Recomendação MPF-MG n° 99, de 02 de dezembro de 2013
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Recomendação MPF-MG n° 99, de 02 de dezembro de 2013
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 RECOMENDAÇÃO MPF/MG Nº 99, de 02 de dezembro de 2013 Inquérito Civil Público nº 1.22.000.001978/2012-18 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por meio do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão que esta subscreve, no exercício das atribuições que lhe conferem os artigos 127, caput, e 129, incisos II e III, da Constituição da República; artigos 2º e 6º, incisos VII, alínea “c”; XIV, alíneas “a”, “c” e “d”, e XX, da Lei Complementar Federal nº 75/93, CONSIDERANDO que o Estado brasileiro, ao ratificar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, comprometeu-se a não efetuar qualquer ato ou prática de “distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em igualdade de condição de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida”; CONSIDERANDO que o Comitê para Eliminação da Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas, criado com o objetivo de monitorar o cumprimento da Convenção acima citada, expediu a Recomendação Geral n° 27, de 16/08/2000, por meio da qual elencou uma série de medidas que os Estados devem adotar no sentido de enfrentar a discriminação contra as comunidades ciganas, entre as quais: (i) promover o respeito e a superação de preconceitos e estereótipos negativos contra a comunidade cigana; (ii) implementar medidas adequadas para garantir que os membros de comunidades ciganas tenham acesso a medidas judiciais efetivas em casos relacionados a violações dos seus direitos e liberdades fundamentais; (iii) desenvolver e implementar políticas e projetos voltados a evitar a segregação das comunidades ciganas no que se 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 refere à habitação, considerando as comunidades e associações ciganas como parceiras no desenvolvimento dos projetos habitacionais de construção, restauração e manutenção; (iv) evitar a instalação de comunidades ciganas em acampamentos isolados e sem acesso a assistência médica e outras necessidades básicas; (v) assegurar aos ciganos igualdade no acesso à assistência médica e outros serviços de segurança social, eliminando qualquer prática discriminatória nessa seara; (vi) iniciar e implementar programas e projetos no campo da saúde para os ciganos, especialmente para mulheres e crianças, tendo em vista a situação de vulnerabilidade por eles vivida, devido à extrema pobreza, baixo nível de escolaridade e diferenças culturais. CONSIDERANDO que a Subcomissão sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos das Nações Unidas, por meio da Resolução 1991/21, alertou que, “em diversos países, há vários obstáculos para a realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das pessoas que pertencem à comunidade cigana e tais obstáculos constituem discriminação dirigida especificamente contra a comunidade, deixando-a particularmente vulnerável”; CONSIDERANDO que a Relatoria Especial da ONU para Minorias enfatiza a vulnerabilidade dos ciganos, destacando que a maioria de seus membros ainda vive em habitações precárias, com estrutura sanitária muito pobre ou inexistente (E/CN.4/Sub.2/2000/28); CONSIDERANDO que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do que dispõe o art. 1º, inciso III, da Carta Magna de 1988. CONSIDERANDO que a Constituição de 1988, em seu art. 3°, inciso IV, elenca como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; CONSIDERANDO que o art. 215, § 1º, da Constituição de 1988 ainda estabelece que o Estado “protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”; CONSIDERANDO que o Decreto n° 6.040, de 07/02/2007, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que tem como princípio o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais;1 1 DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição, DECRETA: º Art. 1 Fica instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT, na forma do Anexo a este Decreto. ANEXO POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS PRINCÍPIOS Art. 1º As ações e atividades voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais deverão ocorrer de forma intersetorial, integrada, coordenada, sistemática e observar os seguintes princípios: I- o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade; 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 CONSIDERANDO que o Programa Nacional de Direitos Humanos III estabelece, entre as ações que têm por objetivo proteger grupos vulneráveis, a garantia de “condições para a realização de acampamentos ciganos em todo o território nacional, visando à preservação de suas tradições, práticas e patrimônio cultural”; CONSIDERANDO que a discriminação contra os ciganos, seja pela sociedade, seja por órgãos estatais, ainda é uma realidade nacional, fazendo-se necessária a adoção de políticas voltadas ao combate ao anticiganismo; CONSIDERANDO que o art. 23, inciso IX, da Constituição da República de 1988 estabelece como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; CONSIDERANDO que, com o advento da Lei nº 11.445/2007, 2 definiu-se o saneamento básico como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de 2 LEI Nº 11.445, DE 5 DE JANEIRO DE 2007. os Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis n 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de o fevereiro de 1995; revoga a Lei n 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: CAPÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS o Art. 1 Esta Lei estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico e para a política federal de saneamento básico. o Art. 2 Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais: I - universalização do acesso; 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais; CONSIDERANDO que a universalidade do acesso é um dos princípios fundamentais estabelecido pelo diploma legal supracitado; CONSIDERANDO que tramita nesta Procuradoria da República o inquérito civil público n° 1.22.000.001978/2012-18, que visa a assegurar os direitos do grupo cigano Calon, que, há mais de trinta anos, reside no bairro São Gabriel, em Belo Horizonte; CONSIDERANDO que, após visitas realizadas ao referido acampamento cigano, constatou-se que a comunidade vive sem nenhuma estrutura de saneamento básico; CONSIDERANDO que, por tal motivo, os membros da comunidade, sempre que necessitam de realizar suas necessidades básicas, são forçados a atravessar as ruas que dão acesso ao acampamento, até chegarem a matas existentes em terrenos próximos; CONSIDERANDO que essa situação ainda é agravada no caso de membros do grupo que se encontram debilitados ou possuem mobilidade reduzida; CONSIDERANDO o teor da Nota Técnica PFDC/CAM/EB nº 07/2013, anexa, elaborada pela i. Analista Pericial em Antropologia Emília Botelho, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, consoante a qual “Os Calon do bairro São Gabriel, como já dito, estão vivendo em condições extremamente precárias, contrárias à dignidade humana. Destaca-se a situação das pessoas idosas. Estas condições são do conhecimento do poder público municipal, conforme documentos dos autos. Faltam serviços públicos básicos, que poderiam ter sido providos, ainda que de modo provisório – banheiros, água, luz.” 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 CONSIDERANDO que tal cenário representa uma grave violação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição brasileira), aos demais dispositivos constitucionais acima mencionados e ao princípio fundamental da universalidade do acesso ao saneamento básico, estabelecido pela Lei nº 11.445/2007; CONSIDERANDO que ainda se encontram em andamento as tratativas para regularização fundiária da área em que reside grupo cigano Calon, sendo que a alarmante situação vivenciada no acampamento no bairro São Gabriel impõe a adoção de medidas imediatas; RECOMENDA ao Prefeito do Município de Belo Horizonte, Dr. MÁRCIO LACERDA, e ao Diretor Presidente da COPASA, SR. RICARDO AUGUSTO SIMÕES CAMPOS, que: − executem as obras necessárias ao fornecimento de água e ao esgotamento sanitário no acampamento do grupo cigano Calon, situado em três localidades nas imediações da Av. Jornalista Abrahão Sadi, Rua Plínio Teixeira, Rua Castanhal e Rua Cleanto, em terrenos não operacionais da antiga “linha” Ramal Matadouro/Capitão Eduardo, da extinta Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), no bairro São Gabriel, em Belo Horizonte – MG; − construam instalações sanitárias provisórias no referido acampamento do grupo cigano Calon, devidamente dimensionadas para atender ao número de integrantes da comunidade, até que seja solucionada a questão fundiária do terreno e seja possível realizar a sua regularização urbanística, ressaltando-se que a simples colocação de banheiros químicos no local não é suficiente para resolver a situação ora descrita, o que somente poderá ocorrer 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS Av. Brasil, nº 1877 - Bairro Funcionários - Belo Horizonte/MG - CEP 30.140-002 - Tel. (31) 2123-9000 satisfatoriamente mediante a construção de banheiros com fornecimento regular de água pela COPASA; − providencie, a COPASA, o fornecimento regular de água ao mencionado acampamento do grupo cigano Calon, bem como o necessário esgotamento sanitário no local. ENCAMINHE-SE a presente RECOMENDAÇÃO à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e à Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA, assinalandose o prazo de 30 (trinta) dias, contados do recebimento da notificação, para o envio de relatório documentado acerca de todas as providências tomadas para dar cumprimento ao ora recomendado. A presente recomendação dá ciência e constitui em mora seus destinatários quanto às providências recomendadas, podendo implicar a adoção de todas as providências administrativas e judiciais cabíveis, inclusive na esfera de responsabilização civil, em decorrência de dano moral coletivo sofrido pela comunidade cigana. Belo Horizonte, 02 de dezembro de 2013. Edmundo Antonio Dias Netto Junior Procurador da República 7
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