as perspectivas êmica e ética na pesquisa em

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as perspectivas êmica e ética na pesquisa em
ETNOMODELAGEM: AS PERSPECTIVAS ÊMICA E
ÉTICA NA PESQUISA EM ETNOMATEMÁTICA E
MODELAGEM
Milton Rosa
Universidade Federal de Ouro Preto
[email protected]
Daniel Clark Orey
Universidade Federal de Ouro Preto
[email protected]
RESUMO
A aplicação das técnicas da etnomatemática conjuntamente com as
ferramentas da modelagem fornece, através da etnomodelagem, uma visão
holística da matemática. A etnomodelagem procura conectar os aspectos
culturais da matemática com os aspectos matemáticos acadêmicos. Nessa
perspectiva, a utilização das abordagens êmica e ética facilita a tradução de
situações-problema presentes nos sistemas, retirados da realidade de grupos
culturais distintos, para a matemática acadêmica. O conhecimento êmico é
essencial para a compreensão intuitiva e empática das ideias, procedimentos
e práticas matemáticas dos grupos culturais enquanto que o conhecimento
ético é essencial para a comparação entre esses grupos. Por outro lado, a
perspectiva dialética utiliza as abordagens êmica e ética para a obtenção de
uma compreensão mais completa e abrangente do conhecimento matemático
desenvolvido pelos membros de diversos grupos culturais.
Palavras-chave: Etnomodelagem, Etnomatemática, Modelagem Matemática,
Perspectiva Êmica, Perspectiva Ética
ABSTRACT
The application of the techniques of ethnomathematics in conjunction with
the tools of modeling through ethnomodeling provides a holistic view of
mathematics. Ethnomodeling seeks to connect the cultural aspects of
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mathematics with its academic aspects. In this perspective, the use emic and
etic approaches facilitates the translation of problem-situations present in
the systems, taken from the reality of distinct cultural groups, to the
academic mathematics. Emic knowledge is essential to the intuitive and
empathetic understanding of ideas, procedures and mathematical practices
of the cultural groups while the etic knowledge is essential for the
comparison between these groups. On the other hand, the dialectical
perspective uses the emic and etic approaches to obtain a more complete
understanding of mathematical knowledge developed by the members of
diverse cultural groups.
Keywords: Ethnomodeling, Ethnomathematics, Mathematical Modeling,
Emic Perspective, Etic Perspective
1
Introdução
Ao investigarem o conhecimento desenvolvido pelos membros de grupos culturais
distintos, os pesquisadores podem encontrar ideias matemáticas originais, que podem ser
consideradas como etnomatemáticas. Contudo, a captação dos conhecimentos de outra cultura
exige um esforço incessante da compreensão dos fenômenos científicos a partir das categorias
e referenciais nativos para que uma ideia, procedimento ou prática matemática possa ser
expresso no sistema acadêmico. Assim, devemos ser cautelosos para não corrermos o risco de
transmiti-las com base em fatos e fenômenos julgados a partir de nossa própria visão e perfil
cultural.
Nesse contexto, o entendimento dos pesquisadores sobre os traços culturais de um
determinado grupo é sempre uma interpretação que, frequentemente, enfatiza as
características superficiais dessa cultura, gerando uma interpretação errônea do conhecimento
desenvolvido e acumulado por esse grupo cultural. Um desafio que se coloca a partir dessa
abordagem é a maneira como as ideias matemáticas, culturalmente enraizadas, podem ser
extraídas ou compreendidas sem permitir que a cultura dos pesquisadores interfira com a
cultura dos membros do grupo cultural sob estudo. Isso pode ocorrer quando os membros dos
grupos culturais têm a própria interpretação de sua cultura, denominada de perspectiva êmica,
em oposição à interpretação dos pesquisadores, denominada de perspectiva ética.
Os termos êmico e ético também são utilizados como uma analogia entre observadores
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de dentro (insider-êmico) e observadores de fora (outsider-ético) (CAMPOS, 2002). A
perspectiva ética refere-se a uma interpretação de aspectos de outra cultura a partir das
categorias daqueles que a observam, isto é, dos próprios pesquisadores. Por outro lado, a
perspectiva êmica procura compreender determinada cultura com base nos referenciais e
categorias desenvolvidos por essa cultura. Em outras palavras, a perspectiva ética é a visão
externa, dos observadores, que estão olhando de fora, em uma postura transcultural,
comparativa e descritiva enquanto que a perspectiva êmica é a visão interna, dos observados,
que estão olhando de dentro, em uma postura cultural própria, particular e prescritiva. Em
outras palavras, a perspectiva ética significa a visão do eu em direção ao outro enquanto que
a perspectiva êmica significa a visão do eu em direção ao nosso.
No desenvolvimento de uma pesquisa, a perspectiva ética é inevitável e necessária,
contudo, é de extrema importância observar uma determinada cultura, primeiramente, na
perspectiva êmica, procurando compreender como o próprio grupo entende as próprias
manifestações culturais. Entretanto, ao contrário da perspectiva ética, a êmica não é
automática, inevitável e implícita. Pelo contrário, precisamos nos esforçar para utilizá-la, pois
existe a necessidade de vermos o mundo com os olhos do outro. Dessa maneira, temos que:
Quadro 1: As Perspectivas Êmica e Ética
Perspectiva Êmica
Perspectiva do nativo (interno)
Perspectiva Ética
Perspectiva
do
observador
(externo)
Visão local (interna)
Visão global (externa)
Tradução Prescritiva
Tradução Descritiva
Cultural
Analítico
Estruturas mentais
Estruturas comportamentais
Transcrição Cultural
Transcrição Acadêmica
Com relação ao conhecimento científico, a falta de entendimento de um determinado
fenômeno matemático, a partir de uma perspectiva êmica, favorece a determinação de
conceituações que somente têm embasamento na matemática tradicional e acadêmica. Nesse
sentido, a apresentação das ideias, procedimentos e práticas matemáticas desenvolvidas por
grupos culturais distintos somente terão relevância se as conclusões éticas forem tomadas
depois que adquirimos uma relevante compreensão êmica sobre esse conhecimento.
Diante dessa perspectiva, os pesquisadores e educadores que assumem uma abordagem
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êmica acreditam que fatores como as origens cultural e linguística, os valores sociais, a moral
e os estilos de vida influenciam a evolução do conhecimento matemático quando esse é
desenvolvido no próprio contexto cultural. Então, os diferentes grupos culturais
desenvolveram maneiras diferentes de fazer matemática para que pudessem entender e
compreender os ambientes: cultural; social; político; econômico e natural nos quais estavam
inseridos (ROSA, 2010). Além disso, cada grupo cultural tem desenvolvido maneiras únicas e
distintas para matematizar a própria realidade (D'Ambrosio, 1990).
Nesse contexto, a matematização é o processo por meio do qual os indivíduos de
diferentes grupos culturais utilizam diferentes ferramentas matemáticas que possam auxiliálos a organizar, analisar, compreender, entender, modelar e resolver problemas específicos
enfrentados no cotidiano (ROSA e OREY, 2006). Essas ferramentas permitem a identificação
e a descrição de ideias, procedimentos e práticas matemáticas específicas de um contexto
cultural, que visam auxiliar os membros dos grupos culturais a descobrirem relações e
regularidades, esquematizarem, formularem e visualizarem situações-problema de maneiras
diferenciadas, transferindo-as do mundo real para a conceituação matemática por meio da
matematização.
Dessa maneira, é de suma importância a busca de uma abordagem metodológica
alternativa, que tem como objetivo o registro das ideias, procedimentos e práticas
matemáticas que são desenvolvidas em diferentes contextos culturais. Em nosso ponto de
vista, essa abordagem é denominada de etnomodelagem, que pode ser considerada como uma
aplicação prática da etnomatemática que adiciona uma perspectiva cultural aos conceitos da
modelagem matemática (ROSA e OREY, 2010a).
2
Etnomodelagem
Os estudos conduzidos por Ascher (2002), Gerdes (1991), Orey (2000), Rosa e Orey
(2009) e Urton (1997) revelam ideias e práticas matemáticas sofisticadas que incluem
princípios geométricos em trabalhos artesanais, conceitos arquitetônicos e práticas
desenvolvidas nas atividades de produção de artefatos de grupos culturais distintos. Eglash,
Bennett, O'Donnell, Jennings e Cintorino (2006) afirmam que esses procedimentos estão
relacionados com as relações numéricas encontradas no cálculo, na medição, nos jogos, na
navegação, na astronomia, na modelagem e em uma grande variedade de procedimentos
matemáticos e artefatos culturais.
Nessa perspectiva, a etnomodelagem pode ser considerada como o estudo das ideias e
procedimentos utilizados nas práticas matemáticas de grupos culturais distintos. Os
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procedimentos da etnomodelagem envolvem as práticas matemáticas desenvolvidas e
utilizadas em diversas situações-problema enfrentadas no cotidiano dos membros desses
grupos (ROSA e OREY, 2010a). No ponto de vista de Caldeira (2007), a etnomodelagem
considera o conhecimento matemático adquirido a partir de práticas culturais utilizadas na
comunidade. A esse respeito, existe a necessidade de perceber que o conhecimento
matemático origina-se em práticas sociais enraizadas nas relações culturais. Esse ponto de
vista permite a exploração de ideias matemáticas distintas por meio da valorização e respeito
aos conhecimentos adquiridos quando os indivíduos interagem com o próprio ambiente
(D’AMBROSIO, 1993; ROSA e OREY, 2003).
Nessa perspectiva, Rosa e Orey (2010a) afirmam que a etnomodelagem é considerada
como a região de intersecção entre a antropologia cultural, a etnomatemática e a modelagem
matemática. Nessa abordagem, na etnomatemática, o êmico é constituído por sistemas lógicoempíricos considerados como apropriados para os membros dos grupos culturais. Na
modelagem, o ético é constituído pelas ferramentas que são utilizadas para a obtenção de
dados sobre as ideias, procedimentos e práticas matemáticas locais, que foram observados.
Eglash et al (2006) argumentam que “a antropologia cultural sempre dependeu dos atos de
‘tradução’ entre as perspectivas êmica e ética (p. 347).
Figura 1: A etnomodelagem como uma região de intersecção entre três campos de pesquisa
A etnomatemática transforma a pobreza matemática conceitual por meio de um
processo conceitualmente enriquecido denominado de etnomodelagem. No entanto, esse
processo somente será positivo quando os sistemas de conhecimento dos grupos culturais não
são idealizados por meio dos olhos de pesquisadores e educadores e, também, quando os
alunos não são emprisionados em modos antiquados e maneiras dominantes de pensar. Assim,
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quando um sistema etnomatemático é utilizado ativamente como um sistema baseado em uma
teoria que pode resolver problemas reais, esse processo pode ser descrito como
etnomodelagem (ROSA e OREY, 2010b).
Por outro lado, a etnomatemática enfatiza os conhecimentos adquiridos nas
comunidades (êmico) enquanto que a etnomodelagem tende a conectar matemática acadêmica
(ético) com esse contexto. Essa abordagem mostra que a matemática é um empreendimento
cultural, que está enraizada na tradição, pois cada grupo cultural desenvolveu um sistema de
ideias matemáticas e modos de lidar com a realidade com a utilização da medição,
quantificação, comparação, classificação, inferência e modelagem. Essas técnicas são as
ferramentas básicas utilizadas pela etnomodelagem para a tradução de uma situação-problema
entre as abordagens êmica e ética.
Diante desse ponto de vista, Eglash at al (2006) e Rosa e Orey (2006) utilizam o termo
tradução para descrever o processo de modelagem utilizado nos sistemas de conhecimento
matemático local de uma determinada cultura (êmico) para uma representação da matemática
acadêmica ocidental (ético). Nesse contexto, a etnomodelagem utiliza as técnicas da
modelagem para estabelecer relações entre a estrutura da matemática local com a acadêmica
visando à resolução de situações-problema enfrentadas no cotidiano. Contudo, devemos ser
cautelosos durante o desenvolvimento desse processo, pois muitas vezes, os desenhos
indígenas são simplesmente analisados a partir de uma visão ocidental (ético) como, por
exemplo, a aplicação das classificações simétricas da cristalografia nos padrões têxteis
existente nos tecidos indígenas (EGLASH et al, 2006). No entanto, em alguns casos, a
tradução de um conhecimento matemático local para a matemática ocidental é direta e
simples, como, por exemplo, a modelagem dos sistemas de contagem e calendários.
Por outro lado, existem casos em que as ideias e os procedimentos matemáticos são
incorporados em um processo êmico, como na iteração utilizada no trabalho artesanal africano
com miçangas e nos caminhos eulerianos empregados nos desenhos de areia denominados
Sona (EGLASH et al, 2006). Nesse sentido, em nosso ponto de vista, o ato de tradução
aplicado nessas práticas culturais é denominado etnomodelagem, pois o conhecimento
matemático utilizado nesses processos decorreu de uma origem êmica ao invés de ética.
Entendemos que seja impossível aprisionar os conceitos matemáticos em registros de
designação única da realidade, pois existem sistemas distintos que utilizam representações
múltiplas dessa realidade (CRAIG, 1998), pois a matemática não foi concebida como uma
linguagem universal. Nesse sentido, os princípios, os procedimentos e os fundamentos da
matemática não são os mesmos para todos os grupos culturais (ROSA, 2010). Então, os
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processos de produção de ideias, procedimentos e práticas matemáticas operam de acordo
com o registo das singularidades interpretativas sobre as possibilidades de uma construção
simbólica do conhecimento matemático desenvolvido em diferentes grupos culturais (ROSA e
OREY, 2006).
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Etnomodelos
Geralmente, um modelo pode ser considerado como a representação de uma ideia, um
conceito, um objeto ou um fenômeno (BASSANEZI, 2002). Definimos etnomodelos como
artefatos culturais que funcionam como instrumentos pedagógicos utilizados para facilitar o
entendimento e a compreensão de sistemas que são retirados da realidade de grupos culturais
distintos (OREY e ROSA, 2009). Os etnomodelos são considerados como representações
externas, precisas e consistentes com o conhecimento científico e matemático, que é
socialmente construído e compartilhado pelos membros de grupos culturais específicos. De
acordo com essa perspectiva, o objetivo primordial para a elaboração de etnomodelos é a
tradução das ideias, procedimentos e práticas matemáticas presentes nos sistemas retirados da
realidade, que são sistemas simbólicos organizados pela lógica interna dos membros de
grupos culturais distintos.
No entanto, Eglash at al (2006) e Rosa e Orey (2010b) argumentam que os modelos que
são construídos sem que tenham algum sentido para a realidade a ser modelada devem ser
vistos com desconfiança. Então, existe a necessidade de que os pesquisadores e educadores
não sejam iludidos por sua própria teoria e ideologia visando à percepção dos distintos pontos
de vista que existem sobre o conhecimento matemático do sistema que está sendo modelado.
Por isso, é de suma importância evitarmos a alusão ao êmico para impormos o nosso modelo
ético para uma determinada prática matemática. Então, é de suma importância que os
pesquisadores e educadores sejam capazes de informar aos outsiders (ético) sobre o
conhecimento matemático que realmente importa para os insiders (êmico).
4
As Construções Êmica e Ética da Etnomodelagem
Na perspectiva da etnomodelagem, as construções êmicas são as descrições e as análises
expressas em termos de esquemas conceituais, que são significativos e que foram apropriados
pelos membros do grupo cultural em estudo (Lett, 1996). Assim, uma construção êmica está
de acordo com as percepções e entendimentos considerados apropriados pela cultura do
observador interno (insider). A validação do conhecimento êmico está relacionada com o
consenso da população local, que deve concordar que essas construções sejam coincidentes
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com a percepção comum e que retratam as características próprias de sua cultura (Lett, 1996).
Em outras palavras, a perspectiva êmica investiga os fenômenos matemáticos, as suas
estruturas e interrelações por meio da compreensão do desenvolvimento do conhecimento
matemático adquirido pelos membros de um determinado grupo cultural. Os dados êmicos,
que representam as concepções dos pesquisados, podem ser obtidos através de técnicas de
coleta de dados como entrevista, observação participante e história de vida (VIERTLER,
2002). O conhecimento matemático êmico pode ser obtido através da elucidação ou
observação, pois é possível que os observadores externos possam inferir sobre as percepções
locais com relação às ideias, procedimentos e práticas matemáticas (LETT, 1996).
Por outro lado, as construções éticas são consideradas como as descrições e análises das
ideias, procedimentos e práticas matemáticas expressas em termos de esquemas conceituais e
categorias que são considerados significativos e apropriados para a comunidade de
observadores científicos, pesquisadores e investigadores (LETT, 1996). Uma construção ética
é precisa, lógica, abrangente, replicável e independente dos pesquisadores e observadores. A
validação do conhecimento ético é obtida através da análise lógica e empírica. Os dados
éticos, que evidenciam os conceitos e as teorias dos pesquisadores e investigadores, são
frequentemente obtidos através de questionários (VIERTLER, 2002). O conhecimento ético
pode ser obtido através da elucidação e observação, pois é possível que os membros de um
determinado grupo cultural possuam conhecimento cientificamente válido (LETT, 1996).
Diante dessa perspectiva, no ponto de vista de D' Ambrosio (1990), é necessário que os
pesquisadores e investigadores reconheçam que as populações locais desenvolveram e
desenvolvem conhecimentos matemáticos que são validados em suas práticas socioculturais.
5
O Dilema Êmico-Ético em Etnomodelagem
As abordagens êmica e ética foram introduzidas pela primeira vez pelo linguista Pike
(1954), que se inspirou em uma analogia entre duas abordagens linguísticas:
1) Fonêmico: é um sistema de organização dos sons utilizados em um determinado
idioma e que são localmente significativos. Assim, o estudo da abordagem fonêmica
implica no exame do som utilizado em uma linguagem particular.
2) Fonético, que são os aspectos gerais de todos os sons possíveis produzidos em uma
determinada linguagem. Então, a abordagem fonética visa às generalizações a partir
dos estudos fonêmicos de uma linguagem específica, que busca elaborar uma ciência
universal que englobe todas as linguagens.
Esses conceitos alcançaram a academia antropológica tornando-se elementos
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fundamentais para a análise cultural.
Diante desse contexto, elaboramos uma analogia com relação à etnomodelagem, na qual
é possível afirmarmos que sua abordagem êmica estuda as práticas matemáticas
desenvolvidas internamente e que sejam localmente significativas. Argumentamos que os
etnomodelos êmicos estão baseados nas características, que são importantes para os sistemas
retirados da realidade, daqueles que estão sendo modelados. Por outro lado, existem muitos
etnomodelos éticos, que são elaborados de acordo com a visão dos observadores externos aos
sistemas retirados da realidade, que está sendo modelada.
Nesse contexto, os etnomodelos éticos representam a maneira como o modelador
imagina que os sistemas retirados da realidade funcionam enquanto que os etnomodelos
êmicos representam como os indivíduos que vivem nesses grupos culturais percebem a
utilização desses sistemas na própria realidade. É importante salientar que a perspectiva êmica
desempenha um papel importante na pesquisa em etnomodelagem, porém, a perspectiva ética
também deve ser considerada nesse processo. Em nosso ponto de vista, o foco da análise das
ideias e procedimentos matemáticos é ético se essas práticas podem ser comparadas entre os
grupos culturais com a utilização de definições e categorias métricas comuns. Por outro lado,
o foco da análise desses aspectos é êmico se as ideias, os procedimentos e as práticas
matemáticas são desenvolvidos exclusivamente por um determinado grupo cultural e estão
enraizados nas diversas maneiras em que essas atividades podem ser realizadas em um
ambiente cultural específico. Diante desse contexto, entendemos que a lógica do dilema
êmico-ético está fundamentada no argumento de que a compreensão da complexidade dos
fenômenos matemáticos somente é verificada no contexto do grupo cultural no qual esses
fenômenos foram desenvolvidos.
6
A Abordagem Dialética da Etnomodelagem
Atualmente, o debate entre o êmico e o ético é uma das questões mais intrigantes da
pesquisa em etnomodelagem, pois é importante lidarmos com questões como:
Existem padrões matemáticos que são identificáveis e/ou similares em diferentes
culturas?
É melhor haver uma concentração nos padrões matemáticos que são decorrentes da
cultura sob investigação?
Enquanto as perspectivas êmica e ética são muitas vezes consideradas como uma
dicotomia conflitante, Berry (1999) enfatiza que Pike (1954), originalmente as concebeu
como pontos de vista complementares. De acordo com esse contexto, ao invés de representar
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um dilema, a utilização de ambas as abordagens aprofunda a nossa compreensão das questões
importantes na pesquisa científica e na investigação em etnomodelagem. Berry (1990) sugere
que, para lidar com esse dilema, é necessário utilizar uma combinação entre as abordagens
êmica e ética, ao invés de simplesmente utilizarmos a dimensão êmica ou ética no
conhecimento matemático dos grupos culturais. Porém, a combinação da abordagem êmicaética requer que, primeiramente, os pesquisadores procurem entender o conhecimento êmico
dos grupos culturais sob estudo. Essa abordagem permite que os pesquisadores e
investigadores abandonem os próprios preconceitos culturais e se tornem familiares com as
diferenças culturais que são relevantes para cada grupo cultural (Berry, 1990).
Na pesquisa em etnomodelagem, a análise êmica se concentra em uma única cultura,
empregando métodos prescritivos e qualitativos para o estudo de uma ideia, procedimento ou
prática matemática, que seja de interesse ético. Dessa maneira, o foco dessa ação está no
estudo do contexto interno do grupo cultural, no qual o pesquisador desenvolve os critérios de
pesquisa em relação às características internas e a lógica desse sistema cultural. Nessa
perspectiva, o significado é adquirido em relação ao contexto e, portanto, não é facilmente
transferível para outras contextualizações culturais.
Nesse caso, os pesquisadores não têm a intenção de comparar os padrões matemáticos
observados em um determinado ambiente com os padrões desenvolvidos em outros ambientes
culturais. Isso significa que o objetivo principal de uma abordagem êmica é uma orientação
descritiva e ideográfica dos fenômenos matemáticos, pois coloca ênfase na singularidade de
cada ideia, procedimento ou prática matemática desenvolvida nos grupos culturais. Assim, se
os pesquisadores pretendem destacar os significados dessas generalizações de maneira
específica ou êmica, então existe a necessidade de se referirem precisamente a eventos
matemáticos mais específicos. Em contraste, uma análise comparativa é ética quando, no
exame de práticas matemáticas culturais e distintas, existe a utilização de métodos
padronizados de pesquisa (Lett, 1996). Nesse sentido, a abordagem ética procura identificar as
relações e explicações causais que são válidas em diferentes contextos culturais. Assim, se os
pesquisadores desejam elaborar afirmações sobre os aspectos universais ou éticos do
conhecimento matemático, essas declarações devem ser redigidas de maneira abstrata.
Por outro lado, a perspectiva ética pode ser uma maneira de chegarmos à perspectiva
êmica do conhecimento matemático dos grupos culturais (PIKE, 1954). Dessa maneira, a
perspectiva ética pode ser útil para penetrar, descobrir e elucidar os sistemas êmicos que
foram desenvolvidos nos grupos culturais. Então, os conceitos tradicionais das perspectivas
êmica e ética são importantes para que possamos entender e compreender as influências
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culturais nos modelos matemáticos traduzidos para a matemática acadêmica.
Contudo, propomos a perspectiva dialética (MARTIN e NAKAYAMA, 2007) para a
pesquisa em etnomatemática e modelagem por meio da etnomodelagem. Alvarez-Pereyre e
Arom (1993), originalmente, Pike (1954) trabalhou com uma relação dialética, na qual se
podia evidenciar as interdependências, os entrecruzamentos e as complementaridades entre
essas duas abordagens, pois de acordo com esse ponto de vista, o êmico é parte do ético e
vice-versa.
Nessa perspectiva, as reivindicações éticas do conhecimento matemático de qualquer
grupo cultural não têm prioridade sobre as suas reivindicações êmicas. Dessa maneira, existe
a necessidade de dependermos dos “atos de ‘tradução’ entre as abordagens êmica e ética"
(EGLASH at al, 2006, p. 347). Em outras palavras, a especificidade cultural pode ser mais
bem compreendida se embasada na universalidade das teorias e métodos da comunidade
cultural, pois para alcançarmos um caráter científico, as ideias matemáticas devem ser
verificadas ou refutadas com métodos independentes da subjetividade dos pesquisadores e
investigadores. Então, é importante analisarmos as percepções que foram adquiridas através
de métodos subjetivos e que são culturalmente contextualizadas. Assim, na abordagem
dialética, existe a possibilidade de que os pesquisadores possam ser tanto observadores
internos (insider) quanto observadores externos (outsider) em um determinado contexto
cultural.
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A Etnomodelagem da Cabana Tipi dos Indígenas Sioux
A geometria plana e “espacial é inerente no formato da [cabana] Tipi, que era utilizada
para simbolizar o universo em que viviam os povos das planícies" (OREY, 2000, p. 241). A
palavra Tipi, na linguagem Sioux, refere-se a uma cabana cônica utilizada como moradia
pelos povos indígenas das pradarias da América do Norte.
Figura 2: Aquarela no papel da cabana Tipi dos indígenas Sioux, pintada por Karl Bodmer em
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1833 em sua viagem nos Estados Unidos - 1832-1834
Para que os indígenas da nação Sioux pudessem suportar a dura realidade da vida nas
planícies, eles utilizam uma fundação tripé para a construção da cabana Tipi, pois oferece
uma fundação mais resistente para a sua base do que uma fundação quadripé (OREY, 2000).
Laubin e Laubin (1989) afirmam que a maioria dos moradores da cabana Tipi pôde perceber
que a fundação tripé é a melhor opção na defesa contra os fortes ventos que são
predominantes nas pradarias abertas da América do Norte. De acordo com esses autores, há
evidências históricas de que a fundação tripé é a mais comumente utilizada em áreas que
possuem menos obstáculos naturais e, assim, mais propensas às ações do vento. Além disso,
para que a cabana Tipi tenha uma melhor estabilidade, é necessário que a sua fundação tripé
tenha o formato aproximado de um triângulo equilátero.
Nesse contexto, um etnomodelo ético pode explicar o motivo pelo qual uma fundação
tripé é mais flexível e resistente do que uma quadripé. Assim, consideremos três pontos não
colineares denominados A, B e C. Existe um número infinito de planos que passam pelos
pontos A e B e que contêm a reta AB. Porém, apenas um desses planos também passa pelo
ponto C. Portanto, podemos afirmar que três pontos colineares determinam um plano e que
um plano também pode ser determinado por uma reta e um ponto que está localizado fora
dessa reta.
Figura 3: A determinação de um plano
Geometricamente, esse fato pode ser explicado com a utilização do postulado do plano
que estabelece que dados três pontos quaisquer, não colineares, existe um único plano no qual
esses mesmos três pontos estão localizados. Com relação à construção da cabana Tipi, essa
informação pode ser verificada matematicamente.
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Figura 4: A construção da cabana Tipi
a) A base da Tipi é formada pela fundação tripé determinada pelo ΔABC.
Figura 5: A base tripé determinada pelo triângulo ABC
b) Os pontos médios dos lados do ΔABC são os pontos M, N e P.
Figura 6: Os pontos médios dos lados do triângulo ABC
c) É possível conectarmos cada vértice do ΔABC ao ponto médio de cada um de seus
lados opostos para obtermos os segmentos de reta AM, BN e CP.
Figura 6: As três medianas do triângulo ABC
Esses segmentos de reta formam as três medianas do triângulo ABC, que são os
segmentos de reta que conectam o ponto médio de cada lado do triângulo ao seu vértice
oposto. As medianas se encontram em um ponto denominado centróide (OREY, 2000).
Arquimedes demonstrou que as medianas de um triângulo se encontram em seu ponto de
equilíbrio ou centro de gravidade denominado de baricentro do triângulo.
Figura 7: A centróide ou baricentro do triângulo ABC
Culturalmente, é importante salientar que, os indígenas Sioux determinam o local para
montar o altar e colocar o fogo para aquecer o interior da cabana Tipi no ponto no qual se
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localiza a centróide da base dessa cabana. Orey (2000) argumenta que o "centro da [cabana]
Tipi detém um poder definitivo e santificado" (p. 246). Nesse sentido, os indígenas Sioux
determinam o centro da cabana Tipi por causa da sua santidade e não apenas por uma questão
de necessidade ou estética.
Por outro lado, um etnomodelo êmico pode explicar essa situação-problema, pois
através da história, os povos nômades das pradarias norte-americanas têm observado que a
fundação tripé da cabana Tipi parece estar perfeitamente adaptada ao ambiente hostil em que
estão inseridos (Orey, 2000). Dessa maneira, se entendermos a distinção entre a utilização da
base tripé e quadripé da base dessa cabana, podemos perceber que os indígenas Sioux têm
uma compreensão de conceitos básicos da geometria, como, por exemplo, os triângulos e as
suas características e propriedades geométricas, o que evidencia a utilização de um
conhecimento matemático êmico. Então, podemos inferir que os indígenas Sioux utilizam a
base tripé ao invés de uma base de quadripé para a Tipi, pois esse tipo de base fornece uma
estabilidade maior para a fundação dessa cabana.
Diante dessa perspectiva, provavelmente, uma base quadripé terá apenas três de suas
pernas apoiadas no solo enquanto que a quarta perna pode se deslocar um pouco acima do
solo. Quando essa estrutura é inclinada para o lado da perna que não toca o solo, as outras
pernas da fundação podem também se levantar e desestabilizar a cabana Tipi. Assim, a
fundação quadripé tende a balançar ou mover enquanto os indígenas Sioux estão tentando
proteger-se das duras condições metereológicas e dos ventos fortes das pradarias, tornando
essa fundação imprópria para a estabilização dessa cabana. Nesse contexto, a base tripé da
Tipi tem a vantagem de fornecer uma estrutura estável para que os indígenas Sioux possam
viver com tranquilidade em um ambiente hostil.
Em nosso ponto de vista, a ideia matemática implícita nesse conhecimento êmico foi
passada para os membros do povo Sioux, através das gerações, pelas mulheres desse grupo
cultural, que são responsáveis pela construção e manutenção dessas moradias. Nesse sentido,
os procedimentos e as práticas matemáticas são socialmente aprendidas, apreendidas e
historicamente transmitidas, de geração em geração, entre os membros dos grupos culturais
(D’AMBROSIO, 1993).
Nesse exemplo, na perspectiva dialética, a observação êmica procura compreender essa
prática matemática para a construção da Tipi a partir da perspectiva da dinâmica cultural
interna (insider) e das relações do povo Sioux com o meio-ambiente no qual vivem. Por outro
lado, a pespectiva ética proporciona um contraste cross-cultural, que emprega perspectivas
comparativas com a utilização de conceitos da matemática acadêmica. Essa perspectiva tem
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como objetivo traduzir esse fenômeno para o entendimento daqueles que possuem um
background cultural diferente, para que possam compreender e explicar essa prática
matemática, como um todo, a partir do ponto de vista do observador externo (outsider). Dessa
maneira, a perspectiva êmica esclarece as intrínsecas distinções culturais enquanto que a
perspectiva ética procura a objetividade de um observador externo sobre essa cultura.
Então, a perspectiva ética se refere às características da matemática acadêmica
independentemente da cultura estudada enquanto que a perspectiva êmica pode ser
considerada como uma tentativa de descobrir e descrever um determinado sistema do
conhecimento matemático de uma determinada cultura em seus próprios termos, identificando
as unidades e as classes estruturais às quais elas pertencem. Uma descrição êmica deve, em
última instância, identificar quais caracteres éticos são localmente significantes, pois quanto
mais soubermos sobre o conhecimento ético dessa cultura, mais fácil será a sua análise êmica.
Contudo, parece estranho que possamos adquirir conhecimento sobre um determinado
conhecimento matemático na perspectiva êmica com a utilização da perspectiva ética, de uma
maneira dependente do conhecimento êmico desenvolvido por aquela cultura. Contudo, como
a descrição êmica pode identificar os caracteres éticos da matemática acadêmica, que são
localmente significantes, o conhecimento ético também pode ser considerado como uma
interpretação do conhecimento êmico da cultura e não uma interpretação da própria cultura.
Em nosso ponto de vista, ambas as abordagens são essenciais para uma melhor
compreensão do comportamento humano (Pike, 1996), principalmente, daqueles relacionados
com o desenvolvimento do conhecimento matemático, pois a perspectiva dialética se
relaciona com a estabilidade das relações entre as perspectivas êmica e ética.
8
A Abordagem Dialética no Currículo Matemático
A conjunção do conhecimento matemático dos membros de grupos culturais distintos
com o sistema ocidental do conhecimento matemático pode resultar em uma perspectiva
dialética para a educação matemática. Em um currículo baseado na etnomodelagem, a análise
êmica de um fenômeno matemático é baseada nos elementos estruturais internos de um
determinado grupo cultural enquanto que a análise ética é baseada em determinados conceitos
gerais que são externos a esse grupo cultural (Lovelace, 1984). A perspectiva êmica fornece
concepções e percepções internas das ideias, procedimentos e práticas matemáticas enquanto
a perspectiva ética providencia um enquadramento teórico para determinar os efeitos de uma
determinada cultura sobre o desenvolvimento do conhecimento matemático. Nessa
abordagem, a aquisição do conhecimento matemático é baseada nas aplicações de um
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currículo matemático, que pode ser avaliado com base em várias metodologias de ensino, que
são desenvolvidas em culturas distintas.
Uma abordagem dialética no currículo matemático escolar inclui o reconhecimento de
outras epistemologias e, também, da natureza holística e integrada do conhecimento
matemático dos membros dos diversos grupos culturais, que são encontrados em muitas
escolas. Um currículo baseado na perspectiva da etnomodelagem providencia uma base
pedagógica para a aprendizagem, que utiliza os diversos elementos culturais e linguísticos dos
membros de grupos culturais distintos na ação pedagógica para o ensino e aprendizagem da
matemática (Rosa e Orey, 2010a). Nesse tipo de currículo matemático, é essencial
entendermos que uma construção ética é um conceito matemático teórico empregado na
academia e que é supostamente aplicado em todos os grupos culturais. Por outro lado, uma
construção êmica é aquela que somente é aplicada aos membros de grupos culturais
específicos. Esse fato pode sinalizar a existência de uma preocupação com o preconceito
cultural, que pode se materializar se os pesquisadores assumirem que uma construção êmica é,
na realidade, ética (Eglash at al, 2006). Em outras palavras, uma ideia matemática (ético)
acadêmica é equivocadamente imposta aos membros de outro grupo cultural (êmico).
Um currículo matemático escolar baseado na perspectiva da etnomodelagem combina
os elementos chave do conhecimento local com os da acadêmia em uma abordagem dialética,
permitindo que os alunos gerenciem a produção do conhecimento e dos sistemas de
informações extraídos da própria realidade (êmico), para que, criativamente apliquem esse
conhecimento em outras situações (ético). No entanto, existe a necessidade de optarmos por
uma abordagem integradora do currículo, que além de considerar a perspectiva êmica,
reconhece que muitas vezes é preciso considerar também os dados oriundos da perspectiva
ética, desde que nos comprometamos com a busca de uma compreensão holística e abrangente
das informações culturais (MARQUES, 2001). Consideramos que seja necessário conciliar a
ênfase cognitivista com a adaptacionista, por serem capazes de combinar em uma única
perspectiva os aspectos essenciais da pesquisa em etnomodelagem para estabelecer a conexão
entre o corpus e a praxis.
Em nosso ponto de vista, a etnomodelagem pode ser considerada como parte da
educação matemática crítica, pois é um processo de aprendizagem na qual os professores
favorecem uma análise crítica das múltiplas fontes de conhecimento em diversos estilos de
aprendizagem. Nessa abordagem, o conhecimento matemático adquirido é centrado,
localizado, orientado e fundamentado no perfil cultural dos alunos, que pode ser aplicado e
devidamente traduzido para a matemática acadêmica, para equipá-los a se tornarem cidadãos
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produtivos, local e globalmente. Concordamos com Rosa e Orey (2010b) que afirmam que a
etnomodelagem é uma abordagem pedagógica para atingirmos esse objetivo.
9
Considerações Finais
Atualmente, diversos sistemas de tradições e conhecimento matemático de distintos
grupos culturais estão em risco de extinção por causa da mudança rápida nos ambientes
natural e cultural e em virtude do ritmo rápido das mudanças econômica, social, ambiental,
política, que estão ocorrendo em escala global. Assim, muitas práticas matemáticas locais
podem desaparecer por causa da imposição do conhecimento ético, da invasão e imposição de
tecnologias estrangeiras a partir dos conceitos de desenvolvimento globalizado, que prometem
ganhos em curto prazo ou pela proposição de soluções para problemas enfrentados por um
determinado grupo cultural sem considerar, contudo, o seu conhecimento êmico para resolver
essas situações-problema.
Nesse artigo, oferecemos um conceito alternativo de pesquisa, que é a aquisição dos
conhecimentos êmico e ético para a implantação e implementação da etnomodelagem como
campo de pesquisa. O conhecimento êmico é essencial para uma compreensão intuitiva e
empática das ideias matemáticas de uma cultura, sendo importante para a condução de
pesquisas etnográficas enquanto que o conhecimento ético é essencial para a comparação
entre as culturas, exigindo unidades padrão e categorias, que são os componentes essenciais
da etnologia. Oferecemos também a perspecitva dialética como uma alternativa para a
pesquisa em etnomodelagem, que utiliza ambos os conhecimentos êmico e ético através do
processo dialógico. Assim, ao conduzirmos uma pesquisa fundamentada por ambas as
perspectivas, ganhamos uma compreensão mais completa sobre o conhecimento matemático
desenvolvido pelos membros dos grupos culturais. Nesse sentido, o conhecimento êmico é
uma valiosa fonte de inspiração para a elaboração de hipóteses éticas.
Nesse contexto dialético, o currículo matemático baseado na perspectiva da
etnomodelagem oferece uma filosofia subjacente para a geração de conhecimento com e entre
os subsistemas da educação matemática visando garantir a integração equilibrada do domínio
afetivo dos objetivos educacionais, que são essenciais para o reconhecimento e utilização do
conhecimento êmico dos alunos. Então, é importante reinterpretarmos o mundo,
replanejarmos as situações experimentais, sentirmos empaticamente os indivíduos de culturas
diversas para que possamos melhor compreender os diferenrtes pontos de vista e produzirmos
descrições internas do conhecimento matemático. Em síntese, o nosso objetivo é absorver o
ponto de vista dos insiders (êmico) para que possamos entender a sua visão de mundo.
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Diante desse contexto, a etnomodelagem pode ser definida como o estudo dos
fenômenos matemáticos que ocorrem em um determinado grupo cultural, nos quais as ideias,
procedimentos e práticas matemáticas são construções sociais e culturalmente enraizadas.
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