“`Eu gosto de mulheres`: considerando afinidades femininas na

Transcrição

“`Eu gosto de mulheres`: considerando afinidades femininas na
“’Eu gosto de mulheres’: considerando afinidades femininas na tradução”, de Pilar
Godayol
Tradução do inglês:
tatiana nascimento dos santos*
Revisão da tradução: Alice Gabriel**
Tradução recebida em: 30/03/2013
Tradução aceita em: 01/06/2013
Introdução
Pilar Godayol é doutora em Teoria da Tradução e professora da Facultat de
Ciències Humanes, Traducció i Documentació da Universitat de Vic; coordenadora
do grupo de pesquisa Estudios de género: mujer y sociedad e membro do grupo
de
pesquisa
Editoriales,
traducciones
y
traductores
en
la
Cataluña
contemporánea, ambos da Universitat de Vic. Publicou diversos trabalhos sobre
gênero, literatura chicana e história e teoria da tradução, entre eles Espais de
frontera: Gènere i traducció (2000), Veus xicanes: Contes (2001) e a biografia
Virginia Woolf: Cinc-centes lliures i una cambra pròpia (2005).
Nesse artigoi, Pilar Godayol apresenta o trabalho de cinco escritoras e
tradutoras catalãs, Montserrat Abelló, Helena Valentí, Marta Pessarrodona, Maria
Antònia Oliver e Maria-Mercè Marçal, traçando um movimento meta-tradutório o
qual, ao mesmo tempo em que visibiliza a importância da atividade dessas autoras
no desenvolvimento do sistema literário da Catalunha e alimenta a criação de uma
genealogia literária feminina, lança questões pertinentes à discussão teórica da
tradução como um processo de construção de afinidades femininas e feministas
que se dá na afirmação da diferença.
*
PGET/UFSC – [email protected]
Livre pensadora – [email protected] m
**
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Godayol monta uma metáfora da tradução feita por mulheres como uma
busca por mães simbólicas, mas longe do mito da maternagem-fardo de uma
biologia inescapável heterocentrada. Ela celebra o processo criativo colaborativo
entre escritoras e reescritoras/tradutoras, o qual forja uma comunidade literária
matrilinear de afetos políticos, literários e sexuais inclusive: a lesbiandade é
visibilizada como tema, motivação e inspiração dos encontros, escritas e
reescritas/traduções. Mas apesar de preferir, em minha prática teórica e ativista,
lesbiandade, traduzi “lesbianism” por “lesbianismo”.
Mesmo considerando que o sufixo –ismo traz uma noção patologizante da
afetividade-sexualidade lésbica, reconheço que a demanda por despatologização
discursiva que significa “lesbiandade” (e é por esse termo significada) é mais
própria do contexto brasileiro – a própria Godayol reiterou essa minha assunção.
Em contextos hispanohablantes e anglófonos, lesbianismo é usado consoante à
proposta de Monique Wittig de um lesbianismo político oposto a um regime sexual
do heterossexualismo; aqui, o sufixo -ismo diz respeito a sistema de poder,
ideologia, e não patologização.
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“Eu gosto de mulheres”: considerando afinidades femininas na tradução
Pilar Godayol
Eu gostaria de começar com um poema da poeta, romancista, professora,
tradutora e militante catalã feminista Maria-Mercè Marçal, que defendia, em
palavras parecidas às de Virginia Woolf, o domínio das relações entre mulheres:
Eu sou a outra. Tu és eu mesma:
Aquela parte de mim que se revolta,
Que expulso longe e me torna
Feita desejo, canto e palavra.
Feita desejo, canto e palavra
Te miro. Eu sou tu mesma.
Não me reconheço: sou a outra.
Em “Jo sóc l’altra. Tu ets jo mateixa”, do volume Desglaç 1984 – 1988 (O
Degelo 1984 – 1988), Maria-Mercè Marçal se refere não só a relações que são
estritamente eróticas, mas também àquelas de amor, cumplicidade, débito,
influência, orientação e relações entre mulheres em geralii. Quase certamente, em
A Room of One’s Owniii, publicado pela Hogart Press sessenta anos antes do
poema de Marçal aparecer, Virginia Woolf foi uma das primeiras mulheres
escritoras a discutir abertamente a questão da amizade entre mulheres. “Tanto foi
deixado de fora, não tentado” (Woolf, 1992, p. 107), queixava-se ela, e assim
lançaria um debate essencial que viria a abalar o cânone estabelecido.
“Suponha, por exemplo”, diz Woolf, “que os homens fossem representados
na literatura somente como amantes de mulheres, e nunca como amigos de
homens, soldados, pensadores, sonhadores; quão poucas passagens nas peças
de Sheakespeare poderiam ser destinadas a eles; como a literatura sofreria!
Teríamos talvez a maior parte de Othello; e bastante de Antonio; mas não Cesar,
nem Brutus, nem Hamlet, nem Lear, nem Jacques – a literatura seria incrivelmente
empobrecida, como deveras a literatura é empobrecida além da nossa conta pelas
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portas que foram fechadas às mulheres” (Woolf, 1992, p. 108-109). Escrevendo
em linguagem aparentemente inofensiva e transbordando elogios a homens e
mulheres romancistas, tanto clássicos quanto contemporâneas, Woolf obriga
quem lê a refletir seriamente sobre o porquê da presença feminina na literatura ter
sido limitada ao amor entre um homem e uma mulher, enquanto toda uma gama
de sentimentos e experiências de mulheres foi abandonada nas entrelinhas ou, se
mencionada, somente em prosa nua, lacônica, consistindo principalmente de
silêncios e elipses.
No capítulo 5 de A Room of One’s Own, a narradora toma um livro recémpublicado, escrito por alguém chamada Mary Carmichael. Com a ideia de extrair
tudo que pode do romance, intitulado Life's Adventure, ela começa a analisar a
trama, as personagens e suas relações. “Chloe gostava de Olivia”, observa Mary
Carmichael, comentário ao qual Woolf se atém para mostrar que é talvez a
primeira vez na história da literatura que Olivia cativa Chloe, pois, conforme
argumenta, se Octavia tivesse cativado Cleopatra, Antony and Cleopatra de
Shakespeare teria sido muito diferente. Woolf diz ainda que teria sido interessante
se entre Octavia e Cleopatra tivesse havido uma relação complexa, e não
simplesmente uma de ciúmes, pois em geral as relações entre mulheres, na
literatura, são simplistas e rasas.
Em A Room of One’s Own, Virginia Woolf faz sua universalmente famosa
demanda: um teto todo dela e quinhentas libras (naquela época, o salário de um
ano inteiro). O episódio de Chloe e Olivia termina com uma referência a isso: “Se
Mary Carmichael sabe como escrever, e eu estava começando a gostar de certa
qualidade em seu estilo; se ela tem um quarto próprio, e disso não estou tão certa;
se ela tem quinhentas libras por ano para si – mas isso ainda deve ser
comprovado –, então eu acho que algo de grande importância aconteceu” (1992,
p. 109). Ela argumenta, frequentemente, que uma mulher escritora precisa de um
estúdio próprio e renda anual para começar a criar e combater o confinamento
social que tem sido sua sina permanente. A urgência de Woolf em se comprometer
às causas das mulheres que sentem a necessidade de dar vazão a sua inspiração
literária leva-a a estabelecer premissas e criar um diálogo com diferentes
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gerações de homens e mulheres escritores e escritoras, e também a insistir que
fossem resgatadas do passado mulheres escritoras como Jane Austen e Emily
Brontë, mulheres sobre as quais considerou que “escreveram como mulheres
escrevem, não como homens escrevem” (1992, p. 97). Mesmo que Austen e
Brontë tenham enfrentado corajosamente a solidão literária das mulheres
escritoras de seus tempos (antes delas, houve somente uma breve e fragmentária
tradição), Woolf nos lembra que não estamos sozinhas, que essas duas escritoras,
e muitas outras que vieram antes de nós, sempre estarão nos apoiando, até que,
como Marçal aponta, “feitas desejo, canto e palavra” “nós possamos ser elas”,
“nós possamos ser a outra”.
Maria-Mercè Marçal, herdeira espiritual e conceitual de Virginia Woolf e de
outras escritoras, como Simone de Beauvoir, Luce Irigaray e Adrienne Rich,
sustenta em seus escritos críticos que é necessário estabelecer uma genealogia
feminina específica, dado que a cultura universal é quase essencialmente
masculina, com a inclusão ocasional de mulheres, que aparecem “sempre uma a
uma, sem nenhuma relação aparente entre elas” (2004, p. 139). Marçal apela para
que releiamos com olhos novos os textos de mulheres escritoras pioneiras, para
“desmascarar” tudo que é omitido pelos discursos críticos supostamente neutros.
Ela termina com a seguinte afirmação: “Perguntar as questões corretas ao
passado nos permitirá ter mães, nos permitirá dar à luz, por assim dizer, a nossas
próprias mães simbólicas” (2004, p. 165-166).
Temos que nos proporcionar “mães”, “mães simbólicas”. Conhecidas por
suas contribuições em diferentes âmbitos da cultura catalã, as cinco mulheres
escritoras que apresentamos nesse artigo: Montserrat Abelló, Helena Valentí,
Marta Pessarrodona, Maria Antònia Oliver e Maria-Mercè Marçal são todas
escritoras e tradutoras em catalão. Todas nasceram nos 1940 e 1950, exceto
Abelló, que
nasceu em 1918
mas
cujo
trabalho de tradutora começa
posteriormente, nos 1980 e 1990, como também ocorre às outras escritoras. Ao
longo de suas carreiras literárias, essas cinco mulheres nunca cansaram de
buscar por mães simbólicas: algumas dessas escolhidas são catalãs, mas outras
são estrangeiras. Alguns dos textos das escritoras estrangeiras foram traduzidos,
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não só por um desejo de “devorá-las” – uma metáfora que Mercè Ibarz usa para
explicar a forma de traduzir de Maria-Mercè Marçal – e chegar a um entendimento
mais profundo sobre elas, mas também por uma determinação de incorporar à
língua e à cultura catalãs mulheres escritoras do mundo e seus textos. Isso é
dizer, afinidade e um senso de responsabilidade combinam-se no projeto de
tradução.
Quando a literatura catalã reaparece após a paralisia da ditadura, nos 1980
e 1990, Montserrat Abelló, Helena Valentí, Marta Pessarrodona, Maria Antònia
Oliver e Maria-Mercè Marçal partilham da opinião de que nesses momentos de
despertar literário e ideológico é essencial dotar a língua catalã com uma escrita
canônica de mulheres. Além da necessidade de questionar as obras impostas pelo
cristianismo predominante, essas cinco tradutoras se envolvem com os mesmos
temas explorados pelas escritoras que traduzem: de tópicos mais femininos como
o corpo, maternidade e lesbianismo até questões mais gerais – mas sempre do
ponto de vista da experiência de uma mulheriv , tal como amor, falta de afeto,
solidão e dor.
Nosso objetivo aqui é examinar os laços entre essas cinco tradutoras e as
mães simbólicas que traduziram, para ajudar a criar a genealogia cultural feminina
tão ardentemente clamada por Virginia Woolf e Maria-Mercè Marçal.
A poeta e tradutora Montserrat Abelló (1918) desenvolveu um laço muito
especial com a poeta norte-americana Sylvia Plath, cuja poesia ela traduziu
praticamente em sua totalidade ao catalão. Em um tributo a Montserrat Abelló na
Universitat de Vic, ela contou que conheceu Plath enquanto visitava a Inglaterra
com sua amiga Sheila Waldeck no final dos anos 1970. O poeta e professor Toni
Turull falou de Plath a ela e lhe deu uma cópia de Winter Trees [Árvores
Invernais]v , o qual o marido da poeta, Ted Hugues, havia acabado de publicar, oito
anos após seu suicídio. As palavras de Abelló são paradigmáticas: “Eu me senti
imediatamente conectada a ela. Depois de tanto tempo eu finalmente achei uma
pessoa que entendia poesia como eu entendia. Ela também queria viver a Vida
com um V maiúsculo, ter um marido, crianças, ser uma grande poeta, ter tudo [...]
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Eu me sentia da mesma forma. Um sentimento de rebeldia” (Torrents, 2006, p.
100).
Montserrat Abelló, como Plath, tentou viver “a Vida com V maiúsculo”. Sua
infância e juventude foram marcadas por circunstâncias que a obrigaram a viajar
de um lugar a outro. Entre 1939 e 1960 ela trabalhou num escritório na Inglaterra e
como professora de inglês no Chile. Casada, e com uma filha e dois filhos, ela
voltou a Barcelona nos anos 1960 e publicou em 1963 Vida diària, seu primeiro
livro de poemas. Foi depois de se aposentar da docência nos anos 1980 que
Abelló começou a se dedicar a escrever poesia e traduzir.
Além de traduzir obras de Richard Bach, Agatha Christie, E. M. Foster,
Gloria Montero, Iris Murdoch, Charlotte Perkins Gilman e Dylan Thomas, sua
paixão por inglês e literatura norte-americana, e acima de tudo pelas mulheres
poetas, levou Abelló a traduzi-las e a promover sua publicação em catalão. Esse
desejo de introduzir modelos literários femininos em nossa tradição [catalã]
resultou na tradução para o catalão de An Atlas of the Difficult World [Um Atlas do
Mundo Difícil], de Adrienne Rich (1994), e na publicação da antologia bilíngue
Cares a la finestra (Caras na janela) (1993), uma coleção do trabalho de vinte
mulheres poetas anglófonas do século vinte, incluindo, entre outras, Anne Sexton,
Adrienne Rich, Margaret Atwood, Anne Stevenson, Alice Walker e Sylvia Plath.
No prólogo de Cares a la finestra, Abelló apresenta várias razões sólidas
para traduzir esse grupo de escritoras ao catalão:
Percebi como era pouco conhecida aqui a maioria dessas poetas, como quase
inexistentes as traduções, e como nossa tradição poética, mesmo que de alto
padrão em muitos casos, está bastante atrasada no que diz respeito às novas
tendências e, sobretudo, como nos faltam precursoras ou modelos para imitar num
país como o nosso, onde a poesia de mulheres sempre foi considerada de um
ponto de vista masculino, como uma forma menor de poesia, e onde não mais que
duas ou três poetas foram consideradas dignas de ocupar seus lugares entre seus
correspondentes masculinos. (Abelló, 1993, p. 13)
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Das vinte poetas na antologia Cares a la finestra, Sylvia Plath é a que
recebe afetuosa atenção especial. Em 1985, Abelló começa a traduzir Plath e a
introduz pela primeira vez na cultura catalã com a tradução de Winter Trees, que
consiste em poemas escritos durante os últimos nove meses da vida da poeta, e
de “Three women” [Três mulheres], o longo poema dramático para três vozes
escrito para a BBC e que foi ao ar em 13 de setembro de 1962. O poema foi
encenado pela primeira vez em Barcelona em janeiro de 1994, pelas atrizes Llüisa
Mallol, Marta Millán e Francesca Piñón. Em 1989, Abelló e sua filha, Mireia Bofill,
traduziram ao espanhol Letters home: Correspondence 1950 – 1963 (Cartas a mi
madre) [Cartas para casa: Correspondência 1950 – 1963]. Em 1994, Abelló
traduziu, com Mireia Mur, Ariel, outro dos famosos volumes poéticos de Plath,
também escrito durante os últimos dezoito meses de sua vida, que Ted Hughes
publicou numa versão censurada em 1965.
Em 2006, na antologia Sóc vertical (Sou vertical)vi, Abelló reuniu e traduziu
todos os poemas que Plath escreveu entre 1960 e 1963: Winter Trees, Crossing
the Water [Cruzando a água]vii e a edição de Ariel editada em 2004 pela filha da
poeta, Frieda Hughes, e restaurado à forma na qual Plath o tinha deixado antes de
sua morte. O Ariel de Frieda Hughes é uma reprodução facsímile do original, que
respeita a seleção e ordem pelas quais a própria poeta se decidiu. Sóc vertical
reúne os volumes escritos depois de 1960, mas deixa de fora The Colossus [O
Colosso], escrito antes, ao qual a poeta se referiu como “um tipo de camisa de
força” e a tradutora catalã descreveu como um livro que “veio sob a influência da
poesia inglesa sendo escrita naquela época” e que “não é da mesma qualidade”
que os outros. Abelló justifica a seleção dos 102 poemas que formam a antologia
porque são “do melhor e mais frutífero período de Plath, especialmente dos
últimos dois anos em que ela finalmente se liberta da tutela literária de Ted
Hughes” (2006, p. 11).
Muitas das tradutoras catalãs apresentadas nesse artigo escolheram viver
“uma Vida com V maiúsculo”. Helena Valentí (1940 – 1990) foi uma dessas
mulheres. Ela era a filha do eminente pesquisador latino Eduard Valentí e cresceu
numa atmosfera de sentimento e cultura catalões firmemente enraizados. Cercada
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como estava por homens letrados, discípulos e amigos de seu pai (entre os quais
estava o poeta Gabriel Ferreter, de quem diziam ser ela a musa), ela estudou na
Faculdade de Artes da Universidade de Barcelona. Rebelando-se contra a
situação política do momento e contra a excessiva proteção de sua família, em
1962 ela obteve um cargo de assistente de espanhol em Cambridge e saiu em
exílio voluntário à Inglaterra. Mais tarde, ela trabalhou nas universidades de
Durham e Londres e finalmente conseguiu manter-se como tradutora. Entre 1974
e 1991, ela traduziu ao espanhol vinte e um títulos de vários gêneros e autores,
incluindo, entre outros, William Blake, Nicholas Guild, Patricia Highsmith, Najib
Mahfuz, Harold Robbins, Bernice Rubens, Alan Saperstein, Larry Swindell, Evelyn
Waugh e John Zodrow.
Em 1978, Helena Valentí traduziu ao espanhol The Golden Notebook [O
Caderno Dourado]viii e, em 1982, The Four-Gated City [A Cidade de Quatro
Portões], de Doris Lessing. “Helena Valentí é uma filha de Lessing”, declara Mercè
Ibarz em La dona errant: Helena Valentí a la llum de Doris Lessing (A mulher
errante: Helena Valentí à Luz de Doris Lessing) (1999, p. 71). Valentí fala sempre
entusiasmadamente de Lessing, a qual conseguiu certa vez entrevistar em
Londres (Martí, 1990, p. 63): “Uma autora com quem me sinto fortemente
identificada é Doris Lessing, muito fortemente [...] Eu segui seu desenvolvimento
espiritual e processo criativo passo a passo, e sinto que a entendo perfeitamente”.
Ela admira seu trabalho e é cativada por sua personalidade (Martí, 1990, p. 63):
“Uma coisa muito importante sobre Doris Lessing é que ela tem uma índole
genuína, na qual você pode confiar, que não tenta atrair atenção, que está
interessada nas pessoas mas não espera nenhuma bajulação. Ela é uma pessoa
que não perde tempo, ela leva as coisas a sério. E ela é muito inteligente, ela é
muito engraçada” (Martí, 1990, p. 63). A pessoa e seu trabalho marcaram uma
impressão tão profunda na tradutora catalã que foram a influência crucial que a
levou a começar sua própria criação literária. Como a protagonista de The Golden
Notebook, Anna Wulf, a jovem romancista e divorciada, mãe de uma menininha,
Helena Valentí começa a escrever seus próprios cadernos.
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Em 1947, quando retornou à Catalunha e vivia em Cadaqués, Helena
Valentí decidiu alternar sua própria escrita com sua tradução. Ela escreveu seus
quatro cadernos: L’amor adult (Amor Adulto) (1977), La solitud d’Anna (A solidão
de Anna) (1981), La dona errant (A mulher errante) (1986) e D’esquena al mar (De
costas para o mar) (1991). Ela nos deixou muito cedo, antes que pudesse
escrever o quinto. Nos anos 1980, Valentí começou ainda a traduzir para o
catalão, e a introduzir na cultura catalã obras de duas das mais importantes
mulheres escritoras na literatura mundial: de um lado, a extraordinária autora
inglesa Virginia Woolf, cujos livros To the Lighthouse [Rumo ao Farol]ix e A Room
of One’s Own ela traduziu em 1984 e 1985, respectivamente: e de outro, a
energética neozelandesa Katherine Mansfield, cujos livros A Married Man’s Story,
escrito com Josep Ros-Artigues, e The Garden Party and Other Stories [A Festa
no Jardim e Outros Contos]x ela traduziu em 1984 e 1989.
Mesmo sem sentir grande afeto por Virginia Woolf como pessoa (o Grupo
de Bloomsbury “a aborrecia às lágrimas”), Valentí confessa considerar seu
trabalho entusiasmante, especialmente A Room of One’s Own, que “continua
sendo leitura essencial para qualquer mulher que possa desejar ser uma escritora”
(Martí, 1990, p. 63). Já Mansfield “a interessa tanto por sua literatura quanto por
sua personalidade” (Martí, 1990, p. 63). Na sua tradução de A Married Man’s Story
[Conto de um homem casado], Valentí introduz a autora e a obra e justifica a
escolha dos contos. Fica evidente que ela admira a autora; que adota as
personagens transitórias de suas histórias; que ela ama o estilo sóbrio de sua
prosa, sua forma de concentrar vida, a essência do mundo, em uma única linha.
Como Valentí comenta no início da Introdução (1984, p. 7): “Ao me por a escrever
sobre Katherine Mansfield a cabeça se me converte numa gaiola plena de
pássaros e toda de palavras, luz, estalo, entreluz, centelha, relâmpago, fulgor,
voando de um lado ao outro e pendurando-se nas ferragens”xi. Traduzir Mansfield
era para Valentí “luz”, “relâmpago” e “fulgor” em outras palavras: pura fascinação.
Além de traduzir Woolf e Mansfield, ela traduziu ao catalão The Wanderer
[O Errante]xii, do filósofo libanês Kahlil Gibran (1983), I, Claudius, de Robert
Graves (1986) [Eu, Claudio]xiii e The Human Factor, de Graham Greene (1988) [O
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Fator Humano]xiv . Ela ainda traduziu histórias para jovens, como The Man Who
Sold the Moon, de Robert A. Heinlein (1986) [O Homem que Vendeu a Lua]xv e
Kernok the Pirate de Eugène Sue (1986) [Kernok, o Pirata]. Seu último trabalho,
em 1990 – ela morreu em 8 de dezembro desse mesmo ano –, foi uma tradução
ao catalão para Edicions de l’Eixample de Indiscreet Journeys: Stories of Women
on the Road [Jornadas Indiscretas: Contos de Mulheres na Estrada], editado por
Lisa St Aubin no ano anterior. Essa era uma coleção de dezoito histórias sobre
mulheres que viajam por uma série de razões, escritas por mulheres escritoras
dos séculos 19 e 20. Indiscreet Journeys é a última tradução de Valentí, em muitas
formas um espelho quebrado no qual os desejos e medos das protagonistas e
escritoras das histórias refletem sua própria “Vida com V maiúsculo”.
Viajar é uma das coisas que Helena Valentí e nossa próxima tradutora,
Marta Pessarrodona (1941) têm em comum. Para Marta Pessarrodona, poeta,
contadora de histórias, escritora de ensaios e artigos e tradutora, o fluxo cultural e
as pontes conectando línguas e literaturas do mundo tiveram um papel importante
em sua vida e trabalho. O que caracteriza Pessarrodona é, como o poeta Sam
Abrams coloca, “esse laço extraordinariamente estreito entre vida pessoal e vida
cultural” (2003, p. 19). Ela viajou e passou longos períodos de tempo em muitas
cidades pelas quais se sente apaixonada: Londres, Berlim, Buenos Aires, Zurique
e Jerusalém são suas favoritas. Ela começou a publicar poesia em 1969 com
Setembre 30 (Setembro 30), o qual foi seguido de muitos outros volumes
(importante, entre esses, é Homenatge a Walter Benjamin, um tributo ao autor do
famoso ensaio “The Task of the Translator”, publicado em 1989). Seus poemas
são, em geral, críticos e substanciais, inerentemente influenciados pela tradução,
como pode ser visto não só em seus temas mas também na inclusão de
elementos de outras línguas.
Ela publicou muitos ensaios na forma de introduções aos trabalhos de
homens e mulheres escritores e escritoras tanto da Inglaterra quanto da América
do Norte, especialmente aqueles e aquelas que faziam parte do Grupo de
Bloomsburry. Apesar de não ter traduzido Virginia Woolf ao catalão, ela traduziu
algumas obras sobre ela ao espanhol, em 1979, The Death of Virginia, de Leonard
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Woolf [A Morte de Virginia], e Virginia Woolf, a biografia canônica de Quentin Bell
[traduzida por Lya Luft como Virginia Woolf – uma biografia, ed. Guanabara, 1988];
e em 2011 ela editou e traduziu uma antologia de ensaios de Woolf, a qual intitulou
Viajes y Viajeros (Viagens e Viajeiros). Junto a Mercè Rodereda e Doris Lessing,
com quem Pessarrodona mantém uma amizade há muitos anos, Virginia Woolf foi
crucial ao seu trabalho. Além de trazer Woolf ao conhecimento público em
inúmeras palestras e debates, Pessarrodona foi a autora do guia de leitura de
Virginia Woolf, editado pela Caixa de Pensions em 1983, e a responsável pela
extraordinária exposição monográfica do Grupo de Bloomsbury, organizada em
Barcelona em setembro de 1986. No prólogo de Dones de Bloomsbury (Mulheres
de Bloomsbury) de Pilar Godayol, Pessarrodona afirma claramente que para ela
“qualquer interesse em Bloomsbury começa com Virginia Woolf” porque ela é sem
nenhuma dúvida “um pilar essencial, apesar de não ser o único, da literatura
moderna” (2006, p. 17).
Marta Pessarrodona traduziu ao espanhol, do inglês e do francês, obras de
homens e mulheres escritores e escritoras como Althusser, Bell, Cardinal,
Doctorow, Foster, Frame, Hellman, Hudson, Jong, Lessing, Rieff, Russel, Tomalin,
Updike, Walsh e Leonard Woolf. Ela traduziu ao catalão várias peças – nem todas
publicadas – de Pinter, Medoff, Russel, Wesker e Duras. Em 1985, ela também
traduziu The Lover, de Marguerite Duras. Além disso, ela traduziu ao catalão
escritores e escritoras expoentes do século 20, como Gertrude Stein, Edward
Fitzgerald Brenan, Françoise Sagan, Louis Althusser, Lucia Graves, Simone de
Beauvoir e Susan Sontag.
Pessarrodona sempre reconheceu que sente uma grande afinidade com
Sontag, especialmente com relação a seu incansável e não demagógico trabalho
em prol dos direitos humanos, e dos direitos humanos das mulheres em particular.
Da obra da escritora norte-americana ela traduziu dois dos textos mais
importantes: em 2002, o romance In America e em 2003 o ensaio Regarding the
Pain of Others [Diante da Dor dos Outros]xvi. Nas palavras da tradutora, Susan
Sontag é, junto a Walter Benjamin, “sua pensadora favorita”. Ela frequentemente
cita Sontag nos artigos de opinião – sempre bem documentados – nos ensaios
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que escreve ocasionalmente na imprensa catalã. Regarding the Pain of Others,
uma reflexão quanto ao uso de imagens em situações de conflito armado, foi o
ponto de partida para a reflexão da própria Pessarrodona em vários escritos sobre
a importância da palavra em oposição à imagem pois, como ela frequentemente
comenta metaforicamente, “o princípio era o verbo e Deus criou o homem à sua
própria imagem”.
Para preparar a exposição do Grupo de Bloomsbury e sua amada Virginia
Woolf, Marta Pessarrodona contatou e entrevistou o sobrinho de Virginia, Quentin
Bell. Para suas traduções de Doris Lessing, ela visitou a autora em Londres e até
hoje elas se veem. Para traduzir Susan Sontag, ela a conheceu e se correspondia
com ela regularmente até a morte da escritora norte-americana. Pessarrodona é
fascinada
pelos
textos, mas
também pelas
pessoas. A naturalidade
e
generosidade de sua índole, junto a sua ambição pessoal, resultam em sua
preferência por ter as mães simbólicas que traduz ao seu alcance. Ela precisa ser
inteiramente familiar a elas para ter o conhecimento e informação inexpressáveis
que seriam impossíveis de obter sem contato direto porque, como Abrams insiste,
“sua vida pessoal é completamente embebida de cultura” (2003, p. 19).
Assim como Valentí e Pessarrodona, Maria Antònia Oliver (1946) também
foi enfeitiçada por Virginia Woolf. Além de seu trabalho como romancista e
tradutora, Oliver escreveu, ainda, roteiros para rádio e televisão, apesar de ser
mais conhecida por seus romances policiais em que a protagonista é a detetive
particular feminista de Majorca, Lònia Guiu. Como Oliver diria, a literatura consiste
em “uma interação de influências”, e por isso toques de Charlotte Brontë, Virginia
Woolf e Victor Català podem ser detectados em vários de seus escritos. Ela
traduziu dez ou mais obras de homens e mulheres escritores e escritoras do inglês
e francês ao catalão, tanto obras clássicas quanto contemporâneas, como Moby
Dick (1984)xvii, de Herman Melville, Frankenstein or The Modern Prometheus
(1992) [Frankenstein, ou o Prometeu Moderno]xviii, de Mary Shelley, e The Castle
of the Carpathians (1998), de Jules Verne [O Castelo dos Cárpatos]xix .
Não só ela tem grande admiração por Virginia Woolf, mas traduziu três de
suas obras mais famosas: The Years (1973), Orlando (1985) e The Waves (1989)
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[Os Anos, Orlando, As Ondas]xx . Woolf tornou-se conhecida pela primeira vez pelo
público catalão graças à tradução de Mrs. Dalloway, do escritor Cèsar-August
Jordana. Essa tradução fez parte de um projeto de publicações voltado a estimular
o romance moderno na Catalunha e incluiu romances de homens e mulheres
escritores e escritoras catalãs, tanto famosas quanto novatos, e também obras
estrangeiras clássicas e contemporâneas. Oito anos depois, em 1938, Roser
Cardús traduziu Flush, a biografia do cachorro de Elizabeth Barrett Browningxxi.
Então houve silêncio. Devido à guerra civil e ao período pós-guerra, não foi
possível ler Virginia Woolf em catalão novamente até 1970. Ela reapareceu na
cena literária graças a Maria Antònia Oliver e sua tradução de The Years,
organizada pela romancista, ensaísta, tradutora e mulher do teatro Maria Aurèlia
Capmany, então encarregada da coleção de romances “Joanot Martorrel” da
editora Nova Terra.
Em artigo sobre as traduções de Maria Aurèlia Capmany, Maria Antònia
Oliver afirmou categoricamente “Tradução é traição. E até que você aceite que as
traduções que faz são uma traição da obra original, você não poderá traduzir com
uma consciência clara, e mais ainda, você não o fará bem” (1992, p. 261). Sua
calma aceitação dessa famosa traição certamente estava por trás da disposição
de Oliver a empreender a imponente tarefa de traduzir ao catalão The Years,
Orlando e The Waves. A tradutora reconhece que enquanto traduzia Virginia Woolf
e se mergulhava em uma leitura através de sua obra, a lenda ficou clara para si.
“Uma lenda”, ela afirmou, “que Aurèlia já tinha percebido e que passou para mim”
(1992, p. 263). Ela a passou para nós.
Mesmo que nunca tenha traduzido nada da obra de Virginia Woolf, ela era
também uma lenda para Maria-Mercè Marçal (1952 – 1998), a última tradutora que
apresentamos aqui. Quando ela convoca as mulheres escritoras a não renunciar
suas próprias experiências de vida e a não aceitar a invisibilidade cultural que o
patriarcado impôs por tanto tempo, a poeta catalã se refere às palavras de Woolf:
Então devemos ir à procura e retomar as ‘mães’ literárias que foram escondidas,
porque, como Virginia Woolf diz, de homens escritores nós podemos
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indubitavelmente aprender, em
um
sentido literário, técnicas
e truques
profissionais, e receber a útil porção de conselho ocasional, mas nada que é
essencial, nada que constitui a carne e sangue do trabalho literário. (2004, p. 142)
Colette, Leonor Fini, Renée Vivien, Marguerite Yourcenar e, em colaboração
com a pesquisadora eslava Monika Zgustova, as poetas russas Anna Akhmatova e
Marina Tsvetaieva são as “’mães’ literárias que foram escondidas” que Marçal
escolhe traduzir e tornar disponíveis para o público catalão. Preocupada como
estava sobre a falta de reconhecimento das mulheres no mundo cultural e sobre
quão raramente suas obras apareciam na língua catalã, Marçal se empenhou em
mudar tal situação em seu trabalho como tradutora pela retomada das obras de
mulheres escritoras que tinham sido mais ou menos ignoradas pelos discursos
literários da Catalunha. Marçal conscientemente selecionou as escritoras e obras
que traduziu – ela nunca traduziu nenhuma obra de um homem. Além de sua
militância, ela era impulsionada pela sensualidade e fascinação que sentia pelo
desenvolvimento da vida e do trabalho literário dessas mulheres. Sua afinidade
com as mães simbólicas que traduziu era tão profunda que no Prólogo de sua
primeira tradução ao catalão, a de The Hidden Woman (1985) [La Femme Cachée,
“A Mulher Oculta”, de 1924], da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette,
Marçal apresenta a autora como se estivesse falando de si mesma:
Seu trabalho, portanto, tanto reflete quanto motiva os longos processos tenazes de
sua descoberta da liberdade, e, como uma parte inseparável disso, sua luta
constante com as palavras para fazê-las dizer tudo que antes dela não foi
expresso e que era, portanto, inexistente; para fazê-las iluminar regiões
inexploradas daquele “continente obscuro” de que Freud falou em referência ao
sexo feminino. (Colette, 1985, p. 10)
Em 1990, cinco anos após sua primeira tradução, Marçal voltou a traduzir
como uma atividade mais contínua, começando com Le Coup de Grâcexxii de
Marguerite de Crayencour (Yourcenar) [O Golpe de Misericórdia], também uma
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tradutora magnificente de Virginia Woolf e Henry James para o francês. No mesmo
ano, Maria-Mercè Marçal e Monika Zgustova, escritora e tradutora residente na
Catalunha desde 1983, compilaram e traduziram Rèquiem i altres poemes
(Réquiem e outros poemas), de Anna Akhmatova, para o primeiro volume da
coleção “Poesía Universal del Segle XX” da Edicions 62. Essa foi a primeira e
única versão catalã da obra da grande poeta russa. Em janeiro de 1991 a escritora
Joan Triadú felicitou a “meticulosa” versão que as tradutoras fizeram de Rèquiem i
altres poemes: “Anna Akhmatova é mais direta, talvez mais dura, em catalão que
na sintaxe nivelada do italiano ou na mais racionalizada adaptação do francês”
(1991, p. 1).
Rèquiem [Requiém, em russo Реквием]xxiii foi uma obra clandestina
composta oralmente e memorizada por amigos, para evitar prisões. Como Marçal
descreve em Com en la nit, les flames (Como na noite, as chamas), “É o poema
de amor maternal suportando o infortúnio do filho, os esforços vãos da mãe para
obter indulto, as longas filas em frente à prisão, a interminável Via Dolorosa”.
“Durante a primeira metade da vida de Anna Ahkmatova, o poema amadurece na
mente da poeta, e na segunda metade, marcada por experiências pessoais
terríveis, ele toma forma”, diz Monika Zgustova em seu artigo Anna Akhmàtova:
Cassandra
de
Sant
Petersburg
(Anna
Akhmatova:
Cassandra
de
São
Petersburgo). Esse texto, junto a outro trabalho não publicado, La passió segons
Marina Tsvetàieva (A paixão segundo Marina Tsvetaieva) e ao ensaio de Marçal
Com en la nit, les flames, acompanha a re-edição de 2004, em um volume, da
obra de Akhmatova e Tsvetaieva em catalão. Nessa nova edição, que não inclui os
prólogos anteriores, Zgustova explica como ela e Marçal trabalharam nas
recriações dos poemas a ponto de ficarem profundamente comovidas e, às vezes,
obcecadas.
Em 1992, dois anos após completar o volume Rèquiem i altres poemes,
Marçal e Zgustova traduziram o Poema de la fi (Poema do fim), de outra grande
mulher poeta russa e uma contemporânea de Anna Akhmatova, Marina Tsvetaieva
[em russo, Поэма конца]. O poema do fim não lida com episódios de sofrimento
coletivo: o tema de sua matéria é o último encontro de um casal e sua decisão por
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se separar. Como Marçal aponta, esse é um tema que “Akhmatova era capaz de
concentrar em duas linhas [...] e Tsvetaieva desenvolve por centenas de linhas
com uma expansividade tradicionalmente reservada só aos temas épicos ou
coletivos” (1998, p. 177). Marçal fica tão identificada com o poema de Tsvetaieva
que Manuel Guerrero vai ao limite de declarar que Poema de la fi era “um
verdadeiro poema de Maria-Mercè Marçal – com a colaboração, claro, de
Zgustova e Tsvetaieva –, como um livro mais de Marçal, entre Desglaç (O Degelo)
e Raó del cos (As razões do corpo)” (2004, p. 7).
Anna Akhmatova e Marina Tsvetaieva tiveram uma influência tão grande na
vida e obra de Maria-Mercè Marçal que ela recriou versões de poemas das poetas
russas em sua própria poesia. Um exemplo disso é a reinterpretação de “Лотова
жена” (A mulher de Lot) de Akhmatova, que aparece no volume póstumo de
poesia Raó del cos. O poema de Marçal parece uma continuação do de
Akhmatova, como se ela continuamente repetisse linhas da poeta russa, talvez a
mais evocativa: “Não é muito tarde, ainda, ainda podes mirar”xxiv (2000, p. 28).
O trabalho final de Marçal, em sua curta mas intensa carreira de tradutora,
foi uma versão catalã de L’Oneiropompe, da versátil artista Leonor Fini [A/O
LevaSonhos]xxv . Mas apesar de ela ter traduzido Colette, Yourcenar e Fini e se
identificado com elas enquanto mulheres lidando com temas de mulheres em suas
obras, indubitavelmente Anna Akhmatova e Marina Tsvetaieva é que são, a
despeito da distância em tempo e espaço, as grandes mães simbólicas de Marçal.
Há, entretanto, uma outra autora que, como elas, inspirou Marçal e a quem ela
traduziu em espírito e em poesia de um diferente tipo: esse foi um projeto que
durou uma década e foi uma complexa narrativa polifônica, a biografia
romantizada de Renée Vivien, a poeta lesbiana, nascida em Londres. O único
romance de Marçal, La passió segons Renée Vivien (A paixão segundo Renée
Vivien) (1994) sugere uma filosofia de vida e escrita que se regozija em
intertextualidade e diferença feminina. Para Marçal, traduzir se torna um domínio
das relações entre mulheres, o nuclear, o contraditório, o primevo, com todas as
ambivalências e diversidades delas.
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Para concluir esse artigo, vou retornar a Virginia Woolf e A Room of One’s
Own. Nas páginas finais ela comenta: “A verdade é que eu geralmente gosto de
mulheres. Eu gosto de sua inconvencionalidade. Eu gosto de sua completude. Eu
gosto de seu anonimato. Eu gosto...” (1942, p. 142). Para criar uma genealogia
cultural feminina, você tem que gostar de mulheres, seja porque você desfruta de
suas histórias, suas filosofias, sua dramaturgia ou seus poemas, ou porque você
compartilha um interesse no mundo feminino. Com suas traduções das obras de
Anna Akhmatova, Doris Lessing, Katherine Mansfield, Sylvia Plath, Susan Sontag,
Marina Tsvetaieva e Virginia Woolf, as escritoras e tradutoras Montserrat Abelló,
Helena Valentí, Marta Pessarrodona, Maria Antònia Oliver e Maria-Mercè Marçal
trabalharam incansavelmente rumo ao estabelecimento de uma cultura literária
feminina em catalão. Elas compreenderam claramente a necessidade por
fundações femininas na cultura catalã, e com seu trabalho, as lançaram,
persistentemente, destemidamente, por aquelas que não mais estão aqui, por nós,
e por aquelas que virão.
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Versions d’Akhmàtova i Tsvetàieva. Barcelona: Proa, 2004.
Notas
i
Godayol escreveu esse artigo em inglês para publicação em FLOTOW, Luise (Ed.). Translating women.
Ottawa: University of Ottawa Press, 2011 (Perspectives on Translation) . Ela foi muito gentil em permitir e
acompanhar essa tradução para o PB, explicitando em sua prática o princípio de encontro e colaboração que
afirma em suas teorizações sobre a tradução feminista (como também o faz ao agradecer a Sheila Waldeck
pela ajuda com a escrita do texto em ingles). O artigo é um dos frutos do projeto de pesquisa “Estudis de
gènere: traducció, literature, història i comunicació” (2009-2013) da Agència de Gestió d’Ajuts Universitaris I
de Recerca da Catalunha – AGAUR.
ii As flexões femininas do original em catalão deixam claro que “other”, “me”, “made” e “you” se referem a
mulheres. Nota da autora.
iii Há uma tradução para o português brasileiro, Um teto todo seu, feita por Vera Ribeiro e publicada em 1985
pela editora Nova Fronteira (São Paulo); contudo, traduzi diretamente os trechos citados por Godayol. N. da t.
iv
Se não fosse o tom agudamente questionador que Godayol assume contra vários mitos ditos atributos
femininos, algo nessa passagem me incomodaria constantemente. Talvez uma possibilidade de interepretação
restritiva, em que a experiência “de uma mulher” se encerraria nos itens tematizados (“amor, falta de acesso,
solidão e dor”), pois eles conforma muito da estereotipia de um “universo feminino” que tem estado sob
rasura e questionamento. N. da t.
v
Para traduzir os títulos do inglês ao português brasileiro, busquei traduções já existentes; na ausência dessas,
traduzi eu mesma. A tradução Árvores Invernais segue a feita por Deisa Chamahum Chaves e Ronald Polito,
no livro Sylvia Plath: XXI poemas (edição bilíngue), publicado em 1994 (Mariana: Livre Impressão). Nas
demais ocorrências, incluo referência em nota só quando tiver localizado alguma tradução publicada ao PB;
quando não houve ou não a encontrei, a tradução segue sem nota depois da ocorrência no texto, entre
colchetes. Incluí essas referências a traduções para o PB seguindo orientação da editora da presente
publicação; como muitos dos títulos fogem do meu interesse em tradução feminista, não busquei várias
traduções, como há para muitos dos romances considerados clássicos aqui listados, mas sim procurei indicar
uma tradução já publicada e de fácil acesso, caso alguma leitora tenha interesse. N. da t.
vi “I am vertical”: o título de um poema de Plath incluído nos Collected Poems publicado em 1981. Nota da
autora.
vii
Traduzido como Travessia por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça (Sylvia Plath: poemas,
São Paulo: Iluminuras, 1994). N. da t.
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238
viii
Tive acesso a uma tradução de 1985 feita por Sonia Coutinho e Ebreia de Castro Alves que o chamaram O
Carnê Dourado (editora Abril Cultural). N. da t.
ix
Trad. de Luiza Lobo, São Paulo: Publifolha, 2003. N. da t.
x
Há algumas traduções em PB; referencio A Festa e Outros Contos, tradução de Julieta Cupertino (Rio de
Janeiro: Revan, 1999, 3. ed.) por ser a tradução em que o nome da tradutora foi mais acessível. N. da t.
xi
Traduzi do catalão, de artigo que Godayol escreveu sobre Valentí: “En posar-me a escriure sobre Katherine
Mansfield el cap se’m converteix en una gàbia plena d’ocells i tot de mots, llum, esclat, entrellum,
centella, llampec, fulgor, voleien d’una banda a l’altra i es pengen dels filferros” (Valentí, 1984, p. 7 citada
por Godayol no artigo Helena Valentí, fúria i traducció. In: Quaderns – Revista de traducció, n. 13, p. 87-93,
2006). N. da t.
xii
O Errante: Parábolas sobre a insatisfação e o desencontro. Traduzido ao PB por Angelo Cunha de Andrade.
Ed. Claridade, São Paulo, 2003. N. da t.
xiii
Tradução de Cecília Prada, editora A Girafa, 2007. N. da t.
xiv
Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos, Abril Cultural, 1982. N. da t.
xv
Trad. de José Correia Ribeiro, Livros do Brasil, 1950. N. da t.
xvi
Trad. de Rubens Figueiredo, Cia. das Letras, 2003. N. da t.
xvii
Trad. de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, Cosac Naify, 2008. N. da t.
xviii
Trad. de Geraldo Galvão Ferraz, Ática, 1998. N. da t.
xix
Com várias traduções do francês para o PB, inclusive em versões digitais para download. N. da t.
xx
Os Anos com trad. de Raul de Sá Barbosa, Nova Fronteira, 1982; Orlando, trad. de Cecília Meireles, Globo,
1948; As Ondas, trad. de Lya Luft, Nova Fronteira, 1980. Mrs. Dalloway, que aparece logo mais no parágrafo,
teve 4 traduções para o PB; a primeira de Mário Quintana, ed. Globo, 1946, depois, em 2012, outras duas
traduções, de Tomaz Tadeu da Silva (Autêntica) e Claudio Marcondes (Cosac Naify), e em 2013 uma
tradução de Denise Bottmann (L&PM). N. da t.
xxi
Flush: memórias de um cão, trad. de Ana Ban, L&PM, 2003. N. da t.
xxii
Trad. de Ivo Barroso, Nova Fronteira, 1982. N. da t.
xxiii
Publicado em edição bilíngue com tradução do russo ao PB por Aurora Fononi Bernardini e Ha dasa
Cytrynowicz, Art, 1991. N. da t.
xxiv
Traduzi do poema de Marçal em catalão: “No és massa tard, encara, encara pots mirar.”. N. da t.
xxv
Para traduzir essa expressão, segui a tradução do título do romance para o alemão [Der Traumträger], a
proximidade de Fini ao surrealismo e a uma raiz mitológica grega do termo, que se remonta a Hermes e seu
título de Oneiropompos, ou Condutor dos Sonhos. N. da t.
In-Traduções, ISSN 2176-7904, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.219-239, ene./jun., 2013.
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