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20 POEMAS André de Leones edição do autor Para Wesley Peres e Adriana Lisboa. 2 ÍNDICE primeiro bloco: DESERTOS Evocação da areia 5 / Silvânia 6 / Goiânia (I) 7 / Goiânia (II) 8 / Goiânia (III) 9 Paranaguá (I) 10 / Paranaguá (II) 11 / Paranaguá (III) 12 Fevereiro (ainda Paranaguá) 13 / Yerushalayim 14 segundo bloco: DEPRESSÕES 4:49 16 / O que fazem? 17 / 4:48 18 / Cefaleia 19 / Broncoespasmo 20 / É muito fácil perder o que quer que seja 21 / Paisagem para a queda de Ícaro 22 Meteorologia 23 / Antecipação 24 final: Anatólia 26 Sobre o autor 27 3 primeiro bloco: DESERTOS 4 EVOCAÇÃO DA AREIA Presta atenção nessa parte, meu pai dizia. Era a Abertura 1812, eu e ele esparramados no tapete — única praia que tivemos. 5 SILVÂNIA A boca suja de terra, sempre desço à altura da pedra e peço a ela que me cubra; eu sempre descia. Meus poucos dentes amoleciam com o vento. 6 GOIÂNIA (I) Goiânia não é orgânica. A topologia fina, de magras camadas, não pulsa. Sua fisiologia, restringível ao trânsito difícil, de intestino grosso, compõe-se de ruas e praças em negativo: enxerga-se o contrário dos lugares, escuros de onde emergem traços de coisas, ossos em chapas de raios-x. 7 GOIÂNIA (II) Goiânia não se permite corpo, aquário seco de cujas torres saltam aventureiros. 8 GOIÂNIA (III) A morte azul é cancerigienizadora. A morte azul nos iletra a carnadura, torna-a maleável, nivela por baixo qualquer fisiologia. Em Goiânia, orgânico só o tal acidente. 9 PARANAGUÁ (I) A chuva desarma desfiles e matinês enquanto na praça encharcada os blocos se soltam e a enxurrada corre por sob a rua. Sustentada pela chuva, por debaixo, a cidade, sem sair do lugar, navega, é navegada. 10 PARANAGUÁ (II) Sempre no contrário de si e às vezes tão em negativo quanto Goiânia, mas nacarada de lama, de fina e clara lama, ou em derreter-se de dentro para fora — implodida de sol. 11 PARANAGUÁ (III) Cidade agramatical, não situável em qualquer dos lados da frase; analfabeta a comunicar surdamente um estado prenhe doutras orações sem sujeito. 12 FEVEREIRO (AINDA PARANAGUÁ) em fevereiro não tínhamos mesa cama cadeiras apenas um colchão um buraco na parede onde coloquei meus livros a janela sem cortinas em fevereiro a ideia desmontável de uma casa em nossas cabeças em fevereiro as telhas rangiam com o vento e te assustava a árvore desfolhada na janela que me pedia para fechar em fevereiro não sabíamos direito o que fazer as contas começaram a chegar suávamos calados sobre os nossos pratos em fevereiro eu punha a mesa e te esperava lendo algum livro de cujo início fatalmente já esquecera moramos em quartos de hotéis por duas semanas em fevereiro felizes e assustados assistindo ao carnaval pela janela entrefechada 13 YERUSHALAYIM para Maira Parula em Jerusalém sonhei com Neve Tsedek o SoHo de Tel Aviv você comprava uma tela abstrata de uma pintora hippie dentes ruins tela depois trocada por não me lembro quantas doses de arak em uma barraca do shuke chuva torrencial e no fotograma seguinte pedalando ensolarados pelo calçadão de Yafo o Mediterrâneo nos fitava sonolento como se olhasse para o passado e ainda nem existíssemos 14 segundo bloco DEPRESSÕES 15 4:49 Não há silêncio mais belo, o silêncio que precede o salto. 16 O QUE FAZEM? o que fazem entre um lado e outro? entre a mania e seu outro polo? o que fazem enquanto a corda se estica antes de anunciar com um assovio seco este é o ponto final? o que fazem nessa descida incompleta que não os leva até o chão? o que fazem entre um dia e outro? entre o início e o fim da noite? o que fazem com o dia? fazem sala e café para as visitas calculam a distância final entre os pés suspensos e o chão fazem planos fazem cabanas usando cobertores em quartos iluminados pela luz dos televisores ligados dividem o dia em pedaços pequenos e assim o engolem aos poucos com um pouco d’água às vezes nem isso 17 4:48 Sarah Kane teria se enforcado com os próprios cadarços ou com os de outrem, eu não sei. Talvez tenha pedido a alguém, me empresta os teus cadarços por favor? Coração, fígado, pulmões: o mundo cheira a urina e suor humanos (cito). Os pés balançam no vazio: por que não são mais possíveis momentos como este? Sarah Kane ali suspensa (cito) para que não lhe devorassem o rosto. 18 CEFALEIA Começa às dezesseis em ponto, exceto aos domingos, quando se prolonga por todo o dia em espaçamento único — trave branca atrás dos olhos, lançando-os para fora. Arrefece às dezessete e nove e vem o sono, que perdura até as dezenove e cinquenta, às vezes um pouco mais. A sensação de gratuidade surge nos momentos mais inesperados. Por exemplo, ao pagar pelo almoço, a mão estendida a digitar a senha do cartão; por exemplo, ao avistar o metrô que se aproxima ruidoso pelo túnel; por exemplo, ao passar pelo vizinho checando a correspondência na portaria do prédio; por exemplo, as primeiras marteladas na construção vizinha, sete e dois da manhã. O que vem a seguir é um adendo. Assim: sentir dor é algo branco. O vermelho prenuncia outra coisa. O negro traz em si uma ideia de D’us. O amarelo convida a fechar os olhos e o cinza, a sair de casa, a graciosamente desaparecer. 19 BRONCOESPASMO Não lembro quando foi a última vez em que respirei corretamente, o ar entrando pelas narinas e saindo pela boca, suave. Ontem mesmo (é só um exemplo) tive de deixar sobre a mesa a fruta partida e a faca suja, o sumo melando o tampo, e respirar fundo ou assim tentar, quebradamente: é como tentar respirar noutro idioma ou numa atmosfera alienígena que não compreende quando digo (persigo) oxigênio. Nesta rarefação interna e extremada, contínua, mesmo o fogo (aquele de dentro) empalidece e cala, se apaga, dando lugar à verdadeira vida do espírito. Não caibo em seu corpo, e nem é pela distância: tentaria correr se meus pés ainda tocassem o chão. 20 É MUITO FÁCIL PERDER O QUE QUER QUE SEJA É muito fácil perder o que quer que seja, e bem difícil constatar que se perdeu o que quer que seja. Não pelo que se perdeu, mas por se ter perdido assim, sem mais. Parece haver um desastre grande ou pequeno (eu não sei) em cada mísera perda, talvez nas coisas mesmas que se perde, quando o que se perde é assim perdido, sem mais. Ou: há um desastre quando se perde sem saber que; quando se percebe tarde demais a perda, qualquer que seja, de um objeto grande ou pequeno (eu não sei) ou mesmo de um lugar ao norte, sempre. 21 PAISAGEM PARA A QUEDA DE ÍCARO Sempre olho pela janela do avião e rezo para que o sol esteja do outro lado. Não vê-lo é sempre melhor. Não há nada pior do que a luz solapando as retinas para escorrer crânio adentro, a voz solar de D’us: não há mais o que ver, ou por quê. Sempre olho pela janela do avião e rezo para que o sol esteja do lado de dentro. Não ver é sempre melhor. Não há nada pior do que a luz desajustando as coisas lá embaixo enquanto escorro para longe delas, a voz arranhada do piloto: à esquerda dos senhores, o mar. Sempre olho pela janela do avião e rezo para que o mar tome conta do resto e nos alcance lá em cima. 22 METEOROLOGIA Melhor forma de trocar cumprimentos: em dias de chuva, duas mãos acenando na distância, debaixo dos guarda-chuvas. É mais fácil no verão, até porque raramente saio de casa no inverno; em dias enchuvarados, pouco antes de atravessar, o reflexo de um rosto conhecido numa poça, no meio da rua. 23 ANTECIPAÇÃO Para Erwin Maack "É preciso estar perto das pessoas", me dizia ao telefone. A ligação falhava um pouco, e então: "É o túnel. Vai cair". Um silêncio momentâneo, à espera; não caía. Ninguém fala assim, eu provocava, é preciso estar perto das pessoas. "Você não está me ouvindo?": o pedido, implícito (ou nem tanto), escorria pelas ranhuras da conversa, os intervalos antecipando o corte. "Onde é que você está indo?", ouvia limpidamente, e a ligação caía. Tentava retornar. Era inútil. Um sms: "Pra onde vao as ligacoes perdidas?". Talvez sorrisse, dissesse para si mesmo, que morbidez. 24 final 25 ANATÓLIA Pátroclo morreu nu, duas vezes alanceado. Lutaram pelo cadáver e contra o dia tróicos lícios mirmidões aqueus e quem mais lá estivesse (não eu ou você). Aquele é um tempo só memória. Não esboroa, contudo. Lá, o aedo fala com Pátroclo quando ele se lança à morte, ou melhor, no após, em rememorar. E ele se arroja: despido por um deus para ser atingido pela lança de Euforbo e depois pela de Heitor, este o terceiro a matá-lo — ele próprio diz, e o aedo recita. Este poema, contudo, ele se passa nos dias de hoje. 26 André de Leones nasceu em Goiânia, em 1980, e foi criado no interior de Goiás, em Silvânia. É autor dos romances Terra de casas vazias, Dentes negros, Como desaparecer completamente (lançados pela Rocco) e Hoje está um dia morto (Record). Vive em São Paulo. Weblog: vicentemiguel.wordpress.com. Os poemas aqui reunidos foram escritos entre 2006 e 2013. Versões anteriores dos mesmos foram publicadas no blog do autor e em outros espaços. 27 FAVOR NÃO REPRODUZIR SEM AUTORIZAÇÃO [email protected] São Paulo Outono de 2014 Imagem na capa: Quatro árvores (1917), óleo sobre tela de Egon Schiele. 28