doença de chagas diagnostico laboratorial e prevenção

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doença de chagas diagnostico laboratorial e prevenção
DOENÇA DE CHAGAS
DIAGNOSTICO LABORATORIAL E PREVENÇÃO
Sandra Neto

Lucinda Queirós
INTRODUÇÃO
A actualidade mostra que as doenças denominadas (re)
emergentes têm conhecido nos últimos anos – e de forma
gradual – uma crescente discussão e estudo por parte da
comunidade científica de todo o mundo. Implicações de
um tempo em que os fenómenos demográficos, sociais,
económicos e culturais associados à globalização afectam
tanto os perfis epidemiológicos dessas doenças como as
perspectivas e estratégias do seu controlo.
A Doença de Chagas (DC) ou Tripanosomíase americana
é anualmente responsável pela morte de 14 mil pessoas
(Roddy et al. 2007) e estimativas oficiais apontam para 15
milhões de infectados na América Latina e mais de 28 milhões de pessoas em risco de transmissão, em cerca de 21
países endémicos, do México à Argentina (OMS 2007).
Numa escala global representa a terceira doença tropical
depois da Malária e da Schistosomíase (Transfusion Microbiology 2008).
A DC foi descrita pela primeira vez em 1909 pelo médico
brasileiro Carlos Chagas, um investigador do Instituto
Oswaldo Cruz, que comunicou ao mundo científico através da publicação na revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo (Archiff Schiffs-und Tropen-Hygiene)
a descoberta de uma nova doença humana, o seu agente
causal Trypanossoma cruzi (T. cruzi) e o insecto que o
transmitia. Esta descoberta constituiu um marco histórico
na ciência e na saúde, prestando uma contribuição inovadora no campo emergente da medicina tropical e dos estudos sobre as doenças parasitárias transmitidas por insectos vectores. Chagas trouxe a público a realidade sanitária
e social do interior do Brasil, assolado pelas endemias
rurais intimamente associadas à pobreza.
Como doença caracteristicamente rural, atinge tradicionalmente pessoas do interior que habitam ou habitaram
casas de baixa qualidade higiénico-sanitária onde facilmente se aloja e coloniza o vector. Nas últimas décadas,
acentuou-se a urbanização de indivíduos infectados, aumentando assim os riscos de transmissão por transfusão
sanguínea (Dias 2007).
Actualmente, não existe vacina nem perspectiva de um
processo de imunização em larga escala num futuro pró-
ximo. Quanto ao tratamento, os fármacos geralmente usados são o Benznidazole e o Nifurtimox, sendo a sua acção
satisfatória na fase aguda e pouco eficaz nas fases crónicas, e com efeitos colaterais indesejáveis.
O controlo de vectores através de melhores habitações e
o rastreio sistemático nas unidades colhidas para transfusão de sangue constituem as ferramentas mais importantes para evitar a transmissão e a disseminação para novas
áreas (Filho 2009).
O aumento da imigração proveniente da América Latina
para os Estados Unidos da América (EUA), Canadá e Europa tem lançado novos desafios em termos de saúde pública
e vigilância epidemiológica, no que concerne a doenças
“importadas”, nas quais se inclui a DC. Estudos publicados
revelam que, apesar de não endémica, existe em países
como EUA (Bern 2007; CDC 2008), Espanha (Barea et al.
2005), França (François-Xavier et al. 2008), entre outros.
Entre 2004 e 2006 foram diagnosticados em França nove
casos de DC (François-Xavier et al. 2008). Nos EUA e Canadá estão documentados sete casos de trypanossomíase
pós-transfusional e cinco pós-transplante até ao ano de
2006, mas pensa-se que existem outros casos não diagnosticados (AABB 2006).
A estratégia de controlo, nestes países, centra-se na prevenção da transmissão por transfusão sanguínea, transplante de órgãos e transmissão mãe- filho, já que os vectores não são relevantes (Muñoz et al. 2005).
EPIDEMIOLOGIA
A facilidade dos movimentos populacionais conduziu a
um crescimento importante do turismo que mobilizou, em
2007, cerca de 900 milhões de pessoas em todo o Mundo.
Mais de metade viajam na Europa, mas há também um
crescimento do turismo para a América central e do sul,
representando 19,6 milhões de pessoas em 2000 e 27,9
milhões em 2007. Uma parte destes visitantes fazem turismo rural, ecoturismo ou de aventura que, quando realizado em zonas endémicas, pode expor os visitantes ao risco
de contrair as doenças (Briceño-Léon, 2009) (Figura 1).
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21
Regional de Sangue do Porto, Rua de Bolama 133, 4200-139, Porto (Portugal).
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DOENÇA DE CHAGAS: DIAGNOSTICO LABORATORIAL E PREVENÇÃO
Figura 1: Países endémicos para Doença de Chagas
Figura 1: Países endémicos para Doença de Chagas
Figura 2: Imagens de T. cruzi em doentes com D
Nos países onde a DC é endémica (desde o paralelo 40 de
latitude norte, no sul dos EUA, ao paralelo 45 de latitude
sul, da Argentina e Chile) é realizado o rastreio de anticorpos contra o T. cruzi a todos os dadores de sangue. Nestes
países, a prevalência média da infecção varia entre 0,3%
(Nicarágua) e 15% (Bolívia). Dentro desta gama de valores, constata-se a existência de dois grupos com prevalência média de infecção claramente diferentes: existe um
grupo de países com prevalência baixa entre 1% e 3%
(Costa Rica, Panamá, México e Peru) e outro grupo que
oscila entre 4% e 11% (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia,
Guatemala, Honduras, Paraguai, Uruguai e Venezuela)
(Hernandez 2005).
de um doente em fase aguda. B – Amastigotas
crónica. (Bern et al. 2007).
Figura 2: Imagens de T. cruzi em doentes com DC.
A - Tripomastigotas no sangue periférico de um doente em fase aguda.
B - Amastigotas num miócito cardíaco de um doente em fase crónica.
(Bern et al. 2007).
Figura 2: Imagens de T. cruzi em doentes 15com DC. A - Tripomastigotas no sangue perifé
A Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) recomenda que nos países onde a infecção não é endémica – mas
que recebem migração latino-americana, como o nosso –
devem organizar uma rede de centros especializados em
temas relacionados com esta infecção, destinada a estabelecer protocolos de vigilância e estratégias de controlo,
mantendo o contacto com as existentes em países onde é
endémica, para promover estratégias conjuntas de pesquisa (Consulta Técnica Regional OPS/MSF 2005).
mesma
ordem
(Kinetoplastida)
que o agente
infeccioso
de um doente em fase aguda. B – Amastigotas
num
miócito
cardíaco
de um
doente em
crónica. (Bern et al. 2007).
22
Ciclo
de
Vida
do
Agente Etiológico
e
Transmissão
O agente etiológico é o Trypanossoma cruzi, protozoário
flagelado da ordem Kinetoplastida, família Trypanosamatidae, caracterizado pela presença de um flagelo e de uma
única mitocôndria (Guia de vigilância epidemiológica
2005) (Figura 2).
da Leishmaniose, mas as suas manifestações clínicas, distribuição geográfica, ciclo de vida e os insectos vectores
são bastante diferentes destes outros agentes.
A DC é uma zoonose vectorial de carácter crónico nos
hospedeiros imunocompetentes e oportunista nos imunocomprometidos. Esta doença evolui para a cronicidade
nas pessoas imunocompetentes, passando por três etapas:
fase aguda, fase latente ou crónica indeterminada, que
representa 50 a 70% dos infectados, e fase crónica determinada em 10 a 30% destes doentes (Comité de Parasitologia 2006a).
Vias
de
Transmissão
da Infecção por
T. cruzi
Vectorial
O T. cruzi é um membro do mesmo género (Trypanossoma) do agente infeccioso africano da Doença do Sono,
encontrada em África e transmitida por uma mosca, e da
Figura 3: Vector da doença de Chagas. In
Constitui a forma de transmissão natural ou primária da
doença. Ocorre através de insectos da família dos Réduvii-
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e em fase aguda. B – Amastigotas num miócito cardíaco de um doente em fase
n et al. 2007).
a 3:
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dae e da sub-classe Triatominae, que tem como principais
espécies: Triatoma infestans, Rhodnius prolixus, Triatoma dimidiata, Panstrongylus megistus e Triatoma brasiliensis, característicos da América Central e do Sul, mas
também Triatoma barberi e Phyllosoma, no México (Dias
2005) (Figura 3).
Figura 4: Ciclo evolutivo do T. cruzi (Lannes-Vieira 2009).
Figura
4: Ciclo evolutivo do T. cruzi (Lannes-Vieira 2009).
Transfusão Sanguínea e Transplante de Órgãos
Figura 3: Vector da doença de Chagas. Insecto Triatomíneo (Leite
Vector
da doença de Chagas. Insecto Triatomíneo (Leite
2008).
2008).
A via transfusional é o segundo mecanismo de transmissão mais importante nos países endémicos. O T. cruzi é
O contacto dos insectos vectores infectados pelo T. cruzi
com os seres humanos é propiciado principalmente pela
precariedade das habitações nas áreas rurais, o que cria
condições favoráveis à infestação das casas pelos triatomas. Estes proliferam nas habitações pobres das zonas
rurais, geralmente com muros de barro e telhados de
palha. A forma mais comum de contrair a doença é através do contacto com as fezes do insecto, o qual se alimenta de sangue dos seres humanos e animais. O T. cruzi desenvolve-se em todo o aparelho digestivo do
triatoma, resultando em formas alongadas (tripomastigotas metacíclicos), presentes principalmente nas fezes do
insecto.
Estas são as formas infectantes e podem penetrar pelas
mucosas quando o homem leva as mãos contaminadas
aos olhos, nariz ou boca; e por soluções de continuidade,
como as provocadas pelo acto de coçar a zona picada
(Guia de Vigilância Epidemiológica 2005; Zeraín 2006).
Logo após a penetração, o tripomastigota metacíclico invade as células do sistema fagocítico mononuclear (célula
alvo) e perde o flagelo, passando a chamar-se amastigota.
As amastigotas multiplicam-se por divisão binária até que
a célula infectada fique repleta de amastigotas. Nesta altura, as amastigotas passam novamente a tripomastigotas e,
quando a célula alvo rebenta, liberta tripomastigotas que
se deslocam para infectar uma nova célula-alvo, disseminando-se para o resto do organismo através da circulação
sanguínea e linfática. Os principais órgãos afectados são o
coração, o tubo digestivo e os plexos nervosos (Souza
2009) (Figura 4).
QUADRO
1: ALTERAÇÕES
EPIDEMIOLÓGICOS
um organismo
robustoDOS
que PARÂMETROS
pode sobreviver
até 18 dias no 1990-200
sangue total armazenado a(OMS
4º C.2007)
Também resiste aos processos de criopreservação e descongelação. A infecção
pode ser transmitida não só pela transfusão de sangue
total, mas igualmente através de plasma fresco congelado,
crioprecipitado e plaquetas (Barea et al. 2005). Nos casos
deParâmetros
transmissão através
a DC
1990do transplante
2000 de órgãos,2006
epidemiológicos
aguda que ocorre após esse mecanismo de transmissão
apresenta-se mais grave, uma vez que os receptores estão
Mortes anuais
>45(Gontijo
000
21 000 2009). 12 500
imunocomprometidos
e Silvana
Casos humanos de
infecção
Novos casos anuais
30 Milhões
18 Milhões
15 Milhões
Congénita (Mãe-Filho)
700 000
200 000
41 200
É o resultado da transmissão de T. cruzi da grávida infectaPopulação em risco
100 Milhões
40 Milhões
28 Milhões
da ao seu feto por via placentária e/ou transmembranaria.
NasDistribuição
regiões onde se efectua
da transmissão
vec21 Países o controlo
21 Países
21 Países
torial e transfusional, esta via constitui a principal forma de
transmissão. Segundo alguns estudos em áreas endémicas,
a taxa de transmissão
materno-fetal da infecção por T. cruzi
16
varia entre 1 e 12 % das mulheres infectadas. A transmissão
congénita pode acontecer tanto quando a mãe se encontra
na fase aguda como na fase crónica (mais frequente) da
doença (Torrico 2007). Encontram-se já descritos alguns casos de transmissão congénita de DC na Europa, designadamente na Catalunha, em Espanha (Guarro 2007).
23
Oral
Esta transmissão ocorre de forma excepcional por meio da
ingestão de triatomíneos infectados ou pela ingestão de
17
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DOENÇA DE CHAGAS: DIAGNOSTICO LABORATORIAL E PREVENÇÃO
alimentos recentemente contaminados com tripomastigotas metacíclicos, contidos no intestino posterior dos insectos. Nos últimos anos, a ocorrência de casos agudos da DC
por transmissão oral tem sido observada em diferente países, mas especialmente na região da Amazónia brasileira
(OPS 2009).
Transmissão Acidental
Pode ocorrer por acidentes em laboratório e resulta da
manipulação de material contaminado em laboratório,
que deve ser prevenida através de boas práticas laboratoriais e do rigoroso uso de normas de biossegurança.
DIAGNÓSTICO LABORATORIAL
O diagnóstico laboratorial da DC pode ser realizado através de dois tipos de métodos (Comité de Parasitologia
2006b; Guia de vigilância epidemiológica 2005):
Métodos Directos
Confirmam a presença de T. cruzi ou do seu material genético na amostra estudada.
• Observação microscópica em fresco - identifica, por
observação directa, a presença de tripomastigotas
de T. cruzi em amostras de sangue periférico;
• Gota espessa - permite a concentração da amostra
de sangue;
• Método de concentração: MicroStrout - é um exame
microscópico da fracção leucoplaquetária do sangue
total para pesquisa de tripomastigotas de T. cruzi;
• Reacção em cadeia da polimerase (PCR) – é uma
técnica de biologia molecular que tem por base a
amplificação específica do ADN do T. cruzi;
24
• Biopsia - é hipótese a considerar em caso de doentes
imunodeprimidos, na tentativa de visualização do
parasita nos tecidos;
• Xenodiagnóstico – pesquisa de formas tripomastigotas de T. cruzi nas fezes de triatomineos, impraticável para uso na rotina.
Métodos Indirectos
Evidenciam a presença de anticorpos específicos contra o
T. cruzi em amostras que podem ser de soro, líquido céfa-
lo-raquidiano, tumores do olho, etc.. Estas técnicas permitem quantificar a concentração de imunoglobulinas (Igs)
e, desta forma, monitorizar terapias, identificar reactivações e determinar a cura serológica nos doentes imunocomprometidos.
•H
emaglutinação indirecta, método que se baseia na
reacção de eritrócitos sensibilizados com T. cruzi
que entram em contacto com os anticorpos específicos do parasita, produzindo-se aglutinação (reacção
positiva);
•E
nsaio imunoenzimático (ELISA). Utiliza o princípio
de que os antigénios ou anticorpos que se fixam a
uma fase sólida (placas de poliestireno) podem ser
detectados por anticorpos ou antigénios complementares marcados com um enzima capaz de actuar
sobre um substrato cromogénico. Quando o substrato enzimático é adicionado, a presença dos antigénios ou anticorpos pode ser revelada mediante o
desenvolvimento de uma reacção colorimétrica;
• Imunofluorescência Indirecta (IFI). Neste método
são usadas placas de vidro com cavidades revestidas
com a epimastigota de T. cruzi. Se o soro do doente
contiver anticorpos, produz-se uma reacção antigénio-anticorpo que se detecta pela adição de um segundo anticorpo marcado com substâncias fluorescentes. Esta reacção é observada posteriormente ao
microscópio de fluorescência.
A escolha do tipo de método depende da fase clínica da
doença. Na fase aguda, os métodos de eleição são os directos, onde é possível detectar o parasita no sangue da
pessoa infectada. Estas técnicas não necessitam de ser
confirmadas por outros métodos. Na fase crónica, são recomendados os métodos indirectos ou serológicos, sendo
geralmente usados os testes ELISA. Tendo em conta que
nestas técnicas podem ocorrer reacções de falsos positivos, é recomendada a confirmação por, pelo menos, outra
técnica diferente (IFI, hemaglutinação, testes de biologia
molecular) (Comité Parasitologia 2006b).
DIAGNOSTICO CLÍNICO
Os períodos de incubação são variáveis, segundo a via de
transmissão. Quando existe sintomatologia, na fase aguda, esta costuma aparecer 5 a 14 dias após o contacto com
o insecto vector. Quando adquirida por transfusão sanguínea, o período de incubação varía de 30 a 40 dias. Em
geral, as formas crónicas da doença manifestam-se mais
de 10 anos após a fase inicial (Guia de vigilância epidemiológica 2005).
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DOENÇA DE CHAGAS: DIAGNOSTICO LABORATORIAL E PREVENÇÃO
Fases
de
Doença
1-A
guda – sintomática e não sintomática. A sintomatologia é geralmente ligeira (febre, cefaleias, dores musculares, apatia e outros) ou assintomática. A fase aguda
pode ser fatal em cerca de 10% de crianças.
2-C
rónica indeterminada – sem sintomatologia. Depois
da fase aguda, a maioria das pessoas infectadas entra
numa etapa latente longa e assintomática que pode
durar 10 a 20 anos e durante a qual a maioria dos portadores não sabe que tem a infecção.
3-C
rónica determinada – decorre com sintomas. Com a
evolução da doença, os sintomas tornam-se crónicos e
graves.
Em 30% dos crónicos:
• Forma cardíaca. É a mais importante forma de limitação dos doentes e a principal causa de morte. Pode
apresentar-se sem sintomatologia, mas com alterações electrocardiográficas.
• Forma digestiva. Caracteriza-se por alterações ao
longo do trato digestivo, ocasionadas por lesões dos
plexos nervosos, com consequentes alterações da
motilidade e da morfologia.
• Forma mista. O doente pode ter associação da forma
cardíaca e da digestiva.
• Forma neurológica. As manifestações neurológicas
foram sempre consideradas consequências da miocardiopatia. Actualmente, as correntes de investigação apontam para a possibilidade de a doença neurológica ser consequência de mecanismos imunes
provocados pelo T. cruzi que originam um estado de
inflamação crónica que provoca situações patológicas a nível do sistema nervoso central. (Oliveira-Filho 2009)
Na fase aguda da doença existe uma estreita relação entre
a parasitemia (número de parasitas circulantes), título de
anticorpos e gravidade da doença. Pelo contrário, na fase
crónica não existe nenhuma relação entre a parasitemia,
título de anticorpos e severidade do quadro clínico (Zeraín 2006). A parasitemia e a produção de anticorpos dependem de vários factores como a via de transmissão, a quantidade de parasitas infectantes, a sua virulência e
patogenicidade, e condições físicas do hospedeiro, como
a idade e a nutrição (Pignatti 2004).
TRATAMENTO
O tratamento é específico contra os parasitas e visa a sua
eliminação. É sempre recomendado na fase aguda e em
infecções crónicas recentes em crianças ou jovens. A decisão de tratamento de todas as outras situações é opcional
pesando o benefício-risco, dados os efeitos colaterais da
terapêutica.
Os fármacos, disponíveis há mais de 30 anos, são o Benznidazole (derivado nitroimidazole) e Nifurtimox (composto
nitrofurano) ambos com actividade contra as formas tripomastigota e amastigota. O desaparecimento dos parasitas
ocorre em 60 a 80% na fase aguda e em mais de 90% de
bebés com tripanossomíase congénita no 1º ano de vida.
Na fase crónica, não há evidência de que o tratamento antiparasitário altere a progressão da doença, pelo que o tratamento visa a atenuação de sintomas, e são usados cardiotónicos e antiarrítmicos na doença cardíaca ou cirurgias
correctivas quando ocorre megaesófago ou megacolon .
PREVENÇÃO
Nas duas últimas décadas, a estratégia de controlo da DC
promovida pela OPAS e pela OMS tem por base:
• Melhoria das condições de habitação;
• Programas educacionais de higiene;
• Uso de insecticidas;
• Interrupção da transmissão vectorial;
• Rastreio laboratorial sistemático a todos os dadores
de sangue nos países endémicos;
• Diagnóstico e tratamento na transmissão congénita;
• Administração de tratamento nos casos agudos e nas
crianças.
Estas intervenções têm contribuído para a interrupção da
transmissão em muitas regiões do continente americano.
Brasil, Chile e Uruguai, por exemplo, foram declarados
recentemente como países livres da transmissão por Triatoma infestans (o principal vector nestes países), com a
consequente diminuição da incidência da doença em casos humanos (Oscherov 2003; Manual técnico para investigação de transmissão de doenças pelo sangue 2004;
OMS 2007).
O Quadro 1 mostra as alterações dos parâmetros epidemiológicos decorrentes destas intervenções.
Quando uma unidade de sangue é transfundida, sendo o
dador seropositvo para teste de Chagas, a incidência de
infecção no receptor é de 12% a 25 % mas pode ser, segundo alguns autores, de 50%. O T. cruzi é um organismo
robusto que pode sobreviver até 18 dias no sangue total
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DOENÇA DE CHAGAS: DIAGNOSTICO LABORATORIAL E PREVENÇÃO
QUADRO 1: ALTERAÇÕES DOS PARÂMETROS EPIDEMIOLÓGICOS
1990-2006 (OMS 2007)
Parâmetros
Epidemiológicos
1990
2000
2006
Mortes anuais
>45 000
21 000
12 500
Casos humanos de
infecção
30 Milhões
18 Milhões
15 Milhões
Novos casos anuais
700 000
200 000
41 200
População em risco
100 Milhões
40 Milhões
28 Milhões
Distribuição
21 Países
21 Países
21 Países
armazenado a 4ºC e que resiste aos processos de criopreservação e descongelação (Transfusion Microbiology
2008), como se referiu anteriormente. No caso de não ser
possível realizar o rastreio serológico às unidades de
sangue colhidas para transfusão, elas podem ser tratadas
com Violeta Genciana (250mg/L) que destrói os parasitas
em 24 horas a 4ºC sem destruição celular (Infectious Diseases 2004 ).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A globalização e a doença de Chagas são realidades históricas e sociais estritamente interligadas na América Latina.
26
Não obstante, existiu um grande esforço pelo controlo da
doença nas últimas décadas, nomeadamente em países
como os do cone sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) e Venezuela, conseguindo-se uma redução drástica da transmissão, basicamente devido a um
grande esforço de pressão da comunidade científica latino-americana. Os sistemas de vigilância epidemiológica,
informação e diagnóstico precisam de estar disponíveis e
em funcionamento para que isto ocorra. Pragmaticamente, as actividades de controlo da DC devem integrar-se nas
demais actividades de ciência, tecnologia e investigação
(Dias, 2007).
Para o futuro, problemas e desafios podem ser esperados,
principalmente em termos da assistência médica aos indivíduos já infectados e da sustentabilidade de uma vigilância epidemiológica permanente. Ambos estes pontos dependem de um melhor desempenho dos sistemas de
saúde, principalmente no que se refere a competência e a
superação de situações de injustiça (Dias, 2007).
Do debate internacional em torno da doença têm saído
sucessivas recomendações que apontam para a necessi-
dade de investimentos nas áreas de vigilância epidemiológica e de pesquisa aplicada à saúde pública, bem como
uma ênfase em acções de prevenção de doenças e controlo de vectores, além da melhoria das infra-estruturas do
sector da saúde – tudo isto com o objectivo de reduzir o
impacto destas doenças (Schatzmayr, 2001).
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27
AUTORES: Sandra Neto1; Lucinda Queirós2
1
Técnica de Analises Clínicas e Saúde Publica; 2Chefe de Serviço de Imuno-hemoterapia.
Correspondência: Dra Lucinda Queirós, Laboratório de Agentes Transmissíveis, Centro Regional de Sangue do Porto, Rua de Bolama 133,
4200-139, Porto (Portugal).
Email: [email protected]
Número 41 Jan/Mar 2010

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