VIDEODROME - GEMInIS UFSCar - Universidade Federal de São

Transcrição

VIDEODROME - GEMInIS UFSCar - Universidade Federal de São
VIDEODROME: o vídeo como novo órgão do corpo humano1
Lillian Bento2
Resumo: Se tomarmos a obra do cineasta David Cronenberg, desde o início da carreira
em 1966 até Videodrome é notório uma ruptura epistemológica, ou até mesmo, a
inauguração de um novo olhar, que trata da relação direta entre o homem e a tecnologia e
a representação dos objetos técnicos. Trata-se de um filme que reconfigura a estrutura
dramática do diretor canadense em contraste com uma certa marginalização dos filmes
anteriores, deslocando o foco para o “eu próprio”, o corpo em si. O eu e o monstro que
está presente no próprio corpo em transformação. Trata-se de um filme em primeira
pessoa, que traz um dialogo direto entre a mente e o cérebro e suscita o debate a respeito
da reconfiguração desse corpo no cinema.
Palavras-chave: Videodrome. David Cronenberg. Corpo. Objetos Técnicos. Tecnologia.
Abstract: If we take the work of filmmaker David Cronenberg, from the beginning of his
career in 1966 to Videodrome is a notorious epistemological break, or even the opening
of a new look, which is the direct relationship between man and technology and the
representation of technical objects. This is a movie that reconfigures the dramatic
structure of the Canadian director in contrast to a certain marginalization of the previous
films, shifting the focus to the "myself", the body itself. The I and the monster that is
present in his body in transformation. This is a film in first person, which brings a direct
dialogue between the mind and the brain and raises the debate about the reconfiguration
of that body in the cinema.
Keywords: Videodrome. David Cronenberg. Body. Technical Objects. Technology.
Introdução
A década de 1970 havia marcado a carreira do diretor por guardar a transição do
cinema experimental, inspirado no cinema underground de Nova York para o cinema
comercial e a consagração do mesmo como cineasta canadense a ter maior bilheteria no
próprio País, já em seu segundo filme comercial. De filmes realizados no entorno
Trabalho apresentado no Seminário Temático “Narrativa Audiovisual”, durante a I Jornada Internacional
GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de São Carlos.
2
Lillian Bento é doutoranda em Multimeios no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), estudando a obra do cineasta canadense David Cronenberg sob orientação do professor doutor
Gilberto Alexandre Sobrinho. Email: [email protected]
1
universitário e sem orçamento, como seus dois primeiros curtas Transfers (1966) e From
the Drain (1967) e o primeiro longa metragem Stereo (1969), passou para dois sucessos
comerciais polêmicos - os longas comerciais Shivers (1975), em que apresenta uma
sociedade ameaçada por um parasita que transforma pessoas em maníacos sexuais, e
Rabid (1977), que foi traduzido no Brasil como Rabid, Enraivecida na Fúria do Sexo,
produzidos pela Cinépix e financiados pelo governo canadense. Em 1979, já associado a
outros produtores, faz The Brood, em que um método de tratamento psiquiátrico leva as
pessoas a desenvolverem tumores. A protagonista do filme desenvolve uma espécie de
útero externo que gera crianças monstros assassinas. Iniciando a década de 1980, faz
Scanners (1980) em que trata da telepatia e da dominação da mente das pessoas pela
indústria farmacêutica. Nesse filme, realiza uma de suas cenas mais conhecidas – a
explosão da cabeça de um homem.
O medo da transformação, seja da transformação do corpo a partir da doença ou
por ação da tecnologia é uma temática comum na Literatura e em filmes de Horror e
Ficção Científica. Corpos transformados por doenças misteriosas, cidades transformadas
por invasões de seres extraterrestres, homens convertidos em zumbis são temas que
assustam e ao mesmo tempo seduzem os espectadores dos gêneros fantásticos por
trazerem à tona o desconhecido, a ameaça de um futuro inseguro ao mesmo tempo em
que revelam a fragilidade do ser humano e do corpo biológico. Essas temáticas sempre
fizeram parte da vida e da carreira do cineasta David Cronenberg. Em Videodrome – A
Síndrome do Vídeo (1983), Cronenberg leva ao extremo a idéia de Marshall McLuhan a
respeito dos “meios de comunicação como extensão do homem” e apresenta uma trama
que envolve sexo, violência, horror e pornografia, mas que apresenta, ao mesmo tempo,
elementos específicos dos filmes de Ficção Científica, tais uma corporação secreta que
cria um plano para dominar as pessoas a partir dos raios catódicos.
Outra questão recorrente nos filmes do gênero é a ameaça de a máquina tomar o
lugar do homem, passando a controlá-lo,
o que ocorre em Videodrome, quando o
aparelho de TV ganha a capacidade de promover alucinações no espectador e torna-se
responsável por desenvolver tumores no cérebro humano. Inserido no século XX,
marcado pelo surgimento da cibernética da crescente fusão entre homem e máquina, o
filme leva a extremos essa questão da humanização da máquina e vitimização do homem
por esta.
1. O corpo como espaço de transformação e o vídeo como extensão da mente
Em Videodrome, o protagonista Max Renn (James Woods) é diretor e um dos
sócios de um canal de televisão a cabo, que transmite programas pornográficos. Ele sai
em busca de um novo produto televisivo que seja mais excitante do que os
convencionais, até que um de seus funcionários lhe apresenta ‘Videodrome’, um tipo de
snuff movies3 com cenas brutais e reais de violência, tortura e erotismo. Fascinado pelo
programa, Renn vai atrás de detalhes, mas descobre tardiamente que Videodrome é na
verdade parte de um forte esquema de dominação do ser humano pelo vídeo. Trata-se de
um alucinógeno televisionado, que produz no espectador um tipo de tumor, capaz de
modificar a realidade e levar a vítima a desconhecer se está na dimensão do real ou
vivendo uma alucinação. A relação conflituosa entre corpo e mente de que sempre tratou
Cronenberg está em evidência, uma vez que fora do domínio da mente o corpo não pode
ser controlado, o que é expresso em uma das falas de Videodrome: “As visões se tornam
carne, carne incontrolável”. Completamente envolto na trama, Renn descobre que as
relações sadomasoquistas do programa estão ligadas à conspirações empresariais que
pretendem transformar a tela da TV na retina da mente e fazer da televisão a estrutura
física do cérebro humano, levando a cabo a ideia de que os meios de comunicação podem
ser a extensão do homem, o cérebro humano controlado diretamente por interesses
capitalistas e gerando um novo órgão, que a princípio foi tratado como um tumor no
cérebro, mas que é revelado como essa nova estrutura que aciona essa nova dimensão,
onde ocorrem as alucinações.
3
Snuff Movies são filmes que aparentemente recorrem a torturas e assassinatos reais de pessoas e
não encenação.
Cronenberg refere-se facilmente e com conhecimento a McLuhan
como o colega canadense que poderia trazer para uma
perspectiva crítica ligeiramente destacada na mídia global
dominada pelos EUA, observando que" viemos da mesma cidade
e na mesma universidade ... Eu li tudo, escreveu ele. Max
dramatiza uma série de sentenças de McLuhan, como 'colapso
[m]ental é um resultado muito comum de deslocamento das
raízes e inundações com novas informações'. Embora McLuhan
seja um pouco alarmista a respeito do impacto da televisão na
nova era, Cronenberg explora os possíveis efeitos da exposição a
um determinado tipo de sinal audiovisual. Halloween III (Tommy
Wallace, 1983), produzido ao mesmo tempo como Videodrome,
com características de superfície muito semelhantes, como jingles
de televisão de baixa tecnologia, dramatiza os alertas de
McLuhan sobre não sentar muito perto da tela, literalmente
transformando cérebros em mingau. (BROWNING, 2007: 64)
Há no filme, pelo menos três objetos que demandam uma análise mais detalhada a
respeito da maneira em que são colocados em relação com o homem. O primeiro é a
pistola (Figura 01) uma arma muito semelhante a que Cronenberg voltaria a colocar em
cena em eXistenZ (1999), de onde saem filamentos metálicos que penetram o sistema
circulatório de Max, unido-se a seu corpo de maneira em que não seja mais possível a
separação, reconfigurando a mão em um outro membro, sobre o qual nasce uma pele
viscosa e porosa. Outro objeto importante é a fita VHS que assume comportamentos
atribuídos a seres vivos – o objeto respira e penetra as entranhas de Max Renn a partir de
um orifício, semelhante a uma vagina, que se abre na barriga do protagonista. O terceiro
objeto é a televisão, uma enorme e antiga televisão de onde surgem os lábios de Nick
Brand (Debbie Harry), uma radialista com a qual Max mantém relações sexuais e que
desaparece após viajar para trabalhar em ‘Videodrome’. Nick estaria morta, mas
continuava a interagir com Max durante as alucinações e muitas vezes essa interação se
dava a partir do aparelho de TV. Na cena final, logo após preconizar: “vida longa a nova
carne”, Max, em uma alucinação atira contra a própria cabeça e é da TV antiga que saem
as vísceras, algo parecido com um intestino, proporcionando novamente ao objeto
características humanas.
Assim em Videodrome temos uma tecnologia flutuante que
transforma as relações e a identidade dos objetos e dissolve
realidade em alucinação; e nós temos uma poderosa organização
predatória que coopta a tecnologia para seus próprios propósitos
sinistros. (BEARD, 2006, p. 132).
Figura 01: Pistola no momento em que se inicia a fusão com o corpo de Max Renn
Ao pensarmos na Ficção Científica como gênero cinematográfico nos deparamos
com a presença de futuros hipertecnológicos, que são representados desde a década de
1920 em filmes como Metrópolis (1928), de Fritz Lang. No livro A Ficção científica e a
Questão da Subjetividade Homem-Máquina, Fátima Régis de Oliveira (2004) afirma que
na ficção científica as interrogações do humano e das configurações espaço-tempo são
feitas a partir de mudanças fictícias no saber tecnocientífico, enquanto na fantasia e no
horror os elementos dominantes são de saber mágico, religioso ou sobrenatural. Essa
centralidade da ciência como chave para essas modificações corporais é bastante presente
na obra do cineasta, a ciência que investe para tornar o corpo humano capaz de vencer a
enfermidade e a morte, mas que termina por sair de controle e promover situações de
horror e morte, gerando um corpo grotesco. O que move tais buscas científicas é,
principalmente, o medo de que o corpo se torne ultrapassado.
No livro Culturas e artes do pós-humano (2003), Lucia Santaella afirma que
frente ao corpo humano que se torna obsoleto, surge o corpo de biocibernético4 e afirma,
ainda, que ao transgredir as fronteiras entre o natural e o artificial, esse ciborg evidencia
que não há mais natureza, nem corpo no sentido iluminista dos termos. Para João
Fernandes Teixeira (2010) os progressos recentes da robótica e as inovações
tecnológicas, como o implante de chips no cérebro, parecem sugerir que esta nova era
não está muito distante.5 Em Videodrome essa transformação parte do desejo de
dominação do cérebro humano por uma corporação que pretende tornar o vídeo uma
forma de controle da mente humana. Simondon (2007) afirma que a informação não é,
por natureza uma coisa, mas uma forma de transformação, uma transformação que, em
Videodrome se processa durante o processo de transmissão da informação, quando há
uma espécie de simbiose entre o conteúdo transmitido e o cérebro do receptor.
Informação essa que é para o canadense Marshall McLuhan (1911 – 1980) a
própria mensagem, uma vez que, segundo o próprio autor, as consequências sociais e
pessoais de qualquer meio constituem o resultado de um novo estalão introduzido em
nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos.
“Pois ‘a mensagem’ de qualquer meio ou tecnologia é a mudança
de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia
introduz nas coisas humanas. A estrada de ferro não introduziu o
movimento, transporte, roda ou caminhos na sociedade humana,
mas acelerou e ampliou a escala das funções humanas anteriores,
criando tipos de cidades, de trabalho e de lazer totalmente
novos.” (McLuhan, 2007: 22)
“No seio das reconstituições da vida social e cultural, uma questão candente, que tem ocupado a mente
dos teóricos e a imaginação dos artistas, está voltada para as transformações pelas quais o corpo humano
está passando e, Segundo os prognósticos, ainda deverá passar. O corpo humano se tornou problemático e
as inquietações sobre uma possível antropomorfia têm estado no centro dos questionamentos sobre o que é
ser humano na entrada do século XXI. A esse corpo sob interrogação estou aqui chamando de corpo
biocibernético.” (SANTAELLA, 2003: 181)
5
“O ciborgue se tornou a imagem do homem. Não é só a ideia dos poderes corporais aumentados que está
em jogo. É também a ideia de que o ser híbrido, metade silício, metade ser vivo, teria mais chance de
sobreviver por mais tempo.” (TEIXEIRA, 2010: 62)
4
Ainda que o roteiro de Videodrome tenha surgido da identificação que
Cronenberg tem da ideia de McLuhan, há outra inspiração bem mais antiga e igualmente
importante – uma memória de infância. Quando criança, tinha em casa um tipo de antena
giratória que podia ser direcionada aos quatro pontos cardinais, assim conseguia acessar
emissoras de TV longínquas, a maioria com sinal vindo dos Estados Unidos, porém a
qualidade era ruim e as imagens apareciam e desapareciam sem que ele pudesse saber de
onde vinham (Gorostiza & Pérez, 2003: 156). Muitos anos depois, o mistério da infância
se converteu em um roteiro chamado Network of Blood, em que um homem descobria
um estranho sinal na televisão. Esse argumento foi evoluindo até que Cronenberg
incluísse uma emissora de televisão que transmitia programas proibidos para um
enigmático grupo da alta sociedade que pagavam por isso. No entanto, o roteiro só foi
concluído em janeiro de 1981, depois de passar por diversos cortes, principalmente,
direcionados a se encaixar nos padrões da censura norte americana. Ainda assim,
enfrentou novamente uma dura postura dura da crítica mais conservadora, principalmente
por conter cenas de sexo e violência.
Claude Héroux, Victor Solnicki e Pierre David foram novamente os produtores,
eles já haviam trabalhado em The Brood e Scanners, e aqui haviam formado uma nova
empresa, a Filmplan International II. Videodrome foi filmado em Toronto de outubro a
dezembro de 1981. O maquiador Rick Baker6 foi também um profissional de destaque na
equipe e colaborou de maneira decisiva na construção dos efeitos especiais do filme. O
roteiro do filme era muito compacto, o que trouxe alguns atrasos nas filmagens porque
nem sempre a equipe entendia o que o diretor pretendia, porém essas dificuldades teriam
sido resolvidas na montagem. “Quando estou na montagem não tenho piedade. Eu não
me importo quanto tempo demorou para preparar um plano só se ele funciona ou não. Me
aborreço com as coisas e tendo a eliminar muito na primeira montagem.” (Rodley, 200:
157)
6
Rick Baker havia trabalhado antes, em 1981, com John Landis, em Londres, em An American
Werewolf in London, tendo ganhado um Oscar por esse trabalho. (Gorostiza & Pérez, 2003: 157)
Ao final da primeira montagem, Cronenberg preparou uma exibição como um
teste público em Boston, que foi realizado em abril de 1982, porém foi um teste duro e de
resultado desanimador. Devido a uma greve do transporte público e o mal tempo que
fazia no dia marcado, poucas pessoas compareceram e muitas levaram crianças,
acreditando ser um filme que poderia ser visto por todas as faixas etárias. Ao final da
exibição foram distribuídos cartões de avaliação e o resultado foi muito duro. O diretor
fez, então uma nova montagem, tendo que convidar novamente a atriz Debbie Harry para
ir até Toronto repetir algumas cenas. Outro problema que enfrentou foi a censura norte
americana. “(...) nos EUA a Motion Picture Association of America exigiu que fizessem
alguns cortes para conceder ao filme a classificação R, ademais a Universal Pictures
obrigou a cortar ainda mais, eliminando cenas como a da figura fálica (figura 13) que usa
a gueixa de Samurai Dreams.” (Gorostiza & Pérez, 2003: 170)
2. Os raios catódicos e a produção de um novo órgão
David Cronenberg subverte, assim, o modelo comunicacional clássico (emissor –
mensagem – ruído – recepção), transformando o ruído em uma forma de dominação
dessa recepção. O filme é de 1983, período de grande penetração do video e da televisão
nas residencias do Canadá, assim o diretor propõem uma leitura dessa dominação das
massas, da Indústria Cultural, afinal, se existe alguma forma de resistência por parte
dessa recepção, ela é completamente aniquilida com ampliação dos poderes do video, que
subjulga o corpo e o mantém controlado, realizando amplamente a dominação das
massas.
Porém, em Videodrome essa dominação não é concretizada. Max descobre o
esquema perverso de Videodrome e vai atrás de descobrir o nome por trás do esquema e
chega até Brian O’Blivion, o criador de uma seita chamada Missão dos Raios Catódicos,
conhecido como profeta do mass media. “Queria criar um personagem inspirado em
McLuhan”, afirma Cronenberg sobre a admiração ao teórico canadense. O’Blivion já não
tem um corpo, suas aparições são sempre mediadas pelo video, ele chega a participar de
um programa de televisão com Max Renn, mas seu rosto aparece no video. Uma das
primeiras vítimas de Videodrome, O’Blivion perde o corpo para a morte causada pelo
tumor que tomou o seu cérebro, mas antes da morte do corpo, ele gravou suas ideias em
fitas de VHS, salvando sua mente da morte. As reflexões sobre as transformações do
corpo humano é um tema que segue provocando cada vez mais inquietação ao diretor.
“O corpo é como um armazém que pode abrigar vírus que o
transformam como em Rabia (1977); nódulos ou tumores
induzidos pelo tratamento psicanalítico, superestimulação com
choques emocionais da recordação de memórias esquecidas, The
Brood (1979); um corpo que tem o apoio da droga, como o texto
de William S. Burroughs em Naked Lunch (1991) é um vírus
maligno e pode se converter em um campo maravilhoso para
experimentar um confronto físico, onde a dor vai se
intensificando como em Crash (1996).” (GOROSTIZA &
PÉREZ, 2003, p. 41)
Segundo o próprio Cronenberg, as transformações do corpo tratam de muitas das
inquietações frente a dualidade improvável entre cérebro e corpo. Ele afirma que a base
do terror da humanidade é o fato de não ser possível compreender a morte. “Como é
possível que um homem morra tendo uma falência física, enquanto seu cérebro conserva
absoluta nitidez e clareza” (Rodley, 2000: 130).
Nessa dicotomia entre corpo e tecnologia, Videodrome declara a busca por uma
Nova Carne, Videodrome profetiza: Vida Longa a Nova Carne, para que surja essa nova
carne, é preciso que morra o corpo obsoleto, os objetos sejam resignificados. Cronenberg
parte da fusão dos objetos com o corpo para promover essa resignificação. Existem no
filme três objetos que marcam essa resignificação corpórea: O primeiro é a pistola fálica,
que passa a fazer parte da mão de Max, quando este é tomado por um desejo de matar
seus inimigos. O segundo objeto é uma fita de video que respira e entra nas entranhas de
Max por uma abertura em formato de vagina que aparece em seu abdome. E o terceiro é
uma enorme e velha televisão, que se converte nos lábios de Nick e que se funde também
ao corpo de Max.
3. Conclusão
A relação entre o homem e a tecnologia é central em Videodrome (1983) e traz
para a tela os conflitos que esta gera ao afetar a vida humana e produzir uma nova forma
de organização desta. Desde o homo sapiens a relação com a tecnologia modifica a vida a
humana e amplia as funções biológicas do corpo. Seja com a invenção do fogo ou mesmo
da roda ou até a utilização de ossos ou pedras para ampliar a atuação da força física na
luta corporal, o homem lida historicamente com a tecnologia como forma de modificar
seu corpo biológico, criando, assim, um novo corpo a cada invenção tecnológica.
Inspirado por essas relações, o cineasta David Cronenberg constrói um novo corpo com o
seu cinema expandindo as consequências do video e da televisão sobre a vida humana
para um universo fantástico e questionando assim essa relação entre o ser humano e os
meios de comunicação. As fronteiras entre a realidade e as alucinações são diluídas
quando, sob efeito dos raios catódicos emitidos por Videodrome as personagens afetadas
desenvolvem um tumor cerebral que é apontado como novo órgão do corpo humano.
Passam assim a dialogar com a humanidade dos objetos, que respiram e interferem
diretamente na vontade humana, tal como a pistola que conduz o personagem Max Renn
a matar, ainda que, aparentemente, contra sua vontade. Institui-se uma nova carne, uma
carne modificada por intenções corporativas, capitalistas e que foge ao controle da mente.
O filme, que começa com um corpo aparentemente comum, constrói ao longo da trama
uma nova apresentação deste corpo a medida em que este corpo sofre as interferencias
diretas da tecnologia. Uma vez modificado, já não temos um ser humano comum na tela,
mas um novo. O que podemos chamar de homem de Cronenberg.
5. Bibliografia
BEARD, William. The Artist as Monster – The Cinema of David Cronenberg. Rev.
and expanded. Toronto, CA: University of Toronto Press Incorporation, 2006.
CARROLL, Noël. A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração. / Noël Carroll;
tradução Roberto Leal Ferreira. – Campinas, SP: Papirus, 1999. (Coleção Campo
Imagético)
GRÜNBERG, Serge. David Cronenberg. Paris, Cahiers du Cinéma – Éd. De l’Étoile,
1992.
______. David Cronenberg. Paris, Cahiers du Cinéma, 2000.
GREINER, Christine. O corpo em crise – Novas Pistas e o Curto-Circuito das
Representações. São Paulo: Annablume, 2010. (Coleção Leituras do Corpo)
JULLIER, Laurent. Lendo as imagens do cinema / Laurent Jullier e Michel Marie:
tradução Magda Lopes. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
NOVAES, Adauto (org.). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 2003.
RODLEY, Chris. Cronenberg on Cronenberg. Londres, Faber & Faber, 1997.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e Artes do Pós-humano – Da Cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo : Paulus. 4ª ed., 2010.
SIMONDON, Gilbert. El modo de existência de los objetos técnicos. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2007.
HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no
final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org). Antropologia do Ciborgue – As
Vertigens do Pós-Humano. 2 ed., 1 reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
(Mimo)
TEIXEIRA, João de Fernandes. A mente pós-evolutiva: a filosofia da mente no
universo do silício. Petrópolis, RJ : Vozes, 2010.

Documentos relacionados