Revista da

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Revista da
ISSN0102-1788
Revista da
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
A Escola Superior de Guerra (ESG) criada pela Lei n.785/49, é um Instituto de Altos
Estudos de Política, Estratégia e Defesa, integrante da estrutura do Ministério da Defesa, e
destina-se a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários ao exercício de
funções de direção e assessoramento superior para o planejamento da Defesa Nacional,
nela incluídos os aspectos fundamentais da Segurança e do Desenvolvimento.
A Escola Superior de Guerra funciona como centro de estudos e pesquisas, a ela
competindo planejar, coordenar e desenvolver os cursos que forem instituídos pelo
Ministro de Estado da Defesa.
A Escola, subordinada ao Ministério da Defesa, não desempenha função de formulação ou
execução da Política do País. Seus trabalhos são de natureza exclusivamente acadêmica,
sendo um foro democrático e aberto ao livre debate.
A ESG se localiza na área da Fortaleza de São João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro. A
Fortaleza foi mandada construir, em 1565, por Estácio de Sá, na várzea entre os morros
Cara de Cão e Pão de Açúcar e marca a fundação da cidade do Rio de Janeiro e o domínio
português na Baía da Guanabara.
Sumário
Editorial.................................................................................................. 3
Maj.-Brig.-do-Ar Paulo Jorge Botelho Sarmento
O Evidente e Irreversível Declínio da Atual Civilização ......................... 5
Jorge Boaventura
Desenvolvimento Sustentável: Davos ou Porto Alegre? ....................... 21
Prof. Gerardo José de Pontes Saraiva
Evolução do Pensamento Estratégico Brasileiro .................................. 41
Jorge Calvario dos Santos
O Brasil e a Área de Livre Comércio das Américas ................................ 67
Manuel Cambeses Júnior
Bioética e Sociedade ............................................................................. 71
Prof. Paulo César Milani Guimarães
Propriedade Intelectual na OMC,
Soberania e Desenvolvimento Nacional ............................................... 85
Renato Valladares Domingues
A Logística Aplicada ao Programa Federal
de Segurança Alimentar “Fome Zero”
e sua Contribuição a uma Mobilização Nacional ................................ 91
Major de Cavalaria GERSON PINHEIRO GOMES
Protecionismo como Instrumento de Desenvolvimento .......................... 125
Prof. João Paulo de Almeida Magalhães
MEMÓRIA
Palestra sobre a Organização da Escola Supeior de Guerra,
Realizada na Escola de Estado Maior - 1949 .................................... 147
Oswaldo Cordeiro de Farias
REVISTA da Escola Superior de Guerra
Rio de Janeiro
n.42
p. 1-164
jan./dez/2003
ISSN 0102-1788
Revista da Escola Superior de Guerra. – v.20, n.42 (jan./dez. 2003) – Rio de Janeiro:
Alengraf, 2003– v.21cm
Anual
INSS 0102-1788 = Revista da Escola Superior de Guerra
1-Segurança nacional - Periódicos. 2 – Poder nacional - Periódicos. 3 - Ciência
militar - Periódicos. 4 – Defesa-Periódicos. I. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
(Brasil). I. Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro
CDD320.981
Revista da Escola
Superior de Guerra
A Revista é uma publicação
anual
da
ESCOLA
SUPERIOR DE GUERRA,
do Rio de Janeiro, com
tiragem de 1.000 exemplares.
Está voltada para a
discussão de assuntos de
segurança, desenvolvimento
e defesa, nos âmbitos
nacional e internacional.
Escola Superior de Guerra
Comandante e Diretor de Estudos
Major Brigadeiro do Ar
Paulo Jorge Botelho Sarmento
Subcomandante e Chefe do DE
General de Brigada Eduardo Ramalho dos Santos
Assistente do Comando - Marinha
Contra-Almirante Eduardo Monteiro Lopes
Assistente do Comando - Exército
Cel Inf Paulo César dos Reis Cabete
Assistente do Comando - Aeronáutica
Cel José Tito do Canto Filho
Centro de Estudos Estratégicos
Coordenador
Prof Paulo César Milani Guimarães
Conselheiros
Gen Carlos de Meira Mattos, Carlos Lessa
Marcos H. Camilo Côrtes, Darc A. Luz Costa
Paulo César Milani Guimarães
Membros Correspondentes
Afonso Carlos Marques dos Santos, Amado Luiz
Cervo, Amerino Raposo Filho, Antonio Carlos
Câmara Brandão, Antonio Carlos de A. Ritto,
Antonio Celso Alves Pereira, Antonio Jorge
Corrêa, Bertha Becker, Carlos Antônio
Bettencourt Bueno, Carlos de Meira Mattos,
Carlos Henrique Cardim, Carlos Lessa, Carlos
Patrício Freitas Pereira, Cesar Guimarães,
Cláudio Moreira, Darc Antonio da Luz Costa,
David Silveira da Mota Jr., Eli Penha, Fernando
Gasparian, Francisco Carlos Teixeira da Silva,
Franklin Trein, Hernani Goulart Fortuna, Ivan
2
de Souza Mendes, Ives Gandra Martins, João
Manoel Cardoso de Mello, João Paulo de
Almeida Magalhães, José Maria do Amaral
Oliveira, Leônidas Pires Gonçalves, Luís
Augusto Pereira Souto Maior, Luís Fernandes,
Luís Fernando Hor-Meyll Álvares, Luiz Gonzaga
Belluzo, Manoel Teixeira, Márcio Henrique
Monteiro de Castro, Marcos Henrique Camillo
Côrtes, Maria Adélia de Souza, Mario Gibson
Barbosa, Octavio Rainho da Silva Neves,
Oliveiros Ferreira, Oswaldo Muniz Oliva,
Ovideo de Andrade Melo, Paulo Gilberto
Fagundes Vizentini, Paulo Neves de Aquino,
Paulo Roberto de Carvalho Ferro, Reinaldo
Gonçalves, Renato Lessa, Rex Nazareth Alves,
Roberto Bartholo, Roberto Dias, Roberto
Nicolau Jeha, Rubens Bayma Denys, Samuel
Pinho Guimarães, Segen F. Estefen, Sergio
Xavier Ferolla, Waldimir Pirró e Longo,
Williams da Silva Gonçalves
Assessor Permanente
Edimar Pereira de Oliveira
Assistente Editorial
Chefe da Biblioteca Cleide Santos Souza
Padronização Bibliográfica
Chefe da Biblioteca Cleide Santos Souza
Secretário Executivo
Prof Leandro de Aragão Guimarães
Design Gráfico e Arte Final
Mauro Espíndola
Produção Gráfica
César de Mello Lira
Impressão
Alengraf
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.3-4, jan/dez. 2003
Editorial
Maj.-Brig.-do-Ar Paulo Jorge Botelho Sarmento
Comandante da Escola Superior de Guerra
A revista é uma peça fundamental de um
centro de estudos que procura e precisa
articular-se com seus congêneres e com
parcela importante da inteligência do País.
A ESG tem publicado os trabalhos mais
importantes que têm sido desenvolvidos por
seus integrantes, docentes e estagiários, civis ou militares, propiciando a divulgação de
idéias e informações acerca dos fenômenos
políticos, sociais, econômicos e militares que
decorrem da distribuição geoestratégica do
poder e de sua concentração – como ocorre
hoje no cenário mundial.
Não têm faltado, também, trabalhos valiosos sobre as questões culturais contemporâneas que guardam relação com a
coesão e o equilíbrio das sociedades, revelando o conjunto um quadro de
assimetrias acentuadas, quer nas relações
internacionais, quer no contexto social
dos países designados como periféricos.
Essa situação explica porque, quase por
toda parte, aparecem hoje esforços de
integração – inclusive na América do Sul
–, o que demonstra o esforço de elites responsáveis e lideranças políticas competentes para conter a dinâmica dissociativa
e fragmentadora, que prejudica os esforços para a superação de dificuldades históricas.
Demais, não escapa ao observador atento que a crise social interna dos países
afastados do núcleo da globalização tornou-se mais séria nas últimas décadas,
sendo que vários hoje suportam conflitos
de intensidade variável (enquanto outros
se aproximam desta situação), quadro
muito agravado pelo surto de terrorismo,
que ameaça se espalhar, embora com motivações variáveis.
Os estudos mais recentes sugerem, com
clareza, que os diferentes países precisam
ser respeitados em suas respectivas vocações – econômica, social e cultural – e,
apesar do inegável caráter integrador da
irreversível globalização contem-porânea,
precisam conservar alguns aspectos próprios e essenciais de sua organização e de
sua cultura, para que possam continuar
viáveis como nações independentes, estáveis e pacíficas.
Por certo, também, não podem – nem
elas, nem nenhuma outra – prescindir de
uma matriz de princípios éticos que seja
suficiente para orientar governos e cidadãos e para garantir um padrão de equilíbrio e justiça que tranqüilize a sociedade.
Parece que, dificilmente, os homens conseguirão conviver por muito tempo com
níveis tão elevados de competição econômica e tensão política – como se pode
observar em certas partes – sem graves
prejuízos para a democracia.
Estas são as reflexões que entendo adequadas à preparação do espírito do leitor
que entra em contato com os artigos deste número da revista, correspondente à
edição de número 42 da Revista da ESG e
à de número 5 da Revista do Centro de
Estudos Estratégicos, reunidas nesta ocasião numa única edição por razões práticas e, também, porque elas têm incluído
quase sempre matérias situadas num mesmo campo de interesse, desenvolvidas
num mesmo centro de estudos – a Escola
Superior de Guerra.
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O Evidente e Irreversível
Declínio da Atual Civilização
Algumas de suas causas profundas, deliberadas e sistematicamente ocultadas
do conhecimento geral
Jorge Boaventura
Conselheiro da Escola Superior de Guerra
Resumo
O autor discute os problemas da objetividade e da subjetividade dos valores
morai no contexto da Civilização do Ocidente bem como problemas relativos à sua
forma política principal- a democracia representativa de fundo liberal-, e procura
demontrar que o liberalismo, tomado com
forma geral da cultura, é insuficiente para
ensejar a formulação e a vivência de valores indispensáveis a uma democracia verdadeira, A atual, meramente formal, seria
uma contrafacção.
Palavras-chave: Informação, Democracia,
Liberalismo.
Considerações Preliminares
O leitor, certamente, conhece a relação existente entre uma dada civilização
e a cultura da qual ela se originou; e convém explicitar desde logo que, ao usarmos a expressão “civilização atual”,
estamos nos referindo àquela a que pertencemos e que, factualmente, originouse da tradição judaico-cristã, basicamente representada pelas Sagradas Escrituras. Se estas foram inspiradas por um
ser essencial e imanente, externo ao universo físico de que somos parte, ou se
não representam senão fantasias que,
por tais ou quais razões, influenciaram
poderosamente o imaginário popular, já
é uma outra discussão, que não altera o
caráter da relação factual a que acima
fizemos referência.
Por questão meramente metodológica,
visando maior clareza na exposição,
relembramos que um dado formato
civilizacional pode mais facilmente ser
transposto de uma cultura para outra, a
que passa a ser superposto, do que se
pode transformar uma cultura em outra,
diferente dela. Isto porque o que caracteriza uma civilização são circunstâncias concretas, que integram e normatizam
as relações vivenciais, interpessoais e
intergrupais, bem como atitudes e exigências pessoais passíveis de
introjeção artificial de feição propagandística.
Uma cultura, porém, é algo simultaneamente mais abstrato e mais profundo, representando o que a eminente professora
emérita do “Connecticut College”,
Suzanne Langer, conceitua como sendo
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“a expressão simbólica de modos de sentir habituais, desenvolvidos”. Algo que,
ainda segundo a mesma professora, influencia o que designa como “sub-corrente
do sentimento”, a qual existe, tanto no
sentido individual quanto no coletivo.
Essa sub-corrente do sentimento
atrevemo-nos a supor, pode sofrer a influência da interação realidade biológica –
condições ambientais, tudo resultando em
um conjunto de valores que passam a
constituir como que o alicerce cultural, do
qual brota e se vai constituindo a civilização a que dá origem. No caso da nossa
civilização, voltamos a repetir,
factualmente, o alicerce a que acabamos
de referir-nos, está essencialmente
consubstanciado nas Sagradas Escrituras,
o antigo e o novo Testamentos, cujos rumos axiológicos foram sendo absorvidos
pelos grupos humanos que os conheceram e foram sensíveis e compatíveis com
eles. Quanto à civilização que dele se originou, hoje espraiou-se praticamente pelo
mundo inteiro, superpondo-se a muitas e
diferentes culturas.
AS MANIPULAÇÕES DA
VISÃO CRÍTICA DAS MASSAS
No sub-título deste ensaio foi mencionada a existência de dados e informações,
deliberadamente ocultadas do conhecimento geral. E é muito compreensível a
estranheza do leitor, ou de alguns leitores, sobre a possibilidade da realização
desse ocultamento, pois vivemos todos
sob a avalancha da afirmação acerca das
garantias à liberdade de opinião e de expressão, asseguradas no mundo chamado livre, pelo Estado de Direito, que figuram nas respectivas Constituições. A
isso, acrescente-se ainda, o número, realmente espantoso, de dados e de notícias que, em uma espécie de caleidoscópio
6
atordoador, ferem a atenção e alcançam a
sensibilidade do aturdido homem comum
dos nossos dias que, como nós, é solicitado pelo ritmo mais ou menos frenético
das atividades que devemos desempenhar, na busca do atendimento das nossas e das necessidades, legítimas e sensatas, ou não, dos que dependem de nós.
Sim; porque elas, muitas vezes já são produto de propaganda desencadeadora de
um consumismo, freqüentemente desnecessário e, até, insensato e prejudicial.
Esta observação leva-nos a, ainda que
sem querer ultrapassar os limites a que
deve ater-se o presente texto, assinalar
que o que o ser humano deseja, no fundo
em sua existência, é ser feliz; e que a felicidade é uma sensação, não uma coisa.
Por isso, jamais ouvimos alguém dizer que
está de posse de tantos ou quantos quilos de felicidade, mas que está se sentindo feliz. A transformação de coisas, além
das que realmente são essenciais à sobrevivência saudável do corpo e do espírito – entendido este, observa-se, não
no sentido necessariamente religioso –
em condições indispensáveis à felicidade, é resultado da mistificação consistente em erigi-las em símbolos indispensáveis à obtenção da sensação a que nos
estamos referindo. Exemplo elucidativo e
resumidor? O que é designado como
“status”, para cuja conquista e elevação, tantos se estiolam sem se darem
conta de que, rompidos os limites marcados pela boa e sensata razão, o homem é vitimado pela circunstância de ser
praticamente ilimitada a sua capacidade
de desejar, sendo inapelavelmente restrita a sua capacidade de possuir efetivamente, o que inegavelmente resulta da
realidade inamovível, se outros argumentos não existissem, da transitoriedade da sua vida. E outros argumentos
existem, como o consistente na existên-
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cia de homens felizes, antes de serem
conhecidas coisas impostas hoje como
símbolos da felicidade.
Assim, parece-nos não ser difícil compreender que o número espantoso de estímulos da comunicação, difundidos pela
mídia impressa ou eletrônica, traz a
contrapartida – em virtude de circunstâncias anteriormente mencionadas – da dificuldade de apreensão analítica e racionalizada do seu significado e da existência,
ou não, de distorções e lacunas
deliberadamente planejadas e executadas
por quem disponha da capacidade de
condicionar, em dimensão estratégica, o
que, difundido como informação, na verdade representa propaganda. Propaganda seja-nos permitido assinalar, que dispõe de técnicas cada vez mais sofisticadas e refinadas, alcançando inclusive o
nível do sub-liminar.
EXEMPLOS DE
MANIPULAÇÃO DAS
“INFORMAÇÕES”
Existem tantos que a pretensão de
mencioná-los, ainda que apenas os principais, excederiam de muito a extensão que
deve alcançar este pequeno ensaio. Assim, adotaremos a orientação de ater-nos,
dentre os principais, aos que assumem
maior importância e são mencionados e
exaltados com mais freqüência.
A Idade Média foi uma idade de trevas
Podemos assegurar ao leitor que não
existe um único medievalista, em qualquer parte do mundo, que respalde semelhante falsificação histórica a qual,
entretanto, transita como algo sobre o
que não resta nenhuma dúvida. É comum
ouvir o disparate em questão mencionado por altar autoridades, por pessoas do
mundo acadêmico, por professores de
História, disciplina em que compêndios,
sobretudo de nível médio, o registram,
fortalecendo-lhe a difusão. Poucas pessoas, assim, dão-se conta de que, quando os citados compêndios tratam de situar no tempo o período medieval, colocam-no geralmente – o que corresponde
à verdade histórica – entre o século V e o
século XV – ou seja, algo correspondente a um milênio. Já o denominado
Renascimento, iniciado no século XV,
passando pela idade moderna e pela contemporânea, não excede metade daquele
tempo! Vê-se assim, desde logo, a simplificação grosseira, consistente em insinuar que um milênio foi algo homogêneo
em sua realidade, afirmada como brutal,
perversa e cruel.
O que existia, porém, antes do medievo?
Era, o leitor bem o sabe, o paganismo, que,
com o esboroamento do Império Romano,
apodrecido até às raízes, estava tendo
talado os seus espaços por tribos
germânicas belicosas, ávidas somente por
apossarem-se do seu espólio. Tais tribos,
oriundas do norte europeu, caminhavam
para o sul, ao mesmo tempo em que, do
sul para o norte, oriundos do Oriente Médio, progrediam os arautos de uma nova
mensagem, esta atrás de vigor
civilizatório, representada pelo que decorria do sentido da mensagem das Escrituras. Tais evangelizadores, longe de deformarem as virtudes de guerreiros dos
germânicos, seus catecúmenos, colocavam aquelas virtudes a serviço da nova
ética a que as suas consciências aderiam.
Dessa ética, decorria a condenação da prática da atividade econômica visando algo
além do suprimento das próprias necessidades e das necessidades de dependentes e semelhantes. A referida atividade
visando o lucro, pelo lucro, era considera-
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da um roubo e, portanto, condenada e
combatida. E aqui chegamos a um ponto
crucial para a compreensão do empenho
de tantos, geração após geração, em denegrir o medievo. É que, ao tempo do fastígio de Roma, atrás de suas legiões, como
atrás dos exércitos com que iam defrontar-se, marchavam sempre certos personagens que, sem interesse nas razões ou
sem-razões dos litigantes, visavam apenas comerciar com eles, objetivando tão
só exatamente, o lucro.
Com a queda do Império e o retraimento do gládio das legiões, até ali garantido da segurança das estradas, muito boas
para a época, elas se tornaram palco das
tropelias de assaltantes que visavam, é
claro, principalmente aqueles detentores
de maiores riquezas. E estes não eram outros senão os que, antes, ou seus descendentes, praticavam o comércio visando
essencialmente o lucro.
Na nova realidade que ia nascendo, as
áreas de maior segurança passaram a ser
pois, as situadas em torno das residências dos antigos guerreiros germânicos,
convertidos à fé que implicava em uma
ética que condenava, obviamente, as tropelias e violências dos assaltantes. Nas
referidas áreas passavam a concentrar-se
camponeses e pastores e, claro, os antigos negociantes, alvos principais dos assaltantes a que já nos referimos.
Ocorre, porém, que eles gostavam da
segurança assegurada pelos residentes
dos burgos – que era a designação dada
às suas residências – mas não gostavam
da nova ética que eles haviam adotado e
que considerava o lucro algo condenável
e pecaminoso. Daí, o surgimento de uma
contradição que temos designado como
“motor de eficácia histórica”, no fundo
representado pelo que acabamos de men8
cionar. Daí, também, o evidente interesse
em desmoralizar uma ordem em cuja base,
está presente a condenação do lucro pelo
lucro. Em conseqüência, um período de
mil anos, ser descrito como algo homogêneo e objetivo, desprezadas as peculiaridades de suas diferentes fases. Não caberia aqui detalhá-las, de vez que não é o
nosso propósito realizar uma tentativa de
estudo minudente do medievo.
Convém, porém, realçar que, a pouco e
pouco, se foram adensando as populações
em torno dos burgos, dando origem às cidades medievais, nas quais, no correr do
tempo, além dos agricultores, pastores e
comerciantes que descendiam dos que,
antes, se haviam ocupado em comerciar
com as Legiões e exércitos contra os quais
elas combatiam, como de pastores e agricultores que haviam se contagiado com
aqueles e passavam a achar que comerciar objetivando o lucro era mais sedutor do
que o amanho da terra ou o apascentar
dos rebanhos. Em breve, com a complexidade crescente das transações, surgiram
os primeiros financistas e agiotas todos,
evidentemente, contrários à ética do cristianismo, no que lhes dificultava os negócios e, portanto, contrários à fonte da autoridade dos senhores feudais, que lhes
era conferida pela religião cristã. Tanto
mais quanto esta, não apenas condenava
o lucro, como adotava postura não
supressora, mas disciplinadora dos impulsos instintivos considerados pecaminosos, quando exercitados fora daquela rígida disciplina. Tornava-se, assim, aos
impulsionadores do “motor de eficácia histórica” a que fizemos referência anteriormente, possível e eficaz, combater a religião em nome do que denominavam liberdade. E esta luta continuou, persistente e
continuamente ao longo do tempo e, mesmo depois do surgimento dos Estados
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nacionais, que começavam a superar a
autoridade feudal, ela continuou, como
continua até hoje, quando a crescente
confusão entre liberdade e licenciosidade, rotulada sempre como modernismo ou
progresso, na verdade, vem reeditando a
situação que, em muitos aspectos, marcou, sempre e invariavelmente, os períodos de decência, de todas as grandes civilizações que nos precederam. A liberação crescente dos impulsos instintivos,
pois, não aponta para a verdadeira liberdade humana, mas para a sua escravização
ao que, de mais próximo da sua realidade
animal, existe em sua natureza com as suas
conseqüentes projeções sociais. Por tudo
isso, o medievo, que produziu o maior filósofo que o Ocidente jamais conheceu
São Tomás de Aquino; que produziu o
maior poeta lírico do mesmo Ocidente,
Petrarca; que produziu o maior escritor de
que temos registro, Dante Allighieri; que
produziu São Fernando, que não foi outro
senão Fernando III, rei da Espanha; que
produziu São Luís, Luis IX, rei da França;
que produziu Santa Adelaide, viúva do
imperador Odolão, a quem substituiu no
trono; que produziu o Código da Cavalaria, de que provieram as lendas mais douradas da nossa adolescência, segundo
cujo Código os armados cavaleiros comprometiam-se a, dali em diante, lutar pelo
fraco contra o forte pela justiça contra a
injustiça; o período histórico em que, segundo São Tomás, “non est regnum
propter regem; sed rex propter regnum”, i.
é, “não é o reino que pertence ao rei; é o
rei que pertence ao reino”, algo tão diferente da célebre “l’état cest moi!” de Luis
XIV, “Renascentista” e conhecido como
“Rei sol”! De tudo ressaltando o absurdo
de tal período ser afirmado e reafirmado
como tenebroso.
Ah! Mas as fogueiras medievais? Foram, comparativamente, pouquíssimas,
quase todas tendo ocorrido, precisamente, na Renascença. O célebre Inquisidor
Torquemada foi nomeado a instâncias de
Fernando IV, de Espanha e atuou no final
do século XV. É, portanto, pouco honesto, querer creditar ao medievo o radicalismo do terrível inquisidor quando este viveu e atuou, precisamente nos estertores
do período medieval, àquela altura já desfigurado, precisamente em conseqüência
do contínuo e tenaz esforço do “motor de
eficácia histórica” já mencionado por mais
de uma vez. Não que estejamos desejando significar que não houve graves erros
no medievo ou, ,menos ainda, que ele poderia ou deveria ser reeditado hoje. Não,
apenas, sem querer ou poder entrar em
detalhes, desejamos despertar a atenção
do leitor para o grau de desrespeito à nossa inteligência, dos que manipulam em
nossos dias aquele “motor” a serviço de
um estranho “deus” Mercado, a cujas leis
todos devem submeter-se, sem que ninguém saiba quem ele, afinal, é, e de quem
depende o fato de existindo exclusivamente em função do esforço humano, em flagrante inversão de posições, pretender
subordinar a ele e às suas “leis”, precisamente quem o cria e a quem, portanto ele
deveria servir.
Voltando às fogueiras, dizíamos que elas,
em sua maioria esmagadora, ocorreram,
precisamente, no “Renascimento”. No
“Renascimento” durante o qual aconteceu a tristemente célebre “matança de São
Bartolomeu”, ocorrida contra os então
chamados huguenotes, no reino de Carlos
IX, sob inspiração de Catarina de Médicis,
em pleno século XVI, quando a erosão e a
corrupção que o incansável “motor” nunca deixou de promover, já havia produzido
o cisma do cristianismo do Ocidente, sob
a liderança de Luthero e Calvino. A propósito, quantas vezes terá o leitor ouvido
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falar da condenação à fogueira do jovem
Giordano Bruno – e já aí a propaganda
mistura detração do medievo com a
detração contínua contra a fonte de sua
autoridade representada pela Igreja Católica, da qual fora membro Giordano Bruno
para, depois, jovem brilhante e inquieto,
dissentir da orientação de suas autoridades clericais, o que lhe valeu a imputação
de heresia e o “relaxamento do acusado
ao braço secular”, que era, de fato, o que
pronunciava e executada a sentença fatal? Mas quantas vezes se lembra o leitor
de ter ouvido mencionar o nome de Michel
Serveto? Pois este, contemporâneo de
Giordano, seguira trajetória equivalente à
dele e, abandonado o catolicismo, aderira
a Calvino de quem, em seguida, passou
também a discordar: e foi condenado a
morrer na fogueira, pelos calvinistas, aos
quais são imputáveis numerosas outras.
Mas, certamente, o leitor já ouviu muitas vezes a perseguição de que foi alvo
Galileu, fato que os agentes, conscientes ou não, do “motor”, exaltam como
“prova” do obscurantismo da Igreja Católica, que o teria perseguido por causa
de sua posição em favor do
heliocentrismo, inimiga como seria a
Igreja, do progresso e da ciência. A verdade histórica, porém, é que Galileu o
que fez foi desenvolver a concepção
heliocêntrica de Nicolau Copérnico, que
nunca foi perseguido e, muito pelo contrário, teve sempre o apoio de um influente bispo da igreja romana. O problema
com Galileu foi decorrência dele, face ao
episódio bíblico que refere o fato do “sol
ter parado em sua trajetória”, como se
ele, sol, girasse em torno da Terra, menciona-lo com freqüência, somo indício
de que as Escrituras continham erros.
Em qualquer caso, porém, nem Copérnico
nem Galileu viveram no medievo.
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Tudo isso dizemos, não na tentativa de
tratar vastíssima extensão de tema histórico, tentando fazer historiologia, mas tão
somente, de dar uma medida do desrespeito com que nos tratam os que tentam
corromper-nos e, continuamente servem
ao “motor”, para tornar mais fácil servir ao
seu “deus”, o Mercado.
Assim, daremos apenas mais um exemplo do citado desrespeito: Se alguém
dissesse ao leitor que dois seres humanos foram condenados ao “suplício, na
roda, em cadafalso alto afim do suplício
poder ser presenciado pelo maior número possível de pessoas; e, ainda com os
supliciados vivos, ser ateado fogo ao
cadafalso, para que morressem queimados”; e perguntasse ao leitor em que
época, possivelmente, teria ocorrido tal
barbaridade, a resposta, mais do que
provável do leitor é que teria sido na
Idade Média. Pois não foi; foi em 1756,
segunda metade do século XVIII, o “século das luzes”, como o conhece o leitor
e o mentor da terrível sentença não foi
outro senão o marquês de Pombal de
quem certamente terá ouvido falar muitas vezes e sempre como brilhante e progressista reconstrutor de Lisboa, depois
do terremoto que a arrasara. As vítimas
teriam sido o duque de Aveiro e o padre
jesuíta Malagrida, único que a padeceu,
de vez que a rainha de Portugal, D. Maria, indultou o duque, não conseguindo faze-lo ao padre Malagrida, em relação a cujo suplício se mostrou
irredutível o “progressista” marques de
Pombal, a quem, aliás, devemos a expulsão dos jesuítas do nosso país, com
o encerramento do extraordinário trabalho que eles realizavam junto aos
nossos índios, de que são vestígios as
ruínas das Missões, no sul do país.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
Mas há outros, muitíssimos outros
exemplos da falsificação histórica e de suas
reais motivações e que nos estamos referindo. Passaremos, porém, a uma outra
delas, com que nos desrespeitam, sempre
denegrindo o medievo e as fontes de sua
moralidade, trabalho incansável e contínuo do “motor”.
Aliás, a própria expressão “Renascimento”, já é denunciadora. O que é que
renasce? O que esteve morto ou em letargo
profundo semelhante à morte.
Então, o período de maior influência
do cristianismo seria esse período de
morte. Antes dele, porém, o que existia?
Como já vimos o paganismo. O
“Renascimento” em boa lógica seria então a reintrodução do paganismo. E deste iremos tratar em seguida, face a outra
mentira com que nos desrespeita o “motor”. Antes, porém de faze-lo, seja-nos
permitido, para em definitivo realçar a requisitada perversidade e atrevida desfaçatez com que os manipuladores do “motor”, que são os menos engendradores e
manipuladores so “deus” Mercado,
erigido em ente autônomo a que devem
submeter-se aqueles sem os quais ele,
Mercado, não existiria, dizer que a idéia
de Universidade nasceu no medievo. Que
todas, absolutamente todas as maiores e
mais reputadas universidades européias
nasceram e começaram a funcionar na
Idade Média; que a Sorbonne, à altura
do século XIII, já era freqüentada, entre
professores e alunos, por cerca de 10.000
membros e, note-se, Paris, àquele tempo,
não tinha população comparável à de
hoje, mas algo como de 250 a 300 mil habitantes; que nasceram e funcionaram na
Idade Média, Oxford, Salamanca,
Heidelberg, Coimbra, que começou a funcionar em Lisboa, transferindo-se mais
tarde para Coimbra onde funciona hoje,
Padova, Cambridge, etc., fica clara pois
efetivamente a ação atrevidamente desrespeitosa com que tentam enganar-nos
os manipuladores e engendradores a que
fizemos referência.
Finalmente, e para não nos estendermos
em demasia, como símbolo da suposta
mentalidade brutal e cruel do medievo,
evocaremos a figura do medieval São Francisco de Assis, a própria exaltação da doçura para com todos os homens e para
com todas as criaturas viventes. Teria sido
ele mais brutal dos que os que, hoje, oferecem prêmios em dinheiro a quem entregar, vivo ou morto não apenas os seus
inimigos, por eles unilateralmente erigidos
como tais, mas também, os seus filhos e
auxiliares e amigos?
Passaremos, agora, à outra colossal
mentira, que tentam impingir-nos, sempre
na linha da destruição da cultura judaicocristã a que pertencemos.
A democracia nasceu na Grécia
Outra falsificação histórica, grosseira e indefensável. De fato, na Grécia,
em seus primórdios, predominavam os
reis, em torno dos quais como figuras
importantes mas, a eles subordinados,
existiam os eupátridas, grandes proprietários rurais, os latifundiários de hoje,
que não se sentiam satisfeitos com a
autoridade real a que deveria subordinar-se. E desprezando detalhes, para alcançar diretamente o ponto de maior interesse, aliando-se a operários, conseguiram os eupátridas lograr destruir a
autoridade dos reais e consagraram um
código de leis, a Constituição de Sólon,
ele próprio um eupátridas, segundo
cuja Constituição, deixava de existir a
autoridade hereditária e, em seu lugar,
surgia uma organização social nitida-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
11
mente elitista na qual o exercício das funções de governo eram distribuídas, de
acordo com a sua relevância, em proporção com a riqueza dos que a elas, por tal
motivo, teriam possibilidade de acesso.
Informe-se, ainda, a bem da verdade, que
Esparta manteve-se sempre em regime
monárquico mas que, de fato, na Grécia,
pela primeira vez na Antiguidade Clássica, foi dada ao povo, em geral, a faculdade de manifestar-se, o que, em Atenas, ocorreu primeiro na Ágora, a praça
do mercado da cidade e mais tarde, no
sopé do templo de Dionísio.
Entretanto, sempre a bem da verdade,
diga-se que tal manifestação só ocorria
com relação aos assuntos liberados para
tal pelo Senado, organismo a que tinha
acesso apenas um número restrito de
membros, representantes das várias tribos
reconhecidas como existentes. E que, depois das reformas introduzidas por
Clístenes e Efialtes, que admitiram um número maior de representantes por tribo, o
total dos integrantes do Senado alcançou
o número de 500.
Plutarco, porém, refere que, na prática,
só faziam uso da palavra os líderes de
determinadas facções e oradores
profissionais e que os debates referiamse, preferentemente, a assuntos menores
e frívolos, como festas populares e
quejandos. Tanto que, quando
identificada a ameaça representada para
Atenas, por Felipe da Macedônia, em vão
clamava Dermóstenes por providências
acauteladoras da segurança da cidade. E
somente quando já era tarde demais é que
foi aprovada a instituição da “eisfora”,
espécie de imposto provisório, destinado
ao custeio de despesas exigidas pela
defesa da cidade-Estado, mas que,
referem os cronistas da época, tornou-se
12
permanente, ainda que a pouco e pouco
desviado e malbaratado para os mais
diferentes fins – o que parece indicar a
transformação em permanentes, e o
desvio de sua destinação, de impostos
“provisórios”, desde a profundidade dos
séculos. Em qualquer caso, aquele de que
estamos tratando foi instituído
demasiadamente tarde, o que levou a
derrota dos atenienses diante das peças
de Felipe da Macedônia, derrota
reeditada mais adiante pelos atenienses,
na batalha de Queronea, em que foram
derrotados pelo jovem Alexandre da
Macedônia.
Os dados acima mencionados poderão
ser argüidos, e com razão, pelo leitor como
sendo de caráter conjuntural e pertinentes
ao mau funcionamento das instituições,
não à forma de concebê-las e aos homens
a cuja organização em sociedade se
destinavam. A tal respeito, e respaldando
a tese da falsificação histórica consistente
em afirmar-se que “a Democracia nasceu
na Grécia”, em clara tentativa de
valorização do passado pagão que
antecedeu o medievo, queremos propor à
consideração da inteligência do leitor que,
dos vultos provenientes do pensamento
filosófico da Grécia antiga, pertencentes a
quaisquer de suas escolas e tendências,
como eleatas ou jônicos, modernos ou
antigos, como são classificados, ou
sofistas, ou os da chamada escola itálica,
os únicos grandes vultos, e sem dúvida
os maiores produzidos pela Grécia no auge
de seu esplendor, que se ocuparam
especificamente com o problema da
organização da sociedade, foram
Aristóteles e Platão.
Para o primeiro, a existência de escravos
era indispensável à referida organização,
de vez que os problemas complexos do
governo deviam ser privativos dos
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
filósofos, ficando as tarefas pesadas e
penosas a cargo dos ignorantes que, como
escravos, deveriam desincumbir-se delas.
Seriam eles, então , - é Aristóteles falando
em sua célebre “Política”, - meras
ferramentas, distinguindo-se de pás,
alviões ou picaretas, apenas pelo fato de
serem ferramentas ativas, enquanto
aquelas eram inertes. Ao classificar as
diferentes formas de organização política,
teoricamente concebíveis, refere-se
Aristóteles à aristocracia, governo de
poucos, à monarquia, governo de um só e
à democracia, governo de todos,o que
representava.-. demos a palavra, de novo,
a Aristóteles- uma forma depravada de
República.
Para Platão, em sua “República”, o
governo deveria ser exercido,
exclusivamente pelos filósofos, a quem
seriam entregues todas as crianças ao
nascerem, de modo a serem treinadas
para as diferentes tarefas e ofícios a que
deveriam dedicar-se, sem a possibilidade
de mudar de oficio o que impedia
qualquer mobilidade social, vertical ou,
mesmo, horizontalmente. O pretexto era
que a persistência em um só ofício era a
garantia do seu desempenho com o
máximo de eficiência. As mulheres seriam
propriedade comum dos que ele
designava como guardiões do Estado,
selecionados dentre os mais robustos,
mais ágeis, mais violentos, mais aptos,
pois, ao exercício dos misteres da guerra.
As mulheres seriam sua propriedade
comum para que a questão da
paternidade fosse sempre suscetível de
dúvida, o que facilitaria a entrega dos
nascituros ao governo dos filósofos.
Quanto aos recém-nascidos débeis ou
portadores de defeitos físicos, deveriam
ter os seus pescocinhos torcidos e os
corpinhos lançados fora em um vale
nas proximidades de Atenas. Para
encerrar o violento desrespeito à nossa
boa-fé representado pela. afirmação
bilhões de vezes repetida de que “a
democracia nasceu na Grécia”,
refiramos o resultado de um censo
realizado em Atenas, pouco depois do
chamado “século de ouro”, o século de
Péricles, que não foi mais do que um
“tirano esclarecido”, exercendo o seu
arbítrio sobre a Confederação de Delos
que, na prática, caiu sob o seu domínio.
O referido censo, realizado por
Demetrius de Falero e referido por
Montesquieu, em seu “Do Espírito das
Leis” apontou os seguintes resultados:
excluídas as mulheres e as crianças,
que não participavam da Ágora ou dos
debates ao sopé do templo de Dionísio;
os “metecos” que eram nascidos em
Atenas mas não eram filhos de pai e
mãe atenienses; excluídos também os
escravos, de um total de quatrocentos
mil habitantes, apenas vinte mil podiam
participar dos “debates”, 5%, portanto,
a que Herócleto se refere quando,
narrando visita que teria sido feita a
Ciro, o Grande, quanto aos perigos
representados por Atenas, dele ouviram
os visitantes que não o preocupava um
Estado que destinava um espaço
público para que, nele, os homens
tentassem enganar-se uns aos outros.
Outra civilização muita louvada pelos
controladores do “motor”, que esplendeu
no paganismo, é a romana, cujo Direito,
de fato muito influente sobre o que veio a
prevalecer no Ocidente, sobretudo no
pós-medievo foi a mesma para a qual, a
dignidade do homem não vinha do fato de
ele sê-lo, mas do fato de ser, quando o
fosse, cidadão de Roma. Perdida, ou
cassada a sua cidadania, ele podia ser
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comprado ou vendido, ou morto, nada lhe
restando assemelhável a algo compatível
com as nossas raízes culturais,
prevalecentes no medievo. Também é
mantido em discretíssimo silêncio o que o
romano Cícero denunciou em “De
Legibus”, quando afirmou que se todo o
Direito se constituísse das leis elaboradas
pelos legisladores, estaríamos conferindo
a estes a faculdade de transformar o Bem
em Mal, a Virtude em Vicio, a Mentira em
Verdade, e assim por diante. Apontava,
pois, Cicero a necessidade da existência
de algo que, acima da sua elaboração
humana, pudesse evitar os absurdos que
acabamos de apontar.
É a concepção central do jusnaturalismo, modernamente esposada, entre
outros, pelo professor Redbuch, da Universidade de Heidelberg, que, tenso
sido positivista. do Direito, declara que,
diante do problema da anterioridade entre o Direito e o Estado, ele reconhecia a
indispensável existência de algo que,
acima de um e de outro, aproximasse o
legal do justo. Essa constatação é que
foi ignorada a partir do art.6° da “Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos”, promulgada em
1791 pela Assembléia Nacional Francesa, coroamento de um esforço
multissecular dos contro1adores do
“motor” e que, constituindo a espinha
dorsal das Constituições dos Estados
ditos democráticos, já hoje começa a ser
imposta, à força, se necessário, por aqueles controladores. Procuraremos tratar
disso mais adiante. Por ora, e para terminar o que assinalamos acerca das excelências do Direito Romano, do qual só
se exalta o que teve de positivo, que foi
em sua vigência, que ocorreram os terríveis espetáculos do Coliseu de Roma e
de outras arenas espalhadas pelo Impé14
rio. Quanto ao direito consuetudinário,
citaremos a norma “sexagenarius de
pontu”, segundo a qual, atingindo alguém os 60 anos de idade, os próprios
filhos tinham o “direito” de lançá-lo às
águas do Tibre, para que se afogasse. E
a “arae perusinae”, que levou certa vez
à ceva de doze patrícios romanos, sacrificados depois em honra ao “‘divino
César”. De fato, têm-nos desrespeitado
de mais, os senhores do “motor”.
A referida “Declaração” compunha-se
de 17 artigos, o último dos quais, o 17°
rezava: “A propriedade privada é
sagrada. Sua desapropriação só
podendo ocorrer diante de grave perigo
ao interesse público, e ainda assim,
mediante prévia e justa indenização,
paga em dinheiro. Acha o leitor que a
tomada da Bastilha foi obra dos “Sans –
Culottes”?
A EPISTEMOLOGIA
NOMINALISTA E SUAS
GRAVES CONSEQÜÊNCIAS
Aspectos da erosão
produzida pelo “motor”
A ação continua e pertinaz do “motor”,
de erosão de aspectos fundamentais de
uma ordem social que condenava o lucro
como motivação da atividade econômica,
exercitava-se, como já vimos, não apenas
contra a ordem em si, como contra a fonte
de que provinha a sua autoridade,
representada pela Igreja Católica e a
expressão humana que a exercitava junto
aos senhores feudais e, mais adiante, já
em parte como efeito erosivo das ações
do “motor”, sobre os reis surgentes com a
criação dos Estados nacionais. E tudo isso
levava a uma interação demasiadamente
íntima entre os poderes secular e religioso,
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
em certo sentido, inconveniente para
ambos. Nem foi por outra razão que se
tornou possível mais adiante, o cisma do
cristianismo ocidental realizado por
Luthero e Calvino, rebelados contra
aspectos de corrupção da feição humana
da autoridade religiosa.
Ocorre, porém, que por detrás desta, no
plano filosófico, prevalecia o pensamento
tomista e os sacerdotes; fiéis a Roma e
infensos à rebeldia, dados às cogitações
filosóficas, foram adensando o realismo
tomista, a ponto de levar aos exageros da
escolástica, contra os quais surgira, à
altura do século XIV, ainda no medievo,
portanto, o nominalismo moderado, ou
conceptualismo, de um sacerdote regular.
William Ockham, sucedendo o
nominalismo de Ruscelino pare quem os
conceitos universais não teriam existência
real, não passando de .”flatus voces”,
sons vazios, tendo existência, apenas, os
objetos perceptíveis pelos nossos
sentidos corpóreos, objetos componentes
do mundo físico em que estamos inseridos.
No domínio apenas da discussão teórica,
teses válidas e dignas de discussão, no
plano em que elas deviam ser colocadas.
Os agentes do “motor”, porém,
encontraram na. hipótese da negação da
existência real de conceitos universais e
permanentes, preciosíssimo elemento de
aluição da fé religiosa, obviamente assente
na existência dos referidos valores.
A “ignorância interna”
e a “ignorância externa”
Um líder religioso contemporâneo, de
trajetória muito polêmica, foi objeto, entre
nós, de devastadora campanha de
desmoralização, movida por poderosa
organização de mídia, surpreendente
porque a nossa sociedade é extremamente
permissiva em matéria religiosa, sendo
recente a inauguração na administração
municipal carioca anterior à atualmente em
exercício, de uma estátua a Exu dos Ventos.
A referida inauguração, realizada em
encruzilhada importante do nosso sistema
viário, contou com a presença do próprio
prefeito e, ao que saibamos, a mesma
organização de mídia não realizou
nenhuma campanha de estranheza sequer.
O líder religioso a que nos estamos
referindo é o Dr. Sun Miung Moon,
engenheiro pela Universidade de Waseda,
no Japão, e doutor “honoris causa”, pela
Universidade Católica de La Plata,
Argentina. Quanto às suas idéias no plano
teológico, aceitas pelos que as estudam
detidamente e as seguem, nada temos a
dizer, pois não somos teólogos, não seria
pertinente no momento, admitimos que, ao
menos algumas, são muito chocantes. Em
texto atribuído a esse líder religioso, porém,
encontramos concepção que nos parece
extremamente válida, da qual não nos
apropriaríamos sem citar-lhe o autor, por
uma questão de elementar honestidade
intelectual.
A referida concepção consiste na
afirmativa de que os homens são vitimados
por dois tipos fundamentais de ignorância:
Uma interna, outra externa. E que os
únicos caminhos para a sua dissipação
consistem: no caso da ignorância interna,
a cogitação filosófica e a Religião; no caso
da externa, a Ciência e a Tecnologia. Até o
século XIV, a humanidade viverá quase
que exclusivamente mergulhada, no que
tangia à atividade intelectual, às
cogitações religiosas e às pertinentes à
filosofia, tendo sido insignificantes os
seus avanços em relação ao conhecimento
do mundo material em que vivemos e, nele,
às relações aparentes de causa e efeito.
Pois o nominalismo, promovido pelo
“motor”, passe a ser um convite à
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extroversão, dedicada à dissipação da
“ignorância externa”. O efeito benéfico
dessa extroversão traduziu-se na rapidez
crescente, em curva exponencial, dos
avanços e conquistas científicas e
tecnológicas conseqüentes. Os diversos
ramos do saber e as diferentes
especialidades foram gerando novos
ramos e sub-ramos, em tal número e em tal
monta, que os homens perderam a visão
de conjunto do acervo dos seus
conhecimentos, antes acessível, ao menos
aos eruditos. Hoje, o homem comum não
faz a mais pálida idéia dos conhecimentos
aos quais, entretanto, vive subordinado.
Ocorre, porém, que tantos sucessos
fizeram crescer a vaidade humana, e a
superestimação da razão, passando pelo
que o que o prêmio Nobel Sir. John Eccles,
designa como cientificismo, levou ao
Racionalismo exaltado do século XVIII, de
que foi uma das conseqüências, a
Revolução Francesa de 1789. As
cogitações filosóficas e religiosas
perderam prestígio, com o conseqüente, e
inesperado, adensamento da “ignorância
interna” que está reconduzindo a
sociedade hodierna de volta à barbárie.
A barbárie ensejadora do aumento
insuportável da violência, ao
desregramento dos costumes e ao uso de
drogas, como tentativas lamentáveis de
preenchimento do vazio deixado nas
almas, sobretudo dos jovens, pelo
desprezo, a desconsideração, dos
conceitos universais e pertinentes, que
davam sentido e finalidade à vida. A
ciência realmente de vanguarda, já a esta
altura, descalça o cientificismo a que se
refere Eccles, o que o “motor” impede
chegue ao conhecimento geral.
Realmente a Física Quântica, de que não
poderemos nos ocupar aqui, não
demonstrando a existência de Deus – o
16
que não pretende ao seu domínio, que é o
físico, não o metafísico, - mais do que
nunca sugere a idéia da unificação a ser
alcançada um dia pelos dois domínios.
Realmente a busca dos componentes
fundamentais da matéria, até bem pouco
tempo referindo apenas três, hoje
aproxima-se dos quatrocentos e, mais,
tudo indica não serem senão efeitos
produzidos por variações quânticorelativistas de campos, sendo estes
destituídos de substância. Claro que
semelhantes concepções não são de
interesse do “motor”, daí, o pouco, ou
nenhum realce dado à sua existência e às
suas graves implicações. Bem como não
lhe interessa, entre outras, sejam
divulgadas
as
surpreendentes
conseqüências da “simetria de Bernard” e
sua aplicação à bioesfera, feita, por Ilya
Prigogine, etc.
O que interessava aos condutores do
“motor”, a altura do século XVIII, era a
exaltação da Razão, aquela mesma a que
se referiria um pouco adiante, Immanuel
Kant, em sua “Crítica da Razão Pura”,
onde declarou ter a humanidade alcançado a sua maioridade, já não necessitando de nada que não fosse elaborado
pela sua própria razão. Caso ressuscitasse hoje, o que acharia da existência
de arsenais nucleares capazes de produzir a extinção da vida na Terra, não
uma, mas várias vezes? Aliás, em sua
“Crítica da Razão Prática”, é justo assinalar que ele já se mostrava menos otimista com respeito à razão. A razão que
sendo a de um ser contingente, lida necessariamente com um número extremamente limitado de dados.
Voltando aos condutores do “motor”,
importava-lhes, à altura do por eles
designado “século das luzes”, do
“aufklärung”, do “enlightment”
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desvincular a civilização em definitivo,
dos alicerces culturais de que proviera.
Fazendo-o, como sempre, em favor da
liberdade. Mas de uma liberdade que,
não se definindo quanto a finalidade e
contornos, é algo como uma carta sem
endereço
e
sem
conteúdo,
deliberadamente confundido o que ela
é como conceito, no plano metafísico,
conceito cujo atributo caracterizador é
o de não sofrer restrições, com o que
ela deve inevitavelmente ser como
exercício por parte de seres imperfeitos
como somos todos.
As injustiças do absolutismo
monárquico deram-lhe os pretextos, não
os motivos, da revolução francesa de
89, liderada por próceres agnósticos,
livres pensadores adeptos da religião
pessoal, ateus confessos e comunistas
pré-marxistas, como Graccho Babeuf,
cuja cabeça rolou sob a “máquina
piedosa” do Dr. Guilltin, em virtude de,
tendo acreditado na Igualdade, uma das
idéias força da Revolução, atreveu-se
a publicar o “Manifeste dês Égaux”. A
revolução de 89, do ponto de vista das
nossas raízes culturais judaico-cristãs,
foi uma revolução ímpia, violenta,
sanguinária e injusta – o que não é,
pelos motivos que o leitor já conhece,
realçado, ao menos para exame, diante
da opinião pública. Opinião pública que,
em geral, ignora que, só na província
da Vendéia foram assassinados cerca
de 35 mil religiosos, entre sacerdotes
regulares e seculares, e freiras de
diferentes Congregações. Como ignora
que numerosas igrejas foram
transformadas em depósitos de
mantimentos, aquartelamento de tropas,
depósitos de munições e estrebarias.
Como supõe que, na célebre Bastilha,
estariam presas centenas de vítimas do
regime monárquico quando, na verdade,
lá estavam apenas sete presos, sendo
que dois não o eram, senão débeis
mentais que haviam sido recolhidos por
misericórdia face ao outuno que se
aproximava. Dois outros eram presos
comuns, estelionatários, e apenas três
eram, de fato, presos políticos. Já
quando rolou a cabeça de Robespierre,
sob a “máquina misericordiosa” do Dr.
Guillotin, havia cerca de 100.000 presos
políticos na França, e um número ainda
maior, em prisão domiciliar, aguardando
a instrução dos seus processos. De
fato, zombam de nós, e nos
desrespeitam, os senhores do “motor”.
A revolução de 89, para eles, foi como
que o culminar de um longo esforço,
multissecular, visando empolgar as rédeas do processo civilizatório pelas razões
que ofereceremos em seguida à consideração dos que nos leiam. Seja registrado
desde logo que o esforço a que nos
estamos referindo resultou da contradição
permanente que designamos como “motor de eficácia histórica” a qual, sempre e
continuamente, foi aglutinando todos os
que estavam polarizados pela sedução do
lucro, na prática acima de quaisquer outras considerações. Essa aglutinação, obviamente, levou, muitas e muitas vezes, à
coordenação planejada de esforços. Portanto, se não adotarmos a perspectiva que
os mentores do “motor” tentam desmoralizar designando-a, pejorativamente, como
“teoria conspirativa da História”, estamos
longe de admitir que nada do que acontece na dimensão histórica, resultou de conspiração. Muito pelo contrário, ao longo
do tempo, a aglutinação a que acabamos
de referir-nos foi se ampliando, tornando
mais consistente e estabelecendo uma
hierarquização de influências decorrentes
da maior união e maior competência de alguns componentes em relação a outros.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
17
Em 1789, já o quadro conspirativo se
tornara nítido, inclusive e apenas como
um aspecto da questão, nenhum
historiador sério nega a participação e
influência sobre ele de sociedades
secretas solidamente estruturadas.
Assim, sob a indução de lideranças
intelectuais como, por exemplo, as de
d’Holbach, ateu convicto e anti-clerical
intolerante; do irreverente e anti-clerical
Voltaire, do materialista d’Alambert. De
Jean-Jacques Rousseau e seu
contraditório “Contrato Social”, tornouse vitoriosa a revolução da qual só são
realçados diante da opinião pública, os
aspectos que lhe são, ou que,
devidamente maquilados, lhe pareçam
favoráveis.
O objetivo real do “motor”
na revolução de 89
Desconsiderados os pretextos, muitos
deles válidos e gravíssimos , da Revolução de 89, o objetivo real dos mentores e
controladores do “motor”, foi
consubstanciado pela Assembléia Nacional Francesa, por intermédio da “Declaração Universal dos Direitos dos Homens e
dos Cidadãos”, por ela promulgada em
1791.
Da referida “Declaração” constava o
artigo 6°, segundo o qual “A lei é a
expressão da vontade geral, manifestada
diretamente ou por intermédio de
representantes”. Em outros incisos
figurava a afirmação de que “ninguém
seria obrigado a fazer, ou a deixar de fazer
alguma coisa, a não ser em virtude de lei”.
À primeira vista, parecem justos e nobres
tais princípios. Na verdade, porém, por
intermédio deles desvinculava-se o
processo civilizatório do Ocidente de
qualquer compromisso com as suas raízes,
18
com os seus alicerces culturais,
factualmente, como já o dissemos
anteriormente, representados pelas
Sagradas Escrituras. Tudo passou a
depender, então, da manifestação da
vontade de maiorias volúveis de
representantes – como na prática ocorre –
maiorias cuja composição e a natureza de
cuja produção legislativa passaram a
depender da vontade e dos interesses dos
que dispusessem dos meios necessários
para, influindo sobre as emoções das
massas e controlando as fontes de suas
informações – transformadas em
propaganda – levassem-nas a compor o
que, hipoteticamente, seria a sua vontade.
Voltava o Ocidente, sem percebe-lo, a
incidir na crítica já formulada há muitos
séculos, por Cícero, em “De Legibus”. E a
fazê-lo, fundando o modelo adotado em
um erro crasso, de vez que as maiorias não
são, necessariamente, fontes de verdade,
podendo errar ou acertar da mesma forma
que as singularidades. As consultas às
maiorias constituem-se, sim, em processo
de tomada de decisões, em muitos casos
insubstituível.
Supô-las
fontes
irrecusáveis de verdade, pelo menos os
cristãos deveriam saber que não são, o
que é ilustrado no relato bíblico em que o
pretor romano, dirigindo-se à multidão, em
claro exercício de consulta direta à maioria,
perguntou-lhe quem ela preferia que fosse
libertado e livrado de condenação à morte:
se Jesus, em quem ele não via culpa
alguma, ou se Barrabás, criminoso de
sangue, segundo suas palavras. E a
resposta, praticamente em uníssono, da
multidão, foi a de que ele libertasse
Barrabás.
Por outro lado, em face da fraude que se
estabelecia com a “Declaração”, interesse
dos mentores do “Motor”, ao assumir em
maior ou menor grau, o controle da elabo-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003
ração do Direito Positivo, com o conseqüente desprezo ao Direito Natural, que,
sem substituí-lo, deve emoldurá-lo, para
que haja o esforço necessário de
compatibilização entre o legal e o justo,
acentuou-se no sentido da corrupção das
massas por meio de leis que, cada vez favorecessem mais o império do outro erro
crasso a que também já fizemos referência, representado pela confusão
conceptual entre liberdade no plano
metafísico, e o seu exercício, na prática,
por seres imperfeitos como somos todos.
Seres dotados de tendências altruístas,
socialmente positivas, e de inclinações
egoístas, fontes potenciais de tantos males e abusos.
O resultado desses disparates, que entretanto estão na espinha dorsal do que se
convencionou denominar “democracia”, a
sacerdotisa do suspeitíssimo “deus” Mercado, cujos mentores, como já foi dito, tentam impô-la a todos – e esperamos que o
leitor, agora, saiba porquê – ainda que, para
tanto se torne necessário o emprego mais
brutal e criminoso da força.
Este texto já está mais longo do que nos
foi proposto. Mas não queremos encerrálo sem mencionar uma razão muito concreta para afirmarmos que a nossa civilização entrou em degradação irreversível, e
que a crise dos nossos dias representa as
dores do parto de uma nova civilização
que nos parece já surgente, dos escombros desta que no momento se esboroa.
A homeostase civilizacional
O leitor sabe que o conceito de
homeostase foi proposto por Claude
Bernard, ainda no século XIX. Segundo
ele, “todo sistema em equilíbrio, tende a
reagir no sentido de minimizar as influências sobre ele, produzidas por variações
do meio externo em que esteja inserido”.
Tal conceito adquiriu hoje extraordinária
influência e divulgação, nos domínios da
cibernética e, a nível popular, sobretudo no
que tange ao equilíbrio dos ecossistemas.
Assim, o povo sabe agora que um
ecossistema, por exemplo, uma floresta do
tipo tropical úmido, como a nossa floresta
amazônica, representando um tremendo
complexo de bilhões de componentes, de
comportamento aparentemente aleatório,
pode ser agredido, inclusive gravemente
que, cessada a agressão, ela volta a recompor-se, evidenciando que nele havia algo
nada aleatório. Sabe-se porém, que se a
agressão ultrapassar um certo limite, denominado “limite de homeostase”, mesmo
cessada a agressão, o ecossistema entrará
em estágio de degradação irreversível. Conhecem os cientistas ambientais que as
variáveis do ecossistema que, vulneradas,
o remetem à degradação irreversível, são
as chamadas “cadeias alimentares”.
Pois bem; há cerca de 4 ou 5 anos, ocorreu-nos a idéia de que o conceito de
homeostase e da existência do “limite de
Homeostase”, seria aplicável também, aos
formatos civilizacionais. No dia seguinte
àquele em que nos ocorrera a idéia, tivemos a oportunidade de anuncia-la em painel de que participávamos na ESG. Mais
adiante, o enunciamos em Congresso realizado em São Paulo, com a presença de participantes de mais de quarenta países, aos
quais o expusemos, assinalando as variáveis que, vulneradas, conduzem um formato civilizacional a sua irreversível degradação. São elas: a “individuação” e o
“envolvimento”. A primeira refere-se ao
tempo mínimo indispensável para que um
indivíduo nascido seja capaz de garantir a
própria sobrevivência, sem nenhum aporte
ou auxílio externo. O “envolvimento” refere-se ao tempo necessário para que um ser
humano se incorpore, de maneira harmoni-
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19
osa e construtiva, ao ambiente físico e sócio-cultural em que veio ao mundo e no
qual deverá viver.
A “individuação” na espécie humana exige tempo muitíssimo maior do que em qualquer outra espécie do reino animal em que,
mesmo os grandes vertebrados e mamíferos, com algumas semanas ou poucos meses de nascidos, já são capazes de sobreviver pelos seus próprios meios, sem aporte
externo. Na espécie humana, a
“individuação” existe, notoriamente, muitos
anos. Quanto ao “envolvimento” o tempo
necessário é muito maior, e tende a tornar-se
cada vez mais longo. E, do ponto de vista
social, a instituição mais eficaz para garantir
qualquer das duas variáveis, é a família, qualquer que seja a sua configuração, correspondente às várias culturas existentes. No
que tange à cultura ocidental, a duração
média dos enlaces conjugais regularmente
estabelecidos, em vários países do 1° mundo começa a ser inferior a 3,5 anos, tempo
insuficiente para a “individuação”. O que
dizer do “envolvimento”? E tal duração, nos
países em que a média é maior, as estatísticas mostram que ela está em declínio cada
vez mais rápido e menos compatíveis com
as exigências das variáveis de que estamos
tratando.
São os frutos da ação erosiva do “motor”, a promover, pertinamente, os erros
crasos a que já nos referimos, para que a
entrega aos sentidos, e o esvaziamento
dos conceitos e valores permanentes,
funcionando como o verdadeiro ópio dos
povos, deixem-nos inermes diante da brutal exploração e injustiça de que são vítimas. A despeito de tudo, os povos estão
despertando, o que explica a crescente
truculência, filha do desespero, dos
adoradores do “deus” Mercado, sobre
cujo poder começa a pesar agora o do que
chamamos de 2° plano da História. Este,
porém, já é uma história, que o espaço disponível e a paciência do leitor não nos
permitem abordar.
Tudo quanto lhe dissemos até aqui, o
fizemos em espírito de serviço e, com
respeito à sua inteligência, apenas para
propor o exposto à consideração e à
análise da mesma. E para terminar; da
revolução que produziu o Art 6°,
desvinculador do processo civilizatório
dos seus alicerces culturais, em 1791, 57
anos depois surgiu o Manifesto de 1845,
do qual resultou a primeira tentativa de
domínio mundial pelos que foram ao poder,
ocupando a cúpula de uma revolução cujo
hino era a Internacional, claro apelo à
superação das soberanias nacionais.
Revolução financiada pelos controladores
do “motor” que hoje, mudando de
estratégia, não de política, desmontaram
o projeto anterior, superado pelos fatos,
substituindo-o pela globalização, versão
atualizada da Internacional ...
Querem os controladores do “motor”,
não a maior parte dos bens e do poder dos
povos, mas todo o poder e o controle de
todos os bens.
Abstract
The author examines the relations among moral values and the political representative
system into the democratic context of th Western Civilization, even making question of
the future of this civiliation. He takes into account the contradiction among these values
and the liberalism-what is meant by a general pattern of the culture. Western formal
democracy-the author believes-may be a simulation that tries to quash the true Democracy.
Keywords: Information, Democracy, Liberalism.
20
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Desenvolvimento Sustentável:
Davos ou Porto Alegre?
Prof. Gerardo José de Pontes Saraiva
Coronel do Exército do, Quadro de Engenheiros Militares; Adjunto da divisão de
Assuntos Psicossociais da Escola Superior de Guerra; Mestre em Engenharia Civil e
doutor em Ciências
Resumo
O autor enfatiza a necessidade de um
posicionamento da atual geração frente ao
problema da escolha de um modelo de
governo e relações internacionais que privilegie desafios predominantemente sociais (‘modelo Porto Alegre’) ou os predominantemente econômicos (‘modelo
Davos’).
Palavras-chave: Globalização, Economia
mundial, Acordo Multilatera de Investimentos.
Na atualidade, o mais importante, na
minha opinião, é estudar os motivos pelos quais a humanidade nada manifesta
para afastar as ameaças que tão bem conhece, e porque ela se permite ser
conduzida por um tipo de movimento permanente. Não é suficiente inventar novas máquinas, novas regulamentações,
novas instituições. É necessário mudar e
melhorar nossa compreensão acerca da
verdadeira finalidade de nossa existência e o porquê de estarmos neste mundo.
É somente com essa nova compreensão
que poderemos desenvolver novos modelos de comportamento, novas escalas de
valores e metas e, conseqüentemente, in-
vestir nas regulamentações globais, tratados e instituições com um novo espírito e significado. (Vaclav Havel, Presidente da República Tcheca).
Introdução
Hoje, o mundo encontra-se numa posição de escolha significativa:
- A continuação do sistema competitivo do Tratado de Westphalia, de soberania do Estado e de políticas baseadas
no interesse nacional - e uma guerra global contra o terrorismo, liderada pelos
Estados Unidos, com data final em aberto
apoiada pelas multinacionais e outros
interesses de setores privados, ou
- A continuação do sistema com base
nas Nações Unidas, em vigor há 57
anos, de construção de regimes legais,
cooperativos e multilaterais para tratar as questões globais que não podem ser resolvidas pela ação exclusiva de qualquer nação: epidemias mundiais, terrorismo, crime, lavagem de dinheiro, instabilidade e crises financeiras, pobreza crescente e lacunas de
informação dentro dos países e entre
eles, ruptura climática e ecológica,
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extinção das espécies, perda de florestas e de biodiversidade e manutenção da paz em um mundo onde é cada
vez maior o número de atuantes não
governamentais.
Esses dois paradigmas e abordagens
radicalmente diferentes no tocante a governos e relações internacionais irão guiar nossas estratégias para dar forma à
globalização e a valores, metas, normas
éticas, padrões e regulamentos que conduzam a humanidade a um desenvolvimento humano mais eqüitativo e sustentável
do ponto de vista econômico e social.
Parece-nos oportuno, antes de abordar
diretamente o tema deste trabalho, introduzir algumas considerações sobre o Consenso de Washington. Em 1993, o economista John Williamson, que cunhou a expressão Consenso de Washington, publicou um artigo extremamente instrutivo e
premonitório. Chamava-se A Democracia
e o Washington Consensus. Neste trabalho ele defendia a tese de que a sobrevivência dos regimes democráticos nos países submetidos à terapia ortodoxo-liberal, supunha que os seus principais atores sociais e políticos chegassem a um
acordo prévio ou anterior ao próprio exercício da democracia. Uma espécie de
armistício macroeconômico, em que todos
reconhecessem a existência de uma, e apenas uma, política econômica científica e
eficaz. Como conseqüência desse acordo,
a discussão da política econômica seria
eliminada das competições eleitorais e dos
debates democráticos, de tal modo que ficasse assegurado aos investidores que a
alternância no poder jamais tocaria nos
fundamentos da política econômica e, portanto, jamais tocando nos seus interesses. Neste ponto situa-se o sempre lembrado problema da credibilidade, um verdadeiro mito (na realidade, pesadelo) de
22
Sísifo que se autoimpõem os governos
que adotam as políticas ortodoxas, convictos de que os mercados internacionais
se movem de acordo com suas pequenas
mesquinharias fiscais ou previdenciárias.
Entretanto, o problema mais grave do ponto de vista democrático, é que exatamente
neste ponto se esconde o autoritarismo
implícito da tese de John Williamson.
A experiência tem demonstrado que as
políticas que causam deflação se
perenizam independentemente da
credibilidade de que possam gozar as autoridades nacionais. E com elas um quadro crônico de restrições fiscais e monetárias, acompanhado de baixo crescimento, como se tem visto. Fatores que, em
conjunto, atingem e debilitam todas as
políticas públicas. Por isso, uma vez posto na camisa de força das políticas ortodoxas, nenhum governo consegue enfrentar, nas raízes, os seus problemas sociais,
limitando-se aos seus aspectos mais visíveis ou chocantes. Como essas políticas,
entretanto, vão acompanhadas pelo aumento exponencial do desemprego e da
miséria, ou da polarização social, é difícil
não se ficar pessimista e não prever uma
crescente crise de legitimidade democrática, a não ser que se promova vivamente
uma apatia cidadã.
Na medida em que o tempo passa, fica
cada vez mais claro que o modelo ortodoxo de política macroeconômica com reformas liberais acaba por tornar-se, no longo
prazo, prisioneiro de si mesmo ao esconder-se na obsessão antiinflacionária, infinitamente elástica, mesmo quando a economia mundial se encontrar em processo
deflacionário. Além disto, não se conhece
caso ou experiência de algum país onde
esse modelo tenha gerado alto crescimento com sustentabilidade e, muito menos,
inclusivo. Tampouco se conhece algum
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caso ou país, onde esse modelo tenha se
transformado, por um processo endógeno
e evolutivo, no seu oposto.
Sob esse aspecto, é possível que se repita também no Brasil ao que já se vem
assistindo em outros lugares: o esvaziamento dos quadros e militâncias partidárias e um crescente esvaziamento eleitoral conseqüências que podem ser extremamente benéficas para o armistício
macroeconômico desejado por John
Williamson, mas que, no longo prazo, serão extremamente deletérias para a consolidação da institucionalidade democrática.
Davos ou Porto Alegre?
Poucas vezes o português foi tão entendido quanto em Davos, porque a palavra universal sobre política industrial
não é o inglês ou o português. A palavra
universal é o sentimento. (Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, quando da última reunião de Davos. Citado pela Folha de São
Paulo, 29.06.2003, cad. A 2).
Nenhuma restrição à afirmação do Presidente da República. Apenas, queremos
enfatizar que o sentimento é necessário, mas
somente será eficaz se transformado em ação.
A pergunta contida neste subitem não
implica idéia de conflito ou de confronto.
Pretende-se com ela introduzir uma opção
filosófica, um modo de conceber e, em função disto, de agir. Davos e Porto Alegre significam, refletem, incorporam duas maneiras
de pensar o desenvolvimento sustentável
em face da globalização econômica - desenvolvimento sustentável aí não restrito ao
muito importante aspecto ambiental.
O futuro da família humana em nosso
pequeno planeta ameaçado, evoluiu, desde a entrada deste novo século, para um
debate muito mais amplo sobre a
globalização. O ponto crítico deste novo
e mais sofisticado debate emana do Brasil. Porto Alegre, que durante 300 anos
acolheu imigrantes, não é mais apenas a
elegante e simpática cidade que serve de
entrada para o histórico e hospitaleiro Estado do Rio Grande do Sul. Hoje Porto
Alegre é a sede do Forum Social Mundial (World Social Forum), onde milhares
de líderes da sociedade cívica mundial
encontram-se anualmente para
reexaminar novas formas de globalização
mais humanas, mais favoráveis a ecologia e mais sustentáveis.
A cidade suiça de Davos é sede do Forum
Econômico Mundial (World Economic
Forum), onde chefes de Estado se encontram com os presidentes (CEOs) das maiores corporações transnacionais com o objetivo de expandir o crescimento econômico pelo aumento das exportações, do comércio mundial, dos mercados abertos, das
privatizações e da desregulamentação, tudo
em conformidade com os textos ortodoxos
sobre economia e do agora famoso Consenso de Washington (Washington
Consensus).
Por outro lado, Porto Alegre é o berço
do lema Outro mundo é possível e dos
grupos cada vez maiores de pensadores
criativos e de gente que faz. Esses
globalistas arraigados estão determinados
a reformar a atual globalização econômica
para fazer frente às necessidades de mais
de 2 bilhões de pessoas excluídas do crescimento econômico. Essa coalizão, cada
vez mais forte, de cidadãos globais representa organizações cívicas que trabalham
em prol dos direitos humanos, justiça social, reforma agrária, concessão dos direitos de cidadania,1 igualdade para as mulheres, minorias , populações indígenas,
1 - Ver, do autor, o texto ONU e Globalização, onde esse aspecto é abordado.
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23
participação política, democracia, acesso
a crédito, investimentos e apoio a empreendimentos locais e desenvolvimento econômico interno. Essas questões são essenciais e sinergéticas para a criação de
comunidades e modos de vida ecologicamente sustentáveis, com metrópoles e cidades planejadas em função das pessoas
e não dos veículos, com produtos e serviços ecologicamente corretos, com o uso
de recursos e de energia renováveis, a prática de reciclagem e de agricultura e alimentos livres de agrotóxicos ou pesticida.
Na visão da velha-guarda, em Davos,
somente o aumento do crescimento econômico do Consenso de Washington pode
levar à terra prometida do desenvolvimento eqüitativo, ecologicamente sustentável.
Em Davos, os encontros do Forum de
Economia Mundial estão sintonizados
nas mesmas visões: redução da pobreza,
melhores condições de tratamento de saúde, educação, mais democracia, meio ambiente mais limpo - o que, segundo eles, é
mais facilmente alcançado quando se atinge o Santo Graal: o desenvolvimento eco2
nômico . A globalização econômica e
tecnológica sempre foi projeto de
corporações globais, dos financistas e de
seus aliados políticos nas sociedades industriais amadurecidas. O ponto inicial foi
o entusiasmo de Ronald Reagan e de
3
Margareth Thatcher com o livre mercado. Este modelo de capitalismo anglosaxão foi seguido pelas políticas do Consenso de Washington que vemos até hoje.
A Organização Mundial do Comércio OMC (World Trade Organization - WTO),
a NAFTA (North America Free Trade
Agreement) e a incipiente Área de Livre
Comércio das Américas - ALCA (Free
4
Trade Area of the Americas) seguem todas a mesma receita para o crescimento
do PIB a partir do crescimento das exportações, mercados de capitais abertos, moedas conversíveis, privatização,
desregulamentação, comércio mundial
crescente. Embora se tenha hoje provas desde a crise asiática de 1997, a
inadimplência da Rússia e, mais recente5
mente, a da Argentina - os ideólogos que
acreditam nesta forma de globalização ainda promovem estas políticas através do
grito já familiar Não há alternativa ( There
is no Alternative - TINA), uma outra expressão para pensamento único.
2 - Talvez aqui fosse mais apropriado o termo crescimento.
3 - Na realidade, Thatcher e Reagan nada mais fizeram que implementar as idéias neoliberais de Hayek
e seus seguidores, segundo as quais as raízes da crise econômica estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira especial, do movimento operário, que havia corroído as
bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicatórias sobre os salários e com sua pressão
parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. A propósito, maiores
esclarecimentos poderá o leitor obter no meu trabalho Comércio Internacional: Uma nova Ordem
o
Juridico-econômica - A.M.I. Acordo Multilateral de Investimentos, publicado no n 25, maio de
2002, em Cadernos de Estudos Estratégicos do CEBRES (Centro Brasileirio de Esrtudos Estratégicos) pp.1 a 108.
4 - O governo brasileiro vinha mantendo uma posição contrária ao funcionamento da ALCA a partir
de 2005. Agora, parece, está concordando com a posição dos Estados Unidos. Lula negocia Alca em
2005 no “toma-lá-dá-cá” (Folha de São Paulo, cad. B 8, 06.07.2003). Prudência se faz necessária:
mesmo que os Estados Unidos concordem com, suponhamos, 80% das pretensões brasileiras, esses
80% poderão ter um peso mínimo - digamos, 10% - no valor financeiro das transações comerciais,
que se vierem a efetuar.
5 - Atualmente, 57% da população Argentina está abaixo da linha de pobreza (Boris Casoy, Jornal da
Record, 07.07.2003)
24
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Como sabem os psiquiatras, as pessoas que não conseguem perceber qualquer
alternativa ao próprio comportamento
atual estão fadadas a sofrer de depressão clínica.
Os cientistas também fazem notar que é
ilógico pensar que a repetição de um experimento similar possa conduzir a resultados não-similares. Fica claro que o choque dessas duas visões diferentes do futuro da humanidade deve ter suas raízes
em pontos de vista globais, premissas e
sistemas de crenças muito diferentes. Trazer à superfície esses diversos paradigmas
de economia e desenvolvimento pode ajudar a expor as raízes do debate sobre caminhos alternativos para o futuro comum
da humanidade.
Banir o asbesto, cumprir as leis sobre
poluição, eliminar o chumbo da gasolina e
da tinta, aumentar a eficiência dos combustíveis dos veículos, reprojetar a cidade com maior número de vias para pedestres e transporte público e, eventualmen6
te, substituir os combustíveis fósseis por
energia e recursos renováveis eram todas
taxadas de irrealistas e antieconômicas,
proposições feitas por quem não entende
de economia
Na verdade, foram necessários mais de
trinta anos (contados a partir da década
de 60, início do movimento) para que essas tecnologias e princípios de projetos
alternativos começassem a entrar na corrente principal da sociedade. O atraso não
se deveu à falta de disponibilidade dessas tecnologias mais limpas, mais verdes,
com mais pessoas e favoráveis a ecolo-
gia. Na realidade, setores industriais de
grande porte, compreendendo milhares
de corporações, têm impedido a transição. Tais empresas e associações de comércio utilizam lobistas, contribuições
para políticos coniventes, processos para
grupos cívicos para intimidar protestos e
uma barragem de publicidade e relações
públicas nos meios de comunicação de
massa. A longa guerra dos paradigmas
continua durante essa grande transição,
da industrialização primitiva e suas formas de crescimento econômico insustentáveis para caminhos mais sustentáveis
de desenvolvimento.
A compreensão científica de como os
primeiros processos industriais exauriram
e poluíram os ecossistemas locais e do
planeta, bem como dos impactos adversos na saúde humana, no bem estar das
comunidades e nas culturas, emergiu lentamente. Essas novas descobertas apresentam um desafio poderoso ao modelo
de desenvolvimento econômico e
globalização do Consenso de Washington.
As realidades atuais de mudanças no clima global, desertificação, poluição, escassez das águas, perda de florestas e de
biodiversidade, ruptura social e cultural,
bolsões de pobreza crescente estão forçando o debate sobre a reformatação da
globalização para além das correntes econômicas ortodoxas.
Modelos sofisticados de computadores e imagens por satélite mostram claramente os efeitos antropogênicos em
nosso planeta causados pela família humana, atualmente composta por seis bilhões de membros. Os modelos de avali-
6 - A evidente degradação do meio ambiente provocada pelo consumo abusivo de combustíveis fósseis
é uma séria ameaça ao meio ambiente e a exaustão desses recursos já é prevista: providências se fazem
necessárias para equacionar e resolver o problema. Não há solução milagrosa, porém, nem somos
utópicos a ponto de preconizar a substituição, a curto prazo, do petróleo e da energia elétrica por
energia solar, eólica, ou mesmo, oriunda hidrogênio.
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ação de risco calculam os riscos climáticos das tecnologias de energia baseadas em combustíveis fósseis e nuclear,
algumas das quais já não podem ter seguro, podendo apenas ser seguradas por
parte dos governos - tais como as usinas de energia nuclear. As companhias
de seguro, lideradas pela gigantesca
Swiss Re, não fazem mais seguro contra
mudanças de clima relacionadas a desastres climáticos e eliminaram de seus
portfólios as empresas baseadas em
combustíveis fósseis em favor das empresas que utilizam energia solar, de hidrogênio e de baterias.
A Agenda Brasileira 21 fornece um mapa
inovador de sustentabilidade progressiva para todos os setores. Esse movimento tem à frente a Fundação Getúlio Vargas,
o Centro Internacional para o Desenvolvimento Sustentável e o Ministério do
Meio Ambiente. Hoje o Brasil e toda a
América Latina têm a oportunidade histórica de abrir um novo caminho para o desenvolvimento humano eqüitativo e sustentável e de liderar a ofensiva para a transformação da industrialização primitiva,
dando um salto sobre os modelos insustentáveis do passado. Também a China
alicerçada em sua herança cultural de 6.000
anos, está aprendendo com os erros da
antiga revolução industrial e adaptando o
que é pertinente nas antigas ideologias
européias sobre capitalismo e comunismo
a fim de forjar um modelo chinês de desenvolvimento. Da mesma forma, muitos
outros países em desenvolvimento estão
reavaliando suas culturas e experiências.
Esse DNA cultural constitui a verdadeira
riqueza das nações: os valores da coesão
social, a solidariedade humana, o respeito
pela vida, que é o cerne da criatividade,
tolerância, iniciativa e inovação em todas
as culturas. Tais valores e éticas fundamentais podem ser documentados, como
foi feito nos 16 princípios da Carta da Terra (The Earth Charter) e na Declaração de
Praga (The Prague Declaration - 2001), que
agora estão sendo examinados pela Comissão Mundial sobre as Dimensões Humanas da Globalização (World Comission
on the Human Dimensions of
Globalisation), com base em Genebra. Esses valores e ética fundamentais, comuns
a toda a humanidade, entesourados nos
tratados e nos trabalhos de estabelecimento de normas das Nações Unidas desde
1945, incluem a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Em 2002, a ratificação
histórica do Tribunal Criminal Internacional pela maioria dos estados membros foi
rompida de maneira chocante pelos Esta7
dos Unidos .
O debate sobre a globalização, nos anos
que virão, deverá enfocar o desafio aos
Estados Unidos como única superpotência militar do mundo e quanto às ambições imperiais e políticas unilaterais do
governo Bush. As políticas dos Estados
Unidos: as ameaças, concretizadas, de
guerra no Iraque; a rude retórica ao tachar
os países - Iraque, Irã e Coréia do Norte como sendo o eixo do mal; os apelos arrogantes para que todos os países se alinhem a favor dos Estados Unidos ou contra nós; o documento oficial de setembro/2002 reivindicando o direito americano de ataque preventivo sobre outras nações - não constituem apenas uma contravenção à lei internacional e à Carta das
Nações Unidas e, até mesmo, ao Tratado
de Westphalia; criam um clima perigoso e
7 - Recentemente, Os Estados Unidos puniram países, inclusive o Brasil, que não adotaram a sua
posição no que toca a esse Tribunal, suspendendo a ajuda militar ¾ no caso brasileiro, insignificante.
26
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abrem precedentes que apresentam risco
de emulação por parte de outros países.
Nada mais elucidativo do que discurso
recente de Condoleezza Rice, conselheira
do presidente Bush para Assuntos de
Segurança Internacional, na Inglaterra.
Existe uma nova ordem mundial baseada
na decisão unilateral da potência
hegemônica. Esta velará por nós. Havendo risco de algum estado-canalha (rogue
state) apossar-se de armas de destruição
em massa ou de constituir-se em campo
de abrigo e treinamento de terroristas
(principalmente se esse estado possuir
grandes reservas de petróleo?), será castigado. Há, é claro, espaço para os aliados: é só desejarem ajudar os Estados
Unidos a cumprirem sua missão salvadora
que serão bem vindos e mimados.
A partir desta ótica, faz sentido que
Condoleezza Rice tenha começado a dizer
quais são as novas regras. E os incomodados que se mudem, pois força não terão
para contestar a vontade hegemônica.
O raciocínio peca, entretanto, por não
levar em consideração as mudanças já
ocorridas no mundo. O impulso
tecnológico que sustenta a globalização
econômico-financeira e que dá decisiva
vantagem militar aos Estados Unidos, cria
o germe de uma sociedade global com
uma opinião pública ativa e organizações
não-governamentais importantes.
Por certo, enquanto essa opinião não atingir o público americano (com todas as conseqüências eleitorais, pois, diga-se o que se
quiser, a revolução americana fincou a democracia no norte) seu efeito será mais simbólico do que efetivo. Mas, cedo ou tarde, a
América se reencontrará com ela própria.
Convém considerar também que o sistema westphaliano operava a guerra e a
paz entre nações-estado recém-formados,
baseados em exércitos pouco nacionais.
Hoje a guerra é outra. Além da tecnológica,
existe a do terror. Esta nova guerra opera
por redes, não se baseia em exércitos e
não necessariamente em Estados nacionais. Não precisa de alta tecnologia para
destruir e matar: convoca iluminados e
crentes que se dispõem a morrer e dispensam quartéis.
Neste contexto, pergunta-se quando e
como o hegemon pode cantar vitória e, à
moda de Clausewitz, sujeitar o inimigo à
sua vontade.
Contra o terror, que parece ser o real inimi8
go da paz e da democracia , de que adianta o
unilateralismo global dos americanos?
O protesto global contra essa
unilateralidade temerária dos EUA está
levando a um sentimento antiamericano
largamente difundido junto à opinião pública em muitos países, inclusive entre aliados como Reino Unido, Alemanha, França e outros da União Européia.
O novo realismo nas relações internacionais talvez peque por ser mais ingênuo do que parece. É certo que se precisa de mais determinação no sistema mundial para lutar contra o terrorismo e pelos
direitos humanos. Mas sem maior cooperação internacional, sem um grau maior de consentimento das pessoas e de
adesão efetiva dos Estados à nova ordem, os dilemas continuarão. E certamente
sem maior apelo à igualdade, qualquer
ordem que se queira nova será apenas
um disfarce do poder hegemônico ou do
unilateralismo global.
8 - Estamos nos referindo aqui tão somente ao aspecto bélico, pois não haverá paz nem democracia
enquanto não houver justiça social.
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27
Outro Mundo é possível
Somente nos EUA em 2001, os investimentos socialmente responsáveis atingiram 2,3 trilhões de dólares. Não seria isso
sinal de mudança ou, pelo menos, um viés
de mudança? Sinal de que Outro Mundo é
possível?
Acreditamos que sim. E esses caminhos
de transição para a sustentabilidade se
apoiam em três bases: informação, energia e matéria.
Essa transição das sociedades industriais em direção à sustentabilidade social e
ecológica está se realizando em meio a uma
desordem generalizada: confusão e
dissonância cognitiva fazem parte de toda
mudança de paradigma. As mudanças de
paradigma implicadas na sustentabilidade
não têm precedentes. O desenvolvimento
sustentável é geralmente definido como o
desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a
capacidade das futuras gerações de atender as próprias necessidades. Para que tal
mudança de paradigma ocorra, culturas e
sociedades inteiras terão de abraçar uma
visão biosférica e planetária, transcendendo o antropocentrismo. Segundo Mauro
Torres em Uma Concepção Moderna da
História Universal (A Modern
Conception of Universal History, TM
Editores, Bogotá, Colombia, 1998), os seres humanos terão de reexaminar a própria
evolução cultural e biológica como um
continuum. Todas as sociedades terão de
estender tais conceitos à democracia política, à equidade social, à eficiência econômica, à preservação ambiental e à diversidade cultural, em outras palavras, construir um mundo onde todos ganhem, fundamentado na idéia de que os padrões de
sustentabilidade devem incluir as
interações humanas com soma diferente
28
de zero, ou seja, os jogos ganha-ganha e
a evolução da cooperação humana. Desta
forma, a teoria dos jogos constitui uma
diretriz mais útil do que a proporcionada
atualmente pela predominância da economia que enfatiza a competição.
Tanto a competição como a cooperação
são essenciais nas sociedades humanas,
mas os respectivos conteúdos e formas
estão se modificando na virada atual em
direção à interdependência global. À medida que os nichos sociais e ecológicos
vão sendo preenchidos, começam a falhar
as estratégias competitivas ganha-perde
- que poderiam ser ideais para densidades
populacionais mais baixas e ambientes
inexplorados. Desta forma, a globalização
atual dos mercados e das tecnologias, arraigada em uma economia por demais competitiva, freqüentemente torna-se uma
competição perde-perde implacável, que
leva ao tipo de onda de crimes
corporativos que estamos vendo nos
EUA, ou conduz a resultados em que o
vencedor leva tudo.
A globalização atual da economia, das
finanças, do mercado e do comércio é
alavancada por duas molas principais:
a) a tecnologia que tem acelerado a inovação da telemática, computação, fibras
óticas, satélites e outros meios de comunicações; sua convergência com a
televisão, a multimídia global, as bolsas
eletrônicas para comercialização de
ações, títulos, moedas, commodities,
opções futuras e outros derivativos, e a
explosão global do comércio eletrônico
e da Internet.
b) a onda de 15 anos de desregulamentação, privatização, liberalização dos fluxos de capitais, abertura
das economias domésticas, expansão do
comércio global e as políticas de cresci-
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mento orientadas para a exportação, que
se seguiram ao colapso do regime cambial fixo de Bretton Woods, no começo
dos anos setenta.
As conseqüências demonstram que
esse tipo de globalização é insustentável,
causando aumento dos bolsões de pobreza, exclusão social, poluição e esgotamento de recursos.
Há propostas alternativas, inovadoras e
sensatas, que poderão, se postas em prática, minimizar essas conseqüências eliminando ou, pelo menos, diminuindo suas
causas. O Forum Social Mundial tem fornecido apoio institucional valioso para a
elaboração de tais propostas. Por exemplo,
o ceticismo amplamente difundido em relação à Área de Livre Comércio das Américas - ALCA - poderá reviver o MERCOSUL
na condição de alternativa para a ALCA
dominada pelos americanos. Ou de coexistência com ela, fortalecido o subcontinente
sul pela coesão dos seus países.
Existem duas maneiras pelas quais os
seres humanos realizam transações: (1) via
sistemas monetários, que ainda estão criando escassez artificial e reforçando a competição (por exemplo, via racionamento e
desvio de crédito e políticas monetárias
restritivas, altas taxas de juro, etc); (2) via
todas as formas de escambo, comércio de
balcão, pagamentos compensatórios (familiares aos europeus orientais).
A corrupção e a desordem nos sistemas
monetários mundiais tornam mais atraentes o escambo, as permutas comerciais e
os pagamentos compensatórios tais como
os que existiam nos países membros do
ex-COMECON. Cerca de 25% do comércio mundial de hoje é realizado com base
no intercâmbio e as empresas que oferecem intercâmbio comercial eletrônico estão florescendo.
O comércio por intercâmbio é uma opção. Antigamente ineficiente e causador
de transtornos, com o advento da era
dos computadores e da Internet, se tem
tornado viável e utilizado com benefícios para as economias, baseadas em recursos e commodities, pois lhes possibilita negociarem diretamente entre si,
sem precisar ganhar dinheiro antes ou
fazer operações de câmbio com base nas
principais moedas. Exemplo típico é a
OPEP, que dolarizou seu petróleo há 40
anos, e está agora confortavelmente instalada no atual cassino global de US$
1,5 trilhões por dia e, controlando 65%
de todas as reservas mundiais comprovadas, tem o mundo engolindo seus
produtos. O comércio por intercâmbio
direto (ou empréstimos com taxas de juros muito baixas, que também podem ser
pagos em bens e serviços) faz com que
as opções e oportunidades de comércio
tenham grande abertura.
Portanto, à medida que concebemos reformas para a arquitetura financeira internacional e para os sistemas bancário e financeiro, devemos ter em mente que, hoje,
o intercâmbio comercial eletrônico e as
plataformas eletrônicas gratuitas estão
passando ao longo dos sistemas monetários que não funcionam a contento.
Para os países em desenvolvimento não
pertencentes à OPEP, as negociações através do comércio por intercâmbio possibilitam-lhes evitar preços de petróleo altamente dolarizados (atualmente a mais de
US$ 30 o barril) e obter o petróleo de que
necessitam em troca da comercialização de
suas commodities subvalorizadas. Economistas tendem a rejeitar o comércio por
intercâmbio por ser primitivo segundo o
ensinamento de seus livros - mas serão as
empresas de comércio por intercâmbio pela
Internet e os negociantes de commodities
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003
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reais que provarão que esses livros estão
obsoletos.
As comunicações eletrônicas agora permitem que diversos grupos da sociedade
civil que apresentam soluções alternativas alinhem e coordenem seus programas
em torno de metas compartilhadas de
sustentabilidade. A transição das sociedades humanas, após 300 anos de industrialização, é no sentido de acelerar o
fluxo de informação e desmaterializar o PIB
na direção da prestação de serviço. E a
informação é participativa e não é
excludente: se eu lhe presto uma informação eu não me privo dela.
O poderoso aparato institucional e acadêmico da economia neoclássica desviou
e legitimou a forma atual de globalização.
Preconceitos dentro da economia tradicional foram transmitidos a políticas de instituições financeiras, tanto do setor público quanto do privado, e a outros
tomadores de decisão do governo. Exemplos desses problemas de paradigma incluem as recentes abordagens do FMI, da
OMC e de outras instituições para a regulamentação e reforma da arquitetura financeira internacional. A miopia das políticas
de desenvolvimento do Consenso de Washington tem cegado uma geração de
tomadores de decisão, públicos e privados, - entretanto bem intencionados e favoráveis à democracia. Essa trágica miopia e até mesmo estados psicológicos de
negação dentro da economia acadêmica
surpreendem, à medida em que a Economia veio abarcar as políticas públicas em
todo o mundo, mantendo ao largo muitas
outras disciplinas pertinentes, desde sociologia, psicologia e antropologia até a
teoria dos jogos, teoria do caos
termodinâmico e ecologia. Os custos dessa miopia em termos de maior distância
entre ricos e pobres e maior exclusão social incluem a erosão contínua dos meios de
vida e de culturas locais que não são baseadas em dinheiro.
Depois da inadimplência da Argentina,
melhor podem ser enxergados os erros do
FMI, bem descritos por Joseph Stiglitz em
seu livro A Globalização e seus Descontentes, 2002. Eles são os remédios geralmente prescritos: austeridade nos orçamentos (que piora as recessões), disciplina dos mercados por parte dos governos
via regime de moedas flutuantes e até
dolarização, e abertura sempre maior de
seus mercados para o comércio livre. Agora é do conhecimento comum que os empréstimos do FMI são mais para garantir
os credores do que para ajudar os países.
E os especuladores festejam as oportunidades de obtenção de lucro que eles mesmos criam. O Brasil não precisa necessariamente de continuar aceitando as condições de empréstimos desacreditadas
do FMI, nem de outras instituições financeiras internacionais diante da tomada de consciência, agora tão divulgada,
de que países como a Malásia, Coréia
do Sul e China progrediram economicamente desconsiderando as recomenda9
ções do FMI .
A onda de crimes de colarinho branco
nas empresas em 2002 trouxe à luz a erosão de valores da ética subjacentes ao
9 - Tanto isso é possível que as primeiras reações já se fazem sentir: Governo reage a documentos do
0
Bird que propõe aumento de impostos (O Globo, 10.07.2003, 1 cad., pág. 10). O governo reagiu às
recomendações polêmicas contidas em documento do Banco Mundial (Bird), como o aumento de
11% para 14% da contribuição previdenciária dos servidores públicos, o fim das deduções de despesas
com saúde e educação no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e o fim de pagamento de multa
de 40% do FGTS em caso de demissão de trabalhadores sem justa causa.
30
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mercado e ao capitalismo no estilo americano. A tudo isso pode acrescentar-se que
as finanças e seus agentes de mercado
mostram pouco respeito à democracia. Até
mesmo publicações de negócios, inclusive Business Week e Fortune, rejeitam a
noção, que se tentou difundir, de que alguns CEOs eram apenas maçãs podres
dentro do mercado e ressaltam a quebra
sistêmica mais ampla do comportamento
ético necessário para operar no mercado
de capitais: honestidade, transparência,
responsabilidade e respeito aos contratos.
A ganância excessiva, a fraude, os truques contábeis, os conflitos de interesse
dos analistas de valores, banqueiros de
investimento, bancos comerciais, as contribuições em dinheiro aos políticos em
troca de favores e a ilusão do mercado
em alta permanente alimentada pela mídia
financeira inflaram ainda mais a bolha de
Wall Street.
Nesse contexto, é justo dar as boasvindas à honestidade trazida à luz dos
desertores das ortodoxias da antiga religião, inclusive Joseph Stiglitz, Jeffrey
Sachs, Amartya Sen, George Soros - para
citar os mais conhecidos. Em artigo no
The Economist (28.10.2002), Sachs, como
novo diretor do Instituto da Terra (Earth
Institute), da Universidade de Columbia,
censura a administração Bush por solapar as Nações Unidas e voltar atrás em
suas muitas promessas de apoio às agências da ONU e seus programas de desenvolvimento, enquanto gasta bilhões adicionais em suas maquinações militares. É
desejável que eles ajudem a ampliar os
horizontes da profissão econômica para
um estágio interdisciplinar mais humilde,
em vez do imperialismo conceitual usual
da economia.
Muitos países continuam estabelecendo seus próprios regulamentos internos e
estruturas de instituições financeiras de
acordo com suas próprias culturas e interesses internos. Isto vem acontecendo
desde a retomada da Coréia, Malásia,
Tailândia e Filipinas, que não tomaram
conhecimento do aviso do FMI e usaram
a abordagem keynesiana de déficits orçamentários para estimular suas respectivas
recuperações.
Os governos nacionais têm amplo espaço para agir criativamente, sem necessidade de se curvarem às ordens do FMI,
esperar por acordos internacionais ou de
se submeterem às ordens dos operadores
de câmbio e das corporações multinacionais. Duas políticas-chave inovadoras
podem mover as sociedade industriais
maduras em direção a um uso mais sustentável de energia e materiais. A primeira
é mudar suas práticas tributárias para que
os impostos passem a ser cobrados sobre
poluição, ineficiência energética e extração de matérias primas virgens em vez de
sobre as receitas e folhas de pagamentos.
Isso estimularia o pleno emprego e a eficiência das empresas bem como a
reciclagem na remanufatura. Os países da
União Européia estão encabeçando essas
mudanças. A segunda é uma contabilidade empresarial mais acurada e a correção
de suas contas nacionais (isto é, dos índices do Produto Nacional Bruto e do Produto Interno Bruto) conforme o compromisso de 170 nações na Agenda 2001, na
Reunião de Cúpula da Terra das Nações
Unidas no Rio de janeiro, em 1992. O Brasil é um dos líderes globais no desenvolvimento de estatísticas multidisciplinares
mais amplas e abordagens mais sistêmicas
para medir o desenvolvimento. Seus Indicadores Brasileiros de Desenvolvimento
Sustentável (2002) cobrem tendências econômicas, sociais, institucionais e
ambientais por meio de um conjunto de 57
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31
indicadores, compilados sob liderança do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa é mais uma evidência
de que as nações podem abrir-se a um
monitoramento global segundo critérios
mais elevados, as melhores leis e os regulamentos e códigos de conduta e princípios que conduzam a um avanço dos
direitos humanos, da igualdade e da ética planetária. Tudo isso deve incorporar
o estado-da-arte da ciência com base no
novo conhecimento biológico de nosso
relacionamento com a natureza. O Brasil
poderá aprimorar esse tipo de pesquisa e
desenvolvimento em estatística de modo
a incluir corretamente todas as suas riquezas (seus recursos ecológicos e naturais, assim como seu imenso capital
social cultural e humano). A adição de
ativos contábeis poderiam complementar
a atual abordagem de fluxo de caixa para
a estimativa do PIB (que sobrevaloriza o
endividamento). Os Estados Unidos, seguindo a direção da Nova Zelândia e da
Suíça em 1996, criaram, uma conta de ativos de infraestrutura pública em seu orçamento, o que causou um superávit em
1999. Outra providência poderia incluir a
recategorização dos orçamentos de educação e saúde do lado de despesas para
o lado de ativos como investimentos em
capital humano necessário para a Era da
Informação, onde cidadãos saudáveis e
bem-educados são o fator mais importante de produção. O principal programa de
educação do Brasil, a Bolsa-Escola, filho
dileto do ex-governador, hoje ministro da
educação, Cristovam Buarque, mantém
crianças na escola atrelando seu comparecimento ao pagamento de uma bolsa de
auxílio aos seus pais. Este bem-sucedido
projeto é admirado e imitado no mundo
todo e é um bom exemplo da abordagem
sistêmica necessária para tratar problemas complexos.
32
Políticas tão inovadoras como essa ajudariam, com o apoio de especialistas do
mundo todo, os antigos guardiões do
Consenso de Washington e de Wall Street
a reavaliarem os verdadeiros ativos do
Brasil e, conseqüentemente, tornariam seu
endividamento muito menor (realmente,
menos da metade daquele interpretado
pela visão puramente financeira).
Os modelos de crescimento econômico
com investimento e dívida externos estão
agora dando lugar a caminhos sustentáveis para mercados e empreendimentos
domésticos de crescimento interno. Todos
os países têm poder público soberano para
cunhar sua própria moeda e se beneficiar
da posição que isto lhe confere. É por isso
que a dolarização é um ajuste tão amargo.
Os governos dos países podem também
emprestar diretamente, revertendo a prática (muitas vezes causada pelas pressões
políticas dos bancos privados) de emprestar fundos federais diretamente para bancos privados que depois emprestam para
consumidores a taxas de juros de mercado.
Hoje reaprendemos que qualquer pessoa,
negócio, organização sem fins lucrativos ou
país com falta de moedas nacionais oficiais
ou moedas fortes pode se engajar em tantas
permutas diretas quantas necessárias.
A informação e a gestão de energia são
duas tecnologias fundamentais do desenvolvimento social humano. Ambas devem
agora ser medidas em termos de
sustentabilidade ecológica e social (que requer igualdade e justiça, tanto quanto eficiência). Isto significa que os investimentos
não podem ser medidos usando-se os modelos tradicionais de determinação de preços de ativos, porque eles omitem os custos
sociais e ambientais. Muito além do PIB/PNB
e outras medidas macroeconômicas
superagregadas de riqueza e progresso,
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novos tipos de indicadores que avaliem a
eficiência em energia, educação, saúde e
infraestrutura e outros setores sociais serão
cruciais para dirigir-nos, nas sociedades, no
sentido da sustentabilidade.
As grandes companhias integradas de
petróleo (Petrobrás, Shell, e BP Amoco)
estão cada vez mais investindo em ener10
gia solar e no hidrogênio.
A pressão pública sobre as montadoras
automotivas e os padrões de emissão zero
estão agora trazendo como resultado os veículos elétricos e híbridos. Esses avanços
tecnológicos, juntamente com o comércio eletrônico, são rotas pacíficas para a redução da
dependência do petróleo. Ao lado desta boa
constatação, existe a má notícia da manutenção da política de George W. Bush de intervenção militar dos EUA para garantir suprimentos de petróleo, particularmente centrada
no Iraque como segundo maior produtor do
mundo, depois da Arábia Saudita, política
essa agora estendida para a África. O Brasil,
há muito líder no setor de carros movidos a
etanol, tem a oportunidade de garantir que as
futuras fábricas de automóveis produzam carros de emissões baixas ou zero para suprir
seus próprios mercados internos e seus futuros mercados de exportação.
A necessidade de expansão em recursos renováveis,, tecnologias de energia
verde e proteção e restauração ambiental,l
está agora nas telas de radar dos governos e empresários capitalistas. Todas as
companhias de petróleo e a OPEP também
precisam aderir a este movimento pelo uso
de energia renovável antes que seja tarde.
A contabilidade falha e os presentes modelos de quantificação monetária de ativos tornam mais fácil seguir o rebanho do
que examinar os processos mais profundos em curso para encontrar os negócios
realmente de ponta. Do mesmo modo, as
formas atuais de globalização parecem
boas porque favorecem uma minoria significativa, ignora o esgotamento dos recursos naturais e descarta os riscos futuros. Enquanto isso, empresas começam a
detectar a grande transição que está em
andamento, caminhando da Era Industrial
para a Era da Informação. O debate que a
Petrobrás tem promovido, somado aos
preços mais altos do petróleo, está dando
partida à onda de novas oportunidades
de negócios das companhias energéticas
de hidrogênio, células de combustível solar, eólica, marítima e de biomassa.
Há outros aspectos a serem considerados. Atualmente nem os governos nem os
investidores privados podem ignorar os
problemas e questões que, cada vez mais,
tornam-se globais, fora do alcance dos governos nacionais: mudanças do clima, poluição transfronteiras, desertificação, AIDS,
perda da biodiversidade e até o lixo espacial. A proliferação do tráfico de armas, a
comercialização de drogas e as operações
de câmbio ilegais favorecem o negócio do
crime organizado. Os resíduos nucleares e
tóxicos precisam ser contidos. As epidemias disseminadas pelo tráfego aéreo, bem
como o terrorismo global, não podem ser
atacados por qualquer nação atuando isoladamente. Não nos podemos impedir de
ver o mundo globalmente interdependente
que ajudamos a criar. Todos esses novos
problemas e questões estão levando os
governos a agir conjuntamente a fim de
estabelecer ou reforçar agências internacionais, instituições regulamentadoras e padrões globais. O Compacto Global das
10 - A Petrobrás adquiriu por US$ 80 milhões a Termo-Rio, capaz de gerar 240 megawatts (Coluna
0
Anselmo Gois, “O Globo”, 07.07.03. 1 cad., pág.10)
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Nações Unidas, lançado pelo Secretário
Geral, Kofi Anan, convida as companhias a se engajarem voluntariamente em
seus nove princípios de boa cidadania
empresarial.
finadas em suas casas. Outros aspectos
positivos da globalização desigual de hoje
são a proliferação rápida e participação
nos conceitos de desenvolvimento sustentável.
Os novos mecanismos dos Acordos de
Kyoto sobre Mudanças Climáticas (1998),
embora falhos, também podem ser usados
com proveito. Isto inclui os Mecanismos
de Desenvolvimento Limpo e de
Implementação Conjunta (estimulando
parcerias com países que utilizam
tecnologias verdes) nos quais o Brasil teve
um processo inovador. Embora os Estados Unidos possam ser os últimos a assinar o Tratado de Kyoto, muitas companhias reconhecem essas oportunidades
de lucro na redução de suas emissões de
poluição e investimento em tecnologias
menos poluidoras.
À medida que nossas economias se
desmaterializam em favor de mais serviços, torna-se mais difícil para as empresas
e governos defenderem, na economia global, o crescimento do PNB baseado em
bens. Eles serão cobrados por isso e terão
que assegurar o progresso humano em
saúde, educação, direitos humanos e qualidade ambiental. Isto requer que se meçam os resíduos tóxicos, o esgotamento
dos recursos, saúde, água e qualidade do
ar, segurança pública, as diferenças na distribuição de rendas e na qualidade de vida
como um todo - e tudo isso requer uma
abordagem de sistemas e métricas apropriadas muito além de indicadores baseados em dinheiro.
No Brasil, quando se calcularem totalmente todos os ativos ecológicos sem preço - mananciais das florestas e bacias
hidrográficas, recursos da biodiversidade
para uso farmacêutico, ativos energéticos
das marés e dos ventos e de suas enormes taxas de insolação - ficará evidente
que (o Brasil) é um dos gigantes da energia. Somente a luz do sol que banha a
Amazônia todos os dias, que é utilmente
capturada pelas florestas, equivale a cerca de sessenta bombas de hidrogênio.
Com todos esses ativos ecológicos,
fontes de energia e capital humano totalmente reconhecido, todos os países em
desenvolvimento estarão em posição de
negociação muito mais forte vis-a-vis com
os países da OECD.
A globalização trouxe muitas boas notícias sobre a nova economia da informação em rede, inclusive aprendizagem à distância, na qual o México foi o pioneiro, e
cursos universitários para as pessoas con34
A globalização desordenada de hoje
precisa ser reformulada, democratizada e
compartilhada. A educação e a assistência à saúde são agora reconhecidas em
muitas campanhas políticas como questões públicas urgentes, porque são setores-chave da economia da informação. O
capital do conhecimento intelectual, social e ecológico é o principal setor da produção. Os combustíveis fósseis serviram
como plataformas para a Era Industrial. Os
setores da Era da Informação continuarão
a crescer mundialmente, particularmente
no Brasil, México, Malásia, China e Índia.
Os dois setores, o público e o privado,
de nossos livros-texto de economia e política devem agora ser atualizados, à medida que o terceiro setor, o setor da sociedade civil, onde existe o maior número de
pobres do mundo, assume seu lugar de
direito nos negócios humanos. Cursos
universitários atualmente estudam esses
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novos setores; economistas e políticos
certamente irão compreendê-los. Após as
batalhas de Seattle, Washington, Londres,
11
Praga, Doha e Davos , governos e
corporações aprenderam a respeitá-los.
Até mesmo o Banco Mundial concorda
que o capital humano, as organizações
da sociedade civil (também chamadas de
ONGs), as estruturas sociais, os valores e
a cultura familiar devem ser estudados e
reconhecidos no desenvolvimento econômico. A Carta da Terra, juntamente com
outros manifestos de solidariedade humana e todas as convenções das Nações
Unidas sobre direitos humanos, apontam
para a evolução da ética e dos padrões
globais necessários a nossa Era de
Interdependência Global.
O mundo está se movimentando lenta e
desigualmente para estratégias equilibradas do tipo ganha-ganha e para o domínio dos acordos e leis internacionais visando manter sob controle a concorrência predatória e a exploração tanto dos
povos quanto dos ecossistemas. O exercício da democracia lentamente se espalha na América Latina e, especialmente,
no Brasil.
As tecnologias industriais primitivas
estão lentamente cedendo lugar para as
tecnologias energéticas e de informação
ecologicamente descentralizadas. A própria natureza está dando aos seres humanos o feedback necessário para que nos
orientemos a níveis mais elevados de consciência. A população humana aumentou.
Estamos nos tornando ainda mais
interdependentes. Precisamos aprender a
agir de acordo com essa interdependência
e criar um mundo ganha-ganha se quisermos sobreviver. Hoje o planeta é o nosso
ambiente de sobrevivência, onde nos precisamos conscientizar de que todos os
nossos autointeresses coincidem.
Economia Irreal Contabilidade Irreal
A desintegração econômica da Ásia tem
conduzido a uma cobertura maciça sobre
suas causas. As primeiras explicações, a
partir do Consenso de Washington,
focaram-se nas deficiências domésticas
dos países asiáticos, em vez de se concentrarem nas falhas dos mercados privados. O ressurgimento, em 1999, dessas
economias asiáticas (amplamente via financiamento mediante déficit) impulsionou os mercados ocidentais e estabeleceu uma nova complacência. Porém os
contínuos choques e instabilidades dos
atuais mercados financeiros globais, finalmente, têm feito com que os ministros das
finanças e diretores de bancos centrais
repensem com cautela a necessidade de
uma nova arquitetura financeira. Desde
o colapso do sistema de Bretton Woods
em 1971, o sistema financeiro global tem
se caracterizado por crescente turbulência, aumento da dívida e uma separação
dos fluxos financeiro e monetário existentes nas economias produtivas do mundo
real do comércio e do consumo que, supostamente, o dinheiro deveria facilitar e
medir. Enquanto que a teoria do livre mercado diz que se deve permitir o fluxo do
investimento para onde possa ser de melhor uso, o cenário atual não permite que
isso aconteça. O retorno rápido tem prioridade sobre o investimento a longo prazo. Se um país tomasse essa mesma atitude em relação a seu investimento, não
colocaria recursos na educação. Evi-
11 - Na realidade, isso remonta à Rodada do Uruguai, que durou 13 anos, ao fim da qual o GATT se
transmudou em OMC, a partir de quando o A.M.I. ¾ Acordo Multilateral de Investimentos ¾ vem
0
sendo paulatinamente imposto aos países em desenvolvimento. Vide n.p.p. n 3 , deste trabalho, p.5.
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35
dentemente, esta não é uma estratégia
muito segura.
As operações financeiras internacionais
fogem das regulamentações nacionais e são
centralizadas em Londres, Nova York, Tóquio, Hong Kong, Cingapura e em paraísos fiscais da Suíça, Ilhas Cayman, Antilhas Holandesas, Bahamas, Luxemburgo, e
Ilhas Canal. Mais de vinte mil corporações
são estabelecidas nas Ilhas Cayman, e os
depósitos nos 575 bancos lá existentes
totalizam atualmente US$ 500 bilhões de
dólares. Somente 106 desses bancos estão
fisicamente presentes em Cayman e estima-se que 1,5 milhão de empresas operam
atualmente off shore ( uma explosão se
comparadas às 200.000 que operavam dessa forma em 1998).
Continuamos medindo de acordo com
nossa visão cultural do que se considera ter
valor. Quando as contas do PIB foram
estabelecidas na Segunda Guerra Mundial,
as bombas, balas e produção de guerra eram
a meta, enquanto que o valor das crianças,
uma cidadania saudável e educada,
infraestrutura, redes de segurança social e o
meio ambiente foram contabilizados como
zero. Este ponto de vista estatístico ainda
perdura, não só devido à inércia burocrática, mas devido aos seus setores, grupo de
interesse e forças políticas poderosas que
se beneficiam desse sistema de contas nacionais. Os orçamentos militares permanecem
sem limites, ao passo que as redes de segurança social, saúde, educação, meio ambiente e até reparações da infraestrutura são
empurrados para baixo nas listas de prioridades. O emprego, trabalho social, serviços
sociais e valores fundamentais como família
foram desvalorizados lentamente, enquanto as próprias finanças (por exemplo, a evasão de ativos em papel) são super-valorizadas. Os setores de serviços financeiros cresceram nove vezes, fora de qualquer propor12
ção com a economia real . Esse mesmo processo tem também desvalorizado o setor de
commodities e os recursos naturais, que há
doze anos estão em baixa.
Pode-se simplesmente ganhar mais dinheiro detendo e comercializando ativos
financeiros.
Uma visão realista mostra que o vôo
do capital global para Wall Street e outros fatores estão formando uma clássica
bolha de expansão. Outros cenários destacam os problemas locais, étnicos, comunitários e nacionais frente à
globalização. A realidade é que cada uma
dessas hipóteses se baseia em diferentes paradigmas e interpretações, que produzirão previsões conflituosas. O único
caminho direto é ir além das limitadas ferramentas da medição econômica que usamos e desenvolver uma abordagem mais
sofisticada para entender o sistema global que está sendo criado.
A complexa compreensão da nova
economia global requer ir além da economia para uma abordagem
multidisciplinar. No livro Economia: A
Cultura de uma Ciência Controversa,
o Professor Melvin W. Reder descreve
a crise de hoje dentro da ciência econômica: a insegurança quanto ao
status da disciplina, o desentendimento interno sobre seu escopo e métodos
e se a economia é uma ciência ou uma
13
ideologia disfarçada .
12 - P. Dembinski e Schönenberg, A Aterrissagem Segura do Balão Financeira não é impossível,
Finance & the Common Good, outono de 1998, Genebra.
13 - Não entro no mérito da questão; citar não implica necessariamente concordar; mas não restam
dúvidas de que a economia está sendo ideologizada.
36
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Economistas ligados a organizações
como a New Economics Foundation (Fundação da Nova Economia) entre eles
James Robertson, Simon Zadek, Ann
Pittigrew, Hazel Henderson e outros fora
da área econômica, se comprometeram
durante muitos anos com o repensamento
da economia. Lidar com as tarefas de
reestruturação da economia global requer
múltiplas disciplinas e métricas que vão
além do dinheiro, isto é, uma abordagem
sistêmica.
O pensamento sistêmico surgiu neste século pecisamente para abranger as complexidades da mudança institucional e o comportamento dinâmico de grandes organizações e de sistemas globais. Portanto, a tarefa vai além do equivalente em dinheiro e das
habilidades dos economistas e requer equipes interdisciplinares e múltiplas métricas.
CONCLUSÃO
Uma visão geral sobre a globalização
esclarece as mudanças ocorridas na eco14
nomia mundial que tornaram obsoletas
muitas estruturas, políticas e teorias econômicas existentes. Essas mudanças globais se estão acelerando como resultado
de interligações ainda mais estreitas do
novo mercado mundial baseado na informação em rede. Para mapear essas mudanças não só são necessárias muitas perspectivas e métricas disciplinares, como se
falou, como também que haja feedback das
populações atingidas. Não só das populações atingidas como também da natureza, do sistema planetário, dos
ecossistemas locais e de todos os seres
humanos marginalizados pelas formas atuais de globalização desenfreada.
Um exemplo foi a proposta patrocinada
por corporações para criar um Acordo
Multilateral de Investimentos (AMI). Com
o passar dos anos, passo a passo, acordo
por acordo, os Estados negociaram os
protocolos das Nações Unidas sobre a
biodiversidade, mudança climática e cinqüenta anos de tratados sobre normas relacionadas aos direitos humanos e dos
empregados e à proteção ambiental.
O êxito da campanha contra o Acordo
Multilateral de Investimentos (AMI), liderada pela ATTAC (Ação para Tributação
das Transações Financeiras e Apoio aos
Cidadãos), uma ONG sediada na França
com ramificações em vários países, levou
a uma reação contra os processos de negociação da OMC. Cerca de 560 grupos
cívicos de sessenta e oito países do mundo conseguiram descarrilar o AMI, sem o
que esse acordo teria enfraquecido esses
protocolos existentes para favorecer as
corporações em detrimento dos cidadãos.
A ampla participação pública de cidadãos, trabalhadores, pessoas pobres e
grupos marginalizados é, portanto, requisito para remodelar a economia global.
Um novo mundo é possível. Uma terceira
via é factível. Não necessariamente a Terceira
Via de Tony Blair, com a qual o Brasil andou
namorando na Reunião de Florença e, mais
recentemente, no Seminário da Governança
Progressiva (nova denominação da Terceira
Via), em Londres, a qual parece tão somente
um neoliberalismo disfarçado e, talvez, amenizado. Mas um novo caminho que nos conduza a um mundo mais justo e mais humano,
em que o indivíduo seja a medida de todas as
coisas e a comunidade das nações, o conjun-
14 - Obsoletas aí no sentido de que caiu em desuso Aurélio, verbete obsoleto (1). A aplicação de uma
teoria econômica só é viável, no contexto em que é concebida. Por exemplo, a simples e genial teoria
de David Ricardo sobre produtividade, hoje, em face mesmo da globalização, tornou-se obsoleta.
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37
to harmonioso dos indivíduos. É necessário
que tratemos de restituir às nossas normas
de convivência o perdido senso de solidariedade que é a suprema contribuição do cristianismo ao desenvolvimento econômico e social do homem.
Não somos obrigados a optar entre o
cinismo do capitalismo e o irrealismo do
socialismo. É possível unir operários e
patrões, empregados e empregadores, sociedades e nações, desde que todos estejam convencidos de que o capitalismo,
chegado ao ponto de egoísmo degenerado a que chegou, já não tem sentido nem
conteúdo, já não traz progresso e não
constitui refúgio para ninguém, nem mesmo para os capitalistas; é possível evitar
o socialismo real, tipo soviet, forma de
opressão de uma casta que se substitui à
classe, contanto que se chegue a administrar o Estado de tal modo que ele seja
uma representação do interesse coletivo
e não um órgão de clãs.
É com coragem e confiança que se há de
construir um mundo sem fronteiras, renovado, reabilitado, o que depende apenas
de todos nós.
Neste trabalho, procuramos fazer uma
crítica à globalização especulativa, que
ocorre à custa dos empreendimentos e das
formas de vida mais locais. Defendemos o
uso do pensamento sistêmico e de uma
abordagem mais holística como caminhos
para a ruptura com o pensamento econômico convencional, preso a uma visão estreita de mercado e de PIB. Procuramos,
também, oferecer uma visão, embora limitada, das mudanças necessárias para uma
nova economia global que promova a justiça e a sustentabilidade em todos os níveis, do pessoal e local ao global.
“...quando os seres humanos descobrirem verdadeiramente o poder do amor,
terão descoberto algo mais importante
que o fogo”. (Pierre Teilhard de Chardin,
15
paleontologista e teólogo francês) .
No século XIX, Charles Darwin especulou, como revelou David Loye em A Teoria do Amor perdido de Darwin (Darwin’s
Lost Theory of Love, 2000) que a
moralidade sempre está se tornando mais
pragmática. Esta evolução dos sentimentos morais foi sempre um orientador dos
negócios humanos. O comportamento cooperativo sem dúvida continuará a ter um
papel-chave na expansão da consciência
humana e na modelagem de formas de
globalização para nossos valores e aspirações mais elevadas. Na verdade, um outro
mundo é possível e realizável, à medida que
nós, humanos, participemos democraticamente da construção de um futuro sustentável para todos os nossos filhos.
Concluindo, fica para o distinto leitor a
opção: Davos ou Porto Alegre?
Abstract
The author enphasises the need of present generation’s positioning facing to the
problem of choosing a government and international relations model such as to privilege
chiefly social challenges (‘Porto Alegre model’) or chiefly economic challenges (‘Davos
model’).
Keywords: Globalization, World economy, Multilateral Agreement Investiment.
15 - Citado por Pitirim Sorokin, ex-ministro da cultura da Rússia e sociólogo de Harvard, em seu
último livro Os Caminhos e o Poder do Amor, (The Ways and Powers of Love, 1953)
38
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39
40
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Evolução do Pensamento
Estratégico Brasileiro
Conferência proferida no Ministério da Defesa
(CGERD) em 07 de outubro de 2003
Jorge Calvario dos Santos
Coronel Aviador, Doutor em Ciências em Engenharia pela COPPE/UFRJ e Chefe da
Divisão de Assuntos Internacionais da Escola Superior de Guerra
Resumo
O autor analisa a modernidade, sua incompatibilidade com a formação cultural brasileira e apresenta as bases para
uma proposta que viabilize a formulação de um pensamento estratégico brasileiro original.
Palavras-chave: Modernidade, Formação
Cultural brasileira, Pensamento estratégico, Questão ideológica.
Introdução
A abordagem adotada nesse texto é no
sentido de tentar contribuir, um pouco que
seja, para construir o mundo com que sonhamos todos. Por essa razão, optei, enquadrado no tema do evento, por discutir a
modernidade e o pensamento estratégico
brasileiro. Com isso, pretendo enfatizar vínculo o indissociável existente entre identidade e cultura e cultura e pensamento, porque a autonomia do ser, logo do pensamento, é construída na dependência da
cultura. Entendo que essa abordagem nos
possibilita, ao menos, perceber a atual condição do pensamento brasileiro. A motivação para isso se faz pela necessidade de:
· buscar a explicitação da real influência
da modernidade sobre o pensamento estratégico brasileiro;
· adequar o pensamento estratégico brasileiro à realidade e à cultura nacional;
· buscar autonomia e originalidade do pensamento estratégico nacional brasileiro;
· mostrar a importância da originalidade
do pensamento brasileiro;
· formular bases fundamentais à um
pensamento estratégico original brasileiro, que possibilite a sobrevivência da nação, como tal, numa etapa do processo
histórico, em que testemunhamos a destruição de culturas.
Essas questões nos remetem à longas,
profundas e originais discussões.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
41
Para tanto, é minha intenção ressaltar,
analisar e criticar, o aspecto essencial e
fundamental daquilo que constitui o ambiente no qual repousa a intelligentsia brasileira, a modernidade. Nesse ambiente é
que, por séculos, vem sendo construindo
o pensamento brasileiro. Com isso, pretendo mostrar as razões responsáveis pelos rumos e tendências do pensamento,
no contexto histórico brasileiro. Em seguida, pretendo discutir a incompatibilidade
da formação cultural brasileira com a
modernidade e suas razões, para por fim,
sugerir que a necessidade de caminhar em
direção à originalidade brasileira.
Além disso pretendo apresentar o que
chamo de bases para uma proposta estrutural que possibilite viabilizar a formulação de um pensamento estratégico
original brasileiro, em nova dimensão.
Isso significa tratar conceitualmente e
buscar caminhos que consolidem uma
nova direção para um pensamento estratégico original.
Essa abordagem, certamente é produto
das inúmeras questões que nos desafiam e
que nos conduzirão à muitas outras questões também desafiadoras. Nessa discussão, certamente, surgirão e eu também terei, mais questões do que respostas.
Em nosso processo de colonização, a
classe dominante, branca por auto-definição, de uma população essencialmente
mestiça teve sua preocupação fundamental, nas palavras de Darcy Ribeiro, no plano racial, afirmar sua condição branca; no
plano cultural, sua europeidade. Sua aspiração era a da condição lusitana, posteriormente inglesa e francesa para nos dias
atuais voltar-se mais aos Estados Unidos.
Essas condições, tal como ocorre nos dias
atuais, eram bem simuladas. Buscavam a
identificação na moradia, na vestimenta,
42
nos hábitos alimentares, na educação, na
diversão, nos hábitos religiosos, de casamento e outros mais. Apenas os fatores
ecológicos e o contexto humano em que
vivia, é que a seu pesar, a tornavam definitivamente brasileira nessas mesmas coisas (Darcy Ribeiro, 1991).
A imitação do estrangeiro era inevitável. Inevitável porque vinham associadas
à aspectos econômicos e fatores de progresso. O grande mal residia e ainda reside na rejeição do nacional, do popular por
ser considerado subalterno devido à
tropicalidade e à inferioridade do povo não
branco. Por manter essa postura, gerações
foram alienadas. Nessas circunstâncias, a
alienação passou a ser a condição da classe branca por ser inconformada com seu
mundo atrasado. Por isso vivia sem enxergar os valores da cultura que se construía.
Por isso e muito mais, em nossa história
colonial não identificamos uma camada
erudita que tivesse sido a expressão da
criatividade da população brasileira. Tivemos, sim, uma elite transplantada que realizou mimeticamente ações culturais de um
outro contexto. Tais ações, incompatíveis
portanto incompreensíveis para a imensa
maioria da população – tal como ocorre
com quase toda criação erudita – trazia
insatisfação inclusive para as elites eruditas naturais da colônia. Essas elites sofriam a desterritorialização de seu duplo ser,
nas palavras de Darcy Ribeiro:
“O de agentes locais de uma cultura
centrada em outra parte para cuja criatividade
eles aspiram contribuir e o de membros de
uma sociedade subalterna, cujo modo de ser
os mortifica” (Darcy Ribeiro, 1991).
Tal insatisfação tinha causa fundamental
na condição exógena dos colonizadores que
aqui se estabeleceram e atuavam em consonância com a exploração e o atraso.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
Com o passar do tempo, a custa de sofrida evolução e construção da cultura
brasileira, começa a surgir nova
formatação da sociedade que se opunha à
metrópole, ainda que configurada segundo princípios pertinentes ou a ela vinculados. Da mesma forma se expressava a
criatividade cultural. A partir da Independência, deixa de obedecer aos vínculos
passados ainda que continuasse presa aos
estilos da cultura a partir da qual se fez
nascer. Constituindo-se, em seguida, numa
sociedade que inicia sua urbanização e industrialização, serão novos centros metropolitanos que exportarão os padrões
culturais que a cultura brasileira, em formação, cultivará, sem qualquer possibilidade de influir sobre tais centros difusores
de cultura, em virtude da dependência e
do atraso econômico e sócio-cultural.
A consciência nacional, construída em
nível erudito, sob condicionamento da alienação cultural ou de cultura exógena, tende a construir forma de pensamento nacional retrógrado, de caráter ingênuo e de conseqüências graves. É ingênua, nas palavras
de Darcy Ribeiro por não se constituir como
visão contestatória da ordem vigente. Ainda que presa à realidade contextual, com a
qual não consegue se identificar, não chega a adquirir uma consciência rebelde dessa sociedade subalterna.
De fato, os documentos históricos, e
crônicas, mostram um modo de pensar
comprometido com a metrópole e que, atualmente se mantém vinculados à novos
centros de poder. Assim, o pensamento
brasileiro, com notáveis e rebeldes exceções, mantém-se, de certa forma, vinculado ao pensamento exógeno de novas matrizes culturais.
Por isso, nos dias de hoje, tal como à
época, são intermináveis as apaixonadas
discussões sobre, ALCA, inserção soberana na Globalização, inserção na
modernidade, inserção competitiva no
mercado internacional, internacionalização
da economia, pós-modernidade, e outros
temas importantes para a vida nacional,
que terminam sendo decididos por interesses ou ingenuidade como explicitada
por Darcy Ribeiro.
Nesse ambiente e nessas condições, a
maioria dos pensadores brasileiros, não
via o papel da espoliação colonial e econômica, como fatores responsáveis pela
miséria e ignorância geral. Como hoje, a
culpa era atribuída ao povinho que aqui
vivia ou a necessidade de trocas as elites
que vivem de costas para o Brasil. O fato
de perceberem nos europeus uma cultura
superior e uma portanto civilizadora, não
os fez identificar o caráter complementar
dos antigos colonizadores, e dos estrangeiros que, de modo geral, convertendo o
Brasil numa economia dependente e o
povo num proletariado externo, o estavam
condenando a perpetuação do subdesenvolvimento e do pensamento dependente.
A visão nativa e própria do mundo, com
o exercício de uma criatividade cultural genuína, só tem sido possível, a partir de meados da década de vinte, iniciando especialmente a partir de 1922, com a semana de
arte moderna. Essa condição só foi possível, por ter sido alcançado alguma autonomia cultural e portanto certa importância
como sociedade. Isso tem sido feito enquanto nos reconhecermos como singular
no conjunto de sociedades com que nos
relacionamos, compreendermos e apreciarmos nossas experiências que nos distinguem e que, representam nossa forma de
ser-com-o-outro, de ser-no-mundo, e de
ser-frente-ao-absoluto. Assim, conseguiremos ser nós mesmos, e portanto expressarmos e vivermos nossa própria identidade.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
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O desinteresse pelo pensar torna-se uma
realidade contundente. Para que pensar
se tudo já está pronto e chega até nós. É
preciso ser pragmático e usar o que outros pensaram para nós, isso é o que vemos acontecer. Refletir e pensar são palavras que parecem ter desaparecido ou sido
banidas do vernáculo. Nos últimos trinta
anos o interesse em pensar o Brasil, está
desaparecendo entre os brasileiros. O interesse pelo país, pelo seu futuro, praticamente não existe. Naturalmente, não me
refiro aos que já o faziam e aos que o fazem, alguns distantes e motivados por interesses próprios.
No que diz respeito a planejamento estratégico nacional, os fracassos se repetem assim como se repetem as orientações
oriundas das culturas mais poderosas.
Como exemplo temos:
· “a industrialização por substituição das
importações é a chave do desenvolvimento;
· a substituição das importações é um
erro; a promoção das exportações é a única solução;
· a industrialização é uma ilusão; apenas
o crescimento acelerado da agricultura traz
a resposta para o subdesenvolvimento;
· para se evitar ser submergido pela explosão populacional é preciso priorizar o
controle demográfico;
· na verdade, as massas nada têm a ganhar com o desenvolvimento. É preciso
rejeitar o crescimento do PNB e priorizar
o imperativo de redistribuição”.
(Latouche, 1994).
É de conhecimento de todos que desde
Wilhelm von Humbold, a identidade nacional vem sendo pensada em termos
indissociáveis da cultura. Como o pensamento não se desvincula da cultura, discutir sobre pensamento estratégico bra44
sileiro, significa discutir condições para
um futuro melhor, ou seja enfatizar as possibilidades de futuro, em termos da identidade e da cultura nacional. É necessário
destacar que isso é uma obrigação nacional. É importante, especialmente nesse
momento histórico em que procuram retirar a auto-estima dos brasileiros e a utopia
que nos conduz a todos rumo a um futuro
promissor. Procuram impedir que venhamos assumir um lugar de destaque neste
mundo conturbado.
Nessa linha de pensamento, para melhor me fazer entender, julgo necessário
definir alguns conceitos. Conceitos diretamente envolvidos nesse estudo.
Pensamento:
Qualquer atividade mental ou espiritual;
Atividade discursiva; atividade intelectual;
Atividade do intelecto ou da razão, em
oposição aos sentidos e à vontade – é ao
mesmo tempo a atividade produtiva e o
seu produto é portanto a essência de tudo;
Decartes:
“Com a palavra pensar, entendo tudo o
que acontece em nós, de tal modo que o
percebamos imediatamente por nós mesmos; por isso não só entender, querer imaginar, mas também sentir é o mesmo que
pensar”.
Wolf:
“dizemos que estamos pensando quando estamos cientes daquilo que acontece
em nós, que representa as coisas fora de
nós”.
Estratégia:
a arte de preparar o poder para conquistar e preservar objetivos, superando óbices de toda ordem.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
Cultura:
Conjunto de modos de vida criados,
adquiridos e transmitidos de uma geração
para a outra, entre os membros de determinada sociedade;
Paidéia (para os gregos): o homem só
podia realizar-se como tal através do conhecimento de si mesmo e de seu mundo.
Humanitas (para os latinos): Educação do homem como tal, ou seja, educação devida às “boas artes” peculiares
ao homem.
Consciência pessoal de uma nação inteira;
Spengler:
Cada cultura, cada surgimento, cada progresso e cada declínio, cada um de seus
graus e de seus períodos inteiramente necessários, tem duração determinada, sempre igual, sempre recorrente com forma de
símbolo.
(Toynbee enumerou 21 culturas. L. T.
Hobshouse enumerou 650 culturas primitivas.)
formação social que inaugura um novo
modo de ser, ser-com-o-outro, ser-no-mundo e ser-frente-ao-absoluto. Esse é um
conceito que subsume os outros sem que
os anulem.
Civilização:
Formas mais elevadas da vida de um
povo, isto é, a religião, a arte, a ciência,
etc., consideradas como indicadores do
grau de formação humana ou espiritual
alcançada pelo povo;
formação social mais ampla, resultante
do processo de horizontalização de uma
cultura. Representa o momento de ápice
de uma cultura quando esgotada sua
criatividade, projeta-se sobre o mundo;
Spengler: Do conceito de cultura,
spengler distinguia o conceito de civilização, que é o aperfeiçoamento e o fim de
uma cultura.
Modernidade:
nome atraente e cativante atribuído a
uma cultura, em cujo âmago vive a ciência, que a governa, com o seu inesgotável
poder de cálculo de todas as coisas.
Pensamento estratégico: Atividade intelectual voltada ao preparo e aplicação
do Poder Nacional para alcançar ou manter objetivos superando óbices de toda
ordem.
Pragmatismo: uma teoria do conhecimento que visa dar uma resposta à pergunta
“Como se dá o conhecimento?”, segundo
os pioneiros do pragmatismo americano
(Charles S. Pierce, William James, John
Dewey, na visão de John R. Shook, um
dos mais eruditos pensadores do
pragmatismo estadunidense).
Cabe, nesse momento, chamar a atenção para o fato de que a história da cultura
brasileira bem como a história do pensamento estratégico brasileiro, sempre foi a
história do encobrimento, do esquecimento, do desmerecimento, do desvirtuamento de significativos, essenciais e ricos aspectos de seus valores culturais, nacionais e fundamentais ao futuro do país. Isso
tem ocorrido por uma razão muito simples
ainda que fundamental: a ausência de diálogo aberto, do efetivo exercício da
intersubjetividade intelectual que nos revelaria um universo original, muito mais
rico do que o que nos é apresentado. Isso
possibilitaria um sem número de explorações que contribuiriam para a decifração
dos muitos enigmas que permeiam nosso
imaginário. Isso ocorre, possivelmente,
devido a uma mentalidade dependente de
modelos exógenos, amarrados e condena-
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dos à própria história e de um processo de
interferência cultural, disposto a apagar
nosso passado pelo cerceamento
institucional e imposição de valores
exógenos junto a um discurso equivocado de valorização do multiculturalismo.
Como apoio, tem a mídia, que dá voz e vez
à brilhante mediocridade, ao desprezo pelo
pensamento original, até mesmo por razões de sua própria sobrevivência. Por
tudo isso, jamais qualquer pensamento
original brasileiro seria colocado em destaque ou em detrimento de pensamento
oriundo dos partícipes da modernidade.
Apesar das dificuldades, a expressiva
maioria dos pensadores brasileiros
direcionou, com competência, todo esforço e capacidade para o desafio de formular um pensamento genuinamente estratégico brasileiro, em especial, da alma brasileira. Entretanto o pensamento tem sido
sufocado mesmo direcionado. Por isso, a
importância que alcançou no Brasil, mais
do que em outro lugar, o culturalismo.
A cultura brasileira é a síntese de um
vasto leque de culturas que a tornam única. A única cultura nova existente e por
isso ainda em fase de consolidação. Cultura que, por um lado, dificulta seu ingresso permanente na modernidade e por outro lado se constitui como a mais profíqüa
base necessária à construção de uma cultura de fato original, e que realmente pode
se colocar além da modernidade.
Sobre a modernidade
A modernidade não é uma nova era a
possibilitar que o sonho dos indivíduos
de emancipação social, de autodeterminação do homem, de melhores possibilidades de sua plena realização venha a se
tornar realidade, nem de oferecer a vida
eterna, ainda que tenha essa pretensão.
46
Como fator mais determinante deste século, (talvez dos quatro últimos séculos)
interfere fortemente em todas as áreas de
atividade e de pensamento do homem e
das nações. Sua força incontrolada vai
corroendo os localismos dando lugar aos
universalismos. Por essa razão, convém
destacar a influência do que existe
subjacente à modernidade, bem como o
que representa no processo histórico e
de evolução humana. A influência no
pensamento humano tem sido total. Por
suas características, na modernidade, o
ser humano não possui as condições necessárias para realizar todas as suas
potencialidades.
Isso é um convite para que rompamos
com a nossa aceitabilidade dos fatos,
com a nossa passividade, com nosso
conformismo, com a idéia de que o
pragmatismo é o caminho certo, que tem
permitido que a qualidade de refletir, inerente ao homem desapareça. Faz-se necessário entender reflexão como a volta
da consciência, do espírito, sobre si
mesmo, para examinar o seu próprio conteúdo por meio do entendimento, da razão. Vamos refletir sobre as conseqüências primeiras e talvez mais importantes
da modernidade, naquilo que diz respeito ao que melhor caracteriza o ser humano: sua subjetividade.
É óbvio que o pensamento original e
originário vira as costas à fama e, portanto, à mídia. Naturalmente, a generalizada
e tão difundida ignorância tende a aceitar, de certo modo acreditar e portanto
confiar que a verdade é transmitida pelos
meios de comunicação, como se estes
fossem os autênticos instrumentos do
pensamento. Isso torna difícil a consolidação da cultura bem como do pensamento original brasileiro.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
Como sabemos, vários são os marcos
ou datas que os autores tomam para
referenciar o início da modernidade, um
processo que levou cerca de quatrocentos a seiscentos anos para se consolidar.
Um processo que para alguns autores,
passando pela aristotelização, a partir do
ano 1000, teve sua preparação iniciada
com Abelardo, passando pelo Tomismo,
por Copérnico, pelo Renascimento, pelos
Descobrimentos, por Galileu, pela Revolução Inglesa, por Newton, por Descartes
e Bacon, vindo a consolidar-se com a Revolução Industrial.
Abelardo esboça duas noções fundamentais para qualquer consideração da
civilização ocidental: a noção de ciência, que aplica os primeiros princípios
do intelecto na ordem teórica, e a noção
de consciência, que os aplica na ordem
prática. Cabe lembrar Rabelais que afirmou que “Ciência sem consciência é a
ruína da alma”. Essas duas noções
esboçadas por Abelardo podem colocálo como precursor de Descartes. Se não
como precursor, certamente como o verdadeiro iniciador da modernidade
(Morse, 1995).
Há cerca de 500 anos vem sendo
construída, no mundo, uma nova ordem,
de fato uma nova cultura conhecida como
modernidade. Como não estamos só, nascemos e vivemos todos na chamada
modernidade, julgo importante discuti-la
ou esclarecê-la. Nesse esclarecimento é
fundamental explicitar o papel que nela tem
a ciência para, em seguida podermos nos
posicionar quanto aos fundamentos do
pensamento estratégico.
Descartes foi quem inaugurou a
modernidade quando uniu o cogito à ciência (Geometria), cuja lógica foi concebida
por Aristóteles. Assim, Descartes uniu a
ciência com o sujeito liberal cogito, que no
fundo é a essência própria à modernidade.
Por isso ele é o marco filosófico para a
modernidade. Ele afirmou que o mundo
objetivo era geometria, que era calculável,
que era um sistema axiomático fechado e o
sujeito disso era o cogito, completamente
transparente a si mesmo, ou um sujeito de
projeto, ou um sujeito liberal.
Pedro Abelardo iniciou a preparação
para a modernidade quando afirmou que
era possível reexaminar os conteúdos de
fé, para produzir uma estrutura
logicamente
demonstrável
de
racionalidade, que sustenta a crença em
todas as esferas de opiniões e de ação.
À ele é atribuída a iniciativa de contrapor a racionalidade (moderna) ao argumento de autoridade que desfrutava de
grande prestígio na cultura cristã medieval. Com o surgimento do protestantismo, a potência mediadora do clero burocrático foi significativamente
minimizada. Por isso, o sujeito liberal
intervalar tomou dimensão social para,
sem restrições, se consolidar plenamente com a revolução inglesa do início do
século XVII.
Ciência e consciência caracterizam a
modernidade anglo-saxônica tal como afirma Richard Morse. Isso é o mesmo que
mundo geometrizado, calculável, tendo
como sujeito o cogito. A consolidação da
modernidade, não só pela adoção da
cientificidade, mas pela descoberta do
sujeito que lhe é próprio, que foi realizada
pelo protestantismo.
Isso que foi desvelar e instalar o sujeito da ciência, o sujeito liberal, demorou cerca de 400 anos se estruturando e
consolidando. Não devemos esquecer
de São Tomás de Aquino, que foi o
sistematizador da modernidade no cristianismo. O apogeu do pensamento sis-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
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temático cristão registra-se com Tomás
de Aquino, de 1250 a 1274, ano de sua
morte. A conquista de Tomás de Aquino
foi unir os princípios filosóficos de
Aristóteles com os preceitos da teologia cristã numa estrutura racional harmoniosa.
A modernidade tem suas características essenciais associadas à ciência. Entretanto, a grande questão ideológica
não é a ciência – com ela todos somos
favoráveis -, mas essencialmente com o
sujeito da ciência. Para o paradigma
anglo-saxão, é o sujeito liberal; para a
esquerda é o sujeito coletivo; para a direita é o inconsciente cultural, romântico, telúrico.
O problema brasileiro não estaria na
aceitação da ciência, mas na escolha do
sujeito que lhe seja apropriado. O fracasso na consolidação desse processo conduziria à desintegração cultural, logo da
nação. A consolidação cultural original
conduziria a uma poderosa e nova cultura. Por isso, é o Brasil o único e grande
perigo para a cultura dominante e quem
sabe, para nós mesmos e poucos de nós
sabemos disso.
A história, os fatos, fotos e testemunhos, nos tem mostrado, que a direita e a
esquerda são impotentes com relação a
modernidade, pois, são seus próprios e
desviantes modos delirantes de um estado de perfeição. Por isso, a modernidade
só poderá ser superada por algo novo,
por uma utopia, por uma cultura mais poderosa.
Por isso, na modernidade, com total
hegemonia da ciência, o freudiano malestar da civilização se apresenta como
doenças predominantemente de ordem
psíquica. Isso, tem levado o homem diretamente ao pleno interesse pela ciên48
cia como ao profundo desinteresse pelo
próprio homem em sua plenitude. Logo,
perde o referencial fixo, desterritorializase e tende a adquirir doenças de ordem
psíquica.
Nós, seres humanos, estamos perdendo nossas características humanas, em
benefício de uma racionalização técnica
que, conduzida como está, tem trazido
miséria, dominação e infelicidade ao homem pelo próprio homem. Certamente
existe outro modo de evoluir, de progredir, de perseguir o bem comum, sem que
o ser humano viva num estado de dominação, sob controles sociais e políticos,
sem perder suas características humanas, com liberdade total de pensamento, de modo a ter a possibilidade de efetivar sua plena realização. Com certeza,
a ética e o bem comum estarão presentes em todas as respostas. Tomando
como referência Ortega y Gasset, faz-se
necessário lembrar que o homem deve
viver com a técnica, mas não da técnica,
pois para isso ela é por ele criada e desenvolvida.
Desde o início do século XX, e isso parece ser o caminho natural pois, no mundo de hoje, a ciência e principalmente a
técnica, estão presentes em todos os
quadrantes da vida, sendo o mais significativo instrumento de poder. Já nos lembrava Freyer ao dizer que todas as ideologias modernas se reportam à ciência.
(Freyer, 1965).
Uma das mais importantes e não aparente característica é a deficiente formação cultural que junto com profunda deficiência da experiência cultural continuada coloca em xeque a noção de desenvolvimento, tão necessária aos países
menos favorecidos e fundamental à soberania das nações.
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Quanto ao capitalismo
O surgimento e a consolidação do
processo de acumulação capitalista, da
forma como vem se processando, só foi
possível pela injeção, de modo regular
e persistente, de ganhos de eficiência
no aparelho produtivo, proporcionado
pela tecnologia. O incremento da eficiência é pré-condição para a acumulação. Este meio, nos afirma Coelho de
Sampaio, foi a técnica sistematicamente alimentada pela ciência. O processo
de acumulação, do ponto de vista econômico, é uma das bases de sustentação do modo produção próprio à
modernidade, o capitalismo, uma das
suas principais e mais marcantes características. Assim, não é difícil aceitar e
compreender, que por trás do aumento
de produtividade esteja, necessariamente, a melhoria das técnicas e, como
não pode deixar de ser, por trás desta, a
ciência.
Em termos diretos e objetivos, assim afirma Coelho de Sampaio:
“Capitalismo é o modo de produção próprio à modernidade, que tem como seu
núcleo exclusivo e irredutível a ciência e
sua lógica calculadora do mundo” (Coelho de Sampaio, 2000/B).
Existe, obrigatoriamente, um comprometimento entre um saber e um modo de pensar. A característica fundamental desse
comprometimento com a modernidade é o
aprisionamento daquilo que seja considerado digno de ser pensado num universo
pré-determinado, calculável, delimitado,
esgotável, por convenção.
Assim, em princípio, como seria possível a um sistema, concreto ou simbólico,
teórico ou prático, evoluir de modo a
acompanhar as vicissitudes do processo
histórico? Coelho de Sampaio nos mostra que para que uma cultura científica
possa sobreviver, é necessário que, ao
longo do tempo, entre um sistema e outro, venha a surgir um sujeito
transcendental, sujeito intervalar, entretanto com bastante vigor para recompor
um novo sistema que deverá substituir o
anterior.
O sujeito intervalar é livre com relação
aos sistemas ou à ciência. Entretanto,
ele está acorrentado ao processo geral
da instituição da racionalidade. É um
sujeito sujeitado à cientificidade que se
pretende calcular e reger os destinos do
mundo. Assim, ciência e sujeito liberal
intervalar, o sujeito intervalar explicitado
e incentivado pela indústria cinematográfica hollywoodiana, passam a constituir a parte visível e afirmativa da
modernidade.
A modernidade mostra apenas seu lado
ameno, mais alegre e mesmo promissor
que é constituído pela ciência e pelo sujeito liberal consciente. Entretanto, a estrutura não poderia se sustentar sem que
houvesse sólidas bases. Que bases seriam essas? Se na parte visível da estrutura estão a ciência e seu sujeito liberal
intervalar, o que constituiria a parte não
visível da estrutura da modernidade? E,
como questiona Coelho de Sampaio, como
poderia tal parte da estrutura, não aparente, acontecer e ter passado desapercebida até os dias atuais?
Para Coelho de Sampaio, a resposta está
no próprio processo histórico, no episódio anômalo, instrutivo e castrador de
caça às bruxas que é sintoma de uma cultura em processo de decadência, manifesta em uma terrível etapa conhecida como
Idade das Trevas que ocorre em paralelo
com a institucionalização do pensamento
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1
científico , da aristotelização entre o auge
de Copérnico e Galileu.
Os episódios dramaticamente repressivos, punitivos que caracterizaram a
Inquisição, ocorriam justamente após a
aristotelização (racionalização) da teologia cristã, programada por Santo Alberto
Magno e bem executada por São Tomas
de Aquino. Cabe ressaltar que nesse mesmo período, foram consolidados a maioria
dos Estados europeus modernos.
Se o lado aparente da estrutura da
modernidade era constituído pela ciência
e seu sujeito liberal intervalar, no outro
lado, o lado não visível, era construída
suas bases, suas fundações. Essas foram
estruturadas com o recalque, a ferro e fogo
da feminilidade. Nesse momento histórico, no processo de caça às bruxas teriam
sido torturadas e executadas mais de cem
2
mil mulheres. Era realizado o recalque da
história e do desejo inconsciente. Isso,
segundo Coelho de Sampaio, de certo
modo inevitável, para ressaltar a masculinidade, o projeto. Em outras palavras a
ciência e o sujeito liberal intervalar.
Era necessário, concomitantemente, efetuar o recalque da feminilidade, de um lado
o inconsciente e do outro, a história. Em
outras palavras, o lado oculto, ou os porões da modernidade. A Inquisição, o processo de caça às bruxas, surgiu para
concretizá-lo.
O mundo estava sendo construído, em
função do essencialmente masculino, devotado ao projeto, às conquistas, à eficiência e ã dominação. Era elidido o diálogo
e a subjetividade, fazendo com que o feminino assumisse apenas a sensibilidade,
o amor, a tristeza, a desesperança e a sublimação. Esqueciam os homens que nos
encantos femininos teriam o repouso, o
amor, o crescimento pessoal e o encontro
consigo mesmo, sua plena realização.
1 - Bacon afirma que a ciência só poderá se constituir como conhecimento verdadeiro e fecundo de
resultados quando for imposto à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao intelecto a
disciplina da experiência sensível. Para que tal fosse possível entendia que o procedimento a ser
utilizado era o da indução. Entretanto, Bacon diferencia o significado que atribui ao seu entendimento
de indução e ao que é atribuído ao entendimento por Aristóteles. Para Bacon a indução aristotélica é
puramente lógica, não incidindo sobre a realidade. É apenas indução por simples enumeração dos
casos particulares. Entende ainda que ele produz conclusões precárias expostas aos riscos de contraexemplos que possam vir a desmenti-las. O pensamento indutivo de Aristóteles é apenas produto da
contemplação pois não existia a possibilidade de uso que qualquer tipo de medição, enquanto que o
pensamento indutivo de Bacon faz-se no universo em que são disponíveis diversos mecanismos de
medição. O processo indutivo baconiano é medito enquanto o processo indutivo aristotélico é apenas
fruto da observação, portanto não é medido. Quem sabe devido às limitações existentes à sua época.
A indução baconiana fundamenta-se num processo de escolha e eliminação sucessiva dos casos
particulares, até que seja alcançada a determinação da verdadeira natureza do fenômeno. Parte dos
fatos naturais aos princípios gerais e por fim aos axiomas mais gerais. Bacon entende que o processo
de indução busca o estabelecimento da causa das coisas naturais a que ele denomina forma. Ele faz seu
princípio e aceita a distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Bacon,
por defender o pensamento indutivo afirma que a lógica da criação científica é indutiva. Isso em nada
contraria a lógica aristotélica. Bacon rejeita o aristotelismo tomista. Isso porque São Tomás de
Aquino representa a união entre o aristotelismo e o cristianismo. Isso faz com que a verdade aristotélica
combinada com a verdade tomista produza a verdade dedutiva pois a teologia (Tomista) é regida pela
lógica dedutiva, não aceitável para Bacon. Isso faz com que seja devido a Bacon o reconhecimento do
valor da ciência para a humanidade.
2 - Para maior aprofundamento uma leitura interessante é o Martelo das Feiticeiras, escrito em 1484
pelos inquisidores Heinich Kramer e James Sprenger. Editora Rosa dos Ventos. Rio de Janeiro.
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Sobre isso, Coelho de Sampaio nos diz que:
“Como o desejo é desejo de desejo, desejo de reconhecimento, a melhor forma
de apequenar o desejo no homem era sufocar o desejo na mulher. Para que os homens se concentrassem no cálculo de todas as coisas do mundo nada de mais funcional poderia haver, na circunstância, do
que “esfriar” as mulheres – e isso esteve
sempre bem posto nos propósitos e discurso protestante, particularmente
calvinista” (Coelho de Sampaio, 2000/B).
O capitalismo produtivista provocou
um mal estar que foi razão suficiente e
necessária para o surgimento da ordem
dos jesuítas. Os integrantes da ordem
foram os primeiros a aceitar a ciência.
Entretanto, diferente dos protestantes, os
jesuítas substituíram o sujeito liberal pelo
sujeito coletivo, representado por um
poder simbólico, absoluto. Com isso, propuseram uma solução para a questão do
sujeito da ciência, contudo, segundo
Coelho de Sampaio, não conseguiram fazer uma crítica objetiva e profunda da
nova realidade científica e econômica que
surgia em sua frente.
O marxismo teve o mérito de explicitar,
ainda que não completamente, os
determinantes profundos do modo de produção capitalista, próprio à modernidade.
Suas características, a racionalidade e o
espírito individual de iniciativa, não seriam negadas. Entretanto o fundamental
para compreensão do que surgia era a abertura do lado não visível da modernidade.
O lado onde o processo de acumulação
de capital operava. Esse primeiro modo de
produção, vinculado a modernidade, o capitalismo produtivista, para Baudrillard,
capitalismo produtivista/calvinista ou apenas acumulação, prevaleceu até o início
do século XX.
O século XIX foi palco de fortes pressões exercidas pelos movimentos revolucionários e reformistas, que proliferaram e forçaram o capitalismo a uma
resposta. Assim, o capitalismo utilizou
o que Coelho de Sampaio denomina de
sua reserva estratégica: o desejo
recalcado das massas. O capitalismo de
marqueting ou consumista já havia sido
anunciado pela escola marginalista
neo-clássica, surgida na Áustria, trinta
anos antes do fim do século XIX, que
vai localizar a fonte do dinamismo econômico ou projeto, não mais na oferta,
mas na demanda ou seja, no desejo.
Ainda que exaurido em suas reservas
estratégicas, configura-se assim, o
modo de produção próprio à
modernidade.
A negação do desejo inconsciente e da
história está na essência, escondida, não
visível, do capitalismo. Esses duas dimensões lógicas femininas, recalcadas, não
foram apagadas ou desapareceram para
sempre, pois elas acabam voltando.
Mas como explicar o dinamismo da
economia atual? Esse dinamismo não
mais decorre da produção nem do processo de acumulação, mas principalmente da capacidade de manipulação do imaginário das grandes massas pelas modernas e eficientes técnicas de
marqueting. O desejo inconsciente teria
sido afinal domesticado e integrado à
economia. Nos dias atuais, o capitalismo através do marqueting e da
domesticação do inconsciente, apresenta-se na forma de capitalismo
consumista/hedonista. Atualmente o
capitalismo, usando de suas reservas, é
a etapa em que o desejo inconsciente
teria sido afinal domesticado e integrado à economia. E é isso que vemos hoje
por todo o tempo e por todo os lugares.
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A domesticação do inconsciente em
benefício da economia, é produto da Escola Marginalista que pensa a economia a
partir da demanda, do desejo e por isso
conduz ao consumo. A Escola
Marginalista, também conhecida como
neo-clássica ou austríaca, nasceu em Viena, na Áustria, local onde posteriormente
surgiu a psicanálise, e posteriormente expandiu-se, tendo importantes representantes também nos Estados Unidos da América. Teria sido mera coincidência, pura
decorrência ou a escola surgiu a partir do
pensar dos que pensavam sobre o pensar
inconsciente o que viria a se chamar de
psicanálise?
Mais uma vez, Freud nos alertava que:
“A civilização está obedecendo as leis
da necessidade econômica, visto que uma
grande quantidade de energia psíquica que
ela utiliza para seus próprios fins tem de
ser retirada da sexualidade”.
Sigmund Freud in O mal-estar da
civilzação (Domesticação do desejo inconsciente?).
Crítica à modernidade
Como visto, podemos entender a
modernidade como sendo a conquista da
ciência e da técnica por uma cultura ou
como ela se apresenta, na versão anglosaxônica.
A modernidade tem a conotação de ser
a ideologia de todas as ideologias, que
sugere a si mesma a perfeição da perfeição, e por isso tem a pretensão que a história tenha chegado a seu fim. Por isso,
vemos o discurso de pós-modernidade
quando se vive o auge da modernidade.
Muitos outros fins também são desejados,
tais como já há algum tempo, observamos
a divulgação do fim de alguma coisa. Te52
mos O Fim da História e o Último Homem,
Ed. Rocco; O Fim do Território (La Fin des
Territoires, Paris, Fayard, 1995); O Fim da
Democracia, Ed. Bertrand; O Fim do Sentido (Sens et Puissance dans les Relations
Internationales, Paris, Fayard, 1994);O Fim
da Ideologia; O Fim do Estado Nacional;
O Fim das Fronteiras; O Fim da Soberania
Nacional; O Fim da Ordem Militar (La Fin
de l’Ordre Militaire, Presses des Sciences
Politiques); O Fim dos Empregos, Makron
Books; O Fim das Tradições; O Fim do
Capitalismo (The End of Capitalism,
Blackwell); O Fim dos Militantes? (La Fin
des Militants?, L’Atelier); O Fim do Mundo (The End of the World, Routledge); O
Fim da Natureza, Editora Nova Fronteira;
O Fim do Futuro, Editorial Inquérito; Após
o Fim da Arte (After the End of Art,
Princeton University); O Fim da Evolução
(The End of Evolution, Bantam
Doubleday); O Fim da Ciência (The End
of Science, Addison-Wesley); O Fim do
Estado-Nação, Campus; O Fim das Certezas, Editora UNESP; O Fim do Racismo
(The End of Racism); O Fim da Educação
(The End fo Education, (Knopf); O Fim
das culturas Nacionais, A Morte da Economia, Companhia das Letras; A Morte
do Dinheiro, Bertrand Brasil; A Morte do
Homem, Editora Nobel; Morte da Literatura (Death of Literature, University Press);
e outros tantos.
Isso requer uma crítica, de fato, uma refutação, para que seja possível, no plano
teórico, filosófico e por fim prático, a realização, dentre outras tantas ações, de um
pensamento e de um planejamento estratégico integral.
A primeira crítica que se faz é relativa as
ideologias à esquerda e à direita do
paradigma anglo-saxão moderno. As ideologias, de fato, não assustam o poder que
por sua vez não se sentem por elas amea-
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çados. Elas criticam o poder instituído
porque o querem mais perfeito. Por isso,
atuam no sentido de encobrir sua mortal
fragilidade.
A segunda crítica a ser feita é relativa
à ciência e a técnica. Isso porque a ciência caracteriza a modernidade. Entretanto não consegue vislumbrar o que a possa suceder.
As ideologias, tal como afirma Freyer,
têm vínculos com a ciência. Entretanto, o
que é relevante, é o fato de que o que está
por trás de todos conflitos ideológicos nos
últimos cento e cinqüenta anos, é a dissimulada questão do sujeito da ciência. É
importante insistir no aspecto dissimulado das ideologias porque elas preservam,
deixam intocadas, colocam ao abrigo de
qualquer suspeita a ciência e a técnica.
A humanidade vive sob forte e predominante influência da cultura anglosaxônica, caracterizada pela ciência e pela
técnica. Neste início de século, sua
criatividade, certamente como conseqüência de seu êxito, vai sendo substituída pelo
processo de horizontalização ou seja, de
sua projeção, de forma imperial, ao resto
do mundo. Em termos econômicos, isso
representa a passagem do capitalismo nacional de produção ao capitalismo
globalizado de consumo, paralelo, mas
deslocado, a um inconseqüente capitalismo financeiro internacional.
Sendo a modernidade, caracterizada pela
ciência e pela técnica, esta questão tem
profundas conseqüências. O fato de não
ter o propósito de ao menos questionar a
sujeito da ciência, só pode ter a intenção
de inviabilizar os caminhos que, de fato,
podem levar à superação da modernidade,
da ideologia que determina o futuro segundo as conveniências ou os interesses
da cultura anglo-saxônica. A fragilidade a
que se refere, não é da ciência ou da técnica enquanto tal, mas de seu modo dissimulado, de explicitar um futuro em que se
vislumbre o homem perfeito biologicamente, ou mesmo à vida eterna. De fato, uma
pretensão que não tem outro propósito
senão o de tornar dispensável o advento
do homem em sua plenitude e colocar a
ciência e a técnica acima do ser humano.
Assim, o homem passaria a ser governado pela ciência e pela técnica, o que já
começa a ocorrer, e que representaria a
morte da humanidade, como tal. Nesse
mundo não haveria, como já, neste final
de século, lugar para o pensamento original, que parece despedir-se ou ser despedido, das atividades em que todos os homem estejam envolvidos.
Ambas as ideologias existentes, à direita e à esquerda da cultura anglo-saxônica,
da modernidade (ideologia desta cultura),
diferenciam-se apenas quanto ao sujeito
da ciência.
A ideologia à esquerda da modernidade,
jesuítica, comunista, socialista, adota o
sujeito coletivo. Sua denominação de socialismo científico lhe é apropriada.
A ideologia à direita da modernidade,
fascista, nazista, tradicionalista, adota o
sujeito romântico, telúrico. Sua denominação como nacional socialista, é enganosa, na medida em que sua oposição à
esquerda não acontece entre o nacional e
o científico, mas precisamente entre o nacional particular e o comunitário universal. Sua denominação apropriada seria
nacional científico.
Este equívoco mostra suas raízes pela sintomática freqüência com que uma formação
ideológica de direita se apresenta não como
uma troca de sujeito, mas como se fora uma
simples particularização de um sujeito já
dado, especificamente, pelo deslocamento
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do social universal, internacional, em favor
do mesmo social, agora restrito ao nacional.
Isso acompanhado de propostas de modernização científico-tecnológica da produção
e do sistema educacional.
A ideologia à esquerda da modernidade,
direciona a ciência e a técnica para solucionar os problemas entendidos como de
cunho social. A ideologia à direita da
modernidade, direciona a ciência e a técnica ao serviço da preservação dos valores e da integridade do espírito do povo.
Em ambos os casos, identifica-se uma
impossibilidade porque, as duas ideologias poderão assumir um poder totalitário
em seu proveito. Isso ocorre porque a lógica da ciência, subsume as lógicas da
dialética, governando os seus sujeitos. Por
isso as inversões propostas sempre revertem, o que acarreta a perversão dos projetos políticos que se dizem fundamentados naquelas opções, como a história do
século XX o demonstrou.
Assim, temos que o sentido da subordinação surge tal como logicamente deve
ser: por definição, o sujeito liberal se afigura um sujeito realmente transcendente
ao sistema, porém, a ele sujeitado, na medida em que só lhe é permitido operar de
modo intervalar entre sistemas que se
superpõem e se sucedem. Esta é uma configuração essencialmente perversa, que
3
por isso mesmo, jamais perverte .
Assim, entendemos que não há saída
nem à direita nem à esquerda, apenas
logicamente para frente, o que significa
uma saída original, própria, cultural. Por
isso a necessidade imperiosa de um pensamento estratégico original.
Brasil e a modernidade
“Laboratório para a convivência das diferenças – de raça, de cor, de cultura e de
religião -, o Brasil cada vez mais parece
incapaz de diminuir suas indecentes desigualdades sociais. A economia afasta irremediavelmente o que a cultura aproxima
(ainda)”.
Zuenir Ventura in Jornal do Brasil, 28 de
março de 1998.
Desde cedo, personagens como Alexandre Gusmão, José Bonifácio, Rio Branco,
Alberto Torres, Pandiá Calógeras, Gilberto Freire, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque
de Holanda, Stefen Zweig, Vilém Flusser,
Darcy Ribeiro, Luiz Sérgio Coelho de
Sampaio, Mércio Pereira Gomes e muitos
outros, que pensando o Brasil, perceberam a questão e explicitaram a incompatibilidade da formação cultural brasileira
com a cultura mais poderosa, a
modernidade. Não me refiro às ideologias,
a esquerda e a direita, porque elas apenas
fizeram convalidar a modernidade que continua exercendo seu papel.
Entretanto, isso nos leva a uma questão, que entendemos essencial, e mesmo
fundamental, que se faz necessário esclarecer. É a dualidade identidade nacional
versus modernidade. Isso é de suma importância e fundamental para a sobrevivência da nação como tal, pois a cultura é
o fundamento da unidade nacional.
O entendimento da problemática brasileira, passa a ser possível a partir do real
compreensão da modernidade.
Como uma nação que nasce com a
modernidade, fundada por Portugal, uma
3 - O sentido de perverso é aqui utilizado tal como utilizado por Coelho de Sampaio. É o sujeito que
aceita a lei desde que esta seja a sua própria. Entretanto, nada há de errado nesta inversão; ela é, pelo
contrário, bastante coerente na medida em que tal inversão é a exata contrapartida da mudança do
ponto de vista, do social para o individual.
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nação que chegou a liderar o processo
europeu de modernização, pode ter o problema de se haver com a modernidade?
O Brasil ocupa uma posição marginal em
relação a modernidade. Como é que um país
nascido na modernidade tenha sérias dificuldades para nela ingressar? Tal dificuldade é devida a um dualismo; um dualismo
cultural. Existe um Brasil que se mostra parte da modernidade e outro Brasil que se
recusa a ingressar na modernidade. Isso é
devido à cultura brasileira, essencialmente,
uma síntese das culturas existentes, e que
algumas delas são síntese de outras antigas e ricas culturas, que está em fase final
de consolidação.
Por isso e por todas as razões faz-se
necessário preservá-la para todos os propósitos. Por ser, de fato, a única cultura
nova, isto a torna a única com possibilidades de cristalizar como perigo real para
a cultura dominante. Faz-se perigo, justamente porque constrói as condições
necessárias à superação da cultura dominante, o que, por sua vez, provoca forte reação. Por isso, é alvo de todos os
tipos de ataques que visam sua
desestruturação com suas decorrentes e
graves conseqüências.
Mas não é apenas isso. Ainda que inconscientemente, o que se está sempre na
verdade evitando ou ocultando é a questão de quem deva ser o sujeito da modernização (racionalização) que, entrementes,
ali está posto de maneira implícita. A
modernidade, para nós, tem que ser olhada não como a questão da opção por um
paradigma, mas como a questão da sua
ocultação ou dissimulação. Em suma, toda
esse alarido sobre a modernização brasileira, como de resto todo o discurso (ideológico) sobre a modernidade é, no fundo,
um discurso acerca de qual opção de sujeito da ciência, o sujeito liberal, se
intenciona deveras dissimular.
A partir daí fica fácil perceber a essência do problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor,
entre a formação cultural brasileira e a
modernidade. Este é verdadeiramente o
nosso grande conflito interno. Mas faz-se
necessário aprofundar e entender melhor
como se dá essa incompatibilidade e por
que persiste este dilema.
A consolidação da modernidade, não
pela adoção do cientificismo, mas pela
descoberta do sujeito que lhe seria pró4
prio, foi obra do protestantismo . Embora Portugal e Espanha tivessem participado do início da modernidade, a racionalização e a burocratização do mundo,
não se mantiveram na vanguarda porque não constituíram ou consolidaram
o sujeito que lhe seria apropriado, o
sujeito liberal, sujeito de projeto. De fato,
Portugal tinha esse sujeito. No século
XV, a Espanha expulsou os Judeus. Cem
anos mais tarde Portugal também os expulsou. Foram para a Polônia. Sem a cultura judaica, Portugal não conseguia
evoluir e se desenvolver. Padre Antônio Vieira fez o possível para que Portugal permitisse a volta dos Judeus, o que
não conseguiu. Talvez tenha identificado a necessidade de que a cultura judaica junto com a ciência, criasse as condições necessárias para que Portugal pudesse vir a se desenvolver.
4 - A igreja católica sempre teve total proximidade com a ciência. A carta encíclica “Fides et Ratio” é
prova suficiente. A separação drástica luterana entre fé e razão, por suposto, não criou a ciência, mas o que
seria necessário para criar uma sociedade ou cultura científica: o sujeito liberal liberado para ser sujeitado à
ciência ou, simplesmente para se constituir em sujeito da ciência, como afirma Coelho de Sampaio.
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Existiriam alternativas? O mais interessante é que esta questão se pôs logo no
início da modernidade. A cúpula da Igreja
não queria discutir sujeito nenhum, porém, depois que o protestantismo colocou
a sua solução, havia a necessidade de darlhe uma resposta. Então, a Igreja deixou
emergir o jesuitismo latente, que formula
uma contra-proposta (contra-reforma). No
lugar do sujeito calvinista colocar-se-ia um
sujeito coletivo, obviamente representado por um sujeito simbólico absoluto (delegado do Absoluto).
A Igreja, através dos Jesuítas, em meados do século XVI, leva sua contribuição
colocando o sujeito, porém sujeito coletivo. Assim, Portugal passou a ter a ciência
e o sujeito coletivo. Isso porém também
não resolveu. Entretanto, procurando recuperar espaço perdido para o protestantismo, a Igreja recupera pouco mais da
metade do que perdera. O Protestantismo
recua em vários países. Os Jesuítas passam a ser conselheiros científicos, fundam
escolas e estimulam a ciência em benefício do coletivo. No processo de recuperação e de educação necessária à Igreja ou
melhor ao jesuitismo, dentre as escolas
fundadas está uma que teve a missão de
educar a elite portuguesa e que foi denominada Colégio dos Nobres.
No fundo da questão, o problema é pois
quem deva ser o sujeito do sistema, ou
seja, a ciência vai ser feita para quem, por
quem e em proveito de quem? No
paradigma anglo-saxão, todos os cientistas estão a serviço da reprodução dos sistemas. Há também uma liberdade de fato,
precisamente, aquela de um sujeito
holywoodiano, para permitir que os sistemas se reproduzam.
Ao se assistir a uma reunião sobre, por
exemplo, desenvolvimento tecnológico,
56
veremos o grupo que segue o modelo americano propor que as verbas sejam dadas
aos indivíduos que apresentem o melhor
projeto. Imediatamente, o grupo a esquerda contra-ataca, propondo que as verbas
sejam destinadas à criação de tecnologias
que venham contribuir para resolver os graves problemas sociais. É sempre a mesma
coisa! Nós temos uma enorme dificuldade
em aceitar aquele sujeito individualista, o
sujeito liberal ou hollywoodiano.
Resumindo, a proposta jesuítica é a de
um sujeito coletivo que, exatamente por
tal, precisa ser representado por um sujeito emblemático absoluto: é a proposta de
ciência e absolutismo. É fantástica a carga
que o Marquês de Pombal e os espanhóis
fizeram sobre a Ordem dos Jesuítas. Pressionaram o Papa Clemente XIII, que acaba
doente e morre em 1769. Clemente XIV,
sucessor de Clemente XIII, foi eleito Papa
com o compromisso de acabar com os Jesuítas, o que não cumpriu.
Mesmo sob pressão, passou três anos
adiando a decisão. Os ibéricos mais ainda
o apertaram até que a Ordem foi dissolvida. Em 1773 a supressão dos Jesuítas foi
decretada e Clemente XIV morre no ano
seguinte. Os Jesuítas foram expulsos da
França em 1764, da Espanha em 1767 e de
Portugal em 1773.
Catarina da Rússia então os recebeu na
Polônia e chegou a ameaçar o Papa, dizendo que se insistisse em dissolver a Ordem
em seus domínios, ela ordenaria ortodoxar
a Polônia. A Polônia ficou católico-romana exatamente porque o Papa recuou, isto
é, ele fez de conta que acabou com a Ordem. Entrementes, uma boa leva de seus
integrantes continuou se refugiando na
Rússia que, no caso, era uma parte da
Polônia ocupada. Com que finalidade?
Para ajudar numa reforma educacional, uma
reforma modernizadora no sentido dos
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Tzares. Reforma com ciência sim, mas com
um sujeito coletivo representado pelo
monarca absoluto. Em que escola Lenin
poderia ter aprendido o que fazer?! A exata fórmula jesuítica!
É o maior absurdo dizer que a Igreja era
contra a ciência. Os jesuítas, desde o fundador, Santo Inácio de Loyola, foram se
formar na Sorbonne. Todo jesuíta possui
formação em algo de cunho acadêmico,
universitário, inclusive científico. Quem
leu o livro do Pietro Redondi, Galileu He5
rético verifica claramente que o problema de Galileu não é com a Igreja e, sim,
com os jesuítas, e nada tem a ver com a
ciência propriamente dita. Ele foi acusado
formalmente do não cumprimento de sua
palavra e, (no fundo, não é o que diz
Redondi, mas do texto facilmente se o
depreende) de querer aparecer, fazer sucesso, se tornar um mal exemplo, ser aquele que fazia ciência para ele próprio obter
algum tipo de benesse. E, para os jesuítas,
até hoje, a ciência deveria ser feita coletivamente e em benefício da coletividade.
Ficou desde então este tipo de alternativa. O que se está chamando hoje capitalismo confucionista ou capitalismo oriental é também disso uma variante. É a ciência com sujeito coletivo representado pelo
Imperador, no caso do Japão, pelo Secretário Geral do Partido Comunista Chinês
no Continente, e pelo patriarca da família
alargada na diáspora chinesa por todo o
mundo.
O que há aí de importante que precisa
ser visto? A maioria das pessoas de esquerda, no Brasil, acha isso bom e realmente o é, só que optar pelo sujeito coletivo e ao mesmo tempo fazê-lo
determinante, e não tributário ou intervalar,
é uma solução impossível. Tudo, por uma
simples razão: capitalismo apenas na cultura anglo-saxônica com sujeito liberal
intervalar. Então, não se pode inverter a
seta que no capitalismo anglo-saxão ou
paradigmático vai do sistema para o sujeito, que faz do último sujeito tributário do
primeiro.
O capitalismo anglo-saxão não tem esse
problema, pois o indivíduo do projeto está
a serviço do sistema; já estando pervertido, não vai perverter jamais. Mas quando
é proposta a solução à esquerda, subrepticiamente também se propõe inverter
a seta. Pretende-se que a comunidade ou
o ser-comunitário vá se servir da ciência
em seu próprio benefício. Isto é a grande
ilusão de todas as esquerdas. A seta que
iria do sujeito coletivo para a ciência vai
se inverter, o que acarretará na implantação de uma burocracia usando de uma ideologia para dominar a massa. Em última
instância, é a lógica do sistema que prevalece e o exemplo evidente era a URSS.
Começou-se lá com a intenção de colocar a ciência a serviço do coletivo, mas
sabe-se hoje no que isto, de fato, resultou. Houve o seu desmembramento e posterior desaparecimento. Basta lembrar a expressão socialismo científico. Socialismo
é o sujeito como ser coletivo e científico é
o mundo objetivo, a lógica clássica posta
a serviço da dialética. Precisa-se explicar
mais?! O esfacelamento da Iugoslávia segue o mesmo princípio. O Japão vai pelo
mesmo caminho. Ele só está resistindo um
pouco mais à perversão em razão de sua
grande homogeneidade cultural. Eles
aprenderam a bem usar a ciência e a técnica, mas estão agora acabando com o respeito aos velhos, o empresário samurai, a
estabilidade do emprego etc., Esse novo
5 - “Galileu Herético”, de Pietro Redondi. Companhia das Letras. São Paulo. 1991.
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modo de proceder é o que os levará à sua
própria dissolução cultural. Pelo mesmo
raciocínio, quem está apostando na China
como a grande nação capitalista do século XXI, irá se decepcionar.
Todos que se manifestam a favor do capitalismo dizem que, em essência, ele se baseia na racionalização do mundo ou então
no sujeito schumpeteriano, o que, de certa
forma, é repetir Descartes. A modernidade
na verdade se baseia em ambos.
Vamos observar uma empresa qualquer.
A primeira coisa que se irá constatar é a
obsessiva pré-ocupação com o cálculo da
taxa de retorno do capital. Quando vemos
o que é uma empresa constatamos que ela
tem seu rumo definido pelo cálculo da taxa
de retorno de capital. Quando pensamos
em instrumentos de planejamento, dentre
outros, identificamos as técnicas qualitativas de previsão. O que se busca com
isso? Apenas tentar antecipar o futuro,
ou criar o futuro, para reduzi-lo à um simples processo de acumulação de capital.
Maior evidência não existe! Não é isso que
toda empresa faz? Sozinha, entretanto, a
posição dialética não é o lugar de uma solução; é apenas o lugar para uma crítica.
Assim, Marx é importante para criticar o
capitalismo (melhor diríamos, a
modernidade), mas não para propor um
sistema alternativo, baseado num sujeito
coletivo. Com o esfacelamento da URSS,
isto está hoje mais do que comprovado.
Existe, entretanto, uma outra alternativa
que é a do sujeito romântico, sujeito inconsciente, sujeito telúrico, sujeito poético, povo,
ou, bem perto de nós, sujeito libidinal.
A Alemanha tem uma elite bem diferente da nossa, é óbvio, que sabe bem o
que é cultura e sua importância. Foi precisamente por isso que ela respondeu por
antecipação ao consumismo. O fascismo
58
é uma alternativa, ou melhor, uma pseudo
alternativa para a modernidade, com o sujeito romântico no lugar do sujeito liberal. Foi precisamente por isto que o fascismo apareceu tardiamente (como força
social) em relação ao socialismo, vale dizer, justo quando o capitalismo começava a deixar de ser produtivista para tornar-se essencialmente consumista. Lá
começou-se a sentir, antes do que em
qualquer outro lugar, o capitalismo e o
seu novo motor, o marqueting, como um
agressor da cultura. Para Heidegger, o
inimigo da Alemanha (dizia Europa) não
era apenas a URSS, mas igualmente os
Estados Unidos da América, velhos ri6
vais do logos heraclítico . Vê-se agora
uma simetria temporal perfeita: o marxismo é uma resposta retardada ao cálculo
da História, ou seja, à acumulação précalculada do capital. O fascismo é uma
resposta antecipada ao consumismo, ou
capitalismo de marqueting. Por isso, o
comunismo não tem mais futuro, mas o
mesmo não se pode ainda seguramente
afirmar do fascismo! Entrementes, porque
também inverte a direção da determinação ciência/sujeito, vigente no paradigma
anglo-saxão, perverte, e como já se viu,
bem depressa.
No que se refere a questão ideológica,
que caracterizou o século XX, e que de
certa forma convulsionou o mundo com
milhares de mortes e sofrimento para a
humanidade, não é difícil comprovar que
os discursos ideológicos à esquerda e à
direita da modernidade, apenas convalidaram a modernidade.
O discurso ideológico, tanto a direita
quanto a esquerda não contestam ou criticam a modernidade. Ambos os discursos,
apresentam-se como críticos e subversivos
da cultura de referência, anglo-saxônica,
cultura da modernidade. De fato, são dis-
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cursos pseudo-críticos que contestam apenas alguns aspectos do poder, mas na essência não contestam os fundamentos ou
o núcleo do discurso da cultura da
modernidade, do poder por ela exercido.
As ideologias apenas contestam aspectos não essenciais, não críticos. Assim,
eles acabam sendo discursos reacionários, discursos que ratificam o esquema de
poder existente. São discursos ideológicos apenas à esquerda e à direita e não
contra. Por via de conseqüência, o marxismo é uma teoria capitalista. Capitalismo
de Estado, de Estado perfeito.
Nós temos uma formação ibérica forte,
mas na dimensão educacional sempre
houve a preponderância do íberojesuítico. A tendência da elite brasileira,
(a generalização aqui é sem dúvida um
exagero) é comunitário/absolutista. O indivíduo aqui tem mesmo vergonha de ter
lucro. Ele pode ficar rico, mas sempre com
a consciência culpada, porque tem lá sua
cabeça jesuítica, ainda que existam algumas poucas exceções. Se fraqueja com a
idade, entretanto, não faz uma grande doação benemerente a uma universidade ou
instituição filantrópica, como nos EUA,
mas simplesmente muda (se fantasia, melhor se diria, na circunstância) para sujeito ostensivamente libidinal!
E o povão, principalmente onde pesa mais
a cultura africana, puxa para o lado do sujeito libidinal que faz parte de uma forma
arcaica de cultura. Ou seja, trabalhar racional e disciplinadamente, sim, mas para então poder gozar mais. Trabalhar duro a semana inteira, para na sexta à noite poder
tomar sossegadamente sua cerveja com os
6 - No segundo semestre do ano letivo de 1934/1935, na Universidade de Friburgo na Brisgóia, ao
tratar da questão fundamental da metafísica, Heidegger assim se manifestou: “Essa Europa, estando
num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na
grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América de outro. A Rússia e a América,
consideradas metafisicamente, são ambas a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada
técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver
sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver
tornado acessível em qualquer lugar e a qualquer hora e com qualquer rapidez; quando se puder “viver”
simultaneamente um atentado a um Rei na França e um concerto sinfônico em Tókio, quando o
tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de
todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande
homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo
então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para
quê? – para onde? – e, depois, o quê? O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos
ameaçam perder a última força espiritual que [ no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver
e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural,
nem tão pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses,
a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre,
atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já
há muito se tornaram ridículas.Encontramo-nos entre tenazes. O nosso povo, estando no meio, sofre
a maior pressão das tenazes, é o povo com mais vizinhos e por isso mais ameaçado, sendo assim o
povo metafísico. Mas essa determinação, da qual temos toda a certeza, só poderá ser transformada em
destino quando o povo criar uma ressonância em si próprio, uma possibilidade de ressonância para
essa determinação, compreendendo a sua tradição de um modo criador. Tudo isso implica que este
povo enquanto povo histórico se coloque a si mesmo, e com isso, a História do Ocidente fora do
centro dos seus futuros acontecimentos, repondo-se assim no domínio originário dos poderes do Ser.
É que, se a grande decisão sobre a Europa não deverá precisamente ser tomada por via da destruição,
só poderá então ser tomada por via de um desenvolvimento de novas forças histórico-espirituais a
partir do centro”. (Heidegger, 1997/A).
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59
amigos ou mesmo fazê-lo o ano inteiro, para
poder desfilar condignamente no Carnaval.
Por que não se consegue modernizar o Brasil? Porque a elite puxa para o sujeito coletivo/absolutista e o povão puxa para o sujeito
libidinal, e ninguém quer saber do projeto.
Daí, a dificuldade de modernizar o Brasil. Não
há quem não o queira, mas ninguém quer se
botar no devido lugar. O único jeito de o fazer
é acabar com a elite, dizem de um lado. De
outro lado, se diz que com esse povinho não
dá. Não se aproveita nada, é o que alguns
que se julgam iluminados e nos ensinam. Alguns acreditam, incrivelmente, que o índio é
preguiçoso, o negro só quer saber de magia e
o português é patrimonialista. Com isso, vale
dizer, com toda nossa herança histórico-cultural, nada nos é possível fazer. O atual Governo está mais ou menos seguindo esta dupla receita. Põe a classe média para dirigir táxi,
vender artigos de confecção caseira e assim
pela concorrência matar de fome a baiana que
faz o acarajé e a cocada, e nesse quadro, vende ou transfere a economia brasileira, em bloco, para empresários monopolistas estrangeiros. Entrementes, o Brasil está sendo
construído, embora nós não queiramos ver.
Por isso se diz que o Brasil cresce à noite, sem
ninguém ver ou atrapalhar.
Boa parte de nossa elite política, empresarial e até intelectual está na contra
mão da causa brasileira, investindo no fim
da História, no pensamento único, para
quê? Para ocultar nossa grande alternativa que está na síntese porvir. Há, pelo
menos, ainda, um nível de desenvolvimento cultural, de consolidação da cultura brasileira, na qual exatamente deveríamos
apostar. Ademais, para nós não há saída à
esquerda e não há saída à direita; e também não adianta insistir em entrar para a
modernidade. Só há uma coisa para a qual
nós temos vocação: sermos o que somos,
sermos originais porque temos, mais do
que quaisquer outros, todos os componentes de base para tanto.
Em suma, o Brasil não é um bom candidato ao luxo, ele o é deveras à originalidade. De fato, o Brasil ainda não está pronto, como acreditava Darcy Ribeiro; ele está
quase. Construir uma cultura é tarefa para
500 anos ou mais, e nós já estamos bem
próximos de alcançá-los! Apesar da cegueira das nossas elites políticas, militares, empresariais, eclesiásticas e intelectuais, nós haveremos de chegar lá.
O Brasil apresenta uma gigantesca resistência à modernidade. Mas a fraqueza,
facilmente identificada, a resistência, de
certa forma inconsciente, é exatamente
aquilo que precisamos para a construção
de uma cultura nova. A elite insiste em
conduzir o Brasil para o chamado primeiro
mundo, acha que a destinação é o luxo,
enquanto a nossa destinação é a originalidade, a consolidação da própria cultura
brasileira, já em andamento. Isso já é visível. Muitas pessoas vêem e podem explicar com muita clareza, ainda que por uma
visão de sensibilidade do que de
intelectualidade como pode ser constata7
do na fala de Caetano Veloso :
“O Brasil tem medo de si mesmo. O Brasil
é por mais que se diga. Alguém disse que o
Brasil é o país do futuro, o futuro já chegou, já foi embora, e nós não acontecemos.
O Brasil não tem jeito, vai ser sempre o país
do futuro. Por mais que queira desmerecer
essa observação profunda, de Stefan
Sweig, o fato é que o Brasil é de fato uma
promessa de algo grande e original. E isso
7 - Entrevista de Caetano Veloso, à Jornalista Marília Gabriela e inserida no vídeo elaborado pela
EMBRATEL, onde Coelho de Sampaio apresenta sua Antropologia cultural.
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é fatal. Isso não é crença minha, não é uma
esperança, não é uma hipótese, isso é a
nossa realidade. Entendeu, nós somos uma
imensa extensão de terra americana, onde
um povo mestiço fala português. Quer dizer, qualquer coisa que funcione, será enormemente original, e isso mete medo a quem
não é brasileiro mas também a quem é brasileiro. – Nós não somos um país de covardes? – Nós somos como qualquer organismo. Uma tensão entre o desejo e a capacidade de crescer e se afirmar e o terror de
enfrentar a responsabilidade de faze-lo, ou
seja há uma auto-sabotagem muito grande.
Eu atribuo a essa tendência medrosa e autosabotadora, entendeu; que é muito freqüente nos brasileiros, por causa da própria
grandeza mesma da proposta de que o Brasil é, queira ou não, diga-se o que se quiser
dizer, entendeu, por causa de um dedo dessa proposta, dessa sugestão que o Brasil é
há uma reação ao que no Brasil de que se
afirma ...” (Coelho de Sampaio, 1993).
Para sintetizar uma questão importante
da modernidade, seu entendimento (lógico), é importante pensar que a modernidade
pode ser adequadamente entendida quando identificada a lógica que a governa.
No que diz respeito a sua superação, é
importante refletir que a superação da cultura da modernidade só será possível por
uma cultura mais poderosa. O Brasil, por
estar em fase de consolidação de sua cultura, tem todas as condições para realizar
tal superação (lógica).
A cultura brasileira, em construção, em
processo de plena criatividade e em consolidação, se devidamente tratada, pode
trazer esperança. Pode portanto construir
as condições básicas para a superação da
modernidade.
Ela está em processo de evolução. A
cultura brasileira, faz-se síntese do
jesuitismo, da cultura árabe, da cultura
lusa, do índio, de variantes da cultura
negra, de segmento da cultura nipônica,
de segmento da cultura italiana e de outros que vagarosamente vai se construindo através de um processo de profunda miscigenação cultural. Assim vai sendo consolidada a cultura brasileira ou a
cultura nova.
Essa cultura nova, brasileira, acena com
possibilidades que, se devidamente
conduzidas, podem possibilitar a superação da modernidade. Entretanto, ela
pode ter dois destinos: conduzir ao luxo
ou a originalidade. A nós todos, interessa o caminho da originalidade pois é
aquele que conduz, não à submissão mas
superação porque é, ao mesmo tempo um
passo a frente no processo de plena realização do homem.
O que se pode dizer, o que se pode
esperar ou, diante da modernidade, que
nos abraça, o que se pode pretender do
pensamento estratégico brasileiro? Não
podemos esquecer que a cultura é o campo de batalha da modernidade que cada
vez mais poderosa usa de todos os artifícios para destruir outras culturas e assim perpetuar-se.
O cerne da questão social brasileira, que
exerce forte influência sobre o pensamento brasileiro, já de há muito identificado
entre tantos outros por Sérgio Buarque
de Holanda, Fernando Novaes, José
Miguel Wisnik e Luiz Sérgio Coelho de
Sampaio, é como dito por Coelho de
Sampaio, é:
“A existência de uma certa incompatibilidade do seu processo de formação cultural com a modernidade” (Coelho de
Sampaio, 2002), assim expressa por
Fernando Novaes: “Ou nos modernizamos
e deixamos de ser o que somos ou nos
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61
mantemos como somos e não nos modernizamos”.
Trata-se da insistência generalizada de
que a modernidade, ali mencionada, consistiria para nós brasileiros, um novo e
promissor paradigma. Por isso, a
modernidade deve ser considerada como
um paradigma. Entretanto, não como nos
é transmitido. Trata-se de fato de algo
comprometido não com um paradigma mas
com o seu velamento. A insistência em
afirmar a existência benéfica do novo
paradigma, esconde o verdadeiro
paradigma. É de fato algo vinculado ao
paradigma propriamente mas à sua
ocultação. Em suma, toda esse alarido sobre a modernização brasileira, como de resto todo o discurso (ideológico) sobre a
modernidade é, no fundo, um discurso
acerca de qual opção de sujeito da ciência, o sujeito liberal, se intenciona deveras dissimular.
Assim, os rumos do pensamento brasileiro sofre as conseqüências dessa incompatibilidade bem como das influências da própria modernidade. Nas palavras de Flusser:
“Ou o Brasil é um país em pleno desenvolvimento (vale dizer, à beira daquele
abismo), ou o Brasil é país que dá origem a
uma nova maneira de estar no mundo”
(Flusser, 1998).
A partir daí fica fácil perceber a essência do problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor,
entre a formação cultural brasileira e a
modernidade. Este é verdadeiramente o
nosso grande conflito interno. Esse entendimento é crucial para o entendimento
da dificuldades ou da questão central que
envolve o pensamento brasileiro bem
como dos rumos a tomar.
O Brasil foi achado e foi iniciado na própria modernidade, que desde cedo, ainda
62
que não tivesse formado seu mercado interno, possuiu expressiva agro-indústria
exportadora. Esses fatos não tornam trivial
o entendimento de tal incompatibilidade.
Sabemos que o foco da discussão sobre a modernidade é sobre o sujeito da
ciência, com que estamos todos de acordo. Cada qual com suas variantes: a direita, desde que esteja ao serviço do sujeito
romântico; a esquerda para atender ao
sujeito coletivo, especialmente desde que
atenda seu representante absoluto; os
nacionalistas, na condição de que venha
para preservar o patrimônio físico e os
internacionalistas para os alienarem; os
positivistas também. Logo, a referida incompatibilidade não é nem poderia ser com
a própria modernidade mas contra o sujeito da ciência que a governa.
Isso ocorre devido a dois aspectos fundamentais: o primeiro, é a opção preferencial da grande massa pelo sujeito libidinal,
em função da forte herança cultural africana; o segundo é a opção preferencial de
todos os que exercem quaisquer posição
de ascendência social, política ou econômica, denominada por elites, pelo sujeito
absoluto enquanto representação do sujeito coletivo em função da forte herança
jesuítica sobre o sistema educacional brasileiro.
Isso nos mostra a existência de um paradoxo que não está onde muitos pensam
estar, mas em não estar em parte alguma.
Isso porque não se trata de um problema
de lugar, seja um lugar no mundo moderno, ou a tão falada inserção num mundo
dito globalizado com suas muitas interpretações, mas de decisão pragmática pelo
curto prazo, por uma modernidade ou pela
escolha e determinação de seguirmos nosso próprio caminho. Caminho este para o
qual estamos vocacionados. Estamos, há
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muito, vivendo um impasse: ou fazemos
nossa própria história ou os outros a farão para nós.
Cabe lembrar que a consolidação de uma
cultura se faz em séculos de sofrimentos,
injustiças, violências e um sem número de
tragédias. No caso do Brasil, como bem
nos lembra Coelho de Sampaio, já foram
muito bem pagos. Os cristãos-novos e
judaizantes perseguidos, ora pela fé oficial, ora pela inveja; os índios, desterrados,
caçados, escravizados e dizimados; os
negros, escravizados e submetidos à indignidade; os mamelucos, desbravando o
interior no processo de alargamento do
espaço territorial; os mulatos, cafuzos e
caboclos perdendo suas almas para legálas à formação da alma brasileira; multidões percebendo salários vis por toda a
vida; crianças desamparadas e idosos
desvalidos por todas as grandes cidades,
sem esquecer do saque com aparência de
legalizado a que o país tem sido submetido (Coelho de Sampaio, 2002).
E as conseqüências de um esforço
insano de inserção numa globalização
que se mostra econômica mas que é cultural e etnocida? Certamente a apresentação de um balanço final, seria terrível e
mesmo aterrorizador. Quanto o país já não
perdeu? Quanto já não regrediu? Quando representa o sofrimento, a perda de
esperança, de auto-estima, de amor-próprio e de um futuro melhor para as gerações que surgem? O único “benefício” é
o de perdermos também o século XXI, de
ficarmos todos ou quase todos com a
cabeça cheia ainda que mal feita. Cheia
de referências descabidas, impropriedades, de equívocos, de repetição sistematizada do mesmo e único tipo de pensamento que só nos inibe a evolução. Será
este, o verdadeiro custo Brasil, como afirma Coelho de Sampaio.
Já não temos dúvida que a modernidade
não se reduz a um modo de produção. Por
assim entendermos e aceitarmos fomos
absorvidos e envolvidos pela era do pensamento único. Não há solução nem à esquerda nem à direita. As conhecidas ideologias falharam todas e foram responsáveis por milhares de mortes e sofrimento
durante todo o século XX. Isso porque
pretenderam alcançar o capitalismo perfeito pela simples troca do sujeito da ciência. Esta, continua absoluta, impensada.
Coelho de Sampaio nos alerta que:
“A modernidade é antes de tudo uma
cultura em cujo âmago a ciência com o
seu inesgotável poder de cálculo de todas as coisas deste e d’outros mundos,
levado à últimas conseqüências. Se insistirmos em abdicar de pensá-la, deixando-a à vontade para pensar-nos,
como contemporaneamente acontece
por toda a parte – em todas as universidades, em todas as logias -, é porque
não nos interessa mesmo a salvação,
qualquer que esta possa ser” (Coelho
de Sampaio, 2002).
O século XX foi um século perdido. As
ideologias, com todo o sofrimento que
causaram à humanidade, apenas convalidaram a modernidade por sequer aproximarem-se do sujeito da ciência. Urge um
profunda crítica da ciência para possibilitar a crítica da modernidade. A crítica da
ciência deve respeitar seus métodos e resultados dirigindo-se à sua significação e
sobretudo, às suas ardilosas promessas.
Não se pode esperar que tal crítica
ocorra naturalmente pois como poderia
estar a ciência disposta à uma profunda
crítica da modernidade se é ela própria
seu fundamento.
Apenas uma cultura em condições de
superar a modernidade teria as credenciais
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para efetuar tal crítica. Isso porque possuiria condições de superá-la e portanto de
criticá-la sem por ela se deixar submeter.
Talvez ainda continuamos com os mesmos vícios, dependência ou quem sabe
síndrome de que não somos competentes.
Aliás, é o que querem que nós acreditemos.
Vejamos: o governo atual quer criar um grupo de notáveis, “uma assessoria de alto nível para, em contato com a realidade, identificar os rumos estratégicos do país enquanto produtor de riquezas a serem ofertadas
no mercado global”. “Será um staff de apoio
exclusivo do presidente da República, um
laboratório de idéias para o desenvolvimento do país e para direcionar a inserção do
Brasil no mundo”. Para viabilizar essa atividade, dentre outros, pretende utilizar quadros da Escola Superior de Guerra.
Já no século XX e ainda continuamos tal
como no século XVIII, ingênuos, dependentes de pensamento ou direção externa.
O pior é que isso é uma linha de ação do
governo federal. Todos sabemos que “ser
produtor de riquezas a serem ofertadas no
mercado global” é atributo econômico; logo
é meio e não destino. A identificação de
rumos estratégicos pressupõe um norte,
uma direção, um caminho para onde todos
unidos, queremos ir como nação. Nessa linha, todo o suor, sangue e lágrimas do povo
brasileiro se fará em benefício da economia
externa. Logo, o Brasil continuará sendo
uma economia dependente e o povo num
proletariado externo, sendo condenando a
perpetuação do subdesenvolvimento e do
pensamento dependente.
Realmente é fundamental a existência de
um grupo destinado a pensar o Brasil e
traçar os rumos da originalidade.
Contribuição à discussão das bases fundamentais à um pensamento estratégico
original
64
Vive o mundo, neste início de século
XXI, um processo contundente e
determinante, em que se constrói a uniformização do pensamento, a subordinação
de culturas, a padronização dos modos de
ser-com-o-outro, de ser-no-mundo, de serfrente-ao-absoluto, que tudo iguala. Por
isso urge dar voz e vez a diferença. Diferença pela criatividade e pela contestação
e pela força de uma proposta de um novo
e profundo modo original de pensar, logo
de ser, genuinamente brasileiro.
Triste porém esperançosa a realidade brasileira. A dualidade a que estamos submetidos, um pé na modernidade e outro na
originalidade nos trás sofrimento. Porém
não nos coloca definitivamente numa condição que nos tira a condição de continuar
seguindo nosso destino manifesto de sermos quem irá superar a modernidade.
Urge que nos conheçamos e nos compreendamos melhor. As ideologias que
abraçamos não nos trouxeram esperança,
apenas sofrimento e desesperança. Todas
elas visavam apenas a substituir o sujeito
liberal da ciência, pelo sujeito coletivo ou
pelo sujeito romântico ou quantos sujeitos surgissem. Todas pretendiam alcançar o capitalismo perfeito numa ideologia
perfeita que sob certo aspecto, repetiram
a “caça às bruxas”, desta vez com muito
mais mortes, sofrimento e violência.
Como vimos anteriormente, uma concepção da história da cultura como autodesvelamento do ser lógico do homem, é
o bastante para re-historicizar a
modernidade e mostrar o horizonte de sua
possível superação.
Observando a história do Brasil, podemos perceber o que o faz marginal é também o que o faz resistir à modernidade. O
Brasil se caracteriza pela confluência de
inúmeras e bem diferentes culturas, que
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se por um lado, dificulta sua modernização, por outro lado, vem se constituindo
na base necessária à estruturação de uma
cultura realmente nova e única. Por isso o
Brasil possui duas destinações possíveis:
o luxo ou a originalidade.
Alertar para os chamados novos
paradigmas, em especial a Globalização
que é essencialmente cultural ainda
que se queira ver como econômica, que
torna-se instrumento de interferência
cultural;
As ideologias, por não criticarem o devido, não possibilitam qualquer esperança. O século XX foi morto pela impotência
e a traição das ideologias. Portanto, o afastamento de qualquer ideologia é princípio
a ser seguido, mesmo perseguido.
Atentar ao alerta do povão, íntimo defensor da cultura e reagir ao canto da sereia, na forma de convite ao luxo e mergulhar de coração e mente aberta na originalidade brasileira;
Entendo que o Brasil tem todas as condições para se constituir, no único e real
perigo para a cultura dominante. Por isso,
é fundamental que seja desenvolvido para
o Brasil uma estratégia cultural para sobreviver até a chegada do momento adequado à superação da modernidade.
É chegada a hora de decidirmos seguir
nosso próprio caminho, de construir nosso futuro, de fazermos nossa história, de
rejeitarmos os presentes de grego oferecidos pela modernidade e seguirmos unidos pela originalidade que faz parte da
genialidade brasileira.
Assim sendo, entendo que faz-se necessário novas bases para a formulação
do pensamento brasileiro. Para tanto, podemos sugerir:
Difusão do processo de formação cultural e história da cultura brasileira explicitando
o papel nela exercido por todos que contribuíram para formá-la, os negros, índios, caboclos, mamelucos e brancos;
Perceber a artimanha da modernidade,
que finge ser sua própria posteridade apelidando-se, avant la lettre, de pósmodernidade;
Abraçar por todas as razões e com todos os meios, a ciência. Entretanto, libertando-a de qualquer sujeito para que
fique sempre a serviço do ser humano,
por quem foi criada e para quem deve
contribuir.
Em face ao que resta da modernidade, e
por isso, uma fase difícil e perigosa a superar, urge formular uma estratégia de sobrevivência para que tenhamos condições
de nos encontrar com nossa destinação.
É uma fase em que o fracasso significará a
morte, por isso é necessário sobreviver a
qualquer custo.
Apenas preservando a cultura e investindo em ciência, poderemos optar pela
originalidade e assim podermos escrever
nossa própria história e portanto inaugurarmos uma profíqüa etapa no processo
evolutivo da humanidade.
Abstract
The author analyses modernity,its incompatibility with brazilian cultural construction
and shows the basis for proposals to the formulation of an original strategic brazilian
thinking.
Keywords: Modernity, Brazilian cultural Making, Strategic Thinking, Ideological Issues.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
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66
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003
O Brasil e a Área de
Livre Comércio das Américas
Manuel Cambeses Júnior
Coronel-Aviador da Reserva da Força Aérea; Conferencista Especial e membrocorrespondente do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra.
Resumo
São discutidas as possíveis conseqüências adversas da eventual participação
do Brasil como integrante da Área de Livre Comércio das Américas.
Palavras-chave: ALCA, Área de Livre
Comércio das Américas, Economia regional, Brasil.
A participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), a
partir de 2005, terá efeitos decisivos e negativos sobre a possibilidade de construir
uma sociedade, uma economia e um Estado mais justos, prósperos e democráticos,
no Brasil.
O nosso país não é, simplesmente,
mais um entre os 35 Estados da Américas. O Brasil, os Estados Unidos e a
China são os únicos três países que se
encontram na relação dos dez países de
território mais extensos, maior população e de PIB mais significativo no mundo. Além disso, no Brasil não há situação grave de conflito étnico ou religioso e existe um só idioma. Por outro lado,
o Brasil se caracteriza por extraordinárias disparidades de renda, riqueza,
acesso à tecnologia cultura e poder
político. E, também, por uma crônica e
crescente vulnerabilidade externa, não
só econômica, mas também política,
militar e ideológica.
Assim, o Brasil reúne os requisitos potenciais para se situar entre os países
mais avançados economicamente, mais
respeitados politicamente, mais seguros
dentro de suas fronteiras e mais democráticos. Porém, somente conseguirá obter êxito, no concerto das nações, se as
suas elites políticas, econômicas e culturais forem capazes de enfrentar, com firmeza, os desafios das disparidades e
vulnerabilidades, mobilizando democraticamente a população.
Essas tarefas são inadiáveis e urgentes, pois as políticas econômicas, sociais
e de poder, de cunho neoliberal, agravaram as disparidades internas, acentuaram
a vulnerabilidade externa, esgarçaram o
tecido social, debilitam o Estado,
desnacionalizaram a economia e enfraqueceram a democracia.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.67-69, jan/dez. 2003
67
De outro lado, o cenário internacional
se caracteriza pela concentração de poder
econômico e militar no centro do sistema,
pela expansão da exclusão social, da instabilidade política e dos conflitos armados na periferia e, finalmente, pela emergência de um mundo multipolar, onde os
Estados Unidos terão de enfrentar a influência crescente da União Européia e da
China, e, em menor escala, do Japão, da
Índia e da Rússia.
A ALCA não é um mero projeto econômico e comercial dos Estados Unidos. Ela
é parte essencial de sua estratégia global
para defender os interesses norte-americanos econômicos e políticos – neste
mundo multipolar e conflituoso. A ALCA
tem como objetivo incorporar a economia
dos países latino-americanos à economia
americana, através da eliminação gradual
– porém definitiva, formal e legal – ao comércio de bens e serviços, à movimentação de capitais e às atividades das megaempresas americanas, através da aceitação de regras mais de proteção aos detentores de patentes e direitos autorais. Na
prática, se consolidariam, por tratado, os
atuais programas econômicos neoliberais
e os Estados renunciariam à sua capacidade e ao seu direito de exercer, com eficácia, suas políticas comercial, industrial e
tecnológica, para promover o desenvolvimento. Na esfera político-militar, a ALCA
e a Iniciativa das Américas tem como objetivo desarmar a região, assegurar a sua
presença militar direta e assegurar o alinhamento latino-americano com as iniciativas e posições políticas americanas e
confrontos com os outros pólos de poder
com outros pólos de poder com os países renegados da periferia. A América
Latina e o Brasil passarão, com o advento, com o advento da ALCA, a serem apêndices subordinados aos Estados Unidos
68
da América, renunciando a toda expectativa de uma participação mais ativa no sistema internacional em benefício da sociedade mundial.
O Mercosul, nesse quadro, praticamente desaparecerá em relação aos Estados
Unidos e ao Canadá, os dois grandes países desenvolvidos do Hemisfério Ocidental e integrantes do NAFTA. O
Mercosul, apesar de todos os esforços
retóricos para aprofundá-lo, através de
políticas comuns, ou de ampliá-lo geograficamente, com a inserção de países
como Chile, a Bolívia e a Venezuela, é ainda essencialmente, uma área de livre comércio entre Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai e, uma união, aduaneira cujo
instrumento central é a Tarifa Externa
Comum (TEC) entre esses quatro países
em relação a todos os demais.
Com a efetivação da ALCA e a eliminação gradual, entre dez e quinze anos, a
partir de 2005, das tarifas e medidas nãotarifárias incidentes sobre o comércio das
Américas, a TEC deixará de existir, a tarifa
passará a ser zero para os produtos provenientes dos Estados Unidos e Canadá,
países detentores de maior pujança industrial e capital de giro.
Assim, as mega-empresas norte-americanas estarão em pé de igualdade com as
empresas brasileiras nos mercados do
Mercosul, inclusive no Brasil. O Mercosul,
como área de livre comércio, se dissolverá
na ALCA, e, como união aduaneira, não
existirá a não ser países extra-ALCA. Essa
situação alimentará fortemente, as pressões para um acordo de livre comércio com
a União Européia. Celebrado este acordo,
na prática, o Mercosul terá desaparecido
de todo, tendo em vista a pequena importância relativa do comércio do Mercosul
com a África e a Ásia.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.67-69, jan/dez. 2003
De outro lado, a estratégia americana de
construção acelerada da ALCA minou o
Mercosul (e a política brasileira) ao atrair
o Chile, a Argentina e o Uruguai para negociarem acordos bilaterais. A Argentina,
através de seu ex-Ministro Domingo
Cavallo, não só “revogou” o Mercosul
para o setor de bens de capital como expressou seu desejo de transforma-lo em
um esquema mais avançado de integração:
uma zona de livre comércio.
Com a ativação da ALCA, as repercussões sobre a economia brasileira serão
contundentes. É correto que algumas empresas e alguns setores exportadores brasileiros se beneficiariam com o melhor
acesso ao mercado norte-americano. Porém, o nível médio de eficiência, da
competitividade (em termos de dimensão,
de capacidade organizacional, de acesso
a financiamento, de dinamismo
tecnológico) de cada setor da economia
americana é bem superior ao correspondente nível brasileiro. O resultado será
uma maior expansão das exportações
americanas para todos os Estados do
Hemisfério (inclusive para o Brasil) do
que das exportações brasileiras para o
Hemisfério (inclusive para os Estados
Unidos). O resultado para a balança comercial brasileira – e para o fortalecimento de novas empresas – será grave e muito negativo. De outro lado, em uma área
de livre comércio, os investimentos tendem a se concentrar na região mais dinâmica do conjunto, em termos de mercado, infra-estrutura, dinamismo
tecnológico, e qualificação de mão-deobra, como ocorrerá, indubitavelmente,
no caso da ALCA, com os Estados Unidos. Assim, novos investimentos tenderão a se instalar nos EUA para abastecer
o principal
mercado e exportar para
os demais países e, o mais grave, antigos
investimentos estrangeiros podem migrar
para o território norte-americano, pela
mesma razão.
Diante deste cenário prospectivo nada
promissor, podemos inferir que a açodada
ativação da Área de Livre Comércio das
Américas, a partir de 2005, poderá acarretar sérios transtornos à nossa economia e
carcomer as bases em que se sustenta o
Mercosul, colocando todo o hemisfério à
mercê do usufruto da superpotência
hegemônica do Norte.
Abstract
The author discusses possible adverse consequences pertaining to Brasil’s eventual
joinning to FTAA
Key words: FTAA, Free Trade America Area, Regional economy, Brazil.
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70
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Bioética e Sociedade
Paulo César Milani Guimarães
Professor de Filosofia e membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra.
Este artigo reproduz conferência do autor na Faculdade Eclesiástica João Paulo II, no
Rio de Janeiro, a 24 de novembro de 2003.
Resumo
O artigo procura demonstrar a importância da interpelação ética face aos megas
projetos contemporâneos considerados,
sem exceção, invasivos, expropriadores e
extravagantes (como o PGH-projeto
genoma humano-ou o Manhattan) voltados todos, exclusivamente, para objetivos
estratégicos ou econômicos.
Ao discorrer sobre o assunto, o autor
discute a própria possibilidade da reflexão ética no quadro cultural contemporâneo e traça considerações sobre o agir
moral diante dos projetos e práticas ligados à biologia molecular.
Palavras-chave: Ética, Transformações,
Tecnologia, Ideologia, PGH (Projeto
Genoma Humano).
1 - Introdução
Os significativos avanços no campo da
engenharia genética - ou bioengenharia –
que se entende como a capacidade de intervenção humana deliberada nos processos de síntese vital ou na linguagem genética, colocaram a bioética no centro das
preocupações hodiernas.
Naturalmente que a biotecnologia de há
muito age, associando, degradando ou
sintetizando componentes orgânicos,
contudo representa algo muito diferente – e
potencial de riscos muito menor – do que as
biotecnologias engenheiradas, quer dizer,
aquelas que trabalham com genes, ou seja,
as que manipulam as moléculas da vida.
Toda gente sabe que a vida inicia-se há 2
bilhões de anos, neste planeta com cerca de
4,5 bilhões, contido num cosmo de aproximadamente 10 a 15 bilhões de anos. E toda
gente sabe que o mecanismo de seleção
natural, atuando ao longo desses 2 bilhões
de anos, funcionou de modo semelhante ao
que agora se pretende fazer (com a
transgenia), inaugurando na História a era
da seleção não natural das espécies, que
alguns autores denominam (esse conjunto
de experiências) como o 7º dia da criação,
ou seja o período da reforma da Criação pelo
homem, visando objetivos práticos de ordem econômica, social ou estratégica. É recente entre nós a discussão pública sobre
soja transgênica e parece evidente a preocupação de muitos especialistas quanto ao
impacto que pode representar a introdução
no ambiente de milhões e bilhões de indivíduos geneticamente manipulados que, no
caso, interferirão também na cadeia alimentar, de reconhecido potencial propagador.
A cautela justifica-se porque são experiências sem precedentes e sem possibilidade de controle de seus efeitos,
que serão projetados no tempo e no es1
paço. Hans Jonas sugere, neste tipo de
questão, que se convém guiar por uma
1 - “The Imperative of responsibility…”, Chicago Univ. Press, 1984, pág.31
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ética de preservação e prevenção, mais
do que por uma visão prospectiva de
progresso e perfeição, derivada da profecia da felicidade.
2 - As bases do Mundo Moderno
Costuma dizer-se que o pensamento
moderno, e por conseqüência o pós-moderno de hoje, deriva de três grandes correntes da filosofia: o racionalismo
cartesiano, o empirismo inglês e o idealismo alemão.
O principal representante do primeiro é,
evidentemente, Descartes(1596-1650), mas
inclui, sem dúvida, Spinoza, Malebranche
e Leibniz – que morreu em 1716.
O segundo está representado por Bacon
(1561-1626), mas inclui Locke, Berkeley e
Hume – que morreu em 1776.
O terceiro inclui figuras como Kant (17241804), Fichte, Hegel e Schelling – que morre
em 1854.
São três séculos em que ocorre a preparação de tudo que viria depois, numa espécie de movimento das idéias, num mesmo corte epistemológico e segundo inspirações semelhantes.
Com Descartes, a filosofia abandona a metafísica, que é a via do ser, e se
encaminha para a gnosiologia – que é
a via do conhecimento – e desemboca
na linguagem e nos significados (via
fenomenológica, hermenêutica, semântica), com importantes conseqüências para a sociedade e para a pessoa.
E, Descartes, sem favor, será o centro
dos debates da época e tudo parece
girar em função de seu pensamento,
motivo até de indagações contemporâneas.
Para os fins desta exposição, convém
fixar que todo esse extraordinário movimento de idéias não incluía nenhuma
preocupação metafísica, antes pelo
contrário, bem como pretendia substituir a lógica formal, dedutiva e
silogística, da escolástica aristotélica,
por uma nova lógica (“Novum
Organum”,de Francis Bacon), fundada
na observação e na experiência, cuja
preocupação principal era a purificação
da consciência daquilo que chamava de
“ídolos” – pré-conceitos, estereótipos,
etc., o que incluía as afirmações do passado – que dificultavam o espírito na
descoberta da “verdade”.Tratava-se de
um outro modo de conhecer, ordenado
a novas certezas, que excluía de início
qualquer dúvida metafísica e se limitava ao campo do empírico.
Demais, a preocupação de
instrumentalizar a vida intelectual, de
pô-la a serviço de resultados, de tudo
pensar “sub specie temporis”, terá enorme influência na cultura do Ocidente
que, face às novas preocupações do
pensamento, via recuar para segundo
plano o que fora até então o fundamento, quer da vida social quer das suas
2
doutrinas éticas .
Nenhuma civilização sobrevive sem um
fundamento universal que a motive do
ponto de vista das idéias e dos ideais e a
oriente do ponto de vista ético.
O Ocidente começou a perder, não a
universalidade do Cristianismo, mas a sua
influência, e tentou sucedâneos, ora no
2 - Menos se falará de um gênio extraordinário como Pascal e muito se dirá do não menos genial
Descartes, assim como no caso de Kierkegaard em relação a Hegel.
72
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3
Iluminismo ou Enciclopedismo , ora o sistema de Hegel que seria estuário e encruzilhada de toda filosofia anterior, então
chamada de “pré-história da filosofia”, sistema importantíssimo que leva Ludwig
Feuerbach a dizer que se trata não de um
capítulo da História da Filosofia, mas de
História sem adjetivos, porque se trata de
ela própria tomando consciência de si
mesma, na descoberta de que a razão é
história e a História, racional, que o Espírito é o tempo, a cronologia é lógica, tudo
se explica no tempo e só em função do
tempo pode ser entendido e compreendido – ou seja, afirma a historicidade da condição humana, característica do
hegelianismo e, depois, do marxismo. Teria realizado após milhares de anos, o sonho da razão: a apreensão pelo pensamento do homem do real em sua totalidade, ou
da totalidade do real. Seria o desfecho da
filosofia ocidental, inaugurando a era da
dialética, da qual Hegel foi o sistematizador.
Tudo isso terá importantes conseqüências na História do Ocidente e do mundo
– que será outro depois das transformações ocorridas nesse patamar, entre os
séculos XVII e XX, nos quais Sartre identifica três épocas de criação filosófica, com
o descobrimento global da razão analítica
e com a dialética.
Curioso que vão os estudiosos construir critérios para afirmar a importância de
um sistema ou pensamento, e acabarão por
premiar Hegel e Marx, porque a “importância” teria que ser proporcional à universalidade e à influência, e acabam por
concluir que Máo-Tsé-Tung podia ser
hegeliano e marxista sem deixar de ser chinês – prova de que os sistemas dialéticos
de Hegel e Marx seriam a expressão da
própria razão humana e não apenas de uma
razão grega, francesa ou alemã -, enquanto nenhum de nós poderia ser
confucionista ou taoísta, ou zoroastrista
ou mesmo maometano, a não ser por anacronismo, extravagância ou morbidez. E
recusam-se a identificar o mais universal,
o mais influente e o mais completo de todos os referenciais: o Cristianismo.
Toda essa história é no fundo a história
da razão instrumentalizada pela vontade
do homem que agora se entende emanci4
pado e, assim, não reconhece mais limites para sua ação e iniciativa. Nenhuma
questão lhe será vedada, nenhum território é sagrado, nada lhe é proibido, exceto
por força de lei positiva, que mais não é,
segundo fórmula consagrada da Declaração dos Direitos do Homem e do Cida5
dão , da Revolução Francesa, que a expressão política da “vontade geral”. E esta
mais não é do que a manifestação vitoriosa da maioria, entenda-se de maiorias eventuais em casas legislativas, suprimida qualquer consideração acerca de bens e valores indisponíveis.
3 - Basta ler o Discurso Preliminar de D’Alembert, para se verificar a importância de Descartes e da
confluência do cartesianismo e do empirismo inglês – “Discours Préliminaire”, parte inicial do
Encyclopédie ou Dicionaire Raisonné dês Sciences, dês Arts e dês Metiers ( Enciclopédia ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e dos Ofícios), elaborado por D’Alembert e Diderot, publicado em
1751.
4 - A humanidade teria alcançado a maioridade, segundo Emmanuel Kant
5 - Este documento que tornou-se um clássico para as democracias modernas, foi aprovado no dia 26
de agosto de 1789, pela Assembléia Constituinte, no contexto inicial da Revolução Francesa. Seus
princípios iluministas tinham como base a liberdade e igualdade perante a lei, a defesa inalienável à
propriedade privada e o direito de resistência à opressão.
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O Direito natural pertencia à ordem das
coisas do passado e não haveria mais limites de qualquer espécie... Era realmente a
maturidade do homem que acolhia ingenuamente a denúncia de que, ao contrário da
crença generalizada, fora ele, homem, que
fizera Deus à sua imagem e semelhança, cujo
contrário vinha sendo a base da construção mais alienante da História: a religião.
Homem e sociedade eram agora não apenas agnósticos, mas ateus militantes. O
ateísmo postulatório da vontade era e é
uma tremenda força a impulsionar o homem para um destino incerto do qual se
supõe, equivocadamente, senhor.
Esse tremendo dinamismo vem do fato
de se ignorar que a liberdade do homem é
uma liberdade para realização de um fim,
“tensa no sentido da plena realização de
nós mesmos”, ou seja, que implica um projeto que completa o homem, pois que o
homem, ao contrário de tudo mais que o
serve diretamente no ambiente natural, é
obra parcial da natureza, incompleta. A
continuidade e complementação da obra
deixada incompleta pela natureza são tarefas de sua livre iniciativa, expressões
possíveis de sua liberdade. A liberdade é,
assim, uma função antropológica e
ontológica, além de ética e jurídica.
“Foi dada ao homem para que possa realizar-se a si mesmo, o próprio ser; para
que leve ao cumprimento pleno o que a
natureza apenas iniciou ou esboçou nele.
Neste ponto Sartre enxergou bem: A liberdade permite ao homem ser o artífice de si
6
mesmo” ( mas não o seu Criador).
A liberdade aberta, para qualquer fim,
põe em cena esse grande agente empreendedor, que nada mais pode deter: o homem contemporâneo.
3 - As transformações:
a tecnologia e sua razão
ideológica
As transformações modernas configuram um mundo inteiramente diferente do
passado. Agora as energias humanas e a
inteligência se orientam para a solução de
problemas práticos. Voltam-se para o mercado, e um fantástico entusiasmo, que vem
do lucro (agora sem limite não há mais lei
de usura, nem as idéias de ganho lícito, de
salário justo ou de bem comum, consideradas idéias “daquele passado”) vai levar
a um dinamismo sem precedentes que tem
algumas conseqüências, talvez a principal delas a liberação dos meios dos fins,
coração da revolução moderna.
Para essa liberação era necessário que
houvesse excesso – os meios devem estar em excesso dos fins – e é esse excesso
que infundirá ao novo mundo a sensação
inédita de liberdade, a noção de poder,
como uma espécie de contínua transgressão que permite tudo expandir e tudo recomeçar. Enquanto os suprimentos de
madeira para combustão permaneceram
estáveis, nenhum excesso era possível. O
acesso a grandes fontes de energia levou
à época dos meios excessivos, meios liberados dos fins e da necessidade imperativa de alcançá-los, quer dizer, à formulação de uma ordem social inteiramente
nova, base do futuro negócio total. Essa
mudança significou novas formas da sociedade – derivadas da dissolução ou atenuação dos grupos naturais, dentre eles a
família e toda sorte de grupos subsidiários e organizações comunitárias – o que
levou à atomização social (sociedades de
indivíduos), à fragmentação da existência
dos indivíduos, segundo processos que
6 - Battista Mondin
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dispõem que cada um atua separadamente, como perito de uma parte, sem consciência dos efeitos no todo, num mundo
onde não se fala mais nos direitos dos nãosujeitos da ação e no qual o sentido da
ação está sempre no futuro, em estado de
“ainda não”. Naturalmente que a razão ideológica da sociedade tecnológica é a busca de melhoria, pela substituição de uma
ordem de incertezas por outra ordenada,
sensatamente organizada em substituição
às condições imprevisíveis da natureza.
Contudo, isso pode ser verdadeiro em relação a uma parte, ou partes de um todo.
Eis que o processo científico e
tecnológico cuida sempre de partes, porque emprega uma estratégia de focalização
“de perto”, única pela qual o problema
pode se tornar tarefa, após ter sido retirado de suas múltiplas conexões, que se tornam, assim, questão de fundo. Um especialista em neurologia cuida de problemas
de circulação cerebral; os efeitos negativos da medicação sobre o aparelho digestivo e sobre os rins são descritos como
efeitos colaterais.
É assim que as chamadas “ordens localizadas” produzidas por especialistas ou
peritos são expropriações do equilíbrio do
todo, uma espécie de melhoria restrita, que
pode ou não beneficiar o todo, mas que
produz necessariamente efeitos colaterais
no que se refere ao equilíbrio geral. A única totalidade reconhecível pela tecnologia
- que ela produz e torna invulnerável – é a
totalidade da própria tecnologia, ela tomada como um sistema fechado que considera corpo estranho tudo aquilo que não
seja conforme sua natureza. Convém observar que a solução de um problema criado pela tecnologia só tem solução por mais
tecnologia, e nenhum problema material
contemporâneo (e talvez até espiritual)
pode ser obviado fora da tecnologia atualizada, porque esse esquema também ex-
clui o regresso, de modo que a tecnologia
atual expulsa toda outra semelhante do
passado.
Assim, também as pessoas de hoje, ou
os indivíduos como agora se prefere dizer,
são objetos tecnológicos e ganham animação pela tecnologia, eis que foram analisados e fragmentados e depois re-arranjados (processo de sintetização) para se
tornarem bons atores da nova ópera, segundo os ditames necessários da divisão
do conhecimento especializado.
Aqui todos se lembrarão do panorama
social asiático dos dias atuais, onde os
efeitos da mudança trans-tecnológica produziu resultados mais nítidos do que em
qualquer outra parte.
4 - O sacrifício do “eu moral”
Costuma-se dizer que o eu moral é a
maior vítima da tecnologia, porque não
pode sobreviver à fragmentação no âmbito sócio-técnico e a conseqüente fragmentação da personalidade e, ainda, porque
não encontra lugar num mundo regido
pelo binômio “anseio-gratificação rápida”.
Os problemas são bastante conhecidos,
desde a substituição dos princípios éticos por padrões de eficiência e responsabilidade moral por procedimento e rotinas
técnicas, até o fato de não haver confrontação com o Outro, desaparecendo a possibilidade de reação e reciprocidade.
É árduo trabalhar moralmente por um
Outro que não é visto, por meio de ações
fragmentadas cujos efeitos, de conjunto,
estão diferidos no tempo e no espaço. O
sujeito desconhece de si e do Outro a noção de “pessoa total”. Ele é apenas o portador momentâneo de uma das muitas “tarefas” e toda ação está orientada pela tarefa e desconhece qualquer ponto de orientação fora da relação “tarefa-agente que
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a empreende”. Como o Outro não é alcançável, desaparece toda possibilidade de
compaixão e são suprimidas, por incompreensíveis, as paixões não-racionais e
não utilitárias.
A moralidade que herdamos – a única
disponível – é uma moralidade que requer
proximidade, relação, a vista do Outro (reciprocidade), e, assim, é incompetente
para funcionar numa sociedade em que
toda ação importante está à distância, e
agente e paciente ignoram-se
metafisicamente.
7
Hans Jonas ensina que “o universo ético é composto de contemporâneos e vizinhos”, que, evidentemente, interagem.
Ora, a maioria das ações que contêm riscos são unidirecionais; não são intercâmbios. Não podem ser limitadas ou contidas no domínio dos contratos.
Não existe o Outro como tal e nunca
antes ele foi tão “pobre, vulnerável e sem
8
poder” : mesmo os nascituros – que
são “atuais e presentes” - não têm como
reclamar seus direitos, não têm voz própria e, assim, a reciprocidade está fora do
alcance deles. Quanto mais o direito à vida
de muitos, pobres e distantes, num planeta a caminho de vários impasses ecológicos. Sem reciprocidade, sem o Outro, o
“eu moral” entra em colapso.
No que concerne ao estudo da conveniência de dada ação e da avaliação de
seus efeitos de médio/longo prazo, está
patente que ninguém vai deter-se para examinar esses aspectos do empreendimento
tecnológico, ainda porque não há nenhum
limite reconhecível para ele, exceto a im-
possibilidade física e a insuficiência do
saber, ambos vistos como contingências
a serem superadas. Tudo que pode ser
feito, será feito e nenhuma consideração
moral poderá deter a aventura humana.
Tudo que for viável, terá necessariamente
que ser legitimado. A factibilidade é a única norma e apenas questões ligadas à eficácia e à rentabilidade são levadas em conta. As coisas não se realizam mais porque
seriam boas, mas porque são possíveis e
nada pode impedir o “avanço”.
Já se viu que a abundância ( e o desperdício) de meios ditou a tirania dos
meios ou a chamada “rebelião dos meios”, de modo que existindo a técnica, seja
do que for, ela terá que ser usada, sendo
descabida a discussão sobre a
moralidade da ação, sobre o bem e o mal
a respeito do assunto. De certo modo,
adulterou-se a sensibilidade moral. Também nada mais existe de fixo ou imutável,
menos ainda é aceita a idéia de um
referencial permanente, fixo, de caráter
axiológico. A lei natural foi ab-rogada,
situação que Cícero tanto temia, sobre a
qual advertia seus contemporâneos:
- “existe certamente uma lei verdadeira,
congruente com a natureza, conhecida de
todos, eterna... Não é lícito....derrogar algo
dela...Nem podemos eliminá-la... ela não é
uma em Roma, e outra em Atenas, uma
agora e outra depois; mas uma só lei, eterna e imutável, que abrange todos os ho9
mens de todos os tempos” .
A consideração responsável dos riscos
futuros pode ser uma posição útil, mas os
riscos não podem ser administrados como
7 - “ Philosophical Essays: From ancient creed to technological man” – Prentice Hall, Englewoods
Cliffs, 1974
8 - Emmanuel Levinas(1906-1995)
9 - Cícero, Marcus Tullius (106-43 AC) – “De Republica”, lib III, cap. 22
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as crises (como pensam alguns teóricos),
simplesmente porque crises são atuais e
riscos estão no reino da incerteza e dos
enredos prováveis. De resto, jamais poderiam ser avaliados com facilidade; de vez
que invisíveis para o observador comum,
além de que seus concomitantes estão
diferidos no tempo e no espaço. E ainda,
essa avaliação agora depende dos recursos da ciência (teorias, modelos) e,
freqüentemente de instrumentos
tecnológicos, além de arsenal estatístico,
porque o risco é sempre função de probabilidade, o que faz a sorte da vítima potencial , nem perfeitamente segura nem predestinada, o que pode ser útil para companhias de seguro mas não atende aos
anseios do sujeito. Cria, porém, a ilusão
de um certo controle do destino, algo caro
ao homem de hoje. A compreensão pro10
posta por Ulrich BecK é a visão pós-moderna do mundo como um jogo e do estarno-mundo como jogo, e bem corresponde
ao sentir de muitos de nossos contemporâneos.
5 - Possibilidade da
Reconstrução Ética
Como vimos, o vigoroso movimento de
idéias no Ocidente, possibilitou o extraordinário poder material que se tem hoje, mas
foi também, aos poucos, causa da diluição
do vigor da fonte de onde emanaram todas
as doutrinas éticas de nossa civilização. O
chamado “movimento moderno” como que
liquidou com o apoio onde se fundava
conceitualmente a ordem moral, de modo
que hoje alguns setores de nossa comum
humanidade possuem um fantástico poder,
10
mas - como nota Toynbee - não dispõem
de bondade suficiente para utilizá-lo e, assim, milhões de irmãos desses mesmos po-
derosos padecem de miséria, doenças, ignorância e efeitos de guerras.
A própria prática social foi afetada de
modo radical: assim como o homem hoje
não trabalha mais num prolongamento
de sua casa, mas alhures, também as relações familiares foram modificadas,
sendo difícil agora dar-se o longo e necessário aprendizado da relação intimidade-limite, básica para se compreender
a limitação da liberdade face aos direitos do outro. Os lares perderam a ciência de uma pedagogia da fraternidade e
expostos à comunicação televisiva estão produzindo espíritos racionais, frios
e rivalizantes, fechados à solidariedade.
O ambiente em geral não é, pois, favorável à experiência ética e nem parece sentir sua necessidade.
A pretensão moderna dos filósofos da
revolução em França que queriam revelar
às nações os fundamentos da moralidade,
suprimindo toda Revelação da Igreja – o
código ético fundar-se-ia na própria “natureza do homem”, que Rosseau proclamava boa -, foi totalmente desmoralizada
pela evidência da impossibilidade de ser
alcançada uma harmonia, superação dos
conflitos, por meros ajustes no comportamento dos homens e das nações.
Aliás, se há algo atual, pós-moderno, é
a descrença total na possibilidade de um
semelhante código ético (fundado na natureza do homem), não ambivalente e não
aporético, onde estaria resolvida a contradição entre a autonomia da ação do indivíduo e a heteronomia da ordem, e que
fosse dotado de universalidade e sustentação. E essa descrença, essa rejeição de
maneiras tipicamente modernas de tratar
as questões morais, abre espaço para outras considerações que facultam a recons-
10 - “Risk Society:towards a new modernity”, Sage, Londres, 1992
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77
trução das bases do agir moral, segundo
uma perspectiva pragmática (vantagem ou
benefício do agente), mas à qual não falte
a iluminação da fé.
“Descalça as sandálias, porque o lugar
que pisas é sagrado” (Êx. 3.5), é a advertência de Javé a Moisés referindo-se ao
ser humano, mesmo um embrião, mostrando que a vida humana, da concepção ao
túmulo, é território sagrado, privativo do
Criador. E a Igreja, por sua vez,
reiteradamente nos adverte da sacralidade
da vida e do primado da Pessoa sobre tudo
mais, representando suas posições a plataforma mais avançada na luta por normas
jurídicas internacionais que façam respeitar a vida humana( por exemplo: a necessidade de consentimento da pessoa sobre a
qual se projeta alguma intervenção; a interdição do corpo humano para fins comerciais; a proibição da produção de embriões humanos para fins experimentais,
etc., conforme artigo de Giorgio Filibeck
publicado no L’Osservatore Romano de
18 de fevereiro de 1995).
Os grandes temas da Ética precisam
ser retomados com urgência, tais como
direitos humanos, justiça social, cooperação internacional com os pobres, direito do trabalho, constituição familiar, etc,
etc, mas não se fará isso sem uma ampla
discussão a respeito do modo como a
vida social e política vem sendo
estruturada. Somente a revisão de nossos objetivos sociais e de nossas prioridades – hoje representando interesses –
permitirá condições para a descoberta dos
valores. É urgente a revisão dos esquemas de valoração dentro da sociedade e
seus sistemas de legitimação. A crise
não é de valores, mas do tipo de organização social que submete a primazia da
pessoa ao interesse, e tudo subordina ao
78
lucro a qualquer preço. Semelhante clima
sócio-cultural, enquanto predominar, não
deixará lugar à vida, à inocência, às paixões desinteressadas e desumanizará
cada vez mais a humanidade.
Se em tudo neste domínio a patética
moral ressoa como algo inútil, torna-se
indispensável a intervenção já referida no
modo de organizar a vida social e na definição de seus fins; no que se refere à
bioética, a questão é ainda mais complexa,
porque sendo um daqueles domínios
especializados, onde os efeitos estão diferidos no tempo e no espaço e o paciente
muitas vezes oculto ou indeterminado,
torna-se problemática a formulação ética
e a delimitação do agir moral.
6 - A Bioética
No domínio da Bioética, vamos escolher um problema e examiná-lo, de vez que
a natureza complexa da questão requer este
procedimento. Embora em nosso País essa
discussão pareça alienada - de vez que
há questões urgentes no âmbito da justiça social e a questão do abortamento provocado não é exclusivamente bioética, mas
predominantemente do âmbito dos Direitos Humanos (e da Lei Penal) – , ela é necessária porque integramos o mundo civilizado e precisamos ter parte nas grandes
deliberações do concerto moral de nosso
tempo, ter consciência dos problemas e
desenvolver normas vinculantes para a
orientação das pesquisas em nosso próprio país.
6.1 - A clonagem
A clonagem humana é o procedimento
mais importante de quantos são sugeridos hoje ao universo da Bioética e o que
requer maior atenção do ponto de vista da
apreciação do agir moral. Demanda inten-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003
sa carga ética por razões muito fortes como
se relata a seguir.
A clonagem é um procedimento técnico
de reprodução, mediante o qual é manipulado o material genético de uma célula ou
de um organismo (vegetal ou animal), com
finalidade de se obter um indivíduo, ou
conjunto deles, geneticamente idêntico(s)
ao primeiro (clone).
A reprodução na clonagem é assexuada,
realiza-se sem a união sexual e sem fecundação ou união de gametas (é agâmica).
Na clonagem em sentido estrito, a fecundação é substituída pela fusão de um
núcleo tirado de uma célula do indivíduo
que se quer clonar com um oócito
desnucleado, ou seja, privado do genoma
de origem materna. O núcleo da célula
somática possui todo o patrimônio genético, de modo que o novo indivíduo terá
correspondência genética perfeita com o
doador do núcleo, tornando-se ele uma
repetição ou cópia desse doador.
São classificadas como clonagens algumas outras formas de reprodução
assexuada e agâmica que se assemelham
à transferência nuclear, sobretudo porque
levam a uma descendência geneticamente
idêntica. É o caso da partenogênese artificial ou a fixão embrionária, entre outras.
Não há problema ético relativo à clonagem
de indivíduos e de materiais biológicos não
humanos, quando realizada de maneira responsável, sendo consideráveis possíveis
vantagens técnicas e econômicas na criação de animais, na farmacologia, etc.
O problema está na clonagem humana,
que é pensada para fins reprodutivos
(clonagem reprodutiva) e outros, as chamadas clonagens terapêuticas. A primeira
pretende implantar embriões no útero para
o desenvolvimento completo do sujeito e
a segunda pretende o uso do embrião em
fase de pré-implantação com a finalidade
de investigação científica ou de produção
de tecidos humanos.
No primeiro caso tem-se uma técnica de
reprodução assistida mais eficaz e com
maior controle do “produto”(o sujeito) e,
no caso da clonagem terapêutica, os “embriões sintéticos” ou “acúmulos de células”, em etapa embrionária muito precoce
(cada célula do embrião é dita totipotente
ou multipotente, do qual se podem extrair
células estaminais) podem fornecer células específicas (nervosas, cardíacas, musculares, hepáticas, etc), tecido para reposição humana.
É evidente que a clonagem humana para
fins reprodutivos retira a geração de seu
contexto natural. Diz a instrução “Donum
Vitae”, da Congregação para a Doutrina
da Fé: “A origem de uma pessoa humana
é, na realidade, o resultado de uma doação. O concebido deverá ser o fruto do
amor de seus pais. Não pode nem deve
ser concebido como o produto de uma intervenção de técnicas médicas e biológicas; isto equivaleria a reduzi-lo a tornarse o objeto de uma tecnologia científica.”
O cardeal Alfonso López Trujillo, presidente do Pontifício Conselho para a Família, mostra que “a lenta separação contemporânea entre o conceito de vida humana
e o de família, que é o lugar natural onde
ela tem origem e desenvolvimento, é uma
das mais nefastas conseqüências da cul11
tura da morte” , e denuncia que “a
clonagem humana é uma grave deterioração, quer do reconhecimento da dignidade da vida e da procriação humana, quer
11 - Toynbee, Arnold Joseph
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da consciência de como é insubstituível e
fundamental o papel da família para o homem, e de como é fundamental o seu valor
12
para toda a humanidade.”
Essas experiências e práticas de
clonagem ferem o estatuto antropológico
e ético do embrião humano, e recusam a
esses embriões o caráter de indivíduo humano, chegando a proclamar que eles não
têm “vida humana”.
Evidentemente, trata-se de um absurdo
e querem negar seus responsáveis a autonomia do embrião que, deixado em condição natural propícia, procede ao seu próprio desenvolvimento gradual, contínuo
e harmônico até a realização plena do programa traçado em seu genoma.
É com esperança que se identifica uma
significativa documentação internacional, e em alguns países da Europa e nos
Estados Unidos, condenando a
clonagem, como é o caso da “Declaração Universal sobre o Genoma Humano
e sobre Direitos Humanos”, aprovada
pela Assembléia Geral da ONU, em 1998,
que afirma que “a clonagem com finalidade reprodutiva está em contradição
com a dignidade humana.”
Existem ainda importantes avanços nos Estados Unidos, projeto de lei de 27/02/
2003, ora no Senado daquele país, e o
projeto francês de 30/01/2003, em estudo na Comissão Européia - propostas
recentes que procuram vetar qualquer
forma de clonagem humana.
Depois dos trabalhos do Parlamento
Europeu por uma convenção contra a
clonagem, em 1997, acolhendo iniciativa do Conselho da Europa para uma
“proibição explícita de qualquer
clonagem humana”, e da Convenção
européia sobre os direitos humanos e a
biotecnologia (Convenção de Oviedo),
esta ratificada por alguns estados europeus, o Parlamento europeu pronunciouse de novo em novembro de 2001 pela
proibição de qualquer clonagem, “por
uma proibição universal e específica em
nível das Nações Unidas, de clonagem
de seres humanos em qualquer fase de
formação e desenvolvimento.” Tanto em
abril de 2002 como em fevereiro de 2003,
os parlamentares mostraram-se favoráveis a uma proibição da clonagem com a
finalidade de extrair do embrião as células estaminais (stem cells). Em fevereiro
deste ano (2003) o “Bundestag” , pediu
ao governo alemão que mudasse a posição da Alemanha nas Nações Unidas,
proclamando-se agora “a favor da proibição total da clonagem, porque ela representa um atentado contra a dignidade humana, considerando que não existe distinção moral substancial entre a
clonagem reprodutiva e a terapêutica,
porque nos dois casos se realiza a criação de embriões humanos vivos”
(“apud” art. cit. do Cardeal Trujillo).
No Brasil, a Lei 8.974, de 05 de janeiro
de 1995, pelo inciso II do art 8° proíbe a
manipulação genética de células
germinais humanas e pelo III proíbe a
intervenção em material genético humano “in vivo”, exceto para o tratamento
de defeitos genéticos; o art 13 da mesma lei criminalizou esses procedimentos,
graduando penas de detenção e reclusão que vão de 3 meses a 8 anos. A produção, manipulação e armazenamento de
embriões humanos para constituir material biológico disponível podem acarretar pena de reclusão de 6 a 20 anos
(art 13 inciso III).
12 - “ L’Osservatore Romano”, 23 de agosto de 2003, pág.5
80
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003
Conclusões
A formulação ética nos dias atuais encontra resistência no espírito do tempo
que indaga – “qual a vantagem que me
traz o agir ético?” -, quando não lança
suspeição sobre os fundamentos da exigência ética, ou manifesta indiferença
quanto à matéria, no contexto de uma
apostasia silenciosa.
Quando concede alguma coisa, geralmente refere-se a uma moral não
espiritualizada, um código de conveniência e não de deveres, ao gosto da fórmula
deontológica do utilitarismo inglês de
Jeremy Bentham.
Ora, uma moral destituída de sanção, que
não supõe a punição do perverso e a
premiação do justo é um adorno de pouca
utilidade, conforme notou o padre Julio
Maria (1885), em célebre passagem:
“O oceano tempestuoso das paixões só
pode ser contido pelas margens do sacrifício, da virtude, da moral e do direito. Mas,
o direito sem Deus não tem fundamento, o
sacrifício não tem objetivo, a virtude não
tem estímulo e a moral não tem sanção.”
A causa da indiferença, do oportunismo e do relativismo moral contemporâneo
está no sistema de crenças predominante
em nossa sociedade que :
1) aboliu a transcendência, levando a
uma “moralidade situacional” não
espiritualizada;
2) desenvolveu o apego às riquezas a ao
poder, favorecendo a hipertrofia do egoísmo;
conseqüência do primado do formal sobre a verdade e da generalização do cinismo social.
Esse modelo, porém, é coerente com as
necessidades funcionais de um sistema
sócio-político e econômico contrário à
natureza e à moral, no qual o destino de
todos os anseios, o fim de todos os planos e de todas as ações é a acumulação
de riquezas e poder, mesmo à custa da felicidade do Outro, a ponto de serem
julgadas patológicas as paixões humanas
desinteressadas.
Contudo há críticas fundamentadas e
reações em todo mundo a esse projeto e à
sua antropologia, e cresce a denúncia
humanista às conseqüências, já evidentes, desta “ordem” de coisas e seu cortejo
de sofrimento, miséria e morte.
No que concerne à Bioética, há dificuldades de aprofundamento do enunciado
ético face aos aspectos técnicos das experiências. Contudo, os fatos vêm mostrando que em muitas partes há sinceros
esforços de governos e instituições, inclusive da ONU, em prol de uma disciplina
normativa, se possível cogente, que dê
efetivas garantias à vida, proclame o status
ontológico e antropológico do embrião
humano em qualquer fase de sua evolução, identificando-o como sujeito de direito e reconhecendo nele a dignidade
humana. Malgrado o alarido de certas feministas, cresce em muitos lugares a repulsa ao abortamento, visto como sacrifício inútil.
3) aviltou o trabalho, abandonou o pobre e desenvolveu a indiferença ao sofrimento, causa e conseqüência da atrofia
da solidariedade;
Como a Bioética é um campo novíssimo
e aberto a extraordinárias surpresas, é de
interesse que se enuncie uma compreensão do alcance do valor, inerente aos fenômenos que envolvem o homem.
4) fortaleceu o culto das exterioridades,
da exibição e da insinceridade, causa e
Natureza e cultura ( esta como a essência da esfera dos valores) não precisam
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003
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ser domínios separados. A natureza torna-se objeto cultural na medida em que se
liga a valores. Essa é a função da sociedade humana, ou melhor, da consciência do
homem que, neste caso, parece-se com o
rei Midas : o que ela toca, o que ela atrai
para junto de si, embora não se torne ouro
assume valor. O exemplo mais comum é o
da sexualidade, um acontecimento biológico desligado de valor, mas que dentro
da cultura, intervindo a consciência, torna-se fato de altíssimo valor : o amor.
A realidade humana está repleta de fatos geradores de valor. Tudo aquilo que
o homem toca, tudo com que ele lida, recebe por isso mesmo uma carga de valor.
E o valor é atribuído e reconhecido pela
consciência.
Parece razoável esperar-se, assim, que a
consciência moral dos envolvidos direta
e indiretamente nas operações da Bioética,
e dos governantes, venha impor a necessidade de disciplinas eficazes que impeçam o abuso e a temeridade.
7.4 A contribuição da Igreja Católica
no esforço pelo fortalecimento ético
está favorecida, em parte porque as idéias que confrontavam a religião estão
em crise – como o liberalismo e o marxismo, nos extremos do individualismo
e da sociedade sem classes – e, em parte porque a Igreja credenciou-se diante
do mundo pós moderno, mercê da liderança carismática de João Paulo II, como
um “teísmo com funções públicas”
(Gustavo Guizzardi), de notório prestígio no domínio moral. Sabendo conduzir uma estratégia eficaz que flutua entre o profetismo e a solidariedade, mas
sempre anunciando a Revelação, a Igreja vem se mostrando como a grande
força que defende o homem e a humanidade, que abre e sustenta a discussão de questões vitais, como os direitos humanos, a justiça social e a defesa
do ambiente natural.
O mundo de hoje reconhece que entre
os males que o afligem, há aqueles para os
quais o tratamento científico e tecnológico
não é suficiente, como é o caso da AIDS,
de prevenção difícil e cura rara, cujo controle eficaz só é possível pela autoregulação ética.
Abstract
The author tries to demonstrate how important is the moral questioning to the scientific
contemporary mentality which projects (like HGP-Human Genoma Project), all of them
have been conceived with the intention of reaching only strategic or economic goals.
Along the explanation, the author asks whether, nowadays, the ethical thinking has a
chance to predominate (considering the default of values) and the future of Ethics on
this amazing world of molecular biology.
Keywords: Ethical, Tranformation, Technology, Ideology, HGP (Human Genoma Project).
82
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84
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Propriedade Intelectual na OMC,
Soberania e Desenvolvimento Nacional
Renato Valladares Domingues
Advogado da União; Membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra
(ESG); Diplomado no Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia da ESG
(CAEPE); Mestrado em Direito Internacional e da Integração Econômica pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo
O objetivo desse texto é fornecer informações básicas sobre o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), que foi negociado como
uma das partes integrantes da Rodada
Uruguai. O autor enfatiza a necessidade
de que o Acordo deve ser interpretado
e implementado com flexibilidade, de forma a ajudar aos países em desenvolvimento atingirem seus objetivos de desenvolvimento.
institucional das relações econômicas internacionais.
Procurou-se com a criação da OMC, dar
maior coerência e abrangência às regras
que regulam o comércio global.
Nesse contexto de transformações no
cenário internacional, as normas sobre
proteção da propriedade intelectual ganharam especial tratamento, tendo sido
objeto de um documento próprio, apenso
à Ata Final em que se incorporaram os resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais (Anexo 1C).
Palavras-chave: Acordo sobre Aspectos
dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio; Declaração de
Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública; Direito Internacional; Organização
Mundial do Comércio; propriedade intelectual; soberania; TRIPS.
Esse acordo, que em inglês recebeu o
acrônimo de TRIPS (Agreement on TradeRelated Aspects of Intellectuall Property
Rights), foi firmado com a justificativa de
que as convenções internacionais sobre
propriedade intelectual existentes até então, eram ineficientes.
O fim das negociações da Rodada do
Uruguai, seguido da criação da Organização Mundial do Comércio, resultou em
uma profunda mudança na estrutura
Assim, seguindo as recomendações dos
países detentores de um maior desenvolvimento tecnológico, criaram-se, dentro da
Organização Mundial do Comércio, me-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003
85
canismos de sanções internacionais, para
punir os Estados que se recusassem a
editar uma legislação interna em harmonia
com as obrigações internacionais
estabelecidas no TRIPS. Como bem observa Guido Soares,
na situação anterior a 1995, os tratados
e acordos internacionais sobre o tema da
propriedade intelectual, elaborados pelos
Estados, no que se refere à eficácia no interior dos respectivos territórios, não contavam com qualquer instrumento
sancionador que eventualmente pudesse
ser aplicado contra um Estado que se recusasse a editar uma legislação interna de
conformidade com as normas internacionais, ou que editasse normas internas em
discordância com suas obrigações internacionais (SOARES, 1998, P.661).
O Acordo TRIPS é o mais importante e
mais amplo tratado celebrado até o momento em matéria de propriedade intelectual. Estabelece um padrão mínimo de proteção em matéria de direitos autorais e
conexos; patentes; marcas; indicações geográficas; desenhos industriais; topografia de circuitos integrados; proteção de
informação confidencial e controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licença.
O Acordo TRIPS não é uma lei uniforme
em matéria de propriedade intelectual, mas
sim um tratado-contrato cujos destinatários são os Estados-Membros da OMC,
que devem aplicá-lo mediante normas internas.
Assim, o Acordo TRIPS permite que os
Estados-Membros legislem livremente em
matéria de propriedade intelectual desde
que respeitados os padrões mínimos estabelecidos.
Ocorre que, a adoção de padrões universais mínimos de proteção aos direitos
86
de propriedade intelectual, em países em
estágios diferentes de desenvolvimento
pode gerar graves distorções no comércio internacional.
Países hospedeiros de grandes
corporações, detentores de tecnologia de
ponta e com grande capacidade inovadora poderão valer-se do novo sistema internacional de comércio instituído com a
criação da OMC, para consolidar o domínio sobre os demais.
As regras estabelecidas no Acordo
TRIPS, reduzem de forma significativa a
autonomia dos Estados Nacionais de disporem de políticas próprias de proteção
em matéria de propriedade intelectual compatíveis com as suas necessidades de desenvolvimento. Por exemplo, nos temos
das regras do Acordo TRIPS, a engenharia reversa e outros métodos legítimos de
difusão e transferência do conhecimento
são restringidos.
Assim, a aplicação indiscriminada do
novo regime jurídico dos direitos de propriedade intelectual estabelecido no Acordo TRIPS, poderá afetar de forma relevante a economia de países como o Brasil.
Como então conciliar as obrigações
previstas no Acordo TRIPS, com os interesses nacionais? Como os
formuladores de políticas públicas devem enfrentar as limitações impostas no
Acordo TRIPS?
Essas são questões de difícil solução
mas que devem ser enfrentadas pelos diversos governos nacionais dos países integrantes da OMC.
Na verdade, como mencionado anteriormente, o Acordo TRIPS não é uma lei
uniforme, deve, portanto, ser
implementado localmente através de normas internas.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003
Dessa forma, aos Estados-Membros,
quando da incorporação das normas do
Acordo TRIPS, cabe a difícil tarefa de tentar conciliá-las com os interesses nacionais. Assim, os diversos setores da sociedade devem identificar onde há maior
espaço para flexibilização no tratado.
Muitos termos e expressões usados no
Acordo TRIPS ainda não apresentam significado preciso. Esse fato abre espaço
para que os países envolvidos busquem
dentro de seus próprios ordenamentos
jurídicos definições compatíveis com os
seus interesses e objetivos. Com efeito, a
flexibilização na aplicação do Acordo
TRIPS é essencial para países de menor
desenvolvimento tecnológico.
Seguindo essa estratégia de aplicar o
Acordo TRIPS legislando segundo o interesse nacional, a Lei de Propriedade Industrial do Brasil (Lei n° 9.279/96) dispõe
que a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta, poderá ensejar a concessão de licença compulsória.
Inconformados com o conteúdo da legislação brasileira, os Estados Unidos, em
30 de maio de 2000, pediram uma consulta
ao governo brasileiro perante a OMC, por
considerarem a Lei de Propriedade Industrial do Brasil não compatível com o disposto no Acordo TRIPS.
Em 16 de junho do mesmo ano a Comunidade Européia aderiu ao pedido de consulta norte-americano. No dia 8 de janeiro
de 2001 o Governo dos Estados Unidos
requereu a abertura de um painel contra o
Brasil. No entanto, após negociações bilaterais, o governo dos Estados Unidos,
em comunicado conjunto com o governo
do Brasil anunciou a retirada do painel em
discussão (painel n° WT/DS199/1).
Na verdade, a Lei de Propriedade Industrial do Brasil não é incompatível com
o Acordo TRIPS. O que de fato ocorreu é
que o dispositivo em questão foi editado
de forma a atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento e transferência
de tecnologia. Talvez temerosos de uma
derrota no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (fato esse que poderia
criar um perigoso estímulo para outros
países copiarem a legislação brasileira), os
Estados Unidos resolveram retirar o painel em questão.
Foi, no entanto, no campo das patentes farmacêuticas que ocorreu a maior
vitória dos países emergentes na busca de flexibilização das normas do Acordo TRIPS.
Por ocasião da IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio,
realizada em Doha, Catar, nos dias 9 a 14
novembro de 2001, o governo do Brasil
reiterou sua posição firme de utilizar-se
das flexibilidades presentes no Acordo
TRIPS, para proteger a saúde pública de
seus nacionais, em discurso assim expresso pelo então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Lafer:
No campo da propriedade intelectual,
diferentes leituras do Acordo de TRIPs
têm dado margem a tensões. Em certa medida, é natural que interesses conflitantes
se reflitam em interpretações divergentes
de normas comuns. No entanto, a exploração comercial do conhecimento não pode
ter valor maior do que a vida humana. Há
circunstâncias em que o conflito de interesses exigirá do Estado o exercício de sua
suprema responsabilidade política. Nesses casos, é necessário que fique claro
onde está a prioridade. É por isso que temos insistido, juntamente com uma ampla
coalisão de países que compartilham essa
posição, na necessidade de uma declara-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003
87
ção autorizada sobre o Acordo TRIPS,
que possa esclarecer seu alcance no que
diz respeito à saúde pública.
O Brasil promove e assegura os direitos de propriedade intelectual, por meio
de uma legislação que figura entre as
mais avançadas do mundo. Mas se as
circunstâncias o exigirem, o Brasil, como
muitos outros países, não hesitará em
tirar pleno proveito das flexibilidades
proporcionadas pelo Acordo de TRIPs,
para proteger legitimamente a saúde de
seus cidadãos. (2001).
A estratégia da diplomacia brasileira
surtiu efeito, e após o término da conferência foi divulgado um documento
intitulado “Declaração de Doha Sobre o
Acordo TRIPS e Saúde Pública”, no qual
os Países-Membros reconhecem que o
Acordo TRIPS pode e deve ser interpretado e implementado de modo a implicar
apoio ao direito dos Membros da OMC
de proteger a saúde pública e, em particular promover o acesso de todos aos
medicamentos. O documento reconhece,
ainda, a gravidade de problemas de saúde pública como a AIDS, a tuberculose, a
malária e outras epidemias, bem como o
direito dos Países-Membros de recorrerem a licenças compulsórias e de estabelecerem livremente os casos de emergên1
cia nacional.
Os episódios mencionados são
ilustrativos de como os Estados Nacionais podem enfrentar as limitações impostas pelo Acordo TRIPS. Conforme expos-
to, há ainda muita margem de ação para
flexibilizar-se a aplicação do Acordo TRIPS.
É importante ressaltar que embora a redução de tarifas e a eliminação de barreiras mercantis seja a idéia mais visível no
sistema multilateral de comércio incorporado pela OMC, a liberalização do comércio internacional não é o fim principal a
ser atingido. Na verdade, o principal objetivo almejado com a criação da OMC é o
desenvolvimento econômico e social dos
seus membros, conforme expressamente
declarado em seu Acordo Constitutivo.
A adoção do Acordo TRIPS limita a soberania dos Estados em matéria de propriedade intelectual, pois doravante os países integrantes da OMC devem obedecer
ao padrão mínimo de proteção estabelecido nesse tratado.
Essa limitação pode ter impactos negativos na economia de países de menor grau
de desenvolvimento relativo, como o Brasil. No entanto, é preciso atentar para o
fato de que se trata de uma auto-limitação
voluntária. Além disso, conforme ficou demonstrado, os Estados-Membros têm a liberdade de escolher a forma de
implementação do Acordo TRIPS.
Para que a OMC alcance seus objetivos
declarados de contribuir para o desenvolvimento econômico e social dos Estados-Membros, os países em desenvolvimento devem lutar pela preservação de
suas soberanias e ter uma postura ativa
no sentido de buscar a flexibilização na
aplicação do Acordo TRIPS.
1 - Mesmo após a divulgação da “Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública” , os
países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil, China e Índia, consideraram as concessões insuficientes. Assim após intensas discussões, em 30 de agosto de 2003 foi divulgado novo documento
flexibilizando ainda mais a aplicação do Acordo TRIPS em matéria de saúde pública. O documento
o
trata especificamente da interpretação e aplicação do parágrafo 6 da Declaração de Doha Sobre o
Acordo TRIPS e Saúde Pública.
88
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Abstract
The aim of this paper is to provide basic information about the Agreement on TradeRelated Intellectual Property Rights (TRIPS), which was negotiated as an integral part
of the Uruguay Round. The author draws attention to the fact that the Agreement
should be interpreted and implemented in such a way to provide flexibility that helps
developing countries to achieve their development goals.
Keywords: Agreement on Trade-Related Intellectual Property Rights; Doha Declaration
on the TRIPS Agreement and Public Health; intellectual property; International Law;
sovereignty; World Trade Organization; TRIPS.
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A Logística Aplicada ao Programa
Federal de Segurança Alimentar
“Fome Zero” e sua Contribuição a
uma Mobilização Nacional
Gerson Pinheiro Gomes
Major de Cavalaria
Resumo
Partindo do novo conceito de ‘Segurança Alimentar’ e de seu aspecto
estratégico,implementado recentemente
pelo Governo Federal como Programa Federal de Segurança Alimentar (‘Fome
Zero’), o autor evidencia seus pontos de
convergência com a Defesa Nacional, particularmente nos campos da Logística e
da Mobilização Nacionais.
Palavras-chave: Segurança alimentar,
Logística, Defesa nacional, Mobilização
nacional.
1 - INTRODUÇÃO
1.1 - Considerações Iniciais
Nos últimos anos, quando ocorreram os
atentados terroristas de 11 de setembro
de 2001, a reação militar norte-americana
no Afeganistão, bem como a recente invasão do Iraque pela coalizão anglo-americana, a incerteza geopolítica estabeleceuse assustadoramente no ambiente internacional.
O afloramento da “Nova Ordem Mundial” não propiciou o tão sonhado fortalecimento da segurança coletiva, a melhoria
das organizações internacionais, ou mesmo uma nova parceria entre as nações.
A consolidação da hegemonia norte-americana, sustentada em absoluta superioridade tecnológica na Expressão Militar, não amenizou a letalidade das ameaças hodiernas (do
terrorismo, dos fundamentalismos, do crime
organizado transnacional, da especulação financeira, da grande corrupção, das possibilidades de novas pandemias (AIDS, SARS,
etc.), dos efeitos da poluição, da proliferação
nuclear, dos fluxos migratórios, etc.).
As desigualdades se aprofundaram no Planeta, carreando ameaças latentes ainda não
discernidas. Estudos recentes da ONU apontam que, dentre os aproximadamente seis bilhões de habitantes da Terra, pouco mais de
500 milhões vivem confortavelmente. A fortuna das 358 pessoas mais ricas do mundo,
bilionárias em dólares, é superior à renda anual
de 45% de habitantes mais pobres do planeta, ou seja, 2,6 bilhões de pessoas.
Pelo menos um paradigma, sobre o qual
repousava até o presente o edifício sóciopolítico dos grandes Estados democráticos modernos, erodiu de forma cabal: o
do progresso, redutor das desigualdades,
inexoravelmente conseqüente ao avanço
científico-tecnológico.
Causa perplexidade a rapidez do crescimento do número de pessoas em estado de
extrema pobreza no mundo. O índice passou de 17% para 22% nas últimas cinco
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91
décadas e, no mesmo período, a riqueza
produzida pelos países cresceu sete vezes.
O propalado “crescimento sustentável”,
não experimentado no período de maior
desenvolvimento dos países ricos, é agora desenhado para, em prol dos interesses
mundiais, ser implementado nos países em
desenvolvimento.
É notório que, no Brasil, o conceito de crescimento sustentável encontra-se amplamente disseminado sem contemplar as questões
de Defesa. A sustentabilidade é associada à
prevenção dos perigos advindos da deterioração do meio ambiente ou, ainda, à estabilidade do sistema econômico-financeiro.
incorpora a mais nova categoria de ameaça reconhecida pela sociedade brasileira,
a da fome, da pobreza e da excessiva concentração de renda.
Este trabalho se propõe a estabelecer os pontos de convergência entre a
Política de Segurança Alimentar,
consubstanciada no recente programa
federal denominado “Fome Zero”, e os
objetivos da Defesa Nacional, particularmente no campo da Logística e da
Mobilização Nacional.
1.2 – Conceitos Básicos
1.2.1 - Segurança Alimentar
Tal fato deve-se, em parte, ao total desconhecimento das Hipóteses de Emprego
das Forças Armadas (HE) pelas elites do
País. A ameaça externa é difusa e não sensibiliza a sociedade com o mesmo grau de
impacto que as ameaças ao meio ambiente, ou aquelas advindas dos conflitos de
interesses puramente comerciais.
Foi pouco depois de terminada a Primeira Guerra Mundial que se começou a ter
registro, na Europa, da utilização do termo
“segurança alimentar”.
O Brasil não é uma nação imperialista.
Não está interessado em subjugar nações
mais frágeis nem em submeter povos a seu
domínio. Isso não significa, contudo, que
não tenha interesses legítimos a defender,
com o concurso imprescindível da Expressão Militar do Poder Nacional.
Os Estados Nacionais davam-se conta
de estar frente a uma poderosíssima arma,
uma vez que populações inteiras não poderiam sobreviver sem alimentação e, diante desta situação, um país poderia ser
submetido a outro. Assim, fortaleceu-se a
idéia de que a soberania de um país também dependia da sua capacidade de autosuprimento de alimentos.
A consolidação do Ministério da Defesa aponta para o reconhecimento da importância estratégica desempenhada pelas Forças Armadas, no entanto, a palavra
“defesa” é empregada pelo cidadão comum, compreensivelmente no contexto
das ameaças percebidas. Percebe-se a necessidade da defesa do meio ambiente, da
defesa dos interesses comerciais, ou, até
mesmo, da defesa do consumidor.
Nessa mesma direção, o conceito relativamente novo de “Segurança Alimentar”
92
A traumática experiência da guerra havia demonstrado, mais uma vez, que um
país poderia dominar o outro caso controlasse seu fornecimento de alimentos.
A alimentação adquiriu um significado
estratégico de segurança nacional, impondo a necessidade a cada país de assegurar o suprimento da maior parte dos alimentos que sua população consome, fazendo inaugurar um conjunto de políticas
específicas, entre as quais a formação de
estoques de alimentos.
Uma conseqüência dessa preocupação foi o fortalecimento da noção de que
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a questão alimentar de um país estava
estritamente ligada à sua capacidade de
produção agrícola. Tal noção, que acabava excluindo outros aspectos da questão, manteve-se até quase o final da década de 1970.
Nos últimos anos, o país retrocedeu do
patamar onde a segurança alimentar era
declarada como um objetivo estratégico
de governo, culminando na extinção do
Conselho de Segurança Alimentar
(CONSEA).
Vivia-se, então, um momento delicado,
em que os estoques mundiais de alimentos estavam bastante escassos, com quebras de safra em importantes países produtores e consumidores.
A questão alimentar, no entanto, manteve-se como estratégica nos países desenvolvidos, espelhando interesses diversos e muitas vezes conflitantes. Nota-se,
especialmente no âmbito dos organismos
multilaterais, uma verdadeira disputa
axiológica envolvendo o conceito de segurança alimentar.
O caso mais grave era o da antiga União
Soviética, que, atravessando invernos extremamente rigorosos, viu reduzir-se drasticamente sua capacidade de produção de
trigo e outros grãos, recorrendo ao mercado internacional com compras vultosas e
esgotando ainda mais os estoques já reduzidos desses produtos.
A discussão então travada deu-se quase exclusivamente sobre as políticas agrícolas, reforçando a crença de que a segurança alimentar dependia fundamentalmente de uma política de armazenamento estratégico, devendo-se fazer crescer os estoques e assegurar a consolidação de acordos internacionais sobre diferentes produtos agrícolas.
Nesse contexto, começaram a surgir os
primeiros trabalhos demonstrando que a
capacidade de acesso aos alimentos era
dificuldade crucial para a segurança alimentar e que, por vezes, tornava-se uma
dificuldade maior que a própria oferta inadequada de alimentos.
A introdução do tema da segurança
alimentar no Brasil aparece tardiamente. Aparentemente, os primeiros conceitos foram formulados por técnicos e
consultores engajados na elaboração de
uma política de abastecimento, no âmbito do Ministério da Agricultura, em
1986.
Nos países europeus e na América do
Norte utiliza-se freqüentemente a noção
de “alimento seguro” como prerrogativa
principal da segurança alimentar. Sob essa
égide, chanceladas estão as barreiras fitosanitárias que habilmente são interpostas
como instrumentos de política econômica
e de comércio internacional.
Da mesma forma, pode-se perceber as
raízes da política de concessão de subsídios aos produtores locais dos países desenvolvidos. Em consonância perfeita
com o significado estratégico adquirido
pela segurança alimentar, pós II Guerra
Mundial, apoia-se economicamente a produção endógena de alimentos.
Como marco teórico para este trabalho, e
buscando uma base conceitual abrangente,
pode-se considerar que Segurança Alimentar é a garantia do direito de acesso,
de todos os integrantes de uma sociedade,
a alimentos de qualidade, em quantidade
suficiente e de modo permanente, com base
em práticas alimentares saudáveis e sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais e nem o sistema alimentar
futuro, devendo se realizar em bases sustentáveis. (Menezes, 1998).
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93
2.1.2 Logística e Mobilização Nacional
Os argumentos contidos neste estudo
estão inseridos no campo da Logística, a
qual pode ser compreendida, especialmente no meio civil, como o processo de planejar, implementar e controlar eficientemente, ao custo correto, o fluxo e armazenagem de matérias-primas, estoques durante a produção e produtos acabados, e
as informações relativas a estas atividades, desde o ponto de origem até o ponto
de consumo, com o propósito de atender
aos requisitos do cliente.
Sob o enfoque da Defesa Nacional, foi utilizado o conceito emanado da Escola Superior de Guerra de Logística Nacional, como
sendo o conjunto de atividades relativas à
previsão e à provisão dos recursos necessários à realização das ações planejadas para a
consecução da Estratégia Nacional.
Isso significa que, uma vez definidas as
ações estratégicas a serem realizadas, torna-se necessária a determinação dos meios de toda ordem que serão indispensáveis à concretização daquelas ações, obtêlos e, a seguir, distribuí-los.
Essa seqüência de atividades define, basicamente, o papel da Logística Nacional,
que em situações normais e mesmo em situações de emergência não excepcionais, encontra, dentro da capacidade do Poder Nacional, os meios necessários para atender
às ações impostas pela Estratégia Nacional.
Nações que vêm adquirindo, por seu
desenvolvimento, dimensões cada vez
maiores em sua estatura político-estratégica, podem e devem adotar medidas oportunas e eficazes, com vistas à adequação
da capacidade do seu Poder Nacional às
novas situações que o futuro possa lhes
apresentar.
À medida que um Estado se projeta no
cenário internacional, desperta ambições
94
e cria novos interesses que podem resultar em áreas de atrito, com possibilidades
de gerarem antagonismos e pressões, os
quais constituirão, em última análise, razões de insegurança.
Nesse contexto de conflito de interesses, a logística necessária à efetivação de
uma Hipótese de Emprego das Forças Armadas (HE) é denominada como Logística
Militar. Seu entendimento, no âmbito do
Ministério da Defesa foi padronizado
como: conjunto de atividades relativas à
previsão e à provisão de recursos humanos, materiais e animais, quando aplicável, e dos serviços necessários à execução das missões das Forças Armadas.
Ao fornecer meios para as Ações Estratégicas no campo da Defesa, quer correntes quer de emergência, a Logística se vale
de procedimentos usuais inerentes à estrutura jurídico administrativa do Estado
e às regras que presidem suas relações
com as pessoas físicas ou jurídicas.
Fatores diversos, entretanto, poderão
fazer com que os recursos de que dispõe a
Logística Nacional sejam insuficientes
para fazer face a determinadas ameaças à
Defesa Nacional. Neste caso, o Estado
deve lançar mão de outro instrumento mais
incisivo – a Mobilização Nacional – que
sintetiza o conjunto de atividades visando à obtenção daqueles meios que a
Logística não pode proporcionar.
Isso significa que, nas situações anormais,
caracterizadas pela iminência de
concretização ou efetivação de uma HE,
quando os procedimentos usuais e os recursos disponíveis pela Logística se revelam insuficientes para atender, com presteza, o acréscimo de meios exigidos pela contingência, a Mobilização Nacional, como instrumento mais vigoroso, tomará a si o atendimento dessas necessidades, em grande
parte já levantadas pelos órgãos logísticos.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
A Escola Superior de Guerra define
Mobilização Nacional como o conjunto de
atividades planejadas, empreendidas ou
orientadas pelo Estado, complementando
a Logística Nacional, para capacitar o
Poder Nacional a realizar Ações Estratégicas de Defesa, em face da declaração de
estado de guerra ou resposta à agressão
armada estrangeira.
Há de se considerar que, nos dias atuais, o emprego das Forças Armadas pode
ter início sem os longos períodos de tensão política e sem os prenunciadores incidentes de fronteira, comuns no passado.
Tem sido mesmo prática muito freqüente,
nos últimos tempos, o desencadeamento
de operações militares sem prévia e formal
Declaração de Guerra.
Essa circunstância fez com que os prazos para a execução da Mobilização se
tornassem extremamente críticos, exigindo que seu planejamento e preparo sejam
eficazes desde os tempos de paz.
Considerando que as atividades afetas
à Mobilização Nacional se desenvolvem
tanto em situação de normalidade como
nas situações de emergência, é lícito estabelecer-se um faseamento na Mobilização
Nacional que identifique as diferentes atividades e atribuições dos órgãos de
Mobilização. Divide-se, pois, a
Mobilização Nacional, em duas fases, a
saber: o Preparo e a Execução.
O Preparo da Mobilização consiste, fundamentalmente, em planejar e organizar a
Mobilização, de modo que se processe nas
melhores condições o atendimento das necessidades exigidas para a execução das
ações planejadas. É, pois, uma atividade
essencialmente do tempo de paz, que se
realiza de modo contínuo, metódico e permanente, a fim de assegurar os recursos
necessários em quantidade e qualidade,
no lugar desejado e no tempo preciso.
Muitas vezes torna-se difícil a distinção
entre algumas das atividades de Preparo
da Mobilização Nacional e outras típicas
do processo de Desenvolvimento. Há uma
faixa na qual várias atividades se confundem, sendo, todavia, irrelevante estabelecer a diferenciação.
O relevante é que, desde a situação
de normalidade, os Órgãos de
Mobilização interajam com os responsáveis pelas programações voltadas ao
Desenvolvimento, com o propósito de
criar condições que permitam, concretizada a situação de emergência, um acelerado e eficaz aproveitamento do Poder
e do Potencial Nacionais.
Figura 1
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
95
2 - O PROGRAMA
“FOME ZERO” DO
GOVERNO FEDERAL
2.1 – Considerações Iniciais
Incluído entre as propostas da campanha presidencial de 2002, o Programa
Fome Zero foi anunciado como prioridade
de governo no primeiro discurso do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, na
manhã seguinte à eleição.
dos para definir quem compõe esse contingente.
Diversas pesquisas foram realizadas com
base em indicadores de renda — uma forma indireta de se inferir a população carente. O pressuposto, nesses casos, é que
a insuficiência de renda constitui o principal fator que leva as pessoas a não ingerir
alimentos na quantidade adequada. Assim, define-se uma linha de pobreza abaixo da qual a renda seria inadequada para
suprir as necessidades básicas — entre
as quais a alimentação —, e calcula-se o
número de pessoas abaixo dela.
Em novembro de 2002, o Fome Zero foi
submetido ao BID (Banco Interamericano de
Desenvolvimento) e à FAO (Organização das
Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura), em reunião realizada em Washington,
nos Estados Unidos.
Nessa ocasião, o diretor-geral da FAO,
Jacques Diouf, decla“Se, ao final de meu mandato,
rou que esse projeto
cada brasileiro puder se alimentar
seria uma referência
três vezes ao dia terei realizado a
para as atividades damissão da minha vida”.
quele organismo em
outros países.
Luís Inácio Lula da Silva, 28/10/2002
O Programa foi lançado oficialmente em
março de 2003 e envolve todos os Ministérios. Conta com a estrutura do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
e Combate à Fome (MESA) e o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA), para a coordenação das ações.
2.1.1 – O Tamanho da Fome no Brasil
Calcular a quantidade de pessoas sujeitas à fome no Brasil é um problema bastante complexo. Não há consenso sobre o
tamanho da população atingida. Tudo
depende das medidas e critérios utiliza96
Diante das dificuldades para mensurar
a indigência ou a pobreza no Brasil, o
Programa Fome Zero
procurou estimar a
quantidade de pessoas que passam fome
no país tomando por
base os microdados
da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD), do
IBGE, de 1999,
atualizados posteriormente pela edição de 2001.
Buscando aperfeiçoar as metodologias
existentes, partiu-se da linha de pobreza
adotada pelo Banco Mundial, que considera pobres as pessoas que ganham menos de US$ 1,08 por dia. Foram desenvolvidas, então, correções metodológicas que
levaram em conta a variação do dólar e o
desconto das despesas com aluguel ou
prestação da casa própria, item de maior
peso no orçamento familiar.
Com essas correções, chegou-se a um
número surpreendente. A linha de pobreza média ponderada no Brasil, que é de R$
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
71,53 mensais por pessoa, indica a existência de 46 milhões de pessoas com uma
renda mensal disponível média de R$
39,11, ou 9,9 milhões de famílias com renda mensal de R$ 183,81, levando-se em
conta a média de 4,7 pessoas por família.
Cabe ressaltar que, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate
à Fome (MESA) e o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) estabeleceram um acordo de cooperação técnica, em
11 de março de 2003, para a definição de um
conceito oficial de linha de pobreza, previsto no Decreto 4.564, de 01/01/2003.
Este documento institui o MESA e o
nomeia gestor do Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza. O objetivo do
Ministério é chegar a um conceito unificado de pobreza e construir um indicador
oficial para nortear as próximas ações do
Programa Fome Zero.
Caberá ao IBGE fornecer informações ao
Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar em relação à geração de dados
sobre renda, gastos, situação dos domicílios, emprego e nutrição das populações urbanas e rurais do país em estado de insegurança alimentar. Essas informações constituirão a base de indicadores para identificar os municípios brasileiros a serem atendidos pelo Programa Fome Zero.
2.1.2 – O Perfil da População
Pobre do Brasil
Estima-se, que 27,3% da população brasileira não tenham renda suficiente para
garantir uma alimentação satisfatória.
Desse montante de 46.126.000 de brasileiros, 26,3% se concentram nas áreas urbanas não metropolitanas, ou seja, nas
pequenas e médias cidades, e 19,5% estão nas áreas metropolitanas. No entanto,
é na área rural que a maior proporção de
pobres pode ser encontrada: 47,3% dos
que não obtêm uma renda mínima de US$
1,08 por dia estão fora das cidades.
Por outro lado, embora as regiões metropolitanas concentrem apenas um quinto dos pobres brasileiros e apresentem
uma proporção de pobres menor que outras áreas do país, é justamente nas grandes cidades que a pobreza vem aumentando mais rapidamente.
Dados do IBGE para o período de 1995 a
2001 demonstram que houve um crescimento anual de 6,7% na quantidade de
pobres nas regiões metropolitanas. Essa
proporção contrasta com o crescimento
anual de 4,4% nas áreas urbanas não metropolitanas e com a queda de 1,9% ao
ano no número de pobres residentes nas
áreas rurais.
Fonte: PNAD 2001 / IBGE.
Obs.: Foram consideradas pobres as famílias com renda per capta menor que R$ 71,53 por mês.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
97
O País não tem legiões de famélicos, mas
quase um terço de sua gente convive com
a insegurança alimentar. Reverter esse
quadro é incompatível com políticas que
focam o atendimento a bolsões de miséria
cirurgicamente delimitados.
Do total de domicílios pesquisados que
possuíam renda abaixo da linha da pobreza, 43% não tinham água encanada,
71,35% não tinham esgoto, o lixo não era
coletado em 38,4% deles e em 12,7% não
havia energia elétrica.
Os Estados nordestinos são os que apresentam maior índice de pobreza no País.
Todos, à exceção do Rio Grande do Norte,
têm mais da metade de sua população abaixo da linha de pobreza. O Maranhão é o
Estado brasileiro que apresenta a pior situação. Mais de 63% de sua população
estão abaixo dessa linha.
Quanto às características das famílias,
pode-se dizer que 55,5% tinham cor de referência parda e 34,4% eram chefiadas por uma
pessoa que nunca freqüentou escola ou tinha apenas a 1ª série do 1º grau incompleta.
Em 37,5 % dos casos, habitava o domicílio
um casal com filhos menores de 14 anos.
Em termos absolutos, a Bahia aparece
em primeiro lugar, com quase seis milhões
de pessoas em situação de risco. O estado com maior proporção de pobres na área
rural é também a Bahia (38,71%), enquanto no Maranhão eles se concentram nas
áreas urbanas (49,8%).
São Paulo e Minas Gerais, os estados
mais populosos, aparecem em seguida na
classificação. Em Minas, a maior concentração de pobres se dá nas cidades pequenas e médias; em São Paulo, nas áreas
metropolitanas.
No gráfico abaixo, verifica-se a distribuição dos pobres pelos Estados da federação.
98
Com relação às pessoas pesquisadas
especificamente, observam-se dados curiosos: 69,7% das pessoas pobres nasceram no próprio município em que atualmente residem e apenas 10,8% nasceram
em outro estado. Entre os maiores de 10
anos de idade, havia um contingente de
13% de não ocupados. Dos 87% ocupados, 49,1% declararam realizar trabalho
agrícola e 50,9%, trabalho não agrícola.
Entre os que trabalham no campo, o
maior contingente de pobres (34,5%) trabalha sem remuneração e sem produzir
para seu próprio consumo. Entre os trabalhadores não agrícolas, o maior contingente é o de empregados (48,5%), embora
62,1% destes não tenham registro em carteira e não recebam auxílio-alimentação.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
2.2 – Antecedentes Históricos da Fome
no Brasil
2.2.1 – Os Primórdios
No Brasil colonial, o problema da falta
de alimentos já chamava a atenção dos
governantes. A preocupação com as culturas alimentares surge já no século XVI,
em função da monocultura, que não deixava espaço para a produção de “mantimentos”.
Durante a escravidão, por razões econômicas, a produção de alimentos esteve
muito mais ligada ao auto-abastecimento
das propriedades do que às demandas
colocadas pelo mercado.
Com a introdução do café e a cessação do tráfico negreiro, o problema da
oferta de alimentos se agravou. Havia
menos braços para cultivar a terra e
mais bocas para alimentar nas cidades.
A escassez de alimentos e a falta de
estrutura para comercialização levaram
à elevação dos preços pela ação de
especuladores.
O ano de 1917 representou um marco
nos problemas de alimentação. As dificuldades geradas pela carestia dos alimentos foram o estopim para a deflagração de
manifestações e da primeira greve geral
operária da nossa história, que teve lugar
na cidade de São Paulo.
A escassez foi agravada por crescentes embarques de alimentos brasileiros
para o abastecimento das nações européias em guerra. O mercado externo não
queria café, cujos preços estavam em
baixa, e sim alimentos.
Isso levou as fazendas, financeiramente debilitadas, a desviar para a exportação
o produto agrícola que atenderia à população urbana brasileira.
2.2.2 – De Vargas a Goulart
A crise dos anos 30 inaugurou um período de intervenções públicas federais no
abastecimento. O Governo Vargas implantou um aparato segundo o qual cada
autarquia (açúcar e álcool, mate, sal, café,
trigo etc.) deveria zelar pelo equilíbrio dos
mercados interno e externo e pelos preços
remuneradores dos produtores.
Nesse período, agravou-se o problema
da oferta em conseqüência da
desestruturação da agricultura cafeeira
que, por um lado, favorecia a oferta de
gêneros de primeira necessidade e, por
outro, segurava um grande contingente
populacional no campo.
A Comissão de Abastecimento, criada já dentro do esforço imposto pela II
Guerra Mundial, tinha como objetivo
regular tanto a produção como o comércio de alimentos, drogas, material de
construção e combustíveis, a fim de conter a alta de preços.
Em termos práticos, essa comissão deixou algumas iniciativas importantes, como
os restaurantes populares, e também alguns instrumentos de incentivo e apoio à
produção agrícola. Todavia, o custo da
alimentação continuou a se elevar durante o período de guerra e mesmo nos anos
seguintes.
Nas décadas posteriores, a fome e a carestia começaram a receber uma atenção
especial dos governantes. Nos anos 50,
com a modernização da agricultura e a abertura de novas vias de acesso e de novas
áreas de produção, o discurso político e a
ação governamental se voltaram para a área
da distribuição.
Embora a reforma agrária tenha sido apresentada como importante política de apoio
à oferta de alimentos, a ênfase no período
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
99
recaiu sobre a área do abastecimento. Pela
primeira vez em tempos de paz foram tomadas medidas de intervenção direta no
abastecimento.
Para tanto, em 1951 foi criada a Comissão
Federal de Abastecimento e Preços (COFAP),
que mais tarde abriu espaço para uma área
de fiscalização (SUNAB), armazenamento
(CIBRAZEM), distribuição (COBAL) e administração de estoques reguladores (CFP).
Nesse período, também foi criado o
Entreposto Terminal de São Paulo, embrião
do CEAGESP e das Centrais de Abastecimento que se seguiram.
2.2.3 – De Castelo Branco a Figueiredo
Até meados da década de 1960, o poder
público teve como objetivo apenas fiscalizar e controlar os canais de comercialização
de alimentos. Os governos militares se impuseram a tarefa de distribuir e fazer chegar
os alimentos até o consumidor.
A preocupação principal foi a de responder à demanda da sociedade, que exigia preços mais baixos e, a partir de 1968, instituiuse uma extensa rede de centrais de abastecimento (47 entrepostos) e mais de uma centena de instalações varejistas (Rede Somar).
A partir daí, surgiram centenas de
“varejões” e “sacolões” administrados por
estados e municípios. Essa postura foi
bastante distinta da anterior, que manteve
sob a administração pública apenas o esquema de concessões em mercados municipais. O Estado passou, então, a administrar e direcionar os varejistas.
O esforço de modernização da agricultura brasileira no período afastou de imediato a preocupação com a disponibilidade de alimentos. O principal fator
impulsionador da agricultura foi a política
de crédito rural subsidiado. O resultado
foi uma rápida expansão da fronteira agrí100
cola, que demandou, evidentemente, a
construção de uma rede de estradas e corredores para escoar a produção.
Não obstante a produção agrícola fosse
suficiente para atender às necessidades
nutricionais — mesmo considerando a crescente exportação — e, ainda, o fato de que
parte importante da distribuição estivesse
sob controle do poder público, os preços
dos alimentos continuaram elevados.
Por outro lado, cresceu a importância
dos produtos industrializados na cesta de
consumo da população. Com a urbanização e a mudança dos hábitos alimentares
no país, a demanda por alimentos in natura
foi se reduzindo.
Assim, uma parte cada vez mais importante da produção agrícola passou a ser
insumo da indústria de alimentos e, daí,
para os supermercados e mercearias.
Acrescentem-se a isso também as mudanças ocorridas na estrutura familiar
e no mercado de trabalho, que levaram
a um crescente consumo de alimentos
fora de casa.
2.2.4 – De Sarney a Fernando
Henrique Cardoso
Apesar de todo o aparato montado ao
longo dos 30 anos anteriores, o poder
público mostrou-se ineficiente no controle de preços, das margens de lucro e na
modernização da comercialização.
Em 1986, no Governo Sarney, foi criado
o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC), visando atender a
famílias com renda mensal total de até dois
salários mínimos e com crianças de até sete
anos de idade.
Esse programa foi a primeira experiência
de distribuição, em grande escala, de cupons de alimentos no Brasil. A administração do PNLCC estava vinculada diretamen-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
te à Presidência da República, que passou
a controlar a oferta (produção e importação de leite) e o sistema de distribuição.
Os cupons eram distribuídos às famílias
carentes previamente cadastradas em entidades de base, na proporção de um litro
de leite por criança. Não havia
contrapartida dessas famílias e nem um
controle eficiente.
Não há informações precisas quanto ao
atingimento das metas, no entanto, observouse um significativo aumento na produção de
leite no país (20,1 % entre 1986 e 1990) e um
crescimento no consumo per capita de 94
para 109 litros por ano no mesmo período.
No início da década de 90, o Governo
Collor desmobilizou e extinguiu diversas
políticas, entre as quais os programas de
suplementação alimentar dirigidos a crianças menores de sete anos, o Programa
Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Alimentação do Trabalhador, enfraquecendo, assim, o Instituto Nacional
de Alimentação e Nutrição (INAN).
O período seguinte (1992-1994) foi marcado por um amplo envolvimento da sociedade
em torno dos temas fome e miséria, animada
pela campanha da Ação da Cidadania contra
a Fome, a Miséria e pela Vida, coordenada
pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Em maio de 1993 o Governo Itamar Franco criou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), vinculado diretamente à Presidência da República e
com a participação de organizações não
governamentais.
O Conselho era integrado por oito ministros e 21 representantes da sociedade
civil, os quais coordenariam a elaboração
e a implantação do Plano Nacional de Combate à Fome e à Miséria dentro dos princípios da solidariedade, parceria e
descentralização.
O CONSEA funcionou por apenas dois
anos. Alguns de seus resultados foram: a
descentralização da merenda escolar (Programa Nacional de Alimentação Escolar) em direção aos municípios e às próprias escolas
(autonomização da gestão); a continuidade
do Programa de Distribuição de Alimentos
(PRODEA), com a utilização de estoques públicos de alimentos; e a prioridade ao programa de distribuição de leite (Programa de Atendimento ao Desnutrido e à Gestante em Risco Nutricional —Leite É Saúde).
O Governo Fernando Henrique extinguiu o INAN e o CONSEA e, em seu lugar,
criou o Conselho Comunidade Solidária.
Em 1999, foi criado o Programa Comunidade Ativa (PCA), coordenado pela Secretaria Executiva do Comunidade Solidária.
O PCA voltou-se para os municípios com
os piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Sua proposta
foi estimular a implantação de agendas locais de desenvolvimento, com base em diagnósticos participativos para identificação dos problemas de cada localidade.
A partir dessas agendas, o governo federal priorizaria essas localidades em programas como Redução da Mortalidade Infantil,
Agentes Comunitários de Saúde, Saúde da
Família e de concessão de microcrédito.
Após a extinção do INAN, o principal
programa federal para combate às carências nutricionais da população de risco
consistia no fornecimento de leite e óleo
de soja, feito pelo programa de Incentivo
ao Combate às Carências Nutricionais
(ICCN), do Ministério da Saúde, juntamente com o fornecimento da multimistura para
crianças desnutridas, realizado pela Pastoral da Criança.
No final de 2000, o governo federal cortou a verba do PRODEA do Orçamento da
União, acabando com a distribuição de ces-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
101
tas básicas. A justificativa oficial foi o caráter assistencial do programa, que, segundo o governo, não contribuía para o combate à pobreza no país. Argumentou-se,
também, que a distribuição de cestas vindas de fora não ajudava a economia local.
Embora nunca tenha saído da pauta de problemas nacionais, houve um arrefecimento
na discussão sobre o problema da fome e da
miséria no país desde o fim da mobilização
promovida pela Ação da Cidadania contra a
Fome, a Miséria e pela Vida, em 1993.
2.3 - As Políticas Propostas
O Programa Fome Zero é composto por
dezenas de ações integradas com o objetivo de erradicar a fome e implementar uma
política permanente de segurança alimentar e nutricional. As ações estão sendo
implementadas, de forma gradativa, visando a garantir segurança alimentar aos brasileiros que não dispõem de renda suficiente para uma alimentação adequada.
São três as frentes de atuação do Programa: um conjunto de políticas públicas; a construção participativa de uma Política Nacional
102
de Segurança Alimentar e Nutricional e um
grande Mutirão Contra a Fome.
As políticas públicas são apresentadas
em três conjuntos de políticas articuladas
entre si. São elas:
· políticas estruturais – voltadas para as
causas profundas da fome e da pobreza;
· políticas específicas – voltadas para
atender diretamente as famílias no que se
refere ao acesso ao alimento; e
· políticas locais – que podem ser
implementadas por prefeituras e pela sociedade.
O Programa Fome Zero partiu do diagnóstico de que não existe uma política integrada
de combate à fome no Brasil. Nos últimos
anos, os três níveis de governo e a sociedade
colocaram em marcha iniciativas isoladas, com
um nível de organicidade muito reduzido.
No total, o Fome Zero estabelece 25
políticas integradas por mais de 40 programas destinados a melhorar a qualidade, a quantidade e a regularidade de alimentos necessários à população:
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
O MESA (Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar de Combate à
Fome) estabeleceu cinco áreas
prioritárias de implantação do programa:
o semi-árido nordestino, incluindo o Vale
do Jequitinhonha, em Minas; os acampamentos e assentamentos rurais; as
aldeias indígenas; os quilombolas; e a
população que vive nos/dos lixões.
Isso não significa, entretanto, a exclusão das demais áreas do país. Qualquer
município ou Estado pode integrar-se ao
programa desde que cuide de instituir o
CONSEA (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional) municipal ou estadual, com membros na proporção de 2/3
de representantes da sociedade civil organizada (priorizando entidades que atuam na área da segurança alimentar) e 1/3
de representantes do poder público.
2.4 - A Logística Aplicada
Paradoxalmente à constatação do enorme efetivo de brasileiros que não se ali-
mentam adequadamente, o Brasil anunciou
a colheita de uma safra recorde em 2003,
da ordem de 115 milhões de toneladas de
grãos – 19% superior à anterior.
Num país que figura como um dos quatro maiores exportadores de alimentos do
mundo, o retrato da desnutrição muitas
vezes é esmaecido pela abundância da
oferta.
Definitivamente, o Brasil figura como o
exemplo inconteste de que a simples capacidade produtiva de alimentos em abundância não confere segurança alimentar à
população. No ANEXO 1 e no ANEXO 2,
pode-se perceber que a maior parte da
demanda do mercado interno é produzida
em território nacional.
O planejamento logístico do programa
Fome Zero partiu da detecção de que a
produção dos alimentos no país está submetida à mesma lógica subjacente às desigualdades regionais.
ESTIMATIVA DE PRODUÇÃO DE GRÃOS
SAFRAS 2001/02 e 2002/03
(em 1.000 t)
VARIAÇÃO
SAFRA
CULT URA
CAROÇO DE ALGODÃO
AMENDOIM TOTAL
AMENDOIM (1 ª SAFRA)
AMENDOIM (2 ª SAFRA)
ARROZ
AVEIA
CENTEIO
CEVADA
FEIJÃO TOTAL
FEIJÃO (1 ª SAFRA)
FEIJÃO (2 ª SAFRA)
FEIJÃO (3 ª SAFRA)
GIRASSOL
MAMONA
MILHO TOTAL
MILHO (1 ª SAFRA)
MILHO (2 ª SAFRA)
SOJA
SORGO
TRIGO
TRITICALE
BRASIL
2001/02
(a)
1.244,9
189,4
157,7
31,7
10.626,1
284,7
5,8
234,8
2.956,5
1.303,0
1.030,2
623,3
71,0
72,4
35.280,7
29.100,2
6.180,5
41.915,3
798,2
2.913,9
138,8
96.732,5
2002/03
(b)
1.351,4
171,3
141,6
29,7
10.616,1
284,7
6,0
295,4
3.231,9
1.240,4
1.278,9
712,6
71,5
103,7
42.757,5
33.696,6
9.060,9
50.325,0
1.180,4
4.514,7
301,9
115.211,5
PERCENTUAL
ABSOLUTA
(b/a)
(b-a)
FONTE: CONAB
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
8,6
-9,6
-10,2
-6,3
-0,1
0,0
3,4
25,8
9,3
-4,8
24,1
14,3
0,7
43,2
21,2
15,8
46,6
20,1
47,9
54,9
117,5
19,1
106,5
-18,1
-16,1
-2,0
-10,0
0,0
0,2
60,6
275,4
-62,6
248,7
89,3
0,5
31,3
7.476,8
4.596,4
2.880,4
8.409,7
382,2
1.600,8
163,1
18.479,0
abr/03
103
A capacidade de armazenamento, por
exemplo, constitui um indicador logístico
bastante elucidativo. A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) possui
um cadastro de armazéns com os quais
opera na implementação das políticas emanadas do Ministério da Agricultura.
flete a proporcionalidade do número de
habitantes consumidores da área. Os instrumentos governamentais para garantia
de oferta e controle de preços, portanto,
estão bastante comprometidos.
Atuando na execução da Política de
Garantia de Preços Mínimos (PGPM), a
CONAB adquire o excedente do mercado,
formando os estoques reguladores e estratégicos do Governo Federal, para
comercialização nas épocas de
entressafra.
Pode-se constatar, também, a insuficiência de distribuição espacial de armazenagem. Nas regiões Norte e Nordeste poucos Estados da Federação possuem armazéns credenciados, ao passo que nas demais regiões do país, todos os Estados
possuem uma rede de armazenagem privada compatível com os critérios técnicos
da CONAB.
Observa-se claramente na FIGURA 6 que
o número de armazéns privados
credenciados na região Nordeste não re-
A implementação das políticas específicas do Programa Fome Zero, como o Cartão-Alimentação, a manutenção de esto-
NÚMERO E CAPACIDADE ESTÁTICA DOS ARMAZÉNS CREDENCIADOS POR ESPÉCIE E REGIÃO
ESPÉCIE
UF
NORTE
RONDONIA
TOCANTINS
TOTAL
NORDESTE
BAHIA
MARANHÃO
TOTAL
CENTRO-OESTE
DISTRITO FEDERAL
GOIÁS
MATO GROSSO DO SUL
MATO GROSSO
TOTAL
SUDESTE
ESPIRITO SANTO
MINAS GERAIS
RIO DE JANEIRO
SÃO PAULO
TOTAL
SUL
PARANÁ
RIO GRANDE DO SUL
SANTA CATARINA
TOTAL
TOTAL BRASIL
MÊS:
Abril/2003
CONVENCIONAL GRANEL
TOTAL
Nº ARM. CAPAC (t) Nº ARM. CAPAC (t) Nº ARM. CAPAC (t)
4
1
5
12.900
4.000
16.900
1
1
28.000
28.000
4
2
6
12.900
32.000
44.900
15
15
33.031
33.031
2
2
18.000
18.000
15
2
17
33.031
18.000
51.031
3
20
9
37
69
23.100
116.598
36.736
243.501
419.935
1
46
14
48
109
25.800
1.959.663
328.636
928.356
3.242.455
4
66
23
85
178
48.900
2.076.261
365.372
1.171.857
3.662.390
3
17
11
31
63.000
131.948
145.937
340.885
1
4
2
7
12.000
123.850
54.301
190.151
4
21
0
13
38
75.000
255.798
200.238
531.036
165
3
3
171
881.915
11.813
6.390
900.118
221
7
2
230
3.986.835
109.693
17.568
4.114.096
386
10
5
401
4.868.750
121.506
23.958
5.014.214
291
1.710.869
349
7.592.702
640
9.303.571
Fonte: CONAB/SUARM/GECAD
104
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
ques de segurança, ou mesmo a ampliação da merenda escolar, contribuirá para
um aumento na demanda comercial de alimentos na região, que deverá fomentar a
instalação gradual de infra-estrutura para
o agronegócio.
É importante ressaltar que 49,6% das 44
milhões de pessoas a serem beneficiadas
com o Fome Zero estão na região Nordeste, a qual responde por apenas 10% da
produção nacional de grãos. No ANEXO
3 e no ANEXO 4 pode-se observar o que
ocorre com os dois itens de maior consumo no país.
Observa-se, portanto, que no curtíssimo
prazo a produção nacional é insuficiente,
à exceção do óleo de soja e café, para suportar tal acréscimo de demanda. Como o
programa está faseado, almejando atingir
no primeiro ano 9,6 milhões de pessoas, o
governo pretende promover o aumento da
produção de forma gradual, combinandoa com importações e constituição de estoques reguladores estratégicos.
A Confederação Nacional da Agricultura estima que o aumento da demanda
poderá chegar a 56% no caso do feijão,
23% no leite, até 12% para o arroz e de
17% para carne de frango.
Os estoques atuais de alimentos são os
menores da década e praticamente
inexistem estoques públicos (Oliveira e
Hofstaetter, 2001).
Especialmente na região nordeste, é imperativo o retorno de programas de incentivo a empreendimentos que visem a melhora na rede armazenadora, especialmente nas cooperativas de produtores, que
possibilitem a comercialização tardia e programada fora das épocas de colheita.
O equacionamento logístico definitivo
da questão alimentar passa, portanto, pela
diminuição da discrepância entre as zonas produtoras e a região onde se localizam os mais necessitados. Atualmente,
quase 90% da produção nacional localizam-se no Sul, Sudeste e porção meridional do Centro-Oeste, enquanto que 60%
dos famintos habitam o Norte-Nordeste.
3 – A LOGÍSTICA MILITAR E
O PROGRAMA FOME ZERO
“Se servistes à Pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, e ela o que
costuma”.(Padre Antônio Vieira em sermão
de 1669, sobre os militares e o poder político).
3.1 – Considerações Iniciais
Sabe-se que a atividade logística é
oriunda do meio militar, no entanto, desenvolveu-se no ambiente empresarial de
forma tão significativa nos últimos anos
que, especialmente nos EUA, a logística,
dita civil, assumiu paulatinamente a maior
parte dos encargos da logística militar via
“terceirização”.
Hoje no Brasil esse fenômeno de desenvolvimento no meio privado também
se verifica com grande vigor. Empresas
especializadas em logística criaram um nicho estratégico, onde se concentra toda
operação de armazenagem, transporte,
gerenciamento de insumos e distribuição
dos produtos.
Os investimentos realizados por essas
empresas em modernização (informatização
dos processos, softwares de gestão, apoio
ao comércio pela Internet, sofisticados controles de estoques, etc.) necessita ser estudado, entendido e considerado na confecção dos planos logísticos que viabilizam o
emprego das Forças Armadas nas diversas HE.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
105
Estar apto a transitar com desenvoltura
no meio da moderna logística civil será
fundamental para, nas ativações das Bases Logísticas em Operações Militares,
lograr o controle efetivo de estoques em
armazéns fiéis depositários de itens de suprimento que extrapolem a capacidade das
instalações militares, realizar processos
licitatórios de bens e serviços com as ferramentas do mercado, ou mesmo valer-se
da experiência obtida nos últimos anos por
diversos grupos no transporte multimodal.
Integrar a logística militar ao esforço
conjunto que vem sendo realizado pelo
setor produtivo em apoio ao Programa
Fome Zero pode se constituir em útil oportunidade de criação de interfaces interessantes, senão imprescindíveis, à Logística
Militar.
3.2 - As contribuições do Fome Zero à
Logística Militar.
Algumas hipóteses de Emprego, estudadas hoje no Ministério da Defesa, contemplam a necessidade de obtenção de
competência para o desenvolvimento da
função logística suprimento – especialmente à população civil – de forma muito
próxima ao que está sendo implementado
no Programa Fome Zero.
Grandes massas humanas tendo que se
deslocar, ou sendo evacuadas de determinadas áreas, acarretarão a necessidade de
abrigos temporários, ou mesmo acampamentos para refugiados, com demandas
logísticas muito semelhantes às dispensadas hoje pelo Programa aos acampamentos e assentamentos do Movimento dos
Sem Terra (MST).
O adestramento logístico para apoiar as
diversas HE demanda simulações
dispendiosas e de difícil realização. As
conseqüências vislumbradas à população
106
civil evacuada da Zona de Combate (ZC),
bem como àquela parcela majoritária que
experimentará o Esforço de Guerra nas distintas áreas da Zona de Interior (ZI) demandará interfaces vigorosas com a Defesa Civil e demais organizações afetas às
questões humanitárias.
Os militares tendem à hesitação em
institucionalizar esse tipo de adestramento porque não desejam que as emergências humanitárias, ações consideradas subsidiárias, interfiram com o adestramento
relacionado às missões mais tradicionais
de combate.
A despeito do cunho eminentemente
defensivo de todas as HE consideradas
pelo MD - o que invariavelmente incluiria
parte do território brasileiro no Teatro de
Operações (TO) - pouco se considera de
adestramento para as operações de Segurança e Defesa de Área de Retaguarda (SEGAR e DEFAR).
A logística envolvida no Programa
Fome Zero poderia ser aproveitada para
atualização de conhecimentos específicos
e fomento de uma rede mais integrada de
agentes que certamente estarão envolvidos na ZI, em uma eventual escalada de
crise e concretização de HE subseqüente.
A fome advinda da guerra é uma certeza
que, por si só, já seria um importante ponto de convergência. No entanto, o ponto
que mais se ressalta diz respeito às características dos conflitos armados contemporâneos. O terrorismo se proliferou nos
combates assimétricos, e os grandes desastres planejados e provocados como
meio de guerra são uma realidade. A concepção de novas doutrinas para DEFAR e
condução das atividades na ZI urge.
Outro benefício do Fome Zero à
Logística Militar relaciona-se à inserção
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
planejada pelo Programa em áreas sensíveis como a Amazônia e, em especial, às
reservas indígenas.
É do conhecimento geral as manobras
“pacíficas” de grandes potências econômicas em relação à Amazônia, sob a alegação de sua importância e interesse de toda
a humanidade.
O governo federal brasileiro, em passado recente, demarcou para os índios
Ianomâmis uma reserva com área de 94 mil
quilômetros quadrados (o tamanho do
Estado de Santa Catarina). Esta vasta reserva é povoada por cerca de cinco mil
índios e prolonga-se em território
venezuelano. As duas, somadas e fundidas em uma só, sem solução de continuidade, podem formar um enclave entre os
dois países, com foros de estado independente.
Cabe recordar que, em recente conferência internacional realizada em Genebra,
sob os auspícios da ONU, foi debatido
um projeto de Declaração Universal dos
Direitos Indígenas. Nesse projeto pretendeu-se inserir o princípio do direito à autodeterminação dos territórios indígenas
– proposta vigorosamente combatida pelo
representante do Itamaraty. Com efeito, se
concedido esse direito à autodeterminação, o País estaria a braços com um problema de gigantescas proporções.
A inclusão social de parcelas cada vez
maiores da população indígena, e de residentes em áreas circundadas por florestas, desde muito figura entre as ações estratégicas do Projeto Calha Norte, mormente defendido pelas Forças Armadas.
A proposta do Programa é potencializar
as atividades locais com o fomento da economia regional nos municípios que fazem
parte da Amazônia, principalmente, aque-
les que têm como principal fonte de renda
as atividades extrativistas.
Os recursos do Programa servirão para
a aquisição de equipamentos que poderão gerar emprego e renda às famílias, que
precisam de motor para barcos,
despolpadeira de frutas, além de outros
instrumentos que podem incentivar de
forma direta a economia local. A construção de armazéns para garantir a armazenagem da produção familiar, característica na
região, é uma das ações que garantirá a
organização dos produtores.
Antes mesmo da demonstração
inconteste ocorrida recentemente no
Iraque, o novo Direito Internacional já
apontava para algumas concepções, constantemente ressaltadas pela Forças Armadas, tais como: direito de ingerência, tutelas supranacionais, direitos humanitários
e soberanias limitadas, todos coincidindo
no desconhecimento da primazia estatal
dentro da ordem internacional.
O desenvolvimento social na área amazônica, a presença do Estado, e a disseminação da cidadania inclusiva vêm, portanto, ao encontro dos interesses da Defesa
Nacional e criam condições logísticas mais
favoráveis ao cumprimento das missões
de caráter militar na região.
Outro ponto interessante de análise,
dessa convergência de interesses entre o
Fome Zero e os interesses de Defesa, diz
respeito à capacitação das Forças Armadas para um relacionamento eficaz com
organizações civis.
O Brasil reivindica uma reestruturação
no Conselho de Segurança da ONU e sua
inclusão como membro permanente. Tal
aspiração demandará um engajamento
crescente das Forças Armadas em Operações de Paz e de Ajuda Humanitária.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
107
As Forças Armadas brasileiras há muito
adotam o adestramento de combate como
Importante dissuasor estratégico, no entanto, necessitam também estar aptas às operações multinacionais de paz, que têm grande
valor no cumprimento do mesmo papel.
Uma doutrina específica necessitará ser
assimilada pelas Forças, pois, nessas ocasiões, é grande a interação logística com
ONG para diversas missões, que vão desde ajuda a descarregar suprimentos dos
caminhões militares à montagem conjunta
de hospitais de campanha.
As situações pós-conflitos (como se verifica no Iraque no exato momento da elaboração deste trabalho) são adequadas às
operações militares de assistência humanitária, com forte presença de ONG, eivadas
de problemas advindos dessa relação estreita de militares com organizações civis.
O militar precisa entender melhor os requisitos e filosofias das organizações não
governamentais e suas funções, bem como
pode-se levar muito tempo para convencer
as ONG de que as Forças Armadas em Missões de Paz, tem os mesmos objetivos.
Os militares tendem a buscar uma solução que estabilize a situação em curto prazo, seja por meio de ações que venham a
contribuir para o fim da fome, seja pela construção de abrigos temporários em caso de
desastres, ou pela diminuição das pressões.
As ONG, por outro lado, têm tratado de situações humanitárias por décadas, tais como a
pobreza, o subdesenvolvimento, as doenças
e a inanição. As organizações civis preferem a
abordagem em longo prazo. Em geral se encontram na área bem antes que as Forças de
Paz e permanecerão por mais tempo.
Envolver-se institucionalmente com o
Fome Zero pode oportunizar a interação
antecipada com algumas organizações ci108
vis que, inevitavelmente, estarão presentes nos Teatros de Operações planejados
em algumas HE.
Na Amazônia, por exemplo, é bastante
improvável que uma atuação das Forças
Armadas se configure de forma asséptica.
Não será surpresa se algumas ONG se encontrem na área, antecipadamente à concentração estratégica das Forcas Armadas.
Na Bósnia, algumas ONG, ou Organizações
Voluntárias Privadas (OVP), já estavam no TO
cinco anos antes da chegada das tropas da
OTAN. Na Somália, por sua vez, as Forças
Armadas dos EUA tiveram que interagir com
setenta e oito diferentes ONG internacionais.
Ser alçado à posição mais condizente
com sua estatura geopolítica é um objetivo estratégico de real importância, no entanto, poderá exigir do Brasil, em breve, a
contribuição mais efetiva de suas Forças
Armadas em Missões de Paz.
Conduzir trocas de prisioneiros, coordenar a desmobilização, exercer o controle de
armas, realizar a desminagem, interpor-se
na fase de desengajamento, são missões
tipicamente militares que, invariavelmente,
coexistirão com o auxílio humanitário, o
apoio de saúde, a administração de deslocamentos maciços de gente, o
monitoramento de eleições, e diversas outras atividades com forte presença civil.
3.3 - As contribuições da Logística
militar ao Fome Zero
O Ministério da Defesa estabeleceu que
a participação das Forças Armadas se dará
por intermédio da instalação de Postos de
Coleta de Alimentos (PCA), em Organizações Militares pré-selecionadas em todo
o País (ANEXO 5).
Cada PCA desenvolverá os serviços de
recebimento, armazenamento e controle do
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material não perecível doado, sendo o
transporte para o recolhimento dos
donativos da responsabilidade das organizações civis envolvidas.
A atuação das OM da Marinha, Exército e da Aeronáutica designadas como
PCA, não se constitui em Operação Militar e encontra amparo legal no disposto
pelo artigo 16, da Lei Complementar N° 97,
de 09 de junho de 1999, que trata de ações
subsidiárias.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, o
PCA credenciado é o 21° Depósito de Suprimento, com capacidade de armazenagem de 500 toneladas (podendo gerenciar
adicionalmente mais 500 toneladas em depósito localizado no aquartelamento do 2°
Grupo de Artilharia Antiaérea, pertencente ao antigo Depósito Regional de Armamento e Munição - DRAM/2).
Persistem alguns entraves à otimização do
Programa, que as Forças Armadas têm condições, por sua experiência, de auxiliar a debelar. Um exemplo pouco conhecido diz respeito à utilização de objetos e gêneros alimentícios apreendidos pela Receita Federal.
A legislação que regula a destinação dos
objetos apreendidos determina que os mesmos sejam leiloados, incorporados a órgãos
públicos das três esferas de governo ou
doados a entidades sem fins lucrativos.
A Portaria Nr 280, da Receita Federal,
baixada pelo secretário da Receita, Jorge
Rachid, em 10 de maio de 2003, determina
a prioridade de doação de mercadorias
apreendidas ao programa “Fome Zero”,
coordenado pelo Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar.
A idéia de direcionar os produtos apreendidos (principalmente alimentos, roupas
e calçados), para o Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza, ainda não se efe-
tivou a contento. Dentre algumas razões,
a falta de comunicação e, principalmente,
o domínio dos meandros típicos dos processos administrativos envolvidos (documentação necessária para solicitações,
atos de destinação, transferências
patrimoniais, etc.) parecem figurar como
as principais.
As Forças Armadas são habitualmente
beneficiadas com os produtos apreendidos e já desenvolveram, nos últimos anos,
a rede de contatos e competência necessária para lograr a incorporação de bens e
gêneros alimentícios à sua cadeia de suprimento, com transparência e controle.
Somente no porto de Santos, no ano de
2002, mais de 100 toneladas de alimentos
apreendidos foram direcionadas às três
Forças Armadas (alho, grão-de-bico, azeitona, pasta de atum, bacalhau, alcaparra,
enlatados diversos, etc.). Na logística desse processo encontram-se medidas complexas para uma organização filantrópica,
tais como: exames bromatológicos nas amostras de alimentos apreendidos, planejamento
prévio de distribuição, transporte comum e
frigorificado, técnicas de armazenagem,
mecanismos de controle, etc.
Uma parte considerável dos alimentos
apreendidos nos últimos anos pela Receita Federal se deteriorou nos depósitos e,
consequentemente, foi descartada. Em algumas oportunidades, as quantidades
apreendidas foram de tal monta, que
extrapolaram a capacidade de transporte,
ou de consumo dentro dos prazos de validade pelas Organizações Militares e civis.
É fato que a experiência adquirida pelas
Forças Armadas para viabilizar o aproveitamento de gêneros alimentícios aprendidos, em tempo hábil e dentro dos prazos
de validade, poderia ser colocada à disposição do Programa.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
109
4 – O FOME ZERO E A
MOBILIZAÇÃO NACIONAL
“A hora de consertar o telhado é quando o sol está brilhando” (Sepúlveda Pertence)
4.1- Considerações Iniciais
Na fase de Execução de uma Mobilização
Nacional, ao Estado incumbe promover a
transferência de meios existentes no Poder
Nacional e a produção oportuna de meios
adicionais, de forma acelerada e compulsória, em face da iminência de concretização
ou da efetivação de uma Hipótese de Emprego das Forças Armadas.
Essas ações podem causar transtornos
à vida nacional e são, consequentemente,
dependentes da maneira como o Preparo
da Mobilização, em grande parte inserido
no processo de Desenvolvimento, for planejado e executado.
A maior ou menor facilidade que tem a
Nação de passar de uma situação normal
para uma situação de emergência de grau
excepcional é aferida por meio de sua Capacidade de Mobilização, ou seja, de seu
grau de aptidão para, em tempo oportuno, passar de uma situação de paz para
uma de guerra, com o máximo de eficácia e um mínimo de transtornos para a
vida nacional.
Embasa essa aptidão para Mobilização
uma forte componente psicossocial, não
inata, antes, adquirida na forja do sofrimento coletivo experimentado no decorrer da História de um povo.
A ausência histórica de catástrofes naturais (ou acidentais), que atingissem uma
grande parcela das elites brasileiras, acarretou uma certa desarticulação da sociedade para reagir de forma sistêmica às
ameaças sociais.
110
A desejável promoção do bem comum
tem suas raízes mais profundas no
afloramento de um sentimento de solidariedade nacional, observável claramente,
não por acaso, em alguns países que tiveram seus territórios e populações atingidos severamente por conflitos armados de
grande destruição.
É notório que o Programa de Segurança
Alimentar Fome Zero foi concebido em
uma situação conjuntural rara, caracterizada pela convergência de uma série de
processos políticos, econômicos e sociais. Tal momento histórico, propiciou um
fenômeno de engajamento da sociedade,
e em especial das elites, bastante semelhante ao verificado nos países sob forte
ameaça externa.
“A nossa Guerra é contra a Fome” foi o
slogan oportunamente utilizado pelo Programa, em contraponto à invasão do Iraque
pela coalizão anglo-americana no início de
2003. Ainda que o argumento de marketing
adotado esteja baseado em uma mensagem
anti-belicista, aufere possibilidade de reflexão ideológica com respeito à Mobilização
inerente à “nossa guerra”.
4.2 - A Contribuição ao Preparo da
Mobilização Nacional
No que tange à Expressão Psicossocial
do Poder Nacional, pode-se afirmar que o
momento presente pode servir de estágio
prévio ao desejável desenvolvimento de
uma cultura de Defesa, quiçá um embrião
de natureza psicológica da Mobilização
Nacional.
Segundo o Manual de Mobilização Nacional (MD51-M-01) a Mobilização na Expressão Psicossocial do Poder Nacional
visa à motivação de pessoas e da sociedade com o propósito de preparar a na-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
ção, social e psicologicamente, para fazer
face a uma situação de emergência decorrente da iminência de concretização ou
efetivação de uma Hipótese de Emprego
das Forças Armadas “.
A Mobilização na Expressão Psicossocial
pode ser dividida, ainda que didaticamente, em dois segmentos, cada um deles com
aspectos peculiares: a Mobilização Social
e a Mobilização Psicológica.
A Mobilização Social tem por objetivo
preparar a população, física e socialmente, a fim de proporcionar ao Estado condições indispensáveis para enfrentar uma
situação de emergência, configurada em
Hipótese de Emprego já concretizada ou
na iminência de se concretizar.
Na busca do Bem Comum, o Governo,
desde a situação normal, desenvolve
ações e persegue metas preconizadas
para o campo do Desenvolvimento que
valorizam, em especial, o Homem e que
se confundem com as do Preparo da
Mobilização Social.
Existem diversos pontos de convergência entre o preconizado no Manual MD51M-01 e o Programa Fome Zero. O documento do MD propõe medidas que busquem a maior participação comunitária visando a fomentar a ajuda mútua nos grupos sociais para debelar alguns fatores
como: problemas decorrentes da distribuição da renda e desigualdade no desenvolvimento regional.
A Mobilização Psicológica, por sua vez,
tem por objetivo preparar a população,
moral e psicologicamente, a fim de proporcionar ao Estado condições indispensáveis para enfrentar uma situação de emergência, configurada em Hipótese de Emprego já concretizada ou na iminência de
se concretizar.
Na fase do Preparo da Mobilização
Psicológica o governo desenvolve
ações visando a alcançar uma série de
metas básicas, dentre as quais, para o
objetivo específico deste trabalho, ressalta-se a seguinte: fortalecer o sentimento nacionalista e o moral do povo,
cultivando o espírito de solidariedade
nacional.
Não se pode negar que os atributos da
área afetiva desejáveis a uma Mobilização
Psicossocial, estão amplamente colimados
com o marco filosófico do programa governamental de segurança alimentar.
A Mobilização da Expressão econômica, por sua vez, deve considerar que
o conceito de Segurança alimentar ganha contornos estratégicos ao confrontar-se com as relações mundiais de poder, evidentemente favoráveis aos que
concentram 85% dos recursos econômicos – o chamado Hemisfério Norte – em
detrimento dos países do “Sul”, que contam, paradoxalmente, com 80% da população do planeta.
Ao se configurar realmente em território brasileiro o propalado celeiro do
mundo, não se pode olvidar que, no recente final do século passado, as 200
maiores empresas transnacionais consolidaram-se como verdadeiros conglomerados, cujas atividades planetárias
abrangem, sem distinção, os setores primário, secundário e terciário: grandes
plantações agrícolas, produção
manufatureira, serviços financeiros, comércio, logística, etc.
Geograficamente, esses conglomerados
distribuem-se entre dez países: Japão (62),
Estados Unidos (53), Alemanha (23), França (19), Reino Unido (11), Suíça (8), Coréia
do Sul (6), Itália (5) e Holanda (4).
(Ramonet,1997).
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
111
Isso levando-se em conta somente a
economia real, ou seja, a que produz e troca bens e serviços concretos. Caso fossem considerados os atores principais da
economia financeira, isto é, os principais
fundos de pensão americanos e japoneses, o peso dos Estados torna-se quase
negligenciável.
No mais importante esforço financeiro
feito na história econômica contemporânea em favor de um país em crise econômica– México em 1995 – os grandes Estados do planeta, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional reuniram o
valor aproximado de US$50 bilhões.
Tomando-se em conta somente os balanços publicados dos três maiores fundos de pensões norte-americanos Fidelity Investments, Vanguard Group e
Capital Research and Management –
pode-se constatar que esses grupos sozinhos controlam mais de 10 vezes aquele
valor, ou seja, mais de US$ 500 bilhões. Os
administradores desses fundos concentram em suas mãos um poder financeiro
de uma envergadura inédita, que nenhum
ministro da Fazenda ou diretor de Banco
Central do mundo possui.
Parece bastante evidente que a dependência da mão invisível do mercado para a
promoção espontânea do “bem comum”,
especialmente em países em desenvolvimento, não se configura como uma política social adequada. Afinal, como observa
o professor Paul Samuelson, prêmio Nobel
de economia, “O mercado é eficaz, mas
não possui cérebro nem coração”.
O Presidente Lula conclamou a sociedade, e em particular a elite econômica, a
um engajamento solidário típico dos períodos de emergência. Em seu discurso de
posse perante o Congresso Nacional, no
dia 1° de Janeiro de 2003 disse: “Transfor112
memos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foi no passado a criação da Petrobrás”. A resposta ao apelo
presidencial pode se verificar no expressivo engajamento ao Programa de grandes
grupos econômicos.
A transição do campo ideário para o da
efetividade não é fácil. O domínio do conhecimento que o país ora está adquirindo
de gerenciamento dos mecanismos possíveis de transferência de recursos econômicos para um enfrentamento emergencial, é
singular e valiosíssimo ao preparo de uma
eventual Mobilização Nacional.
A Mobilização da Expressão Política,
por outro lado, constitui um dos maiores
óbices encontrados na fase do Preparo da
Mobilização, acarretando a falta de instrumentos legais que legitimem sua ação.
As muitas medidas que necessitam ser
implementadas para viabilizar uma
Mobilização, evidentemente, devem ser
prévias a qualquer escalada de crise.
Do poder político emana o marco legal
que viabilizará as transferências de recursos entre as Expressões do Poder Nacional em caso de efetivação de uma HE,
no entanto, a passagem do campo das
idéias e das boas intenções para a efetiva implantação de instrumentos legais
de suporte ao um esforço de guerra, carece de testagens de difícil realização em
tempo de paz.
A implantação do Fome Zero deve ser
observada com atenção. A isenção fiscal,
concedida para o ICMS nas doações de
mercadorias e de serviços de transporte
para o Programa é um ensaio dos instrumentos fiscais que poderiam se configurar em situação prévia a uma Mobilização
Nacional.
O convênio ICMS 018/03, que trata da
isenção, foi aprovado na reunião do
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
Conselho Nacional de Política
Fazendária (CONFAZ) de 04 de abril de
2003. Para obter a isenção, os doadores
devem possuir Certificado de Participante do Programa. O MESA está responsável por divulgar no site do Programa
(www.fomezero.gov.br) a lista de entidades assistenciais e as empresas que têm
direito à isenção.
Na Expressão Militar do Poder Nacional, o sucesso do Fome Zero, enquanto
promotor do desenvolvimento social, contribuirá para a melhora dos recursos humanos mobilizáveis, em especial nas regiões mais pobres do País.
A Mobilização da Expressão Científica
e Tecnológica aplicada ao campo da
Logística, talvez seja uma das maiores contribuições do Programa Fome Zero.
É extremamente difícil para as Forças
Armadas, especialmente em tempos de
orçamentos exíguos, atrair a capacidade
já desenvolvida nesse campo do Poder
Nacional, para contribuir com as soluções
Logísticas necessárias à efetivação das HE
em exercícios de Mobilização.
A logística empresarial instada no País
oferece soluções personalizadas, sustentada por uma base tecnológica altamente
moderna e domínio dos diferentes modais
de transporte.
Em apoio às demandas do Governo, O
Fome Zero logrou atrair o esforço voluntário das melhores empresas de Logística
do País, fato de dificílima reprodução, é
mister reconhecer, na atual conjuntura da
Defesa Nacional.
A Gerência Geral Intermodal da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, colocou-se à disposição do Programa para
contribuir com o uso de sua malha ferroviária (com 700 vagões e 26 locomotivas
dedicadas), seus serviços de cabotagem
(com 6 navios conteineiros e 10 portos escalados), bem como sua flexibilidade de
2
armazenagem (em mais de 25 mil m de armazéns alfandegados) .
Por ocasião da campanha “Ford Zero,
Fome Zero” a Ford se propôs a doar 200
kg de alimentos a cada caminhão vendido
no mês de fevereiro. As vendas de caminhões cresceram 12% neste mês, comparadas com janeiro. Assim, foi possível chegar a 225 toneladas de alimentos, equivalentes a 8.590 cestas básicas.
A logística foi articulada entre a Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia
Brasileira de Abastecimento (CONAB). Os
alimentos seguiram em 10 conteineres para
o porto de Santos e de lá foram transportados de navio até o porto de Fortaleza,
no Ceará. O custo, assumido pela Vale,
representa uma economia de cerca de R$
60 mil em relação ao transporte terrestre.
Assim que foram desembarcados em
Fortaleza, os alimentos foram transportados até o armazém da CONAB em
Maracanaú, na região metropolitana da
capital. Por indicação da Ford, metade da
doação – 4.245 cestas básicas – seguiu
para Independência, município cearense
para o qual a empresa costuma direcionar
suas ações de responsabilidade social.
A Vale do Rio Doce mantém à disponibilidade do Fome Zero, representado pela
CONAB, cinco conteineres em qualquer
navio da empresa, e 1 conteiner em qualquer composição ferroviária se deslocando entre o porto de Santos e as cidades
Anápolis/Brasília, porto de Vitória e a cidade de Uberlândia ou nas conexões de
Santos para Salvador.
A TNT Logistics, outra grande empresa
especializada do setor, está trabalhando na
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
113
solução logística para a distribuição das cestas básicas que a CONAB licitou para distribuição a todos os acampamentos e assentamentos do Movimento dos Sem Terra.
A CONAB, por sua vez, vem participando
do Programa Fome Zero, no que concerne
ao abastecimento alimentar, na função de
executora operacional, recebendo produtos
e serviços em doação, comprando, vendendo, vendendo e comprando simultaneamente, transportando e armazenando alimentos,
incluindo a logística de distribuição de produtos e serviços aos beneficiários indicados pelo Ministério da Segurança Alimentar e Combate à Fome - MESA.
Pode-se acrescentar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), que no
ato de adesão ao Programa fez questão de
ressaltar ser a única empresa logística presente em todos os 5.561municípios do
país. Além de disponibilizar sua estrutura
para arrecadação e transporte de gêneros,
está oferecendo a solução logística para a
distribuição dos cartões-alimentação.
A ECT conta com uma infra-estrutura
logística composta por 12.234 agências,
37 aeronaves, 16 barcos, 5297 veículos,
15.489 motocicletas e 19.000 bicicletas em
apoio aos seus 47.000 carteiros.
Muitas das demandas da Logística Militar são perfeitamente mobilizáveis no País,
contudo, o hiato tecnológico entre as estruturas militares e o setor privado evidencia
uma grande vulnerabilidade a ser debelada
pelo Preparo da Mobilização Nacional.
Na falta de recursos para reproduzir, em
exercícios e simulações, uma situação de
emergência que aglutine o potencial empresarial logístico em prol dos interesses
da Defesa Nacional, integrar o Fome Zero
tem se tornado uma útil alternativa de atualização cognitiva.
114
5 - CONCLUSÃO
“Não devemos conservar o Exército a
que estamos acostumados, mas construir
o Exército de nossas necessidades”. (De
Gaulle, 1932).
É quase unânime o reconhecimento de
que, nesse início de Século, o mundo experimenta um período de rupturas, recomposição de forças geoestratégicas, abalo
das formas sociais, dos atores econômicos e dos pontos de referência culturais.
O estudo da Logística Militar e da
Mobilização Nacional, em todos os países que tratam as questões inerentes à
Defesa Nacional de forma estratégica, dáse em meio à perda de importância da sociedade industrial, em detrimento da sociedade do conhecimento e no exato momento em que o mundo observa novas
formas de se fazer a guerra.
Assim como as Forças Armadas que
souberam aproveitar os impulsos da revolução industrial conseguiram se projetar no cenário internacional, hoje uma
nova corrida se empreende para que a Expressão Militar do Século XXI consiga
engatar-se com oportunidade na estrutura da sociedade do conhecimento.
Os desafios são também diferentes. O
incrível avanço da tecnologia da informação possibilita a globalização do crime organizado, da especulação financeira, dos
delitos transnacionais de toda ordem, bem
como as possíveis conexões destes com
o terrorismo e os fundamentalismos.
No bojo dessa transformação acelerada
da sociedade, paradoxalmente ao grande
desenvolvimento científico-tecnológico,
agravaram-se os problemas econômicosociais em todo o mundo.
A concentração da renda aumentou e
pode-se verificar a incrível coexistência de
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
uma minoria de habitantes do Planeta
protagonizando a chamada era pós-moderna, um numeroso grupo de trabalhadores
e representantes da classe produtiva ainda no período moderno (industrial), e uma
enorme massa de seres humanos ainda na
pré-modernidade medieval.
Nesse contexto, o conceito de Segurança Alimentar de um país ganhou contornos estratégicos. Consolidou-se a
idéia de que a soberania de um país também depende da capacidade de assegurar o suprimento de alimentos à sua população, segundo os requisitos de: quantidade adequada, equilíbrio nutritivo, regularidade de oferta e dignidade na forma de obtê-lo.
No Brasil, o Programa Federal de Segurança Alimentar “Fome Zero” tornou-se
emblemático. Pretende que o combate à
fome seja o amálgama para uma nova proposta de desenvolvimento territorial, que
integre parte da agricultura e das economias locais que estão fora dos circuitos
competitivos internacionais das grandes
commodities agrícolas, permitindo-lhes
alternativas reais de geração de emprego
e renda através do aumento do consumo
de alimentos no mercado interno.
O Fome Zero pode ser compreendido
como um guarda-chuva de iniciativas sintonizadas com essa lógica. Abrange cerca
de 60 ações, das emergenciais, como o
cartão-alimentação e o mutirão em curso,
às estruturais, como a intensificação da
reforma agrária e o fomento à agricultura
familiar. As políticas e os programas envolvidos no Fome Zero têm como objetivo dar um tratamento universal à questão
da Segurança Alimentar.
Os pontos de convergência entre a
Política de Segurança Alimentar e os
objetivos da Defesa Nacional foram
evidenciados sob o enfoque sistêmico.
Não se pode entender adequadamente
o funcionamento do fenômeno da guerra por intermédio de uma visão parcial
da estrutura operacional, ou mesmo
logística.
O pensamento sistêmico é diverso do
analítico ou mecanicista. Analisar pressupõe um certo isolamento do objeto de estudo, seu fracionamento e observação a
fim de entendê-lo. Pensar de forma
sistêmica, no entanto, demanda o
discernimento de algo que se estuda no
contexto de um todo mais amplo.
As contribuições do Programa Fome
Zero aos interesses da Defesa Nacional,
da Logística Militar e a uma eventual
Mobilização
Nacional,
foram
exemplificados sob o marco do aproveitamento máximo das interfaces que devem
existir entre o meio civil e militar, desde o
tempo de paz.
O argumento foi construído na direção
de demonstrar que um país que não experimenta uma ameaça real à sua base
territorial desde o período imperial, não
deve prescindir, para o Preparo da
Mobilização, de nenhuma oportunidade
de desenvolvimento da capacidade de articulação de suas diversas Expressões do
Poder Nacional, em face de um antagonismo reconhecido pela sociedade, ainda que
de cunho social.
Ao se observar o momento atual, confrontado com as potencialidades humanas
e abundância de riquezas internas, fica
evidente que a maior força mantenedora
do persistente status de “país do futuro”,
não encontra amparo em uma crise da Nação, antes, do Estado brasileiro.
Acumuladas razões históricas, resumidamente exemplificadas neste trabalho e,
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
115
mais recentemente, o influxo do fenômeno da globalização, onde os Estados
adentraram em processos de privatização
e minimização de participação nos serviços públicos, se desfazendo de boa parte
das funções que os caracterizavam, encontram-se na base do atual estágio de
insegurança social.
Não se pode desejar a articulação vigorosa de uma sociedade para antepor-se às
ameaças inerentes à Defesa Nacional,
quando seus integrantes estão frustrados
e submetidos ao perigoso processo de
erosão da lealdade do cidadão para com
um Estado alicerçado em uma das maiores
cargas fiscais do mundo e contrapartida
social pífia.
O sucesso desse Programa de Segurança Alimentar, na erradicação da fome
e diminuição das desigualdades regionais, está perfeitamente colimado, portanto, com os Objetivos Nacionais estrategicamente propugnados sob o enfoque
da Defesa Nacional.
A prioridade absoluta atribuída ao Fome
Zero pelo governo federal logrou surpreendente adesão por parte das elites do
País. Oxalá possa fomentar um genuíno
sentimento pátrio em defesa dos interesses nacionais e da promoção do Bem Comum, estágio prévio à inserção soberana
de um país no concerto das Nações e embrionário à formação de uma cultura de
Mobilização Nacional.
Abstract
Starting from the newly stabilished concept of ‘Alimentary Security’ and from its
strategic aspect,recently implemented by Federal Government as Federal Program of
Alimentary Security (‘Zero Hunger’),the author shows its converging points with
National Defense,chiefly in the fields of Logistics and National Mobilization.
Keywords: Alimentary security, Logistics, National defense, National Defense.
116
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
Anexo 1
BRASIL
BA LA NÇO DE O FERTA E DEM ANDA
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1996/ 97
305,7
I MPOR T AÇ ÃO
438,5
1997/ 98
132,1
411,0
334,4
877,5
782,9
3,1
1998/ 99
91, 5
520,1
280,3
891,9
806,5
3,9
81, 5
1999/ 00
PR OD U ÇÃO
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931,1
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186,9
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798,7
91, 5
81, 5
700,3
299,9
1.081,7
885,0
28, 5
168,2
2000/ 01
168,2
938,8
81, 3
1.188,3
865,0
147,3
176,0
2001/ 02
176,0
766,2
67, 6
1.009,8
805,0
107,5
97, 3
2002/ 03
97, 3
829,4
130,0
1.056,7
750,0
185,0
121,7
1996/ 97
4.162,1
9.524,5
1.269,0
14. 955, 6
12. 147, 0
13, 4
2.795,2
1997/ 98
2.795,2
8.462,9
2.038,8
13. 296, 9
12. 236, 6
10, 0
1.050,3
1998/ 99
1.050,3
11. 582, 2
1.397,5
14. 030, 0
12. 157, 8
73, 0
1.799,2
1999/ 00
1.799,2
11. 423, 1
1.008,1
14. 230, 4
12. 085, 5
40, 1
2.104,8
2000/ 01
2.104,8
10. 386, 0
1.020,7
13. 511, 5
11. 986, 5
29, 4
1.495,6
2001/ 02
1.495,6
10. 626, 1
1.129,1
13. 250, 8
11. 981, 1
29, 4
1.240,3
2002/ 03
1.240,3
10. 616, 1
889,6
12. 746, 0
12. 049, 5
47, 8
648,7
1996/ 97
350,1
2.914,8
157,4
3.422,3
3.200,0
4,1
218,2
1997/ 98
218,2
2.206,3
189,7
2.614,2
2.500,0
1,1
113,1
1998/ 99
113,1
2.895,7
90, 0
3.098,8
2.950,0
2,0
146,8
1999/ 00
146,8
3.098,0
77, 7
3.322,5
3.050,0
2,0
270,5
2000/ 01
270,5
2.587,1
128,9
2.986,5
2.880,0
2,0
104,5
2001/ 02
104,5
2.956,5
88, 0
3.149,0
3.000,0
2,0
147,0
2002/ 03
147,0
3.231,9
81, 7
3.460,6
3.030,0
2,0
428,6
1996/ 97
8.816,6
35. 715, 6
604,4
45. 136, 6
35. 400, 0
188,0
9.548,6
1997/ 98
9.548,6
30. 187, 8
1.765,1
41. 501, 5
35. 000, 0
7,3
6.494,2
1998/ 99
6.494,2
32. 393, 4
796,9
39. 684, 5
35. 000, 0
7,7
4.676,8
1999/ 00
4.676,8
31. 640, 9
1.759,2
38. 076, 9
34. 480, 0
62, 1
3.534,8
2000/ 01
3.534,8
42. 289, 3
548,1
46. 372, 2
36. 235, 5
5.917,8
4.218,9
2001/ 02
4.218,9
35. 280, 7
450,0
39. 949, 6
36. 000, 0
2.500,0
1.449,6
2002/ 03
1.449,6
42. 757, 5
250,0
44. 457, 1
37. 500, 0
3.700,0
3.257,1
1996/ 97
3.165,4
26. 160, 0
1.024,0
30. 349, 4
19. 880, 0
8.340,0
2.129,4
1997/ 98
2.129,4
31. 370, 0
406,0
33. 905, 4
22. 400, 0
9.288,0
2.217,4
1998/ 99
2.217,4
30. 765, 0
582,0
33. 564, 4
22. 300, 0
8.917,0
2.347,4
1999/ 00
2.347,4
32. 344, 6
807,0
35. 499, 0
21. 420, 0
11. 517, 0
2.562,0
2000/ 01
2.562,0
38. 431, 8
700,0
41. 693, 8
23. 630, 0
15. 675, 0
2.388,8
2001/ 02
2.388,8
41. 907, 0
1.050,0
45. 345, 8
27. 300, 0
16. 000, 0
2.045,8
2002/ 03
2.045,8
50. 325, 0
600,0
52. 970, 8
30. 800, 0
19. 600, 0
2.570,8
1996/ 97
845,2
14. 615, 0
305,0
15. 765, 2
5.350,0
10. 013, 0
402,2
1997/ 98
402,2
16. 590, 0
161,0
17. 153, 2
5.900,0
10. 447, 0
806,2
1998/ 99
806,2
16. 511, 0
78, 0
17. 395, 2
6.300,0
10. 431, 0
664,2
1999/ 00
664,2
15. 800, 0
99, 0
16. 563, 2
6.800,0
9.375,0
388,2
2000/ 01
388,2
17. 538, 0
400,0
18. 326, 2
7.200,0
10. 800, 0
326,2
2001/ 02
326,2
20. 145, 0
370,0
20. 841, 2
7.600,0
12. 800, 0
441,2
2002/ 03
441,2
21. 500, 0
200,0
22. 141, 2
8.100,0
13. 500, 0
541,2
1996/ 97
417,0
3.515,0
145,0
4.077,0
2.682,0
1.124,0
271,0
1997/ 98
271,0
3.990,0
214,0
4.475,0
2.740,0
1.367,0
368,0
1998/ 99
368,0
3.971,0
159,2
4.498,2
2.780,0
1.433,0
285,2
1999/ 00
285,2
3.800,0
105,0
4.190,2
2.860,0
1.100,0
230,2
2000/ 01
230,2
4.218,0
72, 0
4.520,2
2.950,0
1.400,0
170,2
2001/ 02
170,2
4.845,0
135,0
5.150,2
2.960,0
1.800,0
390,2
2002/ 03
390,2
5.280,0
80, 0
5.750,2
3.100,0
2.200,0
450,2
1998
821,1
2.402,0
6.190,3
9.413,4
8.645,0
-
768,4
1999
768,4
2.188,0
7.071,0
10. 027, 4
9.182,0
-
845,4
2000
845,4
2.403,0
7.733,3
10. 981, 7
10. 050, 0
-
931,7
2001
931,7
1.658,4
7.609,9
10. 200, 0
10. 070, 0
-
130,0
2002
130,0
2.913,9
7.700,0
10. 743, 9
10. 300, 0
-
443,9
2003
443,9
4.514,7
6.250,0
11. 208, 6
10. 550, 0
Fonte: CONAB, SECRETARIA FED ERAL, D ECEX, B CSP, FIB GE, A BRASEM, B . B ., SIN DITEXTIL, MOIN HOS,
658,6
abr/0 3
COOPER ATIVAS E A GEN TE S D E M ERCADO.
Obs: O e stoque ini cia l de trigo é computado em 1º de agosto de cad a ano. Os d emai s produtos são computados em 1º d e fevere iro
Elabora ção: CON AB - 07 /0 5/2 00 3
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
117
Anexo 2
Quadros de Suprimento
CARNESEOVOS
1- AVICULTURA DE CORTE
Itens
PRODUÇÃO DE CARNE DE
FRANGO (1.000 t)
EXPORTAÇÃO (1.000 t)
DISPONIBILIDADE
INTERNA (1.000 t)
POPULAÇÃO (milhões de
habitantes)
DISPONIBILIDADE PER
CAPITA (kg/hab./ano)
1995
1996
1997
1998
1999
2000
4.050
4.052
4.461
4.854
5.526
5.981
434
569
651
617
776
916
3.617
3.483
3.810
4.237
4.750
5.065
155
157
160
162
164
170
22
24
26
29
30
23
2 - AVICULTURA DE POSTURA
Itens
PRODUÇÃO DE OVOS DE
GALINHA (milhões de
unidades)
IMPORTAÇÃO (milhões de
unidades)
EXPORTAÇÃO (milhões de
unidades)
DISPONIBILIDADE
INTERNA (milhões de
unidades)
POPULAÇÃO (milhões de
habitantes)
DISPONIBILIDADE PER
CAPITA (unidade/hab./ano)
1995
1996
1997
1998
1999
2000
16.066
15.932
12.596
13.636
14.768
14.796
-
23
32
16
4
4
39
55
86
120
52
115
16.027
15.900
12.543
13.532
14.720
14.686
155
157
160
162
164
170
103
101
79
84
90
87
3 – BOVINOS
Itens
REBANHO (1.000 cabeças)
PRODUÇÃO DE CARNE
(1.000 t equiv. carcaça)
IMPORTAÇÃO (1.000 t
equiv. carcaça)
EXPORTAÇÃO (1.000 t
equiv. carcaça)
DISPONIBILIDADE
INTERNA (1.000 t equiv.
carcaça)
POPULAÇÃO (milhões de
habitantes)
DISPONIBILIDADE PER
CAPITA (kg/hab./ano)
1995
150.037
1996
153.058
1997
156.289
1998
159.752
1999
163.470
2000
167.471
5.710
6.187
5.922
5.794
6.413
6.579
121
150
135
101
63
77
250
249
294
383
560
581
5.581
6.088
5.762
5.513
5.916
6.075
155
157
160
162
164
170
36
39
36
34
36
36
Itens
REBANHO (1.000 cabeças)
PRODUÇÃO DE CARNE
(1.000 t equiv. carcaça)
IMPORTAÇÃO (1.000 t
equiv. carcaça)
EXPORTAÇÃO (1.000 t
equiv. Carcaça)
DISPONIBILIDADE
INTERNA (1.000 t equiv.
carcaça)
POPULAÇÃO (milhões de
habitantes)
DISPONIBILIDADE PER
CAPITA (kg/hab./ano)
1995
36.062
1996
29.202
1997
29.637
1998
30.007
1999
29.768
2000
29.574
1.430
1.600
1.518
1.652
1.684
1.925
-
-
5
2
1
1
32
56
77
96
99
141
1.398
1.544
1.446
1.558
1.586
1.784
155
157
160
162
164
170
10
9
10
10
11
4 – SUÍNOS
9
ELAB.: Conab / Geame - 13/07/2001.
118
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
Anexo 3
ARROZ
COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE
SAFRAS 2001/02 e 2002/2003
U.F
RR
RO
AC
AM
AP
PA
TO
ÁREA (Em mil ha)
01/02
02/03 VAR (%)
12,0
15,0
25,0
PRODUÇÃO (Em mil t)
01/02
02/03
VAR (%)
66,0
84,0
27,3
PRODUTIVIDADE (kg/ha)
01/02
02/03
VAR (%)
5.500
5.600
1,8
70,0
22,5
11,5
2,3
266,2
145,0
60,9
21,4
12,4
2,3
276,8
152,3
-13,0
-5,0
7,8
4,0
5,0
131,6
31,3
20,8
1,9
467,2
371,2
115,7
29,7
23,2
1,9
512,1
426,4
-12,1
-5,1
11,5
9,6
14,9
1.880
1.390
1.808
830
1.755
2.560
1.900
1.390
1.870
830
1.850
2.800
1,1
3,4
5,4
9,4
Norte
MA
529,5
480,0
541,1
497,8
2,2
3,7
1.090,0
624,0
1.193,0
746,7
9,4
19,7
2.059
1.300
2.205
1.500
7,1
15,4
PI
CE
RN
PB
PE
AL
SE
BA
Nordeste
PR
SC
RS
Sul
MG
156,0
42,0
2,0
7,5
3,9
7,0
10,2
140,4
44,1
1,7
8,0
3,9
7,0
13,0
-10,0
5,0
-13,0
6,7
27,0
85,8
98,7
5,2
9,6
21,1
38,6
43,9
204,3
110,3
3,8
13,4
21,1
38,6
55,9
138,1
11,8
-26,9
39,6
27,3
550
2.350
2.600
1.280
5.420
5.520
4.300
1.455
2.500
2.220
1.680
5.420
5.520
4.300
164,5
6,4
-14,6
31,3
-
26,7
735,3
78,0
140,8
985,0
1.203,8
97,9
4,6
17,4
733,3
68,6
145,0
955,5
1.169,1
89,1
4,1
-35,0
-0,3
-12,0
3,0
-3,0
-2,9
-9,0
-10,0
39,5
966,4
182,5
929,3
5.464,8
6.576,6
210,5
13,4
29,1
1.223,2
171,5
986,0
5.064,2
6.221,7
196,0
12,0
-26,3
26,6
-6,0
6,1
-7,3
-5,4
-6,9
-10,4
1.479
1.314
2.340
6.600
5.548
5.463
2.150
2.920
1.670
1.668
2.500
6.800
5.300
5.322
2.200
2.920
12,9
26,9
6,8
3,0
-4,5
-2,6
2,3
-
2,7
40,6
145,8
440,3
51,0
113,7
0,2
2,9
39,4
135,5
431,5
49,5
112,0
0,1
7,0
-3,0
-7,1
-2,0
-3,0
-1,5
-50,0
8,3
110,8
343,0
1.215,7
218,1
216,0
0,3
8,9
108,4
325,3
1.208,2
222,8
221,8
0,1
7,2
-2,2
-5,2
-0,6
2,2
2,7
-66,7
3.070
2.730
2.353
2.761
4.277
1.900
1.520
3.070
2.750
2.401
2.800
4.500
1.980
1.000
0,7
2,0
1,4
5,2
4,2
-34,2
605,2
1.264,8
1.954,8
3.219,6
593,1
1.274,4
1.897,7
3.172,1
-2,0
0,8
-2,9
-1,5
1.650,1
2.056,4
8.569,7
10.626,1
1.652,9
2.416,2
8.199,9
10.616,1
0,2
17,5
-4,3
-0,1
2.727
1.626
4.384
3.300
2.787
1.896
4.321
3.347
2,2
16,6
-1,4
1,4
ES
RJ
SP
Sudeste
MT
MS
GO
DF
C-Oeste
N/NE
C-Sul
Brasil
FONTE: CONAB
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
abr/03
119
Anexo 4
FEIJÃO 1 ª SAFRA
COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE
SAFRAS 2001/02 e 2002/2003
ÁREA (Em mil ha)
01/02
02/03
VAR (%)
TO
2,7
2,7
Norte
2,7
2,7
BA
406,0
401,9
-1,0
Nordeste
406,0
401,9
-1,0
PR
390,8
412,3
5,5
SC
115,4
106,2
-8,0
RS
124,4
121,9
-2,0
Sul
630,6
640,4
1,6
MG
219,3
217,1
-1,0
ES
12,1
12,0
-1,0
RJ
2,9
2,9
SP
85,0
72,3
-15,0
Sudeste
319,3
304,3
-4,7
MT
3,9
2,7
-30,0
MS
2,9
2,3
-20,0
GO
42,8
47,1
10,0
DF
9,1
8,6
-5,5
C-Oeste
58,7
60,7
3,4
N/NE
408,7
404,6
-1,0
C-SUL
1.008,6
1.005,4
-0,3
BRASIL
1.417,3
1.410,0
-0,5
FONTE: CONAB
U.F.
PRODUÇÃO (Em mil t)
01/02
02/03
VAR (%)
1,4
1,4
1,4
1,4
169,7
148,7
-12,4
169,7
148,7
-12,4
453,3
420,5
-7,2
117,7
129,0
9,6
114,4
98,7
-13,7
685,4
648,2
-5,4
218,2
228,0
4,5
9,0
8,9
-1,1
2,2
2,8
27,3
117,3
91,1
-22,3
346,7
330,8
-4,6
4,3
2,3
-46,5
2,8
2,5
-10,7
73,6
87,1
18,3
19,1
19,4
1,6
99,8
111,3
11,5
171,1
150,1
-12,3
1.131,9
1.090,3
-3,7
1.303,0
1.240,4
-4,8
PRODUTIVIDADE (kg/ha)
01/02
02/03
VAR (%)
500
500
519
519
418
370
-11,5
418
370
-11,5
1.160
1.020
-12,1
1.020
1.215
19,1
920
810
-12,0
1.087
1.012
-6,9
995
1.050
5,5
740
740
760
950
25,0
1.380
1.260
-8,7
1.086
1.087
0,1
1.100
835
-24,1
980
1.100
12,2
1.720
1.850
7,6
2.100
2.258
7,5
1.700
1.834
7,9
419
371
-11,5
1.122
1.084
-3,4
919
880
-4,2
abr/03
FEIJÃO 2ª SAFRA
COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE
SAFRAS 2001/02 e 2002/2003
ÁREA (Em mil ha)
U.F
01/02
02/03
VAR (%)
RR
0,5
0,9
80,0
RO
58,0
51,0
-12,0
AC
17,3
17,3
AM
5,6
3,4
-39,0
AP
1,3
1,3
PA
75,0
76,9
2,5
TO
4,2
6,8
62,0
Norte
161,9
157,6
-2,7
MA
70,0
70,0
PI
210,0
212,1
1,0
CE
590,0
607,1
2,9
RN
91,7
93,3
1,7
PB
176,7
196,1
11,0
PE
188,6
171,6
-9,0
Nordeste
1.327,0
1.350,2
1,7
PR
116,8
119,1
2,0
SC
41,3
41,3
RS
40,3
33,0
-18,0
Sul
198,4
193,4
-2,5
MG
165,0
173,3
5,0
ES
18,0
18,4
2,0
RJ
3,0
3,0
SP
81,0
76,1
-6,0
Sudeste
267,0
270,8
1,4
MT
17,2
18,6
8,0
MS
15,7
16,5
5,0
GO
40,0
40,0
DF
2,0
2,0
C-Oeste
74,9
77,1
2,9
N/NE
1.488,9
1.507,8
1,3
C-Sul
540,3
541,3
0,2
Brasil
2.029,2
2.049,1
1,0
FONTE: CONAB
120
PRODUÇÃO (Em mil t)
01/02
02/03
VAR (%)
0,2
0,5
150,0
38,9
34,7
-10,8
6,5
7,6
16,9
4,6
3,3
-28,3
0,6
0,8
56,3
64,6
14,7
2,6
4,2
61,5
109,7
115,7
5,5
29,4
29,4
25,2
80,6
219,8
188,8
273,2
44,7
39,0
42,9
10,0
49,5
98,1
98,2
37,7
44,6
18,3
369,6
568,8
53,9
137,8
164,4
19,3
36,5
45,4
24,4
30,6
31,4
2,6
204,9
241,2
17,7
161,7
169,8
5,0
14,7
17,3
17,7
2,3
2,5
8,7
89,1
73,7
-17,3
267,8
263,3
-1,7
14,5
15,7
8,3
15,7
18,2
15,9
44,0
52,0
18,2
4,0
4,0
78,2
89,9
15,0
479,3
684,5
42,8
550,9
594,4
7,9
1.030,2
1.278,9
24,1
PRODUTIVIDADE (kg/ha)
01/02
02/03
VAR (%)
330
500
51,5
671
680
1,3
376
442
17,6
820
970
18,3
462
620
34,2
750
840
12,0
616
616
678
734
8,3
420
420
120
380
216,7
320
450
40,6
425
460
8,2
280
500
78,6
200
260
30,0
279
421
51,3
1.180
1.380
16,9
883
1.100
24,6
760
950
25,0
1.033
1.247
20,8
980
980
815
940
15,3
780
820
5,1
1.100
969
-11,9
1.003
972
-3,1
845
845
1.000
1.100
10,0
1.100
1.300
18,2
2.000
2.000
1.044
1.166
11,7
322
454
41,0
1.020
1.098
7,7
508
624
22,9
abr/03
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
Anexo 5
CIDADE
Rio de Janeiro
MARINHA
Base de
Abastecimento da
Marinha
Depósito Naval
EXÉRCITO
AERONÁUTICA
1° Batalhão de Polícia Base aérea do
do Exército
Galeão
AM
PA
RN
Depósito Naval
Depósito Naval
Depósito Naval
BA
Depósito Naval
Comando da 12ª RM
Comando da 8ª RM
16° Btl Inf Mtz
1° Btl Eng Construção
6° D Sup
4° Btl Eng Construção
MS
Depósito Naval
RS
Depósito Naval
ESTADO
RJ
São Pedro
D’Aldeia
Manaus
Belém
Natal
Caicó
Salvador
Barreiras
Ladário
Campo Grande
Rio Grande
Porto Alegre
Macapá
Boa Vista
Rio Branco
Porto Velho
AP
RR
AC
RO
São Luís
MA
Teresina
Picos
Fortaleza
Crateús
João Pessoa
Campina Grande
Recife
Petrolina
Maceió
Aracajú
Vila Velha
Belo Horizonte
São Paulo
Curitiba
Florianópolis
Cuiabá
Palmas
Brasília
PI
Base Aérea
Base Aérea
Base Aérea
Base Aérea
18° Batalhão Logístico Base Aérea
CE
PB
PE
AL
SE
ES
MG
SP
PR
SC
MT
TO
DF
8° Batalhão Logístico Base Aérea
3° BTl Inf de Selva
6° Btl Eng Construção Base Aérea
7° Btl Eng Construção
5° Btl Eng Construção Base Aérea de
Porto Velho
24° Batalhão de
Centro de
Caçadores
Lançamento
Alcântara
25° Btl de Caçadores
3° Btl Eng Construção
10° D Sup
Base Aérea
40° Btl Inf
15° Btl Inf Mtz
31° Btl Inf Mtz
7° D Sup
Base Aérea
72° Btl Inf Mtz
59° Btl Inf Mtz
28° Btl Caçadores
38° Btl Inf Mtz
4° D Sup
CIA
21° D Sup
Base Aérea
20° BIB
CINDACTA II
63° Btl Inf
Base Aérea
44° Btl Inf Mtz
22° Btl Inf
BPE Brasília
Base Aérea
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
121
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R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003
123
124
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
Protecionismo como
Instrumento de Desenvolvimento
João Paulo de Almeida Magalhães
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
O trabalho demonstra que medidas protecionistas podem, em determinadas circunstâncias, contribuir com o
desenvolvimento.Não defende o protecionismo em si mesmo, mas sua aplicação
quando o ‘first best’ só existir em teoria
ou for inalcançável.
Palavras-chave: Medidas protecionistas,
Livre comércio, Comércio internacional,
Desenvolvimento econômico.
Introdução
O protecionismo é sempre um “second
best” relativamente à liberdade de comércio. Ele é, contudo algumas vezes necessário para países que aspiram ao pleno desenvolvimento. Este depende, de fato, da
capacidade desses de países chegarem a
nível de capital por trabalhador igual ao
existente nas economias maduras. Se a
total liberdade de comércio não viabilizar
tal resultado, o protecionismo se torna indispensável. Seu objetivo deverá, no entanto, ser estritamente o de viabilizar os
investimentos necessários para se chegar
a relação capital por trabalhador do nível
requerido pelo pleno desenvolvimento.
Dentro desses limites, as justificações
teóricas propostas para o protecionismo
continuam válidas. Análises recentes têm
sustentado que ação direta sobre os altos custos das economias retardatárias
constitui a melhor solução. Os defensores dessa tese ignoram, todavia, o fato
de que a causa básica desses altos custos é a própria condição de subdesenvolvimento. Trata-se ,portanto, de deficiência sistêmica exigindo solução geral
e não ação pontual sobre custos específicos. E o protecionismo constitui claramente a melhor forma, e a única realista,
de contornar a dificuldade.
O exame da experiência histórica, de atuais países desenvolvidos e das mais bem
sucedidas economias retardatárias, mostra
ter sido o protecionismo instrumento largamente utilizado tanto no passado como
no presente. E a ele podem ser atribuídos
grande parte dos bons resultados obtidos.
As integrações econômicas entre países em níveis muito diferentes de desenvolvimento implicam em sério risco para
os menos desenvolvidos, que pagam os
eventuais ganhos de curto prazo com sérios prejuízos no longo prazo. Nesse contexto, a ALCA, nos termos em que se acha
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
125
colocada, só será aceitável no âmbito de
programa de maior amplitude, destinados
a reduzir substancialmente o hiato entre
os níveis de desenvolvimento dos Estado
Unidos e América Latina.
O presente texto tem como objetivo demonstrar que medidas protecionistas podem , em determinadas circunstâncias,
constituir aspecto fundamental de políticas de desenvolvimento. Não se defende
o protecionismo por si mesmo. Mostra –
se, pelo contrário, que toda vez que se
cria barreira tarifária se está viabilizando
atividade menos eficiente em detrimento
de outra de maior produtividade, situada
no exterior. O protecionismo é sempre um
“second best”. Deve , no entanto, ser utilizado quando o “first best” for
inalcançável ou só existir em teoria.
O tema será dividido em quatro seções.
Na primeira, recapitularemos o confronto
entre as teorias, cujo corolário de política econômica é a defesa de comércio inteiramente livre, com as justificações oferecidas para medidas protecionistas. Na
segunda, examinaremos o comportamento, em termos de adoção de medidas protecionistas, das nações hoje desenvolvidas e dos países subdesenvolvidos, nos
seus momentos de maior sucesso. Na terceira, mostraremos que o protecionismo,
no âmbito de políticas de desenvolvimento, é justificável dentro da melhor teoria
do comércio internacional e, na quarta,
examinaremos o caso das integrações
econômicas.
PRIMEIRA SEÇÃO: Confronto das
Teorias Protecionistas e de Livre
Comércio
1 - A teoria moderna do comércio internacional desce a certos detalhes com respeito ao protecionismo. Mostra, por exemplo, a vantagens que ele pode proporcio126
nar a países de grande porte, em termos
de melhoria em seus termos de troca. Estas são, contudo, situações específicas
que não interessam à presente análise. A
ela dizem respeito somente enfoques globais, únicos significativos para políticas
de desenvolvimento. Referir-nos-emos,
inicialmente, às duas principais justificativas oferecidas em defesa de comércio
inteiramente livre para passar depois aos
teóricos do protecionismo.
Uma das primeiras e mais importantes
contribuições da ciência econômica foi a
comprovação das vantagens do comércio
livre. Para se compreender a importância
dessa tese basta lembrar que foi lançada
como refutação da doutrina mercantilista,
defensora da contenção de importações e
do artificial estímulo das exportações, com
o objetivo de gerar saldos positivos na
balança comercial.
Adam Smith mostrou que o livre jogo
do mercado levaria à especialização de
cada país nos bens que é capaz de produzir a custos mais baixos. Em consequência
disso, os bens trocados no mercado mundial teriam preços menores, com ganho líquido para todos envolvidos.
Esse enfoque levava em conta apenas
os custos absolutos. Suponhamos a
existência de país capaz de produzir todos bens a custo menor que os demais.
Deveria se tornar autosuficiente fechando-se ao comércio internacional?
Ricardo irá mostrar que esse não é o
caso. Posto que produza todos bens
melhor que outros, esse país deverá
ser relativamente mais eficiente em certos setores. Justifica-se, assim, sua especialização nestes, deixando os demais
aos outros produtores. Novamente aqui
se realizaria ganho importante em termos
de eficiência.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
Esse tipo de análise se tornou conhecido como teoria das vantagens comparativas, que comprova o benefício da especialização dos países seja, com base nos
custos absolutos, seja nos custos relativos. E para que essa especialização ofereça seu ganho máximo faz-se necessária
total liberdade de comércio.
A outra análise que sublinhou a vantagem da plena liberdade de comércio é de
autoria de Hecksher e Ohlin. Esses autores mostraram que, em condições de comércio livre, cada país se especializaria
nas atividades que utilizam predominantemente seus fatores de produção (capital, trabalho etc.) mais abundantes e
baratos.Com isso, aumenta neles a demanda pelos fatores abundantes e cai a
procura dos relativamente raros. O preço
dos fatores tenderia, assim, a se equalizar
a nível mundial, sem necessidade de estes se deslocarem de um país para outro.
Esta seria mais uma vantagem do comércio livre.
ção registrarem rendimentos crescentes.
Numa primeira fase, por não disporem de
mão-de-obra especializada, serviços adequados de apoio, experiência administrativa etc. seus custos são elevados. Com o
passar do tempo as deficiências vão sendo corrigidas. Enquanto tal não acontece,
essas indústrias devem ser protegidas
Não se pode, em suas palavras, deixar
uma criança lutar com um adulto.
O reconhecimento dos rendimentos
crescentes do setor fabril introduz, portanto, exceção à regra geral de liberdade
do comércio. Importante na análise de List
é que a exceção é limitada no tempo e
setorialmente. O protecionismo, segundo
ele, só se justifica dentro do período estritamente necessário para que as empresas manufatureiras atinjam sua maturidade. A par disso, medidas protecionistas
só devem ser adotadas em benefício de
setores que possam, no futuro, se tornarem internacionalmente competitivos.
2 – A tese da total e irrestrita abertura
da economia ao comércio internacional vai
ser contestada por outras correntes do
pensamento econômico. O que pretendem
os contestadores não é por em dúvida a
validade da teoria das vantagens comparativas, mas apontar exceções à regra básica de irrestrita abertura comercial. Examinaremos os trabalhos de List, Prebisch,
Manoilesco e Emmanuel.
O protecionismo, nos limites propostos
por List, se revelou satisfatório para
viabilizar a industrialização de países que
iniciaram com 50 anos de atraso seu processo fabril. No caso da América Latina,
todavia, cuja industrialização intensiva
ocorreu somente após a Segunda Guerra
Mundial, essa colocação mostrou -se inadequada. A justificação teórica do seu
protecionismo será oferecida por Prebisch
(1949)
A análise de List, conhecida como teoria da industria infante, constituiu a justificação teórica do protecionismo nos países que participaram da segunda onda de
industrialização de meados do século XIX
(fundamentalmente Estados Unidos e Alemanha). Segundo List, a teoria das vantagens comparativas não considerava o fato
de indústrias em processo de implanta-
Segundo Prebisch, o aumento da produtividade (por trabalhador) é maior na
indústria do que na agricultura. Esse aumento pode ter dois efeitos: baixa de preços ou maior remuneração dos fatores de
produção. No primeiro caso, a especialização agrícola revela -se aceitável porque
os consumidores, de qualquer parte do
mundo, são igualmente beneficiados. O
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
127
mesmo não acontece na hipótese de aumento da remuneração dos fatores produtivos porque, nesse caso, só se beneficiam os habitantes dos países industriais.
Equacionado o problema, Prebisch passou a compulsar as estatísticas. Válida a
hipótese da baixa dos preços industriais,
os termos de troca deveriam melhorar
constantemente para os países agrícolas.
Ora, os dados disponíveis (de 1870 a meados do século atual) revelavam exatamente o contrário, ou seja, a deterioração dos
termos de troca desses países.
Observe-se que, na colocação do autor
(diferentemente do que vimos em List),
desde que não fosse preenchida a condição de baixa dos preços, como corolário
da maior produtividade, a industrialização,
e portanto o protecionismo, se justifica sem
quaisquer condicionante em termos de
duração ou setores beneficiados .
Assinale-se, a par disso, que a argumentação de Prebisch que condena a especialização agrícola, pode também ser utilizada,
como ele mesmo mostrou (Prebisch, 1983),
para recusar a especialização em setores
manufatureiros intensivos de mão-de-obra.
Isso significa que, da perspectiva de uma
política de desenvolvimento, não só é inaceitável a especialização em “commodities”
agrícolas como também, em “commodities”
industriais. Estas últimas são definidas
como atividades fabris de baixo valor adicionado por trabalhador, largo uso de recursos naturais e internacionalmente padronizadas (aço, alumínio, produtos
petroquímicos, papel, celulose etc.). Em
nossa análise, contudo, em obediência à
colocação histórica dos debates, continuaremos a nos referir à inaceitabilidade da
especialização agrícola.
A argumentação de Manoilesco é sintetizada por Love (1996). Usando as esta128
tísticas de seu país (Rumânia) Manoilesco
mostrou que o capital por trabalhador na
indústria era 4,1 vezes maior que na agricultura e a produtividade nesse setor 4,6
vezes mais elevada. A pesar disso, a
lucratividade do setor fabril era somente
1,8 vezes superior a do agrícola.
Segundo ele, as duas primeiras relações
(referentes à intensidade de capital e produtividade) mostram a importância do segmento manufatureiro para o país, e a terceira (relativa à lucratividade) a importância para o investidor privado. Em função
dessa disparidade Manoilesco conclui
que o mercado, funcionando livremente,
não oferece incentivo adequado à industrialização. Esta deve, assim, ser encorajada por medidas protecionistas. Observese que , no caso de Manoilesco como de
Prebisch, as medidas protecionistas não
têm por que serem limitadas setorialmente
ou no tempo.
A análise de Emmanuel é de inspiração
marxista .Para ele, entre país agrícola e industrial existe situação de “troca desigual”. Exemplo aritmético permite explicitar
sua argumentação. Suponhamos país desenvolvido com produção manufatureira
na qual é utilizada maquinaria (capital fixo
na nomenclatura marxista) no valor de 240
unidades monetárias e trabalho (capital
variável) no valor de 60 unidades.. Em país
subdesenvolvido a produção agrícola é
levada adiante por 120 unidades monetárias de capital fixo e 60 unidades de capital variável. O lucro bruto (que ele chama
de excedente) é igual nos dois casos dado
que se usa a mesma quantidade de trabalho e, da perspectiva marxista, é o trabalho que , através da mais- valia, proporciona o lucro. Emmanuel supõe que nos dois
casos o lucro seja de 60. Ou seja, dentro
de sua visão marxista o trabalho cria o
dobro do valor que recebe como salário.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
O valor dos bens produzidos nos dois
casos é o seguinte:
capital fixo + capital variável + excedente = valor do bem
Bem industrial 240
60
60
360
Bem agrícola 120
60
60
240
Como a agricultura usa mais trabalho relativamente ao conjunto do capital (fixo
mais variável) sua lucratividade é maior. No
exemplo acima, o capital utilizado na indústria é de 300 unidades monetárias e na agricultura de 180. Como os dois setores usam
quantidade igual de mão-de-obra, seu lucro bruto é igual, o que confere à agricultura, menos utilizadora de capital, nível superior de lucratividade. Calculo simples
mostra que, no caso em análise, a taxa de
lucros do setor agrário (valor do excedente
como percentagem do capital total utilizado) é de 33,3% e do industrial 20%.
Se os bens fosse trocados com base
nos valores acima registrados a troca seria igual no sentido de sem prejuízo para
qualquer dos dois produtores. Nesse
caso, a agricultura registrarialucro de
33,3% e a indústria de 20%. Sucede que,
como consequência da livre circulação
internacional de capitais, a taxa de lucros
tende a se uniformizar. O autor supõe que
essa taxa única fique no nível de 25% para
os dois setores com, portanto, ganho de
5 pontos percentuais para a indústria e
perda de 8 pontos para a agricultura . Ou,
na prática, o primeiro setor vende por 375
o que vale 360 e o segundo por 225 o que
tem valor de 240.
Essa é a troca desigual. Para evitá-la o
país agrícola deve se industrializar e para
tanto amparar seu setor fabril através de
medidas protecionistas, Como no caso de
Prebisch e Manoilesco, não se prevêem
restrições setoriais ou temporais ao programa protecionista.
3 – Vejamos as objeções colocadas às
teses protecionistas. Examinaremos mais
detidamente os debates em torno das posições de List e Prebisch, passando mais
rapidamente pelos trabalhos de
Manoilesco e Emmanuel.
A teoria protecionista de List não foi, a
rigor, contestada. Seus críticos somente
consideram -na um “ second best” em relação a medidas destinadas a atacar diretamente as distorções existentes nos países
em fase inicial de industrialização. A título
exemplificatico examinaremos a seguir três
casos (Corden,1988) em que são propostas alternativas ao protecionismo.
O primeiro, é o de firma (ou grupo de
firmas) “nascente”, que deve passar período de aprendizado, exigindo grandes investimentos em capital humano. O mercado de capitais dos subdesenvolvidos cobra juros altos, porque é imperfeito e tem
preconceito contra investimentos de resultados invisíveis. A empresa não pode,
portanto, recorrer a ele. Nesse caso, o “
first best” seria aperfeiçoar o mercado de
capitais e não partir para medidas protecionistas. O segundo caso é de empresa
nascente que se vê obrigada a investir em
formação de mão-de-obra que não pode
reter perdendo ,assim, os gastos correspondentes. Para Corden o “first best” seria os trabalhadores aceitarem salários
menores e se financiarem através da tomada de empréstimos. O “second best “
consistiria em subsidiar a formação de
mão-de-obra. O protecionismo não iria
além de um “third best”. O terceiro caso é
o de empresa gerando novos conhecimentos, que se difundem pelo mercado
sem ganho direto para ela. O “first best “
seria subsídio para a criação de conhecimento novo.
Krugman refere-se aos problemas assinalados por Corden em termos de “falhas
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
129
de mercado”. Reconhece que são particularmente grandes em países menos desenvolvidos e que podem ser usadas como argumento em favor do protecionismo. Seguindo a linha da “ mainstream economics” afirma, porém, ser preferível ataque direto a cada
uma das deficiências de mercado
identificadas. Este seria, assim, o “first best”.
Ora, análise, mesmo elementar, de economias retardatárias permite afirmar que
mercado de capitais capaz de atender à proposta de Corden, só surgirá quando o país
atingir o pleno desenvolvimento. A sugestão de tomada de empréstimos por trabalhadores, para financiar seu treinamento, é
quase surrealista em economias retardatárias. Quanto aos subsídios para empresas
que treinam mão-de-obra ou difundem conhecimento, eles seriam , pelo menos, extremamente difíceis de serem financiados e
administrados em países de recursos públicos escassos e necessidades de alta prioridade não atendidas. No caso deles, a
única solução realista consiste, portanto,
no protecionismo ou em tarifas aduaneiras, que (a) cobrem automaticamente todos
os três casos, (b) não elevam despesas públicas e (c) evitam políticas econômicas de
grande variedade e complexidade, dificilmente à altura da capacidade administrativa de países subdesenvolvidos. Ou seja,
para todos efeitos práticos a análise de List
permanece de pé.
No que se refere a Krugman, cumpre
assinalar que as “falhas de mercado”, cuja
existência ele reconhece, constituem resultado direto do próprio subdesenvolvimento. Elas não afetam apenas setores específicos mas toda a economia. Sistemas
de transporte precários, comunicações
deficientes, mão-de-obra de baixo nível de
educação, mercado de capitais diminutos
e mal organizados , situações típicas das
economias retardatárias, representando”
130
falhas de mercado” que atingem todos
segmentos da economia, devendo ser atacadas em conjunto e não através de medidas pontuais. A solução óbvia para elas,
e única de implantação possível nos subdesenvolvidos, é, assim, o protecionismo.
A proposta dos dois autores faz lembrar crítica recente ao comportamento dos
economistas. Segundo esta, eles deveriam voltar a raciocinar sobre a Economia
não como ciência pura mas como ciência
aplicada. Ou seja, deveriam voltar à Economia Política. Significa isso que não é
função dos economistas indicarem soluções tecnicamente corretas mas concretamente inexequíveis, trancando-se, em seguida, nas suas torres de marfim e passando a acusar os políticos de terem irresponsavelmente ignorado suas sugestões.
A proposta de abandonar um realista (e
de eficácia largamente comprovada) protecionismo e adotar um sem número de
difíceis soluções, supostamente “first
best”, constitui excelente exemplo da
distorção consistente em raciocinar, não
em termos de Economia Política mas de
Economia pura.
É, além disso, curioso assinalar que mesmo os países desenvolvidos relutam em
procurar “ first best”. Krugman, referindo-se às providências do Governo americano para defender sua industria automobilística da concorrência japonesa, afirma
que o “first best” seria um subsídio às
montadoras . O que, no entanto, realmente se fez foi impor ao Japão corte nas suas
exportações de veículos para os Estados
Unidos. Ou seja, optou por um “second
best” consistente na imposição de quotas à exportação japonesa.E seria necessário lembrar que , na doutrina dos organismos internacionais, se as tarifas aduaneiras ainda são toleradas as quotas recebem irrestrita condenação?
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
Assinale-se finalmente que a insistência
atual no chamado “custo Brasil” representa corolário direto da visão ortodoxa acima
examinada . Ou seja, em vez de reconhecer
que atividades instaladas em economias retardatárias lutam contra todo tipo de ineficiência (ou “ falhas de mercado” ) devendo
ser viabilizadas por medida genérica de
proteção, propõe-se o paliativo de medidas pontuais (inclusive de difícil
exequibilidade) destinadas a baixar custos.
No que se refere a Manoilesco pode –
se dizer que sua tese reproduz, embora
com enfoque diferente, a posição de
Prebisch. A desvantagem da especialização agrícola resulta do fato de a produção
industrial revelar produtividade por trabalhador mais de quatro vezes superior. Sem
maior aprofundamento é lícito afirmar que
se as colocações de Prebisch continuam
sem refutação, o mesmo vale para
Manoilesco. Passemos, porém, a
Emmanuel
Na sua colocação ele aceita, com
Ricardo e Marx, que o valor de um bem é
dado pelo trabalho nele incorporado. Ela
se tornou, em função disso, altamente
vulnerável devendo –se reconhecer que
são pertinentes algumas das objeções que
lhe são colocadas ( Magalhães, 1996) . Na
verdade, porém, conforme se verifica no
exemplo aritmético acima , como Prebisch
e Manoilesco, ele aceita a maior produtividade da mão – de obra na indústria.
Assim, naquele exemplo, as mesmas 60
unidades monetárias de trabalho permitem
obter na indústria valor de 360 e na agricultura de somente 240. Ou seja, na sua
essência as justificações do protecionismo em Prebisch, Manoilesco e Emmanuel
têm a mesma base. A saber, a produtividade por trabalhador mais elevada na indústria e, portanto, sua maior capacidade
de aumentar o produto por habitante e
conduzir o país ao pleno desenvolvimento. Novamente aqui é lícito afirmar que se
a colocação de Prebisch permanece válida o mesmo acontece com a de Emmanuel.
A “mainstream economics” continua a
sustentar a existência de solução superior
ao protecionismo. Mostramos acima a
insubsistência dessa colocação. Ela pode,
todavia, ser igualmente falseada colocando –se a defesa do protecionismo não as
perspectiva da oferta , como fazem os quatro autores examinados, mas da demanda
Prebisch reconheceu esse fato quando, diante dos duros ataques a sua tese,
adotou nova linha de defesa. Dizia ele que
a demanda mundial de artigos agrícolas
crescia de 3% ao ano. Ora, a América Latina, para eliminar seu atraso econômico,
deveria elevar seu PIB em percentagem
bastante maior . Diante disso, a especialização agrícola era inaceitável.
Tal colocação elide o debate sobre se o
problema representado pelos altos custos
nos subdesenvolvidos deve ser atacado
de forma sistêmica, através do protecionismo, ou de maneira pontual, mediante
providências, supostamente “first best”,
destinadas a eliminar as diversas manifestações das “falhas de mercado” ( ou do
“custo Brasil”). Considerando esse fato,
será com base na insuficiência da demanda que, na terceira seção, examinaremos o
protecionismo no âmbito das políticas de
desenvolvimento.
SEGUNDA SEÇÃO: O Protecionismo
na Experiência Histórica
O objetivo da presente seção é mostrar
que , historicamente, o protecionismo foi
largamente utilizado como instrumento de
política econômica. Lançaram mão dele os
países que se colocam hoje entre os mais
desenvolvidos do Mundo (Estados Uni-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
131
dos, Japão e Alemanha), o país que representa o grande caso de sucesso de políticas de desenvolvimento (Coréia do Sul).
No Brasil, foi considerada protecionista a
fase de maior crescimento econômico do
país. Começaremos pelo caso das nações
desenvolvidas.
1 - Vejamos o que dizem alguns especialistas. Segundo Arrighi (1996 ) “A imensa elevação das tarifas americanas durante a guerra civil foi seguida por novos aumentos em 1883, 1890, 1894, e 1897. Embora pequenas reduções tenham sido
introduzidas pelo Presidente Wilson em
1913, elas só foram toleradas pelo Congresso enquanto a guerra reduziu a concorrência das importações estrangeiras e
estimulou as exportações norte - americanas. Mas tão logo terminou a guerra e surgiram os primeiros indicadores da
recessão, a tradição protecionista americana foi retomada a pleno vapor. Grandes
aumentos tarifários foram aprovados no
início da década de 1920” (pgs 302 - 303).
Mais adiante, o mesmo autor vai mostrar
que esse comportamento não representou
apenas erro histórico, posteriormente corrigido. Em suas palavras “Não mais se contentando com as restrições - voluntárias japonesas às exportações para o Estados
Unidos, e flagrante contradição com a doutrina de livre comércio e de – laissez faire –
que pregava para o resto do mundo, o governo Bush começou a pressionar o governo japonês para reduzir administrativamente seu superávit comercial com os Estados Unidos” (p.366).
O depoimento de Krugman (1995) é
igualmente illustrativo da tendência protecionista americana: “ após a Segunda
Guerra Mundial os Estados Unidos se fizeram advogados da liberdade de trocas
no comércio mundial (...) Em razão do pa132
pel crescente do comércio mundial na economia americana de 1965 a 1980, no entanto, muitas indústrias perceberam que , pela
primeira vez, elas se viam confrontadas
com a concorrência estrangeira no seu
mercado interior. Algumas delas perceberam que essa concorrência era excessivamente forte para poder enfrentá – la e pediram proteção. Durante os anos 1970 esse
pedido se defrontou com a oposição de
outras indústrias que se beneficiavam com
o crescimento das exportações. Durante
os anos 1980, contudo, a forte baixa das
exportações mudou a atitude do Congresso reforçando nele as tendências protecionistas. As administrações Reagan e Bush
resistiram a essas pressões políticas mas
fizeram uma série de concessões limitando as importações de automóveis japoneses, de aço europeu, de madeira canadense e muitos outros bens (...) Existe aparentemente uma real possibilidade que , nos
anos futuros, os Estados Unidos se afastem fortemente do compromisso que assumiram desde quatro décadas, em relação ao princípio da liberdade de trocas
(pgs 5 e 6).
Ou seja, períodos de protecionismo e
abertura variam de acordo com os interesses da economia americana. Possivelmente por isso, os Estados Unidos são hoje a
economia mais desenvolvida do mundo,
E por ter, durante sua história, adotado o
comportamento oposto, o Brasil continua
subdesenvolvido.
A tendência protecionista dos Estados
Unidos é também atestada por outros fatos. Quando em 1944 se tentou criar a
International Trade Organization, a iniciativa fracassou porque o Congresso Americano, temeroso de perder seu direito de
controlar importações, se recusou a aprovar a instituição. Os Estados Unidos são
hoje o único país do mundo em que as
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
concessões tarifárias devem ser aprovadas
pelo legislativo. É por isso que países como
o Brasil se recusam a discutir a ALCA enquanto não for aprovado o “ fast track “, ou
seja, enquanto o Congresso americano não
renunciar a seu direito de intervir no processo. E seria necessário lembrar ter sido esse
país que inventou a condicionalidade na
clausula da nação mais favorecida dos acordos de comércio, dificultando a extensão a
terceiros de concessões tarifarias feitas em
acordos anteriores?
Com respeito à Alemanha, Arrighi se
expressa da seguinte maneira “O epicentro
do contra - movimento protecionista foi a
recém - criada Alemanha Imperial. Quando o colapso de 1873 -79 atingiu a Alemanha, o chanceler Bismarck acreditava firmemente ,como qualquer dos seus contemporâneos, nos poderes auto - reguladores do mercado ( ...) A disseminação do
desemprego ,da inquietação trabalhista e
da agitação socialista (...) tudo isso se
conjugou para induzir Bismarck a intervir
para proteger a sociedade alemã a fim de
que um mercado auto – regulador não destruísse o edifício imperial que ele acabara
de construir. Ao mesmo tempo a crescente convergência dos interesses agrários e
industriais que pressionavam pela proteção governamental contra a concorrência
estrangeira, tornou –lhe fácil passar repentinamente do livre comércio e do laissez
faire para uma postura altamente protecionista e intervencionista” (pg273).
O Japão sempre foi economia bastante
fechada. Sua tendência protecionista pode
ser ilustrada no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com base na indústria automobilística, um dos setores
mais dinâmicos e de maior efeito
multiplicador de todo parque fabril. Singh
(1995 ) mostra que. intervenção do Governo nesse segmento se desenvolveu em
quatro linhas : desencorajamento do capital estrangeiro no setor, proteção contra
importações, encorajamento da racionalização da produção e assistência no
“marketing “ internacional. Quando a pressão externa para a abertura aumentou, o
Governo japonês removeu obstáculos à
capacidade das firmas estrangeiras de desenvolver presença permanente no mercado japonês. Mas somente quando as
empresas locais já haviam adquirido posição firme no mercado interno e posição
forte , as vezes dominante, no exterior. Ou
seja, levantou as restrições quando estas
já não eram necessárias.
2 - Passando ao caso dos países subdesenvolvidos podemos começar pela Coréia
do Sul que constitui o mais significativo caso
de sucesso das economias emergentes do
Leste da Ásia . Segundo Spraos (1993) “A
Coréia do Sul é classificada (corretamente )
como orientada, de maneira geral e fortemente, para fora, durante os períodos relevantes,
mas isto deixa de captar as medidas protecionistas substituidoras de importações que ,setor por setor, precederam o impulso exportador e sustentaram sua efetividade” (pg. 73).
No Brasil os supostos malefícios do protecionismo são usualmente ligados ao
modelo se substituição de importações .
Este é apontado como a irresponsável
decisão de tudo produzir no país qualquer
que fosse o custo. Ora, é fácil demonstrar
que (a) a substituição de importações não
resultou de política econômica previamente definida mas simplesmente das circunstâncias econômicas da época, (b) o mais
radical instrumento protecionista adotado (lei do similar nacional) se justificava
plenamente dentro das condições então
prevalecentes e, finalmente (c) em termos
econômicos a substituição de importações
proporcionou ao país a maior taxa de crescimento de sua história.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
133
No caso do Brasil, é fácil demonstrar
que a produção interna de manufaturas,
antes adquiridas no exterior, não se originou de política racionalmente definida e
voluntariamente implementada . Furtado
(1959) mostra, de fato , que a indústria
brasileira nasceu, não de medidas destinadas a protegê - la. mas de providências
visando favorecer a agricultura . A Grande Depressão dos anos trinta, segundo
esse autor, provocou substancial queda
nos preços do café o que , em condições
normais ,teria determinado perda correspondente no poder aquisitivo dos proprietários agrícolas, que tinham neste, sua
fonte principal de renda. Para evitar que
tal acontecesse ,o Governo brasileiro desvalorizou o milreis na medida necessária
para manter constante ,em moeda local, a
capacidade de compra do setor . A
consequência disso foi que os proprietários agrícolas não tiveram por que reduzir
seus padrões de consumo . Como, no entanto, inexistiam divisas para importar os
produtos manufaturados, eles se viram
forçados a recorrer à débil indústria local.
Esta recebeu , assim , substancial impulso, que vai se manter durante toda a década dos trinta e dos cinco anos seguintes,
diante da dificuldade para importar determinadas pela Segundo Guerra Mundial.
Igualmente significativo da falta de interesse do Poder Público pelo setor fabril,
foi o fato de a tarifa aduaneira que, em
1934, representava 30% do valor das importações, ter declinado paulatinamente
até chegar, às vésperas da reforma tarifária
de 1957, a apenas 3% das importações .
Isso aconteceu porque sendo - específica – (ou seja, calculada não pelo valor mas
pelas características físicas do produto),
não se ajustava à elevação dos preços internos . Pode - se, portanto, afirmar que,
na fase crítica de nossa industrialização ,
134
o setor não contou com aquilo que ,em
toda parte do mundo, se considerava defesa, normal e necessária, das indústrias
nascentes. Nosso parque manufatureiro
dependeu ,no seu nascedouro. somente
da defesa proporcionada pelas dificuldades cambiais do país.
Os detratores do modelo alegam que a
política substituidora criou, no Brasil, indústria cobrindo toda a gama de produtos
,sem qualquer consideração de custos. Os
preços em alguns segmentos chegavam a
ser de duas a três vezes superiores aos
internacionais. Essa constitui, sem dúvida , séria distorção. Ela deve ,no entanto,
ser examinada no seu contexto . Tal tipo
de anomalia nasceu ,fundamentalmente,
da “lei do similar nacional”.Com base nesta se proibia a importação de qualquer artigo já produzido no país, o que viabilizava
indústrias de custo extremamente alto. A
medida era, todavia perfeitamente lógica
porque se utilizava a moeda estrangeira
economizada para a compra no mercado
internacional, de produtos essenciais ao
nosso desenvolvimento. Claro está que
se tratava de situação a ser corrigida tão
logo fosse aliviada a escassez cambial.
Mesmo nesse caso, todavia, teria sido
justo conceder tempo às empresas de altos custos para se reciclarem , mudarem
de linha de produção ou simplesmente
encerrarem suas atividades com o menor
prejuízo possível. Elas, no fim de contas,
nasceram para atender à premente necessidade nacional de economizar divisas e
em resposta a estímulos oficiais.
Finalmente é quase desnecessário lembrar que a tão elogiada abertura iniciada
no fim dos anos 80 proporcionou ao país
incremento anual médio do PIB na década
passada inferior a 2%. No período de substituição de importações, o Brasil cresceu a
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taxa mais de três vezes superior. Não há
dúvida que as potencialidades de substituição de importações se acham hoje esgotadas não tendo sentido qualquer tentativa de relançar o modelo. Não deixa ,contudo, de ser surpreendente a forma como
é vilipendiado período em que o país registrou as maiores taxas de crescimento
de sua história
TERCEIRA SEÇÃO : Papel do
Protecionismo no Desenvolvimento
Econômico
Conforme afirmamos inicialmente o protecionismo é um “second best” em relação à completa liberdade de comércio. Ele
só se justifica na medida em que se revele
indispensável para que o país atinja o pleno desenvolvimento. Para melhor colocar
a questão convém recapitular o mecanismo básico do crescimento econômico.
1 - Nas sociedades modernas, com ênfase especial para os países em desenvolvimento, o processo dinâmico se caracteriza fundamentalmente pelo constante aumento do produto (ou valor adicionado)
por trabalhador, resultante da elevação do
capital (físico e humano) por pessoa ocupada. Essa elevação, por sua vez, é
viabilizada pelo progresso tecnológico. O
pleno desenvolvimento é alcançado quando o país atinge o mais alto capital por
trabalhador permitido pela mais moderna
tecnologia conhecida.
O capital acumulado gera fluxo de PIB
que pode ser medido tendo em conta sua
produtividade. Esta, é elevada nos setores internacionalmente competitivos que
dispensam, portanto, qualquer tipo de
apoio . Os demais, para subsistirem, dependem de medidas protecionistas
No Brasil Franco (1999) atribuiu importância fundamental no crescimento eco-
nômico ao aumento da produtividade total
dos fatores –PTF. Esse é definido como
incremento do PIB superior ao aumento dos
fatores de produção. A literatura especializada não confirma, todavia, essa interpretação. Não só o aumento do capital
constitui sempre o mecanismo básico do
crescimento como o incremento da PTF só
ganha maior expressão no caso dos países
desenvolvidos (Magalhães, 2000). A análise do desenvolvimento somente em termos do aumento do capital por trabalhador é , portanto, perfeitamente legítima.
Vejamos então em que casos o protecionismo se torna fundamental nas políticas de desenvolvimento. Duas observações preliminares se fazem necessárias.
Nas análises usuais do comércio internacional se distingue entre bens
transacionáveis (exportados ou suscetíveis de serem exportados e importados ou
suscetíveis de importação) e não
transacionáveis. Na análise que segue
consideraremos, para maior simplicidade,
todos bens como transacionáveis. Uma segunda observação é que, como se disse
anteriormente, a justificação de medidas
propostas será colocada da perspectiva
da demanda e não da oferta, como é usual
nas teorias protecionistas e nas objeções
alegadas contra elas.
Em linhas gerais a questão pode ser colocada da seguinte maneira. Se em condições de total abertura da economia, o país
se beneficiar de demanda capaz de lhe proporcionar capital por trabalhador do nível
requerido pelo pleno desenvolvimento, estaremos diante da situação ideal .Isso
porque todos setores da economia, sem
exceção, estariam registrando produtividade de nível internacional. Pode porém
suceder que, sejam as condições internas
do país, seja o fechamento do mercado
mundial, sejam ainda outros fatores, não
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135
permitam que a demanda por atividades
internacionalmente competitivas viabilize
investimentos de nível requerido para se
chegar ao capital por trabalhador indispensável ao pleno desenvolvimento. Nesse caso, o protecionismo se justifica como
forma de proporcionar ao país a capitalização necessária.
Observe-se que a demanda se orienta
para os bens oferecidos a menores preços
e, portanto, produzidos a baixo custo. Nesse contexto é fácil compreender porque
dificilmente em países subdesenvolvidos,
no âmbito de uma economia inteiramente
aberta, a demanda será suficiente para lhes
garantir capital por habitante igual ao dos
desenvolvidos. Para que isso acontecesse as economias retardatárias deveriam
oferecer a preços internacionalmente competitivos uma gama de produtos cuja produção dependesse de capital por trabalhador de nível igual ao observado nos
países desenvolvidos. Não parece difícil
compreender a extrema dificuldade de se
atende à essa condição.
Exemplo aritmético simples ajudará a
compreender a questão. Suponhamos
país hipotético com as seguintes características:
Relação capital / trabalhador requerida
para pleno desenvolvimento = 100 000
Número de trabalhadores = 1 milhão
Produtividade do capital no setor internacionalmente competitivo = 0,7
Produtividade do capital no setor não
competitivo = 0,5
Se o setor internacionalmente competitivo se defrontar com demanda suficiente
para absorver a totalidade dos trabalhadores, temos a situação ideal prevista pelo
neoliberalismo, com capital total de 100
136
bilhões e, levando-se em conta a produtividade deste , PIB de 70 bilhões (100 bilhões multiplicados por 0,7). Suponhamos
, no entanto , mais realisticamente ,que deficiências internas e limitações do mercado externo permitam investimentos, em
setores internacionalmente competitivos,
de somente 50 bilhões de dólares. Ou,
colocando a questão em outros termos, a
demanda para setores internacionalmente
competitivos permite a montagem de atividades que, no seu conjunto, viabilizam
esse nível de investimentos. Nesse caso,
o PIB gerado (dada a total abertura da economia que inviabiliza os setores não competitivos internacionalmente) seria de somente 35 bilhões de dólares. Tal seria o
resultado inevitável da política ortodoxa,
que defende a irrestrita abertura do mercado interno.
Caso fosse adotada estratégia complementar de mercado interno, apoiada por
medidas protecionistas (mercado interno
chamado a compensar a insuficiência do
esterno) os 50 bilhões restantes de investimentos requeridos se tornariam viáveis .
Dada sua menor produtividade proporcionariam, contudo , PIB suplementar de
somente 25 bilhões de dólares (50 bilhões
multiplicados por 0,5 ) perfazendo produto total de 60 bilhões de dólares . Temos
,assim, para os PIBs nas três hipóteses:
Modelo de total abertura (teórico) 70
bilhões
Modelo de total abertura (realista) 35
bilhões
Modelo misto 60 bilhões
Não se discute ,portanto, que a situação
ideal seria de economia inteiramente aberta
ou composta apenas por atividades internacionalmente competitivas. Se, contudo,
como é realista esperar, a demanda por elas
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for incapaz de viabilizar a totalidade dos
investimentos requeridos pelo pleno desenvolvimento, estratégia complementar de
mercado interno (configurada modelo misto) é claramente um “ second best “, que
não pode ser desprezado.
Outro ponto importante a ser observado
é o de não haver impedimento a que, através de política destinada a criar vantagens
comparativas dinâmicas e estimular a concorrência interna, parte significativa das atividades inicialmente amparadas atinja níveis internacionais de produtividade, dispensando o protecionismo. Diferentemente do proposto por List, contudo, a proteção não se acha condicionada a que alcancem, no futuro, esse resultado.
Sublinhe-se que a política protecionista,
é estritamente complementar. Nenhum investimento será feito com base nela , se os
recursos correspondentes puderem ser investidos em setores internacionalmente
competitivos. Portanto, se correta a hipótese de mercado externo, capaz de viabilizar
a demanda requerida pelo pleno desenvolvimento (com a instalação no país de somente atividades produtivas de nível internacional de produtividade) a estratégia aqui
sugerida proporcionaria o resultado ótimo
(PIB de 70 bilhões),isto é não inferior ao
anunciado pelo neoliberalismo. Não confirmada a visão otimista, ela garantiria automaticamente o “second best “(PIB de 60
bilhões ) evitando o pior resultado ,
consequência inescapável da fórmula de
completa abertural (PIB de 35 bilhões).
2- Presentemente o “marketing
neoliberal”, amplamente apoiado pelas organizações internacionais, tende a denunciar qualquer forma de protecionismo
como atentado a regras elementares de
comportamento econômico, dado que significa patrocínio de produção de altos cus-
tos, em detrimento de outra de custos mais
baixos. Analisemos essa colocação
A teoria do comércio internacional sustenta que cada país deve se especializar
naqueles bens em relação aos quais registra custos (absolutos ou relativos) mais
baixos. A forma de medir esses custos foi
objeto de longo debate (Corden ,1988)
entre os que defendiam a utilização do
custo real (Viner) e os partidários do custo de oportunidade (Haberler). Os partidários da primeira alternativa sustentavam
ser o custo de um bem, medido pela quantidade de fatores de produção e insumos
necessários a sua obtenção . Os defensores da tese oposta afirmavam que o custo
de um bem é dado pela quantidade de outros bens a que se renuncia para obtê - lo.
A idéia do custo de oportunidade prevaleceu, sendo hoje aceita , sem contestação, na teoria do comércio internacional.
É fácil mostrar como o protecionismo se
justifica com base no custo de oportunidade em país com grande quantidade de
fatores ociosos. Nele, a produção de dado
bem poderá registrar custo de oportunidade zero. Nem por isso, toda via, a empresa que produz estará isenta do pagamento de salários, juros, impostos etc.
Diante desse fato torna-se necessária a
adoção de medidas protecionistas, que a
defendam de concorrentes externos de
custos reais mais baixos.
Passemos ao caso especial dos subdesenvolvidos. Esses países têm elevada
capacidade de mobilizar poupanças. As
nações do Leste Asiático apresentam ,
todas ,níveis de poupanças iguais ou superiores a 30% do PIB. Mostramos, por
outro lado, que o pleno desenvolvimento
é obtido pelo acúmulo de capital por trabalhador do nível permitido pela mais moderna tecnologia disponível. Suponha-
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mos, retomando os dados do exemplo acima, que esse nível seja de 100 000 dólares
por trabalhador o que, multiplicado por hipotéticos um milhão de trabalhadores, dá
o capital de100 bilhões de dólares. Diante
da suficiência da poupança ,é licito afirmar que nosso hipotético país subdesenvolvido dispõe de “capital potencial “desse nível.
Aceitemos, em seguida, que no contexto da irrestrita liberdade de circulação de
mercadorias país subdesenvolvido só
consiga acumular 50 000 dólares por trabalhador. Teríamos, assim, outros 50 bilhões de dólares de “capital potencial “
ocioso. Os empreendimentos lançados
para aproveitá-lo teriam, portanto, custo
de oportunidade nulo, por não implicarem
na renúncia à produção de qualquer outro
bem. Mas, para serem viabilizados, exigem medidas protecionistas (se esses empreendimentos não surgiram espontaneamente em economia aberta é porque não
se revelaram internacionalmente competitivos). Esse protecionismo, baseado nos
melhores preceitos da Economia convencional, não tem guarida nas regras da OMC
e nas receitas do FMI que, para todos efeitos práticos, levam em conta o custo real.
3 - A questão poderá ser melhor compreendida com base na experiência brasileira dos anos cinquenta. Os adversários
da industrialização denunciavam o absurdo de se deixar de produzir café, o que
fazíamos a baixo custo, para fabricar automóveis, a preços mais elevados que os
internacionais. Contra isso, os defensores da indústria mostraram que não estavam propondo criar setor manufatureiro
em detrimento da produção agrícola, mas
sim aproveitar potencial de poupança do
país que, de outra forma, ficaria sem utilização . Ou seja , tínhamos capacidade de
poupar 25% do PIB e o setor primário mal
138
absorvia a metade desse montante. Ou,
tecnicamente, se o custo real da industria
brasileira era alto, seu custo de oportunidade se revelava nulo porque se estava
aproveitando “capital potencial “ocioso.
Esse capital foi em parte empregado diretamente na produção industrial e, em parte, utilizado para liberar trabalhadores rurais requeridos pelo setor fabril. Os fatos
confirmaram a tese protecionista : o Brasil
criou parque fabril completo sem qualquer
redução do setor primário. Isto é, se eram
elevados os custos reais da indústria brasileira seus custos de oportunidade eram
nulos, justificando-se a proteção
A grande dificuldade está em que a idéia
do custo de oportunidade é anti-intuitiva.
Os defensores da abertura comercial
irrestrita se prevalecem do fato de se revelar difícil convencer o consumidor que
pode ser bom para o país comprar produtos nacionais caros em vez de estrangeiros baratos . Embora tenha sido, fazendo
exatamente isso, que o Brasil registrou as
mais elevadas taxas de crescimento de sua
história
4 - Vimos que os custos de oportunidade capazes de justificar o protecionismo
no âmbito de uma política de desenvolvimento parece terem sido esquecidos pelos organismos internacionais e pelos cultores da “mainstream economics”. O mesmo ocorre com a justificação do que chamaríamos “protecionismo extenso”. Vejamos o que isso.
A literatura clássica do comércio internacional, ao reconhecer a validade da teoria protecionista da indústria nascente,
mostrava que a defesa da atividade interna poderia ser levada adiante de duas
maneiras: através de barreiras tarifárias ou
de subsídios. Declarava inclusive preferência por estes últimos dado que a tarifa
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eleva a receita do Governo, tendendo a se
perpetuar, enquanto o subsídio, por ser
despesa, é cortado logo que possível.
Ora os subsídios apresentam outra importante vantagem .Se as barreiras
tarifárias proporcionam à indústria nascente a condição de disputar o mercado interno os subsídios lhe conferem acesso, nas
mesmas condições, tanto ao mercado externo quanto ao interno.
Aceita, portanto, a validade da tese
da indústria nascente, as nações subdesenvolvidas poderiam adotar um tipo
de protecionismo, baseado em subsídios, que pode ser chamado de extenso
por lhes permitir a penetração em qualquer mercado. E desde que esse subsídio não fosse além do estrito necessário
para compensar as desvantagens naturais de uma indústria emergente e não
durasse mais do que o tempo necessário para a maturação do processo fabril
ele se justificaria plenamente dentro da
melhor doutrina econômica.
Podemos voltar aqui à questão do chamado “custo Brasil”. Mostramos antes
que, contrariamente dos que sugerem ataque pontual ao problema, ele deve ser
compensado por medidas protecionistas
de caráter geral. E se estas tomassem a
forma de subsídios, as indústrias nascentes dos países subdesenvolvidos ganhariam acesso, em igualdade de condições,
tanto ao mercado externo quanto ao interno. Nesse caso, não seria subsídio para
compensar casos específicos de “ custo
Brasil” mas medida de caráter geral dado
que este não é pontual mas sistêmico, não
resulta de ineficiências em setores específicos mas da própria condição de subdesenvolvimento.
Na prática essa sugestão se defronta,
além da previsível resistência dos desen-
volvidos com a dificuldade de país subdesenvolvido reunir os recursos requeridos por um subsídio sistêmico . Análises
desse tipo deveriam, contudo, ser largamente divulgadas pelas economias retardatárias para mostrar que a doutrina econômica autoriza (e inclusive dá preferência a) protecionismo bem mais agressivo
do que o usualmente adotado, ou suscetível de ser reivindicado , por elas.
QUARTA SEÇÃO: Nota sobre as
Integrações Econômicas Regionais
1 - Processos de integração constituem
modalidade (embora geograficamente restrita) de abertura da economia. Cabe , portanto, examinar suas consequência sobre
as políticas de desenvolvimento.
Na literatura econômica (Viner) a abertura, territorialmente restrita, é considerada qualitativamente inferior à liberação do
comércio em escala mundial do tipo
propugnado pelos teóricos das vantagens
comparativas. As integrações regionais
seriam positivas na medida em que - criam
comércio- e negativas quando - desviam
comércio -. Exemplo simples ajudará a entender os dois casos. Suponha que o país
A adquira seu aço no país B que, por ser
este produtor eficiente, oferece os menores preços. Ao se integrar com C, produtor ineficiente de aço, A passa a comprar
dele o produto, tornado barato em função
do desaparecimento entre eles da barreira
tarifária . Ocorre, dessa forma, - desvio de
comércio-, considerado negativo por beneficiar produtor ineficiente.
Se, no entanto, o país A, produtor
ineficiente de trigo para auto – consumo,
se une com D, produtor eficiente, há criação de comércio - porque todo trigo
passará a ser produzido neste último. Os
produtores ineficientes de A desaparecem,
o que constitui resultado positivo.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
139
Os defensores dos processos de
integração (Byé,1950) alegam constituir
essa colocação estática do problema.
Da perspectiva dinâmica, o processo torna -se favorável porque mercados mais
amplos, gerados pela integração, favorecem as economias de escala. No caso
dos menos desenvolvidos, existe ainda
a vantagem suplementar: de serem
viabilizados investimentos até agora não
realizados em função da pequena dimensão dos mercados nacionais isoladamente considerados .
Essa argumentação não pretende comprovar a superioridade das integrações
sobre a abertura comercial ampla, mas apenas mostrar que as integrações revelam se favoráveis, a despeito dos eventuais
desvios de comércio.
Passando à análise direta da questão a
pergunta é a mesma feita em relação à
abertura irrestrita, proposta pela teoria das
vantagens comparativas: até que ponto a
abertura em escala regional favorece, ou
impede, que economia retardatária se assegure demanda suficiente para atingir
capital por trabalhador do nível requerido
pelo pleno desenvolvimento ?
Com respeito à demanda três coisas
podem suceder nos acordos de integração
regional, duas negativas e uma positiva.
O primeiro efeito negativo ocorrerá se
produtores eficientes de participantes do
acordo capturarem a demanda antes atendida por outros membros. Nesse caso, significativos desinvestimentos podem ocorrer . O segundo efeito negativo existirá se
todo incremento futuro da demanda for
absorvido por empresas eficientes determinados participantes Quanto ao resultado positivo, este aparecerá se o mercado
mais amplo, proporcionado pela
integração, permitir economias de escala
140
ou a realização de investimentos antes
inviáveis dado o pequeno tamanho dos
mercados nacionais.
2 – A resposta à pergunta sobre se a
abertura limitada das integrações é ou não
favorável ao desenvolvimento deve ser
respondida em função de três casos: união
entre países desenvolvidos , união entre
países subdesenvolvidos e união entre
países em nível diferente de desenvolvimento.
No primeiro caso não deverá haver o
problema de grandes transferências de
demanda entre participantes (com os
consequentes grandes desinvestimentos)
ou de monopolização dos aumentos da
demanda por alguns participantes. Conforme dissemos anteriormente, a demanda tende a se orientar para os produtores
eficientes , de menores custos e, portanto, de preços favoráveis. Ora, na
integração entre países igualmente desenvolvidos, os níveis de eficiência são uniformemente elevados, o que não autoriza
grandes deslocamentos de demanda entre os membros. As perdas de alguns ramos são normalmente compensadas por
ganhos em outros, sem desinvestimentos
líquidos significativos. Quanto ao futuro,
todos participantes se acham em condições iguais no que se refere ao aumento
da produtividade inexistindo, portanto,
risco de açambarcamento da demanda futura por um ou alguns deles. O resultado
final deverá ser, assim, positivo em termos
de viabilização de importantes ganhos de
escala. Esse tipo de análise é, aliás, amplamente confirmado pela experiência da
União Européia.
Tudo o que se disse acima vale igualmente para eventuais integrações entre
países subdesenvolvidos. Seus níveis de
produtividade e a capacidade de aumentá-
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los são semelhantes, o que exclui o risco
de grandes deslocamentos de demanda
entre os participantes ou de monopolização dos incrementos desta por alguns
deles.
superdesenvolvido, porque terão transferido para nós os setores de baixo valor
adicionado por trabalhador. E o Brasil
não irá além do semidesenvolvimento,
porque se terá especializado neles.
O grande problema aparece no caso de
integração entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos, do tipo proposto no
caso da ALCA. Examinaremos a questão
com base nas prováveis consequências
para os dois principais participantes, Brasil e Estados Unidos.
Valladão (1995) mostra que tal é exatamente o resultado esperado pelos dirigentes americanos. Segundo ele, Robert Reich
,Secretário do Trabalho e um dos mais influentes membros da administração
Clinton, declarou esperar que, no âmbito
da ALCA, os empregos de maior valor
adicionado e, portanto melhor pagos, irão
naturalmente se localizar nos Estados
Unidos.
Sendo este último não só o detentor de
uma das mais avançadas indústrias do
mundo, como eficiente produtor agrícola,
poder-se-ia, numa primeira aproximação,
supor que ele absorveria a totalidade da
demanda, com desinvestimento maciço na
economia brasileira. Sucede porém que,
segundo vimos anteriormente, a especialização internacional não se faz com base
em custos relativos e não em custos absolutos. O normal seria, portanto, os Estados Unidos se concentrarem nos setores em que se revelam relativamente mais
eficientes deixando para o Brasil aqueles
em que somos relativamente menos
ineficiente.
Nesse contexto não parece difícil perceber que as empresas americanas se
concentrarão nos setores de tecnologia
mais apurada, mão de obra de maior qualificação, e exigindo grande capacidade
de pesquisa e inovação. Esses são os
setores que registram alto valor adicionado por trabalhador e acelerada taxa de
crescimento. As brasileiras ficarão com
as atividades largamente utilizadoras de
recursos naturais e mão de obra, atividades de baixo valor adicionado por trabalhador e demanda de crescimento relativamente lento. Ou seja, no longo prazo
os Estados Unidos se tornarão país
3 - Convém recapitular aqui argumento
cansativamente repetido em favor da
ALCA. Ela nos daria acesso livre ao maior
mercado mundial . Ora, o importante não é
o acesso livre a grandes mercados mas a
mercados de atividades de rápido crescimento e elevado valor adicionado por trabalhador. A experiência demonstra (Japão,
Estados Unidos ,Alemanha e emergentes
asiáticos) que a melhor forma de conquistá
– los é através de fase protecionista inicial. Esta, complementada por política voltada à criação de vantagens comparativas
dinâmicas, em setores previamente escolhidos, proporcionará às empresas neles
situadas níveis internacionais de produtividade e, portanto, acesso àqueles mercados. Com a ALCA (pelo menos nos termos em que se acha hoje colocada) essa
fase protecionista inicial ficará
inviabilizada, nos impedindo a penetração nos únicos mercados capazes de nos
proporcionar o pleno desenvolvimento.
econômico.
Exemplo simples mostrará como o acesso a grandes mercados pode, inclusive,
ser negativo. Suponhamos que tenha sucesso o esforço da diplomacia brasileira
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003
141
de conseguir ampla abertura da União
Européia para nossos produtos agrícolas.
As exportações brasileiras do setor explodiriam e o PIB do país passaria a crescer
aceleradamente. O otimismo gerado por
esse estado de coisas (mais as compensações que deveríamos oferecer aos europeus) encorajariam a abertura ainda mais
ampla de nossa economia com a especialização final do país na produção de
“commodities” . Especialização esta unanimemente condenada pela literatura tanto nacional quanto estrangeira (Magalhães, 2000), por se tratar de setor de baixo
valor adicionado por trabalhador e mercado de lento crescimento.
Não se está, com isso, afirmando que
nas integrações entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos estes últimos registrem
sempre perdas. Eles terão, pelo contrário,
importantes vantagens nos prazos curto
e médio, com a transferência para seus territórios de atividades intensivas de mão –
de - obra e de recursos naturais. Sua perda será no longo prazo, dado que terão
renunciado â completa eliminação do atraso econômico.
A questão pode ser ilustrada com o
caso do Chile que já tentou, inutilmente,
ingressar no NAFTA e procura agora
acelerar as negociações para a ALCA.
Esse país, diferentemente do resto da
América Latina, apresentou nos últimos
anos crescimento acelerado do PIB.
Aproveitando a diferença de estações
entre ele e os Estados Unidos, lançou –
se na exportação de produtos agrícolas e
conexos. Com isso registrou crescimento anual em torno de 7%. O problema é
que o mercado para tal tipo de atividade
cresce de apenas 3% ao ano. Assim sendo pode –se prever que durante algum
tempo ainda conseguirá taxas elevadas
de crescimento ao eliminar do mercado
142
fornecedores tradicionais e ao obter parcela mais que proporcional do crescimento da demanda. Esse crescimento acelerado irá, contudo se tornando cada vez
mais difícil na medida que controle segmentos mais amplos do mercado. Quando o controle for total o incremento do
seu PIB estará inexoravelmente limitado
aos 3% a. a. impostos pelo mercado em
que se especializou.
Da perspectiva secular duas coisas
podem acontecer. Numa primeira hipótese o Chile reduzirá significativamente
seu atraso econômico conseguindo, em
seguida, manter sua posição relativa.
Nesse caso se tornará país cronicamente semidesenvolvido. O mais provável ,
contudo, é uma segunda hipótese em
que, tendo se especializado em atividades com mercado de incremento inferior
à média, não conseguirá acompanhar o
ritmo de crescimento das economias
maduras voltando, gradativamente, à
situação anterior de subdesenvolvimento. A experiência histórica da Argentina
ilustra esse tipo de evolução.
Em suma, o grande risco em relação a
ALCA é que dentro de visão de estrito
curto prazo ela pode ser considerada favorável. Os países de porte médio da
América Latina, não tendo levado adiante esforço de industrialização do tipo realizado no Leste da Ásia, talvez não tenham alternativa à ALCA. Alternativa só
existiria no âmbito de uma ALCSA (Área
de Livre Comércio Sul Americana) colocada em termos corretos, ou seja , de distribuição preestabelecida entre os participantes dos setores de maior dinamismo e valor adicionado por trabalhador.
Isto é, algo semelhante ao que se tentou
no Grupo Andino. Até agora nada nesse
sentido está sendo sequer tentado para
viabilizar uma futura ALCSA.
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O Brasil, pelo contrário, dadas suas dimensões contintentais (eventualmente criadas pelo MERCOSUL) tem condições de
fazer uma aposta bem sucedida no pleno
desenvol vimento. Para tanto deverá estar
preparado para recusar a proposta de ingresso na ALCA, pelo menos nos termos
em que esta se acha hoje colocada.
É possível que, em termos realista de
política internacional, o Brasil não possa
se retirar pura e simplesmente das negociações sobre o acordo. Nesse caso, deveríamos condicionar ingresso no sistema aos seus resultados em termos de
política de desenvolvimento. O problema da integração entre países em níveis
diferentes de desenvolvimento, amplamente reconhecido na literatura, deveria
ser colocado abertamente e como discussão prioritária. Nesse contexto nossa
posição poderia ser, não de recusar frontalmente a ALCA mas de sustentar que
deveria ser lançada quando a diferença
entre o produtoper capìta dos participantes houvesse baixado dos 1 para 8 atuais
( caso dos Estados Unidos em relação ao
Brasil) para, digamos, 1 para 3, como ocorreu na experiência histórica das
integrações bem sucedidas. Ou seja, a
implementação efetiva da ALCA deveria
ser precedida de amplo programa do tipo
Aliança para o Progresso.
Ou, colocando a questão dentro do gosto da “mainstream economics” assinalaríamos que as integrações econômicas reclamam condições iguais de concorrência
entre os participantes, o que só existirá,
em nosso caso, quando houver desaparecido, ou for drasticamente reduzido, o
“custo Brasil”. O que normalmente só
acontecerá em fase mais avançada do nosso desenvolvimento, fase suscetível de ser
antecipada no âmbito de nova Aliança
para o Progresso.
CONCLUSÃO
Países subdesenvolvidos não criam teorias econômicas mas as importam. Isso
acarreta dois riscos. O primeiro deles se
prende ao fato de essas teorias levarem
em conta as condições existentes nas economias maduras, condições que nem sempre coincidem com as existentes nas economias retardatárias .O segundo risco decorre de os paradigmas analíticos importados contrem muitas vezes defesa
disfaçada dos interesses dos países que
os produzem. Nesse contexto, a teoria das
vantagens comparativas constitui caso
exemplar. Se nunca houvesse sido contestada, a Inglaterra seria hoje, possivelmente, o único país industrializado (ou plenamente desenvolvido) do mundo.
O protecionismo de List, que levou em
conta as condições e interesses dos países da segunda onda de industrialização,
impediu que isso acontecesse. A tese desse autor foi incorporada a “ mainstream
economics” e ai permaneceu enquanto se
revelou útil para justificar as barreiras
tarifárias desse países. Cessada essa utilidade, vai ser sucateada ou tolerada apenas como “second best” em relação a ataques específicos a “falhas de mercado”.
Acontece que as justificações de medidas protecionistas mais amplas requeridas
pelos subdesenvolvidos (e tipificadas pela
contribuição de Prebisch) foram rejeitadas
prematuramente e sem que houvessem
sido falseadas . Esse fato coloca problema epistemológico de magna importância.
A incapacidade dos países subdesenvolvidos no que se refere â criação científica
não tem maior importância no
concernenete às chamadas ciências naturais. Quando a cura do câncer ou da aids
for descoberta no Hemisfério Norte, ela
valerá igualmente para o Hemisfério Sul.
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143
O mesmo não é certo com respeito às ciências sociais. A questão do protecionismo ilustra bem esse fato.
As teorizações de Prebisch foram abandonadas sem que jamais tivessem sido
adequadamente contestadas, por inexistir
na América Latina núcleo de pesquisadores acadêmicos capazes de aprofundá-las
e defendê-las.
Análise de Lakatos (1989) ilustra bem o
que deveria ter sido feito. Toma como base
a teoria gravitacional de Newton que , segundo ele, constituiu o programa científico de pesquisa de maior sucesso em ciências exatas. Nos seus primórdios, essa teoria sofreu toda sorte de violentos ataques. Os discípulos de Newton mostraram , no entanto, que as experiências que
a desmentiam estavam erradas, ou provavam exatamente o contrário do pretendido. Novas experiências foram inventadas
para comprovar a teoria gravitacional e
assim por diante
Foi cobertura desse tipo que faltou à
teoria Prebisch. Sua rejeição não teria ocorrido se existisse, na América Latina. núcleo de pensamento crítico capaz de lhe
garantir cobertura igual à proporcionada
a Newton por seus discípulos . A menos
que esse tipo de deficiência venha a ser
corrigido, as chances de que o Brasil (e a
América Latina em geral) levem a bom termo suas políticas de desenvolvimento são
praticamente nulas conforme ilustram, de
forma flagrante, os debates em torno do
protecionismo.
Abstract
This paper shows that protectionism can,sometimes,contribute to development.It
does not defend protectionism itself,but its application when ‘first best’ is unreacheable
or when it only exists in theory .
Keywords: Protectionists measures, Free trade, International Trade, Economic
development.
144
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Palestra sobre a organização da
Escola Superior de Guerra
Realizada na Escola de Estado Maior
pelo Exmo. Sr. Gen. Div.
OSWALDO CORDEIRO DE FARIAS
Rio de Janeiro, 18 de maio de 1949
a
INTRODUÇÃO
1 parte
Ao iniciar esta palestra devemos, desde
logo, esclarecer que ela tem por objetivo
mostrar aos nossos meios civil e militar,
algumas das razões que levaram o governo à pensar na organização da Escola Superior de Guerra. Com esta finalidade e para
melhor explanação do assunto, dividiremos nossa exposição em duas partes gerais. Na primeira focalizaremos, de plano,
as características do último conflito, a situação de após guerra, a hipótese e o sentido de uma possível terceira conflagração mundial, a posição do Brasil no panorama internacional e suas obrigações nessa esfera e conseqüentemente no do setor da segurança nacional.
A última guerra, suas características.
Situação mundial após o conflito. A possibilidade de uma nova guerra e hipótese
sobre o desenvolvimento. Posição atual
do Brasil. Suas obrigações internacionais.
Conseqüências para o Brasil no setor da
segurança nacional.
Desse quadro geral, decorre natural,
quase espontaneamente, a necessidade da
criação da Escola Superior de Guerra.
Na segunda parte trataremos propriamente da Escola Superior de Guerra analisando suas finalidades, sua organização,
suas atividades escolares para concluirmos que seu êxito vai depender, mais que
tudo, da cooperação que lhe emprestarem
os elementos exponenciais do Brasil quaisquer que sejam suas funções, atividades
e especializações.
CARACTERÍSTICAS
DA ÚLTIMA GUERRA
A última grande guerra teve como aspecto característico o emprego em massa,
levado em extremo de suas atividades, da
totalidade dos recursos morais, humanos
e materiais das nações que nela, a fundo
se empenharam. Das pessoas mais humildes aos maiores expoentes da ciência, de
todos os homens e de todas as mulheres,
dos velhos e das crianças - de cada um na
missão em que sua capacidade parecia
mais produtiva, na frente ou na retaguarda - todo esforço foi exigido. E a vitória
coube aos que, sob aquele tríplice aspecto, mais recursos possuíam e a eles souberam imprimir uma planificação mais lógica e mais racional. Foi a guerra, em suma,
uma luta em que venceu aquele que teve a
preponderância do material - tomado este
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no sentido mais amplo - ao serviço das
melhores forças morais. Examinando-se a
característica total da última guerra - que
no dizer do Gen. De LATTRE DE
TASSIGNY, poder-se-ia chamar de “integral” - para definir a intensidade do esforço exigido à “totalidade” da nação - verifica-se que ela não se refere somente à cooperação do esforço de todos em benefício
da Nação em luta mas também à”extensão”
do perigo da guerra a toda superfície do
país. Aí está uma diferença essencial do
último conflito, com o de 1914/18, devido,
é claro, ao progresso do material usado
pelos beligerantes. Decorrente dessa “extensão” , isto é, desse perigo - dada a possibilidade, por exemplo, de um desembarque de tropas aero-transportadas ou a incursão rápida e violenta de uma força
motomecanizada - surge, como conseqüência lógica, a participação eventual de
“todos” na luta armada ou na clandestina,
cuja aplicação organizada, por todos os
beligerantes, constitui uma normalidade
peculiar ao último conflito. Desses três
fatores - cooperação de “todos” para o
esforço da guerra, perigo para “todos” no
caso de um conflito e possibilidade de “todos” serem transformados em combatentes ativos - nasce uma maneira nova de se
encarar a guerra e, em conseqüência, a
mobilização que passará da fórmula clássica de mobilização geral para a de
mobilização total e da qual “a mobilização
militar” será simplesmente uma das partes, um dos ramos, uma de suas facetas.
A mobilização, encarada sob esse novo
aspecto, transcende das funções de órgãos especializados de ministérios específicos, para ser função do governo em
seu conjunto, pressupondo-o servido por
uma organização adequada a esse fim. As
Nações, quer as democráticas, quer as totalitárias, no conflito último foram levadas
150
a criar mecanismos desse gênero. É que
se trata, agora, não mais de mobilizar somente aqueles que desempenharão uma
função propriamente na batalha, mas - organizar, orientar e conduzir as forças totais da Nação no sentido da vitória. Pensadores
militares
dividem
esquematicamente a mobilização total em
quatro partes:
a
1 ) Mobilização moral do país e ataque
ao moral do adversário, o que corresponde
à chamada guerra psicológica. Exige uma
técnica especializada.
a
2 ) Mobilização da produção e ataque à
produção inimiga, o que corresponde à
guerra econômica. Exige uma larguíssima
previsão e uma legislação especial muito
completa.
a
3 ) Mobilização das amizades exteriores,
o que corresponde à guerra diplomática.
Trata-se em suma, de ter uma política exterior segura e organizar, conseqüentemente, suas Forças Armadas de acordo com
os compromissos dela decorrentes.
a
4 ) Mobilização Militar, sub dividida,
para maior clareza, em mobilização das
Forças Armadas propriamente ditas e
mobilização para pôr em condições de segurança, a totalidade da população. Constitui esta última parte a ampliação do conceito das “Forças Territoriais”, seja proteger contra “todos” os perigos, seja para
lhe permitir participar do combate ou da
resistência no caso de invasão.
Pela sua extensão - embora pertencente
aos Ministérios que administram as Forças Armadas - a mobilização militar necessita de uma orientação firme do Governo,
em virtude de sua interferência com outras formas de mobilização.
Abandonando por instantes, essa característica do último conflito que se refle-
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te, tão profundamente na preparação para
a guerra, ressaltemos, de passagem, o progresso alucinante do material empregado
pelas forças que se defrontaram na última
contenda. Vivemos, neste particular, uma
era verdadeiramente revolucionária. E
constatemos finalmente que as características do último conflito e o material nele
usado nos levam a meditar seriamente sobre a organização e a localização do potencial econômico nacional, para que ele
possa existir na paz e persistir na eventualidade de nova guerra.
O APÓS GUERRA
Examinadas, grosso modo as características da última guerra e pesando os seus
resultados, forçoso é concluir que ao tremendo esforço despendido, não
corresponderam a tranqüilidade e a harmonia que o sacrifício de milhões de vidas
humanas tinha direito de exigir. Vivemos
um período tremendamente difícil nas relações internacionais e o mundo - dividido em dois campos opostos e dificilmente
conciliáveis - parece viver um entreato de
duas grandes guerras. Os primeiros dias
de outubro de 45 - em que se reuniram e se
separaram em Londres pela primeira vez,
após a cessação das hostilidades, os representantes norte-americanos, ingleses,
franceses, russos e chineses sem nada
resolverem marcaram o início dessa situação mundial, que desta data em diante, só
se tem agravado. Vive-se hoje a guerra fria
que prenuncia nova hecatombe.
“A paz conseguida (1945), porém, não
foi a paz sonhada pelas vítimas da guerra.
A tragédia de nossa época reside no fato
de que o choque dos exércitos foi apenas
substituído pelo choque das ideologias.
Os homens e as nações não se encontram
livres do receio de agressão e a real cooperação entre os Estados, única base se-
gura para a paz, tem ainda que demonstrar
que pode navegar pelas borrascosas
águas do golfo que separa a democracia
do Estado totalitário”.
“No momento as condições são bastante turbulentas e favoráveis para que a
guerra possa apresentar-se ao mundo,
sem necessidade de um plano ou de uma
política deliberada. Uma ação isolada poderá precipitar o conflito e uma vez
irrompido ele em uma região crítica, a guerra se propagaria através de novas fronteiras, arrastando rapidamente outras nações,
cujo desejo é a paz”.
São do Gen. Eisenhower esses conceitos, no seu relatório ao deixar o Estado
Maior americano e que, definem com autoridade, a época em que vivemos.
E é um mundo assim, com tais perspectivas que os povos, em sua imensa maioria sedentos de paz, sentem a possibilidade, para não dizer a probabilidade, de uma
nova guerra.
Nesta situação, à nenhuma Nação, ciosa de sua soberania, é lícito deixar de encarar a realidade dos dias que correm e de
se preparar, na medida de suas possibilidades, para lutar pela sua sobrevivência,
examinado, com a maior acuidade, as hipóteses sobre a guerra futura.
“Podemos ter a certeza que a próxima
guerra, se houver, será ainda mais total do
que esta (1945)” são afirmações do Gen.
Marshall. Oswaldo Aranha, numa extraordinária conferência feita na Escola de
Estado Maior, diz:
“O futuro conflito terá, pois, de ser total
e global. Será a luta de todos os povos e
de todas as criaturas em todas as terras,
mares e céus. O trabalhador terá de ser
mobilizado como soldado, bem como todos os homens e até todas as mulheres,
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151
na medida de suas possibilidades. Nenhum esforço será inútil e aqueles que não
puderem concorrer para a luta ou a puderem prejudicar, terão de ser eliminados. A
futura guerra incluirá na sua trágica
entrosagem, o corpo, o espírito, a máquina e tudo que existe em cada país para que
algo possa, ao fim, sobreviver. Não será
como as passadas porque terá de ser decisiva e definitiva para o destino da humanidade”.
“Nossa tarefa é convencer qualquer
possível agressor que pode optar pela
guerra mas sob o risco de sua própria destruição. A perspectiva é talvez sombria,
mas não há que fugir a ela”.
“Felizmente não existe um inimigo que
tenha hoje capacidade para fazer uma guerra em condições de produzir nossa derrota total”.
São ainda afirmativas do Gen.
Eisenhower. Reparai nos seus termos própria destruição - derrota total.
Não há que fugir, infelizmente, a estas
imposições de uma nova guerra se ela surgir. Aceitemo-las como inevitáveis e fixemos um novo aspecto da questão. O mundo ocidental gira hoje em torno da América do Norte. Foi ela, na segunda grande
guerra, o seu maior arsenal e sê-lo-á mais
fortemente num possível terceiro conflito.
Meditemos, porém, na sua política externa e rendamos nosso tributo de admiração aquele Povo que não compreende a
guerra sem ser atacado previamente. Essa
grande norma de conduta cria-lhe, porém,
graves problemas, com forte repercussão
em todos os países do mundo. Tudo leva
a crer, caso surjam novas hostilidades, que
o primeiro ataque será o mais arrasador
possível e, sem dúvida alguma, desferido
contra a Nação mais preparada para a guerra. Será, no quadro atual da situação in152
ternacional a América do Norte, o primeiro país a ser atingido, brutalmente e sem
dúvida alguma na parte fundamental de
sua preparação para a guerra - suas indústrias, seus recursos materiais - de maneira a entravar, o mais possível, a resposta ao ataque e impossibilitar, nos primeiros tempos, o auxílio material aos seus aliados.
Este fato acarretará, para nossos amigos do Norte, questões de tal complexidade que só seu espírito de iniciativa, de organização, de auto-determinação - servido por uma elite de condutores civis e militares, cientistas, industriais, homens de
negócio - poderá enfrentar e vencer. Mas,
continuemos. E de passagem ressaltemos
que o já conhecido sobre novas armas faz
com que nenhuma Nação do mundo se
considere - pela sua situação geográfica a coberto dos riscos da guerra.
E o que, publicamente, se sabe dos materiais, a serem usados num futuro conflito, é praticamente nada... Tudo, hoje, é
neste terreno, possível de ser imaginado...
SITUAÇÃO NACIONAL
Na situação atual do mundo e numa
posição geográfica relativamente vulnerável, vive o Brasil, membro da ONU e signatário do tratado Interamericano de Assistência Mútua. Por esse acordo, assinado no Rio de Janeiro a 2 de Setembro
de 1947 aplicação do artigo 51 da carta da
ONU, ficou estabelecida uma vasta zona
de segurança compreendendo todo o continente americano e regiões adjacentes, no
interior da qual uma agressão a todos os
demais, exigindo ação imediata de defesa
mútua, seguida de consultas sobre planos coletivos, inclusive para o emprego
de forças armadas. No caso de ataque a
qualquer ponto americano, fora da zona
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
de segurança estabelecida no Tratado, os
Ministros de Exterior se reunirão, imediatamente, em conselho, a fim de decidir sobre as medidas de assistência ao agredido
ou para manter a paz e a segurança panamericana.
Para o fim que se tem em vista não é
necessário mais detalhes sobre o Tratado. Liguemo-lo simplesmente - nos seus
efeitos e causas - ao pacto do Atlântico
Norte e consideremos nossa situação na
questão que divide o mundo nos campos
do Ocidente e do Oriente. Aí nossa atitude está também assentada. Não temos relações diplomáticas com a Rússia e já nos
definimos claramente em relação ao comunismo, cabeça de ponte dos interesses do
governo de Moscou, considerando-o ilegal no país. De outro lado, as tendências
tradicionais do povo brasileiro, nossa secular amizade com a América do Norte,
completam o quadro da situação internacional de nossa Terra, colocando-a numa
posição clara diante de um possível terceiro conflito mundial, ainda que, nele fossem possíveis atitudes neutras.
Em face do exame geral da situação e
da posição particular do Brasil uma conclusão, desde logo, se impõe. Nesta conjuntura precisamos preparar-nos para a
eventualidade da terceira guerra mundial, o que é uma conseqüência do panorama internacional, uma política de autodefesa, um imperativo de nossa soberania e do nosso espírito de sobrevivência.
Viver despreocupado deste problema,
num mundo que não se entende, é ter
mentalidade suicida.
SEGURANÇA NACIONAL
A questão da segurança nacional
- o primeiro dos deveres de um Estado, precisa ser equacionado de maneira racio-
nal no Brasil e a procura de sua solução,
deve ser o rumo firme dos seus dirigentes.
O conflito futuro, afirmam todos, terá
mais do que o último, características de
guerra integral. Todas as forças morais,
econômicas, diplomáticas e militares nele
serão lançadas, com a máxima intensidade
e a maior extensão. Daí a complexidade de
sua preparação que, como já afirmamos,
deve ser obra do Governo, em seu conjunto.
E nossa Constituição, elaborada após o
término das hostilidades, já consagra este
princípio. O artigo 178 dá ao Presidente da
República a direção política da guerra, o
179 atribui ao Conselho de Segurança
Nacional o estudo dos problemas relativos a defesa do país e o 181 institui o serviço militar obrigatório e encargos afins.
Mas, decorrente deste princípio, necessário é que toda uma legislação conveniente seja elaborada, da qual surgirá uma
adaptação da estrutura governamental e
dos vários outros órgãos administrativos,
necessária à consecução desta orientação.
Só com uma organização apropriada de
Governo, será possível uma plítica de segurança nacional, cuja realização em tempo de paz é uma necessidade premente e
permanente – pois a preparação da guerra
comanda e domina a sua execução. Sem
ela não há conduta possível de operações,
porque “nos conflitos modernos a primeira batalha não é mais do que o choque de
dois estados de preparação”. Procuremos
fixar, pois, em que consiste, nas suas linhas mais gerais, uma política de segurança nacional. Nada melhor para isto do
que meditarmos sobre esses conceitos do
Gen. Eisenhower.
“Um programa de segurança completo,
deve cogitar do emprego eventual de to-
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153
dos nossos recursos econômicos, do emprego dos homens de ciência, tanto como
da massa dos homens e do armamento.
As forças armadas são apenas o gume da
máquina da nação, cuja força destruidora
será empregada para derrotar o inimigo”.
“A segurança nacional é hoje, mais do
que nunca, um problema de coordenação
não apenas entre o Exército, Marinha e
Força Aérea, mas também entre estes, o
Ministério do Exterior e o conjunto da economia civil norte americana”.
“Segurança nacional não quer dizer
militarismo, nem disto se aproxima. A
segurança não pode ser medida pelo volume dos estoques de munições, nem pelo
número de homens em armas, nem
tampouco pelo monopólio de uma arma
invencível. Mesmo durante a paz, o índice
do poderio material é enganoso, pois o
armamento torna-se antiquado e sem valor; grandes exércitos decaem imperceptivelmente, minando ainda o vigor das nações a quem apóiam; o monopólio de uma
arma é logo rompido. Adequadas reservas morais somadas à compreensão das
exigências de cada dia, nos permitirão
fazer face aos acontecimentos de nossa
época”.
Com a enorme responsabilidade de seu
presente, com a dura experiência de seu
passado, estes ilustres e magníficos chefes militares, definiram, com clara exatidão,
a política de segurança nacional. Ela, de
fato, hoje, diz respeito à totalidade da Nação que precisa, pelos seus dirigentes,
pela sua elite, pelos seus homens de negócio e pela sua massa, compreender seu
papel permanente no conjunto de esforços de toda a natureza, para que o país
possa resolver, no caso de um conflito os
problemas relativos à sua própria sobrevivência. Este conceito sobre segurança
nacional não é ainda, infelizmente, compreendido pela generalidade da nossa
gente. A velha idéia de que defesa nacional é função e dever privativos das forças
armadas está até hoje, entre nós, muito
arraigada. É preciso que nesse sentido se
evolua e se compreenda que nos dias que
correm “A Nação, organizando-se para
guerra está também se preparando para
uma vida melhor”.
“Creio havermos aprendido que a defesa nacional não é propriedade exclusiva,
nem incumbência peculiar dos homens
de farda, mas que sua responsabilidade
deve ser compartilhada pelo trabalho, o
capital, a agricultura, a indústria e outros
grupos que contribuem para o mosaico
nacional”.
“As guerras se travam e se ganham ou
se perdem na terra, no mar ou no ar e nas
linhas de batalha situadas atrás da frente, onde estão as forças civis. Não basta
mobilizar o poderio militar da Nação. Deve
haver a mobilização de todos os seus recursos econômicos”.
O Gen. Collins, sub-chefe do Estado
Maior do Exército dos Estados Unidos,
sobre o mesmo tema inicia assim o discurso na Universidade de Norwick,
(Fev. de 48).
154
De fato a segurança nacional repousa,
antes de tudo, em uma organização adequada de Governo, em que o planejamento seja a preocupação maior. Desse planejamento geral surgirá um incremento da
economia, tomada ela no seu sentido mais
amplo, e de onde emergirá final e naturalmente, uma organização sólida para as classes armadas. Sem fortes bases econômicas não pode Nação alguma ter eficiente
organização militar. É assim que compreendemos hoje, nós das Forças Armadas,
a questão da segurança nacional e é desta
maneira que por ela nos batemos, ao mes-
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mo tempo, que almejamos uma ligação estreita com o ITAMARATY, companheiros
que somos de uma mesma luta, servidores
do Brasil cujos passos devem estar sincronizados a todas as horas, em todos os
momentos e em todos os sentidos.
Outra questão a considerar na política
de segurança nacional, é a decorrente de
um aspecto do último conflito e da guerra
fria de nossos dias. Queremos referir-nos
ao problema ideológico – com a reeducação política dos vencidos, com os saques
organizados, com os trabalhos forçados,
com as questões religiosas – infelizmente,
surgido na última guerra. Conseqüência
deste fato é a necessidade de um esclarecimento continuado, permanente da opinião pública que deve ser alertada para a
hora difícil em que vive o mundo, em que
o amanhã é um desconhecido e onde as
Nações imprevidentes não poderão talvez
sobreviver de acordo com o seu feitio, seus
hábitos, suas tradições, seus costumes.
Esta obra deverá ser das elites esclarecidas
e antes de tudo, dos que têm por missão
plasmar o caráter e formar a cultura da
nossa mocidade – os professores; da imprensa, instrumento real de combate e do
rádio que leva aos mais afastados rincões
de nossa terra as palpitações dos nossos
anseios e a angústia das nossas dúvidas,
todos instrumentos que tanta e tamanha
força representam nos dias que correm.
No conjunto destas idéias sobre a segurança nacional, muitos problemas são
específicos das Forças Armadas. Sua solução, porém, só pode ser dada no âmbito
geral das medidas concernentes à defesa
do país. Isto porque as organizações militares constituem, hoje, mera componente
da guerra total, ao mesmo tempo que sua
ação é simplesmente a resultante do esforço dispendido em outros setores. Apesar desta verdade, têm procurado as For-
ças Armadas acompanhar, na sua
estruturação e ensino, as lições do último
conflito. E como primeiro passo para a
unificação das três forças – Marinha, Aeronáutica e Exército – foi criado o Estado
Maior das Forças Armadas, órgão cujo
trabalho silencioso e consciente, tanto tem
produzido no sentido de um entendimento perfeito entre as três forças armadas. E
que, ao lado dessa sua função precípua,
não tem se descurado, na medida de suas
possibilidades, de estudar e encaminhar
aos poderes competentes, questões relacionadas com a economia do país – base
da segurança nacional. Entre estas, a questão do Serviço Nacional, de natureza militar ou civil e que está em estudos no Congresso Nacional, onde merecerá, certamente, de nossos legisladores, uma
acurada atenção. Temos para nós que
transformado em lei esta proposição do
Estado Maior das Forças Armadas, assinalado serviço será prestado à economia
do país, ao lado de um profundo reflexo
na educação e na preparação técnica do
povo. O aproveitamento do Xisto
Betuminoso, cujo estudo é outra contribuição do mais largo alcance que o novo
órgão das classes armadas presta à economia nacional e que realizado, não colidindo, em absoluto, com a solução da
questão de combustíveis pelo aproveitamento do petróleo, antes talvez para ela
concorrendo será de imprevisível reflexo
na nossa riqueza.
Voltemos, porém, à questão da segurança nacional, considerada em seus aspectos mais gerais e repitamos que sua política deve basear-se numa estruturação adequada de governo, num esforço permanente para melhoria da economia do país,
numa coordenação completa entre as três
forças armadas, entre estas, o Ministério
do Exterior e as forças civis, tudo num
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155
ambiente da mais alta compreensão do
sentido da segurança do país. E confessemos que falta a nós, civis e militares,
pela magnitude da questão, uma base sólida para versarmos assuntos de tal monta
e tal complexidade. De outro lado, porém,
podemos ajudar-nos mutuamente, dando
cada um, dentro de sua esfera de ação, o
que ao outro falta, de tal forma e arte que
os problemas se tornem mais fáceis e acessíveis. Assim agindo criaremos também a
mentalidade da cooperação interministerial
e interdepartamental e mais ainda – nós
que somos tão individualistas – o sentido
de equipe de trabalho, tão necessária ao
cumprimento de qualquer missão.
Encarar a política de organização da
segurança nacional dentro deste objetivo, com este rumo, com este sentido, com
esta meta, é a finalidade da Escola Superior de Guerra.
a
2 PARTE
ESCOLA SUPERIOR DE
GUERRA
É mais uma iniciativa do Estado Maior
das Forças Armadas, baseada na experiência dos nossos amigos da América
do Norte.
A primeira guerra mundial revelou aos
Estados unidos a realidade que a vitória
depende tanto da eficiência militar das tropas combatentes, quanto da capacidade
de produção do país. E o resultado foi que,
durante a primeira conflagração, ficaram
os Americanos na dependência dos seus
aliados quanto ao fornecimento do material, não obstante o notável esforço e capacidade daquela grande Nação.
A lição foi imediatamente apreendida
pelas altas autoridades militares america156
nas, que em 1924 conseguiram do Governo a criação da “Academia Industrial do
Exército” (atualmente das Forças Armadas) com a finalidade de preparar oficiais
para a missão de supervisionar a aquisição de todo material – militar e garantir a
mobilização das organizações industriais
necessárias em tempo de guerra.
Com o tempo a Academia Industrial se
desenvolveu a ampliou suas finalidades
preparando não só oficiais como civis, para
os cargos de comando, direção, estados
maiores e órgãos do governo, através de
estudos sobre:
- Relações entre os fatores econômicos
nacionais e os políticos, militares e psicológicos.
- Todo planejamento combinado estratégico.
- Coordenação de todos os órgãos e fatores econômicos e logísticos de
impotância para a nação, sob o ponto de
vista da segurança nacional.
A conseqüência desta iniciativa, os seus
resultados, e o mundo inteiro testemunhou
por ocasião da segunda grande guerra,
quando foi a América do Norte a grande
fornecedora da material a todos seus aliados, invertendo, integralmente, a situação
de 1918 (Military Review n.7 de 1948 Ten.
Cel. J.G. Ondrick).
Na segunda guerra mundial outra verdade se revelou aos americanos e que foi
a necessidade da estreita coordenação
entre aqueles dois fatores – econômico e
militar – e a política exterior.
Organizou a América do Norte, então,
durante o próprio conflito, uma “Comissão Coordenadora Exército – Marinha –
Exterior” que tinha como função precípua
a sistematização dos diferentes aspectos,
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
militares e diplomáticos, do seu planejamento estratégico.
A experiência daquela comissão indicou
que nenhum dos Ministérios interessados
possuía pessoal suficiente, com a cultura
e o treinamento para versar problemas da
importância dos que lhe eram cometidos.
Concluíram os responsáveis pela segurança americana que a análise e a expressão do planejamento nacional, não
poderiam ser executados, com eficiência,
por técnicos especializados somente em
um setor determinado, fosse ele diplomático, político, econômico ou estratégico.
É que a orientação e os planos baseiamse na combinação harmônica de todos os
fatores; tal combinação só pode ser obtida, nas melhores condições, por indivíduos familiarizados com os referidos fatores e capazes de pesarem o valor relativo de cada um.
Foi com esta finalidade que, em 1946, foi
criada a Academia Nacional de Guerra dos
Estados Unidos, sob a direção do Estado
Maior Conjunto em cooperação com o
Ministério do Exterior. Seu currículo tem
em vista dar aos estudantes civis e militares, o maior conhecimento possível sobre
todos os fatores que determinam a política nacional, estimulando-lhes o raciocínio
segundo linhas que melhor atendam à solução dos problemas futuros da sua segurança. (Military Review n.9 de 1948 – Cel.
Abott).
O Canadá e a França organizaram em
1948, estabelecimentos semelhantes e
acreditamos que a Inglaterra tenha orientado, sobre esses novos moldes, se Colégio de Defesa Imperial.
No Brasil, com finalidades semelhantes,
porém sem essa objetividade, funcionou
durante algum tempo, sob forma precária
e somente sob aspecto militar (de operações), um curso de Alto Comando, na Escola de Estado maior, sob a orientação da
Missão Militar Francesa. Em 1948 o Estado maior das Forças Armadas, após
acurado estudo e tendo em vista reorganizar e atualizar o Curso de Alto Comando, solicitou e obteve do Exmo.Sr. Presidente da República, autorização para tratar da organização de uma Escola Superior de Guerra que funcionasse sob sua orientação, porém, suficientemente autônoma e capaz de proporcionar não só os
ensinamentos que aquele curso previa,
mas igualmente os que se recomendassem
como fruto da experiência da última guerra mundial. Já foi pelo poder executivo
enviado ao Congresso Nacional o projeto
de lei, dando vida legal à nova Escola.
Entre nós a Escola Superior de Guerra,
de início, procurará centralizar os objetivos
da Academia Nacional de Guerra, da Escola Industrial e de um terceiro estabelecimento de ensino americano, que essencialmente militar, trata das questões referentes às
operações combinadas dos diferentes ramos das forças armadas. Esta nossa orientação cautelosa e a simples enumeração das
finalidades da Escola Superior de Guerra,
acarretam questões incrivelmente complexas para sua organização.
Desde já, e em conseqüência trata o Estado maior das Forças Armadas, de preparar seu funcionamento para o início de
1950, com o concurso inestimável de três
oficiais superiores americanos – Exército,
Marinha e Aeronáutica – contratados especialmente para isso.
FINALIDADE
“A Escola Superior de Guerra é bem um
espelho do conceito moderno de segurança nacional: ela não é um instituto militar
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
157
apenas, nem tampouco somente uma organização civil, é, isto sim, um centro misto de estudos – militar e civil – e onde, em
última análise – se vai tratar da defesa do
cidadão (Brok Claxton)”.
gãos – civis e militares – responsáveis pelo
desenvolvimento do potencial e pela segurança do país.
Destina-se a Escola Superior de Guerra
a desenvolver e consolidar conhecimentos relativos ao exercício de funções de
direção ou planejamento da segurança
nacional.
A Escola Superior de Guerra terá, em
princípio, a seguinte organização:
Para isto, nela serão analisados:
o
1 ) – Assuntos nacionais
- questões que interessam ao desenvolvimento do potencial nacional.
o
2 ) – Assuntos internacionais:
- política exterior e sua coordenação com
as necessidades da segurança nacional.
Tendências mundiais. Problemas internacionais, principalmente os referentes ao
hemisfério ocidental.
o
3 ) – Assuntos militares:
- emprego das forças combinadas. Determinação do valor das forças armadas
necessárias à execução da política nacional na paz e na guerra. Planejamento estratégico. Mobilização nacional.
Todas essas questões serão tratadas na
Escola Superior de Guerra mediante o emprego de um método de análise e interpretação dos fatores políticos, econômicos, diplomáticos e militares que
condicionam o conceito estratégico, num
ambiente de ampla compreensão entre os
grupos nela representados. Este método
deverá desenvolver o hábito de trabalho
em conjunto e de colaboração
interministerial e interdepartamental, a fim
de criar um conceito amplo e objetivo de
segurança nacional que sirva de base à
coordenação das ações de todos os ór158
ORGANIZAÇÃO
a) Direção.
b) Junta Consultiva.
c) Departamento de Estudos.
d) Departamento de Administração.
Ao analisarmos os dois primeiros órgãos, encontraremos estruturação diferente da que no geral, é adotada no Brasil,
quando constatarmos que o diretor que
exerce também o Comando, terá:
o
1 .) Uma assistência permanente – composta de representantes das diferentes
forças armadas e possivelmente do Ministério do Exterior.
o
2 .) Uma assistência periódica, constituída pelos membros da Junta Consultiva.
A Junta, que aparece pela primeira vez,
em órgão de ensino oficial no Brasil, deverá constituir-se de eminentes personalidades civis e militares, de notável projeção na vida pública nacional que aceitem
colaborar com a direção da Escola, tendo
como missão, aconselhar o comandante
no que diz respeito a métodos de estudo e
na orientação dos trabalhos, principalmente no que se refere a assuntos nacionais e
internacionais. Tal colaboração, da mais
elevada magnitude, há de ser recebida
como serviço da maior relevância prestado à Nação.
O Departamento de Estudos que
centralizará a execução dos trabalhos escolares, será constituído de civis e oficiais das Forças Armadas, especializados
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
nos diversos assuntos das suas três divisões:
- assuntos nacionais;
- assuntos internacionais;
- assuntos militares.
Ao lado dos elementos permanentes do
Departamento de Estudos a Escola recorrerá, para o desenvolvimento de suas atividades, à colaboração prestimosa de eminentes personalidades como conferencistas ou consultores especializados, bem
como a todos os órgãos da administração
pública, das organizações de classe e científicas do país.
ATIVIDADES ESCOLARES E
OUTROS DADOS
Neste particular, deferirá totalmente a
Escola Superior de Guerra das organizações similares no Brasil.
É que ela será mais um centro permanente de estudos e pesquisas – uma Escola-laboratório – do que propriamente
uma Escola, na acepção comum do termo.
Sua vida escolar será nova entre nós, porque professores e alunos constituirão um
todo, e de suas investigações individuais
ou em equipe, é que hão de nascer as soluções dos problemas propostos à Escola. Todos integrarão equipes de estudo
que será o objetivo principal da Escola,
distinguindo-se apenas uns dos outros
pela transitoriedade de uns e a permanência de outros. Colocados os estagiários –
assim serão chamados os alunos - numa
mesma situação com os seus elementos
permanentes , o que a Escola procurará
obter de todos será uma acurada pesquisa, uma investigação séria, um estudo
consciencioso. Todo trabalho, sobre as
questões focalizadas, provocará discussões proveitosas e por fim a apresentação
de soluções possíveis e racionais, dentro
da realidade brasileira e de acordo com sua
política de segurança nacional. Nestas
condições o ensino não será propriamente ministrado pelos mestres e instrutores,
embora por eles orientados, mas será antes uma decorrência natural da pesquisa,
da meditação e de debate dos assuntos,
problemas e trabalhos entregues ao estudo dos estagiários.
Não haverá assim necessidade, nem se
justificaria pela própria natureza da Escola e pela categoria dos seus estagiários,
classificação em fim de curso e graus de
trabalho durante o correr do mesmo.
As conferências serão assistidas por
todos os estagiários. Os conferencistas
serão elementos do Departamento de Estudos ou especialmente convidados. As
mais eminentes personalidades, os mais
capazes em todas as profissões e atividades serão solicitados a colaborar no ensino, mediante palestras sobre os assuntos
de suas especialidades, e cujos
ensinamentos sobremodo facilitarão e orientarão a escola na solução de seus próprios problemas. Ainda personalidades
estrangeiras que residem ou estejam de
passagem no Rio, serão igualmente convidadas a prestar esta colaboração, bem
como os nossos diplomatas e adidos militares, quando de regresso de suas missões ou de passagem pelo Rio.
Os conferencistas poderão exprimir livremente suas opiniões e pontos de vista, havendo depois um período de debates em que os assistentes terão liberdade
de solicitar quaisquer esclarecimentos.
Como estagiários concorrerão à Escola:
- Oficiais de comprovada experiência e
aptidão, pertencentes às Forças Armadas
(postos correspondentes a General de Bri-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
159
gada, Coronel e excepcionalmente Tenente Coronel; cursos correspondentes aos
de Estado Maior ou Técnico);
- Civis de notável competência e de atuação destacada na formulação ou execução da política nacional, principalmente a
exterior.
Para cada ano escolar, mediante proposta do Comandante da Escola, o Chefe do
Estado maior das Forças Armadas fixará o
número de matrículas e as distribuirá entre civis e militares, cabendo aos diferentes órgãos competentes, indicarem nominalmente os candidatos. A matrícula se
fará por ato do Chefe do Poder Executivo.
Os civis não pertencentes à Administração Pública serão convidados pelo Chefe
do Estado Maior das Forças Armadas.
A classe de estagiários será dividida em
turmas de 12 a 15 e em grupos de 6, para
trabalhos específicos e sua composição
deverá ser alterada diferentes vezes a fim
de que possa haver, além do maior número de trabalhos de equipe, o maior conhecimento recíproco dos estagiários.
Os grupos receberão os problemas para
solução em tempo determinado, e serão
orientados e assistidos em suas pesquisas e estudo pelo pessoal permanente da
Escola; deste trabalho surgirá uma solução de grupo que poderá ser discutida
entre vários grupos ou em toda a classe.
As turmas receberão questões amplas,
divididas em partes para o estudo individual pelos membros constitutivos da mesma turma que, ao fim do tempo fixado, apresentarão monografias completas sobre o
que lhes foi proposto, tornando-se, se já
não eram antes, especialistas no assunto.
Todos os trabalhos dos grupos e as
monografias deverão ser impressos, destinando-se exemplares para a Biblioteca da
160
Escola e para os órgãos interessados. Seu
conjunto constituirá a contribuição de
cada classe de estagiários, para a solução
do problema da política de segurança nacional. De outro lado, haverá um perfeito
sistema de controle dessas publicações,
em sua maior parte altamente secretas.
O ano letivo será dividido em dois períodos, de 22 semanas cada um. No primeiro haverá predominância dos estudos de
assuntos nacionais e internacionais, enquanto que no segundo os trabalhos
incidirão, principalmente, sobre os de natureza militar. A semana será de cinco dias
e o regime de trabalho será o de tempo
integral, diariamente das 8 às 16 horas.
Com esta orientação para suas atividades, a Escola precisará de uma excelente e
especializada biblioteca, na verdade “sua
ferramenta de trabalho”.
Para ajustagem dos métodos escolares, ainda em 1949 deverá funcionar na
Escola Superior de Guerra um curso de
formação dos seus quadros permanentes, com tempo reduzido e onde, de preferência, ao invés de estudos sobre diferentes questões gerais, procurar-se-á fixar a realidade brasileira, através de uma
análise objetiva dos nossos recursos financeiros e da “situação” dos problemas
nacionais, internacionais e militares, em
seus aspectos básicos.
De uma maneira bem geral, são essas as
finalidades, organização e atividades escolares que pretende ter a Escola Superior
de Guerra.
CONCLUSÃO
Da organização da Escola Superior de
Guerra, de suas altas finalidades, de seus
processos de trabalho, havereis de deduzir da complexidade do seu funcionamen-
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
to, da responsabilidade dos seus
idealizadores e dos seus chefes, mas
concluireis também, estamos certos, quanto é empolgante a sua missão.
É preciso, é indispensável, é mesmo
inadiável que o seu êxito seja assegurado; para isso, porém, não basta a ação
decidida dos que têm a responsabilidade
imediata de sua existência; ela terá de contar realmente, com o apoio integral e o esforço esclarecido de nossas elites.
Seus serviços, os responsáveis pela
Escola Superior de Guerra hão de reclamar em nome da segurança nacio-
nal, isto é, em nome da educação do
nosso povo e de sua saúde, do fortalecimento de sua economia, de sua
dignidade política e moral, tudo base
indispensável de uma eficiente organização militar.
Estes nossos apelos estamos convencidos de que não cairão em terreno sáfaro
e que havemos de recolhe-los em apoio
generoso.
E assim, ao fim da jornada, com o valor
inestimável de tão elevado concurso teremos assegurado a vitória da Escola Superior de Guerra.
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Guia para Colaboradores
Normais gerais
A Revista da Escola Superior de Guerra
tem por finalidade publicar artigos relacionados à temática da segurança, o desenvolvimento e a defesa.
Em princípio, não serão aceitas colaborações que já tenham sido publicadas em
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GUERRA recebe para publicação textos
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que examina a adequação do trabalho à linha editorial da revista. A seguir, o texto é
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adaptações necessárias ao aprimoramento do texto examinado, a serem efetuadas
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vista a possível publicação. Os autores
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junto aos quais também é mantido o sigilo, em relação aos nomes dos articulistas.
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Publicado o texto o autor recebe até cinco exemplares do número no qual consta
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za pelos conceitos emitidos em matéria
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caso o mesmo não seja aceito para publicação, o autor receberá a volta a via original, ficando a cópia em nosso arquivo.
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etc) compatível com os computadores PC.
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Estrutura do Trabalho
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de um resumo que deve compreender todos os conceitos importantes do artigo e
suas correlações, estabelecendo as conclusões principais. Este resumo, bem como
o título do artigo, deve ser apresentado
em português, espanhol e inglês, acompanhado de seis a dez palavras-chave usadas no índice cumulativo.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
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As referências bibliográficas devem ser
colocadas no final do artigo, obedecendo
às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo.
Local: editora, ano (Série).
Atos normativos (Leis, Decretos, Portarias, etc.) LOCAL (país, estado ou município) em
que se originou o ato. Especificação do
ato e número, página inicial - final em que
o ato consta, data. Seção.
Artigo de Periódico:
SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo.
Título da revista, local de publicação, número do volume, do fascículo, página inicial - página final do artigo, mês e ano.
Eventos:
(Anais, Resumos, Proceedings, etc.) –
SOBRENOME, Nome. Título do trabalho
apresentado: subtítulo. In: Título do evento, numeração do evento, ano local de realização. Título do documento (anais
atas... Local, editora, data de publicação.
Página inicial e final da parte referenciada).
Tese:
SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo.
Ano de defesa. Tese (Doutorado em ...) –
Faculdade, Universidade, Local.
164
Documento de acesso em meio eletrônico:
AUTOR. Denominação ou título e subtítulo. Indicação de responsabilidade. Endereço eletrônico. Data de acesso.
As citações (NBR – 10520 de
jul.2001) no corpo do texto devem aparecer entre aspas, seguindo-se o nome
do(a) autor(a) ou autores, data da publicação e o número da página
referenciada, entre parênteses e separados por vírgula. Quadros, tabelas,
gráficos e ilustrações devem ser apresentadas em folhas separadas e sua
localização indicada no texto, entre
dois traços horizontais.
R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003
ISSN0102-1788
Revista da
EMBLEMA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
(Criação)
Decreto Nº 28.501 - de 14 de agosto de 1950
Cria o emblema da
Escola Superior de Guerra
O Presidente da República, usando da atribuição que
lhe confere o art. 87, item I, da Constituição, decreta:
Art. 1º - Fica criado o emblema da Escola Superior de
Guerra, de acordo com o modelo que acompanha o presente
Decreto e as seguintes características:
A) sobre um campo azul-turquesa o Cruzeiro do Sul em
ouro, circundado por uma corrente de elos retangulares também
em ouro, ligeiramente curvos nos centros;
B) dimensões: as do desenho.
Art. 2º - O presente Decreto entrará em vigor na data de
sua publicação revogadas as disposições encontradas.
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1950; 129º da
independência e 62º da República.
EURICO G. DUTRA
Sylvio de Noronha
Canrobert P. Da Costa
Armando Trompowsky
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA

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