Pessoas mais pobres e com menos formação comem alimentos

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Pessoas mais pobres e com menos formação comem alimentos
alimentação
à mesa
crise
com
a
TEXTO DE CÉLIA ROSA
34 NOTÍCIAS Magazine
Pessoas mais pobres
e com menos formação comem
alimentos mais baratos
e calóricos. A crise aumenta
a pobreza... e a obesidade
também. Fazer uma
alimentação variada e saudável
é um luxo a que cada vez menos
portugueses se podem dar.
Fomos às compras
e procurámos saber como
dar a volta a esta situação.
S
er pobre e não ter estudos é meio caminho andado para ser gordo e ficar doente. Pode parecer
estranho, com a ideia que se tem da pobreza, geralmente associada à fome e à magreza. Mas nas
sociedades desenvolvidas a fome é outra. É nutricional. As pessoas com menos recursos e menor escolaridade comem produtos de alto valor
calórico, com muitos açúcares e gorduras saturadas, que são mais baratos e saciantes. Já as famílias com mais
recursos e informação privilegiam os alimentos com maior riqueza nutricional, de preferência da agricultura biológica, sem
químicos e outros aditivos tóxicos, mas muito mais caros.
Isabel do Carmo, endocrinologista e professora na Faculdade de
Medicina de Lisboa, fala de «desnutrição». E estar desnutrido pode
não ter nada que ver com comer pouco. A médica, habituada a ver
pacientes obesos em hospitais públicos, sabe de cor a explicação
para o fenómeno: «Os pobres fazem refeições à base de farináceos
e de gorduras. A gordura é muito saciante e no prato aparece sempre alguma coisa parecida com carne, como o toucinho ou o entrecosto. As famílias pobres comem também muito arroz de frango ou
massa com frango e aproveitam a pele porque tem muita gordura.
Como os doces são relativamente baratos, dão bolos e bolachas às
crianças. Um queque custa um euro e uma família pode ter muita
dificuldade em pagar a renda da casa, a água e a luz, mas tem sempre um ou dois euros para comprar um doce a uma criança. É uma
compensação. Não é saudável, mas entendo perfeitamente que as
pessoas o façam.» Deste tipo de alimentação resultam carências
de ferro, vitamina B12 e ácido fólico. «Mas pode não haver carência
de calorias. Até pode haver excesso de calorias de má qualidade.»
Por isso, quando a pobreza cresce, a obesidade também aumenta. «São muitos os trabalhos que associam a condição económica
com a obesidade. Em Portugal não há estudos, mas em Espanha,
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alimentação
elevado teor de gordura
Gorduras boas
O frango e a sardinha (o único alimento comum aos dois cabazes) são as fontes de proteínas mais baratas.
A gordura saturada está associada à doença cardiovascular e o ómega 6 aumenta os processos inflamatórios.
O robalo, a sardinha e o sushi são ricos em ómega 3. As algas têm muito cálcio.
A carne biológica tem maior riqueza nutricional e não contém pesticidas.
Pastéis
de bacalhau
100 g – ¤0,14
226 kcal
Salsichas
1 lata – ¤ 0,79
238 kcal
Rissóis
100 g – ¤ 0,23
281 kca
Peito de frango biológico
100 g – ¤ 0,82
108 kcal
Sushi (congelado)
100 g – ¤ 2,13
135 kcal
Robalo do mar
100 g – ¤ 1,90
145 kcal
Frango inteiro
100 g – ¤ 0,19
201 kcal
Sardinha
100 g – ¤ 0,29
221 kcal
Costeletas de porco
100 g – ¤ 0,39
355 kcal
Entremeada
100 g – ¤ 0,29
676 kcal
Ovos de codorniz
100 g – ¤ 01,89 | 75 kcal
sem pesticidas
baratos e produzidos em massa
Os legumes e frutos biológicos são ricos
em minerais, vitaminas e fibra e estão
isentos de agrotóxicos. Os frutos vermelhos
e as bagas goji contêm antioxidantes
Atenção: as peras e maçãs consumidas fora
de época são armazenadas em espaços
de atmosfera controlada durante meses
a fio e perdem vitalidade.
Pera
100 g – ¤ 0,07
41 kcal
Brócolos
100 g – ¤ 0,44 | 22 kcal
Pimento vermelho
100 g – ¤ 0,46 | 22 kcal
Papaia
100 g – ¤ 0,19 | 39 kcal
Rúcula
100 g – ¤ 0,34
25 kcal
Laranja
100 g – ¤ 0,07 | 42 kcal
Framboesas
100 g – ¤ 1,90
52 kcal
Maçã 100 g – ¤ 0,09
57 kcal
Tomate
100 g – ¤ 0,07 | 19 kcal
Mirtilos
100 g – ¤ 2,60
57 kcal
Abóbora
100 g – ¤ 0,34
9 kcal
Cenoura
100 g – ¤ 0,03 | 19 kcal
Alface
100 g – ¤ 0,10 | 12 kcal
Espinafres
100 g – ¤ 0,43
22 kcal
cabaz pobre
França e nos EUA a prevalência de obesidade é muito superior nos
grupos mais vulneráveis da população e está associada a outras
doen­ças, ao desemprego, a faltas frequentes ao trabalho, criando um círculo vicioso de pobreza e doença», afirma Pedro Graça, professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação
(FCNA) da Universidade do Porto (UP).
Só na Europa, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 20 e 25 por cento da obesidade dos homens e 40 a
45 por cento da obesidade das mulheres seja consequência das
diferenças no estatuto socioeconómico. Esta é também a razão
fundamental para o aumento das doenças não transmissíveis
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Sardinha
100 g – ¤ 0,29 | 221 kcal
Cogumelos
100 g – ¤ 0,60
14 kcal
Bagas goji
100 g – ¤ 2,60
344 kcal
cabaz rico
– cardíacas, cerebrovasculares, obesidade, diabetes, cancro,
doenças inflamatórias e autoimunes –, que afectam sobretudo
as populações mais carenciadas.
Fome de barriga cheia
Com a crise, é cada vez maior o número de famílias apanhadas na
teia da malnutrição. Manuel e Fátima Mestre já a sentem na pele e… na mesa. Moram em Linda-a-Velha, Oeiras. Ele ficou desempregado das obras, ela procura «patroas», pois as duas «senhoras»
onde trabalhava prescindiram da ajuda doméstica. Encontrámo-los à saída do supermercado. Ele trazia uma caixa de vinho numa
mão, um saco de batatas de dois quilos na outra. Num saco, Fátima
guardava comida para o resto da semana. «Fui ao mais barato», assume. Pão [quatro bolinhas, tipo chapata, brancas], chouriço, duas
latas de salsichas, meia dúzia de ovos, duas latas de atum, duas pizas de fiambre, um saco de maçã miúda. «Arroz e massa temos em
casa com fartura, isso nunca falta. No domingo, compro um franguinho e faço um estufado e às vezes pomos uma entremeada no
fogareiro, com umas batatas fritas e já está, toda a gente gosta. Mesmo assim, só aqui estão mais de 15 euros.»
Fátima não tem a consciência de que o seu cabaz de compras
inclui todos os erros alimentares que a nutricionista Daniela
Seabra, especialista do Hospital de Santa Maria da Feira e da clínica da médica Cristina Sales, no Porto, associa à obesidade por
razões económicas e sociais: «O consumo de carnes com maior
teor de gordura saturada, cereais refinados e açucarados e gorduras de adição está associado a grupos mais desfavorecidos.
No hospital, por exemplo, tenho acompanhado grávidas com
diabetes que continuam a comer croissants ao pequeno-almoço mesmo depois de informadas sobre os riscos dos açúcares.»
a família Mestre nunca pensou na relação entre a alimentação
e a saúde, mas desde que foi afetada pelo desemprego que tem um
lema: come-se o que se pode. «O que importa é não passar fome.
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PERFIL
alimentação
hidratos de carbono baratos e calóricos
cereais integrais
Os alimentos baratos e calóricos devem ser consumidos com moderação por causa dos açúcares (associados à diabetes e às doenças
metabólicas). As farinhas refinadas e a fermentação curta provocam reações ao glúten e distensão abdominal (inchaço).
Fornecem vitamina E, vitaminas do complexo B e minerais como selénio, zinco, cobre, ferro, magnésio e fósforo. Ricos em
hidratos de carbono complexos e fibras. Aumentam a saciedade, favorecem o trânsito intestinal, reduzem o risco de doença.
Arroz
100 g – ¤ 0,07
363 kcal
Esparguete
100 g – ¤ 0,05
358 kcal
Carcaça
1 un. – ¤ 0,07 | 283 kcal
Bolachas Maria
100 g – ¤ 0,08 | 436 kcal
O leite é a escolha mais barata. Já os iogurtes de aromas são açucarados e o queijo tem gorduras saturadas e sal. Fiambre barato
e salame têm pouca carne e podem ter um aditivo tóxico – glutamato monossódico ou E621 – que provoca hiperexcitação cerebral.
Salame 100 g – ¤ 1,00
422 kcal
Queijo fatiado
100 g – ¤ 0,60
316 kcal
Fiambre da pá
100 g – ¤ 0,49 | 330 kcal
Leite meio gordo
100 g – ¤ 0,05
47 kcal
cabaz pobre
Desde que se tenha a barriguinha cheia já não estamos mal», diz
Manuel. Mas Fátima, mais informada, lembra o marido sobre «o
médico que foi à televisão dizer que quem come muitos bolos é
que tem diabetes».
Diferenças no cabaz
Para melhor compreender a relação entre as condições económicas e as opções alimentares, a Notícias Magazine pediu ajuda
à nutricionista Daniela Seabra e organizou dois cabazes de compras. Um, o cabaz geralmente usado na alimentação das famílias
desfavorecidas [ver imagens nestas páginas], custou 33,03 euros e é
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Arroz selvagem
100 g – ¤ 1,00
352 kcal
Cuscuz
100 g – ¤ 0,44
112 kcal
constituído por muitas carnes gordas e hidratos de carbono (arroz, batatas, massas baratas, pão de cereais refinados, bolos e refrigerantes). O segundo, com maior valor nutricional e escolhas
mais amigas da saúde e do ambiente, contém mais proteínas, cereais integrais, gorduras monoinsaturadas e ómega 3, muita fruta e legumes, e custou 113,28 euros. Quase quatro vezes mais!
Para escolher os alimentos de cada cabaz, Daniela Seabra baseou-se no que sabe e observa nas consultas: «As pessoas mais humildes ingerem com maior frequência fritos e açúcares. O consumo de cereais integrais, carnes magras, peixe, laticínios magros e
hortofrutícolas, de preferência da agricultura biológica, é opção
Pão integral com sementes
100 g – ¤ 0,42
244 kcal
Bolachas marinheiras
100 g – ¤ 0,70
443 kcal
Madalenas
100 g – ¤ 0,18 | 404 kcal
lanches com açúcar e conservantes
Iogurtes de aromas
100 g – ¤ 0,14
82 kcal
Massa integral (esparguete)
100 g –¤ 0,98
362 kcal
lanches biológicos
As mesas mais fartas têm
muita preocupação com a
origem do que comem, sobretudo
do que comem cru. Fruta,
iogurtes e leites biológicos
têm menos químicos.
Leite meio
gordo biológico
100 g – ¤ 0,14
45 kcal
Iogurte biológico
100 g – ¤ 1,29
42 kcal
Alimentação saudável
tem de ser prioridade
E
m Portugal, o excesso de peso e a obesidade são um dos
principais problemas de saúde e a sua prevenção é considerada tão urgente que entre oito programas de saúde prioritários
da Direção-Geral da Saúde (DGS) está o Programa Nacional de
Promoção de Alimentação Saudável (PNPAS). Pedro Graça,
coordenador do programa e professor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, diz
que a sua finalidade «é melhorar o estado nutricional da população, incentivando a um padrão alimentar saudável». E explica
porquê: «Um consumo alimentar adequado e a consequente
melhoria do estado nutricional dos cidadãos tem um impacte na
prevenção e no controlo das doenças mais prevalentes a nível
nacional – cardiovasculares, oncológicas, diabetes e obesidade.» Para conhecer as atividades do PNPAS ou saber como cozinhar saudável a baixo custo: www.alimentacaosaudavel.dgs.pt.
cabaz rico
dos grupos populacionais de nível socioeconómico mais elevado,
que procuram mais informação sobre os alimentos saudáveis.»
É o caso da família de Maria da Conceição, engenheira eletrotécnica da Nave, em Lisboa, casada com um engenheiro mecânico,
mãe de três filhos (os dois mais velhos estão na universidade), residente em Caxias. Como muitas famílias, a sua também teve uma
enorme quebra no rendimento disponível em 2012, mas isso não
afetou as escolhas racionais que faz no que à comida diz respeito:
«Tirando o açúcar dos cereais que os miúdos comem todos os dias
ao pequeno-almoço, penso que fazemos uma alimentação equilibrada. Hoje, pagamos mais impostos e até 2011 eu recebia muito
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alimentação
gorduras más
antioxidantes, polifenóis e gordura saudável
As ómega 6, que se encontram na margarina e óleos de soja, milho e amendoim, estão
associadas às doenças inflamatórias e eliminam os efeitos das gorduras ómega 3.
O azeite é a gordura de eleição. Nozes, amêndoas e avelãs contém gorduras polinsaturadas
e vitamina E. O chocolate preto (75 por cento de cacau) é rico em antioxidantes.
Chocolate preto
100 g – ¤ 1,00
520 kcal
Margarina
100 g – ¤ 0,06
524 kcal
Azeite
100 g – ¤ 0,42
900 kcal
Nozes sem casca
100 g – ¤ 3,99
689 kcal
Óleo
100 g – ¤ 0,13
896 kcal
refrigerantes
Os sumos processados não são mais do que água com açúcar
e aditivos alimentares. Não têm qualquer valor nutritivo.
Refrigerantes
100 g – ¤ 0,04
42 kcal
cabaz pobre
dinheiro em horas extraordinárias, o que acabou. Mas para a comida ainda chega e não foi preciso mudar os hábitos alimentares.
Durante a semana comemos mais carne, aos fins de semana optamos por refeições de peixe fresco, e só a mais nova é que ainda resmunga com as hortaliças, saladas e leguminosas. Come na sopa.
A única mudança é que deixámos de ir a restaurantes, ou melhor,
raramente vamos», acrescenta Maria de Fátima.
Menos por menos
Com o arrastar da crise, o aumento do desemprego e a quebra generalizada nos rendimentos das famílias – incluindo as reformas
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Milhões de portugueses obesos
A
obesidade é um dos maiores problemas de saúde pública
em Portugal. Segundo dados do último estudo realizado,
nos adultos, 53,3 por cento de homens e 27,8 por cento de mulheres são pré-obesos – valores de Índice de Massa Corporal
(IMC) entre 25,0 e 29,9 kg/m2. Segundo este estudo da Sociedade Portuguesa para as Ciências da Nutrição e Alimentação,
a prevalência de obesidade para valores de IMC entre 30,0 e
39,9 kg/m2 é de 10,9 por cento em homens e de 9,5 por cento
em mulheres. Com IMC superiores ou iguais a 40 kg/m2 estão
0,3 por cento dos homens e 0,9 por cento das mulheres.
e as prestações sociais –, é previsível o crescimento da pobreza
e o agravamento das desigualdades sociais. Para Pedro Graça, o
professor da FCNA da UP, «as pessoas mais expostas são as que
estão afastadas do setor produtivo e não têm a tradição de pedir
ajuda – as populações urbanas com filhos, em que repentinamente um ou dois membros do agregado familiar ficam desempregados. Outro grupo vulnerável é o dos idosos com pensões baixas,
situações de doença e com uma rede de suporte social e familiar
Amêndoas sem casca
100 g – ¤ 1,74 | 626 kcal
Avelãs sem casca
100 g – ¤ 1,49 | 677 kcal
Vinho tinto e
sumos naturais
Um copo de vinho tinto
por refeição para os
homens, um por dia
para as mulheres.
O vinho é rico em
polifenóis, que têm
ação antioxidante
e anti-inflamatória.
O sumo natural tem
vitaminas e minerais,
mas não tem fibra.
Sumo natural
100 ml – ¤ 0,35 | 41 kcal
Vinho tinto
100 ml – ¤ 1,15 | 65 kcal
cabaz rico
frágil. Aqui a desnutrição pode associar-se facilmente à doença aguda,
o que aumenta o risco de infeção».
A pobreza está, de facto, a aumentar em Portugal. Os dados do
Inquérito ao Rendimento e Condições de Vida confirmam que, já
em 2010, havia 18 por cento da população – mais de 1,9 milhões de
pessoas – em risco. Um risco maior para os idosos (20 por cento),
para os menores de 18 anos (22,4 por cento) e para os desempregados (36 por cento). Há três anos, a pobreza atingia 10 por cento
da população empregada; 17,9 por cento dos reformados e 20 por
cento das famílias com crianças dependentes.
Os efeitos já se fazem sentir nos supermercados – os portugueses estão a ir menos vezes às compras e a gastar menos dinheiro:
«De acordo com dados da Nielsen, nos últimos três anos, as visitas a grandes superfícies e supermercados caíram 9,8 por cento. Até junho de 2009, as famílias deslocavam-se a estas lojas, em
média, 123 vezes por ano. Mas em 2011 este valor desceu para 111,
o que significa que os portugueses eliminaram uma ida às compras em cada mês. Além disso, compram produtos mais baratos
e optam mais pelas marcas próprias. A fatura do supermercado
também continua a descer: o valor médio passou de 27,32 euros
para 26,97 euros [menos 1,3 por cento]», dizPedro Graça, citando
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alimentação
um estudo publicado na revista Ter Opinião 2012, uma publicação da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O professor da Universidade do Portp refere outras mudanças
nos gastos com a alimentação e fala de um estudo sobre as lojas
do grupo Jerónimo Martins que «evidencia uma redução no consumo de todas as carnes que custam mais de sete euros por quilo.
A mudança é semelhante no peixe: os produtos com preços superiores a 15 euros caíram 45 por cento. Os consumidores não deixaram de consumir peixe, mas preferem os mais baratos, como o
carapau e a dourada de aquicultura. E, mesmo no caso do camarão, é nos preços mais altos que a procura desce mais – perto de
50 por cento. Já o bacalhau parece mais resistente à crise: vendeu-se mais, mas foram também as vendas de bacalhau corrente,
o mais barato, que mais subiram».
Soluções à vista
Cristina Sales, médica e uma das maiores especialistas portuguesas
em nutrição, diz que vivemos uma situação de emergência e aponta
soluções: «As pessoas têm de se perguntar como podem utilizar bem
o pouco dinheiro que têm. Comprar por impulso, por influência do
marketing e da publicidade, sem escolher e ler os rótulos das emba­
lagens, é uma má opção para a carteira e para a saúde. Pelo que oiço
nas consultas e observo nos supermercados, penso que o pouco di­
nheiro disponível de muitas famílias poderia ser melhor gasto se se
Despesa das famílias
D
e acordo com dados do último Inquérito às Despesas da
Famílias, do Instituto Nacional de Estatística, em 2009
e em média, cada família portuguesa teve um rendimento
líquido de 23 811 euros e despesas no valor de 20 391 euros.
Do total da despesa, 5958 euros destinaram-se à casa (incluindo água, eletricidade, gás e outros combustíveis) e 2957
euros foram gastos em transportes. Em produtos alimentares
e bebidas não alcoólicas cada família terá gasto 2703 euros,
ou seja, 13,3 por cento da despesa total anual. Menos do que
em 2000, ano em que os custos da alimentação representavam 18,7 por cento do total das despesas das famílias.
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prescindisse de produtos desnecessários como bolachas, doces, refrigerantes, cremes e margarinas para barrar.» A médica do Porto
diz que «as pessoas precisam de se organizar para ter tempo para cozinhar. Fazer as refeições em casa é mais económico e saudável do
que ceder ao princípio da escolha automática, do prazer, do mais fácil, do abre a lata ou põe no micro-ondas e já está».
Na cidade e no campo, as hortas devem ser uma prioridade, diz a
médica. «Os legumes e os hortícolas são muito caros e quem tem recursos limitados deve ponderar produzi-los. Para que uma família de
quatro pessoas tenha hortaliça fresca todo o ano, basta um talhão de
terra de 12 por 12 metros. Claro que é preciso saber cultivar, mas isso
aprende-se. Há cada vez mais juntas de freguesia, mesmo nas grandes cidades, a apostarem nas hortas e muito bem. Produzir o que se
come é uma das melhores saídas para a crise da alimentação.»
A prova está no dia a dia da família de António e Manuela Silva,
de Beja, ambos com o nono ano feito no programa Novas Oportunidades, agora apanhados pela crise e pelo desemprego. Têm um
filho de 14 anos. Ele era vendedor de pequenos eletrodomésticos,
roupa e outros artigos para a casa e ela acompanhava-o nas deslocações, de aldeia em aldeia: «Até há três anos vivíamos das vendas,
sem luxos mas sem faltas. De repente, as mulheres começaram a
atrasar-se no pagamento das prestações, depois deixaram de comprar e eu fiquei com a mercadoria e milhares de euros em dívida aos
fornecedores. Para pagar tive de contrair um empréstimo e estamos aflitos com as prestações da casa, da carrinha e mais esta. Falta-nos dinheiro para tudo, para a comida também», confirma António. O filho do casal, Tiago João, almoça todos os dias na cantina
da escola e não paga as refeições. O que lhes vale é a ajuda dos familiares que têm horta e galinhas e que os abastecem do que produzem: «Até comida já feita, sobretudo grão, feijão e sopa. Eu também
faço muitas açordas e é assim que nos vamos arranjando. Já não me
lembro da última vez que fui às compras», diz Manuela.
Num ponto, todos os especialistas são unânimes: é possível fazer
mais com menos. Pedro Graça, também fala do «desinvestimento
familiar e educativo na capacidade de comprar, confecionar e armazenar alimentos a baixo custo» e assinala «a demissão ou a incapacidade de muitos pais jovens na opção saudável à mesa de casa».
Para o professor, a saída para o problema passa pela informação e
a disponibilização de soluções alimentares equilibradas e económicas. «Portugal tem uma grande tradição alimentar de consumo
equilibrado a baixo custo. Por exemplo, sopas, pratos com leguminosas (feijão, grão, favas, lentilhas, ervilhas), pão de qualidade, laticínios, fruta e diferentes espécies de peixes de mais baixo custo podem ajudar a reduzir o problema alimentar de forma equilibrada.
Somos um país de tradição agrícola e piscatória onde não faz sentido ter à mesa comida de má qualidade proveniente de lugares que
ficam a milhares de quilómetros de distância.»
Isabel do Carmo concorda mas diz que a estratégia tem de ser
outra. «E é política. A refeição escolar, o banco alimentar, as paróquias, as juntas de freguesia, ajudam a não morrer de fome. Mas
não chega. Deem a volta que quiserem aos números, mas em Portugal há pelo menos dois milhões de pessoas pobres e que têm
muita dificuldade em conseguir garantir alimentos para matar a
fome. Não nos podemos conformar!»
Fotografias de Rafael Azevedo/Global Imagens. Produção de Fernanda
Brito. A Notícias Magazine agradece a Rute Marrucho e Maria Judite Brito.

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