77 ROGÉRIO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS * Sumário. 1. O

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77 ROGÉRIO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS * Sumário. 1. O
ROGÉRIO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS *
Sumário. 1. O Caso da Escola Base. 2. A liberdade de imprensa. 3.
Conclusão. 4. Referências.
Resumo.
O presente artigo objetiva revisitar o “Caso Escola Base” e pugnar
perspectivas de sua observação sob os ângulos de leviandade, ética e liberdade de
imprensa.
Palavras-chave. Caso Escola Base. Direito à informação. Liberdade de
imprensa.
Abstract.
This article aims to revisit the “School Base Case” and push their
prospects for observation under the angles of levity, ethics and freedom of the press.
Keuwords. School Base Case. Right to information. Free press.
A maldição do fatalismo
reside no fato de que basta acreditar nele
para que ele se torne real. Roger Garaudy.
1. O Caso da Escola Base78.
No mês de março de 1994, surgiu na imprensa uma notícia que chocou o
país: a Escola de Educação Infantil Base, a Escola Base, localizada no bairro da
de obter um instantâneo feed-back acerca do escrito e do tema. Ei-las. Opinião de Otávio Augusto Rossi
Vieira, postada em 15-02-2006, às 17:55 h: Aprendi mais um pouco sobre o papel da imprensa no país.
Advirta-se, pois, [fazendo referência à emissora de televisão], e outras por aí, a pararem de veicular
diálogos gravados através de interceptação de dados (com autorização judicial ou não, expondo ao
mundo, os acusados de hipótese criminosa. Não se pode usar a imprensa como órgão julgador (trial by
midia). Não é bom para ninguém a exposição de denúncias criminosas, verdadeiras ou falsas.
Contamina-se o mundo com a descarga energética negativa que isso produz na alma humana. Deixem
aos tribunais de justiça e aos profissionais do direito (que estudam de 5 a 10 anos para graduação e
especialização) a responsabilidade do julgamento e a oitiva (inteira) das gravações interceptadas.
Opinião de leitor que se autodenominou “Olho Vivo”, postada em 15-02-2006, às 16:40 h: Excelente o
artigo. Porém existiram diversos casos depois desse, menos visíveis, e a imprensa ainda não aprendeu a
questionar o que lhe passam os investigadores, delegados e procuradores. É mais cômodo seguir com a
manada e publicar, mesmo que haja incongruência na versão oficial ou não-oficial. É a briga pelo furo,
sem qualquer responsabilidade pela sorte alheia. Opinião de Fábio Soibelman, postada em 16-02-2006,
às 10:53 h: Tudo o que eu queria saber é se as indenizações chegaram, num cálculo muito otimista para
o lesado pela imprensa, a cinco por cento do que o jornal faturou através do escândalo. Cf. as opiniões
no sítio jurídico Consultor Jurídico, passível de acesso no endereço eletrônico
<http://conjur.estadao.com.br/static/text/41958,1>. Acesso em 16-02-2006.
78
Excepcional trabalho de reconstrução dos fatos a partir da cobertura da imprensa no Caso Escola Base
pode ser encontrada em RIBEIRO, Alex. Os Abusos da Imprensa: Caso Escola Base. Pref. de Carlos
Brickman. São Paulo: Ática, 2ª ed., 2ª reimp., 2001, 167 p.
77
Aclimação, em São Paulo, seria responsável por abusos sexuais em alunos de idade
tenra. No total, seis pessoas foram acusadas dos crimes, dentre elas proprietários,
transportadores das crianças e colaboradores da escola.
A denúncia partiu de duas mães de alunos. Tornou-se manchete vulgar de
jornais impressos e telejornais. O clamor público culminou com a invasão do prédio da
escola – que era alugado – e a sua total destruição. Sobreveio o massacre público e
jornalístico79 dos acusados e a destruição completa de suas vidas pessoais e
profissionais.
Instaurado o inquérito policial, identificou-se uma suposta mansão onde
os ditos abusos aconteciam. Seu proprietário, um estrangeiro, teve a vida devassada e
desmoralizada publicamente. A polícia “confirmou” à imprensa a existência dos crimes.
Por fim, o laudo das supostas lesões do Instituto Médico Legal, primeiramente dúbio, e
em seguida reticente80, acabou por não concluir acerca da existência da violência, não
derrubando hipóteses outras como as advindas de meras possíveis assaduras
apresentadas por uma das crianças, num dos verões mais quentes da história da cidade
de São Paulo. O inquérito policial, vazio, foi arquivado, nada concluindo contra os
acusados81.
79
A propósito, temos uma recordação emblemática do caso. Em entrevista concedida a telejornal – então
à época no ar – de insuspeita emissora de televisão de São Paulo, e em pleno horário do almoço, os
acusados foram massacrados pelas palavras do jornalista, que fazia as vezes de âncora, apresentador e
inquisidor. O advogado dos que na verdade seriam ouvidos ou entrevistados mal pôde falar, e quase foi
colocado como co-autor do crime que se lhes imputava.
80
Ribeiro (2001:88-89) descreve parte do conteúdo dos laudos do Instituto Médico Legal (IML) de São
Paulo: “Descrição: Lesões corporais: equimose [mancha escura, resultante de hemorragia, sob a pele e
as mucosas, e na superfície de órgãos internos] azulada em região anal de 1 x 1. Colocado em posição
genupeitoral observamos: ânus apresentando múltiplas rágadas [ulceração estreita e alongada] de
mínimas dimensões e eritema [rubor congestivo da pele, por via de regra temporário, que desaparece
momentaneamente à pressão do dedo] descamativo em toda a borda anal”. Descritas as lesões, o laudo
passava para a conclusão: “Conclusão: Do observado e exposto, concluímos que o examinado apresenta
vestígios de lesões compatíveis com a prática de atos libidinosos. Tem lesão corporal de natureza leve, a
qual não podemos estabelecer nexo causal de certeza com o histórico”. No item “conclusão”, os
legistas deveriam, obviamente, concluir, mas isso não foi feito. O laudo afirma que as lesões são
compatíveis com prática de atos libidinosos, mas não garante categoricamente se as lesões são ou não
decorrentes de ato libidinoso. Os médicos legistas também não se encontraram suficientemente seguros
para estabelecer uma relação de causa e efeito entre o histórico narrado e a lesão corporal de natureza
leve encontrada no garoto. No tópico seguinte do laudo, os peritos passam a responder uma série de
quesitos. É quando estabelecem contradição com o que haviam concluído antes: “1. Houve prática de
ato libidinoso? R.: Sim. 2. Em que consistiu? R.: Provável coito anal. 3. Houve violência? R.: Sim. 4. Em
que consistiu? R.: Violência presumida pela idade” (grifos nossos). Ressalte-se que a delegacia de
polícia responsável pelo caso, antes do laudo, chegou a receber um telex do IML “adiantando” os
resultados do exame de corpo de delito: “...informamos que o resultado do exame é positivo para a
prática de atos libidinosos...”, cf. Ribeiro (2001:41). As mães das crianças, após o fato, mantiveram
tratamento psicológico para as crianças com profissional da área, que acredita que algum abuso tenha
acontecido, e que, ao longo do trabalho, seria revelado, mas que por força de ética profissional, jamais
viria à tona (2001:166).
81
É interessante observar como nesse tipo de cobertura jornalística a conclusão da opinião pública parece
caminhar para um veredicto com características de definitivo. Resgate-se aqui, ainda que de passagem, o
caso descrito no filme-documentário “Capturando os Friedmans” (Capturing the Friedmans), de Andrew
Jarecki, de 2003, onde pai e filho de uma família judia de classe média dos Estados Unidos da América,
ambos professores de informática, são acusados de pedofilia em seus alunos em 1987. A gravidade e o
clamor público que envolveu os fatos tiveram agressividade semelhante ao que ocorrera na Escola Base,
visto que os fatos ocorreram justamente num ambiente escolar, onde os alunos se encontram em posição
de grande fragilidade e submissão hierárquica. No documentário, ao mesmo tempo em que há a cobertura
78
Evidentemente que os prejudicados foram à justiça em busca de
reparação por dano material e moral. Conseguiram indenizações ante aos veículos de
imprensa, e ainda, junto à Fazenda do Estado de São Paulo, que inclusive chegou a ser
multada por litigância de má-fé no Supremo Tribunal Federal em face da interposição
sistemática de recursos.
Foi o maior caso de erro, leviandade, falta de ética ou coisa parecida que
já aconteceu na imprensa brasileira.
2. A liberdade de imprensa.
A liberdade de imprensa é um dos pressupostos do estado democrático de
direito. A imprensa é a atividade livre de difusão de conhecimento, de cultura, de
entretenimento, e, sobretudo, de informação. A sua natureza pressupõe uma atividade
livre, justamente para a realização de seu ideal maior, que se consubstancia em ser o
veículo de (in) formação estrutural de uma sociedade. A imprensa, inclusive,
testemunha historicamente o processo político, os fluxos e influxos sociais, e a própria
edificação do tecido social. A imprensa, portanto, testemunha, registra, e se torna
depositária de todo o arcabouço social. E não é possível pensar em todos esses atributos
sem a sua necessária liberdade de atuação.
Observe-se, porém, que não é apenas esse o papel que se espera da
imprensa. Não se espera, portanto, que ela tenha apenas um caráter contemplativo, de
registro, enfim, um papel passivo e imparcial ante aos fatos, como se poderia supor. Os
próprios destinatários da informação, não raro, desejam um papel ativo, investigativo,
crítico, persuasivo dela, e desejam uma imprensa que lhes dê voz ativa ante ao poder
constituído na realização do ideal de estado democrático de direito. E, repita-se, sem
liberdade, nenhum desses objetivos pode realizar-se. E essa liberdade deve realizar-se
fora do Estado. E seria desejável, dentro do possível e em alguma medida, realizar-se
fora do mercado também, o que nem sempre acontece, pois, atividade livre e na maioria
das vezes privada que é, dependem de regras, pressupostos e padrões de qualquer
atividade econômica organizada82.
O desejado papel persuasivo, a independência, a imparcialidade, e o
próprio caráter (investig)ativo da imprensa lhe adjetivou o vulgar status de “quarto
poder”. É claro que o adjetivo é inadequado – pois pela sua desejável independência e
liberdade de opinião/ expressão, jamais poderia ser entendida como tal (como “poder”)
da mídia, a própria família realiza imagens de seu cotidiano e de sua versão e análise dos fatos. Um exaluno dos acusados, surpreso, depõe e afirma nunca ter visto nenhum dos atos em que se acusavam os
Friedman, de sorte que a aula era simplesmente chata, como qualquer outra. O depoimento de uma das
ditas vítimas, porém, deveras contraditório e impreciso com relação aos acontecimentos, revela a
cobertura insuficiente da imprensa para uma certeza plena dos fatos (como, aliás, em qualquer cobertura
policial), não obstante os inúmeros indícios dos crimes, deixando ao telespectador a prolação de seu
veredicto íntimo. O retrato dos momentos vividos pelos Friedman assemelha-se a um reality show, mas,
que nesse caso, funciona de forma verossímil.
82
Gomes (1993: 16-17), no mesmo sentido, nos aduz que (...) é natural imaginar que o empresariado do
ramo compõe-se de um clube de altruístas dedicados ao bem-estar social. Nada mais falso. Os jornais
não são diferentes de qualquer outro estabelecimento comercial, seja uma grande multinacional do ramo
automotivo seja o açougue da esquina. Os empresários fazem jornal porque dá lucro – e essa talvez seja
a melhor notícia sobre o assunto (...).
79
–, mas, no mundo contemporâneo, especialmente pela atual velocidade de circulação
das informações, sua capacidade de formar a materialização/ aceitação dos fatos, bem
como a sua penetração e formação de opinião junto à sociedade, lhe outorga
características de poder, influência e, não raro, de algum abuso no exercício de suas
prerrogativas.
No plano constitucional, a liberdade de imprensa vem consubstanciada
em alguns dispositivos, especialmente no artigo 220 da Constituição Federal de 05-101988, que dispõe acerca da ausência de restrições quanto à manifestação do
pensamento, criação, expressão e informação, em qualquer forma, processo ou veículo,
dentro do que dispõe o seu texto, aduzindo o seu § 1º que nenhuma lei conterá
disposição que venha a constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística,
com a observância de comandos contidos no art. 5º, incisos IV83, V84, X85, XIII86 e
XIV87. Ainda no mesmo artigo, a vedação à censura está expressa no § 2º; no § 3º, a
competência de lei federal para regular diversões e espetáculos públicos (inciso I), para
a proteção da pessoa e da família em programas de rádio e televisão e sua publicidade
(inciso II); e a restrição legal para a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias no § 4º. A vedação na formação – direta ou
indireta – de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação social está no § 5º; e
por fim, a dispensa de licença de autoridade para publicação de veículo de comunicação
impresso no § 6º. Há, portanto, um arcabouço ético-legal insculpido em nossa Lei
Maior, dispondo acerca da liberdade de informação, de expressão e de imprensa, enfim,
de liberdade de expressão jornalística.
Como bem assenta Silva (1998:249),
É nesta [liberdade de informação jornalística] que se centra a
liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da
velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela
ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade
de ser informado. Por isso é que a ordem jurídica lhe confere um regime
específico, que lhe garanta a atuação e lhe coíba abusos.
Quando se analisa o “Caso Escola Base”, vê-se, na verdade, um profundo
desequilíbrio nas determinações contidas no texto constitucional para o exercício de tais
liberdades. A garantia do sigilo de fonte88 – fundamental no jornalismo investigativo, e
83
Art. 5º, inciso IV. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Art. 5º, inciso V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem;
85
Art. 5º, inciso X. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
86
Art. 5º, inciso XIII. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer;
87
Art. 5º, inciso XIV. É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando
necessário ao exercício profissional.
88
O sigilo de fonte é uma garantia para a continuidade do fluxo de informações do jornalista e a garantia
de proteção da origem de suas pautas e da paternidade/ exclusividade da notícia. Não neguemos, porém,
que, em alguns segmentos – como, por exemplo, no jornalismo esportivo –, informações atribuídas às
fontes são no mínimo curiosas, como no caso de falsas contratações de astros do futebol mundial (o
argentino Maradona) ou de famosos jogadores em final de carreira para clubes de São Paulo (o brasileiro
Zico), que, respectivamente, sabia-se estruturalmente impossíveis naquele momento para o futebol
brasileiro, especialmente pela impossibilidade de arcar com os salários, ou por poder bancar atletas que
não reuniam mais condições de exercer o futebol profissionalmente em face de precária condição física.
84
80
previsto no artigo 5º, inciso XIV do texto constitucional –, foi utilizada sem a devida
verificação de sua fidedignidade ou acerto, pugnando por deflagrar uma denúncia
infundada e leviana, que especulou e criou conjeturas desastrosas, que tornaram
proporções de uma “bola de neve” que desce um despenhadeiro. O direito de resposta
do atingido, já previsto na Lei nº 5250/1967 (Lei de Imprensa) – que teve 20 de seus 77
artigos suspensos por decisão do Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2008
através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130), e
definitivamente declarada incompatível com a atual Constituição em abril de 2009 – e
sendo também corroborado no inciso V do artigo 5º do texto da Lei Fundamental, ante
ao poder econômico, pôde, ao presente caso, tornar-se uma possível escusa para a
divulgação de informação incerta e desastrosa, não levando em consideração que
desmentir uma notícia e reconhecer a sua inexistência é notoriamente mais difícil que
recompor a verdade e o status quo ante do ofendido. A sede de liberdade de imprensa e
justiça social, aguçadas pela restrição sofrida pelos meios de comunicação por um
significativo período autoritário (1964-1985)89 fizeram – e supõe-se fazer até hoje – a
imprensa cometer assassinatos da honra e da imagem das pessoas, pugnando contra
todas as prerrogativas que a própria liberdade de imprensa e informação objetivaram
Recorde-se em relação ao jornalismo esportivo, o folclórico o episódio em que o empresário Paulo
Machado de Carvalho – 1901-1992, apelidado de o “Marechal da Vitória”, em função de chefiar a
delegação brasileira campeã mundial de futebol na Suécia, em 1958 – descontente com o fato que os
plantões esportivos de todas as emissoras de rádio de São Paulo ouviam a sua, a Rádio Panamericana
(hoje, Jovem Pan) para dar informações aos ouvintes, “usurpando” todo o seu investimento em
tecnologia, repórteres e correspondentes, inventou uma excursão – que nunca aconteceu – de seu time de
coração, o São Paulo Futebol Clube, à Itália, pelos anos 1950. A transmissão radiofônica da excursão –
que era exclusividade da Panamericana – noticiou uma partida contra o time italiano do Milan, onde o
São Paulo perdia por 4 x 0, tendo seus jogadores expulsos injustamente de campo, sendo também
agredidos e maltratados pelos carabinieri italianos. O fato contagiou a cidade de São Paulo e até mesmo
os torcedores adversários, gerando um clima de revolta, comoção e solidariedade ao clube paulistano.
Todas as outras emissoras deram o fato, e claro, ouvindo a Panamericana. Só depois que Paulo Machado
de Carvalho desmentiu a excursão, denunciando a farsa, de maneira que a ousada estratégia de marketing
provou que todas as rádios e jornais ouviam a sua emissora para dar informações – mesmo quando
mentirosas –, copiando o seu jornalismo e “surrupiando” o seu investimento, o que todos os outros
veículos de informação não puderam contestar. Anote-se, porém, que o direito à informação e, sobretudo,
à informação verdadeira, não foram cotejados nessa estratégia – talvez até mesmo em relação aos outros
meios-de-comunicação –, de forma que a especulação da informação incerta e duvidosa que no
jornalismo esportivo se atribui inclusive à fonte é uma realidade. Por outro lado, também não se negue a
proteção ao sigilo da fonte como condição integrante do direito à informação e do direito de ser
informado, ao qual pugna o trabalho do jornalista, que, não raro, colide com interesses comerciais e
estratégicos dos veículos de comunicação. Caso emblemático nesse sentido foi verificado em 1994 nos
Estados Unidos da América, quando um ex-executivo e cientista da indústria de tabaco daquele país
concede entrevista a programa televisivo da rede de tevê CBS afirmando que a diretoria de fabricante de
cigarros tinha conhecimento da capacidade viciadora da nicotina e da inserção de aditivos químicos para
acentuar o vício, bem como sobre os seus efeitos maléficos à saúde. Porém, quando o programa com a
entrevista iria ser levado ao ar, a emissora recua na exibição ante as possíveis consequências jurídicas
devastadoras. O entrevistado que teria sua identidade “protegida” da exposição pública por motivos
óbvios, passou à condição de mera fonte ou denunciante, sofrendo devassa em sua vida privada e ameaças
de morte. A questão foi retratada no filme “O Informante” (The Insider), de 1999, dirigido por Michael
Mann.
89
São emblemáticos alguns fatos do período, onde, com a presença de censores na redação, os jornais do
Grupo Estado, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, respectivamente, publicaram versos de “Os
Lusíadas”, de Luiz Vaz de Camões, e receitas de bolo, para indiretamente alertar os leitores da censura
que sofriam.
81
proteger em favor do interesse do indivíduo e da sociedade. O abuso do exercício dessa
liberdade atenta, em ultima ratio, contra ela mesma90.
As regras de mercado aplicáveis às empresas jornalísticas criaram a
obsessão nos veículos de comunicação pela venda de jornais e revistas, pela audiência,
pela conquista de possíveis anunciantes e negócios. A credibilidade pugnada por eles é
institucionalmente avalizada pela quantidade de leitores ou telespectadores, pela
audiência e pelo volume de negócios fechados e seus resultados. Um critério qualitativo
que pugna, por exemplo, pelo caráter educativo, como inclusive dispõe de forma
genérica o artigo 221 da Lei Fundamental91, de há muito ficou em segundo plano (que
nos diga a televisão brasileira nas tardes de domingo). Nessa receita de audiência, temos
como ingredientes o sexo, o sobrenatural, a violência, o ridículo, o vil, o vazio, o
malandro, o desinteligente, e a exposição da pessoa humana em situações de
indignidade. São predicados, não raro, enaltecidos em pessoas públicas de caráter
duvidoso. E não nos espantemos: a fórmula funciona92.
Essa receita foi adicionada na cobertura do Caso Escola Base. Jornais e
revistas da cidade de São Paulo estamparam manchetes como “Kombi [que transportava
as crianças] era motel na escolinha do sexo”, ou ainda, “escola de horrores”. Repórteres
de televisão perguntaram às crianças: “a tia passou a mão em você?”93. Numa época
marcada pela impunidade de crimes do colarinho branco, pela violência urbana e pela
ineficiência do Poder Judiciário, esse discurso encontra forte eco na sociedade,
especialmente nas camadas que têm menos acesso à cultura e informação qualificada. É
90
É claro que essa saudável e positiva “embriaguez” democrática que recuperou a imprensa e a própria
sociedade brasileira, provocou reações. Ainda que haja vozes dissonantes deste argumento, iniciativas
como os projetos de lei conhecidos como “Lei da Mordaça” (Projeto de Lei nº 65/1999) e o atinente à
criação do Conselho Federal de Jornalismo (Projeto de Lei nº 3985/2004), na circunstância e ocasião em
que aconteceram – notadamente em momentos de crise política, com intensas denúncias de malversação
de recursos públicos e corrupção no governo – foram por muitos tidos como tentativas de amordaçamento
e intimidação das vozes investigativas do poder.
91
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua
divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em
lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
92
Gomes (1993:15), em conclusão semelhante, lembra que no exercício desse tipo de cobertura, os
jornais resgatam um velho prazer que a maioria tem dificuldade de confessar, mas ao qual se entrega
todo dia diante da televisão, nas novelas. As pessoas gostam de acompanhar folhetins. Gostam mais
ainda quando esses folhetins tratam de casos reais. Por isso, com o correr dos anos, a ficção em
capítulos praticamente desapareceu da imprensa diária, tendo seu espaço gradativamente ocupado pelo
noticiário criminal.
93
Ribeiro (2001: 48-49) transcreve uma dessas entrevistas que compuseram a receita da condução do
massacre jornalístico aos acusados na televisão, onde se tentava referendar algo praticamente já tido como
verdade absoluta. Repórter pergunta à criança, supostamente vítima:
Repórter: – Esta mulher, ela deitava em cima de você?
Criança: – Deitava.
Repórter: – O que ela fazia, o que ela queria?
Diante da relutância do garoto, o jornalista sugeriu a resposta:
Repórter: – Te beijar a boca?
O garoto respondeu com um aceno de cabeça e o repórter voltou à carga:
Repórter: Tem fotógrafo? Eles tiraram fotos?
82
quase o retorno ao desejo da justiça primitiva privada e da vingança particular. É de se
questionar se tal conduta colima com o interesse público que deve nortear a atividade
jornalística, pois é sabido que não há interesse público sem o seu exercício com
responsabilidade, especialmente no que tange à divulgação de fatos e dados, sendo certo
reconhecer que “interesse público” não é o mesmo que “interesse do público”.
E essa fórmula de atender ao “interesse do público” parece funcionar na
manutenção da programação de muitos veículos de comunicação, inclusive no rádio.
Não raro, o rádio torna público de forma ridícula a situação de pessoas que foram
vítimas de crimes94. Não raro, o microfone de rádio faz prefeitos em importantes
cidades do interior95. E também, os editores chefe de jornais do interior, muitas vezes
bacharéisl em direito fazendo as vezes de jornalistas, utilizando de seu nome, posição e
prestígio, circulam pelas varas do fórum da cidade folheando todo o tipo de processos
94
Situação nesse sentido foi verificada de perto pelo autor desse trabalho. Após danos causados em
veículo automotor após tentativa de furto, programa policial de rádio, ao ter acesso ao boletim de
ocorrência, noticiou-o em tom jocoso. Em seguida, sem ser a vítima ouvida pela emissora de rádio acerca
das circunstâncias do crime que sofreu, durante semanas a mesma sofreu a abordagem de conhecidos lhe
relembrando o acontecido e lhe questionando o acontecimento de forma desagradável, como que
rememorando uma anedota, e nos moldes do que foi descrito no aludido programa. A propósito do
discurso radiofônico de cobertura policial, Gomes (1993:11-12) oportunamente lembra que há duas
características aparentemente contraditórias, do ponto de vista do interesse do ouvinte. É o mais ágil dos
meios de comunicação, capaz de fornecer informações sobre determinado assunto diretamente do local
dos fatos em questão de minutos. Exatamente por essa rapidez de informação, é também o meio de
comunicação que corre os maiores riscos de fornecer dados errados aos ouvintes, o que é popularmente
chamado nas redações de “barriga”. Para ficar num exemplo rotineiro de barriga e explicar como isso
influi numa percepção errada sobre o noticiário envolvendo crimes, vamos examinar uma situação bem
comum. É normal, nos noticiários matutinos, a apresentação de repórteres que fazem o balanço das
ações policiais durante a noite anterior. Como a única fonte disponível para que o jornalista forneça
essas informações são os boletins de ocorrência (quando não são os próprios policiais envolvidos nessas
ações), é comum a repetição de notícias como a seguinte: “Um grupo de policiais da Rota matou na
noite passada três assaltantes que tentaram invadir uma casa no bairro da Aclimação. Os policiais
deram voz de prisão aos três homens quando eles tentavam escalar o portão da residência número 115
da Rua Pires da Motta. Foram recebidos à bala, reagiram e acabaram matando os ladrões do tiroteio”.
Quem se informa apenas pelo rádio, nesses noticiários do período da manhã, tende a acreditar numa
coleção de equívocos (quando não de mentiras, pura e simplesmente). Primeiro, que a polícia sempre
surpreende assaltantes em pleno flagrante, o que não é verdade porque a própria experiência do cidadão
comum demonstra que o mais rotineiro é a chamada “averiguação” de suspeitos, que costuma ser uma
revista geral, sob mira de armas, de qualquer cidadão cuja aparência não coincida com o padrão de
classe média bem vestida ou bem comportada. Depois, esses informes levam a acreditar na mais
extraordinária pontaria da polícia, contra uma péssima mira dos adversários. Em geral, mesmo atirando
à noite, contra alvos em movimento e, às vezes, bem distantes, os policiais matam seus oponentes. Na
melhor das hipóteses, o bandido morre ao dar entrada em algum pronto-socorro. Costuma-se dizer que
são os vencedores que escrevem a história (...).
95
Trabalhando temas correlatos e fatos históricos nesse sentido, cf. o trabalho de MARINO, Divo. O
Populismo Radiofônico em Ribeirão Preto. Ribeirão Preto: Suplemento do jornal “A Palavra de
Ribeirão Preto”, jul. 1975, 106 p. A propósito, comenta brevemente o autor (1975:82) sobre a trajetória de
um dos prefeitos do município de Ribeirão Preto, Welson Gasparini (mandato de 2005-2008), onde,
também no jornalismo, era um pioneiro: – antevia a fase posterior da imprensa ribeirãopretana que, sem
a presença do articulista intelectual, assumiu a função de noticiar, de forma mecânica, acontecimentos
mundanos e publicitários – traduzindo a tradicional formação dos homens públicos do interior nas
funções de advogado, professor e jornalista –, por onde, na carreira política (e ao lado do microfone de
rádio), foi eleito vereador no período de 1960-1963, prefeito no período compreendido entre 01-01-1964
a 31-01-1969, deputado estadual em 1970, e novamente ao cargo de prefeito no período de 01-02-1973 a
31-01-1977.
83
judiciais (inclusive os protegidos por segredo de justiça) e verificando as demandas que
os cidadãos do município movem ou sofrem96.
3. Conclusão.
A liberdade de imprensa, como ensina Barbeiro (2003:2), é perpassada
pela própria liberdade de expressão, indo além daquela, até mesmo na qualidade de
direito fundamental humano, pois atende ao direito de informar e de ser informado, sem
qualquer limitação, devendo ser defendida por jornalistas e por qualquer um que queira
manifestar-se, fazer uma reflexão, denunciar ou expor-se como descontente em relação
ao governo, de onde vem o seu caráter dinâmico e sua necessidade de ser sempre
perseguida, vez que submetida às pressões que a sociedade – mesmo a democrática –
exerce sobre ela, havendo a necessidade do estabelecimento de um fluxo sempre
contínuo, sob pena de sucumbir à ação da censura ou dos agentes sociais poderosos em
face dela atingidos, o que, inclusive, lhe dá o status de patrimônio social, donde se
justifica a sua proteção por política pública e a pela própria responsabilidade do cidadão
de velar pela sua existência (2003:2). Ressalta o autor, ainda, que essas liberdades – de
imprensa e de expressão – restritas
nos períodos autoritários da sociedade, foram restauradas em função da ação daqueles
que compreenderam que a existência delas é um caminho para deixar de ser objeto e
passar a ser o sujeito da história (2003:2).
Não se negue, porém, que o próprio conceito de liberdade, tomado de
forma ampla, representa um reflexo de um processo e de um fluxo social, sendo
histórica e socialmente construída, perpassada por reflexões de ordem moral, filosófica,
ética e religiosa de um povo. Nas variações de liberdade de imprensa e de expressão, a
conceituação e a localização destas se tornam ainda mais difíceis, pois são vistas por
parâmetros diferentes e pelos próprios interesses divergentes dos e nos Estados.
No final do ano de 2005, o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou
charges onde, numa delas, o profeta Mohamed (frequentemente traduzido para o
português como Maomé) estaria vestindo uma bomba em forma de turbante na cabeça,
com um pavio para acendê-la. Sendo certo que o fato foi tido como ofensa às
disposições do Alcorão, surgiram protestos violentos em todo o mundo muçulmano em
repúdio à imprensa da Dinamarca, com boicotes a produtos daquele país, ameaças aos
seus cidadãos, além de ataques à embaixadas e mortes. O conflito ampliou-se na medida
em que jornais da França, Noruega, Alemanha, Holanda, Itália, Espanha e Suíça, em
solidariedade ao jornal dinamarquês e em nome da defesa das liberdades de imprensa e
expressão, publicaram charges de conteúdo semelhante, de forma inclusive a reafirmar a
liberdade de expressão como mais forte que a intimidação.
96
Ainda que nominal e diretamente não faça referência à atuação da imprensa, o inciso IX do artigo 93 da
Constituição de 05-10-1988, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 – talvez
demonstrando a iminente ou futura (futura por ficar a cargo da lei complementar, de iniciativa do
Supremo Tribunal Federal, consoante se vê no caput do próprio artigo 93, inalterado pela emenda
constitucional em questão) necessidade de conciliar a privacidade das partes envolvidas num processo
judicial e o interesse público à informação –, dispôs que todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em
casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse
público à informação.
84
Discutindo o assunto, editorial do jornal estadunidense New York Times
(2006), opinou no sentido que nas
nações ocidentais, liberdade de religião, expressão e de imprensa são diferentes
aspectos da mesma liberdade. Na América, isso é fundamental. A Primeira Emenda [da
Constituição norte-americana] une essas liberdades em um fundamento de direito para
indivíduos acreditarem, cultuarem, pensarem e falarem de acordo com suas convicções
mas que na tradição islâmica, não se vê tais liberdades da mesma forma,
visto que o Alcorão desencorajaria manifestações artísticas em geral e proibiria
descrições de Mohamed e outros profetas, apesar de, em alguns países árabes, judeus
serem descritos como figuras diabólicas ou sub-humanas97.
E aqui, o conflito dos limites da liberdade de imprensa e de expressão –
subliminarmente escondendo o pano-de-fundo do atrito entre governos de discurso não
muito solidário e tolerante –, refletem a política imperial já posta em prática no
chamado choque das civilizações, dando igualmente o tão esperado pretexto para grupos
radicais atuarem e aparecerem na mídia, “politizando” o processo.
O episódio demonstra, portanto, a dificuldade de materialização do pleno
conceito e dos limites de tais liberdades. Mas, saindo da esfera do conflito Ocidente/
Oriente, os limites de amplitude de tais liberdades são difusos e não plenamente
estabelecidos tanto num quanto em outro lado do mundo98, não sendo diferente a
questão no Brasil, especialmente no que tange tanto à identificação do interesse público
97
Vai além o referido editorial (2006) em afirmar que o episódio da caricatura ilumina profundas
diferenças entre o Ocidente e tradicionais sociedades islâmicas. Os muçulmanos protestantes consideram
nações inteiras como responsáveis pelas ações dos jornais. Em muito do Oriente Médio, isso pode fazer
sentido, porque os governos dessa região frequentemente controlam a imprensa. Em lugares como
Dinamarca e França, entretanto, isso simplesmente não ocorre. Mais fundamentalmente, liberdade de
imprensa no Ocidente vence tabus de religiões sobre expressão. Na Europa Ocidental, assim como na
América, cidadãos gozam de um alto grau de liberdade religiosa. Mas isso não inclui um direito de
nunca ser ofendido ou ter a crença de alguém desafiada. Enfaticamente, isso não inclui ter uma religião
privilegiada em detrimento das outras. Em um país livre, até mesmo discurso de blasfêmia é protegido –
e o assunto, a ser contradito por fiéis. Sociedades islâmicas tendem a rejeitar tal ilimitada liberdade de
expressão. Isso é assunto deles. Mas exigir que nações ocidentais rejeitem isso, também, é um passo em
direção a um perigoso novo solo. Anote-se que em resposta às charges, veículos de comunicação de
países árabes negaram a existência do holocausto, fizeram piadas com o fato e publicaram desenhos onde
Adolf Hitler estaria numa cama com Anne Frank, famosa criança vítima do massacre de judeus na
Segunda Guerra Mundial. Por fim, no intuito de demonstrar a sua imparcialidade, o jornal dinamarquês
Jyllands-Posten afirmou que publicaria caricaturas do holocausto nazista em conjunto com o jornal
iraniano Hamshahri, que é controlado pelo governo. Esse último jornal, inclusive, afirmou que realizaria
um concurso de charges para avaliar se o conceito de liberdade de imprensa do Ocidente se aplica
também ao genocídio nazista e, ainda, se a liberdade de expressão se estendia a anedotizar o holocausto.
98
Lembre-se, também, que tais conflitos em nome da liberdade de imprensa e de expressão já tiveram
graves antecedentes, como no caso do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, que, tendo feito uma
descrição irreverente do profeta Mohamed no livro “Versos Satânicos”, de 1989, foi condenado à morte
pelo crime islâmico de apostasia (o fomento do abandono da fé islâmica), em sentença religiosa ditada
pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), que morreu sem revogá-la. A partir daí, Rushdie teve que
viver na Grã-Bretanha escondido durante anos.
85
quanto do interesse privado no processamento das informações que servem à atividade
jornalística.
Se de um lado, talvez seja mais fácil visualizar o interesse público nas
informações e questões que tem como foco e objetivo o Estado, na esfera privada, tal
circunstância se revela mais complexa.
Dines (2005) opina que
Sob o ponto de vista estritamente formal, filológico e semântico, existe uma clara
diferença entre a esfera pública e a esfera privada. Mas, em termos sociais, o interesse
público não pode ser dissociado do interesse privado. E a comunicação – qualquer
comunicação – só pode ser examinada ou estudada dentro do âmbito das ciências
sociais
aduzindo que, mesmo estando atualmente dispensados da necessidade de obter – em
grande parte do mundo –, licença para veiculação de informações impressas, essa não
exime a obrigação de análise dos efeitos que tal informação poderá produzir, sendo
certo que, se essa liberdade foi conquistada a duras penas pela sociedade – bem como o
desenvolvimento da indústria jornalística, com a atual dimensão e poder, conquistada
com garantias políticas, portanto, públicas –, sem o oferecimento de contrapartidas,
criar-se-ia uma situação de injustificável privilégio (Dines, 2005).
Destarte, não se pretendeu em nenhum momento desqualificar a
imprensa e a atividade jornalística, e muito menos julgá-la. Se fosse possível, ainda que
pelo senso-comum, pesar na balança os acertos e erros, acreditamos que os acertos da
imprensa superaram com folga os seus erros. No entanto, pretendeu-se revistar o Caso
Escola Base para memorizar um erro grave, no intuito de nos dar a oportunidade de
refleti-lo e entendê-lo, dele tirando lições, nunca nos esquecendo que no plano
constitucional vigoram disposições inderrogáveis como o asseguramento da plenitude
de defesa (artigo 5º, incisos LV e XXXVIII, alínea a), a vedação da privação da
liberdade ou de bens sem o devido processo legal (inciso LIV) e a presunção de
inocência (inciso LVII), e que o exercício da liberdade de imprensa deve levar em conta
as contrapartidas já mencionadas anteriormente – especialmente com o exercício de
uma responsabilidade voltada para os efeitos da circulação da informação –, em nome
da liberdade que lhe fora concebida para o seu pleno exercício. Uma tarefa, sem dúvida,
muito difícil de ser operacionalizada, mas não impossível e a qual não podemos nos
furtar99.
Com relação ao nosso foco central, verbi gratia, o Caso Escola Base,
Souza (2003) nos lembra que
99
Demonstrando preocupação semelhante, ainda que em parte saindo da discussão da esfera privada, mas
tendo em mente o objetivo do interesse público em todos os meios de comunicação, Dines (2005) procura
responder a questão de: (...) como reanimar o compromisso social e a noção de serviço público que todos
os veículos – impressos ou eletrônicos, públicos, estatais e privados – deveriam ter como objetivo? A
resposta pode parecer simplista, quimérica, inalcançável. Mas é a única numa democracia. A observação
de um fenômeno é a única forma de intervir sem agir. Quando a mídia, os media e os mediadores
sentirem-se efetivamente observados e cobrados serão obrigados a mudar seus comportamentos e
procedimentos. Estamos aqui para fazer exatamente isto: fazer do exercício da observação uma forma de
contrapoder.
86
Cumpre frisar que nem todos os meios de comunicação veicularam as denúncias
sobre as supostas moléstias aos impúberes da escola100. Isto revela que alguns setores
da imprensa já adquiriram consciência de sua influência na sociedade e as
consequências do poder do qual se reveste a mídia. Não se pretende afirmar com
essas assertivas que os veículos divulgadores do caso em questão são irresponsáveis,
ou desprovidos de qualquer ética profissional. Incontestável, porém, o equívoco
cometido pelos mesmos, fato este que deve servir como alerta, no sentido de se
proceder com maior cautela, no momento de se selecionar, não só as notícias a serem
divulgadas, como também a abordagem a ser conferida a uma questão controversa.
As prerrogativas constitucionais e legais, consagradas aos particulares, são de
observância imperativa.
Porém, de uma forma geral, o que vemos são as prerrogativas
constitucionais e legais serem respeitadas apenas para aqueles que dispõem de poder
econômico e político. Para o cidadão médio, comum, o sistema se mostra com
iniquidade, anacrônico e distinto. Dele, foram vítimas os envolvidos nessa
impressionante rede de propagação de falsas informações do Caso da Escola Base.
Se por um lado o Código de Ética do Jornalista dispõe em seu artigo 5º
que a obstrução direta ou indireta à divulgação da livre informação e a aplicação de
censura ou autocensura são delitos contra a sociedade, por outro, impõem nos artigos 2º
e 3º, respectivamente, o dever dos meios de comunicação pública – independentemente
de sua propriedade –, de divulgação de informação precisa e correta, além da
divulgação pautada pela real ocorrência dos fatos, tendo por finalidade o interesse social
e coletivo. O que ocorreu no Caso da Escola Base foi uma sequência impressionante de
desrespeito a princípios tanto de ética jornalística101 como de princípios elementares de
100
Um importante e antigo jornal paulistano foi um dos que, vendo a fragilidade do conjunto probatório
que embasava a notícia, recusou-se a veiculá-la, sendo acusado de estar comprometido com a Escola
Base, no famoso “rabo-preso”. Ribeiro (2001:161), avaliando a atuação deste jornal, relata que em
determinado momento, após as proporções gigantescas que o caso tomou e o notório conhecimento da
opinião pública sobre os supostos acontecimentos, tornou-se impossível para este veículo de comunicação
ignorar o fato. Por fim, conclui que houve omissão de sua redação, pois, se as provas eram precárias, era
necessária a publicação de matérias apontando as contradições do inquérito policial então em curso. Mas,
observe-se também que se houve omissão de um único jornal, não se olvide que a mea culpa posterior
feita por diversos órgãos de imprensa foi tardia e confirmadora dos efeitos trágicos da divulgação
precipitada de fatos.
101
Analisando a questão sob o ponto de vista da responsabilidade dos envolvidos e também da ética
jornalística, a análise de Karam (1999): (...) a responsabilidade recai, também, nos pais dos alunos que
chamaram a imprensa, no delegado que deu várias entrevistas acusando os donos e professores da
escola e na medicina que errou em pelo menos um dos laudos, comprovando que o exame havia dado
resultado “positivo para a prática de atos libidinosos”. A mídia deveria esconder isso? (...) Erros
ocorrem em quaisquer áreas, nos prédios que racham, na medicação equivocada ou não do atendimento
hospitalar, na sentença jurídica controversa, na interpretação sociológica ou econômica. O jornalismo,
que ocupa mais visivelmente o espaço público, também sofre mais a ação dos palpiteiros, embora os
erros de quaisquer áreas causem tanto prejuízo social quanto os dele. No entanto, é o jornalismo que, na
imediaticidade do presente, no ritmo em que se desdobra o cotidiano, pode revelar aquilo que também
prejudica as pessoas, seja o assassinato de menores, o benefício secreto recebido por bancos
particulares ou as denúncias feitas por fontes autorizadas (pais de vítimas, laudo médico e versão
policial) como no caso Escola Base. (...) A ética na informação jornalística não prescinde de um
conjunto de fatores, que incluem responsabilidade e competência técnica de variadas fontes em
diferentes campos de conhecimento. Elas representam mais que sua individualidade e interesses no cargo
e espaço públicos em que atuam. E ao jornalismo cabe checar bem – e sempre, fontes e versões que
projetam personalidades obscuras à repentina fama e prestígio.
87
direito, numa proporção talvez jamais vista na imprensa brasileira, onde uma versão
que, se devidamente analisada seria controversa e passível de investigação e diligências,
se tornou um fato artificialmente aceito como “verdade” por alguns meios de
comunicação, que se entregaram à fórmula fácil do massacre público enquanto
ingrediente de sua política de audiência e repercussão.
Se também pode parecer difícil se chegar numa conclusão no sentido
pleno das responsabilidades dos envolvidos ou até mesmo crer que os fatos que se
seguiram após a divulgação das tais “denúncias” eram inevitáveis, é preciso não perder
a capacidade crítica de acreditar que tal ocorrência foi desastrosa, e que se tem o dever
de aprendizado – de pelo menos alguma coisa útil – com o fato, de não aceitá-lo como
algo inerente da normalidade ou imprevisibilidade, e ter o horizonte aberto para tanto,
além da humildade de se reconhecer e refletir que nenhuma pessoa em sã consciência e
no exercício de sua cidadania, de sua dignidade e de seus direitos, admitiria ser vítima
de coisa semelhante. Não se pode crer o contrário. Pode-se, sim, no exercício da
liberdade de imprensa, assim como de qualquer outra, crer que pode haver o
aperfeiçoamento de seu exercício e a melhor compreensão de seu alcance e efeitos, em
fluxo contínuo.
Lembre-se, por possivelmente paradoxal que seja, que as revoluções
liberal-burguesas hastearam uma de suas bandeiras no chão das liberdades, dos direitos
individuais e civis, historicamente construídos e defendidos numa perspectiva de
incolumidade e integridade física e, expandidos mais recentemente, até mesmo na
integridade psíquica e moral do indivíduo, de maneira que, ao se admitir uma prévia,
maciça e não-criteriosa exposição pública da pessoa – feita com exageros e distorções –,
se admite também um atentado justamente contra os tais liberdades e direitos.
Ressalte-se, todavia, que não se deve cercear a liberdade de imprensa, de
informação, de pensamento. Elas devem, nesses paradigmas de responsabilidade, serem
as mais amplas possíveis. O Caso da Escola Base, por si só, jamais justificará uma
posição no sentido de tolhê-las. Mas é preciso encontrar o difícil equilíbrio entre as
regras de mercado e a operacionalização da informação, tendo em vista sempre o
interesse público e a enorme penetração, repercussão e consequências que uma possível
divulgação errônea ou imprecisa poderá trazer aos citados. Não se deve fazer uma “caça
às bruxas”, mas reconhecer que ocorreram erros sérios no Caso da Escola Base, que
destruíram a honra, saúde e auto-estima de pessoas, que corretamente foram, naquilo
que foi possível, reparados, e os responsáveis, julgados pela justiça. E não
reconhecendo esses erros, corre-se no risco de cair na leviandade.
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4.1. Filmes.
CAPTURING The Friedmans (Capturando os Friedmans) (documentário). Direção:
Andrew Jarecki. Intérpretes: Arnold Friedman, Elaine Friedman, David Friedman, Seth
Friedman e outros. Estados Unidos da América, 2003, 117 min., color.
THE INSIDER (O Informante). Direção: Michael Mann. Produção: Pieter Jan
Brugge, Michael Mann, Michael Waxman, Gusmano Cesaretti e Kathleen M. Shea.
Intérpretes: Al Pacino, Russell Crowe, Christopher Plummer, Diane Venora, Philip
Baker Hall, Lindsay Crouse, Devi Mazar, Breckin Meyer e outros. Roteiro: Eric Roth e
Michael Mann, baseado em artigo escrito por Marie Brenner. Música: Pieter Bourke,
Lisa Gerrard e Graeme Revell. Los Angeles (Estados Unidos da América): Touchstone
Pictures, 1999, 160 min., color.
FILOSOFIA JUDAICO-CRISTÃ E DIREITOS HUMANOS
JUDEO-CHRISTIAN PHILOSOPHY AND HUMAN RIGHTS
André Ricardo Carvalho 102
102
Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP (UNIMEP), com bolsa da
CAPES/PROSUP; especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina/SC
(UNISUL) e em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG); bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP (PUC-Campinas).
Atualmente, é funcionário concursado do Banco do Brasil S.A., no qual exerce o cargo de advogado
pleno. E-mail: [email protected].
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