Sobre a potência ordenada e absoluta em João Duns

Transcrição

Sobre a potência ordenada e absoluta em João Duns
JOÃO DUNS ESCOTO
GUILHERME DE OCKHAM
Textos sobre a potência ordenada e absoluta.
São Paulo, 2013.
2
ÍNDICE DOS TEXTOS:
JOÃO DUNS ESCOTO:
Reportatio I-A, d. 44, q. 1
03
Reportatio I-A, d. 44, q. 2
10
Ordinatio I, d. 44, q. unica
15
Lectura I, d. 44, q. unica
22
GUILHERME DE OCKHAM:
Quodlibeta Septem VI, q. 1
24
Tratado Contra Benedito III, cap. 3
29
Opus Nonagina Dierum, cap. 95
38
3
JOÃO DUNS ESCOTO
“Reportatio” examinada da leitura de Paris
Reportatio I-A*
[Distinção 44
*
Quaestio 1
Questão 1
Utrum Deus posset aliter res
producere quam facit, vel secundum
ordinem institutum ab eo modo]
Se Deus poderia produzir
as coisas diversamente do que faz
ou (diversamente do que faz) segundo
a ordem por ele agora instituída]
1.
Circa
distinctionem
quadragesimam quartam primo quaero
utrum Deus posset aliter res producere
quam facit, vel secundum ordinem
institutum ab eo modo.
1. Acerca da distinção 44,
pergunto, primeiro, se Deus poderia
produzir as coisas diversamente do que
faz, ou [diversamente do que faz] segundo
a ordem por ele agora instituída.
Videtur quod non : quia tunc vel
modo vel alias inordinate produceret,
quod est inconveniens.
Vê-se que não: porque, então, ou
agora, ou noutro [instante], produziria
desordenadamente, o que é inconveniente.
2. Item, sua potentia non excedit
suam scientiam, maxime quoad
obiecta ; sed secundum suam scientiam
non potest scire opposita nec aliter
quam scit, ergo non aliter producere (vel
opposita)
quam
producit.
2. Ainda, sua potência não excede
sua ciência, maximamente no que diz
respeito aos objetos; ora, segundo sua
ciência, não pode saber os opostos nem
[pode saber] diversamente do que sabe,
portanto,
não
[pode]
produzir
diversamente (ou opostamente) ao que
produz.
3. Item, in aeternitate disposuit
rem fieri secundum ordinem ab eo
institutum. Si ergo potest aliquid aliter
producere, et non de novo, ergo in
aeternitate
potest
habere
actus
oppositos.
3. Ainda, dispôs na eternidade que
a coisa seja feita segundo a ordem
instituída por ele. Se, portanto, pode
produzir algo diversamente, e não como
novo, então pode ter dois atos opostos na
eternidade.
JOHN DUNS SCOTUS, Reportatio I-A : The examined Report of the Paris Lecture - Latin Text and English
Translation. A. B. Wolter & O. V. Bychkov (ed. e trad.). Volume 2 (distinctiones 22-48). St. Bonaventure
(NY): The Franciscan Institute, 2008, p. 531-540. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.
4
4. Item, si potest aliter res
producere quam produxit, ergo similiter
potest movere corpora caelestia aliter
quam modo movet, et per consequens
ipsa inter se potest aliter coniungere
quam modo coniungantur. Ergo
geometria, quae est de coniunctione
quam modo habent, non est scientia
necessaria, quia est de his quae posunt
aliter se habere, et per consequens de
contingentibus.
4. Ainda, se pode produzir a coisa
diversamente do que produziu, então pode
semelhantemente mover os corpos
celestes diversamente do que move agora,
e, consequentemente, pode uni-los entre si
diversamente de como estão unidos agora.
Portanto, a geometria, que trata da união
que têm agora, não é ciência necessária,
porque trata daquilo que pode se dar
diversamente, e, consequentemente, trata
de contingentes.
5. Item, sequitur quod scientia
naturalis, quae est de rebus corporalibus
secundum motus corporum caelestium,
nulla esset, quia tunc non posset sciri
ista generari secundum influentiam talis
partis caeli nec in tali situ, et alia alibi ;
nec per consequens magis generaretur
in una parte caeli ignis quam aliud
elementum, quia talia diversimodi
generari non contingit per motum
varium corporum caelestium et
diversam coniunctionem eorum, quae
omnia secundum se possunt aliter se
habere.
5. Ainda, se segue que a ciência
natural, que trata das coisas corporais
segundo o movimento dos corpos
celestes, não seria nada, porque então não
seria possível saber que estes gerem
segundo a influência de tal parte do céu
nem em tal lugar, e outros em outro; nem,
consequentemente, o fogo seria gerado
em uma parte do céu antes do que outro
elemento, porque não se dá que tais sejam
gerados de modos diversos através do
movimento dos vários corpos celestes e da
diferente conjunção daqueles que, por si,
podem todos se dar diversamente.
6. Contra : aliqua aliter fieri
quam
fiant
non
includit
contradictionem,
ut
patet
de
contingentibus. Sed Deus potest
quidquid non includit contradictionem ;
ergo etc.
6. Contra: que alguns se deem
diversamente de como são dados não
implica contradição, como é patente sobre
os contingentes. Ora, Deus pode tudo o
que não inclui contradição; portanto, etc.
[I. – Distinctiones praeviae]
[I. – Distinções prévias]
7. Responsio. Dico quod in
quocumque agente libere quod potest
agere secundum legem vel aliquam
regulam rectam et non agit secundum
illam, in omni tali est distinguendum de
potentia ordinata sive praefixa lege, et
de potentia absoluta. Quia enim habet
7. Resposta. Digo que em qualquer
agente livre que pode agir segundo a lei ou
alguma regra reta e não age segundo ela,
em qualquer que tal deve-se distinguir a
potência ordenada, ou prefixada pela lei, e
a potência absoluta. Com efeito, porque
tem aquela regra, pode agir segundo ela;
5
illam regulam, potest agere secundum
illam ; quia vero non necessario agit
secundum illam sed libere, ideo potest
agere alio modo. Unde iuristae
distinguunt ‘de iure’ et ‘de facto’, et sic
potest distingui de omni potestate
iudicis vel iudicantis, ut Papae vel
principum.
no
entanto,
porque
não
age
necessariamente segundo ela, mas
livremente, pode, assim, agir de outro
modo. Donde os juristas distinguem “por
direito” e “de fato”, e é possível distinguir
assim sobre todo o poder (potestate) do
juiz e do que julga, como o do Papa ou o
dos príncipes.
8. Secundum verbum est istud,
quod si regula ista non sit in potestate
agentis, tunc potentia absoluta non est
ordinata. Talis enim tenetur conformiter
agere illi legi et secundum illam
regulam, et ideo si non agit secundum
illam, agit inordinate. Unde omnes qui
subsunt legi divinae qui non agunt
secundum illam, vel si agunt contra
illam, inordinati sunt et inordinate
agunt. Si autem aliquis non subest legi,
sed e converso lex subest instituenti,
quia potest aliter vel aliam legem
ordinare, talis non potest inordinate
agere, nec ibi potentia ordinata excedit
potentiam absolutam, licet excedat
istam
legem
sic
ordinatam.
8. O segundo a se dizer é: que se
esta regra não estiver em poder do agente,
então a potência absoluta não é ordenada.
Com efeito, tal tem de agir em
conformidade com aquela lei e segundo
aquela regra, e, por isso, se não age
segundo ela, age desordenadamente.
Donde todos que estão sob a lei divina que
não agem segundo ela, ou se agem contra
ela, estão desordenados e agem
desordenadamente. Ora, se alguém não
está sob a lei, mas, pelo contrário, a lei
está sob aquele que institui, porque pode
ordenar diversamente ou outra lei, tal não
pode agir desordenadamente, nem ali a
potência ordenada excede a potência
absoluta, embora exceda esta lei assim
ordenada.
9. Ad propositum de Deo, dico
quod leges vel regulae practicae sive
universales propositiones statutae sunt a
sapientia divina, credo tamen magis
quod a voluntate divina, quia non
invenitur in tali lege vel propositione
practicae necessitas ex terminis, ut in
hac ‘omnis iustus salvandus et omnis
malus damnandus’ : sicut hic est
necessitas ‘omne totum est maius sua
parte’, ubi unus terminus, scilicet
subiectum, includit causam praedicati,
sed in aliis non. Iustus enim non causat
sibi salutem, sed voluntas divina
9. Quanto ao que se propõe sobre
Deus, digo que as leis ou regras práticas
ou as proposições universais são
estabelecidas desde a sabedoria divina, no
entanto, creio que antes desde a vontade
divina, porque em tal lei ou proposição
prática não há necessidade a partir dos
termos, como nesta: “todo justo há de ser
salvo e todo mau há de ser condenado”,
assim como há necessidade aqui:
“qualquer todo é maior que sua parte”, em
que um termo, a saber, o sujeito, inclui a
causa do predicado. Ora, nos outros não
[há]. Com efeito, o justo não causa a
6
acceptat
utrumque,
quod
est
indifferentia in terminis. Et sic voluntas
facit hoc principium vel legem esse
practicam, et istae leges ordinant
operabilia secundum omnes modos
agendi debitos. Deus autem potest agere
omni modo qui non includit
contradictionem. Cum igitur multi alii
modi non includant contradictionem,
potest agere aliter quam de potentia
ordinata.
salvação para si, mas a vontade divina
aceita ambos1, visto que há indiferença
nos termos. E assim a vontade faz com
que esse princípio ou lei seja prática, e
estas leis ordenam os operáveis segundo
todos os modos de agir devidos. Ora, Deus
pode agir de todo modo que não inclui
contradição. Portanto, visto que muitos
outros modos não incluam contradição,
pode agir diversamente do que pela
potência ordenada.
10. Secundo, quia istae leges
subsunt voluntati divinae – eo quod
nulla est lex iusta nisi quia voluntas
divina acceptat, non autem e converso –
, voluntas autem potest contingenter
quodcumque velle vel nolle, ideo potest
statuere aliam legem, ut quod omnis
anima rationalis salvabitur vel aliquid
huiusmodi. Ergo potentia eius absoluta
non
excedit
ordinatam,
quia
quaecumque lex a Deo instituatur aliter
vel alia quam illa quae nunc est, esset
ordinata.
10. Segundo, uma vez que estas
leis estão sob a vontade divina – visto que
nenhuma lei é justa a não ser porque a
vontade divina a aceita, mas não o inverso
–,
a
vontade
divina
pode
contingentemente tudo que quer ou não
quer, por isso pode estabelecer outra lei,
como que toda alma racional será salva ou
algo desse modo. Portanto, sua potência
absoluta não excede a ordenada, porque
qualquer lei que seja instituída por Deus
diversamente ou outra daquela que há
agora, seria ordenada.
[II. – Responsio
ad primam quaestionem]
[II. Resposta
para a primeira questão]
11. Ad quaestionem ergo
dicendum quod est distinguendum
secundum
compositionem
et
divisionem ; similiter est distinguendum
de ordine sive de lege vel de potestate
ordinata.
11. Portanto, deve-se dizer para a
questão que se deve distinguir segundo a
composição e a divisão; de modo
semelhante, deve-se distinguir a respeito
da ordem ou da lei ou do poder ordenado.
Et patet realis solutio ex dictis,
unde haec est possibilis : ‘Deus aliter res
potuit producere quam secundum
ordinem dispositum’. [Pro Haec est
falsa… M habet explicando : ‘… vel
E a solução real é patente do que
foi dito, donde esta é possível: “Deus pôde
produzir as coisas diversamente do que
segundo a ordem disposta”. [Em vez de
“Esta é falsa...”, M traz a explicação: “...
Segundo a tradução americana (Duns Escoto, 2008, p. 533, nota 6), o “justo e o injusto”. Parece, porém,
que o correto seja: “... ambos [os termos, isto é, ‘justo’ e ‘salvação’].”. N. do T.
1
7
quam disposuit’ est distinguenda
secundum
compositionem
et
divisionem. In sensu compositionis est
falsa et impossibilis, quia non stant
simul quod aliter agat quam disposuit
stante illa dispositione et ordinatione. In
sensu diviso est vera, quia Deus facit
hoc modo et tamen potest opposito
modo. Quia sicut Deus disposuit sic
esse faciendum secundum hunc
ordinem, ita posset aliter disponere et
tunc esset aliter faciendum. Unde…
Lectio tamen brevior in VTR
praeferenda videtur : cf. Ord. I, d. 44,
Appendix A (VI, 445).]. Haec est falsa
in sensu compositionis, sed vera in
sensu divisionis : ‘Deus habet
potentiam faciendi hoc modo seorsum’
(scilicet solem moveri contra orientem)
– haec est una propositio categorica ;
‘non disposuit facere hoc modo’ – haec
est alia propositio ; et ambae sunt verae.
ou que dispôs” deve ser distinguida
segundo a composição e a divisão. No
sentido da composição é falsa e
impossível,
porque
não
estão
simultaneamente que aja diversamente do
que dispôs permanecendo aquela
disposição e ordenação. No sentido da
divisão é verdadeira, porque Deus faz isto
agora e, no entanto, pode agora o oposto.
Porque, assim como Deus dispôs que seja
assim ao fazer segundo essa ordem,
poderia dispor diversamente e então teria
feito diversamente. Donde...”. No entanto,
vê-se que a lição mais breve seja
preferida em VTR: cf. Ord. I, d. 44,
Apêndice A (VI, 445).]. Esta é falsa no
sentido da composição, mas verdadeira no
sentido da divisão: “Deus tem a potência
de fazer isto à parte do que é agora” (a
saber, que o sol se mova contra o oriente)
– esta é uma proposição categórica; “não
dispôs fazer deste modo” – esta é outra
proposição, e ambas são verdadeiras.
12. Ultra distinguendum est de
potentia ordinata sive de ordine, quia
ordo potest intelligi vel secundum
regulas sive propositiones universales,
vel particulares. Universalis est quod
omnis homicida occidatur. Ordinatio
autem particularis est ordo iudicii et
exsecutionis, ut de hoc homicida in
particulari ordinando quod occidatur, et
hoc iudicium non est nisi conclusio
legis.
12. Além disso deve-se distinguir
sobre a potência ordenada, ou seja, sobre
a ordem, porque a ordem pode ser
entendida ou segundo as regras, ou seja,
as proposições universais, ou as
particulares. É universal que todo
homicida seja morto. No entanto, é
ordenação particular a ordem do juízo e da
execução, como ao ordenar sobre este
homicida em particular que seja morto, e
este juízo não é senão a conclusão da lei.
13. Ad propositum : Deus posuit
legem universalem et ordinem quod
omnis malus damnabitur ; ordo
particularis, qui dicitum iudicium, est
quod iste, id est Iudas, damnabitur. Dico
quod Deus potentia absoluta potest
13. Quanto ao proposto: Deus pôs
a lei universal e a ordem de que todo mau
será condenado; a ordem particular, que é
chamada de juízo, é que este, isto é, Judas,
será condenado. Digo que Deus, pela
potência absoluta, pode salvar a Judas. No
8
salvare Iudam. Non tamen simpliciter
potest eum salvare potentia ordinata et
universali. Potest tamen eum salvare
ordine particulari, si Iudas esset et non
esset damnatus, quia possit eum
praevenire per gratiam, sicut et Petrum
post peccatum. Potest igitur contra
universalem ordinem potentia absoluta,
sed tunc non esset inordinatio, quia
statueret istam legem ordinatam esse.
Unde iste, praescitus exsistens, licet
damnabitur, tamen potest potentia
absoluta et potentia ordinata beatificari ;
non tamen Iudas potentia ordinata.
entanto, não pode simplesmente salvá-lo
pela potência ordenada e universal. Pode,
porém, salvá-lo pela ordem particular, se
Judas fosse e não fosse condenado, porque
poderia preveni-lo pela graça, assim como
também a Pedro depois do pecado.
Portanto, pode contra a ordem universal
pela potência absoluta, mas então não
haveria desordem, porque estabeleceria
que essa lei fosse ordenada. Donde
embora este exista como quem se prevê
que há de ser condenado, pode, no
entanto, pela potência absoluta e pela
potência ordenada, ser beatificado; no
entanto, não Judas pela potência
ordenada.
[III. – Ad argumenta
principalia primae quaestionis]
[III. – Para os argumentos
principais da primeira questão]
14. Ad argumenta. Ad primum
in oppositum dico quod non sequitur
quod modo vel alias ageret inordinate,
quia iste ordo secundum quem modo
producit res non est omnis ordo sibi
possibilis nec necessarius. Ergo sic
arguendo ‘potest producere res aliter vel
secundum alium ordinem quam modo
producit, ergo inordinate potest
producere, vel non secundum ordinem
vel contra omnem ordinem’ non
sequitur, sed est fallacia consequentis
ab inferiori ad superius cum nota
alietatis, et ita a destructione
antecedentis
ad
destructionem
consequentis, quia alietas includit
negationem.
14. Para os argumentos. Ao
primeiro em oposto [supra, n. 1] digo que
não se segue que agora ou em outro
[instante] tenha agido desordenadamente,
porque esta ordem, segundo o modo pelo
qual produz as coisas, não é toda a ordem
possível para ele, nem necessária.
Portanto, argumentando assim: “pode
produzir as coisas diversamente, ou
segundo outra ordem do que aquela que
produz agora, portanto, pode produzir
desordenadamente, ou não segundo a
ordem, ou contra toda ordem” não se
segue, mas é a falácia do consequente
desde o inferior para o superior com a
marca da alteridade, e assim desde a
refutação do antecedente até a refutação
do consequente, uma vez que a alteridade
inclui a negação.
15. Ad secundum dico quod
potentia et scientia coaequantur
quantum ad obiecta, quia omne quod
15. Ao segundo [n. 2] digo que a
potência e a ciência são igualadas quanto
aos objetos, porque tudo que pode ser feito
9
potest fieri potest sciri. Sed non oportet
quod coaequantur quantum ad omnia et
omni modo. Non oportet enim quod
cuiuscumque sit unum actualiter, et
aliud, quia scientia cuiuscumque est
eius actualiter, ut actu est, potentia
autem es obiecti possibilis quod non est
actualiter.
pode ser sabido. Mas não é preciso que
sejam igualadas quanto a tudo e de todo
modo. Com efeito, não é preciso que de
seja lá o que for haja atualmente uma e
outra, porque a ciência de seja lá o que for
é dele atualmente, como é em ato, ora, a
potência é do objeto possível que não é
atualmente.
16. Ad aliud dico quod in
aeternitate possunt fieri opposita
divisim, non coniunctim, et hoc in
eodem instanti. Patet supra in materia de
futuris
contingentibus.
16. Ao outro [n. 3] digo que na
eternidade podem ser feitos os opostos
separadamente, mas não conjuntamente, e
isto no mesmo instante. É patente acima
quanto à matéria sobre os futuros
contingentes [d. 39-40, n. 39-43].
17. Ad aliud concedo quod non
est scientia simpliciter necessaria, sed ut
in pluribus tantum. Permittit enim res ut
in pluribus operari secundum motus
suos et secundum ordinem ab eo
dispositum.
Aliquando
tamen,
praetermittendo illum ordinem, agit
secundum alium ordinem : patet de
statione solis tempore Iosue et de tribus
pueris in igne et de eclipsi solis in morte
Christi, quod fuit contra principia
geometriae. Sic ergo modo respondeo,
sicut heri in quadam quaestione, quod
non est scientia de contingentibus nisi
de facto ut in pluribus. Sed quod sint sic
apta nata ad tales motus, hoc est
necessarium
et
sic
scitum
demonstrative. Sed quod modo sint
aliter mota, ut tempore Iosue vel
Ezechiae, vel sicut legitur in vitis
patrum de sole, hoc est contingenter
factum et ideo haec non possunt sciri
demonstrative. Sed si habent tales
motus quales deprehensi sunt sol et luna
habere prius, tunc sequitur de
necessitate scientia. Unde in eodem
17. Ao outro [n. 4] concedo que
não há ciência absolutamente necessária,
mas unicamente como em muitos. Com
efeito, permite que as coisas operem como
em muitos segundo seus movimentos e
segundo a ordem disposta por ele. No
entanto, às vezes, negligenciando aquela
ordem, age segundo outra ordem: é
patente sobre a parada do sol no tempo de
Josué e dos três jovens no fogo e sobre o
eclipse do sol na morte do Cristo, que foi
contra os princípios da geometria. Assim,
portanto, respondo agora, assim como
ontem em certa questão [in d. 42, n. 32],
que não há ciência sobre os contingentes a
não ser de fato como em muitos. Mas que
estejam de tal modo aptos naturalmente
para tal movimento é necessário, e, assim,
sabido demonstrativamente. Mas o modo
pelo qual foram movidos diversamente,
como no tempo de Josué ou de Ezequias,
ou assim como se lê nas vidas dos pais
sobre o sol, é algo feito contingentemente,
e por isso estes não podem ser sabidos
demonstrativamente. Mas se o sol e a lua
têm tais movimentos que antes se
10
2
aspectu se habent sol et luna modo ac si
non fuisset ibi aliquis novus motus vel
nova coniunctio temporibus praedictis.
Quod patet quia sicut contra movebatur
unum corpus, ita totum caelum vel
corpus motum subito revertebatur ad
locum
suum
ad
habendum
uniformitatem.
apreendeu que tivessem, então se segue a
necessidade da ciência. Donde o sol e a
lua se encontrarem agora sob o mesmo
aspecto, como se não tivesse havido ali
algum movimento novo ou conjunção
nova no tempo já mencionado. O que é
patente, porque, assim como um corpo foi
movido contrariamente, assim todo o céu
ou corpo movido subitamente voltou a seu
lugar para ganhar uniformidade.
18. Ad ultimum dico quod
naturalis non dicit plus de igne in tali
parte caeli generari quam in alia, sed
dicit quod approprinquante sole plus
generatur de igne cui magis
appropinquat.
18. Ao último [n. 8] digo que o
natural não diz que o fogo seja gerado
antes em tal parte do céu que em outra,
mas diz que o sol se aproximando, mais
fogo é gerado para aquele de que mais se
aproxima.
[Quaestio 2
[Questão 2
Utrum Deus possit
facere meliora quam fecit]
Se Deus pode
fazer melhores do que fez]
19. Utrum Deus possit facere
meliora quam fecit.
19. Se Deus pode fazer melhores
do que fez.
Videtur quod non : Augustinus,
83 Quaestionem, q. 50, probat Deum
Patrem genuisse Filum sibi aequalem,
quia si non, aut quia non potuit, et sic
fuit debilis et infirmus, aut quia noluit et
sic invidus. Eodem modo arguo in
proposito, et patet.
Vê-se que não: Agostinho, nas 83
Questões, q. 502, prova que Deus Pai
tenha gerado o Filho igual a si, porque se
não, ou porque não pôde, e assim foi débil
e fraco, ou porque não quis, e, assim,
invejoso. Do mesmo modo argumento
quanto ao proposto, e é patente.
20. Item, Augustinus, III De
libero arbitrio : Quidquid tibi recta
ractione occurrat melius, hoc Deus
fecisse scias’, etc.
20. Ainda, Agostinho, Sobre o
livre arbítrio, livro III3: “Saibas que tudo
o que, pela reta razão, ocorrer a ti de
melhor, isto foi feito por Deus”, etc.
21. Contra : Augustinus, XI
Super Genesim, et ponitur in littera :
Deus
potuit
fecisse
hominem
21. Contra: Agostinho, Sobre o
Gênesis, livro XI4, e é posto literalmente:
Deus pôde ter feito um homem sem
Agostinho, 83 Quaest. q. 50 (CCL 44ª, 77; PL 40, 31-2).
Agostinho, De lib. arb. III, c. 5, n. 50 (CCSL 29, 283; PL 32, 1277).
4
Agostinho, De Genesi ad litt. libri XII, XI, c. 7, n. 9 (CSEL 28.1, 340; PL 34, 433; Pedro Lombardo, Sent.
I, d. 44, c. 1, n. 3 (SB IV, 304).
3
11
impeccabilem, qui numquam pecasset,
et hoc melius esset quam quod modo in
eo est.
pecado, que jamais pecasse, e isto teria
sido melhor do que agora se dá nele.
[I. – Responsio
Scoti ad secundam quaestionem]
[I. – Resposta de
Escoto para a segunda questão]
22. Respondeo ad quaestionem
quod Deus potuit fecisse meliora quam
fecit et potest modo facere secundum
omnem bonitatem in re, sive
essentialem sive accidentalem, et
accidentalem sive extensivam sive
intensivam.
22. Respondo para a questão que
Deus pôde ter feito melhores do que fez e
pode agora fazer segundo toda bondade
quanto a coisa, seja essencial, seja
acidental, e, acidental, seja extensiva, seja
intensiva.
23. Et primo probo quod potuit
ea
fecisse
meliore
perfectione
accidentali intensive. Cum enim omnes
animae sunt eiusdem speciei, aut ergo
sunt aequales secundum perfectionem,
aut non. Si sunt aequales, ergo aequalis
perfectionis capaces, sed non omnes
aequalis capacitatis aequaliter habent
perfectionem aequalem accidentalem,
quia non omnes animae habent
aequalem beatitudinem essentialem,
quia nec habent aequalia merita quibus
respondet beatitudo, etiam si fuerint
aequales in capacitate naturali. Ergo
non perficitur tota capacitas naturalis
cuiuslibet animae tanta perfectione
accidentali quantam posset recipere.
23. E, primeiro, provo que pôde
fazê-la melhor pela perfeição acidental
intensiva. Com efeito, visto que todas
almas são da mesma espécie, então, ou são
iguais segundo a perfeição, ou não. Se são
iguais, então capazes de igual perfeição.
Ora, nem todas de igual capacidade têm
igual perfeição acidental, uma vez que
nem todas as almas têm igual bemaventurança essencial, uma vez que não
têm méritos iguais pelos quais responde a
bem aventurança, ainda que sejam iguais
na capacidade natural. Portanto, toda
capacidade natural daquela alma não é
aperfeiçoada por tanta perfeição acidental
quanto
possa
receber.
24. Similiter, anima Christi
habet beatitudinem maiorem quam
aliquis angelus, et tamen capacitas
naturalis cuiuscumque angeli est maior
capacitate
cuiuscumque
animae
naturali. Nullus ergo angelus habet
tantam perfectionem quantae est capax.
24. De modo semelhante, a alma
do Cristo tem bem-aventurança maior que
a de algum anjo, e, no entanto, a
capacidade natural de qualquer anjo é uma
capacidade maior que a de qualquer alma
natural. Portanto, nenhum anjo tem tanta
perfeição quanto é capaz.
25. Dices quod non sunt
aequales quia non sunt eiusdem speciei
25. Dizes que o anjo e a alma não
são iguais porque não são da mesma
12
angelus et anima sed anima Christi est
perfectior in gloria quolibet angelo.
espécie. Ora, a alma de Cristo é mais
perfeita na glória que qualquer anjo.
Dico quod ex hoc sequitur
propositum. Angelus est nobilior
secundum speciem quam anima. Sed in
speciebus ordinatis, si una est nobilior
alia essentialiter, quodlibet individuum
unius speciei est perfectius et nobilius
quocumque individuo alteruis speciei
ignobilioris ; aliter species tantum
haberent ordinem accidentalem. Ergo
quilibet angelus est perfectior et
nobilior in natura quaecumque anima,
etiam anima Christi, et per consequens
habet maiorem capacitatem naturalem
ad maiorem perfectionem habendam
quam quaecumque anima. Sed anima
Christi, per te, plus perficitur gloria
quam aliquis angelus. Ergo nullus
angelus habet tantam perfectionem
accidentalem quantae est capax.
Digo que disso se segue o
proposto. O anjo é mais nobre segundo a
espécie que a alma. Ora, nas espécies
ordenadas, se uma é mais nobre que outra
essencialmente, qualquer indivíduo de
uma espécie é mais perfeito e nobre que
qualquer indivíduo de outra espécie mais
ignóbil; outras espécies unicamente terão
a ordem acidental. Portanto, qualquer anjo
é mais perfeito e nobre na natureza que
qualquer alma, mesmo a alma de Cristo, e,
consequentemente, tem maior capacidade
natural para vir a ter uma perfeição maior
que qualquer alma. Ora, a alma de Cristo,
para ti, é a mais aperfeiçoada para a glória
que a de qualquer anjo. Portanto, nenhum
anjo tem tanta perfeição acidental quanto
é
capaz.
26.
Ex
his
spiritualibus
concluditur propositum de corporalibus.
Nam si illa quae immediate ordinantur
ad Deum, ut ad finem, possunt
naturaliter magis perfici perfectione
finis quam perficiantur, multo magis est
hoc verum de corporalibus (de quibus
est sibi minor cura), quod maioris
perfectionis accidentalis sunt capaces
quam
modo
habeant.
26. Destes espirituais conclui-se o
proposto sobre os corporais. Pois, se
aqueles que estão imediatamente
ordenados para Deus como para o fim
podem
ser
naturalmente
mais
aperfeiçoados pela perfeição do fim do
que são aperfeiçoados, isso é muito mais
verdadeiro sobre os corporais (sobre os
quais há para ele menor cuidado) que são
capazes de uma maior perfeição acidental
do que a que têm agora.
27. Secundo digo quod Deus
potest
facere
aliqua
meliora
accidentaliter et extensive quam facit –
dando plures perfectiones quam dedit.
27. Segundo, digo que Deus pode
fazer algum melhores acidentalmente e
extensivamente do que faz – dando várias
perfeições além das dadas.
Patet in spiritualibus. Beati enim
possunt plura cognoscere quam
cognoscant : non enim cognoscunt
É patente nos espirituais. Com
efeito, os bem-aventurados podem
conhecer mais do que conhecem: com
13
5
infinita in Verbo, et Verbum potest
omnia cognoscere simul et beatis
revelare omnia si velit, licet non simul.
Et si beati hoc possunt, multo magis
viatores.
efeito, não conhecem os infinitos no
Verbo, e o Verbo pode conhecer tudo
simultaneamente e revelar tudo aos bemaventurados se quiser, embora não
simultaneamente. E se os bemaventurados podem isso, muito mais os
peregrinos.
28. Hoc etiam patet in
corporibus caelestibus. Licet enim non
recipiant peregrinas impressiones,
scilicet corruptivas, recipiunt tamen
multas peregrinas passiones et
accidentales eis, ut lumen, splendorem
et huiusmodi. Unde si medium esset ita
magnum quod posset proicere umbram
suam ad stellas, tota sphaera stellarum
fixarum posset eclipsari et obscurari.
Lumen ergo est perfectio accidentalis
eis. Sed omne corpus diaphanum
luminosum est perfectius ipso nonluminoso. Ergo plures perfectiones
potest Deus dare quas non dedit et
plures quam dedit. Et ideo hoc
inconveniens de lumine non potuit
vitare Averroes, qui solum motum
concessit ex alio perpetuari et non esse
ex se necessarium. Lumen enim
perpetuatur ex alio et fit ex alio, ita
necessario et perpetuo sicut motus. Aer
enim non factus est lucidus, sed fit
lucidus, secudum Augustinum, VIII
Super Genesim.
28. Isso também é patente nos
corpos celestes. Com efeito, embora não
recebam impressões passageiras, isto é,
corruptivas, recebem, porém, muitas
afecções que para eles são passageiras e
acidentais, como a luz, o esplendor e que
tais. Donde, se o intermediário fosse tão
grande que pudesse projetar sua sombra
para as estrelas, toda a esfera das estrelas
fixas poderia ser eclipsada e obscurecida.
Portanto, a luz é uma perfeição acidental
delas. Ora, todo corpo diáfano luminoso é
mais perfeito que aquele não luminoso.
Portanto, Deus pode dar várias perfeições
que não deu e várias que deu. E, por isso,
Averróis, que concedeu que unicamente o
movimento se perpetue a partir de outro e
que não seja necessário por si, não pôde
evitar esse inconveniente sobre a luz. Com
efeito a luz se perpetua a partir de outro e
se produz a partir de outro, tão necessária
e perpetuamente como o movimento.
Com efeito, o ar não foi feito lúcido, mas
se faz lúcido, segundo Agostinho, Sobre o
Gênesis, livro VIII5.
29. Quantum vero ad secundum
principale, scilicet quantum ad
bonitatem et perfectionem essentialem,
similiter dico quod Deus potest facere
meliora quam fecit intensive et
substantialiter, si substantia suscipiat
magis et minus, de quo nihil est hic
29. De fato, quanto ao segundo
principal [supra, n. 22], a saber, quanto à
bondade e à perfeição essencial, digo de
modo semelhante que Deus pode fazer
melhores do que fez intensivamente e
substancialmente, se a substância receber
o mais e o menos, sobre o qual nada deve
Agostinho, De Genesi ad litt. Libri XII, VIII, c. 12, n. 26 (CSEL 28.1, 250; PL 34, 383).
14
dicendum, quia difficilius proposito
principali.
ser dito aqui, porque mais difícil que o
principalmente proposto.
[II. – Ad argumenta
principalia secundae quaestionis]
[II. – Aos argumentos
principais da segunda questão]
30. Ad primum in oppositum,
dico quod non est invidia in Deo si non
fecit omnia ita bona sicut potest. Invidia
enim est in subtrahendo ab aliquo
bonum quod est sibi debitum. Deus
autem non est debitor alicuius creaturae
quantum ad aliquam perfectionem in eo,
quia mere liberaliter omnia facit. Si
tamen Deus Pater non produxisset
Filium sibi aequalem, fuisset invidus,
quia debita est natura in Filio sicut in
Patre, et per consequens omnis condicio
quae sequitur naturam, ut aequalitas et
huiusmodi.
30. Ao primeiro em oposto [n. 19],
digo que não há inveja em Deus se não fez
tudo tão bom como pode. Com efeito, há
inveja em subtrair de algo o bem que a ele
é devido. Ora, Deus não é devedor de
alguma criatura quanto a alguma
perfeição nele, porque faz tudo de modo
puramente liberal. No entanto, se Deus Pai
não tivesse produzido o Filho igual a si,
teria sido invejoso, porque a natureza no
Filho é devida assim como no Pai, e,
consequentemente, toda condição que
segue a natureza, como a igualdade e que
tais.
31. Ad aliud dico quod ‘quidquid
recta ratione tibi melius occurerit, hoc
scias Deum fecisse’ verum est, quia
nihil est melius simpliciter recta ratione
quam in quantum volitum a Deo ; et
ideo alia ‘quae, si fierent, essent
meliora’ non sunt modo meliora
entibus. Unde auctoritas nihil plus vult
dicere nisi quod quidquid Deus fecit,
hoc scias cum recta ratione fecisse.
Omnia enim quaecumque voluit, fecit,
in Psalmis [113, 11], cuius voluntas sit
benedicta.
31. Ao outro [n. 20] digo que (a
afirmação) “saibas que tudo o que, pela
reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi
feito por Deus” é verdadeira, porque nada
é absolutamente melhor pela reta razão do
que enquanto querido por Deus; e, por
isso, outros “que, se forem feitos, seriam
melhores” não são agora melhores que os
entes. Donde a autoridade não ter querido
dizer nada além de que tudo o que Deus
fez, saibas que o fez com a reta razão.
Com efeito, tudo aquilo que quis, fez – no
Salmo [113, 11] – aquele cuja vontade
seja bendita.
15
JOÃO DUNS ESCOTO
Ordinatio
Livro I
Distinção 44*
Quaestio Unica:
Questão Única:
[UTRUM DEUS POSSIT ALITER
[SE DEUS PODERIA FAZER AS
FACERE RES QUAM AB IPSO ORDINATUM
COISAS DIVERSAMENTE DE COMO FOI
EST EAS FIERI]
ORDENADO POR ELE QUE SEJAM FEITAS]
1.
Circa
distinctionem
quadragesimam quartam – ubi Magister
tractat “utrum Deus potuit res melius
fecisse quam fecit” – quaero istam
quaestionem: utrum Deus possit aliter
facere res quam ab ipso ordinatum est
eas fieri.
1.
Acerca
da
distinção
quadragésima quarta – em que o
Mestre8 trata “se Deus pôde ter feito as
coisas melhor do que fez” – pergunto o
seguinte: se Deus poderia fazer as
coisas diversamente de como foi
ordenado por ele que sejam feitas.
Et videtur quod non:
*
E vê-se que não:
Quia tunc posset facere res
inordinate. Consequens est falsum, ergo
et
antecedens.
Porque então poderia fazer as
coisas
desordenadamente.
A
conseqüência é falsa, portanto, também
o antecedente.
2. Contra: res aliter fieri quam
factae
sunt,
non
includit
6
contradictionem; nec est necessarium;
igitur etc.
2. Contra: não há contradição em
fazer as coisas diferentemente de como
estão feitas; nem é necessário; portanto
etc.
3. Respondeo: in omni agente
per intellectum et voluntatem, potente
conformiter agere legi rectae et tamen
non necessario conformiter agere legi
rectae, et tunc secundum potentiam
ordinatam (ordinata enim est in
quantum est principum exsequendi
aliqua conformiter legi rectae), et potest
3. Respondo: em todo aquele que
age pelo intelecto e pela vontade, que
pode agir em conformidade com a lei
reta e, no entanto, não tem de agir
necessariamente em conformidade com
a lei reta, e, assim, segundo a potência
ordenada (com efeito, é ordenada
enquanto é princípio do executar algo
JOÃO DUNS ESCOTO, Ordinatio : Opera Omnia, Vol. VI. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis,
1963, p. 363-369.445. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.
6
Falta: o universo.
8
A saber, Pedro Lombardo.
16
9
agere praeter illam legem vel contra
eam, et in hoc est potentia absoluta,
excedens potentiam ordinatam. Et ideo
non tantum in Deo, sed in omni agente
libere – qui potest agere secundum
dictamen legis rectae et praeter talem
legem vel contra eam - est distinguere
inter potentiam ordinatam et absolutam;
ideo dicunt iuristae quod aliquis hoc
potest facere de facto, hoc est de
potentia sua absoluta – vel de iure, hoc
est de potentia ordinata secundum iura.
em conformidade com a lei reta), tanto
pode agir além daquela lei ou
contrariamente a ela, como nisto
consiste a potência absoluta, que excede
a potência ordenada. E, por isso, não
somente em Deus, mas em todo agente
livre – que pode agir segundo o ditame
da lei reta e além de tal lei ou contra ela
– deve-se distinguir entre a potência
ordenada e a absoluta; por isso dizem os
juristas que alguém pode fazer algo de
fato, isto é, por sua potência absoluta –
ou por direito, isto é, por sua potência
ordenada segundo o direito9.
4. Quando autem illa lex recta –
secundum quam ordinate agendum est –
non est in potestate agentis, tunc
potentia eius absoluta non potest
excedere potentiam eius ordinatam
circa obiecta aliqua, nisi circa illa agat
inordinate; necessarium enim est illam
legem stare – comparando ad tale agens
– et tamen actionem “non conformatam
illi legi rectae” non esse rectam neque
ordinatam, quia tale agens tenetur agere
secundum illam regulam cui subest.
Unde omnes qui subsunt legi divinae, si
non agunt secundum illam, inordinate
agunt.
4. Mas quando aquela lei reta –
segundo a qual se deve agir
ordenadamente – não está em poder do
agente, então sua potência absoluta não
pode exceder sua potência ordenada
acerca de algum objeto, a não ser que
aja desordenadamente acerca dele; com
efeito, é necessário que esta lei
permaneça – em comparação com tal
agente – e, contudo, que a ação “não
conformada àquela lei reta” não seja
reta nem ordenada, porque tal agente
deveria agir segundo a regra à qual está
submetido. Donde todos que estão sob a
lei divina, se não agem segundo ela,
agem desordenadamente.
5. Sed quando in potestate
agentis est lex et rectitudo legis, ita
quod non est recta nisi quia statu, tunc
potest aliter agens ex libertate sua
ordinare quam lex illa recta dictet; et
tamen cum rectam secundum quam agat
ordinate. Nec tunc potentia sua absoluta
simpliciter
excedit
potentiam
ordinatam,
quia
esset
ordinata
5. Mas quando está no poder do
agente a lei e a retidão da lei, de modo
que não é reta a não ser porque pelo
estabelecido, então o agente pode, a
partir de sua liberdade, ordenar
diferentemente o que a lei reta ditar; e,
contudo, será reta segundo aja
ordenadamente quanto a ela. E, então,
sua potência absoluta não excede
Isto é, segundo as normas: iura. (N. do T.).
17
secundum aliam legem sicut secundum
priorem; tamen excedit potentiam
ordinatam praecise secundum priorem
legem, contra quam vel praeter quam
facit. Ita posset exemplificari de
principe et subditis, et lege positiva.
absolutamente a potência ordenada,
porque seria ordenada segundo outra lei
assim como segundo a anterior,
contudo, excede a potência ordenada
precisamente segundo a lei anterior,
contra a qual ou além da qual faz. Assim
poder-se-ia dar o exemplo do príncipe e
dos súditos, e da lei positiva.
6.
Ad
propositum
ergo
applicando, dico quod leges aliquae
generales, recte dictantes, praefixae
sunt a voluntate divina et non quidem ab
intellectu divino ut praecedit actum
voluntatis divinae, ut dictum est
distinctione 38 [Sequitur textus
interpolatus : quia non invenitur in illis
legibus necessitas ex terminis (ut quod
omnis peccator damnabitur), sed solum
ex voluntate divina acceptante, quae
operatur secundum huiusmodi leges
quas statuit ; vel sufficit ad propositum
dicere quod statuuntur a sapientia
divina]; sed quando intellectus offert
voluntati divinae talem legem, puta
quod “omnis glorificandus, prius est
gratificandus”, si placet voluntati suae –
quae libera est – est recta lex, et ita est
de
aliis
legibus.
6. Portanto, aplicando ao proposto,
digo que algumas leis gerais, que ditam
retamente, são preestabelecidas pela
vontade divina e, certamente, não pelo
intelecto divino que precede o ato da
vontade divina, como foi dito na
distinção 38 [Segue-se o texto
interpolado: porque não se encontra
naquelas leis a necessidade a partir dos
termos (como que todo pecador seja
condenado), mas unicamente da
vontade divina que a aceita, a qual opera
segundo tais leis que estabelece; ou
basta dizer para o proposto que são
estabelecidas desde a sabedoria
divina10]; mas quando o intelecto
oferece à vontade divina tal lei, como a
de que “tudo que há de ser glorificado
antes há de ser agraciado”, se agrada à
sua vontade – que é livre – é lei reta, e
assim sobre as outras leis.
7. Deus ergo, agere potens
secundum illas rectas leges ut praefixae
sunt ab eo, dicitur agere secundum
potentiam ordinatam; ut autem potest
multa agere quae non sunt secundum
illas leges iam praefixas, sed praeter
illas, dicitur eius potentia absoluta: quia
enim Deus quodlibet potest agere quod
non includit contradictionem, et omni
modo potest agere qui non includit
7. Deus, portanto, ao poder agir
segundo aquelas leis retas que são por
ele preestabelecidas, é dito agir segundo
a potência ordenada; mas o poder fazer
muitas ações que não estão de acordo
com aquelas leis já preestabelecidas,
mas, além delas, diz-se sua potência
absoluta: com efeito, porque Deus pode
agir segundo o que queira sem incorrer
em contradição, e pode agir de todo
10
Cf. DUNS ESCOTO, Rep. IA d. 44 n. 9.
18
contradictionem (et tales sunt multi
modi alii), ideo dicitur tunc agere
secundum
potentiam
absolutam.
modo que não inclui contradição (e há
muitos outros modos assim), diz-se, por
isso, que então age segundo a potência
absoluta.
8. Unde dico quod multa alia
potest agere ordinate; et multa alia
posse fieri ordinate, ab illis quae fiunt
conformiter illis legibus, non includit
contradictionem quando rectitudo
huiusmodi legis – secundum quam
dicitur quis recte et ordinate agere – est
in potestate ipsius agentis. Ideo sicut
potest aliter agere, ita potest aliam
legem rectam statuere, – quae si
statueretur a Deo, recta esset, quia nulla
lex est recta nisi quatenus a voluntate
divina acceptante est statuta; et tunc
potentia eius absoluta ad aliquid, non se
extendit ad aliud quam ad illud quod
ordinate fieret, si fieret: non quidem
fieret ordinate secundum istum
ordinem, sed fieret ordinate secundum
alium ordinem, quem ordinem ita posset
voluntas divina statuere sicut potest
agere.
8. Donde digo que pode fazer
muitas outras ações ordenadamente; e
que possa fazer muitas outras
ordenadamente, desde aqueles que são
feitos em conformidade com aquelas
leis, não inclui contradição quando a
retidão daquela lei – segundo a qual se
diz que alguém age reta e
ordenadamente – está em poder do
próprio agente. Por isso, assim como
pode agir diversamente, pode, então,
estabelecer outra lei reta – que se fosse
estabelecida por Deus, seria reta, porque
nenhuma lei é reta senão na medida que
ao ser aceita pela vontade divina é
estabelecida; e, então, sua potência
absoluta para algo, não se estende senão
para
aquilo
que
seria
feito
ordenadamente,
se
fosse
feito:
certamente,
não
seria
feito
ordenadamente segundo esta ordem,
mas seria feito ordenadamente segundo
outra ordem, ordem que a vontade
divina poderia estabelecer assim como
pode agir.
9. Advertendum etiam est quod
aliquid esse ordinatum et ordinate fieri,
hoc contingit dupliciter :
9. Também cumpre advertir que o
algo ser ordenado e o ser feito
ordenadamente se dá de dois modos:
Uno modo, ordine universali, quod pertinet ad legem communem
‘omnem finaliter peccatorem esse
damnandum’ (ut si rex statuat quod
omnis homicida moriatur). Secundo
modo, ordine particulari, - secundum
hoc iudicium, ad quod non pertinet lex
in universali, quia lex est de
De um modo, pela ordem
universal, - que pertence à lei comum:
‘todo pecador final há de ser
condenado’ (como se o rei estabelecesse
que todo homicida há de morrer). Do
segundo modo, pela ordem particular, segundo o juízo para o qual não cabe a
lei para o universal, porque a lei é sobre
19
universalibus causis ; de causa autem
particulari non est lex, sed iudicium
secundum legem, eius quod est contra
legem (ut quod iste homicida moriatur).
as causas universais; mas, sobre a causa
particular, não há lei, mas o juízo
segundo a lei sobre aquilo que é
contrário à lei (por exemplo, que este
homicida há de morrer).
10. Dico ergo quod Deus non
solum potest agere aliter quam
ordinatum est ordine particulari, sed
aliter quam ordinatum est ordine
universali – sive secundum leges
iustitiae – potest ordinate agere, quia
tam illa quae sunt praeter illum
ordinem, quam illa quae sunt contra
ordinem illum, possent a Deo ordinare
fieri
potentia
absoluta.
10. Digo, portanto, que Deus não
apenas pode agir diversamente do que
está ordenado pela ordem particular,
mas
pode
agir
ordenadamente
diversamente do que está ordenado pela
ordem universal – ou segundo as leis da
justiça –, porque tanto aqueles que são
além desta ordem, quanto aqueles que
são contrários a esta ordem, podem ser
ordenados por Deus a serem feitos por
sua potência absoluta.
[Sequitur textus interpolatus,
vide appendix A: Item, sciendum quod
haec distinguenda est ‘Deus potest aliter
producere resquam diposuit’. In sensu
compositionis est falsa: significatur
enim quod haec est possibilis ‘Deus
producit aliter quam secundum
dispositionem
suam’;
in
sensu
divisionis est vera, et sunt duae
propositiones categoricae, et est sensus:
‘Deus potest facere hoc modo’, ‘non
disposuit facere hoc modo’. Nec tamen
sequitur quod inordinate agat, ut patet
per
praedicta.]
[Segue-se texto interpolado, veja o
apêndice A: Igualmente, cumpre saber
que cabe distinção para ‘Deus pode
produzir as coisas diversamente de
como as dispôs’. No sentido da
composição é falsa: com efeito,
significa
que
‘Deus
produz
diversamente do que segundo a sua
disposição’ seja possível; no sentido da
divisão é verdadeira, e tanto são duas
proposições categóricas como há o
sentido: ‘Deus pode fazer deste modo’,
‘não dispôs fazer deste modo’. No
entanto, não se segue que aja
desordenadamente, como é patente pelo
que foi anteriormente respondido11.]
11. Potentia tamen ordinata non
dicitur nisi secundum ordinem legis
universalis, non autem secundum
ordinem legis rectae de aliquo
particulari. Quod apparet ex hoc quod
possibile est Deum salvare quem non
11. No entanto, a potência não é
dita ordenada senão segundo a ordem da
lei universal, mas não segundo a ordem
da lei reta sobre algo particular. Isto
aparece do fato de que é possível que
Deus salve àquele que não salva –
11
Cf. DUNS ESCOTO, Rep. IC d. 44, q. 1 in corp. (f. 189rb); Rep. IA d. 44 n. 11.
20
salvat, qui tamen morietur in peccato
finaliter et damnabitur, - non autem
conceditur ipsum posse salvare Iudam
iam damnatum (nec tamen hoc est
impossibile potentia absoluta Dei, quia
non includit contradictionem); ergo
istud, scilicet ‘salvare Iudam’, eo modo
est impossibile quo modo possibile est
salvare istum: ergo istum potest salvare
de potentia ordinata (quod verum est),
et illum non. Non quidem ordine
particulari (qui est quasi de isto agibili
et operabili particulari tantum), sed
ordine universali, quia si salvaret, staret
modo cum legibus rectis – quas vere
praefixit – de salvatione et damnatione
singulorum. Staret enim cum illa ‘quod
finaliter malus damnabitur’ (quae est
lex prefixa de damnandis), quia iste
adhuc non est finaliter peccator, sed
potest esse non peccator (maxime dum
est in via), quia potest Deus eum gratia
sua praevenire; sicut si rex praeveniret
aliquem ne faceret homicidium, si non
damnat eum, non facit contra legem
suam universalem de homicida. Non
autem staret, cum illa particulari lege,
quod Iudam salvaret; Iuda enim potest
praescire salvandum de potentia
ordinata, sed non isto modo ordinata sed
absoluta ab isto modo, et alio modo
ordinata secundum aliquem alium
ordinem tunc possibilem institui.
aquele que, no entanto, há de morrer em
pecado final e ser condenado –, mas não
se concede que ele possa salvar a Judas
que já está condenado (no entanto, isto
não é impossível pela potência absoluta
de
Deus,
porque
não
inclui
contradição); portanto, isto, a saber,
‘salvar Judas’, é impossível daquele
modo pelo qual é agora possível salvar
o primeiro: portanto, o primeiro pode
ser salvo pela potência ordenada (o que
é verdadeiro), e Judas não. Certamente,
[o primeiro pode ser salvo] não pela
ordem particular [em vigor,] (que se dá
como se apenas sobre este que é
passível de ação e operação particular),
mas pela ordem universal [a ser
estabelecida], porque se for salvo, estará
agora com as leis retas – as quais
preestabeleceu verdadeiramente – sobre
a salvação e a condenação de cada um
dos singulares. Com efeito, estará com
‘que o mal final há de ser condenado’
(que é a lei preestabelecida sobre aquele
que há de ser condenado), porque este
ainda não é finalmente pecador, mas
pode ser não pecador (maximamente
enquanto está na via), porque Deus pode
prevenir por sua graça; assim como se o
rei, ao prevenir que alguém cometa um
homicídio, não o condena, não atenta
contra sua lei universal sobre o
homicida. Ora, não estaria com aquela
lei particular [em vigor] que Judas fosse
salvo; com efeito, pode ter a presciência
de que Judas há de ser salvo pela
potência ordenada, mas não ordenada
deste modo, mas absoluta quanto a este
modo, e ordenada de outro modo
segundo alguma outra ordem que então
seja possível instituir.
21
7
[Sequitur textus interpolatus:
Potentia ergo absoluta potest Iudam
salvare, - potentia vero ordinata potest
istum peccatorem salvare, licet non
salvabitur; sed lapidem nec potest
beatificare potentia absoluta, nec
ordinata. Et secundum hoc, patet
respectu cuius dicitur potentia absoluta
in Deo, id est in quantum potest contra
legem
universalem
et
non
particularem.]
[Segue-se o texto interpolado:
Portanto, pode salvar Judas pela
potência absoluta – de fato, pela
potência ordenada pode salvar este
pecador, embora não venha a salva-lo –
, mas não pode beatificar a pedra nem
pela potência absoluta nem pela
potência ordenada. E, segundo isso, fica
patente a respeito de que se fala de
potência absoluta em Deus, isto é,
enquanto pode ser contrária à lei
universal e não à particular.]
12. Qualiter autem voluntas
divina possit circa particularia et circa
leges rectas instituendas, non volendo
oppositum eius quod nunc vult, dictum
est
supra
distinctione
397.
12. Ora, como, qualitativamente, a
vontade divina pode com relação aos
particulares e as leis retas que hão de ser
instituídas, não querendo o oposto
daquilo que agora quer, tratou-se acima
na distinção 39.
13. Ad argumentum [supra, n. 1]
patet quod consequentia non valet, quia
si faceret res alio modo quam nunc
ordinatum est eas fieri, non propter hoc
inordinate fierent, quia si statueret alias
leges secundum quas fierent, eo ipso
ordinate
fierent.
13. Para o argumento [acima, nº 1]
fica patente que a consequência não
vale, porque se fizesse as coisas de
modo diverso do que agora está
ordenado que sejam feitas, elas não se
dariam desordenadamente segundo
isso, porque se fossem estabelecidas
outras leis segundo as quais fossem
feitas, por isso mesmo seriam feitas
ordenadamente.
14.
Ad
argumentum
in
oppositum [n. 2] concedo quod probat
de potentia absoluta, - quae tamen si
esset principium alicuius, esset eo ipso
ordinata, sed non secundum ordinem ab
eo praefixum, eundem quem prius
habuit.
14. Para o argumento oposto [nº 2],
concedo que prova sobre a potência
absoluta, - no entanto, se ela fosse
princípio de algo, seria por isso mesmo
ordenada, mas não segundo aquela
mesma ordem por ele preestabelecida
que antes se deu.
Ausente na Ordinatio; cf. DUNS ESCOTO, Lectura I, d. 39, n.53-54.
22
JOÃO DUNS ESCOTO
Lectura
Livro I
Distinção 44*
Quaestio Unica:
Questão Única:
[UTRUM DEUS ALITER POTEST
[SE DEUS PODE PRODUZIR AS
PRODUCERE RES QUAM
COISAS DIVERSAMENTE DE COMO PRÉ-
PRAEORDINAVIT]
ORDENOU]
1.
Circa
distinctionem
quadragesimam quartam quaeritur
utrum Deus aliter potest producere res
quam praeordinavit.
1.
Acerca
da
distinção
quadragésima quarta pergunta-se se
Deus pode produzir as coisas
diversamente de como pré-ordenou.
Quod non, videtur:
*
Vê-se que não:
Quia tunc potest inordinate
producere.
Porque então poderia produzir
desordenadamente.
2. Contra: res aliter potest esse
quam praeordinavit : hoc enim non
includit contradictionem ; igitur etc.
2. Contra: as coisas podem ser
diferentemente de como preordenou;
com efeito, não há contradição nisso;
portanto etc.
3. Dicendum quod quando est
agens quod conformiter agit legi et
rationi rectae, - si non limitetur et
alligetur illi legi, sed illa lex subest
voluntati suae, potest ex potentia
absoluta aliter agere ; sed si lex non
subesset voluntati suae, non posset
agere de potentia absoluta nisi quod
potest de potentia ordinata secundum
illam legem. Sed si illa subsit voluntati
suae, bene potest de potentia absoluta
quod non potest de potentia ordinata
secundum illam legem ; si tamen sic
operetur, erit ordinata secundum aliam
legem, - sicut, ponatur quod aliquis
3. Deve-se dizer que quando há um
agente que age em conformidade com a
lei e a razão retas, se não for limitado e
atado por aquela lei, mas aquela lei
depender de sua vontade, pode agir
diversamente a partir da potência
absoluta; mas se a lei não dependesse de
sua vontade, não poderia agir pela
potência absoluta a não ser quanto
àquilo que pode pela potência ordenada
segundo aquela lei. Mas se ela depender
de sua vontade, bem pode pela potência
absoluta o que não pode pela potência
ordenada segundo aquela lei; no
entanto, se operar assim, será ordenada
JOÃO DUNS ESCOTO, Lectura : Opera Omnia, Vol. XVII. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis,
1966, p. 535 s.. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.
23
esset ita liber (sicut rex) quod possit
facere legem et eam mutare, tunc
praeter illam legem de potentia sua
absoluta aliter potest agere, quia potest
legem mutare et aliam statuere.
segundo outra lei, - assim como se fosse
posto que alguém seja tão livre (como é
o rei) que possa fazer a lei e muda-la,
então pode agir diversamente para além
daquela lei por sua potência absoluta,
porque pode mudar a lei e estabelecer
outra.
4. Sic Deus se habet in operando,
nam intellectus – ut prior est voluntate –
non statuit legem, sed offert primo
voluntati suae ; voluntas autem acceptat
sic oblatum, et tunc statuitur lex ; quia
tamen opposita eorum quae statuta sunt,
sunt possibilia, ideo potest legem
mutare et aliter agere. Sicut statuit quod
nullus esset glorificandus nisi prius esse
gratificatus ; operando autem huic lege
ordinate, agit secundum potentiam
ordinatam, et non potest aliter operari
nisi ordinando et statuendo aliam
legem, - et hoc potest, quia contingenter
voluit quod esset illa lex quod omnis
peccator damnaretur ; unde faciendo
contrarium, statuit aliam legem,
secundum quam etiam ordinate
operetur.
4. Assim acontece com Deus ao
operar, pois o intelecto – dado que seja
anterior à vontade – não estabelece a lei,
mas a oferece primeiro à sua vontade;
ora, a vontade aceita o que é assim
oferecido, e, então, a lei é estabelecida;
no entanto, porque os opostos àqueles
que foram estabelecidos são possíveis,
pode mudar a lei e agir diversamente.
Assim como estabelece que ninguém há
de ser glorificado a não ser que antes
seja
agraciado;
ora,
operando
ordenadamente por esta lei, age
segundo a potência ordenada, e não
pode operar diversamente a não ser que
ordene e estabeleça outra lei, - e pode
isso, porque quis contingentemente que
haja a lei de que todo pecador seja
condenado, donde ao fazer o contrário,
estabelece outra lei, segundo a qual
também há de operar ordenadamente.
5. Et sic patet quomodo debet
intelligi quod Deus potest facere de
potentia absoluta quod non potest de
potentia ordinata.
5. E assim é patente de que modo
se deve entender que Deus pode fazer
pela potência absoluta o que não pode
pela potência ordenada.
24
GUILHERME DE OCKHAM
Quodlibeta septem
Livro VI
Questão 1*
*
Utrum homo possit salvari
sine caritate creata.
Se o homem pode ser salvo
sem a caridade criada.
Quod non: Quia quicumque
salvatur est carus Deo; sed nullus potest
esse carus Deo sine caritate; igitur
nullus potest salvari sine caritate.
Que não: porque qualquer um que
se salve é caro a Deus; mas ninguém
pode ser caro a Deus sem a caridade;
portanto, ninguém pode ser salvo sem a
caridade.
Contra : Deus potest omne
absolutum distinctum ab alio separare et
in esse sine eo conservare ; sed gratia et
gloria sunt duo absoluta realiter
distincta ; igitur potest gloriam in anima
conservare et gratiam adnihilare.
Hic primo ponam unam
distinctionem de potentia Dei; secundo
dicam ad quaestionem.
Contra: Deus pode separar todo
absoluto distinto de outro e conservá-lo
no ser sem o outro; ora, a graça e a
glória são dois absolutos distintos
realmente; portanto, pode conservar a
glória na alma e aniquilar a graça.
Aqui primeiro farei uma distinção sobre
a potência de Deus; em segundo lugar,
responderei à questão.
[PRIMUS ARTICULUS]
[PRIMEIRO ARTIGO]
Circa primum dico quod
quaedam potest Deus facere de potentia
ordinata et aliqua de potentia absoluta.
Haec distinctio non est sic intelligenda
quod in Deo sint realiter duae potentiae
quarum uma sit ordinata et alia absoluta,
quia unica potentia est in Deo ad extra,
quae omni modo est ipse Deus. Nec sic
est intelligenda quod aliqua potest Deus
ordinate facere, et aliqua potest absolute
et non ordinate, quia Deus nihil potest
Sobre o primeiro digo que Deus
pode fazer alguns pela potência
ordenada e outros pela potência
absoluta. Esta distinção não deve ser
entendida assim: que haja em Deus
realmente duas potências, das quais
uma seria ordenada e a outra absoluta,
uma vez que há uma única potência em
Deus para o que é exterior, a qual, de
todo o modo, é o próprio Deus. Nem
deve ser entendida assim: que Deus
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1980. Quodlibeta Septem. J. C. Wey (ed.). [= G. de Ockham Opera
Theologica IX]. St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, p. 585-589, por Carlos Eduardo de
Oliveira.
25
facere
inordinate.
pode fazer alguns ordenadamente e
outros
pode
absoluta
e
não
ordenadamente, uma vez que Deus nada
pode fazer desordenadamente.
Sed est sic intelligenda quod
‘posse aliquid’ quandoque accipitur
segundo leges ordinatas et institutas a
Deo, et illa dicitur Deus posse facere de
potentia ordinata. Aliter accipitur
‘posse’ pro posse facere omne illud
quod non includit contradictionem fieri,
sive Deus ordinaverit se hoc facturum
sive non, quia multa potest Deus facere
quae non vult facere, secundo
Magistrum Setentiarum, lib. I, d. 43 ; et
illa dicitur Deus posse de potentia
absoluta. Sicut Papa aliqua non potest
secundum iura statuta ab eo, quae tamen
absolute
potest.
Mas deve ser entendida assim: que
‘poder algo’ às vezes é tomado segundo
as leis ordenadas e instituídas por Deus,
e diz-se que Deus pode fazer esses pela
potência ordenada. Diversamente,
toma-se ‘poder’ por poder fazer tudo
aquilo que não há contradição em ser
feito, tenha Deus se ordenado a vir a
fazê-lo ou não, uma vez que Deus pode
fazer muitos que não quer fazer,
segundo o Mestre das Sentenças, livro I,
d. 43; e diz-se que Deus pode esses pela
potência absoluta. Assim como o Papa
não pode, segundo as normas
estabelecidas por si mesmo, alguns que,
no entanto, pode absolutamente.
Ista distinctio probatur per
dictum Salvatoris, Ioannis 3, 5: Nisi
quis inquit renatus fuerit ex aqua et
Spiritu Sancto, non potest introire in
regnum Dei. Cum enim Deus sit
aequalis potentiae nunc sicut prius, et
aliquando aliqui introierunt regnum Dei
sine omni baptismo, sicut patet12 de
pueris circumcisis tempore Legis
defunctis antequam haberent usum
rationis, et nunc est hoc possibile. Sed
tamen illud quod tunc erat possibile
secundum leges tunc institutas, nunc
non est possibile secundum legem iam
institutam, licet absolute sit possibile.
Prova-se esta distinção por meio
do que disse o Salvador, em João 3, 5.
Disse: apenas aquele que tiver
renascido da água e do Espírito Santo
pode entrar no reino de Deus. Com
efeito, dado que Deus tenha potências
iguais tanto agora como antes, tanto
como certa vez alguns entraram no
reino de Deus sem nenhum batismo,
assim como é patente no caso das
crianças circuncidadas no tempo da Lei
que morreram antes de ter o uso da
razão, também agora isto é possível.
Ora, no entanto, aquilo que então era
possível segundo as leis então
instituídas, agora não é possível
segundo a lei agora instituída, embora
seja possível absolutamente.
12
Cf. Pedro Lombardo, Sentenças, livro IV, d. 1, c. 7.
26
[SECUNDUS ARTICULUS
[SEGUNDO ARTIGO
CONCLUSIO 1]
1ª CONCLUSÃO]
Circa secundum articulum dico
primo quod homo potest salvari sine
caritate creata de potentia Dei absoluta.
Haec conclusio probatur primo sic:
quidquid Deus potest facere mediante
causa secunda in genere causae
efficientis vel finis, potest immediate
per se; sed caritas creata, si sit causa
effectiva sive dispositiva disponens ad
vitam aeternam, erit causa secunda
efficiens vel finis; igitur sine ea potest
Deus dare alicui vitam aeternam.
A respeito do segundo artigo
respondo que o homem pode ser salvo
sem a caridade criada pela potência
absoluta de Deus. Prova-se essa
conclusão primeiramente assim: tudo o
que Deus pode fazer por meio de uma
causa segunda a título de causa eficiente
ou final, pode imediatamente por si; ora,
a caridade criada, se for causa efetiva ou
dispositiva que dispõe para a vida
eterna, será causa segunda eficiente ou
final; portanto, Deus pode dar a vida
eterna a alguém sem ela.
Praetera agens quod non
determinatur ad certum cursum et
ordinem rerum, secundum alium
ordinem res illas producere potest; sed
Deus est tale agens; igitur potest dare
vitam aeternam alicui facienti bonum
opus, sine tali gratia.
Além disso, o agente que não está
determinado para certo curso e ordem
das coisas, pode produzir segundo outra
ordem aquelas coisas; ora, Deus é tal
agente; portanto, pode dar a vida eterna
a alguém que faça a boa obra sem tal
graça.
Praetera, quod potest dari alicui
non tamquam praemium pro merito,
potest sibi dari de potentia Dei absoluta
sine omni habitu praevio qui est
principium
merendi;
sed
actus
beatificus dabatur Paulo in suo raptu,
quia tunc vidit essentiam divinam non
tamquam praemium pro merito; igitur
potest sibi dare vitam aeternam sine tali
gratia quae est principium merendi.
Além disso, o que pode ser dado a
alguém sem ser o prêmio pelo mérito,
pode ser dado a ele pela potência
absoluta de Deus sem qualquer hábito
prévio que é o princípio do merecer;
ora, o ato beatífico foi dado a Paulo na
sua queda, porque então viu a essência
divina sem ser o prêmio pelo mérito;
portanto, pode ser dada a ele a vida
eterna sem tal graça que é o princípio do
merecer.
Praetera
non
est
maior
repugnantia actus meritorii ad naturam
in solis naturalibus constitutam quam
actus demeritorii; sed voluntas potest ex
se in actum demeritorium; igitur
voluntas in solis naturalibus constituta
Além disso o ato meritório não
repugna mais à natureza constituída no
que é unicamente natural do que o ato
demeritório; ora, a vontade pode por si
no ato demeritório; portanto, a vontade
constituída no que é unicamente natural
27
potest per potentiam Dei absolutam in
actum meritorium. Minor est manifesta.
Maior probatur, quia ubi non est
simpliciter, ibi non est magis, sicut quod
non est album non est magis album; sed
actus meritorii ad naturam in solis
naturalibus constitutam non est aliqua
repugnantia; igitur non est maior
repugnantia.
pode pela potência absoluta de Deus no
ato meritório. A menor é manifesta.
Prova-se a maior, porque onde não há o
simples, ali não há o mais; assim como
o que não é branco não é mais branco;
ora, não há nenhuma repugnância do ato
meritório para a natureza constituída
nos unicamente naturais; portanto, não
há maior repugnância.
Praeterea nihil est meritorium
nisi quod est in potestate nostra; sed illa
caritas non est in nostra potestate; igitur
actus non est meritorius principaliter
propter illam gratiam sed propter
voluntatem libere causantem; igitur
posset Deus talem actum elicitum a
voluntate acceptare sine tali gratia.
Além disso, não é meritório senão
o que está em nosso poder; ora, aquela
caridade não está em nosso poder,
portanto, o ato não é meritório
principalmente em razão daquela graça,
mas em razão da vontade livre
causadora; portanto, Deus pode aceitar
tal ato produzido pela vontade sem tal
graça.
[CONCLUSIO 2]
[2ª CONCLUSÃO]
Secundo dico quod numquam
salvabitur homo nec salvari poterit, nec
umquam eliciet vel elicere poterit actum
meritorium secundum leges a Deo nunc
ordinatas sine gratia creata. Et hoc teneo
propter Scripturam Sacram et dicta
Sanctorum.
Em segundo lugar, digo que o
homem jamais será salvo nem poderá se
salvar, nem jamais produziria ou
poderia produzir o ato meritório
segundo as leis agora ordenadas por
Deus sem a graça criada. E assumo isto
em razão da Sagrada Escritura e os ditos
dos Santos.
Et si dicis quod prima conclusio
continet errorem Pelagii:
E se disseres que a primeira
conclusão contém o erro de Pelágio:
Respondeo quod non, quia
Pelagius posuit quod de facto non
requiritur gratia ad vitam aeternam
habendam sed quod actus ex puris
naturalibus elicitus est meritorius vitae
aeternae de condigno. Ego autem pono
quod solum est meritorius per
potentiam Dei absolutam acceptantem.
Respondo que não, porque Pelágio
assumiu que a graça de fato não é
requerida para que se tenha a vida
eterna, mas que o ato produzido pelo
que é puramente natural é meritório da
vida eterna sobre o que é igualmente
digno. Eu, porém, assumo que apenas é
meritório pela potência absoluta de
Deus que o aceita.
28
Ad argumentum principale digo
quod ‘caritas’ dupliciter accipitur: uno
modo, pro una qualitate animae; alio
modo, pro acceptatione divina. Primo
modo accipiendo ‘caritatem’, potest
homo esse carus Deo sine caritate, sed
non secundo modo.
Para o argumento principal digo
que ‘caridade’ é tomada duplamente: de
um modo, por uma qualidade da alma;
de outro modo, pela aceitação divina.
Tomando ‘caridade’ do primeiro modo,
o homem pode ser caro a Deus sem a
caridade, mas não do segundo modo.
29
GUILHERME DE OCKHAM,
Tratado Contra Benedito
Terceiro Livro*
*
[CAPITULUM III]
[Capítulo 3]
PRIMUS itaque error loannis XXII
breviter hic tractandus, cui vocatus
Benedictus XII tacendo favet, est: Quod
Deus non potest aliquid facere, nisi
quod facit; immo ipsum aliud facere
contradictionem includit. Unde et
distinctionem communem theologorum,
quae sane intellecta est fidei consona
orthodoxae : quod scilicet Deus aliqua
potest de potentia ordinata, et aliqua
de potentia absoluta, ut aliqua possit de
potentia absoluta, quae numquam faciet
de potentia ordinata : erroneam reputat et
absurdam,
secundum
omnem
intellectum, quem de ipsa theologi
habere noscuntur: ponens quod, quia
omnia sunt ordinata ab aeterno a Deo,
et contra ordinationem Dei nihil fieri
potest, aliquid aliter evenire quam evenit,
contradictionem
includit.
E, assim13, o primeiro erro de João
XXII que aqui brevemente cumpre
tratar, o qual o assim chamado Benedito
XII fomenta ao se calar, é: que Deus não
pode fazer senão o que faz; ou melhor,
que há contradição em que ele faça algo
diversamente. Donde também a
distinção comum dos teólogos – que
corretamente entendida é consoante à fé
ortodoxa, a saber, que Deus pode alguns
pela potência ordenada e outros pela
potência absoluta, dado que pode alguns
pela potência absoluta que jamais fará
pela potência ordenada – reputa errônea
e
absurda,
segundo
qualquer
compreensão que os teólogos admitam
ter dela, ao defender que, porque tudo é
ordenado por Deus desde a eternidade e
nada pode ser feito contra a ordenação
de Deus, há contradição em que algo
aconteça diversamente de como
acontece.
Istum errorem praedicavit et docuit
loannes XXII in sermone, qui incipit
Tulerunt iusti spolia impiorum, etc.,
dicens : Cum dicitur ' iusti ', nota quod
João XXII pregou e ensinou este
erro no sermão que começa: Os justos
trouxeram os espólios dos ímpios...14
etc., ao dizer: Quando é dito “justos”,
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1956. Tractatus contra Benedictum. R. F. Bennett e H. S. Offler
(curadores). H. S. Offler (ed.). [= G. de Ockham Opera Politica III]. Manchester : Manchester University
Press, p. 230-234, por Carlos Eduardo de Oliveira.
13
Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95; Epistola ad Fratres Minores; Contra Ioannem, cap. 22. (O tema
principal dos dois últimos trechos é a alegação de que João XXII nega a distinção entre a potência absoluta
e a ordenada e, como consequência disso, defende que tudo aconteça necessariamente.).
14
Sermão pregado em 1330 “sobre a vitória do rei de Castela contra os Sarracenos” (cf. Ockham, 1956,
Epistola ad Fratres Minores, p. 14, comentário às linhas 22-6).
30
quilibet homines divinae regulae se
conformant cum efficiuntur iusti, scilicet
per caritatem et baptismum, quae regulae
sunt aeternae et incommutabiles, idemque
quod divina essentia. Unde sicut
impossibile est Deum esse mutabilem, quia
tunc non esset Deus, ita impossibile est
quod illa, quae de sua ordinata potentia
facit, [possit aliter facere quam facit]. Et
ideo impossibile est quod salvaret hominem
de absoluta potentia sine sacramento
baptismi et sine habitu caritatis, quia sic
ordinatum fuit ab aeterno de [Dei]
potentia ordinata, quae idem est quod
Deus, et mutari non potest. Item, cum
dicitur : ' Victricem manum ' etc., per
manum in scriptura intelligitur divina
potentia, quae idem est quod sua essentia.
Unde distinguunt quidam et dicunt, quod
multa potest Deus de potentia absoluta,
quae non potest nec facit de potentia
ordinata. Sed istud est falsum et
erroneum, quia potentia Dei absoluta et
ordinata idem sunt et non distinguuntur ab
invicem, nisi solo nomine, sicut Simon et
Petrus, quando idem homo utroque nomine
appellatur. Sicut ergo impossibile est quod
aliquis percutiat Simonem et non
percutiat Petrum, et quod Simon faciat
aliquid quod non facit Petrus, quia sunt
idem homo : ita impossibile est quod Deus
de potentia absoluta possit aliud facere
quam facit de potentia ordinata, quia idem
sunt, et solo nomine differunt sive
distinguuntur. Item, cum istae potentiae
sint idem quod Deus, si posset Deus
aliquid facere de potentia absoluta, quod
non facit de potentia ordinata, tunc esset
mutabilis in se ipso, et non esset Deus.
Sicut ergo sum-mum impossibile est
Deum non esse Deum, ita summum
nota que quaisquer homens se
conformam à regra divina quando se
tornam justos, a saber, por meio da
caridade e do batismo, regras que são
eternas e incomutáveis, tal como a
essência divina. Donde assim como é
impossível que Deus seja mutável, pois
então não seria Deus, é impossível que
[possa fazer diversamente do que faz]
aquilo que faz por sua potência
ordenada. E por isso é impossível que
salvasse o homem pela potência
absoluta sem o sacramento do batismo
e sem o hábito da caridade, porque foi
assim ordenado desde a eternidade pela
potência ordenada [de Deus], que é
idêntica a Deus, e não pode ser
mudada. Ainda, quando é dito: “Mão
vitoriosa”(Sb 10, 20) etc., por “mão” é
entendida, na Escritura, a potência
divina, que é idêntica à sua essência.
Donde alguns distinguem e dizem que
Deus pode muitos pela potência
absoluta que não pode nem faz pela
potência ordenada. Ora, isso é falso e
errôneo, porque a potência absoluta e
ordenada de Deus são a mesma e não
são distintas entre si a não ser
unicamente pelo nome, assim como
Simão e Pedro, quando o mesmo
homem é chamado por ambos.
Portanto, assim como é impossível que
alguém atinja a Simão e não atinja a
Pedro, e que Simão faça algo que Pedro
não faz, uma vez que são o mesmo
homem, assim é impossível que Deus
possa, pela potência absoluta, fazer
diversamente do que faz pela potência
ordenada, porque são a mesma e
diferem ou são distinguidas unicamente
pelo nome. Ainda, dado que estas
31
impossibile est et erroneum dicere Deum
posse aliquid facere de potentia absoluta
aliud quam facit vel faciet de potentia
ordinata. Item, in omnibus aliis citra
Deum differunt essentia et potentia, quia
in aliis omnibus potentiae sunt accidentia
; in solo autem Deo [potentia Dei est ipsa
essentia et substantia Dei aeterna et
incommutabilis. Si ergo Deus de] potentia
absoluta posset aliquid facere aliud quam
faciat de potentia ordinata, sequeretur
quod effectus potentiae ordinatae posset a
Deo frustrari et mutari, et tunc non esset
omnipotens. Sequeretur etiam quod Deus
in se ipso non solum esset mutabilis, sed
sibi ipsi et suae potentiae contrarius, et tunc
non esset Deus. Quae omnia sunt falsa et
erronea. Patet igitur quod falsum est et
erroneum dicere et etiam impossibile, quod
Deus de potentia absoluta posset facere
aliud quam faciat de potentia ordinata.
Haec verba domini Ioannis XXII in dicto
sermone
praedicata
et
dicta.
potências sejam idênticas a Deus, se
Deus pudesse fazer algo pela potência
absoluta que não faz pela potência
ordenada então seria mutável em si
mesmo, e não seria Deus. Portanto,
assim como é sumamente impossível
que Deus não seja Deus, assim é
sumamente impossível e errôneo dizer
que Deus possa fazer algo pela potência
absoluta diverso do que faz ou fez pela
potência ordenada. Ainda, em tudo o
mais abaixo de Deus diferem a essência
e a potência, porque em tudo o mais as
potências
são
acidentes;
ora,
unicamente em Deus [a potência de
Deus é a própria essência e substância
eterna e incomutável de Deus.
Portanto, se Deus pela] potência
absoluta pudesse fazer algo diverso do
que fizer pela potência ordenada,
seguir-se-ia que o efeito da potência
ordenada poderia ser suspenso e
mudado por Deus, e, assim, não seria
onipotente. Seguir-se-ia também que
Deus em si mesmo não apenas seria
mutável, mas contrário a si mesmo e à
sua potência, e, então, não seria Deus:
todos os quais são falsos e errôneos.
Portanto, é patente que é falso e
errôneo e ainda impossível dizer que
Deus, pela potência absoluta, poderia
fazer diversamente do que faz pela
potência ordenada. Palavra pregada e
pronunciada pelo senhor João XXII no
sermão mencionado.
Ista doctrina patenter asserit, non
latenter, quod Deus non potest aliquid
facere de potentia absoluta, quod non facit
de potentia ordinata, quia omnia sunt
ordinata a Deo. Ex quo sequitur evidenter
Assevera claramente e não
subentendidamente esta doutrina de que
Deus não pode fazer, pela potência
absoluta, algo que não faz pela potência
ordenada, uma vez que tudo é ordenado
32
quod nulla creatura potest aliquid facere,
quod non facit; et ita omnia de necessitate
eveniunt et nihil penitus contingenter,
sicut quamplures infideles et antiqui
haeretici docuerunt, et adhuc occulti
haeretici et laici et vetulae tenent, saepe
per argumenta sua etiam litteratos viros
et in sacris litteris peritos concertantes.
Uterque autem errorum praedictorum
scripturis divinis repugnat aperte, sicut
per quamplurimas auctoritates et rationes
posset copiose probari, sed causa
brevitatis
adducam
paucas.
por Deus. Do que se segue15
evidentemente que nenhuma criatura
pode fazer algo que não faz; e assim
tudo acontece necessariamente e nada
de modo completamente contingente,
assim como ensinaram vários infiéis e
hereges antigos, e ainda hoje sustentam
os hereges dissimulados, os leigos e as
velhotas
que
ainda
combatem
frequentemente por meio de seus
argumentos os homens letrados e
peritos das letras sagradas. Cada um dos
erros
mencionados
repugna
abertamente às escrituras divinas, assim
como se pode provar por meio de várias
autoridades e razões, mas apresentarei
poucas para ser breve.
Quod igitur Deus aliquid potuit et
posset de potentia absoluta, quod non
fecit nec facit nec faciet de potentia
ordinata neque de potentia absoluta,
probatur aperte. Hoc enim Christus
testatur expresse, qui, ut legitur Matthaei
xxvi, ait Petro : Converte gladium tuum in
vaginam seu in locum suum ; omnes enim,
qui acceperint gladium, gladio peribunt.
An putas, quia non possum rogare Patrem
meum, et exhibebit mihi plus quam xii
legiones angelorum ? Quo modo ergo
implebuntur Scripturae, quia sic oportet
fieri ? Ex quibus verbis Christi colligitur
evidenter quod Deus poterat exhibere
Christo plus quam xii legiones
angelorum ad liberandum eum de manibus
capientium et volentium occidere ipsum :
et tamen Deus hoc non fecit, neque de
potentia absoluta neque de potentia
ordinata. Hinc Magister Sententiarum,
Portanto16, que Deus pôde e pode
pela potência absoluta o que não fez
nem faz nem fará pela potência
ordenada nem pela potência absoluta é
abertamente provado. Com efeito, o
Cristo atestou isto expressamente
quando, como se lê em Mateus 26, 5254, disse a Pedro: Guarda tua espada na
bainha ou em seu lugar; com efeito,
todos que tomam a espada, pela espada
perecerão. Pensas acaso que não posso
pedir ao meu Pai, e ele me dará mais de
doze legiões de anjos? De que modo,
então, se cumprirão as Escrituras, uma
vez que é assim que convém acontecer?
Palavras de Cristo a partir das quais se
colhe evidentemente que Deus poderia
dar a Cristo mais de doze legiões de
anjos para libertá-lo das mãos que o
prendiam e queriam matá-lo: e, no
entanto, Deus não fez isso, nem pela
15
16
Cf. Contra Ioannem, cap. 23.
Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95.
33
libro primo, di. xliii, ait: Omnipotentis
voluntas multa potest facere, quae non vult
nec facit: potuit enim facere, ut xii legiones
contra illos pugnarent, qui Christum
ceperunt: quod tamen non fecit. Item,
hoc tres viri, Sidrach, Misach et
Abdenago, qui, ut legitur Danielis iii, de
camino ignis ardentis miraculose liberati
fuerunt, antequam mitterentur in
caminum
testati
sunt,
dicentes
Nabuchodonosor regi: Ecce Deus noster,
quem colimus, potest eripere nos de
camino ignis ardentis, et de manibus tuis,
rex, liberare. Quod si noluerit, notum sit
tibi, rex, quod deos tuos non colimus. Ex
quibus verbis liquido patet quod isti
firmiter crediderunt quod Deus poterat
eos de manibus regis eripere, et tamen an
eos vellet eripere, nesciverunt. Quare
crediderunt quod Deus poterat aliqua
facere, quae numquam faciet. Item, hoc
testatur Ioannes Baptista, qui, ut legitur
Matthaei iii, dixit quod Deus potest de
lapidibus suscitare filios Abrahae, quod
[non] solum spiritualiter, sed etiam ad
litteram sane potest intelligi: quod tamen
Deus non facit. Potest ergo Deus multa
facere, quae non facit: quod Augustinus
testatur, qui, ut recitat Magister
Sententiarum, libro primo, di. xliii, ait in
libro de Natura et Gratia : Dominus
Lazarum suscitavit in corpore. Numquid
dicendum est, non potuit ludam suscitare in
mente ? Potuit quidem, sed noluit. Alias
plures auctoritates Augustini Magister
eadem distinctione xliii et di. xliv allegat
ad idem, quibus manifeste asseritur
Deum posse facere multa, quae non facit.
Post quas concludit Magister, dicens : Ex
17
18
Citando a Agostinho, Enchiridion, 95, PL 40, 275.
Agostinho, De natura et gratia, VII, PL 44, 250.
potência absoluta, nem pela potência
ordenada. Aqui, o Mestre das
Sentenças, no livro Primeiro, distinção
4317, diz: A vontade do onipotente pode
fazer muitos que não quer nem faz: com
efeito, pôde fazer que doze legiões
lutassem contra aqueles que prenderam
o Cristo, o que, porém, não fez. Ainda,
estes três homens, Sidrac, Misac e
Abdênago, que, como se lê em Daniel 3,
17-18, foram libertados milagrosamente
do caminho de fogo ardente, antes de
serem
enviados
ao
caminho
testemunharam ao dizer ao rei
Nabucodonosor: Eis que o nosso Deus,
a quem cultuamos, pode nos tirar do
caminho de fogo ardente e libertar de
tuas mãos, ó rei. Se ele não o quiser,
saiba, ó rei, que não veneramos os teus
deuses. Dessas palavras é claramente
patente
que
eles
acreditaram
firmemente que Deus poderia tirá-los
das mãos do rei, e, no entanto,
ignoravam se os queria tirar. Assim
acreditaram que Deus poderia fazer
algo que jamais fez. Ainda, isto
testemunha João Batista, que, como se
lê em Mateus 3, 9, diz que Deus pode
suscitar das pedras filhos para Abraão,
o que [não] apenas espiritualmente, mas
também
literalmente
pode
ser
corretamente entendido: no entanto,
Deus não o faz. Portanto, Deus pode
fazer muitos que não faz: testemunha-o
Agostinho, que, como cita o Mestre das
Sentenças, no livro primeiro, distinção
43, disse no livro Sobre a Natureza e a
Graça18: o Senhor suscitou Lázaro no
corpo. Acaso deve ser dito que não pôde
34
praedictis constat, quod Deus potest
facere et alia, quam facit, et quae facit,
meliora posset ea facere, quam facit.
suscitar Judas na mente? Certamente
pôde, mas não quis. O Mestre alega
várias outras autoridades de Agostinho
sobre isso na mesma distinção 43 e na
distinção
44,
pelas
quais
manifestamente é asseverado que Deus
pode fazer muitos que não faz. Depois
delas, o Mestre conclui dizendo19:
Consta do que foi mencionado que Deus
pode fazer tanto outros do que faz
como, o que faz, pode fazê-lo melhor do
que faz.
Quod autem creaturae possint facere
multa, quae non faciunt, et omittere, quae
non omittuntur, et per consequens non
omnia eveniunt de necessitate, sed multa
contingenter fiunt, auctoritatibus sacrae
scripturae ostenditur manifeste. De uno
enim iusto legitur in Ecclesiastico : Potuit
transgredi, et non est transgressus ; et facere
mala, et non fecit. Et, ut legitur II
Machabaeorum c. vi, dicit Eleazarus
scriba, cum esset in tormentis pro fide
Dei: Domine, qui habes sanctam
scientiam, manifeste tu scis, quia, cum a
morte possem liberari, duros et corporis
sustineo dolores: secundum animam vero
propter timorem tuum libenter patior
haec. Et Matthaei xxvi dicitur de
unguento, quod effudit Maria Magdalena
super caput Ihesu : Potuit istud
unguentum venundari multo, et dari
pauperibus : et tamen non fuit
venundatum neque datum pauperibus. Ex
quibus omnibus clarissime patet quod
creaturae multa possunt facere, quae
non facient, et multa omittere, quae non
omittent. Quare non omnia de
necessitate
eveniunt,
ut
publice
Ora, que as criaturas possam fazer
muitos que não fazem e omitir que não
omitem e, consequentemente, nem tudo
acontece necessariamente, mas muitos
se
dão
contingentemente,
é
manifestamente
mostrado
pelas
autoridades da sagrada escritura. Com
efeito, lê-se sobre um justo no
Eclesiástico, 31, 10: Pôde transgredir,
e não transgrediu; fazer o mal, e não
fez. E, como se lê no capítulo 6, 30, de
2º Macabeus, diz o escriba Eleazar
quando estava sob tormentos pela fé de
Deus: ó Senhor, que tens a santa
ciência, sabes manifestamente que eu,
ainda que pudesse libertar-me da
morte, sustento as crueldades e as dores
do corpo, pois segundo a alma por teu
temor de bom grado as sofro. E em
Mateus 26, 9, é dito sobre o unguento
que Maria Madalena derramou sobre a
cabeça de Jesus: este unguento podia ter
sido vendido por muito e ser dado aos
pobres, e, no entanto, nem foi vendido
nem dado aos pobres. De todos esses
fica clarissimamente patente que as
criaturas podem fazer muitos que não
19
Pedro Lombardo, Sententiarum I, d. 44, cap. 1.
35
praedicavit et docuit loannes XXII,
appellans quendam tenentem contrarium
propter
hoc
haereticum.
fazem e omitir muitos que não omitem.
Assim,
nem
tudo
acontece
necessariamente, como pregou e
ensinou publicamente João XXII,
chamando, em razão disso, de herético
a quem sustenta o contrário.
Adhuc, in doctrina praemissa
continetur alius error aperte, cum dicit
quod Deus de potentia absoluta non
potest salvare hominem sine sacramento
baptismi. Quod est erroneum : tum quia,
accipiendo sacramentum baptismi sicut
accipitur a theologis et sanctis, quando de
sacramento baptismi loquuntur (scilicet
pro ablutione in acqua cum debita forma
verborum), et multi de facto salvantur
sine tali sacramento, scilicet occisi pro
fide, et multi, qui per poenitentiam
absque baptismo fluminis (qui ipsum
habere non possunt) credunt se
baptizatos, salvantur: tum quia absque
baptismo fluminis, flaminis et sanguinis
posset nunc salvare infantes, sicut
antiquitus fecit muitos, ex quo manus
eius non est abbreviata nec eius potentia
est
in
aliquo
diminuta.
Ainda, na doutrina anunciada, está
contido abertamente outro erro, visto
que se diz que Deus não pode, pela
potência absoluta, salvar o homem sem
o sacramento do batismo. O que se vê
que seja errôneo: seja porque, tomando
o sacramento do batismo assim como é
tomado pelos teólogos e pelos santos
quando falam sobre o sacramento do
batismo (a saber, pela ablução na água
com a devida forma das palavras), tanto
muitos se salvam de fato sem tal
sacramento, a saber, mortos pela fé,
como muitos, que, por meio da
penitência, sem o batismo das águas
(que não podem receber), se creem
batizados, são salvos; seja porque sem o
batismo da água, do fogo e do sangue
pode agora salvar as crianças, assim
como fez muitos desde os tempos
antigos, donde sua mão não está
encurtada20 nem sua potência de algum
modo diminuída.
Rationes autem Ioannis XXII, quas
pro haeresi praedicta adducit, haereticales
sunt et omnino similes rationibus
haereticorum (quas allegat et solvit
Magister Sententiarum libro primo de
diversis distinctionibus), quibus haeretici
conabantur ostendere quod omnia
eveniunt
de
necessitate,
quia
praescientia Dei falli non potest, et quia
Ora, as razões de João XXII, que
toma o que foi mencionado por heresia,
são heréticas e completamente
semelhantes às razões dos heréticos (as
quais cita e resolve o Mestre das
Sentenças no livro Primeiro sobre
diversas distinções21), pelas quais os
heréticos buscavam mostrar que tudo
ocorre necessariamente, seja porque a
20
21
Cf. Is 59, 1.
Cf. Pedo Lombardo, Sentent. I, d. 38, 2; d. 40, 1.
36
in Deo idem est esse et velle, et quia in
Deo scire et praescire et esse sunt idem:
et
eodem modo solvi debent.
presciência de Deus não pode falhar,
seja porque em Deus é o mesmo o ser e
o querer, seja porque em Deus o saber e
o saber previamente e o ser são o
mesmo: e devem ser resolvidas do
mesmo modo.
Ad cuius evidentiam ad praesens
breviter est sciendum, quod ad recte
intelligendum distinctionem de potentia
Dei absoluta et ordinata non intendunt
quod in Deo sint diversae potentiae,
quarum una est absoluta et alia ordinata,
per quarum unam potest Deus aliqua,
quae non potest per aliam. Sed intendunt
solummodo quod Deus posset aliqua,
quae non ordinavit se facturum;
quemadmodum posset aliqua facere, quae
non praevidit se facturum, quia non est ea
facturus : quae tamen, si faceret, et
praeordinasset et praescivisset se
facturum. Non ergo sunt tales potentiae in
Deo diversae ; sed quemadmodum, ut
dicit Magister Sententiarum libro i, di. xlv:
Sacra [scriptura] de voluntate [Dei] variis
modis consuevit loqui; et non est
voluntas Dei diversa, sed locutio diversa
est de voluntate, quia nomine voluntatis
diversa accipit, sic scripturae divinae et
sanctorum diversimode loquuntur de
potentia Dei, et tamen potentia Dei est
una, et non diversa. Et ideo, licet
potentia Dei sit una, tamen propter
diversam locutionem dicitur quod Deus
aliqua potest de potentia absoluta, quae
tamen numquam faciet de potentia
ordinata (hoc est, de facto numquam
faciet) : quemadmodum essentia et
potentia, et similiter esse et posse, non
sunt diversa in Deo, et tamen Deus potest
Para a evidência disso cumpre
saber aqui, brevemente, que para o
correto entendimento da distinção sobre
a potência absoluta e ordenada de Deus
não pretendem que haja em Deus
potências diversas, das quais uma é
absoluta e a outra ordenada, por uma
das quais Deus pode alguns que não
pode pela outra. Mas pretendem
unicamente que pudesse alguns que não
se ordenou haver de fazer; de modo que
pudesse fazer alguns que não previu
haver de fazer porque não há de fazêlos; os quais, no entanto, se fizesse,
tanto preordenaria como saberia
previamente que haveria de fazê-los.
Portanto, tais potências não são diversas
em Deus; mas de modo que, como diz o
Mestre das Sentenças no livro 1,
distinção 4522: A Sagrada [Escritura]
costumeiramente falou de vários modos
sobre a vontade [de Deus]; e a vontade
de Deus não é diversa, mas é diversa a
locução sobre a vontade, porque toma a
diversos com o nome “vontade”, assim
as escrituras divinas e dos santos falam
de modos diversos sobre a potência de
Deus, e, no entanto, a potência de Deus
é una, não diversa. E, por isso, embora
a potência de Deus seja una, no entanto,
em razão de uma locução diversa se diz
que Deus pode alguns pela potência
absoluta que, no entanto, jamais fará
22
Cap. 5.
37
multa, non obstante quod non sint illa
multa, quae potest. Potest enim facere
et fecit creaturas, scilicet caelum et
terram et alia, et tamen non illa, quae
fecit,
et
illa,
quae
faciet.
pela potência ordenada (isto é, de fato
jamais fará): de modo que a essência e a
potência, e, semelhantemente, o ser e o
poder, não são diversos em Deus, e, no
entanto, Deus pode muitos sem que
obste que aqueles muitos que pode não
sejam. Com efeito, pode fazer e fez as
criaturas, a saber, o céu e a terra e
outros, e, no entanto, não aqueles que
fez e aqueles que fará.
Qualiter
autem non propter
diversitatem potentiarum in Deo, sed
propter diversitatem locutionis (hoc est,
propter diversum modum accipiendi
vocabula vel vocabulum) sit dicendum
quod Deus posset aliqua de potentia
absoluta, quae numquam faciet, non
posset verbis brevibus explicari, nec illi,
qui in scientiis philosophicis et theologicis
minime sunt sufficienter instructi,
faciliter valerent intelligere: ideo de hoc
ad praesens pertranseo.
Mas, segundo qual qualidade – não
em razão da diversidade das potências
em Deus, mas em razão da diversidade
da locução (isto é, em razão do modo
diverso de se tomar as palavras ou a
palavra) – deve ser dito que Deus pode
alguns pela potência absoluta que
jamais fará, não pode ser explicado com
palavras breves, nem aqueles que são
minimamente instruídos de modo
suficiente nas ciências filosóficas e
teológicas
conseguirão
entender
facilmente, por isso, aqui, abro mão
disso.
38
GUILHERME DE OCKHAM
Opus Nonaginta Dierum
(Obra dos Noventa Dias)
Capítulo 95*
ET si velit dicere quod illi regno et
E
se
quer
dizer
que
renunciou
dominio renuntiavit expresse, ostendat illam, si
expressamente àquele reino e domínio,
sciat : quod tamen, ut credimus, per sacram
mostre a renúncia, se souber, visto que, no
scripturam non poterit. Immo contrarium sacra
entanto, como cremos, não o poderia pela
scriptura supponit expresse; quae supponit eum
sagrada escritura. Melhor: a sagrada escritura
non longe a passione sua dixisse : Vos vocatis
supõe expressamente o contrário; visto que
me Magister, et Domine, et bene dicitis ; sum
supõe que, não muito antes de sua paixão,
etenim. Item, illud Matthaei xxi, ubi Dominus
tivesse dito: Vós me chamais de Mestre e de
duobus discipulis dixit: Ite in castellum, quod
Senhor, e dizeis bem; com efeito, eu sou [João
contra vos est, et statim invenietis asinam
13, 13]. Ainda, a passagem de Mateus 21, 2-
alligatam, et pullum cum ea ; solvite, et
3, em que o Senhor disse aos dois discípulos:
adducite michi ; et si quis vobis aliquid dixerit,
Ide à aldeia que está à vossa frente e logo
dicite quia Dominus hiis opus habet. Item,
encontrareis uma jumenta amarrada e um
tempore passionis se regem recognovit, ut
filhote com ela; desamarrai-os e trazei para
probatum est supra. Item, David in persona eius
mim; e se alguém disser algo a vós, direis que
legitur dixisse (etiam pro tempore passionis),
o Senhor necessita deles. Ainda, no tempo da
diviserunt sibi vestimenta mea et super vestem
paixão, se reconhece rei, como se provou
meam miserunt sortem, et recitatur Matthaei
antes. Ainda, lê-se (também quanto ao tempo
xxvii. Ex quibus evidenter apparet ipsum regno
da paixão) que Davi teria dito quanto à sua
et dominio non renuntiasse praedictis ; immo
pessoa: dividiram entre si minhas vestes e
videtur quod non potuerit renuntiare, et si
lançaram a sorte sobre minhas roupas, e é
fecisset, contra ordinationem Patris fecisset.
citado em Mateus 27 [Sl 21, 19; Mt 27, 35].
Dicitur enim Danielis ii, ubi de eius regno fit
A
mentio, sic : Suscitabit Deus caeli regnum, quod
evidentemente que ele não tenha renunciado
in aeternum non dissipabitur ; et regnum eius
ao reino e ao domínio preditos; melhor: vê-se
alteri non tradetur; item Danielis vii dicitur sic
que não poderia renunciar, e se o fizesse, o
: Dedit ei potesiatem, et honorem, et regnum, et
faria contra a ordenação do Pai. Com efeito,
omnes populi, tribus et linguae ipsi servient;
diz-se em Daniel 2, 44, em trecho em que se
potestas eius, potestas aeterna, quae non
faz menção a seu reino, assim: o Deus do céu
auferetur, et regnum eius non corrumpetur.
suscitará um reino que não será dissipado na
partir
dessas
passagens
aparece
eternidade; e seu reino não será entregue a
*
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1963. Opus Nonaginta Dierum: Capitula 7-124. R. F. Bennett e H.
S. Offler (curadores). † J. G. Sikes (ed.). H. S. Offler (rev.). [= G. de Ockham Opera Politica II].
Manchester : Manchester University Press, p. 715-729, por Carlos Eduardo de Oliveira.
39
outro; ainda, em Daniel 7, 14, diz-se assim:
Deu a ele o poder, a honra, o reino e todos os
povos, tribos e línguas a ele servirão; seu
poder, poder eterno, não será subtraído e seu
reino não será corrompido.23
IN parte ista nititur ostendere quod
Christus regno et universali dominio
nunquam renuntiavit. Primo autem dicit
quod appellans non potest probare per
scripturam sacram quod Christus
renuntiavit regno et dominio universali;
secundo, ibi: Immo contrarium, probat per
tres auctoritates quod Christus non
renuntiavit regno et dominio, sed ipsa
retinuit; tertio, ibi: Immo videtur, probat
quod Christus non potuit renuntiare regno
et dominio tali ratione : Christus non
potuit facere contra ordinationem Patris ;
sed Pater ordinavit quod regnum Christi
duraret in perpetuum ; ergo Christus regno
et dominio renuntiare non potuit.
Maiorem supponit tanquam certam,
habens pro impossibili quod Christus
fecisset contra ordinationem Patris;
minorem probat duabus auctoritatibus
Danielis.
Nesta parte se esforça em mostrar
que o Cristo jamais renunciou ao reino
e ao domínio universal. Ora, primeiro
diz que o apelante não pode provar pela
sagrada escritura que o Cristo renunciou
ao reino e ao domínio universal;
segundo, ali: “Melhor: a sagrada
escritura”, prova por três autoridades
que o Cristo não renunciou ao reino e ao
domínio, mas os manteve; terceiro, ali:
“melhor: vê-se”, prova que o Cristo não
pôde renunciar ao reino e ao domínio
por tal razão: o Cristo não pôde agir
contra a ordenação do Pai; ora, o Pai
ordenou que o reino de Cristo durasse
perpetuamente; portanto, o Cristo não
pôde renunciar ao reino e ao domínio.
Supõe a maior como certa, tomando por
impossível que o Cristo agisse contra a
ordenação do Pai; prova a menor com as
duas autoridades de Daniel.
Sed
isti
impugnatores,
licet
concedant quod Christus non renuntiavit
regno et dominio proprie loquendo (quia
ei, quod non est, renuntiari non potest;
Christus autem ante passionem suam
nunquam habuit inquantum homo regnum
temporale et dominium seu proprietatem
omnium temporalium; et per consequens
eisdem minime renuntiavit proprie
loquendo) : tamen dicunt istum
Mas os que contendem sobre isso,
embora concedam que o Cristo não
renunciou propriamente falando ao
reino e ao domínio (porque para ele, o
que não é, não pode ser renunciado; ora,
o Cristo antes de sua paixão jamais teve,
enquanto homem, o reino temporal e o
domínio ou a propriedade de tudo o que
é temporal; e, consequentemente, nunca
renunciou a isso, propriamente
23
Seguindo a edição latina a partir da qual foi feita esta tradução, iniciamos com a reprodução do trecho da
bula Quia vir reprobus (Porque um homem réprobo) de João XXII que será comentada por Ockham neste
capítulo.
Uma
versão
completa
da
bula
para
o
inglês
está
disponível
em
http://www.humanities.mq.edu.au/Ockham/wqvr.html (N. do T.).
40
impugnatum hic in duobus errare.
Quorum primum est quod Christus non
longe ante passionem habuit regnum
temporale et dominium seu proprietatem
rerum temporalium. Secundum est quod
ideo Christus nullo modo potuerit
renuntiare regno et dominio, quia, si
fecisset, contra ordinationem Patris
fecisset.
falando), dizem, porém, que este com
quem contendem comete aqui dois
erros. Dos quais o primeiro é que o
Cristo não muito antes da paixão teve o
reino temporal e o domínio ou a
propriedade das coisas temporais. O
segundo é que, por isso, o Cristo de
nenhum modo teria podido renunciar ao
reino e ao domínio, porque, se assim
agisse, agiria contra a ordenação do Pai.
Primum improbatum est prius, ubi
ostensum est quod Christus inquantum
homo mortalis nunquam habuit regnum
temporale et universale rerum dominium
seu proprietatem; et per consequens multo
magis ex quo coepit praedicare, non
habuit regnum et dominium supradicta. Et
quod tunc non habuerit regnum et
dominium memorata, potest ostendi.
Quod tamen non habuerit universale
dominium omnium, in sequenti capitulo
patebit. Hic vero probatur quod regnum
non
habuit
temporale.
O primeiro foi censurado antes24,
onde se mostrou que o Cristo enquanto
homem mortal jamais teve o reino
temporal e o domínio ou a propriedade
universal
das
coisas;
e,
consequentemente, muito mais em
razão daquilo que empreendeu pregar,
não teve o reino e o domínio
supramencionados. E é possível mostrar
que, então, não teria tido o reino e o
domínio lembrados. Porém, que não
teria tido o domínio universal de tudo,
será provado no capítulo seguinte25.
Aqui, de fato, será provado que não teve
o reino temporal.
Hoc enim beatus Augustinus in
quodam sermone de innocentibus testatur
expresse, qui loquens de regno Christi ait:
Putabat se infelix tyrannus Domini
Salvatoris
adventu
regali
solio
detrudendum. Sed non ita est. Non ad hoc
venerat Christus, ut alienam gloriam
invaderet, sed ut suam donaret. Non,
inquam, ad hoc venerat Christus, ut
regnum terrestre praeriperet; sed ut
caeleste donaret. Non venerat ad
Com efeito26, o bem-aventurado
Agostinho testemunha expressamente
isso num sermão27 sobre os inocentes,
no qual, ao falar sobre o reino de Cristo,
disse: O infeliz tirano considerava que
seria expulso de seu trono real pelo
advento do Senhor Salvador. Mas não é
assim. O Cristo não tinha vindo para
assaltar a glória alheia, mas para dar a
sua. O Cristo, digo, não veio para
arrebatar o reino terrestre, mas para
24
Cap. 93, lin. 206 ss.
Cap. 96, lin. 49-153.
26
Ockham cita uma série semelhante de autoridades em Brevilóquio IV, 8; Octo Quaestiones II, 6;
Consultatio de causa matrimonialis.
27
[Augustinus], Sermo suppositus CCXVIII, 3, PL 39, 2150.
25
41
potestates dignitatesque rapiendas, sed ad
contumelias et iniurias perferendas. Non
ad hoc venerat, ut sacrum illud caput ad
diadema gemmatum, sed ut ad coronam
spineam praepararet. Non, inquam,
venerat, ut constitueretur supra sceptra
magnificus ; sed ut crucifigeretur illusus.
Item, Leo papa in quodam sermone de
Epiphania ait: Sed apparet illos, scilicet
ludaeos, carnaliter cum Herode sapuisse
et regnum Christi commune cum huius
mundi potestatibus aestimasse, ut et isti
temporalem sperarent ducem et terrenum
metueret ille consortem. Ex hiis verbis
clare patet quod regnum Christi non fuit
tale, quale est regnum terrenorum, nec
Christus fuit dux temporalis ; et per
consequens rex fuit minime temporalis.
dar o celeste. Não veio para pilhar os
poderes e dignidades, mas para
suportar afrontas e injúrias. Não veio
para preparar aquela cabeça sagrada
para uma diadema incrustrada de
pedras preciosas, mas para uma coroa
de espinhos. Não veio, digo, para ser
constituído nobre sobre os cetros, mas
para ser ultrajado com a crucificação.
Ainda, o Papa Leão, em certo sermão
sobre a Epifania28, disse: Ora, era
evidente que eles, a saber, os Judeus,
carnalmente, junto com Herodes,
tenham entendido e julgado o reino de
Cristo comum aos poderes deste
mundo, dado que tanto estes
esperassem um líder temporal e
terreno, como aquele temesse um
consorte. Destas palavras aparece
claramente que o reino de Cristo não foi
tal qual é o reino dos que são da terra,
que Cristo não foi líder temporal, e,
consequentemente, tampouco foi rei
temporal.
Item, Augustinus in epistola ad
Madaurenses ait: Itaque non Christus
regno decoratus nec Christus terrenis
opibus dives nec Christus ulla terrena
felicitate praefulgens ; sed Christus
crucifixus per totum orbem terrarum
praedicatur. Item, Gregorius in Pastorali
ait: Ipse 'Dei et hominum Mediator'
regnum percipere vitavit in terris, qui
supernorum
spirituum
scientiam
sensumque transcendens ante saecula
regnat in caelis. Qui enim idcirco in carne
Ainda, Agostinho, na Carta aos
Madaurenses, disse: Assim, não o
Cristo ornado com o reino, nem o
Cristo opulento com as obras terrenas,
nem o Cristo que resplandece alguma
felicidade terrena, mas por todo o orbe
terrestre é pregado o Cristo
crucificado. Ainda, Gregório, na
Pastoral29, disse: “O Mediador entre
Deus e os homens”, tinha evitado
apoderar-se do reino na terra; ele que,
transcendendo a ciência e o sentido dos
28
Leão Magno, Sermo XXXIV, 2, PL 54, 246.
Gregório Magno, Pastoral. I, 3, PL 77, 16, citado por Boaventura, Apologia Pauperum, in Doctoris
Seraphici S. Bonaventurae Opera Omnia, ed. PP. Collegii a S. Bonaventura, VIII, AD Claras Aquas, 1898,
9, p. 297; Miguel de Cesena, Appellatio contra libelum “Quia vir reprobus”. Datada em Munique, 26 de
Março de 1330 Parin, BN cod. Lat. 5154, fos. 179-253v., fo. 191.
29
42
venerat, ut non solum [nos] per passionem
redimeret, verum etiam per suam
conversationem
doceret,
exempla
sequentibus praebens, rex fieri noluit. Ad
crucis ergo patibulum sponte pervenit,
oblatam gloriam culminis fugit, poenam
probrosae mortis expetiit, ut membra eius
discerent favores fugere, terrores minime
timere, pro veritate adversa diligere,
prospera formidando declinare. Item,
Augustinus super illud Ioannis, Ergo cum
cognovisset quia venturi essent, etc., ait:
Putare
ipsum
regnare
tunc
quemadmodum turbae putabant, erat eum
rapere, id est indebite trahere ac de ipso
aestimare. Ex hiis claret quod qui
putabant Christum regnare temporaliter,
trahebant Christum indebite, ac de ipso
etiam
indebite
aestimabant.
espíritos mais supernos, reina nos céus
antes dos séculos. Com efeito, aquele
que viera à carne, não só para [nos]
redimir pela paixão, mas também para
[nos] ensinar por seu comportamento,
dando exemplos aos seguidores, não
quis se fazer rei. Portanto, dirigiu-se
espontaneamente ao patíbulo da cruz,
recusou a glória oferecida no monte,
experimentou a pena da morte infame,
para
que
seus
companheiros
aprendessem a recusar os aplausos, a
jamais temer os terrores, a amar os
inimigos em favor da verdade, a fugir
com horror das honrarias. Ainda,
Agostinho, sobre aquela passagem de
João (6, 15)30: Então, dado que
soubesse que viessem, etc., disse:
Considerar que ele reinaria tal como a
multidão pensava, era pilhá-lo, isto é,
tomá-lo e julgá-lo de modo indevido.
Disto aparece que aqueles que
consideravam que o Cristo reinasse
temporalmente, tomavam o Cristo de
modo indevido, e também julgavam-no
de modo indevido.
Sed dicet aliquis quod Christus fuit
rex temporalis, quamvis temporaliter non
regnaret. Sed istam obiectionem confutat
beatus Augustinus super illud Ioannis,
Abiit Ihesus trans mare Galilaeae; qui ait:
Venit ipse unus, utramque personam in se
portans sacerdotis et regis : sacerdotis
per victimam, quam seipsum obtulit pro
nobis Deo ; regis, quia regimur ab eo ; ex
quibus verbis constat aperte quod Christus
non dicebatur rex nisi quia rexit; et per
consequens quia regnavit. Sed non
Mas alguém dirá que o Cristo foi
rei temporal, embora não tivesse
reinado temporalmente. Mas o bemaventurado Agostinho refuta esta
objeção ao tratar daquela citação de
João (6, 1)31: Jesus atravessou o mar da
Galileia. Ele diz: Ele veio uno, trazendo
em si ambas as pessoas do sacerdote e
do rei: sacerdote pelo sacrifício,
oferecendo-se a si mesmo por nós para
Deus; rei porque somos regidos por ele;
palavras a partir das quais consta
30
Provavelmente Ockham tinha em mente Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXV, 2, PL 35, 1597 = Cat.
aur. In Ioann. 6, § 2. Mas a citação não é literal.
31
Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXIV, 5, PL 35, 1595.
43
regnavit temporaliter ; ergo non fuit rex
temporalis. Item, glossa super illud
Ioannis xviii, Regnum meum non est de
hoc mundo, ait: Hoc est regnum, quod nos
scire voluit; sed prius vicissim
interrogando ostendere voluit quae et de
regno suo hominum esset opinio,
Iudaeorum et gentium; qua ostensa aptius
utrisque respondet: 'Regnum meum non
est de hoc mundo', [quasi]:' Decepti estis
; non enim impedio dominationem
vestram in mundo, ne vane timeatis et
saeviatis, sed ad regnum caeleste
credendo venire'. Hiis concordat
Ambrosius in hymno Epiphaniae dicens :
Hostis Herodes impie,
Impiamente, Herodes, Inimigo,
Christum venire quid times ?
o que temes se o Cristo vir?
Non arripit mortalia,
Não despoja o que é mortal,
Qui regna dat caelestia.
Aquele que dá o reino celestial.
Istis etiam consonat glossa in
principio libri Proverbiorum dicens:
Parabolae graece, latine similitudines :
quod vocabulum ideo Salomon huic operi
imposuit, ut non iuxta litteram
intelligamus, quae dicit. In quo Dominum
parabolice turbis locuturum significat,
sicut et nomine suo regno pacifico,
regnum Christi et ecclesiae, de quo
'Multiplicabitur eius imperium', de quo
32
abertamente que o Cristo não era
chamado rei senão porque reinava; e,
consequentemente, porque reinou. Mas
não reinou temporalmente. Portanto,
não foi rei temporal. Ainda, na glosa32
sobre aquela passagem de João 18, 36:
Meu reino não é deste mundo, disse:
Este é o reino que quis que
conhecêssemos; mas, ao interrogar
novamente, quis primeiramente mostrar
que havia a dúvida dos homens, tanto
judeus como gentios, sobre seu reino, a
qual revelada mais aptamente,
respondeu a ambas: “Meu reino não é
deste mundo” [como se respondesse]:
‘Estais enganados; com efeito, não
impeço vossa dominação no mundo, e
não temais e vos irriteis em vão, mas
crendo que venha o reino celeste”. Com
isto concorda Ambrósio33, que diz no
hino da Epifania:
Também é consoante a estas
palavras a glosa34 para o princípio do
livro dos Provérbios, que diz:
“Parábolas” em grego, “alegorias” em
latim: por isso Salomão intitulou esta
obra com este vocábulo, para que não
entendamos literalmente o que diz. No
que indica que o Senhor há de falar por
parábolas para as multidões, assim
como também com o nome de seu reino
Gl. ord. ad Ioann. 18, 36; cf. Augustinus, In Ioann. Evang. tr. CXV, 1-2, PL 35, 1939.
Antes, Sedúlio, Hymnus (ad vesperas in Epiphania Domini) II, ed. J. Hümer, Viena, 1885, p. 164-5,
citado por Miguel de Cesena, App. IV, fo. 191.
34
Gl. ord. ad init. libr. Proverbios, citado por Miguel de Cesena, ibidem.
33
44
dictum est: 'Et regnum eius non erit finis,
et super solium David et super regnum
eius sedebit'. Ipse etiam Christus filius
David et rex spiritualis Israel. Ex hiis
aliisque quampluribus colligitur evidenter
quod Christus non venit regnum suscipere
temporale, nec rex fieri voluit temporalis,
neque dignitates assumere temporales, sed
rex extitit spiritualis Israel. Quomodo
autem tempore passionis recognovit se
regem non temporaliter, sed spiritualiter,
est in praecedentibus declaratum.
pacífico, o reino de Cristo e da igreja,
sobre o qual “será multiplicado seu
império”, sobre o qual foi dito: “E seu
reino não terá fim, e sentará sobre o
trono de David e sobre o reino”35. Ele
próprio também o Cristo, filho de Davi,
e rei espiritual de Israel. Destas
palavras e de várias outras recolhe-se
evidentemente que o Cristo não veio
tomar o reino temporal, nem quis se
fazer rei do temporal nem assumir as
dignidades temporais, mas mostrou-se o
rei espiritual de Israel. Ora, de que
modo
reconheceu-se
rei,
não
temporalmente, mas espiritualmente, no
tempo da paixão, foi declarado
anteriormente.36
Secundum, in quo dicunt istum
errare, est quod ideo Christus nullo modo
potuit renuntiare regno et dominio
supradictis, quia, si fecisset, contra
ordinationem Patris fecisset. Ad cuius
intellectum dicunt esse sciendum quod
iste opinatur quod omnia de necessitate
eveniunt, ita quod contradictionem
includit quaecunque aliter evenire quam
eveniunt. Cuius ratio fundamentalis est,
quia Deus omnia ab aeterno, quomodo
debeant fieri, ordinavit; contradictionem
autem includit quod ordinatio divina
impediatur; ergo contradictionem includit
quod quaecunque aliter eveniant quam
eveniunt. Istam rationem generalem ad
probandum quod omnia de necessitate
eveniunt ipse hic applicat ad materiam
specialem, scilicet quod Christus non
potuit renuntiare regno et dominio
supradictis. Quia Deus Pater ab aeterno
O segundo em que dizem37 ele
errar é que, por isso, o Cristo não pode
renunciar de nenhum modo ao reino e
ao domínio antes mencionados, porque,
se o fizesse, o faria contra a ordenação
do Pai. Para que se entenda isso, dizem
que cumpre saber que este tem a opinião
de que tudo acontece necessariamente,
de modo que há contradição em que,
seja o que for, aconteça diversamente de
como acontece. A razão fundamental
disso é que Deus, desde a eternidade,
ordenou de que modo tudo deveria ser
feito. Ora, há contradição em que a
ordenação divina seja impedida.
Portanto, há contradição em que seja o
que for aconteça diversamente de como
acontece. Essa razão geral para a prova
de que tudo acontece necessariamente é
aplicada por ele aqui numa matéria
determinada, a saber, que o Cristo não
35
Cf. Is 9, 7.
Cap. 93, 1254-1316.
37
Cf. Ockham, Dialogus I, 5, 2.
36
45
ordinavit quod Christus non renuntiaret
regno et dominio; sed contradidionem
includit quod ordinatio divina impediatur,
et per consequens contradictionem
includit quod Christus faceret contra
ordinationem
Patris
;
ergo
contradictionem includit quod Christus
renuntiaverit
regno
et
dominio
saepedictis. Nec valet dicere ad
excusationem ipsius quod per potentiam
Dei ordinatam non potuit fieri quod
Christus renuntiaverit regno et dominio, et
sic intelligit iste hic ; hoc tamen potuit
fieri per Dei potentiam absolutam, quae
potest in omne illud, quod nequaquam
contradictionem includit. Quia iste
impugnatus,
ut
quidam
istorum
impugnatorum dicunt se audivisse ab ore
eius, et ipse postea in suis sermonibus
declaravit, negat illam distinctionem
theologorum de potentia Dei ordinata et
absoluta, nitens multis rationibus
ostendere quod quicquid potest Deus de
potentia absoluta, potest etiam de potentia
ordinata, et quicquid non potest de
potentia ordinata, non potest de potentia
absoluta. Unde quendam istorum
impugnatorum
propter
illam
distinctionem et illa, quae sequuntur ex
ipsa principaliter, acerbe prosequitur.
Principalis autem ratio sua, quare negat
illam distinctionem de potentia absoluta et
ordinata, est quia, si Deus aliquid faceret
de potentia absoluta, quod non faceret de
potentia ordinata, Deus posset aliquid
facere, quod non ordinavit se facturum ; et
ita Deus esset mutabilis. Alia ratio sua est
pôde renunciar ao reino e ao domínio
antes mencionados porque Deus Pai
desde a eternidade ordenou que o Cristo
não renunciasse ao reino e ao domínio.
Ora, há contradição em que a ordenação
divina
seja
impedida,
e,
consequentemente, há contradição em
que o Cristo tivesse agido contra a
ordenação do Pai; portanto, há
contradição em que o Cristo tivesse
renunciado ao reino e ao domínio tantas
vezes mencionado. E não vale dizer em
favor dele que não pôde se dar que o
Cristo tivesse renunciado ao reino e ao
domínio pela potência ordenada de
Deus, tal como ele a entende aqui, o
que, no entanto, pôde ser feito pela
potência absoluta de Deus, que pode
quanto a tudo aquilo em que não há
qualquer contradição, pois este
contendedor, como alguns destes
contendedores dizem ter ouvido de sua
boca, e ele depois declarou em seus
sermões38, nega aquela distinção dos
teólogos entre a potência ordenada e
absoluta de Deus, esforçando-se para
mostrar por muitas razões que tudo que
Deus pode pela potência absoluta,
também pode pela potência ordenada, e
tudo que não pode pela potência
ordenada, não pode pela potência
absoluta. Donde persegue duramente
alguns destes contendedores39 em razão
dessa distinção e, principalmente,
daquilo que ela implica. Ora, sua
principal razão40, pela qual nega a
distinção entre a potência absoluta e a
Por exemplo, o sermão de João XXII: “Tulerunt iusti spolia impiorum” (Sb 10, 19), pregado em 1330.
Cf. Ockham, Contra Ioannem 22-23; Contra Benedictum III, 3.
39
Provavelmente Ockham faz referência a si mesmo.
40
Cf. Tulerunt..., op. cit.
38
46
quia in Deo idem est essentia et potentia.
Sed in Deo non sunt duae essentiae ; ergo
nec
duae
potentiae.
ordenada, é que se Deus fizesse algo
pela potência absoluta que não fizesse
pela potência ordenada, Deus poderia
fazer algo que não se ordenou haver de
fazer, e, assim, Deus seria mutável.
Outra razão sua41 é que em Deus a
essência e a potência são o mesmo. Ora,
não há duas essências em Deus.
Portanto, nem duas potências.
Hiis visis, dicunt isti quod iste hic
dogmatizat
implicite
haeresim
detestandam, scilicet quod omnia
eveniunt de necessitate; ideo hic contra
istum sic proceditur : Primo probant quod
non omnia eveniunt de necessitate;
secundo ostendunt quod nulla quantum ad
divinam
potentiam
eveniunt
de
necessitate; tertio moliuntur ostendere
specialiter quod, si Christus habuit
regnum et dominium supradicta, ipse
potuit renuntiare absolute eisdem ; quarto,
declarant quomodo debet intelligi quod in
Deo est duplex potentia, scilicet absoluta
et ordinata, et quomodo Deus potest
aliqua facere de potentia absoluta, quae
non facit de potentia ordinata ; quinto ad
rationes, quae pro haeresi sua tanguntur,
respondent.
Visto isso, estes dizem que aquele
proclama, implicitamente, uma heresia
que há de ser abominada, a saber, que
tudo acontece necessariamente; por
isso, assim se procede aqui contra ele:
Primeiro, provam que nem tudo
acontece necessariamente; segundo,
mostram que nada, no que toca à
potência
divina,
acontece
necessariamente; terceiro, empenhamse em mostrar especialmente que, se o
Cristo teve o reino e o domínio acima
mencionados,
pôde
renunciar
absolutamente a eles; quarto, declaram
de que modo deve ser entendido que há
em Deus uma dupla potência, a saber, a
absoluta e a ordenada, e de que modo
Deus pode fazer, pela potência absoluta,
alguns que não faz pela potência
ordenada; quinto, respondem às razões
que consideram a heresia dele.
Primo igitur probare conantur quod
non omnia eveniunt de necessitate, sed
quod aliqua possent aliter evenire. Et
primo sic: Deus potuit et potest multa
facere, quae non fecit nec facit, et posset
multa non facere, quae facit; ergo multa
potuerunt et possent aliter evenire quam
evenerint et eveniant; et per consequens
Portanto, primeiro buscam provar
que
nem
tudo
acontece
necessariamente, mas que alguns
podem acontecer diversamente. E
primeiro assim42: Deus pôde e pode
fazer muitos, que não fez nem faz, e
poderia não fazer muitos que faz.
Portanto, muitos puderam e podem
41
42
Cf. ibidem e o sermão de João XXII “Deus autem rex noster” (Sl 73, 12).
Cf. Ockham, Ord. I, d. 43, q. 1.
47
non omnia eveniunt de necessitate, sed
plura contingenter. Antecedens probatur
auctoritatibus manifestis. Nam, ut habetur
Matthaei iii, Ioannes Baptista ait: Potens
est Deus de lapidibus istis suscitare filios
Abrahae ; et idem recitat Lucas, c. iii. Ex
quibus verbis, quae non solum mystice,
sed etiam ad litteram debent intelligi, patet
quod Deus potuit de lapidibus suscitare
filios Abrahae: quod tamen nequaquam
fecit. Secunda auctoritas habetur libro
Sapientiae c. xi, ubi sic scribitur: Quod
quidam errantes colebant mutos serpentes
et bestias supervacuas, immisisti illis
multitudinem mutorum animalium in
vindictam ; ut scirent quia per quae
peccat quis, per haec et torquetur. Non
enim impossibilis erat omnipotens manus
tua, quae creavit orbem terrarum ex
materia
invisa,
immittere
illis
multitudinem ursorum, aut audaces
leones, aut novi generis ira plenas et
ignotas bestias, aut vaporem ignium
spirantes, aut odorem fumi proferentes,
aut horrendas ab oculis scintillas
emittentes ; quarum non solum laesura
poterat illos exterminare, sed et aspectus
per timorem occidere. Nam et sine hiis
uno spiritu occidi poterant. Hiis verbis
patenter asseritur quod Deus multis modis
poterat malos occidere et punire, quibus
tamen eos minime molestavit. Poterat
ergo multa facere, quae non fecit.
acontecer diversamente do que teriam
acontecido
e
acontecem,
e,
consequentemente, nem tudo acontece
necessariamente,
mas
muitos
contingentemente. A antecedente é
provada pelas autoridades manifestas.
Pois, como se tem em Mateus 3, 9, João
Batista disse: Deus tem a potência de
suscitar destas pedras filhos para
Abraão; e o mesmo cita Lucas, cap. 3,
8. Destas palavras, que não devem ser
entendidas somente de modo místico,
mas também literalmente, é patente que
Deus pôde suscitar das pedras filhos
para Abraão: o que, no entanto, jamais
fez. A segunda autoridade provém do
livro da Sabedoria, cap. 11, 15-20, onde
está escrito assim: Visto que alguns
errantes cultuavam a serpentes mudas e
a animais inúteis, enviaste a eles em
vingança uma multidão de animais
mudos, para que soubessem que aquilo
pelo que alguém peca, também o pune.
Com efeito, não era impossível à tua
mão onipotente, que criou o orbe da
terra e a matéria informe, enviar a eles
uma multidão de ursos ou de leões
indomáveis, ou animais desconhecidos
de um novo gênero repletos de ira, ou
que expirassem um vapor de fogo, ou
que exalassem um odor de fumaça, ou
que emitissem centelhas horríveis pelos
olhos, que pudessem exterminá-los não
só pelo ataque, mas também matá-los
pelo medo. Pois, mesmo sem isso
poderiam ser mortos por um sopro.
Destas palavras, é patentemente
asseverado que Deus poderia matar e
punir de muitos modos maus pelos
quais, porém, jamais os molestou.
48
Portanto, poderia fazer muitos que não
fez.
Item, sicut legitur Danielis iii:
Sidrach, Misach et Abdenago dixerunt ad
regem Nabuchodonosor: Ecce enim Deus
noster, quem colimus, potest eripere nos
de camino ignis ardentis, et de manibus
tuis, o rex, liberare. Quod si noluerit,
notum sit tibi, rex, quia deos tuos non
colimus. Ex hiis verbis colligitur evidenter
quod isti tres viri fideles, catholici atque
sancti firmiter crediderunt quod Deus eos
potuit liberare de camino ignis, et tamen
nesciebant an eos voluerit liberare ; et per
consequens ignorabant an eos esset
liberaturus. Ergo firmiter crediderunt
quod Deus eos potuit liberare, esto quod
non esset eos liberaturus ; ex quo sequitur
evidenter quod crediderunt Deum posse
facere
aliqua,
quae
non
facit.
Ainda, tal como se lê em Daniel 3,
16-18, Sidrac, Misac e Abdênago
disseram ao rei Nabucodonosor: com
efeito, eis que o nosso Deus, a quem
cultuamos, pode nos tirar do caminho
de fogo ardente e libertar de tuas mãos,
ó rei. Se ele não o quiser, saiba, ó rei,
que não veneramos os teus deuses.
Dessas
palavras
recolhe-se
evidentemente que estes três homens
fiéis, católicos e santos, acreditaram
firmemente que Deus pôde livrá-los do
caminho de fogo e, no entanto, não
sabiam se acaso ele queria livrá-los.
Consequentemente, ignoravam se acaso
haveriam de ser livrados. Portanto,
acreditaram firmemente que Deus pôde
livrá-los, ainda que não houvesse de
livrá-los. Disto se segue evidentemente
que acreditaram que Deus pudesse fazer
alguns que não faz.
Item, sicut legitur Lucae i, dixit
angelus ad Mariam : Non erit impossibile
apud Deum omne verbum, volens per hoc
persuadere possibilitatem incarnationis :
quae
persuasio
nullam
haberet
apparentiam, nisi Deus posset facere
aliqua, quae non facit. Si enim Deus non
posset facere alia quam facit et faciet,
quantum ad rem non esset differentia inter
propositionem de futuro et propositionem
de possibili, sed dicere : 'Deus potest
incarnari' tantum valeret acsi diceret:
'Deus incarnabitur'. Et ita, sicut per illam :
'Non est impossibile apud Deum omne
verbum', non potest probari quod Deus
incarnabitur, ita per ipsam non posset
probari quod Deus potest incarnari; quare
Ainda, assim como se lê em Lucas
1, 37, o anjo disse à Maria: Nenhuma
palavra será impossível para Deus,
querendo com isso persuadir a
possibilidade da encarnação: persuasão
que não teria valor algum a não ser que
Deus pudesse fazer alguns que não faz.
Com efeito, se Deus não puder fazer
diversamente do que faz e fez, quanto à
coisa não haveria diferença entre a
proposição sobre o futuro e a
proposição sobre o possível, mas dizer:
“Deus pode se encarnar” seria o mesmo
que dizer: “Deus irá se encarnar”. E,
assim, tal como por “Nenhuma palavra
é impossível para Deus” não seria
possível se provar que Deus irá se
49
ad
persuadendum
possibilitatem
incarnationis haec propositio : 'Non est
impossibile apud Deum omne verbum',
esset inutilis. Patet igitur quod Deus potest
facere multa, quae non facit. Quod etiam
ratione probatur. Nam qui est omnipotens
potest multa facere, quae non facit; non
enim dicitur aliquis omnipotens, quia facit
omnia, quae facit, sed quia, sive faciat sive
non faciat omnia, potest. Deus autem est
omnipotens, sicut per scripturam sacram
et symbolum Apostolorum et etiam per
symbolum, quod cantatur in missa, patet
aperte; ergo Deus potest facere multa,
quae
non
facit.
encarnar, também não seria possível
provar por ela que Deus pode se
encarnar, visto que, para persuadir a
possibilidade da encarnação, a
proposição “Nenhuma palavra é
impossível para Deus” seria inútil.
Portanto, é patente que Deus pode fazer
muitos que não faz. O que se prova
também pela razão. Pois aquele que é
onipotente pode fazer muitos que não
faz; com efeito, alguém não é dito
onipotente porque faz tudo o que faz,
mas porque, faça ou não faça tudo,
pode. Ora, Deus é onipotente, assim
como é claramente patente pela sagrada
escritura e pelo símbolo dos Apóstolos
e pelo símbolo que é cantado na missa43.
Portanto, Deus pode fazer muitos que
não faz.
Item, quod Deus possit facere multa,
quae non facit, probat Magister
Sententiarum, libro i, di. xliii, auctoritate
Salvatoris, Matthaei xxvi, An putas, quia
non possum, etc., sic dicens: Quod ut
certius firmiusque teneatur, scripturae
testimoniis asseramus, Deum aliter facere
posse, quam faciat. Veritas ipsa ait: 'An
putas, quia non possum rogare Patrem
meum, et exhibebit michi plus quam
duodecim legiones angelorum ?' Ex
quibus verbis patenter innuitur, quod et
Filius poterat rogare quod non rogabat, et
Pater poterat exhibere quod non
exhibebat. Uterque igitur poterat facere
quod
non
faciebat.
Ainda, que Deus possa fazer
muitos que não faz, prova o Mestre das
Sentenças, livro 1, d. 43, pela
autoridade do Salvador, em Mateus 26,
53: Pensas acaso que não posso, etc., ao
dizer assim: Asseveramos pelos
testemunhos da escritura o que deve ser
assumido como o mais certo e mais
firme:
que Deus
pode fazer
diversamente do que faz. A própria
verdade diz: “Pensas acaso que não
posso pedir ao meu Pai, e ele me dará
mais de doze legiões de anjos?” Destas
palavras claramente se indica que tanto
o Filho podia pedir o que não pedia
como o Pai podia dar o que não dava.
Portanto, cada um deles poderia fazer o
que não fazia.
Item, Augustinus in Enchiridion, et
Magister Sententiarum allegat ibidem, ait:
Ainda, Agostinho – e o Mestre das
Sentenças alega o mesmo – disse no
43
Cf. Gn 17, 1; Credo Apostólico e o Credo Niceno-Constantinopolitano.
50
Omnipotens voluntas multa potest facere,
quae non vult facere nec facit. Item,
Augustinus in eodem, ut Magister allegat
ubi supra, ait: Cur apud quosdam non
factae sunt virtutes, quae si factae
fuissent,
egissent
illi
homines
poenitentiam ; et factae sunt apud eos qui
non
erant
credituri?
Enchiridion44: A vontade onipotente
pode fazer muitos que não quer fazer
nem faz. Ainda, Agostinho no mesmo
lugar, como o Mestre alega no lugar
acima, disse: Por que há virtudes não
feitas para alguns – as quais, se
tivessem sido feitas, esses homens
teriam se penitenciado –, mas feitas
junto àqueles que não creram?
Tunc non latebit quod nunc latet. Nec
utique Deus iniuste noluit salvos fieri,
cum possent salvi esse, si vellet. Tunc in
clarissima sapientiae luce videbitur quod
nunc piorum fides habet, antequam
manifesta cognitione videatur, quam certa
et incommutabilis et efficacissima sit
voluntas Dei, quae multa possit et non
velit, nichil autem quod non possit, velit.
Em tal momento, não se esconderá
o que agora está escondido. Nem,
principalmente, Deus não quis salvalos injustamente, dado que pudessem
ser salvos, se o quisesse. Em tal
momento, na claríssima luz da
sabedoria, se verá o que agora tem a fé
dos pios antes que seja visto pela
cognição manifesta: o quão seja certa e
incomutável e muito eficaz a vontade de
Deus, que muitos pode e não quer; ora,
não quer nada que não pode.
Item, idem, ut recitatur ibidem, ait:
Dominus Lazarum suscitavit in corpore.
Nunquid dicendum est, non potuit Iudam
suscitare in mente ? Potuit quidem, sed
noluit. Item, Augustinus super Genesim,
et Magister recitat di. xliv, dicit sic: Talem
potuit Deus hominem fecisse, qui nec
peccare posset, nec vellet; et tamen talem
non fecit; ergo Deus potuit facere quod
non fecit. Unde et de illis, qui dicunt
Deum non posse facere aliud quam facit,
dicit Magister Sententiarum, libro i, di.
xliii in haec verba : Quidam tamen 'de suo
sensu gloriantes, Dei potentiam coartare
sub mensura conati sunt. Cum enim
Ainda, o mesmo45, como é citado
no mesmo lugar46, disse: O Senhor
suscitou Lázaro no corpo. Acaso deve
ser dito que não pôde suscitar Judas na
mente? Certamente pôde, mas não quis.
Ainda, Agostinho Sobre o Gênesis47, e
o Mestre o cita na distinção 44, disse
assim: Deus pôde ter feito um homem
tal que não pudesse nem quisesse pecar,
e, no entanto, não o fez. Portanto, Deus
pôde fazer o que não fez. Donde
também quanto àqueles que dizem que
Deus não pode fazer diversamente do
que faz, disse o Mestre das Sentenças,
no livro 1, distinção 43, nestas palavras:
44
Cf. Agostinho, Enchir. 95, PL 40, 276; Pedro Lombardo, Sentent. I, d. 43, q. unica.
Agostinho, De natura et gratia 7, PL, 250-1.
46
Pedro Lombado, loc. cit.
47
Agostinho, In Gen. ad litt. 11, 7, PL 34, 433.
45
51
dicunt: Hucusque potest Deus et non
amplius, quid est hoc aliud, quam eius
potentiam, quae infinita est, concludere et
restringere ad mensuram ? Aiunt enim :
Non potest Deus aliud facere quam facit,
nec melius facere illud, quod facit, nec
aliquid praetermittere de hiis, quae facit'.
Ex hiis verbis constat aperte quod
secundum Magistrum Sententiarum, qui
dicunt Deum non posse facere aliud quam
facit, divinam potentiam infinitam ad
mensuram conantur restringere ; et per
consequens in articulum fidei de
omnipotentia Dei impudenter impingunt.
No entanto, alguns48 “gloriando-se de
seus sentidos, buscaram resumir a
potência de Deus sob a medida. Com
efeito, o que dizem: e até aqui Deus
pode, e não mais; o que é isso, se não
enclausurar e restringir a sua potência,
que é infinita, à medida? Dizem, com
efeito: Deus não pode fazer senão o que
faz, nem pode fazer melhor aquilo que
faz, nem omitir algo do que faz”49.
Dessas palavras consta claramente que
segundo o Mestre das Sentenças,
aqueles que dizem que Deus não pode
fazer algo diverso do que faz, visam
restringir a potência divina infinita a
uma medida; e, consequentemente,
atacam irrefletidamente o artigo de fé
sobre a onipotência de Deus.
Unde pro illis, qui sequuntur
doctrinam Thomae, quod ipse hoc
tenuerit, scilicet Deum posse aliqua
facere, quae non facit, est monstrandum.
Libro enim secundo contra Gentiles, c.
xxiii probat ex intentione quod Deus non
agit de necessitate naturae in creaturis,
sed per arbitrium voluntatis. Item, c. xxvi
probat quod divinus intellectus ad certos
effectus non coartatur; unde in fine
capituli dicit: Sciendum tamen quod,
quamvis divinus intellectus ad certos
effectus non coartetur, ipse tamen sibi
statuit determinatos effectus, quos per
suam sapientiam ordinate producat. Item,
c. xxvii probat quod nec voluntas Dei
coartatur ad determinatos effectus; unde
in fine concludit, dicens : Non igitur ex
necessitate divinae voluntatis aliqui
effectus procedunt, sed ex eius libera
Donde cumpre mostrar para
aqueles que seguem a doutrina de
Tomás que ele sustentou isso, a saber,
que Deus pode fazer alguns que não faz.
Com efeito, no segundo livro do Contra
Gentiles, cap. 23, prova a partir da
intenção que Deus não age pela
necessidade da natureza nas criaturas,
mas pelo arbítrio da vontade. Ainda, no
cap. 26, prova que o intelecto divino não
é resumido a certos efeitos; donde, no
fim do capítulo, diz: No entanto,
cumpre saber que, embora o intelecto
divino não seja resumido a certos
efeitos, ele, porém, estabelece para si
determinados efeitos, os quais produz
ordenadamente por sua sabedoria.
Ainda, no cap. 27, prova que nem a
vontade de Deus é reduzida a
determinados efeitos; donde, no fim,
48
49
Pedro Abelardo, Introd. ad Theol. III, 4-6, PL 178, 1091 ss.
Cf. Hugo de São Vitor, De sacramentis, I, 2, 22, PL 176, 214.
52
dispositione. Item, c. xxviii dicit: Per haec
autem excluditur quorundam error
probare nitentium quod Deus non potest
facere nisi quod facit, quia non potest
facere nisi quod debet. Et post dicit sic :
Non est autem necessarium, si Deus suam
bonitatem vult esse, quod Deus velit alia a
se produci ; et post: Ostensum est quod
Deus produxit res in esse non ex
necessitate naturae, neque ex necessitate
scientiae, neque voluntatis, neque
iustitiae. Nullo igitur modo necessitatis
divinae bonitati est debitum quod res in
esse producuntur. Item, libro tertio, c. xcv
ait: Nichil igitur Deus facere potest, quin
sub ordine suae providentiae cadat: sicut
non potest aliquid facere quod eius
operationi non subdatur. Potest tamen
alia facere quam ea, quae subduntur eius
providentiae vel operationi, si absolute
consideretur eius potestas, sed nec potest
facere aliqua, quae sub ordine
providentiae ipsius ab aeterno non
fuerint, eo quod mutabilis esse non potest.
Hanc autem distinctionem quidam non
considerantes, in diversos errores
inciderunt. Quidam vero immobilitatem
divini ordinis ad res ipsas, quae ordini
subduntur, extendere conati sunt, dicentes
quod omnia necesse est esse [sicut sunt],
in tantum quod quidam dixerunt quod
Deus non potest alia facere quam quae
facit. Contra quod est quod habetur
Matthaei xxvi: ' An non possum rogare
Patrem meum, et exhibebit michi plus
quam duodecim legiones angelorum ?' Ex
hiis aliisque quampluribus, quae prima
parte Summae et super primum librum
Sententiarum et aliis locis diversis iste
50
Contra Gentiles III, cap. 98.
conclui dizendo: Portanto, alguns
efeitos não procedem necessariamente
da vontade divina, mas de sua livre
disposição. Ainda, no capítulo 28, diz:
Ora, por isso está excluído qualquer um
que se esforce por provar o erro de que
Deus não pode fazer senão o que faz,
porque não pode fazer senão o que
deve. E, depois, diz assim: Ora, não é
necessário, se Deus quer que sua
bondade seja, que Deus queira que
outros diversos de si sejam produzidos.
E, depois: Mostrou-se que Deus
produziu as coisas no ser não a partir
da necessidade da natureza, nem da
necessidade da ciência, nem da
vontade, nem da justiça. Portanto, a
nenhum modo de necessidade da
bondade divina é devida a produção
das coisas no ser. Ainda, no livro
terceiro, capítulo 9550, disse: Portanto,
Deus não pode fazer nada sem que caia
sob a ordem de sua providência: assim
como não pode fazer algo que não se
submeta à sua operação. No entanto,
pode fazer outros além destes, que se
submetem à sua providência ou
operação, se seu poder for considerado
absolutamente, mas não pode fazer
alguns, que não tenham sido sob a
ordem de sua providência desde a
eternidade, visto que não pode ser
mutável. Ora, alguns, ao não
considerar esta distinção, caem em
vários erros. De fato, alguns se
esforçam por estender a imobilidade da
ordem divina às próprias coisas que
estão submetidas à ordem, ao dizer que
tudo necessariamente tem o ser [assim
53
doctor determinat, patet expresse quod
ipse erroneum reputat dicere quod Deus
non potest alia facere quam facit vel quod
omnia
eveniunt
de
necessitate.
como o tem], a ponto que alguns
disseram que Deus não pode fazer
outros além dos que faz. Contra isso há
o que se tem em Mateus 26, 53: “Acaso
não posso pedir ao meu Pai, e ele me
dará mais de doze legiões de anjos?”
Destas e de várias outras, que este
doutor determina na primeira parte da
Suma e sobre o Primeiro Livro das
Sentenças51 e em outros lugares
diversos, é expressamente patente que
ele considera errôneo dizer que Deus
não pode fazer outros além dos que ele
faz
ou
que
tudo
acontece
necessariamente.
Secundo eandem conclusionem,
quod non omnia eveniunt de necessitate,
probant praedicti impugnatores sic :
Creaturae rationales multa non faciunt,
quae possent facere, ergo non omnia de
necessitate eveniunt. Consequentia est
evidens; antecedens auctoritate et ratione
probatur. Auctoritate primo sic : ii
Machabaeorum c. vi, Eleazarus, qui pro
divinis legibus mortem sustinuit, cum
plagis perimeretur, dixit: Domine, qui
habes sanctam scientiam, manifeste tu
scis, quia, cum a morte possem liberari,
duros corporis sustineo dolores ;
secundum animam vero propter timorem
tuum libenter haec patior. Ex quibus
verbis evidenter colligitur quod iste vir
sanctus potuisset infidelibus consentire, et
sic a morte liberari; et tamen non
consensit; potuit ergo aliquid facere, quod
non fecit. Item, Ecclesiastici c. xxxi de
beato divite sic scribitur: Qui potuit
transgredi, et non est transgressus ; et
facere mala, et non fecit. Hiis verbis
Segundo, a mesma conclusão, de
que tudo não acontece necessariamente,
os mencionados contendedores provam
assim: as criaturas racionais não fazem
muito do que podem fazer, portanto,
nem tudo acontece necessariamente. A
consequência é evidente, a antecedente
é provada pela autoridade e pela razão.
Pela autoridade, primeiro, assim: em 2º
Macabeus, cap. 6, 30, aquele que
sustentou a morte em favor das leis
divinas, visto que seria morto a golpes,
disse: ó Senhor, que tens a santa
ciência, sabes manifestamente que eu,
ainda que pudesse libertar-me da
morte, sustento as crueldades, as dores
do corpo, pois segundo a alma por teu
temor de bom grado as sofro. Destas
palavras evidentemente se recolhe que
este homem santo poderia ceder aos
infiéis, e assim livrar-se da morte. No
entanto, não cedeu. Portanto, pôde fazer
algo que não fez. Ainda, Eclesiástico,
cap. 31, 10, sobre a riqueza bem-
51
Suma de Teologia I, q. 19, a. 3; In Sent., d. 43, q. 2, a. 1.
54
clarius dici non posset quod potest quis
facere aliquid, quod non facit. Item, sicut
habetur Matthaei xxvi et Marci xiv,
discipuli Christi dixerunt: Ut quid perditio
ista unguenti facta est ? Poterat enim
unguentum istud venundari plus quam
trecentis denariis, et dari pauperibus ; et
tamen non fuit venundatum nec datum
pauperibus ; ergo aliquid potuit fieri, quod
tamen non fiebat. Nec enim Christus de
hoc, quod asseruerunt illud unguentum
potuisse venundari et dari pauperibus,
ipsos aliqualiter reprehendit, sed de
indignatione ipsorum de effusione
unguenti super caput ipsius. Item,
Matthaei xx, cum Christus interrogaret
Iacobum et Ioannem: Potestis bibere
calicem, quem bibiturus sum ?
responderunt: Possumus ; non dixerunt '
Bibemus '. Ex quo patet quod sciverunt se
posse bibere calicem Christi; nescierunt
tamen an essent bibituri. Item, Genesis
xxxi dixit Laban ad Iacob : Et nunc valet
quidem manus mea reddere tibi malum ;
sed Deus patris tui heri dixit michi: Cave
ne loquaris cum Iacob quicquam durius.
Ex quibus verbis colligitur quod Laban
potuit reddere malum Iacob ; et tamen non
fecit; ergo potuit aliquid facere, quod
minime
fecit.
aventurada, assim se escreve: Aquele
que pôde transgredir, e não
transgrediu; fazer o mal, e não fez. Não
é possível dizer mais claramente com
estas palavras que alguém pode fazer
algo que não faz. Ainda, assim como se
encontra em Mateus 26, 8-9 e Marcos
14, 4-5, os discípulos de Cristo
disseram: Para que ter desperdiçado
este unguento? Com efeito, podia tê-lo
vendido por mais de trezentos denários,
e dá-los ao pobres, e, no entanto, não foi
vendido nem dado aos pobres; portanto,
pôde ser feito algo que, porém, não foi
feito. Com efeito, não é do que
asseveraram sobre a possibilidade de se
ter vendido o unguento e dá-lo aos
pobres que Cristo igualmente os
repreende, mas pela indignação deles
pelo derramamento de unguento sobre
sua cabeça. Ainda, Mateus 20, 22,
quando Cristo interrogou a Tiago e
João: Podeis beber o cálice que haverei
de beber? eles responderam: Podemos;
não disseram: “Bebemos”. Do que é
patente que souberam que poderiam
beber o cálice de Cristo, não souberam,
no entanto, se acaso o beberiam. Ainda,
em Gênesis 31, 28-29, Labão disse a
Jacó: E agora certamente minha mão
tem como trazer-te o mal, mas Deus, o
teu pai, disse-me ontem: Cuida de não
falar a Jacó nada de mais duro. De
cujas palavras se colhe que Labão pôde
fazer o mal a Jacó e, no entanto, não fez;
portanto, pode fazer algo que jamais
fez.
Hoc etiam ratione probatur: Nam qui
potest mereri et demereri, potest facere
aliquid, quod non facit; nam si non posset
Isso também é provado pela razão:
pois aquele que pode merecer e
desmerecer, pode fazer algo que não
55
aliter facere, non esset in potestate eius
aliter facere ; sed per illud, quod non est
in potestate alicuius, ipse non meretur nec
demeretur. Sed homo potest mereri et
demereri; ergo potest aliter facere et aliud
quam facit. Haec ratio confirmatur : Quia
omne meritum est laudabile et omne
demeritum est vituperabile. Sed illud,
quod non est in nostra potestate, ut
possimus illud facere et non facere, non
est laudabile neque vituperabile; ergo
omne meritum et demeritum est in nostra
potestate, ut possimus illud facere et non
facere. Maior est evidens ; minor probatur
auctoritate Augustini tertio de Libero
Arbitrio, qui ait: Motus quo huc atque
illuc voluntas convertitur, nisi esset
voluntarius atque in nostra potestate,
neque laudandus cum ad superiora neque
culpandus homo esset cum ad inferiora
detorquet quasi quemdam cardinem
voluntatis ; ex quibus verbis colligitur
evidenter quod illud, quod non est in
potestate nostra, et tamen facimus, non est
laudabile nec vituperabile. Hiis concordat
Sapiens mundi, iii Ethicorum, ubi probat
quod propter illa, quae non sunt in
potestate nostra, neque laudamur neque
vituperamur. Patet ergo quod omne
meritum et demeritum est in potestate
nostra; et per consequens possumus multa
non facere, quae facimus, et similiter
multa facere, quae non facimus. Quare
concluditur evidenter quod non omnia de
necessitate eveniunt; aliter enim, ut probat
Philosophus, non oporteret negotiari
neque consiliari; quia de illis, quae de
necessitate eveniunt, non oportet negotiari
neque
consiliari.
52
53
faz; pois se não pudesse fazer
diversamente, não estaria em seu poder
o fazer diversamente; ora, por meio
daquilo que não está em poder de
alguém, ele nem mereceria nem
desmereceria. Ora, o homem pode
merecer e desmerecer. Portanto, pode
fazer diversamente e além do que faz.
Esta razão é confirmada: porque todo
mérito é louvável e todo demérito é
vituperável. Ora, aquilo que não está em
nosso poder, para que possamos fazê-lo
e não fazê-lo, não é louvável nem
vituperável; portanto, todo mérito e
demérito está em nosso poder, para que
possamos fazê-lo e não fazê-lo. A maior
é evidente; a menor é provada pela
autoridade de Agostinho, no terceiro
livro do Sobre o Livre Arbítrio52, que
diz: A menos que o movimento que
converte a vontade para cá e para lá
fosse voluntário e estivesse em nosso
poder, o homem, como que certo polo
da vontade, nem seria louvado quando
se voltasse ao que é superior nem
culpado quando se voltasse ao que é
inferior; palavras das quais se recolhe
evidentemente que aquilo que não está
em nosso poder e, no entanto, fazemos,
não é nem louvável nem vituperável.
Com isso concorda o Sábio do mundo,
em Ética III53, onde prova que em razão
daqueles que não estão em nosso poder,
nem somos louvados nem vituperados.
Portanto, é patente que todo mérito e
demérito está em nosso poder.
Consequentemente, podemos deixar de
fazer muitos que fazemos, e, de modo
semelhante, fazer muitos que não
Agostinho, De libero arbítrio III, 1, PL 32, 1272.
Ética a Nicômaco III, 1, 1109b30-35; Tomás de Aquino, In libr. Eth. III, lect. 1, n. 383; lect. 4, n. 431.
56
fazemos. Donde evidentemente se
conclui que nem tudo acontece
necessariamente, com efeito, de outro
modo, como prova o Filósofo54, não
seria preciso discutir nem deliberar,
pois sobre aquilo que acontece
necessariamente, não é preciso discutir
nem deliberar.
Ostenso quod non omnia de
necessitate eveniunt, isti probare nituntur
quod nulla de necessitate eveniunt
quantum ad divinam potentiam, quin
Deus posset omnia impedire. Nam
potentia divina non plus artatur ad istos
effectus quam ad illos; neque enim per
praescientiam, neque per aeternam
ordinationem, neque per immutabilitatem
ipsius, neque per aliquid, quod est idem
cum Deo, neque per aliquid, quod non est
Deus, potest Deus plus artari ad istos
effectus producendos vel conservandos
quam ad illos. Cum igitur ostensum sit
quod aliqua non eveniunt de necessitate,
sequitur quod nulla, inquantum fiunt a
Deo,
eveniunt
de
necessitate.
Tendo sido mostrado que nem tudo
acontece necessariamente, estes se
esforçam para provar que nada acontece
necessariamente quanto à potência
divina, visto que Deus possa impedir a
tudo. Pois a potência divina não se
resume mais a estes efeitos que àqueles;
com efeito, nem pela presciência, nem
pela ordenação eterna, nem pela
imutabilidade dele, nem por algo que é
o mesmo com Deus, nem por algo que
não é Deus, Deus pode estar restringido
a produzir ou conservar mais estes
efeitos que aqueles. Portanto, dado que
tenha sido mostrado que algo não
acontece necessariamente, segue-se que
nada, enquanto é feito por Deus,
acontece necessariamente.
Pro illis autem, qui doctrinam
Thomae tenent, ostendunt aperte quod
haec sit intentio Thomae. Libro enim
primo contra Gentiles, c. lxxxi, ait sic :
Voluntas non ex necessitate fertur ad ea,
quae sunt ad finem, si finis sine hiis esse
possit, et post: Cum ergo divina voluntas
possit sine aliis esse, quinimmo nec per
alia aliquid ei accrescat, nulla inest ei
necessitas ut alia velit ex hoc quod vult
suam voluntatem, et per consequens nulla
inest ei necessitas ut quaecunque alia
producat vel conservet. Et infra sic dicit:
Ora, para aqueles que sustentam a
doutrina
de
Tomás,
mostram
claramente que essa seja a intenção de
Tomás. Com efeito, no primeiro livro
do Contra Gentiles, cap. 81, disse
assim:
A
vontade
não
é
necessariamente dirigida para aqueles
que estão para um fim, se o fim puder se
dar sem eles, e, depois: Portanto, visto
que a vontade divina possa se dar sem
que outros se deem, melhor, visto que
nada é acrescido a ela pelos outros, não
é inerente a ela nenhuma necessidade
54
Ética a Nicômaco III, 3, 1112ª18-29; Tomás de Aquino, In libr. Eth. III, lect. 7, n. 460-465.
57
Solum igitur illud bonum voluntas,
secundum sui rationem, non potest velle
non esse, quo non existente tollitur
totaliter ratio boni. Tale autem nullum est
praeter Deum. Potest igitur voluntas,
secundum sui rationem, velle non esse
quamcunque rem praeter Deum. Ex hiis
sequitur quod Deus potest destruere
omnem rem aliam a se; et per consequens
respectu Dei nichil evenit de necessitate.
Item, prima parte Summae, q. xix, articulo
tertio, dicit sic : Cum voluntas Dei sic
possit esse perfecta sine aliis, cum nichil
ei perfectionis ex aliis accrescat, sequitur
quod alia a se eum velle non sit
necessarium absolute ; ergo contingenter
vult quaecunque alia a se. Et ita omnia alia
a Deo eveniunt contingenter; et per
consequens nulla de necessitate eveniunt,
secundum
istum
doctorem.
para que queira algo outro a partir do
que quer a sua vontade, e,
consequentemente,
nenhuma
necessidade é inerente a ela para que
produza ou conserve qualquer outro. E,
abaixo, diz assim: Portanto, a vontade,
segundo sua noção própria, apenas não
pode querer que não seja aquele bem
que,
se
não
existir,
elimina
completamente a noção de bem. Ora,
tal nada é se não Deus. Portanto, a
vontade pode, segundo sua noção
própria, querer que qualquer coisa
deixe de ser, exceto Deus. Destas se
segue que Deus pode destruir qualquer
coisa diversa de si. Consequentemente,
nada acontece necessariamente a
respeito de Deus. Ainda, na primeira
parte da Suma, questão 19, artigo
terceiro, diz assim: Visto que a vontade
de Deus possa ser tão perfeita sem os
outros, visto que nenhuma perfeição
seja acrescentada a ela a partir dos
outros, se segue que querer outros além
de si não seja absolutamente
necessário.
Portanto,
quer
contingentemente o que for diverso de
si. E assim tudo que é diverso de Deus
se
dá
contingentemente.
Consequentemente, nada acontece
necessariamente, segundo este doutor.
Tertio, isti impugnatores probare
conantur quod si Christus habuerit
regnum
temporale
et
dominium
saepedicta, ipse potuit absolute renuntiare
eisdem. Hoc autem unica ratione ad
praesens nituntur ostendere, quae talis est:
Non magis artabatur Christus ad
habendum
regnum
temporale
et
dominium universale rerum temporalium,
Terceiro, estes contendedores
buscam provar que se o Cristo tivesse o
reino temporal e o domínio tantas vezes
mencionados,
ele
poderia
absolutamente renunciar a eles. Ora, se
esforçam por mostrar isso no presente
por uma única razão, que é a seguinte:
Cristo não estava mais constrangido a
ter o reino temporal e o domínio
58
quam ad redimendum genus humanum
per suam passionem. Sed Christus non
artabatur nec necessitabatur ad salvandum
genus humanum per passionem suam ;
ergo non artabatur neque necessitabatur
habere regnum et dominium antedicta. Ex
quo sequitur quod, si habuit regnum et
dominium antedicta, ipse potuit absolute,
ita quod contradictionem minime
includebat, renuntiare eisdem. Maior est
evidens ; minor probatur auctoritate
Augustini, qui xiii libro de Trinitate, c. x,
ut recitat Magister Sententiarum libro i,
di. xliv, dicit: Quod fuit et alius modus
nostrae liberationis possibilis Deo, qui
omnia potest; sed nullus alius nostrae
miseriae sanandae fuit convenientior.
Hoc idem manifeste asserit idem Magister
libro iii, di. xx. Nequaquam igitur
necessitabatur Christus dicta regnum et
dominium, si ipsa habuit, retinere.
universal das coisas temporais do que
para a redenção do gênero humano por
meio de sua paixão. Ora, o Cristo não
estava constrangido nem necessitado à
salvação do gênero humano por meio de
sua paixão. Portanto, não estava
constrangido nem necessitado a ter o
reino e o domínio antes mencionados.
Do que se segue que, se teve o reino e o
domínio antes mencionados, ele pôde,
absolutamente, de modo que não
implicaria
nenhuma
contradição,
renunciar a eles. A maior é evidente; a
menor é provada pela autoridade de
Agostinho, que, no livro XIII do Sobre
a Trindade, capítulo 10, o qual é citado
pelo Mestre das Sentenças no livro I,
distinção 4455, diz: Visto que para Deus,
que tudo pode, foi possível outro modo
para nossa libertação, mas nenhum
outro foi mais conveniente para a cura
de nossa miséria. Isso mesmo asseverou
manifestamente o próprio Mestre no
livro III, distinção 2056. Portanto, Cristo
em nada foi necessitado a reter os
mencionados reino e domínio, se é que
os teve.
Quarto declarant quomodo debet
intelligi distinctio theologorum dicentium
in Deo esse duplicem potentiam, scilicet
absolutam et ordinatam ; et quomodo
Deus potest aliqua facere de potentia
absoluta, quae non potest de potentia
ordinata : dicentes quod non est
intelligenda dicta distinctio, sicut quidam
ignari putant, quasi realiter in Deo sit
duplex potentia, quarum una sit absoluta
et alia ordinata; quia unica potentia est in
Quarto, declaram de que modo
deve ser entendida a distinção dos
teólogos, dizendo que há em Deus uma
dúplice potência – a saber, a absoluta e
a ordenada – e de que modo Deus pode
fazer alguns pela potência absoluta que
não pode pela potência ordenada, ao
dizer que tal distinção não deve ser
entendida tal como a consideram certos
ignorantes, como se houvesse em Deus
uma dupla potência, das quais uma seria
55
56
Pedro Lombardo, Sent. I, d. 44, c. 1; cf. Agostinho, De Trinitate XIII, 10, PL 42, 1024.
Cap. 1-4.
59
Deo, immo ipsa unica potentia est unica
essentia. Sed, sicut secundum Magistrum
Sententiarum libro i, di. xlv : Sacra
scriptura, de voluntate Dei variis modis
loqui consuevit; et non est Dei voluntas
diversa, sed locutio est diversa, ita
scriptura divina et sanctorum patrum de
potentia Dei variis modis loqui consuevit;
et tamen non est diversa potentia Dei, sed
locutio est diversa ; quia scilicet, cum per
talia vocabula, ' potest', ' possibile ', '
potentia ' et consimilia in significatione
convenientia, scripturae loquuntur de
Deo, huiusmodi vocabula in diversis locis
accipiuntur
aequivoce.
Unde
in
quibusdam locis denotant vel important
omnia illa, quae non repugnant Deo
facere. Sic accipitur hoc verbum 'potest' in
auctoritatibus superius allegatis, et in
multis aliis locis. Sic etiam accipitur hoc
nomen 'omnipotens' Genesis xvii, cum
dixit Dominus ad Abraham : Ego Deus
omnipotens, et in symbolo Apostolorum
et etiam in symbolo, quod cantatur in
missa, cum dicitur : Credo in unum Deum
Patrem omnipotentem. Aliter huiusmodi
vocabula important vel connotant
solummodo illa, quae ordinavit se
facturum, et non omnia illa, quae potuit et
posset ordinare se facturum. Sic accipitur
Genesis xviii, ubi dixit Dominus : Num
celare potero Abraham quae gesturus sum
? quasi diceret, 'Non'; et tamen constat
quod Deus non necessitabatur revelare
Abraham quae erat facturus ; sed ideo
dixit Num celare potero, etc., quia
ordinavit se revelaturum Abraham quae
facturus erat. Sic accipitur Genesis xix,
cum Dominus dixit ad Loth : Festina et
57
58
Cap. 5.
Isto é, o Credo Niceno-Costantinopolitano.
absoluta e a outra ordenada; porque há
uma única potência em Deus, ou
melhor, a mesma potência única é a
essência única. Ora, assim como,
segundo o Mestre das Sentenças no
livro I, distinção 4557, A sagrada
escritura costumou falar de vários
modos sobre a vontade de Deus; e a
vontade de Deus não é diversa, mas a
locução é diversa, assim costumou falar
a escritura divina e dos santos pais sobre
a potência de Deus, e, no entanto, a
potência de Deus não é diversa, mas a
locução é diversa; a saber, porque,
quando as escrituras falam de Deus
pelos vocábulos “pode”, “possível”,
“potência”
e
semelhantes
na
conveniência da significação, tais
vocábulos são tomados equivocamente
em diversos lugares. Donde, em alguns
lugares denotam ou fazem referência a
tudo aquilo que não repugna a Deus
fazer. Assim esta palavra “pode” é
tomada nas autoridades alegadas acima,
e em muitos outros lugares. Assim
também o nome “onipotente” é tomado
em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente,
tanto no símbolo dos Apóstolos, como
também no símbolo que é cantado na
missa58, quando é dito: Creio em um só
Deus, Pai onipotente. Diversamente,
estas palavras fazem referência ou
conotam unicamente aquilo que se
ordenou haver de fazer, e não tudo
aquilo que pôde e pode se ordenar haver
de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17,
em que o Senhor diz: Acaso poderei
esconder de Abraão o que hei de fazer?
como se dissesse: “Não”. No entanto,
60
salvare ibi, quia non potero facere
quicquam donec ingrediaris illuc, hoc est,
'Non faciam quicquam donec ingrediaris
illuc'. Sic etiam accipitur Marci vi, cum
dicitur de Salvatore nostro : Non poterat
ibi virtutem facere ullam, nisi paucos
infirmos impositis manibus curavit: et
mirabatur
propter
incredulitatem
ipsorum ; et tamen constat quod Christo
inquantum erat Deus non erat impossibile
absolute facere ibi virtutem ; sed dicitur
quod non poterat ibi facere virtutem
ullam, quia propter incredulitatem illorum
noluit ibi facere virtutem. Sic ergo hoc
verbum 'potest' accipitur aequivoce in
scripturis
de
Deo
loquentibus:
quemadmodum idem verbum, cum
loquimur de hominibus, accipitur
aequivoce. Uno enim modo dicimur illa
posse, quae de iure possumus, et illud
dicitur posse fieri, quod licite et debite
fieri potest. Sic accipitur Genesis xxxix,
cum dixit loseph ad Aegyptiam :
Quomodo ergo possum hoc malum facere
? quasi diceret: 'Licite et de iure non
possum'. Aliter dicimur posse illa, quae
absolute possumus sive bene sive male ;
aliter enim nequaquam peccare possemus.
Sic ergo hoc verbum 'posse ' accipitur
aequivoce in scripturis, cum loquitur de
Deo; unica tamen potentia realiter est in
Deo, sed locutio est diversa. Et propter
istam diversam locutionem dicitur quod
Deus potest aliqua de potentia absoluta,
quae non potest de potentia ordinata, hoc
est, Deus potest aliqua, accipiendo
verbum 'posse' secundum primam
significationem eius, quae tamen non
potest de potentia ordinata: hoc est, haec
est concedenda : 'Deus non potest illa',
accipiendo hoc verbum: 'posse' in secunda
consta que Deus não tinha necessidade
de revelar a Abraão o que havia de
fazer; mas disse: Acaso poderei
esconder, etc., por isso: porque
ordenou-se haver de revelar a Abraão o
que havia de fazer. Assim se toma
Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse
a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque
não poderei fazer o que for até que
entres ali, isto é, “Não farei o que for até
que entres ali”. Assim também é tomado
Marcos 6, 5-6, quando é dito sobre o
nosso Salvador: Não pudera fazer
nenhuma virtude ali, curou apenas
poucos enfermos pela imposição das
mãos: e admirou-se da incredulidade
deles. No entanto, consta que, enquanto
era Deus, não era impossível ao Cristo
fazer absolutamente a virtude ali, mas
disse que não pudera fazer ali nenhuma
virtude, porque em razão da
incredulidade deles não quis fazer a
virtude ali. Desse modo, portanto, a
palavra
“pode”
é
tomada
equivocamente nas escrituras ao falar
sobre Deus, do mesmo modo que, a
mesma palavra, quando falamos sobre
os homens, é tomada equivocamente.
Com efeito, de um modo se diz que
possamos aqueles que podemos por
direito, e é dito poder ser feito aquilo
que licitamente e devidamente pode ser
feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9,
quando José diz à egípcia: Como, então,
posso fazer este mal? como se dissesse:
“Não posso licitamente e por direito”.
Diversamente, se diz que possamos
aqueles que podemos absolutamente,
seja para o bem, seja para o mal, com
efeito,
diversamente,
jamais
poderíamos pecar. Portanto, assim a
61
significatione eius. Et ita dicere quod
Deus potest aliqua de potentia absoluta,
quae non potest de potentia ordinata, non
est aliud, secundum intellectum recte
intelligentium, quam dicere quod Deus
aliqua potest, quae tamen minime
ordinavit se facturum ; quae tamen si
faceret, de potentia ordinata faceret ipsa ;
quia si faceret ea, ordinaret se facturum
ipsa. Quia igitur, ut dicunt isti, iste
impugnatus
nescivit
videre
aequivocationem huius verbi 'potest', ideo
male intellexit illam distinctionem
theologorum de potentia Dei absoluta et
ordinata. Et tamen dicunt quod licet ipsam
ad intellectum recte intelligentium
intellexisset,
ipsam
nichilominus
reprobasset respectu Dei; quia imaginatur
quod sic Deus omnia necessario ordinavit
quod de necessitate absoluta oportet eum
facere illa, ita quod ipsum non facere ipsa
contradictionem includit: quod in suis
sermonibus multis rationibus probare
conatur.
palavra
“poder”
é
tomada
equivocamente nas escrituras quando se
fala de Deus. No entanto, há uma única
potência realmente em Deus, mas a
locução é diversa. E em razão desta
locução diversa se diz que Deus pode
alguns pela potência absoluta que não
pode pela potência ordenada, isto é,
Deus pode alguns, tomando a palavra
“poder”
segundo
seu
primeiro
significado, que, porém, não pode pela
potência ordenada, isto é, esta deve ser
concedida: “Deus não pode aqueles”,
tomando a palavra “poder” em seu
segundo significado. E, assim, dizer que
Deus pode alguns pela potência
absoluta que não pode pela potência
ordenada não é senão, segundo o
entendimento dos que entendem
retamente, dizer que Deus pode alguns
que, porém, jamais ordenou-se haver de
fazer; os quais, no entanto, se fizesse, os
faria pela potência ordenada, uma vez
que, se os fizesse, teria se ordenado a
haver de fazê-los. Portanto, uma vez
que, como estes dizem, aquele
contendedor não soube ver a
equivocação desta palavra “pode”,
então, entendeu mal aquela distinção
dos teólogos sobre a potência absoluta e
ordenada de Deus. E, no entanto, dizem
que embora ele a tivesse entendido
desde o entendimento dos que a
entenderam retamente, não a reprovaria
menos com relação a Deus; uma vez que
havia imaginado que Deus ordenou
tudo tão necessariamente que era
preciso que o fizesse por uma
necessidade absoluta, de modo que não
fazê-lo, implica em contradição: o que
62
se esforça por provar em seus sermões
por muitas razões.
Quinto isti respondent ad rationem
fundamentalem istius, quam hic ad
materiam applicat specialem, dicentes
quod istud argumentum est omnino simile
argumento, quod recitat Magister
Sententiaram libro i, di. xxxviii, per quod
aliqui nitebantur probare quod si aliquid
posset aliter fieri quam fit, praescientia
Dei posset falli. Est etiam simile
argumento, quod recitat di. xl, per quod
aliqui conati sunt probare quod numerus
electorum non potest augeri nec minui; et
ideo similem habet solutionem. Quomodo
igitur argumentum istius solvi debeat, in
libro praedicto Sententiarum et in
scripturis doctorum super Sententias
studiosus poterit invenire, et super
litteram
aliqualiter
apparebit.
Quinto, estes respondem à razão
fundamental59 daquele – a qual aplica
aqui a uma matéria determinada –
dizendo que este argumento é
completamente
semelhante
ao
argumento que o Mestre das Sentenças
cita no livro 1, distinção 3860, por meio
do qual alguns61 se esforçavam por
provar que se algo puder ser feito
diversamente do que é feito, a
presciência de Deus pode se enganar. É
também semelhante ao argumento que
ele cita na distinção 4062, por meio do
qual alguns63 visam provar que o
número dos eleitos não pode ser
aumentado nem diminuído; e, por isso,
tem uma solução semelhante. Portanto,
como esse argumento deve ser
resolvido, o estudioso pode encontrar
no livro mencionado das Sentenças
tanto nos escritos dos doutores sobre as
Sentenças como de outro modo
aparecerá literalmente.
Rationes vero, per quas probare
conatur quod praemissa distinctio de
potentia Dei absoluta et ordinata non est
approbanda, facile dissolvuntur. Prima
enim ex falso intellectu procedit, quasi
haec esset possibilis secundum sic
distinguentes : 'Deus aliquid facit de
Já as razões pelas quais visa provar
que a anunciada distinção entre a
potência absoluta e a ordenada de Deus
não deve ser provada são facilmente
desmontadas. Com efeito, a primeira64
procede de um falso entendimento,
como se, segundo os que propõem a
Supra, no § “O segundo em que dizem ele errar [...]”: “[...] A razão fundamental disso é que Deus, desde
a eternidade, ordenou de que modo tudo deveria ser feito. Ora, há contradição em que a ordenação divina
seja impedida. Portanto, há contradição em que seja o que for aconteça diversamente de como acontece.”.
60
Cap. 2.
61
Pedro Abelardo, Theol. Christ. III, 7, PL 178, 1109 ss.
62
Cap. 1.
63
Cf. [Hugo de São Vitor] (talvez Oto de Lucena), Summa Sentent. I, 12, PL 176, 63.
64
Cf. supra, no mesmo § antes mencionado: “[...]Ora, sua principal razão, pela qual nega a distinção entre
a potência absoluta e a ordenada, é que se Deus fizesse algo pela potência absoluta que não fizesse pela
potência ordenada, Deus poderia fazer algo que não se ordenou haver de fazer, e, assim, Deus seria
mutável.”.
59
63
potentia absoluta, quod non facit de
potentia ordinata'. Haec enim de inesse
secundum eos est impossibilis et
contradictionem includit; quia eo ipso
quod Deus aliquid faceret, ipse faceret
illud de potentia ordinata. Haec tamen de
possibili: 'Deus potest aliquid facere de
potentia absoluta, quod nunquam faciet de
potentia ordinata', in sensu divisionis
accepta, vera est: quemadmodum ista de
possibili: 'Ille, qui est praedestinatus,
potest dampnari', vera est in sensu
divisionis ; et tamen ista de inesse :
'Praedestinatus
dampnatur',
est
impossibilis et contradictionem includit.
Haec virtualiter est sententia Magistri
Sententiarum, libro i, di. xl, qui
respondens obiectioni quorundam probare
nitentium quod numerus electorum non
potest augeri nec minui, sic ait: Quibus
respondemus, ex ea ratione dictum esse et
verum esse, numerum electorum non
posse augeri vel minui, quia non potest
utrumque simul esse, scilicet ut aliquis
salvetur et non sit praedestinatus, vel ut
aliquis praedestinatus sit et dampnetur.
Intelligentia enim conditionis implicitae
veritatem
facit
in
dicto,
et
impossibilitatem in vero. Si vero
intelligatur simpliciter, impossibilitas non
admittitur, ut cum dicitur: Praedestinatus
potest vel non potest dampnari, et
reprobus potest vel non potest salvari. In
hiis enim et huiusmodi locutionibus ex
ratione dicti diiudicanda est sententia
dictionis. Alia namque fit intelligentia, si
per coniunctionem haec accipiantur dicta,
atque alia, si per disiunctionem, ut supra,
distinção, essa proposição fosse
possível: “Deus faz algo pela potência
absoluta que não faz pela potência
ordenada”. Com efeito, esta proposição
sobre a inerência é, segundo eles,
impossível e implica contradição; uma
vez que disso mesmo que Deus faria
algo, o faria pela potência ordenada. No
entanto, esta proposição sobre o
possível: “Deus pode fazer algo pela
potência absoluta que jamais fará pela
potência ordenada”, tomada no sentido
da divisão, é verdadeira. Do mesmo
modo esta é possível: “Aquele, que é
predestinado*, pode ser condenado”, é
verdadeira no sentido da divisão. No
entanto, esta sobre a inerência: “O
predestinado está condenado” é
impossível e implica contradição. Esta é
virtualmente a posição do Mestre das
Sentenças, no livro 1, distinção 4065,
que ao responder à objeção de alguns
que se esforçam por provar que o
número dos eleitos não pode aumentar
nem diminuir, disse assim: Aos quais
respondemos a partir desta razão que
seja dito e que seja verdadeiro que o
número dos eleitos não pode aumentar
ou diminuir, porque ambos não podem
estar simultaneamente, a saber, que
alguém se salve e não seja
predestinado, ou que alguém seja
predestinado e seja condenado. Com
efeito, o entendimento da condição
implícita faz a verdade quanto ao que é
expresso e a impossibilidade quanto ao
verdadeiro. De fato, se for entendida
absolutamente, não é admitida a
Ockham geralmente toma a palavra “predestinado” como sinônima de “aquele que há de ser salvo” (N.
do T.).
65
Cap. 1.
*
64
cum
de
praescientia
agebatur,
praetaxatum est. Si enim, cum dicis :
Praedestinatus non potest dampnari,
intelligas ita : id est non potest esse, ut
praedestinatus sit et dampnetur, verum
dicis, quia coniunctim intelligis ; falsum
autem, si disiunctim accipias, ut si
intelligas istum non posse dampnari,
quem dico praedestinatum. Potuit enim
non esse praedestinatus ; et ita
dampnaretur. Ex hiis verbis evidenter
apparet quod secundum Magistrum
Sententiarum haec est impossibilis : 'Praedestinatus dampnatur'; haec tamen habet
unum sensum verum: 'Praedestinatus
potest dampnari'. Ita haec est impossibilis
: 'Aliquid fit a Deo, et non de potentia
ordinata'; haec tamen habet unum sensum
verum : 'Aliquid potest fieri a Deo, quod
non fiet de potentia ordinata'; et tamen, si
fieret, de potentia ordinata fieret. Sic ergo
illa de possibili in uno sensu est vera; et
tamen illa de inesse de eisdem terminis est
impossibilis. Nec debet aliquis de hoc
mirari, quod etiam de creaturis loquendo
invenitur veritatem habere. Haec enim
habet unum sensum verum : 'Album
potest esse nigrum'; haec tamen est
impossibilis : 'Album est nigrum'. Haec
etiam habet unum sensum verum : 'Non
album potest esse album'; haec tamen est
impossibilis : 'Non album est album'. Qui
igitur in hac materia catholice et secure
loqui voluerit, necesse est quod inter
propositiones de possibili et de
impossibili et de necessario et de inesse et
etiam inter diversos sensus illarum de
modo sciat distinguere; aliter enim
faciliter ponet vel negabit unam pro alia et
66
Pedro Lombardo, Sent. I, d. 38, cap. 2.
impossibilidade, como quando se diz: O
predestinado pode ou não pode ser
condenado, e o réprobo pode ou não
pode ser salvo. Com efeito, nestas e nas
locuções deste modo, o sentido da
expressão deve ser julgado desde a
noção do que é expresso. Pois um seria
o entendimento se estes que foram
expressos fossem tomados por meio da
conjunção, e outro, se pela disjunção,
como foi abordado acima66, quando se
tratava da presciência. Com efeito, se
quando dizes: O predestinado não pode
ser condenado, entendes assim: isto é,
não pode ser, dado que seja
predestinado e seja condenado, dizes o
verdadeiro,
porque
entendes
conjuntamente, mas dizes o falso se
tomares disjuntivamente, como se
entendesses que este que chamo de
predestinado não pode ser condenado.
Com efeito, pôde não ser predestinado,
e, assim, será condenado. Destas
palavras aparece evidentemente que
segundo o Mestre das Sentenças esta é
impossível:
“O
predestinado
é
condenado”; no entanto, ela tem um
sentido verdadeiro: “O predestinado
pode ser condenado”. Assim, esta é
impossível: “Algo é feito por Deus e
não pela potência ordenada”; no
entanto, ela tem um sentido verdadeiro:
“Algo pode ser feito por Deus que não é
feito pela potência ordenada”; e, no
entanto, se for feito, será feito pela
potência ordenada. Portanto, assim,
aquela sobre o possível é verdadeira
num sentido e, no entanto, aquela sobre
a inerência a respeito dos mesmos
65
incidet in errorem. Quare omni homini,
qui non est in logica et theologia
excellenter instructus, expedit in hac
materia magis tacere quam loqui praeter
illa, quae in scripturis reperiuntur
expressa.
termos é impossível. E ninguém deve se
admirar com isso, dado que se vê que
seja igualmente verdade quando se fala
das criaturas. Com efeito, esta tem um
sentido verdadeiro: “O branco pode ser
negro”. No entanto, esta é impossível:
“O branco é negro”. Também esta tem
um sentido verdadeiro: “O não branco
pode ser branco”. No entanto, esta é
impossível: “O não branco é branco”.
Portanto, quem quiser falar nesta
matéria católica e seguramente, tem
necessariamente de saber distinguir
entre as proposições sobre o possível e
sobre o impossível e sobre o necessário
e sobre a inerência e também entre os
diversos sentidos daquelas modais; com
efeito, de outro modo, facilmente porá
ou negará uma pela outra e cairá em
erro. Razão pela qual cabe, quanto a esta
matéria, a todo homem que não é
excelentemente instruído em lógica e
em teologia, antes calar do que falar
além do que é expressamente
encontrado nas escrituras.
Secunda ratio contra praedictam
distinctionem ex falso etiam intellectu
procedit, sicut tactum est supra.
Concedendum est enim quod non sunt in
Deo duae potentiae, quarum una sit
absoluta et alia ordinata; tamen hoc
verbum ' potest', cum loquimur de Deo,
aequivoce accipi potest, sicut supra
declaratum
extitit.
A segunda razão contrária à
distinção
mencionada67
também
precede de um falso entendimento, tal
como foi mostrado acima68. Com efeito,
deve-se conceder que não há em Deus
duas potências, das quais uma seja
absoluta e a outra ordenada. No entanto,
a palavra “pode”, quando falamos sobre
Deus, pode ser tomada equivocamente,
Supra, ibidem: “Outra razão sua67 é que em Deus a essência e a potência são o mesmo. Ora, não há duas
essências em Deus. Portanto, nem duas potências.”.
68
Supra: no § “Quarto, declaram de que modo deve ser entendida a distinção dos teólogos[...]”: “e de que
modo Deus pode fazer alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada, ao dizer que tal
distinção não deve ser entendida tal como a consideram certos ignorantes, como se houvesse em Deus uma
dupla potência, das quais uma seria absoluta e a outra ordenada; [...]”
67
66
assim como
acima69.
Super litteram. Si velit dicere quod
illi regno et dominio renuntiavit: Dicunt
isti quod appellans non vult dicere quod
Christus renuntiavit illi regno et dominio,
saltem proprie accipiendum verbum
'renuntiandi'; quia nunquam ante
passionem suam habuit illa regnum et
dominium ; ideo non renuntiavit eisdem.
Ostendat illam, si sciat: Ipse non vult eam
ostendere, sed vult ostendere quod non
habuit ante mortem regnum et dominium
temporale. Immo contrarium sacra
scriptura supponit expresse: Dicunt quod
hoc falsum est, et ad omnes auctoritates,
quas ad hoc probandum hic adducit,
responsum est supra, c. xciii; ideo hic ad
ipsas non expedit respondere. Immo
videtur quod nec potuerit renuntiare: Ista
in sensu divisionis falsa est, sicut ista est
falsa in sensu divisionis secundum
apareceu
declarado
Sobre a passagem: Se quer dizer
que renunciou àquele reino e domínio,
estes dizem que o querelante não quis
dizer que o Cristo renunciou àquele
reino e domínio, ao menos tomando
propriamente o verbo “renunciar”; uma
vez que antes de sua paixão nunca teve
aquele reino e domínio; por isso, não
renunciou a eles. Mostre a renúncia, se
souber: aquele não quer mostrar a
renúncia, mas quer mostrar que não teve
antes da morte o reino e o domínio
temporal. Melhor: a sagrada escritura
supõe expressamente o contrário:
dizem que isso é falso, e quanto a todas
as autoridades que aqui traz para provar
isso foi respondido acima, no capítulo
93; por isso, aqui não cabe respondê-las.
Melhor: vê-se que não poderia
renunciar: esta proposição é falsa no
Supra, ibidem: “e, no entanto, a potência de Deus não é diversa, mas a locução é diversa; a saber, porque,
quando as escrituras falam de Deus pelos vocábulos “pode”, “possível”, “potência” e semelhantes na
conveniência da significação, tais vocábulos são tomados equivocamente em diversos lugares. Donde, em
alguns lugares denotam ou fazem referência a tudo aquilo que não repugna a Deus fazer. Assim esta palavra
“pode” é tomada nas autoridades alegadas acima, e em muitos outros lugares. Assim também o nome
“onipotente” é tomado em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente, tanto no símbolo dos Apóstolos, como
também no símbolo que é cantado na missa, quando é dito: Creio em um só Deus, Pai onipotente.
Diversamente, estas palavras fazem referência ou conotam unicamente aquilo que se ordenou haver de
fazer, e não tudo aquilo que pôde e pode se ordenar haver de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17, em que
o Senhor diz: Acaso poderei esconder de Abraão o que hei de fazer? como se dissesse: “Não”. No entanto,
consta que Deus não tinha necessidade de revelar a Abraão o que havia de fazer; mas disse: Acaso poderei
esconder, etc., por isso: porque ordenou-se haver de revelar a Abraão o que havia de fazer. Assim se toma
Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque não poderei fazer o que for
até que entres ali, isto é, “Não farei o que for até que entres ali”. Assim também é tomado Marcos 6, 5-6,
quando é dito sobre o nosso Salvador: Não pudera fazer nenhuma virtude ali, curou apenas poucos
enfermos pela imposição das mãos: e admirou-se da incredulidade deles. No entanto, consta que, enquanto
era Deus, não era impossível ao Cristo fazer absolutamente a virtude ali, mas disse que não pudera fazer ali
nenhuma virtude, porque em razão da incredulidade deles não quis fazer a virtude ali. Desse modo, portanto,
a palavra “pode” é tomada equivocamente nas escrituras ao falar sobre Deus, do mesmo modo que, a mesma
palavra, quando falamos sobre os homens, é tomada equivocamente. Com efeito, de um modo se diz que
possamos aqueles que podemos por direito, e é dito poder ser feito aquilo que licitamente e devidamente
pode ser feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9, quando José diz à egípcia: Como, então, posso fazer este
mal? como se dissesse: “Não posso licitamente e por direito”. Diversamente, se diz que possamos aqueles
que podemos absolutamente, seja para o bem, seja para o mal, com efeito, diversamente, jamais poderíamos
pecar. Portanto, assim a palavra “poder” é tomada equivocamente nas escrituras quando se fala de Deus.
No entanto, há uma única potência realmente em Deus, mas a locução é diversa.”.
69
67
Magistrum Sententiarum: 'Praedestinatus
non potest dampnari'. Potuisset enim
Christus habuisse regnum et dominium, et
postea renuntiasse eisdem. Si fecisset,
contra ordinationem Patris fecisset: Ista
falsa est secundum istos; quia sicut, si
Christus per alium modum quam per
mortem suam liberasset genus humanum,
non fecisset contra ordinationem Patris,
immo secundum ordinationem Patris,
quia, si Christus aliter liberasset genus
humanum, Pater aliter ordinasset: ita, si
Christus renuntiasset regno et dominio,
non fecisset contra ordinationem Patris,
immo fecisset ordinationem Patris, quia,
si Christus renuntiasset, Pater talem
renuntiationem ordinasset. Et ita haec est
impossibilis : ' Christus fecit contra
ordinationem Patris ', sicut haec est
impossibilis : 'Aliquis dampnatur contra
praedestinationem Dei', et haec similiter :
'Aliquid fit contra praescientiam Dei'. De
istis tamen propositionibus de possibili:
'Christus
potuit
facere
contra
ordinationem Patris', 'Aliquis potest
dampnari contra praedestinationem Dei',
'Aliquid potest fieri contra praescientiam
Dei', et consimilibus, non est per omnem
modum dicendum sicut de illis de inesse
correspondentibus ipsis, sicut ex
superioribus
potest
aliqualiter
intelligentibus apparere. Auctoritates
vero, quas iste adducit, sunt de inesse et
non de impossibili; et ideo in nullo
probant negativam de possibili. Qualiter
autem intelligendae sunt, patet supra, c.
xciii; ideo hic replicare nequaquam
oportet.
sentido da divisão, assim como esta é
falsa no sentido da divisão segundo o
Mestre das Sentenças: “O predestinado
não pode ser condenado”. Com efeito,
seria possível que o Cristo tivesse o
reino e o domínio e depois renunciasse
a eles. E se o fizesse, o faria contra a
ordenação do Pai: esta proposição é
falsa segundo estes, porque, assim
como se Cristo por um modo diverso de
sua morte tivesse libertado o gênero
humano, não teria agido contra a
ordenação do Pai, mas antes segundo a
ordenação do Pai, uma vez que, se o
Cristo tivesse libertado diferentemente
o gênero humano, o Pai teria ordenado
diferentemente: assim, se Cristo tivesse
renunciado ao reino e ao domínio, não
teria agido contra a ordenação do Pai.
Melhor: teria feito a ordenação do Pai,
porque, se o Cristo tivesse renunciado,
o Pai teria ordenado tal renúncia. E,
assim, esta é impossível: “O Cristo fez
contra a ordenação do Pai”, assim como
esta é impossível: “Alguém é
condenado contra a predestinação de
Deus”, e, semelhantemente, esta: “Algo
se dá contrariamente à presciência de
Deus”. No entanto, estas proposições
sobre o possível: “O Cristo pôde fazer
contra a ordenação do Pai”, “Alguém
pode ser condenado contra a presciência
de Deus”, e semelhantes, não devem ser
ditas de nenhum modo paralelo àquele
das proposições sobre a inerência que a
elas correspondem, assim como pode de
algum modo aparecer do que foi acima
entendido. Ora, as autoridades que
aquele apresenta são sobre a inerência e
não sobre o impossível; e, por isso, de
nenhum modo provam a negativa sobre
68
o possível. Como, porém, devem ser
entendidas, é patente acima, no capítulo
93. Assim, não há por que voltar a isso
aqui.

Documentos relacionados