuma sociedade se acomoda com seus temores;
tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente,
a desligar o passado e ligar o futuro (OST, François. O Tempo do direito. Tradução
Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 38).
Em termos de instrumental jurídico, o Direito estabiliza o passado e
confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos:
prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em alguns desses casos, a justiça
material, por vezes fetichista, sede vez à segurança jurídica que deve existir nas
relações sociais.
426
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Especificamente quanto à prescrição, afirma Ost ser ela o “direito a um
esquecimento programado”, ressaltando também a especial aplicação do direito
ao esquecimento no direito ao respeito à vida privada:
Em outras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela
jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do
direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não,
fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade –
muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de
determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento
e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. Em uma decisão de 20
de abril de 1983, Mme. Filipachi Cogedipresse, o Tribunal de última instância de
Paris consagrou este direito em termos muito claros: “[...] qualquer pessoa que
se tenha envolvido em acontecimentos públicos pode, com o passar do tempo,
reivindicar o direito ao esquecimento; a lembrança destes acontecimentos e
do papel que ela possa ter desempenhado é ilegítima se não for fundada nas
necessidades da história ou se for de natureza a ferir sua sensibilidade; visto que
o direito ao esquecimento, que se impõe a todos, inclusive aos jornalistas, deve
igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados que pagaram sua dívida
para com a sociedade e tentam reinserir-se nela (OST, François. Op. cit. p. 160-161).
10.1. Sobre o caso Marlene Dietrich – julgado no Tribunal de Paris -, René
Ariel Dotti afirma ter sido uma pedra fundamental na construção do direito ao
esquecimento, tendo a Corte parisiense reconhecido expressamente que
“as recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu
patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção
malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a
vida”.
O direito ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da
vida privada, estava então consagrado definitivamente pela jurisprudência, após
um lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar pronunciada pelo
advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer
em paz”! (DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92).
Na jurisprudência de direito comparado, além do que já foi acima citado,
colacionam-se outros julgamentos que reconheceram explicitamente o direito
ao esquecimento como uma decorrência imediata do direito à privacidade,
notadamente no caso “Melvin vs. Reid” – ocorrido em 1931, no Tribunal de
Apelação da Califórnia – e o caso “Lebach” – República Federal da Alemanha.
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427
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em “Melvin vs. Reid”, figurava no litígio Gabrielle Darley, que havia se
prostituído e acusada de homicídio no ano de 1918, posteriormente tendo sido
inocentada. Gabrielle abandonara a vida licenciosa e constituiu família com
Bernard Melvin, readquirindo novamente o prestígio social. Ocorre que, muitos
anos depois, Doroty Davenport Reid produziu o filme chamado Red Kimono,
no qual retratava com precisão a vida pregressa de Gabrielle. O marido Melvin,
então, buscou a reparação pela violação à vida privada da esposa e da família,
tendo a Corte californiana reconhecido a procedência do pedido, entendendo
que uma pessoa que vive um vida correta tem o direito à felicidade, no qual
se inclui estar livre de desnecessários ataques a seu caráter, posição social ou
reputação (DOTTI, René Ariel. Op. cit. p. 90-91).
Em Lebach, 1969, um lugarejo situado na República Federal da Alemanha,
ocorrera uma chacina de quatro soldados que guardavam um depósito de armas e
munições, tendo sido condenados à prisão perpétua dois acusados, e um terceiro
partícipe a 6 anos de reclusão. Uma TV alemã produziu, então, documentário
que retrataria o crime mediante dramatização por atores contratados, em cuja
veiculação, todavia, seriam apresentadas fotografias reais e os nomes de todos os
condenados, inclusive as possíveis ligações homossexuais que existiam entre eles.
O documentário seria apresentado em uma noite de sexta-feira, dias antes de o
terceiro condenado deixar a prisão após o cumprimento da pena. Este pleiteou
uma tutela liminar para que o programa não fosse exibido, arguindo a proteção
de seu direito ao desenvolvimento, previsto na Constituição alemã. Ascendendo
o caso até o Tribunal Constitucional alemão, a Corte decidiu que a rede de
televisão não poderia transmitir o documentário caso a fotografia ou o nome do
reclamante fossem expostos. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face
de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de
radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também
a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida
de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens
jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e
o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto.
2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística
(Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de
interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung)
da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção
à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode
outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência
428
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no
âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da
população.
3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação
da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do
criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível
área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação
do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A
proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão
se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado
e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário
posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face
da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à
pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade
(ressocialização).
10.2. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida
da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos
centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo
infraconstitucional.
A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o
simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é
repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do
tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se
ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar.
No âmbito civil, por exemplo, a prescrição é um grande sinalizador da
vocação do sistema à estabilização das relações jurídicas.
Também no direito do consumidor, o prazo máximo de cinco anos para
que constem em bancos de dados informações negativas acerca de inadimplência
(art. 43, § 1º) revela nítida acolhida à tese do esquecimento, porquanto, paga ou
não a dívida que ensejou a negativação, escoado esse prazo, a opção legislativa
pendeu para a proteção da pessoa do consumidor – que deve ser esquecida – em
detrimento dos interesses do mercado, quanto à ciência de que determinada
pessoa, um dia, foi um mau pagador.
Não é crível imaginar, por exemplo, que haveria alguma legalidade na
conduta de uma empresa que, a despeito do escoamento do prazo de manutenção
do nome do inadimplente nos bancos de proteção ao crédito, fizesse veicular na
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429
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mídia, para quem quisesse saber – ou até mesmo ad aeternum –, as mesmas
informações desabonadoras constantes no cadastro, a cuja passagem do tempo
de manutenção a lei conferiu significado próprio, que é o esquecimento.
Porém, é mesmo no direito penal que o direito ao esquecimento se faz mais
vicejante.
O art. 93 do Código Penal prevê o instituto da reabilitação, que “alcança
quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o
sigilo dos registros sobre seu processo e condenação”.
Na mesma linha, o art. 748 do Código de Processo Penal afirma que,
concedida a reabilitação:
A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de
antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo
quando requisitadas por juiz criminal.
René Ariel Dotti, em comentário ao instituto da reabilitação penal,
assevera que:
A reabilitação é medida de Política Criminal, consistente na restauração da
dignidade social e na reintegração do condenado ao exercício dos direitos e
deveres sacrificados pela sentença. Nessa definição deve-se ter em linha de
análise dois aspectos distintos: a) a declaração judicial de recuperação do
exercício de direitos, interesses e deveres e da condição social de dignidade do
ex-condenado; b) o asseguramento do sigilo dos registros sobre o processo e a
condenação (DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 701).
A doutrina penalista, por outro lado, obtempera que o instituto da
reabilitação penal – que só se perfaz mediante pleito do egresso do sistema
penitenciário, depois de cumpridas as exigências do art. 94 do Código Penal –
está até em absoluto desuso, diante da possibilidade de o ex-detento obter os
mesmos efeitos de forma automática por força do art. 202 da Lei de Execuções
Penais (Lei n. 7.210/1984), que possui a seguinte redação:
Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou
certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer
notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de
nova infração penal ou outros casos expressos em lei.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci acrescenta:
430
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[...] não há razão para ingressar com pedido de reabilitação se a finalidade for
garantir o sigilo da folha de antecedentes para fins civis, pois o art. 202 da Lei n.
7.210/1984 (Lei de Execução Penal) cuida disso [...].
Trata-se de medida automática assim que julgada extinta a pena, pelo
cumprimento ou outra causa qualquer, prescindindo inclusive de requerimento
do condenado. Por outro lado, o mesmo se faz, isto é, comunica-se ao Instituto de
Identificação, quando há absolvição ou extinção da punibilidade (NUCCI, Guilherme
de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 973).
No ponto, é importante o realce: se os condenados que já cumpriram a pena
tem direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos
registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores
razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma,
conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.
A jurisprudência do STJ é tranquila em reconhecer o direito ao
esquecimento dos condenados que cumpriram pena ou dos absolvidos:
Recurso ordinário em mandado de segurança. Inquérito policial arquivado.
Absolvição. Processo Penal. Cancelamento de registro na folha de antecedentes.
Possibilidade. Recurso provido.
1. O cancelamento dos dados nos terminais de identificação, relativos
a inquérito arquivado e a processo penal em que o réu foi absolvido, é pura
e legítima conseqüência da garantia constitucional da presunção de não
culpabilidade.
2. Recurso provido.
(RMS n. 15.634-SP, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em
17.8.2006, DJ 5.2.2007, p. 379).
Recurso especial. Penal. Inquérito policial. Arquivamento. Inclusão do nome
nos terminais do Instituto de Identificação. Sigilo das informações.
“Se o Código de Processo Penal, em seu art. 748, assegura ao reabilitado o
sigilo de registro das condenações criminais anteriores, é de rigor a exclusão
dos dados relativos a sentenças penais absolutórias e inquéritos arquivados
dos terminais de Instituto de Identificação, de modo a preservar as franquias
democráticas consagradas em nosso ordenamento jurídico.” Recurso provido.
(REsp n. 443.927-SP, Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma,
julgado em 10.6.2003, DJ 4.8.2003, p. 366).
Recurso em mandado de segurança. Denunciação caluniosa. Trancamento
da ação penal. Folha de antecedentes. Cancelamento de registro. Possibilidade.
Precedentes do STJ. Recurso provido.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
431
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de
que, por analogia aos termos do art. 748 do Código de Processo Penal, devem
ser excluídos dos terminais dos Institutos de Identificação Criminal os dados
relativos a inquéritos arquivados, a ações penais trancadas, a processos em
que tenha ocorrido a reabilitação do condenado e a absolvições por sentença
penal transitada em julgado ou, ainda, que tenha sido reconhecida a extinção
da punibilidade do acusado decorrente da prescrição da pretensão punitiva do
Estado.
2. Recurso provido para que sejam canceladas as anotações realizadas pelo
Instituto de Identificação Ricardo Glumbenton-IIRGD relativas ao Processo-Crime
n. 240/92, em que ocorreu o trancamento da Ação Penal n. 240/05.
(RMS n. 24.099-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado
em 8.5.2008, DJe 23.6.2008).
Administrativo. Recurso ordinário em mandado de segurança. Antecedentes
criminais. Inquéritos arquivados. Exclusão de dados do registro do Instituto de
Identificação da Polícia Civil.
1. Por analogia ao que dispõe o art. 748 do CPP, que assegura ao reabilitado
o sigilo das condenações criminais anteriores na sua folha de antecedentes,
devem ser excluídos dos terminais dos Institutos de Identificação Criminal os
dados relativos a inquéritos arquivados e a processos em que tenha ocorrido a
absolvição do acusado por sentença penal transitada em julgado, de molde a
preservar a intimidade do mesmo.
2. “A lei confere ao condenado reabilitado direito ao sigilo de seus registros
criminais, que não podem constar de folha de antecedentes ou certidão (arts.
93, do CP e 748, do CPP). O réu absolvido, seja qual for o fundamento, faz jus ao
cancelamento do registro pertinente, em sua folha de antecedentes.” (RMS n.
17.774-SP. Rel. Min. Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 1º.7.2004, p. 278).
Recurso provido.
(RMS n. 18.540-SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado
em 20.3.2007, DJ 30.3.2007, p. 300).
10.3. Desde sempre se reconheceu que a verdade é uma limitação à
liberdade de informar. Vale dizer que a liberdade de informação deve sucumbir
perante a notícia inverídica, como preceituam diversos precedentes da Casa.
Em essência, o que se propõe aqui é, a um só tempo, reafirmar essa máxima,
mas fazer acerca dela uma nova reflexão, que conduz à conclusão de que essa
assertiva, na verdade, é de mão única, e a recíproca não é verdadeira. Embora
a notícia inverídica seja um obstáculo à liberdade de informação, a veracidade
da notícia não confere a ela inquestionável licitude, muito menos transforma a
liberdade de imprensa em um direito absoluto e ilimitado.
432
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Nesse ponto, a verossimilhança da informação é apenas um, mas não o
único, requisito interno do exercício da liberdade de imprensa.
Ninguém teria dúvida quanto à ilicitude da divulgação inconsentida acerca
de hábitos sexuais de duas pessoas (anônimas ou públicas), ou o modo pelo
qual elas se relacionam na vida íntima, mesmo que se trate de uma verdade
incontestada.
Tomando-se como exemplo os já citados bancos de dados restritivos
de crédito, a lei impõe que eles não sejam eternos. Nunca se cogitou que a
imposição a que se apaguem essas informações consubstanciasse censura ao
direito de informar ou ao direito de ser informado, mesmo que exista nisso um
inegável interesse público do mercado em se precaver contra quem, um dia, não
honrou com suas obrigações contratuais.
Por esse motivo, fatos mais graves, do ponto de vista de seu potencial
difamante, não podem também permanecer eternamente na memória da
sociedade – não por seu natural armazenamento neuropsíquico, infenso a
qualquer reação jurídica, mas por obra de veículos de informação.
Como se afirmou anteriormente, ao crime, por si só, subjaz um natural
interesse público, caso contrário nem seria crime. E esse interesse público, que
é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes
essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato.
Se é assim, o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a
desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao
fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro com a extinção
da pena ou com a absolvição, ambas consumadas irreversivelmente.
E é nesse interregno temporal que se perfaz também a vida útil da
informação criminal, ou seja, enquanto durar a causa que a legitimava. Após essa
vida útil da informação, seu uso só pode ambicionar, ou um interesse histórico,
ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a perpetuar no tempo as
misérias humanas.
Não se pode, pois, nesses casos, permitir a eternização da informação.
Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de
informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em
processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último,
ressalvando-se – como aqui se ressalvou – a hipótese de crimes genuinamente
históricos, quando a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável:
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
433
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público
em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais
verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que
precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao
público os fatos que o levaram à penitenciária (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.].
Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374).
Mas não é por isso tudo que a informação ou comunicação de fatos criminosos
sejam ilimitadas, infensas a qualquer restrição. Máxime quando se tem em conta a
divulgação de um fato criminoso associado a certa pessoa a quem se atribua sua
autoria.
Há uma primeira restrição que, na palavra de Hermano Duval, diz com o
direito ao esquecimento que assiste ao condenado, o que para Costa Andrade
representa um direito à ressocialização do criminoso, não estranho à legislação
pátria [...].
Por esse direito, então, aquele que tenha cometido um crime, todavia já
cumprida a pena respectiva, vê a propósito preservada sua privacidade, honra
e imagem.
Cuida-se inclusive de garantir ou facilitar a interação e reintegração do
indivíduo à sociedade, quando em liberdade, cujos direitos da personalidade não
podem, por evento passado e expirado, ser diminuídos.
Isso encerra até corolário da admissão, já antes externada, de que fatos
passados, em geral, já não mais despertam interesse coletivo. Assim também com
relação ao crime, que acaba perdendo, com o tempo, aquele interesse público
que avultava no momento de seu cometimento ou mesmo de seu julgamento.
É claro que essa consideração não se aplica àqueles crimes históricos, que
passam enfim para a história, aos grandes genocídios, como é o exemplo nazista,
citado por Costa Andrade. Aliás, pelo contrário, esses são casos que não devem
mesmo ser esquecidos (GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e
os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001, p. 89-90).
Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados
que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em
processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere
concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão
do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o
presente –, fez clara opção pela segunda.
E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza,
pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia
com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
434
Jurisprudência da QUARTA TURMA
11. Voltando-me para o caso concreto, julgado na mesma assentada com o
REsp. n. 1.335.153-RJ, não tenho dúvida em manter o acórdão ora hostilizado.
A despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado – com muita
razão – um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se
símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança
e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem
contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor
precisassem ser expostos em rede nacional.
Nem a liberdade de imprensa seria tolhida nem a honra do autor seria
maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de
valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.
Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a
reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem
médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral
acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de
inocentado, mas sim a de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do
nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à
sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como
bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial
consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte.
Nesse sentido, confira-se a fundamentação do acórdão, cujo voto condutor
é da lavra do eminente Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres:
A própria embargante, em suas profundas razões, nos fornece relato fidedigno
dos fatos, em trecho que peço licença para reproduzir:
“Na realidade, o embargado, chamado a prestar depoimento apenas
para confirmar o álibe de seu cunhado, policial militar, foi equivocadamente
reconhecido por alguns menores sobreviventes do crime”.
“Note-se que toda a inconsistência e contradição da atrapalhada
investigação policial - que culminou com a prisão de três inocentes foram
amplamente noticiadas no programa”.
“Conforme fartamente divulgado na imprensa mundial, dois dias após
o bárbaro crime, a policia do Rio de janeiro, numa atitude temerária,
comunicou que os assassinatos haviam sido desvendados, com a prisão
de seus supostos autores, dentre os quais se encontrava, por uma
infelicidade, o embargado, além de dois policiais militares inocentes”.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
435
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
“Entretanto, cerca de três anos após o crime e apenas dias antes do
julgamento, o ex-soldado da Polícia Militar Nelson Oliveira dos Santos
Cunha, sofrendo, segundo consta, uma crise de consciência, decidiu revelar
a um pastor evangélico tudo o que sabia acerca daquele nefasto episódio”.
“E apenas cinco dias antes do julgamento dos acusados da chacina, um
advogado procurou os promotores de justiça que atuavam no caso, com
a informação de que seu cliente - o ex-soldado da Polícia Militar Nelson
Oliveira dos Santos Cunha - estava envolvido no crime e tinha importantes
revelações a fazer.
“Poucos dias depois, o ex-soldado Nelson Oliveira dos Santos Cunha
prestou depoimento diante de promotores e autoridades envolvidas na
apuração da chacina e confessou a sua participação no crime”.
“’Em seu depoimento o ex-soldado inocentou três dos quatro acusados,
dentre os quais se encontrava o embargado, revelando o nome dos reais
envolvidos. O depoimento do ex-soldado, obviamente, caiu como uma
bomba sobre o processo criminal, gerando uma completa reviravolta no
seu rumo”.
“Após o depoimento do ex-soldado, os outros envolvidos foram presos e
condenados juntamente com ele pelos crimes cometidos na Candelária. E
como não poderia deixar de ser, o embargante e os outros inocentes que
se encontravam presos foram finalmente absolvidos e libertados”.
Resta incontroverso que a ora embargante não faltou com a verdade ao narrar
os fatos, nem se reportou ao ora embargado de maneira desrespeitosa. Não é
nesses termos que o pedido se coloca.
Por outro lado, parece-nos de fato inquestionável que a balbúrdia que
marcou a investigação policial da “Chacina da Candelária” se tornou fato
indissociável do próprio crime, e que qualquer documentário que se disponha a
revisitar aquele triste episódio cometeria falta jornalística se não mencionasse as
trapalhadas do inquérito.
Também não se questiona que aquele inglório episódio faz parte de nossa
História coletiva, como um seu triste capítulo, que convém recontar às presentes
e futuras gerações, para que não mais se repita, e para que se especulem as raízes
de tal mazela.
Mas não é esta a questão central. Não se quer negar à imprensa o direito de
recontar fatos notórios, nem seus pormenores.
Quer-se, antes, chamar atenção para a necessária ponderação entre o direito
de informar, que diz com toda a coletividade, de um lado, e o direito à vida
privada e à intimidade, de outro - ambos, direitos fundamentais garantidos por
cláusula pétrea da Constituição Federal.
[...]
436
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Mas, embora não haja dúvida do interesse público em revisitar os fatos
envolvidos na investigação da Chacina da Candelária, será correto supor que a
omissão do nome e imagem do autor, ora embargado, atentaria conta o interesse
público?
Estaria a reportagem comprometida? Estaria comprometido o direito coletivo à
informação, caso fosse poupada a imagem do autor e se usasse um pseudônimo?
Isto é o que a Lei impõe para o caso de infrações cometidas por menores de
idade, em defesa dos direitos da criança e do adolescente que, porventura, tenha
acabado de cometer ato delituoso.
Sem dúvida há, nisto, uma restrição à informação; mas não nos parece que
essa restrição atente contra o interesse público, nem contra o interesse privado do
veículo de comunicação: a população em geral não estará menos bem informada,
nem estará o meio de comunicação impedido de transmitir a noticia em sua
essência.
Igualmente, penso que, se houvesse sido atendido o clamor do ora
embargado, também nessa hipótese o distinto público não estaria menos bem
informado sobre a Chacina da Candelária, apenas e tão-somente por ignorar
o nome completo e a imagem de alguém que, acusado há mais de década da
prática de crime hediondo, foi absolvido à unanimidade pelo Tribunal do Júri.
Não seria leviano supor que o nome e a imagem do autor só foram
memorizados por pessoas de seu círculo de convivência, pois a enorme maioria
dos telespectadores, minutos depois da exibição do programa, sequer lembraria
o seu primeiro nome.
Daí que, num juízo de ponderação, nos pareça forçoso concluir que a omissão
do nome e imagem do autor em nada comprometeria a qualidade jornalística;
mas, por outro lado, a sua publicação repercutiu, severamente, no âmbito da vida
privada do ora embargado.
[...]
A atitude de poupar o autor, como visto, não prejudicaria o conteúdo
informativo da matéria jornalística; os fatos retratados no documentário, ainda
que públicos e notórios, e ainda que muito além de um crime corriqueiro, havia se
passado mais de uma década atrás.
Não havia qualquer atualidade na revelação da identidade daquele homem
acusado injustamente de tão bárbaro crime; não havia, tampouco, interesse
público significativo na divulgação desse pormenor. Bem ao revés, havia grande,
e justificado receio daquele homem em ter sua identidade religada ao episódio
que, se foi triste para todo o nosso Povo, foi calamitoso para a história pessoal do
autor.
A ora embargante, que entrou em contato com o embargado para dele
tentar tomar depoimento na forma de entrevista jornalística, foi plenamente
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
437
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
informada da vontade do autor, de não se ver outra vez relembrado pelo infausto
acontecimento.
[...]
Se o direito ao esquecimento vale para os que já pagaram por crimes que de
fato cometeram, com tão maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes,
involuntariamente tragados por um processo kafkiano de eventos por si só
nefastos para sua vida pessoal, e que não se convém revolver depois que, com
esforço, a vítima logra reconstruir sua vida.
Não vejo como concluir que nosso ordenamento jurídico, que protege o direito
de ressocialização do apenado e o direito do menor infrator, não proteja, com tão
mais razão, a vida privada do inocente injustamente acusado pelo Estado.
Deveras, os valores sociais ora cultuados conduzem a sociedade a uma
percepção invertida dos fatos, o que gera também uma conclusão às avessas:
antes de enxergar um inocente injustamente acusado, visualiza um culpado
acidentalmente absolvido.
Por outro lado, o quantum da condenação imposta nas instâncias ordinárias
(R$ 50.000,00) não se mostra exorbitante, levando-se em consideração
a gravidade dos fatos, bem como a sólida posição financeira da recorrente,
circunstância que me faz manter o acórdão também nesse particular.
12. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho o voto de
Vossa Excelência.
Ressalto que a controvérsia em exame nada se relaciona com censura,
pois não foi inibida a apresentação do episódio na televisão, a despeito da
vontade em sentido contrário declarada pelo autor e da proteção ao direito de
imagem consagrada no art. 20 do Código Civil em vigor. Cuida-se, após o fato
consumado, de compor os prejuízos alegados na inicial.
Registro que, neste caso, consta do acórdão recorrido que o autor alega
ter tido que se mudar da comunidade onde morava; sofreu ameaças, ódio social
contra si e seus familiares; não foi admitido como porteiro; não recebeu serviços
de serralheria, e, da análise dos documentos dos autos, concluiu o acórdão de
origem, textualmente, que a “posterior veiculação do episódio contra a sua vontade
438
Jurisprudência da QUARTA TURMA
expressa no programa Linha Direta, que declinou seu nome verdadeiro, reacendeu,
na comunidade em que vivia o autor, o interesse e a desconfiança de todos.”
Penso, portanto, assim como V. Exa., que o episódio, famoso na história
recente nacional, poderia ser rememorado sem mencionar o nome verdadeiro e
a imagem do autor, contra sua manifestação de vontade expressa. E quanto ao
valor da indenização, também o mantenho.
Nego provimento ao recurso especial.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Buzzi: O direito ao esquecimento é admitido pelo
direito pátrio, mas o exame quanto ao seu cabimento, por óbvio, depende de
cada caso concreto, conforme destacou o eminente Ministro Antônio Carlos
Ferreira.
Na hipótese em tela, como bem anotado pelo ilustre Relator, as instâncias
ordinárias firmaram que não houve a divulgação de dados inverídicos. Os dados
são verdadeiros.
Contudo, a reprodução em programa de TV do caso da Chacina da
Candelária, que é um fato internacionalmente conhecido, reacendeu a discussão
e o interesse da comunidade pelo episódio, ensejando situações de desconfiança
em relação à pessoa do recorrido.
Mais do que isso, observa-se da moldura fática já existente nos autos que
o recorrido precisou sair da comunidade em que residia, foi alvo de ameaças,
perdeu oportunidade de emprego, enfim, padeceu de uma série de consequências
diretamente vinculadas à divulgação da matéria.
Sem dúvida, a posterior vinculação do episódio no programa Linha Direta,
com menção ao nome verdadeiro do recorrido, contra sua vontade expressa, fez
renascer na comunidade em que vivia o autor o interesse por esse episódio, e
causou, como frisei, a desconfiança de muitos que o cercavam.
Por essas razões, acompanho o voto do Relator, negando provimento ao
recurso especial, cumprimentando-o pela qualidade, como sempre, de suas
ponderações.
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, atualizei a quantia,
joguei rapidamente no sistema, e o valor atualizado seria de R$ 76.000,00
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
439
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(setenta e seis mil reais), que entendo ser até baixo em relação à repercussão que
o fato trouxe para a vida do cidadão.
Portanto, acompanho o voto de V. Exa., negando provimento ao recurso
especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.335.153-RJ (2011/0057428-0)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Recorrente: Nelson Curi e outros
Advogado: Roberto Algranti e outro(s)
Recorrido: Globo Comunicação e Participações S/A
Advogados: José Perdiz de Jesus
João Carlos Miranda Garcia de Sousa e outro(s)
Rodrigo Neiva Pinheiro e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de
imprensa vs. Direitos da personalidade. Litígio de solução transversal.
Competência do Superior Tribunal de Justiça. Documentário exibido
em rede nacional. Linha Direta-Justiça. Homicídio de repercussão
nacional ocorrido no ano de 1958. Caso “Aida Curi”. Veiculação,
meio século depois do fato, do nome e imagem da vítima. Não
consentimento dos familiares. Direito ao esquecimento. Acolhimento.
Não aplicação no caso concreto. Reconhecimento da historicidade
do fato pelas instâncias ordinárias. Impossibilidade de desvinculação
do nome da vítima. Ademais, inexistência, no caso concreto, de dano
moral indenizável. Violação ao direito de imagem. Súmula n. 403STJ. Não incidência.
1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em
demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange,
necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente,
440
Jurisprudência da QUARTA TURMA
ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de
ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões
essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal
Federal.
2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência
de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o
entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto
à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958. Buscam a
proclamação do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra
a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da morte de
Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas
passadas.
3. Assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos
que se envolveram em processo-crime (REsp. n. 1.334/097-RJ), as
vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento – se
assim desejarem –, direito esse consistente em não se submeterem a
desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por
si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática
e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que
está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos,
permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a
indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram.
4. Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do
ofensor – condenado e já penalizado – deve ser ponderado pela questão
da historicidade do fato narrado, assim também o direito dos ofendidos
deve observar esse mesmo parâmetro. Em um crime de repercussão
nacional, a vítima – por torpeza do destino – frequentemente se torna
elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade
das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a
figura do ofendido.
5. Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece
para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que
se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para
o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade
da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida
Curi.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
441
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
6. É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de
como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que,
desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática,
e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se
com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera. Porém,
no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o
abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas
exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar
alguns delitos.
7. Não fosse por isso, o reconhecimento, em tese, de um direito de
esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Em
matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na
seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência
de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de
indenizar. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só
querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento
da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa
e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”, na contramão, a
dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a
depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não
causa o mesmo abalo de antes.
8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50
(cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual
se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade
civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de
valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com
a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à
liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela
lembrança.
9. Por outro lado, mostra-se inaplicável, no caso concreto, a Súmula
n. 403-STJ. As instâncias ordinárias reconheceram que a imagem da
falecida não foi utilizada de forma degradante ou desrespeitosa.
Ademais, segundo a moldura fática traçada nas instâncias ordinárias
– assim também ao que alegam os próprios recorrentes –, não se
vislumbra o uso comercial indevido da imagem da falecida, com os
contornos que tem dado a jurisprudência para franquear a via da
indenização.
10. Recurso especial não provido.
442
Jurisprudência da QUARTA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma
do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Senhor Ministro Relator. Votaram vencidos os Srs. Ministros
Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi.
Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho e Antonio Carlos Ferreira votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator
DJe 10.9.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Nelson Curi, Roberto Curi, Waldir
Cury e Maurício Curi ajuizaram ação de reparação de danos morais, materiais e à
imagem em face da TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S.A.).
Afirmam os autores serem os únicos irmãos vivos de Aida Curi, vítima de
homicídio no ano de 1958, crime que ficou nacionalmente conhecido por força
do noticiário da época, assim também o processo criminal subsequente.
Sustentam que o crime fora esquecido pelo passar do tempo, mas que
a emissora ré cuidou de reabrir as antigas feridas dos autores, veiculando
novamente a vida, a morte e a pós-morte de Aida Curi, inclusive explorando sua
imagem, mediante a transmissão do programa chamado Linha Direta-Justiça.
Entendem que a exploração do caso pela emissora, depois de passados
tantos anos, foi ilícita, tendo ela sido previamente notificada pelos autores para
não fazê-lo, indicando estes, ademais, que houve enriquecimento ilícito por
parte da ré com a exploração de tragédia familiar passada, auferindo lucros com
audiência e publicidade.
Por isso pleitearam indenização por danos morais – em razão de a
reportagem ter feito os autores reviver a dor do passado –, além de danos
materiais e à imagem, consistentes na exploração comercial da falecida com
objetivo econômico.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
443
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Juízo de Direito da 47ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ julgou
improcedentes os pedidos dos autores (fls. 854-869), tendo a sentença sido
mantida em grau de apelação, nos termos da seguinte ementa:
Indenizatória. Programa “Linha Direta Justiça”. Ausência de dano.
Ação indenizatória objetivando a compensação pecuniária e a reparação
material em razão do uso, não autorizado, da imagem da falecida irmã dos
Autores, em programa denominado “Linha Direita Justiça”.
1 – Preliminar – o juiz não está obrigado a apreciar todas as questões desejadas
pelas partes, se por uma delas, mais abrangente e adotada, as demais ficam
prejudicadas.
2 – A Constituição Federal garante a livre expressão da atividade de
comunicação, independente de censura ou licença, franqueando a obrigação
de indenizar apensa quando o uso da imagem ou informações é utilizada para
denegrir ou atingir a honra da pessoa retrata, ou ainda, quando essa imagem/
nome foi utilizada para fins comerciais.
Os fatos expostos no programa eram do conhecimento público e, no passado,
foram amplamente divulgados pela imprensa. A matéria foi, é discutida e
noticiada ao longo dos últimos cinquenta anos, inclusive, nos meios acadêmicos.
A Ré cumpriu com sua função social de informar, alertar e abrir o debate sobre
o controvertido caso. Os meios de comunicação também têm este dever, que se
sobrepõe ao interesse individual de alguns, que querem e desejam esquecer o
passado.
O esquecimento não é o caminho salvador para tudo. Muitas vezes é necessário
reviver o passado para que as novas gerações fiquem alertas e repensem alguns
procedimentos de conduta do presente.
Também ninguém nega que a Ré seja uma pessoa jurídica cujo fim é o lucro.
Ela precisa sobreviver porque gera riquezas, produz empregos e tudo mais que é
notório no mundo capitalista. O que se pergunta é se o uso do nome, da imagem
da falecida, ou a reprodução midiática dos acontecimentos, trouxe, um aumento
de seu lucro e isto me parece que não houve, ou se houve, não há dados nos
autos.
Recurso desprovido, por maioria, nos termos do voto do Desembargador
Relator (fls. 974-975).
Opostos dois embargos de declaração, foram ambos rejeitados.
Sobrevieram então recursos especial e extraordinário.
No especial, que está apoiado nas alíneas a e c do permissivo constitucional,
alega-se, além de dissídio, violação aos artigos 14, V, 17, IV e V, 18, caput e § 2º,
444
Jurisprudência da QUARTA TURMA
131, 165, 286, II e III, 302, 334, IV, 436, 458, II, e 535 do Código de Processo
Civil; 12, 186, 884 e 927, caput e parágrafo único, do Código Civil; 6º, VIII, e 12
do Código de Defesa do Consumidor.
Sustentam os recorrentes a nulidade dos acórdãos e da sentença por
deficiência de fundamentação, omissão, má apreciação das provas, equivocada
distribuição do ônus probatório e indeferimento de outras provas necessárias ao
desate da controvérsia.
No mérito da causa, alegam os recorrentes o direito ao esquecimento
acerca da tragédia familiar pela qual passaram na década de cinquenta do
século passado, direito esse que foi violentado pela emissora ré, por ocasião da
veiculação da reportagem não autorizada da morte da irmã dos autores.
O especial, inicialmente, não foi admitido na origem. Com a interposição
do AREsp. n. 15.007-RJ, dei-lhe provimento para melhor exame da questão (fl.
1.400).
O recurso extraordinário também não foi admitido, constando nos autos
agravo pendente de apreciação pelo STF.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Em termos de
conhecimento deste recurso especial, uma observação inicial se impõe.
É inegável que o conflito aparente entre a liberdade de expressão/
informação, ora materializada na liberdade de imprensa, e atributos individuais
da pessoa humana - como intimidade, privacidade e honra - possui estatura
constitucional (art. 5º, incisos IV, V, IX, X e XIV, arts. 220 e 221 da Constituição
Federal), não sendo raras as decisões apoiadas predominantemente no cotejo
hermenêutico entre os valores constitucionais em confronto.
Porém, em contrapartida, é de alçada legal a exata delimitação dos
valores que podem ser, eventualmente, violados nesse conflito, como a honra,
a privacidade e a intimidade da pessoa, o que, em última análise, atribui à
jurisdição infraconstitucional a incumbência de aferição da ilicitude de condutas
potencialmente danosas e, de resto, da extensão do dano delas resultante.
Forma-se, a partir daí, um cenário perigoso ao jurisdicionado, que, em não
raras vezes, tem subtraídas ambas as vias recursais, a do recurso especial e a do
recurso extraordinário.
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
445
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Diversos precedentes há, nesta Corte Superior de Justiça, a afirmar que
a celeuma instalada entre a alegação de dano moral e a liberdade de imprensa
resolve-se pela via do recurso extraordinário, ora negando o especial interposto,
ora exigindo a interposição de recurso extraordinário simultâneo, por força da
Súmula n. 126-STJ.
Nesse sentido, entre muitos outros, são os seguintes precedentes, nos
quais se afirmou ser de índole parcial ou totalmente constitucional controvérsia
análoga à que ora se analisa: AgRg no Ag n. 1.340.505-SP, Rel. Ministro
Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10.4.2012; REsp n. 1.001.923PB, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13.3.2012;
AgRg no Ag n. 1.185.400-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma,
julgado em 19.5.2011; AgRg no REsp n. 1.125.127-RJ, Rel. Ministro João
Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.5.2011.
Não obstante, quando a controvérsia chega ao Supremo Tribunal Federal
não se conhece do recurso extraordinário interposto, quase sempre por se
entender que a celeuma instalou-se no âmbito infraconstitucional e a violação à
Constituição Federal, se existente, seria reflexa. Nesse sentido, apenas a título de
exemplos, confiram-se os seguintes precedentes: AI n. 685.054 AgR, Relator(a):
Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 21.8.2012; AI n. 763.284
AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12.6.2012; RE
n. 597.962 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado
em 27.3.2012; AI n. 766.309 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda
Turma, julgado em 10.11.2009; Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado
em 16.9.2008; AI n. 631.548 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira
Turma, julgado em 6.4.2010.
Apenas para registro, o primeiro precedente acima citado corresponde,
no STJ, ao Ag. n. 1.394.533-DF, ao qual foi negado provimento por razões já
mencionadas. Por sua vez, o Ag. n. 851.325-RJ (referente ao conhecido caso
“Doca Street”), também foi negado no STJ por fundamentos análogos, por
entender que a controvérsia era exclusivamente constitucional, e, ascendendo
os autos ao STF, também não se conheceu do recurso (AI n. 679.343 AgR,
Relator(a): Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 11.12.2012).
Na verdade, a mesma controvérsia ocorre quando se analisam questões
alusivas, por exemplo, a direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito,
institutos todos regulados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Introdução ao
Código Civil (atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB).
446
Jurisprudência da QUARTA TURMA
É certo que há diversos precedentes do STJ entendendo que a matéria
contida no art. 6º da LINDB, relativa à preservação do ato jurídico perfeito, por
exemplo, tem natureza constitucional. E, ao reverso, o STF, de forma incisiva,
abraça entendimento de que a “alegação de ofensa aos princípios da legalidade,
prestação jurisdicional, direito adquirido, ato jurídico perfeito, limites da coisa
julgada, devido processo legal, contraditório e ampla defesa configura, quando
muito, ofensa meramente reflexa às normas constitucionais” (RE n. 563.816
AgR, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 26.10.2010).
Adota-se a doutrina segundo a qual constituem coisas diversas a proteção
constitucional de determinado princípio e o alcance normativo do seu
conteúdo. De fato, diversas vezes o Poder Constituinte, sem embargo de indicar
determinado valor como objeto de proteção constitucional, não aprofundou sua
definição conceitual ou seu alcance.
Nessa linha, é Rubens Limongi França quem delimita, de um lado, a
proteção constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa
julgada, e, de outro, o nítido contorno infraconstitucional adotado no sistema
brasileiro no que tange a esses valores:
A Constituição vigente determina simplesmente o respeito ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Não apresenta, como se
deu com a Lei de Introdução ao Código Civil, bem assim a Lei n. 3.238, de 1957,
uma definição de Direito Adquirido. De onde a questão: o conceito de Direito
Adquirido constitui matéria constitucional ou de caráter ordinário?
[...]
A previsão, no texto constitucional, que não existe, ainda que houvesse, não
traria como consequência o corolário de que de natura o assunto apresenta caráter
constitucional. Por outro lado, a realidade jurídica, à face das leis extravagantes e
do teor dos pronunciamentos dos nossos colégios judicantes, nos mostra que,
muito embora a Constituição tenha consagrado um instituto de bases assentadas
na consciência jurídica nacional, essas bases não são rígidas e absolutas, mas
sujeitas, em vários dos seus aspectos, a mutações e aprimoramentos.
Desse modo, formular na Constituição um conceito de Direito Adquirido
implicaria em subtrair-lhe muitas das suas possibilidades de progresso, tanto
através da Doutrina e da Jurisprudência, como da própria legislação extravagante
(FRANÇA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da
irretroatividade das leis e do direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1968, p. 403-404).
Na Corte Especial, questão análoga já foi enfrentada, recebendo tratamento
sintetizado na seguinte ementa (nas partes que interessam):
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
447
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Processual Civil. Embargos de divergência. Dissenso interno a respeito da
interpretação de normas processuais que disciplinam o incidente de declaração
de inconstitucionalidade. CPC, arts. 480 a 482. Controle por recurso especial.
Cabimento.
[...]
2. A concretização das normas constitucionais depende, em muitos casos, da
intermediação do legislador ordinário, a quem compete prover o sistema com
indispensáveis preceitos complementares, regulamentares ou procedimentais.
Dessa pluralidade de fontes normativas resulta a significativa presença, em nosso
sistema, de matérias juridicamente miscigenadas, a ensejar (a) que as decisões
judiciais invoquem, simultaneamente, tanto as normas primárias superiores,
quanto as normas secundárias e derivadas e (b) que também nos recursos possa
ser alegada, de modo concomitante, ofensa a preceitos constitucionais e a
infraconstitucionais, tornando problemática a definição do recurso cabível para as
instâncias extraordinárias (STF e STJ).
[...]
4. [...] Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar
também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenômeno inafastável,
cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei federal
ao caso, admitindo o recurso especial.
5. Embargos de divergência conhecidos e providos.
(EREsp n. 547.653-RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado
em 15.12.2010, DJe 29.3.2011).
Com efeito, avulta a responsabilidade do Superior em demandas
cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente,
uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à
fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do
contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são
apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse passo, a partir dessa reflexão, penso que a jurisprudência do STJ deve
ser atualizada e harmonizada, principalmente porque:
a) com a Emenda Constitucional n. 45, o cenário tornou-se objetivamente
diverso daquele que antes circunscrevia a interposição de recursos especial e
extraordinário, pois, se anteriormente todos os fundamentos constitucionais que
serviram ao acórdãos eram impugnáveis - e deviam ser, nos termos da Súmula
n. 126-STJ - mediante recurso extraordinário, agora, somente as questões
que, efetivamente, ostentarem repercussão geral (art. 102, § 3º, da Constituição
Federal) é que podem ascender à Suprema Corte (art. 543-A, § 1º, do CPC);
448
Jurisprudência da QUARTA TURMA
b) no atual momento de desenvolvimento do direito é inconcebível a análise
encapsulada dos litígios, de forma estanque, como se os direitos civil, penal ou
processual pudessem ser “encaixotados” de modo a não sofrer ingerências do
direito constitucional.
Esta Turma já afirmou, no julgamento do REsp. n. 1.183.378-RS, que,
depois da publicização do direito privado, vive-se a chamada constitucionalização
do direito civil, momento em que o foco transmudou-se definitivamente do
Código Civil para a própria Constituição Federal, de modo que os princípios
constitucionais alusivos a institutos típicos de direito privado (como
família e propriedade) passaram a condicionar a interpretação da legislação
infraconstitucional.
Na expressão certeira de Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa
humana assume dimensão transcendental e normativa, e a Constituição passa
a ser não somente “o documento maior do direito público, mas o centro de
todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade”
(BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2 ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60).
Nessa linha de evolução, penso que também por essa ótica deva ser
analisado o papel do Superior Tribunal de Justiça, notadamente das Turmas de
Direito Privado.
Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito
infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito
privado, não me parece possível a esta Corte de Justiça analisar as celeumas que
lhe aportam “de costas” para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao
jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior.
Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de
uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma
interpretação que não seja constitucionalmente aceita (REsp n. 1.183.378-RS,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25.10.2011);
e assim o fazendo, não se há falar também em usurpação de competência do
Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, já decidiu o STF não haver usurpação, pelo STJ,
no julgamento de demanda com “causa de pedir fundada em princípios
constitucionais genéricos, que encontram sua concreta realização nas normas
infraconstitucionais” (Rcl n. 2.252 AgR-ED, Relator(a): Min. Maurício Corrêa,
Tribunal Pleno, julgado em 18.3.2004).
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
449
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na mesma direção, afirmou-se na Suprema Corte que “o Superior
Tribunal de Justiça, ao negar seguimento ao recurso especial com fundamento
constitucional, exerc[e] o chamado controle difuso de constitucionalidade, que
é possibilitado a todos os órgãos judiciais indistintamente” (Rcl n. 8.163 AgR,
Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 3.11.2011).
No último precedente acima citado, o eminente Ministro Marco Aurélio
interveio aduzindo que, “ultrapassada a barreira de conhecimento do especial,
o Superior Tribunal de Justiça, como todo e qualquer órgão investido do
ofício judicante, exerce e deve exercer - não está compelido a aplicar uma lei
inconstitucional - o controle difuso de constitucionalidade”.
Nessa ordem de ideias, em artigo jurídico recém publicado, o eminente
Ministro Teori Albino Zavascki também lança novas luzes sobre a celeuma e
esquadrinha com clareza a possibilidade de jurisdição constitucional no âmbito
do recurso especial, sobretudo em questões interdisciplinares, com soluções
apoiadas transversalmente em diversos setores do direito, concluindo que,
no mais das vezes, as posições simplificadoras que afirmam, peremptoriamente,
ser competência exclusiva do STF o conhecimento de questões constitucionais
partem de uma má compreensão do sistema.
Nesse sentido, confiram-se as palavras de Sua Exa.:
Foi talvez a dificuldade de acomodação a essa nova sistemática, inédita em
nossa história, o fator determinante da acentuada tendência a estratificar, de
modo quase absoluto, a competência das duas Cortes Superiores, como se não
houvesse a abertura de vasos comunicantes entre as suas principais funções
institucionais.
Há certamente equívocos e exageros nessas posições estremadas,
notadamente se considerarmos o sentido amplo de que se reveste o conceito de
“guarda da Constituição” e, por consequência, o vasto domínio jurídico em que
atua a jurisdição constitucional. Realmente, a força normativa da Constituição a
todos vincula e a todos submete.
[...]
Pois bem: qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da
inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo
Poder Judiciário. Aí reside justamente a essência do que se denomina jurisdição
constitucional: é a atividade jurisdicional do Poder Judiciário na interpretação
e aplicação da Constituição. Nessa seara, não há dúvida que ao STF cabe,
precipuamente, a guarda da Constituição; todavia, também é certo que essa
não é atribuição exclusivamente sua. Pelo contrário, se nos tocasse apontar um
signo marcante e especial do Poder Judiciário brasileiro, esse certamente é o da
450
Jurisprudência da QUARTA TURMA
competência difusa atribuída a todos os seus órgãos e a todos os seus agentes
para, até mesmo de ofício, cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais,
anulando, se necessário, atos jurídicos, particulares ou administrativos, concretos
ou normativos, com elas incompatíveis. Em outras palavras: todos os órgãos
do Poder Judiciário estão investidos da jurisdição constitucional, não se podendo
imaginar que tal atribuição seja estranha ao plexo de competência de um dos
principais tribunais da Federação, que é o STJ.
[...]
Não parece equivocado, de qualquer modo, o alvitre segundo o qual o
controle de constitucionalidade de normas é uma função subutilizada no STJ,
o que se explica, em alguma medida, pelo desconhecimento de seu manejo e
das suas virtualidades, mas, sobretudo, porque, não sendo uma de suas funções
típicas, o Tribunal prefere devolver o julgamento da matéria constitucional às
instâncias ordinárias, a exemplo do que faz com as questões de fato e de prova,
em hipóteses em que é indispensável um novo julgamento da causa.
[...]
É preciso anotar, todavia, que as estatísticas registram apenas os incidentes de
inconstitucionalidade efetivamente instaurados e levados à apreciação da Corte
Especial, em observância à norma do art. 97 da CF (LGL 1988\3) (princípio da
reserva de plenário). Ora, essa é uma - talvez a menos significativa - das várias faces
com que se apresenta a jurisdição constitucional do Tribunal. Referidos incidentes,
com efeito, somente são instaurados nas limitadas situações em que um dos
órgãos fracionários, valendo-se da técnica da declaração de inconstitucionalidade
com redução de texto, faz juízo positivo de ilegitimidade da norma; não, porém,
quando faz juízo negativo, hipótese em que a apreciação da questão se esgota
no âmbito do próprio órgão fracionário, dispensada a observância da reserva
de plenário. E certamente há jurisdição constitucional também nessa segunda
hipótese. O incidente é dispensado, ademais, quando há precedente do STF ou
da própria Corte Especial a respeito da questão constitucional (art. 481, parágrafo
único, CPC (LGL 1973\5)).
[...]
Se acrescentarmos a todas essas situações as muitas e muitas outras em
que as normas e princípios constitucionais são invocados na jurisprudência do STJ
como parâmetro para a adequada interpretação e aplicação das leis federais e dos
tratados, haveremos de concluir que, mesmo em julgamentos de recursos especiais,
é muito mais fecunda do que parece a jurisdição constitucional do STJ (ZAVASCKI,
Teori Albino. Jurisdição Constitucional do Superior Tribunal de Justiça. In. Revista de
Processo, v. 212, Set/2012. p. 13).
De fato, o que se veda é o conhecimento do recurso especial com base em
alegação de ofensa a dispositivo constitucional, não sendo defeso ao STJ - aliás,
é bastante aconselhável - que, admitido o recurso, aplique o direito à espécie,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
451
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
buscando na própria Constituição Federal o fundamento para acolher ou
rejeitar a violação do direito infraconstitucional invocado ou para conferir à lei a
interpretação que melhor se ajusta ao texto constitucional.
Por exemplo, em demandas de responsabilidade civil, como no caso em
exame, o comando legal segundo o qual aquele que, por ato ilícito, causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo (art. 927 do CC/2002), somente é bem
aplicado se a aventada ilicitude for investigada em todo ordenamento jurídico,
no plano legal e constitucional.
No caso em apreço, o confronto entre liberdade de informação e os
direitos da personalidade, a par de transitar também pelos domínios do direito
constitucional, pode ser bem solucionado a partir da exegese dos arts. 11, 12, 17,
20 e 21, do Código Civil.
3. No mérito, afasto a alegação de ofensa aos arts. 131, 165, 286, II e III,
302, 334, IV, 436, 458, II, e 535 do Código de Processo Civil, tendo em vista
que o acórdão ora hostilizado enfrentou todas as questões essenciais ao desate
da controvérsia, não havendo ponto omisso, obscuro ou contraditório apto a
nulificá-lo.
Na verdade, tanto o acórdão proferido em grau de apelação quanto a
sentença ostentam fundamentações robustas, tendo sido o delicado tema ora em
exame enfrentado com bastante esmero e profundidade em todas as instâncias,
um sinal de que o Poder Judiciário, a despeito da avalanche de processos que o
soterra, mostra-se sensível a demandas paradigmáticas como a presente.
Os arts. 14, inciso V, 17, incisos IV e V, e 18, caput e § 2º, do Código de
Processo Civil, assim também os arts. 6º, VIII, e 12 do Código de Defesa do
Consumidor não foram objeto de prequestionamento, mostrando-se mesmo
irrelevantes ao desate da controvérsia.
4. A questão posta nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito
de valores e direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento
jurídico, mas que as transformações sociais, culturais e tecnológicas
encarregaram-se de lhe atribuir também uma nova feição, confirmando a
máxima segundo a qual o ser humano e a vida em sociedade são bem mais
inventivos que o estático direito legislado.
Neste campo, o Judiciário foi instado a resolver os conflitos por demais
recorrentes entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos inerentes
à personalidade, ambos de estatura constitucional.
452
Jurisprudência da QUARTA TURMA
Na verdade, o mencionado conflito é mesmo imanente à própria opção
constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais, em
última análise, representam, de um lado, o legítimo interesse de “querer ocultarse” e, de outro, o também legítimo interesse de se “fazer revelar”.
Diversos precedentes deste Superior Tribunal de Justiça analisaram casos
de confronto entre publicações jornalísticas e alegadas ofensas aos direitos da
personalidade. As soluções conferidas, nesses casos, quase sempre estiveram
inseridas em um contexto de ilicitude da publicação - em razão de conteúdo
difamatório ou inverídico - e em um cenário de contemporaneidade da notícia.
Bem por isso esta Quarta Turma, analisando os contornos de eventual
ilicitude de matérias jornalísticas, abraçou a tese segundo a qual a liberdade
de imprensa, por não ser absoluta, encontra algumas limitações, como: “(I)
o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos
chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à
honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de
crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus
injuriandi vel diffamandi)” (REsp n. 801.109-DF, Rel. Ministro Raul Araújo,
Quarta Turma, julgado em 12.6.2012).
Por outro enfoque, assinalando o traço da contemporaneidade que, de regra,
marca a atividade jornalística, no REsp n. 680.794-PR, de minha relatoria, desta
Turma, julgado em 17.6.2010, afirmei que, embora não se permitam leviandades
por parte do jornalista, também não são exigidas verdades absolutas, provadas
previamente em sede de investigações no âmbito administrativo, policial ou
judicial. Exige-se - como assinalado no voto condutor do citado precedente
-, com a rapidez e velocidade possíveis, uma diligência séria que vai além de
meros rumores, razão por que reafirmei também o dito popular segundo o qual
“informação velha não vira notícia”, adágio que a história, nos presentes autos,
parece estar a desmentir.
Agora, uma vez mais, o conflito entre liberdade de informação e direitos
da personalidade ganha a tônica da modernidade, analisado por outro prisma,
desafiando o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, ancorada
na informação massificada que, diariamente, se choca com a invocação de novos
direitos, hauridos que sejam dos já conhecidos direitos à honra, à privacidade
e à intimidade, todos eles, por sua vez, resultantes da proteção constitucional
conferida à dignidade da pessoa humana.
Nos presentes autos, o cerne da controvérsia transita exatamente na
ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
453
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte
de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958.
A tese dos autores é a proclamação do seu direito ao esquecimento, de não
ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da
morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas
passadas.
A tese do direito ao esquecimento ganha força na doutrina jurídica
brasileira e estrangeira, tendo sido aprovado, recentemente, o Enunciado n. 531
na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF-STJ, cujo teor e justificativa
ora se transcrevem:
Enunciado n. 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da
informação inclui o direito ao esquecimento.
Artigo: 11 do Código Civil
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação
vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem
histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante
do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de
apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade
de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e
a finalidade com que são lembrados.
1. Cabe desde logo separar o joio do trigo e assentar uma advertência.
A ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade - mas
também se torna mais complexa - quando aplicada à internet, ambiente que,
por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações
honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado, sendo desnecessário lembrar
o alcance potencializado de divulgação próprio desse cyberespaço. Até agora, temse mostrado inerente à internet - mas não exclusivamente a ela - a existência de
um “resíduo informacional” que supera a contemporaneidade da notícia e, por
vezes, pode ser, no mínimo, desconfortante àquele que é noticiado.
Em razão da relevância supranacional do tema, os limites e possibilidades
do tratamento e da preservação de dados pessoais estão na pauta dos mais
atuais debates internacionais acerca da necessidade de regulação do tráfego
informacional, levantando-se, também no âmbito do direito comparado, o
conflituoso encontro entre o direito de publicação - que pode ser potencialmente
mais gravoso na internet - e o alcance da proteção internacional dos direitos
humanos.
454
Jurisprudência da QUARTA TURMA
A União Europeia, depois de mais de quinze anos da adoção da Diretiva
n. 46/1995/CE (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao
tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação), que foi seguida
pela Diretiva n. 2002/58/CE (concernente à privacidade e às comunicações
eletrônicas), acendeu, uma vez mais, o debate acerca da perenização de
informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de
seu uso - sobretudo na internet.
A Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane
Reding, apresentou proposta de revisão das diretivas anteriores, para que se
contemple, expressamente, o direito ao esquecimento dos usuários de internet,
afirmando que “al modernizar la legislación, quiero clarificar específicamente que las
personas deben tener el derecho, y no sólo la posibilidad, de retirar su consentimiento
al procesamiento de datos [...]”, e que o primeiro pilar da reforma será el derecho
a ser olvidado: “un conjunto completo de reglas nuevas y existentes para afrontar
mejor los riesgos para la privacidad en Internet” (http://www.20minutos.es/
noticia/991340/0/derecho/olvido/facebook/. Acesso em 2 de maio de 2013).
Na mesma linha, em recente palestra proferida na Universidade de Nova
York, o alto executivo da Google Eric Schmidt afirmou que a internet precisa de
um botão de delete. Informações relativas ao passado distante de uma pessoa
podem assombrá-la para sempre, causando entraves, inclusive, em sua vida
profissional, como no exemplo dado na ocasião, de um jovem que cometeu um
crime em relação ao qual as informações seriam expurgadas de seu registro
na fase adulta, mas que o mencionado crime poderia permanecer on-line,
impedindo a pessoa de conseguir emprego.
“Na América” - afirmou Schimidt -, “há um senso de justiça que é
culturalmente válido para todos nós. A falta de um botão delete na internet é
um problema significativo. Há um momento em que o apagamento é uma coisa
certa” (Google’s Schmidt: The Internet needs a delete button. Google’s Executive
Chairman Eric Shmidt says mistakes people make when young can haut them forever.
(Disponível em: <http://news.cnet.com/8301-1023_3-57583022-93/googlesschmidt-the-internet-needs-a-delete-button/>. Acesso em 10 de maio de 2013).
Em maio de 2011, o espanhol El País, por intermédio da jornalista Milagros
Pérez Oliva, também publicou interessante reportagem acerca do denominado
derecho al olvido, retratando caso da ginasta Marta Bobo, noticiada no ano de
1984, no mesmo El País, em uma matéria curta, mas categórica: “Marta Bobo sufre
anorexia”. A reportagem dava conta de que três atletas, entre elas Marta Bobo,
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
455
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
disputariam as medalhas de ginástica rítmica nos Jogos Olímpicos, “pero Marta,
con 29 kilos a sus 18 años, con anorexia diagnosticada, se encuentra en Los Ángeles en
contra de los consejos del psiquiatra. Su situación, no ya anímica, sino física, ha podido
ser peligrosa”. Agora, com 45 (quarenta e cinco) anos, Marta Bobo convive com a
mencionada notícia, que garante ser falsa, em páginas da internet, que converte o
passado em um presente contínuo. Tal circunstância, noticia Milágros Pérez, tem
dado lugar a uma nova demanda social - “el derecho al olvido” - que afeta a todos,
em relação à qual se espera que a União Européia se pronuncie (Disponível:
http://elpais.com/diario/2011/05/15/opinion/1305410404_850215.html.
Acesso em 02 de maio de 2013).
Com efeito, é atual e relevante o debate acerca do chamado direito ao
esquecimento, seja no Brasil, seja nos discursos estrangeiros, debate que, no
caso em exame, é simplificado por não se tratar de informações publicadas na
internet, cujo domínio do tráfego é evidentemente mais complicado e reclama
mesmo uma solução - legislativa ou judicial - específica.
Portanto, a seguir, analisa-se a possível adequação (ou inadequação)
do mencionado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo
debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que
desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade
de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o
que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
6. Grosso modo, entre outras assertivas contrárias à tese do direito ao
esquecimento, afirmam-se que: i) o acolhimento do chamado direito ao
esquecimento constitui atentado à liberdade de expressão e de imprensa; ii) o
direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa
perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento
afronta o direito à memória de toda a sociedade; iii) cogitar de um direito
ao esquecimento é sinal de que a privacidade é a censura do nosso tempo;
iv) o mencionado direito ao esquecimento colidiria com a própria ideia de
direitos, porque estes têm aptidão de regular a relação entre o indivíduo e a
sociedade, ao passo que aquele finge que essa relação não existe - um “delírio da
modernidade”; v) o direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer
registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história
social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público; vi) ou
uma coisa é, na sua essência, lícita ou é ilícita, não sendo possível que uma
informação lícita transforme-se em ilícita pela simples passagem do tempo; vii)
456
Jurisprudência da QUARTA TURMA
quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção
à intimidade e privacidade em benefício do interesse público e, ademais, uma
segunda publicação (a lembrança, que conflita com o esquecimento) nada
mais faz do que reafirmar um fato que já é de conhecimento público; viii) e,
finalmente, que programas policiais relatando acontecimentos passados, como
crimes cruéis ou assassinos célebres, são e sempre foram absolutamente normais
no Brasil e no exterior, sendo inerentes à própria atividade jornalística.
7. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, unanimemente reconhecido
como um dos mais perspicazes pensadores do nosso tempo e preciso intérprete
dos sinais da modernidade - por ele nomeada de “modernidade líquida” -, lança
novas luzes acerca da atual configuração do antigo conflito entre os espaços
público e privado - entre a informação e a privacidade.
Com boa dose de desesperança, Bauman afirma que um dos danos colaterais
dessa “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão,
antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere
à vida humana”, tendo nascido uma inédita sociedade confessional, em que
espaços antes reservados à exploração de questões de interesses e preocupações
comuns são agora utilizados como “depositórios geradores dos segredos mais
secretos, aqueles a serem divulgados apenas a Deus ou a seus mensageiros e
plenipotenciários terrestres”:
Se você quer saber qual dos lados [das esferas pública e privada] está hoje
na ofensiva e qual está (tenaz ou tibiamente) tentando defender dos invasores
seus direitos herdados ou adquiridos, há coisas piores a fazer que meditar sobre
o profético pressentimento de Peter Ustinov (expresso em 1956): “Este é um país
livre, madame. Nós temos o direito de compartilhar a sua privacidade no espaço
público” (BAUMAN, Zygmunt. Privacidade, sigilo, intimidade, vínculos humanos - e
outras baixas colaterais da modernidade líquida. In. Danos colaterais: desigualdades
sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013, p. 110).
De fato, na atual sociedade da hiperinformação parecem evidentes os “riscos
terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura
da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual
mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à
diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 113).
Por outro lado, o antigo conflito entre o público e o privado ganha uma
nova roupagem na modernidade: a inundação do espaço público com questões
RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
estritamente privadas decorre, a um só tempo, da expropriação da intimidade/
privacidade por terceiros, mas também da voluntária entrega desses bens à arena
pública. Constroem-se “amizades” em redes sociais em um dia, em número
superior ao que antes se construía em uma vida, e essa fragilidade de vínculos
humanos contribui para o processo erosivo da privacidade.
Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa
da privacidade à arena pública, como uma nova mercadoria para o consumo da
coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes
um anônimo que pretende assim permanecer.
Essa tem sido uma importante - se não a mais importante - face do atual
processo de esgarçamento da intimidade e da privacidade, e o que estarrece é
perceber certo sentimento difuso de conformismo, quando se assiste a olhos nus
a perda de bens caros ao ser humano, conquistados não sem enorme esforço por
gerações passadas; sentimento difundido por inédita “filosofia tecnológica” do
tempo atual pautada na permissividade, para a qual ser devassado ou espionado
é, em alguma medida, tornar-se importante e popular, invertendo-se valores e
tornando a vida privada um prazer ilegítimo e excêntrico, seguro sinal de atraso
e de mediocridade.
Como bem observa Paulo José da Costa Júnior, dissertando acerca do
direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só (the right to be let alone):
Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso
presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de
investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas.
O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma
deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente,
na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade,
contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de
assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas (COSTA
JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4 ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 16-17).
Portanto, diante dessas preocupantes constatações acerca do talvez
inevitável - mas Admirável - Mundo Novo do hiperinformacionismo, o momento é
de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou
novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.
8. Outro aspecto a ser analisado é a aventada censura à liberdade de
imprensa.
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
No ponto, nunca é demais ressaltar o estreito e indissolúvel vínculo entre
a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda
se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua
e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para
sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do
qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode
descurar - nem o povo nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa
livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima
cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo
reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática.
É sintomática, nesse sentido, a mensagem conjunta de Ban Ki-moon,
Secretário-Geral da ONU, e Irina Bokova, Diretora-Geral da Unesco, proferida
no dia 3 de maio de 2013 (Dia Mundial da Liberdade de Imprensa), dando
conta de que, nos últimos dez anos, mais de 600 (seiscentos) jornalistas foram
mortos, muitos em cobertura de situações não conflituosas, e que nove entre
dez casos de homicídios de jornalistas permanecem impunes, circunstância
que renova a preocupação com a liberdade de imprensa ainda na atualidade
(Íntegra da mensagem disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/
about-this-office/single-view/news/joint_message_ununesco_on_the_ocasion_
of_world_press_freedom_day_2013/, acesso em 10.3.2013).
Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou
a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude
histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em
valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da
atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não
se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa
desprendida de regras e princípios a todos impostos.
O novo cenário jurídico subjacente à atividade da imprensa apoia-se no
fato de que a Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e de
manifestação do pensamento, assim o faz traçando as diretrizes principiológicas
de acordo com as quais essa liberdade será exercida, reafirmando, assim
como a doutrina sempre afirmou, que os direitos e garantias protegidos pela
Constituição, em regra, não são absolutos.
Desse modo, depois de a Carta da República afirmar, no seu art. 220,
que “[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”,
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
logo cuida de explicitar alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a
inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220,
§ 1º). Na mesma direção, como que o § 3º do art. 222, em alguma medida,
dirigisse o exercício de tal liberdade, afirma-se que “[os] meios de comunicação
social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do
serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221”, princípios dos
quais se destaca o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (inciso
IV).
Com isso, afirma-se com todas as letras que, não obstante a Carta estivesse
rompendo com o paradigma do medo e da censura impostos à manifestação do
pensamento, não se poderia hipertrofiar a liberdade de informação, doravante
garantida, à custa do atrofiamento dos valores que apontam para a pessoa
humana.
E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de
dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo
menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de
imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores.
Nos primeiros quadrantes do século passado, a atividade informativa - não
obstante fosse diariamente confrontada pela força opressiva do próprio Estado não o era com valores antes desprotegidos, e que só vieram a receber relevância
constitucional em 1988. Basta lembrar que a doutrina brasileira, em tempos
pretéritos, embora cogitasse da reparabilidade em tese do dano moral, resistia em
reconhecer o acolhimento desse direito no ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, confira-se o registro histórico de Yussef Said Cahali acerca
do tema:
Uma coisa é admitir a tese da reparabilidade do dano moral; outra coisa é
reconhecer que o nosso direito civil, em suas fases anteriores, a tivesse perfilhado.
Na fase da legislação pré-codificada, Lacerda de Almeida manifestou-se
adepto da teoria negativista da reparação: “As cousas inestimáveis repelem a
sanção do Direito Civil que com elas não se preocupa”.
Também Lafayette: “O mal causado pelo delito pode constituir simplesmente
em um sofrimento físico ou moral, sem relação direta com o patrimônio do
ofendido, como é o que resulta do ferimento leve que não impede de exercer a
profissão, ou de ataque à honra. Nestes casos não há necessidade de satisfação
pecuniária. Todavia, não tem faltado quem queira reduzir o simples sofrimento
físico ou moral a valor: são extravagâncias do espírito humano”.
460
Jurisprudência da QUARTA TURMA
[...]
Assim Orlando Gomes, reconhecendo que já então prevalecia a doutrina da
reparabilidade do dano moral, mas como o Código Civil de 1916 não inseria
qualquer preceito alusivo a ele, contestava os que se manifestavam no sentido de
que, perante o nosso direito, o dano moral poderia ser reparado (CAHALI, Yussef
Said. Dano moral. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 39-40).
Vale dizer, o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é
extraído diretamente da Constituição converge para a liberdade de “expressão, da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade
da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º,
inciso X).
Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação,
fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de
resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e
no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente
entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação
ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora
o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso
concreto.
Essa constatação se mostra consentânea, a meu juízo, com o fato de que, a
despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos
direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua
vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada
(art. 1º, inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito
- um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os
demais direitos posteriormente reconhecidos.
A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que
o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas
criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado,
edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância
que legitima, em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos,
sempre em vista os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que
algum sacrifício possa ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e
direitos.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na verdade, essa ideia de que o ser humano tem um valor em si que
supera o das “coisas humanas”, além de ser a base da construção da doutrina
da dignidade da pessoa humana, é ensinamento que já vai para mais de dois
séculos, e pode ser condensado nas seguintes palavras de Kant:
Agora eu afirmo: o homem - e, de uma maneira geral, todo o ser racional - existe
como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas
a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre
considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm um
valor apenas condicional, pois se não existissem as inclinações e as necessidades que
nelas se fundamentam seria sem valor o seu objeto. As próprias inclinações, porém,
como fontes das necessidades, tão longe estão de possuir um valor absoluto que
as torne desejáveis em si mesmas que, muito pelo contrário, melhor deve ser
o desejo universal de todos os seres racionais em libertar-se totalmente delas.
Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é
sempre condicional. Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas
na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo,
como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais
denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si
mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio
e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)
(KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Guido
Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009, pp. 58-59).
Na legislação infraconstitucional, adota-se com suficiente clareza essa
pauta, em regra, preferencial pela dignidade da pessoa humana quando em
conflito com outros valores, como, por exemplo, os arts. 11, 20 e 21 do Código
Civil de 2002:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade
são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação
voluntária.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra,
ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão
ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se
lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas
para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento
do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar
ato contrário a esta norma.
No Supremo Tribunal Federal, por ocasião da análise de um conflito entre
as normas do Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro da
Aeronáutica, juntamente com tratados internacionais, prevaleceu o primeiro por
razões de natureza constitucional fundadas na proteção da pessoa em detrimento
do serviço (RE n. 351.750, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/
Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 17.3.2009).
Colho do voto do Ministro Cezar Peluso o seguinte trecho:
Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor tem por escopo, não regrar
determinada matéria, mas proteger certa categoria de sujeito, ainda que também
protegido por outros regimes jurídicos (art. 7º). Daí seu caráter especialíssimo.
Enquanto as normas que compõem o chamado Direito Aeronáutico são especiais
por força da modalidade de prestação de serviço, o Código é especial em razão
do sujeito tutelado. E, como advém logo do princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana, há de, em caso de conflito aparente de normas, preponderar
o sistema direto protetivo da pessoa em dano do regime jurídico do serviço ou do
produto.
Resolvendo controvérsia idêntica, na relatoria do REsp n. 1.281.090-SP,
Quarta Turma, julgado em 7.2.2012, asseverei, com amparo da doutrina do
Ministro Herman Benjamin, que “enquanto o CBA consubstancia-se como
disciplina especial em razão da modalidade do serviço prestado, o CDC é
norma especial em razão do sujeito tutelado, e, como não poderia deixar de ser,
em um modelo constitucional cujo valor orientador é a dignidade da pessoa
humana, prevalece o regime protetivo do indivíduo em detrimento do regime
protetivo do serviço” (BENJAMIN, Antônio Herman V.. O transporte aéreo e
o Código de Defesa do Consumidor. in. Revista de direito do consumidor, n. 26,
abril/julho, 1998, Editora Revista dos Tribunais, p. 41).
Com efeito, no conflito entre a liberdade de informação e direitos da
personalidade - aos quais subjaz a proteção legal e constitucional da pessoa
humana -, eventual prevalência pelos segundos, após realizada a necessária
ponderação para o caso concreto, encontra amparo no ordenamento jurídico,
não consubstanciando, em si, a apontada censura vedada pela Constituição
Federal de 1988.
9. Outro aspecto a ser abordado é o suposto comprometimento da
historicidade de um tempo com o acolhimento do direito vindicado no presente
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
caso - crimes e criminosos que entraram para a história poderiam simplesmente
desaparecer -, assim também o conflito entre a tutela ora buscada e o inegável
interesse público que há por trás de noticiários criminais.
9.1. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial
do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens
capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de
determinada época.
Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos
da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por
inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento
político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trages
de banho, por exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato
de determinado momento e revelam as características de um povo na época
retratada.
Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar
uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride,
especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim
também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo
modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia.
E, de fato, é com uma inegável sensação de progresso ético e moral que
as páginas de Cesare Beccaria são lidas atualmente, quando dão notícia de um
gênero particular de delito:
[...] que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras,
onde corpos vivos serviam de pasto às chamas. Era um alegre espetáculo e uma
grata harmonia para a cega multidão ouvir os gemidos dos miseráveis, que saíam
dos vórtices negros de fumaça, fumaça de membros humanos, entre o ranger dos
ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes [...] (BECCARIA, Cesare
Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013 (Coleção RT - Textos Fundamentais), p. 132).
O que se espera é mesmo que as futuras gerações, por intermédio do
registro histórico de crimes presentes e passados, experimentem idêntico
sentimento de evolução cultural, quando, na posteridade, se falar em Chacina
da Candelária, Chacina do Carandiru, Massacre de Realengo, Doroty Stang,
Galdino Jesus dos Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel,
Honestino Guimarães ou Vladimir Herzog.
464
Jurisprudência da QUARTA TURMA
E há também quem queira exatamente o caminho inverso ao esquecimento,
o de perpetuar no imaginário de todos suas tragédias particulares até como
forma de reivindicação por mudanças do sistema criminal, fazendo de suas
feridas uma bandeira, como foi o caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes, importante personagem das reformas legislativas concernentes à
punição e prevenção da histórica violência doméstica e familiar contra a mulher,
cuja luta contribuiu para a edição da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
A historicidade da notícia jornalística, todavia, em se tratando de jornalismo
policial, há de ser vista com cautela por razões bem conhecidas por todos.
Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos, mas também há
crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos,
obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo
dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal
às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. No ponto, fazse necessário desmistificar a postura da imprensa no noticiário criminal, a
qual - muito embora seja uma instituição depositária de caríssimos valores
democráticos - não é movida por um desinteressado compromisso social de
combate ao crime.
Essa característica da imprensa voltada para o noticiário criminal é muito
bem explicitada pela Juíza Federal Simone Schreiber, em tese de doutorado
apresentada na UERJ sob a orientação de Luís Roberto Barroso, que traz
diversos estudos na área do jornalismo e do processo penal. Como exemplo,
a autora citou o trabalho da jornalista e professora da Universidade Federal
Fluminense Sylvia Moretzohn, acerca da lógica que guia a atividade de
imprensa, pondo novas luzes na falsa ideia de “mídia cidadã”:
A jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn,
em acurado estudo sobre a lógica empresarial da fabricação de notícia e a
construção da verdade jornalística, põe em discussão algumas premissas de
matriz iluministas que supostamente norteariam a atuação da mídia e que, na
verdade, cumprem a função (mistificadora) de conferir à imprensa um lugar de
autoridade, pairando acima das contradições sociais e ao mesmo tempo livre das
burocracias e controles que amarram as instituições estatais.
Segundo a autora, a ideia de que, no estado democrático, a imprensa cumpre
a função social de esclarecer os cidadãos, reportando-lhes a verdade de forma
desinteressada e neutra, esconde o fato de que as empresas de comunicação
agem, como não poderia deixar de ser, sob uma lógica empresarial; de que
as eleições de pauta envolvem decisões políticas (e não técnicas); e de que
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a “verdade” reportada nada mais é do que uma versão dos fatos ocorridos,
intermediada pela linha editorial do veículo e pela subjetividade dos jornalistas
que redigem a matéria (SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de
julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358).
O programa chamado Linha Direta - que guarda alguma semelhança
com o seu posterior Linha Direta Justiça -, veiculado pela emissora parte nos
presentes autos, também ganhou especial atenção no mencionado trabalho.
Segundo Schreiber, o programa valia-se das seguintes técnicas:
1. Em primeiro lugar, pontua flashes das cenas violentas protagonizadas por
atores (apenas flashes da reconstituição dramatizada dos fatos, retratando o
momento exato do cometimento do crime, pois a reconstituição integral será
apresentada ao longo do programa) e a apresentação da vítima, sua biografia,
geralmente através de depoimentos de seus parentes e amigos, e naturalmente
ressaltando suas qualidades e seus sonhos, dramaticamente interrompidos pela
tragédia ocorrida.
2. A estória começa a ser contada através de dramatização, conjugada com
depoimentos das testemunhas (estas reais). Aquele que é apontado como autor
do fato criminoso raramente é ouvido e quando o é, sua versão dos fatos é
imediatamente colocada em dúvida pelos esquetes de dramatização. O ator
que desempenha o papel de criminoso, além de guardar sempre traços físicos
parecidos com os do próprio, semelhança que é acentuada pela constante
transposição entre os arquivos jornalísticos e a dramatização, geralmente é
apresentado como uma pessoa cruel, fria, qualidades destacadas pelo sorriso
irônico, pelo olhar, pela fala, e ainda pelos recursos sonoros utilizados.
3. A principal técnica utilizada pelo Linha Direta é a conjugação de
jornalismo e dramatização. A transposição de imagens e dados jornalísticos
(fotos dos suspeitos, depoimentos dos familiares da vítima e de testemunhas,
depoimentos de policiais e promotores responsáveis pelo caso) para o ambiente
de dramatização se faz muitas vezes de maneira bastante sutil, de modo a criar
no telespectador a certeza de que os fatos se passaram exatamente da maneira
como estão sendo mostrados pelos esquetes de simulação.
Ao final do programa, o telespectador estará convencido da versão apresentada,
não restando qualquer dúvida de que os fatos se passaram daquela forma. A culpa
do criminoso está definitivamente comprovada. Saltam aos olhos, entretanto, os
riscos que podem advir de tal certeza. Não é difícil verificar em alguns casos a
fragilidade da versão dos fatos apresentados na televisão (SCHREIBER, Simone.
Op. cit., p. 362-363).
Ainda conforme noticiado por Schreiber, o programa foi inclusive objeto
de aprofundada pesquisa pela cadeira “Laboratório de Direitos Humanos”,
466
Jurisprudência da QUARTA TURMA
oferecida pelo Programa de Pós-Graduação da UERJ, tendo sido constatados
episódios em que “determinados fatos apresentados na reconstituição não
pod[iam] ser confirmados por ninguém, a não ser pelos próprios criminosos,
que, até então, estavam foragidos e portanto não foram ouvidos pela polícia
ou pela Justiça”, assim também “algumas cenas de simulação inspiradas em
suposições, pois a verdade dos fatos apontados é simplesmente impossível de
ser confirmada” (MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência. Um estudo do
linha direta. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2002).
Outra perniciosa disfunção da exploração midiática do crime é a potencial
influência direta no resultado do julgamento de delitos submetidos ao Júri, e,
mais grave, mediante a veiculação de provas inadmissíveis em juízo.
Não é novidade o uso, pelo jornalismo investigativo, de microcâmeras,
de interceptação de som ambiente ou de depoimento de “testemunhas”
não identificadas, espécies de prova cuja utilização em processo criminal é
unanimemente rechaçada pela jurisprudência e doutrina.
Porém, em um crime de repercussão nacional, a notícia jornalística
frequentemente está apoiada nessas provas colhidas informalmente, às quais o
popular - que posteriormente comporá o Conselho de Sentença - terá prévio
acesso direto de forma massificada, insistente e cansativa.
Em crimes dolosos contra a vida de grande repercussão, a exploração
midiática exacerbada faz com que o Conselho de Sentença tenha contato
com a “verdade jornalística” em tempo imensamente superior à “verdade dos
autos”, extraída da prova legitimamente produzida no processo e submetida
ao contraditório, circunstância que influencia - quando não efetivamente
compromete - o julgamento justo, do ponto de vista do devido processo legal
substantivo, a que todo acusado tem direito.
Pelo menos em meia dúzia de crimes noticiados nacionalmente na última
década, não se pode negar, os acusados já iniciaram o julgamento condenados,
e com essa condenação popular prévia e sumária, certamente, contribuiu a
natural permeabilidade dos jurados ao hiperinformacionismo a que tiveram amplo
contato anteriormente.
Com efeito, a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada
à custa das mencionadas vicissitudes, e, por isso, penso que a historicidade
do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento
de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão
ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar
permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro
já fora cometido no passado.
Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode
significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja
de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da
exploração populista da mídia.
Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para
o desate de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso,
devendo ser aferida também a possível artificiosidade da história criada na
época.
9.2. Quanto ao interesse público subjacente ao delito, assim também
na cobertura do processo criminal, cumpre ressaltar que, pelo menos nos
crimes de ação penal pública, esse interesse sempre existirá, caso contrário nem
seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam nos domínios da
responsabilidade civil.
Nesses casos, além de violação a direitos individuais, o crime eleito pela lei
como de ação penal pública constitui lesão a interesses da própria sociedade –
ou no mínimo uma ameaça.
Assim, há legítimo interesse público em que seja dada publicidade da
resposta estatal ao fenômeno criminal, na esteira do alerta de Martin Luther
King, para quem “a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos.
A injustiça que se comete em um lugar é uma ameaça à justiça em todos os
lugares”.
Não obstante, é imperioso também ressaltar que o interesse público –
além de ser conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do
público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração pública,
praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada.
Essa é a doutrina constitucionalista sobre o tema:
Decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse
do público. O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias
relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio,
notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para
prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que
postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
a garantia da privacidade (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 373).
Por outro lado, dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação
de casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos
envolvidos pode confrontar a própria letra da Constituição, que prevê solução
exatamente contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, inciso LX):
A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa
da intimidade ou o interesse social o exigirem.
A solução que harmoniza esses dois interesses em conflito é a preservação
da pessoa, com a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a
resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença
ou do julgamento, nos termos do art. 155 do Código de Processo Civil e art. 93,
inciso IX, da Constituição Federal.
10. Cabe agora enfrentar a tese de aplicação do direito ao esquecimento no
direito brasileiro.
No ponto, ressalto que é pelo Direito que o homem, cravado no
tempo presente, adquire a capacidade de retomada reflexiva do passado –
estabilizando-o – e antecipação programada do futuro – ordenando-o e
conferindo-lhe previsibilidade. Tempo e Direito, portanto, são fenômenos que
guardam relação intrínseca, de modo que tanto o Direito confere significação à
passagem do tempo, quanto este interfere na manifestação do Direito.
Caso contrário, o tempo, para o ser humano, seria mero “tempo cronológico,
uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida” (FERRAZ JUNIOR,
Tércio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. In. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n. 3. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica
Jurídica, 2005, p. 265).
Sobre o tema, François Ost, filósofo do direito e professor na Faculdade
Saint Louis, Bruxelas, assevera que a “justa medida temporal” à que o Direito
visa:
[...] permite entrever, na verdade, o duplo temor suscitado pela ação
coletiva: de uma parte, do lado do passado, o perigo de permanecer fechado na
irreversibilidade do já advindo, um destino de carência ou de infelicidade, por
exemplo, condenada a perpetuar-se eternamente; de outra parte, do lado do futuro,
o pavor inverso que suscita um futuro indeterminado, cuja radical imprevisibilidade
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priva de qualquer referência. Nenhuma sociedade se acomoda com seus temores;
tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente,
a desligar o passado e ligar o futuro (OST, François. O Tempo do direito. Tradução
Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 38).
Em termos de instrumental jurídico, o Direito estabiliza o passado e
confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos:
prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em alguns desses casos, a justiça
material, por vezes fetichista, sede vez à segurança jurídica que deve existir nas
relações sociais.
Especificamente quanto à prescrição, afirma Ost ser ela o “direito a um
esquecimento programado”, ressaltando também a especial aplicação do direito
ao esquecimento no direito ao respeito à vida privada:
Em outras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela
jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do
direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não,
fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade –
muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de
determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento
e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. Em uma decisão de 20
de abril de 1983, Mme. Filipachi Cogedipresse, o Tribunal de última instância de
Paris consagrou este direito em termos muito claros: “[...] qualquer pessoa que
se tenha envolvido em acontecimentos públicos pode, com o passar do tempo,
reivindicar o direito ao esquecimento; a lembrança destes acontecimentos e
do papel que ela possa ter desempenhado é ilegítima se não for fundada nas
necessidades da história ou se for de natureza a ferir sua sensibilidade; visto que
o direito ao esquecimento, que se impõe a todos, inclusive aos jornalistas, deve
igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados que pagaram sua dívida
para com a sociedade e tentam reinserir-se nela (OST, François. Op. cit. p. 160-161).
10.1. Sobre o caso Marlene Dietrich – julgado no Tribunal de Paris -, René
Ariel Dotti afirma ter sido uma pedra fundamental na construção do direito ao
esquecimento, tendo a Corte parisiense reconhecido expressamente que
“as recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu
patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção
malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a
vida”.
O direito ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da
vida privada, estava então consagrado definitivamente pela jurisprudência, após
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
um lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar pronunciada pelo
advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer
em paz”! (DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92).
Na jurisprudência de direito comparado, além do que já foi acima citado,
colacionam-se outros julgamentos que reconheceram explicitamente o direito
ao esquecimento como uma decorrência imediata do direito à privacidade,
notadamente no caso “Melvin vs. Reid” – ocorrido em 1931, no Tribunal de
Apelação da Califórnia – e o caso “Lebach” – República Federal da Alemanha.
Em “Melvin vs. Reid”, figurava no litígio Gabrielle Darley, que havia se
prostituído e acusada de homicídio no ano de 1918, posteriormente tendo sido
inocentada. Gabrielle abandonara a vida licenciosa e constituiu família com
Bernard Melvin, readquirindo novamente o prestígio social. Ocorre que, muitos
anos depois, Doroty Davenport Reid produziu o filme chamado Red Kimono,
no qual retratava com precisão a vida pregressa de Gabrielle. O marido Melvin,
então, buscou a reparação pela violação à vida privada da esposa e da família,
tendo a Corte californiana reconhecido a procedência do pedido, entendendo
que uma pessoa que vive um vida correta tem o direito à felicidade, no qual
se inclui estar livre de desnecessários ataques a seu caráter, posição social ou
reputação (DOTTI, René Ariel. Op. cit. p. 90-91).
Em Lebach, 1969, um lugarejo situado na República Federal da Alemanha,
ocorrera uma chacina de quatro soldados que guardavam um depósito de armas e
munições, tendo sido condenados à prisão perpétua dois acusados, e um terceiro
partícipe a 6 anos de reclusão. Uma TV alemã produziu, então, documentário
que retrataria o crime mediante dramatização por atores contratados, em cuja
veiculação, todavia, seriam apresentadas fotografias reais e os nomes de todos os
condenados, inclusive as possíveis ligações homossexuais que existiam entre eles.
O documentário seria apresentado em uma noite de sexta-feira, dias antes de o
terceiro condenado deixar a prisão após o cumprimento da pena. Este pleiteou
uma tutela liminar para que o programa não fosse exibido, arguindo a proteção
de seu direito ao desenvolvimento, previsto na Constituição alemã. Ascendendo
o caso até o Tribunal Constitucional alemão, a Corte decidiu que a rede de
televisão não poderia transmitir o documentário caso a fotografia ou o nome do
reclamante fossem expostos. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face
de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de
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radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também
a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida
de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens
jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e
o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto.
2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística
(Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de
interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung)
da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção
à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode
outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência
[absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no
âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da
população.
3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação
da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do
criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível
área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação
do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A
proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se
ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além
da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será,
de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual,
de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso,
especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização).
10.2. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida
da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos
centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo
infraconstitucional.
A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o
simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é
repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do
tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se
ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar.
No âmbito civil, por exemplo, a prescrição é um grande sinalizador da
vocação do sistema à estabilização das relações jurídicas.
Também no direito do consumidor, o prazo máximo de cinco anos para
que constem em bancos de dados informações negativas acerca de inadimplência
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Jurisprudência da QUARTA TURMA
(art. 43, § 1º) revela nítida acolhida à tese do esquecimento, porquanto, paga ou
não a dívida que ensejou a negativação, escoado esse prazo, a opção legislativa
pendeu para a proteção da pessoa do