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ISSN0102-1788 Revista da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA A Escola Superior de Guerra (ESG) criada pela Lei n.785/49, é um Instituto de Altos Estudos de Política, Estratégia e Defesa, integrante da estrutura do Ministério da Defesa, e destina-se a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários ao exercício de funções de direção e assessoramento superior para o planejamento da Defesa Nacional, nela incluídos os aspectos fundamentais da Segurança e do Desenvolvimento. A Escola Superior de Guerra funciona como centro de estudos e pesquisas, a ela competindo planejar, coordenar e desenvolver os cursos que forem instituídos pelo Ministro de Estado da Defesa. A Escola, subordinada ao Ministério da Defesa, não desempenha função de formulação ou execução da Política do País. Seus trabalhos são de natureza exclusivamente acadêmica, sendo um foro democrático e aberto ao livre debate. A ESG se localiza na área da Fortaleza de São João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro. A Fortaleza foi mandada construir, em 1565, por Estácio de Sá, na várzea entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar e marca a fundação da cidade do Rio de Janeiro e o domínio português na Baía da Guanabara. Sumário Editorial.................................................................................................. 3 Maj.-Brig.-do-Ar Paulo Jorge Botelho Sarmento O Evidente e Irreversível Declínio da Atual Civilização ......................... 5 Jorge Boaventura Desenvolvimento Sustentável: Davos ou Porto Alegre? ....................... 21 Prof. Gerardo José de Pontes Saraiva Evolução do Pensamento Estratégico Brasileiro .................................. 41 Jorge Calvario dos Santos O Brasil e a Área de Livre Comércio das Américas ................................ 67 Manuel Cambeses Júnior Bioética e Sociedade ............................................................................. 71 Prof. Paulo César Milani Guimarães Propriedade Intelectual na OMC, Soberania e Desenvolvimento Nacional ............................................... 85 Renato Valladares Domingues A Logística Aplicada ao Programa Federal de Segurança Alimentar “Fome Zero” e sua Contribuição a uma Mobilização Nacional ................................ 91 Major de Cavalaria GERSON PINHEIRO GOMES Protecionismo como Instrumento de Desenvolvimento .......................... 125 Prof. João Paulo de Almeida Magalhães MEMÓRIA Palestra sobre a Organização da Escola Supeior de Guerra, Realizada na Escola de Estado Maior - 1949 .................................... 147 Oswaldo Cordeiro de Farias REVISTA da Escola Superior de Guerra Rio de Janeiro n.42 p. 1-164 jan./dez/2003 ISSN 0102-1788 Revista da Escola Superior de Guerra. – v.20, n.42 (jan./dez. 2003) – Rio de Janeiro: Alengraf, 2003– v.21cm Anual INSS 0102-1788 = Revista da Escola Superior de Guerra 1-Segurança nacional - Periódicos. 2 – Poder nacional - Periódicos. 3 - Ciência militar - Periódicos. 4 – Defesa-Periódicos. I. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (Brasil). I. Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro CDD320.981 Revista da Escola Superior de Guerra A Revista é uma publicação anual da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, do Rio de Janeiro, com tiragem de 1.000 exemplares. Está voltada para a discussão de assuntos de segurança, desenvolvimento e defesa, nos âmbitos nacional e internacional. Escola Superior de Guerra Comandante e Diretor de Estudos Major Brigadeiro do Ar Paulo Jorge Botelho Sarmento Subcomandante e Chefe do DE General de Brigada Eduardo Ramalho dos Santos Assistente do Comando - Marinha Contra-Almirante Eduardo Monteiro Lopes Assistente do Comando - Exército Cel Inf Paulo César dos Reis Cabete Assistente do Comando - Aeronáutica Cel José Tito do Canto Filho Centro de Estudos Estratégicos Coordenador Prof Paulo César Milani Guimarães Conselheiros Gen Carlos de Meira Mattos, Carlos Lessa Marcos H. Camilo Côrtes, Darc A. Luz Costa Paulo César Milani Guimarães Membros Correspondentes Afonso Carlos Marques dos Santos, Amado Luiz Cervo, Amerino Raposo Filho, Antonio Carlos Câmara Brandão, Antonio Carlos de A. Ritto, Antonio Celso Alves Pereira, Antonio Jorge Corrêa, Bertha Becker, Carlos Antônio Bettencourt Bueno, Carlos de Meira Mattos, Carlos Henrique Cardim, Carlos Lessa, Carlos Patrício Freitas Pereira, Cesar Guimarães, Cláudio Moreira, Darc Antonio da Luz Costa, David Silveira da Mota Jr., Eli Penha, Fernando Gasparian, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Franklin Trein, Hernani Goulart Fortuna, Ivan 2 de Souza Mendes, Ives Gandra Martins, João Manoel Cardoso de Mello, João Paulo de Almeida Magalhães, José Maria do Amaral Oliveira, Leônidas Pires Gonçalves, Luís Augusto Pereira Souto Maior, Luís Fernandes, Luís Fernando Hor-Meyll Álvares, Luiz Gonzaga Belluzo, Manoel Teixeira, Márcio Henrique Monteiro de Castro, Marcos Henrique Camillo Côrtes, Maria Adélia de Souza, Mario Gibson Barbosa, Octavio Rainho da Silva Neves, Oliveiros Ferreira, Oswaldo Muniz Oliva, Ovideo de Andrade Melo, Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, Paulo Neves de Aquino, Paulo Roberto de Carvalho Ferro, Reinaldo Gonçalves, Renato Lessa, Rex Nazareth Alves, Roberto Bartholo, Roberto Dias, Roberto Nicolau Jeha, Rubens Bayma Denys, Samuel Pinho Guimarães, Segen F. Estefen, Sergio Xavier Ferolla, Waldimir Pirró e Longo, Williams da Silva Gonçalves Assessor Permanente Edimar Pereira de Oliveira Assistente Editorial Chefe da Biblioteca Cleide Santos Souza Padronização Bibliográfica Chefe da Biblioteca Cleide Santos Souza Secretário Executivo Prof Leandro de Aragão Guimarães Design Gráfico e Arte Final Mauro Espíndola Produção Gráfica César de Mello Lira Impressão Alengraf R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.3-4, jan/dez. 2003 Editorial Maj.-Brig.-do-Ar Paulo Jorge Botelho Sarmento Comandante da Escola Superior de Guerra A revista é uma peça fundamental de um centro de estudos que procura e precisa articular-se com seus congêneres e com parcela importante da inteligência do País. A ESG tem publicado os trabalhos mais importantes que têm sido desenvolvidos por seus integrantes, docentes e estagiários, civis ou militares, propiciando a divulgação de idéias e informações acerca dos fenômenos políticos, sociais, econômicos e militares que decorrem da distribuição geoestratégica do poder e de sua concentração – como ocorre hoje no cenário mundial. Não têm faltado, também, trabalhos valiosos sobre as questões culturais contemporâneas que guardam relação com a coesão e o equilíbrio das sociedades, revelando o conjunto um quadro de assimetrias acentuadas, quer nas relações internacionais, quer no contexto social dos países designados como periféricos. Essa situação explica porque, quase por toda parte, aparecem hoje esforços de integração – inclusive na América do Sul –, o que demonstra o esforço de elites responsáveis e lideranças políticas competentes para conter a dinâmica dissociativa e fragmentadora, que prejudica os esforços para a superação de dificuldades históricas. Demais, não escapa ao observador atento que a crise social interna dos países afastados do núcleo da globalização tornou-se mais séria nas últimas décadas, sendo que vários hoje suportam conflitos de intensidade variável (enquanto outros se aproximam desta situação), quadro muito agravado pelo surto de terrorismo, que ameaça se espalhar, embora com motivações variáveis. Os estudos mais recentes sugerem, com clareza, que os diferentes países precisam ser respeitados em suas respectivas vocações – econômica, social e cultural – e, apesar do inegável caráter integrador da irreversível globalização contem-porânea, precisam conservar alguns aspectos próprios e essenciais de sua organização e de sua cultura, para que possam continuar viáveis como nações independentes, estáveis e pacíficas. Por certo, também, não podem – nem elas, nem nenhuma outra – prescindir de uma matriz de princípios éticos que seja suficiente para orientar governos e cidadãos e para garantir um padrão de equilíbrio e justiça que tranqüilize a sociedade. Parece que, dificilmente, os homens conseguirão conviver por muito tempo com níveis tão elevados de competição econômica e tensão política – como se pode observar em certas partes – sem graves prejuízos para a democracia. Estas são as reflexões que entendo adequadas à preparação do espírito do leitor que entra em contato com os artigos deste número da revista, correspondente à edição de número 42 da Revista da ESG e à de número 5 da Revista do Centro de Estudos Estratégicos, reunidas nesta ocasião numa única edição por razões práticas e, também, porque elas têm incluído quase sempre matérias situadas num mesmo campo de interesse, desenvolvidas num mesmo centro de estudos – a Escola Superior de Guerra. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.3-4, jan/dez. 2003 3 4 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 O Evidente e Irreversível Declínio da Atual Civilização Algumas de suas causas profundas, deliberadas e sistematicamente ocultadas do conhecimento geral Jorge Boaventura Conselheiro da Escola Superior de Guerra Resumo O autor discute os problemas da objetividade e da subjetividade dos valores morai no contexto da Civilização do Ocidente bem como problemas relativos à sua forma política principal- a democracia representativa de fundo liberal-, e procura demontrar que o liberalismo, tomado com forma geral da cultura, é insuficiente para ensejar a formulação e a vivência de valores indispensáveis a uma democracia verdadeira, A atual, meramente formal, seria uma contrafacção. Palavras-chave: Informação, Democracia, Liberalismo. Considerações Preliminares O leitor, certamente, conhece a relação existente entre uma dada civilização e a cultura da qual ela se originou; e convém explicitar desde logo que, ao usarmos a expressão “civilização atual”, estamos nos referindo àquela a que pertencemos e que, factualmente, originouse da tradição judaico-cristã, basicamente representada pelas Sagradas Escrituras. Se estas foram inspiradas por um ser essencial e imanente, externo ao universo físico de que somos parte, ou se não representam senão fantasias que, por tais ou quais razões, influenciaram poderosamente o imaginário popular, já é uma outra discussão, que não altera o caráter da relação factual a que acima fizemos referência. Por questão meramente metodológica, visando maior clareza na exposição, relembramos que um dado formato civilizacional pode mais facilmente ser transposto de uma cultura para outra, a que passa a ser superposto, do que se pode transformar uma cultura em outra, diferente dela. Isto porque o que caracteriza uma civilização são circunstâncias concretas, que integram e normatizam as relações vivenciais, interpessoais e intergrupais, bem como atitudes e exigências pessoais passíveis de introjeção artificial de feição propagandística. Uma cultura, porém, é algo simultaneamente mais abstrato e mais profundo, representando o que a eminente professora emérita do “Connecticut College”, Suzanne Langer, conceitua como sendo R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 5 “a expressão simbólica de modos de sentir habituais, desenvolvidos”. Algo que, ainda segundo a mesma professora, influencia o que designa como “sub-corrente do sentimento”, a qual existe, tanto no sentido individual quanto no coletivo. Essa sub-corrente do sentimento atrevemo-nos a supor, pode sofrer a influência da interação realidade biológica – condições ambientais, tudo resultando em um conjunto de valores que passam a constituir como que o alicerce cultural, do qual brota e se vai constituindo a civilização a que dá origem. No caso da nossa civilização, voltamos a repetir, factualmente, o alicerce a que acabamos de referir-nos, está essencialmente consubstanciado nas Sagradas Escrituras, o antigo e o novo Testamentos, cujos rumos axiológicos foram sendo absorvidos pelos grupos humanos que os conheceram e foram sensíveis e compatíveis com eles. Quanto à civilização que dele se originou, hoje espraiou-se praticamente pelo mundo inteiro, superpondo-se a muitas e diferentes culturas. AS MANIPULAÇÕES DA VISÃO CRÍTICA DAS MASSAS No sub-título deste ensaio foi mencionada a existência de dados e informações, deliberadamente ocultadas do conhecimento geral. E é muito compreensível a estranheza do leitor, ou de alguns leitores, sobre a possibilidade da realização desse ocultamento, pois vivemos todos sob a avalancha da afirmação acerca das garantias à liberdade de opinião e de expressão, asseguradas no mundo chamado livre, pelo Estado de Direito, que figuram nas respectivas Constituições. A isso, acrescente-se ainda, o número, realmente espantoso, de dados e de notícias que, em uma espécie de caleidoscópio 6 atordoador, ferem a atenção e alcançam a sensibilidade do aturdido homem comum dos nossos dias que, como nós, é solicitado pelo ritmo mais ou menos frenético das atividades que devemos desempenhar, na busca do atendimento das nossas e das necessidades, legítimas e sensatas, ou não, dos que dependem de nós. Sim; porque elas, muitas vezes já são produto de propaganda desencadeadora de um consumismo, freqüentemente desnecessário e, até, insensato e prejudicial. Esta observação leva-nos a, ainda que sem querer ultrapassar os limites a que deve ater-se o presente texto, assinalar que o que o ser humano deseja, no fundo em sua existência, é ser feliz; e que a felicidade é uma sensação, não uma coisa. Por isso, jamais ouvimos alguém dizer que está de posse de tantos ou quantos quilos de felicidade, mas que está se sentindo feliz. A transformação de coisas, além das que realmente são essenciais à sobrevivência saudável do corpo e do espírito – entendido este, observa-se, não no sentido necessariamente religioso – em condições indispensáveis à felicidade, é resultado da mistificação consistente em erigi-las em símbolos indispensáveis à obtenção da sensação a que nos estamos referindo. Exemplo elucidativo e resumidor? O que é designado como “status”, para cuja conquista e elevação, tantos se estiolam sem se darem conta de que, rompidos os limites marcados pela boa e sensata razão, o homem é vitimado pela circunstância de ser praticamente ilimitada a sua capacidade de desejar, sendo inapelavelmente restrita a sua capacidade de possuir efetivamente, o que inegavelmente resulta da realidade inamovível, se outros argumentos não existissem, da transitoriedade da sua vida. E outros argumentos existem, como o consistente na existên- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 cia de homens felizes, antes de serem conhecidas coisas impostas hoje como símbolos da felicidade. Assim, parece-nos não ser difícil compreender que o número espantoso de estímulos da comunicação, difundidos pela mídia impressa ou eletrônica, traz a contrapartida – em virtude de circunstâncias anteriormente mencionadas – da dificuldade de apreensão analítica e racionalizada do seu significado e da existência, ou não, de distorções e lacunas deliberadamente planejadas e executadas por quem disponha da capacidade de condicionar, em dimensão estratégica, o que, difundido como informação, na verdade representa propaganda. Propaganda seja-nos permitido assinalar, que dispõe de técnicas cada vez mais sofisticadas e refinadas, alcançando inclusive o nível do sub-liminar. EXEMPLOS DE MANIPULAÇÃO DAS “INFORMAÇÕES” Existem tantos que a pretensão de mencioná-los, ainda que apenas os principais, excederiam de muito a extensão que deve alcançar este pequeno ensaio. Assim, adotaremos a orientação de ater-nos, dentre os principais, aos que assumem maior importância e são mencionados e exaltados com mais freqüência. A Idade Média foi uma idade de trevas Podemos assegurar ao leitor que não existe um único medievalista, em qualquer parte do mundo, que respalde semelhante falsificação histórica a qual, entretanto, transita como algo sobre o que não resta nenhuma dúvida. É comum ouvir o disparate em questão mencionado por altar autoridades, por pessoas do mundo acadêmico, por professores de História, disciplina em que compêndios, sobretudo de nível médio, o registram, fortalecendo-lhe a difusão. Poucas pessoas, assim, dão-se conta de que, quando os citados compêndios tratam de situar no tempo o período medieval, colocam-no geralmente – o que corresponde à verdade histórica – entre o século V e o século XV – ou seja, algo correspondente a um milênio. Já o denominado Renascimento, iniciado no século XV, passando pela idade moderna e pela contemporânea, não excede metade daquele tempo! Vê-se assim, desde logo, a simplificação grosseira, consistente em insinuar que um milênio foi algo homogêneo em sua realidade, afirmada como brutal, perversa e cruel. O que existia, porém, antes do medievo? Era, o leitor bem o sabe, o paganismo, que, com o esboroamento do Império Romano, apodrecido até às raízes, estava tendo talado os seus espaços por tribos germânicas belicosas, ávidas somente por apossarem-se do seu espólio. Tais tribos, oriundas do norte europeu, caminhavam para o sul, ao mesmo tempo em que, do sul para o norte, oriundos do Oriente Médio, progrediam os arautos de uma nova mensagem, esta atrás de vigor civilizatório, representada pelo que decorria do sentido da mensagem das Escrituras. Tais evangelizadores, longe de deformarem as virtudes de guerreiros dos germânicos, seus catecúmenos, colocavam aquelas virtudes a serviço da nova ética a que as suas consciências aderiam. Dessa ética, decorria a condenação da prática da atividade econômica visando algo além do suprimento das próprias necessidades e das necessidades de dependentes e semelhantes. A referida atividade visando o lucro, pelo lucro, era considera- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 7 da um roubo e, portanto, condenada e combatida. E aqui chegamos a um ponto crucial para a compreensão do empenho de tantos, geração após geração, em denegrir o medievo. É que, ao tempo do fastígio de Roma, atrás de suas legiões, como atrás dos exércitos com que iam defrontar-se, marchavam sempre certos personagens que, sem interesse nas razões ou sem-razões dos litigantes, visavam apenas comerciar com eles, objetivando tão só exatamente, o lucro. Com a queda do Império e o retraimento do gládio das legiões, até ali garantido da segurança das estradas, muito boas para a época, elas se tornaram palco das tropelias de assaltantes que visavam, é claro, principalmente aqueles detentores de maiores riquezas. E estes não eram outros senão os que, antes, ou seus descendentes, praticavam o comércio visando essencialmente o lucro. Na nova realidade que ia nascendo, as áreas de maior segurança passaram a ser pois, as situadas em torno das residências dos antigos guerreiros germânicos, convertidos à fé que implicava em uma ética que condenava, obviamente, as tropelias e violências dos assaltantes. Nas referidas áreas passavam a concentrar-se camponeses e pastores e, claro, os antigos negociantes, alvos principais dos assaltantes a que já nos referimos. Ocorre, porém, que eles gostavam da segurança assegurada pelos residentes dos burgos – que era a designação dada às suas residências – mas não gostavam da nova ética que eles haviam adotado e que considerava o lucro algo condenável e pecaminoso. Daí, o surgimento de uma contradição que temos designado como “motor de eficácia histórica”, no fundo representado pelo que acabamos de men8 cionar. Daí, também, o evidente interesse em desmoralizar uma ordem em cuja base, está presente a condenação do lucro pelo lucro. Em conseqüência, um período de mil anos, ser descrito como algo homogêneo e objetivo, desprezadas as peculiaridades de suas diferentes fases. Não caberia aqui detalhá-las, de vez que não é o nosso propósito realizar uma tentativa de estudo minudente do medievo. Convém, porém, realçar que, a pouco e pouco, se foram adensando as populações em torno dos burgos, dando origem às cidades medievais, nas quais, no correr do tempo, além dos agricultores, pastores e comerciantes que descendiam dos que, antes, se haviam ocupado em comerciar com as Legiões e exércitos contra os quais elas combatiam, como de pastores e agricultores que haviam se contagiado com aqueles e passavam a achar que comerciar objetivando o lucro era mais sedutor do que o amanho da terra ou o apascentar dos rebanhos. Em breve, com a complexidade crescente das transações, surgiram os primeiros financistas e agiotas todos, evidentemente, contrários à ética do cristianismo, no que lhes dificultava os negócios e, portanto, contrários à fonte da autoridade dos senhores feudais, que lhes era conferida pela religião cristã. Tanto mais quanto esta, não apenas condenava o lucro, como adotava postura não supressora, mas disciplinadora dos impulsos instintivos considerados pecaminosos, quando exercitados fora daquela rígida disciplina. Tornava-se, assim, aos impulsionadores do “motor de eficácia histórica” a que fizemos referência anteriormente, possível e eficaz, combater a religião em nome do que denominavam liberdade. E esta luta continuou, persistente e continuamente ao longo do tempo e, mesmo depois do surgimento dos Estados R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 nacionais, que começavam a superar a autoridade feudal, ela continuou, como continua até hoje, quando a crescente confusão entre liberdade e licenciosidade, rotulada sempre como modernismo ou progresso, na verdade, vem reeditando a situação que, em muitos aspectos, marcou, sempre e invariavelmente, os períodos de decência, de todas as grandes civilizações que nos precederam. A liberação crescente dos impulsos instintivos, pois, não aponta para a verdadeira liberdade humana, mas para a sua escravização ao que, de mais próximo da sua realidade animal, existe em sua natureza com as suas conseqüentes projeções sociais. Por tudo isso, o medievo, que produziu o maior filósofo que o Ocidente jamais conheceu São Tomás de Aquino; que produziu o maior poeta lírico do mesmo Ocidente, Petrarca; que produziu o maior escritor de que temos registro, Dante Allighieri; que produziu São Fernando, que não foi outro senão Fernando III, rei da Espanha; que produziu São Luís, Luis IX, rei da França; que produziu Santa Adelaide, viúva do imperador Odolão, a quem substituiu no trono; que produziu o Código da Cavalaria, de que provieram as lendas mais douradas da nossa adolescência, segundo cujo Código os armados cavaleiros comprometiam-se a, dali em diante, lutar pelo fraco contra o forte pela justiça contra a injustiça; o período histórico em que, segundo São Tomás, “non est regnum propter regem; sed rex propter regnum”, i. é, “não é o reino que pertence ao rei; é o rei que pertence ao reino”, algo tão diferente da célebre “l’état cest moi!” de Luis XIV, “Renascentista” e conhecido como “Rei sol”! De tudo ressaltando o absurdo de tal período ser afirmado e reafirmado como tenebroso. Ah! Mas as fogueiras medievais? Foram, comparativamente, pouquíssimas, quase todas tendo ocorrido, precisamente, na Renascença. O célebre Inquisidor Torquemada foi nomeado a instâncias de Fernando IV, de Espanha e atuou no final do século XV. É, portanto, pouco honesto, querer creditar ao medievo o radicalismo do terrível inquisidor quando este viveu e atuou, precisamente nos estertores do período medieval, àquela altura já desfigurado, precisamente em conseqüência do contínuo e tenaz esforço do “motor de eficácia histórica” já mencionado por mais de uma vez. Não que estejamos desejando significar que não houve graves erros no medievo ou, ,menos ainda, que ele poderia ou deveria ser reeditado hoje. Não, apenas, sem querer ou poder entrar em detalhes, desejamos despertar a atenção do leitor para o grau de desrespeito à nossa inteligência, dos que manipulam em nossos dias aquele “motor” a serviço de um estranho “deus” Mercado, a cujas leis todos devem submeter-se, sem que ninguém saiba quem ele, afinal, é, e de quem depende o fato de existindo exclusivamente em função do esforço humano, em flagrante inversão de posições, pretender subordinar a ele e às suas “leis”, precisamente quem o cria e a quem, portanto ele deveria servir. Voltando às fogueiras, dizíamos que elas, em sua maioria esmagadora, ocorreram, precisamente, no “Renascimento”. No “Renascimento” durante o qual aconteceu a tristemente célebre “matança de São Bartolomeu”, ocorrida contra os então chamados huguenotes, no reino de Carlos IX, sob inspiração de Catarina de Médicis, em pleno século XVI, quando a erosão e a corrupção que o incansável “motor” nunca deixou de promover, já havia produzido o cisma do cristianismo do Ocidente, sob a liderança de Luthero e Calvino. A propósito, quantas vezes terá o leitor ouvido R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 9 falar da condenação à fogueira do jovem Giordano Bruno – e já aí a propaganda mistura detração do medievo com a detração contínua contra a fonte de sua autoridade representada pela Igreja Católica, da qual fora membro Giordano Bruno para, depois, jovem brilhante e inquieto, dissentir da orientação de suas autoridades clericais, o que lhe valeu a imputação de heresia e o “relaxamento do acusado ao braço secular”, que era, de fato, o que pronunciava e executada a sentença fatal? Mas quantas vezes se lembra o leitor de ter ouvido mencionar o nome de Michel Serveto? Pois este, contemporâneo de Giordano, seguira trajetória equivalente à dele e, abandonado o catolicismo, aderira a Calvino de quem, em seguida, passou também a discordar: e foi condenado a morrer na fogueira, pelos calvinistas, aos quais são imputáveis numerosas outras. Mas, certamente, o leitor já ouviu muitas vezes a perseguição de que foi alvo Galileu, fato que os agentes, conscientes ou não, do “motor”, exaltam como “prova” do obscurantismo da Igreja Católica, que o teria perseguido por causa de sua posição em favor do heliocentrismo, inimiga como seria a Igreja, do progresso e da ciência. A verdade histórica, porém, é que Galileu o que fez foi desenvolver a concepção heliocêntrica de Nicolau Copérnico, que nunca foi perseguido e, muito pelo contrário, teve sempre o apoio de um influente bispo da igreja romana. O problema com Galileu foi decorrência dele, face ao episódio bíblico que refere o fato do “sol ter parado em sua trajetória”, como se ele, sol, girasse em torno da Terra, menciona-lo com freqüência, somo indício de que as Escrituras continham erros. Em qualquer caso, porém, nem Copérnico nem Galileu viveram no medievo. 10 Tudo isso dizemos, não na tentativa de tratar vastíssima extensão de tema histórico, tentando fazer historiologia, mas tão somente, de dar uma medida do desrespeito com que nos tratam os que tentam corromper-nos e, continuamente servem ao “motor”, para tornar mais fácil servir ao seu “deus”, o Mercado. Assim, daremos apenas mais um exemplo do citado desrespeito: Se alguém dissesse ao leitor que dois seres humanos foram condenados ao “suplício, na roda, em cadafalso alto afim do suplício poder ser presenciado pelo maior número possível de pessoas; e, ainda com os supliciados vivos, ser ateado fogo ao cadafalso, para que morressem queimados”; e perguntasse ao leitor em que época, possivelmente, teria ocorrido tal barbaridade, a resposta, mais do que provável do leitor é que teria sido na Idade Média. Pois não foi; foi em 1756, segunda metade do século XVIII, o “século das luzes”, como o conhece o leitor e o mentor da terrível sentença não foi outro senão o marquês de Pombal de quem certamente terá ouvido falar muitas vezes e sempre como brilhante e progressista reconstrutor de Lisboa, depois do terremoto que a arrasara. As vítimas teriam sido o duque de Aveiro e o padre jesuíta Malagrida, único que a padeceu, de vez que a rainha de Portugal, D. Maria, indultou o duque, não conseguindo faze-lo ao padre Malagrida, em relação a cujo suplício se mostrou irredutível o “progressista” marques de Pombal, a quem, aliás, devemos a expulsão dos jesuítas do nosso país, com o encerramento do extraordinário trabalho que eles realizavam junto aos nossos índios, de que são vestígios as ruínas das Missões, no sul do país. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 Mas há outros, muitíssimos outros exemplos da falsificação histórica e de suas reais motivações e que nos estamos referindo. Passaremos, porém, a uma outra delas, com que nos desrespeitam, sempre denegrindo o medievo e as fontes de sua moralidade, trabalho incansável e contínuo do “motor”. Aliás, a própria expressão “Renascimento”, já é denunciadora. O que é que renasce? O que esteve morto ou em letargo profundo semelhante à morte. Então, o período de maior influência do cristianismo seria esse período de morte. Antes dele, porém, o que existia? Como já vimos o paganismo. O “Renascimento” em boa lógica seria então a reintrodução do paganismo. E deste iremos tratar em seguida, face a outra mentira com que nos desrespeita o “motor”. Antes, porém de faze-lo, seja-nos permitido, para em definitivo realçar a requisitada perversidade e atrevida desfaçatez com que os manipuladores do “motor”, que são os menos engendradores e manipuladores so “deus” Mercado, erigido em ente autônomo a que devem submeter-se aqueles sem os quais ele, Mercado, não existiria, dizer que a idéia de Universidade nasceu no medievo. Que todas, absolutamente todas as maiores e mais reputadas universidades européias nasceram e começaram a funcionar na Idade Média; que a Sorbonne, à altura do século XIII, já era freqüentada, entre professores e alunos, por cerca de 10.000 membros e, note-se, Paris, àquele tempo, não tinha população comparável à de hoje, mas algo como de 250 a 300 mil habitantes; que nasceram e funcionaram na Idade Média, Oxford, Salamanca, Heidelberg, Coimbra, que começou a funcionar em Lisboa, transferindo-se mais tarde para Coimbra onde funciona hoje, Padova, Cambridge, etc., fica clara pois efetivamente a ação atrevidamente desrespeitosa com que tentam enganar-nos os manipuladores e engendradores a que fizemos referência. Finalmente, e para não nos estendermos em demasia, como símbolo da suposta mentalidade brutal e cruel do medievo, evocaremos a figura do medieval São Francisco de Assis, a própria exaltação da doçura para com todos os homens e para com todas as criaturas viventes. Teria sido ele mais brutal dos que os que, hoje, oferecem prêmios em dinheiro a quem entregar, vivo ou morto não apenas os seus inimigos, por eles unilateralmente erigidos como tais, mas também, os seus filhos e auxiliares e amigos? Passaremos, agora, à outra colossal mentira, que tentam impingir-nos, sempre na linha da destruição da cultura judaicocristã a que pertencemos. A democracia nasceu na Grécia Outra falsificação histórica, grosseira e indefensável. De fato, na Grécia, em seus primórdios, predominavam os reis, em torno dos quais como figuras importantes mas, a eles subordinados, existiam os eupátridas, grandes proprietários rurais, os latifundiários de hoje, que não se sentiam satisfeitos com a autoridade real a que deveria subordinar-se. E desprezando detalhes, para alcançar diretamente o ponto de maior interesse, aliando-se a operários, conseguiram os eupátridas lograr destruir a autoridade dos reais e consagraram um código de leis, a Constituição de Sólon, ele próprio um eupátridas, segundo cuja Constituição, deixava de existir a autoridade hereditária e, em seu lugar, surgia uma organização social nitida- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 11 mente elitista na qual o exercício das funções de governo eram distribuídas, de acordo com a sua relevância, em proporção com a riqueza dos que a elas, por tal motivo, teriam possibilidade de acesso. Informe-se, ainda, a bem da verdade, que Esparta manteve-se sempre em regime monárquico mas que, de fato, na Grécia, pela primeira vez na Antiguidade Clássica, foi dada ao povo, em geral, a faculdade de manifestar-se, o que, em Atenas, ocorreu primeiro na Ágora, a praça do mercado da cidade e mais tarde, no sopé do templo de Dionísio. Entretanto, sempre a bem da verdade, diga-se que tal manifestação só ocorria com relação aos assuntos liberados para tal pelo Senado, organismo a que tinha acesso apenas um número restrito de membros, representantes das várias tribos reconhecidas como existentes. E que, depois das reformas introduzidas por Clístenes e Efialtes, que admitiram um número maior de representantes por tribo, o total dos integrantes do Senado alcançou o número de 500. Plutarco, porém, refere que, na prática, só faziam uso da palavra os líderes de determinadas facções e oradores profissionais e que os debates referiamse, preferentemente, a assuntos menores e frívolos, como festas populares e quejandos. Tanto que, quando identificada a ameaça representada para Atenas, por Felipe da Macedônia, em vão clamava Dermóstenes por providências acauteladoras da segurança da cidade. E somente quando já era tarde demais é que foi aprovada a instituição da “eisfora”, espécie de imposto provisório, destinado ao custeio de despesas exigidas pela defesa da cidade-Estado, mas que, referem os cronistas da época, tornou-se 12 permanente, ainda que a pouco e pouco desviado e malbaratado para os mais diferentes fins – o que parece indicar a transformação em permanentes, e o desvio de sua destinação, de impostos “provisórios”, desde a profundidade dos séculos. Em qualquer caso, aquele de que estamos tratando foi instituído demasiadamente tarde, o que levou a derrota dos atenienses diante das peças de Felipe da Macedônia, derrota reeditada mais adiante pelos atenienses, na batalha de Queronea, em que foram derrotados pelo jovem Alexandre da Macedônia. Os dados acima mencionados poderão ser argüidos, e com razão, pelo leitor como sendo de caráter conjuntural e pertinentes ao mau funcionamento das instituições, não à forma de concebê-las e aos homens a cuja organização em sociedade se destinavam. A tal respeito, e respaldando a tese da falsificação histórica consistente em afirmar-se que “a Democracia nasceu na Grécia”, em clara tentativa de valorização do passado pagão que antecedeu o medievo, queremos propor à consideração da inteligência do leitor que, dos vultos provenientes do pensamento filosófico da Grécia antiga, pertencentes a quaisquer de suas escolas e tendências, como eleatas ou jônicos, modernos ou antigos, como são classificados, ou sofistas, ou os da chamada escola itálica, os únicos grandes vultos, e sem dúvida os maiores produzidos pela Grécia no auge de seu esplendor, que se ocuparam especificamente com o problema da organização da sociedade, foram Aristóteles e Platão. Para o primeiro, a existência de escravos era indispensável à referida organização, de vez que os problemas complexos do governo deviam ser privativos dos R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 filósofos, ficando as tarefas pesadas e penosas a cargo dos ignorantes que, como escravos, deveriam desincumbir-se delas. Seriam eles, então , - é Aristóteles falando em sua célebre “Política”, - meras ferramentas, distinguindo-se de pás, alviões ou picaretas, apenas pelo fato de serem ferramentas ativas, enquanto aquelas eram inertes. Ao classificar as diferentes formas de organização política, teoricamente concebíveis, refere-se Aristóteles à aristocracia, governo de poucos, à monarquia, governo de um só e à democracia, governo de todos,o que representava.-. demos a palavra, de novo, a Aristóteles- uma forma depravada de República. Para Platão, em sua “República”, o governo deveria ser exercido, exclusivamente pelos filósofos, a quem seriam entregues todas as crianças ao nascerem, de modo a serem treinadas para as diferentes tarefas e ofícios a que deveriam dedicar-se, sem a possibilidade de mudar de oficio o que impedia qualquer mobilidade social, vertical ou, mesmo, horizontalmente. O pretexto era que a persistência em um só ofício era a garantia do seu desempenho com o máximo de eficiência. As mulheres seriam propriedade comum dos que ele designava como guardiões do Estado, selecionados dentre os mais robustos, mais ágeis, mais violentos, mais aptos, pois, ao exercício dos misteres da guerra. As mulheres seriam sua propriedade comum para que a questão da paternidade fosse sempre suscetível de dúvida, o que facilitaria a entrega dos nascituros ao governo dos filósofos. Quanto aos recém-nascidos débeis ou portadores de defeitos físicos, deveriam ter os seus pescocinhos torcidos e os corpinhos lançados fora em um vale nas proximidades de Atenas. Para encerrar o violento desrespeito à nossa boa-fé representado pela. afirmação bilhões de vezes repetida de que “a democracia nasceu na Grécia”, refiramos o resultado de um censo realizado em Atenas, pouco depois do chamado “século de ouro”, o século de Péricles, que não foi mais do que um “tirano esclarecido”, exercendo o seu arbítrio sobre a Confederação de Delos que, na prática, caiu sob o seu domínio. O referido censo, realizado por Demetrius de Falero e referido por Montesquieu, em seu “Do Espírito das Leis” apontou os seguintes resultados: excluídas as mulheres e as crianças, que não participavam da Ágora ou dos debates ao sopé do templo de Dionísio; os “metecos” que eram nascidos em Atenas mas não eram filhos de pai e mãe atenienses; excluídos também os escravos, de um total de quatrocentos mil habitantes, apenas vinte mil podiam participar dos “debates”, 5%, portanto, a que Herócleto se refere quando, narrando visita que teria sido feita a Ciro, o Grande, quanto aos perigos representados por Atenas, dele ouviram os visitantes que não o preocupava um Estado que destinava um espaço público para que, nele, os homens tentassem enganar-se uns aos outros. Outra civilização muita louvada pelos controladores do “motor”, que esplendeu no paganismo, é a romana, cujo Direito, de fato muito influente sobre o que veio a prevalecer no Ocidente, sobretudo no pós-medievo foi a mesma para a qual, a dignidade do homem não vinha do fato de ele sê-lo, mas do fato de ser, quando o fosse, cidadão de Roma. Perdida, ou cassada a sua cidadania, ele podia ser R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 13 comprado ou vendido, ou morto, nada lhe restando assemelhável a algo compatível com as nossas raízes culturais, prevalecentes no medievo. Também é mantido em discretíssimo silêncio o que o romano Cícero denunciou em “De Legibus”, quando afirmou que se todo o Direito se constituísse das leis elaboradas pelos legisladores, estaríamos conferindo a estes a faculdade de transformar o Bem em Mal, a Virtude em Vicio, a Mentira em Verdade, e assim por diante. Apontava, pois, Cicero a necessidade da existência de algo que, acima da sua elaboração humana, pudesse evitar os absurdos que acabamos de apontar. É a concepção central do jusnaturalismo, modernamente esposada, entre outros, pelo professor Redbuch, da Universidade de Heidelberg, que, tenso sido positivista. do Direito, declara que, diante do problema da anterioridade entre o Direito e o Estado, ele reconhecia a indispensável existência de algo que, acima de um e de outro, aproximasse o legal do justo. Essa constatação é que foi ignorada a partir do art.6° da “Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos”, promulgada em 1791 pela Assembléia Nacional Francesa, coroamento de um esforço multissecular dos contro1adores do “motor” e que, constituindo a espinha dorsal das Constituições dos Estados ditos democráticos, já hoje começa a ser imposta, à força, se necessário, por aqueles controladores. Procuraremos tratar disso mais adiante. Por ora, e para terminar o que assinalamos acerca das excelências do Direito Romano, do qual só se exalta o que teve de positivo, que foi em sua vigência, que ocorreram os terríveis espetáculos do Coliseu de Roma e de outras arenas espalhadas pelo Impé14 rio. Quanto ao direito consuetudinário, citaremos a norma “sexagenarius de pontu”, segundo a qual, atingindo alguém os 60 anos de idade, os próprios filhos tinham o “direito” de lançá-lo às águas do Tibre, para que se afogasse. E a “arae perusinae”, que levou certa vez à ceva de doze patrícios romanos, sacrificados depois em honra ao “‘divino César”. De fato, têm-nos desrespeitado de mais, os senhores do “motor”. A referida “Declaração” compunha-se de 17 artigos, o último dos quais, o 17° rezava: “A propriedade privada é sagrada. Sua desapropriação só podendo ocorrer diante de grave perigo ao interesse público, e ainda assim, mediante prévia e justa indenização, paga em dinheiro. Acha o leitor que a tomada da Bastilha foi obra dos “Sans – Culottes”? A EPISTEMOLOGIA NOMINALISTA E SUAS GRAVES CONSEQÜÊNCIAS Aspectos da erosão produzida pelo “motor” A ação continua e pertinaz do “motor”, de erosão de aspectos fundamentais de uma ordem social que condenava o lucro como motivação da atividade econômica, exercitava-se, como já vimos, não apenas contra a ordem em si, como contra a fonte de que provinha a sua autoridade, representada pela Igreja Católica e a expressão humana que a exercitava junto aos senhores feudais e, mais adiante, já em parte como efeito erosivo das ações do “motor”, sobre os reis surgentes com a criação dos Estados nacionais. E tudo isso levava a uma interação demasiadamente íntima entre os poderes secular e religioso, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 em certo sentido, inconveniente para ambos. Nem foi por outra razão que se tornou possível mais adiante, o cisma do cristianismo ocidental realizado por Luthero e Calvino, rebelados contra aspectos de corrupção da feição humana da autoridade religiosa. Ocorre, porém, que por detrás desta, no plano filosófico, prevalecia o pensamento tomista e os sacerdotes; fiéis a Roma e infensos à rebeldia, dados às cogitações filosóficas, foram adensando o realismo tomista, a ponto de levar aos exageros da escolástica, contra os quais surgira, à altura do século XIV, ainda no medievo, portanto, o nominalismo moderado, ou conceptualismo, de um sacerdote regular. William Ockham, sucedendo o nominalismo de Ruscelino pare quem os conceitos universais não teriam existência real, não passando de .”flatus voces”, sons vazios, tendo existência, apenas, os objetos perceptíveis pelos nossos sentidos corpóreos, objetos componentes do mundo físico em que estamos inseridos. No domínio apenas da discussão teórica, teses válidas e dignas de discussão, no plano em que elas deviam ser colocadas. Os agentes do “motor”, porém, encontraram na. hipótese da negação da existência real de conceitos universais e permanentes, preciosíssimo elemento de aluição da fé religiosa, obviamente assente na existência dos referidos valores. A “ignorância interna” e a “ignorância externa” Um líder religioso contemporâneo, de trajetória muito polêmica, foi objeto, entre nós, de devastadora campanha de desmoralização, movida por poderosa organização de mídia, surpreendente porque a nossa sociedade é extremamente permissiva em matéria religiosa, sendo recente a inauguração na administração municipal carioca anterior à atualmente em exercício, de uma estátua a Exu dos Ventos. A referida inauguração, realizada em encruzilhada importante do nosso sistema viário, contou com a presença do próprio prefeito e, ao que saibamos, a mesma organização de mídia não realizou nenhuma campanha de estranheza sequer. O líder religioso a que nos estamos referindo é o Dr. Sun Miung Moon, engenheiro pela Universidade de Waseda, no Japão, e doutor “honoris causa”, pela Universidade Católica de La Plata, Argentina. Quanto às suas idéias no plano teológico, aceitas pelos que as estudam detidamente e as seguem, nada temos a dizer, pois não somos teólogos, não seria pertinente no momento, admitimos que, ao menos algumas, são muito chocantes. Em texto atribuído a esse líder religioso, porém, encontramos concepção que nos parece extremamente válida, da qual não nos apropriaríamos sem citar-lhe o autor, por uma questão de elementar honestidade intelectual. A referida concepção consiste na afirmativa de que os homens são vitimados por dois tipos fundamentais de ignorância: Uma interna, outra externa. E que os únicos caminhos para a sua dissipação consistem: no caso da ignorância interna, a cogitação filosófica e a Religião; no caso da externa, a Ciência e a Tecnologia. Até o século XIV, a humanidade viverá quase que exclusivamente mergulhada, no que tangia à atividade intelectual, às cogitações religiosas e às pertinentes à filosofia, tendo sido insignificantes os seus avanços em relação ao conhecimento do mundo material em que vivemos e, nele, às relações aparentes de causa e efeito. Pois o nominalismo, promovido pelo “motor”, passe a ser um convite à R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 15 extroversão, dedicada à dissipação da “ignorância externa”. O efeito benéfico dessa extroversão traduziu-se na rapidez crescente, em curva exponencial, dos avanços e conquistas científicas e tecnológicas conseqüentes. Os diversos ramos do saber e as diferentes especialidades foram gerando novos ramos e sub-ramos, em tal número e em tal monta, que os homens perderam a visão de conjunto do acervo dos seus conhecimentos, antes acessível, ao menos aos eruditos. Hoje, o homem comum não faz a mais pálida idéia dos conhecimentos aos quais, entretanto, vive subordinado. Ocorre, porém, que tantos sucessos fizeram crescer a vaidade humana, e a superestimação da razão, passando pelo que o que o prêmio Nobel Sir. John Eccles, designa como cientificismo, levou ao Racionalismo exaltado do século XVIII, de que foi uma das conseqüências, a Revolução Francesa de 1789. As cogitações filosóficas e religiosas perderam prestígio, com o conseqüente, e inesperado, adensamento da “ignorância interna” que está reconduzindo a sociedade hodierna de volta à barbárie. A barbárie ensejadora do aumento insuportável da violência, ao desregramento dos costumes e ao uso de drogas, como tentativas lamentáveis de preenchimento do vazio deixado nas almas, sobretudo dos jovens, pelo desprezo, a desconsideração, dos conceitos universais e pertinentes, que davam sentido e finalidade à vida. A ciência realmente de vanguarda, já a esta altura, descalça o cientificismo a que se refere Eccles, o que o “motor” impede chegue ao conhecimento geral. Realmente a Física Quântica, de que não poderemos nos ocupar aqui, não demonstrando a existência de Deus – o 16 que não pretende ao seu domínio, que é o físico, não o metafísico, - mais do que nunca sugere a idéia da unificação a ser alcançada um dia pelos dois domínios. Realmente a busca dos componentes fundamentais da matéria, até bem pouco tempo referindo apenas três, hoje aproxima-se dos quatrocentos e, mais, tudo indica não serem senão efeitos produzidos por variações quânticorelativistas de campos, sendo estes destituídos de substância. Claro que semelhantes concepções não são de interesse do “motor”, daí, o pouco, ou nenhum realce dado à sua existência e às suas graves implicações. Bem como não lhe interessa, entre outras, sejam divulgadas as surpreendentes conseqüências da “simetria de Bernard” e sua aplicação à bioesfera, feita, por Ilya Prigogine, etc. O que interessava aos condutores do “motor”, a altura do século XVIII, era a exaltação da Razão, aquela mesma a que se referiria um pouco adiante, Immanuel Kant, em sua “Crítica da Razão Pura”, onde declarou ter a humanidade alcançado a sua maioridade, já não necessitando de nada que não fosse elaborado pela sua própria razão. Caso ressuscitasse hoje, o que acharia da existência de arsenais nucleares capazes de produzir a extinção da vida na Terra, não uma, mas várias vezes? Aliás, em sua “Crítica da Razão Prática”, é justo assinalar que ele já se mostrava menos otimista com respeito à razão. A razão que sendo a de um ser contingente, lida necessariamente com um número extremamente limitado de dados. Voltando aos condutores do “motor”, importava-lhes, à altura do por eles designado “século das luzes”, do “aufklärung”, do “enlightment” R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 desvincular a civilização em definitivo, dos alicerces culturais de que proviera. Fazendo-o, como sempre, em favor da liberdade. Mas de uma liberdade que, não se definindo quanto a finalidade e contornos, é algo como uma carta sem endereço e sem conteúdo, deliberadamente confundido o que ela é como conceito, no plano metafísico, conceito cujo atributo caracterizador é o de não sofrer restrições, com o que ela deve inevitavelmente ser como exercício por parte de seres imperfeitos como somos todos. As injustiças do absolutismo monárquico deram-lhe os pretextos, não os motivos, da revolução francesa de 89, liderada por próceres agnósticos, livres pensadores adeptos da religião pessoal, ateus confessos e comunistas pré-marxistas, como Graccho Babeuf, cuja cabeça rolou sob a “máquina piedosa” do Dr. Guilltin, em virtude de, tendo acreditado na Igualdade, uma das idéias força da Revolução, atreveu-se a publicar o “Manifeste dês Égaux”. A revolução de 89, do ponto de vista das nossas raízes culturais judaico-cristãs, foi uma revolução ímpia, violenta, sanguinária e injusta – o que não é, pelos motivos que o leitor já conhece, realçado, ao menos para exame, diante da opinião pública. Opinião pública que, em geral, ignora que, só na província da Vendéia foram assassinados cerca de 35 mil religiosos, entre sacerdotes regulares e seculares, e freiras de diferentes Congregações. Como ignora que numerosas igrejas foram transformadas em depósitos de mantimentos, aquartelamento de tropas, depósitos de munições e estrebarias. Como supõe que, na célebre Bastilha, estariam presas centenas de vítimas do regime monárquico quando, na verdade, lá estavam apenas sete presos, sendo que dois não o eram, senão débeis mentais que haviam sido recolhidos por misericórdia face ao outuno que se aproximava. Dois outros eram presos comuns, estelionatários, e apenas três eram, de fato, presos políticos. Já quando rolou a cabeça de Robespierre, sob a “máquina misericordiosa” do Dr. Guillotin, havia cerca de 100.000 presos políticos na França, e um número ainda maior, em prisão domiciliar, aguardando a instrução dos seus processos. De fato, zombam de nós, e nos desrespeitam, os senhores do “motor”. A revolução de 89, para eles, foi como que o culminar de um longo esforço, multissecular, visando empolgar as rédeas do processo civilizatório pelas razões que ofereceremos em seguida à consideração dos que nos leiam. Seja registrado desde logo que o esforço a que nos estamos referindo resultou da contradição permanente que designamos como “motor de eficácia histórica” a qual, sempre e continuamente, foi aglutinando todos os que estavam polarizados pela sedução do lucro, na prática acima de quaisquer outras considerações. Essa aglutinação, obviamente, levou, muitas e muitas vezes, à coordenação planejada de esforços. Portanto, se não adotarmos a perspectiva que os mentores do “motor” tentam desmoralizar designando-a, pejorativamente, como “teoria conspirativa da História”, estamos longe de admitir que nada do que acontece na dimensão histórica, resultou de conspiração. Muito pelo contrário, ao longo do tempo, a aglutinação a que acabamos de referir-nos foi se ampliando, tornando mais consistente e estabelecendo uma hierarquização de influências decorrentes da maior união e maior competência de alguns componentes em relação a outros. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 17 Em 1789, já o quadro conspirativo se tornara nítido, inclusive e apenas como um aspecto da questão, nenhum historiador sério nega a participação e influência sobre ele de sociedades secretas solidamente estruturadas. Assim, sob a indução de lideranças intelectuais como, por exemplo, as de d’Holbach, ateu convicto e anti-clerical intolerante; do irreverente e anti-clerical Voltaire, do materialista d’Alambert. De Jean-Jacques Rousseau e seu contraditório “Contrato Social”, tornouse vitoriosa a revolução da qual só são realçados diante da opinião pública, os aspectos que lhe são, ou que, devidamente maquilados, lhe pareçam favoráveis. O objetivo real do “motor” na revolução de 89 Desconsiderados os pretextos, muitos deles válidos e gravíssimos , da Revolução de 89, o objetivo real dos mentores e controladores do “motor”, foi consubstanciado pela Assembléia Nacional Francesa, por intermédio da “Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos”, por ela promulgada em 1791. Da referida “Declaração” constava o artigo 6°, segundo o qual “A lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes”. Em outros incisos figurava a afirmação de que “ninguém seria obrigado a fazer, ou a deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude de lei”. À primeira vista, parecem justos e nobres tais princípios. Na verdade, porém, por intermédio deles desvinculava-se o processo civilizatório do Ocidente de qualquer compromisso com as suas raízes, 18 com os seus alicerces culturais, factualmente, como já o dissemos anteriormente, representados pelas Sagradas Escrituras. Tudo passou a depender, então, da manifestação da vontade de maiorias volúveis de representantes – como na prática ocorre – maiorias cuja composição e a natureza de cuja produção legislativa passaram a depender da vontade e dos interesses dos que dispusessem dos meios necessários para, influindo sobre as emoções das massas e controlando as fontes de suas informações – transformadas em propaganda – levassem-nas a compor o que, hipoteticamente, seria a sua vontade. Voltava o Ocidente, sem percebe-lo, a incidir na crítica já formulada há muitos séculos, por Cícero, em “De Legibus”. E a fazê-lo, fundando o modelo adotado em um erro crasso, de vez que as maiorias não são, necessariamente, fontes de verdade, podendo errar ou acertar da mesma forma que as singularidades. As consultas às maiorias constituem-se, sim, em processo de tomada de decisões, em muitos casos insubstituível. Supô-las fontes irrecusáveis de verdade, pelo menos os cristãos deveriam saber que não são, o que é ilustrado no relato bíblico em que o pretor romano, dirigindo-se à multidão, em claro exercício de consulta direta à maioria, perguntou-lhe quem ela preferia que fosse libertado e livrado de condenação à morte: se Jesus, em quem ele não via culpa alguma, ou se Barrabás, criminoso de sangue, segundo suas palavras. E a resposta, praticamente em uníssono, da multidão, foi a de que ele libertasse Barrabás. Por outro lado, em face da fraude que se estabelecia com a “Declaração”, interesse dos mentores do “Motor”, ao assumir em maior ou menor grau, o controle da elabo- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 ração do Direito Positivo, com o conseqüente desprezo ao Direito Natural, que, sem substituí-lo, deve emoldurá-lo, para que haja o esforço necessário de compatibilização entre o legal e o justo, acentuou-se no sentido da corrupção das massas por meio de leis que, cada vez favorecessem mais o império do outro erro crasso a que também já fizemos referência, representado pela confusão conceptual entre liberdade no plano metafísico, e o seu exercício, na prática, por seres imperfeitos como somos todos. Seres dotados de tendências altruístas, socialmente positivas, e de inclinações egoístas, fontes potenciais de tantos males e abusos. O resultado desses disparates, que entretanto estão na espinha dorsal do que se convencionou denominar “democracia”, a sacerdotisa do suspeitíssimo “deus” Mercado, cujos mentores, como já foi dito, tentam impô-la a todos – e esperamos que o leitor, agora, saiba porquê – ainda que, para tanto se torne necessário o emprego mais brutal e criminoso da força. Este texto já está mais longo do que nos foi proposto. Mas não queremos encerrálo sem mencionar uma razão muito concreta para afirmarmos que a nossa civilização entrou em degradação irreversível, e que a crise dos nossos dias representa as dores do parto de uma nova civilização que nos parece já surgente, dos escombros desta que no momento se esboroa. A homeostase civilizacional O leitor sabe que o conceito de homeostase foi proposto por Claude Bernard, ainda no século XIX. Segundo ele, “todo sistema em equilíbrio, tende a reagir no sentido de minimizar as influências sobre ele, produzidas por variações do meio externo em que esteja inserido”. Tal conceito adquiriu hoje extraordinária influência e divulgação, nos domínios da cibernética e, a nível popular, sobretudo no que tange ao equilíbrio dos ecossistemas. Assim, o povo sabe agora que um ecossistema, por exemplo, uma floresta do tipo tropical úmido, como a nossa floresta amazônica, representando um tremendo complexo de bilhões de componentes, de comportamento aparentemente aleatório, pode ser agredido, inclusive gravemente que, cessada a agressão, ela volta a recompor-se, evidenciando que nele havia algo nada aleatório. Sabe-se porém, que se a agressão ultrapassar um certo limite, denominado “limite de homeostase”, mesmo cessada a agressão, o ecossistema entrará em estágio de degradação irreversível. Conhecem os cientistas ambientais que as variáveis do ecossistema que, vulneradas, o remetem à degradação irreversível, são as chamadas “cadeias alimentares”. Pois bem; há cerca de 4 ou 5 anos, ocorreu-nos a idéia de que o conceito de homeostase e da existência do “limite de Homeostase”, seria aplicável também, aos formatos civilizacionais. No dia seguinte àquele em que nos ocorrera a idéia, tivemos a oportunidade de anuncia-la em painel de que participávamos na ESG. Mais adiante, o enunciamos em Congresso realizado em São Paulo, com a presença de participantes de mais de quarenta países, aos quais o expusemos, assinalando as variáveis que, vulneradas, conduzem um formato civilizacional a sua irreversível degradação. São elas: a “individuação” e o “envolvimento”. A primeira refere-se ao tempo mínimo indispensável para que um indivíduo nascido seja capaz de garantir a própria sobrevivência, sem nenhum aporte ou auxílio externo. O “envolvimento” refere-se ao tempo necessário para que um ser humano se incorpore, de maneira harmoni- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 19 osa e construtiva, ao ambiente físico e sócio-cultural em que veio ao mundo e no qual deverá viver. A “individuação” na espécie humana exige tempo muitíssimo maior do que em qualquer outra espécie do reino animal em que, mesmo os grandes vertebrados e mamíferos, com algumas semanas ou poucos meses de nascidos, já são capazes de sobreviver pelos seus próprios meios, sem aporte externo. Na espécie humana, a “individuação” existe, notoriamente, muitos anos. Quanto ao “envolvimento” o tempo necessário é muito maior, e tende a tornar-se cada vez mais longo. E, do ponto de vista social, a instituição mais eficaz para garantir qualquer das duas variáveis, é a família, qualquer que seja a sua configuração, correspondente às várias culturas existentes. No que tange à cultura ocidental, a duração média dos enlaces conjugais regularmente estabelecidos, em vários países do 1° mundo começa a ser inferior a 3,5 anos, tempo insuficiente para a “individuação”. O que dizer do “envolvimento”? E tal duração, nos países em que a média é maior, as estatísticas mostram que ela está em declínio cada vez mais rápido e menos compatíveis com as exigências das variáveis de que estamos tratando. São os frutos da ação erosiva do “motor”, a promover, pertinamente, os erros crasos a que já nos referimos, para que a entrega aos sentidos, e o esvaziamento dos conceitos e valores permanentes, funcionando como o verdadeiro ópio dos povos, deixem-nos inermes diante da brutal exploração e injustiça de que são vítimas. A despeito de tudo, os povos estão despertando, o que explica a crescente truculência, filha do desespero, dos adoradores do “deus” Mercado, sobre cujo poder começa a pesar agora o do que chamamos de 2° plano da História. Este, porém, já é uma história, que o espaço disponível e a paciência do leitor não nos permitem abordar. Tudo quanto lhe dissemos até aqui, o fizemos em espírito de serviço e, com respeito à sua inteligência, apenas para propor o exposto à consideração e à análise da mesma. E para terminar; da revolução que produziu o Art 6°, desvinculador do processo civilizatório dos seus alicerces culturais, em 1791, 57 anos depois surgiu o Manifesto de 1845, do qual resultou a primeira tentativa de domínio mundial pelos que foram ao poder, ocupando a cúpula de uma revolução cujo hino era a Internacional, claro apelo à superação das soberanias nacionais. Revolução financiada pelos controladores do “motor” que hoje, mudando de estratégia, não de política, desmontaram o projeto anterior, superado pelos fatos, substituindo-o pela globalização, versão atualizada da Internacional ... Querem os controladores do “motor”, não a maior parte dos bens e do poder dos povos, mas todo o poder e o controle de todos os bens. Abstract The author examines the relations among moral values and the political representative system into the democratic context of th Western Civilization, even making question of the future of this civiliation. He takes into account the contradiction among these values and the liberalism-what is meant by a general pattern of the culture. Western formal democracy-the author believes-may be a simulation that tries to quash the true Democracy. Keywords: Information, Democracy, Liberalism. 20 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.5-20, jan/dez. 2003 Desenvolvimento Sustentável: Davos ou Porto Alegre? Prof. Gerardo José de Pontes Saraiva Coronel do Exército do, Quadro de Engenheiros Militares; Adjunto da divisão de Assuntos Psicossociais da Escola Superior de Guerra; Mestre em Engenharia Civil e doutor em Ciências Resumo O autor enfatiza a necessidade de um posicionamento da atual geração frente ao problema da escolha de um modelo de governo e relações internacionais que privilegie desafios predominantemente sociais (‘modelo Porto Alegre’) ou os predominantemente econômicos (‘modelo Davos’). Palavras-chave: Globalização, Economia mundial, Acordo Multilatera de Investimentos. Na atualidade, o mais importante, na minha opinião, é estudar os motivos pelos quais a humanidade nada manifesta para afastar as ameaças que tão bem conhece, e porque ela se permite ser conduzida por um tipo de movimento permanente. Não é suficiente inventar novas máquinas, novas regulamentações, novas instituições. É necessário mudar e melhorar nossa compreensão acerca da verdadeira finalidade de nossa existência e o porquê de estarmos neste mundo. É somente com essa nova compreensão que poderemos desenvolver novos modelos de comportamento, novas escalas de valores e metas e, conseqüentemente, in- vestir nas regulamentações globais, tratados e instituições com um novo espírito e significado. (Vaclav Havel, Presidente da República Tcheca). Introdução Hoje, o mundo encontra-se numa posição de escolha significativa: - A continuação do sistema competitivo do Tratado de Westphalia, de soberania do Estado e de políticas baseadas no interesse nacional - e uma guerra global contra o terrorismo, liderada pelos Estados Unidos, com data final em aberto apoiada pelas multinacionais e outros interesses de setores privados, ou - A continuação do sistema com base nas Nações Unidas, em vigor há 57 anos, de construção de regimes legais, cooperativos e multilaterais para tratar as questões globais que não podem ser resolvidas pela ação exclusiva de qualquer nação: epidemias mundiais, terrorismo, crime, lavagem de dinheiro, instabilidade e crises financeiras, pobreza crescente e lacunas de informação dentro dos países e entre eles, ruptura climática e ecológica, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 21 extinção das espécies, perda de florestas e de biodiversidade e manutenção da paz em um mundo onde é cada vez maior o número de atuantes não governamentais. Esses dois paradigmas e abordagens radicalmente diferentes no tocante a governos e relações internacionais irão guiar nossas estratégias para dar forma à globalização e a valores, metas, normas éticas, padrões e regulamentos que conduzam a humanidade a um desenvolvimento humano mais eqüitativo e sustentável do ponto de vista econômico e social. Parece-nos oportuno, antes de abordar diretamente o tema deste trabalho, introduzir algumas considerações sobre o Consenso de Washington. Em 1993, o economista John Williamson, que cunhou a expressão Consenso de Washington, publicou um artigo extremamente instrutivo e premonitório. Chamava-se A Democracia e o Washington Consensus. Neste trabalho ele defendia a tese de que a sobrevivência dos regimes democráticos nos países submetidos à terapia ortodoxo-liberal, supunha que os seus principais atores sociais e políticos chegassem a um acordo prévio ou anterior ao próprio exercício da democracia. Uma espécie de armistício macroeconômico, em que todos reconhecessem a existência de uma, e apenas uma, política econômica científica e eficaz. Como conseqüência desse acordo, a discussão da política econômica seria eliminada das competições eleitorais e dos debates democráticos, de tal modo que ficasse assegurado aos investidores que a alternância no poder jamais tocaria nos fundamentos da política econômica e, portanto, jamais tocando nos seus interesses. Neste ponto situa-se o sempre lembrado problema da credibilidade, um verdadeiro mito (na realidade, pesadelo) de 22 Sísifo que se autoimpõem os governos que adotam as políticas ortodoxas, convictos de que os mercados internacionais se movem de acordo com suas pequenas mesquinharias fiscais ou previdenciárias. Entretanto, o problema mais grave do ponto de vista democrático, é que exatamente neste ponto se esconde o autoritarismo implícito da tese de John Williamson. A experiência tem demonstrado que as políticas que causam deflação se perenizam independentemente da credibilidade de que possam gozar as autoridades nacionais. E com elas um quadro crônico de restrições fiscais e monetárias, acompanhado de baixo crescimento, como se tem visto. Fatores que, em conjunto, atingem e debilitam todas as políticas públicas. Por isso, uma vez posto na camisa de força das políticas ortodoxas, nenhum governo consegue enfrentar, nas raízes, os seus problemas sociais, limitando-se aos seus aspectos mais visíveis ou chocantes. Como essas políticas, entretanto, vão acompanhadas pelo aumento exponencial do desemprego e da miséria, ou da polarização social, é difícil não se ficar pessimista e não prever uma crescente crise de legitimidade democrática, a não ser que se promova vivamente uma apatia cidadã. Na medida em que o tempo passa, fica cada vez mais claro que o modelo ortodoxo de política macroeconômica com reformas liberais acaba por tornar-se, no longo prazo, prisioneiro de si mesmo ao esconder-se na obsessão antiinflacionária, infinitamente elástica, mesmo quando a economia mundial se encontrar em processo deflacionário. Além disto, não se conhece caso ou experiência de algum país onde esse modelo tenha gerado alto crescimento com sustentabilidade e, muito menos, inclusivo. Tampouco se conhece algum R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 caso ou país, onde esse modelo tenha se transformado, por um processo endógeno e evolutivo, no seu oposto. Sob esse aspecto, é possível que se repita também no Brasil ao que já se vem assistindo em outros lugares: o esvaziamento dos quadros e militâncias partidárias e um crescente esvaziamento eleitoral conseqüências que podem ser extremamente benéficas para o armistício macroeconômico desejado por John Williamson, mas que, no longo prazo, serão extremamente deletérias para a consolidação da institucionalidade democrática. Davos ou Porto Alegre? Poucas vezes o português foi tão entendido quanto em Davos, porque a palavra universal sobre política industrial não é o inglês ou o português. A palavra universal é o sentimento. (Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando da última reunião de Davos. Citado pela Folha de São Paulo, 29.06.2003, cad. A 2). Nenhuma restrição à afirmação do Presidente da República. Apenas, queremos enfatizar que o sentimento é necessário, mas somente será eficaz se transformado em ação. A pergunta contida neste subitem não implica idéia de conflito ou de confronto. Pretende-se com ela introduzir uma opção filosófica, um modo de conceber e, em função disto, de agir. Davos e Porto Alegre significam, refletem, incorporam duas maneiras de pensar o desenvolvimento sustentável em face da globalização econômica - desenvolvimento sustentável aí não restrito ao muito importante aspecto ambiental. O futuro da família humana em nosso pequeno planeta ameaçado, evoluiu, desde a entrada deste novo século, para um debate muito mais amplo sobre a globalização. O ponto crítico deste novo e mais sofisticado debate emana do Brasil. Porto Alegre, que durante 300 anos acolheu imigrantes, não é mais apenas a elegante e simpática cidade que serve de entrada para o histórico e hospitaleiro Estado do Rio Grande do Sul. Hoje Porto Alegre é a sede do Forum Social Mundial (World Social Forum), onde milhares de líderes da sociedade cívica mundial encontram-se anualmente para reexaminar novas formas de globalização mais humanas, mais favoráveis a ecologia e mais sustentáveis. A cidade suiça de Davos é sede do Forum Econômico Mundial (World Economic Forum), onde chefes de Estado se encontram com os presidentes (CEOs) das maiores corporações transnacionais com o objetivo de expandir o crescimento econômico pelo aumento das exportações, do comércio mundial, dos mercados abertos, das privatizações e da desregulamentação, tudo em conformidade com os textos ortodoxos sobre economia e do agora famoso Consenso de Washington (Washington Consensus). Por outro lado, Porto Alegre é o berço do lema Outro mundo é possível e dos grupos cada vez maiores de pensadores criativos e de gente que faz. Esses globalistas arraigados estão determinados a reformar a atual globalização econômica para fazer frente às necessidades de mais de 2 bilhões de pessoas excluídas do crescimento econômico. Essa coalizão, cada vez mais forte, de cidadãos globais representa organizações cívicas que trabalham em prol dos direitos humanos, justiça social, reforma agrária, concessão dos direitos de cidadania,1 igualdade para as mulheres, minorias , populações indígenas, 1 - Ver, do autor, o texto ONU e Globalização, onde esse aspecto é abordado. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 23 participação política, democracia, acesso a crédito, investimentos e apoio a empreendimentos locais e desenvolvimento econômico interno. Essas questões são essenciais e sinergéticas para a criação de comunidades e modos de vida ecologicamente sustentáveis, com metrópoles e cidades planejadas em função das pessoas e não dos veículos, com produtos e serviços ecologicamente corretos, com o uso de recursos e de energia renováveis, a prática de reciclagem e de agricultura e alimentos livres de agrotóxicos ou pesticida. Na visão da velha-guarda, em Davos, somente o aumento do crescimento econômico do Consenso de Washington pode levar à terra prometida do desenvolvimento eqüitativo, ecologicamente sustentável. Em Davos, os encontros do Forum de Economia Mundial estão sintonizados nas mesmas visões: redução da pobreza, melhores condições de tratamento de saúde, educação, mais democracia, meio ambiente mais limpo - o que, segundo eles, é mais facilmente alcançado quando se atinge o Santo Graal: o desenvolvimento eco2 nômico . A globalização econômica e tecnológica sempre foi projeto de corporações globais, dos financistas e de seus aliados políticos nas sociedades industriais amadurecidas. O ponto inicial foi o entusiasmo de Ronald Reagan e de 3 Margareth Thatcher com o livre mercado. Este modelo de capitalismo anglosaxão foi seguido pelas políticas do Consenso de Washington que vemos até hoje. A Organização Mundial do Comércio OMC (World Trade Organization - WTO), a NAFTA (North America Free Trade Agreement) e a incipiente Área de Livre Comércio das Américas - ALCA (Free 4 Trade Area of the Americas) seguem todas a mesma receita para o crescimento do PIB a partir do crescimento das exportações, mercados de capitais abertos, moedas conversíveis, privatização, desregulamentação, comércio mundial crescente. Embora se tenha hoje provas desde a crise asiática de 1997, a inadimplência da Rússia e, mais recente5 mente, a da Argentina - os ideólogos que acreditam nesta forma de globalização ainda promovem estas políticas através do grito já familiar Não há alternativa ( There is no Alternative - TINA), uma outra expressão para pensamento único. 2 - Talvez aqui fosse mais apropriado o termo crescimento. 3 - Na realidade, Thatcher e Reagan nada mais fizeram que implementar as idéias neoliberais de Hayek e seus seguidores, segundo as quais as raízes da crise econômica estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira especial, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicatórias sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. A propósito, maiores esclarecimentos poderá o leitor obter no meu trabalho Comércio Internacional: Uma nova Ordem o Juridico-econômica - A.M.I. Acordo Multilateral de Investimentos, publicado no n 25, maio de 2002, em Cadernos de Estudos Estratégicos do CEBRES (Centro Brasileirio de Esrtudos Estratégicos) pp.1 a 108. 4 - O governo brasileiro vinha mantendo uma posição contrária ao funcionamento da ALCA a partir de 2005. Agora, parece, está concordando com a posição dos Estados Unidos. Lula negocia Alca em 2005 no “toma-lá-dá-cá” (Folha de São Paulo, cad. B 8, 06.07.2003). Prudência se faz necessária: mesmo que os Estados Unidos concordem com, suponhamos, 80% das pretensões brasileiras, esses 80% poderão ter um peso mínimo - digamos, 10% - no valor financeiro das transações comerciais, que se vierem a efetuar. 5 - Atualmente, 57% da população Argentina está abaixo da linha de pobreza (Boris Casoy, Jornal da Record, 07.07.2003) 24 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 Como sabem os psiquiatras, as pessoas que não conseguem perceber qualquer alternativa ao próprio comportamento atual estão fadadas a sofrer de depressão clínica. Os cientistas também fazem notar que é ilógico pensar que a repetição de um experimento similar possa conduzir a resultados não-similares. Fica claro que o choque dessas duas visões diferentes do futuro da humanidade deve ter suas raízes em pontos de vista globais, premissas e sistemas de crenças muito diferentes. Trazer à superfície esses diversos paradigmas de economia e desenvolvimento pode ajudar a expor as raízes do debate sobre caminhos alternativos para o futuro comum da humanidade. Banir o asbesto, cumprir as leis sobre poluição, eliminar o chumbo da gasolina e da tinta, aumentar a eficiência dos combustíveis dos veículos, reprojetar a cidade com maior número de vias para pedestres e transporte público e, eventualmen6 te, substituir os combustíveis fósseis por energia e recursos renováveis eram todas taxadas de irrealistas e antieconômicas, proposições feitas por quem não entende de economia Na verdade, foram necessários mais de trinta anos (contados a partir da década de 60, início do movimento) para que essas tecnologias e princípios de projetos alternativos começassem a entrar na corrente principal da sociedade. O atraso não se deveu à falta de disponibilidade dessas tecnologias mais limpas, mais verdes, com mais pessoas e favoráveis a ecolo- gia. Na realidade, setores industriais de grande porte, compreendendo milhares de corporações, têm impedido a transição. Tais empresas e associações de comércio utilizam lobistas, contribuições para políticos coniventes, processos para grupos cívicos para intimidar protestos e uma barragem de publicidade e relações públicas nos meios de comunicação de massa. A longa guerra dos paradigmas continua durante essa grande transição, da industrialização primitiva e suas formas de crescimento econômico insustentáveis para caminhos mais sustentáveis de desenvolvimento. A compreensão científica de como os primeiros processos industriais exauriram e poluíram os ecossistemas locais e do planeta, bem como dos impactos adversos na saúde humana, no bem estar das comunidades e nas culturas, emergiu lentamente. Essas novas descobertas apresentam um desafio poderoso ao modelo de desenvolvimento econômico e globalização do Consenso de Washington. As realidades atuais de mudanças no clima global, desertificação, poluição, escassez das águas, perda de florestas e de biodiversidade, ruptura social e cultural, bolsões de pobreza crescente estão forçando o debate sobre a reformatação da globalização para além das correntes econômicas ortodoxas. Modelos sofisticados de computadores e imagens por satélite mostram claramente os efeitos antropogênicos em nosso planeta causados pela família humana, atualmente composta por seis bilhões de membros. Os modelos de avali- 6 - A evidente degradação do meio ambiente provocada pelo consumo abusivo de combustíveis fósseis é uma séria ameaça ao meio ambiente e a exaustão desses recursos já é prevista: providências se fazem necessárias para equacionar e resolver o problema. Não há solução milagrosa, porém, nem somos utópicos a ponto de preconizar a substituição, a curto prazo, do petróleo e da energia elétrica por energia solar, eólica, ou mesmo, oriunda hidrogênio. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 25 ação de risco calculam os riscos climáticos das tecnologias de energia baseadas em combustíveis fósseis e nuclear, algumas das quais já não podem ter seguro, podendo apenas ser seguradas por parte dos governos - tais como as usinas de energia nuclear. As companhias de seguro, lideradas pela gigantesca Swiss Re, não fazem mais seguro contra mudanças de clima relacionadas a desastres climáticos e eliminaram de seus portfólios as empresas baseadas em combustíveis fósseis em favor das empresas que utilizam energia solar, de hidrogênio e de baterias. A Agenda Brasileira 21 fornece um mapa inovador de sustentabilidade progressiva para todos os setores. Esse movimento tem à frente a Fundação Getúlio Vargas, o Centro Internacional para o Desenvolvimento Sustentável e o Ministério do Meio Ambiente. Hoje o Brasil e toda a América Latina têm a oportunidade histórica de abrir um novo caminho para o desenvolvimento humano eqüitativo e sustentável e de liderar a ofensiva para a transformação da industrialização primitiva, dando um salto sobre os modelos insustentáveis do passado. Também a China alicerçada em sua herança cultural de 6.000 anos, está aprendendo com os erros da antiga revolução industrial e adaptando o que é pertinente nas antigas ideologias européias sobre capitalismo e comunismo a fim de forjar um modelo chinês de desenvolvimento. Da mesma forma, muitos outros países em desenvolvimento estão reavaliando suas culturas e experiências. Esse DNA cultural constitui a verdadeira riqueza das nações: os valores da coesão social, a solidariedade humana, o respeito pela vida, que é o cerne da criatividade, tolerância, iniciativa e inovação em todas as culturas. Tais valores e éticas fundamentais podem ser documentados, como foi feito nos 16 princípios da Carta da Terra (The Earth Charter) e na Declaração de Praga (The Prague Declaration - 2001), que agora estão sendo examinados pela Comissão Mundial sobre as Dimensões Humanas da Globalização (World Comission on the Human Dimensions of Globalisation), com base em Genebra. Esses valores e ética fundamentais, comuns a toda a humanidade, entesourados nos tratados e nos trabalhos de estabelecimento de normas das Nações Unidas desde 1945, incluem a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 2002, a ratificação histórica do Tribunal Criminal Internacional pela maioria dos estados membros foi rompida de maneira chocante pelos Esta7 dos Unidos . O debate sobre a globalização, nos anos que virão, deverá enfocar o desafio aos Estados Unidos como única superpotência militar do mundo e quanto às ambições imperiais e políticas unilaterais do governo Bush. As políticas dos Estados Unidos: as ameaças, concretizadas, de guerra no Iraque; a rude retórica ao tachar os países - Iraque, Irã e Coréia do Norte como sendo o eixo do mal; os apelos arrogantes para que todos os países se alinhem a favor dos Estados Unidos ou contra nós; o documento oficial de setembro/2002 reivindicando o direito americano de ataque preventivo sobre outras nações - não constituem apenas uma contravenção à lei internacional e à Carta das Nações Unidas e, até mesmo, ao Tratado de Westphalia; criam um clima perigoso e 7 - Recentemente, Os Estados Unidos puniram países, inclusive o Brasil, que não adotaram a sua posição no que toca a esse Tribunal, suspendendo a ajuda militar ¾ no caso brasileiro, insignificante. 26 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 abrem precedentes que apresentam risco de emulação por parte de outros países. Nada mais elucidativo do que discurso recente de Condoleezza Rice, conselheira do presidente Bush para Assuntos de Segurança Internacional, na Inglaterra. Existe uma nova ordem mundial baseada na decisão unilateral da potência hegemônica. Esta velará por nós. Havendo risco de algum estado-canalha (rogue state) apossar-se de armas de destruição em massa ou de constituir-se em campo de abrigo e treinamento de terroristas (principalmente se esse estado possuir grandes reservas de petróleo?), será castigado. Há, é claro, espaço para os aliados: é só desejarem ajudar os Estados Unidos a cumprirem sua missão salvadora que serão bem vindos e mimados. A partir desta ótica, faz sentido que Condoleezza Rice tenha começado a dizer quais são as novas regras. E os incomodados que se mudem, pois força não terão para contestar a vontade hegemônica. O raciocínio peca, entretanto, por não levar em consideração as mudanças já ocorridas no mundo. O impulso tecnológico que sustenta a globalização econômico-financeira e que dá decisiva vantagem militar aos Estados Unidos, cria o germe de uma sociedade global com uma opinião pública ativa e organizações não-governamentais importantes. Por certo, enquanto essa opinião não atingir o público americano (com todas as conseqüências eleitorais, pois, diga-se o que se quiser, a revolução americana fincou a democracia no norte) seu efeito será mais simbólico do que efetivo. Mas, cedo ou tarde, a América se reencontrará com ela própria. Convém considerar também que o sistema westphaliano operava a guerra e a paz entre nações-estado recém-formados, baseados em exércitos pouco nacionais. Hoje a guerra é outra. Além da tecnológica, existe a do terror. Esta nova guerra opera por redes, não se baseia em exércitos e não necessariamente em Estados nacionais. Não precisa de alta tecnologia para destruir e matar: convoca iluminados e crentes que se dispõem a morrer e dispensam quartéis. Neste contexto, pergunta-se quando e como o hegemon pode cantar vitória e, à moda de Clausewitz, sujeitar o inimigo à sua vontade. Contra o terror, que parece ser o real inimi8 go da paz e da democracia , de que adianta o unilateralismo global dos americanos? O protesto global contra essa unilateralidade temerária dos EUA está levando a um sentimento antiamericano largamente difundido junto à opinião pública em muitos países, inclusive entre aliados como Reino Unido, Alemanha, França e outros da União Européia. O novo realismo nas relações internacionais talvez peque por ser mais ingênuo do que parece. É certo que se precisa de mais determinação no sistema mundial para lutar contra o terrorismo e pelos direitos humanos. Mas sem maior cooperação internacional, sem um grau maior de consentimento das pessoas e de adesão efetiva dos Estados à nova ordem, os dilemas continuarão. E certamente sem maior apelo à igualdade, qualquer ordem que se queira nova será apenas um disfarce do poder hegemônico ou do unilateralismo global. 8 - Estamos nos referindo aqui tão somente ao aspecto bélico, pois não haverá paz nem democracia enquanto não houver justiça social. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 27 Outro Mundo é possível Somente nos EUA em 2001, os investimentos socialmente responsáveis atingiram 2,3 trilhões de dólares. Não seria isso sinal de mudança ou, pelo menos, um viés de mudança? Sinal de que Outro Mundo é possível? Acreditamos que sim. E esses caminhos de transição para a sustentabilidade se apoiam em três bases: informação, energia e matéria. Essa transição das sociedades industriais em direção à sustentabilidade social e ecológica está se realizando em meio a uma desordem generalizada: confusão e dissonância cognitiva fazem parte de toda mudança de paradigma. As mudanças de paradigma implicadas na sustentabilidade não têm precedentes. O desenvolvimento sustentável é geralmente definido como o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atender as próprias necessidades. Para que tal mudança de paradigma ocorra, culturas e sociedades inteiras terão de abraçar uma visão biosférica e planetária, transcendendo o antropocentrismo. Segundo Mauro Torres em Uma Concepção Moderna da História Universal (A Modern Conception of Universal History, TM Editores, Bogotá, Colombia, 1998), os seres humanos terão de reexaminar a própria evolução cultural e biológica como um continuum. Todas as sociedades terão de estender tais conceitos à democracia política, à equidade social, à eficiência econômica, à preservação ambiental e à diversidade cultural, em outras palavras, construir um mundo onde todos ganhem, fundamentado na idéia de que os padrões de sustentabilidade devem incluir as interações humanas com soma diferente 28 de zero, ou seja, os jogos ganha-ganha e a evolução da cooperação humana. Desta forma, a teoria dos jogos constitui uma diretriz mais útil do que a proporcionada atualmente pela predominância da economia que enfatiza a competição. Tanto a competição como a cooperação são essenciais nas sociedades humanas, mas os respectivos conteúdos e formas estão se modificando na virada atual em direção à interdependência global. À medida que os nichos sociais e ecológicos vão sendo preenchidos, começam a falhar as estratégias competitivas ganha-perde - que poderiam ser ideais para densidades populacionais mais baixas e ambientes inexplorados. Desta forma, a globalização atual dos mercados e das tecnologias, arraigada em uma economia por demais competitiva, freqüentemente torna-se uma competição perde-perde implacável, que leva ao tipo de onda de crimes corporativos que estamos vendo nos EUA, ou conduz a resultados em que o vencedor leva tudo. A globalização atual da economia, das finanças, do mercado e do comércio é alavancada por duas molas principais: a) a tecnologia que tem acelerado a inovação da telemática, computação, fibras óticas, satélites e outros meios de comunicações; sua convergência com a televisão, a multimídia global, as bolsas eletrônicas para comercialização de ações, títulos, moedas, commodities, opções futuras e outros derivativos, e a explosão global do comércio eletrônico e da Internet. b) a onda de 15 anos de desregulamentação, privatização, liberalização dos fluxos de capitais, abertura das economias domésticas, expansão do comércio global e as políticas de cresci- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 mento orientadas para a exportação, que se seguiram ao colapso do regime cambial fixo de Bretton Woods, no começo dos anos setenta. As conseqüências demonstram que esse tipo de globalização é insustentável, causando aumento dos bolsões de pobreza, exclusão social, poluição e esgotamento de recursos. Há propostas alternativas, inovadoras e sensatas, que poderão, se postas em prática, minimizar essas conseqüências eliminando ou, pelo menos, diminuindo suas causas. O Forum Social Mundial tem fornecido apoio institucional valioso para a elaboração de tais propostas. Por exemplo, o ceticismo amplamente difundido em relação à Área de Livre Comércio das Américas - ALCA - poderá reviver o MERCOSUL na condição de alternativa para a ALCA dominada pelos americanos. Ou de coexistência com ela, fortalecido o subcontinente sul pela coesão dos seus países. Existem duas maneiras pelas quais os seres humanos realizam transações: (1) via sistemas monetários, que ainda estão criando escassez artificial e reforçando a competição (por exemplo, via racionamento e desvio de crédito e políticas monetárias restritivas, altas taxas de juro, etc); (2) via todas as formas de escambo, comércio de balcão, pagamentos compensatórios (familiares aos europeus orientais). A corrupção e a desordem nos sistemas monetários mundiais tornam mais atraentes o escambo, as permutas comerciais e os pagamentos compensatórios tais como os que existiam nos países membros do ex-COMECON. Cerca de 25% do comércio mundial de hoje é realizado com base no intercâmbio e as empresas que oferecem intercâmbio comercial eletrônico estão florescendo. O comércio por intercâmbio é uma opção. Antigamente ineficiente e causador de transtornos, com o advento da era dos computadores e da Internet, se tem tornado viável e utilizado com benefícios para as economias, baseadas em recursos e commodities, pois lhes possibilita negociarem diretamente entre si, sem precisar ganhar dinheiro antes ou fazer operações de câmbio com base nas principais moedas. Exemplo típico é a OPEP, que dolarizou seu petróleo há 40 anos, e está agora confortavelmente instalada no atual cassino global de US$ 1,5 trilhões por dia e, controlando 65% de todas as reservas mundiais comprovadas, tem o mundo engolindo seus produtos. O comércio por intercâmbio direto (ou empréstimos com taxas de juros muito baixas, que também podem ser pagos em bens e serviços) faz com que as opções e oportunidades de comércio tenham grande abertura. Portanto, à medida que concebemos reformas para a arquitetura financeira internacional e para os sistemas bancário e financeiro, devemos ter em mente que, hoje, o intercâmbio comercial eletrônico e as plataformas eletrônicas gratuitas estão passando ao longo dos sistemas monetários que não funcionam a contento. Para os países em desenvolvimento não pertencentes à OPEP, as negociações através do comércio por intercâmbio possibilitam-lhes evitar preços de petróleo altamente dolarizados (atualmente a mais de US$ 30 o barril) e obter o petróleo de que necessitam em troca da comercialização de suas commodities subvalorizadas. Economistas tendem a rejeitar o comércio por intercâmbio por ser primitivo segundo o ensinamento de seus livros - mas serão as empresas de comércio por intercâmbio pela Internet e os negociantes de commodities R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 29 reais que provarão que esses livros estão obsoletos. As comunicações eletrônicas agora permitem que diversos grupos da sociedade civil que apresentam soluções alternativas alinhem e coordenem seus programas em torno de metas compartilhadas de sustentabilidade. A transição das sociedades humanas, após 300 anos de industrialização, é no sentido de acelerar o fluxo de informação e desmaterializar o PIB na direção da prestação de serviço. E a informação é participativa e não é excludente: se eu lhe presto uma informação eu não me privo dela. O poderoso aparato institucional e acadêmico da economia neoclássica desviou e legitimou a forma atual de globalização. Preconceitos dentro da economia tradicional foram transmitidos a políticas de instituições financeiras, tanto do setor público quanto do privado, e a outros tomadores de decisão do governo. Exemplos desses problemas de paradigma incluem as recentes abordagens do FMI, da OMC e de outras instituições para a regulamentação e reforma da arquitetura financeira internacional. A miopia das políticas de desenvolvimento do Consenso de Washington tem cegado uma geração de tomadores de decisão, públicos e privados, - entretanto bem intencionados e favoráveis à democracia. Essa trágica miopia e até mesmo estados psicológicos de negação dentro da economia acadêmica surpreendem, à medida em que a Economia veio abarcar as políticas públicas em todo o mundo, mantendo ao largo muitas outras disciplinas pertinentes, desde sociologia, psicologia e antropologia até a teoria dos jogos, teoria do caos termodinâmico e ecologia. Os custos dessa miopia em termos de maior distância entre ricos e pobres e maior exclusão social incluem a erosão contínua dos meios de vida e de culturas locais que não são baseadas em dinheiro. Depois da inadimplência da Argentina, melhor podem ser enxergados os erros do FMI, bem descritos por Joseph Stiglitz em seu livro A Globalização e seus Descontentes, 2002. Eles são os remédios geralmente prescritos: austeridade nos orçamentos (que piora as recessões), disciplina dos mercados por parte dos governos via regime de moedas flutuantes e até dolarização, e abertura sempre maior de seus mercados para o comércio livre. Agora é do conhecimento comum que os empréstimos do FMI são mais para garantir os credores do que para ajudar os países. E os especuladores festejam as oportunidades de obtenção de lucro que eles mesmos criam. O Brasil não precisa necessariamente de continuar aceitando as condições de empréstimos desacreditadas do FMI, nem de outras instituições financeiras internacionais diante da tomada de consciência, agora tão divulgada, de que países como a Malásia, Coréia do Sul e China progrediram economicamente desconsiderando as recomenda9 ções do FMI . A onda de crimes de colarinho branco nas empresas em 2002 trouxe à luz a erosão de valores da ética subjacentes ao 9 - Tanto isso é possível que as primeiras reações já se fazem sentir: Governo reage a documentos do 0 Bird que propõe aumento de impostos (O Globo, 10.07.2003, 1 cad., pág. 10). O governo reagiu às recomendações polêmicas contidas em documento do Banco Mundial (Bird), como o aumento de 11% para 14% da contribuição previdenciária dos servidores públicos, o fim das deduções de despesas com saúde e educação no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e o fim de pagamento de multa de 40% do FGTS em caso de demissão de trabalhadores sem justa causa. 30 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 mercado e ao capitalismo no estilo americano. A tudo isso pode acrescentar-se que as finanças e seus agentes de mercado mostram pouco respeito à democracia. Até mesmo publicações de negócios, inclusive Business Week e Fortune, rejeitam a noção, que se tentou difundir, de que alguns CEOs eram apenas maçãs podres dentro do mercado e ressaltam a quebra sistêmica mais ampla do comportamento ético necessário para operar no mercado de capitais: honestidade, transparência, responsabilidade e respeito aos contratos. A ganância excessiva, a fraude, os truques contábeis, os conflitos de interesse dos analistas de valores, banqueiros de investimento, bancos comerciais, as contribuições em dinheiro aos políticos em troca de favores e a ilusão do mercado em alta permanente alimentada pela mídia financeira inflaram ainda mais a bolha de Wall Street. Nesse contexto, é justo dar as boasvindas à honestidade trazida à luz dos desertores das ortodoxias da antiga religião, inclusive Joseph Stiglitz, Jeffrey Sachs, Amartya Sen, George Soros - para citar os mais conhecidos. Em artigo no The Economist (28.10.2002), Sachs, como novo diretor do Instituto da Terra (Earth Institute), da Universidade de Columbia, censura a administração Bush por solapar as Nações Unidas e voltar atrás em suas muitas promessas de apoio às agências da ONU e seus programas de desenvolvimento, enquanto gasta bilhões adicionais em suas maquinações militares. É desejável que eles ajudem a ampliar os horizontes da profissão econômica para um estágio interdisciplinar mais humilde, em vez do imperialismo conceitual usual da economia. Muitos países continuam estabelecendo seus próprios regulamentos internos e estruturas de instituições financeiras de acordo com suas próprias culturas e interesses internos. Isto vem acontecendo desde a retomada da Coréia, Malásia, Tailândia e Filipinas, que não tomaram conhecimento do aviso do FMI e usaram a abordagem keynesiana de déficits orçamentários para estimular suas respectivas recuperações. Os governos nacionais têm amplo espaço para agir criativamente, sem necessidade de se curvarem às ordens do FMI, esperar por acordos internacionais ou de se submeterem às ordens dos operadores de câmbio e das corporações multinacionais. Duas políticas-chave inovadoras podem mover as sociedade industriais maduras em direção a um uso mais sustentável de energia e materiais. A primeira é mudar suas práticas tributárias para que os impostos passem a ser cobrados sobre poluição, ineficiência energética e extração de matérias primas virgens em vez de sobre as receitas e folhas de pagamentos. Isso estimularia o pleno emprego e a eficiência das empresas bem como a reciclagem na remanufatura. Os países da União Européia estão encabeçando essas mudanças. A segunda é uma contabilidade empresarial mais acurada e a correção de suas contas nacionais (isto é, dos índices do Produto Nacional Bruto e do Produto Interno Bruto) conforme o compromisso de 170 nações na Agenda 2001, na Reunião de Cúpula da Terra das Nações Unidas no Rio de janeiro, em 1992. O Brasil é um dos líderes globais no desenvolvimento de estatísticas multidisciplinares mais amplas e abordagens mais sistêmicas para medir o desenvolvimento. Seus Indicadores Brasileiros de Desenvolvimento Sustentável (2002) cobrem tendências econômicas, sociais, institucionais e ambientais por meio de um conjunto de 57 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 31 indicadores, compilados sob liderança do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa é mais uma evidência de que as nações podem abrir-se a um monitoramento global segundo critérios mais elevados, as melhores leis e os regulamentos e códigos de conduta e princípios que conduzam a um avanço dos direitos humanos, da igualdade e da ética planetária. Tudo isso deve incorporar o estado-da-arte da ciência com base no novo conhecimento biológico de nosso relacionamento com a natureza. O Brasil poderá aprimorar esse tipo de pesquisa e desenvolvimento em estatística de modo a incluir corretamente todas as suas riquezas (seus recursos ecológicos e naturais, assim como seu imenso capital social cultural e humano). A adição de ativos contábeis poderiam complementar a atual abordagem de fluxo de caixa para a estimativa do PIB (que sobrevaloriza o endividamento). Os Estados Unidos, seguindo a direção da Nova Zelândia e da Suíça em 1996, criaram, uma conta de ativos de infraestrutura pública em seu orçamento, o que causou um superávit em 1999. Outra providência poderia incluir a recategorização dos orçamentos de educação e saúde do lado de despesas para o lado de ativos como investimentos em capital humano necessário para a Era da Informação, onde cidadãos saudáveis e bem-educados são o fator mais importante de produção. O principal programa de educação do Brasil, a Bolsa-Escola, filho dileto do ex-governador, hoje ministro da educação, Cristovam Buarque, mantém crianças na escola atrelando seu comparecimento ao pagamento de uma bolsa de auxílio aos seus pais. Este bem-sucedido projeto é admirado e imitado no mundo todo e é um bom exemplo da abordagem sistêmica necessária para tratar problemas complexos. 32 Políticas tão inovadoras como essa ajudariam, com o apoio de especialistas do mundo todo, os antigos guardiões do Consenso de Washington e de Wall Street a reavaliarem os verdadeiros ativos do Brasil e, conseqüentemente, tornariam seu endividamento muito menor (realmente, menos da metade daquele interpretado pela visão puramente financeira). Os modelos de crescimento econômico com investimento e dívida externos estão agora dando lugar a caminhos sustentáveis para mercados e empreendimentos domésticos de crescimento interno. Todos os países têm poder público soberano para cunhar sua própria moeda e se beneficiar da posição que isto lhe confere. É por isso que a dolarização é um ajuste tão amargo. Os governos dos países podem também emprestar diretamente, revertendo a prática (muitas vezes causada pelas pressões políticas dos bancos privados) de emprestar fundos federais diretamente para bancos privados que depois emprestam para consumidores a taxas de juros de mercado. Hoje reaprendemos que qualquer pessoa, negócio, organização sem fins lucrativos ou país com falta de moedas nacionais oficiais ou moedas fortes pode se engajar em tantas permutas diretas quantas necessárias. A informação e a gestão de energia são duas tecnologias fundamentais do desenvolvimento social humano. Ambas devem agora ser medidas em termos de sustentabilidade ecológica e social (que requer igualdade e justiça, tanto quanto eficiência). Isto significa que os investimentos não podem ser medidos usando-se os modelos tradicionais de determinação de preços de ativos, porque eles omitem os custos sociais e ambientais. Muito além do PIB/PNB e outras medidas macroeconômicas superagregadas de riqueza e progresso, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 novos tipos de indicadores que avaliem a eficiência em energia, educação, saúde e infraestrutura e outros setores sociais serão cruciais para dirigir-nos, nas sociedades, no sentido da sustentabilidade. As grandes companhias integradas de petróleo (Petrobrás, Shell, e BP Amoco) estão cada vez mais investindo em ener10 gia solar e no hidrogênio. A pressão pública sobre as montadoras automotivas e os padrões de emissão zero estão agora trazendo como resultado os veículos elétricos e híbridos. Esses avanços tecnológicos, juntamente com o comércio eletrônico, são rotas pacíficas para a redução da dependência do petróleo. Ao lado desta boa constatação, existe a má notícia da manutenção da política de George W. Bush de intervenção militar dos EUA para garantir suprimentos de petróleo, particularmente centrada no Iraque como segundo maior produtor do mundo, depois da Arábia Saudita, política essa agora estendida para a África. O Brasil, há muito líder no setor de carros movidos a etanol, tem a oportunidade de garantir que as futuras fábricas de automóveis produzam carros de emissões baixas ou zero para suprir seus próprios mercados internos e seus futuros mercados de exportação. A necessidade de expansão em recursos renováveis,, tecnologias de energia verde e proteção e restauração ambiental,l está agora nas telas de radar dos governos e empresários capitalistas. Todas as companhias de petróleo e a OPEP também precisam aderir a este movimento pelo uso de energia renovável antes que seja tarde. A contabilidade falha e os presentes modelos de quantificação monetária de ativos tornam mais fácil seguir o rebanho do que examinar os processos mais profundos em curso para encontrar os negócios realmente de ponta. Do mesmo modo, as formas atuais de globalização parecem boas porque favorecem uma minoria significativa, ignora o esgotamento dos recursos naturais e descarta os riscos futuros. Enquanto isso, empresas começam a detectar a grande transição que está em andamento, caminhando da Era Industrial para a Era da Informação. O debate que a Petrobrás tem promovido, somado aos preços mais altos do petróleo, está dando partida à onda de novas oportunidades de negócios das companhias energéticas de hidrogênio, células de combustível solar, eólica, marítima e de biomassa. Há outros aspectos a serem considerados. Atualmente nem os governos nem os investidores privados podem ignorar os problemas e questões que, cada vez mais, tornam-se globais, fora do alcance dos governos nacionais: mudanças do clima, poluição transfronteiras, desertificação, AIDS, perda da biodiversidade e até o lixo espacial. A proliferação do tráfico de armas, a comercialização de drogas e as operações de câmbio ilegais favorecem o negócio do crime organizado. Os resíduos nucleares e tóxicos precisam ser contidos. As epidemias disseminadas pelo tráfego aéreo, bem como o terrorismo global, não podem ser atacados por qualquer nação atuando isoladamente. Não nos podemos impedir de ver o mundo globalmente interdependente que ajudamos a criar. Todos esses novos problemas e questões estão levando os governos a agir conjuntamente a fim de estabelecer ou reforçar agências internacionais, instituições regulamentadoras e padrões globais. O Compacto Global das 10 - A Petrobrás adquiriu por US$ 80 milhões a Termo-Rio, capaz de gerar 240 megawatts (Coluna 0 Anselmo Gois, “O Globo”, 07.07.03. 1 cad., pág.10) R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 33 Nações Unidas, lançado pelo Secretário Geral, Kofi Anan, convida as companhias a se engajarem voluntariamente em seus nove princípios de boa cidadania empresarial. finadas em suas casas. Outros aspectos positivos da globalização desigual de hoje são a proliferação rápida e participação nos conceitos de desenvolvimento sustentável. Os novos mecanismos dos Acordos de Kyoto sobre Mudanças Climáticas (1998), embora falhos, também podem ser usados com proveito. Isto inclui os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo e de Implementação Conjunta (estimulando parcerias com países que utilizam tecnologias verdes) nos quais o Brasil teve um processo inovador. Embora os Estados Unidos possam ser os últimos a assinar o Tratado de Kyoto, muitas companhias reconhecem essas oportunidades de lucro na redução de suas emissões de poluição e investimento em tecnologias menos poluidoras. À medida que nossas economias se desmaterializam em favor de mais serviços, torna-se mais difícil para as empresas e governos defenderem, na economia global, o crescimento do PNB baseado em bens. Eles serão cobrados por isso e terão que assegurar o progresso humano em saúde, educação, direitos humanos e qualidade ambiental. Isto requer que se meçam os resíduos tóxicos, o esgotamento dos recursos, saúde, água e qualidade do ar, segurança pública, as diferenças na distribuição de rendas e na qualidade de vida como um todo - e tudo isso requer uma abordagem de sistemas e métricas apropriadas muito além de indicadores baseados em dinheiro. No Brasil, quando se calcularem totalmente todos os ativos ecológicos sem preço - mananciais das florestas e bacias hidrográficas, recursos da biodiversidade para uso farmacêutico, ativos energéticos das marés e dos ventos e de suas enormes taxas de insolação - ficará evidente que (o Brasil) é um dos gigantes da energia. Somente a luz do sol que banha a Amazônia todos os dias, que é utilmente capturada pelas florestas, equivale a cerca de sessenta bombas de hidrogênio. Com todos esses ativos ecológicos, fontes de energia e capital humano totalmente reconhecido, todos os países em desenvolvimento estarão em posição de negociação muito mais forte vis-a-vis com os países da OECD. A globalização trouxe muitas boas notícias sobre a nova economia da informação em rede, inclusive aprendizagem à distância, na qual o México foi o pioneiro, e cursos universitários para as pessoas con34 A globalização desordenada de hoje precisa ser reformulada, democratizada e compartilhada. A educação e a assistência à saúde são agora reconhecidas em muitas campanhas políticas como questões públicas urgentes, porque são setores-chave da economia da informação. O capital do conhecimento intelectual, social e ecológico é o principal setor da produção. Os combustíveis fósseis serviram como plataformas para a Era Industrial. Os setores da Era da Informação continuarão a crescer mundialmente, particularmente no Brasil, México, Malásia, China e Índia. Os dois setores, o público e o privado, de nossos livros-texto de economia e política devem agora ser atualizados, à medida que o terceiro setor, o setor da sociedade civil, onde existe o maior número de pobres do mundo, assume seu lugar de direito nos negócios humanos. Cursos universitários atualmente estudam esses R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 novos setores; economistas e políticos certamente irão compreendê-los. Após as batalhas de Seattle, Washington, Londres, 11 Praga, Doha e Davos , governos e corporações aprenderam a respeitá-los. Até mesmo o Banco Mundial concorda que o capital humano, as organizações da sociedade civil (também chamadas de ONGs), as estruturas sociais, os valores e a cultura familiar devem ser estudados e reconhecidos no desenvolvimento econômico. A Carta da Terra, juntamente com outros manifestos de solidariedade humana e todas as convenções das Nações Unidas sobre direitos humanos, apontam para a evolução da ética e dos padrões globais necessários a nossa Era de Interdependência Global. O mundo está se movimentando lenta e desigualmente para estratégias equilibradas do tipo ganha-ganha e para o domínio dos acordos e leis internacionais visando manter sob controle a concorrência predatória e a exploração tanto dos povos quanto dos ecossistemas. O exercício da democracia lentamente se espalha na América Latina e, especialmente, no Brasil. As tecnologias industriais primitivas estão lentamente cedendo lugar para as tecnologias energéticas e de informação ecologicamente descentralizadas. A própria natureza está dando aos seres humanos o feedback necessário para que nos orientemos a níveis mais elevados de consciência. A população humana aumentou. Estamos nos tornando ainda mais interdependentes. Precisamos aprender a agir de acordo com essa interdependência e criar um mundo ganha-ganha se quisermos sobreviver. Hoje o planeta é o nosso ambiente de sobrevivência, onde nos precisamos conscientizar de que todos os nossos autointeresses coincidem. Economia Irreal Contabilidade Irreal A desintegração econômica da Ásia tem conduzido a uma cobertura maciça sobre suas causas. As primeiras explicações, a partir do Consenso de Washington, focaram-se nas deficiências domésticas dos países asiáticos, em vez de se concentrarem nas falhas dos mercados privados. O ressurgimento, em 1999, dessas economias asiáticas (amplamente via financiamento mediante déficit) impulsionou os mercados ocidentais e estabeleceu uma nova complacência. Porém os contínuos choques e instabilidades dos atuais mercados financeiros globais, finalmente, têm feito com que os ministros das finanças e diretores de bancos centrais repensem com cautela a necessidade de uma nova arquitetura financeira. Desde o colapso do sistema de Bretton Woods em 1971, o sistema financeiro global tem se caracterizado por crescente turbulência, aumento da dívida e uma separação dos fluxos financeiro e monetário existentes nas economias produtivas do mundo real do comércio e do consumo que, supostamente, o dinheiro deveria facilitar e medir. Enquanto que a teoria do livre mercado diz que se deve permitir o fluxo do investimento para onde possa ser de melhor uso, o cenário atual não permite que isso aconteça. O retorno rápido tem prioridade sobre o investimento a longo prazo. Se um país tomasse essa mesma atitude em relação a seu investimento, não colocaria recursos na educação. Evi- 11 - Na realidade, isso remonta à Rodada do Uruguai, que durou 13 anos, ao fim da qual o GATT se transmudou em OMC, a partir de quando o A.M.I. ¾ Acordo Multilateral de Investimentos ¾ vem 0 sendo paulatinamente imposto aos países em desenvolvimento. Vide n.p.p. n 3 , deste trabalho, p.5. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 35 dentemente, esta não é uma estratégia muito segura. As operações financeiras internacionais fogem das regulamentações nacionais e são centralizadas em Londres, Nova York, Tóquio, Hong Kong, Cingapura e em paraísos fiscais da Suíça, Ilhas Cayman, Antilhas Holandesas, Bahamas, Luxemburgo, e Ilhas Canal. Mais de vinte mil corporações são estabelecidas nas Ilhas Cayman, e os depósitos nos 575 bancos lá existentes totalizam atualmente US$ 500 bilhões de dólares. Somente 106 desses bancos estão fisicamente presentes em Cayman e estima-se que 1,5 milhão de empresas operam atualmente off shore ( uma explosão se comparadas às 200.000 que operavam dessa forma em 1998). Continuamos medindo de acordo com nossa visão cultural do que se considera ter valor. Quando as contas do PIB foram estabelecidas na Segunda Guerra Mundial, as bombas, balas e produção de guerra eram a meta, enquanto que o valor das crianças, uma cidadania saudável e educada, infraestrutura, redes de segurança social e o meio ambiente foram contabilizados como zero. Este ponto de vista estatístico ainda perdura, não só devido à inércia burocrática, mas devido aos seus setores, grupo de interesse e forças políticas poderosas que se beneficiam desse sistema de contas nacionais. Os orçamentos militares permanecem sem limites, ao passo que as redes de segurança social, saúde, educação, meio ambiente e até reparações da infraestrutura são empurrados para baixo nas listas de prioridades. O emprego, trabalho social, serviços sociais e valores fundamentais como família foram desvalorizados lentamente, enquanto as próprias finanças (por exemplo, a evasão de ativos em papel) são super-valorizadas. Os setores de serviços financeiros cresceram nove vezes, fora de qualquer propor12 ção com a economia real . Esse mesmo processo tem também desvalorizado o setor de commodities e os recursos naturais, que há doze anos estão em baixa. Pode-se simplesmente ganhar mais dinheiro detendo e comercializando ativos financeiros. Uma visão realista mostra que o vôo do capital global para Wall Street e outros fatores estão formando uma clássica bolha de expansão. Outros cenários destacam os problemas locais, étnicos, comunitários e nacionais frente à globalização. A realidade é que cada uma dessas hipóteses se baseia em diferentes paradigmas e interpretações, que produzirão previsões conflituosas. O único caminho direto é ir além das limitadas ferramentas da medição econômica que usamos e desenvolver uma abordagem mais sofisticada para entender o sistema global que está sendo criado. A complexa compreensão da nova economia global requer ir além da economia para uma abordagem multidisciplinar. No livro Economia: A Cultura de uma Ciência Controversa, o Professor Melvin W. Reder descreve a crise de hoje dentro da ciência econômica: a insegurança quanto ao status da disciplina, o desentendimento interno sobre seu escopo e métodos e se a economia é uma ciência ou uma 13 ideologia disfarçada . 12 - P. Dembinski e Schönenberg, A Aterrissagem Segura do Balão Financeira não é impossível, Finance & the Common Good, outono de 1998, Genebra. 13 - Não entro no mérito da questão; citar não implica necessariamente concordar; mas não restam dúvidas de que a economia está sendo ideologizada. 36 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 Economistas ligados a organizações como a New Economics Foundation (Fundação da Nova Economia) entre eles James Robertson, Simon Zadek, Ann Pittigrew, Hazel Henderson e outros fora da área econômica, se comprometeram durante muitos anos com o repensamento da economia. Lidar com as tarefas de reestruturação da economia global requer múltiplas disciplinas e métricas que vão além do dinheiro, isto é, uma abordagem sistêmica. O pensamento sistêmico surgiu neste século pecisamente para abranger as complexidades da mudança institucional e o comportamento dinâmico de grandes organizações e de sistemas globais. Portanto, a tarefa vai além do equivalente em dinheiro e das habilidades dos economistas e requer equipes interdisciplinares e múltiplas métricas. CONCLUSÃO Uma visão geral sobre a globalização esclarece as mudanças ocorridas na eco14 nomia mundial que tornaram obsoletas muitas estruturas, políticas e teorias econômicas existentes. Essas mudanças globais se estão acelerando como resultado de interligações ainda mais estreitas do novo mercado mundial baseado na informação em rede. Para mapear essas mudanças não só são necessárias muitas perspectivas e métricas disciplinares, como se falou, como também que haja feedback das populações atingidas. Não só das populações atingidas como também da natureza, do sistema planetário, dos ecossistemas locais e de todos os seres humanos marginalizados pelas formas atuais de globalização desenfreada. Um exemplo foi a proposta patrocinada por corporações para criar um Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Com o passar dos anos, passo a passo, acordo por acordo, os Estados negociaram os protocolos das Nações Unidas sobre a biodiversidade, mudança climática e cinqüenta anos de tratados sobre normas relacionadas aos direitos humanos e dos empregados e à proteção ambiental. O êxito da campanha contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), liderada pela ATTAC (Ação para Tributação das Transações Financeiras e Apoio aos Cidadãos), uma ONG sediada na França com ramificações em vários países, levou a uma reação contra os processos de negociação da OMC. Cerca de 560 grupos cívicos de sessenta e oito países do mundo conseguiram descarrilar o AMI, sem o que esse acordo teria enfraquecido esses protocolos existentes para favorecer as corporações em detrimento dos cidadãos. A ampla participação pública de cidadãos, trabalhadores, pessoas pobres e grupos marginalizados é, portanto, requisito para remodelar a economia global. Um novo mundo é possível. Uma terceira via é factível. Não necessariamente a Terceira Via de Tony Blair, com a qual o Brasil andou namorando na Reunião de Florença e, mais recentemente, no Seminário da Governança Progressiva (nova denominação da Terceira Via), em Londres, a qual parece tão somente um neoliberalismo disfarçado e, talvez, amenizado. Mas um novo caminho que nos conduza a um mundo mais justo e mais humano, em que o indivíduo seja a medida de todas as coisas e a comunidade das nações, o conjun- 14 - Obsoletas aí no sentido de que caiu em desuso Aurélio, verbete obsoleto (1). A aplicação de uma teoria econômica só é viável, no contexto em que é concebida. Por exemplo, a simples e genial teoria de David Ricardo sobre produtividade, hoje, em face mesmo da globalização, tornou-se obsoleta. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 37 to harmonioso dos indivíduos. É necessário que tratemos de restituir às nossas normas de convivência o perdido senso de solidariedade que é a suprema contribuição do cristianismo ao desenvolvimento econômico e social do homem. Não somos obrigados a optar entre o cinismo do capitalismo e o irrealismo do socialismo. É possível unir operários e patrões, empregados e empregadores, sociedades e nações, desde que todos estejam convencidos de que o capitalismo, chegado ao ponto de egoísmo degenerado a que chegou, já não tem sentido nem conteúdo, já não traz progresso e não constitui refúgio para ninguém, nem mesmo para os capitalistas; é possível evitar o socialismo real, tipo soviet, forma de opressão de uma casta que se substitui à classe, contanto que se chegue a administrar o Estado de tal modo que ele seja uma representação do interesse coletivo e não um órgão de clãs. É com coragem e confiança que se há de construir um mundo sem fronteiras, renovado, reabilitado, o que depende apenas de todos nós. Neste trabalho, procuramos fazer uma crítica à globalização especulativa, que ocorre à custa dos empreendimentos e das formas de vida mais locais. Defendemos o uso do pensamento sistêmico e de uma abordagem mais holística como caminhos para a ruptura com o pensamento econômico convencional, preso a uma visão estreita de mercado e de PIB. Procuramos, também, oferecer uma visão, embora limitada, das mudanças necessárias para uma nova economia global que promova a justiça e a sustentabilidade em todos os níveis, do pessoal e local ao global. “...quando os seres humanos descobrirem verdadeiramente o poder do amor, terão descoberto algo mais importante que o fogo”. (Pierre Teilhard de Chardin, 15 paleontologista e teólogo francês) . No século XIX, Charles Darwin especulou, como revelou David Loye em A Teoria do Amor perdido de Darwin (Darwin’s Lost Theory of Love, 2000) que a moralidade sempre está se tornando mais pragmática. Esta evolução dos sentimentos morais foi sempre um orientador dos negócios humanos. O comportamento cooperativo sem dúvida continuará a ter um papel-chave na expansão da consciência humana e na modelagem de formas de globalização para nossos valores e aspirações mais elevadas. Na verdade, um outro mundo é possível e realizável, à medida que nós, humanos, participemos democraticamente da construção de um futuro sustentável para todos os nossos filhos. Concluindo, fica para o distinto leitor a opção: Davos ou Porto Alegre? Abstract The author enphasises the need of present generation’s positioning facing to the problem of choosing a government and international relations model such as to privilege chiefly social challenges (‘Porto Alegre model’) or chiefly economic challenges (‘Davos model’). Keywords: Globalization, World economy, Multilateral Agreement Investiment. 15 - Citado por Pitirim Sorokin, ex-ministro da cultura da Rússia e sociólogo de Harvard, em seu último livro Os Caminhos e o Poder do Amor, (The Ways and Powers of Love, 1953) 38 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EICHENGREEN, B. Toward a New International Financial Architecture, City Institute for International Economics, 1999. FIORI, J. L. Notas para um Debate Democrático sobre o “Plano Plurianual 2004-2007”. In: . Proposta, n 97, Ano 30, Junho/Agosto de 2003, p. 7-11. HENDERSON, H. Construindo um Mundo Onde Todos Ganhem: a vida depois da Guerra Econômica Global. São Paulo: Cultrix, 1998. ————. The Breaking Point. In: Australian Financial Review, p. 1-9, 04.12.1998. REDER, M., A Economia: A Cultura de uma Ciência Controversa, Chicago: University of Chicago, 1999. SOROS, G. The Crisis of Global Capitalism. Public Affairs, 1998. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.21-39, jan/dez. 2003 39 40 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Evolução do Pensamento Estratégico Brasileiro Conferência proferida no Ministério da Defesa (CGERD) em 07 de outubro de 2003 Jorge Calvario dos Santos Coronel Aviador, Doutor em Ciências em Engenharia pela COPPE/UFRJ e Chefe da Divisão de Assuntos Internacionais da Escola Superior de Guerra Resumo O autor analisa a modernidade, sua incompatibilidade com a formação cultural brasileira e apresenta as bases para uma proposta que viabilize a formulação de um pensamento estratégico brasileiro original. Palavras-chave: Modernidade, Formação Cultural brasileira, Pensamento estratégico, Questão ideológica. Introdução A abordagem adotada nesse texto é no sentido de tentar contribuir, um pouco que seja, para construir o mundo com que sonhamos todos. Por essa razão, optei, enquadrado no tema do evento, por discutir a modernidade e o pensamento estratégico brasileiro. Com isso, pretendo enfatizar vínculo o indissociável existente entre identidade e cultura e cultura e pensamento, porque a autonomia do ser, logo do pensamento, é construída na dependência da cultura. Entendo que essa abordagem nos possibilita, ao menos, perceber a atual condição do pensamento brasileiro. A motivação para isso se faz pela necessidade de: · buscar a explicitação da real influência da modernidade sobre o pensamento estratégico brasileiro; · adequar o pensamento estratégico brasileiro à realidade e à cultura nacional; · buscar autonomia e originalidade do pensamento estratégico nacional brasileiro; · mostrar a importância da originalidade do pensamento brasileiro; · formular bases fundamentais à um pensamento estratégico original brasileiro, que possibilite a sobrevivência da nação, como tal, numa etapa do processo histórico, em que testemunhamos a destruição de culturas. Essas questões nos remetem à longas, profundas e originais discussões. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 41 Para tanto, é minha intenção ressaltar, analisar e criticar, o aspecto essencial e fundamental daquilo que constitui o ambiente no qual repousa a intelligentsia brasileira, a modernidade. Nesse ambiente é que, por séculos, vem sendo construindo o pensamento brasileiro. Com isso, pretendo mostrar as razões responsáveis pelos rumos e tendências do pensamento, no contexto histórico brasileiro. Em seguida, pretendo discutir a incompatibilidade da formação cultural brasileira com a modernidade e suas razões, para por fim, sugerir que a necessidade de caminhar em direção à originalidade brasileira. Além disso pretendo apresentar o que chamo de bases para uma proposta estrutural que possibilite viabilizar a formulação de um pensamento estratégico original brasileiro, em nova dimensão. Isso significa tratar conceitualmente e buscar caminhos que consolidem uma nova direção para um pensamento estratégico original. Essa abordagem, certamente é produto das inúmeras questões que nos desafiam e que nos conduzirão à muitas outras questões também desafiadoras. Nessa discussão, certamente, surgirão e eu também terei, mais questões do que respostas. Em nosso processo de colonização, a classe dominante, branca por auto-definição, de uma população essencialmente mestiça teve sua preocupação fundamental, nas palavras de Darcy Ribeiro, no plano racial, afirmar sua condição branca; no plano cultural, sua europeidade. Sua aspiração era a da condição lusitana, posteriormente inglesa e francesa para nos dias atuais voltar-se mais aos Estados Unidos. Essas condições, tal como ocorre nos dias atuais, eram bem simuladas. Buscavam a identificação na moradia, na vestimenta, 42 nos hábitos alimentares, na educação, na diversão, nos hábitos religiosos, de casamento e outros mais. Apenas os fatores ecológicos e o contexto humano em que vivia, é que a seu pesar, a tornavam definitivamente brasileira nessas mesmas coisas (Darcy Ribeiro, 1991). A imitação do estrangeiro era inevitável. Inevitável porque vinham associadas à aspectos econômicos e fatores de progresso. O grande mal residia e ainda reside na rejeição do nacional, do popular por ser considerado subalterno devido à tropicalidade e à inferioridade do povo não branco. Por manter essa postura, gerações foram alienadas. Nessas circunstâncias, a alienação passou a ser a condição da classe branca por ser inconformada com seu mundo atrasado. Por isso vivia sem enxergar os valores da cultura que se construía. Por isso e muito mais, em nossa história colonial não identificamos uma camada erudita que tivesse sido a expressão da criatividade da população brasileira. Tivemos, sim, uma elite transplantada que realizou mimeticamente ações culturais de um outro contexto. Tais ações, incompatíveis portanto incompreensíveis para a imensa maioria da população – tal como ocorre com quase toda criação erudita – trazia insatisfação inclusive para as elites eruditas naturais da colônia. Essas elites sofriam a desterritorialização de seu duplo ser, nas palavras de Darcy Ribeiro: “O de agentes locais de uma cultura centrada em outra parte para cuja criatividade eles aspiram contribuir e o de membros de uma sociedade subalterna, cujo modo de ser os mortifica” (Darcy Ribeiro, 1991). Tal insatisfação tinha causa fundamental na condição exógena dos colonizadores que aqui se estabeleceram e atuavam em consonância com a exploração e o atraso. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Com o passar do tempo, a custa de sofrida evolução e construção da cultura brasileira, começa a surgir nova formatação da sociedade que se opunha à metrópole, ainda que configurada segundo princípios pertinentes ou a ela vinculados. Da mesma forma se expressava a criatividade cultural. A partir da Independência, deixa de obedecer aos vínculos passados ainda que continuasse presa aos estilos da cultura a partir da qual se fez nascer. Constituindo-se, em seguida, numa sociedade que inicia sua urbanização e industrialização, serão novos centros metropolitanos que exportarão os padrões culturais que a cultura brasileira, em formação, cultivará, sem qualquer possibilidade de influir sobre tais centros difusores de cultura, em virtude da dependência e do atraso econômico e sócio-cultural. A consciência nacional, construída em nível erudito, sob condicionamento da alienação cultural ou de cultura exógena, tende a construir forma de pensamento nacional retrógrado, de caráter ingênuo e de conseqüências graves. É ingênua, nas palavras de Darcy Ribeiro por não se constituir como visão contestatória da ordem vigente. Ainda que presa à realidade contextual, com a qual não consegue se identificar, não chega a adquirir uma consciência rebelde dessa sociedade subalterna. De fato, os documentos históricos, e crônicas, mostram um modo de pensar comprometido com a metrópole e que, atualmente se mantém vinculados à novos centros de poder. Assim, o pensamento brasileiro, com notáveis e rebeldes exceções, mantém-se, de certa forma, vinculado ao pensamento exógeno de novas matrizes culturais. Por isso, nos dias de hoje, tal como à época, são intermináveis as apaixonadas discussões sobre, ALCA, inserção soberana na Globalização, inserção na modernidade, inserção competitiva no mercado internacional, internacionalização da economia, pós-modernidade, e outros temas importantes para a vida nacional, que terminam sendo decididos por interesses ou ingenuidade como explicitada por Darcy Ribeiro. Nesse ambiente e nessas condições, a maioria dos pensadores brasileiros, não via o papel da espoliação colonial e econômica, como fatores responsáveis pela miséria e ignorância geral. Como hoje, a culpa era atribuída ao povinho que aqui vivia ou a necessidade de trocas as elites que vivem de costas para o Brasil. O fato de perceberem nos europeus uma cultura superior e uma portanto civilizadora, não os fez identificar o caráter complementar dos antigos colonizadores, e dos estrangeiros que, de modo geral, convertendo o Brasil numa economia dependente e o povo num proletariado externo, o estavam condenando a perpetuação do subdesenvolvimento e do pensamento dependente. A visão nativa e própria do mundo, com o exercício de uma criatividade cultural genuína, só tem sido possível, a partir de meados da década de vinte, iniciando especialmente a partir de 1922, com a semana de arte moderna. Essa condição só foi possível, por ter sido alcançado alguma autonomia cultural e portanto certa importância como sociedade. Isso tem sido feito enquanto nos reconhecermos como singular no conjunto de sociedades com que nos relacionamos, compreendermos e apreciarmos nossas experiências que nos distinguem e que, representam nossa forma de ser-com-o-outro, de ser-no-mundo, e de ser-frente-ao-absoluto. Assim, conseguiremos ser nós mesmos, e portanto expressarmos e vivermos nossa própria identidade. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 43 O desinteresse pelo pensar torna-se uma realidade contundente. Para que pensar se tudo já está pronto e chega até nós. É preciso ser pragmático e usar o que outros pensaram para nós, isso é o que vemos acontecer. Refletir e pensar são palavras que parecem ter desaparecido ou sido banidas do vernáculo. Nos últimos trinta anos o interesse em pensar o Brasil, está desaparecendo entre os brasileiros. O interesse pelo país, pelo seu futuro, praticamente não existe. Naturalmente, não me refiro aos que já o faziam e aos que o fazem, alguns distantes e motivados por interesses próprios. No que diz respeito a planejamento estratégico nacional, os fracassos se repetem assim como se repetem as orientações oriundas das culturas mais poderosas. Como exemplo temos: · “a industrialização por substituição das importações é a chave do desenvolvimento; · a substituição das importações é um erro; a promoção das exportações é a única solução; · a industrialização é uma ilusão; apenas o crescimento acelerado da agricultura traz a resposta para o subdesenvolvimento; · para se evitar ser submergido pela explosão populacional é preciso priorizar o controle demográfico; · na verdade, as massas nada têm a ganhar com o desenvolvimento. É preciso rejeitar o crescimento do PNB e priorizar o imperativo de redistribuição”. (Latouche, 1994). É de conhecimento de todos que desde Wilhelm von Humbold, a identidade nacional vem sendo pensada em termos indissociáveis da cultura. Como o pensamento não se desvincula da cultura, discutir sobre pensamento estratégico bra44 sileiro, significa discutir condições para um futuro melhor, ou seja enfatizar as possibilidades de futuro, em termos da identidade e da cultura nacional. É necessário destacar que isso é uma obrigação nacional. É importante, especialmente nesse momento histórico em que procuram retirar a auto-estima dos brasileiros e a utopia que nos conduz a todos rumo a um futuro promissor. Procuram impedir que venhamos assumir um lugar de destaque neste mundo conturbado. Nessa linha de pensamento, para melhor me fazer entender, julgo necessário definir alguns conceitos. Conceitos diretamente envolvidos nesse estudo. Pensamento: Qualquer atividade mental ou espiritual; Atividade discursiva; atividade intelectual; Atividade do intelecto ou da razão, em oposição aos sentidos e à vontade – é ao mesmo tempo a atividade produtiva e o seu produto é portanto a essência de tudo; Decartes: “Com a palavra pensar, entendo tudo o que acontece em nós, de tal modo que o percebamos imediatamente por nós mesmos; por isso não só entender, querer imaginar, mas também sentir é o mesmo que pensar”. Wolf: “dizemos que estamos pensando quando estamos cientes daquilo que acontece em nós, que representa as coisas fora de nós”. Estratégia: a arte de preparar o poder para conquistar e preservar objetivos, superando óbices de toda ordem. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Cultura: Conjunto de modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra, entre os membros de determinada sociedade; Paidéia (para os gregos): o homem só podia realizar-se como tal através do conhecimento de si mesmo e de seu mundo. Humanitas (para os latinos): Educação do homem como tal, ou seja, educação devida às “boas artes” peculiares ao homem. Consciência pessoal de uma nação inteira; Spengler: Cada cultura, cada surgimento, cada progresso e cada declínio, cada um de seus graus e de seus períodos inteiramente necessários, tem duração determinada, sempre igual, sempre recorrente com forma de símbolo. (Toynbee enumerou 21 culturas. L. T. Hobshouse enumerou 650 culturas primitivas.) formação social que inaugura um novo modo de ser, ser-com-o-outro, ser-no-mundo e ser-frente-ao-absoluto. Esse é um conceito que subsume os outros sem que os anulem. Civilização: Formas mais elevadas da vida de um povo, isto é, a religião, a arte, a ciência, etc., consideradas como indicadores do grau de formação humana ou espiritual alcançada pelo povo; formação social mais ampla, resultante do processo de horizontalização de uma cultura. Representa o momento de ápice de uma cultura quando esgotada sua criatividade, projeta-se sobre o mundo; Spengler: Do conceito de cultura, spengler distinguia o conceito de civilização, que é o aperfeiçoamento e o fim de uma cultura. Modernidade: nome atraente e cativante atribuído a uma cultura, em cujo âmago vive a ciência, que a governa, com o seu inesgotável poder de cálculo de todas as coisas. Pensamento estratégico: Atividade intelectual voltada ao preparo e aplicação do Poder Nacional para alcançar ou manter objetivos superando óbices de toda ordem. Pragmatismo: uma teoria do conhecimento que visa dar uma resposta à pergunta “Como se dá o conhecimento?”, segundo os pioneiros do pragmatismo americano (Charles S. Pierce, William James, John Dewey, na visão de John R. Shook, um dos mais eruditos pensadores do pragmatismo estadunidense). Cabe, nesse momento, chamar a atenção para o fato de que a história da cultura brasileira bem como a história do pensamento estratégico brasileiro, sempre foi a história do encobrimento, do esquecimento, do desmerecimento, do desvirtuamento de significativos, essenciais e ricos aspectos de seus valores culturais, nacionais e fundamentais ao futuro do país. Isso tem ocorrido por uma razão muito simples ainda que fundamental: a ausência de diálogo aberto, do efetivo exercício da intersubjetividade intelectual que nos revelaria um universo original, muito mais rico do que o que nos é apresentado. Isso possibilitaria um sem número de explorações que contribuiriam para a decifração dos muitos enigmas que permeiam nosso imaginário. Isso ocorre, possivelmente, devido a uma mentalidade dependente de modelos exógenos, amarrados e condena- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 45 dos à própria história e de um processo de interferência cultural, disposto a apagar nosso passado pelo cerceamento institucional e imposição de valores exógenos junto a um discurso equivocado de valorização do multiculturalismo. Como apoio, tem a mídia, que dá voz e vez à brilhante mediocridade, ao desprezo pelo pensamento original, até mesmo por razões de sua própria sobrevivência. Por tudo isso, jamais qualquer pensamento original brasileiro seria colocado em destaque ou em detrimento de pensamento oriundo dos partícipes da modernidade. Apesar das dificuldades, a expressiva maioria dos pensadores brasileiros direcionou, com competência, todo esforço e capacidade para o desafio de formular um pensamento genuinamente estratégico brasileiro, em especial, da alma brasileira. Entretanto o pensamento tem sido sufocado mesmo direcionado. Por isso, a importância que alcançou no Brasil, mais do que em outro lugar, o culturalismo. A cultura brasileira é a síntese de um vasto leque de culturas que a tornam única. A única cultura nova existente e por isso ainda em fase de consolidação. Cultura que, por um lado, dificulta seu ingresso permanente na modernidade e por outro lado se constitui como a mais profíqüa base necessária à construção de uma cultura de fato original, e que realmente pode se colocar além da modernidade. Sobre a modernidade A modernidade não é uma nova era a possibilitar que o sonho dos indivíduos de emancipação social, de autodeterminação do homem, de melhores possibilidades de sua plena realização venha a se tornar realidade, nem de oferecer a vida eterna, ainda que tenha essa pretensão. 46 Como fator mais determinante deste século, (talvez dos quatro últimos séculos) interfere fortemente em todas as áreas de atividade e de pensamento do homem e das nações. Sua força incontrolada vai corroendo os localismos dando lugar aos universalismos. Por essa razão, convém destacar a influência do que existe subjacente à modernidade, bem como o que representa no processo histórico e de evolução humana. A influência no pensamento humano tem sido total. Por suas características, na modernidade, o ser humano não possui as condições necessárias para realizar todas as suas potencialidades. Isso é um convite para que rompamos com a nossa aceitabilidade dos fatos, com a nossa passividade, com nosso conformismo, com a idéia de que o pragmatismo é o caminho certo, que tem permitido que a qualidade de refletir, inerente ao homem desapareça. Faz-se necessário entender reflexão como a volta da consciência, do espírito, sobre si mesmo, para examinar o seu próprio conteúdo por meio do entendimento, da razão. Vamos refletir sobre as conseqüências primeiras e talvez mais importantes da modernidade, naquilo que diz respeito ao que melhor caracteriza o ser humano: sua subjetividade. É óbvio que o pensamento original e originário vira as costas à fama e, portanto, à mídia. Naturalmente, a generalizada e tão difundida ignorância tende a aceitar, de certo modo acreditar e portanto confiar que a verdade é transmitida pelos meios de comunicação, como se estes fossem os autênticos instrumentos do pensamento. Isso torna difícil a consolidação da cultura bem como do pensamento original brasileiro. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Como sabemos, vários são os marcos ou datas que os autores tomam para referenciar o início da modernidade, um processo que levou cerca de quatrocentos a seiscentos anos para se consolidar. Um processo que para alguns autores, passando pela aristotelização, a partir do ano 1000, teve sua preparação iniciada com Abelardo, passando pelo Tomismo, por Copérnico, pelo Renascimento, pelos Descobrimentos, por Galileu, pela Revolução Inglesa, por Newton, por Descartes e Bacon, vindo a consolidar-se com a Revolução Industrial. Abelardo esboça duas noções fundamentais para qualquer consideração da civilização ocidental: a noção de ciência, que aplica os primeiros princípios do intelecto na ordem teórica, e a noção de consciência, que os aplica na ordem prática. Cabe lembrar Rabelais que afirmou que “Ciência sem consciência é a ruína da alma”. Essas duas noções esboçadas por Abelardo podem colocálo como precursor de Descartes. Se não como precursor, certamente como o verdadeiro iniciador da modernidade (Morse, 1995). Há cerca de 500 anos vem sendo construída, no mundo, uma nova ordem, de fato uma nova cultura conhecida como modernidade. Como não estamos só, nascemos e vivemos todos na chamada modernidade, julgo importante discuti-la ou esclarecê-la. Nesse esclarecimento é fundamental explicitar o papel que nela tem a ciência para, em seguida podermos nos posicionar quanto aos fundamentos do pensamento estratégico. Descartes foi quem inaugurou a modernidade quando uniu o cogito à ciência (Geometria), cuja lógica foi concebida por Aristóteles. Assim, Descartes uniu a ciência com o sujeito liberal cogito, que no fundo é a essência própria à modernidade. Por isso ele é o marco filosófico para a modernidade. Ele afirmou que o mundo objetivo era geometria, que era calculável, que era um sistema axiomático fechado e o sujeito disso era o cogito, completamente transparente a si mesmo, ou um sujeito de projeto, ou um sujeito liberal. Pedro Abelardo iniciou a preparação para a modernidade quando afirmou que era possível reexaminar os conteúdos de fé, para produzir uma estrutura logicamente demonstrável de racionalidade, que sustenta a crença em todas as esferas de opiniões e de ação. À ele é atribuída a iniciativa de contrapor a racionalidade (moderna) ao argumento de autoridade que desfrutava de grande prestígio na cultura cristã medieval. Com o surgimento do protestantismo, a potência mediadora do clero burocrático foi significativamente minimizada. Por isso, o sujeito liberal intervalar tomou dimensão social para, sem restrições, se consolidar plenamente com a revolução inglesa do início do século XVII. Ciência e consciência caracterizam a modernidade anglo-saxônica tal como afirma Richard Morse. Isso é o mesmo que mundo geometrizado, calculável, tendo como sujeito o cogito. A consolidação da modernidade, não só pela adoção da cientificidade, mas pela descoberta do sujeito que lhe é próprio, que foi realizada pelo protestantismo. Isso que foi desvelar e instalar o sujeito da ciência, o sujeito liberal, demorou cerca de 400 anos se estruturando e consolidando. Não devemos esquecer de São Tomás de Aquino, que foi o sistematizador da modernidade no cristianismo. O apogeu do pensamento sis- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 47 temático cristão registra-se com Tomás de Aquino, de 1250 a 1274, ano de sua morte. A conquista de Tomás de Aquino foi unir os princípios filosóficos de Aristóteles com os preceitos da teologia cristã numa estrutura racional harmoniosa. A modernidade tem suas características essenciais associadas à ciência. Entretanto, a grande questão ideológica não é a ciência – com ela todos somos favoráveis -, mas essencialmente com o sujeito da ciência. Para o paradigma anglo-saxão, é o sujeito liberal; para a esquerda é o sujeito coletivo; para a direita é o inconsciente cultural, romântico, telúrico. O problema brasileiro não estaria na aceitação da ciência, mas na escolha do sujeito que lhe seja apropriado. O fracasso na consolidação desse processo conduziria à desintegração cultural, logo da nação. A consolidação cultural original conduziria a uma poderosa e nova cultura. Por isso, é o Brasil o único e grande perigo para a cultura dominante e quem sabe, para nós mesmos e poucos de nós sabemos disso. A história, os fatos, fotos e testemunhos, nos tem mostrado, que a direita e a esquerda são impotentes com relação a modernidade, pois, são seus próprios e desviantes modos delirantes de um estado de perfeição. Por isso, a modernidade só poderá ser superada por algo novo, por uma utopia, por uma cultura mais poderosa. Por isso, na modernidade, com total hegemonia da ciência, o freudiano malestar da civilização se apresenta como doenças predominantemente de ordem psíquica. Isso, tem levado o homem diretamente ao pleno interesse pela ciên48 cia como ao profundo desinteresse pelo próprio homem em sua plenitude. Logo, perde o referencial fixo, desterritorializase e tende a adquirir doenças de ordem psíquica. Nós, seres humanos, estamos perdendo nossas características humanas, em benefício de uma racionalização técnica que, conduzida como está, tem trazido miséria, dominação e infelicidade ao homem pelo próprio homem. Certamente existe outro modo de evoluir, de progredir, de perseguir o bem comum, sem que o ser humano viva num estado de dominação, sob controles sociais e políticos, sem perder suas características humanas, com liberdade total de pensamento, de modo a ter a possibilidade de efetivar sua plena realização. Com certeza, a ética e o bem comum estarão presentes em todas as respostas. Tomando como referência Ortega y Gasset, faz-se necessário lembrar que o homem deve viver com a técnica, mas não da técnica, pois para isso ela é por ele criada e desenvolvida. Desde o início do século XX, e isso parece ser o caminho natural pois, no mundo de hoje, a ciência e principalmente a técnica, estão presentes em todos os quadrantes da vida, sendo o mais significativo instrumento de poder. Já nos lembrava Freyer ao dizer que todas as ideologias modernas se reportam à ciência. (Freyer, 1965). Uma das mais importantes e não aparente característica é a deficiente formação cultural que junto com profunda deficiência da experiência cultural continuada coloca em xeque a noção de desenvolvimento, tão necessária aos países menos favorecidos e fundamental à soberania das nações. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Quanto ao capitalismo O surgimento e a consolidação do processo de acumulação capitalista, da forma como vem se processando, só foi possível pela injeção, de modo regular e persistente, de ganhos de eficiência no aparelho produtivo, proporcionado pela tecnologia. O incremento da eficiência é pré-condição para a acumulação. Este meio, nos afirma Coelho de Sampaio, foi a técnica sistematicamente alimentada pela ciência. O processo de acumulação, do ponto de vista econômico, é uma das bases de sustentação do modo produção próprio à modernidade, o capitalismo, uma das suas principais e mais marcantes características. Assim, não é difícil aceitar e compreender, que por trás do aumento de produtividade esteja, necessariamente, a melhoria das técnicas e, como não pode deixar de ser, por trás desta, a ciência. Em termos diretos e objetivos, assim afirma Coelho de Sampaio: “Capitalismo é o modo de produção próprio à modernidade, que tem como seu núcleo exclusivo e irredutível a ciência e sua lógica calculadora do mundo” (Coelho de Sampaio, 2000/B). Existe, obrigatoriamente, um comprometimento entre um saber e um modo de pensar. A característica fundamental desse comprometimento com a modernidade é o aprisionamento daquilo que seja considerado digno de ser pensado num universo pré-determinado, calculável, delimitado, esgotável, por convenção. Assim, em princípio, como seria possível a um sistema, concreto ou simbólico, teórico ou prático, evoluir de modo a acompanhar as vicissitudes do processo histórico? Coelho de Sampaio nos mostra que para que uma cultura científica possa sobreviver, é necessário que, ao longo do tempo, entre um sistema e outro, venha a surgir um sujeito transcendental, sujeito intervalar, entretanto com bastante vigor para recompor um novo sistema que deverá substituir o anterior. O sujeito intervalar é livre com relação aos sistemas ou à ciência. Entretanto, ele está acorrentado ao processo geral da instituição da racionalidade. É um sujeito sujeitado à cientificidade que se pretende calcular e reger os destinos do mundo. Assim, ciência e sujeito liberal intervalar, o sujeito intervalar explicitado e incentivado pela indústria cinematográfica hollywoodiana, passam a constituir a parte visível e afirmativa da modernidade. A modernidade mostra apenas seu lado ameno, mais alegre e mesmo promissor que é constituído pela ciência e pelo sujeito liberal consciente. Entretanto, a estrutura não poderia se sustentar sem que houvesse sólidas bases. Que bases seriam essas? Se na parte visível da estrutura estão a ciência e seu sujeito liberal intervalar, o que constituiria a parte não visível da estrutura da modernidade? E, como questiona Coelho de Sampaio, como poderia tal parte da estrutura, não aparente, acontecer e ter passado desapercebida até os dias atuais? Para Coelho de Sampaio, a resposta está no próprio processo histórico, no episódio anômalo, instrutivo e castrador de caça às bruxas que é sintoma de uma cultura em processo de decadência, manifesta em uma terrível etapa conhecida como Idade das Trevas que ocorre em paralelo com a institucionalização do pensamento R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 49 1 científico , da aristotelização entre o auge de Copérnico e Galileu. Os episódios dramaticamente repressivos, punitivos que caracterizaram a Inquisição, ocorriam justamente após a aristotelização (racionalização) da teologia cristã, programada por Santo Alberto Magno e bem executada por São Tomas de Aquino. Cabe ressaltar que nesse mesmo período, foram consolidados a maioria dos Estados europeus modernos. Se o lado aparente da estrutura da modernidade era constituído pela ciência e seu sujeito liberal intervalar, no outro lado, o lado não visível, era construída suas bases, suas fundações. Essas foram estruturadas com o recalque, a ferro e fogo da feminilidade. Nesse momento histórico, no processo de caça às bruxas teriam sido torturadas e executadas mais de cem 2 mil mulheres. Era realizado o recalque da história e do desejo inconsciente. Isso, segundo Coelho de Sampaio, de certo modo inevitável, para ressaltar a masculinidade, o projeto. Em outras palavras a ciência e o sujeito liberal intervalar. Era necessário, concomitantemente, efetuar o recalque da feminilidade, de um lado o inconsciente e do outro, a história. Em outras palavras, o lado oculto, ou os porões da modernidade. A Inquisição, o processo de caça às bruxas, surgiu para concretizá-lo. O mundo estava sendo construído, em função do essencialmente masculino, devotado ao projeto, às conquistas, à eficiência e ã dominação. Era elidido o diálogo e a subjetividade, fazendo com que o feminino assumisse apenas a sensibilidade, o amor, a tristeza, a desesperança e a sublimação. Esqueciam os homens que nos encantos femininos teriam o repouso, o amor, o crescimento pessoal e o encontro consigo mesmo, sua plena realização. 1 - Bacon afirma que a ciência só poderá se constituir como conhecimento verdadeiro e fecundo de resultados quando for imposto à experiência sensível a disciplina do intelecto e ao intelecto a disciplina da experiência sensível. Para que tal fosse possível entendia que o procedimento a ser utilizado era o da indução. Entretanto, Bacon diferencia o significado que atribui ao seu entendimento de indução e ao que é atribuído ao entendimento por Aristóteles. Para Bacon a indução aristotélica é puramente lógica, não incidindo sobre a realidade. É apenas indução por simples enumeração dos casos particulares. Entende ainda que ele produz conclusões precárias expostas aos riscos de contraexemplos que possam vir a desmenti-las. O pensamento indutivo de Aristóteles é apenas produto da contemplação pois não existia a possibilidade de uso que qualquer tipo de medição, enquanto que o pensamento indutivo de Bacon faz-se no universo em que são disponíveis diversos mecanismos de medição. O processo indutivo baconiano é medito enquanto o processo indutivo aristotélico é apenas fruto da observação, portanto não é medido. Quem sabe devido às limitações existentes à sua época. A indução baconiana fundamenta-se num processo de escolha e eliminação sucessiva dos casos particulares, até que seja alcançada a determinação da verdadeira natureza do fenômeno. Parte dos fatos naturais aos princípios gerais e por fim aos axiomas mais gerais. Bacon entende que o processo de indução busca o estabelecimento da causa das coisas naturais a que ele denomina forma. Ele faz seu princípio e aceita a distinção aristotélica das quatro causas: material, formal, eficiente e final. Bacon, por defender o pensamento indutivo afirma que a lógica da criação científica é indutiva. Isso em nada contraria a lógica aristotélica. Bacon rejeita o aristotelismo tomista. Isso porque São Tomás de Aquino representa a união entre o aristotelismo e o cristianismo. Isso faz com que a verdade aristotélica combinada com a verdade tomista produza a verdade dedutiva pois a teologia (Tomista) é regida pela lógica dedutiva, não aceitável para Bacon. Isso faz com que seja devido a Bacon o reconhecimento do valor da ciência para a humanidade. 2 - Para maior aprofundamento uma leitura interessante é o Martelo das Feiticeiras, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinich Kramer e James Sprenger. Editora Rosa dos Ventos. Rio de Janeiro. 50 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Sobre isso, Coelho de Sampaio nos diz que: “Como o desejo é desejo de desejo, desejo de reconhecimento, a melhor forma de apequenar o desejo no homem era sufocar o desejo na mulher. Para que os homens se concentrassem no cálculo de todas as coisas do mundo nada de mais funcional poderia haver, na circunstância, do que “esfriar” as mulheres – e isso esteve sempre bem posto nos propósitos e discurso protestante, particularmente calvinista” (Coelho de Sampaio, 2000/B). O capitalismo produtivista provocou um mal estar que foi razão suficiente e necessária para o surgimento da ordem dos jesuítas. Os integrantes da ordem foram os primeiros a aceitar a ciência. Entretanto, diferente dos protestantes, os jesuítas substituíram o sujeito liberal pelo sujeito coletivo, representado por um poder simbólico, absoluto. Com isso, propuseram uma solução para a questão do sujeito da ciência, contudo, segundo Coelho de Sampaio, não conseguiram fazer uma crítica objetiva e profunda da nova realidade científica e econômica que surgia em sua frente. O marxismo teve o mérito de explicitar, ainda que não completamente, os determinantes profundos do modo de produção capitalista, próprio à modernidade. Suas características, a racionalidade e o espírito individual de iniciativa, não seriam negadas. Entretanto o fundamental para compreensão do que surgia era a abertura do lado não visível da modernidade. O lado onde o processo de acumulação de capital operava. Esse primeiro modo de produção, vinculado a modernidade, o capitalismo produtivista, para Baudrillard, capitalismo produtivista/calvinista ou apenas acumulação, prevaleceu até o início do século XX. O século XIX foi palco de fortes pressões exercidas pelos movimentos revolucionários e reformistas, que proliferaram e forçaram o capitalismo a uma resposta. Assim, o capitalismo utilizou o que Coelho de Sampaio denomina de sua reserva estratégica: o desejo recalcado das massas. O capitalismo de marqueting ou consumista já havia sido anunciado pela escola marginalista neo-clássica, surgida na Áustria, trinta anos antes do fim do século XIX, que vai localizar a fonte do dinamismo econômico ou projeto, não mais na oferta, mas na demanda ou seja, no desejo. Ainda que exaurido em suas reservas estratégicas, configura-se assim, o modo de produção próprio à modernidade. A negação do desejo inconsciente e da história está na essência, escondida, não visível, do capitalismo. Esses duas dimensões lógicas femininas, recalcadas, não foram apagadas ou desapareceram para sempre, pois elas acabam voltando. Mas como explicar o dinamismo da economia atual? Esse dinamismo não mais decorre da produção nem do processo de acumulação, mas principalmente da capacidade de manipulação do imaginário das grandes massas pelas modernas e eficientes técnicas de marqueting. O desejo inconsciente teria sido afinal domesticado e integrado à economia. Nos dias atuais, o capitalismo através do marqueting e da domesticação do inconsciente, apresenta-se na forma de capitalismo consumista/hedonista. Atualmente o capitalismo, usando de suas reservas, é a etapa em que o desejo inconsciente teria sido afinal domesticado e integrado à economia. E é isso que vemos hoje por todo o tempo e por todo os lugares. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 51 A domesticação do inconsciente em benefício da economia, é produto da Escola Marginalista que pensa a economia a partir da demanda, do desejo e por isso conduz ao consumo. A Escola Marginalista, também conhecida como neo-clássica ou austríaca, nasceu em Viena, na Áustria, local onde posteriormente surgiu a psicanálise, e posteriormente expandiu-se, tendo importantes representantes também nos Estados Unidos da América. Teria sido mera coincidência, pura decorrência ou a escola surgiu a partir do pensar dos que pensavam sobre o pensar inconsciente o que viria a se chamar de psicanálise? Mais uma vez, Freud nos alertava que: “A civilização está obedecendo as leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade de energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade”. Sigmund Freud in O mal-estar da civilzação (Domesticação do desejo inconsciente?). Crítica à modernidade Como visto, podemos entender a modernidade como sendo a conquista da ciência e da técnica por uma cultura ou como ela se apresenta, na versão anglosaxônica. A modernidade tem a conotação de ser a ideologia de todas as ideologias, que sugere a si mesma a perfeição da perfeição, e por isso tem a pretensão que a história tenha chegado a seu fim. Por isso, vemos o discurso de pós-modernidade quando se vive o auge da modernidade. Muitos outros fins também são desejados, tais como já há algum tempo, observamos a divulgação do fim de alguma coisa. Te52 mos O Fim da História e o Último Homem, Ed. Rocco; O Fim do Território (La Fin des Territoires, Paris, Fayard, 1995); O Fim da Democracia, Ed. Bertrand; O Fim do Sentido (Sens et Puissance dans les Relations Internationales, Paris, Fayard, 1994);O Fim da Ideologia; O Fim do Estado Nacional; O Fim das Fronteiras; O Fim da Soberania Nacional; O Fim da Ordem Militar (La Fin de l’Ordre Militaire, Presses des Sciences Politiques); O Fim dos Empregos, Makron Books; O Fim das Tradições; O Fim do Capitalismo (The End of Capitalism, Blackwell); O Fim dos Militantes? (La Fin des Militants?, L’Atelier); O Fim do Mundo (The End of the World, Routledge); O Fim da Natureza, Editora Nova Fronteira; O Fim do Futuro, Editorial Inquérito; Após o Fim da Arte (After the End of Art, Princeton University); O Fim da Evolução (The End of Evolution, Bantam Doubleday); O Fim da Ciência (The End of Science, Addison-Wesley); O Fim do Estado-Nação, Campus; O Fim das Certezas, Editora UNESP; O Fim do Racismo (The End of Racism); O Fim da Educação (The End fo Education, (Knopf); O Fim das culturas Nacionais, A Morte da Economia, Companhia das Letras; A Morte do Dinheiro, Bertrand Brasil; A Morte do Homem, Editora Nobel; Morte da Literatura (Death of Literature, University Press); e outros tantos. Isso requer uma crítica, de fato, uma refutação, para que seja possível, no plano teórico, filosófico e por fim prático, a realização, dentre outras tantas ações, de um pensamento e de um planejamento estratégico integral. A primeira crítica que se faz é relativa as ideologias à esquerda e à direita do paradigma anglo-saxão moderno. As ideologias, de fato, não assustam o poder que por sua vez não se sentem por elas amea- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 çados. Elas criticam o poder instituído porque o querem mais perfeito. Por isso, atuam no sentido de encobrir sua mortal fragilidade. A segunda crítica a ser feita é relativa à ciência e a técnica. Isso porque a ciência caracteriza a modernidade. Entretanto não consegue vislumbrar o que a possa suceder. As ideologias, tal como afirma Freyer, têm vínculos com a ciência. Entretanto, o que é relevante, é o fato de que o que está por trás de todos conflitos ideológicos nos últimos cento e cinqüenta anos, é a dissimulada questão do sujeito da ciência. É importante insistir no aspecto dissimulado das ideologias porque elas preservam, deixam intocadas, colocam ao abrigo de qualquer suspeita a ciência e a técnica. A humanidade vive sob forte e predominante influência da cultura anglosaxônica, caracterizada pela ciência e pela técnica. Neste início de século, sua criatividade, certamente como conseqüência de seu êxito, vai sendo substituída pelo processo de horizontalização ou seja, de sua projeção, de forma imperial, ao resto do mundo. Em termos econômicos, isso representa a passagem do capitalismo nacional de produção ao capitalismo globalizado de consumo, paralelo, mas deslocado, a um inconseqüente capitalismo financeiro internacional. Sendo a modernidade, caracterizada pela ciência e pela técnica, esta questão tem profundas conseqüências. O fato de não ter o propósito de ao menos questionar a sujeito da ciência, só pode ter a intenção de inviabilizar os caminhos que, de fato, podem levar à superação da modernidade, da ideologia que determina o futuro segundo as conveniências ou os interesses da cultura anglo-saxônica. A fragilidade a que se refere, não é da ciência ou da técnica enquanto tal, mas de seu modo dissimulado, de explicitar um futuro em que se vislumbre o homem perfeito biologicamente, ou mesmo à vida eterna. De fato, uma pretensão que não tem outro propósito senão o de tornar dispensável o advento do homem em sua plenitude e colocar a ciência e a técnica acima do ser humano. Assim, o homem passaria a ser governado pela ciência e pela técnica, o que já começa a ocorrer, e que representaria a morte da humanidade, como tal. Nesse mundo não haveria, como já, neste final de século, lugar para o pensamento original, que parece despedir-se ou ser despedido, das atividades em que todos os homem estejam envolvidos. Ambas as ideologias existentes, à direita e à esquerda da cultura anglo-saxônica, da modernidade (ideologia desta cultura), diferenciam-se apenas quanto ao sujeito da ciência. A ideologia à esquerda da modernidade, jesuítica, comunista, socialista, adota o sujeito coletivo. Sua denominação de socialismo científico lhe é apropriada. A ideologia à direita da modernidade, fascista, nazista, tradicionalista, adota o sujeito romântico, telúrico. Sua denominação como nacional socialista, é enganosa, na medida em que sua oposição à esquerda não acontece entre o nacional e o científico, mas precisamente entre o nacional particular e o comunitário universal. Sua denominação apropriada seria nacional científico. Este equívoco mostra suas raízes pela sintomática freqüência com que uma formação ideológica de direita se apresenta não como uma troca de sujeito, mas como se fora uma simples particularização de um sujeito já dado, especificamente, pelo deslocamento R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 53 do social universal, internacional, em favor do mesmo social, agora restrito ao nacional. Isso acompanhado de propostas de modernização científico-tecnológica da produção e do sistema educacional. A ideologia à esquerda da modernidade, direciona a ciência e a técnica para solucionar os problemas entendidos como de cunho social. A ideologia à direita da modernidade, direciona a ciência e a técnica ao serviço da preservação dos valores e da integridade do espírito do povo. Em ambos os casos, identifica-se uma impossibilidade porque, as duas ideologias poderão assumir um poder totalitário em seu proveito. Isso ocorre porque a lógica da ciência, subsume as lógicas da dialética, governando os seus sujeitos. Por isso as inversões propostas sempre revertem, o que acarreta a perversão dos projetos políticos que se dizem fundamentados naquelas opções, como a história do século XX o demonstrou. Assim, temos que o sentido da subordinação surge tal como logicamente deve ser: por definição, o sujeito liberal se afigura um sujeito realmente transcendente ao sistema, porém, a ele sujeitado, na medida em que só lhe é permitido operar de modo intervalar entre sistemas que se superpõem e se sucedem. Esta é uma configuração essencialmente perversa, que 3 por isso mesmo, jamais perverte . Assim, entendemos que não há saída nem à direita nem à esquerda, apenas logicamente para frente, o que significa uma saída original, própria, cultural. Por isso a necessidade imperiosa de um pensamento estratégico original. Brasil e a modernidade “Laboratório para a convivência das diferenças – de raça, de cor, de cultura e de religião -, o Brasil cada vez mais parece incapaz de diminuir suas indecentes desigualdades sociais. A economia afasta irremediavelmente o que a cultura aproxima (ainda)”. Zuenir Ventura in Jornal do Brasil, 28 de março de 1998. Desde cedo, personagens como Alexandre Gusmão, José Bonifácio, Rio Branco, Alberto Torres, Pandiá Calógeras, Gilberto Freire, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Stefen Zweig, Vilém Flusser, Darcy Ribeiro, Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, Mércio Pereira Gomes e muitos outros, que pensando o Brasil, perceberam a questão e explicitaram a incompatibilidade da formação cultural brasileira com a cultura mais poderosa, a modernidade. Não me refiro às ideologias, a esquerda e a direita, porque elas apenas fizeram convalidar a modernidade que continua exercendo seu papel. Entretanto, isso nos leva a uma questão, que entendemos essencial, e mesmo fundamental, que se faz necessário esclarecer. É a dualidade identidade nacional versus modernidade. Isso é de suma importância e fundamental para a sobrevivência da nação como tal, pois a cultura é o fundamento da unidade nacional. O entendimento da problemática brasileira, passa a ser possível a partir do real compreensão da modernidade. Como uma nação que nasce com a modernidade, fundada por Portugal, uma 3 - O sentido de perverso é aqui utilizado tal como utilizado por Coelho de Sampaio. É o sujeito que aceita a lei desde que esta seja a sua própria. Entretanto, nada há de errado nesta inversão; ela é, pelo contrário, bastante coerente na medida em que tal inversão é a exata contrapartida da mudança do ponto de vista, do social para o individual. 54 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 nação que chegou a liderar o processo europeu de modernização, pode ter o problema de se haver com a modernidade? O Brasil ocupa uma posição marginal em relação a modernidade. Como é que um país nascido na modernidade tenha sérias dificuldades para nela ingressar? Tal dificuldade é devida a um dualismo; um dualismo cultural. Existe um Brasil que se mostra parte da modernidade e outro Brasil que se recusa a ingressar na modernidade. Isso é devido à cultura brasileira, essencialmente, uma síntese das culturas existentes, e que algumas delas são síntese de outras antigas e ricas culturas, que está em fase final de consolidação. Por isso e por todas as razões faz-se necessário preservá-la para todos os propósitos. Por ser, de fato, a única cultura nova, isto a torna a única com possibilidades de cristalizar como perigo real para a cultura dominante. Faz-se perigo, justamente porque constrói as condições necessárias à superação da cultura dominante, o que, por sua vez, provoca forte reação. Por isso, é alvo de todos os tipos de ataques que visam sua desestruturação com suas decorrentes e graves conseqüências. Mas não é apenas isso. Ainda que inconscientemente, o que se está sempre na verdade evitando ou ocultando é a questão de quem deva ser o sujeito da modernização (racionalização) que, entrementes, ali está posto de maneira implícita. A modernidade, para nós, tem que ser olhada não como a questão da opção por um paradigma, mas como a questão da sua ocultação ou dissimulação. Em suma, toda esse alarido sobre a modernização brasileira, como de resto todo o discurso (ideológico) sobre a modernidade é, no fundo, um discurso acerca de qual opção de sujeito da ciência, o sujeito liberal, se intenciona deveras dissimular. A partir daí fica fácil perceber a essência do problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor, entre a formação cultural brasileira e a modernidade. Este é verdadeiramente o nosso grande conflito interno. Mas faz-se necessário aprofundar e entender melhor como se dá essa incompatibilidade e por que persiste este dilema. A consolidação da modernidade, não pela adoção do cientificismo, mas pela descoberta do sujeito que lhe seria pró4 prio, foi obra do protestantismo . Embora Portugal e Espanha tivessem participado do início da modernidade, a racionalização e a burocratização do mundo, não se mantiveram na vanguarda porque não constituíram ou consolidaram o sujeito que lhe seria apropriado, o sujeito liberal, sujeito de projeto. De fato, Portugal tinha esse sujeito. No século XV, a Espanha expulsou os Judeus. Cem anos mais tarde Portugal também os expulsou. Foram para a Polônia. Sem a cultura judaica, Portugal não conseguia evoluir e se desenvolver. Padre Antônio Vieira fez o possível para que Portugal permitisse a volta dos Judeus, o que não conseguiu. Talvez tenha identificado a necessidade de que a cultura judaica junto com a ciência, criasse as condições necessárias para que Portugal pudesse vir a se desenvolver. 4 - A igreja católica sempre teve total proximidade com a ciência. A carta encíclica “Fides et Ratio” é prova suficiente. A separação drástica luterana entre fé e razão, por suposto, não criou a ciência, mas o que seria necessário para criar uma sociedade ou cultura científica: o sujeito liberal liberado para ser sujeitado à ciência ou, simplesmente para se constituir em sujeito da ciência, como afirma Coelho de Sampaio. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 55 Existiriam alternativas? O mais interessante é que esta questão se pôs logo no início da modernidade. A cúpula da Igreja não queria discutir sujeito nenhum, porém, depois que o protestantismo colocou a sua solução, havia a necessidade de darlhe uma resposta. Então, a Igreja deixou emergir o jesuitismo latente, que formula uma contra-proposta (contra-reforma). No lugar do sujeito calvinista colocar-se-ia um sujeito coletivo, obviamente representado por um sujeito simbólico absoluto (delegado do Absoluto). A Igreja, através dos Jesuítas, em meados do século XVI, leva sua contribuição colocando o sujeito, porém sujeito coletivo. Assim, Portugal passou a ter a ciência e o sujeito coletivo. Isso porém também não resolveu. Entretanto, procurando recuperar espaço perdido para o protestantismo, a Igreja recupera pouco mais da metade do que perdera. O Protestantismo recua em vários países. Os Jesuítas passam a ser conselheiros científicos, fundam escolas e estimulam a ciência em benefício do coletivo. No processo de recuperação e de educação necessária à Igreja ou melhor ao jesuitismo, dentre as escolas fundadas está uma que teve a missão de educar a elite portuguesa e que foi denominada Colégio dos Nobres. No fundo da questão, o problema é pois quem deva ser o sujeito do sistema, ou seja, a ciência vai ser feita para quem, por quem e em proveito de quem? No paradigma anglo-saxão, todos os cientistas estão a serviço da reprodução dos sistemas. Há também uma liberdade de fato, precisamente, aquela de um sujeito holywoodiano, para permitir que os sistemas se reproduzam. Ao se assistir a uma reunião sobre, por exemplo, desenvolvimento tecnológico, 56 veremos o grupo que segue o modelo americano propor que as verbas sejam dadas aos indivíduos que apresentem o melhor projeto. Imediatamente, o grupo a esquerda contra-ataca, propondo que as verbas sejam destinadas à criação de tecnologias que venham contribuir para resolver os graves problemas sociais. É sempre a mesma coisa! Nós temos uma enorme dificuldade em aceitar aquele sujeito individualista, o sujeito liberal ou hollywoodiano. Resumindo, a proposta jesuítica é a de um sujeito coletivo que, exatamente por tal, precisa ser representado por um sujeito emblemático absoluto: é a proposta de ciência e absolutismo. É fantástica a carga que o Marquês de Pombal e os espanhóis fizeram sobre a Ordem dos Jesuítas. Pressionaram o Papa Clemente XIII, que acaba doente e morre em 1769. Clemente XIV, sucessor de Clemente XIII, foi eleito Papa com o compromisso de acabar com os Jesuítas, o que não cumpriu. Mesmo sob pressão, passou três anos adiando a decisão. Os ibéricos mais ainda o apertaram até que a Ordem foi dissolvida. Em 1773 a supressão dos Jesuítas foi decretada e Clemente XIV morre no ano seguinte. Os Jesuítas foram expulsos da França em 1764, da Espanha em 1767 e de Portugal em 1773. Catarina da Rússia então os recebeu na Polônia e chegou a ameaçar o Papa, dizendo que se insistisse em dissolver a Ordem em seus domínios, ela ordenaria ortodoxar a Polônia. A Polônia ficou católico-romana exatamente porque o Papa recuou, isto é, ele fez de conta que acabou com a Ordem. Entrementes, uma boa leva de seus integrantes continuou se refugiando na Rússia que, no caso, era uma parte da Polônia ocupada. Com que finalidade? Para ajudar numa reforma educacional, uma reforma modernizadora no sentido dos R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 Tzares. Reforma com ciência sim, mas com um sujeito coletivo representado pelo monarca absoluto. Em que escola Lenin poderia ter aprendido o que fazer?! A exata fórmula jesuítica! É o maior absurdo dizer que a Igreja era contra a ciência. Os jesuítas, desde o fundador, Santo Inácio de Loyola, foram se formar na Sorbonne. Todo jesuíta possui formação em algo de cunho acadêmico, universitário, inclusive científico. Quem leu o livro do Pietro Redondi, Galileu He5 rético verifica claramente que o problema de Galileu não é com a Igreja e, sim, com os jesuítas, e nada tem a ver com a ciência propriamente dita. Ele foi acusado formalmente do não cumprimento de sua palavra e, (no fundo, não é o que diz Redondi, mas do texto facilmente se o depreende) de querer aparecer, fazer sucesso, se tornar um mal exemplo, ser aquele que fazia ciência para ele próprio obter algum tipo de benesse. E, para os jesuítas, até hoje, a ciência deveria ser feita coletivamente e em benefício da coletividade. Ficou desde então este tipo de alternativa. O que se está chamando hoje capitalismo confucionista ou capitalismo oriental é também disso uma variante. É a ciência com sujeito coletivo representado pelo Imperador, no caso do Japão, pelo Secretário Geral do Partido Comunista Chinês no Continente, e pelo patriarca da família alargada na diáspora chinesa por todo o mundo. O que há aí de importante que precisa ser visto? A maioria das pessoas de esquerda, no Brasil, acha isso bom e realmente o é, só que optar pelo sujeito coletivo e ao mesmo tempo fazê-lo determinante, e não tributário ou intervalar, é uma solução impossível. Tudo, por uma simples razão: capitalismo apenas na cultura anglo-saxônica com sujeito liberal intervalar. Então, não se pode inverter a seta que no capitalismo anglo-saxão ou paradigmático vai do sistema para o sujeito, que faz do último sujeito tributário do primeiro. O capitalismo anglo-saxão não tem esse problema, pois o indivíduo do projeto está a serviço do sistema; já estando pervertido, não vai perverter jamais. Mas quando é proposta a solução à esquerda, subrepticiamente também se propõe inverter a seta. Pretende-se que a comunidade ou o ser-comunitário vá se servir da ciência em seu próprio benefício. Isto é a grande ilusão de todas as esquerdas. A seta que iria do sujeito coletivo para a ciência vai se inverter, o que acarretará na implantação de uma burocracia usando de uma ideologia para dominar a massa. Em última instância, é a lógica do sistema que prevalece e o exemplo evidente era a URSS. Começou-se lá com a intenção de colocar a ciência a serviço do coletivo, mas sabe-se hoje no que isto, de fato, resultou. Houve o seu desmembramento e posterior desaparecimento. Basta lembrar a expressão socialismo científico. Socialismo é o sujeito como ser coletivo e científico é o mundo objetivo, a lógica clássica posta a serviço da dialética. Precisa-se explicar mais?! O esfacelamento da Iugoslávia segue o mesmo princípio. O Japão vai pelo mesmo caminho. Ele só está resistindo um pouco mais à perversão em razão de sua grande homogeneidade cultural. Eles aprenderam a bem usar a ciência e a técnica, mas estão agora acabando com o respeito aos velhos, o empresário samurai, a estabilidade do emprego etc., Esse novo 5 - “Galileu Herético”, de Pietro Redondi. Companhia das Letras. São Paulo. 1991. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 57 modo de proceder é o que os levará à sua própria dissolução cultural. Pelo mesmo raciocínio, quem está apostando na China como a grande nação capitalista do século XXI, irá se decepcionar. Todos que se manifestam a favor do capitalismo dizem que, em essência, ele se baseia na racionalização do mundo ou então no sujeito schumpeteriano, o que, de certa forma, é repetir Descartes. A modernidade na verdade se baseia em ambos. Vamos observar uma empresa qualquer. A primeira coisa que se irá constatar é a obsessiva pré-ocupação com o cálculo da taxa de retorno do capital. Quando vemos o que é uma empresa constatamos que ela tem seu rumo definido pelo cálculo da taxa de retorno de capital. Quando pensamos em instrumentos de planejamento, dentre outros, identificamos as técnicas qualitativas de previsão. O que se busca com isso? Apenas tentar antecipar o futuro, ou criar o futuro, para reduzi-lo à um simples processo de acumulação de capital. Maior evidência não existe! Não é isso que toda empresa faz? Sozinha, entretanto, a posição dialética não é o lugar de uma solução; é apenas o lugar para uma crítica. Assim, Marx é importante para criticar o capitalismo (melhor diríamos, a modernidade), mas não para propor um sistema alternativo, baseado num sujeito coletivo. Com o esfacelamento da URSS, isto está hoje mais do que comprovado. Existe, entretanto, uma outra alternativa que é a do sujeito romântico, sujeito inconsciente, sujeito telúrico, sujeito poético, povo, ou, bem perto de nós, sujeito libidinal. A Alemanha tem uma elite bem diferente da nossa, é óbvio, que sabe bem o que é cultura e sua importância. Foi precisamente por isso que ela respondeu por antecipação ao consumismo. O fascismo 58 é uma alternativa, ou melhor, uma pseudo alternativa para a modernidade, com o sujeito romântico no lugar do sujeito liberal. Foi precisamente por isto que o fascismo apareceu tardiamente (como força social) em relação ao socialismo, vale dizer, justo quando o capitalismo começava a deixar de ser produtivista para tornar-se essencialmente consumista. Lá começou-se a sentir, antes do que em qualquer outro lugar, o capitalismo e o seu novo motor, o marqueting, como um agressor da cultura. Para Heidegger, o inimigo da Alemanha (dizia Europa) não era apenas a URSS, mas igualmente os Estados Unidos da América, velhos ri6 vais do logos heraclítico . Vê-se agora uma simetria temporal perfeita: o marxismo é uma resposta retardada ao cálculo da História, ou seja, à acumulação précalculada do capital. O fascismo é uma resposta antecipada ao consumismo, ou capitalismo de marqueting. Por isso, o comunismo não tem mais futuro, mas o mesmo não se pode ainda seguramente afirmar do fascismo! Entrementes, porque também inverte a direção da determinação ciência/sujeito, vigente no paradigma anglo-saxão, perverte, e como já se viu, bem depressa. No que se refere a questão ideológica, que caracterizou o século XX, e que de certa forma convulsionou o mundo com milhares de mortes e sofrimento para a humanidade, não é difícil comprovar que os discursos ideológicos à esquerda e à direita da modernidade, apenas convalidaram a modernidade. O discurso ideológico, tanto a direita quanto a esquerda não contestam ou criticam a modernidade. Ambos os discursos, apresentam-se como críticos e subversivos da cultura de referência, anglo-saxônica, cultura da modernidade. De fato, são dis- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 cursos pseudo-críticos que contestam apenas alguns aspectos do poder, mas na essência não contestam os fundamentos ou o núcleo do discurso da cultura da modernidade, do poder por ela exercido. As ideologias apenas contestam aspectos não essenciais, não críticos. Assim, eles acabam sendo discursos reacionários, discursos que ratificam o esquema de poder existente. São discursos ideológicos apenas à esquerda e à direita e não contra. Por via de conseqüência, o marxismo é uma teoria capitalista. Capitalismo de Estado, de Estado perfeito. Nós temos uma formação ibérica forte, mas na dimensão educacional sempre houve a preponderância do íberojesuítico. A tendência da elite brasileira, (a generalização aqui é sem dúvida um exagero) é comunitário/absolutista. O indivíduo aqui tem mesmo vergonha de ter lucro. Ele pode ficar rico, mas sempre com a consciência culpada, porque tem lá sua cabeça jesuítica, ainda que existam algumas poucas exceções. Se fraqueja com a idade, entretanto, não faz uma grande doação benemerente a uma universidade ou instituição filantrópica, como nos EUA, mas simplesmente muda (se fantasia, melhor se diria, na circunstância) para sujeito ostensivamente libidinal! E o povão, principalmente onde pesa mais a cultura africana, puxa para o lado do sujeito libidinal que faz parte de uma forma arcaica de cultura. Ou seja, trabalhar racional e disciplinadamente, sim, mas para então poder gozar mais. Trabalhar duro a semana inteira, para na sexta à noite poder tomar sossegadamente sua cerveja com os 6 - No segundo semestre do ano letivo de 1934/1935, na Universidade de Friburgo na Brisgóia, ao tratar da questão fundamental da metafísica, Heidegger assim se manifestou: “Essa Europa, estando num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América de outro. A Rússia e a América, consideradas metafisicamente, são ambas a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar e a qualquer hora e com qualquer rapidez; quando se puder “viver” simultaneamente um atentado a um Rei na França e um concerto sinfônico em Tókio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e, depois, o quê? O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a última força espiritual que [ no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tão pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se tornaram ridículas.Encontramo-nos entre tenazes. O nosso povo, estando no meio, sofre a maior pressão das tenazes, é o povo com mais vizinhos e por isso mais ameaçado, sendo assim o povo metafísico. Mas essa determinação, da qual temos toda a certeza, só poderá ser transformada em destino quando o povo criar uma ressonância em si próprio, uma possibilidade de ressonância para essa determinação, compreendendo a sua tradição de um modo criador. Tudo isso implica que este povo enquanto povo histórico se coloque a si mesmo, e com isso, a História do Ocidente fora do centro dos seus futuros acontecimentos, repondo-se assim no domínio originário dos poderes do Ser. É que, se a grande decisão sobre a Europa não deverá precisamente ser tomada por via da destruição, só poderá então ser tomada por via de um desenvolvimento de novas forças histórico-espirituais a partir do centro”. (Heidegger, 1997/A). R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 59 amigos ou mesmo fazê-lo o ano inteiro, para poder desfilar condignamente no Carnaval. Por que não se consegue modernizar o Brasil? Porque a elite puxa para o sujeito coletivo/absolutista e o povão puxa para o sujeito libidinal, e ninguém quer saber do projeto. Daí, a dificuldade de modernizar o Brasil. Não há quem não o queira, mas ninguém quer se botar no devido lugar. O único jeito de o fazer é acabar com a elite, dizem de um lado. De outro lado, se diz que com esse povinho não dá. Não se aproveita nada, é o que alguns que se julgam iluminados e nos ensinam. Alguns acreditam, incrivelmente, que o índio é preguiçoso, o negro só quer saber de magia e o português é patrimonialista. Com isso, vale dizer, com toda nossa herança histórico-cultural, nada nos é possível fazer. O atual Governo está mais ou menos seguindo esta dupla receita. Põe a classe média para dirigir táxi, vender artigos de confecção caseira e assim pela concorrência matar de fome a baiana que faz o acarajé e a cocada, e nesse quadro, vende ou transfere a economia brasileira, em bloco, para empresários monopolistas estrangeiros. Entrementes, o Brasil está sendo construído, embora nós não queiramos ver. Por isso se diz que o Brasil cresce à noite, sem ninguém ver ou atrapalhar. Boa parte de nossa elite política, empresarial e até intelectual está na contra mão da causa brasileira, investindo no fim da História, no pensamento único, para quê? Para ocultar nossa grande alternativa que está na síntese porvir. Há, pelo menos, ainda, um nível de desenvolvimento cultural, de consolidação da cultura brasileira, na qual exatamente deveríamos apostar. Ademais, para nós não há saída à esquerda e não há saída à direita; e também não adianta insistir em entrar para a modernidade. Só há uma coisa para a qual nós temos vocação: sermos o que somos, sermos originais porque temos, mais do que quaisquer outros, todos os componentes de base para tanto. Em suma, o Brasil não é um bom candidato ao luxo, ele o é deveras à originalidade. De fato, o Brasil ainda não está pronto, como acreditava Darcy Ribeiro; ele está quase. Construir uma cultura é tarefa para 500 anos ou mais, e nós já estamos bem próximos de alcançá-los! Apesar da cegueira das nossas elites políticas, militares, empresariais, eclesiásticas e intelectuais, nós haveremos de chegar lá. O Brasil apresenta uma gigantesca resistência à modernidade. Mas a fraqueza, facilmente identificada, a resistência, de certa forma inconsciente, é exatamente aquilo que precisamos para a construção de uma cultura nova. A elite insiste em conduzir o Brasil para o chamado primeiro mundo, acha que a destinação é o luxo, enquanto a nossa destinação é a originalidade, a consolidação da própria cultura brasileira, já em andamento. Isso já é visível. Muitas pessoas vêem e podem explicar com muita clareza, ainda que por uma visão de sensibilidade do que de intelectualidade como pode ser constata7 do na fala de Caetano Veloso : “O Brasil tem medo de si mesmo. O Brasil é por mais que se diga. Alguém disse que o Brasil é o país do futuro, o futuro já chegou, já foi embora, e nós não acontecemos. O Brasil não tem jeito, vai ser sempre o país do futuro. Por mais que queira desmerecer essa observação profunda, de Stefan Sweig, o fato é que o Brasil é de fato uma promessa de algo grande e original. E isso 7 - Entrevista de Caetano Veloso, à Jornalista Marília Gabriela e inserida no vídeo elaborado pela EMBRATEL, onde Coelho de Sampaio apresenta sua Antropologia cultural. 60 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 é fatal. Isso não é crença minha, não é uma esperança, não é uma hipótese, isso é a nossa realidade. Entendeu, nós somos uma imensa extensão de terra americana, onde um povo mestiço fala português. Quer dizer, qualquer coisa que funcione, será enormemente original, e isso mete medo a quem não é brasileiro mas também a quem é brasileiro. – Nós não somos um país de covardes? – Nós somos como qualquer organismo. Uma tensão entre o desejo e a capacidade de crescer e se afirmar e o terror de enfrentar a responsabilidade de faze-lo, ou seja há uma auto-sabotagem muito grande. Eu atribuo a essa tendência medrosa e autosabotadora, entendeu; que é muito freqüente nos brasileiros, por causa da própria grandeza mesma da proposta de que o Brasil é, queira ou não, diga-se o que se quiser dizer, entendeu, por causa de um dedo dessa proposta, dessa sugestão que o Brasil é há uma reação ao que no Brasil de que se afirma ...” (Coelho de Sampaio, 1993). Para sintetizar uma questão importante da modernidade, seu entendimento (lógico), é importante pensar que a modernidade pode ser adequadamente entendida quando identificada a lógica que a governa. No que diz respeito a sua superação, é importante refletir que a superação da cultura da modernidade só será possível por uma cultura mais poderosa. O Brasil, por estar em fase de consolidação de sua cultura, tem todas as condições para realizar tal superação (lógica). A cultura brasileira, em construção, em processo de plena criatividade e em consolidação, se devidamente tratada, pode trazer esperança. Pode portanto construir as condições básicas para a superação da modernidade. Ela está em processo de evolução. A cultura brasileira, faz-se síntese do jesuitismo, da cultura árabe, da cultura lusa, do índio, de variantes da cultura negra, de segmento da cultura nipônica, de segmento da cultura italiana e de outros que vagarosamente vai se construindo através de um processo de profunda miscigenação cultural. Assim vai sendo consolidada a cultura brasileira ou a cultura nova. Essa cultura nova, brasileira, acena com possibilidades que, se devidamente conduzidas, podem possibilitar a superação da modernidade. Entretanto, ela pode ter dois destinos: conduzir ao luxo ou a originalidade. A nós todos, interessa o caminho da originalidade pois é aquele que conduz, não à submissão mas superação porque é, ao mesmo tempo um passo a frente no processo de plena realização do homem. O que se pode dizer, o que se pode esperar ou, diante da modernidade, que nos abraça, o que se pode pretender do pensamento estratégico brasileiro? Não podemos esquecer que a cultura é o campo de batalha da modernidade que cada vez mais poderosa usa de todos os artifícios para destruir outras culturas e assim perpetuar-se. O cerne da questão social brasileira, que exerce forte influência sobre o pensamento brasileiro, já de há muito identificado entre tantos outros por Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Novaes, José Miguel Wisnik e Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, é como dito por Coelho de Sampaio, é: “A existência de uma certa incompatibilidade do seu processo de formação cultural com a modernidade” (Coelho de Sampaio, 2002), assim expressa por Fernando Novaes: “Ou nos modernizamos e deixamos de ser o que somos ou nos R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 61 mantemos como somos e não nos modernizamos”. Trata-se da insistência generalizada de que a modernidade, ali mencionada, consistiria para nós brasileiros, um novo e promissor paradigma. Por isso, a modernidade deve ser considerada como um paradigma. Entretanto, não como nos é transmitido. Trata-se de fato de algo comprometido não com um paradigma mas com o seu velamento. A insistência em afirmar a existência benéfica do novo paradigma, esconde o verdadeiro paradigma. É de fato algo vinculado ao paradigma propriamente mas à sua ocultação. Em suma, toda esse alarido sobre a modernização brasileira, como de resto todo o discurso (ideológico) sobre a modernidade é, no fundo, um discurso acerca de qual opção de sujeito da ciência, o sujeito liberal, se intenciona deveras dissimular. Assim, os rumos do pensamento brasileiro sofre as conseqüências dessa incompatibilidade bem como das influências da própria modernidade. Nas palavras de Flusser: “Ou o Brasil é um país em pleno desenvolvimento (vale dizer, à beira daquele abismo), ou o Brasil é país que dá origem a uma nova maneira de estar no mundo” (Flusser, 1998). A partir daí fica fácil perceber a essência do problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor, entre a formação cultural brasileira e a modernidade. Este é verdadeiramente o nosso grande conflito interno. Esse entendimento é crucial para o entendimento da dificuldades ou da questão central que envolve o pensamento brasileiro bem como dos rumos a tomar. O Brasil foi achado e foi iniciado na própria modernidade, que desde cedo, ainda 62 que não tivesse formado seu mercado interno, possuiu expressiva agro-indústria exportadora. Esses fatos não tornam trivial o entendimento de tal incompatibilidade. Sabemos que o foco da discussão sobre a modernidade é sobre o sujeito da ciência, com que estamos todos de acordo. Cada qual com suas variantes: a direita, desde que esteja ao serviço do sujeito romântico; a esquerda para atender ao sujeito coletivo, especialmente desde que atenda seu representante absoluto; os nacionalistas, na condição de que venha para preservar o patrimônio físico e os internacionalistas para os alienarem; os positivistas também. Logo, a referida incompatibilidade não é nem poderia ser com a própria modernidade mas contra o sujeito da ciência que a governa. Isso ocorre devido a dois aspectos fundamentais: o primeiro, é a opção preferencial da grande massa pelo sujeito libidinal, em função da forte herança cultural africana; o segundo é a opção preferencial de todos os que exercem quaisquer posição de ascendência social, política ou econômica, denominada por elites, pelo sujeito absoluto enquanto representação do sujeito coletivo em função da forte herança jesuítica sobre o sistema educacional brasileiro. Isso nos mostra a existência de um paradoxo que não está onde muitos pensam estar, mas em não estar em parte alguma. Isso porque não se trata de um problema de lugar, seja um lugar no mundo moderno, ou a tão falada inserção num mundo dito globalizado com suas muitas interpretações, mas de decisão pragmática pelo curto prazo, por uma modernidade ou pela escolha e determinação de seguirmos nosso próprio caminho. Caminho este para o qual estamos vocacionados. Estamos, há R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 muito, vivendo um impasse: ou fazemos nossa própria história ou os outros a farão para nós. Cabe lembrar que a consolidação de uma cultura se faz em séculos de sofrimentos, injustiças, violências e um sem número de tragédias. No caso do Brasil, como bem nos lembra Coelho de Sampaio, já foram muito bem pagos. Os cristãos-novos e judaizantes perseguidos, ora pela fé oficial, ora pela inveja; os índios, desterrados, caçados, escravizados e dizimados; os negros, escravizados e submetidos à indignidade; os mamelucos, desbravando o interior no processo de alargamento do espaço territorial; os mulatos, cafuzos e caboclos perdendo suas almas para legálas à formação da alma brasileira; multidões percebendo salários vis por toda a vida; crianças desamparadas e idosos desvalidos por todas as grandes cidades, sem esquecer do saque com aparência de legalizado a que o país tem sido submetido (Coelho de Sampaio, 2002). E as conseqüências de um esforço insano de inserção numa globalização que se mostra econômica mas que é cultural e etnocida? Certamente a apresentação de um balanço final, seria terrível e mesmo aterrorizador. Quanto o país já não perdeu? Quanto já não regrediu? Quando representa o sofrimento, a perda de esperança, de auto-estima, de amor-próprio e de um futuro melhor para as gerações que surgem? O único “benefício” é o de perdermos também o século XXI, de ficarmos todos ou quase todos com a cabeça cheia ainda que mal feita. Cheia de referências descabidas, impropriedades, de equívocos, de repetição sistematizada do mesmo e único tipo de pensamento que só nos inibe a evolução. Será este, o verdadeiro custo Brasil, como afirma Coelho de Sampaio. Já não temos dúvida que a modernidade não se reduz a um modo de produção. Por assim entendermos e aceitarmos fomos absorvidos e envolvidos pela era do pensamento único. Não há solução nem à esquerda nem à direita. As conhecidas ideologias falharam todas e foram responsáveis por milhares de mortes e sofrimento durante todo o século XX. Isso porque pretenderam alcançar o capitalismo perfeito pela simples troca do sujeito da ciência. Esta, continua absoluta, impensada. Coelho de Sampaio nos alerta que: “A modernidade é antes de tudo uma cultura em cujo âmago a ciência com o seu inesgotável poder de cálculo de todas as coisas deste e d’outros mundos, levado à últimas conseqüências. Se insistirmos em abdicar de pensá-la, deixando-a à vontade para pensar-nos, como contemporaneamente acontece por toda a parte – em todas as universidades, em todas as logias -, é porque não nos interessa mesmo a salvação, qualquer que esta possa ser” (Coelho de Sampaio, 2002). O século XX foi um século perdido. As ideologias, com todo o sofrimento que causaram à humanidade, apenas convalidaram a modernidade por sequer aproximarem-se do sujeito da ciência. Urge um profunda crítica da ciência para possibilitar a crítica da modernidade. A crítica da ciência deve respeitar seus métodos e resultados dirigindo-se à sua significação e sobretudo, às suas ardilosas promessas. Não se pode esperar que tal crítica ocorra naturalmente pois como poderia estar a ciência disposta à uma profunda crítica da modernidade se é ela própria seu fundamento. Apenas uma cultura em condições de superar a modernidade teria as credenciais R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 63 para efetuar tal crítica. Isso porque possuiria condições de superá-la e portanto de criticá-la sem por ela se deixar submeter. Talvez ainda continuamos com os mesmos vícios, dependência ou quem sabe síndrome de que não somos competentes. Aliás, é o que querem que nós acreditemos. Vejamos: o governo atual quer criar um grupo de notáveis, “uma assessoria de alto nível para, em contato com a realidade, identificar os rumos estratégicos do país enquanto produtor de riquezas a serem ofertadas no mercado global”. “Será um staff de apoio exclusivo do presidente da República, um laboratório de idéias para o desenvolvimento do país e para direcionar a inserção do Brasil no mundo”. Para viabilizar essa atividade, dentre outros, pretende utilizar quadros da Escola Superior de Guerra. Já no século XX e ainda continuamos tal como no século XVIII, ingênuos, dependentes de pensamento ou direção externa. O pior é que isso é uma linha de ação do governo federal. Todos sabemos que “ser produtor de riquezas a serem ofertadas no mercado global” é atributo econômico; logo é meio e não destino. A identificação de rumos estratégicos pressupõe um norte, uma direção, um caminho para onde todos unidos, queremos ir como nação. Nessa linha, todo o suor, sangue e lágrimas do povo brasileiro se fará em benefício da economia externa. Logo, o Brasil continuará sendo uma economia dependente e o povo num proletariado externo, sendo condenando a perpetuação do subdesenvolvimento e do pensamento dependente. Realmente é fundamental a existência de um grupo destinado a pensar o Brasil e traçar os rumos da originalidade. Contribuição à discussão das bases fundamentais à um pensamento estratégico original 64 Vive o mundo, neste início de século XXI, um processo contundente e determinante, em que se constrói a uniformização do pensamento, a subordinação de culturas, a padronização dos modos de ser-com-o-outro, de ser-no-mundo, de serfrente-ao-absoluto, que tudo iguala. Por isso urge dar voz e vez a diferença. Diferença pela criatividade e pela contestação e pela força de uma proposta de um novo e profundo modo original de pensar, logo de ser, genuinamente brasileiro. Triste porém esperançosa a realidade brasileira. A dualidade a que estamos submetidos, um pé na modernidade e outro na originalidade nos trás sofrimento. Porém não nos coloca definitivamente numa condição que nos tira a condição de continuar seguindo nosso destino manifesto de sermos quem irá superar a modernidade. Urge que nos conheçamos e nos compreendamos melhor. As ideologias que abraçamos não nos trouxeram esperança, apenas sofrimento e desesperança. Todas elas visavam apenas a substituir o sujeito liberal da ciência, pelo sujeito coletivo ou pelo sujeito romântico ou quantos sujeitos surgissem. Todas pretendiam alcançar o capitalismo perfeito numa ideologia perfeita que sob certo aspecto, repetiram a “caça às bruxas”, desta vez com muito mais mortes, sofrimento e violência. Como vimos anteriormente, uma concepção da história da cultura como autodesvelamento do ser lógico do homem, é o bastante para re-historicizar a modernidade e mostrar o horizonte de sua possível superação. Observando a história do Brasil, podemos perceber o que o faz marginal é também o que o faz resistir à modernidade. O Brasil se caracteriza pela confluência de inúmeras e bem diferentes culturas, que R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 se por um lado, dificulta sua modernização, por outro lado, vem se constituindo na base necessária à estruturação de uma cultura realmente nova e única. Por isso o Brasil possui duas destinações possíveis: o luxo ou a originalidade. Alertar para os chamados novos paradigmas, em especial a Globalização que é essencialmente cultural ainda que se queira ver como econômica, que torna-se instrumento de interferência cultural; As ideologias, por não criticarem o devido, não possibilitam qualquer esperança. O século XX foi morto pela impotência e a traição das ideologias. Portanto, o afastamento de qualquer ideologia é princípio a ser seguido, mesmo perseguido. Atentar ao alerta do povão, íntimo defensor da cultura e reagir ao canto da sereia, na forma de convite ao luxo e mergulhar de coração e mente aberta na originalidade brasileira; Entendo que o Brasil tem todas as condições para se constituir, no único e real perigo para a cultura dominante. Por isso, é fundamental que seja desenvolvido para o Brasil uma estratégia cultural para sobreviver até a chegada do momento adequado à superação da modernidade. É chegada a hora de decidirmos seguir nosso próprio caminho, de construir nosso futuro, de fazermos nossa história, de rejeitarmos os presentes de grego oferecidos pela modernidade e seguirmos unidos pela originalidade que faz parte da genialidade brasileira. Assim sendo, entendo que faz-se necessário novas bases para a formulação do pensamento brasileiro. Para tanto, podemos sugerir: Difusão do processo de formação cultural e história da cultura brasileira explicitando o papel nela exercido por todos que contribuíram para formá-la, os negros, índios, caboclos, mamelucos e brancos; Perceber a artimanha da modernidade, que finge ser sua própria posteridade apelidando-se, avant la lettre, de pósmodernidade; Abraçar por todas as razões e com todos os meios, a ciência. Entretanto, libertando-a de qualquer sujeito para que fique sempre a serviço do ser humano, por quem foi criada e para quem deve contribuir. Em face ao que resta da modernidade, e por isso, uma fase difícil e perigosa a superar, urge formular uma estratégia de sobrevivência para que tenhamos condições de nos encontrar com nossa destinação. É uma fase em que o fracasso significará a morte, por isso é necessário sobreviver a qualquer custo. Apenas preservando a cultura e investindo em ciência, poderemos optar pela originalidade e assim podermos escrever nossa própria história e portanto inaugurarmos uma profíqüa etapa no processo evolutivo da humanidade. Abstract The author analyses modernity,its incompatibility with brazilian cultural construction and shows the basis for proposals to the formulation of an original strategic brazilian thinking. Keywords: Modernity, Brazilian cultural Making, Strategic Thinking, Ideological Issues. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 65 Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SAMPAIO, L. S. C. de. Crítica da modernidade In: Filosofia da cultura. Rio de Janeiro, 1999. ————. Filosofia da cultura. Agora da Ilha, 2001. ————.O futuro da Psicanálise. Palestra realizada na série de eventos “O Futuro da psicanálise”, promovida pela UERJ, FINEP e estudos transitivos do contemporâneo. 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Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.41-66, jan/dez. 2003 O Brasil e a Área de Livre Comércio das Américas Manuel Cambeses Júnior Coronel-Aviador da Reserva da Força Aérea; Conferencista Especial e membrocorrespondente do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra. Resumo São discutidas as possíveis conseqüências adversas da eventual participação do Brasil como integrante da Área de Livre Comércio das Américas. Palavras-chave: ALCA, Área de Livre Comércio das Américas, Economia regional, Brasil. A participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), a partir de 2005, terá efeitos decisivos e negativos sobre a possibilidade de construir uma sociedade, uma economia e um Estado mais justos, prósperos e democráticos, no Brasil. O nosso país não é, simplesmente, mais um entre os 35 Estados da Américas. O Brasil, os Estados Unidos e a China são os únicos três países que se encontram na relação dos dez países de território mais extensos, maior população e de PIB mais significativo no mundo. Além disso, no Brasil não há situação grave de conflito étnico ou religioso e existe um só idioma. Por outro lado, o Brasil se caracteriza por extraordinárias disparidades de renda, riqueza, acesso à tecnologia cultura e poder político. E, também, por uma crônica e crescente vulnerabilidade externa, não só econômica, mas também política, militar e ideológica. Assim, o Brasil reúne os requisitos potenciais para se situar entre os países mais avançados economicamente, mais respeitados politicamente, mais seguros dentro de suas fronteiras e mais democráticos. Porém, somente conseguirá obter êxito, no concerto das nações, se as suas elites políticas, econômicas e culturais forem capazes de enfrentar, com firmeza, os desafios das disparidades e vulnerabilidades, mobilizando democraticamente a população. Essas tarefas são inadiáveis e urgentes, pois as políticas econômicas, sociais e de poder, de cunho neoliberal, agravaram as disparidades internas, acentuaram a vulnerabilidade externa, esgarçaram o tecido social, debilitam o Estado, desnacionalizaram a economia e enfraqueceram a democracia. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.67-69, jan/dez. 2003 67 De outro lado, o cenário internacional se caracteriza pela concentração de poder econômico e militar no centro do sistema, pela expansão da exclusão social, da instabilidade política e dos conflitos armados na periferia e, finalmente, pela emergência de um mundo multipolar, onde os Estados Unidos terão de enfrentar a influência crescente da União Européia e da China, e, em menor escala, do Japão, da Índia e da Rússia. A ALCA não é um mero projeto econômico e comercial dos Estados Unidos. Ela é parte essencial de sua estratégia global para defender os interesses norte-americanos econômicos e políticos – neste mundo multipolar e conflituoso. A ALCA tem como objetivo incorporar a economia dos países latino-americanos à economia americana, através da eliminação gradual – porém definitiva, formal e legal – ao comércio de bens e serviços, à movimentação de capitais e às atividades das megaempresas americanas, através da aceitação de regras mais de proteção aos detentores de patentes e direitos autorais. Na prática, se consolidariam, por tratado, os atuais programas econômicos neoliberais e os Estados renunciariam à sua capacidade e ao seu direito de exercer, com eficácia, suas políticas comercial, industrial e tecnológica, para promover o desenvolvimento. Na esfera político-militar, a ALCA e a Iniciativa das Américas tem como objetivo desarmar a região, assegurar a sua presença militar direta e assegurar o alinhamento latino-americano com as iniciativas e posições políticas americanas e confrontos com os outros pólos de poder com outros pólos de poder com os países renegados da periferia. A América Latina e o Brasil passarão, com o advento, com o advento da ALCA, a serem apêndices subordinados aos Estados Unidos 68 da América, renunciando a toda expectativa de uma participação mais ativa no sistema internacional em benefício da sociedade mundial. O Mercosul, nesse quadro, praticamente desaparecerá em relação aos Estados Unidos e ao Canadá, os dois grandes países desenvolvidos do Hemisfério Ocidental e integrantes do NAFTA. O Mercosul, apesar de todos os esforços retóricos para aprofundá-lo, através de políticas comuns, ou de ampliá-lo geograficamente, com a inserção de países como Chile, a Bolívia e a Venezuela, é ainda essencialmente, uma área de livre comércio entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai e, uma união, aduaneira cujo instrumento central é a Tarifa Externa Comum (TEC) entre esses quatro países em relação a todos os demais. Com a efetivação da ALCA e a eliminação gradual, entre dez e quinze anos, a partir de 2005, das tarifas e medidas nãotarifárias incidentes sobre o comércio das Américas, a TEC deixará de existir, a tarifa passará a ser zero para os produtos provenientes dos Estados Unidos e Canadá, países detentores de maior pujança industrial e capital de giro. Assim, as mega-empresas norte-americanas estarão em pé de igualdade com as empresas brasileiras nos mercados do Mercosul, inclusive no Brasil. O Mercosul, como área de livre comércio, se dissolverá na ALCA, e, como união aduaneira, não existirá a não ser países extra-ALCA. Essa situação alimentará fortemente, as pressões para um acordo de livre comércio com a União Européia. Celebrado este acordo, na prática, o Mercosul terá desaparecido de todo, tendo em vista a pequena importância relativa do comércio do Mercosul com a África e a Ásia. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.67-69, jan/dez. 2003 De outro lado, a estratégia americana de construção acelerada da ALCA minou o Mercosul (e a política brasileira) ao atrair o Chile, a Argentina e o Uruguai para negociarem acordos bilaterais. A Argentina, através de seu ex-Ministro Domingo Cavallo, não só “revogou” o Mercosul para o setor de bens de capital como expressou seu desejo de transforma-lo em um esquema mais avançado de integração: uma zona de livre comércio. Com a ativação da ALCA, as repercussões sobre a economia brasileira serão contundentes. É correto que algumas empresas e alguns setores exportadores brasileiros se beneficiariam com o melhor acesso ao mercado norte-americano. Porém, o nível médio de eficiência, da competitividade (em termos de dimensão, de capacidade organizacional, de acesso a financiamento, de dinamismo tecnológico) de cada setor da economia americana é bem superior ao correspondente nível brasileiro. O resultado será uma maior expansão das exportações americanas para todos os Estados do Hemisfério (inclusive para o Brasil) do que das exportações brasileiras para o Hemisfério (inclusive para os Estados Unidos). O resultado para a balança comercial brasileira – e para o fortalecimento de novas empresas – será grave e muito negativo. De outro lado, em uma área de livre comércio, os investimentos tendem a se concentrar na região mais dinâmica do conjunto, em termos de mercado, infra-estrutura, dinamismo tecnológico, e qualificação de mão-deobra, como ocorrerá, indubitavelmente, no caso da ALCA, com os Estados Unidos. Assim, novos investimentos tenderão a se instalar nos EUA para abastecer o principal mercado e exportar para os demais países e, o mais grave, antigos investimentos estrangeiros podem migrar para o território norte-americano, pela mesma razão. Diante deste cenário prospectivo nada promissor, podemos inferir que a açodada ativação da Área de Livre Comércio das Américas, a partir de 2005, poderá acarretar sérios transtornos à nossa economia e carcomer as bases em que se sustenta o Mercosul, colocando todo o hemisfério à mercê do usufruto da superpotência hegemônica do Norte. Abstract The author discusses possible adverse consequences pertaining to Brasil’s eventual joinning to FTAA Key words: FTAA, Free Trade America Area, Regional economy, Brazil. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.67-69, jan/dez. 2003 69 70 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 Bioética e Sociedade Paulo César Milani Guimarães Professor de Filosofia e membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra. Este artigo reproduz conferência do autor na Faculdade Eclesiástica João Paulo II, no Rio de Janeiro, a 24 de novembro de 2003. Resumo O artigo procura demonstrar a importância da interpelação ética face aos megas projetos contemporâneos considerados, sem exceção, invasivos, expropriadores e extravagantes (como o PGH-projeto genoma humano-ou o Manhattan) voltados todos, exclusivamente, para objetivos estratégicos ou econômicos. Ao discorrer sobre o assunto, o autor discute a própria possibilidade da reflexão ética no quadro cultural contemporâneo e traça considerações sobre o agir moral diante dos projetos e práticas ligados à biologia molecular. Palavras-chave: Ética, Transformações, Tecnologia, Ideologia, PGH (Projeto Genoma Humano). 1 - Introdução Os significativos avanços no campo da engenharia genética - ou bioengenharia – que se entende como a capacidade de intervenção humana deliberada nos processos de síntese vital ou na linguagem genética, colocaram a bioética no centro das preocupações hodiernas. Naturalmente que a biotecnologia de há muito age, associando, degradando ou sintetizando componentes orgânicos, contudo representa algo muito diferente – e potencial de riscos muito menor – do que as biotecnologias engenheiradas, quer dizer, aquelas que trabalham com genes, ou seja, as que manipulam as moléculas da vida. Toda gente sabe que a vida inicia-se há 2 bilhões de anos, neste planeta com cerca de 4,5 bilhões, contido num cosmo de aproximadamente 10 a 15 bilhões de anos. E toda gente sabe que o mecanismo de seleção natural, atuando ao longo desses 2 bilhões de anos, funcionou de modo semelhante ao que agora se pretende fazer (com a transgenia), inaugurando na História a era da seleção não natural das espécies, que alguns autores denominam (esse conjunto de experiências) como o 7º dia da criação, ou seja o período da reforma da Criação pelo homem, visando objetivos práticos de ordem econômica, social ou estratégica. É recente entre nós a discussão pública sobre soja transgênica e parece evidente a preocupação de muitos especialistas quanto ao impacto que pode representar a introdução no ambiente de milhões e bilhões de indivíduos geneticamente manipulados que, no caso, interferirão também na cadeia alimentar, de reconhecido potencial propagador. A cautela justifica-se porque são experiências sem precedentes e sem possibilidade de controle de seus efeitos, que serão projetados no tempo e no es1 paço. Hans Jonas sugere, neste tipo de questão, que se convém guiar por uma 1 - “The Imperative of responsibility…”, Chicago Univ. Press, 1984, pág.31 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 71 ética de preservação e prevenção, mais do que por uma visão prospectiva de progresso e perfeição, derivada da profecia da felicidade. 2 - As bases do Mundo Moderno Costuma dizer-se que o pensamento moderno, e por conseqüência o pós-moderno de hoje, deriva de três grandes correntes da filosofia: o racionalismo cartesiano, o empirismo inglês e o idealismo alemão. O principal representante do primeiro é, evidentemente, Descartes(1596-1650), mas inclui, sem dúvida, Spinoza, Malebranche e Leibniz – que morreu em 1716. O segundo está representado por Bacon (1561-1626), mas inclui Locke, Berkeley e Hume – que morreu em 1776. O terceiro inclui figuras como Kant (17241804), Fichte, Hegel e Schelling – que morre em 1854. São três séculos em que ocorre a preparação de tudo que viria depois, numa espécie de movimento das idéias, num mesmo corte epistemológico e segundo inspirações semelhantes. Com Descartes, a filosofia abandona a metafísica, que é a via do ser, e se encaminha para a gnosiologia – que é a via do conhecimento – e desemboca na linguagem e nos significados (via fenomenológica, hermenêutica, semântica), com importantes conseqüências para a sociedade e para a pessoa. E, Descartes, sem favor, será o centro dos debates da época e tudo parece girar em função de seu pensamento, motivo até de indagações contemporâneas. Para os fins desta exposição, convém fixar que todo esse extraordinário movimento de idéias não incluía nenhuma preocupação metafísica, antes pelo contrário, bem como pretendia substituir a lógica formal, dedutiva e silogística, da escolástica aristotélica, por uma nova lógica (“Novum Organum”,de Francis Bacon), fundada na observação e na experiência, cuja preocupação principal era a purificação da consciência daquilo que chamava de “ídolos” – pré-conceitos, estereótipos, etc., o que incluía as afirmações do passado – que dificultavam o espírito na descoberta da “verdade”.Tratava-se de um outro modo de conhecer, ordenado a novas certezas, que excluía de início qualquer dúvida metafísica e se limitava ao campo do empírico. Demais, a preocupação de instrumentalizar a vida intelectual, de pô-la a serviço de resultados, de tudo pensar “sub specie temporis”, terá enorme influência na cultura do Ocidente que, face às novas preocupações do pensamento, via recuar para segundo plano o que fora até então o fundamento, quer da vida social quer das suas 2 doutrinas éticas . Nenhuma civilização sobrevive sem um fundamento universal que a motive do ponto de vista das idéias e dos ideais e a oriente do ponto de vista ético. O Ocidente começou a perder, não a universalidade do Cristianismo, mas a sua influência, e tentou sucedâneos, ora no 2 - Menos se falará de um gênio extraordinário como Pascal e muito se dirá do não menos genial Descartes, assim como no caso de Kierkegaard em relação a Hegel. 72 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 3 Iluminismo ou Enciclopedismo , ora o sistema de Hegel que seria estuário e encruzilhada de toda filosofia anterior, então chamada de “pré-história da filosofia”, sistema importantíssimo que leva Ludwig Feuerbach a dizer que se trata não de um capítulo da História da Filosofia, mas de História sem adjetivos, porque se trata de ela própria tomando consciência de si mesma, na descoberta de que a razão é história e a História, racional, que o Espírito é o tempo, a cronologia é lógica, tudo se explica no tempo e só em função do tempo pode ser entendido e compreendido – ou seja, afirma a historicidade da condição humana, característica do hegelianismo e, depois, do marxismo. Teria realizado após milhares de anos, o sonho da razão: a apreensão pelo pensamento do homem do real em sua totalidade, ou da totalidade do real. Seria o desfecho da filosofia ocidental, inaugurando a era da dialética, da qual Hegel foi o sistematizador. Tudo isso terá importantes conseqüências na História do Ocidente e do mundo – que será outro depois das transformações ocorridas nesse patamar, entre os séculos XVII e XX, nos quais Sartre identifica três épocas de criação filosófica, com o descobrimento global da razão analítica e com a dialética. Curioso que vão os estudiosos construir critérios para afirmar a importância de um sistema ou pensamento, e acabarão por premiar Hegel e Marx, porque a “importância” teria que ser proporcional à universalidade e à influência, e acabam por concluir que Máo-Tsé-Tung podia ser hegeliano e marxista sem deixar de ser chinês – prova de que os sistemas dialéticos de Hegel e Marx seriam a expressão da própria razão humana e não apenas de uma razão grega, francesa ou alemã -, enquanto nenhum de nós poderia ser confucionista ou taoísta, ou zoroastrista ou mesmo maometano, a não ser por anacronismo, extravagância ou morbidez. E recusam-se a identificar o mais universal, o mais influente e o mais completo de todos os referenciais: o Cristianismo. Toda essa história é no fundo a história da razão instrumentalizada pela vontade do homem que agora se entende emanci4 pado e, assim, não reconhece mais limites para sua ação e iniciativa. Nenhuma questão lhe será vedada, nenhum território é sagrado, nada lhe é proibido, exceto por força de lei positiva, que mais não é, segundo fórmula consagrada da Declaração dos Direitos do Homem e do Cida5 dão , da Revolução Francesa, que a expressão política da “vontade geral”. E esta mais não é do que a manifestação vitoriosa da maioria, entenda-se de maiorias eventuais em casas legislativas, suprimida qualquer consideração acerca de bens e valores indisponíveis. 3 - Basta ler o Discurso Preliminar de D’Alembert, para se verificar a importância de Descartes e da confluência do cartesianismo e do empirismo inglês – “Discours Préliminaire”, parte inicial do Encyclopédie ou Dicionaire Raisonné dês Sciences, dês Arts e dês Metiers ( Enciclopédia ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e dos Ofícios), elaborado por D’Alembert e Diderot, publicado em 1751. 4 - A humanidade teria alcançado a maioridade, segundo Emmanuel Kant 5 - Este documento que tornou-se um clássico para as democracias modernas, foi aprovado no dia 26 de agosto de 1789, pela Assembléia Constituinte, no contexto inicial da Revolução Francesa. Seus princípios iluministas tinham como base a liberdade e igualdade perante a lei, a defesa inalienável à propriedade privada e o direito de resistência à opressão. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 73 O Direito natural pertencia à ordem das coisas do passado e não haveria mais limites de qualquer espécie... Era realmente a maturidade do homem que acolhia ingenuamente a denúncia de que, ao contrário da crença generalizada, fora ele, homem, que fizera Deus à sua imagem e semelhança, cujo contrário vinha sendo a base da construção mais alienante da História: a religião. Homem e sociedade eram agora não apenas agnósticos, mas ateus militantes. O ateísmo postulatório da vontade era e é uma tremenda força a impulsionar o homem para um destino incerto do qual se supõe, equivocadamente, senhor. Esse tremendo dinamismo vem do fato de se ignorar que a liberdade do homem é uma liberdade para realização de um fim, “tensa no sentido da plena realização de nós mesmos”, ou seja, que implica um projeto que completa o homem, pois que o homem, ao contrário de tudo mais que o serve diretamente no ambiente natural, é obra parcial da natureza, incompleta. A continuidade e complementação da obra deixada incompleta pela natureza são tarefas de sua livre iniciativa, expressões possíveis de sua liberdade. A liberdade é, assim, uma função antropológica e ontológica, além de ética e jurídica. “Foi dada ao homem para que possa realizar-se a si mesmo, o próprio ser; para que leve ao cumprimento pleno o que a natureza apenas iniciou ou esboçou nele. Neste ponto Sartre enxergou bem: A liberdade permite ao homem ser o artífice de si 6 mesmo” ( mas não o seu Criador). A liberdade aberta, para qualquer fim, põe em cena esse grande agente empreendedor, que nada mais pode deter: o homem contemporâneo. 3 - As transformações: a tecnologia e sua razão ideológica As transformações modernas configuram um mundo inteiramente diferente do passado. Agora as energias humanas e a inteligência se orientam para a solução de problemas práticos. Voltam-se para o mercado, e um fantástico entusiasmo, que vem do lucro (agora sem limite não há mais lei de usura, nem as idéias de ganho lícito, de salário justo ou de bem comum, consideradas idéias “daquele passado”) vai levar a um dinamismo sem precedentes que tem algumas conseqüências, talvez a principal delas a liberação dos meios dos fins, coração da revolução moderna. Para essa liberação era necessário que houvesse excesso – os meios devem estar em excesso dos fins – e é esse excesso que infundirá ao novo mundo a sensação inédita de liberdade, a noção de poder, como uma espécie de contínua transgressão que permite tudo expandir e tudo recomeçar. Enquanto os suprimentos de madeira para combustão permaneceram estáveis, nenhum excesso era possível. O acesso a grandes fontes de energia levou à época dos meios excessivos, meios liberados dos fins e da necessidade imperativa de alcançá-los, quer dizer, à formulação de uma ordem social inteiramente nova, base do futuro negócio total. Essa mudança significou novas formas da sociedade – derivadas da dissolução ou atenuação dos grupos naturais, dentre eles a família e toda sorte de grupos subsidiários e organizações comunitárias – o que levou à atomização social (sociedades de indivíduos), à fragmentação da existência dos indivíduos, segundo processos que 6 - Battista Mondin 74 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 dispõem que cada um atua separadamente, como perito de uma parte, sem consciência dos efeitos no todo, num mundo onde não se fala mais nos direitos dos nãosujeitos da ação e no qual o sentido da ação está sempre no futuro, em estado de “ainda não”. Naturalmente que a razão ideológica da sociedade tecnológica é a busca de melhoria, pela substituição de uma ordem de incertezas por outra ordenada, sensatamente organizada em substituição às condições imprevisíveis da natureza. Contudo, isso pode ser verdadeiro em relação a uma parte, ou partes de um todo. Eis que o processo científico e tecnológico cuida sempre de partes, porque emprega uma estratégia de focalização “de perto”, única pela qual o problema pode se tornar tarefa, após ter sido retirado de suas múltiplas conexões, que se tornam, assim, questão de fundo. Um especialista em neurologia cuida de problemas de circulação cerebral; os efeitos negativos da medicação sobre o aparelho digestivo e sobre os rins são descritos como efeitos colaterais. É assim que as chamadas “ordens localizadas” produzidas por especialistas ou peritos são expropriações do equilíbrio do todo, uma espécie de melhoria restrita, que pode ou não beneficiar o todo, mas que produz necessariamente efeitos colaterais no que se refere ao equilíbrio geral. A única totalidade reconhecível pela tecnologia - que ela produz e torna invulnerável – é a totalidade da própria tecnologia, ela tomada como um sistema fechado que considera corpo estranho tudo aquilo que não seja conforme sua natureza. Convém observar que a solução de um problema criado pela tecnologia só tem solução por mais tecnologia, e nenhum problema material contemporâneo (e talvez até espiritual) pode ser obviado fora da tecnologia atualizada, porque esse esquema também ex- clui o regresso, de modo que a tecnologia atual expulsa toda outra semelhante do passado. Assim, também as pessoas de hoje, ou os indivíduos como agora se prefere dizer, são objetos tecnológicos e ganham animação pela tecnologia, eis que foram analisados e fragmentados e depois re-arranjados (processo de sintetização) para se tornarem bons atores da nova ópera, segundo os ditames necessários da divisão do conhecimento especializado. Aqui todos se lembrarão do panorama social asiático dos dias atuais, onde os efeitos da mudança trans-tecnológica produziu resultados mais nítidos do que em qualquer outra parte. 4 - O sacrifício do “eu moral” Costuma-se dizer que o eu moral é a maior vítima da tecnologia, porque não pode sobreviver à fragmentação no âmbito sócio-técnico e a conseqüente fragmentação da personalidade e, ainda, porque não encontra lugar num mundo regido pelo binômio “anseio-gratificação rápida”. Os problemas são bastante conhecidos, desde a substituição dos princípios éticos por padrões de eficiência e responsabilidade moral por procedimento e rotinas técnicas, até o fato de não haver confrontação com o Outro, desaparecendo a possibilidade de reação e reciprocidade. É árduo trabalhar moralmente por um Outro que não é visto, por meio de ações fragmentadas cujos efeitos, de conjunto, estão diferidos no tempo e no espaço. O sujeito desconhece de si e do Outro a noção de “pessoa total”. Ele é apenas o portador momentâneo de uma das muitas “tarefas” e toda ação está orientada pela tarefa e desconhece qualquer ponto de orientação fora da relação “tarefa-agente que R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 75 a empreende”. Como o Outro não é alcançável, desaparece toda possibilidade de compaixão e são suprimidas, por incompreensíveis, as paixões não-racionais e não utilitárias. A moralidade que herdamos – a única disponível – é uma moralidade que requer proximidade, relação, a vista do Outro (reciprocidade), e, assim, é incompetente para funcionar numa sociedade em que toda ação importante está à distância, e agente e paciente ignoram-se metafisicamente. 7 Hans Jonas ensina que “o universo ético é composto de contemporâneos e vizinhos”, que, evidentemente, interagem. Ora, a maioria das ações que contêm riscos são unidirecionais; não são intercâmbios. Não podem ser limitadas ou contidas no domínio dos contratos. Não existe o Outro como tal e nunca antes ele foi tão “pobre, vulnerável e sem 8 poder” : mesmo os nascituros – que são “atuais e presentes” - não têm como reclamar seus direitos, não têm voz própria e, assim, a reciprocidade está fora do alcance deles. Quanto mais o direito à vida de muitos, pobres e distantes, num planeta a caminho de vários impasses ecológicos. Sem reciprocidade, sem o Outro, o “eu moral” entra em colapso. No que concerne ao estudo da conveniência de dada ação e da avaliação de seus efeitos de médio/longo prazo, está patente que ninguém vai deter-se para examinar esses aspectos do empreendimento tecnológico, ainda porque não há nenhum limite reconhecível para ele, exceto a im- possibilidade física e a insuficiência do saber, ambos vistos como contingências a serem superadas. Tudo que pode ser feito, será feito e nenhuma consideração moral poderá deter a aventura humana. Tudo que for viável, terá necessariamente que ser legitimado. A factibilidade é a única norma e apenas questões ligadas à eficácia e à rentabilidade são levadas em conta. As coisas não se realizam mais porque seriam boas, mas porque são possíveis e nada pode impedir o “avanço”. Já se viu que a abundância ( e o desperdício) de meios ditou a tirania dos meios ou a chamada “rebelião dos meios”, de modo que existindo a técnica, seja do que for, ela terá que ser usada, sendo descabida a discussão sobre a moralidade da ação, sobre o bem e o mal a respeito do assunto. De certo modo, adulterou-se a sensibilidade moral. Também nada mais existe de fixo ou imutável, menos ainda é aceita a idéia de um referencial permanente, fixo, de caráter axiológico. A lei natural foi ab-rogada, situação que Cícero tanto temia, sobre a qual advertia seus contemporâneos: - “existe certamente uma lei verdadeira, congruente com a natureza, conhecida de todos, eterna... Não é lícito....derrogar algo dela...Nem podemos eliminá-la... ela não é uma em Roma, e outra em Atenas, uma agora e outra depois; mas uma só lei, eterna e imutável, que abrange todos os ho9 mens de todos os tempos” . A consideração responsável dos riscos futuros pode ser uma posição útil, mas os riscos não podem ser administrados como 7 - “ Philosophical Essays: From ancient creed to technological man” – Prentice Hall, Englewoods Cliffs, 1974 8 - Emmanuel Levinas(1906-1995) 9 - Cícero, Marcus Tullius (106-43 AC) – “De Republica”, lib III, cap. 22 76 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 as crises (como pensam alguns teóricos), simplesmente porque crises são atuais e riscos estão no reino da incerteza e dos enredos prováveis. De resto, jamais poderiam ser avaliados com facilidade; de vez que invisíveis para o observador comum, além de que seus concomitantes estão diferidos no tempo e no espaço. E ainda, essa avaliação agora depende dos recursos da ciência (teorias, modelos) e, freqüentemente de instrumentos tecnológicos, além de arsenal estatístico, porque o risco é sempre função de probabilidade, o que faz a sorte da vítima potencial , nem perfeitamente segura nem predestinada, o que pode ser útil para companhias de seguro mas não atende aos anseios do sujeito. Cria, porém, a ilusão de um certo controle do destino, algo caro ao homem de hoje. A compreensão pro10 posta por Ulrich BecK é a visão pós-moderna do mundo como um jogo e do estarno-mundo como jogo, e bem corresponde ao sentir de muitos de nossos contemporâneos. 5 - Possibilidade da Reconstrução Ética Como vimos, o vigoroso movimento de idéias no Ocidente, possibilitou o extraordinário poder material que se tem hoje, mas foi também, aos poucos, causa da diluição do vigor da fonte de onde emanaram todas as doutrinas éticas de nossa civilização. O chamado “movimento moderno” como que liquidou com o apoio onde se fundava conceitualmente a ordem moral, de modo que hoje alguns setores de nossa comum humanidade possuem um fantástico poder, 10 mas - como nota Toynbee - não dispõem de bondade suficiente para utilizá-lo e, assim, milhões de irmãos desses mesmos po- derosos padecem de miséria, doenças, ignorância e efeitos de guerras. A própria prática social foi afetada de modo radical: assim como o homem hoje não trabalha mais num prolongamento de sua casa, mas alhures, também as relações familiares foram modificadas, sendo difícil agora dar-se o longo e necessário aprendizado da relação intimidade-limite, básica para se compreender a limitação da liberdade face aos direitos do outro. Os lares perderam a ciência de uma pedagogia da fraternidade e expostos à comunicação televisiva estão produzindo espíritos racionais, frios e rivalizantes, fechados à solidariedade. O ambiente em geral não é, pois, favorável à experiência ética e nem parece sentir sua necessidade. A pretensão moderna dos filósofos da revolução em França que queriam revelar às nações os fundamentos da moralidade, suprimindo toda Revelação da Igreja – o código ético fundar-se-ia na própria “natureza do homem”, que Rosseau proclamava boa -, foi totalmente desmoralizada pela evidência da impossibilidade de ser alcançada uma harmonia, superação dos conflitos, por meros ajustes no comportamento dos homens e das nações. Aliás, se há algo atual, pós-moderno, é a descrença total na possibilidade de um semelhante código ético (fundado na natureza do homem), não ambivalente e não aporético, onde estaria resolvida a contradição entre a autonomia da ação do indivíduo e a heteronomia da ordem, e que fosse dotado de universalidade e sustentação. E essa descrença, essa rejeição de maneiras tipicamente modernas de tratar as questões morais, abre espaço para outras considerações que facultam a recons- 10 - “Risk Society:towards a new modernity”, Sage, Londres, 1992 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 77 trução das bases do agir moral, segundo uma perspectiva pragmática (vantagem ou benefício do agente), mas à qual não falte a iluminação da fé. “Descalça as sandálias, porque o lugar que pisas é sagrado” (Êx. 3.5), é a advertência de Javé a Moisés referindo-se ao ser humano, mesmo um embrião, mostrando que a vida humana, da concepção ao túmulo, é território sagrado, privativo do Criador. E a Igreja, por sua vez, reiteradamente nos adverte da sacralidade da vida e do primado da Pessoa sobre tudo mais, representando suas posições a plataforma mais avançada na luta por normas jurídicas internacionais que façam respeitar a vida humana( por exemplo: a necessidade de consentimento da pessoa sobre a qual se projeta alguma intervenção; a interdição do corpo humano para fins comerciais; a proibição da produção de embriões humanos para fins experimentais, etc., conforme artigo de Giorgio Filibeck publicado no L’Osservatore Romano de 18 de fevereiro de 1995). Os grandes temas da Ética precisam ser retomados com urgência, tais como direitos humanos, justiça social, cooperação internacional com os pobres, direito do trabalho, constituição familiar, etc, etc, mas não se fará isso sem uma ampla discussão a respeito do modo como a vida social e política vem sendo estruturada. Somente a revisão de nossos objetivos sociais e de nossas prioridades – hoje representando interesses – permitirá condições para a descoberta dos valores. É urgente a revisão dos esquemas de valoração dentro da sociedade e seus sistemas de legitimação. A crise não é de valores, mas do tipo de organização social que submete a primazia da pessoa ao interesse, e tudo subordina ao 78 lucro a qualquer preço. Semelhante clima sócio-cultural, enquanto predominar, não deixará lugar à vida, à inocência, às paixões desinteressadas e desumanizará cada vez mais a humanidade. Se em tudo neste domínio a patética moral ressoa como algo inútil, torna-se indispensável a intervenção já referida no modo de organizar a vida social e na definição de seus fins; no que se refere à bioética, a questão é ainda mais complexa, porque sendo um daqueles domínios especializados, onde os efeitos estão diferidos no tempo e no espaço e o paciente muitas vezes oculto ou indeterminado, torna-se problemática a formulação ética e a delimitação do agir moral. 6 - A Bioética No domínio da Bioética, vamos escolher um problema e examiná-lo, de vez que a natureza complexa da questão requer este procedimento. Embora em nosso País essa discussão pareça alienada - de vez que há questões urgentes no âmbito da justiça social e a questão do abortamento provocado não é exclusivamente bioética, mas predominantemente do âmbito dos Direitos Humanos (e da Lei Penal) – , ela é necessária porque integramos o mundo civilizado e precisamos ter parte nas grandes deliberações do concerto moral de nosso tempo, ter consciência dos problemas e desenvolver normas vinculantes para a orientação das pesquisas em nosso próprio país. 6.1 - A clonagem A clonagem humana é o procedimento mais importante de quantos são sugeridos hoje ao universo da Bioética e o que requer maior atenção do ponto de vista da apreciação do agir moral. Demanda inten- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 sa carga ética por razões muito fortes como se relata a seguir. A clonagem é um procedimento técnico de reprodução, mediante o qual é manipulado o material genético de uma célula ou de um organismo (vegetal ou animal), com finalidade de se obter um indivíduo, ou conjunto deles, geneticamente idêntico(s) ao primeiro (clone). A reprodução na clonagem é assexuada, realiza-se sem a união sexual e sem fecundação ou união de gametas (é agâmica). Na clonagem em sentido estrito, a fecundação é substituída pela fusão de um núcleo tirado de uma célula do indivíduo que se quer clonar com um oócito desnucleado, ou seja, privado do genoma de origem materna. O núcleo da célula somática possui todo o patrimônio genético, de modo que o novo indivíduo terá correspondência genética perfeita com o doador do núcleo, tornando-se ele uma repetição ou cópia desse doador. São classificadas como clonagens algumas outras formas de reprodução assexuada e agâmica que se assemelham à transferência nuclear, sobretudo porque levam a uma descendência geneticamente idêntica. É o caso da partenogênese artificial ou a fixão embrionária, entre outras. Não há problema ético relativo à clonagem de indivíduos e de materiais biológicos não humanos, quando realizada de maneira responsável, sendo consideráveis possíveis vantagens técnicas e econômicas na criação de animais, na farmacologia, etc. O problema está na clonagem humana, que é pensada para fins reprodutivos (clonagem reprodutiva) e outros, as chamadas clonagens terapêuticas. A primeira pretende implantar embriões no útero para o desenvolvimento completo do sujeito e a segunda pretende o uso do embrião em fase de pré-implantação com a finalidade de investigação científica ou de produção de tecidos humanos. No primeiro caso tem-se uma técnica de reprodução assistida mais eficaz e com maior controle do “produto”(o sujeito) e, no caso da clonagem terapêutica, os “embriões sintéticos” ou “acúmulos de células”, em etapa embrionária muito precoce (cada célula do embrião é dita totipotente ou multipotente, do qual se podem extrair células estaminais) podem fornecer células específicas (nervosas, cardíacas, musculares, hepáticas, etc), tecido para reposição humana. É evidente que a clonagem humana para fins reprodutivos retira a geração de seu contexto natural. Diz a instrução “Donum Vitae”, da Congregação para a Doutrina da Fé: “A origem de uma pessoa humana é, na realidade, o resultado de uma doação. O concebido deverá ser o fruto do amor de seus pais. Não pode nem deve ser concebido como o produto de uma intervenção de técnicas médicas e biológicas; isto equivaleria a reduzi-lo a tornarse o objeto de uma tecnologia científica.” O cardeal Alfonso López Trujillo, presidente do Pontifício Conselho para a Família, mostra que “a lenta separação contemporânea entre o conceito de vida humana e o de família, que é o lugar natural onde ela tem origem e desenvolvimento, é uma das mais nefastas conseqüências da cul11 tura da morte” , e denuncia que “a clonagem humana é uma grave deterioração, quer do reconhecimento da dignidade da vida e da procriação humana, quer 11 - Toynbee, Arnold Joseph R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 79 da consciência de como é insubstituível e fundamental o papel da família para o homem, e de como é fundamental o seu valor 12 para toda a humanidade.” Essas experiências e práticas de clonagem ferem o estatuto antropológico e ético do embrião humano, e recusam a esses embriões o caráter de indivíduo humano, chegando a proclamar que eles não têm “vida humana”. Evidentemente, trata-se de um absurdo e querem negar seus responsáveis a autonomia do embrião que, deixado em condição natural propícia, procede ao seu próprio desenvolvimento gradual, contínuo e harmônico até a realização plena do programa traçado em seu genoma. É com esperança que se identifica uma significativa documentação internacional, e em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, condenando a clonagem, como é o caso da “Declaração Universal sobre o Genoma Humano e sobre Direitos Humanos”, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 1998, que afirma que “a clonagem com finalidade reprodutiva está em contradição com a dignidade humana.” Existem ainda importantes avanços nos Estados Unidos, projeto de lei de 27/02/ 2003, ora no Senado daquele país, e o projeto francês de 30/01/2003, em estudo na Comissão Européia - propostas recentes que procuram vetar qualquer forma de clonagem humana. Depois dos trabalhos do Parlamento Europeu por uma convenção contra a clonagem, em 1997, acolhendo iniciativa do Conselho da Europa para uma “proibição explícita de qualquer clonagem humana”, e da Convenção européia sobre os direitos humanos e a biotecnologia (Convenção de Oviedo), esta ratificada por alguns estados europeus, o Parlamento europeu pronunciouse de novo em novembro de 2001 pela proibição de qualquer clonagem, “por uma proibição universal e específica em nível das Nações Unidas, de clonagem de seres humanos em qualquer fase de formação e desenvolvimento.” Tanto em abril de 2002 como em fevereiro de 2003, os parlamentares mostraram-se favoráveis a uma proibição da clonagem com a finalidade de extrair do embrião as células estaminais (stem cells). Em fevereiro deste ano (2003) o “Bundestag” , pediu ao governo alemão que mudasse a posição da Alemanha nas Nações Unidas, proclamando-se agora “a favor da proibição total da clonagem, porque ela representa um atentado contra a dignidade humana, considerando que não existe distinção moral substancial entre a clonagem reprodutiva e a terapêutica, porque nos dois casos se realiza a criação de embriões humanos vivos” (“apud” art. cit. do Cardeal Trujillo). No Brasil, a Lei 8.974, de 05 de janeiro de 1995, pelo inciso II do art 8° proíbe a manipulação genética de células germinais humanas e pelo III proíbe a intervenção em material genético humano “in vivo”, exceto para o tratamento de defeitos genéticos; o art 13 da mesma lei criminalizou esses procedimentos, graduando penas de detenção e reclusão que vão de 3 meses a 8 anos. A produção, manipulação e armazenamento de embriões humanos para constituir material biológico disponível podem acarretar pena de reclusão de 6 a 20 anos (art 13 inciso III). 12 - “ L’Osservatore Romano”, 23 de agosto de 2003, pág.5 80 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 Conclusões A formulação ética nos dias atuais encontra resistência no espírito do tempo que indaga – “qual a vantagem que me traz o agir ético?” -, quando não lança suspeição sobre os fundamentos da exigência ética, ou manifesta indiferença quanto à matéria, no contexto de uma apostasia silenciosa. Quando concede alguma coisa, geralmente refere-se a uma moral não espiritualizada, um código de conveniência e não de deveres, ao gosto da fórmula deontológica do utilitarismo inglês de Jeremy Bentham. Ora, uma moral destituída de sanção, que não supõe a punição do perverso e a premiação do justo é um adorno de pouca utilidade, conforme notou o padre Julio Maria (1885), em célebre passagem: “O oceano tempestuoso das paixões só pode ser contido pelas margens do sacrifício, da virtude, da moral e do direito. Mas, o direito sem Deus não tem fundamento, o sacrifício não tem objetivo, a virtude não tem estímulo e a moral não tem sanção.” A causa da indiferença, do oportunismo e do relativismo moral contemporâneo está no sistema de crenças predominante em nossa sociedade que : 1) aboliu a transcendência, levando a uma “moralidade situacional” não espiritualizada; 2) desenvolveu o apego às riquezas a ao poder, favorecendo a hipertrofia do egoísmo; conseqüência do primado do formal sobre a verdade e da generalização do cinismo social. Esse modelo, porém, é coerente com as necessidades funcionais de um sistema sócio-político e econômico contrário à natureza e à moral, no qual o destino de todos os anseios, o fim de todos os planos e de todas as ações é a acumulação de riquezas e poder, mesmo à custa da felicidade do Outro, a ponto de serem julgadas patológicas as paixões humanas desinteressadas. Contudo há críticas fundamentadas e reações em todo mundo a esse projeto e à sua antropologia, e cresce a denúncia humanista às conseqüências, já evidentes, desta “ordem” de coisas e seu cortejo de sofrimento, miséria e morte. No que concerne à Bioética, há dificuldades de aprofundamento do enunciado ético face aos aspectos técnicos das experiências. Contudo, os fatos vêm mostrando que em muitas partes há sinceros esforços de governos e instituições, inclusive da ONU, em prol de uma disciplina normativa, se possível cogente, que dê efetivas garantias à vida, proclame o status ontológico e antropológico do embrião humano em qualquer fase de sua evolução, identificando-o como sujeito de direito e reconhecendo nele a dignidade humana. Malgrado o alarido de certas feministas, cresce em muitos lugares a repulsa ao abortamento, visto como sacrifício inútil. 3) aviltou o trabalho, abandonou o pobre e desenvolveu a indiferença ao sofrimento, causa e conseqüência da atrofia da solidariedade; Como a Bioética é um campo novíssimo e aberto a extraordinárias surpresas, é de interesse que se enuncie uma compreensão do alcance do valor, inerente aos fenômenos que envolvem o homem. 4) fortaleceu o culto das exterioridades, da exibição e da insinceridade, causa e Natureza e cultura ( esta como a essência da esfera dos valores) não precisam R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 81 ser domínios separados. A natureza torna-se objeto cultural na medida em que se liga a valores. Essa é a função da sociedade humana, ou melhor, da consciência do homem que, neste caso, parece-se com o rei Midas : o que ela toca, o que ela atrai para junto de si, embora não se torne ouro assume valor. O exemplo mais comum é o da sexualidade, um acontecimento biológico desligado de valor, mas que dentro da cultura, intervindo a consciência, torna-se fato de altíssimo valor : o amor. A realidade humana está repleta de fatos geradores de valor. Tudo aquilo que o homem toca, tudo com que ele lida, recebe por isso mesmo uma carga de valor. E o valor é atribuído e reconhecido pela consciência. Parece razoável esperar-se, assim, que a consciência moral dos envolvidos direta e indiretamente nas operações da Bioética, e dos governantes, venha impor a necessidade de disciplinas eficazes que impeçam o abuso e a temeridade. 7.4 A contribuição da Igreja Católica no esforço pelo fortalecimento ético está favorecida, em parte porque as idéias que confrontavam a religião estão em crise – como o liberalismo e o marxismo, nos extremos do individualismo e da sociedade sem classes – e, em parte porque a Igreja credenciou-se diante do mundo pós moderno, mercê da liderança carismática de João Paulo II, como um “teísmo com funções públicas” (Gustavo Guizzardi), de notório prestígio no domínio moral. Sabendo conduzir uma estratégia eficaz que flutua entre o profetismo e a solidariedade, mas sempre anunciando a Revelação, a Igreja vem se mostrando como a grande força que defende o homem e a humanidade, que abre e sustenta a discussão de questões vitais, como os direitos humanos, a justiça social e a defesa do ambiente natural. O mundo de hoje reconhece que entre os males que o afligem, há aqueles para os quais o tratamento científico e tecnológico não é suficiente, como é o caso da AIDS, de prevenção difícil e cura rara, cujo controle eficaz só é possível pela autoregulação ética. Abstract The author tries to demonstrate how important is the moral questioning to the scientific contemporary mentality which projects (like HGP-Human Genoma Project), all of them have been conceived with the intention of reaching only strategic or economic goals. Along the explanation, the author asks whether, nowadays, the ethical thinking has a chance to predominate (considering the default of values) and the future of Ethics on this amazing world of molecular biology. Keywords: Ethical, Tranformation, Technology, Ideology, HGP (Human Genoma Project). 82 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.71-83, jan/dez. 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ESPINOSA, J. Questões da Bioética. São Paulo: Ed. Quadrante, 1998. PESSINI, L. ; BARCHIFONTAINE, C. de P. (Org.). Fundamentos da bioética. São Paulo: Ed. Paulus, 1996. AZPITARTE, E. L. Fundamentos da ética cristã. São Paulo: Ed. Paulus, 1995. BAUMAN, Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Ed. Paulus, 1997 VIDAL, M. Moral de atitudes. 3. ed. São Paulo: Ed. Santuário, 1986. LADUSÃNS, S. (Coord.). Questões atuais de bioética. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. DURANT, G. A Bioética: natureza, princípios e objetivos. São Paulo: Ed. Paulus, 1995. TRUJILLO, Cardeal López. A ONU e a clonagem humana. 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O autor enfatiza a necessidade de que o Acordo deve ser interpretado e implementado com flexibilidade, de forma a ajudar aos países em desenvolvimento atingirem seus objetivos de desenvolvimento. institucional das relações econômicas internacionais. Procurou-se com a criação da OMC, dar maior coerência e abrangência às regras que regulam o comércio global. Nesse contexto de transformações no cenário internacional, as normas sobre proteção da propriedade intelectual ganharam especial tratamento, tendo sido objeto de um documento próprio, apenso à Ata Final em que se incorporaram os resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais (Anexo 1C). Palavras-chave: Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio; Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública; Direito Internacional; Organização Mundial do Comércio; propriedade intelectual; soberania; TRIPS. Esse acordo, que em inglês recebeu o acrônimo de TRIPS (Agreement on TradeRelated Aspects of Intellectuall Property Rights), foi firmado com a justificativa de que as convenções internacionais sobre propriedade intelectual existentes até então, eram ineficientes. O fim das negociações da Rodada do Uruguai, seguido da criação da Organização Mundial do Comércio, resultou em uma profunda mudança na estrutura Assim, seguindo as recomendações dos países detentores de um maior desenvolvimento tecnológico, criaram-se, dentro da Organização Mundial do Comércio, me- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 85 canismos de sanções internacionais, para punir os Estados que se recusassem a editar uma legislação interna em harmonia com as obrigações internacionais estabelecidas no TRIPS. Como bem observa Guido Soares, na situação anterior a 1995, os tratados e acordos internacionais sobre o tema da propriedade intelectual, elaborados pelos Estados, no que se refere à eficácia no interior dos respectivos territórios, não contavam com qualquer instrumento sancionador que eventualmente pudesse ser aplicado contra um Estado que se recusasse a editar uma legislação interna de conformidade com as normas internacionais, ou que editasse normas internas em discordância com suas obrigações internacionais (SOARES, 1998, P.661). O Acordo TRIPS é o mais importante e mais amplo tratado celebrado até o momento em matéria de propriedade intelectual. Estabelece um padrão mínimo de proteção em matéria de direitos autorais e conexos; patentes; marcas; indicações geográficas; desenhos industriais; topografia de circuitos integrados; proteção de informação confidencial e controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licença. O Acordo TRIPS não é uma lei uniforme em matéria de propriedade intelectual, mas sim um tratado-contrato cujos destinatários são os Estados-Membros da OMC, que devem aplicá-lo mediante normas internas. Assim, o Acordo TRIPS permite que os Estados-Membros legislem livremente em matéria de propriedade intelectual desde que respeitados os padrões mínimos estabelecidos. Ocorre que, a adoção de padrões universais mínimos de proteção aos direitos 86 de propriedade intelectual, em países em estágios diferentes de desenvolvimento pode gerar graves distorções no comércio internacional. Países hospedeiros de grandes corporações, detentores de tecnologia de ponta e com grande capacidade inovadora poderão valer-se do novo sistema internacional de comércio instituído com a criação da OMC, para consolidar o domínio sobre os demais. As regras estabelecidas no Acordo TRIPS, reduzem de forma significativa a autonomia dos Estados Nacionais de disporem de políticas próprias de proteção em matéria de propriedade intelectual compatíveis com as suas necessidades de desenvolvimento. Por exemplo, nos temos das regras do Acordo TRIPS, a engenharia reversa e outros métodos legítimos de difusão e transferência do conhecimento são restringidos. Assim, a aplicação indiscriminada do novo regime jurídico dos direitos de propriedade intelectual estabelecido no Acordo TRIPS, poderá afetar de forma relevante a economia de países como o Brasil. Como então conciliar as obrigações previstas no Acordo TRIPS, com os interesses nacionais? Como os formuladores de políticas públicas devem enfrentar as limitações impostas no Acordo TRIPS? Essas são questões de difícil solução mas que devem ser enfrentadas pelos diversos governos nacionais dos países integrantes da OMC. Na verdade, como mencionado anteriormente, o Acordo TRIPS não é uma lei uniforme, deve, portanto, ser implementado localmente através de normas internas. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 Dessa forma, aos Estados-Membros, quando da incorporação das normas do Acordo TRIPS, cabe a difícil tarefa de tentar conciliá-las com os interesses nacionais. Assim, os diversos setores da sociedade devem identificar onde há maior espaço para flexibilização no tratado. Muitos termos e expressões usados no Acordo TRIPS ainda não apresentam significado preciso. Esse fato abre espaço para que os países envolvidos busquem dentro de seus próprios ordenamentos jurídicos definições compatíveis com os seus interesses e objetivos. Com efeito, a flexibilização na aplicação do Acordo TRIPS é essencial para países de menor desenvolvimento tecnológico. Seguindo essa estratégia de aplicar o Acordo TRIPS legislando segundo o interesse nacional, a Lei de Propriedade Industrial do Brasil (Lei n° 9.279/96) dispõe que a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta, poderá ensejar a concessão de licença compulsória. Inconformados com o conteúdo da legislação brasileira, os Estados Unidos, em 30 de maio de 2000, pediram uma consulta ao governo brasileiro perante a OMC, por considerarem a Lei de Propriedade Industrial do Brasil não compatível com o disposto no Acordo TRIPS. Em 16 de junho do mesmo ano a Comunidade Européia aderiu ao pedido de consulta norte-americano. No dia 8 de janeiro de 2001 o Governo dos Estados Unidos requereu a abertura de um painel contra o Brasil. No entanto, após negociações bilaterais, o governo dos Estados Unidos, em comunicado conjunto com o governo do Brasil anunciou a retirada do painel em discussão (painel n° WT/DS199/1). Na verdade, a Lei de Propriedade Industrial do Brasil não é incompatível com o Acordo TRIPS. O que de fato ocorreu é que o dispositivo em questão foi editado de forma a atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento e transferência de tecnologia. Talvez temerosos de uma derrota no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (fato esse que poderia criar um perigoso estímulo para outros países copiarem a legislação brasileira), os Estados Unidos resolveram retirar o painel em questão. Foi, no entanto, no campo das patentes farmacêuticas que ocorreu a maior vitória dos países emergentes na busca de flexibilização das normas do Acordo TRIPS. Por ocasião da IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, realizada em Doha, Catar, nos dias 9 a 14 novembro de 2001, o governo do Brasil reiterou sua posição firme de utilizar-se das flexibilidades presentes no Acordo TRIPS, para proteger a saúde pública de seus nacionais, em discurso assim expresso pelo então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Lafer: No campo da propriedade intelectual, diferentes leituras do Acordo de TRIPs têm dado margem a tensões. Em certa medida, é natural que interesses conflitantes se reflitam em interpretações divergentes de normas comuns. No entanto, a exploração comercial do conhecimento não pode ter valor maior do que a vida humana. Há circunstâncias em que o conflito de interesses exigirá do Estado o exercício de sua suprema responsabilidade política. Nesses casos, é necessário que fique claro onde está a prioridade. É por isso que temos insistido, juntamente com uma ampla coalisão de países que compartilham essa posição, na necessidade de uma declara- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 87 ção autorizada sobre o Acordo TRIPS, que possa esclarecer seu alcance no que diz respeito à saúde pública. O Brasil promove e assegura os direitos de propriedade intelectual, por meio de uma legislação que figura entre as mais avançadas do mundo. Mas se as circunstâncias o exigirem, o Brasil, como muitos outros países, não hesitará em tirar pleno proveito das flexibilidades proporcionadas pelo Acordo de TRIPs, para proteger legitimamente a saúde de seus cidadãos. (2001). A estratégia da diplomacia brasileira surtiu efeito, e após o término da conferência foi divulgado um documento intitulado “Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública”, no qual os Países-Membros reconhecem que o Acordo TRIPS pode e deve ser interpretado e implementado de modo a implicar apoio ao direito dos Membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular promover o acesso de todos aos medicamentos. O documento reconhece, ainda, a gravidade de problemas de saúde pública como a AIDS, a tuberculose, a malária e outras epidemias, bem como o direito dos Países-Membros de recorrerem a licenças compulsórias e de estabelecerem livremente os casos de emergên1 cia nacional. Os episódios mencionados são ilustrativos de como os Estados Nacionais podem enfrentar as limitações impostas pelo Acordo TRIPS. Conforme expos- to, há ainda muita margem de ação para flexibilizar-se a aplicação do Acordo TRIPS. É importante ressaltar que embora a redução de tarifas e a eliminação de barreiras mercantis seja a idéia mais visível no sistema multilateral de comércio incorporado pela OMC, a liberalização do comércio internacional não é o fim principal a ser atingido. Na verdade, o principal objetivo almejado com a criação da OMC é o desenvolvimento econômico e social dos seus membros, conforme expressamente declarado em seu Acordo Constitutivo. A adoção do Acordo TRIPS limita a soberania dos Estados em matéria de propriedade intelectual, pois doravante os países integrantes da OMC devem obedecer ao padrão mínimo de proteção estabelecido nesse tratado. Essa limitação pode ter impactos negativos na economia de países de menor grau de desenvolvimento relativo, como o Brasil. No entanto, é preciso atentar para o fato de que se trata de uma auto-limitação voluntária. Além disso, conforme ficou demonstrado, os Estados-Membros têm a liberdade de escolher a forma de implementação do Acordo TRIPS. Para que a OMC alcance seus objetivos declarados de contribuir para o desenvolvimento econômico e social dos Estados-Membros, os países em desenvolvimento devem lutar pela preservação de suas soberanias e ter uma postura ativa no sentido de buscar a flexibilização na aplicação do Acordo TRIPS. 1 - Mesmo após a divulgação da “Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública” , os países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil, China e Índia, consideraram as concessões insuficientes. Assim após intensas discussões, em 30 de agosto de 2003 foi divulgado novo documento flexibilizando ainda mais a aplicação do Acordo TRIPS em matéria de saúde pública. O documento o trata especificamente da interpretação e aplicação do parágrafo 6 da Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública. 88 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 Abstract The aim of this paper is to provide basic information about the Agreement on TradeRelated Intellectual Property Rights (TRIPS), which was negotiated as an integral part of the Uruguay Round. The author draws attention to the fact that the Agreement should be interpreted and implemented in such a way to provide flexibility that helps developing countries to achieve their development goals. Keywords: Agreement on Trade-Related Intellectual Property Rights; Doha Declaration on the TRIPS Agreement and Public Health; intellectual property; International Law; sovereignty; World Trade Organization; TRIPS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARBOSA, D. B. Propriedade intelectual: a aplicação do acordo TRIPS no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. BASSO, M. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. CORREA, C. M. Acuerdo TRIPs: Regimen internacional de la propriedad intelectual. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1988. —————. Implications of the Doha Declaration on the TRIPS Agreement and public health.. Geneva: World Health Organization, 2002. (EDM Series n.. 12) LAFER, C. Discurso do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil. In: CONFERÊNCIA MINSTERIAL DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO, 4., 2001. Doha,Qatar. Disponível em: <http//www.mre.gov.br/sei/lafer-doha.htm.>. Acesso em: 19 mar. 2003. PEREIRA, A. C. P. Organização Mundial do Comércio: uma ameaça à soberania estatal?,. In: MELLO, C. de A. (Org.). Anuário Direito e Globalização: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. P.99-112. SOARES, G. O tratamento da propriedade intelectual no sistema da Organização Mundial do Comércio. In: CASELLA, P. B. (Org.). Guerra comercial ou integração mundial pelo comércio e ? a OMC o Brasil. São Paulo: LTR, 1998. P.660-689. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 89 90 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.85-89, jan/dez. 2003 A Logística Aplicada ao Programa Federal de Segurança Alimentar “Fome Zero” e sua Contribuição a uma Mobilização Nacional Gerson Pinheiro Gomes Major de Cavalaria Resumo Partindo do novo conceito de ‘Segurança Alimentar’ e de seu aspecto estratégico,implementado recentemente pelo Governo Federal como Programa Federal de Segurança Alimentar (‘Fome Zero’), o autor evidencia seus pontos de convergência com a Defesa Nacional, particularmente nos campos da Logística e da Mobilização Nacionais. Palavras-chave: Segurança alimentar, Logística, Defesa nacional, Mobilização nacional. 1 - INTRODUÇÃO 1.1 - Considerações Iniciais Nos últimos anos, quando ocorreram os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a reação militar norte-americana no Afeganistão, bem como a recente invasão do Iraque pela coalizão anglo-americana, a incerteza geopolítica estabeleceuse assustadoramente no ambiente internacional. O afloramento da “Nova Ordem Mundial” não propiciou o tão sonhado fortalecimento da segurança coletiva, a melhoria das organizações internacionais, ou mesmo uma nova parceria entre as nações. A consolidação da hegemonia norte-americana, sustentada em absoluta superioridade tecnológica na Expressão Militar, não amenizou a letalidade das ameaças hodiernas (do terrorismo, dos fundamentalismos, do crime organizado transnacional, da especulação financeira, da grande corrupção, das possibilidades de novas pandemias (AIDS, SARS, etc.), dos efeitos da poluição, da proliferação nuclear, dos fluxos migratórios, etc.). As desigualdades se aprofundaram no Planeta, carreando ameaças latentes ainda não discernidas. Estudos recentes da ONU apontam que, dentre os aproximadamente seis bilhões de habitantes da Terra, pouco mais de 500 milhões vivem confortavelmente. A fortuna das 358 pessoas mais ricas do mundo, bilionárias em dólares, é superior à renda anual de 45% de habitantes mais pobres do planeta, ou seja, 2,6 bilhões de pessoas. Pelo menos um paradigma, sobre o qual repousava até o presente o edifício sóciopolítico dos grandes Estados democráticos modernos, erodiu de forma cabal: o do progresso, redutor das desigualdades, inexoravelmente conseqüente ao avanço científico-tecnológico. Causa perplexidade a rapidez do crescimento do número de pessoas em estado de extrema pobreza no mundo. O índice passou de 17% para 22% nas últimas cinco R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 91 décadas e, no mesmo período, a riqueza produzida pelos países cresceu sete vezes. O propalado “crescimento sustentável”, não experimentado no período de maior desenvolvimento dos países ricos, é agora desenhado para, em prol dos interesses mundiais, ser implementado nos países em desenvolvimento. É notório que, no Brasil, o conceito de crescimento sustentável encontra-se amplamente disseminado sem contemplar as questões de Defesa. A sustentabilidade é associada à prevenção dos perigos advindos da deterioração do meio ambiente ou, ainda, à estabilidade do sistema econômico-financeiro. incorpora a mais nova categoria de ameaça reconhecida pela sociedade brasileira, a da fome, da pobreza e da excessiva concentração de renda. Este trabalho se propõe a estabelecer os pontos de convergência entre a Política de Segurança Alimentar, consubstanciada no recente programa federal denominado “Fome Zero”, e os objetivos da Defesa Nacional, particularmente no campo da Logística e da Mobilização Nacional. 1.2 – Conceitos Básicos 1.2.1 - Segurança Alimentar Tal fato deve-se, em parte, ao total desconhecimento das Hipóteses de Emprego das Forças Armadas (HE) pelas elites do País. A ameaça externa é difusa e não sensibiliza a sociedade com o mesmo grau de impacto que as ameaças ao meio ambiente, ou aquelas advindas dos conflitos de interesses puramente comerciais. Foi pouco depois de terminada a Primeira Guerra Mundial que se começou a ter registro, na Europa, da utilização do termo “segurança alimentar”. O Brasil não é uma nação imperialista. Não está interessado em subjugar nações mais frágeis nem em submeter povos a seu domínio. Isso não significa, contudo, que não tenha interesses legítimos a defender, com o concurso imprescindível da Expressão Militar do Poder Nacional. Os Estados Nacionais davam-se conta de estar frente a uma poderosíssima arma, uma vez que populações inteiras não poderiam sobreviver sem alimentação e, diante desta situação, um país poderia ser submetido a outro. Assim, fortaleceu-se a idéia de que a soberania de um país também dependia da sua capacidade de autosuprimento de alimentos. A consolidação do Ministério da Defesa aponta para o reconhecimento da importância estratégica desempenhada pelas Forças Armadas, no entanto, a palavra “defesa” é empregada pelo cidadão comum, compreensivelmente no contexto das ameaças percebidas. Percebe-se a necessidade da defesa do meio ambiente, da defesa dos interesses comerciais, ou, até mesmo, da defesa do consumidor. Nessa mesma direção, o conceito relativamente novo de “Segurança Alimentar” 92 A traumática experiência da guerra havia demonstrado, mais uma vez, que um país poderia dominar o outro caso controlasse seu fornecimento de alimentos. A alimentação adquiriu um significado estratégico de segurança nacional, impondo a necessidade a cada país de assegurar o suprimento da maior parte dos alimentos que sua população consome, fazendo inaugurar um conjunto de políticas específicas, entre as quais a formação de estoques de alimentos. Uma conseqüência dessa preocupação foi o fortalecimento da noção de que R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 a questão alimentar de um país estava estritamente ligada à sua capacidade de produção agrícola. Tal noção, que acabava excluindo outros aspectos da questão, manteve-se até quase o final da década de 1970. Nos últimos anos, o país retrocedeu do patamar onde a segurança alimentar era declarada como um objetivo estratégico de governo, culminando na extinção do Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA). Vivia-se, então, um momento delicado, em que os estoques mundiais de alimentos estavam bastante escassos, com quebras de safra em importantes países produtores e consumidores. A questão alimentar, no entanto, manteve-se como estratégica nos países desenvolvidos, espelhando interesses diversos e muitas vezes conflitantes. Nota-se, especialmente no âmbito dos organismos multilaterais, uma verdadeira disputa axiológica envolvendo o conceito de segurança alimentar. O caso mais grave era o da antiga União Soviética, que, atravessando invernos extremamente rigorosos, viu reduzir-se drasticamente sua capacidade de produção de trigo e outros grãos, recorrendo ao mercado internacional com compras vultosas e esgotando ainda mais os estoques já reduzidos desses produtos. A discussão então travada deu-se quase exclusivamente sobre as políticas agrícolas, reforçando a crença de que a segurança alimentar dependia fundamentalmente de uma política de armazenamento estratégico, devendo-se fazer crescer os estoques e assegurar a consolidação de acordos internacionais sobre diferentes produtos agrícolas. Nesse contexto, começaram a surgir os primeiros trabalhos demonstrando que a capacidade de acesso aos alimentos era dificuldade crucial para a segurança alimentar e que, por vezes, tornava-se uma dificuldade maior que a própria oferta inadequada de alimentos. A introdução do tema da segurança alimentar no Brasil aparece tardiamente. Aparentemente, os primeiros conceitos foram formulados por técnicos e consultores engajados na elaboração de uma política de abastecimento, no âmbito do Ministério da Agricultura, em 1986. Nos países europeus e na América do Norte utiliza-se freqüentemente a noção de “alimento seguro” como prerrogativa principal da segurança alimentar. Sob essa égide, chanceladas estão as barreiras fitosanitárias que habilmente são interpostas como instrumentos de política econômica e de comércio internacional. Da mesma forma, pode-se perceber as raízes da política de concessão de subsídios aos produtores locais dos países desenvolvidos. Em consonância perfeita com o significado estratégico adquirido pela segurança alimentar, pós II Guerra Mundial, apoia-se economicamente a produção endógena de alimentos. Como marco teórico para este trabalho, e buscando uma base conceitual abrangente, pode-se considerar que Segurança Alimentar é a garantia do direito de acesso, de todos os integrantes de uma sociedade, a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais e nem o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em bases sustentáveis. (Menezes, 1998). R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 93 2.1.2 Logística e Mobilização Nacional Os argumentos contidos neste estudo estão inseridos no campo da Logística, a qual pode ser compreendida, especialmente no meio civil, como o processo de planejar, implementar e controlar eficientemente, ao custo correto, o fluxo e armazenagem de matérias-primas, estoques durante a produção e produtos acabados, e as informações relativas a estas atividades, desde o ponto de origem até o ponto de consumo, com o propósito de atender aos requisitos do cliente. Sob o enfoque da Defesa Nacional, foi utilizado o conceito emanado da Escola Superior de Guerra de Logística Nacional, como sendo o conjunto de atividades relativas à previsão e à provisão dos recursos necessários à realização das ações planejadas para a consecução da Estratégia Nacional. Isso significa que, uma vez definidas as ações estratégicas a serem realizadas, torna-se necessária a determinação dos meios de toda ordem que serão indispensáveis à concretização daquelas ações, obtêlos e, a seguir, distribuí-los. Essa seqüência de atividades define, basicamente, o papel da Logística Nacional, que em situações normais e mesmo em situações de emergência não excepcionais, encontra, dentro da capacidade do Poder Nacional, os meios necessários para atender às ações impostas pela Estratégia Nacional. Nações que vêm adquirindo, por seu desenvolvimento, dimensões cada vez maiores em sua estatura político-estratégica, podem e devem adotar medidas oportunas e eficazes, com vistas à adequação da capacidade do seu Poder Nacional às novas situações que o futuro possa lhes apresentar. À medida que um Estado se projeta no cenário internacional, desperta ambições 94 e cria novos interesses que podem resultar em áreas de atrito, com possibilidades de gerarem antagonismos e pressões, os quais constituirão, em última análise, razões de insegurança. Nesse contexto de conflito de interesses, a logística necessária à efetivação de uma Hipótese de Emprego das Forças Armadas (HE) é denominada como Logística Militar. Seu entendimento, no âmbito do Ministério da Defesa foi padronizado como: conjunto de atividades relativas à previsão e à provisão de recursos humanos, materiais e animais, quando aplicável, e dos serviços necessários à execução das missões das Forças Armadas. Ao fornecer meios para as Ações Estratégicas no campo da Defesa, quer correntes quer de emergência, a Logística se vale de procedimentos usuais inerentes à estrutura jurídico administrativa do Estado e às regras que presidem suas relações com as pessoas físicas ou jurídicas. Fatores diversos, entretanto, poderão fazer com que os recursos de que dispõe a Logística Nacional sejam insuficientes para fazer face a determinadas ameaças à Defesa Nacional. Neste caso, o Estado deve lançar mão de outro instrumento mais incisivo – a Mobilização Nacional – que sintetiza o conjunto de atividades visando à obtenção daqueles meios que a Logística não pode proporcionar. Isso significa que, nas situações anormais, caracterizadas pela iminência de concretização ou efetivação de uma HE, quando os procedimentos usuais e os recursos disponíveis pela Logística se revelam insuficientes para atender, com presteza, o acréscimo de meios exigidos pela contingência, a Mobilização Nacional, como instrumento mais vigoroso, tomará a si o atendimento dessas necessidades, em grande parte já levantadas pelos órgãos logísticos. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 A Escola Superior de Guerra define Mobilização Nacional como o conjunto de atividades planejadas, empreendidas ou orientadas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, para capacitar o Poder Nacional a realizar Ações Estratégicas de Defesa, em face da declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira. Há de se considerar que, nos dias atuais, o emprego das Forças Armadas pode ter início sem os longos períodos de tensão política e sem os prenunciadores incidentes de fronteira, comuns no passado. Tem sido mesmo prática muito freqüente, nos últimos tempos, o desencadeamento de operações militares sem prévia e formal Declaração de Guerra. Essa circunstância fez com que os prazos para a execução da Mobilização se tornassem extremamente críticos, exigindo que seu planejamento e preparo sejam eficazes desde os tempos de paz. Considerando que as atividades afetas à Mobilização Nacional se desenvolvem tanto em situação de normalidade como nas situações de emergência, é lícito estabelecer-se um faseamento na Mobilização Nacional que identifique as diferentes atividades e atribuições dos órgãos de Mobilização. Divide-se, pois, a Mobilização Nacional, em duas fases, a saber: o Preparo e a Execução. O Preparo da Mobilização consiste, fundamentalmente, em planejar e organizar a Mobilização, de modo que se processe nas melhores condições o atendimento das necessidades exigidas para a execução das ações planejadas. É, pois, uma atividade essencialmente do tempo de paz, que se realiza de modo contínuo, metódico e permanente, a fim de assegurar os recursos necessários em quantidade e qualidade, no lugar desejado e no tempo preciso. Muitas vezes torna-se difícil a distinção entre algumas das atividades de Preparo da Mobilização Nacional e outras típicas do processo de Desenvolvimento. Há uma faixa na qual várias atividades se confundem, sendo, todavia, irrelevante estabelecer a diferenciação. O relevante é que, desde a situação de normalidade, os Órgãos de Mobilização interajam com os responsáveis pelas programações voltadas ao Desenvolvimento, com o propósito de criar condições que permitam, concretizada a situação de emergência, um acelerado e eficaz aproveitamento do Poder e do Potencial Nacionais. Figura 1 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 95 2 - O PROGRAMA “FOME ZERO” DO GOVERNO FEDERAL 2.1 – Considerações Iniciais Incluído entre as propostas da campanha presidencial de 2002, o Programa Fome Zero foi anunciado como prioridade de governo no primeiro discurso do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, na manhã seguinte à eleição. dos para definir quem compõe esse contingente. Diversas pesquisas foram realizadas com base em indicadores de renda — uma forma indireta de se inferir a população carente. O pressuposto, nesses casos, é que a insuficiência de renda constitui o principal fator que leva as pessoas a não ingerir alimentos na quantidade adequada. Assim, define-se uma linha de pobreza abaixo da qual a renda seria inadequada para suprir as necessidades básicas — entre as quais a alimentação —, e calcula-se o número de pessoas abaixo dela. Em novembro de 2002, o Fome Zero foi submetido ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e à FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), em reunião realizada em Washington, nos Estados Unidos. Nessa ocasião, o diretor-geral da FAO, Jacques Diouf, decla“Se, ao final de meu mandato, rou que esse projeto cada brasileiro puder se alimentar seria uma referência três vezes ao dia terei realizado a para as atividades damissão da minha vida”. quele organismo em outros países. Luís Inácio Lula da Silva, 28/10/2002 O Programa foi lançado oficialmente em março de 2003 e envolve todos os Ministérios. Conta com a estrutura do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), para a coordenação das ações. 2.1.1 – O Tamanho da Fome no Brasil Calcular a quantidade de pessoas sujeitas à fome no Brasil é um problema bastante complexo. Não há consenso sobre o tamanho da população atingida. Tudo depende das medidas e critérios utiliza96 Diante das dificuldades para mensurar a indigência ou a pobreza no Brasil, o Programa Fome Zero procurou estimar a quantidade de pessoas que passam fome no país tomando por base os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, de 1999, atualizados posteriormente pela edição de 2001. Buscando aperfeiçoar as metodologias existentes, partiu-se da linha de pobreza adotada pelo Banco Mundial, que considera pobres as pessoas que ganham menos de US$ 1,08 por dia. Foram desenvolvidas, então, correções metodológicas que levaram em conta a variação do dólar e o desconto das despesas com aluguel ou prestação da casa própria, item de maior peso no orçamento familiar. Com essas correções, chegou-se a um número surpreendente. A linha de pobreza média ponderada no Brasil, que é de R$ R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 71,53 mensais por pessoa, indica a existência de 46 milhões de pessoas com uma renda mensal disponível média de R$ 39,11, ou 9,9 milhões de famílias com renda mensal de R$ 183,81, levando-se em conta a média de 4,7 pessoas por família. Cabe ressaltar que, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estabeleceram um acordo de cooperação técnica, em 11 de março de 2003, para a definição de um conceito oficial de linha de pobreza, previsto no Decreto 4.564, de 01/01/2003. Este documento institui o MESA e o nomeia gestor do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. O objetivo do Ministério é chegar a um conceito unificado de pobreza e construir um indicador oficial para nortear as próximas ações do Programa Fome Zero. Caberá ao IBGE fornecer informações ao Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar em relação à geração de dados sobre renda, gastos, situação dos domicílios, emprego e nutrição das populações urbanas e rurais do país em estado de insegurança alimentar. Essas informações constituirão a base de indicadores para identificar os municípios brasileiros a serem atendidos pelo Programa Fome Zero. 2.1.2 – O Perfil da População Pobre do Brasil Estima-se, que 27,3% da população brasileira não tenham renda suficiente para garantir uma alimentação satisfatória. Desse montante de 46.126.000 de brasileiros, 26,3% se concentram nas áreas urbanas não metropolitanas, ou seja, nas pequenas e médias cidades, e 19,5% estão nas áreas metropolitanas. No entanto, é na área rural que a maior proporção de pobres pode ser encontrada: 47,3% dos que não obtêm uma renda mínima de US$ 1,08 por dia estão fora das cidades. Por outro lado, embora as regiões metropolitanas concentrem apenas um quinto dos pobres brasileiros e apresentem uma proporção de pobres menor que outras áreas do país, é justamente nas grandes cidades que a pobreza vem aumentando mais rapidamente. Dados do IBGE para o período de 1995 a 2001 demonstram que houve um crescimento anual de 6,7% na quantidade de pobres nas regiões metropolitanas. Essa proporção contrasta com o crescimento anual de 4,4% nas áreas urbanas não metropolitanas e com a queda de 1,9% ao ano no número de pobres residentes nas áreas rurais. Fonte: PNAD 2001 / IBGE. Obs.: Foram consideradas pobres as famílias com renda per capta menor que R$ 71,53 por mês. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 97 O País não tem legiões de famélicos, mas quase um terço de sua gente convive com a insegurança alimentar. Reverter esse quadro é incompatível com políticas que focam o atendimento a bolsões de miséria cirurgicamente delimitados. Do total de domicílios pesquisados que possuíam renda abaixo da linha da pobreza, 43% não tinham água encanada, 71,35% não tinham esgoto, o lixo não era coletado em 38,4% deles e em 12,7% não havia energia elétrica. Os Estados nordestinos são os que apresentam maior índice de pobreza no País. Todos, à exceção do Rio Grande do Norte, têm mais da metade de sua população abaixo da linha de pobreza. O Maranhão é o Estado brasileiro que apresenta a pior situação. Mais de 63% de sua população estão abaixo dessa linha. Quanto às características das famílias, pode-se dizer que 55,5% tinham cor de referência parda e 34,4% eram chefiadas por uma pessoa que nunca freqüentou escola ou tinha apenas a 1ª série do 1º grau incompleta. Em 37,5 % dos casos, habitava o domicílio um casal com filhos menores de 14 anos. Em termos absolutos, a Bahia aparece em primeiro lugar, com quase seis milhões de pessoas em situação de risco. O estado com maior proporção de pobres na área rural é também a Bahia (38,71%), enquanto no Maranhão eles se concentram nas áreas urbanas (49,8%). São Paulo e Minas Gerais, os estados mais populosos, aparecem em seguida na classificação. Em Minas, a maior concentração de pobres se dá nas cidades pequenas e médias; em São Paulo, nas áreas metropolitanas. No gráfico abaixo, verifica-se a distribuição dos pobres pelos Estados da federação. 98 Com relação às pessoas pesquisadas especificamente, observam-se dados curiosos: 69,7% das pessoas pobres nasceram no próprio município em que atualmente residem e apenas 10,8% nasceram em outro estado. Entre os maiores de 10 anos de idade, havia um contingente de 13% de não ocupados. Dos 87% ocupados, 49,1% declararam realizar trabalho agrícola e 50,9%, trabalho não agrícola. Entre os que trabalham no campo, o maior contingente de pobres (34,5%) trabalha sem remuneração e sem produzir para seu próprio consumo. Entre os trabalhadores não agrícolas, o maior contingente é o de empregados (48,5%), embora 62,1% destes não tenham registro em carteira e não recebam auxílio-alimentação. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 2.2 – Antecedentes Históricos da Fome no Brasil 2.2.1 – Os Primórdios No Brasil colonial, o problema da falta de alimentos já chamava a atenção dos governantes. A preocupação com as culturas alimentares surge já no século XVI, em função da monocultura, que não deixava espaço para a produção de “mantimentos”. Durante a escravidão, por razões econômicas, a produção de alimentos esteve muito mais ligada ao auto-abastecimento das propriedades do que às demandas colocadas pelo mercado. Com a introdução do café e a cessação do tráfico negreiro, o problema da oferta de alimentos se agravou. Havia menos braços para cultivar a terra e mais bocas para alimentar nas cidades. A escassez de alimentos e a falta de estrutura para comercialização levaram à elevação dos preços pela ação de especuladores. O ano de 1917 representou um marco nos problemas de alimentação. As dificuldades geradas pela carestia dos alimentos foram o estopim para a deflagração de manifestações e da primeira greve geral operária da nossa história, que teve lugar na cidade de São Paulo. A escassez foi agravada por crescentes embarques de alimentos brasileiros para o abastecimento das nações européias em guerra. O mercado externo não queria café, cujos preços estavam em baixa, e sim alimentos. Isso levou as fazendas, financeiramente debilitadas, a desviar para a exportação o produto agrícola que atenderia à população urbana brasileira. 2.2.2 – De Vargas a Goulart A crise dos anos 30 inaugurou um período de intervenções públicas federais no abastecimento. O Governo Vargas implantou um aparato segundo o qual cada autarquia (açúcar e álcool, mate, sal, café, trigo etc.) deveria zelar pelo equilíbrio dos mercados interno e externo e pelos preços remuneradores dos produtores. Nesse período, agravou-se o problema da oferta em conseqüência da desestruturação da agricultura cafeeira que, por um lado, favorecia a oferta de gêneros de primeira necessidade e, por outro, segurava um grande contingente populacional no campo. A Comissão de Abastecimento, criada já dentro do esforço imposto pela II Guerra Mundial, tinha como objetivo regular tanto a produção como o comércio de alimentos, drogas, material de construção e combustíveis, a fim de conter a alta de preços. Em termos práticos, essa comissão deixou algumas iniciativas importantes, como os restaurantes populares, e também alguns instrumentos de incentivo e apoio à produção agrícola. Todavia, o custo da alimentação continuou a se elevar durante o período de guerra e mesmo nos anos seguintes. Nas décadas posteriores, a fome e a carestia começaram a receber uma atenção especial dos governantes. Nos anos 50, com a modernização da agricultura e a abertura de novas vias de acesso e de novas áreas de produção, o discurso político e a ação governamental se voltaram para a área da distribuição. Embora a reforma agrária tenha sido apresentada como importante política de apoio à oferta de alimentos, a ênfase no período R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 99 recaiu sobre a área do abastecimento. Pela primeira vez em tempos de paz foram tomadas medidas de intervenção direta no abastecimento. Para tanto, em 1951 foi criada a Comissão Federal de Abastecimento e Preços (COFAP), que mais tarde abriu espaço para uma área de fiscalização (SUNAB), armazenamento (CIBRAZEM), distribuição (COBAL) e administração de estoques reguladores (CFP). Nesse período, também foi criado o Entreposto Terminal de São Paulo, embrião do CEAGESP e das Centrais de Abastecimento que se seguiram. 2.2.3 – De Castelo Branco a Figueiredo Até meados da década de 1960, o poder público teve como objetivo apenas fiscalizar e controlar os canais de comercialização de alimentos. Os governos militares se impuseram a tarefa de distribuir e fazer chegar os alimentos até o consumidor. A preocupação principal foi a de responder à demanda da sociedade, que exigia preços mais baixos e, a partir de 1968, instituiuse uma extensa rede de centrais de abastecimento (47 entrepostos) e mais de uma centena de instalações varejistas (Rede Somar). A partir daí, surgiram centenas de “varejões” e “sacolões” administrados por estados e municípios. Essa postura foi bastante distinta da anterior, que manteve sob a administração pública apenas o esquema de concessões em mercados municipais. O Estado passou, então, a administrar e direcionar os varejistas. O esforço de modernização da agricultura brasileira no período afastou de imediato a preocupação com a disponibilidade de alimentos. O principal fator impulsionador da agricultura foi a política de crédito rural subsidiado. O resultado foi uma rápida expansão da fronteira agrí100 cola, que demandou, evidentemente, a construção de uma rede de estradas e corredores para escoar a produção. Não obstante a produção agrícola fosse suficiente para atender às necessidades nutricionais — mesmo considerando a crescente exportação — e, ainda, o fato de que parte importante da distribuição estivesse sob controle do poder público, os preços dos alimentos continuaram elevados. Por outro lado, cresceu a importância dos produtos industrializados na cesta de consumo da população. Com a urbanização e a mudança dos hábitos alimentares no país, a demanda por alimentos in natura foi se reduzindo. Assim, uma parte cada vez mais importante da produção agrícola passou a ser insumo da indústria de alimentos e, daí, para os supermercados e mercearias. Acrescentem-se a isso também as mudanças ocorridas na estrutura familiar e no mercado de trabalho, que levaram a um crescente consumo de alimentos fora de casa. 2.2.4 – De Sarney a Fernando Henrique Cardoso Apesar de todo o aparato montado ao longo dos 30 anos anteriores, o poder público mostrou-se ineficiente no controle de preços, das margens de lucro e na modernização da comercialização. Em 1986, no Governo Sarney, foi criado o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC), visando atender a famílias com renda mensal total de até dois salários mínimos e com crianças de até sete anos de idade. Esse programa foi a primeira experiência de distribuição, em grande escala, de cupons de alimentos no Brasil. A administração do PNLCC estava vinculada diretamen- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 te à Presidência da República, que passou a controlar a oferta (produção e importação de leite) e o sistema de distribuição. Os cupons eram distribuídos às famílias carentes previamente cadastradas em entidades de base, na proporção de um litro de leite por criança. Não havia contrapartida dessas famílias e nem um controle eficiente. Não há informações precisas quanto ao atingimento das metas, no entanto, observouse um significativo aumento na produção de leite no país (20,1 % entre 1986 e 1990) e um crescimento no consumo per capita de 94 para 109 litros por ano no mesmo período. No início da década de 90, o Governo Collor desmobilizou e extinguiu diversas políticas, entre as quais os programas de suplementação alimentar dirigidos a crianças menores de sete anos, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Alimentação do Trabalhador, enfraquecendo, assim, o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN). O período seguinte (1992-1994) foi marcado por um amplo envolvimento da sociedade em torno dos temas fome e miséria, animada pela campanha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Em maio de 1993 o Governo Itamar Franco criou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), vinculado diretamente à Presidência da República e com a participação de organizações não governamentais. O Conselho era integrado por oito ministros e 21 representantes da sociedade civil, os quais coordenariam a elaboração e a implantação do Plano Nacional de Combate à Fome e à Miséria dentro dos princípios da solidariedade, parceria e descentralização. O CONSEA funcionou por apenas dois anos. Alguns de seus resultados foram: a descentralização da merenda escolar (Programa Nacional de Alimentação Escolar) em direção aos municípios e às próprias escolas (autonomização da gestão); a continuidade do Programa de Distribuição de Alimentos (PRODEA), com a utilização de estoques públicos de alimentos; e a prioridade ao programa de distribuição de leite (Programa de Atendimento ao Desnutrido e à Gestante em Risco Nutricional —Leite É Saúde). O Governo Fernando Henrique extinguiu o INAN e o CONSEA e, em seu lugar, criou o Conselho Comunidade Solidária. Em 1999, foi criado o Programa Comunidade Ativa (PCA), coordenado pela Secretaria Executiva do Comunidade Solidária. O PCA voltou-se para os municípios com os piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Sua proposta foi estimular a implantação de agendas locais de desenvolvimento, com base em diagnósticos participativos para identificação dos problemas de cada localidade. A partir dessas agendas, o governo federal priorizaria essas localidades em programas como Redução da Mortalidade Infantil, Agentes Comunitários de Saúde, Saúde da Família e de concessão de microcrédito. Após a extinção do INAN, o principal programa federal para combate às carências nutricionais da população de risco consistia no fornecimento de leite e óleo de soja, feito pelo programa de Incentivo ao Combate às Carências Nutricionais (ICCN), do Ministério da Saúde, juntamente com o fornecimento da multimistura para crianças desnutridas, realizado pela Pastoral da Criança. No final de 2000, o governo federal cortou a verba do PRODEA do Orçamento da União, acabando com a distribuição de ces- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 101 tas básicas. A justificativa oficial foi o caráter assistencial do programa, que, segundo o governo, não contribuía para o combate à pobreza no país. Argumentou-se, também, que a distribuição de cestas vindas de fora não ajudava a economia local. Embora nunca tenha saído da pauta de problemas nacionais, houve um arrefecimento na discussão sobre o problema da fome e da miséria no país desde o fim da mobilização promovida pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, em 1993. 2.3 - As Políticas Propostas O Programa Fome Zero é composto por dezenas de ações integradas com o objetivo de erradicar a fome e implementar uma política permanente de segurança alimentar e nutricional. As ações estão sendo implementadas, de forma gradativa, visando a garantir segurança alimentar aos brasileiros que não dispõem de renda suficiente para uma alimentação adequada. São três as frentes de atuação do Programa: um conjunto de políticas públicas; a construção participativa de uma Política Nacional 102 de Segurança Alimentar e Nutricional e um grande Mutirão Contra a Fome. As políticas públicas são apresentadas em três conjuntos de políticas articuladas entre si. São elas: · políticas estruturais – voltadas para as causas profundas da fome e da pobreza; · políticas específicas – voltadas para atender diretamente as famílias no que se refere ao acesso ao alimento; e · políticas locais – que podem ser implementadas por prefeituras e pela sociedade. O Programa Fome Zero partiu do diagnóstico de que não existe uma política integrada de combate à fome no Brasil. Nos últimos anos, os três níveis de governo e a sociedade colocaram em marcha iniciativas isoladas, com um nível de organicidade muito reduzido. No total, o Fome Zero estabelece 25 políticas integradas por mais de 40 programas destinados a melhorar a qualidade, a quantidade e a regularidade de alimentos necessários à população: R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 O MESA (Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar de Combate à Fome) estabeleceu cinco áreas prioritárias de implantação do programa: o semi-árido nordestino, incluindo o Vale do Jequitinhonha, em Minas; os acampamentos e assentamentos rurais; as aldeias indígenas; os quilombolas; e a população que vive nos/dos lixões. Isso não significa, entretanto, a exclusão das demais áreas do país. Qualquer município ou Estado pode integrar-se ao programa desde que cuide de instituir o CONSEA (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional) municipal ou estadual, com membros na proporção de 2/3 de representantes da sociedade civil organizada (priorizando entidades que atuam na área da segurança alimentar) e 1/3 de representantes do poder público. 2.4 - A Logística Aplicada Paradoxalmente à constatação do enorme efetivo de brasileiros que não se ali- mentam adequadamente, o Brasil anunciou a colheita de uma safra recorde em 2003, da ordem de 115 milhões de toneladas de grãos – 19% superior à anterior. Num país que figura como um dos quatro maiores exportadores de alimentos do mundo, o retrato da desnutrição muitas vezes é esmaecido pela abundância da oferta. Definitivamente, o Brasil figura como o exemplo inconteste de que a simples capacidade produtiva de alimentos em abundância não confere segurança alimentar à população. No ANEXO 1 e no ANEXO 2, pode-se perceber que a maior parte da demanda do mercado interno é produzida em território nacional. O planejamento logístico do programa Fome Zero partiu da detecção de que a produção dos alimentos no país está submetida à mesma lógica subjacente às desigualdades regionais. ESTIMATIVA DE PRODUÇÃO DE GRÃOS SAFRAS 2001/02 e 2002/03 (em 1.000 t) VARIAÇÃO SAFRA CULT URA CAROÇO DE ALGODÃO AMENDOIM TOTAL AMENDOIM (1 ª SAFRA) AMENDOIM (2 ª SAFRA) ARROZ AVEIA CENTEIO CEVADA FEIJÃO TOTAL FEIJÃO (1 ª SAFRA) FEIJÃO (2 ª SAFRA) FEIJÃO (3 ª SAFRA) GIRASSOL MAMONA MILHO TOTAL MILHO (1 ª SAFRA) MILHO (2 ª SAFRA) SOJA SORGO TRIGO TRITICALE BRASIL 2001/02 (a) 1.244,9 189,4 157,7 31,7 10.626,1 284,7 5,8 234,8 2.956,5 1.303,0 1.030,2 623,3 71,0 72,4 35.280,7 29.100,2 6.180,5 41.915,3 798,2 2.913,9 138,8 96.732,5 2002/03 (b) 1.351,4 171,3 141,6 29,7 10.616,1 284,7 6,0 295,4 3.231,9 1.240,4 1.278,9 712,6 71,5 103,7 42.757,5 33.696,6 9.060,9 50.325,0 1.180,4 4.514,7 301,9 115.211,5 PERCENTUAL ABSOLUTA (b/a) (b-a) FONTE: CONAB R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 8,6 -9,6 -10,2 -6,3 -0,1 0,0 3,4 25,8 9,3 -4,8 24,1 14,3 0,7 43,2 21,2 15,8 46,6 20,1 47,9 54,9 117,5 19,1 106,5 -18,1 -16,1 -2,0 -10,0 0,0 0,2 60,6 275,4 -62,6 248,7 89,3 0,5 31,3 7.476,8 4.596,4 2.880,4 8.409,7 382,2 1.600,8 163,1 18.479,0 abr/03 103 A capacidade de armazenamento, por exemplo, constitui um indicador logístico bastante elucidativo. A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) possui um cadastro de armazéns com os quais opera na implementação das políticas emanadas do Ministério da Agricultura. flete a proporcionalidade do número de habitantes consumidores da área. Os instrumentos governamentais para garantia de oferta e controle de preços, portanto, estão bastante comprometidos. Atuando na execução da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), a CONAB adquire o excedente do mercado, formando os estoques reguladores e estratégicos do Governo Federal, para comercialização nas épocas de entressafra. Pode-se constatar, também, a insuficiência de distribuição espacial de armazenagem. Nas regiões Norte e Nordeste poucos Estados da Federação possuem armazéns credenciados, ao passo que nas demais regiões do país, todos os Estados possuem uma rede de armazenagem privada compatível com os critérios técnicos da CONAB. Observa-se claramente na FIGURA 6 que o número de armazéns privados credenciados na região Nordeste não re- A implementação das políticas específicas do Programa Fome Zero, como o Cartão-Alimentação, a manutenção de esto- NÚMERO E CAPACIDADE ESTÁTICA DOS ARMAZÉNS CREDENCIADOS POR ESPÉCIE E REGIÃO ESPÉCIE UF NORTE RONDONIA TOCANTINS TOTAL NORDESTE BAHIA MARANHÃO TOTAL CENTRO-OESTE DISTRITO FEDERAL GOIÁS MATO GROSSO DO SUL MATO GROSSO TOTAL SUDESTE ESPIRITO SANTO MINAS GERAIS RIO DE JANEIRO SÃO PAULO TOTAL SUL PARANÁ RIO GRANDE DO SUL SANTA CATARINA TOTAL TOTAL BRASIL MÊS: Abril/2003 CONVENCIONAL GRANEL TOTAL Nº ARM. CAPAC (t) Nº ARM. CAPAC (t) Nº ARM. CAPAC (t) 4 1 5 12.900 4.000 16.900 1 1 28.000 28.000 4 2 6 12.900 32.000 44.900 15 15 33.031 33.031 2 2 18.000 18.000 15 2 17 33.031 18.000 51.031 3 20 9 37 69 23.100 116.598 36.736 243.501 419.935 1 46 14 48 109 25.800 1.959.663 328.636 928.356 3.242.455 4 66 23 85 178 48.900 2.076.261 365.372 1.171.857 3.662.390 3 17 11 31 63.000 131.948 145.937 340.885 1 4 2 7 12.000 123.850 54.301 190.151 4 21 0 13 38 75.000 255.798 200.238 531.036 165 3 3 171 881.915 11.813 6.390 900.118 221 7 2 230 3.986.835 109.693 17.568 4.114.096 386 10 5 401 4.868.750 121.506 23.958 5.014.214 291 1.710.869 349 7.592.702 640 9.303.571 Fonte: CONAB/SUARM/GECAD 104 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 ques de segurança, ou mesmo a ampliação da merenda escolar, contribuirá para um aumento na demanda comercial de alimentos na região, que deverá fomentar a instalação gradual de infra-estrutura para o agronegócio. É importante ressaltar que 49,6% das 44 milhões de pessoas a serem beneficiadas com o Fome Zero estão na região Nordeste, a qual responde por apenas 10% da produção nacional de grãos. No ANEXO 3 e no ANEXO 4 pode-se observar o que ocorre com os dois itens de maior consumo no país. Observa-se, portanto, que no curtíssimo prazo a produção nacional é insuficiente, à exceção do óleo de soja e café, para suportar tal acréscimo de demanda. Como o programa está faseado, almejando atingir no primeiro ano 9,6 milhões de pessoas, o governo pretende promover o aumento da produção de forma gradual, combinandoa com importações e constituição de estoques reguladores estratégicos. A Confederação Nacional da Agricultura estima que o aumento da demanda poderá chegar a 56% no caso do feijão, 23% no leite, até 12% para o arroz e de 17% para carne de frango. Os estoques atuais de alimentos são os menores da década e praticamente inexistem estoques públicos (Oliveira e Hofstaetter, 2001). Especialmente na região nordeste, é imperativo o retorno de programas de incentivo a empreendimentos que visem a melhora na rede armazenadora, especialmente nas cooperativas de produtores, que possibilitem a comercialização tardia e programada fora das épocas de colheita. O equacionamento logístico definitivo da questão alimentar passa, portanto, pela diminuição da discrepância entre as zonas produtoras e a região onde se localizam os mais necessitados. Atualmente, quase 90% da produção nacional localizam-se no Sul, Sudeste e porção meridional do Centro-Oeste, enquanto que 60% dos famintos habitam o Norte-Nordeste. 3 – A LOGÍSTICA MILITAR E O PROGRAMA FOME ZERO “Se servistes à Pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, e ela o que costuma”.(Padre Antônio Vieira em sermão de 1669, sobre os militares e o poder político). 3.1 – Considerações Iniciais Sabe-se que a atividade logística é oriunda do meio militar, no entanto, desenvolveu-se no ambiente empresarial de forma tão significativa nos últimos anos que, especialmente nos EUA, a logística, dita civil, assumiu paulatinamente a maior parte dos encargos da logística militar via “terceirização”. Hoje no Brasil esse fenômeno de desenvolvimento no meio privado também se verifica com grande vigor. Empresas especializadas em logística criaram um nicho estratégico, onde se concentra toda operação de armazenagem, transporte, gerenciamento de insumos e distribuição dos produtos. Os investimentos realizados por essas empresas em modernização (informatização dos processos, softwares de gestão, apoio ao comércio pela Internet, sofisticados controles de estoques, etc.) necessita ser estudado, entendido e considerado na confecção dos planos logísticos que viabilizam o emprego das Forças Armadas nas diversas HE. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 105 Estar apto a transitar com desenvoltura no meio da moderna logística civil será fundamental para, nas ativações das Bases Logísticas em Operações Militares, lograr o controle efetivo de estoques em armazéns fiéis depositários de itens de suprimento que extrapolem a capacidade das instalações militares, realizar processos licitatórios de bens e serviços com as ferramentas do mercado, ou mesmo valer-se da experiência obtida nos últimos anos por diversos grupos no transporte multimodal. Integrar a logística militar ao esforço conjunto que vem sendo realizado pelo setor produtivo em apoio ao Programa Fome Zero pode se constituir em útil oportunidade de criação de interfaces interessantes, senão imprescindíveis, à Logística Militar. 3.2 - As contribuições do Fome Zero à Logística Militar. Algumas hipóteses de Emprego, estudadas hoje no Ministério da Defesa, contemplam a necessidade de obtenção de competência para o desenvolvimento da função logística suprimento – especialmente à população civil – de forma muito próxima ao que está sendo implementado no Programa Fome Zero. Grandes massas humanas tendo que se deslocar, ou sendo evacuadas de determinadas áreas, acarretarão a necessidade de abrigos temporários, ou mesmo acampamentos para refugiados, com demandas logísticas muito semelhantes às dispensadas hoje pelo Programa aos acampamentos e assentamentos do Movimento dos Sem Terra (MST). O adestramento logístico para apoiar as diversas HE demanda simulações dispendiosas e de difícil realização. As conseqüências vislumbradas à população 106 civil evacuada da Zona de Combate (ZC), bem como àquela parcela majoritária que experimentará o Esforço de Guerra nas distintas áreas da Zona de Interior (ZI) demandará interfaces vigorosas com a Defesa Civil e demais organizações afetas às questões humanitárias. Os militares tendem à hesitação em institucionalizar esse tipo de adestramento porque não desejam que as emergências humanitárias, ações consideradas subsidiárias, interfiram com o adestramento relacionado às missões mais tradicionais de combate. A despeito do cunho eminentemente defensivo de todas as HE consideradas pelo MD - o que invariavelmente incluiria parte do território brasileiro no Teatro de Operações (TO) - pouco se considera de adestramento para as operações de Segurança e Defesa de Área de Retaguarda (SEGAR e DEFAR). A logística envolvida no Programa Fome Zero poderia ser aproveitada para atualização de conhecimentos específicos e fomento de uma rede mais integrada de agentes que certamente estarão envolvidos na ZI, em uma eventual escalada de crise e concretização de HE subseqüente. A fome advinda da guerra é uma certeza que, por si só, já seria um importante ponto de convergência. No entanto, o ponto que mais se ressalta diz respeito às características dos conflitos armados contemporâneos. O terrorismo se proliferou nos combates assimétricos, e os grandes desastres planejados e provocados como meio de guerra são uma realidade. A concepção de novas doutrinas para DEFAR e condução das atividades na ZI urge. Outro benefício do Fome Zero à Logística Militar relaciona-se à inserção R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 planejada pelo Programa em áreas sensíveis como a Amazônia e, em especial, às reservas indígenas. É do conhecimento geral as manobras “pacíficas” de grandes potências econômicas em relação à Amazônia, sob a alegação de sua importância e interesse de toda a humanidade. O governo federal brasileiro, em passado recente, demarcou para os índios Ianomâmis uma reserva com área de 94 mil quilômetros quadrados (o tamanho do Estado de Santa Catarina). Esta vasta reserva é povoada por cerca de cinco mil índios e prolonga-se em território venezuelano. As duas, somadas e fundidas em uma só, sem solução de continuidade, podem formar um enclave entre os dois países, com foros de estado independente. Cabe recordar que, em recente conferência internacional realizada em Genebra, sob os auspícios da ONU, foi debatido um projeto de Declaração Universal dos Direitos Indígenas. Nesse projeto pretendeu-se inserir o princípio do direito à autodeterminação dos territórios indígenas – proposta vigorosamente combatida pelo representante do Itamaraty. Com efeito, se concedido esse direito à autodeterminação, o País estaria a braços com um problema de gigantescas proporções. A inclusão social de parcelas cada vez maiores da população indígena, e de residentes em áreas circundadas por florestas, desde muito figura entre as ações estratégicas do Projeto Calha Norte, mormente defendido pelas Forças Armadas. A proposta do Programa é potencializar as atividades locais com o fomento da economia regional nos municípios que fazem parte da Amazônia, principalmente, aque- les que têm como principal fonte de renda as atividades extrativistas. Os recursos do Programa servirão para a aquisição de equipamentos que poderão gerar emprego e renda às famílias, que precisam de motor para barcos, despolpadeira de frutas, além de outros instrumentos que podem incentivar de forma direta a economia local. A construção de armazéns para garantir a armazenagem da produção familiar, característica na região, é uma das ações que garantirá a organização dos produtores. Antes mesmo da demonstração inconteste ocorrida recentemente no Iraque, o novo Direito Internacional já apontava para algumas concepções, constantemente ressaltadas pela Forças Armadas, tais como: direito de ingerência, tutelas supranacionais, direitos humanitários e soberanias limitadas, todos coincidindo no desconhecimento da primazia estatal dentro da ordem internacional. O desenvolvimento social na área amazônica, a presença do Estado, e a disseminação da cidadania inclusiva vêm, portanto, ao encontro dos interesses da Defesa Nacional e criam condições logísticas mais favoráveis ao cumprimento das missões de caráter militar na região. Outro ponto interessante de análise, dessa convergência de interesses entre o Fome Zero e os interesses de Defesa, diz respeito à capacitação das Forças Armadas para um relacionamento eficaz com organizações civis. O Brasil reivindica uma reestruturação no Conselho de Segurança da ONU e sua inclusão como membro permanente. Tal aspiração demandará um engajamento crescente das Forças Armadas em Operações de Paz e de Ajuda Humanitária. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 107 As Forças Armadas brasileiras há muito adotam o adestramento de combate como Importante dissuasor estratégico, no entanto, necessitam também estar aptas às operações multinacionais de paz, que têm grande valor no cumprimento do mesmo papel. Uma doutrina específica necessitará ser assimilada pelas Forças, pois, nessas ocasiões, é grande a interação logística com ONG para diversas missões, que vão desde ajuda a descarregar suprimentos dos caminhões militares à montagem conjunta de hospitais de campanha. As situações pós-conflitos (como se verifica no Iraque no exato momento da elaboração deste trabalho) são adequadas às operações militares de assistência humanitária, com forte presença de ONG, eivadas de problemas advindos dessa relação estreita de militares com organizações civis. O militar precisa entender melhor os requisitos e filosofias das organizações não governamentais e suas funções, bem como pode-se levar muito tempo para convencer as ONG de que as Forças Armadas em Missões de Paz, tem os mesmos objetivos. Os militares tendem a buscar uma solução que estabilize a situação em curto prazo, seja por meio de ações que venham a contribuir para o fim da fome, seja pela construção de abrigos temporários em caso de desastres, ou pela diminuição das pressões. As ONG, por outro lado, têm tratado de situações humanitárias por décadas, tais como a pobreza, o subdesenvolvimento, as doenças e a inanição. As organizações civis preferem a abordagem em longo prazo. Em geral se encontram na área bem antes que as Forças de Paz e permanecerão por mais tempo. Envolver-se institucionalmente com o Fome Zero pode oportunizar a interação antecipada com algumas organizações ci108 vis que, inevitavelmente, estarão presentes nos Teatros de Operações planejados em algumas HE. Na Amazônia, por exemplo, é bastante improvável que uma atuação das Forças Armadas se configure de forma asséptica. Não será surpresa se algumas ONG se encontrem na área, antecipadamente à concentração estratégica das Forcas Armadas. Na Bósnia, algumas ONG, ou Organizações Voluntárias Privadas (OVP), já estavam no TO cinco anos antes da chegada das tropas da OTAN. Na Somália, por sua vez, as Forças Armadas dos EUA tiveram que interagir com setenta e oito diferentes ONG internacionais. Ser alçado à posição mais condizente com sua estatura geopolítica é um objetivo estratégico de real importância, no entanto, poderá exigir do Brasil, em breve, a contribuição mais efetiva de suas Forças Armadas em Missões de Paz. Conduzir trocas de prisioneiros, coordenar a desmobilização, exercer o controle de armas, realizar a desminagem, interpor-se na fase de desengajamento, são missões tipicamente militares que, invariavelmente, coexistirão com o auxílio humanitário, o apoio de saúde, a administração de deslocamentos maciços de gente, o monitoramento de eleições, e diversas outras atividades com forte presença civil. 3.3 - As contribuições da Logística militar ao Fome Zero O Ministério da Defesa estabeleceu que a participação das Forças Armadas se dará por intermédio da instalação de Postos de Coleta de Alimentos (PCA), em Organizações Militares pré-selecionadas em todo o País (ANEXO 5). Cada PCA desenvolverá os serviços de recebimento, armazenamento e controle do R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 material não perecível doado, sendo o transporte para o recolhimento dos donativos da responsabilidade das organizações civis envolvidas. A atuação das OM da Marinha, Exército e da Aeronáutica designadas como PCA, não se constitui em Operação Militar e encontra amparo legal no disposto pelo artigo 16, da Lei Complementar N° 97, de 09 de junho de 1999, que trata de ações subsidiárias. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o PCA credenciado é o 21° Depósito de Suprimento, com capacidade de armazenagem de 500 toneladas (podendo gerenciar adicionalmente mais 500 toneladas em depósito localizado no aquartelamento do 2° Grupo de Artilharia Antiaérea, pertencente ao antigo Depósito Regional de Armamento e Munição - DRAM/2). Persistem alguns entraves à otimização do Programa, que as Forças Armadas têm condições, por sua experiência, de auxiliar a debelar. Um exemplo pouco conhecido diz respeito à utilização de objetos e gêneros alimentícios apreendidos pela Receita Federal. A legislação que regula a destinação dos objetos apreendidos determina que os mesmos sejam leiloados, incorporados a órgãos públicos das três esferas de governo ou doados a entidades sem fins lucrativos. A Portaria Nr 280, da Receita Federal, baixada pelo secretário da Receita, Jorge Rachid, em 10 de maio de 2003, determina a prioridade de doação de mercadorias apreendidas ao programa “Fome Zero”, coordenado pelo Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar. A idéia de direcionar os produtos apreendidos (principalmente alimentos, roupas e calçados), para o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, ainda não se efe- tivou a contento. Dentre algumas razões, a falta de comunicação e, principalmente, o domínio dos meandros típicos dos processos administrativos envolvidos (documentação necessária para solicitações, atos de destinação, transferências patrimoniais, etc.) parecem figurar como as principais. As Forças Armadas são habitualmente beneficiadas com os produtos apreendidos e já desenvolveram, nos últimos anos, a rede de contatos e competência necessária para lograr a incorporação de bens e gêneros alimentícios à sua cadeia de suprimento, com transparência e controle. Somente no porto de Santos, no ano de 2002, mais de 100 toneladas de alimentos apreendidos foram direcionadas às três Forças Armadas (alho, grão-de-bico, azeitona, pasta de atum, bacalhau, alcaparra, enlatados diversos, etc.). Na logística desse processo encontram-se medidas complexas para uma organização filantrópica, tais como: exames bromatológicos nas amostras de alimentos apreendidos, planejamento prévio de distribuição, transporte comum e frigorificado, técnicas de armazenagem, mecanismos de controle, etc. Uma parte considerável dos alimentos apreendidos nos últimos anos pela Receita Federal se deteriorou nos depósitos e, consequentemente, foi descartada. Em algumas oportunidades, as quantidades apreendidas foram de tal monta, que extrapolaram a capacidade de transporte, ou de consumo dentro dos prazos de validade pelas Organizações Militares e civis. É fato que a experiência adquirida pelas Forças Armadas para viabilizar o aproveitamento de gêneros alimentícios aprendidos, em tempo hábil e dentro dos prazos de validade, poderia ser colocada à disposição do Programa. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 109 4 – O FOME ZERO E A MOBILIZAÇÃO NACIONAL “A hora de consertar o telhado é quando o sol está brilhando” (Sepúlveda Pertence) 4.1- Considerações Iniciais Na fase de Execução de uma Mobilização Nacional, ao Estado incumbe promover a transferência de meios existentes no Poder Nacional e a produção oportuna de meios adicionais, de forma acelerada e compulsória, em face da iminência de concretização ou da efetivação de uma Hipótese de Emprego das Forças Armadas. Essas ações podem causar transtornos à vida nacional e são, consequentemente, dependentes da maneira como o Preparo da Mobilização, em grande parte inserido no processo de Desenvolvimento, for planejado e executado. A maior ou menor facilidade que tem a Nação de passar de uma situação normal para uma situação de emergência de grau excepcional é aferida por meio de sua Capacidade de Mobilização, ou seja, de seu grau de aptidão para, em tempo oportuno, passar de uma situação de paz para uma de guerra, com o máximo de eficácia e um mínimo de transtornos para a vida nacional. Embasa essa aptidão para Mobilização uma forte componente psicossocial, não inata, antes, adquirida na forja do sofrimento coletivo experimentado no decorrer da História de um povo. A ausência histórica de catástrofes naturais (ou acidentais), que atingissem uma grande parcela das elites brasileiras, acarretou uma certa desarticulação da sociedade para reagir de forma sistêmica às ameaças sociais. 110 A desejável promoção do bem comum tem suas raízes mais profundas no afloramento de um sentimento de solidariedade nacional, observável claramente, não por acaso, em alguns países que tiveram seus territórios e populações atingidos severamente por conflitos armados de grande destruição. É notório que o Programa de Segurança Alimentar Fome Zero foi concebido em uma situação conjuntural rara, caracterizada pela convergência de uma série de processos políticos, econômicos e sociais. Tal momento histórico, propiciou um fenômeno de engajamento da sociedade, e em especial das elites, bastante semelhante ao verificado nos países sob forte ameaça externa. “A nossa Guerra é contra a Fome” foi o slogan oportunamente utilizado pelo Programa, em contraponto à invasão do Iraque pela coalizão anglo-americana no início de 2003. Ainda que o argumento de marketing adotado esteja baseado em uma mensagem anti-belicista, aufere possibilidade de reflexão ideológica com respeito à Mobilização inerente à “nossa guerra”. 4.2 - A Contribuição ao Preparo da Mobilização Nacional No que tange à Expressão Psicossocial do Poder Nacional, pode-se afirmar que o momento presente pode servir de estágio prévio ao desejável desenvolvimento de uma cultura de Defesa, quiçá um embrião de natureza psicológica da Mobilização Nacional. Segundo o Manual de Mobilização Nacional (MD51-M-01) a Mobilização na Expressão Psicossocial do Poder Nacional visa à motivação de pessoas e da sociedade com o propósito de preparar a na- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 ção, social e psicologicamente, para fazer face a uma situação de emergência decorrente da iminência de concretização ou efetivação de uma Hipótese de Emprego das Forças Armadas “. A Mobilização na Expressão Psicossocial pode ser dividida, ainda que didaticamente, em dois segmentos, cada um deles com aspectos peculiares: a Mobilização Social e a Mobilização Psicológica. A Mobilização Social tem por objetivo preparar a população, física e socialmente, a fim de proporcionar ao Estado condições indispensáveis para enfrentar uma situação de emergência, configurada em Hipótese de Emprego já concretizada ou na iminência de se concretizar. Na busca do Bem Comum, o Governo, desde a situação normal, desenvolve ações e persegue metas preconizadas para o campo do Desenvolvimento que valorizam, em especial, o Homem e que se confundem com as do Preparo da Mobilização Social. Existem diversos pontos de convergência entre o preconizado no Manual MD51M-01 e o Programa Fome Zero. O documento do MD propõe medidas que busquem a maior participação comunitária visando a fomentar a ajuda mútua nos grupos sociais para debelar alguns fatores como: problemas decorrentes da distribuição da renda e desigualdade no desenvolvimento regional. A Mobilização Psicológica, por sua vez, tem por objetivo preparar a população, moral e psicologicamente, a fim de proporcionar ao Estado condições indispensáveis para enfrentar uma situação de emergência, configurada em Hipótese de Emprego já concretizada ou na iminência de se concretizar. Na fase do Preparo da Mobilização Psicológica o governo desenvolve ações visando a alcançar uma série de metas básicas, dentre as quais, para o objetivo específico deste trabalho, ressalta-se a seguinte: fortalecer o sentimento nacionalista e o moral do povo, cultivando o espírito de solidariedade nacional. Não se pode negar que os atributos da área afetiva desejáveis a uma Mobilização Psicossocial, estão amplamente colimados com o marco filosófico do programa governamental de segurança alimentar. A Mobilização da Expressão econômica, por sua vez, deve considerar que o conceito de Segurança alimentar ganha contornos estratégicos ao confrontar-se com as relações mundiais de poder, evidentemente favoráveis aos que concentram 85% dos recursos econômicos – o chamado Hemisfério Norte – em detrimento dos países do “Sul”, que contam, paradoxalmente, com 80% da população do planeta. Ao se configurar realmente em território brasileiro o propalado celeiro do mundo, não se pode olvidar que, no recente final do século passado, as 200 maiores empresas transnacionais consolidaram-se como verdadeiros conglomerados, cujas atividades planetárias abrangem, sem distinção, os setores primário, secundário e terciário: grandes plantações agrícolas, produção manufatureira, serviços financeiros, comércio, logística, etc. Geograficamente, esses conglomerados distribuem-se entre dez países: Japão (62), Estados Unidos (53), Alemanha (23), França (19), Reino Unido (11), Suíça (8), Coréia do Sul (6), Itália (5) e Holanda (4). (Ramonet,1997). R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 111 Isso levando-se em conta somente a economia real, ou seja, a que produz e troca bens e serviços concretos. Caso fossem considerados os atores principais da economia financeira, isto é, os principais fundos de pensão americanos e japoneses, o peso dos Estados torna-se quase negligenciável. No mais importante esforço financeiro feito na história econômica contemporânea em favor de um país em crise econômica– México em 1995 – os grandes Estados do planeta, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional reuniram o valor aproximado de US$50 bilhões. Tomando-se em conta somente os balanços publicados dos três maiores fundos de pensões norte-americanos Fidelity Investments, Vanguard Group e Capital Research and Management – pode-se constatar que esses grupos sozinhos controlam mais de 10 vezes aquele valor, ou seja, mais de US$ 500 bilhões. Os administradores desses fundos concentram em suas mãos um poder financeiro de uma envergadura inédita, que nenhum ministro da Fazenda ou diretor de Banco Central do mundo possui. Parece bastante evidente que a dependência da mão invisível do mercado para a promoção espontânea do “bem comum”, especialmente em países em desenvolvimento, não se configura como uma política social adequada. Afinal, como observa o professor Paul Samuelson, prêmio Nobel de economia, “O mercado é eficaz, mas não possui cérebro nem coração”. O Presidente Lula conclamou a sociedade, e em particular a elite econômica, a um engajamento solidário típico dos períodos de emergência. Em seu discurso de posse perante o Congresso Nacional, no dia 1° de Janeiro de 2003 disse: “Transfor112 memos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foi no passado a criação da Petrobrás”. A resposta ao apelo presidencial pode se verificar no expressivo engajamento ao Programa de grandes grupos econômicos. A transição do campo ideário para o da efetividade não é fácil. O domínio do conhecimento que o país ora está adquirindo de gerenciamento dos mecanismos possíveis de transferência de recursos econômicos para um enfrentamento emergencial, é singular e valiosíssimo ao preparo de uma eventual Mobilização Nacional. A Mobilização da Expressão Política, por outro lado, constitui um dos maiores óbices encontrados na fase do Preparo da Mobilização, acarretando a falta de instrumentos legais que legitimem sua ação. As muitas medidas que necessitam ser implementadas para viabilizar uma Mobilização, evidentemente, devem ser prévias a qualquer escalada de crise. Do poder político emana o marco legal que viabilizará as transferências de recursos entre as Expressões do Poder Nacional em caso de efetivação de uma HE, no entanto, a passagem do campo das idéias e das boas intenções para a efetiva implantação de instrumentos legais de suporte ao um esforço de guerra, carece de testagens de difícil realização em tempo de paz. A implantação do Fome Zero deve ser observada com atenção. A isenção fiscal, concedida para o ICMS nas doações de mercadorias e de serviços de transporte para o Programa é um ensaio dos instrumentos fiscais que poderiam se configurar em situação prévia a uma Mobilização Nacional. O convênio ICMS 018/03, que trata da isenção, foi aprovado na reunião do R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) de 04 de abril de 2003. Para obter a isenção, os doadores devem possuir Certificado de Participante do Programa. O MESA está responsável por divulgar no site do Programa (www.fomezero.gov.br) a lista de entidades assistenciais e as empresas que têm direito à isenção. Na Expressão Militar do Poder Nacional, o sucesso do Fome Zero, enquanto promotor do desenvolvimento social, contribuirá para a melhora dos recursos humanos mobilizáveis, em especial nas regiões mais pobres do País. A Mobilização da Expressão Científica e Tecnológica aplicada ao campo da Logística, talvez seja uma das maiores contribuições do Programa Fome Zero. É extremamente difícil para as Forças Armadas, especialmente em tempos de orçamentos exíguos, atrair a capacidade já desenvolvida nesse campo do Poder Nacional, para contribuir com as soluções Logísticas necessárias à efetivação das HE em exercícios de Mobilização. A logística empresarial instada no País oferece soluções personalizadas, sustentada por uma base tecnológica altamente moderna e domínio dos diferentes modais de transporte. Em apoio às demandas do Governo, O Fome Zero logrou atrair o esforço voluntário das melhores empresas de Logística do País, fato de dificílima reprodução, é mister reconhecer, na atual conjuntura da Defesa Nacional. A Gerência Geral Intermodal da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, colocou-se à disposição do Programa para contribuir com o uso de sua malha ferroviária (com 700 vagões e 26 locomotivas dedicadas), seus serviços de cabotagem (com 6 navios conteineiros e 10 portos escalados), bem como sua flexibilidade de 2 armazenagem (em mais de 25 mil m de armazéns alfandegados) . Por ocasião da campanha “Ford Zero, Fome Zero” a Ford se propôs a doar 200 kg de alimentos a cada caminhão vendido no mês de fevereiro. As vendas de caminhões cresceram 12% neste mês, comparadas com janeiro. Assim, foi possível chegar a 225 toneladas de alimentos, equivalentes a 8.590 cestas básicas. A logística foi articulada entre a Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia Brasileira de Abastecimento (CONAB). Os alimentos seguiram em 10 conteineres para o porto de Santos e de lá foram transportados de navio até o porto de Fortaleza, no Ceará. O custo, assumido pela Vale, representa uma economia de cerca de R$ 60 mil em relação ao transporte terrestre. Assim que foram desembarcados em Fortaleza, os alimentos foram transportados até o armazém da CONAB em Maracanaú, na região metropolitana da capital. Por indicação da Ford, metade da doação – 4.245 cestas básicas – seguiu para Independência, município cearense para o qual a empresa costuma direcionar suas ações de responsabilidade social. A Vale do Rio Doce mantém à disponibilidade do Fome Zero, representado pela CONAB, cinco conteineres em qualquer navio da empresa, e 1 conteiner em qualquer composição ferroviária se deslocando entre o porto de Santos e as cidades Anápolis/Brasília, porto de Vitória e a cidade de Uberlândia ou nas conexões de Santos para Salvador. A TNT Logistics, outra grande empresa especializada do setor, está trabalhando na R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 113 solução logística para a distribuição das cestas básicas que a CONAB licitou para distribuição a todos os acampamentos e assentamentos do Movimento dos Sem Terra. A CONAB, por sua vez, vem participando do Programa Fome Zero, no que concerne ao abastecimento alimentar, na função de executora operacional, recebendo produtos e serviços em doação, comprando, vendendo, vendendo e comprando simultaneamente, transportando e armazenando alimentos, incluindo a logística de distribuição de produtos e serviços aos beneficiários indicados pelo Ministério da Segurança Alimentar e Combate à Fome - MESA. Pode-se acrescentar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), que no ato de adesão ao Programa fez questão de ressaltar ser a única empresa logística presente em todos os 5.561municípios do país. Além de disponibilizar sua estrutura para arrecadação e transporte de gêneros, está oferecendo a solução logística para a distribuição dos cartões-alimentação. A ECT conta com uma infra-estrutura logística composta por 12.234 agências, 37 aeronaves, 16 barcos, 5297 veículos, 15.489 motocicletas e 19.000 bicicletas em apoio aos seus 47.000 carteiros. Muitas das demandas da Logística Militar são perfeitamente mobilizáveis no País, contudo, o hiato tecnológico entre as estruturas militares e o setor privado evidencia uma grande vulnerabilidade a ser debelada pelo Preparo da Mobilização Nacional. Na falta de recursos para reproduzir, em exercícios e simulações, uma situação de emergência que aglutine o potencial empresarial logístico em prol dos interesses da Defesa Nacional, integrar o Fome Zero tem se tornado uma útil alternativa de atualização cognitiva. 114 5 - CONCLUSÃO “Não devemos conservar o Exército a que estamos acostumados, mas construir o Exército de nossas necessidades”. (De Gaulle, 1932). É quase unânime o reconhecimento de que, nesse início de Século, o mundo experimenta um período de rupturas, recomposição de forças geoestratégicas, abalo das formas sociais, dos atores econômicos e dos pontos de referência culturais. O estudo da Logística Militar e da Mobilização Nacional, em todos os países que tratam as questões inerentes à Defesa Nacional de forma estratégica, dáse em meio à perda de importância da sociedade industrial, em detrimento da sociedade do conhecimento e no exato momento em que o mundo observa novas formas de se fazer a guerra. Assim como as Forças Armadas que souberam aproveitar os impulsos da revolução industrial conseguiram se projetar no cenário internacional, hoje uma nova corrida se empreende para que a Expressão Militar do Século XXI consiga engatar-se com oportunidade na estrutura da sociedade do conhecimento. Os desafios são também diferentes. O incrível avanço da tecnologia da informação possibilita a globalização do crime organizado, da especulação financeira, dos delitos transnacionais de toda ordem, bem como as possíveis conexões destes com o terrorismo e os fundamentalismos. No bojo dessa transformação acelerada da sociedade, paradoxalmente ao grande desenvolvimento científico-tecnológico, agravaram-se os problemas econômicosociais em todo o mundo. A concentração da renda aumentou e pode-se verificar a incrível coexistência de R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 uma minoria de habitantes do Planeta protagonizando a chamada era pós-moderna, um numeroso grupo de trabalhadores e representantes da classe produtiva ainda no período moderno (industrial), e uma enorme massa de seres humanos ainda na pré-modernidade medieval. Nesse contexto, o conceito de Segurança Alimentar de um país ganhou contornos estratégicos. Consolidou-se a idéia de que a soberania de um país também depende da capacidade de assegurar o suprimento de alimentos à sua população, segundo os requisitos de: quantidade adequada, equilíbrio nutritivo, regularidade de oferta e dignidade na forma de obtê-lo. No Brasil, o Programa Federal de Segurança Alimentar “Fome Zero” tornou-se emblemático. Pretende que o combate à fome seja o amálgama para uma nova proposta de desenvolvimento territorial, que integre parte da agricultura e das economias locais que estão fora dos circuitos competitivos internacionais das grandes commodities agrícolas, permitindo-lhes alternativas reais de geração de emprego e renda através do aumento do consumo de alimentos no mercado interno. O Fome Zero pode ser compreendido como um guarda-chuva de iniciativas sintonizadas com essa lógica. Abrange cerca de 60 ações, das emergenciais, como o cartão-alimentação e o mutirão em curso, às estruturais, como a intensificação da reforma agrária e o fomento à agricultura familiar. As políticas e os programas envolvidos no Fome Zero têm como objetivo dar um tratamento universal à questão da Segurança Alimentar. Os pontos de convergência entre a Política de Segurança Alimentar e os objetivos da Defesa Nacional foram evidenciados sob o enfoque sistêmico. Não se pode entender adequadamente o funcionamento do fenômeno da guerra por intermédio de uma visão parcial da estrutura operacional, ou mesmo logística. O pensamento sistêmico é diverso do analítico ou mecanicista. Analisar pressupõe um certo isolamento do objeto de estudo, seu fracionamento e observação a fim de entendê-lo. Pensar de forma sistêmica, no entanto, demanda o discernimento de algo que se estuda no contexto de um todo mais amplo. As contribuições do Programa Fome Zero aos interesses da Defesa Nacional, da Logística Militar e a uma eventual Mobilização Nacional, foram exemplificados sob o marco do aproveitamento máximo das interfaces que devem existir entre o meio civil e militar, desde o tempo de paz. O argumento foi construído na direção de demonstrar que um país que não experimenta uma ameaça real à sua base territorial desde o período imperial, não deve prescindir, para o Preparo da Mobilização, de nenhuma oportunidade de desenvolvimento da capacidade de articulação de suas diversas Expressões do Poder Nacional, em face de um antagonismo reconhecido pela sociedade, ainda que de cunho social. Ao se observar o momento atual, confrontado com as potencialidades humanas e abundância de riquezas internas, fica evidente que a maior força mantenedora do persistente status de “país do futuro”, não encontra amparo em uma crise da Nação, antes, do Estado brasileiro. Acumuladas razões históricas, resumidamente exemplificadas neste trabalho e, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 115 mais recentemente, o influxo do fenômeno da globalização, onde os Estados adentraram em processos de privatização e minimização de participação nos serviços públicos, se desfazendo de boa parte das funções que os caracterizavam, encontram-se na base do atual estágio de insegurança social. Não se pode desejar a articulação vigorosa de uma sociedade para antepor-se às ameaças inerentes à Defesa Nacional, quando seus integrantes estão frustrados e submetidos ao perigoso processo de erosão da lealdade do cidadão para com um Estado alicerçado em uma das maiores cargas fiscais do mundo e contrapartida social pífia. O sucesso desse Programa de Segurança Alimentar, na erradicação da fome e diminuição das desigualdades regionais, está perfeitamente colimado, portanto, com os Objetivos Nacionais estrategicamente propugnados sob o enfoque da Defesa Nacional. A prioridade absoluta atribuída ao Fome Zero pelo governo federal logrou surpreendente adesão por parte das elites do País. Oxalá possa fomentar um genuíno sentimento pátrio em defesa dos interesses nacionais e da promoção do Bem Comum, estágio prévio à inserção soberana de um país no concerto das Nações e embrionário à formação de uma cultura de Mobilização Nacional. Abstract Starting from the newly stabilished concept of ‘Alimentary Security’ and from its strategic aspect,recently implemented by Federal Government as Federal Program of Alimentary Security (‘Zero Hunger’),the author shows its converging points with National Defense,chiefly in the fields of Logistics and National Mobilization. Keywords: Alimentary security, Logistics, National defense, National Defense. 116 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 Anexo 1 BRASIL BA LA NÇO DE O FERTA E DEM ANDA PR OD U TO AL GOD à O EM PL U M A AR R OZ E M C ASC A F EI JÃO MIL H O SOJ A E M GR ÃOS F AR EL O D E SOJ A ÓL EO D E SOJ A TR I GO 1996/ 97 305,7 I MPOR T AÇ ÃO 438,5 1997/ 98 132,1 411,0 334,4 877,5 782,9 3,1 1998/ 99 91, 5 520,1 280,3 891,9 806,5 3,9 81, 5 1999/ 00 PR OD U ÇÃO SU PR I MEN T O 931,1 Em 1. 000 to n elad as EXPOR ESTO QU E T AÇ ÃO F I N AL 0,3 132,1 ESTO QU E I N I CI AL 186,9 S AF R A C ON SU MO 798,7 91, 5 81, 5 700,3 299,9 1.081,7 885,0 28, 5 168,2 2000/ 01 168,2 938,8 81, 3 1.188,3 865,0 147,3 176,0 2001/ 02 176,0 766,2 67, 6 1.009,8 805,0 107,5 97, 3 2002/ 03 97, 3 829,4 130,0 1.056,7 750,0 185,0 121,7 1996/ 97 4.162,1 9.524,5 1.269,0 14. 955, 6 12. 147, 0 13, 4 2.795,2 1997/ 98 2.795,2 8.462,9 2.038,8 13. 296, 9 12. 236, 6 10, 0 1.050,3 1998/ 99 1.050,3 11. 582, 2 1.397,5 14. 030, 0 12. 157, 8 73, 0 1.799,2 1999/ 00 1.799,2 11. 423, 1 1.008,1 14. 230, 4 12. 085, 5 40, 1 2.104,8 2000/ 01 2.104,8 10. 386, 0 1.020,7 13. 511, 5 11. 986, 5 29, 4 1.495,6 2001/ 02 1.495,6 10. 626, 1 1.129,1 13. 250, 8 11. 981, 1 29, 4 1.240,3 2002/ 03 1.240,3 10. 616, 1 889,6 12. 746, 0 12. 049, 5 47, 8 648,7 1996/ 97 350,1 2.914,8 157,4 3.422,3 3.200,0 4,1 218,2 1997/ 98 218,2 2.206,3 189,7 2.614,2 2.500,0 1,1 113,1 1998/ 99 113,1 2.895,7 90, 0 3.098,8 2.950,0 2,0 146,8 1999/ 00 146,8 3.098,0 77, 7 3.322,5 3.050,0 2,0 270,5 2000/ 01 270,5 2.587,1 128,9 2.986,5 2.880,0 2,0 104,5 2001/ 02 104,5 2.956,5 88, 0 3.149,0 3.000,0 2,0 147,0 2002/ 03 147,0 3.231,9 81, 7 3.460,6 3.030,0 2,0 428,6 1996/ 97 8.816,6 35. 715, 6 604,4 45. 136, 6 35. 400, 0 188,0 9.548,6 1997/ 98 9.548,6 30. 187, 8 1.765,1 41. 501, 5 35. 000, 0 7,3 6.494,2 1998/ 99 6.494,2 32. 393, 4 796,9 39. 684, 5 35. 000, 0 7,7 4.676,8 1999/ 00 4.676,8 31. 640, 9 1.759,2 38. 076, 9 34. 480, 0 62, 1 3.534,8 2000/ 01 3.534,8 42. 289, 3 548,1 46. 372, 2 36. 235, 5 5.917,8 4.218,9 2001/ 02 4.218,9 35. 280, 7 450,0 39. 949, 6 36. 000, 0 2.500,0 1.449,6 2002/ 03 1.449,6 42. 757, 5 250,0 44. 457, 1 37. 500, 0 3.700,0 3.257,1 1996/ 97 3.165,4 26. 160, 0 1.024,0 30. 349, 4 19. 880, 0 8.340,0 2.129,4 1997/ 98 2.129,4 31. 370, 0 406,0 33. 905, 4 22. 400, 0 9.288,0 2.217,4 1998/ 99 2.217,4 30. 765, 0 582,0 33. 564, 4 22. 300, 0 8.917,0 2.347,4 1999/ 00 2.347,4 32. 344, 6 807,0 35. 499, 0 21. 420, 0 11. 517, 0 2.562,0 2000/ 01 2.562,0 38. 431, 8 700,0 41. 693, 8 23. 630, 0 15. 675, 0 2.388,8 2001/ 02 2.388,8 41. 907, 0 1.050,0 45. 345, 8 27. 300, 0 16. 000, 0 2.045,8 2002/ 03 2.045,8 50. 325, 0 600,0 52. 970, 8 30. 800, 0 19. 600, 0 2.570,8 1996/ 97 845,2 14. 615, 0 305,0 15. 765, 2 5.350,0 10. 013, 0 402,2 1997/ 98 402,2 16. 590, 0 161,0 17. 153, 2 5.900,0 10. 447, 0 806,2 1998/ 99 806,2 16. 511, 0 78, 0 17. 395, 2 6.300,0 10. 431, 0 664,2 1999/ 00 664,2 15. 800, 0 99, 0 16. 563, 2 6.800,0 9.375,0 388,2 2000/ 01 388,2 17. 538, 0 400,0 18. 326, 2 7.200,0 10. 800, 0 326,2 2001/ 02 326,2 20. 145, 0 370,0 20. 841, 2 7.600,0 12. 800, 0 441,2 2002/ 03 441,2 21. 500, 0 200,0 22. 141, 2 8.100,0 13. 500, 0 541,2 1996/ 97 417,0 3.515,0 145,0 4.077,0 2.682,0 1.124,0 271,0 1997/ 98 271,0 3.990,0 214,0 4.475,0 2.740,0 1.367,0 368,0 1998/ 99 368,0 3.971,0 159,2 4.498,2 2.780,0 1.433,0 285,2 1999/ 00 285,2 3.800,0 105,0 4.190,2 2.860,0 1.100,0 230,2 2000/ 01 230,2 4.218,0 72, 0 4.520,2 2.950,0 1.400,0 170,2 2001/ 02 170,2 4.845,0 135,0 5.150,2 2.960,0 1.800,0 390,2 2002/ 03 390,2 5.280,0 80, 0 5.750,2 3.100,0 2.200,0 450,2 1998 821,1 2.402,0 6.190,3 9.413,4 8.645,0 - 768,4 1999 768,4 2.188,0 7.071,0 10. 027, 4 9.182,0 - 845,4 2000 845,4 2.403,0 7.733,3 10. 981, 7 10. 050, 0 - 931,7 2001 931,7 1.658,4 7.609,9 10. 200, 0 10. 070, 0 - 130,0 2002 130,0 2.913,9 7.700,0 10. 743, 9 10. 300, 0 - 443,9 2003 443,9 4.514,7 6.250,0 11. 208, 6 10. 550, 0 Fonte: CONAB, SECRETARIA FED ERAL, D ECEX, B CSP, FIB GE, A BRASEM, B . B ., SIN DITEXTIL, MOIN HOS, 658,6 abr/0 3 COOPER ATIVAS E A GEN TE S D E M ERCADO. Obs: O e stoque ini cia l de trigo é computado em 1º de agosto de cad a ano. Os d emai s produtos são computados em 1º d e fevere iro Elabora ção: CON AB - 07 /0 5/2 00 3 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 117 Anexo 2 Quadros de Suprimento CARNESEOVOS 1- AVICULTURA DE CORTE Itens PRODUÇÃO DE CARNE DE FRANGO (1.000 t) EXPORTAÇÃO (1.000 t) DISPONIBILIDADE INTERNA (1.000 t) POPULAÇÃO (milhões de habitantes) DISPONIBILIDADE PER CAPITA (kg/hab./ano) 1995 1996 1997 1998 1999 2000 4.050 4.052 4.461 4.854 5.526 5.981 434 569 651 617 776 916 3.617 3.483 3.810 4.237 4.750 5.065 155 157 160 162 164 170 22 24 26 29 30 23 2 - AVICULTURA DE POSTURA Itens PRODUÇÃO DE OVOS DE GALINHA (milhões de unidades) IMPORTAÇÃO (milhões de unidades) EXPORTAÇÃO (milhões de unidades) DISPONIBILIDADE INTERNA (milhões de unidades) POPULAÇÃO (milhões de habitantes) DISPONIBILIDADE PER CAPITA (unidade/hab./ano) 1995 1996 1997 1998 1999 2000 16.066 15.932 12.596 13.636 14.768 14.796 - 23 32 16 4 4 39 55 86 120 52 115 16.027 15.900 12.543 13.532 14.720 14.686 155 157 160 162 164 170 103 101 79 84 90 87 3 – BOVINOS Itens REBANHO (1.000 cabeças) PRODUÇÃO DE CARNE (1.000 t equiv. carcaça) IMPORTAÇÃO (1.000 t equiv. carcaça) EXPORTAÇÃO (1.000 t equiv. carcaça) DISPONIBILIDADE INTERNA (1.000 t equiv. carcaça) POPULAÇÃO (milhões de habitantes) DISPONIBILIDADE PER CAPITA (kg/hab./ano) 1995 150.037 1996 153.058 1997 156.289 1998 159.752 1999 163.470 2000 167.471 5.710 6.187 5.922 5.794 6.413 6.579 121 150 135 101 63 77 250 249 294 383 560 581 5.581 6.088 5.762 5.513 5.916 6.075 155 157 160 162 164 170 36 39 36 34 36 36 Itens REBANHO (1.000 cabeças) PRODUÇÃO DE CARNE (1.000 t equiv. carcaça) IMPORTAÇÃO (1.000 t equiv. carcaça) EXPORTAÇÃO (1.000 t equiv. Carcaça) DISPONIBILIDADE INTERNA (1.000 t equiv. carcaça) POPULAÇÃO (milhões de habitantes) DISPONIBILIDADE PER CAPITA (kg/hab./ano) 1995 36.062 1996 29.202 1997 29.637 1998 30.007 1999 29.768 2000 29.574 1.430 1.600 1.518 1.652 1.684 1.925 - - 5 2 1 1 32 56 77 96 99 141 1.398 1.544 1.446 1.558 1.586 1.784 155 157 160 162 164 170 10 9 10 10 11 4 – SUÍNOS 9 ELAB.: Conab / Geame - 13/07/2001. 118 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 Anexo 3 ARROZ COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE SAFRAS 2001/02 e 2002/2003 U.F RR RO AC AM AP PA TO ÁREA (Em mil ha) 01/02 02/03 VAR (%) 12,0 15,0 25,0 PRODUÇÃO (Em mil t) 01/02 02/03 VAR (%) 66,0 84,0 27,3 PRODUTIVIDADE (kg/ha) 01/02 02/03 VAR (%) 5.500 5.600 1,8 70,0 22,5 11,5 2,3 266,2 145,0 60,9 21,4 12,4 2,3 276,8 152,3 -13,0 -5,0 7,8 4,0 5,0 131,6 31,3 20,8 1,9 467,2 371,2 115,7 29,7 23,2 1,9 512,1 426,4 -12,1 -5,1 11,5 9,6 14,9 1.880 1.390 1.808 830 1.755 2.560 1.900 1.390 1.870 830 1.850 2.800 1,1 3,4 5,4 9,4 Norte MA 529,5 480,0 541,1 497,8 2,2 3,7 1.090,0 624,0 1.193,0 746,7 9,4 19,7 2.059 1.300 2.205 1.500 7,1 15,4 PI CE RN PB PE AL SE BA Nordeste PR SC RS Sul MG 156,0 42,0 2,0 7,5 3,9 7,0 10,2 140,4 44,1 1,7 8,0 3,9 7,0 13,0 -10,0 5,0 -13,0 6,7 27,0 85,8 98,7 5,2 9,6 21,1 38,6 43,9 204,3 110,3 3,8 13,4 21,1 38,6 55,9 138,1 11,8 -26,9 39,6 27,3 550 2.350 2.600 1.280 5.420 5.520 4.300 1.455 2.500 2.220 1.680 5.420 5.520 4.300 164,5 6,4 -14,6 31,3 - 26,7 735,3 78,0 140,8 985,0 1.203,8 97,9 4,6 17,4 733,3 68,6 145,0 955,5 1.169,1 89,1 4,1 -35,0 -0,3 -12,0 3,0 -3,0 -2,9 -9,0 -10,0 39,5 966,4 182,5 929,3 5.464,8 6.576,6 210,5 13,4 29,1 1.223,2 171,5 986,0 5.064,2 6.221,7 196,0 12,0 -26,3 26,6 -6,0 6,1 -7,3 -5,4 -6,9 -10,4 1.479 1.314 2.340 6.600 5.548 5.463 2.150 2.920 1.670 1.668 2.500 6.800 5.300 5.322 2.200 2.920 12,9 26,9 6,8 3,0 -4,5 -2,6 2,3 - 2,7 40,6 145,8 440,3 51,0 113,7 0,2 2,9 39,4 135,5 431,5 49,5 112,0 0,1 7,0 -3,0 -7,1 -2,0 -3,0 -1,5 -50,0 8,3 110,8 343,0 1.215,7 218,1 216,0 0,3 8,9 108,4 325,3 1.208,2 222,8 221,8 0,1 7,2 -2,2 -5,2 -0,6 2,2 2,7 -66,7 3.070 2.730 2.353 2.761 4.277 1.900 1.520 3.070 2.750 2.401 2.800 4.500 1.980 1.000 0,7 2,0 1,4 5,2 4,2 -34,2 605,2 1.264,8 1.954,8 3.219,6 593,1 1.274,4 1.897,7 3.172,1 -2,0 0,8 -2,9 -1,5 1.650,1 2.056,4 8.569,7 10.626,1 1.652,9 2.416,2 8.199,9 10.616,1 0,2 17,5 -4,3 -0,1 2.727 1.626 4.384 3.300 2.787 1.896 4.321 3.347 2,2 16,6 -1,4 1,4 ES RJ SP Sudeste MT MS GO DF C-Oeste N/NE C-Sul Brasil FONTE: CONAB R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 abr/03 119 Anexo 4 FEIJÃO 1 ª SAFRA COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE SAFRAS 2001/02 e 2002/2003 ÁREA (Em mil ha) 01/02 02/03 VAR (%) TO 2,7 2,7 Norte 2,7 2,7 BA 406,0 401,9 -1,0 Nordeste 406,0 401,9 -1,0 PR 390,8 412,3 5,5 SC 115,4 106,2 -8,0 RS 124,4 121,9 -2,0 Sul 630,6 640,4 1,6 MG 219,3 217,1 -1,0 ES 12,1 12,0 -1,0 RJ 2,9 2,9 SP 85,0 72,3 -15,0 Sudeste 319,3 304,3 -4,7 MT 3,9 2,7 -30,0 MS 2,9 2,3 -20,0 GO 42,8 47,1 10,0 DF 9,1 8,6 -5,5 C-Oeste 58,7 60,7 3,4 N/NE 408,7 404,6 -1,0 C-SUL 1.008,6 1.005,4 -0,3 BRASIL 1.417,3 1.410,0 -0,5 FONTE: CONAB U.F. PRODUÇÃO (Em mil t) 01/02 02/03 VAR (%) 1,4 1,4 1,4 1,4 169,7 148,7 -12,4 169,7 148,7 -12,4 453,3 420,5 -7,2 117,7 129,0 9,6 114,4 98,7 -13,7 685,4 648,2 -5,4 218,2 228,0 4,5 9,0 8,9 -1,1 2,2 2,8 27,3 117,3 91,1 -22,3 346,7 330,8 -4,6 4,3 2,3 -46,5 2,8 2,5 -10,7 73,6 87,1 18,3 19,1 19,4 1,6 99,8 111,3 11,5 171,1 150,1 -12,3 1.131,9 1.090,3 -3,7 1.303,0 1.240,4 -4,8 PRODUTIVIDADE (kg/ha) 01/02 02/03 VAR (%) 500 500 519 519 418 370 -11,5 418 370 -11,5 1.160 1.020 -12,1 1.020 1.215 19,1 920 810 -12,0 1.087 1.012 -6,9 995 1.050 5,5 740 740 760 950 25,0 1.380 1.260 -8,7 1.086 1.087 0,1 1.100 835 -24,1 980 1.100 12,2 1.720 1.850 7,6 2.100 2.258 7,5 1.700 1.834 7,9 419 371 -11,5 1.122 1.084 -3,4 919 880 -4,2 abr/03 FEIJÃO 2ª SAFRA COMPARATIVO DE ÁREA, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE SAFRAS 2001/02 e 2002/2003 ÁREA (Em mil ha) U.F 01/02 02/03 VAR (%) RR 0,5 0,9 80,0 RO 58,0 51,0 -12,0 AC 17,3 17,3 AM 5,6 3,4 -39,0 AP 1,3 1,3 PA 75,0 76,9 2,5 TO 4,2 6,8 62,0 Norte 161,9 157,6 -2,7 MA 70,0 70,0 PI 210,0 212,1 1,0 CE 590,0 607,1 2,9 RN 91,7 93,3 1,7 PB 176,7 196,1 11,0 PE 188,6 171,6 -9,0 Nordeste 1.327,0 1.350,2 1,7 PR 116,8 119,1 2,0 SC 41,3 41,3 RS 40,3 33,0 -18,0 Sul 198,4 193,4 -2,5 MG 165,0 173,3 5,0 ES 18,0 18,4 2,0 RJ 3,0 3,0 SP 81,0 76,1 -6,0 Sudeste 267,0 270,8 1,4 MT 17,2 18,6 8,0 MS 15,7 16,5 5,0 GO 40,0 40,0 DF 2,0 2,0 C-Oeste 74,9 77,1 2,9 N/NE 1.488,9 1.507,8 1,3 C-Sul 540,3 541,3 0,2 Brasil 2.029,2 2.049,1 1,0 FONTE: CONAB 120 PRODUÇÃO (Em mil t) 01/02 02/03 VAR (%) 0,2 0,5 150,0 38,9 34,7 -10,8 6,5 7,6 16,9 4,6 3,3 -28,3 0,6 0,8 56,3 64,6 14,7 2,6 4,2 61,5 109,7 115,7 5,5 29,4 29,4 25,2 80,6 219,8 188,8 273,2 44,7 39,0 42,9 10,0 49,5 98,1 98,2 37,7 44,6 18,3 369,6 568,8 53,9 137,8 164,4 19,3 36,5 45,4 24,4 30,6 31,4 2,6 204,9 241,2 17,7 161,7 169,8 5,0 14,7 17,3 17,7 2,3 2,5 8,7 89,1 73,7 -17,3 267,8 263,3 -1,7 14,5 15,7 8,3 15,7 18,2 15,9 44,0 52,0 18,2 4,0 4,0 78,2 89,9 15,0 479,3 684,5 42,8 550,9 594,4 7,9 1.030,2 1.278,9 24,1 PRODUTIVIDADE (kg/ha) 01/02 02/03 VAR (%) 330 500 51,5 671 680 1,3 376 442 17,6 820 970 18,3 462 620 34,2 750 840 12,0 616 616 678 734 8,3 420 420 120 380 216,7 320 450 40,6 425 460 8,2 280 500 78,6 200 260 30,0 279 421 51,3 1.180 1.380 16,9 883 1.100 24,6 760 950 25,0 1.033 1.247 20,8 980 980 815 940 15,3 780 820 5,1 1.100 969 -11,9 1.003 972 -3,1 845 845 1.000 1.100 10,0 1.100 1.300 18,2 2.000 2.000 1.044 1.166 11,7 322 454 41,0 1.020 1.098 7,7 508 624 22,9 abr/03 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 Anexo 5 CIDADE Rio de Janeiro MARINHA Base de Abastecimento da Marinha Depósito Naval EXÉRCITO AERONÁUTICA 1° Batalhão de Polícia Base aérea do do Exército Galeão AM PA RN Depósito Naval Depósito Naval Depósito Naval BA Depósito Naval Comando da 12ª RM Comando da 8ª RM 16° Btl Inf Mtz 1° Btl Eng Construção 6° D Sup 4° Btl Eng Construção MS Depósito Naval RS Depósito Naval ESTADO RJ São Pedro D’Aldeia Manaus Belém Natal Caicó Salvador Barreiras Ladário Campo Grande Rio Grande Porto Alegre Macapá Boa Vista Rio Branco Porto Velho AP RR AC RO São Luís MA Teresina Picos Fortaleza Crateús João Pessoa Campina Grande Recife Petrolina Maceió Aracajú Vila Velha Belo Horizonte São Paulo Curitiba Florianópolis Cuiabá Palmas Brasília PI Base Aérea Base Aérea Base Aérea Base Aérea 18° Batalhão Logístico Base Aérea CE PB PE AL SE ES MG SP PR SC MT TO DF 8° Batalhão Logístico Base Aérea 3° BTl Inf de Selva 6° Btl Eng Construção Base Aérea 7° Btl Eng Construção 5° Btl Eng Construção Base Aérea de Porto Velho 24° Batalhão de Centro de Caçadores Lançamento Alcântara 25° Btl de Caçadores 3° Btl Eng Construção 10° D Sup Base Aérea 40° Btl Inf 15° Btl Inf Mtz 31° Btl Inf Mtz 7° D Sup Base Aérea 72° Btl Inf Mtz 59° Btl Inf Mtz 28° Btl Caçadores 38° Btl Inf Mtz 4° D Sup CIA 21° D Sup Base Aérea 20° BIB CINDACTA II 63° Btl Inf Base Aérea 44° Btl Inf Mtz 22° Btl Inf BPE Brasília Base Aérea R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.91-123, jan/dez. 2003 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BELIK, Walter. Como as empresas podem apoiar e participar do combate à fome. São Paulo: Instituto Ethos, 2003. BELIK, Walter, MALUF Renato. Abastecimento e Segurança Alimentar. Os Limites da Liberalização. Campinas: Unicamp, 2000. CASTRO, Josué. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Gryphus, 1946. CASTRO, Josué. Geopolítica da Fome. Ensaio sobre os problemas de alimentação e de população no mundo. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957. CHIAVENATO, I. Introdução à Teoria Geral da Administração. 3. ed. São Paulo: a McGrawHill, 1983. DEL GROSSI, M;GRAZIANO, J; TAKAGI, M. Evolução da Pobreza no Brasil – 1995/99. Campinas, Instituto de Economia, Texto para discussão n°104, 2001. ______. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Mobilização Nacional. NCE70 / DALMob – ESG, 2001. ______. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Pensamento Estratégico. Rio de Janeiro. ESG, 2002. ______. ESTADO-MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS. 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Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 Protecionismo como Instrumento de Desenvolvimento João Paulo de Almeida Magalhães Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo O trabalho demonstra que medidas protecionistas podem, em determinadas circunstâncias, contribuir com o desenvolvimento.Não defende o protecionismo em si mesmo, mas sua aplicação quando o ‘first best’ só existir em teoria ou for inalcançável. Palavras-chave: Medidas protecionistas, Livre comércio, Comércio internacional, Desenvolvimento econômico. Introdução O protecionismo é sempre um “second best” relativamente à liberdade de comércio. Ele é, contudo algumas vezes necessário para países que aspiram ao pleno desenvolvimento. Este depende, de fato, da capacidade desses de países chegarem a nível de capital por trabalhador igual ao existente nas economias maduras. Se a total liberdade de comércio não viabilizar tal resultado, o protecionismo se torna indispensável. Seu objetivo deverá, no entanto, ser estritamente o de viabilizar os investimentos necessários para se chegar a relação capital por trabalhador do nível requerido pelo pleno desenvolvimento. Dentro desses limites, as justificações teóricas propostas para o protecionismo continuam válidas. Análises recentes têm sustentado que ação direta sobre os altos custos das economias retardatárias constitui a melhor solução. Os defensores dessa tese ignoram, todavia, o fato de que a causa básica desses altos custos é a própria condição de subdesenvolvimento. Trata-se ,portanto, de deficiência sistêmica exigindo solução geral e não ação pontual sobre custos específicos. E o protecionismo constitui claramente a melhor forma, e a única realista, de contornar a dificuldade. O exame da experiência histórica, de atuais países desenvolvidos e das mais bem sucedidas economias retardatárias, mostra ter sido o protecionismo instrumento largamente utilizado tanto no passado como no presente. E a ele podem ser atribuídos grande parte dos bons resultados obtidos. As integrações econômicas entre países em níveis muito diferentes de desenvolvimento implicam em sério risco para os menos desenvolvidos, que pagam os eventuais ganhos de curto prazo com sérios prejuízos no longo prazo. Nesse contexto, a ALCA, nos termos em que se acha R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 125 colocada, só será aceitável no âmbito de programa de maior amplitude, destinados a reduzir substancialmente o hiato entre os níveis de desenvolvimento dos Estado Unidos e América Latina. O presente texto tem como objetivo demonstrar que medidas protecionistas podem , em determinadas circunstâncias, constituir aspecto fundamental de políticas de desenvolvimento. Não se defende o protecionismo por si mesmo. Mostra – se, pelo contrário, que toda vez que se cria barreira tarifária se está viabilizando atividade menos eficiente em detrimento de outra de maior produtividade, situada no exterior. O protecionismo é sempre um “second best”. Deve , no entanto, ser utilizado quando o “first best” for inalcançável ou só existir em teoria. O tema será dividido em quatro seções. Na primeira, recapitularemos o confronto entre as teorias, cujo corolário de política econômica é a defesa de comércio inteiramente livre, com as justificações oferecidas para medidas protecionistas. Na segunda, examinaremos o comportamento, em termos de adoção de medidas protecionistas, das nações hoje desenvolvidas e dos países subdesenvolvidos, nos seus momentos de maior sucesso. Na terceira, mostraremos que o protecionismo, no âmbito de políticas de desenvolvimento, é justificável dentro da melhor teoria do comércio internacional e, na quarta, examinaremos o caso das integrações econômicas. PRIMEIRA SEÇÃO: Confronto das Teorias Protecionistas e de Livre Comércio 1 - A teoria moderna do comércio internacional desce a certos detalhes com respeito ao protecionismo. Mostra, por exemplo, a vantagens que ele pode proporcio126 nar a países de grande porte, em termos de melhoria em seus termos de troca. Estas são, contudo, situações específicas que não interessam à presente análise. A ela dizem respeito somente enfoques globais, únicos significativos para políticas de desenvolvimento. Referir-nos-emos, inicialmente, às duas principais justificativas oferecidas em defesa de comércio inteiramente livre para passar depois aos teóricos do protecionismo. Uma das primeiras e mais importantes contribuições da ciência econômica foi a comprovação das vantagens do comércio livre. Para se compreender a importância dessa tese basta lembrar que foi lançada como refutação da doutrina mercantilista, defensora da contenção de importações e do artificial estímulo das exportações, com o objetivo de gerar saldos positivos na balança comercial. Adam Smith mostrou que o livre jogo do mercado levaria à especialização de cada país nos bens que é capaz de produzir a custos mais baixos. Em consequência disso, os bens trocados no mercado mundial teriam preços menores, com ganho líquido para todos envolvidos. Esse enfoque levava em conta apenas os custos absolutos. Suponhamos a existência de país capaz de produzir todos bens a custo menor que os demais. Deveria se tornar autosuficiente fechando-se ao comércio internacional? Ricardo irá mostrar que esse não é o caso. Posto que produza todos bens melhor que outros, esse país deverá ser relativamente mais eficiente em certos setores. Justifica-se, assim, sua especialização nestes, deixando os demais aos outros produtores. Novamente aqui se realizaria ganho importante em termos de eficiência. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 Esse tipo de análise se tornou conhecido como teoria das vantagens comparativas, que comprova o benefício da especialização dos países seja, com base nos custos absolutos, seja nos custos relativos. E para que essa especialização ofereça seu ganho máximo faz-se necessária total liberdade de comércio. A outra análise que sublinhou a vantagem da plena liberdade de comércio é de autoria de Hecksher e Ohlin. Esses autores mostraram que, em condições de comércio livre, cada país se especializaria nas atividades que utilizam predominantemente seus fatores de produção (capital, trabalho etc.) mais abundantes e baratos.Com isso, aumenta neles a demanda pelos fatores abundantes e cai a procura dos relativamente raros. O preço dos fatores tenderia, assim, a se equalizar a nível mundial, sem necessidade de estes se deslocarem de um país para outro. Esta seria mais uma vantagem do comércio livre. ção registrarem rendimentos crescentes. Numa primeira fase, por não disporem de mão-de-obra especializada, serviços adequados de apoio, experiência administrativa etc. seus custos são elevados. Com o passar do tempo as deficiências vão sendo corrigidas. Enquanto tal não acontece, essas indústrias devem ser protegidas Não se pode, em suas palavras, deixar uma criança lutar com um adulto. O reconhecimento dos rendimentos crescentes do setor fabril introduz, portanto, exceção à regra geral de liberdade do comércio. Importante na análise de List é que a exceção é limitada no tempo e setorialmente. O protecionismo, segundo ele, só se justifica dentro do período estritamente necessário para que as empresas manufatureiras atinjam sua maturidade. A par disso, medidas protecionistas só devem ser adotadas em benefício de setores que possam, no futuro, se tornarem internacionalmente competitivos. 2 – A tese da total e irrestrita abertura da economia ao comércio internacional vai ser contestada por outras correntes do pensamento econômico. O que pretendem os contestadores não é por em dúvida a validade da teoria das vantagens comparativas, mas apontar exceções à regra básica de irrestrita abertura comercial. Examinaremos os trabalhos de List, Prebisch, Manoilesco e Emmanuel. O protecionismo, nos limites propostos por List, se revelou satisfatório para viabilizar a industrialização de países que iniciaram com 50 anos de atraso seu processo fabril. No caso da América Latina, todavia, cuja industrialização intensiva ocorreu somente após a Segunda Guerra Mundial, essa colocação mostrou -se inadequada. A justificação teórica do seu protecionismo será oferecida por Prebisch (1949) A análise de List, conhecida como teoria da industria infante, constituiu a justificação teórica do protecionismo nos países que participaram da segunda onda de industrialização de meados do século XIX (fundamentalmente Estados Unidos e Alemanha). Segundo List, a teoria das vantagens comparativas não considerava o fato de indústrias em processo de implanta- Segundo Prebisch, o aumento da produtividade (por trabalhador) é maior na indústria do que na agricultura. Esse aumento pode ter dois efeitos: baixa de preços ou maior remuneração dos fatores de produção. No primeiro caso, a especialização agrícola revela -se aceitável porque os consumidores, de qualquer parte do mundo, são igualmente beneficiados. O R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 127 mesmo não acontece na hipótese de aumento da remuneração dos fatores produtivos porque, nesse caso, só se beneficiam os habitantes dos países industriais. Equacionado o problema, Prebisch passou a compulsar as estatísticas. Válida a hipótese da baixa dos preços industriais, os termos de troca deveriam melhorar constantemente para os países agrícolas. Ora, os dados disponíveis (de 1870 a meados do século atual) revelavam exatamente o contrário, ou seja, a deterioração dos termos de troca desses países. Observe-se que, na colocação do autor (diferentemente do que vimos em List), desde que não fosse preenchida a condição de baixa dos preços, como corolário da maior produtividade, a industrialização, e portanto o protecionismo, se justifica sem quaisquer condicionante em termos de duração ou setores beneficiados . Assinale-se, a par disso, que a argumentação de Prebisch que condena a especialização agrícola, pode também ser utilizada, como ele mesmo mostrou (Prebisch, 1983), para recusar a especialização em setores manufatureiros intensivos de mão-de-obra. Isso significa que, da perspectiva de uma política de desenvolvimento, não só é inaceitável a especialização em “commodities” agrícolas como também, em “commodities” industriais. Estas últimas são definidas como atividades fabris de baixo valor adicionado por trabalhador, largo uso de recursos naturais e internacionalmente padronizadas (aço, alumínio, produtos petroquímicos, papel, celulose etc.). Em nossa análise, contudo, em obediência à colocação histórica dos debates, continuaremos a nos referir à inaceitabilidade da especialização agrícola. A argumentação de Manoilesco é sintetizada por Love (1996). Usando as esta128 tísticas de seu país (Rumânia) Manoilesco mostrou que o capital por trabalhador na indústria era 4,1 vezes maior que na agricultura e a produtividade nesse setor 4,6 vezes mais elevada. A pesar disso, a lucratividade do setor fabril era somente 1,8 vezes superior a do agrícola. Segundo ele, as duas primeiras relações (referentes à intensidade de capital e produtividade) mostram a importância do segmento manufatureiro para o país, e a terceira (relativa à lucratividade) a importância para o investidor privado. Em função dessa disparidade Manoilesco conclui que o mercado, funcionando livremente, não oferece incentivo adequado à industrialização. Esta deve, assim, ser encorajada por medidas protecionistas. Observese que , no caso de Manoilesco como de Prebisch, as medidas protecionistas não têm por que serem limitadas setorialmente ou no tempo. A análise de Emmanuel é de inspiração marxista .Para ele, entre país agrícola e industrial existe situação de “troca desigual”. Exemplo aritmético permite explicitar sua argumentação. Suponhamos país desenvolvido com produção manufatureira na qual é utilizada maquinaria (capital fixo na nomenclatura marxista) no valor de 240 unidades monetárias e trabalho (capital variável) no valor de 60 unidades.. Em país subdesenvolvido a produção agrícola é levada adiante por 120 unidades monetárias de capital fixo e 60 unidades de capital variável. O lucro bruto (que ele chama de excedente) é igual nos dois casos dado que se usa a mesma quantidade de trabalho e, da perspectiva marxista, é o trabalho que , através da mais- valia, proporciona o lucro. Emmanuel supõe que nos dois casos o lucro seja de 60. Ou seja, dentro de sua visão marxista o trabalho cria o dobro do valor que recebe como salário. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 O valor dos bens produzidos nos dois casos é o seguinte: capital fixo + capital variável + excedente = valor do bem Bem industrial 240 60 60 360 Bem agrícola 120 60 60 240 Como a agricultura usa mais trabalho relativamente ao conjunto do capital (fixo mais variável) sua lucratividade é maior. No exemplo acima, o capital utilizado na indústria é de 300 unidades monetárias e na agricultura de 180. Como os dois setores usam quantidade igual de mão-de-obra, seu lucro bruto é igual, o que confere à agricultura, menos utilizadora de capital, nível superior de lucratividade. Calculo simples mostra que, no caso em análise, a taxa de lucros do setor agrário (valor do excedente como percentagem do capital total utilizado) é de 33,3% e do industrial 20%. Se os bens fosse trocados com base nos valores acima registrados a troca seria igual no sentido de sem prejuízo para qualquer dos dois produtores. Nesse caso, a agricultura registrarialucro de 33,3% e a indústria de 20%. Sucede que, como consequência da livre circulação internacional de capitais, a taxa de lucros tende a se uniformizar. O autor supõe que essa taxa única fique no nível de 25% para os dois setores com, portanto, ganho de 5 pontos percentuais para a indústria e perda de 8 pontos para a agricultura . Ou, na prática, o primeiro setor vende por 375 o que vale 360 e o segundo por 225 o que tem valor de 240. Essa é a troca desigual. Para evitá-la o país agrícola deve se industrializar e para tanto amparar seu setor fabril através de medidas protecionistas, Como no caso de Prebisch e Manoilesco, não se prevêem restrições setoriais ou temporais ao programa protecionista. 3 – Vejamos as objeções colocadas às teses protecionistas. Examinaremos mais detidamente os debates em torno das posições de List e Prebisch, passando mais rapidamente pelos trabalhos de Manoilesco e Emmanuel. A teoria protecionista de List não foi, a rigor, contestada. Seus críticos somente consideram -na um “ second best” em relação a medidas destinadas a atacar diretamente as distorções existentes nos países em fase inicial de industrialização. A título exemplificatico examinaremos a seguir três casos (Corden,1988) em que são propostas alternativas ao protecionismo. O primeiro, é o de firma (ou grupo de firmas) “nascente”, que deve passar período de aprendizado, exigindo grandes investimentos em capital humano. O mercado de capitais dos subdesenvolvidos cobra juros altos, porque é imperfeito e tem preconceito contra investimentos de resultados invisíveis. A empresa não pode, portanto, recorrer a ele. Nesse caso, o “ first best” seria aperfeiçoar o mercado de capitais e não partir para medidas protecionistas. O segundo caso é de empresa nascente que se vê obrigada a investir em formação de mão-de-obra que não pode reter perdendo ,assim, os gastos correspondentes. Para Corden o “first best” seria os trabalhadores aceitarem salários menores e se financiarem através da tomada de empréstimos. O “second best “ consistiria em subsidiar a formação de mão-de-obra. O protecionismo não iria além de um “third best”. O terceiro caso é o de empresa gerando novos conhecimentos, que se difundem pelo mercado sem ganho direto para ela. O “first best “ seria subsídio para a criação de conhecimento novo. Krugman refere-se aos problemas assinalados por Corden em termos de “falhas R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 129 de mercado”. Reconhece que são particularmente grandes em países menos desenvolvidos e que podem ser usadas como argumento em favor do protecionismo. Seguindo a linha da “ mainstream economics” afirma, porém, ser preferível ataque direto a cada uma das deficiências de mercado identificadas. Este seria, assim, o “first best”. Ora, análise, mesmo elementar, de economias retardatárias permite afirmar que mercado de capitais capaz de atender à proposta de Corden, só surgirá quando o país atingir o pleno desenvolvimento. A sugestão de tomada de empréstimos por trabalhadores, para financiar seu treinamento, é quase surrealista em economias retardatárias. Quanto aos subsídios para empresas que treinam mão-de-obra ou difundem conhecimento, eles seriam , pelo menos, extremamente difíceis de serem financiados e administrados em países de recursos públicos escassos e necessidades de alta prioridade não atendidas. No caso deles, a única solução realista consiste, portanto, no protecionismo ou em tarifas aduaneiras, que (a) cobrem automaticamente todos os três casos, (b) não elevam despesas públicas e (c) evitam políticas econômicas de grande variedade e complexidade, dificilmente à altura da capacidade administrativa de países subdesenvolvidos. Ou seja, para todos efeitos práticos a análise de List permanece de pé. No que se refere a Krugman, cumpre assinalar que as “falhas de mercado”, cuja existência ele reconhece, constituem resultado direto do próprio subdesenvolvimento. Elas não afetam apenas setores específicos mas toda a economia. Sistemas de transporte precários, comunicações deficientes, mão-de-obra de baixo nível de educação, mercado de capitais diminutos e mal organizados , situações típicas das economias retardatárias, representando” 130 falhas de mercado” que atingem todos segmentos da economia, devendo ser atacadas em conjunto e não através de medidas pontuais. A solução óbvia para elas, e única de implantação possível nos subdesenvolvidos, é, assim, o protecionismo. A proposta dos dois autores faz lembrar crítica recente ao comportamento dos economistas. Segundo esta, eles deveriam voltar a raciocinar sobre a Economia não como ciência pura mas como ciência aplicada. Ou seja, deveriam voltar à Economia Política. Significa isso que não é função dos economistas indicarem soluções tecnicamente corretas mas concretamente inexequíveis, trancando-se, em seguida, nas suas torres de marfim e passando a acusar os políticos de terem irresponsavelmente ignorado suas sugestões. A proposta de abandonar um realista (e de eficácia largamente comprovada) protecionismo e adotar um sem número de difíceis soluções, supostamente “first best”, constitui excelente exemplo da distorção consistente em raciocinar, não em termos de Economia Política mas de Economia pura. É, além disso, curioso assinalar que mesmo os países desenvolvidos relutam em procurar “ first best”. Krugman, referindo-se às providências do Governo americano para defender sua industria automobilística da concorrência japonesa, afirma que o “first best” seria um subsídio às montadoras . O que, no entanto, realmente se fez foi impor ao Japão corte nas suas exportações de veículos para os Estados Unidos. Ou seja, optou por um “second best” consistente na imposição de quotas à exportação japonesa.E seria necessário lembrar que , na doutrina dos organismos internacionais, se as tarifas aduaneiras ainda são toleradas as quotas recebem irrestrita condenação? R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 Assinale-se finalmente que a insistência atual no chamado “custo Brasil” representa corolário direto da visão ortodoxa acima examinada . Ou seja, em vez de reconhecer que atividades instaladas em economias retardatárias lutam contra todo tipo de ineficiência (ou “ falhas de mercado” ) devendo ser viabilizadas por medida genérica de proteção, propõe-se o paliativo de medidas pontuais (inclusive de difícil exequibilidade) destinadas a baixar custos. No que se refere a Manoilesco pode – se dizer que sua tese reproduz, embora com enfoque diferente, a posição de Prebisch. A desvantagem da especialização agrícola resulta do fato de a produção industrial revelar produtividade por trabalhador mais de quatro vezes superior. Sem maior aprofundamento é lícito afirmar que se as colocações de Prebisch continuam sem refutação, o mesmo vale para Manoilesco. Passemos, porém, a Emmanuel Na sua colocação ele aceita, com Ricardo e Marx, que o valor de um bem é dado pelo trabalho nele incorporado. Ela se tornou, em função disso, altamente vulnerável devendo –se reconhecer que são pertinentes algumas das objeções que lhe são colocadas ( Magalhães, 1996) . Na verdade, porém, conforme se verifica no exemplo aritmético acima , como Prebisch e Manoilesco, ele aceita a maior produtividade da mão – de obra na indústria. Assim, naquele exemplo, as mesmas 60 unidades monetárias de trabalho permitem obter na indústria valor de 360 e na agricultura de somente 240. Ou seja, na sua essência as justificações do protecionismo em Prebisch, Manoilesco e Emmanuel têm a mesma base. A saber, a produtividade por trabalhador mais elevada na indústria e, portanto, sua maior capacidade de aumentar o produto por habitante e conduzir o país ao pleno desenvolvimento. Novamente aqui é lícito afirmar que se a colocação de Prebisch permanece válida o mesmo acontece com a de Emmanuel. A “mainstream economics” continua a sustentar a existência de solução superior ao protecionismo. Mostramos acima a insubsistência dessa colocação. Ela pode, todavia, ser igualmente falseada colocando –se a defesa do protecionismo não as perspectiva da oferta , como fazem os quatro autores examinados, mas da demanda Prebisch reconheceu esse fato quando, diante dos duros ataques a sua tese, adotou nova linha de defesa. Dizia ele que a demanda mundial de artigos agrícolas crescia de 3% ao ano. Ora, a América Latina, para eliminar seu atraso econômico, deveria elevar seu PIB em percentagem bastante maior . Diante disso, a especialização agrícola era inaceitável. Tal colocação elide o debate sobre se o problema representado pelos altos custos nos subdesenvolvidos deve ser atacado de forma sistêmica, através do protecionismo, ou de maneira pontual, mediante providências, supostamente “first best”, destinadas a eliminar as diversas manifestações das “falhas de mercado” ( ou do “custo Brasil”). Considerando esse fato, será com base na insuficiência da demanda que, na terceira seção, examinaremos o protecionismo no âmbito das políticas de desenvolvimento. SEGUNDA SEÇÃO: O Protecionismo na Experiência Histórica O objetivo da presente seção é mostrar que , historicamente, o protecionismo foi largamente utilizado como instrumento de política econômica. Lançaram mão dele os países que se colocam hoje entre os mais desenvolvidos do Mundo (Estados Uni- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 131 dos, Japão e Alemanha), o país que representa o grande caso de sucesso de políticas de desenvolvimento (Coréia do Sul). No Brasil, foi considerada protecionista a fase de maior crescimento econômico do país. Começaremos pelo caso das nações desenvolvidas. 1 - Vejamos o que dizem alguns especialistas. Segundo Arrighi (1996 ) “A imensa elevação das tarifas americanas durante a guerra civil foi seguida por novos aumentos em 1883, 1890, 1894, e 1897. Embora pequenas reduções tenham sido introduzidas pelo Presidente Wilson em 1913, elas só foram toleradas pelo Congresso enquanto a guerra reduziu a concorrência das importações estrangeiras e estimulou as exportações norte - americanas. Mas tão logo terminou a guerra e surgiram os primeiros indicadores da recessão, a tradição protecionista americana foi retomada a pleno vapor. Grandes aumentos tarifários foram aprovados no início da década de 1920” (pgs 302 - 303). Mais adiante, o mesmo autor vai mostrar que esse comportamento não representou apenas erro histórico, posteriormente corrigido. Em suas palavras “Não mais se contentando com as restrições - voluntárias japonesas às exportações para o Estados Unidos, e flagrante contradição com a doutrina de livre comércio e de – laissez faire – que pregava para o resto do mundo, o governo Bush começou a pressionar o governo japonês para reduzir administrativamente seu superávit comercial com os Estados Unidos” (p.366). O depoimento de Krugman (1995) é igualmente illustrativo da tendência protecionista americana: “ após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos se fizeram advogados da liberdade de trocas no comércio mundial (...) Em razão do pa132 pel crescente do comércio mundial na economia americana de 1965 a 1980, no entanto, muitas indústrias perceberam que , pela primeira vez, elas se viam confrontadas com a concorrência estrangeira no seu mercado interior. Algumas delas perceberam que essa concorrência era excessivamente forte para poder enfrentá – la e pediram proteção. Durante os anos 1970 esse pedido se defrontou com a oposição de outras indústrias que se beneficiavam com o crescimento das exportações. Durante os anos 1980, contudo, a forte baixa das exportações mudou a atitude do Congresso reforçando nele as tendências protecionistas. As administrações Reagan e Bush resistiram a essas pressões políticas mas fizeram uma série de concessões limitando as importações de automóveis japoneses, de aço europeu, de madeira canadense e muitos outros bens (...) Existe aparentemente uma real possibilidade que , nos anos futuros, os Estados Unidos se afastem fortemente do compromisso que assumiram desde quatro décadas, em relação ao princípio da liberdade de trocas (pgs 5 e 6). Ou seja, períodos de protecionismo e abertura variam de acordo com os interesses da economia americana. Possivelmente por isso, os Estados Unidos são hoje a economia mais desenvolvida do mundo, E por ter, durante sua história, adotado o comportamento oposto, o Brasil continua subdesenvolvido. A tendência protecionista dos Estados Unidos é também atestada por outros fatos. Quando em 1944 se tentou criar a International Trade Organization, a iniciativa fracassou porque o Congresso Americano, temeroso de perder seu direito de controlar importações, se recusou a aprovar a instituição. Os Estados Unidos são hoje o único país do mundo em que as R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 concessões tarifárias devem ser aprovadas pelo legislativo. É por isso que países como o Brasil se recusam a discutir a ALCA enquanto não for aprovado o “ fast track “, ou seja, enquanto o Congresso americano não renunciar a seu direito de intervir no processo. E seria necessário lembrar ter sido esse país que inventou a condicionalidade na clausula da nação mais favorecida dos acordos de comércio, dificultando a extensão a terceiros de concessões tarifarias feitas em acordos anteriores? Com respeito à Alemanha, Arrighi se expressa da seguinte maneira “O epicentro do contra - movimento protecionista foi a recém - criada Alemanha Imperial. Quando o colapso de 1873 -79 atingiu a Alemanha, o chanceler Bismarck acreditava firmemente ,como qualquer dos seus contemporâneos, nos poderes auto - reguladores do mercado ( ...) A disseminação do desemprego ,da inquietação trabalhista e da agitação socialista (...) tudo isso se conjugou para induzir Bismarck a intervir para proteger a sociedade alemã a fim de que um mercado auto – regulador não destruísse o edifício imperial que ele acabara de construir. Ao mesmo tempo a crescente convergência dos interesses agrários e industriais que pressionavam pela proteção governamental contra a concorrência estrangeira, tornou –lhe fácil passar repentinamente do livre comércio e do laissez faire para uma postura altamente protecionista e intervencionista” (pg273). O Japão sempre foi economia bastante fechada. Sua tendência protecionista pode ser ilustrada no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com base na indústria automobilística, um dos setores mais dinâmicos e de maior efeito multiplicador de todo parque fabril. Singh (1995 ) mostra que. intervenção do Governo nesse segmento se desenvolveu em quatro linhas : desencorajamento do capital estrangeiro no setor, proteção contra importações, encorajamento da racionalização da produção e assistência no “marketing “ internacional. Quando a pressão externa para a abertura aumentou, o Governo japonês removeu obstáculos à capacidade das firmas estrangeiras de desenvolver presença permanente no mercado japonês. Mas somente quando as empresas locais já haviam adquirido posição firme no mercado interno e posição forte , as vezes dominante, no exterior. Ou seja, levantou as restrições quando estas já não eram necessárias. 2 - Passando ao caso dos países subdesenvolvidos podemos começar pela Coréia do Sul que constitui o mais significativo caso de sucesso das economias emergentes do Leste da Ásia . Segundo Spraos (1993) “A Coréia do Sul é classificada (corretamente ) como orientada, de maneira geral e fortemente, para fora, durante os períodos relevantes, mas isto deixa de captar as medidas protecionistas substituidoras de importações que ,setor por setor, precederam o impulso exportador e sustentaram sua efetividade” (pg. 73). No Brasil os supostos malefícios do protecionismo são usualmente ligados ao modelo se substituição de importações . Este é apontado como a irresponsável decisão de tudo produzir no país qualquer que fosse o custo. Ora, é fácil demonstrar que (a) a substituição de importações não resultou de política econômica previamente definida mas simplesmente das circunstâncias econômicas da época, (b) o mais radical instrumento protecionista adotado (lei do similar nacional) se justificava plenamente dentro das condições então prevalecentes e, finalmente (c) em termos econômicos a substituição de importações proporcionou ao país a maior taxa de crescimento de sua história. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 133 No caso do Brasil, é fácil demonstrar que a produção interna de manufaturas, antes adquiridas no exterior, não se originou de política racionalmente definida e voluntariamente implementada . Furtado (1959) mostra, de fato , que a indústria brasileira nasceu, não de medidas destinadas a protegê - la. mas de providências visando favorecer a agricultura . A Grande Depressão dos anos trinta, segundo esse autor, provocou substancial queda nos preços do café o que , em condições normais ,teria determinado perda correspondente no poder aquisitivo dos proprietários agrícolas, que tinham neste, sua fonte principal de renda. Para evitar que tal acontecesse ,o Governo brasileiro desvalorizou o milreis na medida necessária para manter constante ,em moeda local, a capacidade de compra do setor . A consequência disso foi que os proprietários agrícolas não tiveram por que reduzir seus padrões de consumo . Como, no entanto, inexistiam divisas para importar os produtos manufaturados, eles se viram forçados a recorrer à débil indústria local. Esta recebeu , assim , substancial impulso, que vai se manter durante toda a década dos trinta e dos cinco anos seguintes, diante da dificuldade para importar determinadas pela Segundo Guerra Mundial. Igualmente significativo da falta de interesse do Poder Público pelo setor fabril, foi o fato de a tarifa aduaneira que, em 1934, representava 30% do valor das importações, ter declinado paulatinamente até chegar, às vésperas da reforma tarifária de 1957, a apenas 3% das importações . Isso aconteceu porque sendo - específica – (ou seja, calculada não pelo valor mas pelas características físicas do produto), não se ajustava à elevação dos preços internos . Pode - se, portanto, afirmar que, na fase crítica de nossa industrialização , 134 o setor não contou com aquilo que ,em toda parte do mundo, se considerava defesa, normal e necessária, das indústrias nascentes. Nosso parque manufatureiro dependeu ,no seu nascedouro. somente da defesa proporcionada pelas dificuldades cambiais do país. Os detratores do modelo alegam que a política substituidora criou, no Brasil, indústria cobrindo toda a gama de produtos ,sem qualquer consideração de custos. Os preços em alguns segmentos chegavam a ser de duas a três vezes superiores aos internacionais. Essa constitui, sem dúvida , séria distorção. Ela deve ,no entanto, ser examinada no seu contexto . Tal tipo de anomalia nasceu ,fundamentalmente, da “lei do similar nacional”.Com base nesta se proibia a importação de qualquer artigo já produzido no país, o que viabilizava indústrias de custo extremamente alto. A medida era, todavia perfeitamente lógica porque se utilizava a moeda estrangeira economizada para a compra no mercado internacional, de produtos essenciais ao nosso desenvolvimento. Claro está que se tratava de situação a ser corrigida tão logo fosse aliviada a escassez cambial. Mesmo nesse caso, todavia, teria sido justo conceder tempo às empresas de altos custos para se reciclarem , mudarem de linha de produção ou simplesmente encerrarem suas atividades com o menor prejuízo possível. Elas, no fim de contas, nasceram para atender à premente necessidade nacional de economizar divisas e em resposta a estímulos oficiais. Finalmente é quase desnecessário lembrar que a tão elogiada abertura iniciada no fim dos anos 80 proporcionou ao país incremento anual médio do PIB na década passada inferior a 2%. No período de substituição de importações, o Brasil cresceu a R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 taxa mais de três vezes superior. Não há dúvida que as potencialidades de substituição de importações se acham hoje esgotadas não tendo sentido qualquer tentativa de relançar o modelo. Não deixa ,contudo, de ser surpreendente a forma como é vilipendiado período em que o país registrou as maiores taxas de crescimento de sua história TERCEIRA SEÇÃO : Papel do Protecionismo no Desenvolvimento Econômico Conforme afirmamos inicialmente o protecionismo é um “second best” em relação à completa liberdade de comércio. Ele só se justifica na medida em que se revele indispensável para que o país atinja o pleno desenvolvimento. Para melhor colocar a questão convém recapitular o mecanismo básico do crescimento econômico. 1 - Nas sociedades modernas, com ênfase especial para os países em desenvolvimento, o processo dinâmico se caracteriza fundamentalmente pelo constante aumento do produto (ou valor adicionado) por trabalhador, resultante da elevação do capital (físico e humano) por pessoa ocupada. Essa elevação, por sua vez, é viabilizada pelo progresso tecnológico. O pleno desenvolvimento é alcançado quando o país atinge o mais alto capital por trabalhador permitido pela mais moderna tecnologia conhecida. O capital acumulado gera fluxo de PIB que pode ser medido tendo em conta sua produtividade. Esta, é elevada nos setores internacionalmente competitivos que dispensam, portanto, qualquer tipo de apoio . Os demais, para subsistirem, dependem de medidas protecionistas No Brasil Franco (1999) atribuiu importância fundamental no crescimento eco- nômico ao aumento da produtividade total dos fatores –PTF. Esse é definido como incremento do PIB superior ao aumento dos fatores de produção. A literatura especializada não confirma, todavia, essa interpretação. Não só o aumento do capital constitui sempre o mecanismo básico do crescimento como o incremento da PTF só ganha maior expressão no caso dos países desenvolvidos (Magalhães, 2000). A análise do desenvolvimento somente em termos do aumento do capital por trabalhador é , portanto, perfeitamente legítima. Vejamos então em que casos o protecionismo se torna fundamental nas políticas de desenvolvimento. Duas observações preliminares se fazem necessárias. Nas análises usuais do comércio internacional se distingue entre bens transacionáveis (exportados ou suscetíveis de serem exportados e importados ou suscetíveis de importação) e não transacionáveis. Na análise que segue consideraremos, para maior simplicidade, todos bens como transacionáveis. Uma segunda observação é que, como se disse anteriormente, a justificação de medidas propostas será colocada da perspectiva da demanda e não da oferta, como é usual nas teorias protecionistas e nas objeções alegadas contra elas. Em linhas gerais a questão pode ser colocada da seguinte maneira. Se em condições de total abertura da economia, o país se beneficiar de demanda capaz de lhe proporcionar capital por trabalhador do nível requerido pelo pleno desenvolvimento, estaremos diante da situação ideal .Isso porque todos setores da economia, sem exceção, estariam registrando produtividade de nível internacional. Pode porém suceder que, sejam as condições internas do país, seja o fechamento do mercado mundial, sejam ainda outros fatores, não R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 135 permitam que a demanda por atividades internacionalmente competitivas viabilize investimentos de nível requerido para se chegar ao capital por trabalhador indispensável ao pleno desenvolvimento. Nesse caso, o protecionismo se justifica como forma de proporcionar ao país a capitalização necessária. Observe-se que a demanda se orienta para os bens oferecidos a menores preços e, portanto, produzidos a baixo custo. Nesse contexto é fácil compreender porque dificilmente em países subdesenvolvidos, no âmbito de uma economia inteiramente aberta, a demanda será suficiente para lhes garantir capital por habitante igual ao dos desenvolvidos. Para que isso acontecesse as economias retardatárias deveriam oferecer a preços internacionalmente competitivos uma gama de produtos cuja produção dependesse de capital por trabalhador de nível igual ao observado nos países desenvolvidos. Não parece difícil compreender a extrema dificuldade de se atende à essa condição. Exemplo aritmético simples ajudará a compreender a questão. Suponhamos país hipotético com as seguintes características: Relação capital / trabalhador requerida para pleno desenvolvimento = 100 000 Número de trabalhadores = 1 milhão Produtividade do capital no setor internacionalmente competitivo = 0,7 Produtividade do capital no setor não competitivo = 0,5 Se o setor internacionalmente competitivo se defrontar com demanda suficiente para absorver a totalidade dos trabalhadores, temos a situação ideal prevista pelo neoliberalismo, com capital total de 100 136 bilhões e, levando-se em conta a produtividade deste , PIB de 70 bilhões (100 bilhões multiplicados por 0,7). Suponhamos , no entanto , mais realisticamente ,que deficiências internas e limitações do mercado externo permitam investimentos, em setores internacionalmente competitivos, de somente 50 bilhões de dólares. Ou, colocando a questão em outros termos, a demanda para setores internacionalmente competitivos permite a montagem de atividades que, no seu conjunto, viabilizam esse nível de investimentos. Nesse caso, o PIB gerado (dada a total abertura da economia que inviabiliza os setores não competitivos internacionalmente) seria de somente 35 bilhões de dólares. Tal seria o resultado inevitável da política ortodoxa, que defende a irrestrita abertura do mercado interno. Caso fosse adotada estratégia complementar de mercado interno, apoiada por medidas protecionistas (mercado interno chamado a compensar a insuficiência do esterno) os 50 bilhões restantes de investimentos requeridos se tornariam viáveis . Dada sua menor produtividade proporcionariam, contudo , PIB suplementar de somente 25 bilhões de dólares (50 bilhões multiplicados por 0,5 ) perfazendo produto total de 60 bilhões de dólares . Temos ,assim, para os PIBs nas três hipóteses: Modelo de total abertura (teórico) 70 bilhões Modelo de total abertura (realista) 35 bilhões Modelo misto 60 bilhões Não se discute ,portanto, que a situação ideal seria de economia inteiramente aberta ou composta apenas por atividades internacionalmente competitivas. Se, contudo, como é realista esperar, a demanda por elas R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 for incapaz de viabilizar a totalidade dos investimentos requeridos pelo pleno desenvolvimento, estratégia complementar de mercado interno (configurada modelo misto) é claramente um “ second best “, que não pode ser desprezado. Outro ponto importante a ser observado é o de não haver impedimento a que, através de política destinada a criar vantagens comparativas dinâmicas e estimular a concorrência interna, parte significativa das atividades inicialmente amparadas atinja níveis internacionais de produtividade, dispensando o protecionismo. Diferentemente do proposto por List, contudo, a proteção não se acha condicionada a que alcancem, no futuro, esse resultado. Sublinhe-se que a política protecionista, é estritamente complementar. Nenhum investimento será feito com base nela , se os recursos correspondentes puderem ser investidos em setores internacionalmente competitivos. Portanto, se correta a hipótese de mercado externo, capaz de viabilizar a demanda requerida pelo pleno desenvolvimento (com a instalação no país de somente atividades produtivas de nível internacional de produtividade) a estratégia aqui sugerida proporcionaria o resultado ótimo (PIB de 70 bilhões),isto é não inferior ao anunciado pelo neoliberalismo. Não confirmada a visão otimista, ela garantiria automaticamente o “second best “(PIB de 60 bilhões ) evitando o pior resultado , consequência inescapável da fórmula de completa abertural (PIB de 35 bilhões). 2- Presentemente o “marketing neoliberal”, amplamente apoiado pelas organizações internacionais, tende a denunciar qualquer forma de protecionismo como atentado a regras elementares de comportamento econômico, dado que significa patrocínio de produção de altos cus- tos, em detrimento de outra de custos mais baixos. Analisemos essa colocação A teoria do comércio internacional sustenta que cada país deve se especializar naqueles bens em relação aos quais registra custos (absolutos ou relativos) mais baixos. A forma de medir esses custos foi objeto de longo debate (Corden ,1988) entre os que defendiam a utilização do custo real (Viner) e os partidários do custo de oportunidade (Haberler). Os partidários da primeira alternativa sustentavam ser o custo de um bem, medido pela quantidade de fatores de produção e insumos necessários a sua obtenção . Os defensores da tese oposta afirmavam que o custo de um bem é dado pela quantidade de outros bens a que se renuncia para obtê - lo. A idéia do custo de oportunidade prevaleceu, sendo hoje aceita , sem contestação, na teoria do comércio internacional. É fácil mostrar como o protecionismo se justifica com base no custo de oportunidade em país com grande quantidade de fatores ociosos. Nele, a produção de dado bem poderá registrar custo de oportunidade zero. Nem por isso, toda via, a empresa que produz estará isenta do pagamento de salários, juros, impostos etc. Diante desse fato torna-se necessária a adoção de medidas protecionistas, que a defendam de concorrentes externos de custos reais mais baixos. Passemos ao caso especial dos subdesenvolvidos. Esses países têm elevada capacidade de mobilizar poupanças. As nações do Leste Asiático apresentam , todas ,níveis de poupanças iguais ou superiores a 30% do PIB. Mostramos, por outro lado, que o pleno desenvolvimento é obtido pelo acúmulo de capital por trabalhador do nível permitido pela mais moderna tecnologia disponível. Suponha- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 137 mos, retomando os dados do exemplo acima, que esse nível seja de 100 000 dólares por trabalhador o que, multiplicado por hipotéticos um milhão de trabalhadores, dá o capital de100 bilhões de dólares. Diante da suficiência da poupança ,é licito afirmar que nosso hipotético país subdesenvolvido dispõe de “capital potencial “desse nível. Aceitemos, em seguida, que no contexto da irrestrita liberdade de circulação de mercadorias país subdesenvolvido só consiga acumular 50 000 dólares por trabalhador. Teríamos, assim, outros 50 bilhões de dólares de “capital potencial “ ocioso. Os empreendimentos lançados para aproveitá-lo teriam, portanto, custo de oportunidade nulo, por não implicarem na renúncia à produção de qualquer outro bem. Mas, para serem viabilizados, exigem medidas protecionistas (se esses empreendimentos não surgiram espontaneamente em economia aberta é porque não se revelaram internacionalmente competitivos). Esse protecionismo, baseado nos melhores preceitos da Economia convencional, não tem guarida nas regras da OMC e nas receitas do FMI que, para todos efeitos práticos, levam em conta o custo real. 3 - A questão poderá ser melhor compreendida com base na experiência brasileira dos anos cinquenta. Os adversários da industrialização denunciavam o absurdo de se deixar de produzir café, o que fazíamos a baixo custo, para fabricar automóveis, a preços mais elevados que os internacionais. Contra isso, os defensores da indústria mostraram que não estavam propondo criar setor manufatureiro em detrimento da produção agrícola, mas sim aproveitar potencial de poupança do país que, de outra forma, ficaria sem utilização . Ou seja , tínhamos capacidade de poupar 25% do PIB e o setor primário mal 138 absorvia a metade desse montante. Ou, tecnicamente, se o custo real da industria brasileira era alto, seu custo de oportunidade se revelava nulo porque se estava aproveitando “capital potencial “ocioso. Esse capital foi em parte empregado diretamente na produção industrial e, em parte, utilizado para liberar trabalhadores rurais requeridos pelo setor fabril. Os fatos confirmaram a tese protecionista : o Brasil criou parque fabril completo sem qualquer redução do setor primário. Isto é, se eram elevados os custos reais da indústria brasileira seus custos de oportunidade eram nulos, justificando-se a proteção A grande dificuldade está em que a idéia do custo de oportunidade é anti-intuitiva. Os defensores da abertura comercial irrestrita se prevalecem do fato de se revelar difícil convencer o consumidor que pode ser bom para o país comprar produtos nacionais caros em vez de estrangeiros baratos . Embora tenha sido, fazendo exatamente isso, que o Brasil registrou as mais elevadas taxas de crescimento de sua história 4 - Vimos que os custos de oportunidade capazes de justificar o protecionismo no âmbito de uma política de desenvolvimento parece terem sido esquecidos pelos organismos internacionais e pelos cultores da “mainstream economics”. O mesmo ocorre com a justificação do que chamaríamos “protecionismo extenso”. Vejamos o que isso. A literatura clássica do comércio internacional, ao reconhecer a validade da teoria protecionista da indústria nascente, mostrava que a defesa da atividade interna poderia ser levada adiante de duas maneiras: através de barreiras tarifárias ou de subsídios. Declarava inclusive preferência por estes últimos dado que a tarifa R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 eleva a receita do Governo, tendendo a se perpetuar, enquanto o subsídio, por ser despesa, é cortado logo que possível. Ora os subsídios apresentam outra importante vantagem .Se as barreiras tarifárias proporcionam à indústria nascente a condição de disputar o mercado interno os subsídios lhe conferem acesso, nas mesmas condições, tanto ao mercado externo quanto ao interno. Aceita, portanto, a validade da tese da indústria nascente, as nações subdesenvolvidas poderiam adotar um tipo de protecionismo, baseado em subsídios, que pode ser chamado de extenso por lhes permitir a penetração em qualquer mercado. E desde que esse subsídio não fosse além do estrito necessário para compensar as desvantagens naturais de uma indústria emergente e não durasse mais do que o tempo necessário para a maturação do processo fabril ele se justificaria plenamente dentro da melhor doutrina econômica. Podemos voltar aqui à questão do chamado “custo Brasil”. Mostramos antes que, contrariamente dos que sugerem ataque pontual ao problema, ele deve ser compensado por medidas protecionistas de caráter geral. E se estas tomassem a forma de subsídios, as indústrias nascentes dos países subdesenvolvidos ganhariam acesso, em igualdade de condições, tanto ao mercado externo quanto ao interno. Nesse caso, não seria subsídio para compensar casos específicos de “ custo Brasil” mas medida de caráter geral dado que este não é pontual mas sistêmico, não resulta de ineficiências em setores específicos mas da própria condição de subdesenvolvimento. Na prática essa sugestão se defronta, além da previsível resistência dos desen- volvidos com a dificuldade de país subdesenvolvido reunir os recursos requeridos por um subsídio sistêmico . Análises desse tipo deveriam, contudo, ser largamente divulgadas pelas economias retardatárias para mostrar que a doutrina econômica autoriza (e inclusive dá preferência a) protecionismo bem mais agressivo do que o usualmente adotado, ou suscetível de ser reivindicado , por elas. QUARTA SEÇÃO: Nota sobre as Integrações Econômicas Regionais 1 - Processos de integração constituem modalidade (embora geograficamente restrita) de abertura da economia. Cabe , portanto, examinar suas consequência sobre as políticas de desenvolvimento. Na literatura econômica (Viner) a abertura, territorialmente restrita, é considerada qualitativamente inferior à liberação do comércio em escala mundial do tipo propugnado pelos teóricos das vantagens comparativas. As integrações regionais seriam positivas na medida em que - criam comércio- e negativas quando - desviam comércio -. Exemplo simples ajudará a entender os dois casos. Suponha que o país A adquira seu aço no país B que, por ser este produtor eficiente, oferece os menores preços. Ao se integrar com C, produtor ineficiente de aço, A passa a comprar dele o produto, tornado barato em função do desaparecimento entre eles da barreira tarifária . Ocorre, dessa forma, - desvio de comércio-, considerado negativo por beneficiar produtor ineficiente. Se, no entanto, o país A, produtor ineficiente de trigo para auto – consumo, se une com D, produtor eficiente, há criação de comércio - porque todo trigo passará a ser produzido neste último. Os produtores ineficientes de A desaparecem, o que constitui resultado positivo. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 139 Os defensores dos processos de integração (Byé,1950) alegam constituir essa colocação estática do problema. Da perspectiva dinâmica, o processo torna -se favorável porque mercados mais amplos, gerados pela integração, favorecem as economias de escala. No caso dos menos desenvolvidos, existe ainda a vantagem suplementar: de serem viabilizados investimentos até agora não realizados em função da pequena dimensão dos mercados nacionais isoladamente considerados . Essa argumentação não pretende comprovar a superioridade das integrações sobre a abertura comercial ampla, mas apenas mostrar que as integrações revelam se favoráveis, a despeito dos eventuais desvios de comércio. Passando à análise direta da questão a pergunta é a mesma feita em relação à abertura irrestrita, proposta pela teoria das vantagens comparativas: até que ponto a abertura em escala regional favorece, ou impede, que economia retardatária se assegure demanda suficiente para atingir capital por trabalhador do nível requerido pelo pleno desenvolvimento ? Com respeito à demanda três coisas podem suceder nos acordos de integração regional, duas negativas e uma positiva. O primeiro efeito negativo ocorrerá se produtores eficientes de participantes do acordo capturarem a demanda antes atendida por outros membros. Nesse caso, significativos desinvestimentos podem ocorrer . O segundo efeito negativo existirá se todo incremento futuro da demanda for absorvido por empresas eficientes determinados participantes Quanto ao resultado positivo, este aparecerá se o mercado mais amplo, proporcionado pela integração, permitir economias de escala 140 ou a realização de investimentos antes inviáveis dado o pequeno tamanho dos mercados nacionais. 2 – A resposta à pergunta sobre se a abertura limitada das integrações é ou não favorável ao desenvolvimento deve ser respondida em função de três casos: união entre países desenvolvidos , união entre países subdesenvolvidos e união entre países em nível diferente de desenvolvimento. No primeiro caso não deverá haver o problema de grandes transferências de demanda entre participantes (com os consequentes grandes desinvestimentos) ou de monopolização dos aumentos da demanda por alguns participantes. Conforme dissemos anteriormente, a demanda tende a se orientar para os produtores eficientes , de menores custos e, portanto, de preços favoráveis. Ora, na integração entre países igualmente desenvolvidos, os níveis de eficiência são uniformemente elevados, o que não autoriza grandes deslocamentos de demanda entre os membros. As perdas de alguns ramos são normalmente compensadas por ganhos em outros, sem desinvestimentos líquidos significativos. Quanto ao futuro, todos participantes se acham em condições iguais no que se refere ao aumento da produtividade inexistindo, portanto, risco de açambarcamento da demanda futura por um ou alguns deles. O resultado final deverá ser, assim, positivo em termos de viabilização de importantes ganhos de escala. Esse tipo de análise é, aliás, amplamente confirmado pela experiência da União Européia. Tudo o que se disse acima vale igualmente para eventuais integrações entre países subdesenvolvidos. Seus níveis de produtividade e a capacidade de aumentá- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 los são semelhantes, o que exclui o risco de grandes deslocamentos de demanda entre os participantes ou de monopolização dos incrementos desta por alguns deles. superdesenvolvido, porque terão transferido para nós os setores de baixo valor adicionado por trabalhador. E o Brasil não irá além do semidesenvolvimento, porque se terá especializado neles. O grande problema aparece no caso de integração entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, do tipo proposto no caso da ALCA. Examinaremos a questão com base nas prováveis consequências para os dois principais participantes, Brasil e Estados Unidos. Valladão (1995) mostra que tal é exatamente o resultado esperado pelos dirigentes americanos. Segundo ele, Robert Reich ,Secretário do Trabalho e um dos mais influentes membros da administração Clinton, declarou esperar que, no âmbito da ALCA, os empregos de maior valor adicionado e, portanto melhor pagos, irão naturalmente se localizar nos Estados Unidos. Sendo este último não só o detentor de uma das mais avançadas indústrias do mundo, como eficiente produtor agrícola, poder-se-ia, numa primeira aproximação, supor que ele absorveria a totalidade da demanda, com desinvestimento maciço na economia brasileira. Sucede porém que, segundo vimos anteriormente, a especialização internacional não se faz com base em custos relativos e não em custos absolutos. O normal seria, portanto, os Estados Unidos se concentrarem nos setores em que se revelam relativamente mais eficientes deixando para o Brasil aqueles em que somos relativamente menos ineficiente. Nesse contexto não parece difícil perceber que as empresas americanas se concentrarão nos setores de tecnologia mais apurada, mão de obra de maior qualificação, e exigindo grande capacidade de pesquisa e inovação. Esses são os setores que registram alto valor adicionado por trabalhador e acelerada taxa de crescimento. As brasileiras ficarão com as atividades largamente utilizadoras de recursos naturais e mão de obra, atividades de baixo valor adicionado por trabalhador e demanda de crescimento relativamente lento. Ou seja, no longo prazo os Estados Unidos se tornarão país 3 - Convém recapitular aqui argumento cansativamente repetido em favor da ALCA. Ela nos daria acesso livre ao maior mercado mundial . Ora, o importante não é o acesso livre a grandes mercados mas a mercados de atividades de rápido crescimento e elevado valor adicionado por trabalhador. A experiência demonstra (Japão, Estados Unidos ,Alemanha e emergentes asiáticos) que a melhor forma de conquistá – los é através de fase protecionista inicial. Esta, complementada por política voltada à criação de vantagens comparativas dinâmicas, em setores previamente escolhidos, proporcionará às empresas neles situadas níveis internacionais de produtividade e, portanto, acesso àqueles mercados. Com a ALCA (pelo menos nos termos em que se acha hoje colocada) essa fase protecionista inicial ficará inviabilizada, nos impedindo a penetração nos únicos mercados capazes de nos proporcionar o pleno desenvolvimento. econômico. Exemplo simples mostrará como o acesso a grandes mercados pode, inclusive, ser negativo. Suponhamos que tenha sucesso o esforço da diplomacia brasileira R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 141 de conseguir ampla abertura da União Européia para nossos produtos agrícolas. As exportações brasileiras do setor explodiriam e o PIB do país passaria a crescer aceleradamente. O otimismo gerado por esse estado de coisas (mais as compensações que deveríamos oferecer aos europeus) encorajariam a abertura ainda mais ampla de nossa economia com a especialização final do país na produção de “commodities” . Especialização esta unanimemente condenada pela literatura tanto nacional quanto estrangeira (Magalhães, 2000), por se tratar de setor de baixo valor adicionado por trabalhador e mercado de lento crescimento. Não se está, com isso, afirmando que nas integrações entre desenvolvidos e subdesenvolvidos estes últimos registrem sempre perdas. Eles terão, pelo contrário, importantes vantagens nos prazos curto e médio, com a transferência para seus territórios de atividades intensivas de mão – de - obra e de recursos naturais. Sua perda será no longo prazo, dado que terão renunciado â completa eliminação do atraso econômico. A questão pode ser ilustrada com o caso do Chile que já tentou, inutilmente, ingressar no NAFTA e procura agora acelerar as negociações para a ALCA. Esse país, diferentemente do resto da América Latina, apresentou nos últimos anos crescimento acelerado do PIB. Aproveitando a diferença de estações entre ele e os Estados Unidos, lançou – se na exportação de produtos agrícolas e conexos. Com isso registrou crescimento anual em torno de 7%. O problema é que o mercado para tal tipo de atividade cresce de apenas 3% ao ano. Assim sendo pode –se prever que durante algum tempo ainda conseguirá taxas elevadas de crescimento ao eliminar do mercado 142 fornecedores tradicionais e ao obter parcela mais que proporcional do crescimento da demanda. Esse crescimento acelerado irá, contudo se tornando cada vez mais difícil na medida que controle segmentos mais amplos do mercado. Quando o controle for total o incremento do seu PIB estará inexoravelmente limitado aos 3% a. a. impostos pelo mercado em que se especializou. Da perspectiva secular duas coisas podem acontecer. Numa primeira hipótese o Chile reduzirá significativamente seu atraso econômico conseguindo, em seguida, manter sua posição relativa. Nesse caso se tornará país cronicamente semidesenvolvido. O mais provável , contudo, é uma segunda hipótese em que, tendo se especializado em atividades com mercado de incremento inferior à média, não conseguirá acompanhar o ritmo de crescimento das economias maduras voltando, gradativamente, à situação anterior de subdesenvolvimento. A experiência histórica da Argentina ilustra esse tipo de evolução. Em suma, o grande risco em relação a ALCA é que dentro de visão de estrito curto prazo ela pode ser considerada favorável. Os países de porte médio da América Latina, não tendo levado adiante esforço de industrialização do tipo realizado no Leste da Ásia, talvez não tenham alternativa à ALCA. Alternativa só existiria no âmbito de uma ALCSA (Área de Livre Comércio Sul Americana) colocada em termos corretos, ou seja , de distribuição preestabelecida entre os participantes dos setores de maior dinamismo e valor adicionado por trabalhador. Isto é, algo semelhante ao que se tentou no Grupo Andino. Até agora nada nesse sentido está sendo sequer tentado para viabilizar uma futura ALCSA. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 O Brasil, pelo contrário, dadas suas dimensões contintentais (eventualmente criadas pelo MERCOSUL) tem condições de fazer uma aposta bem sucedida no pleno desenvol vimento. Para tanto deverá estar preparado para recusar a proposta de ingresso na ALCA, pelo menos nos termos em que esta se acha hoje colocada. É possível que, em termos realista de política internacional, o Brasil não possa se retirar pura e simplesmente das negociações sobre o acordo. Nesse caso, deveríamos condicionar ingresso no sistema aos seus resultados em termos de política de desenvolvimento. O problema da integração entre países em níveis diferentes de desenvolvimento, amplamente reconhecido na literatura, deveria ser colocado abertamente e como discussão prioritária. Nesse contexto nossa posição poderia ser, não de recusar frontalmente a ALCA mas de sustentar que deveria ser lançada quando a diferença entre o produtoper capìta dos participantes houvesse baixado dos 1 para 8 atuais ( caso dos Estados Unidos em relação ao Brasil) para, digamos, 1 para 3, como ocorreu na experiência histórica das integrações bem sucedidas. Ou seja, a implementação efetiva da ALCA deveria ser precedida de amplo programa do tipo Aliança para o Progresso. Ou, colocando a questão dentro do gosto da “mainstream economics” assinalaríamos que as integrações econômicas reclamam condições iguais de concorrência entre os participantes, o que só existirá, em nosso caso, quando houver desaparecido, ou for drasticamente reduzido, o “custo Brasil”. O que normalmente só acontecerá em fase mais avançada do nosso desenvolvimento, fase suscetível de ser antecipada no âmbito de nova Aliança para o Progresso. CONCLUSÃO Países subdesenvolvidos não criam teorias econômicas mas as importam. Isso acarreta dois riscos. O primeiro deles se prende ao fato de essas teorias levarem em conta as condições existentes nas economias maduras, condições que nem sempre coincidem com as existentes nas economias retardatárias .O segundo risco decorre de os paradigmas analíticos importados contrem muitas vezes defesa disfaçada dos interesses dos países que os produzem. Nesse contexto, a teoria das vantagens comparativas constitui caso exemplar. Se nunca houvesse sido contestada, a Inglaterra seria hoje, possivelmente, o único país industrializado (ou plenamente desenvolvido) do mundo. O protecionismo de List, que levou em conta as condições e interesses dos países da segunda onda de industrialização, impediu que isso acontecesse. A tese desse autor foi incorporada a “ mainstream economics” e ai permaneceu enquanto se revelou útil para justificar as barreiras tarifárias desse países. Cessada essa utilidade, vai ser sucateada ou tolerada apenas como “second best” em relação a ataques específicos a “falhas de mercado”. Acontece que as justificações de medidas protecionistas mais amplas requeridas pelos subdesenvolvidos (e tipificadas pela contribuição de Prebisch) foram rejeitadas prematuramente e sem que houvessem sido falseadas . Esse fato coloca problema epistemológico de magna importância. A incapacidade dos países subdesenvolvidos no que se refere â criação científica não tem maior importância no concernenete às chamadas ciências naturais. Quando a cura do câncer ou da aids for descoberta no Hemisfério Norte, ela valerá igualmente para o Hemisfério Sul. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 143 O mesmo não é certo com respeito às ciências sociais. A questão do protecionismo ilustra bem esse fato. As teorizações de Prebisch foram abandonadas sem que jamais tivessem sido adequadamente contestadas, por inexistir na América Latina núcleo de pesquisadores acadêmicos capazes de aprofundá-las e defendê-las. Análise de Lakatos (1989) ilustra bem o que deveria ter sido feito. Toma como base a teoria gravitacional de Newton que , segundo ele, constituiu o programa científico de pesquisa de maior sucesso em ciências exatas. Nos seus primórdios, essa teoria sofreu toda sorte de violentos ataques. Os discípulos de Newton mostraram , no entanto, que as experiências que a desmentiam estavam erradas, ou provavam exatamente o contrário do pretendido. Novas experiências foram inventadas para comprovar a teoria gravitacional e assim por diante Foi cobertura desse tipo que faltou à teoria Prebisch. Sua rejeição não teria ocorrido se existisse, na América Latina. núcleo de pensamento crítico capaz de lhe garantir cobertura igual à proporcionada a Newton por seus discípulos . A menos que esse tipo de deficiência venha a ser corrigido, as chances de que o Brasil (e a América Latina em geral) levem a bom termo suas políticas de desenvolvimento são praticamente nulas conforme ilustram, de forma flagrante, os debates em torno do protecionismo. Abstract This paper shows that protectionism can,sometimes,contribute to development.It does not defend protectionism itself,but its application when ‘first best’ is unreacheable or when it only exists in theory . Keywords: Protectionists measures, Free trade, International Trade, Economic development. 144 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.125-145, jan/dez. 2003 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ARRIGHI, G. Longo. Século XX . Rio de Janeiro: Contraponto, 1994. BYÉ, M. Unions Douanières et Données Nationale. Économie Appliquée , jan/mar,1950. CORDEN, W. M. The Normative Theory of International Trade em R. W. Jones e P. K. Kenen (Org.) Handbook of International Economics. North Holland, Amsterdam, 1988. EMMANUEL, A. Unequal Exchange: an study of the imperialism of trade. New York : Monthly Review Oress, 1972. FRANCO, G. O Desafio Brasileiro: ensaios sobre o desenvolvimento, globalização e moeda. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. FURTADO, C. A Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro :Fundo de Cultura, 1959. KRUGMAN, P. Économie Internationale. Bruxelas: De Boeck Université, 1995. LAKATOS, I. Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmeem Lakatos, I. 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Na primeira focalizaremos, de plano, as características do último conflito, a situação de após guerra, a hipótese e o sentido de uma possível terceira conflagração mundial, a posição do Brasil no panorama internacional e suas obrigações nessa esfera e conseqüentemente no do setor da segurança nacional. A última guerra, suas características. Situação mundial após o conflito. A possibilidade de uma nova guerra e hipótese sobre o desenvolvimento. Posição atual do Brasil. Suas obrigações internacionais. Conseqüências para o Brasil no setor da segurança nacional. Desse quadro geral, decorre natural, quase espontaneamente, a necessidade da criação da Escola Superior de Guerra. Na segunda parte trataremos propriamente da Escola Superior de Guerra analisando suas finalidades, sua organização, suas atividades escolares para concluirmos que seu êxito vai depender, mais que tudo, da cooperação que lhe emprestarem os elementos exponenciais do Brasil quaisquer que sejam suas funções, atividades e especializações. CARACTERÍSTICAS DA ÚLTIMA GUERRA A última grande guerra teve como aspecto característico o emprego em massa, levado em extremo de suas atividades, da totalidade dos recursos morais, humanos e materiais das nações que nela, a fundo se empenharam. Das pessoas mais humildes aos maiores expoentes da ciência, de todos os homens e de todas as mulheres, dos velhos e das crianças - de cada um na missão em que sua capacidade parecia mais produtiva, na frente ou na retaguarda - todo esforço foi exigido. E a vitória coube aos que, sob aquele tríplice aspecto, mais recursos possuíam e a eles souberam imprimir uma planificação mais lógica e mais racional. Foi a guerra, em suma, uma luta em que venceu aquele que teve a preponderância do material - tomado este R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 149 no sentido mais amplo - ao serviço das melhores forças morais. Examinando-se a característica total da última guerra - que no dizer do Gen. De LATTRE DE TASSIGNY, poder-se-ia chamar de “integral” - para definir a intensidade do esforço exigido à “totalidade” da nação - verifica-se que ela não se refere somente à cooperação do esforço de todos em benefício da Nação em luta mas também à”extensão” do perigo da guerra a toda superfície do país. Aí está uma diferença essencial do último conflito, com o de 1914/18, devido, é claro, ao progresso do material usado pelos beligerantes. Decorrente dessa “extensão” , isto é, desse perigo - dada a possibilidade, por exemplo, de um desembarque de tropas aero-transportadas ou a incursão rápida e violenta de uma força motomecanizada - surge, como conseqüência lógica, a participação eventual de “todos” na luta armada ou na clandestina, cuja aplicação organizada, por todos os beligerantes, constitui uma normalidade peculiar ao último conflito. Desses três fatores - cooperação de “todos” para o esforço da guerra, perigo para “todos” no caso de um conflito e possibilidade de “todos” serem transformados em combatentes ativos - nasce uma maneira nova de se encarar a guerra e, em conseqüência, a mobilização que passará da fórmula clássica de mobilização geral para a de mobilização total e da qual “a mobilização militar” será simplesmente uma das partes, um dos ramos, uma de suas facetas. A mobilização, encarada sob esse novo aspecto, transcende das funções de órgãos especializados de ministérios específicos, para ser função do governo em seu conjunto, pressupondo-o servido por uma organização adequada a esse fim. As Nações, quer as democráticas, quer as totalitárias, no conflito último foram levadas 150 a criar mecanismos desse gênero. É que se trata, agora, não mais de mobilizar somente aqueles que desempenharão uma função propriamente na batalha, mas - organizar, orientar e conduzir as forças totais da Nação no sentido da vitória. Pensadores militares dividem esquematicamente a mobilização total em quatro partes: a 1 ) Mobilização moral do país e ataque ao moral do adversário, o que corresponde à chamada guerra psicológica. Exige uma técnica especializada. a 2 ) Mobilização da produção e ataque à produção inimiga, o que corresponde à guerra econômica. Exige uma larguíssima previsão e uma legislação especial muito completa. a 3 ) Mobilização das amizades exteriores, o que corresponde à guerra diplomática. Trata-se em suma, de ter uma política exterior segura e organizar, conseqüentemente, suas Forças Armadas de acordo com os compromissos dela decorrentes. a 4 ) Mobilização Militar, sub dividida, para maior clareza, em mobilização das Forças Armadas propriamente ditas e mobilização para pôr em condições de segurança, a totalidade da população. Constitui esta última parte a ampliação do conceito das “Forças Territoriais”, seja proteger contra “todos” os perigos, seja para lhe permitir participar do combate ou da resistência no caso de invasão. Pela sua extensão - embora pertencente aos Ministérios que administram as Forças Armadas - a mobilização militar necessita de uma orientação firme do Governo, em virtude de sua interferência com outras formas de mobilização. Abandonando por instantes, essa característica do último conflito que se refle- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 te, tão profundamente na preparação para a guerra, ressaltemos, de passagem, o progresso alucinante do material empregado pelas forças que se defrontaram na última contenda. Vivemos, neste particular, uma era verdadeiramente revolucionária. E constatemos finalmente que as características do último conflito e o material nele usado nos levam a meditar seriamente sobre a organização e a localização do potencial econômico nacional, para que ele possa existir na paz e persistir na eventualidade de nova guerra. O APÓS GUERRA Examinadas, grosso modo as características da última guerra e pesando os seus resultados, forçoso é concluir que ao tremendo esforço despendido, não corresponderam a tranqüilidade e a harmonia que o sacrifício de milhões de vidas humanas tinha direito de exigir. Vivemos um período tremendamente difícil nas relações internacionais e o mundo - dividido em dois campos opostos e dificilmente conciliáveis - parece viver um entreato de duas grandes guerras. Os primeiros dias de outubro de 45 - em que se reuniram e se separaram em Londres pela primeira vez, após a cessação das hostilidades, os representantes norte-americanos, ingleses, franceses, russos e chineses sem nada resolverem marcaram o início dessa situação mundial, que desta data em diante, só se tem agravado. Vive-se hoje a guerra fria que prenuncia nova hecatombe. “A paz conseguida (1945), porém, não foi a paz sonhada pelas vítimas da guerra. A tragédia de nossa época reside no fato de que o choque dos exércitos foi apenas substituído pelo choque das ideologias. Os homens e as nações não se encontram livres do receio de agressão e a real cooperação entre os Estados, única base se- gura para a paz, tem ainda que demonstrar que pode navegar pelas borrascosas águas do golfo que separa a democracia do Estado totalitário”. “No momento as condições são bastante turbulentas e favoráveis para que a guerra possa apresentar-se ao mundo, sem necessidade de um plano ou de uma política deliberada. Uma ação isolada poderá precipitar o conflito e uma vez irrompido ele em uma região crítica, a guerra se propagaria através de novas fronteiras, arrastando rapidamente outras nações, cujo desejo é a paz”. São do Gen. Eisenhower esses conceitos, no seu relatório ao deixar o Estado Maior americano e que, definem com autoridade, a época em que vivemos. E é um mundo assim, com tais perspectivas que os povos, em sua imensa maioria sedentos de paz, sentem a possibilidade, para não dizer a probabilidade, de uma nova guerra. Nesta situação, à nenhuma Nação, ciosa de sua soberania, é lícito deixar de encarar a realidade dos dias que correm e de se preparar, na medida de suas possibilidades, para lutar pela sua sobrevivência, examinado, com a maior acuidade, as hipóteses sobre a guerra futura. “Podemos ter a certeza que a próxima guerra, se houver, será ainda mais total do que esta (1945)” são afirmações do Gen. Marshall. Oswaldo Aranha, numa extraordinária conferência feita na Escola de Estado Maior, diz: “O futuro conflito terá, pois, de ser total e global. Será a luta de todos os povos e de todas as criaturas em todas as terras, mares e céus. O trabalhador terá de ser mobilizado como soldado, bem como todos os homens e até todas as mulheres, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 151 na medida de suas possibilidades. Nenhum esforço será inútil e aqueles que não puderem concorrer para a luta ou a puderem prejudicar, terão de ser eliminados. A futura guerra incluirá na sua trágica entrosagem, o corpo, o espírito, a máquina e tudo que existe em cada país para que algo possa, ao fim, sobreviver. Não será como as passadas porque terá de ser decisiva e definitiva para o destino da humanidade”. “Nossa tarefa é convencer qualquer possível agressor que pode optar pela guerra mas sob o risco de sua própria destruição. A perspectiva é talvez sombria, mas não há que fugir a ela”. “Felizmente não existe um inimigo que tenha hoje capacidade para fazer uma guerra em condições de produzir nossa derrota total”. São ainda afirmativas do Gen. Eisenhower. Reparai nos seus termos própria destruição - derrota total. Não há que fugir, infelizmente, a estas imposições de uma nova guerra se ela surgir. Aceitemo-las como inevitáveis e fixemos um novo aspecto da questão. O mundo ocidental gira hoje em torno da América do Norte. Foi ela, na segunda grande guerra, o seu maior arsenal e sê-lo-á mais fortemente num possível terceiro conflito. Meditemos, porém, na sua política externa e rendamos nosso tributo de admiração aquele Povo que não compreende a guerra sem ser atacado previamente. Essa grande norma de conduta cria-lhe, porém, graves problemas, com forte repercussão em todos os países do mundo. Tudo leva a crer, caso surjam novas hostilidades, que o primeiro ataque será o mais arrasador possível e, sem dúvida alguma, desferido contra a Nação mais preparada para a guerra. Será, no quadro atual da situação in152 ternacional a América do Norte, o primeiro país a ser atingido, brutalmente e sem dúvida alguma na parte fundamental de sua preparação para a guerra - suas indústrias, seus recursos materiais - de maneira a entravar, o mais possível, a resposta ao ataque e impossibilitar, nos primeiros tempos, o auxílio material aos seus aliados. Este fato acarretará, para nossos amigos do Norte, questões de tal complexidade que só seu espírito de iniciativa, de organização, de auto-determinação - servido por uma elite de condutores civis e militares, cientistas, industriais, homens de negócio - poderá enfrentar e vencer. Mas, continuemos. E de passagem ressaltemos que o já conhecido sobre novas armas faz com que nenhuma Nação do mundo se considere - pela sua situação geográfica a coberto dos riscos da guerra. E o que, publicamente, se sabe dos materiais, a serem usados num futuro conflito, é praticamente nada... Tudo, hoje, é neste terreno, possível de ser imaginado... SITUAÇÃO NACIONAL Na situação atual do mundo e numa posição geográfica relativamente vulnerável, vive o Brasil, membro da ONU e signatário do tratado Interamericano de Assistência Mútua. Por esse acordo, assinado no Rio de Janeiro a 2 de Setembro de 1947 aplicação do artigo 51 da carta da ONU, ficou estabelecida uma vasta zona de segurança compreendendo todo o continente americano e regiões adjacentes, no interior da qual uma agressão a todos os demais, exigindo ação imediata de defesa mútua, seguida de consultas sobre planos coletivos, inclusive para o emprego de forças armadas. No caso de ataque a qualquer ponto americano, fora da zona R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 de segurança estabelecida no Tratado, os Ministros de Exterior se reunirão, imediatamente, em conselho, a fim de decidir sobre as medidas de assistência ao agredido ou para manter a paz e a segurança panamericana. Para o fim que se tem em vista não é necessário mais detalhes sobre o Tratado. Liguemo-lo simplesmente - nos seus efeitos e causas - ao pacto do Atlântico Norte e consideremos nossa situação na questão que divide o mundo nos campos do Ocidente e do Oriente. Aí nossa atitude está também assentada. Não temos relações diplomáticas com a Rússia e já nos definimos claramente em relação ao comunismo, cabeça de ponte dos interesses do governo de Moscou, considerando-o ilegal no país. De outro lado, as tendências tradicionais do povo brasileiro, nossa secular amizade com a América do Norte, completam o quadro da situação internacional de nossa Terra, colocando-a numa posição clara diante de um possível terceiro conflito mundial, ainda que, nele fossem possíveis atitudes neutras. Em face do exame geral da situação e da posição particular do Brasil uma conclusão, desde logo, se impõe. Nesta conjuntura precisamos preparar-nos para a eventualidade da terceira guerra mundial, o que é uma conseqüência do panorama internacional, uma política de autodefesa, um imperativo de nossa soberania e do nosso espírito de sobrevivência. Viver despreocupado deste problema, num mundo que não se entende, é ter mentalidade suicida. SEGURANÇA NACIONAL A questão da segurança nacional - o primeiro dos deveres de um Estado, precisa ser equacionado de maneira racio- nal no Brasil e a procura de sua solução, deve ser o rumo firme dos seus dirigentes. O conflito futuro, afirmam todos, terá mais do que o último, características de guerra integral. Todas as forças morais, econômicas, diplomáticas e militares nele serão lançadas, com a máxima intensidade e a maior extensão. Daí a complexidade de sua preparação que, como já afirmamos, deve ser obra do Governo, em seu conjunto. E nossa Constituição, elaborada após o término das hostilidades, já consagra este princípio. O artigo 178 dá ao Presidente da República a direção política da guerra, o 179 atribui ao Conselho de Segurança Nacional o estudo dos problemas relativos a defesa do país e o 181 institui o serviço militar obrigatório e encargos afins. Mas, decorrente deste princípio, necessário é que toda uma legislação conveniente seja elaborada, da qual surgirá uma adaptação da estrutura governamental e dos vários outros órgãos administrativos, necessária à consecução desta orientação. Só com uma organização apropriada de Governo, será possível uma plítica de segurança nacional, cuja realização em tempo de paz é uma necessidade premente e permanente – pois a preparação da guerra comanda e domina a sua execução. Sem ela não há conduta possível de operações, porque “nos conflitos modernos a primeira batalha não é mais do que o choque de dois estados de preparação”. Procuremos fixar, pois, em que consiste, nas suas linhas mais gerais, uma política de segurança nacional. Nada melhor para isto do que meditarmos sobre esses conceitos do Gen. Eisenhower. “Um programa de segurança completo, deve cogitar do emprego eventual de to- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 153 dos nossos recursos econômicos, do emprego dos homens de ciência, tanto como da massa dos homens e do armamento. As forças armadas são apenas o gume da máquina da nação, cuja força destruidora será empregada para derrotar o inimigo”. “A segurança nacional é hoje, mais do que nunca, um problema de coordenação não apenas entre o Exército, Marinha e Força Aérea, mas também entre estes, o Ministério do Exterior e o conjunto da economia civil norte americana”. “Segurança nacional não quer dizer militarismo, nem disto se aproxima. A segurança não pode ser medida pelo volume dos estoques de munições, nem pelo número de homens em armas, nem tampouco pelo monopólio de uma arma invencível. Mesmo durante a paz, o índice do poderio material é enganoso, pois o armamento torna-se antiquado e sem valor; grandes exércitos decaem imperceptivelmente, minando ainda o vigor das nações a quem apóiam; o monopólio de uma arma é logo rompido. Adequadas reservas morais somadas à compreensão das exigências de cada dia, nos permitirão fazer face aos acontecimentos de nossa época”. Com a enorme responsabilidade de seu presente, com a dura experiência de seu passado, estes ilustres e magníficos chefes militares, definiram, com clara exatidão, a política de segurança nacional. Ela, de fato, hoje, diz respeito à totalidade da Nação que precisa, pelos seus dirigentes, pela sua elite, pelos seus homens de negócio e pela sua massa, compreender seu papel permanente no conjunto de esforços de toda a natureza, para que o país possa resolver, no caso de um conflito os problemas relativos à sua própria sobrevivência. Este conceito sobre segurança nacional não é ainda, infelizmente, compreendido pela generalidade da nossa gente. A velha idéia de que defesa nacional é função e dever privativos das forças armadas está até hoje, entre nós, muito arraigada. É preciso que nesse sentido se evolua e se compreenda que nos dias que correm “A Nação, organizando-se para guerra está também se preparando para uma vida melhor”. “Creio havermos aprendido que a defesa nacional não é propriedade exclusiva, nem incumbência peculiar dos homens de farda, mas que sua responsabilidade deve ser compartilhada pelo trabalho, o capital, a agricultura, a indústria e outros grupos que contribuem para o mosaico nacional”. “As guerras se travam e se ganham ou se perdem na terra, no mar ou no ar e nas linhas de batalha situadas atrás da frente, onde estão as forças civis. Não basta mobilizar o poderio militar da Nação. Deve haver a mobilização de todos os seus recursos econômicos”. O Gen. Collins, sub-chefe do Estado Maior do Exército dos Estados Unidos, sobre o mesmo tema inicia assim o discurso na Universidade de Norwick, (Fev. de 48). 154 De fato a segurança nacional repousa, antes de tudo, em uma organização adequada de Governo, em que o planejamento seja a preocupação maior. Desse planejamento geral surgirá um incremento da economia, tomada ela no seu sentido mais amplo, e de onde emergirá final e naturalmente, uma organização sólida para as classes armadas. Sem fortes bases econômicas não pode Nação alguma ter eficiente organização militar. É assim que compreendemos hoje, nós das Forças Armadas, a questão da segurança nacional e é desta maneira que por ela nos batemos, ao mes- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 mo tempo, que almejamos uma ligação estreita com o ITAMARATY, companheiros que somos de uma mesma luta, servidores do Brasil cujos passos devem estar sincronizados a todas as horas, em todos os momentos e em todos os sentidos. Outra questão a considerar na política de segurança nacional, é a decorrente de um aspecto do último conflito e da guerra fria de nossos dias. Queremos referir-nos ao problema ideológico – com a reeducação política dos vencidos, com os saques organizados, com os trabalhos forçados, com as questões religiosas – infelizmente, surgido na última guerra. Conseqüência deste fato é a necessidade de um esclarecimento continuado, permanente da opinião pública que deve ser alertada para a hora difícil em que vive o mundo, em que o amanhã é um desconhecido e onde as Nações imprevidentes não poderão talvez sobreviver de acordo com o seu feitio, seus hábitos, suas tradições, seus costumes. Esta obra deverá ser das elites esclarecidas e antes de tudo, dos que têm por missão plasmar o caráter e formar a cultura da nossa mocidade – os professores; da imprensa, instrumento real de combate e do rádio que leva aos mais afastados rincões de nossa terra as palpitações dos nossos anseios e a angústia das nossas dúvidas, todos instrumentos que tanta e tamanha força representam nos dias que correm. No conjunto destas idéias sobre a segurança nacional, muitos problemas são específicos das Forças Armadas. Sua solução, porém, só pode ser dada no âmbito geral das medidas concernentes à defesa do país. Isto porque as organizações militares constituem, hoje, mera componente da guerra total, ao mesmo tempo que sua ação é simplesmente a resultante do esforço dispendido em outros setores. Apesar desta verdade, têm procurado as For- ças Armadas acompanhar, na sua estruturação e ensino, as lições do último conflito. E como primeiro passo para a unificação das três forças – Marinha, Aeronáutica e Exército – foi criado o Estado Maior das Forças Armadas, órgão cujo trabalho silencioso e consciente, tanto tem produzido no sentido de um entendimento perfeito entre as três forças armadas. E que, ao lado dessa sua função precípua, não tem se descurado, na medida de suas possibilidades, de estudar e encaminhar aos poderes competentes, questões relacionadas com a economia do país – base da segurança nacional. Entre estas, a questão do Serviço Nacional, de natureza militar ou civil e que está em estudos no Congresso Nacional, onde merecerá, certamente, de nossos legisladores, uma acurada atenção. Temos para nós que transformado em lei esta proposição do Estado Maior das Forças Armadas, assinalado serviço será prestado à economia do país, ao lado de um profundo reflexo na educação e na preparação técnica do povo. O aproveitamento do Xisto Betuminoso, cujo estudo é outra contribuição do mais largo alcance que o novo órgão das classes armadas presta à economia nacional e que realizado, não colidindo, em absoluto, com a solução da questão de combustíveis pelo aproveitamento do petróleo, antes talvez para ela concorrendo será de imprevisível reflexo na nossa riqueza. Voltemos, porém, à questão da segurança nacional, considerada em seus aspectos mais gerais e repitamos que sua política deve basear-se numa estruturação adequada de governo, num esforço permanente para melhoria da economia do país, numa coordenação completa entre as três forças armadas, entre estas, o Ministério do Exterior e as forças civis, tudo num R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 155 ambiente da mais alta compreensão do sentido da segurança do país. E confessemos que falta a nós, civis e militares, pela magnitude da questão, uma base sólida para versarmos assuntos de tal monta e tal complexidade. De outro lado, porém, podemos ajudar-nos mutuamente, dando cada um, dentro de sua esfera de ação, o que ao outro falta, de tal forma e arte que os problemas se tornem mais fáceis e acessíveis. Assim agindo criaremos também a mentalidade da cooperação interministerial e interdepartamental e mais ainda – nós que somos tão individualistas – o sentido de equipe de trabalho, tão necessária ao cumprimento de qualquer missão. Encarar a política de organização da segurança nacional dentro deste objetivo, com este rumo, com este sentido, com esta meta, é a finalidade da Escola Superior de Guerra. a 2 PARTE ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA É mais uma iniciativa do Estado Maior das Forças Armadas, baseada na experiência dos nossos amigos da América do Norte. A primeira guerra mundial revelou aos Estados unidos a realidade que a vitória depende tanto da eficiência militar das tropas combatentes, quanto da capacidade de produção do país. E o resultado foi que, durante a primeira conflagração, ficaram os Americanos na dependência dos seus aliados quanto ao fornecimento do material, não obstante o notável esforço e capacidade daquela grande Nação. A lição foi imediatamente apreendida pelas altas autoridades militares america156 nas, que em 1924 conseguiram do Governo a criação da “Academia Industrial do Exército” (atualmente das Forças Armadas) com a finalidade de preparar oficiais para a missão de supervisionar a aquisição de todo material – militar e garantir a mobilização das organizações industriais necessárias em tempo de guerra. Com o tempo a Academia Industrial se desenvolveu a ampliou suas finalidades preparando não só oficiais como civis, para os cargos de comando, direção, estados maiores e órgãos do governo, através de estudos sobre: - Relações entre os fatores econômicos nacionais e os políticos, militares e psicológicos. - Todo planejamento combinado estratégico. - Coordenação de todos os órgãos e fatores econômicos e logísticos de impotância para a nação, sob o ponto de vista da segurança nacional. A conseqüência desta iniciativa, os seus resultados, e o mundo inteiro testemunhou por ocasião da segunda grande guerra, quando foi a América do Norte a grande fornecedora da material a todos seus aliados, invertendo, integralmente, a situação de 1918 (Military Review n.7 de 1948 Ten. Cel. J.G. Ondrick). Na segunda guerra mundial outra verdade se revelou aos americanos e que foi a necessidade da estreita coordenação entre aqueles dois fatores – econômico e militar – e a política exterior. Organizou a América do Norte, então, durante o próprio conflito, uma “Comissão Coordenadora Exército – Marinha – Exterior” que tinha como função precípua a sistematização dos diferentes aspectos, R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 militares e diplomáticos, do seu planejamento estratégico. A experiência daquela comissão indicou que nenhum dos Ministérios interessados possuía pessoal suficiente, com a cultura e o treinamento para versar problemas da importância dos que lhe eram cometidos. Concluíram os responsáveis pela segurança americana que a análise e a expressão do planejamento nacional, não poderiam ser executados, com eficiência, por técnicos especializados somente em um setor determinado, fosse ele diplomático, político, econômico ou estratégico. É que a orientação e os planos baseiamse na combinação harmônica de todos os fatores; tal combinação só pode ser obtida, nas melhores condições, por indivíduos familiarizados com os referidos fatores e capazes de pesarem o valor relativo de cada um. Foi com esta finalidade que, em 1946, foi criada a Academia Nacional de Guerra dos Estados Unidos, sob a direção do Estado Maior Conjunto em cooperação com o Ministério do Exterior. Seu currículo tem em vista dar aos estudantes civis e militares, o maior conhecimento possível sobre todos os fatores que determinam a política nacional, estimulando-lhes o raciocínio segundo linhas que melhor atendam à solução dos problemas futuros da sua segurança. (Military Review n.9 de 1948 – Cel. Abott). O Canadá e a França organizaram em 1948, estabelecimentos semelhantes e acreditamos que a Inglaterra tenha orientado, sobre esses novos moldes, se Colégio de Defesa Imperial. No Brasil, com finalidades semelhantes, porém sem essa objetividade, funcionou durante algum tempo, sob forma precária e somente sob aspecto militar (de operações), um curso de Alto Comando, na Escola de Estado maior, sob a orientação da Missão Militar Francesa. Em 1948 o Estado maior das Forças Armadas, após acurado estudo e tendo em vista reorganizar e atualizar o Curso de Alto Comando, solicitou e obteve do Exmo.Sr. Presidente da República, autorização para tratar da organização de uma Escola Superior de Guerra que funcionasse sob sua orientação, porém, suficientemente autônoma e capaz de proporcionar não só os ensinamentos que aquele curso previa, mas igualmente os que se recomendassem como fruto da experiência da última guerra mundial. Já foi pelo poder executivo enviado ao Congresso Nacional o projeto de lei, dando vida legal à nova Escola. Entre nós a Escola Superior de Guerra, de início, procurará centralizar os objetivos da Academia Nacional de Guerra, da Escola Industrial e de um terceiro estabelecimento de ensino americano, que essencialmente militar, trata das questões referentes às operações combinadas dos diferentes ramos das forças armadas. Esta nossa orientação cautelosa e a simples enumeração das finalidades da Escola Superior de Guerra, acarretam questões incrivelmente complexas para sua organização. Desde já, e em conseqüência trata o Estado maior das Forças Armadas, de preparar seu funcionamento para o início de 1950, com o concurso inestimável de três oficiais superiores americanos – Exército, Marinha e Aeronáutica – contratados especialmente para isso. FINALIDADE “A Escola Superior de Guerra é bem um espelho do conceito moderno de segurança nacional: ela não é um instituto militar R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 157 apenas, nem tampouco somente uma organização civil, é, isto sim, um centro misto de estudos – militar e civil – e onde, em última análise – se vai tratar da defesa do cidadão (Brok Claxton)”. gãos – civis e militares – responsáveis pelo desenvolvimento do potencial e pela segurança do país. Destina-se a Escola Superior de Guerra a desenvolver e consolidar conhecimentos relativos ao exercício de funções de direção ou planejamento da segurança nacional. A Escola Superior de Guerra terá, em princípio, a seguinte organização: Para isto, nela serão analisados: o 1 ) – Assuntos nacionais - questões que interessam ao desenvolvimento do potencial nacional. o 2 ) – Assuntos internacionais: - política exterior e sua coordenação com as necessidades da segurança nacional. Tendências mundiais. Problemas internacionais, principalmente os referentes ao hemisfério ocidental. o 3 ) – Assuntos militares: - emprego das forças combinadas. Determinação do valor das forças armadas necessárias à execução da política nacional na paz e na guerra. Planejamento estratégico. Mobilização nacional. Todas essas questões serão tratadas na Escola Superior de Guerra mediante o emprego de um método de análise e interpretação dos fatores políticos, econômicos, diplomáticos e militares que condicionam o conceito estratégico, num ambiente de ampla compreensão entre os grupos nela representados. Este método deverá desenvolver o hábito de trabalho em conjunto e de colaboração interministerial e interdepartamental, a fim de criar um conceito amplo e objetivo de segurança nacional que sirva de base à coordenação das ações de todos os ór158 ORGANIZAÇÃO a) Direção. b) Junta Consultiva. c) Departamento de Estudos. d) Departamento de Administração. Ao analisarmos os dois primeiros órgãos, encontraremos estruturação diferente da que no geral, é adotada no Brasil, quando constatarmos que o diretor que exerce também o Comando, terá: o 1 .) Uma assistência permanente – composta de representantes das diferentes forças armadas e possivelmente do Ministério do Exterior. o 2 .) Uma assistência periódica, constituída pelos membros da Junta Consultiva. A Junta, que aparece pela primeira vez, em órgão de ensino oficial no Brasil, deverá constituir-se de eminentes personalidades civis e militares, de notável projeção na vida pública nacional que aceitem colaborar com a direção da Escola, tendo como missão, aconselhar o comandante no que diz respeito a métodos de estudo e na orientação dos trabalhos, principalmente no que se refere a assuntos nacionais e internacionais. Tal colaboração, da mais elevada magnitude, há de ser recebida como serviço da maior relevância prestado à Nação. O Departamento de Estudos que centralizará a execução dos trabalhos escolares, será constituído de civis e oficiais das Forças Armadas, especializados R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 nos diversos assuntos das suas três divisões: - assuntos nacionais; - assuntos internacionais; - assuntos militares. Ao lado dos elementos permanentes do Departamento de Estudos a Escola recorrerá, para o desenvolvimento de suas atividades, à colaboração prestimosa de eminentes personalidades como conferencistas ou consultores especializados, bem como a todos os órgãos da administração pública, das organizações de classe e científicas do país. ATIVIDADES ESCOLARES E OUTROS DADOS Neste particular, deferirá totalmente a Escola Superior de Guerra das organizações similares no Brasil. É que ela será mais um centro permanente de estudos e pesquisas – uma Escola-laboratório – do que propriamente uma Escola, na acepção comum do termo. Sua vida escolar será nova entre nós, porque professores e alunos constituirão um todo, e de suas investigações individuais ou em equipe, é que hão de nascer as soluções dos problemas propostos à Escola. Todos integrarão equipes de estudo que será o objetivo principal da Escola, distinguindo-se apenas uns dos outros pela transitoriedade de uns e a permanência de outros. Colocados os estagiários – assim serão chamados os alunos - numa mesma situação com os seus elementos permanentes , o que a Escola procurará obter de todos será uma acurada pesquisa, uma investigação séria, um estudo consciencioso. Todo trabalho, sobre as questões focalizadas, provocará discussões proveitosas e por fim a apresentação de soluções possíveis e racionais, dentro da realidade brasileira e de acordo com sua política de segurança nacional. Nestas condições o ensino não será propriamente ministrado pelos mestres e instrutores, embora por eles orientados, mas será antes uma decorrência natural da pesquisa, da meditação e de debate dos assuntos, problemas e trabalhos entregues ao estudo dos estagiários. Não haverá assim necessidade, nem se justificaria pela própria natureza da Escola e pela categoria dos seus estagiários, classificação em fim de curso e graus de trabalho durante o correr do mesmo. As conferências serão assistidas por todos os estagiários. Os conferencistas serão elementos do Departamento de Estudos ou especialmente convidados. As mais eminentes personalidades, os mais capazes em todas as profissões e atividades serão solicitados a colaborar no ensino, mediante palestras sobre os assuntos de suas especialidades, e cujos ensinamentos sobremodo facilitarão e orientarão a escola na solução de seus próprios problemas. Ainda personalidades estrangeiras que residem ou estejam de passagem no Rio, serão igualmente convidadas a prestar esta colaboração, bem como os nossos diplomatas e adidos militares, quando de regresso de suas missões ou de passagem pelo Rio. Os conferencistas poderão exprimir livremente suas opiniões e pontos de vista, havendo depois um período de debates em que os assistentes terão liberdade de solicitar quaisquer esclarecimentos. Como estagiários concorrerão à Escola: - Oficiais de comprovada experiência e aptidão, pertencentes às Forças Armadas (postos correspondentes a General de Bri- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 159 gada, Coronel e excepcionalmente Tenente Coronel; cursos correspondentes aos de Estado Maior ou Técnico); - Civis de notável competência e de atuação destacada na formulação ou execução da política nacional, principalmente a exterior. Para cada ano escolar, mediante proposta do Comandante da Escola, o Chefe do Estado maior das Forças Armadas fixará o número de matrículas e as distribuirá entre civis e militares, cabendo aos diferentes órgãos competentes, indicarem nominalmente os candidatos. A matrícula se fará por ato do Chefe do Poder Executivo. Os civis não pertencentes à Administração Pública serão convidados pelo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. A classe de estagiários será dividida em turmas de 12 a 15 e em grupos de 6, para trabalhos específicos e sua composição deverá ser alterada diferentes vezes a fim de que possa haver, além do maior número de trabalhos de equipe, o maior conhecimento recíproco dos estagiários. Os grupos receberão os problemas para solução em tempo determinado, e serão orientados e assistidos em suas pesquisas e estudo pelo pessoal permanente da Escola; deste trabalho surgirá uma solução de grupo que poderá ser discutida entre vários grupos ou em toda a classe. As turmas receberão questões amplas, divididas em partes para o estudo individual pelos membros constitutivos da mesma turma que, ao fim do tempo fixado, apresentarão monografias completas sobre o que lhes foi proposto, tornando-se, se já não eram antes, especialistas no assunto. Todos os trabalhos dos grupos e as monografias deverão ser impressos, destinando-se exemplares para a Biblioteca da 160 Escola e para os órgãos interessados. Seu conjunto constituirá a contribuição de cada classe de estagiários, para a solução do problema da política de segurança nacional. De outro lado, haverá um perfeito sistema de controle dessas publicações, em sua maior parte altamente secretas. O ano letivo será dividido em dois períodos, de 22 semanas cada um. No primeiro haverá predominância dos estudos de assuntos nacionais e internacionais, enquanto que no segundo os trabalhos incidirão, principalmente, sobre os de natureza militar. A semana será de cinco dias e o regime de trabalho será o de tempo integral, diariamente das 8 às 16 horas. Com esta orientação para suas atividades, a Escola precisará de uma excelente e especializada biblioteca, na verdade “sua ferramenta de trabalho”. Para ajustagem dos métodos escolares, ainda em 1949 deverá funcionar na Escola Superior de Guerra um curso de formação dos seus quadros permanentes, com tempo reduzido e onde, de preferência, ao invés de estudos sobre diferentes questões gerais, procurar-se-á fixar a realidade brasileira, através de uma análise objetiva dos nossos recursos financeiros e da “situação” dos problemas nacionais, internacionais e militares, em seus aspectos básicos. De uma maneira bem geral, são essas as finalidades, organização e atividades escolares que pretende ter a Escola Superior de Guerra. CONCLUSÃO Da organização da Escola Superior de Guerra, de suas altas finalidades, de seus processos de trabalho, havereis de deduzir da complexidade do seu funcionamen- R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 to, da responsabilidade dos seus idealizadores e dos seus chefes, mas concluireis também, estamos certos, quanto é empolgante a sua missão. É preciso, é indispensável, é mesmo inadiável que o seu êxito seja assegurado; para isso, porém, não basta a ação decidida dos que têm a responsabilidade imediata de sua existência; ela terá de contar realmente, com o apoio integral e o esforço esclarecido de nossas elites. Seus serviços, os responsáveis pela Escola Superior de Guerra hão de reclamar em nome da segurança nacio- nal, isto é, em nome da educação do nosso povo e de sua saúde, do fortalecimento de sua economia, de sua dignidade política e moral, tudo base indispensável de uma eficiente organização militar. Estes nossos apelos estamos convencidos de que não cairão em terreno sáfaro e que havemos de recolhe-los em apoio generoso. E assim, ao fim da jornada, com o valor inestimável de tão elevado concurso teremos assegurado a vitória da Escola Superior de Guerra. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 161 162 R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 Guia para Colaboradores Normais gerais A Revista da Escola Superior de Guerra tem por finalidade publicar artigos relacionados à temática da segurança, o desenvolvimento e a defesa. Em princípio, não serão aceitas colaborações que já tenham sido publicadas em outras revistas brasileiras ou estrangeiras. A REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA recebe para publicação textos em português e espanhol. A apreciação dos textos enviados se processa em dois momentos: primeiramente, é feita a apreciação pela Comissão Editorial , que examina a adequação do trabalho à linha editorial da revista. A seguir, o texto é encaminhado a, pelo menos, dois especialistas, membros dos Conselhos Editorial ou Consultivo, que devem pronunciar-se por escrito, emitindo pareceres sobre a conveniência ou não de sua aceitação. Dos pareceres emitidos, podem constar sugestões de alterações, acréscimos ou adaptações necessárias ao aprimoramento do texto examinado, a serem efetuadas segundo a concordância do autor, com vista a possível publicação. Os autores recebem comunicação relativa aos pareceres emitidos. Nesse processo, os nomes dos pareceristas permanecem em sigilo, junto aos quais também é mantido o sigilo, em relação aos nomes dos articulistas. Os artigos devem vir acompanhados de uma declaração que autorize sua publicação na revista da Escola Superior de Guerra em caso de aceitação. Publicado o texto o autor recebe até cinco exemplares do número no qual consta seu artigo. A revista não se responsabili- za pelos conceitos emitidos em matéria assinada a que dê publicação. Após análise e apreciação do artigo, caso o mesmo não seja aceito para publicação, o autor receberá a volta a via original, ficando a cópia em nosso arquivo. Os direitos autorias dos artigos ficam reservados à Escola Superior de Guerra condicionando-se a sua reprodução parcial ou integral à autorização expressa e as citações eventuais à obrigatoriedade de citação da autoria e da Revista. Preparação dos originais Apresentação Os originais devem ter o mínimo de 15 páginas e o máximo de 30, em espaço duplo, com 35 linhas. Solicita-se aos autores o envio dos disquetes com os registros dos artigos (3.5"), com utilização de um processador de texto (Word, Wordperfect/ Page maker, etc) compatível com os computadores PC. Ao artigo deve ser anexada ficha incluindo endereço, telefone, endereço eletrônico, etc. e um currículo abreviado do autor. Estrutura do Trabalho O texto deve ser precedido do título , do nome e titulação principal do autor, assim como da filiação institucional, seguindo de um resumo que deve compreender todos os conceitos importantes do artigo e suas correlações, estabelecendo as conclusões principais. Este resumo, bem como o título do artigo, deve ser apresentado em português, espanhol e inglês, acompanhado de seis a dez palavras-chave usadas no índice cumulativo. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 163 As referências bibliográficas devem ser colocadas no final do artigo, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023). Livro: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Local: editora, ano (Série). Atos normativos (Leis, Decretos, Portarias, etc.) LOCAL (país, estado ou município) em que se originou o ato. Especificação do ato e número, página inicial - final em que o ato consta, data. Seção. Artigo de Periódico: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Título da revista, local de publicação, número do volume, do fascículo, página inicial - página final do artigo, mês e ano. Eventos: (Anais, Resumos, Proceedings, etc.) – SOBRENOME, Nome. Título do trabalho apresentado: subtítulo. In: Título do evento, numeração do evento, ano local de realização. Título do documento (anais atas... Local, editora, data de publicação. Página inicial e final da parte referenciada). Tese: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Ano de defesa. Tese (Doutorado em ...) – Faculdade, Universidade, Local. 164 Documento de acesso em meio eletrônico: AUTOR. Denominação ou título e subtítulo. Indicação de responsabilidade. Endereço eletrônico. Data de acesso. As citações (NBR – 10520 de jul.2001) no corpo do texto devem aparecer entre aspas, seguindo-se o nome do(a) autor(a) ou autores, data da publicação e o número da página referenciada, entre parênteses e separados por vírgula. Quadros, tabelas, gráficos e ilustrações devem ser apresentadas em folhas separadas e sua localização indicada no texto, entre dois traços horizontais. R. Esc. Sup. Guer., Rio de Janeiro, v.20, n.42, p.147-161, jan/dez. 2003 ISSN0102-1788 Revista da EMBLEMA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (Criação) Decreto Nº 28.501 - de 14 de agosto de 1950 Cria o emblema da Escola Superior de Guerra O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 87, item I, da Constituição, decreta: Art. 1º - Fica criado o emblema da Escola Superior de Guerra, de acordo com o modelo que acompanha o presente Decreto e as seguintes características: A) sobre um campo azul-turquesa o Cruzeiro do Sul em ouro, circundado por uma corrente de elos retangulares também em ouro, ligeiramente curvos nos centros; B) dimensões: as do desenho. Art. 2º - O presente Decreto entrará em vigor na data de sua publicação revogadas as disposições encontradas. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1950; 129º da independência e 62º da República. EURICO G. DUTRA Sylvio de Noronha Canrobert P. Da Costa Armando Trompowsky ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA