A repetição e seus destinos na obra de Freud

Transcrição

A repetição e seus destinos na obra de Freud
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
A repetição e seus destinos na obra de Freud
Diego Frichs Antonello
2011
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UFRJ
A repetição e seus destinos na obra de Freud
Diego Frichs Antonello
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Regina Herzog
Rio de Janeiro
Fevereiro/2011
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A repetição e seus destinos na obra de Freud
Diego Frichs Antonello
Orientadora: Regina Herzog
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
____________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog
____________________________________
Prof. Dr. Ricardo Salztrager
____________________________________
Profa. Dra. Maria Isabel de Andrade Fortes
Rio de Janeiro
Fevereiro/2011
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Antonello, Diego Frichs
A repetição e seus destinos na obra de Freud.
Diego Frichs Antonello. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011
120 f.; 29,7 cm
Orientadora: Regina Herzog
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 116-120.
1. Compulsão à repetição. 2. Trauma. 3. Dor. 4. Psicanálise. 5.
Dissertação (Mestrado). I. Herzog, Regina. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título
5
Dedicatória
À Patrícia Paraboni e Marilú.
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Agradecimentos
A Regina Herzog pelo acolhimento, gentileza, paciência e aposta neste trabalho. Contar
com sua orientação foi fundamental para a realização desta dissertação.
À professora Isabel Fortes e ao professor Joel Birman pelas valiosas contribuições no
exame de qualificação.
À CAPES pelo financiamento desta pesquisa.
Aos professores das disciplinas cursadas durante o mestrado, pelas enriquecedoras
contribuições.
Aos companheiros de equipe de pesquisa e do NEPECC.
Aos demais amigos que foram muito importantes durante esse período, em especial
Maiquel, Camila, Marcos e Raquel.
À Marilú pelo incentivo, apoio e amizade fundamentais para chegar até aqui.
À minha esposa, Patrícia Paraboni, pelo amor e apoio recebidos.
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Resumo
A repetição e seus destinos na obra de Freud
Diego Frichs Antonello
Orientadora: Regina Herzog
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
O objetivo da presente dissertação é realizar um mapeamento do conceito de
repetição na obra freudiana. Buscaremos mostrar como a repetição atravessa o pensamento
freudiano correlacionando-a com os conceitos fundamentais da psicanálise.
Iniciamos com o Projeto de 1895, articulando a repetição com a vivência de dor e a
vivência de satisfação, mostrando, no primeiro caso, indícios de uma repetição dolorosa
fora do princípio de prazer e, no segundo o fundamento do psiquismo da primeira tópica
balizado pelo princípio de prazer.
No segundo capítulo veremos como a repetição ganha o estatuto de conceito em
1914, onde é revelada pela transferência como o retorno do recalcado.
Frente a complicações teóricas e novos indícios clínicos, Freud vai problematizar a
ideia do princípio de prazer como exclusivo no funcionamento do psiquismo, passando a
conferir uma importância capital à compulsão à repetição em 1920.
A partir daí, vários temas presentes no Projeto de 1895 são retomados, dando um
lugar de destaque à questão da dor e do trauma, conforme será indicado no último capítulo.
Palavras-chaves: Repetição – Dimensão Representacional – Dor – Trauma – Psicanálise.
Rio de Janeiro
Fevereiro/2011
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Abstract
Repetition and its destinies in Freud's work
Diego Frichs Antonello
Tutor: Regina Herzog
Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic
Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a
part of the requisite for obtaining the Master's Degree in Psychoanalytic Theory.
The objective of this dissertation is to achieve a mapping of the concept of repetition
in Freud‟s work. We try to demonstrate how repetition crosses the Freudian thinking,
relating it to the fundamental concepts of psychoanalysis.
We begin with the “Project for a scientific psychology” (1895), articulating
repetition with the experience of pain and the experience of satisfaction, showing, in the
first case, hints of a painful repetition beyond the pleasure principle, and in the second
case, the psyche‟s ground in the first topic, marked by the pleasure principle.
In the second chapter we‟ll see how repetition gains the status of concept in 1914,
where it is revealed by the transference as the return of the repressed.
Facing theoretical difficulties and new clinical hints, Freud will discuss the idea of
the pleasure principle as being exclusive in psychical functioning, and giving crucial
importance to repetition compulsion in 1920.
Since then many themes from 1895 “Project” were studied again, emphasizing the
issue of pain and trauma, as we will show in the last chapter.
Keywords: Repetition – Representation – Pain – Trauma – Psychoanalysis.
Rio de Janeiro
February/2011
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Sumário
Introdução.............................................................................................................10
Capítulo I – O Projeto de 1895 e a repetição...............................................15
I.1 – O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana............................................16
I.2 – O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações............................20
I.3 – A repetição e a facilitação................................................................................23
I.4 – O problema da repetição da dor.......................................................................30
I.5 – O tempo da repetição.......................................................................................35
I.6 – A vivência original de satisfação e o abandono da vivência de dor.................41
Capítulo II – O retorno do recalcado – repetição do sexual.....................45
II.1 – A transferência e a resistência........................................................................46
II.2 – A repetição do sexual e presentificação do desprazer....................................52
II.3 – O caso Dora – uma lição clínica.....................................................................56
II.4 – A repetição e a rememoração.........................................................................60
II.5 – A pulsão e a repetição.....................................................................................64
II.6 – A passagem ao ato e os limites do princípio de prazer...................................69
Capítulo III – Os limites da representação.....................................................76
III.1 – A repetição do desprazer................................................................................77
III.2 – Redefinindo o trauma.....................................................................................79
III.3 – O eu em ruínas................................................................................................86
III.4 – A compulsão à repetição.................................................................................89
III.5 – O limite da representação................................................................................93
III.6 – Como proceder frente ao irrepresentável........................................................99
Considerações finais.............................................................................................107
Referências Bibliográficas...................................................................................116
Introdução
A presente dissertação é um estudo acerca da repetição na obra de Freud. O objetivo
é realizar um mapeamento do conceito de repetição, buscando apontar seu desdobramento,
impasses e relevância no desenvolvimento da elaboração teórico-clínica freudiana. Desde o
início dos seus escritos Freud procura estabelecer um diálogo entre as observações clínicas
com a teoria, ou melhor, a teoria aos poucos vai sendo tecida a partir das descobertas e
confirmações das hipóteses levantadas através do tratamento dos casos de neurose. Desta
maneira, estudar a repetição na obra de Freud é tentar compreender o movimento que este
conceito suscitou, por meio da clínica, no pensamento freudiano. Através dos exemplos
clínicos que percorrem vários momentos de sua obra, notamos a presença maciça da
repetição, tornando-se uma peça fundamental no direcionamento, na construção e
articulação dos demais conceitos psicanalíticos.
A questão da repetição pode ser articulada com uma gama de figuras e conceitos, tais
como: vivência de dor, inconsciente, pulsão, representação, transferência, resistência,
dentre outros. No presente trabalho estes serão abordados na medida em que possam
balizar o nosso entendimento acerca da repetição. Assim, o eixo de leituras está
concentrado, principalmente em textos como: Projeto para uma psicologia cientifica
(FREUD, 1895[1950]/1996), os artigos sobre técnica (Id., 1912-14/1996), os artigos
metapsicológicos (Id., 1914-1915/1996) e o Além do princípio de prazer (Id., 1920/2006).
Junto a isso buscamos suporte em comentadores da obra de Freud que se dedicam ao
mesmo tema.
Destacaremos três momentos distintos em relação ao aparecimento da repetição. No
primeiro, o Projeto de 1895 um texto apócrifo, negado pelo seu autor, mas que traz uma
importante contribuição a respeito da repetição. A vivência de dor nos dá alguns indícios
de um processo repetitivo desprazeroso que continua a ocorrer até que o eu possa dominar
toda a energia que rompeu o escudo protetor do aparato neuronal. Para tanto a cada nova
repetição a energia indomada (processo primário), isto é, que não foi imediatamente
mediada pelo eu, tem uma parcela dominada pelos contra-investimentos egóicos. Essa
repetição ocorre até que a energia livre seja subsumida ao processo secundário, mesmo que
tais repetições sejam dolorosas.
A vivência da dor traz um problema de difícil solução para Freud – porque o aparato
neuronal, que procura ficar longe de tensões, repete uma vivência de dor? Freud, neste
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período, não consegue resolver o impasse. A dor, além disso, traz uma ameaça de
regressão ao aparato neuronal, uma vez que a passagem de grandes quantidades pelos
neurônios psi () destroem as barreiras de contato, característica que os diferenciam dos
neurônios phi (). Frente a essas dificuldades, dentre outras, Freud abandona o Projeto de
1895. Abandono que dará à questão da repetição da vivência dolorosa uma longa
incubação até ser novamente evocada em 1920 no artigo que marca a virada tópica – Além
do princípio de Prazer, no qual temas referentes ao Projeto de 1895 são retomados.
A publicação da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996) marca o abandono
da vivência de dor em prol da vivência de satisfação como fundamento de um aparato
psíquico regido pelo princípio de prazer. A partir deste texto Freud postula o princípio de
prazer com fundamento do psiquismo. Com esse princípio como regulador do
funcionamento das atividades psíquicas há uma fuga do estímulo e as representações
desprazerosas têm de antemão seu acesso barrado à consciência. De forma que não mais é
mencionado um funcionamento repetitivo que surge como consequência da vivência de
dor. Nesta perspectiva, na concepção de aparato psíquico de 1900 não há lugar para um
tipo de funcionamento primário que conduz a reativação de experiências desprazerosas.
Sobre esse assunto Caropreso e Simanke (2006) afirmam que os processos primários, a
partir de 1900, possuem a capacidade de inibir a ocupação destas representações. A partir
daí Freud irá priorizar o conceito de defesa do eu contra desejos inconscientes motivados
pelas pulsões sexuais, onde o conceito de recalque, formação de compromisso, retorno do
recalcado ganham destaque no que diz respeito à repetição.
Em um segundo momento, abordaremos a repetição articulada com conceitos
fundamentais da psicanálise: inconsciente, recalque, transferência e pulsão. O caso Dora
nos permite destacar a presença de uma repetição proveniente de desejos edípicos há muito
recalcados, repetição que ocorre via transferência na qual o analista é identificado com
uma outra pessoa da vida do analisando. Por meio da transferência é possível observar, no
período de 1900 até 1920, a repetição maciça do sexual, observada na clínica como o
retorno do recalcado.
Buscamos, assim, destacar a articulação entre repetição e transferência, que seguirá
toda reflexão freudiana sobre a técnica no curso das análises. O retorno do recalcado
marcará justamente à volta daquilo que não é possível recordar, retornando sob efeito da
dimensão amorosa que faz parte do jogo transferencial. O analista é tomado como objeto
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da fantasia do paciente, fornecendo, deste modo, condições ideais para que a repetição dos
conteúdos recalcados ocorra em uma mise en scène.
Finalmente, no artigo “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1996) a
repetição ganha um estatuto de conceito. Freud é forçado a reconhecer a repetição
incorporada à relação transferencial como um modo do paciente recordar, não em palavras,
mas em atos. No lugar de construir uma narrativa verbal o paciente inicia uma
dramatização/atuação com o analista, envolvendo o desejo sexual que teve a descarga
barrada pelo eu. Nesse sentido um eficiente manejo transferencial é a solução freudiana
para impedir a repetição e possibilitar preencher as lacunas da memória provocadas pelo
processo de recalcamento.
A partir de 1915 inicia-se uma predominância do pulsional sobre o campo do
representacional, como decorrentes dos impasses teórico-clínicos com relação à
dominância do princípio de prazer no psiquismo. No âmago desta problemática a repetição
começa a mostrar a insuficiência do método interpretativo, explicitado por casos clínicos
difíceis, nos quais nota-se a presença de uma forma de repetição diferente do retorno do
recalcado. A constatação de uma repetição que excede o acting-out, mostrando-se muito
mais como uma espécie de explosão energética sem mediação egóica, a qual o paciente
não consegue fazer associações que visem trazer à tona conteúdos representacionais
reprimidos, balançam a hegemonia de uma teoria de aparato psíquico sustentado pelo
princípio de prazer.
Em um terceiro momento da presente dissertação mostraremos como a postulação da
segunda tópica marca essa dificuldade, caracterizada por uma falha em dominar o excesso
pulsional. A repetição retorna à pena de Freud com grande força a partir de 1920, agora
sob a forma de uma compulsão à repetição, diferindo conceitualmente da repetição
apresentada em 1914. Contudo, para ser mais preciso, cabe lembrar que ela já se encontra
presente em 1919 no artigo “O Estranho”, no qual há uma expansão do conceito de
repetição e a prefiguração de um algo que escapa a dominância do princípio de prazer, e
que será desenvolvido em 1920.
Pressionado pelo conceito de narcisismo (que colocou em cheque o dualismo
pulsional da primeira tópica), o excesso pulsional, a repetição (que apontava para uma
descarga sem simbolização) e o aparecimento de casos mais graves de neuroses
provenientes da primeira grande guerra, Freud inicia uma reformulação tópica. Tal medida
coloca um fim na dominância estrita do princípio de prazer enquanto regulador do
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funcionamento do aparato psíquico. Temos na figura da compulsão a repetição a presença
do fator energético que não pôde ser assimilado pelo aparato devido ao seu excesso; nesta
perspectiva a compulsão à repetição é colocada em ação como medida defensiva para que
o excesso pulsional seja de alguma forma contido e tal energia possa ser dominada.
No artigo Além do princípio de prazer (1920/1996) Freud retoma vários conceitos do
Projeto de 1895. Após longos 25 anos, a repetição dolorosa é retomada sob a forma de uma
compulsão à repetição, em outro nível conceitual, que denota um funcionamento do
aparato psíquico além do princípio de prazer. A energia livre (indomada) tal como no
Projeto de 1895, não tem mais a possibilidade de inibir em sua origem processos
desprazerosos.
Para tanto, conforme veremos neste capítulo, há uma redefinição da teoria do trauma,
que retoma alguns aspectos da teoria da sedução. A compulsão à repetição coloca em
evidência a presença de uma energia que não pode ser dominada e, por isso, é
irrepresentável; em outros termos, incapaz de ser simbolizada pelo sujeito. Simbolizar
significa que a energia pulsional foi amarrada em representações, mas para isso é preciso
que o eu, reservatório libidinal, tenha energia quiescente para fazer frente à energia que o
invade. Toda vez que ocorre uma falha em dominar o excesso pulsional inicia-se um
processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer. Esse processo é
denominado por Freud de compulsão à repetição.
A repetição funcionou como um motor para as reflexões de Freud, devido aos
questionamentos que suscitou, percorrendo sua obra, mesmo que de forma silenciosa, nos
momentos mais marcantes da formulação do arcabouço teórico da psicanálise. A
compulsão à repetição evidenciará quão sensível é o lugar do sujeito, constituído
narcisicamente, diante dessa força que o obriga a repetir contra sua vontade; é
precisamente por essa obrigação que o sujeito reencontra a impotência dos primeiros anos
de vida. Para discutir a questão da impotência a qual o trauma lança o sujeito,
impossibilitado de agir ante o impacto do excesso pulsional, buscamos auxílio em Walter
Benjamin e comentadores de sua obra. A este respeito Benjamin refere uma narrativa
fragmentária, muito diferente da narrativa tradicional, no que tange aos sobreviventes dos
acontecimentos traumáticos.
Segundo Seligmann-Silva (2008), nesta narrativa fragmentária encontramos o desejo
de renascer, que consiste em um trabalho de religamento ao mundo, a que podemos
remeter a manifestação da pulsão de vida. Mesmo assim, a narrativa proposta por
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Benjamin denota a dificuldade de encontrar na linguagem uma forma de traduzir o excesso
vivido, como se as palavras ficassem aquém da realidade experienciada; é aí que a
imaginação é chamada em auxílio do simbólico, “o trauma encontra na imaginação um
meio para sua narração” (Id., Ibid., p. 70). Tendo em vista estas questões evocamos a
figura do narrador caracterizado por Walter Benjamim como sucateiro, o qual em meio às
sucatas recolhe os cacos, fragmentos para formar um todo organizado. Deste modo
remetemos a Freud (1937/1996), em uma alusão muito próxima do narrador sucateiro, na
qual afirma que a tarefa do analista, frente à dificuldade do paciente em traduzir o
traumático em palavras, se aproxima de arqueólogo escavando fragmentos do passado, ou
seja: é preciso construir aquilo que não pode encontrar expressão pelas vias normais de
narração.
Capítulo I – A repetição e o Projeto de 1895
Neste capítulo temos como objetivo destacar que a ideia de um excesso que escapa
ao princípio de prazer já se encontrava presente na vivência de dor do Projeto de 1895.
Neste texto pré-psicanalítico a dor aparece como uma falha dos dispositivos de proteção do
aparato neuronal e aponta para um processo que mesmo envolvendo o desprazer continua
se repetindo, de acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006). Dessa forma
propomos mostrar como a repetição, mais especificamente a repetição da experiência
dolorosa, já faz uma importante questão para temas que serão tratados somente 25 anos
mais tarde no artigo “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/2006). Para tanto
vamos começar por situar o lugar que o Projeto ocupa no arcabouço teórico da psicanálise,
uma vez que esse texto foi desconsiderado por Freud, sendo publicado apenas nos anos 50,
mais de uma década após sua morte.
Veremos que enquanto a vivência de dor nos coloca na trilha da compulsão à
repetição, a vivência de satisfação nos coloca na pista de um processo repetitivo que
envolve a busca de prazer. Entendemos que essas duas vivências se configuram como
fatores de grande relevância para a questão da repetição, tema dessa dissertação. Nesta
perspectiva o resíduo da vivência de satisfação é chamado estado desiderativo e visa
reproduzir uma identidade perceptiva, ou seja, repetir a vivência de satisfação original, que
envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido como prazer. É a vivência de satisfação
que ganha relevo a partir de 1900 com a publicação da „Interpretação dos sonhos‟, neste
artigo Freud retoma o exemplo descrito no Projeto: o choro do bebê, causado pela fome, é
apaziguado pelo cuidador; e quando volta a ter fome o aparato procura repetir a
experiência primária de satisfação, na qual obteve prazer através da descarga das
excitações.
Freud se serve da vivência de satisfação para fundamentar a tese de que todo sonho é
uma realização de desejo. A partir disso a vivência de dor é desconsiderada e relegada ao
limbo, sendo retomada em 1920 no artigo „Além do Princípio de Prazer‟ ao tratar da
compulsão à repetição. Entretanto repetição da vivência de dor trouxe um problema de
difícil resolução no Projeto, obrigando Freud a efetuar um “malabarismo” teórico para
explicar como o aparato neuronal dará conta do montante de excitação envolvendo esse
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processo; além disso esta vivência estaria no cerne dos pesadelos que não está bem
diferenciado dos sonhos de angústia na „Interpretação dos Sonhos‟ (Id., 1900/1996).
I.1. O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana.
O „Projeto para uma psicologia científica‟ (Id., 1895[1950]/1996, op. cit.) é uma
tentativa de trazer para o plano científico o que se apresentava na clínica pré-psicanalítica
em seu início vienense, especialmente nos estudos realizados sobre a histeria. Nesta
perturbação psíquica os sintomas se manifestavam, principalmente, sob a forma de ideias
excessivamente intensas “nas quais (...) a característica quantitativa emerge com mais
clareza do que seria normal” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 347).
A época que antecede a escrita do Projeto favoreceu a Alemanha como lugar
propício para pesquisas psicológicas. Neste país, recém unificado em 1870, a ciência
incluía inúmeras áreas de conhecimento desde fonética até arqueologia, entre outras,
permitindo aos pesquisadores alemães aplicar seus estudos utilizando-se dos saberes de
vários campos na pesquisa da vida mental. Segundo Schultz & Schultz (1981) o início do
século XIX foi seguido de uma onda de reformas educacionais nas universidades alemãs.
Surgia um novo tipo de instituição, bastante diferente da clássica universidade européia,
tendo como propósito principal a liberdade acadêmica e a pesquisa. “Os alunos podiam
escolher os cursos e não tinham um currículo rígido como estorvo. Essa liberdade também
se estendia à consideração de novas ciências como a psicologia” (Id., Ibid., p. 60-61).
No centro dessa efervescência cultural encontrava-se Freud, que utilizou conceitos de
várias áreas tais como a medicina, biologia, fisiologia e física para redigir o manuscrito de
1895. Nesse esboço Freud nos apresenta um aparato neuronal fantástico, que ultrapassa a
finalidade de promover uma psicologia como ciência natural propósito que estampa os
primeiros parágrafos do texto.
Tendo em vista essa finalidade a posição adotada por Freud no Projeto é a marca do
Zeitgeist corrente na metade do século XIX, ou seja, um embate “entre as ciências do
espírito ou morais (Geistwissenschaften), que visam compreender, e as ciências naturais
(Naturwissenschaften) que procuram explicar” (GABBI Jr., 2003, p. 19). Freud busca
apresentar empiricamente o funcionamento da mente humana de acordo com uma
descrição baseada, principalmente, na física e fisiologia de sua época. Embora suas
elaborações transcendam o modelo neurológico corrente e nem sempre fique restrito ao
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modelo científico, esse ir além da “psicologia como uma ciência natural” faz com que o
Projeto traga uma importante contribuição metapsicológica e contenha alguns germens de
conceitos que serão retomados e desenvolvidos posteriormente.
Freud foi influenciado por diversos autores, dentre eles cabe citar Gustav Theodor
Fechner, que propunha uma relação quantitativa entre mente e corpo. Esse autor procurou
solucionar a questão do vínculo mente/corpo através da analogia quantitativa entre uma
sensação mental e um estímulo material. Freud também trabalhou no laboratório de
pesquisas neurológicas de Theodor Meynert, seu professor de neuro-anatomia na
Universidade de Viena. A esse propósito Garcia-Roza (1991) indica que Meynert se
encontrava ligado a tradição cientificista e positivista que remonta, através de Fechner, a
Herbart. Este último buscava uma abordagem matemática da psicologia, defendendo a
ideia de uma psicologia baseada na experiência científica de caráter quantitativo. “Esta
última característica será retomada por Fechner e transformada por Freud, na proposta
inicial do Projeto de 1895” (Id., Ibid., p. 74).
Em meados de 1886, Freud viajou à Paris para exercer a função de neuro-patologista
na Salpêtrière sob o comando de Jean-Martin Charcot, um dos mais renomados clínicos
franceses que alcançou sucesso no terreno da psiquiatria na segunda metade do século
XIX. Foi durante esse estágio, impulsionado pelas descobertas de Charcot, que Freud
descobre a histeria. Tal doença impunha aos psiquiatras uma grande dificuldade para
circunscrever suas causas anatomo-patológicas. Por esse motivo Land (1993) considera
que a histeria contrariava um dos principais paradigmas da época: a causalidade. Os
sintomas histéricos contrariavam o método anatomo-clínico, pois não havia relação entre a
entidade nosológica e uma lesão corpórea visível. Assim a histeria foi tachada como uma
simulação, ficando fora do mundo científico e da nosologia psiquiátrica durante boa parte
do século XIX.
Nosso objetivo, com essa exposição é o de ressaltar que Freud cresceu em um
ambiente fisiológico, marcado pelo modelo da causalidade. Esse modelo vigorava no meio
científico desde o século XVIII, se expressando pela ideia de que toda lesão era a garantia
empírica que confirmava a existência de uma entidade nosológica, se havia um sintoma a
causa remetia a algum mau funcionamento de um tecido ou órgão do corpo. Dentro desse
quadro a histeria deixava muito a desejar.
Charcot trouxe a histeria para o interior da nosologia psiquiátrica, mas isso não
significa uma ruptura com a tradição vigente; o que ele fez foi encontrar um ponto de
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fixação exterior (no corpo do histérico), que pudesse assegurar a análise dos sintomas,
garantindo a inauguração “da entidade nosológica histérica (...). Este ponto de fixação
espacial foi encontrado na categoria renovada do psíquico, tomado como uma função do
cérebro” (Id., ibid., p. 15). Com isso Charcot remaneja a localização da área de lesão e
concebe uma nova organização espacial. Assim apoiado na técnica hipnótica, a qual era
eficaz em recriar e suspender os sintomas histéricos, Charcot consegue estabelecer um
acesso ao lugar entendido como psíquico. Notemos que a idéia de lesão é mantida, pois se
tornava claro que era a nível das representações, em um sistema nervoso fisiologicamente
alterado, que se devia procurar o fenômeno; a originalidade de Charcot foi encontrar um
“lugar” para o psíquico alcançado através do método hipnótico mantendo-se, portanto,
dentro do padrão científico corrente.
Conforme relata Gay (1989) foram os avanços realizados nas pesquisas de Charcot
acerca da histeria tanto em homens (o que já era uma grande novidade) como em mulheres
e o resgate da hipnose, frequentemente usada pelos charlatães, transformando-a num
tratamento para as doenças mentais, que a classificaram como uma verdadeira
enfermidade. Tudo isso impressionou o jovem Freud de tal modo que o afastou do
microscópio e da neuropatologia, nas seis semanas em que trabalhou no laboratório
patológico do mestre francês.
Desta maneira podemos compreender melhor a frase que abre o texto do Manuscrito:
“prover uma psicologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os processos
psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais
especificáveis, (...) tornando-os livres de contradição” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.,
p. 347). Essa frase carrega a influência do cientificismo da época e contém uma herança
das vivências na Salpêtrière e das pesquisas como neuropatologista. Neste sentido pesa
sobre o Projeto, tanto a expectativa de Freud em estabelecer um lugar na anatomia cerebral
para o psíquico, como uma ruptura com a ordem causal-anatômica, conseguindo visualizar,
dentro do saber contemporâneo vigente, o psíquico “como uma espécie de materialidade,
que podia possuir a mesma dignidade de avalista da verdade que a dimensão orgânica”
(LAND, 1993, op. cit., p. 17). Desta forma o psíquico seria concebido como uma espécie
de “tecido nervoso”, acessível ao pesquisador através do método hipnótico, técnica da
pressão na testa, interpretação dos sonhos – técnicas que atribuíssem certa positividade ao
seu acesso e pudessem produzir material clínico para conferir legitimidade a esse
empreendimento.
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Foi durante os meses de setembro e meados de outubro de 1895 que o texto do
Projeto ganhou forma, embora grande parte dele tivesse sido redigido durante a viagem de
trem de Berlim à Viena, após Freud visitar seu amigo Wilhelm Fliess. Nesse período
Freud, tomado de uma febril criatividade, coloca no papel sua “Psicologia para
Neurólogos”; a troca de correspondência com Fliess atesta, inicialmente, a euforia de uma
grande descoberta. No entanto, em novembro toda euforia desaparece, dando lugar à
frustração e muitas dúvidas sobre as ideias propostas no texto: “ele se sentia como deve se
sentir um explorador que apostou tudo o que tinha numa promissora trilha que, ao final,
não leva a lugar nenhum” (GAY, 1989, op. cit., p. 87).
Frente a isso o Projeto é relegado ao esquecimento por seu autor e, só veio ao
conhecimento do público em 1950, 55 anos após sua redação. Nesse meio tempo todo
edifício teórico da psicanálise havia sido construído sem levá-lo em conta. O Projeto
permaneceu conhecido apenas por Fliess e muito depois por Marie Bonaparte, ou seja, esse
texto foi excluído do conhecimento até dos discípulos mais chegados de Freud.
O manuscrito tornou-se parte integrante das obras psicológicas de Freud publicadas
graças aos esforços de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e Dinamarca. Na verdade o
manuscrito passou por uma pequena aventura antes de chegar às mãos de sua salvadora.
Toda correspondência trocada entre Freud e Fliess foi vendida pela esposa de Fliess ao
livreiro Reinhold Stahl. Informada que as cartas estavam com o livreiro, Marie Bonaparte
as compra deparando-se com esse texto inédito. Freud ao saber que sua ex-paciente estava
de posse do Projeto tenta reavê-lo de toda forma, mas ele permanece seguro nas mãos da
princesa que havia passado apuros em manter o manuscrito a salvo da Gestapo, a qual já
tinha queimado, em praça pública, os livros de Freud e de muitos outros autores.
O dia 10 de maio de 1933 marcou o auge da perseguição dos nazistas aos
intelectuais, principalmente aos escritores. Pilhas e pilhas de livros arderam nas praças de
várias cidades alemãs. Os nazistas colocavam em ação a chamada “limpeza da literatura”.
Freud, Albert Einstein e Thomas Mann foram alguns dos intelectuais perseguidos que
tiveram seus escritos queimados pelo terceiro reich, por serem considerados ofensivos aos
padrões impostos pelo regime nazista.
De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.), o fato de Freud abandonar o Projeto de
1895 concede a este texto um estatuto peculiar em relação ao restante da obra. Neste
apócrifo existem vários elementos conceituais importantes, que serão retomados, aos
poucos, conforme o avanço da trama conceitual de Freud: ideias como a de “tela protetora
20
(proteção anti-estímulo), ou ainda da noção de ligação (Bindung)” (Id., Ibid., p. 70) e a
questão da vivência de dor, que nos coloca frente a um problema da repetição da dor.
Todos serão retomados após 25 anos, tendo a compulsão à repetição como peça chave que
leva Freud a reorganizar sua teoria e apresentar: o conceito de pulsão de morte. Sem contar
ainda, um breve esboço de sua teoria dos sonhos, uma genealogia do eu, o caso Emma que
exemplifica o „a posteriori‟ e a primeira teoria do trauma, entre outros importantes
conceitos. De forma que nos parece pertinente usar o Projeto como uma fonte de pesquisa
e traçar paralelos com outros textos que nos são caros para tratar da repetição na obra de
Freud.
I.2. O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações
No Projeto de 1895 Freud postula um princípio fundamental e originário de toda
atividade nervosa: o princípio de inércia, segundo o qual a tendência do aparato neuronal é
libertar-se de toda excitação que lhe chega; “Um sistema nervoso primário se vale dessa
quantidade adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares (...) desse modo fica
livre de estímulos. Essa descarga representa a função primária do sistema” (FREUD,
1895[1950]/1996, op. cit., p. 348). A esta função soma-se outra, a função secundária, na
qual o aparato procura conservar as vias de descarga que lhe permitem afastar-se das fontes
de excitação. Haveria então, além da tentativa de livrar-se de toda excitação, uma fuga do
estímulo.
Contudo esta fuga não é efetiva com relação às excitações endógenas das quais o
organismo não pode atuar de forma evasiva como o faz com os estímulos externos. Tais
excitações têm por características serem constantes e imperativas; se confirmando como os
motivos das grandes necessidades: fome, respiração e sexualidade. Estas necessidades são
satisfeitas por meio de uma ação específica e para realizá-la é preciso um refinamento no
processo de descarga.
Nessa perspectiva os estímulos endógenos imporiam ao aparato neuronal a
substituição do princípio de inércia pela tendência a manter a quantidade neuronal
constante, em um nível mínimo necessário para a ação específica ser realizada. A estrutura
do sistema neuronal elaborada por Freud teria como finalidade manter afastada a
quantidade, enquanto sua função principal seria descarregá-la quando o nível constante da
energia do aparato fosse alterado, buscando voltar sempre a um ponto de equilíbrio. Em
21
outros termos é preciso manter a quantidade em um mínimo aceitável e constante, livre de
oscilações, evitando o acúmulo energético e o consequente desprazer.
Cabe ressaltar que no Projeto (Id., Ibid.) Freud utilizou “estimulações endógenas” (p.
348), como termo precursor do conceito de pulsão, para designar uma fonte de estimulação
interna e constante, que impulsiona o aparato a organizar-se de forma a lidar melhor com a
excitação produzida; o que já aponta para um futuro aparato psíquico gerado com a função
de dominar uma força que ameaça invadi-lo. O aparato neuronal do Projeto de 1895 é
pensado como um lugar onde se dará um destino para a energia que lhe chega, seja interna
ou externa. Para isso Freud constrói uma complexa rede neuronal na tentativa de elucidar
como essa energia é trabalhada e escoada para fora do aparato. Nessa empreitada Freud
esbarra em algumas dificuldades, sobretudo a repetição da vivência dolorosa que será
destacada no decorrer do texto.
A seguir Freud (Ibid.) descreve os neurônios como aptos para receber excitações por
meio dos dendritos que são descarregadas através de um cilindro axial. Nestes termos o
neurônio pode estar “catexizado, cheio de determinada Qn (quantidade), ao passo que, em
outras circunstâncias, ele pode estar vazio” (Id., Ibid., p. 350). Esta passagem corrobora a
ideia de que o aparato foi pensado com a finalidade de dominar as excitações, ideia que irá
se manter na obra de Freud, uma vez que o aspecto quantitativo é expressado na concepção
de investimento (catexia) dos neurônios. Estes devem se haver com as quantidades que lhe
chegam, levando sempre em conta a tendência à constância. Não devemos reduzir o
aparato neuronal como um simples condutor de energia: é a capacidade de armazenar essa
energia que o dota da função de memória e o distingue de um funcionamento visando
apenas à descarga. Em outros termos, a capacidade de armazenar informações o torna mais
complexo e, é dessa capacidade que podemos começar a tecer nossa discussão sobre a
repetição.
O próximo passo, então, é distinguir os sistemas de neurônios do Projeto em
permeáveis, chamados de phi (), os quais não retêm qualquer quantidade; e os neurônios
impermeáveis, chamados psi (), que por sua vez retêm e são modificados com a
passagem de certa quantidade. Com isso é destacada uma dimensão automática do
funcionamento do aparato e do próprio humano, uma vez que a consciência não exerce
influência direta sobre os dois sistemas neuronais onde ocorre grande parte dos processos
psíquicos; a consciência será incluída dentro de um terceiro sistema chamado ômega (ω),
conforme veremos adiante.
22
A independência dos outros sistemas em relação à consciência marca a originalidade
do pensamento freudiano, frente à tradição cartesiana onde o eu e a consciência possuem
um lugar central (Pilão, 2009). A grande novidade do aparato neuronal no Projeto de 1895
se refere a processos que fogem ao alcance do eu, “Freud alarga a dimensão psíquica (...)
ao apresentar o funcionamento mental marcado por um desconhecimento daquele de cuja
mente falamos (...) anunciando a radicalidade do que está por vir com o advento (...) do
inconsciente” (Id., Ibid., p. 18).
Apesar das diferenças conceituais, Descartes propôs um interessante modelo de
memória baseado também na fisiologia e, na qual a percepção desempenha uma função
fundamental. Para Descartes, explica Donatelli (2003), os objetos ao excitarem o corpo,
com intensidade variável, deixam vestígios na superfície do cérebro, que são comparados
às dobras feitas quando se amassa um papel; isso significa que são traçadas figuras na
superfície cerebral que condizem aos respectivos objetos.
Há um complexo esquema envolvendo a fisiologia e a física da época, que explica
como essas imagens são conduzidas e reproduzidas dentro do sistema nervoso. Bem como
também presente nesta concepção cartesiana a idéia de vasos comunicantes. Para o que diz
respeito aos nossos propósitos queremos chamar atenção para esse modelo de memória
pensado como vestígios traçados no cérebro (há uma clara referência a uma impressão
quantitativa na formação dos traços) que conservam uma relação com os objetos
percebidos de tal modo que eles podem ser evocados novamente, por meio de uma nova
percepção ou sem a presença dos objetos. Neste ponto Descartes, na carta a Mesland de
1644, vai além e apresenta uma memória intelectual: há vestígios (traços) deixados „no
pensamento‟ que podem ser evocados e modificados independente das coisas materiais:
“as quimeras” (DESCARTES, 1641/1996, p. 280), por exemplo, são ficções criadas pelo
espírito através da imaginação (fantasia). Uma visão bastante diversa da memória material,
que não se reduz a uma abordagem mecanicista, na qual os traços na superfície do cérebro
dependem sempre do fator externo. Essa explanação visa apenas mostrar que Freud pode
ter usado modelos já existentes para desenvolver alguns dos conceitos do Projeto de 1895.
Voltemos ao aparato neuronal. Os neurônios que podem ser ocupados, os psi (),
levam Freud a supor que no ponto de contato entre eles existam resistências, as barreiras de
contato. Essas barreiras são modificadas quando atravessadas por certa quantidade. Tal
hipótese possibilita introduzir a noção de memória no Projeto, posto que para Freud
23
(1895[1950]/1996, op. cit.), era essencial que uma teoria psicológica fornecesse uma
explicação para a memória.
I.3. Repetição e facilitação
As barreiras de contato são descritas no Manuscrito conforme o “grau de facilitação.
Pode-se, então dizer: a memória está representada pelas facilitações existentes entre os
neurônios ” (Id., ibid., p. 352). Notemos que o grau de resistência existente nas barreiras
de contato não são idênticos, pois se fossem não haveria necessidade de caminhos
preferenciais a serem seguidos, conforme a exigência da função secundária e da própria
memória. “Por isso, pode-se dizer de maneira ainda mais correta que a memória está
representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios ” (loc. cit.), ou seja, a
existência da memória se deve à capacidade do neurônio ser modificado pela passagem da
excitação. É pela magnitude da impressão que a memória é, então, constituída, deixando
um traço ou uma marca atrás de si nos neurônios psi ().
Derrida (1995) ressalta que para pensar as barreiras de contato é preciso supor uma
certa violência da quantidade que passa por tais barreiras. O sistema de neurônios psi () –
devido a sua principal característica: a impermeabilidade – oporia resistência à passagem
da excitação. Mas devido à magnitude da corrente excitativa, sendo mais forte que a
oposição oferecida pelas barreiras de contato, a excitação forçaria passagem e deixaria
impressões nestas barreiras “oferecendo uma possibilidade de se representar à memória”
(Id., Ibid., p. 185). Assim Freud, ao dispor o aparato neuronal estratificado, composto por
diferentes sistemas de neurônios (permeáveis e impermeáveis), abre caminho para explicar
o funcionamento da memória.
A memória é definida como a capacidade de um neurônio psi (), ou um conjunto
de neurônios, ser permanentemente modificado pela passagem da quantidade. É pela força,
ou melhor, pela violência dessa quantidade, que se constituirá uma memória. Esta
configuração denota a presença de certo excesso para efetuar os traços que formarão a
memória. Nesta perspectiva a construção enquanto traços ou marcas se diferenciarão de
acordo com a magnitude da impressão envolvida em cada caso.
A memória neuronal tem como finalidade dispor e indicar caminhos facilitados nos
quais a quantidade pode escoar de uma forma rápida pela malha neuronal, uma vez que
24
toda quantidade que ultrapasse o limite da constância é sentida como desprazer. O fato de
poder escolher caminhos mais eficientes para chegar à descarga se deve às informações
guardadas nos neurônios psi (), garantindo assim a realização da ação especifica, pelo
cumprimento da exigência da função primária e secundária do aparato neuronal. Levando
em conta esses aspectos observamos que alguns caminhos serão escolhidos em detrimento
de outros, o que faz pensar que a repetição tem um lugar fundamental para a manutenção
do equilíbrio de forças dentro do aparato neuronal. Justamente porque os caminhos mais
facilitados na trama neuronal ao serem repetidos criam um sistema de diferenças buscando,
assim, cumprir a exigência principal imposta ao organismo como um todo: ficar livre das
quantidades. A repetição de caminhos facilitados determina, portanto, que a condução da
quantidade nos neurônios psi () é seletiva.
Além disso, Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) chama atenção para a atração que os
neurônios facilitados exercem entre si, caracterizada por uma lei atuante entre esses
neurônios chamada de „associação por simultaneidade‟. Segundo essa lei a quantidade
passaria mais facilmente de neurônio investido para outro também investido, do que para
um neurônio que não sofresse qualquer investimento. Essa norma determina a escolha de
caminhos no sistema de neurônios psi () e confirma a hipótese de que a repetição tem um
papel fundamental para garantir a manutenção do montante quantitativo em níveis
constantes.
As barreiras de contanto se caracterizam pela capacidade de reter, podendo receber
mais informações advindas das impressões calcadas sobre sua superfície. Como reter
informações sem perder o frescor? Se o acúmulo de impressões fosse consciente logo
ficaria saturado e não poderia receber novas excitações, o que levou Freud a pensar que
memória e consciência são incompatíveis. Certamente esta não é uma questão simples de
ser respondida: No artigo: Uma nota sobre „Bloco Mágico‟ (1925[1924]/1996) Freud
propõe considerar que a consciência desaparece quando o investimento é retirado dela e os
traços duráveis se inscrevem no inconsciente.
Contudo se no lugar de escrever normalmente, no celulóide transparente da
superfície do bloco mágico, o estilete é apoiado com demasiada força ocorre ou união
prolongada entre as duas camadas, folha de celulóide transparente e o papel encerado fino1,
1
Cabe lembrar que a disposição das camadas descritas no artigo Sobre o Bloco Mágico (1925[1924]/1996) é
a seguinte: Primeiro há uma folha transparente onde é feita a escrita com o estilete; segundo um papel
encerado e por último a prancha de resina.
25
ou uma ruptura em ambos. Como consequência deste excesso de força aplicado sob o
bloco, ele não funciona como deveria. A camada celulóide atua como um escudo protetor
para o papel encerado; nessa metáfora podemos observar que se o escudo é rompido há um
prejuízo nas camadas subsequentes, ou seja, sem filtragem da quantidade a função de
escrita, do traço, é perdida, dando lugar a impressões mais fortes: as marcas.
Cabe fazer uma distinção entre estas duas figuras: traço e marca. Para isso nos
servimos das indicações referidas por Knobloch (1998). Distinguir esses dois conceitos,
segundo a autora, é fazer referência à memória, pois as representações que serão
“constitutivas do inconsciente não são senão traços mnemônicos investidos e protegidos
pelo recalcamento” (p. 85), justamente porque os traços estariam sujeitos a um “rearranjo”,
usando o termo de Freud da Carta 52 (1896/1996), na medida em que novas circunstâncias
fossem agregadas à memória. Com isso fica destacada a importante tese de Freud de que a
memória se desdobra em vários tempos, ou seja, ela pode sofrer retranscrições ou
rearranjos dos traços que a compõem.
Com relação a diferença entre traço e marca deve-se considerar que para se
transformar em um traço ou uma marca é necessário antes de tudo que uma impressão
tenha força suficiente para causar alguma sensação no psiquismo; a impressão é “anterior à
inscrição e posterior à sensação” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 53). O traço é impressão que
será presentificada pela lembrança, ou seja, implica uma inscrição na cadeia de
representantes, sendo capaz de associar-se a outros traços. Quanto à marca, trata-se de um
tipo de impressão que não participa da cadeia de representação, não podendo ser evocada
como uma lembrança, “mas como fator energético. Não se trata, portanto, de
representação, mas de expressão de pura intensidade” (KNOBLOCH, 1998, op. cit., p. 89),
que será apresentada, e não representada, no aparato sob a forma de uma repetição
desprazerosa a qual o eu não consegue fazer frente por ultrapassar a sua capacidade de
contenção. Esta tese encontrará eco nas elaborações teóricas da virada de 1920 no artigo
Além do princípio de prazer, mais especificamente com relação à compulsão à repetição
das neuroses traumáticas.
A Carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) amplia a noção de memória presente no
Projeto de 1895 inserindo um complexo sistema de retranscrições. Neste novo esquema a
memória está sujeita a reordenamentos segundo novas articulações: os acontecimentos
psíquicos ficam gravados na memória através dos traços mnêmicos, podendo ser reativados
por efeito de um novo investimento. “O traço começa a tornar-se escritura” (p. 192) nos
26
avisa Derrida (1995, op. cit.) sobre a nova concepção da memória da Carta 52 (FREUD,
1896/1996 op. cit.). Estas considerações demonstram uma metamorfose que avança sobre
as formulações realizadas no Projeto de 1895 e estão a meio caminho do capítulo 7 da
Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996), onde é operada a “passagem do modelo
isomórfico para um modelo abstrato de aparelho psíquico” (GARCIA-ROZA, 1998, op.
cit., p. 203), capítulo no qual a metamorfose será completada.
Na carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) Freud nos apresenta a noção de inscrição
e, um novo e mais refinado esquema gráfico: os neurônios onde se originam as percepções
(Wahrnehmungen), a consciência se liga a estes neurônios, mas não retém nenhum traço
mnêmico
do
que
aconteceu.
Ao
passo
que
nos
signos
de
percepção
(Wahrnehmungszeichen) do sistema psi () acontecem as primeiras inscrições destas
percepções, inacessíveis à consciência e orientadas pelas associações por simultaneidade,
onde ocorre o primeiro registro mnêmico. No próximo registro, o inconsciente ou
inconsciência (Unbewusstsein), ocorre a segunda transcrição ordenada não mais pelas
associações por simultaneidade, mas provavelmente por associações de causalidade;
também inacessíveis à consciência. O registro seguinte chama-se pré-consciência
(Vorbewusstsein), no final ocorre a terceira retranscrição ligada a imagens verbais
(representação-palavra) e correspondendo ao nosso eu, o que torna o acesso ao consciente
possível de acordo com certas regras.
Notemos que há uma sucessão de transcrições realizadas em diferentes registros;
cada transcrição ordena o material psíquico de acordo com uma nova lógica, de forma que
a cada nova transcrição a anterior é inibida e apartada da quantidade vigente. Caso ocorra
uma falha na tradução isso significa que algo precisou ser recalcado; ou seja, o recalque
caracteriza-se por uma recusa em efetuar a tradução, pois se fosse completada geraria
desprazer. Nestes casos o processo de tradução teria início, mas seria interrompido devido
à emissão de desprazer. Concepção que nos indica uma forma de defesa do aparato
psíquico contra o desprazer.
A partir do material apresentado na Carta 52 (Id., 1896/1996 op. cit.) o aparato
psíquico passa a ser concebido em diferentes camadas pelas quais o material mnêmico o
atravessa. Esta disposição denota o contraste entre os signos de percepção, por um lado e,
os registros da inconsciência e da pré-consciência, por outro. Tal diferença implicará que
teremos: (1) as marcas não ligadas às representações, ou seja, elas não sofreram processos
de reordenamento, mantendo-se praticamente da mesma forma de quando foram
27
constituídas e, (2) traços que sofreram retranscrições podem advir à consciência, desde que
não despertem desprazer, já que fazem parte da cadeia de representações-palavras
(Saltztrager, 2006). Freud concentra esse novo esquema em torno de noções como signo,
inscrição e transcrição, que “estão muito mais próximas da linguagem e da escrita do que
dos neurônios da formulação anterior” (GARCIA-ROZA, 1998, op. cit., p. 200).
Neste contexto Derrida (1995 op. cit.) pontua que o “conteúdo do aparelho psíquico
será representado por uma máquina de escrita” (p. 183). A partir da carta 52 (FREUD,
1896/1996 op. cit.), o que irá se apresentar como conteúdo do aparelho psíquico são os
signos, que serão inscritos e retranscritos, o que indica os diferentes períodos da vida nos
quais o material é acessado, sendo que cada novo acesso implica uma nova transcrição. Por
intermédio destas observações destacamos no aparato psíquico a presença de um sistema
de repetições ordenado pela diferença. O recordado, então, não coincide com o
acontecimento em si, mas é um produto de várias retranscrições.
A Carta 52 (Id., ibid.) traz, ainda, uma importante questão sobre a repetição ao tratar
das marcas psíquicas. As marcas caracterizam-se por não sofrer nenhuma tradução.
Diferente do recalcamento que é uma „falha na tradução‟ as marcas são „falhas (falta) de
tradução‟, persistindo inalteradas no aparato psíquico; nestes casos a excitação é manejada
segundo as “leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa
época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os
„fueros‟, estamos em presença de sobrevivências” (Id., Ibid., p. 283).
Os „fueros‟ constituem um termo tomado de empréstimo de uma antiga lei espanhola
aplicada em províncias conquistadas ou vilarejos que não possuíam senhorios; tal lei
buscava regular a vida local, mantendo os costumes e tradições destes sítios e,
estabelecendo um conjunto de normas jurídicas, para garantir privilégios perpétuos à coroa
sobre esta região (BARRERO GARCÍA, 1985). De acordo com Salztrager (2006, op. cit.)
os „fueros‟ são impressões psíquicas desregradas que não estão articuladas em uma trama
de facilitações e, portanto, não sofrem todo procedimento descrito na Carta 52 (FREUD,
1896/1996, op. cit.), subsistindo como marcas psíquicas. Tal como os “fueros” da lei
espanhola, recolhiam os costumes da cada localidade onde eram aplicados e mantinham-se,
„strictu sensu’, fora da política feudal vigente, as marcas mantêm-se fora dos sistemas de
representações e das regras aplicadas à estas, subsistindo no aparato psíquico segundo
outra determinação. Daí, a impossibilidade de mudanças de cenários ou personagens em
seus conteúdos, característica dos sonhos das neuroses traumáticas. “A ausência de
28
ligações diretas com a representação-palavra do registro da pré-consciência também
explicaria o fato de elas consistirem em algo que não pode ser expresso pela fala”
(SALZTRAGER, 2006, op. cit., p. 93), o que nos remete a pensar que os “fueros”
funcionam de acordo com o mecanismo de compulsão à repetição.
Voltemos à atenção para a primeira definição da memória, do Projeto de 1895, que
destaca as repetições de vias através das quais são eleitos os caminhos preferenciais,
visando o melhor escoamento da excitação. Sabemos que a facilitação depende da
magnitude da quantidade que passa pelo neurônio e do número de vezes que esse processo
acontece. Essas trilhas preferenciais são vias de descarga que interrompem a circulação da
excitação no interior do aparato neuronal e, por isso, são repetidas quando há aumento de
excitação. Segundo Santos (2006) essas repetições irão criar um sistema de diferenças,
fundamental para orientar as vias facilitadoras do escoamento da quantidade que chega ao
aparato: essa é a função da memória - repetir.
De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.) as facilitações formam caminhos
privilegiados entrecruzando-se em uma complexa rede, de tal forma que a repetição exata
do mesmo caminho seja difícil de acontecer: a memória não é, pois, “a reprodução
mecânica e idêntica de um traço concebido como algo imutável, mas uma memória
constituída pela diferença de caminhos eles mesmos móveis” (Id., Ibid., p. 100). Assim
podemos afirmar que o traço como memória neuronal não poderia ser acessado de uma
maneira „pura‟, o traço não é entendido na concepção do Projeto de 1895 como algo
sempre idêntico, mas como diferença; neste contexto podemos entender o sentido da
afirmação de Freud de que a memória é representada pelas diferenças nas facilitações dos
neurônios psi ().
Por estas razões, Derrida (1995, op. cit.) pontua que a memória tal como descrita no
Projeto de 1895 é marcada pela diferença, e na configuração apresentada por Freud neste
texto a repetição já existe como possibilidade originária, uma vez que os caminhos mais
facilitados são repetidos para o escoamento da energia. A resistência oferecida pelos
neurônios psi () contra as quantidades só é possível se as barreiras de contato aguentarem
as invasões ou “se repetir originariamente” (Id., Ibid., p. 187). Isso porque não há outro
meio de conter a efração do para-excitação a não ser repetindo a vivência dolorosa, até que
o aparato neuronal ganhe domínio sobre a energia indomada; para isso se faz necessário
diluí-la em parcelas que serão escoadas através da trama neuronal, a cada repetição uma
nova parcela da quantidade é dominada. A vida já está ameaçada pela irrupção das
29
quantidades desde a sua concepção; frente a isso é preciso criar uma rede de facilitações
para garantir a sobrevivência, ou seja, saber como escoar a quantidade de forma eficiente.
Contudo criar facilitações implica necessariamente a dor: “não há facilitação sem um
começo de dor” (loc. cit.), o que nos conduz a questão da relação entre dor e repetição.
O aparato neuronal pressionado pelas urgências da vida é obrigado a arranjar meios
de manter reservas de quantidade com a finalidade de realizar a descarga via ação
específica, eis aí a mola pulsional “verdadeiro motor do progresso” (FREUD, 1915/2006,
p. 147) do sistema nervoso; para tanto precisou complexificar-se em uma trama ou rede
neuronal e evoluir suas células matrizes, os neurônios, de permeáveis para impermeáveis.
Desse modo o aparato neuronal foi constituindo-se de forma a evitar grandes acúmulos
energéticos. Para tal intento conta com as barreiras de contato e os caminhos facilitados,
mas no final das contas o aparato, mesmo em sua complexidade, serve à função primária.
Garcia-Roza (1998, op. cit.) explica que a memória e a repetição, não são secundárias em
relação à descarga que é a função primordial tanto do aparato neuronal, como de todo o
organismo, “ou, dito de outra maneira, não há primeiro a descarga (que seria “natural”) e
depois a repetição, entendida esta última como uma espécie de memória natural” (Id., Ibid.,
p. 206). A memória é constituída pela diferença, contida na possibilidade dos vários
trilhamentos existentes entre os neurônios psi (), nisto implica que repetição e diferença
já existem como possibilidade desde o começo.
Derrida (1995 op. cit.) vê nessa construção do aparato nervoso a condição para
afirmar que a vida, afinal, é a morte e, a “repetição e o para além do princípio de prazer são
originários e congenitais àquilo mesmo que transgridem” (Id., Ibid., p. 188), a saber: que as
facilitações, assim como todo aparato, servem a função primária. Tal fato “impede-nos já
de ficar surpreendidos com o Além do princípio de prazer” (loc. cit.). As barreiras de
contato não são acrescentadas à vida para mantê-las, pois no fundo visam seguir a inércia,
as exigências da vida fazem o aparato tomar um caminho mais amplo, mas que no fim se
dirige ao propósito de toda vida: a morte, como será abordado no “Além do princípio de
prazer” (FREUD, 1920, op. cit.).
Freud pensou o aparelho neuronal de maneira que as grandes quantidades externas
estivessem afastadas de phi () e, mais ainda, de psi (), devido ao escudo protetor dos
órgãos dos sentidos que filtram a quantidade provinda do exterior, e pela conexão indireta
de psi () com o mundo externo. Contudo há um fenômeno que corresponde à falha destes
30
dispositivos de proteção, uma vez que tais dispositivos têm um limite de eficiência: trata-se
da dor.
I.4. O problema da repetição da dor
A dor consiste em grandes quantidades de excitação veiculada pelos neurônios phi
() fazendo irrupção – sem a mediação do escudo protetor – nos neurônios psi () que a
recebe como se fosse atingido por uma grande descarga elétrica, tal a magnitude de sua
força. Esta energia invasora desestabiliza a organização do aparato, deixando facilitações
permanentes atrás de si em psi (). “A dor aciona tanto o sistema phi () como o psi (),
não há nenhum obstáculo à sua condução, e ela é o mais imperativo de todos os processos.
Os neurônios psi () parecem, pois, permeáveis a ela” (Id., 1895[1950]/1996, op. cit.,
p.359).
Na primeira parte do Projeto de 1895 o capítulo 6 é dedicado a questão da dor e o
capítulo 12, à vivência de dor; entre esses dois capítulos Freud introduz o sistema neuronal
responsável pela percepção-consciência: sistema ômega (ω). Tal sistema tem como função
fornecer signos de qualidade à psi (); além da qualidade, exibe algo muito diferente: as
sensações de prazer e desprazer. O desprazer é identificado por um aumento da quantidade
de excitação em psi (), já o prazer é identificado com a descarga da excitação. No caso da
dor produz-se, em primeiro lugar, um aumento considerável da excitação em psi (),
sentido como desprazer; em segundo, uma inclinação para a descarga e, em terceiro, uma
facilitação entre os caminhos de eliminação e a representação do objeto hostil que
provocou a dor.
A partir destes investimentos energéticos Freud procura, utilizando-se dos exemplos
ocorridos na vivência de dor e de satisfação, não medir a quantidade, mas exemplificar e
entender como ocorre a descarga da excitação, e os efeitos que a passagem da quantidade
provoca no aparato (HERZOG, 2001). A respeito disso Freud no Rascunho E (Junho de
1894/1996) afirma que a angústia surge por transformação da tensão sexual acumulada;
esse acúmulo se deve ao fato da descarga não ter sido realizada, e o represamento deste
excesso tem como consequência a neurose de angústia; nesse sentido Freud considerou
fundamental entender como o aparato neuronal é capaz de transmitir e transformar a
31
energia que circula pelos neurônios, ou seja, compreender economicamente as forças que
atuam no aparato nervoso.
Neste ponto são introduzidas duas idéias que visam responder aos modos de
condução da energia no aparato e que serão retomadas na virada de 1920: o processo
primário e secundário. O processo primário é regido pelo princípio de inércia e diz respeito
à forma de condução da energia que tende a descarga pela via mais facilitada sem sofrer
inibição ou processamento; já no processo secundário há um retardamento da energia, ela
sofre uma mediação por parte do eu para que o aparelho não invista, automaticamente, de
forma muito intensa na representação-lembrança do objeto hostil, no caso da vivência de
dor; e de desejo, no caso da vivência de satisfação.
De acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006, op. cit.) notamos que
seguir o caminho mais facilitado é um fator mecânico dos processos nervosos, pois as
facilitações são pontos de menor resistência à condução da energia, conforme a exigência
da função primária. Desse modo a energia do processo primário, que tem a característica
de livre mobilidade, poderia conduzir à reativação de representações que mesmo em sua
origem, produziram desprazer, o que ocorreria, sobretudo nos processos derivados da
vivência de dor. Para evitá-la é necessária a ligação, a partir do eu, dessa quantidade que
irrompe em estado livre. Configura-se, aí, a função do eu: mediar a energia livre que
irrompe no aparato neuronal, em outras palavras: evitar que certos caminhos sejam
tomados.
Para que isso ocorra é necessária a realização de um trabalho sobre as excitações, ou
seja, é preciso uma dominação prévia destas energias, esse domínio permite que elas sejam
inscritas como representações. Caso esse domínio não ocorra, as excitações persistem
como “fueros” ou marcas, que remetem para algo que escapa ao domínio do eu, logo, estão
fora do campo das representações, e não podem ser atualizadas pela lembrança. Isso
significa que há experiências não-inscritas, mas impressas, que ultrapassam a capacidade
do aparato de dominá-las, permanecendo como pura intensidade e aparecendo sob uma
repetição compulsiva do evento doloroso.
Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) afirma: “se a imagem recordativa do objeto hostil
for de alguma forma ocupada de novo, por exemplo por uma nova percepção” (p. 372),
surge um estado que não é dor (dor sempre pressupõe a irrupção de uma quantidade
proveniente do exterior), mas guarda semelhança com ela: o desprazer; e, junto a isso, uma
defesa contra essa sensação. De acordo com Aubert (1996) dor não é desprazer, mesmo
32
partilhando com o afeto sua característica quantitativa. A repetição da experiência que
envolveu a dor representa ao nível das lembranças um desprazer emanando internamente,
resultante da ação dos neurônios secretores que após receber uma excitação “engendram no
interior do corpo alguma coisa que age como um estímulo sobre as vias endógenas de
condução resultando em psi ()” (Id., Ibid., p. 101)2. A dor passa a ser vista como o
protótipo do afeto: uma descarga interna secretória que aumentando o nível em psi ()
conduzem a uma determinada ação para a descarga.
“Portanto, resta apenas supor que, por meio da ocupação de recordações, seja
liberado desprazer desde o interior do corpo” (FREUD, 1895[1950/1996, op. cit., p. 372).
Como não há uma excitação externa que pudesse explicar o aumento do nível energético
em psi () Freud aposta em uma solução química: os neurônios secretores. Tais neurônios,
uma vez estimulados, provocariam a liberação de quantidade, endógena, portanto,
aumentando o nível de psi (). Os neurônios secretores são ativados pelo reinvestimento
da imagem do objeto hostil devido à facilitação criada na vivência de dor. Dessa forma o
desprazer tem origem dupla na vivência de dor: externa, causada pelo objeto hostil, e
interna, provocada pelos neurônios secretores. A associação entre os neurônios secretores e
a recordação do objeto hostil consiste no caminho de eliminação da vivência de dor, de
modo que o desprazer é liberado no afeto.
Nesse sentido Pontalis (2005) afirma que Freud em 1895, opõe vivência da dor e
vivência de satisfação. Assim, o par de opostos criados não é, “como seria de se esperar
prazer-desprazer [Lust – Unlust], mas de um lado prazer-desprazer (...), e, por outro dor”
(Id., Ibid., p.267). Esse autor, com relação a estas configurações, percebe um dualismo
antagônico, entre essas duas vivências, tão fundamental quanto os futuros dualismos
pulsionais que marcarão a obra de Freud. Essa visão é baseada no fato de que as vivências
de prazer e dor são vivências corporais, que se inscrevem no corpo do indivíduo,
provocando prazer, no caso da vivência de satisfação, e dor, na vivência de dor. A dor se
caracteriza essencialmente por um fenômeno de ruptura das barreiras de contato, seguido
por uma descarga no interior do corpo: “A dor é violação; ela supõe a existência de limites:
limites do corpo, limites do eu; ela produz uma descarga interna, que poderíamos chamar
de efeito de implosão” (Id., Ibid., p. 268).
2
Tradução nossa.
33
A dor tal como apresentada no Projeto de 1895 é diferente, portanto, do desprazer.
Dor é ruptura das barreiras de contato; trata-se, então, de dor física visto a ocorrência de
ruptura em tecidos nervosos, uma violação caracterizada pelo rompimento das resistências
erigidas nos neurônios psi (). Se esse montante chegou a psi () é porque foi forte o
bastante para romper o escudo que protegia o aparato contra a invasão de grandes
quantidades. Assim a dor coloca o exterior em contato direto com o interior, ocorre uma
transparência no lugar onde deveria haver uma resistência: isso caracteriza o trauma. A dor
produz essa qualidade especial, o afeto, cujo protótipo são os estados de angústia: esse
estado inclui o desprazer e a tendência à descarga que correspondeu à vivência de dor. O
afeto provoca no aparelho neuronal uma resposta automática: a defesa primária, que será
repetida toda vez que surgir desprazer motivado pela reativação da experiência de dor, ou
seja, as facilitações que conduzem ao desprazer deixam de ser percorridas. Para isso surge
o eu: uma rede de neurônios bem facilitados entre si e constantemente investidos, que
regula a passagem da quantidade no aparato.
O eu de 1895 é uma organização neuronal, que interfere na passagem da quantidade
ocorrida de determinada forma, ou seja, acompanhada de dor ou satisfação. As primeiras
ligações são denominadas sínteses passivas, elas colocam um limite ao livre escoamento da
energia; em um segundo momento transforma-se em síntese ativas que atingirão excitações
que já foram acompanhadas de “prazer ou dor e que se tornam elementos de uma repetição.
O eu é o responsável pela repetição de experiências anteriores (experiências de satisfação)
ou pela inibição da descarga” (GARCIA-ROZA, 1991, op. cit., p. 151); o eu também
procura livrar-se dos investimentos pelo método da satisfação e, para tanto, conta com o
auxílio dos neurônios ômega (ω): esses neurônios fornecem a indicação de realidade, ou
não, do objeto. Esta indicação se constitui como um fator determinante para os
investimentos mediados pelo eu.
A diferenciação entre a percepção e a lembrança, indicadas pelos neurônios ômega
(ω), permitirá um critério para o eu inibir, ou não, determinados investimentos. A
“aquisição biológica” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 425) ensinará, então, a não
iniciar a descarga antes da chegada da indicação da realidade e tendo essa finalidade em
vista, não levar o investimento das lembranças além de certa quantidade, evitando, assim a
alucinação, e o consequente desprazer.
A quantidade retida no eu pode ser empregada em investimentos laterais, com a
finalidade de modificar o curso dos processos associativos e impedir aqueles que resultam
34
em desprazer. O investimento lateral é uma inibição do livre escoamento da energia,
alterando seu curso por meio de uma rede de neurônios bem facilitados e visando a
descarga de uma maneira eficiente para o organismo.
Através dos investimentos laterais o eu consegue inibir a alucinação, a descarga
motora e a ocupação da representação hostil, evitando o aumento da excitação. “Tudo que
chamo de aquisição biológica do sistema nervoso é, na minha opinião, representado por
uma ameaça de desprazer dessa espécie cujo efeito consiste no fato de não serem
investidos os neurônios que levam a liberação de desprazer” (Id., Ibid., p. 426). Isto
constitui a defesa primária, ou seja, os caminhos que conduzem ao desprazer devem ser
evitados.
Devido a dificuldade em explicar como a defesa primária pode ser representada
mecanicamente, Freud lança mão do mecanismo da atenção, que irá regular os
deslocamentos dos investimentos realizados pelo eu. Há, portanto, uma segunda regra
biológica, a da atenção: essa regra enuncia que o eu tem uma tendência a ocupar redes
neuronais onde ocorrem os processos originados na recepção de estímulos externos, ou
seja, as percepções. O eu “quase sempre tem investimentos intencionais ou de desejo, cuja
presença durante a investigação influencia a passagem da associação, produzindo um falso
conhecimento das percepções” (Id., Ibid., p.429).
De acordo com Freud, mesmo depois de percepções desprazerosas tornarem-se
imagens mnêmicas, é constatado que suas repetições continuam a despertar afeto, “até que,
com o correr do tempo, percam essa capacidade” (Id., Ibid., p. 436). O domínio pelo eu dos
processos primários resultantes de uma vivência de dor é muito mais difícil de ser
alcançado, ao que parece isso se deve ao fato das facilitações estabelecidas durante a
vivência de dor ocorrerem em função da magnitude das quantidades. Só com repetidas
tentativas seria possível subjugá-los, enquanto isso tais lembranças permanecem - seguindo
a expressão usada por Freud - “indomadas”:
Quando uma passagem de pensamento esbarra nesse tipo de imagem mnemônica indomada, geram-se
indicações de qualidade correspondente – muitas vezes de caráter sensorial – como uma sensação de
desprazer e uma tendência a descarga cuja combinação caracteriza determinado afeto, interrompendose assim a passagem do pensamento (loc. cit.).
Nessa passagem Freud observa que o pensamento pode conduzir ao desprazer se
esbarrar com uma recordação “indomada”, ou seja, recordações que não foram submetidas
ao processo secundário, não sofreram uma regulação realizada pelo eu. Essas lembranças
indomadas mantêm sua capacidade energética sendo capazes de despertar afetos e
35
desprazer. Para que essas recordações possam ser dominadas o eu precisa ligá-las e, para
isso, é preciso um repetido investimento até que a facilitação para o desprazer seja
contrabalançada. Inicialmente o eu não tem força suficiente para impedir sua repetição, ou
seja, o eu não pode de uma única vez limitar o livre escoamento das excitações. A
condição para efetuar uma ligação é o estabelecimento de novas facilitações com um
sistema já investido formando assim um todo: ligar, em outras palavras, significa a
inclusão de novos neurônios no eu.
É evidente que algo acontece no curso das repetições desprazerosas que aos poucos
provoca a inibição de tais lembranças. Tal domínio do eu é mais demorado nos casos de
lembranças capazes de gerar afetos, pois traços de experiência de dor foram investidos com
quantidade proveniente de phi () excessivamente intensa, sendo propícia para a liberação
de desprazer. Contudo isso ocorre gradualmente: justamente devido às grandes quantidades
presentes na vivência de dor. Tais representações deverão receber do eu uma ligação
especialmente considerável e repetida para poder evitar essa facilitação para o desprazer.
De acordo com o que foi considerado:
Encontra-se admitido, portanto, no Projeto, a hipótese de que há processos primários no aparelho que
fazem retornar representações que, mesmo em sua origem, foram desprazerosas. Dito de outro modo,
há nesse texto, claramente formulado, a idéia de um processo repetitivo que continua ocorrendo
enquanto as representações ainda não foram ligadas (CAROPRESO & SIMANKE, 2006, op. cit.,
p.213).
Portanto, a repetição, no caso da vivência de dor, ocorre porque a capacidade de
ligação, realizada pelo eu, foi insuficiente para enfrentar o montante da excitação
proveniente do exterior. Entendemos que a capacidade de ligação do eu é proporcional à
quantidade de energia quiescente no sistema psi (); caso essa capacidade seja
ultrapassada o aparato é levado a dar uma resposta automática e defensiva frente ao
excesso que o invade: a repetição.
I.5. O tempo da repetição
A vivência da dor ainda levanta outra questão relevante para o tema da repetição: a
temporalidade. O afeto proveniente da reativação da lembrança do objeto hostil conduz a
uma experiência de desprazer, diferente, portanto da experiência de dor original.
Pesquisando sobre a histeria Freud constata que essa experiência é constituída em dois
momentos ou tempos diferentes. Esses dois tempos “se sobrepõem na produção do trauma
36
não sendo percebidos como distintos. O sintoma realiza essa condensação temporal de algo
que se repetiu” (SANTOS, 2002, op. cit., p. 31).
Na segunda parte do Projeto de 1895 ao tratar do “Próton Pseudos” na histeria Freud
descreve um caso clínico, intitulado caso Emma, que se desenrola em duas cenas: A cena I,
caracterizada como o segundo tempo e desencadeador do trauma, na qual Emma
encontrava-se com 12 anos e, ao entrar desacompanhada em uma loja repara que dois
vendedores estavam rindo, frente a essa situação Emma foge tomada por um crescente
desprazer. No primeiro tempo designado por Freud como cena II, Emma, com oito anos de
idade, encontra-se sozinha em uma loja de doces, então o confeiteiro toca seus órgãos
genitais por cima de seu vestido e sorri.
A cena I provoca uma fobia que a impede de entrar sozinha em lojas, tendo sido
relatada na análise como o evento responsável pelo sintoma. Durante o tratamento analítico
a cena II, mais antiga que a cena I, vai ser trazida à luz: o riso dos vendedores da cena I
evocou o riso do confeiteiro da cena II, bem como o fato de também na cena I Emma se
encontrar sozinha tal como na cena II. Com essa lembrança veio outra, a do abuso que
agora, na puberdade, ganhava significado sexual, se transformando em afeto de angústia,
devido ao temor de que os vendedores pudessem repetir o abuso. As duas vivências foram
condensadas em uma só.
Notamos aqui uma espécie de ação retardada, Freud acreditava que o ataque em si
não havia despertado nenhum afeto, contudo a cena havia sido inscrita como uma
representação-lembrança, que incluía o registro do abuso marcado por uma irritação
genital. Quando Emma, quatro anos depois, entra em uma loja, as circunstâncias
relativamente parecidas ligaram-se associativamente às representações-lembranças da
primeira cena (do abuso), acionando agora a liberação afetiva devido à sua maturidade
sexual.
Essa vinheta clínica serve perfeitamente para Freud explicar o a posteriori e a teoria
da sedução, chave para entender a histeria neste período pré-psicanalítico, ou seja, a
experiência sexual pode ocorrer num período pré-sexual, e neste tempo não pode ser
compreendida. O a posteiori constitui a mola explicativa para a primeira teoria do trauma,
fornecendo o motivo das forças recalcadoras serem tão poderosas em um tempo tão
afastado da primeira cena. A lembrança da cena do abuso só é transformada em traumática
a posteriori. Dessa forma temos um ponto importante a respeito da natureza do trauma na
37
teoria freudiana, neste período: todo sintoma, qualquer que seja ele, provém de uma
experiência sexual factual.
A emblemática frase do artigo Comunicação Preliminar (FREUD & BREUER,
1893/1996) já afirmava que: “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”
(p.43). Desdobrando a frase podemos extrair algumas considerações importantes sobre esse
tema. Nesse período Freud estava às voltas com a teoria da sedução, com a qual procurava
solucionar o mistério dos sintomas apresentados na histeria. Tal teoria baseava-se na
concepção de que o indivíduo sofria uma irritação real nos órgãos genitais durante a
infância, o abuso ficava gravado na memória como um corpo estranho ao sujeito, e não
como um evento traumático devido à imaturidade sexual da criança. Cabe lembrar que
nesta época Freud ainda não dispunha do conceito de sexualidade infantil, logo o desejo
sexual era restrito ao adulto.
Somente após o advento da puberdade tais lembranças adquirem um valor de trauma,
ou seja, não são as próprias experiências que agem traumaticamente, mas sua
reminiscência. Reviver como recordações, após a maturidade sexual, o abuso
experienciado passivamente conferia o valor de trauma à histeria. As lembranças vividas
como experiência na infância ganham outra significação: pela retranscrição na memória,
elas adquirem um valor traumático. Barrois (1998) acentua que o ponto comum das teorias
histero-traumáticas e da sedução reside inicialmente na passividade da vítima, ou seja,
temos aí uma força externa caracterizada pelo abuso de um adulto desejante e perverso que
é despejada sobre uma criança frágil, não desejante e, sexualmente imatura.
Com essas observações podemos referenciar um modelo de temporalidade que toca a
questão da repetição. Knobloch (1998, op. cit) chama atenção para uma temporalidade que
não a do acontecimento, pois é preciso o ganho de sentido sexual através da puberdade, ou
seja, é no a posteriori que o efeito traumático irá ser produzido e não na experiência
original, vivida na infância. Assim uma cena do passado é compreendida no presente,
constituindo-se assim, uma confusão temporal, é como se este passado não pudesse passar.
O abuso, a cena que dará origem ao trauma, é um corpo estranho, sem significação
traumática constituindo-se como um “tempo aberto”, usando a expressão de Barrois (1998,
op. cit.), sendo suscetível de oferecer um ponto de chamada ao trauma na idade adulta. Em
outras palavras, ele permanece apto a eclodir diante de uma circunstância que toque a rede
de associações da qual faz parte, desde que se tenha atingido a puberdade. Desta forma o
“tempo aberto” encaixa-se no tempo histórico e, ao mesmo tempo, rompe o curso deste,
38
inserindo-se em uma confusão temporal marcada pela presentificação do passado e pela
repetição.
O valor patogênico reside na lembrança do abuso sexual e não na experiência; o
trauma é póstumo e, isso se deve a capacidade de retranscrição dos traços mnêmicos. Na
puberdade, o segundo tempo do trauma, as barreiras morais, conforme esclarecem
Carvalho & Ribeiro (2006), foram erigidas de tal maneira que as lembranças ao serem
despertadas sofrerão uma repulsa do eu e serão recalcadas. Temos, então, a vinculação
entre trauma, repetição e memória; pois a sintomatologia apresentada na histeria só pode se
manifestar a partir das lembranças do abuso ressignificado após a maturação sexual,
ressignificação desencadeada pela repetição de uma circunstância que evoque a recordação
do abuso. O fator econômico tem um peso importante nesta formulação, pois diante da
recordação que validará o trauma notamos a incapacidade do sujeito em efetuar uma
“atitude compensatória na medida da agressão” (BARROIS, 1998, op. cit., p. 208,)3;
significa que a energia quiescente do eu é pequena em relação à energia proveniente do
trauma. Como vimos acima, essa idéia encontrará eco nas formulações sobre o trauma a
partir de 1920.
Em meados de 1897 Freud vai descartar essa explicação, abandonando a teoria da
sedução. Passando a considerar que estes abusos sofridos na infância e contados por seus
pacientes não correspondiam necessariamente à realidade. Freud vai considerar que se
trata, na maioria dos casos, de situações fantasiadas. Desta forma Lejarraga (1996) pontua
que a fantasia ganha um lugar de maior destaque na produção das neuroses, ou seja, a
realidade factual cede lugar a um fator interno. A “realidade objetiva da cena traumática é
substituída pela realidade psíquica dos desejos e fantasias inconscientes” (Id., Ibid., p. 21).
A partir da nova relação estabelecida entre fantasia e trauma, o fator interno, no sentido de
uma realidade interna, ganha mais relevo que a realidade objetiva, lugar por excelência da
cena de sedução. Vemos assim o peso dado à questão da fantasia que acaba deslocando a
importância da realidade, limitando por um lado a concepção de que o trauma provém do
exterior, e, por outro, abrindo novas possibilidades para explicar a neurose a partir do
conflito entre os desejos inconscientes e a consciência moral.
Esta reformulação não significa que a realidade externa e a fantasmática sejam
desconexas, pelo contrário, há uma implicação de uma sobre a outra. Entendemos, assim
como Uchitel (2001), que o trauma caracterizado por uma violência externa não age sobre
3
Tradução nossa.
39
nós sem nos causar implicações fantasmáticas. De forma que a apreensão da realidade
externa não é ausentada de fantasia; nem a fantasia abstrai-se totalmente da realidade
externa para constituir-se, existindo implicações de uma sobre a outra. Esse deslocamento,
do externo para o interno, levará consequentemente a um novo modelo explicativo de
neurose: a sexualidade recalcada, referida não somente ao orgânico, mas ao campo das
fantasias e desejos e, o conflito moral advindo desses desejos sexuais que não podem
aflorar à consciência passarão a explicar a sintomatologia neurótica.
A respeito disso Carvalho & Ribeiro (2006 op. cit.,) clarificam que tal concepção de
trauma que se constitui no momento em que antigas impressões são ressignificadas, não é
outra coisa senão a construção de uma fantasia. Na teoria da sedução, o “fundamento da
fantasia é o fato real do atentado sexual, enquanto que na teorização subsequente seu
fundamento será a sexualidade infantil e seu substrato pulsional” (Id., Ibid., p. 6).
Contudo vale determo-nos na descrição do aparato neuronal feito no Projeto de 1895
que pode comportar o registro do abuso sexual, a partir da idéia de um corpo estranho que
se encontre presente. São registros mantidos fora dos investimentos do eu, portanto,
indomados, uma vez que não foram submetidos ao processo secundário. E por se tratar de
lembranças que envolvem a sexualidade são carregadas de uma intensidade especial.
Na terceira parte do Projeto (1895[1950]/1996, op. cit.), Freud
ressalta que o
rememorar envolve um processo de pensamento regressivo, “retrocedendo, possivelmente
até uma percepção” (Id., Ibid., p. 435), sendo que o pensamento pode “levar ao desprazer”
(loc. cit.) se nesse curso regressivo esbarrar em lembranças ainda indomadas. São
justamente essas lembranças, de ordem sexual, que se tornarão patogênicas ou traumáticas
a posteriori.
Para essas ocasiões o aparato conta com uma defesa especial: a defesa patológica ou
recalcamento. Na carta 52 (1896/1996 op. cit.), Freud indica que a defesa patológica ocorre
contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido. Nos casos
de ordem sexual há um crescente desprazer porque as magnitudes das excitações causadas
pelo abuso aumentam ou ganham mais força com o tempo, devido ao desenvolvimento
sexual do indivíduo. Nesta lógica um evento sexual anterior (na infância) atua sobre a fase
seguinte (da maturação sexual) como se fosse atual; o fato que determina o recalcamento,
portanto, “é a natureza sexual do evento e sua ocorrência numa fase anterior” (Id., Ibid., p.
284).
40
No rascunho K (1896/1996) Freud é taxativo quanto a essas ideias, apontando que
basta a puberdade se colocar entre a vivência factual do abuso e sua repetição na
lembrança, para que o trauma seja desencadeado. E conclui: “para que a pessoa esteja livre
da neurose, a precondição necessária é que antes da puberdade não tenha ocorrido
nenhuma estimulação sexual de maior significação” (Id., Ibid., p. 268).
O recalcamento será um meio de evitar que as lembranças carregadas de afeto
produzam desprazer, retirando seu investimento e deslocando-o para outras representações
que tenham uma ligação fortuita com o evento de ordem sexual. Toda vez que algo
relacionado ao trauma for evocado, a lembrança fortuita irá aparecer no lugar da
experiência sexual traumática. Contudo a defesa patológica não anula o poder patogênico
da lembrança traumática, apenas a enfraquece deslocando sua energia.
“Porém, só se pode fugir de uma representação para outra, nisso consiste a formação
do sintoma” (SANTOS, 2006, op. cit., p. 36). Por esse motivo Freud conclui que toda
compulsão corresponde a um recalcamento, e como neste processo há deslocamento da
energia de uma representação para outra, toda emergência na consciência da representação
traumática corresponde a uma amnésia, uma lacuna na memória. O „a posteriori‟ implica
a repetição; a esse respeito Gondar (1995) salienta não ser preciso ocorrer uma reprodução
exata para haver enlace entre duas representações. Basta que existam traços comuns a
ambas; porém é necessário que essa repetição insira um novo elemento, capaz de conferir à
primeira recordação um sentido que não lhe havia sido dado. Uma experiência fortuita
vivida após a puberdade desencadearia a produção sintomática; o trauma, portanto não é
produzido no passado, mas através do enlace entre duas representações dadas em tempos
diferentes.
Através destes processos que envolvem a representação-lembrança, sobretudo na
experiência de dor, “a psicanálise pode suspeitar da existência de uma força que enquanto
silenciosa, foge à detecção, mas cuja potência pode ser inferida a partir dos efeitos que
produz” (Id., ibid., p.83). Os estímulos endógenos, originados nas “células do corpo” e
criadores das grandes necessidades (os precursores do que será chamado de pulsão) têm
por característica organizar-se em torno de um objeto utilizado para obter satisfação por
meio da descarga da excitação. Como essas estimulações não cessam sua atividade, uma
vez realizada a descarga o processo recomeça, denotando um processo repetitivo que está
no cerne do conceito de pulsão.
41
A dor, dentro da perspectiva apresentada no Projeto de 1895, aparece como uma
falha dos dispositivos de proteção do aparato e aponta para um processo que mesmo
envolvendo o desprazer continua se repetindo, trata-se de um mecanismo que se encontra
fora do princípio do prazer e aponta para a compulsão à repetição (Caropreso & Simanke,
op. cit., 2006).
Somente em 1920, no texto “Além do princípio de prazer”, a questão da dor é
retomada por Freud, numa concepção muito próxima do Projeto, mas certamente em outro
nível de elaboração conceitual. Ela se caracteriza por uma ruptura no escudo protetor
contra estímulos, que protege o aparato das excitações. Diante da ruptura do para-excitação
o aparato é inundado por um excesso pulsional, que coloca de lado o funcionamento do
princípio do prazer, para realizar uma tarefa mais fundamental: dominar a excitação
excessiva.
Quando ocorre uma falha na tarefa de dominar a excitação, inicia-se um
processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer, denominado:
compulsão à repetição.
I.6. Vivência original de satisfação e o abandono da vivência de dor
Apesar da importância das questões em torno da vivência de dor é a vivência de
satisfação que ganha destaque crescente após o engavetamento do Projeto de 1895. Dessa
vivência resulta um resto: estado desiderativo. Na Interpretação dos Sonhos (1900/1996
op. cit.) esse mesmo resíduo será denominado desejo; Freud se serve, neste texto de 1900,
do mesmo exemplo apresentado no Manuscrito de 1895: o choro (de fome) do bebê é
aplacado pelo cuidador, ou seja, o aparato procura repetir a experiência primária de
satisfação, na qual obteve prazer através da descarga das excitações. Contudo Freud
abandona a possibilidade de estabelecer uma base anatômica para o aparato psíquico antes
dividido em sistemas neuronais.
Há uma importante articulação que se mantém entre a repetição e os estados
desiderativos: o objetivo do desejo é reproduzir uma identidade perceptiva, ou seja,
“repetir a vivência de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido
como prazer” (FREUD, 1900/1996, op. cit., p. 624). Nesse sentido Prata (1992) ressalta
que o reafloramento desiderativo pode ser entendido como algo da ordem de uma
repetição, a qual se manifesta como uma força que impele o sujeito à determinada direção.
42
Dentro deste quadro “a repetição é, portanto, originária do desejo e está nos fundamentos
da concepção do inconsciente” (Id., Ibid., p. 8) e do próprio conceito de pulsão.
Dentro dessa perspectiva a repetição consiste numa busca constante em reencontrar o
objeto perdido da experiência de satisfação original; contudo o objeto encontrado nunca
coincide totalmente com o objeto da satisfação primeira. Freud indica com clareza essa
posição ao explicar “o reconhecer e o pensar reprodutivo” na primeira parte do Projeto de
1895, e a retoma, dentro de outro contexto conceitual, em 1905 nos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade ao afirmar que o encontro com o objeto “é, na verdade, um
reencontro” (p. 210), portanto repetição de um prazer já experienciado.
Distintamente da vivência de satisfação, a vivência de dor não aparece na
Interpretação dos Sonhos (1900/1996 op. cit.). Essa omissão faz com que os polos
desprazer-prazer e dor, deem lugar a dois novos polos que serão centrais na primeira
tópica: o prazer de um lado, e o desprazer, de outro. Desaparece, como consequência, a
ideia de um processo primário que possa levar o aparelho psíquico a reativar
representações desprazerosas, provenientes da experiência de dor, produzindo afeto e
defesa, que seria dominado aos poucos com reiteradas repetições visando ligar a
quantidade excessiva que ocuparam as representações hostis.
Aubert (1996, op. cit.) vê na recusa de Freud em tratar o pesadelo em sua teoria sobre
a interpretação dos sonhos, um claro sinal do descartamento da questão da vivência de dor.
Os sonhos desprazerosos e de punição não são mais referidos à dor, mas são explicados a
partir do princípio de desprazer-prazer que tem como fundamento a vivência de satisfação.
Dessa forma, o que é operado nesse tipo de sonhos é um “desejo do sonhador de ser punido
por uma moção de desejo recalcada e proibida” (FREUD, 1900/1966, op. cit., p. 587).
Freud (Ibid.) se volta para a questão do conflito entre consciente e inconsciente, e para a
oposição prazer – desprazer. Somente após a eclosão da primeira guerra mundial (19141918) e diante de alguns problemas conceituais – os pesadelos dos sobreviventes dos
campos de batalha – são retomados sob o ponto de vista da vivência de dor em 1920.
Na verdade Freud (1900/1996, op., cit.) chega a supor que sobre o aparato primitivo
incide um estímulo perceptivo que funciona como a fonte de uma excitação dolorosa.
Sobrevêm, com isso, manifestações motoras desordenadas, até que uma delas faça com que
o aparato se retraia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Quando a percepção
reaparece o movimento é repetido. “Neste caso, não resta nenhuma inclinação a recatexizar
a percepção da fonte de dor, alucinatoriamente ou de qualquer outra maneira” (Id., Ibid., p.
43
626). Neste ponto Freud interrompe a exposição e afirma que pelo contrário, haverá no
aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem aflitiva,
justamente pela razão dela provocar desprazer. A evitação de qualquer coisa que foi
aflitiva é “feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico” (loc. cit.); isso
fornecerá o protótipo e o primeiro exemplo de recalcamento.
Nada é falado sobre esse funcionamento primário, acionado por quantidades
excessivas provenientes da vivência de dor, que insiste em repetir-se enquanto a energia
não é ligada como vimos no Projeto de 1895. Nas palavras de Freud (1900/1996, op. cit.):
essa evitação da lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva se dá (...) em conseqüência do
princípio de desprazer, portanto, o primeiro sistema- psi () é totalmente incapaz de introduzir
qualquer coisa desagradável no contexto de seus pensamentos. Ele não pode fazer nada senão desejar
(Id., Ibid., p. 627).
Haveria, portanto, no aparelho, desde sua origem uma inclinação a abandonar
imediatamente as representações aflitivas. O sistema consciente só pode investir uma
representação se estiver apto a inibir o possível desenvolvimento do desprazer que dela
provir. “A inibição do desprazer, contudo, não precisa ser completa: o início dele tem de
ser permitido, já que é isso que informa ao segundo sistema a natureza da lembrança em
questão e sua possível inadequação ao fim visado pelo processo de pensamento” (Loc. cit).
A partir de 1900 o conceito de processo primário tal como apresentado no Projeto de
1895 e as consequências relativas à vivência de dor são excluídos. Freud não dá maiores
explicações de como uma energia em estado livre pode evitar, e mesmo inibir
representações desprazerosas. Evitar, inibir, mediar são funções do processo secundário,
alcançada a duras penas pelo eu devido à invasão de grandes intensidades, característica
dos processos que envolvem a dor. É complicado pensar como isso seria alcançado por
esta outra forma, tendo em vista que o funcionamento do aparato tal como descrito no
Projeto de 1895 não parece ter-se modificado na Interpretação dos Sonhos (1900/1996, op.
cit..), em relação ao processo primário - energia livre, e o secundário – energia ligada.
De 1900 até 1920, Freud vai considerar a experiência de satisfação como originária
da estruturação do aparato psíquico. Assim a primeira tópica vai ser pensada a partir do
desejo, mais especificamente sobre o desejo sexual recalcado, conforme lembra Herzog
(2001, op. cit.). Disposição que irá conferir especificidade ao conceito de inconsciente
como objeto de investigação e à pulsão como um conceito fundamental.
Vimos que a experiência primária de satisfação é a base da formulação freudiana
sobre o desejo. Como consequência disso qualquer acúmulo de excitação colocará o
44
aparato em ação para repetí-la. A corrente que se inicia no desprazer e tem o prazer como
finalidade é o que Freud chamará de desejo; é sobre a descrição realizada a partir da
vivência de satisfação que serão criadas “facilitações que servem de roteiro, para aquilo
que mais tarde será chamado de pulsões sexuais” (MALDONADO, 2005, p. 22). Serão
esses circuitos instalados a partir das primeiras experiências de prazer, que darão lugar aos
chamados circuitos pulsionais.
Com esses argumentos podemos concluir que a dor aponta para um processo
repetitivo envolvendo o desprazer e nos dá indícios que levam em direção à compulsão à
repetição; não como um conceito estabelecido, mas um impasse trazido pelas
consequências do processo doloroso o qual envolve uma energia livre que o eu não
consegue subjugar facilmente. Por outro lado a experiência de satisfação remete a outro
tipo de repetição, que está no cerne do processo de recalque. É sobre esses
desdobramentos, articulando a repetição com os conceitos de transferência, recalcamento e
resistência que começam a ser desenvolvidos a partir de questões colocadas pela clínica,
que nos deteremos no próximo capítulo.
Capítulo II – O retorno do recalcado - a repetição do sexual
Ao longo deste segundo capítulo será abordada a questão da repetição do sexual,
manifestada na clínica como o retorno do reprimido. A partir da publicação de Recordar,
repetir e elaborar (FREUD, 1914/1996) a repetição começa a ganhar lugar como conceito,
passando de um indício clínico pouco referido nos textos freudianos, para um lugar central
na teoria. Trata-se de um fenômeno desvendado pela clínica, embora não se resuma a ela,
já que acontece no cotidiano de cada um. Foi o amor de transferência que “atropelou”
Freud, em um caso de histeria – o caso Dora (Id., 1905[1901]/1996), revelando uma
espécie de repetição onde o analista é substituído por uma outra figura da vida da paciente.
Como a etiologia da neurose é sexual, essa repetição só pode se referir ao retorno de uma
representação sexual reprimida; a novidade é que essa repetição escapava da esfera verbal
sendo atuada através da relação transferencial.
A ideia de que a repetição é concebida como repetição do sexual decorre das
considerações sobre a vivência de satisfação primária, que funda o princípio de prazer no
aparato psíquico. Baseado nisso Freud irá construir uma teoria e uma prática clínica com
intuito de solucionar os casos de neurose de transferência, que apontam um conflito entre
instâncias psíquicas. Tal conflito se refere a um desejo sexual, de caráter edípico, que tem
seu acesso barrado à consciência por causar desprazer ao eu, devido às barreiras morais
internalizadas pelo sujeito. Nessa perspectiva o sintoma se caracteriza por uma formação
de compromisso entre essas instâncias, compromisso que se constitui pela expressão do
desejo sexual dos neuróticos impedido de ser descarregado via consciência. Tais sintomas
serão repetidos em ato por meio da transferência com o analista.
Tendo em vista estes aspectos vamos nos debruçar, neste capítulo, sobre os textos da
primeira tópica (principalmente os artigos sobre técnica) (FREUD, 1912-14/1996) e da
metapsicologia (Id., 1914-1915/1996) a fim de evidenciar a presença de uma repetição do
sexual, observada na clínica através do acting out. No artigo “Pulsões e seus destinos” (Id.,
1915/1996), esse quadro vai se complexificar na medida em que Freud começa a dar mais
atenção à perspectiva do excesso pulsional; e tendo ainda que dar conta dos modos de
defesa em relação ao impacto deste excesso. Somado a isso, Freud se depara com casos
clínicos em que não se conseguia avançar com o método clássico da regra fundamental,
revelando uma compulsão que excedia a questão do retorno do reprimido. Nesses casos se
observava que os pacientes se expressavam através de uma passagem ao ato que não tinha
46
ligação com as representações barradas à consciência, mas eram a manifestação de uma
pura descarga, apontando um limite para o dispositivo clínico centrado na figura da
interpretação.
Dessa forma o espectro de uma compulsão à repetição, que parece não levar o
princípio de prazer em conta, começa a interrogar e, quiçá abalar o arcabouço teórico da
psicanálise fundado sobre a vivência de satisfação que baliza o aparelho psíquico no
princípio de prazer. Como consequência, Freud vai propor uma outra configuração para o
aparelho psíquico – a segunda tópica. Nesta o tema da vivência de dor, abandonado junto
com Projeto de 1895, reaparece com nova roupagem teórica. Nossa proposta no presente
momento será de acompanhar o texto freudiano visando mostrar como a repetição ganha
sentido em um movimento que parte da clínica para a teoria, para compreendermos os
motivos, a partir do conceito de repetição, que levaram à reformulação tópica.
II.1. Transferência e resistência
Freud declara no artigo “Psicoterapia da Histeria” (1895/1996) que todo sintoma
histérico desaparece quando o terapeuta consegue trazer à luz a lembrança do trauma que
havia desencadeado essa afecção e, com isso, despertar o afeto que o acompanha. Para esse
procedimento ocorrer com êxito, o paciente, auxiliado pelo terapeuta, deveria traduzir o
acontecimento traumático em palavras. Nisso consistia a „talking cure‟ ou „chimneysweeping‟4 apropriadamente descrita por Anna O., que teve o caso clínico examinado por
Breuer nos “Estudos sobre a histeria”(FREUD & BREUER 1893-95/1996, op. cit.). A
finalidade era provocar a catarse, ou seja, a descarga dos afetos patogênicos; para isso era
preciso reviver, evocando as lembranças, o momento traumático.
Catarse é uma palavra de origem grega que designa um processo envolvendo a
purgação das paixões produzidas no espectador enquanto assistia à representação de uma
tragédia (ROUDINESCO & PLON, 1997). Freud apropriou-se dessa ideia, no intuito de
unir a representação recalcada ao afeto correspondente que não podia ser descarregado.
Essa união, promovida pela ajuda do analista, provocava uma vivência afetiva (descarga
emocional) que possibilitava a cura, nisto consistia o objetivo da terapia em seus primeiros
passos.
4
Respectivamente: cura pela fala e limpeza de chaminé (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, p. 65).
47
Contudo, para lograr sucesso nessa empreitada, era necessário superar a resistência
do paciente em recordar. As lembranças traumáticas foram recalcadas por causar muito
desprazer para o eu; este para se defender exerce uma força de repulsão contra a
representação-lembrança aflitiva. Cabe lembrar que a etiologia da neurose, neste período,
era baseada em um trauma sexual factual. A representação ligada ao evento traumático é
de natureza aflitiva, uma vez que desperta “afetos de vergonha, autocensura e dor
psíquica” (FREUD, 1895/1996, op. cit., p. 283).
Frente a isso surge a idéia de defesa: a representação traumática é forçada para fora
da consciência e da memória, e a toda tentativa de retorno há uma força repulsiva partindo
do eu, que originariamente impeliu essa mesma representação para fora de seu domínio e
agora se opõe ao seu retorno; essa força representa a resistência em recordar. Para
contornar tal dificuldade Freud (Ibid.) desenvolve algumas técnicas como a „pressão na
testa‟ e a „associação-livre‟, que funcionam como um truque para desviar a atenção do eu,
ansioso por se defender.
Para Freud o que aciona a defesa é o rompimento da homeostase do aparato. Um
excesso, proveniente de uma representação sexual recalcada, coloca em movimento o
processo defensivo, que entra em ação na tentativa de restaurar o equilíbrio, ou seja,
manter o nível de excitação o mais baixo possível e constante. Assim, a defesa é
fundamental para evitar o desprazer.
A partir disso notamos que uma representação recalcada está na base da estrutura
neurótica, fato que irá privilegiar o conceito de defesa. Segundo Birman (1991), pensar a
neurose como “defesa contra um sofrimento mental é um ponto de partida que conduz à
ruptura com o método catártico, inicialmente através do abandono dos procedimentos
hipnóticos” (Id., Ibid., p. 171). Contudo a frequente repetição do retorno do reprimido,
observada na clínica, ressalta um fracasso do processo defensivo e coloca em cheque a
organização de um aparato psíquico baseado em uma tendência à constância.
A dificuldade de hipnotizar alguns pacientes e a completa impossibilidade da hipnose
em outros, foram alguns dos sinais que levaram Freud à descoberta da resistência,
passando a se constituir como o grande obstáculo a ser vencido na busca pela cura. O eu
busca defender-se pelo recalcamento das representações desprazerosas, ou seja, torna a
representação incômoda fraca (e, com isso, sufoca o afeto correspondente), deslocando a
sua soma de excitação para outras representações que tenham uma ligação fortuita com o
evento traumático. A despeito disso tanto os traços de memória como o afeto que fazem
48
referência a essa representação continuam a exercer sua influência no psiquismo, uma vez
que a formação do sintoma consiste na substituição de uma representação por outra.
Configura-se, a partir disso, uma formação de compromisso entre o conteúdo
reprimido e o eu, a qual traduz ao mesmo tempo o desejo proibido e também o disfarça sob
uma ideia (ou várias) sem relação aparente com tal desejo. Sobre essa questão Mezan
(2006) esclarece: se o desejo reprimido receber um investimento aumentando a intensidade
das representações pré-conscientes ligadas a ele e tentar forçar passagem pela censura do
pré-consciente haverá um contra-investimento de representações opostas a esse desejo. O
resultado dessa tensão de forças é a formação de um compromisso entre esses grupos de
representações, surgindo daí o sintoma neurótico, o que nos leva a concluir que a análise
não é um simples processo de desenterrar representações, como se elas se mantivessem
intactas desde sua concepção. Pelo contrário, a partir da Carta 52 (FREUD, 1896/1996, op.
cit.) é apresentada a possibilidade de retranscrições dos traços mnêmicos que irão compor
tais representações. Essa capacidade de transformação torna o reencontro do afeto com sua
respectiva representação mais complicada do que aparenta ser.
Diante das dificuldades clínicas, especialmente aquelas decorrentes do fator afetivo
em seus atendimentos, Freud (1893-95/1996, op. cit.) passou a considerar que o conteúdo
de um desejo reprimido surgia na consciência do paciente sem ser acompanhado da
lembrança capaz de situá-lo no passado. O desejo, aparentemente deslocado no tempo,
aparecia atrelado à pessoa do terapeuta, sendo este atrelamento designado como uma “falsa
ligação”. Este é o primeiro passo para Freud (Ibid.) se deparar com a repetição via
transferência, vale acompanhar a descrição:
O desejo assim presente foi então (...) ligado a minha pessoa, na qual o paciente estava legitimamente
interessado; e como resultado dessa mésalliance – que descrevo como uma falsa ligação – provocouse o mesmo afeto que forçara a paciente muito tempo antes, a repudiar esse desejo proibido. Desde
que descobriu isso, tenho podido, todas as vezes que sou pessoalmente envolvido de modo
semelhante, presumir que a transferência e uma falsa ligação tornam a acontecer. Curiosamente a
paciente volta a ser enganada todas as vezes que isso se repete (Id., Ibid., p. 314).
Dessa forma o fator afetivo criou uma dificuldade que deveria ser contornada pelo
processo terapêutico, por isso Freud considerou a transferência como mais uma
manifestação da resistência; uma falsa ligação que desviava a atenção do analista, atuando
no sentido contrário da rememoração, era mais um obstáculo que dificultava as
representações recalcadas tornarem-se conscientes, atrapalhando assim o processo
analítico.
49
Sobre essa questão Birman (1991, op. cit.) afirma, que o afeto e não o discurso irá
revelar uma verdade que o sujeito deveria enunciar através das palavras, mas não pode. O
afeto se refere a uma representação ausente, dado que o recalcamento deslocou sua energia
para outra representação, conferindo o caráter enigmático do sintoma neurótico, pois no
lugar onde deveria haver uma lembrança há uma lacuna.
É necessário, para tanto, decifrar qual o motivo desencadeante do esquecimento do
paciente; ou seja, é preciso reconstituir a trajetória que levou o sujeito à neurose, entender
como a cena manifesta, contada como queixa, encobre a cena original. Nesse sentido Freud
(1900/1996, op. cit.) vai configurar a clínica psicanalítica em torno da interpretação,
justamente porque é preciso traduzir o material inconsciente, recalcado, para o consciente.
A interpretação, por sua vez, era fundada na existência de um enigma; evidenciado
clinicamente através das lacunas da memória, para preenchê-las era preciso superar as
resistências encontradas no caminho e, assim, chegar às representações barradas
solucionando o mistério em torno dos sintomas neuróticos. Para esse procedimento
contava-se com a regra da associação-livre, cujo objetivo era desviar a resistência
oferecida pelo eu do paciente. Freud acreditava que havia ligações entre as representações,
formando cadeias que operam como fios lógicos e conduzem, finalmente, a pontos nodais
ou núcleos patogênicos.
O recalque é então entendido, conforme ressalta Safouan (1988), no sentido de
desviar-se de uma realidade que se tornou intolerável; trata-se de uma forma de negar a
própria realidade e substituí-la por uma fantasia. “Os neuróticos afastam-se da realidade
por achá-la insuportável – seja no todo ou em parte” (FREUD, 1911/1996, p. 237); neste
contexto o eu se utiliza do recalcamento para afastar da consciência eventos que possam
despertar desprazer. O objetivo do recalcamento, usado pelo eu como uma forma de
defesa, é exorcizar o desprazer que determinada representação trará para si; contudo a
repetição, sob a forma do retorno do recalcado, indicará uma falha do processo de recalcar
e por isso trará o espectro do desprazer consigo.
Parece estranho que um aparelho psíquico organizado para gerenciar e manter-se
afastado de grandes quantidades barre uma descarga, contudo é preciso ter presente que se
ela fosse realizada causaria mais desprazer do que prazer ao eu. Assim algumas destas
formações conservavam seu poder quantitativo, retornando à vida do indivíduo sob a
forma de sintomas. Tais formações precisam ser mantidas fora da consciência por não
serem compatíveis com as barreiras morais internalizadas pelo sujeito; disto provocar-se-á
50
um conflito, onde os sintomas representam as aspirações sexuais do neurótico impedidas
de se concretizarem na realidade. É o preço a pagar pela vida em sociedade, como salienta
Freud (1930[1929]) anos depois: “O homem civilizado trocou uma parcela de suas
possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (p. 119), de modo que nem
todos os desejos podem ser realizados efetivamente.
Esse conflito se deve ao fato de Freud (1900/1996, op. cit.) considerar a „vivência de
satisfação‟ como originária da estruturação do aparato psíquico. Como consequência a
primeira tópica é organizada em torno do desejo sexual recalcado, sendo o objetivo do
desejo repetir a vivência original de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e
foi sentido como prazer. Apresentar a vivência de satisfação como fundamento do
psiquismo significa um deslocamento da conceitualização do trauma externo –
característico da vivência de dor e, principalmente, da teoria da sedução – para uma visão
de trauma centrada em um conflito interno motivado pela pulsão sexual.
Devido ao desamparo do recém-nascido, característico da espécie humana, e a
mediação efetuada pelo cuidador o acento da satisfação da necessidade (fome) é deslocado
para a realização de um desejo, constituindo-se assim o fundamento do psiquismo tal como
apresentado na primeira tópica. Objetiva-se assim o restabelecer da situação de satisfação
obtida por essa mediação. Para Cosentino (1993) o grito de fome do bebê se transforma de
uma tentativa desesperada de descarga motora em fonte de comunicação. As expressões do
bebê são desprovidas de uma intenção específica, devido a sua imaturidade motora de
origem neurológica; entretanto são traduzidas como um sinal de alerta para o cuidador. O
desamparo do bebê se constituirá a “fonte primordial de todos os motivos morais”
(FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 370); isto é, a incapacidade de realizar a ação
específica do bebê é sustentada inicialmente por uma tentativa de descarga reflexa que
ultrapassa a dimensão motora inscrevendo-se no registro da comunicação, da demanda na
qual um outro desejante ao respondê-la insere o bebê na ordem simbólica, marca da
condição humana.
O bebê, inicialmente, não se distingue do restante do mundo, ele aprende
gradativamente a diferenciar-se do mundo externo reagindo a vários estímulos. É devido
aos primeiros cuidados que as características do outro se inscrevem no bebê como
impressões em partes do seu corpo constituindo assim os primeiros elementos de uma
identidade subjetiva (DAVID-MÉNARD, 2000). É a partir da diferenciação: eu – mundo
51
externo, que se dá o primeiro passo para a introdução do princípio de realidade que deverá
dominar o desenvolvimento futuro.
Dos cuidados que garantem a sobrevivência do bebê temos uma união entre a
satisfação da necessidade (a fome, por exemplo) e a realização do desejo. A imagem
perceptiva do objeto que proporcionou a satisfação se associa à excitação interna
proveniente da necessidade, surgindo daí o protótipo alucinatório, mediante o qual o
impulso psíquico procura restabelecer uma identidade perceptiva com o objeto gratificante
original. Esse impulso é denominado desejo e, reencontrar esse objeto corresponde à
satisfação. Entretanto, o objeto original se constituirá como objeto perdido, fato que detona
uma eterna busca para reencontrá-lo. Nesse ponto desejo e repetição se aproximam, pois
durante a vida se buscara satisfazer o desejo, que não cessa de brotar, através dos mais
variados objetos que possam substituir o objeto original.
Este é o sentido apontado por Freud no capítulo VII da Interpretação dos sonhos
(1900/1996, op. cit.) ao afirmar que o inconsciente não faz senão desejar. A consequência
de um aparato psíquico baseado na vivência de satisfação é que ele não pode fazer outra
coisa senão buscar repeti-la, isso se expressa em sua “fome” insaciável (o termo parece
apropriado já que a exemplo dado por Freud é baseado na fome do bebê) por reencontrar o
objeto que um dia o satisfez. O motor que motiva essa busca são os estímulos pulsionais.
Nesta mesma perspectiva David-Ménard (2000, op. cit.) considera que o material
repetido em análise é uma “repetição concentrada das experiências de prazer que
constituem cada um de nós” (Id., Ibid., p. 19)5; tais experiências permanecem em espera
desde a infância em uma tentativa de repetir o movimento que resultou na descarga do
acúmulo de estímulos pulsionais. Deste modo, o paciente se comporta de maneira infantil
para com seu analista, revelando fragmentos de lembranças de suas primeiras experiências
de prazer. Neste sentido, os fragmentos obedecem a leis que regem o processo primário de
forma que podem aderir aos restos diurnos e formar uma fantasia de desejo a ser
representada nos sonhos ou, formar um compromisso com as forças recalcantes e advir
como sintoma.
Tendo em vista esses fatores o tratamento não visa uma restauração da verdade no
sentido histórico, como uma investigação policial, mas a verdade do desejo do sujeito; em
outras palavras, na análise se busca de que modo singular o indivíduo confere sentido a
determinadas representações. O psiquismo fundado sobre a vivência de satisfação que
5
Tradução nossa.
52
insere o indivíduo no plano simbólico “tornará viável um tratamento semântico do desejo”
(HASKY, 2008, p. 25). É a partir do amarramento do desejo ao universo simbólico que a
interpretação do sintoma, assim como dos sonhos, será possível. Para tanto, Freud
acreditava que a neurose teria uma lógica interna (fios lógicos): os sintomas aparentemente
incoerentes, não haviam sido constituídos ao acaso; essa suposta lógica confirmava a
finalidade do processo de análise: levantar o recalcado e com isso chegar até a
representação que desencadeou a neurose, preenchendo as lacunas da memória.
II.2. A repetição do sexual e a presentificação do desprazer
O que se designa como a singularidade do sujeito, apontada pela psicanálise, se dá
através da combinação entre „disposição inata‟ (filogênese) e toda sorte de influências que
cada pessoa sofre nos primeiros anos de vida; dessa união de fatores o indivíduo consegue
um meio particular de conduzir-se na vida erótica: “isto é, nas precondições para
enamorar-se (...), nas pulsões que se satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo”
(FREUD, 1912/1996, p. 111). Tais fatores irão compor o que se chama de clichês
estereotípicos, que são repetidos no curso da vida. Em outros termos, não são repetições
que ocorrem apenas no espaço analítico, mas em nossas escolhas amorosas e nas demais
ações de nossa vida, dependendo, é claro, das circunstâncias externas nas quais se esteja
envolvido e da natureza dos objetos acessíveis.
É na esfera da representação que se consuma inicialmente a escolha do objeto: o
impulso sexual da criança é dirigido para os pais, seus objetos mais próximos e de quem
depende. No posterior repúdio das fantasias provenientes deste tempo, de natureza
claramente incestuosa, “consuma-se umas das realizações psíquicas mais significativas,
porém mais dolorosas (...): o desligamento da autoridade dos pais” (FREUD, 1905, op. cit.,
p. 214); contudo isso não significa que essas fantasias perdem a força. As barreiras morais
impostas pela exigência civilizatória não permitem outra saída para a realização de tais
desejos senão pela fantasia. É no espaço imaginário que as fantasias edipianas voltam a
emergir. Por esses motivos o analisando se aferra nessas fixações em que a satisfação lhe
foi negada pela realidade, caracterizando modos de sofrimento e colocando o analista no
lugar desses objetos que eterniza imageticamente.
Como vimos o primeiro objeto sexual da criança é o seio materno; durante o período
inicial do desenvolvimento a alimentação não está separada da satisfação sexual
53
proveniente da supressão da fome. Com a emergência da sexualidade oral, nascida da
satisfação proporcionada pelo mamar, passa-se ao auto-erotismo, no qual o objeto sexual
se encontra no próprio corpo ou parte dele (pé, mão, dedo ou que o alcançar a boca). A
organização narcísica surge após certa integração das pulsões parciais e da constituição
egóica; essa organização irá diferenciar-se da etapa oral pela unificação das pulsões
parciais e do auto-erotismo pela totalidade do objeto.
A partir do que foi exposto até aqui podemos notar que há uma substituição do
modelo do trauma factual na etiologia das neuroses pelo modelo da pulsão. Assim a partir
do artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1996, op. cit.) iniciase uma complexificação da teoria pulsional sendo dado relevo ao fator traumático.
Complementando essa idéia Carvalho & Ribeiro (2006) destacam que o modelo freudiano
das neuroses, baseado no complexo de Édipo e no recalcamento, é um modelo do trauma
que se relaciona diretamente com o pulsional, “por um lado a pulsão contém o traumático
em sua própria constituição e, por outro, qualquer situação traumática é necessariamente
habitada pela pulsão” (Id., Ibid., p. 3). Conforme veremos a pulsão tem uma característica
excessiva desde o início. Ela é uma força que pressiona o indivíduo na direção da descarga,
que nem sempre é possível de ser realizada, gerando um conflito entre desejo inconsciente
que procura realizar-se e o eu que pode opor-se a esta realização. Queremos marcar, com
isso, que a necessidade de descarga deriva diretamente do acúmulo dos estímulos
pulsionais.
Estamos falando de uma noção de aparelho psíquico essencialmente econômica, pois
é o destino dado a essa quantidade que irá se configurar como traumático ou não. É
importante lembrar que o desencadeamento da neurose acontecia por uma introversão:
parte da libido que podia ser direcionada para objetos da realidade é diminuída; outra parte
inconsciente foi, consequentemente, aumentada e alimenta ou se interrompe nas fantasias.
É essa libido retirada dos objetos que retorna para o eu, podendo agora reviver as fantasias
infantis (Edípicas) do sujeito e passando a serem repetidas como „clichês estereotípicos‟.
Tendo em vista esse movimento da libido, em direção aos objetos e de recolhimento ao eu,
Freud observou, durante os tratamentos, um investimento libidinal dirigido para o analista;
dessa maneira o analista é inserido em uma série psíquica previamente formada pelo
paciente.
A análise busca rastreá-la e torná-la acessível à consciência com o intuito de dar um
destino, diferente do recalcamento, à libido que foi investida nestes clichês. Contudo, as
54
mesmas forças que fizeram a libido regredir se erguerão como resistências ao trabalho
analítico, o que leva Freud (1915[1914]/1996) a afirmar que toda interferência na
continuação do tratamento é uma expressão da resistência.
Freud (Ibid.) observou nos pacientes um frequente sinal de transferência amorosa,
que se expressava por uma exagerada docilidade: aceitação das explicações analíticas, uma
notável compreensão do que é interpretado, entre outras manifestações; toda essa atitude
em relação ao analista se deve ao investimento libidinal do paciente. A irrupção dessa
apaixonada ajuda, normalmente, seguida de uma exigência de amor, visava mudar o curso
do tratamento; isso era na verdade, em grande parte, trabalho da resistência. O paciente,
totalmente absorvido em seu amor, procura desviar-se do tratamento usando o amor sexual
como uma forma de resistir a rememorar, essa condição justifica “ainda mais
enfaticamente o funcionamento da repressão” (Id. Ibid., p. 180).
Freud (Ibid.) trata do amor de transferência, nos artigos sobre técnica, devido ao
perigo que ela representa para o analista. Essa preocupação é ilustrada com a história do
pastor chamado à casa de um vendedor de seguros ateu, que se encontra à beira da morte,
com o intuito convertê-lo. Após um longo tempo fechado no quarto do moribundo o pastor
sai do mesmo com um seguro. Da mesma forma Breuer foi seduzido por Anna O. anos
antes. Por isso Freud alerta o médico sobre a necessidade de manter a transferência dentro
de limites estreitos, caso contrário, pode-se acabar sendo surpreendido pelo amor de
transferência. É a manutenção destes limites que poderá tornar a transferência uma aliada
do analista. Como lembra Mannonni (1991): “o amor de transferência é amor. Só que
inoportunamente” (p. 91), talvez não tão inoportuno já que nos servimos tanto da
transferência na clínica, mas ele pode se tornar incômodo se o manejo transferencial não
for observado.
O amor de transferência denuncia a proximidade que se está do material recalcado.
Denuncia, portanto, o desprazer que envolve admitir desejos alimentados pela pulsão
sexual. Freud se volta para a questão da „adesividade‟ ou „fixabilidade‟ das impressões da
vida sexual infantil para explicar porque algumas pessoas se tornarão neuróticas ou
perversas. Em alguns indivíduos as manifestações sexuais prematuras não conseguem
fixar-se de maneira tão profunda, enquanto em outras produzem “uma repetição
compulsiva e podem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual” (FREUD,
1905/1996, op. cit., p. 228). Ele acredita que essa „adesividade‟ se deva, em grande parte,
à educação excessivamente moralista da Europa do século XVIII.
55
Segundo Foucault (1988) a sexualidade se apresenta como questão a partir do século
XVII, quando tem início uma época de repressão – nas sociedades burguesas – do discurso
de tudo que tocasse no campo do sexual; nesse período falar de sexo se torna uma tarefa
muito mais difícil. Tinha-se o intuito de banir o sexual das coisas ditas e “controlar sua
livre circulação no discurso (...) extinguir as palavras que o tornam presente de maneira
demasiado sensível” (Id., Ibid., p. 21), como se com tais medidas fosse possível dominar as
paixões no plano real. Molière (1672/2008) demonstra essa questão magistralmente em
“As eruditas” na passagem em que a matrona Filomena sugere uma revisão no
“sacrossanto campo da filologia” (Id., Ibid., p. 80) a fim de extirpar todos os vocábulos
sujos, imorais e pornográficos; Palavras tais como nauseabunda, deveriam ser substituídas
por “nauseanádega, nauseatraseiro” (Id., Ibid., p. 81). Segunda ela o dicionário está cheio
de palavras com duplo sentido e claramente com más intenções, que tem como intuito
fazer “ruborizar as damas, ofender o pudor e, insultar o recato feminino” (loc. cit.). Atento
a essa idéia Freud (1930[1929]/1996, op. cit.) nos diz que a sujeira, seja ela de qualquer
espécie, é incompatível com a civilização e não se surpreende do sabão ser padrão real do
mundo civilizado.
Houve um cerceamento da sexualidade, o que não significa que tudo que tange ao
sexo tivesse sido banido da sociedade; pelo contrário, continuava-se falando muito dele,
mas de outra maneira, detectada por Freud nos mais variados tipos de sintomas
apresentados nos quadros neuróticos. Essa restrição ao sexual deveu-se, de acordo com
Foucault (1988, op. cit.), ao advento da “população” como um problema econômico e
político para as cidades, uma vez que não se tratava mais de resolver demandas de um ou
outro indivíduo, mas de um conjunto deles, tais como: taxa de natalidade, emprego,
educação, saúde, alimentação, entre outros tantos. Frente a isso era preciso um discurso
orientador sobre a questão da sexualidade que se fizesse presente nos locais frequentados
por todos: trabalho, escolas, igreja, universidades, praças, etc. Existiu uma normatização
desses espaços criando-se uma série de regulamentos visando evitá-la. Tais regras são uma
“maneira prolixa” (Id., Ibid., p. 30) de falar sobre sexo, de forma que seria inexato falar de
um silenciamento sobre a sexualidade.
O fato de a justiça se ocupar com os chamados crimes de perversão sexual, assim
como a medicina, mais especificamente, a psiquiatria conceder um lugar dentro do quadro
científico para tais perversos, demonstra que se encontrava em vigor um conjunto de regras
e controles sociais que atingiram e moldaram a sexualidade das pessoas (população) de
56
forma definitiva. Portanto a sexualidade não foi exilada, mas centralizada a ponto de se
precisar normatizá-la; era preciso conter as moções pulsionais de cada um, caso contrário a
vida em conjunto não seria possível “se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos
ficariam sujeitos à vontade arbitrária de cada indivíduo, o que equivale a dizer que o
homem mais forte decidiria a respeito dos outros no sentido de seu próprio interesse e
impulsos primitivos” (FREUD, 1930[1929]/1996, op. cit,. p. 101). Frente a essa
normatização a sexualidade passa a ser “objeto não somente de uma intolerância coletiva,
mas de uma ação judiciária, de uma intervenção médica, de um atento exame clínico e de
toda uma elaboração teórica” (FOUCAULT, 1988, op. cit., p. 33), é nesse ponto que a
psicanálise apropria-se dela como estudo.
Voltemos à questão da adesividade ou fixação da libido, como explicativa da
neurose; a partir da fixação libidinal nos objetos edípicos do período infantil são criados
clichês em conformidade com os tipos narcísicos (o que se é, o que se foi, o que se gostaria
de ser e a pessoa que outrora fez parte de nosso próprio si-mesmo) e anaclítico (mulher que
nutre ou o homem protetor) de escolha amorosa. Nesta perspectiva entendemos que a
repetição sobre a qual Freud se refere na primeira tópica é a repetição do sexual. A
transferência traz à tona o que se acha oculto na vida erótica do sujeito e quanto mais
próximo do material recalcado maior será a força repulsiva empreendida pelo eu para
afastar a lembrança da representação desprazeroza.
II.3. O caso Dora – uma lição clínica
No final do ano de 1900, Freud (1905[1901]/1996) inicia o atendimento de uma
jovem chamada Dora. Neste atendimento o fracasso terapêutico culminou com o abandono
da paciente no terceiro mês de terapia, trazendo uma contribuição importante para a
questão da transferência negativa e da repetição. Com Dora, Freud se depara com a
transferência de forma inesperada, uma vez que ultrapassa as resistências as quais o
terapeuta deve contornar. Dora atua, vingando-se em Freud como desejaria vingar-se de
outra pessoa de sua vida amorosa (Herr K).
O fracasso do atendimento de Dora proporciona uma importante lição: a análise
passa, necessariamente, pela transferência; constituindo-se como central neste processo.
Freud é surpreendido pela transferência na qual Dora atuou uma parte essencial de suas
lembranças em vez de reproduzí-las em palavras: “o que não é enunciado pelo discurso da
57
consciência (...) se apresenta de forma deslocada no registro da transferência” (BIRMAN,
1995, p. 32).
A transferência mostra que o trabalho analítico não se faz independente das forças
libidinais, ou melhor, há um investimento libidinal na figura do analista que é colocado no
lugar de outra pessoa da vida do analisando. Esse movimento da libido denota que a
produtividade sintomática da neurose durante o tratamento não cessa, mas se exerce na
criação de um gênero especial de formações, a maioria de caráter inconsciente, onde o
analista aparece na transferência como um sintoma neo-produzido. Funcionando como um
polo atrator de representações ligadas ao sintoma, conforme esclarece Cosentino (1993, op.
cit.). Freud nomeia esse processo de „neurose de transferência‟6; mas afinal o que é uma
transferência? Nas palavras do próprio Freud (1905[1901]/1996, op. cit.):
São reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertarse e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do
médico. (...)não como algo do passado, mas como vínculo atual com a pessoa do médico (p. 111).
Partindo desta citação podemos observar que na transferência não está em jogo a
recordação, mas a revivência das „moções e fantasias‟, ou seja, é ao desejo sexual
recalcado que Freud está se referindo. É o que leva Freud a afirmar que os fenômenos
patológicos repetidos através da transferência são “a atividade sexual do doente” (Id., ibid.,
p.110). O sintoma significa a realização de uma fantasia alimentada pelas pulsões sexuais.
Na transferência são reeditados conteúdos através do vínculo libidinal projetado
sobre o analista; esse é o modelo do acting out: a atuação supõe um conteúdo psíquico que
se põe em cena, nela há uma mensagem, portanto, dirigida para um outro; seja o analista
ou qualquer pessoa da vida do paciente com quem ele estabeleça algum laço libidinal. Esse
material é reproduzido “não como lembrança, mas como ação” (FREUD, 1914/1996, op.
cit., p. 165). Nesta mensagem encontramos a expectativa, da parte de quem executa a ação,
de ser reconhecido como sujeito desejante, mesmo que essa ação e o desejo sejam
inconscientes. Aqui se encaixa o „ato de vingança‟ de Dora que escapou à percepção de
Freud.
Nessa perspectiva a repetição, via transferência, é da ordem da ação, no mesmo
sentido do ataque histérico e, em ambos há um claro endereçamento para o outro. A este
respeito remetemos à Carta 52 (Id., 1896/1996, op. cit.) na qual Freud afirma que o ataque
histérico não é uma descarga, mas uma ação, e como tal irá conservar a característica de
toda ação: um modo de reproduzir o prazer anterior (no caso da experiência primária de
6
No artigo Recordar, repetir e elaborar (1914/1996).
58
satisfação). O endereçamento que a repetição traz consigo tem “como alvo outra pessoa –
mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica, inesquecível, que nunca é
igualada” (Id., Ibid., p. 287), posteriormente. Cremos que Freud está se referindo ao
modelo na vivência de satisfação. A ação histérica encerra a narrativa de si que “se
produzia a partir de um corpo libidinizado, em última instância, de um corpo atravessado
pela linguagem” (HERZOG, 2011, p. 1).
O ataque histérico aparece como a atuação de uma fantasia, que durante o tratamento
causa um curto-circuito na palavra. Para melhor exemplificar vamos retomar o exemplo de
Elisabeth Von R. (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, op. cit.) que tinha uma paralisia na
perna direita, esse sintoma se manifestava no lugar de uma narrativa das cenas eróticas
fantasiadas. A esse respeito David-Ménard (2000, op. cit.) afirma que o ato na histeria
pode ser definido por um investimento imaginário no corpo. Freud (1915/2006, op. cit.) já
havia chamado a atenção para a erogeneidade do corpo como um todo: a capacidade de
substituir o registro anátomo-fisiológico pelo imaginário. De forma que qualquer parte do
corpo pode ser investida pela pulsão sexual. Nesse sentido a perna paralisada de Elisabeth
é transformada no lugar sobre o qual o prazer sexual é negado, justamente porque essa
descarga (o gozo) equivale à realização de algo que foi repudiado. Há, para tanto, uma
fusão “do corpo do sujeito com o real do objeto desejado. Visto que este investimento
duplo, representativo e motor, existe em toda percepção” (DAVID-MÉNARD, 2000, op.
cit., p. 99).
Conforme o exemplo do caso de Elisabeth Von R. citado acima, podemos observar
que a histérica apresenta o seu desejo como se ele estivesse concretamente na presença do
analista. O sintoma conversivo presentifica o objeto do desejo, em uma linguagem
imagético-corporal fantástica, no lugar de uma narrativa encarregada de representar o
objeto do seu desejo, a histérica „fala ou narra‟ seu desejo através do corpo. A partir daí,
conforme assinala Herzog (2011), podemos discernir uma linguagem verbal de uma
linguagem sensível. É importante ressaltar que essas formas de linguagem não se opõem –
embora a Darstellung esteja voltada mais para a questão da figurabilidade, mantém com a
Vorstellung uma relação de derivação.
A histérica tenta “advir, por um pensamento plástico e figurativo, a presença do
objeto de seu desejo e um gozo no qual nada haverá a ser representado, isto é, reconhecido
como ausente” (DAVID-MÉNARD, 2000, op. cit., p.102). Há uma relação com a imagem,
mais propriamente com a figurabilidade – no mesmo sentido como os pensamentos dos
59
sonhos sofrem uma transformação que os torna capazes de serem representados em
imagens (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). Dessa forma o sintoma histérico se
apresenta como uma metáfora da fusão entre o desejo e o objeto do desejo cristalizado em
um sintoma corporal. O sintoma corporal é a cristalização do desejo “como se, de repente,
as palavras cobrissem a coisa, um pedaço de corpo, cuja alteridade em relação às palavras
que o designam não aparecesse mais” (DAVID-MÉNARD, 2000, op. cit., p. 105). Esses
sintomas se repetem com a esperança de realizar o gozo que lhe escapou na relação
edipiana.
Os ataques histéricos são fantasias traduzidas para a esfera motora, “projetadas sobre
a motilidade e representadas por meio de mímica” (FREUD, 1909[1908]/1996). Tais
fantasias são inconscientes, contudo são da mesma natureza das fantasias que compõem os
sonhos. O sonho pode, então, substituir um ataque e explicá-lo, já que ambos
compartilham a mesma fantasia. Tal fantasia sofre distorções idênticas as que tornam o
sonho praticamente ininteligível, assim o ataque parece tão sem sentido quanto os sonhos.
É justamente por esse fator comum que o ataque pode ser submetido à mesma
interpretação realizada com os sonhos. Dentro desta perspectiva Freud(1914/1996, op. cit.)
nos alerta ser preciso lutar para manter na esfera psíquica todos os impulsos que o paciente
gostaria de dirigir para a esfera motora. A análise deve se beneficiar do material recalcado
que se apresenta pela atuação.
É neste contexto que a transferência passa a ser apresentada como inevitável no curso
do tratamento substituindo algo que deveria ser rememorado: “o paciente não diz que
recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez
disso, comporta-se dessa maneira para com o médico” (Id., Ibid., p.165). A repetição
aparece articulada à clínica e vinculada ao conceito de transferência, e toca na questão da
temporalidade, uma vez que passa a ser vista como reveladora de um passado que se repete
sob peso do afeto (GODFRIND, 1994). O paciente revive toda uma série de experiências,
mas não como referidas ao passado e sim ao presente, relacionando-as à pessoa do analista.
O não escutar, ou não perceber, a encenação de Dora trouxe um problema tanto
clínico, quanto teórico para Freud. É nesse obstáculo colocado pela repetição, que Freud vê
a transferência como uma possível aliada, desde que o analista realize duas tarefas:
“conseguir detectá-la em seu surgimento e ser capaz de traduzi-la para o paciente”
(HASKY, 2008, op. cit., p.32). Duas tarefas fundamentais, pois a cena transferencial está,
por um lado, em oposição ao trabalho de análise, que é fornecer material para ser
60
interpretado, o que denota a transferência como uma forma de resistência; e por outro,
como fonte de cura cabendo ao analista saber manejá-la; é nessa habilidade que reside “o
principal instrumento para transformar a repetição num motivo para recordar” (FREUD,
1914/1996, op. cit., p. 169).
Portanto, as proposições apresentadas até aqui corroboram a idéia que a repetição via
transferência é a repetição do sexual. O recalcado que retorna é uma manifestação das
moções sexuais barradas por gerarem uma tensão entre o consciente e o inconsciente, é por
isso que Freud (1905/1996, op. cit.) afirma que “os sintomas são a atividade sexual dos
neuróticos” (p. 155), ou seja, os sintomas neuróticos são baseados nas exigências das
pulsões sexuais e do protesto do eu em relação a elas.
Inicialmente pontuamos que a psicanálise foi fundada na arte da interpretação,
passando a uma análise e combate das resistências e “desembocando, finalmente, na
questão da repetição. Essa se tornou a matéria-prima, por excelência do ato de
psicanalisar” (BIRMAN, 1995, op. cit., p. 36). A repetição serve à análise mediante um
manejo eficaz da transferência, é essa „mise en scène‟ que permite trazer à tona o material
reprimido, abrindo a possibilidade de um novo confronto entre o eu e a libido, mas desta
vez mediado pelo analista. Assim, “trazendo a libido de volta da fantasia para a realidade, a
transferência fortalece a pulsão sexual, permitindo-lhes vencer as inibições que a
condenavam à prisão perpétua do infantilismo e imaturidade” (FREUD, 1912, op. cit.,
p.243).
II.4. A Repetição e a Rememoração
Em “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1996, op. cit.) é, finalmente,
destacada a presença no psiquismo de uma repetição, apontada como retorno do recalcado,
indicando, consequentemente, a volta de situações que não envolvem prazer para o eu.
Antes de prosseguir, cabe marcar uma precisão quanto ao conceito de recalque: a
satisfação pulsional é sempre prazerosa, porque significa uma baixa da tensão energética
no aparato (descarga); contudo ela pode ser incompatível com outras exigências, daí se faz
necessário submeter o representante pulsional ao recalque (barrando sua descarga), pois
acabaria por gerar prazer em um lugar e desprazer em outro. Nessa lógica a condição para
que ocorra o recalcamento é que “a força que causa o desprazer se torne mais poderosa do
61
que aquela que produz, a partir da satisfação pulsional, o prazer” (Id., 1915/2006, op. cit.,
p. 178).
Assim durante o curso das análises são repetidas situações aflitivas, como lembra
Mezan (2006): o paciente repete um rol de desgraças, desde a situação edipiana que
sucumbe aos duros golpes da realidade, inaugurando a perda de amor exclusiva dos pais
com o nascimento de um irmão, até as exigências da educação e da autoridade
disciplinadora. Freud (1914/1996, op. cit.) alega nesta linha de pensamento, que se repete
protótipos infantis, e “tudo que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua
personalidade manifesta – suas inibições, atitudes inúteis e seus traços patológicos de
caráter” (p. 165).
Tendo em vista essa questão M‟Uzan (1984) ressalta que o sujeito repete escolhas
infelizes, que sem dúvida escapam à sua vontade. “Transfere com teimosia seu passado,
talvez com a obscura esperança de permitir a seus conflitos internos encontrar o melhor
desfecho possível” (Id., Ibid., p.133)7. Não que esse desfecho aponte para uma
positividade, mas no sentido da realização do desejo que na maioria das vezes é
incompatível com o eu.
O neurótico, portanto, repete traços infantis concernentes à rivalidade com o pai que
detém os direitos sexuais sobre a mãe; é na fase do complexo de Édipo que a criança sofre
por não dispor de meios reais para realizar suas fantasias. Todos esses desejos incestuosos
são recalcados posteriormente, mas ameaçam retornar no momento em que o indivíduo
está apto sexualmente. Nesse sentido a repetição das fantasias edípicas é um fantasma do
passado que atormenta o indivíduo no presente. Assim, sob ameaça do retorno do
recalcado, se esconde uma verdade duplamente incômoda: “porque redobram a estrutura
inicial do Édipo, e este, por sua vez, repete o ato do assassínio primitivo” (ClémentBackés, 1971, p. 223).
Freud (1909[1908]/1996) criou a expressão „romance familiar‟ para designar
fantasias fundamentadas no complexo de Édipo. Constatou a presença destas fantasias,
tecidas como uma espécie de romance mítico, especialmente nos neuróticos. Dentro dessa
discussão se encaixa o mito freudiano da gênese da humanidade que traz uma contribuição
importante à questão da repetição e esclarecimentos acerca do Complexo de Édipo.
Segundo esse mito (Id., 1912[1912-13]/1996) o pai da horda primeva era um déspota
absoluto, possuía todas as mulheres do bando e, não hesitava em matar ou expulsar os
7
Tradução nossa.
62
filhos, considerados rivais. Porém, os filhos, um dia, uniram-se e mataram o pai
devorando-o em seguida. Incorporar ou devorar o pai se deve ao fato dele ser objeto tanto
de ódio, devido às restrições e castigos impostos, quanto de amor (e ideal) pela sua
onipotência. Devido a essa ambivalência de sentimentos surge o remorso, como
consequência da passagem ao ato (assassinato). O remorso leva os irmãos a se suportarem
mutuamente, unindo-se em um clã, regido pelas prescrições da lei totêmica, que tem a
finalidade de impedir a repetição de um ato agressivo semelhante ao que foi dirigido ao
pai. Do perigo representado pela passagem ao ato inicia-se um cerceamento dos impulsos
pulsionais para que a vida em conjunto seja garantida.
De acordo com Clément-Backés (1971, op. cit.), depois da narração freudiana sobre
a origem da vida em grupo não há como deixar de usar uma linguagem mítica sobre as
origens do indivíduo: “Freud introduz uma ruptura na continuidade temporal e na clássica
lógica histórica do antes e do depois; na origem havia o „já‟(ato). E a repetição é originária.
É neste ponto que devemos efetuar a passagem desse esquema coletivo à aplicação
individual” (Id., Ibid., p. 222). Sobre isso no artigo Psicologia das massas e a análise do
ego, Freud (1921/1996) afirma que o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada
indivíduo, as prescrições totêmicas são a garantia da não-repetição da passagem ao ato
original, porque a “horda primeva pode mais uma vez surgir de qualquer reunião fortuita”
(Id., Ibid., p. 134); disso podemos extrair que a “psicologia individual (...) deve ser tão
antiga quanto a psicologia de grupo” (loc. cit.).
Partindo dessas indicações notamos que Freud une o destino individual à repetição
de um destino coletivo anterior. A neurose repete um ato praticado coletivamente, mas
repete-o imaginariamente em cada indivíduo. Representando um conflito fundamental na
sociedade ocidental civilizada, o mito de Édipo encontra-se no seio da experiência
analítica, pois é através da rivalidade, marcada pela ambivalência com o pai que o sujeito é
ligado a um valor simbólico essencial: a lei. Esta imagem do pai, como representante da
lei, incide sobre a figura do analista.
Quando o analista é tomado como objeto de amor ou ódio, na neurose de
transferência, passa a ser inserido na atualização de clichês, indicando uma forma do
retorno do recalcado. Desta forma a transferência pode ser compreendida como um
fragmento de repetição. Donnet (1982) destaca que esta fórmula resume a relação circular
que define a transferência como um fragmento de repetição, circunscrito à pessoa do
médico, e a repetição como uma transferência massiva onde a “temporalidade (do passado
63
sobre o presente) se soma ao risco de um esfacelamento de limites entre dentro e fora da
sessão, vindo a redobrar a exteriorização na sessão do espaço psíquico do analisante” (Id.,
Ibid., p. 962)8.
É na arte de interpretar e no manejo do material repetido que consiste a manutenção
destes limites. Ao analista, cabe a tarefa de empenhar-se em conduzir para o âmbito da
recordação aquilo que se esforça para emergir no campo da repetição. Com a finalidade de
levantar o material recalcado é necessário que se force ao máximo a recordação e permita,
ao paciente, o mínimo de repetição.
A repetição é definida como contrária ao saber, ela é da ordem do „acting out‟;
encontrando-se no lugar da palavra e, por isso “evoca a imagem de uma forma de
resistência oposta à progressão da análise” (GODFRIND, 1994, op. cit., p. 501). O
paciente, na verdade, repete sob as condições da resistência: é ela que determina a
sequência do material que deve ser repetido. A questão da resistência traz um problema,
pois quem resiste é o eu, mas essa resistência parece ser inconsciente; problema que será
respondido apenas em 1923 no artigo O Ego e o Id. Entretanto, essa passagem coloca,
definitivamente, rememoração e repetição em lados opostos, sendo que o trabalho analítico
deve tentar transformar o que é repetido em um motivo para recordar,
(...) é no manejo da transferência que encontramos o principal meio de barrar a repetição e transformála numa razão para lembrar. Tomamos essa compulsão anódina, ou mesmo útil, limitando seus
direitos, não permitindo que ela subsista num domínio circunscrito. Facultamos seu acesso à
transferência, essa espécie de arena onde lhe será permitido manifestar-se com liberdade quase
completa, e onde lhe pediremos que nos revele tudo o que se dissimula de patogênico no psiquismo do
sujeito (FREUD , 1914/1996, op. cit., p. 169).
Freud começa a notar a função terapêutica da transferência e como o analista poderá
servir-se dela como o principal instrumento de cura no processo analítico. A análise deve
se beneficiar do material recalcado, “criando uma região intermediária entre a doença e a
vida real, através da qual a transição de uma para outra é efetuada” (Id., ibid., p. 170). A
neurose de transferência é essa „região intermediária‟ onde a batalha é travada contra as
forças da resistência. O que parece prejudicial na repetição é o fato do paciente ignorar
todas as possíveis relações entre os fragmentos repetidos; todavia essa é a especificidade
de toda repetição. Esses fragmentos estão isolados (recalcados) da história de vida do
indivíduo porque são motivo de desprazer para o eu, por isso o paciente não consegue dar
um conteúdo semântico adequado ou uma localização espacial dentro de sua história
particular. O analista, partindo do que surgiu como material na análise, através do manejo
8
Tradução nossa.
64
transferencial, reúne vários desses fragmentos em um todo organizado, construindo um
trabalho interpretativo e, com isso, possibilitando a rememoração.
Nesse sentido Prata (1992, op. cit.) observa que a elaboração não trabalha
necessariamente em oposição à repetição. A elaboração seria uma repetição modificada
pelo trabalho interpretativo, ou seja, uma perlaboração. Perlaborar é um processo, vivido
em análise, pelo qual o paciente supera as resistências promovidas durante esse processo e
consegue integrar certos elementos recalcados, livrando-se do mecanismo da repetição. O
que parece ser o grande desafio do trabalho analítico é promover essa articulação, pois a
repetição está, por um lado, ligada às resistências do tratamento e, por outro lado, é a via
que permite acesso ao material inconsciente.
O caso Dora (FREUD, 1901[1905]/1996, op. cit.), sem dúvidas, aponta o impacto
que a repetição causou na clínica psicanalítica. Contudo só no artigo “Recordar, repetir e
elaborar” (Id., 1914/1996, op. cit.) Freud desenvolve esse tema e reconhece que rememorar
em atos não é igual a rememorar em palavras. A propósito disso, Assoun (1994) argumenta
que o tratamento confronta justamente esse poder da repetição, no sentido de contrariar e
„demonizar‟ o processo de rememoração. Nestes termos, quanto mais o paciente repete,
menos ele pode recordar. Frente a estas observações uma pergunta se coloca: como o
analista irá contrapor a rememoração de palavras à de atos? Segundo Freud através do
manejo transferencial seria possível empregar “algo que o paciente deseja descarregar em
atos seja utilizado através do trabalho do recordar” (FREUD, 1914/1996, op. cit., p. 166).
Contudo a discussão vai além, porque há certos fenômenos que não parecem ligados
a uma memória representacional. Tais fenômenos indicam um limite do processo analítico
centrado na interpretação de sintomas, uma vez que os sintomas se configuram como a
expressão de representações pulsionais barradas de efetuar a descarga via a consciência.
Somado a isso a presença de uma resistência inconsciente no eu começa a colocar
problemas na concepção de aparelho psíquico proposta por Freud. Vale lembrar que o
recalque é o fundamento no qual está assentado toda argumentação teórica freudiana sobre
as psiconeuroses na primeira tópica. A indicação de algo que esteja fora desse contexto
amplia a visão de um aparato psíquico funcionando de acordo com o princípio de prazer.
II.5. A Pulsão e a repetição
65
Esse problema começa a ser discutido no artigo O Inconsciente (Id., 1915/1996) a
respeito da representação-coisa e representação-palavra; a passagem do material
inconsciente para o consciente implica que a representação-palavra seja acrescida à
representação-coisa. A representação mental de um objeto passa a corresponder a
conjugação dessas duas formas de representações, ou seja, “as representações de objeto
tentam referir-se àquilo que se torna objeto para a consciência” (ARNÃO, 2008, p. 198).
Ao tratar dessa questão estamos entrando no campo da pulsão. Toda a pulsão é
representada pelo chamado representante – representação, eles são seus agentes
representantes e não a própria pulsão. Creio ser necessário, neste ponto, uma maior
precisão acerca da terminologia utilizada por Freud a esse respeito. Para isso nos apoiamos
em Hanns (1999) que fez um rigoroso estudo sobre a teoria pulsional, a partir da língua
alemã, na obra freudiana.
Freud ao discutir sobre pulsão e sua circulação na esfera psíquica como
representação, explica Hanns (Ibid.), se refere a três tipos de representações: 1º – Refere-se
ao verbo „Darstellen‟, que significa: “dar uma forma captável e mostrar” (Id., Ibid., p. 79).
Tem a conotação de produzir uma imagem para dar sentido a algo, o que envolve a
possibilidade de uma condensação de várias idéias em uma imagem, como na
representação pela figurabilidade. 2º – Refere-se a „Vertretung‟, tendo o sentido de estar no
lugar de outrem, como se fosse delegado a representar alguém ou alguma coisa. 3º –
Refere-se a „Vorstellung‟, significando reativar internamente uma imagem já disponível, a
pulsão aparece na psique sob a forma de “representação – Vorstellung (idéia, imagem) de
sensações (...); É na forma de „Bild‟ (imagem) que a pulsão emana da fisiologia pulsional.
A pulsão provoca uma excitação cortical que é percebida como fenômeno psíquico de
imagem e afeto” (Id., Ibid., p. 82).
Portanto, a pulsão é representada por meio de “representações internas, reproduções
mentais, são imagens guardadas na memória que reproduzem objetos ou ações as quais a
pulsão se liga” (Id., ibid., p. 83). Tais representações formam uma malha, como a rede
neuronal do Projeto de 1895, por exemplo, de ideias e imagens que podem se relacionar.
Esse conjunto de ideias e imagens formam a memória, que dispõe de informações sobre os
afetos (desprazer /prazer) produzidos por cada estímulo vivenciado. É essa trama de
representações que compõe o aparelho psíquico, “matriz através da qual o sujeito
decodifica os estímulos internos e externos que lhe chega” (Id., ibid., p. 84).
66
O aparelho psíquico é regido por dois tipos diferentes de processos: primário e
secundário. Imagens e afetos fazem parte do primeiro e, as palavras do segundo. No
processo primário a fonte pulsional, somática, envia estímulos que se manifestam no
sujeito e coincidem com vivências afetivas (prazer e desprazer) associando-se a certas
imagens fugidias; lembremos como exemplo, da vivência de satisfação, nela o bebê associa
a sensação de satisfação à imagem do seio. Portanto, no processo primário o estímulo
pulsional se liga a um esboço de imagem que é qualificada afetivamente (do seio que
aplacou a fome). Esse esboço de imagem será ativado quando um novo estímulo surgir,
contudo, ela não coincidirá com a primeira (porque os ângulos referentes à visão do seio
não serão iguais), disto formar-se-á uma cadeia de representações que se conectam à
imagem do objeto gratificante, formando a representação – coisa.
O processo primário se caracteriza por uma disposição imediata a sair do estado de
desprazer, proveniente do acúmulo de excitações pulsionais, para isso tende a uma
descarga através de ações motoras e responde ao princípio de prazer. No geral essas ações
tendem a falhar na tarefa de obter a satisfação pulsional, dado que é preciso uma
complexificação da ação para satisfazê-las. Entretanto o processo primário procura
descarregar a excitação baseado em algumas experiências, contando para isso com uma
rede de imagens difusas e sensações afetivas usadas para o organismo não sucumbir à
invasão pulsional.
É a partir do processo secundário que as pulsões assumem formas mais estáveis no
campo da representação, sendo fixadas a uma imagem específica (correspondendo à ideia
de um objeto externo), e podendo advir em palavras. O processo secundário permitirá,
devido a capacidade de ligação, certo acúmulo energético. Nele há uma maior
complexidade nos fatores que regem os estímulos pulsionais, principalmente a aptidão de
reter e ligar a energia destes estímulos e direcioná-los para uma ação específica. Tal
habilidade possibilitará ultrapassar as relações entre imagens fugidias e afetos do processo
primário, para realizar operações envolvendo o pensamento, simbolização, imaginação,
atenção, memória entre outras; com a finalidade de melhor conduzir as ações no mundo e
efetuar a descarga de uma maneira mais eficiente, levando em conta as especificidades do
meio em que se vive. Nesse ponto a realidade tem um papel importante nas atividades do
processo secundário, já no primário ela não é levada em conta, deseja-se apenas a
satisfação a qualquer custo (HANNS, Id.).
67
Ligar o estímulo pulsional a uma representação permite que um objeto visado como
veículo de satisfação possa ser identificado no mundo externo e, também possa ser
mentalmente fantasiado (imaginação) caso o objeto se torne impossível de atingir. Isto
denota uma maior flexibilidade e tolerância em relação ao acúmulo de estímulos
pulsionais, que pressionam (Drang) na direção da descarga. “Deste modo, as
imagens/representações (Vorstellungen) que ficam estocadas na psique são representantes
(Vertreter) tanto das pulsões e dos afetos a ela associados, como também estas imagens são
representantes (Vertreter) dos objetos externos” (Id., Ibid., p. 97).
Quando o recalque rejeita uma representação ele recusa a tradução da representação
em palavras, “pois essas palavras devem continuar associadas ao objeto. É a representação
não revestida de palavras ou o ato psíquico que não esteja sobreinvestido que permanecerá
como material recalcado no Ics” (FREUD, 1915/2006, p. 49). Dessa forma Freud procura
mostrar como a repetição vai sendo circunscrita, mediante o trabalho analítico, no plano da
simbolização; ou seja, é preciso trazer para a esfera verbal o que o paciente insiste em
apresentar em atos, nisso consiste manejar o material disposto em análise.
Essas pontuações parecem iluminar, segundo Assoun (1994, op. cit.), esse momento
dramático onde o analista, tomado na torrente da repetição extrai sua energia do cenário
montado pelo paciente, em vez de deixar represar novamente o que é atuado, pois “ter-seia trazido o reprimido à consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez” (FREUD,
1915/2006, op. cit., p. 181). O analista deixa-se levar por esse fluxo, agora contido e
direcionado na arena transferencial para chegar até o conteúdo recalcado e possibilitar um
trabalho de perlaboração do paciente.
Contudo a resistência acabará por revelar a ambivalência de sentimentos relativos ao
mesmo objeto, traduzidos através da transferência positiva e negativa, tornando o processo
analítico tortuoso. Somado a essa dificuldade, temos as análises prolongadas que não se
resolviam, casos nos quais uma resistência feroz paralisava o processo. Havia também
casos nos quais a repetição de um mesmo destino trágico se impunha e interrompia o
tratamento. Essas dificuldades levam Freud a abandonar sua confiança excessiva no
recordar, “se uma pessoa se lembra de um fato através da memória, ele geralmente está
dissociado para evitar a repetição de sua natureza traumática” (GREEN, 2007, p.134).
Essa formulação aponta, conforme ressalta Birman (2009), um limite ao método
interpretativo, justamente porque a repetição nesses casos difíceis se mostra muito mais
como da ordem de uma compulsão, excedendo a questão do retorno do recalcado. Portanto,
68
seria como uma espécie de compulsão à repetição “que os limites do inconsciente e do
deciframento seriam então evidenciados, pelas impossibilidades reais que foram
encontradas para a rememoração na experiência psicanalítica” (Id., Ibid., p. 122-23).
Mesmo diante dessas adversidades Freud (1914/1996, op. cit.) procura, ainda,
salvaguardar a teoria centrada no modelo da circulação das representações no aparelho
psíquico. Entretanto, como nomeia Assoun (1994, op. cit.), frente a esse “furor
repetitandi” (p. 350), perigo mortal para a rememoração, o pensamento freudiano volta-se,
cada vez mais, para a questão que envolve a intensidade pulsional. A idéia de uma força
pulsional como „Drang‟ (pressão), significa que a pulsão é pensada e equiparada a uma
tensão. O acúmulo do estímulo pulsional produz essa „Drang‟, cuja tendência é causar
incômodo e desprazer. Produzindo um estado de tensão que pressiona no sentido da
descarga, é sob esta forma de pressão que a pulsão toma uma forma psíquica.
A partir do artigo “Pulsões e seus destinos” (1915/2006, op. cit.), Freud começa a
complexificar a idéia de conflito psíquico entendido como embate entre instâncias
psíquicas, priorizando o próprio advento do aparato psíquico. A principal característica da
pulsão é ser uma força constante, uma „Konstant Kraft‟. Isso exige um incessante
investimento para que se domine seu impacto sobre o psiquismo. Para tanto é necessário
empreender um esforço defensivo contra essa força, é o que Freud (Ibid.) nos indica:
“abordemos os destinos das pulsões relacionando-os com as forças motivacionais que se
contrapõem ao avanço das pulsões, o que nos permite tratar tais destinos como se fossem
modos de defesa contra as pulsões” (p. 152). Essa força constante impõe ao indivíduo que
seja dado destinos para apaziguá-la.
Portanto, o artigo “Pulsões e seus destinos” (Id., Ibid.) encerra uma passagem teórica
fundamental do discurso freudiano, que o levará inevitavelmente a reorganizar a primeira
teoria das pulsões em uma segunda tópica. Essa revisão foi devida, principalmente, a
razões de ordem clínica, motivadas pelo fenômeno da repetição. O fato de na segunda
tópica o polo pulsional estar presente no registro do Id corrobora essa visão (assim como o
eu será uma parte modificada do Id) totalmente diferente da primeira teoria das pulsões, a
qual se centrava no modelo da circulação das representações e das intensidades estarem na
exterioridade do aparato psíquico (Birman, 1999, op. cit.).
Levando em conta esse novo aspecto relacionado à pulsão que se apresenta no
horizonte de 1915, notamos uma tendência do pulsional à repetição. Essa tendência aponta
para uma obediência do eu ao circuito pulsional que em algumas ocasiões, como nas
69
compulsões, parece não levar em conta o princípio de prazer. A repetição relacionada às
marcas psíquicas já apontava um tipo de repetição que não inclui a possibilidade de um
resgate da narrativa verbal, o que indica outra via de funcionamento do aparelho psíquico
fora do princípio de prazer. O traumático deixa de ser um privilégio de algo vindo do
exterior, local das grandes quantidades, e passa a incluir um perigo interior, também,
referido ao excesso pulsional. Para que o aparelho psíquico possa se defender de algo
interno esse excesso ganhará características de exterioridade, projetando-os sobre os
objetos, como no jogo do Fort-Da (FREUD, 1920/2006, op. cit) e nos rituais compulsivos
característicos da neurose obsessiva, conforme vamos desenvolver no próximo tópico.
II.6. Passagem ao ato e os limites do princípio de prazer
A neurose obsessiva (Zwangsneurose) chama atenção por acarretar uma imperiosa
compulsão. Assoun (1994, op. cit.) levanta o problema central da noção de compulsão –
Zwang (coação irresistível, necessidade, obrigação constrangimento, compulsão). Essa
palavra na língua alemã significa violência, tanto corporal quanto psíquica, caracterizando
ainda uma necessidade ou o exercício de uma pressão sobre algo ou alguém. Essa
característica confere ao termo um caráter avassalador que se impõe à vontade do sujeito e
que ele não têm forças para evitar: “isto implica enfim – para não sair do campo semântico
usual do termo – a idéia de um impulso poderoso, o que liga a noção de pulsão” (Id., Ibid.,
p. 337). Como vimos a pulsão é caracterizada como uma força constante, insistente e
imperiosa.
Freud (1907/1996), no artigo “Atos obsessivos e práticas religiosas”, ao estudar os
rituais obsessivos, observa que o neurótico obsessivo necessita cumprir o ato ritual, pois
qualquer tentativa de se desviar desta compulsão acarreta uma crise de angústia
insuportável. Queremos marcar aqui o caráter imperativo, no sentido de uma obrigação em
realizar determinados rituais sob a pena de ser punido com uma crise de angústia. Os
rituais surgem para o obsessivo sob a forma de uma compulsão funcionando como “um ato
de defesa ou de segurança, uma medida protetora” (Id., Ibid., p. 114). A partir disso Freud
(Ibid.) ressalta que o obsessivo sofre de compulsões e proibições (nos rituais há uma
tendência em seguir determinadas coordenadas em detrimento de outras) e se comporta
como estando dominado por um sentimento de culpa, do qual nada sabe. Tal sentimento de
culpa origina-se de antigos eventos edípicos, uma vez que neste tipo de neurose “há
70
sempre a repressão de uma moção pulsional (um componente da pulsão sexual) presente na
constituição do sujeito e que pode expressar-se durante algum tempo em sua infância,
sucumbindo posteriormente à repressão” (loc. cit.).
Nesse sentido Assoun (1994, op. cit.) afirma que estamos no cerne da Zwang em ato:
“uma defesa contra a tentação (de um perigo passado ligado a uma satisfação ilícita) e uma
medida de proteção contra o risco futuro de uma punição ou de uma desgraça” (p. 342) 9. A
representação pulsional reprimida é sentida pelo obsessivo como uma tentação, decorrendo
daí a ansiedade em adquirir controle sobre o futuro. O recalque na neurose obsessiva só
tem êxito parcial, pois através dos rituais interminavelmente atualizados notamos a
constante pressão do pulsional. A compulsão obsessiva é produzida como defesa contra o
perigo de castração, mais especificamente contra um pai castrador, que em algum
momento simbolizou um perigo real para o sujeito; esse temor é o resultado dos desejos
referentes ao tempo edípico.
Eliade (1969) em seu ensaio sobre as concepções fundamentais das sociedades
arcaicas realiza um estudo aprofundado sobre os mitos do eterno retorno, e traz um
exemplo que nos pode ser útil no entendimento dos rituais obsessivos. No antigo Oriente, o
povo da Babilônia realizava anualmente, com a máxima seriedade, rituais sagrados em
homenagem às divindades agrárias, eles acreditavam que a destruição de uma colheita, o
saque das plantações, ou qualquer calamidade que se abatesse sobre a comunidade decorria
de alguma falha no ritual (seja uma falha comunitária ou de apenas um indivíduo). Como
nos rituais obsessivos toda falha em sua realização era punida com severos sortilégios.
Os rituais comportam também, segundo Eliade (Ibid.), uma conotação de
culpabilidade, expressa por uma falha (a mínima que seja), que precisa ser expiada
repetidamente através de rituais para apaziguar a fúria de uma divindade. Fato que
demonstra uma necessidade do homem (não só do primitivo, mas o neurótico obsessivo se
encaixa aqui) em se libertar de uma lembrança (edípica no caso das neuroses) de uma falta,
que precisa ser repetidamente expiada e mantida controlada através dos rituais.
Nessa acepção Freud (1914/1996, op. cit.) afirma que o paciente age de maneira
agressiva com o analista no lugar de lembrar-se de desejos infantis referidos ao Édipo. Tal
fato remete a uma culpabilidade primitiva referente ao desejo ambivalente de tomar o lugar
do pai, detentor dos direitos sexuais sobre a mãe e ser punido por esse desejo. O „Agierem‟
é uma teatralização, uma representação, destes conflitos diante do analista. Para isso o
9
Tradução nossa.
71
paciente cria uma narrativa onde encena o seu desejo; o „Agierem‟, conforme pontua
Assoun (1985), possibilitará, mediante o auxílio do analista, o „Abreagierem‟. Essa
encenação agida contém um gérmen de histericização da relação analítica, descrito por
Freud como o amor de transferência. É por meio do manejo dessa cena que se abre ao
analista a possibilidade de solucionar os conflitos em jogo.
Particularmente na neurose obsessiva o pensamento pode se constituir como um
substituto do ato, pensar sobre algo equivale à ação real, para isso é preciso uma série de
rituais de expiação e evitação. Por esse motivo, explica Ferraz (2005), se o pensamento
pode ser tomado como substituto do ato, o obsessivo é o tipo de paciente que não atua, ou
atua muito pouco. “Ele vive à margem do ato, dominado pelo processo do pensamento.
Seu ato seria, então, um ato psíquico, estruturalmente diferente do acting-out” (Id., Ibid., p.
94). Tocamos neste ponto para evidenciar que a passagem ao ato pressupõe uma
insuficiência do processo de pensar, o que vemos nos casos envolvendo uma passagem ao
ato é um agir no qual predomina um caráter impulsivo.
No caso de um neurótico obsessivo há um compromisso entre o desejo e a censura,
característica das neuroses de transferência, de forma que o ato obsessivo só acontece
mediante uma conciliação, onde o sintoma que deveria afastar do eu o desejo proibido é a
própria realização disfarçada deste desejo. Em verdade o ato obsessivo é produzido como
uma defesa devido à ambivalência de sentimentos referentes ao pai. Por isso a atuação se
manifesta no tratamento por uma repetição que ocupa o lugar da lembrança.
Com essas considerações queremos destacar a presença de uma passagem ao ato,
que difere do „acting out’. O „acting out‟ se refere a uma atuação que substitui a narração,
e para isso há uma encenação na qual o terapeuta se acha inserido devido ao vínculo
transferencial. Entretanto, a passagem ao ato parece não conter qualquer ligação com a
situação transferencial, sendo caracterizada como uma pura descarga sem representação.
Neste sentido a passagem ao ato coloca um obstáculo para o dispositivo clínico uma vez
que a técnica analítica se movimenta dentro da linguagem, é pela palavra que chegamos à
representação barrada, e neste caso o próprio poder das palavras é colocado em questão.
Baseado nisso o assassinato do pai da horda primeva pode ser visto como uma
passagem ao ato, na qual o desejo se transforma em ato sem mediação do eu, não há um
compromisso entre instâncias, mas uma pura descarga. As neuroses de transferência se
caracterizam, sobretudo, por uma inibição da ação: devido ao papel preponderante da
fantasia, “o pensamento constitui um substituto completo do ato” (FREUD, 1913[1912-
72
13]/1996, op. cit., p. 162). Contudo para os irmãos da horda primeva, expulsos pelo pai
opressor, passar ao ato constituía um substituto do pensamento, o que leva Freud a usar
uma frase de Goethe para afirmar que “no princípio foi o ato” (Loc. cit.), foi a descarga e
não o verbo. Vislumbra-se aí a presença de uma força que escapa ao domínio do
psiquismo.
O sujeito não pode furtar-se do acúmulo de excitação, ele é forçado, então, a
expulsar a quantidade para o exterior, sobre algum objeto, a fim de evitar, com isso, a
angústia implacável. Somos “escravos da quantidade”, como afirma M‟Uzan (1984, op.
cit.). Dado a inesgotável produção de estímulos pulsionais, somos obrigados a dar um
destino para esta quantidade, caso contrário ela se transforma em nosso inferno particular.
Isso denota um certo assujeitamento frente às forças pulsionais. Nas passagens ao ato o
sujeito é impelido a transformar o desejo em ato como se estivesse dominado pelas forças
em jogo, quando se passa ao ato “a descarga é total, é um retorno ao grau zero de
excitação, em nenhum momento o princípio de prazer interveio” (Id., Ibid., p. 134)10.
M‟Uzan (Ibid.) usa como exemplo, para ilustrar a presença de uma compulsão à
repetição nas passagens ao ato, o caso de um assassino sádico, no qual uma pressão
incontrolável se exercia sobre ele fazendo-o cometer vários crimes. Após ser preso é
questionado pelo júri sobre os motivos que o levaram a cometer atos tão brutais, ele grita
suplicante: “Eu não podia agir de outra forma” (Id., Ibid., p. 129)11. O excesso de excitação
flagrado nas passagens ao ato conduz não à neurose, onde um conflito se apresenta como
um enigma marcado pelas lacunas da memória. A passagem ao ato remete a uma carência
de sentido e, portanto, não há representação, o que se nota é um curto-circuito da
representação e, por conseguinte, um limite ao método interpretativo proposto por Freud.
Ferenczi (1931/1997) nos traz um pouco mais de luz sobre essa questão. Para
avançar em problemas clínicos conhecidos como os „casos difíceis‟, precisou modificar a
técnica proposta na clínica freudiana tradicional, associando sua proposta da técnica ativa à
de relaxamento e neocatarse. Este autor achava inadmissível contentar-se com fórmulas
como: “a resistência do paciente é insuperável, ou o narcisismo não permite aprofundar
mais este caso, ou a resignação fatalista em face do chamado estancamento de um caso”
(Id., Ibid., p. 71).
10
11
Tradução nossa.
Tradução nossa.
73
Durante o tratamento de uma paciente histérica cuja análise encontrava-se estancada,
Ferenczi (1919/1997) estranhou o repetido comentário “sensações por baixo” (p. 2) sempre
evocado durante as fantasias amorosas nas quais ele era o objeto de interesse. Então notou
o modo como ela se deitava no divã, conservando as pernas cruzadas, esta posição
possibilitava à paciente uma disfarçada atitude masturbatória, atitude a qual a paciente
negou veementemente após ser informada.
Utilizando a técnica ativa o psicanalista conseguiu coibir essa passagem ao ato,
caracterizada como “sintomas histéricos corporais” (Id., 1930/1997, p.62). Tais sintomas
na verdade escondiam “símbolos mnêmicos corporais” (Loc. cit.), no sentido de
impressões corporais não inscritas como representações psíquicas, assim a paciente quando
indagada sobre tal ato suspirava em vão por lembranças. Temos aqui algo que não pode ser
evocado por meio de lembranças, no qual o método da associação livre mostrava-se falho.
Foi devido à perspicácia de Ferenczi (Ibid.) ao notar a passagem ao ato da paciente que lhe
permitia voltar o olhar para algo que não possuía representação.
A paciente ao encontrar a via do ato obstruída para repetir a descarga, passou a
sofrer de uma agitação física e psíquica quase intolerável. Ferenczi (Ibid.) não lhe permitia
ficar na mesma posição por muito tempo, fazendo-a mudar de lugar a todo o momento. Foi
aí que suas fantasias emergiram, na verdade fragmentos desconexos de lembranças há
muito tempo enterradas que se agruparam em torno de certos eventos da infância,
relacionados ao Édipo e, forneceram assim as circunstâncias traumáticas.
Foi com a nova regra analítica, a técnica ativa, que ele pode observar esses
fragmentos traumáticos, do passado, não simbolizados. Nesse caso onde foi notada uma
ausência da capacidade de simbolização, poderia tratar-se de uma defesa mais radical: a
clivagem. A clivagem diz respeito a uma parte da personalidade apartada por efeito de um
choque, que sobrevive em segredo e se esforça por manifestar-se, dado que conserva sua
força quantitativa.
A dificuldade em usar a regra fundamental em determinados casos fez com que
Ferenczi (1931/1997, op. cit.) ousasse novas modalidades de intervenções clínicas, com a
finalidade de efetivar avanços terapêuticos. Acreditava que precisava fornecer meios
através dos quais o paciente pudesse “desenvolver mais amplamente a sua tendência à
repetição, tendência que luta por manifestar-se” (Id., Ibid., p. 72). A partir disso
entendemos uma compulsão à repetição de forma diferente da repetição do recalcado, “o
que se desenrola aí diante de nossos olhos é a reprodução da agonia psíquica e física que
74
acarreta uma dor incompreensível e insuportável” (Id., Ibid., p. 79). O paciente age a dor,
em um sentido diferente do „acting out‟ porque há uma impossibilidade de representação,
age algo que não faz e nunca fez parte de uma cadeia de representações, mas que se refere
a um excesso pulsional, que não pode ser mediado pelo eu, subsistindo como um „corpo
estranho‟ no aparato psíquico.
Khan (1971[1977]) torna a diferença entre esses dois tipos de repetição (acting out e
passagem ao ato) mais clara explicando: no acting out o reprimido é sempre perceptível
através da sua ausência, assinalada pelas lacunas da memória e um contra-investimento
egóico que se opõe ao reprimido, caracterizando um conflito entre instâncias psíquicas. No
caso da passagem ao ato há uma dissociação, e nesse sentido o que foi clivado do eu
devido ao seu caráter excessivo e traumático, não possui essa evidência clínica (lacunas na
memória); nestes casos a pessoa não pode estabelecer contato de uma parte com a outra,
havendo uma parte que se encontra incomunicável. “É nessa medida que elas não
transmitem nenhum sentido a ser interpretado, mas solicitam sentido, impõem ao analista
uma atividade de fazer sentido” (FIGUEIREDO, 2003, p. 21), porque é dentro do campo
da palavra que a “coisa” ganha significado.
A questão da clivagem na obra de Freud é uma construção tardia, tendo lugar como
consequência da postulação do segundo dualismo pulsional e a nova configuração do
trauma. Muito embora ele tenha se referido a dissociação nos Estudos sobre a histeria
(FREUD & BREUER, 1893-4[1895]/1996, op. cit.), acabou por deixá-la de lado ao se
preocupar com o conflito interno, a sexualidade infantil e os mecanismos de defesa. No
artigo “A divisão do ego no processo de defesa” (1940[1938]/1996) Freud fica
impressionado com o fato do eu dos pacientes em análise comportar-se de maneira notável
em situações específicas de pressão, principalmente em situações que possam produzir
“um tremendo efeito de susto”(Id., Ibid., p. 294). Difere, portanto, da neurose, porque no
conflito neurótico o paciente sabe da existência dos dois lados em jogo, “o não saber do
paciente (...) seria, de fato, um não querer saber – um não querer que poderia, em maior ou
menor medida, ser consciente” (FREUD & BREUER, 1893-4[1895]/1996, op. cit., p. 284).
Nas dissociações há antagonismo, duas atitudes psíquicas contrárias coexistindo, mas a
pessoa fica envolvida e comprometida com cada aspecto, sem conflito.
O antagonismo resulta da incompatibilidade acarretada pela fruição de cada um desses aspectos. Além
do mais, os estados conflitivos são atuados, ao passo que os estados dissociativos são encenados na
vida. A encenação exige uma testemunha que a experimente e informe. A atuação procura cúmplices
para descarga e satisfação (KAHN, 1971[1977], op. cit. p. 302).
75
Discordamos de um ponto na citação acima. Cremos, por tudo que foi exposto até
aqui, que os „estados conflitivos‟ das neuroses de transferência, são encenados, justamente
porque a encenação envolve alguém que reconheça esse lugar de desejo do qual o paciente
fala. Lugar que a vivência de satisfação consagrou ao outro como aquele que reconhece o
desejo. Já a dissociação, é da ordem da passagem ao ato: busca a descarga sem a mediação
do excesso pulsional, experimentado como traumático, que não pode ser representado
devido à falta de preparo do eu para dominar um grande afluxo de excitação, ou a uma
passividade frente a este excesso, devido ao fator surpresa. Assim o sujeito reproduz
compulsivamente em atos e sonhos elementos que escapam ao processo de simbolização,
por isso não há como rememorá-los.
Essa questão retornará em Freud no artigo O estranho (1919/1996), texto no qual o
autor se debruça sobre o que é assustador no sentido de que algo há muito conhecido, mas
que deveria ter permanecido oculto, foi de alguma forma trazido à luz. Freud começa a
sinalizar um outro tipo de repetição que opera no sujeito e que não passa pelo crivo do
recalque. Nesse texto Freud faz menção a “outro trabalho”12, no qual irá abertamente
reconhecer “a predominância de uma compulsão à repetição, procedente das moções
pulsionais e provavelmente inerente a natureza das pulsões e poderosa o bastante para
prevalecer sobre o princípio de prazer” (Id., Ibid., p.256).
12
Referindo-se ao Além do Princípio do Prazer de 1920, que ainda não havia sido publicado, mas estava
concluído.
Capítulo III - Os limites da representação
Toda a primeira tópica freudiana foi construída levando em conta o modelo da
representação; a representação designa a expressão psíquica das pulsões. Para que isso
ocorra há um processamento da energia pulsional, que passa de livremente móvel
(processo primário) para dominada, em repouso (processo secundário). Assim, Freud
(1914/1996, op. cit.) vai conceber o aparato psíquico “como sendo acima de tudo, um
dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como
aflitivas ou teriam efeitos patogênicos” (p. 92).
No “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1996, op. cit.) Freud utilizou o
termo “mola pulsional” (p. 348), termo precursor do conceito de pulsão, para designar uma
fonte de estimulação interna, constante, o que, segundo Garcia-Roza (1999, op. cit.), já
indica uma concepção de aparato psíquico gerado com a função de dominar essa força que
ameaça invadi-lo. Essa força pode afluir do exterior, já que o sujeito desde o início da vida
experimenta, também, o pulsional através do outro: “O aparato psíquico (...) se constitui
frente a um outro aparato psíquico, sendo cada um deles um aparato de linguagem” (Id.,
Ibid., p. 253). Quando o aparato psíquico captura o excesso pulsional ele o transforma, o
processa, inserindo-o no universo simbólico por meio de representantes.
Este modelo apresentado por Freud vai sustentar no âmbito da clínica uma dinâmica
ou uma tópica que é colocada em destaque no artigo “Recordar, repetir e elaborar”
(1914/1996, op. cit.), através de uma repetição, indicada como retorno do recalcado. São,
em verdade, clichês infantis repetidos em ato na relação transferencial. Todavia neste
mesmo artigo Freud vai destacar, em certos casos, a presença de repetições que não se
enquadram no modelo do “acting out” e começam a mostrar um limite ao método
interpretativo. Tais repetições levam Freud a se deparar com um processo muito mais
compulsivo do que da ordem do retorno do recalcado. Estes aspectos remetem para um
limite teórico-clínico com respeito ao princípio de prazer centrado no modelo da
representação. É diante deste limite que Freud busca reinventar a psicanálise a partir de
1920.
No artigo “Além do princípio de prazer” (1920/2006 op. cit.), Freud volta à atenção
para a neurose traumática e, consequentemente, retoma a questão da dor, bem como outros
temas do Projeto de 1895, passando a indagar-se sobre este limite citado acima, a partir da
repetição. As neuroses traumáticas se caracterizam por uma ruptura no escudo protetor do
77
para-excitação, escudo que protege o aparato psíquico das excitações externas. Diante da
ruptura do para-excitação o aparato é inundado por um excesso pulsional, que coloca de
lado o funcionamento do princípio de prazer, para realizar uma tarefa mais fundamental: a
de dominar a excitação.
Toda vez que ocorre uma falha nesta tarefa fundamental inicia-se um processo
repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer. Freud vai denominar esse
processo de compulsão à repetição, peça chave para repensar alguns impasses de ordem
clínica em sua teoria, e apresentar sua hipótese mais desconcertante: a pulsão de morte.
Frente ao irrepresentável que se figura a partir da virada de 1920, buscamos algumas
respostas sobre de que maneira o aparelho psíquico responde a essa nova ordem e, de como
proceder frente a esse novo modelo trazido à luz pela compulsão à repetição. Para essa
empreitada buscamos amparo em Walter Benjamim e comentadores de sua obra que se
detêm na questão dos sobreviventes de grandes catástrofes e no silêncio que os persegue
após as experiências traumáticas. Sobretudo buscamos vislumbrar uma saída para permitir
ao que não pôde ser falado, encontrar alguma forma de expressão. Nesse sentido Walter
Benjamim nos alerta para um outro modo de narração: a narrativa de ruínas, de cacos, que
se distingue da narração tradicional que marcaram uma época.
III.1. A repetição do desprazer
Como vimos no capítulo anterior, ao abordar o retorno do recalcado, a repetição é
um dos modos pelos quais o inconsciente trabalha seus conteúdos, ou seja, um dos seus
modos de funcionamento. Entretanto, em 1920, veremos que há outro modo de
funcionamento do aparato psíquico, mais primitivo, que funciona de acordo com a
compulsão à repetição. Sendo inconsciente, a repetição funciona segundo as leis que regem
os processos deste sistema: o processo primário. O predomínio do prazer como princípio
determina esse modo de funcionamento primário do aparato mental. Essa forma de
trabalho sofre uma modificação pelo eu, devido às exigências da realidade, designada:
processo secundário. Tal processo obedece ao princípio de realidade, que permite
responder as exigências, tanto internas como externas, de forma específica e precisa; dessa
maneira, admite a manutenção das quantidades do aparato em nível constante e, com isso a
conservação e o equilíbrio do mesmo.
78
O princípio de realidade é uma modificação necessária do princípio de prazer; caso
as necessidades de autopreservação, por exemplo, fossem regidas exclusivamente pelo
último e não sofressem uma mediação tornar-se-iam perigosas para a manutenção da vida
em sociedade e ofereceriam um risco ao próprio indivíduo. A meta de alcançar o prazer
não é, contudo, colocada de lado, mas adiada em sua imediata aquisição em vista de uma
obtenção mais efetiva do prazer, fazendo-se para isso necessário traçar caminhos mais
longos. Renunciar à satisfação imediata dos estímulos pulsionais é o preço a pagar pela
maior segurança que a vida em civilização oferece, conforme assegura Freud
(1930[1929]/1996, op. cit.).
Ainda conforme apontado no capítulo anterior, a força que coloca o aparato psíquico
em movimento é a pulsão; a pulsão se caracteriza por ter: “uma fonte (somática), uma
finalidade (satisfação), um objeto (aquilo através do qual se obtém a satisfação) e um fator
motor (Drang)” (Monzani, 1989, p. 185); No inconsciente essa Drang pressiona
continuamente no sentido de realizar sua finalidade, a saber: a descarga, e com isso
alcançar a satisfação obedecendo ao princípio de prazer. Por esse motivo podemos dizer
que a repetição tem, desde sempre, uma característica semelhante ao pulsional – a
insistência.
A característica de insistência da pulsão se deve a Drang, ou melhor, a uma força
constante (Konstant Kraft). A fim de dominar a energia pulsional é exigido um incessante
contra-investimento do eu. Fato que leva Freud (1915/2006, op. cit.) a ressaltar a pulsão
como um excesso em relação ao qual o aparato precisa se defender empreendendo destinos
para descarregá-lo sobre objetos, para evitar que se configure um trauma. Nesse mesmo
artigo Freud afirma que a pulsão é concebida como “uma medida da exigência de trabalho
imposta ao psiquismo” (p. 148); trabalho fundamental de dominar e ligar as intensidades
que perturbam a homeostase do organismo. Ligar é inscrever em representações, é através
desta inscrição que a regulação das excitações pulsionais se realizaria. A ligação
condiciona e precede à entrada do princípio de prazer; o fracasso em promover a ligação
provocaria “uma perturbação análoga a uma neurose traumática” (FREUD, 1920/2006, op.
cit., p. 158).
Quando ocorre uma falha em dominar a excitação inicia-se um processo repetitivo,
anterior ao estabelecimento do princípio de prazer. Esse processo será denominado
compulsão à repetição, problematização que vai levar à necessidade de reformular o
dualismo pulsional e, consequentemente, à formulação da segunda tópica. No artigo “O
79
Estranho” (1919/1996 op. cit.) Freud já traz alguns sinais de uma reformulação tópica ao
apontar para um estado muito primitivo no qual o eu ainda não se encontra diferenciado do
mundo externo, a compulsão à repetição poderia estar relacionada a esse estado no qual
funciona o aparato anterior à estruturação e diferenciação do eu do que lhe é externo. A
repetição funciona como uma espécie de marcador, pelo qual se tenta estabelecer um limite
de reconhecimento frente a algo estranho, que evoca a sensação de desamparo (passividade
diante do excesso pulsional).
A reformulação do dualismo pulsional ocorre no artigo “Além do princípio de
prazer” (1920/2006, op. cit.) no qual Freud admite que há “na psique uma forte tendência
ao princípio de prazer, mas que certas outras forças se opõem a essa tendência, de modo
que o resultado final nem sempre corresponderá à tendência ao prazer” (Id., Ibid., p. 137).
Nesta passagem o princípio de prazer passa a ser tratado como uma „tendência‟, denotando
que algo escapa de seu domínio e ameaça a sua suposta soberania.
III.2. Redefinindo o trauma
Para explicar o funcionamento de algo fora desta tendência ao prazer, Freud se
utiliza do exemplo do trauma, que ressurge em outro modelo teórico, seguindo os indícios
da neurose traumática, bastante comuns no período do final da primeira guerra (1914-18).
Tais neuroses consistiam na fixação da vivência traumática e a repetição da mesma
experiência sob a forma de sonhos. Essas repetições envolvendo situações extremamente
penosas são revividas alucinatoriamente através dos sonhos e, parecem pouco
compreensíveis sob a luz do princípio de prazer. Os sonhos das neuroses traumáticas
forçam Freud a reconhecer, pela primeira vez, uma exceção a regra de que todo sonho é
uma realização de desejo, na medida em que tais sonhos evidenciam uma compulsão
repetitiva de uma vivência dolorosa, não abarcando uma possibilidade de prazer para o
sujeito.
Primo Levi (1990), em seu livro “Os afogados e os sobreviventes” questiona,
justamente, essa compulsão a repetir que ocorre nos sonhos: “Curiosamente, esse
pensamento (“mesmo se contarmos, não nos acreditarão”) brotava repetidamente, sob a
forma de um sonho noturno, do desespero dos prisioneiros” (p. 1). Essa observação
expressa, para além da narrativa, o temor em relação à recusa dos outros de escutar o que
os sobreviventes dos acontecimentos traumáticos viveram nos campos de concentração,
80
essa recusa fecharia a possibilidade de se sair deste processo repetitivo, que condena o
sobrevivente à repetição mortífera do trauma. Neste sentido vemos como o outro, ao
escutar o sobrevivente pode dar suporte à narração da dor. O fato do outro não permanecer
indiferente torna possível a retomada reflexiva do passado, possibilitando a transmissão do
testemunho; conferindo, assim, um sentido, tanto histórico quanto temporal, à experiência
traumática (Gagnebin, 2006). Em contrapartida, podemos dizer que a compulsão à
repetição via sonhos é uma forma, ainda que precária, de narrativa; bastante diversa da
narrativa tradicional, visto que o trauma cortou do sujeito o acesso ao simbólico. Contudo
essa repetição da cena traumática, que provocou tanta dor, funciona como um esforço para
conter a experiência de horror que devido à violência de seu excesso se tornou impossível
de narrar pelas vias tradicionais.
Para explicitar como ocorre esse impacto traumático sobre o aparato psíquico
seguimos os passos de Freud (1920/2006, op. cit.) que buscou elementos na biologia,
especialmente através de A. Weismann, descrevendo a história de uma vesícula
indiferenciada que é estimulada por fora e por dentro. Ele se serve deste exemplo para
mostrar a genealogia do aparato e neste ponto se aproxima dos temas tratados no Projeto
de 1895, propondo uma estrutura cuja função principal se refere à defesa frente às
estimulações oriundas do exterior. Laplanche (1993) afirma que o modelo da vesícula
tomada emprestado da biologia por Freud, pode ser compreendido em três níveis: 1)
modelo de um corpo caracterizado por uma “Gestalt que define o interior, em relação ao
exterior, um certo nível energético” (p. 208); 2) um aparato psíquico; 3) O eu.
Tendo em vista esses modelos, a vesícula conta com um escudo protetor evitando
que a ação de estímulos incida diretamente sobre seu interior – “a função do escudo
protetor é quase mais importante do que a recepção do estímulo” (FREUD, 1920/2006, op.
cit., p. 152). A neurose traumática, ou melhor, a ruptura que ocorre no escudo protetor
coloca o aparato em perigo, pois a energia que aflui pela ruptura viola o equilíbrio
homeostático do aparato psíquico.
Contudo, tal como no Projeto de 1895, não há proteção contra as excitações
endógenas. Dentro desta perspectiva entendemos as pulsões como um excesso do qual o
aparato precisa se defender. Até aqui, tudo se passa de forma semelhante à vivência da dor
tal como descrita em 1895: o trauma atinge o aparato como um raio, provocando uma
espécie de curto circuito no mesmo. No Projeto de 1895 o domínio pelo eu sobre o
montante de energia resultante de uma vivência de dor é muito mais difícil de ser
81
alcançado do que em relação às experiências envolvendo satisfação. Só com repetidas
tentativas seria possível subjugar o montante de excitação nos casos em que a dor está
envolvida; enquanto essa energia não é dominada pelo eu, permanece – seguindo a
expressão usada por Freud (1895[1950]1996 op. cit.) – “indomada” (p. 436). Desta forma
depois de 25 anos, começa a ser retomada, em uma tentativa de elucidar e indicar um
processo que anteceda o princípio de prazer, uma experiência que em sua origem causa
desprazer e mesmo assim continua a se repetir.
Visando a questão da defesa contra as grandes quantidades provenientes do exterior
o escudo serve para proteger e manter uma diferença de nível, entre o externo e o interno.
Temos, então, um escudo funcionando como uma espécie de barreira fiscal localizada na
fronteira de dois países, no caso do aparato psíquico essa barreira limita a entrada de
energia exterior, estrangeira e estranha ao aparato, para o interior. Portanto, o escudo
protetor não só tem uma importante significação econômica, mas é vital para a
sobrevivência do aparato psíquico. A finalidade de tal escudo é evitar que grandes
montantes quantitativos afluam para o interior sem alguma moderação e, com isso
desestabilizem o nível constante da quantidade no interior do organismo.
O que se apresenta, assim, é uma concepção de aparato psíquico baseado na
homeostase, expliquemos melhor: há uma necessidade em manter a energia no aparato
constante, para que isso seja possível há um incessante empenho do eu em restaurar e, caso
ela seja alterada, manter esse nível de constância energética. Esse empenho do eu nada
mais é do que dominar a energia pulsional que não cessa de brotar do interior do
organismo e, que também, pode afluir do exterior se formos tomados como objeto por um
terceiro. Para isso o escudo quebra a energia proveniente do exterior em parcelas que
poderão ser dominadas mais facilmente pelo contra-investimento do eu.
Caso o escudo protetor seja rompido, em uma pequena extensão, entra no aparato
um montante de energia que é sentido como dor, mas que é diferente do desprazer. Já
vimos quando tratamos dos temas do Projeto de 1895 que dor e desprazer são conceitos
diferentes no pensamento de Freud daquele período. Temos, entretanto um ponto em
comum entre a dor e o desprazer: ambos estão relacionados com os movimentos da
quantidade, ou seja, se referem à economia psíquica. Mas a semelhança para por aí;
segundo Laplanche (1993 op. cit.) o desprazer está sempre vinculado a noção de prazer, já
a dor não possui um correspondente e, ademais, é preciso que exista um corpo delimitado
para haver dor. Desta maneira a segunda tópica será estabelecida precisamente sob a
82
ameaça de esfacelamento do eu, conceituado como uma projeção sob uma superfície – um
eu corporal (FREUD 1923/1996). A dor corresponde, tal como no Projeto de 1895, à
invasão de grandes quantidades não dominadas de energia que romperam o escudo de
proteção e assim ameaçam a integridade egóica.
Como no Projeto de 1895 a dor é resultado de uma efração do para-excitação, isso
significa que a dor é uma ruptura do escudo protetor em uma área limitada, rompimento
que levará a um aumento brutal de tensão no interior do aparato. É importante observar que
Freud (1920/2006 op. cit.) caracteriza a neurose traumática como uma ruptura limitada,
como rompimento de uma pequena parte do escudo, é nessa brecha aberta na defesa que a
energia externa afluirá para o interior. A dor proveniente dessa ruptura constituir-se-á
como uma fonte emissora de excitação, motivo pelo qual Freud (1915/2006) chamou a dor
de pseudo-pulsão. Isto porque a dor passa a se comportar como uma fonte interna e, sendo
assim torna-se impossível empreender uma fuga. Essa pseudo-pulsão desorganiza o
aparato e o faz mobilizar energia de outras áreas para tentar parar esse afluxo; o contrainvestimento tem como finalidade imobilizar a energia que invade o aparato – à dominação
da energia em estado livre Freud chama de ligação.
O trauma é definido como uma ruptura no escudo protetor, e com isso “o princípio
de prazer é, logo no início, colocado fora de ação” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 154).
Assim o problema principal do aparato psíquico é capturar a energia livre invasora, a partir
disso Freud nos indica um modo de funcionamento do aparato fora do princípio de prazer,
se servindo para isso, da tese de Breuer (FREUD & BREUER, 1895/1996, op. cit.) que
admite duas formas distintas de energia nos sistemas psíquicos: cargas de investimentos
que “fluem livremente e que pressionam para a descarga e cargas de investimento em
repouso” (FREUD, 1920/2006, op., cit., p. 155).
Portanto o trauma ressurge em um outro modelo teórico, como ressaltam Ribeiro &
Carvalho (2006, op. cit.): “Tal como na teoria da sedução, situa-se no momento mesmo da
vivência” (p. 9). Contudo, o trauma é definido como proveniente de experiências muito
assustadoras e, em tais experiências não encontramos qualquer referência imediata à
sexualidade. Assim a etiologia sexual das neuroses de transferência e a teoria da libido não
encontram uma aplicação direta nesses casos. Freud buscará aproximar as neuroses
traumáticas (cujo paradigma é a neurose de guerra, que se caracteriza por traumas
ocorridos no momento da experiência, portanto sem referência a um conflito psíquico ou à
sexualidade) das neuroses de transferência, em uma tentativa de estender às primeiras a
83
teoria da libido. Para buscar elucidar essa aproximação no artigo “A psicanálise e as
neuroses de guerra” de 1919 é iniciada a investigação “das relações que sem dúvida
existem entre o medo, angústia e a libido narcísica” (p. 225), que será plenamente
desenvolvida em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]/1996).
Dois fatores são determinantes para surgir uma neurose traumática: o susto e a
ausência de ferimento grave. Freud (1920/2006 op. cit.) distingue três termos – susto
(Schreck), medo (Furcht) e angústia (Angst) – diferenciação que trará luz à questão da
nova disposição do trauma. Angústia designa uma expectativa para o perigo e a preparação
para algum tipo de impacto mesmo que o esperado figure desconhecido, denotando que
não há uma relação direta com o objeto. O medo, por sua vez, pressupõe um objeto
definido o qual se teme. O susto designa um estado no qual se adentra em uma situação de
risco que não era esperada, de forma que o sujeito é tomado pela surpresa do evento. O
fator surpresa presente no susto implica a falta de contra-investimento para suportar o
impacto traumático; assim há uma inundação de energia no aparato enquanto o princípio
de prazer é colocado fora de ação. Um ferimento grave diminui as chances de se contrair
uma neurose traumática, pois implica um recolhimento narcísico da libido; a libido sai de
posições ocupadas previamente e é realocada novamente no eu. Neste caso há uma certa
paralisia ou diminuição do resto das atividades psíquicas, todos os outros sistemas
psíquicos se empobrecem, pois enviam reforços energéticos para conter a dor.
O susto se caracteriza pela ausência de angústia, isso significa que não há uma
expectativa de perigo; a angústia já é um sinal do hiperinvestimento dos sistemas
receptivos, que significa aumento da energia ligada, como tropas militares esperando um
ataque iminente. Frente à ausência de preparo ocorre a invasão energética que origina o
trauma. Nestes casos a repetição se configura como uma forma de obter controle da
situação, e também, preparar o indivíduo para o trauma, dotando-o da capacidade de
desenvolver angústia e desta forma prevenindo-o contra o fator surpresa (HERZOG, 1994,
op. cit.).
O trauma ocorre justamente porque não houve a angústia – sinal. Ao que parece
ocorreu uma falha no mecanismo da atenção, a qual tem por função regular os
deslocamentos dos investimentos do eu, tal como discutido no Projeto de 1895 e em
Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911/2006 op. cit.),
principalmente. Se o mecanismo de atenção falhar tais investimentos encontrar-se-ão
ausentes no momento do trauma. Nessa perspectiva os sonhos das neuroses traumáticas
84
repetem a mesma cena em um esforço para o desenvolvimento retroativo da angústia, sem
ela o eu é pego de surpresa por uma vivência excessiva que facilmente rompe suas
proteções desencadeando a compulsão à repetição.
Ligar a energia em representações constitui a possibilidade de empreender um
destino a essa energia diferente da compulsão à repetição – seja sublimá-la, investi-la em
algum objeto, recalcar ou transformá-la em seu contrário (FREUD, 1915/2006, op. cit.).
Frente à impossibilidade de proceder tais destinos o evento traumático é apartado da
consciência, é clivado do eu. No entanto, clivar não subtrai do trauma sua força. O trauma
se faz perceber através da compulsão à repetição, que é, por assim dizer, um sinal ou a
expressão de uma energia não dominada no interior do aparato.
Freud (Ibid.) nota um fenômeno análogo à compulsão à repetição das neuroses
traumáticas nas brincadeiras infantis, nas quais a repetição de um intenso sofrimento é
reproduzida. Observa o neto em um estranho jogo, incansavelmente repetido durante a
ausência da mãe, no qual atirava objetos para um canto do berço e os apanhava novamente,
pronunciando um sonoro o-o-o-ó, nos arremessos, e acompanhado de grande satisfação
quando os encontrava. Ao conversar com sua filha sobre a brincadeira, depreendeu que não
era uma simples interjeição, mas tratava-se da palavra alemã Fort (lá). Uma observação
posterior confirmou a dedução, a criança jogava um carretel de madeira amarrado com um
cordão que era arremessado sobre a borda do berço, saindo, deste modo, do seu campo de
visão e, ao mesmo tempo, um sonoro o-o-o-ó era emitido. Então puxava o cordão fazendo
com que a parte escondida retornasse e o saudava com um alegre da (ali).
Freud supôs que a angústia sentida por seu neto se devia a um transbordamento,
ocasionado pela privação do objeto de satisfação, no caso: a mãe. A saída da mãe do
campo de visão do bebê é interpretada por ele como uma perda; é essa privação que
acarreta um acúmulo libidinal – libido que seria investida no objeto – e não achando o
meio de descarga usual (mãe) se apresenta sob a forma de angústia para a criança. Quando
a criança encontra no jogo do Fort-Da um meio de descarregar esse acúmulo, Freud (Ibid.)
alega que a brincadeira remete a uma aquisição cultural como consequência da renúncia da
satisfação pulsional; ou seja, permitir a saída da mãe, deixá-la ir, agora não mais
passivamente, mas como agente; já que o contrário, vivido de forma passiva, certamente,
causava desprazer.
O jogo compensa esse afastamento através da atuação, onde se passa de passivo para
agente da ação, determinando o momento do afastamento e do retorno, evitando a surpresa
85
do abandono. Seguramente esse exemplo evidencia-se como uma forma de domínio do
desprazer, onde o controle da situação e do objeto são fatores que evitariam a experiência
traumática. Essas observações sobre o jogo infantil nos trazem uma importante questão – o
prazer do bebê em se tornar o agente que determina a cena e domina a ação do objeto,
remete à onipotência narcísica. O susto, no caso do Fort-Da proporcionado pelas saídas da
mãe do campo de visão do bebê, coloca em xeque justamente a onipotência narcísica do
sujeito. Dominar a energia livre significa, a partir disso, restaurar a onipotência narcísica –
a integridade egóica.
Freud (1917/2006), ao tratar do luto já aponta a dor como uma reação normal à perda
do objeto; a acumulação energética proveniente da perda objetal provoca as mesmas
condições econômicas, ou seja, os mesmos movimentos energéticos de contrainvestimento que buscam conter a efração em um corpo lesado. Podemos notar que em
ambos os casos temos um acúmulo energético, o qual não pode ser mais ligado devido ao
desaparecimento do objeto, que se traduz como dor. A dor funciona, então, como um sinal
de alarme da presença de uma energia não contida (estrangeira) circulando pelo aparato;
sinal que dispara o contra-investimento de contenção, procedimento defensivo que esvazia
o eu.
Devido à perda do objeto inicia-se um lento processo de reinvestimento para
transformar a passividade proveniente desta falta sofrida em atividade, com o intuito de
nos tornarmos senhores da situação (controlar as idas e vindas do objeto). A necessidade
de passar da posição passiva para a ativa significa que o sujeito ainda está sob o domínio
do excesso pulsional. Tudo se passa de forma análoga aos sonhos traumáticos, onde há
uma espécie de agenciamento – o sonhador é o autor da cena agora, embora nada seja
modificado e o sujeito acorde tomado pelo mesmo terror da vivência real; trata-se, aqui, do
mecanismo de transformação em seu contrário (redirecionamento da pulsão da atividade
para a passividade).
Dentro dessa série que envolve situações desprazerosas repetidas, encontram-se as
neuroses de destino, nas quais o sujeito é acometido pela repetição de eventos que
terminam sempre com o mesmo fim trágico, em uma inescapável trama do destino que
parece não oferecer qualquer outra saída. Esse eterno retorno do mesmo surpreende os
casos em que o sujeito parece experimentar passivamente a mesma experiência, como se
fossem “perseguidas por um destino maligno, isto é, de haver algo demoníaco em suas
vidas” (Id., Ibid., p. 147). Tais pessoas, que parecem ser castigadas por forças invisíveis, na
86
verdade, são inconscientemente levadas para tal desfecho, movidas por experiências
traumáticas, em uma compulsão à repetição trágica, por assim dizer. O que corrobora a
ideia da compulsão à repetição ser um dispositivo, que visa sinalizar ao eu um perigo
eminente e, assim torná-lo apto a dominar o montante energético que se aproxima; para
isso a compulsão à repetição recoloca o sujeito na mesma situação para que ele possa dar
um outro desfecho a experiência vivida como traumática.
Algo parecido se passa durante as análises, nas quais os pacientes repetem
experiências dolorosas, provenientes do complexo de Édipo. A repetição, agora, aparece
sob uma forma compulsiva de origem inconsciente que leva o sujeito a reviver
repetidamente essas experiências precoces da sexualidade infantil. Durante a análise os
pacientes repetem via ato todas essas situações aflitivas, relacionadas aos tempos edípicos.
Tais situações apontam traços mnêmicos provenientes de antigas experiências edípicas,
que não foram ligadas, portanto ainda estão inaptas ao processo secundário; por isso,
reaparecem sob a forma de uma compulsão à repetição. Todas essas situações apresentadas
colocaram à prova a onipotência narcísica do sujeito.
III.3. O eu em ruínas
A finalidade do eu, portanto, é inibir o livre trânsito das energias no interior do
aparato psíquico. Foi através do abandono do processo primário como método de descarga
direta e o consequente armazenamento de energia para realizar as ações específicas,
necessárias para sobreviver, que foram traçados caminhos originários para efetivar a
descarga;
ou
seja,
destinos
pré-fixados
para
essa
finalidade,
como
Freud
(1895[1950]/1996, op. cit.) já havia afirmado ao tratar das facilitações nas barreiras de
contato. É devido a esse armazenamento de energia, que serve como fonte de contrainvestimento, que vigora no eu o princípio de prazer modificado pela realidade; por esse
motivo o eu é o mediador entre as exigências pulsionais e as da realidade.
No artigo o Eu e o Isso (1923/1996, op. cit.) Freud pontua que o “o eu é, primeiro e
acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele
próprio, a projeção de uma superfície” (p. 39). Devido a influência do mundo externo uma
parte do Id, uma das mais antigas “localidades psíquicas” (FREUD, 1940[1938]/1996, op.
cit., p. 158), sofre um desenvolvimento diferencial. Do que era “uma camada cortical,
equipada com órgãos para receber estímulos e com disposições para agir como escudo
87
protetor contra estímulos, surgiu uma organização especial que desde então atua como
intermediária entre o Id e o mundo externo” (Id., Ibid., p. 158): trata-se do eu.
O eu é uma organização narcísica e, por esse motivo procura, sobretudo, assegurar
sua auto-proteção; para isso aprende a armazenar experiências sobre os acontecimentos
externos por meio da memória. Busca, também, evitar estímulos de grande envergadura
realizando modificações, através da ação, no mundo em vista de seu próprio benefício.
Quanto às exigências pulsionais provenientes do Id, ou de outro sujeito, o eu procura obter
controle sobre elas moderando-as, adiando ou modificando as formas de como essas
exigências devem ser satisfeitas; ou suprimindo-as, caso ameace sua integridade,
utilizando-se tanto do mecanismo de recalque quanto de clivagem. Dentro desta
perspectiva, devemos entender que eu se esforça para obter prazer, evitando e fugindo de
tudo que lhe possa figurar um aumento de tensão e, consequentemente, causar desprazer.
Da mesma forma que o corpo biológico ao sofrer um ferimento (como em um corte,
por exemplo) no qual pequenas partes do tecido epitelial são perdidas, a dor corresponde
para o eu a um sinal da perda de suas partes. De certa forma o eu do Projeto de 1895 já
trazia essa questão sob o signo de uma conceitualização neurológica: a dor correspondia à
perda de neurônios nucleares, pois estes tinham suas barreiras de contato destruídas com a
passagem das grandes quantidades características da vivência de dor. Deste modo, a dor
remete a um perigo regressivo para o eu, pois a dor “derruba por completo a resistência das
barreiras de contato e ali estabelecem uma via de comunicação como as que existem em
()” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.). As barreiras de contato são justamente a
característica evolutiva que diferencia os neurônios psi () dos neurônios phi (),
possibilitando assim uma tarefa fundamental – a memória de informações em vista de
efetuar a descarga energética por trajetos mais curtos. Essa preocupação em relação à
ameaça de regressão parece voltar no Ego e o Id (1923/1996, op. cit.) na medida em que
Freud afirma que “a psicanálise é o instrumento que capacita o ego a conseguir uma
progressiva conquista do Id” (p. 68). Ademais a condição para efetuar novas ligações, no
Projeto de 1895, apontava para o estabelecimento de novas facilitações formando um todo:
ligar é incluir novos neurônios no eu.
O Id, sede das “paixões indomadas” (FREUD, 1923/1996, op. cit.), é voltado apenas
para a obtenção de prazer, o ego, por sua vez, é regido por “considerações de segurança”
(FREUD, 1940[1938]/1996, op. cit., p. 213) que levam em conta o princípio de prazer
modificado pelo princípio de realidade. O eu, a partir de 1923, é pressionado de três lados
88
para cumprir exigências: dos estímulos pulsionais do Id, da severidade em realizar ou não
suas ações pelo onisciente supereu e dos estímulos oriundos do mundo externo; daí
entende-se toda preocupação com a segurança que o eu precisa ter. O eu é atacado em duas
frentes ao mesmo tempo: a externa e a interna; para ser efetivo no processo de defesa o eu
adota a mesma estratégia defensiva contra ambas. No caso dos estímulos externos já
sabemos que há o escudo protetor, mas e contra as moções pulsionais?
Para isso há uma tendência no eu de tratar as excitações internas, como se não
agissem a partir do interior, mas do exterior. Só assim o eu pode utilizar contra a pulsão o
escudo protetor, essa é a origem da projeção que desempenha um importante papel na
determinação dos processos patológicos. Tomamos como exemplo o mecanismo de fobia
desenvolvido pelo Pequeno Hanns (1909/1996), no qual ele projeta as fantasias sexuais
relacionadas ao seu pai e o perigo de castração por tais desejos. Hanns atribui a um animal,
o cavalo, o desprazer proveniente dos estímulos pulsionais, nesse caso bastava evitar estar
na presença de cavalos para impedir o desprazer, havendo assim uma possibilidade de
defesa. É um processo engenhoso, mas resolverá, apenas, temporariamente o problema.
As pulsões mesmo partindo do interior do aparato, são exteriores ao eu e, portanto,
são consideradas estrangeiras enquanto não sofrerem uma tradução (ligação – processo
secundário). A energia pulsional não traduzida, somada ao fator surpresa (susto), provocam
uma quebra na transmissão e na temporalidade da mensagem que envolve a experiência do
trauma. Assim repetição significa que o eu fracassou em ligar a energia pulsional, ou
traduzi-la em representantes. O eu é, então, sufocado por mensagens as quais não pode
decodificar; frente a isso uma defesa arcaica é acionada – a compulsão à repetição. Muito
embora seja o eu que repete, ele se vê obrigado a repetir aquilo que não lhe pertence, que
lhe é estranho e não foi codificado conforme os processos que fazem parte do eu –
processo secundário.
A compulsão à repetição busca o desenvolvimento da angústia-sinal que faltou ao
indivíduo no momento do trauma, como vimos. Entretanto a compulsão à repetição não é
da ordem da simbolização, no sentido de efetuar a tradução da energia livre em ligada,
precisamente porque aquilo que não pode ser traduzido – a energia não ligada/pura – só faz
repetir de uma forma imperativa. De posse destas observações podemos afirmar que a
compulsão à repetição aponta para algo mais primitivo, anterior a instauração do princípio
de prazer. É assim que Freud, por meio do fenômeno da compulsão à repetição,
89
mecanismo que faz retornar sobre o próprio eu as forças que por pouco não o levaram à
destruição, postula a existência de uma pulsão de morte.
III.4. A compulsão à repetição
O eu é concebido narcisicamente como uma totalidade. A possibilidade de efração
do invólucro que o define como algo coeso representada por um perigo interno, mas
sentido como real é projetado ao exterior como angústia de castração. A fim de sustentar
essa unidade, o eu se empenha em manter-se constantemente investido de certo potencial
energético. É a manutenção desse investimento que pode contrabalancear as tentativas de
rupturas provenientes de seu exterior, essa preocupação do eu com sua segurança enquanto
integridade remete a uma ameaça de desestruturação pelas forças pulsionais.
Os exemplos apresentados por Freud (1920/2006, op. cit.) – sonhos das neuroses
traumáticas, as neuroses de transferência, neuroses de destino e brincadeira infantil –
apontam para a presença de uma compulsão à repetição. Em todos podemos notar a
reprodução de uma experiência dolorosa, o que dificulta concebê-los como submetidos ao
princípio de prazer. Por um lado, os sonhos das neuroses traumáticas se repetem em um
esforço para que o eu esteja agora apto a dominar o excessivo e inesperado afluxo de
excitações, buscando, então, preservar a vida; por outro lado notamos a presença de uma
força que coage na direção da evacuação total da tensão, demonstrando que o fim último
não é o de restaurar a vida, mas o retorno à inércia total.
Na verdade, trata-se da ação das pulsões. As pulsões não trabalham em prol da
manutenção do equilíbrio psíquico ou do organismo. A pulsão (Trieb) é uma força que
coloca o sujeito em movimento e, tem por característica a pressão (Drang) - um impulso
avassalador - enquanto a compulsão (Zwang) designa algo imposto ou forçado, que é o
resultado de um “conflito pulsional que se instala e submete o sujeito a um cerceamento,
impondo-lhe uma direção. O Trieb impulsiona e Zwang força e faz sofrer” (HANNS, 1996,
p.108). Desta forma a compulsão à repetição (Wiederholungszwang)13 tem um grau
altamente pulsional ao se apresentar como uma compulsão (Zwang), ressaltando uma
característica fundamental da pulsão: a insistência.
13
Wiederholen – ir buscar novamente; repetir. Zwang – compulsão, forçado, obrigação, pressão.
No artigo Além do princípio do prazer a expressão wiederholungszwang e a palavra zwang são usadas quase
como sinônimos de Drang e Trieb. Segundo Hanns (1996, op., cit.), Freud procura ressaltar o caráter
avassalador ao qual o sujeito sucumbe, condenado a realizar a pulsão para além de sua vontade.
90
O antigo lugar ocupado pelo trauma sexual factual cede espaço para a pulsão, mais
especificamente a pulsão de morte. O primeiro modelo do trauma caracterizava-se pela
falta de preparo do sujeito frente ao ataque sexual, que não o compreendia devido à tenra
idade. A experiência traumática, então, ficava no sujeito como um “corpo estranho”
(FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.), estranho ao eu, incapaz de traduzir tal evento. Em
termos energéticos significa que a energia pulsional deste encontro não pode ser ligada
pelo eu, o que de fato acontece com os eventos edípicos. O trauma ocorria „a posteriori‟,
somente após o advento da puberdade, que provocava a lembrança da experiência sofrida.
Em 1920 o segundo modelo do trauma segue esse padrão do despreparo do sujeito, mas
agora, ante o excesso pulsional.
A pulsão, nessa perspectiva, se faz perceber através de traumas, traduzidos por uma
tensão que desequilibra a constância energética vigente no eu: “uma pulsão seria, portanto,
uma força impelente [Drang] interna ao organismo vivo que visa a restabelecer um estado
anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças perturbadoras
externas” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 160). De acordo com Laplanche (1988), o
primeiro trauma, a que Freud se refere, é o nascimento da vida e, não do indivíduo humano
– “a primeira pulsão aparecendo no momento em que surge essa vida que é a elevação da
tensão em relação ao estado inorgânico nada mais é do que a pulsão de morte” (p. 124).
Essa primeira pulsão tem sua gênese de uma maneira semelhante como à formação
da consciência, descrita no “Além do princípio de prazer” (1920/2006, op. cit.). A
consciência teve sua origem de uma parte, mais externa, que morre para proteger a parte
interna, garantindo a vida; com a pulsão ocorre algo parecido, mas de forma inversa. A
semelhança entre ambas é a importância do fator defensivo contra a tensão, implicada na
mudança do inerte para a vida. Assim, devido às perturbações externas, cria-se a
consciência e, junto a isso, uma tendência a retornar a um estado anterior – a pulsão de
morte.
Foi a presença da compulsão à repetição nas análises e neuroses traumáticas que
colocou Freud no caminho da pulsão de morte. A partir daí foi possível estabelecer que o
objetivo da natureza conservadora das pulsões é alcançar um estado inicial, que todo ser
vivo foi obrigado a abandonar, e ao qual deseja retornar, “todo ser vivo morre, ou seja,
retorna ao estado inorgânico devido a razões internas, então podemos dizer que o objetivo
de toda vida é a morte” (Id., Ibid., p. 161). A tendência da pulsão de morte é o retorno, à
inércia, visando anular a vida e voltar ao inorgânico e não a constância tão prezada pelo eu.
91
Freud, assim, estabelece o vínculo entre pulsão e repetição, e aproxima ambas da
radicalidade da noção de inércia, o que vai ser confirmado através da postulação de um
masoquismo primário. Apresentada, a partir de 1920, como princípio de Nirvana, Freud
retoma do Projeto de 1895 um princípio econômico fundamental para o funcionamento do
aparato neuronal: o princípio de inércia. O „princípio de Nirvana‟ (FREUD, 1924/1996)
pertence ao domínio da pulsão de morte que, no sujeito, sofre uma transformação pela ação
libidinal, tornando-se princípio de prazer e este, por sua vez pela influência do mundo
externo em princípio de realidade.
Freud (1920/2006, op. cit.) assimila a pulsão de auto-conservação às pulsões sexuais
ou de vida, embora hesite em um primeiro momento e chega a colocar a pulsão de autoconservação do lado da pulsão de morte. Contudo as pulsões de vida também são
conservadoras, uma vez que repetem os caminhos necessários à preservação da vida,
buscando a fusão com outro organismo para originar uma nova vida. O que vemos,
portanto, em ambas as pulsões deste novo dualismo de 1920 é uma tendência conservadora
de retornar, repetir caminhos já traçados:
esse grupo de pulsões (vida) é tão conservador quanto as outras pulsões (morte), pois visam à volta a
estados arcaicos da substância viva; mas, de outro ponto de vista, elas são ainda mais conservadoras,
já que se mostram particularmente resistentes às forças externas. Além disso, também são
conservadoras em um sentido bem amplo, na medida em que preservam a vida por períodos mais
longos (Id., Ibid., p. 163).
Junto ao dualismo da nova tópica, há um outro importante: a polaridade revelada
pelos investimentos objetais – amor (ternura) e o ódio (agressão). É a partir do eu que os
objetos são investidos, o masoquismo ou o redirecionamento da pulsão contra o próprio eu
seria um retorno a uma fase anterior desse intricamento pulsional dirigido para os objetos.
Foi o sadismo (FREUD, 1915/2006, op. cit.) direcionado aos objetos que permitiu
comprovar que tanto o amor como a destruição podem recair sobre o mesmo objeto e,
também podem voltar-se para o eu.
Freud (1924/1996, op. cit.) desenvolve esta questão em “O problema econômico do
masoquismo” apontando o eu como primeiro objeto da pulsão de morte. Essa questão nos
interessa, especialmente, porque o masoquismo apresenta-se como um fenômeno no qual o
princípio de prazer não está em ação. “Se o sofrimento e o desprazer podem não ser
simplesmente advertências, mas, em realidade, objetivos, o princípio de prazer é paralisado
– é como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga” (p.
117).
92
O eu somente poderá se formar enquanto unidade se a pulsão de morte for ligada,
caso contrário nunca chegaria a existir. Freud postula, assim, um masoquismo primário,
estado no qual a pulsão de morte é dirigida para o próprio sujeito, mas ligada pela libido
em um intricamento pulsional. Este intricamento deve ser pensado inicialmente a partir do
laço libidinal entre mãe e filho, pois é a mãe quem se encarrega de ligar a pulsão de morte
pela libido investida na criança, já que a criança não pode fazer isso por si mesma. Originase daí, a partir do outro, um núcleo masoquista primário/originário no eu, que assegura ao
eu a possibilidade de receber e guardar determinada quantidade de energia.
A possibilidade de tolerar certa excitação assegurada pelo masoquismo primário
permite o desenvolvimento da vida psíquica. Esse núcleo masoquista permite um eu em
estado ligado (constantemente investido) e como reservatório libidinal. Se não fosse um
masoquismo original qualquer tensão seria sentida como insuportável pelo eu. De certa
forma, encontra aqui seu eco, a dor apontada por Derrida (1995, op. cit.) como
necessariamente presente na formação dos traços mnêmicos nas barreiras de contato no
Projeto de 1895, a capacidade de suportar uma certa tensão possibilita reter determinada
quantidade energética necessária para a manutenção da vida. São as excitações despertadas
pela mãe no corpo do bebê que possibilitam a construção do corpo pulsional e de uma
imagem corporal unificada com a qual o bebê vem a se identificar, fundando um eu.
Aubert (1996, op. cit.) propõe que uma experiência de dor seria paradigmática do
narcisismo e da constituição da ideia de corpo próprio. A dor permite a ligação de certas
representações, garantidas por percepções externas às sensações e afetos (internos). Tal
ligação funcionaria como experiência de unificação na vida do aparelho psíquico, a partir
da qual ele vem aceder a uma auto-percepção de sua organização. Assim sendo, para a
autora, a dor seria uma forma depurada do sentimento de ser, já que possibilita a
emergência da consciência de um eu-corporal.
A perda do seio (na mesma perspectiva da saída de cena da mãe no Fort-Da) é que
permite o eu-realidade nascer, garantindo para o sujeito uma distinção em relação ao
objeto. Já o narcisismo é a potencialização imaginária do eu-prazer, é o ideal autosuficiente, regido pelo princípio de prazer. A perda do objeto original vai funcionar como
prova de uma realidade externa. A carência de satisfação, proveniente da ausência do
objeto, obriga, aos poucos, o “sistema fechado” no qual o bebê se encontra, a reconhecer a
presença de uma alteridade/exterioridade. A dor presente em toda experiência de perda
objetal será marcada pela repetição, pois o objetivo da prova de realidade é reencontrar o
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objeto original de satisfação perdido. Frente a esse desamparo pelo qual toda perda objetal
lança o sujeito, se apresenta a noção de trauma.
Nesse sentido Barrois (1998, op. cit.) afirma que o trauma se faz acompanhar da
sombra do desamparo, explicitado através do silêncio que segue os sobreviventes de
experiências limites, silêncio apontado por Ferenczi na forma do irrepresentável e,
sobretudo, por Freud com a introdução do conceito de pulsão de morte em 1920. De forma
que o trauma, revelado cruamente pela compulsão à repetição toca os limites do analisável.
A compulsão à repetição revela mais claramente a pulsão de morte, destacando a presença
no eu de uma energia diferente da libido. Nesse caso o princípio de prazer seria uma
tendência, como destacamos no início do capítulo, a serviço de uma função mais ampla e
primitiva – fazer com que o aparato psíquico fique livre de toda energia.
Assim sendo a compulsão a repetição coloca um limite à rememoração e ao método
interpretativo centrado na idéia de representação. Somos sujeitos interpretativos devido à
capacidade egóica de promover a ligação da energia pulsional em representações,
permitindo que uma trama de traduções sucessivas possam se constituir. A compulsão à
repetição levanta uma outra face do aparato psíquico fora do campo representacional, ainda
que em alguns casos possa contribuir para sua instauração. Nas análises foram notadas
situações nas quais os pacientes agem a dor, esclarece Knobloch (1998, op. cit.) “não por
formação de compromisso, mas por uma impossibilidade de representação, por um excesso
pulsional em que o trabalho do pensamento não poderá acontecer” (p. 81).
III.5. O limite da representação
Segundo Garcia-Roza (2004), a formulação do conceito de pulsão remete a um
espaço do campo psicanalítico que está além da ordem, compreendendo duas grandes
regiões: 1) abrangendo o que Freud instituiu como aparato psíquico, abarcando o
inconsciente e o pré-consciente/consciente; 2) outra região para além do princípio do
prazer, lugar próprio das pulsões. O primeiro lugar/espaço é o campo das representações,
onde já houve a dominação prévia das forças pulsionais; esse espaço se caracteriza por
uma certa ordem definida pelo princípio de prazer. A pulsão, por sua vez, ocupa o lugar do
caos, situando-se “além da ordem e da lei, além do inconsciente (...), além do princípio de
prazer e do princípio de realidade, além da linguagem: é o lugar do acaso” (p. 127).
94
A linguagem possibilita uma narrativa, que serve para ordenar os acontecimentos
vividos, ou fantasiados, em uma sucessão histórica e temporal, permitindo assim dar um
sentido e configurar um destino para o excesso pulsional. Através da simbolização o
representante pulsional deve encontrar uma expressão diferente da compulsão à repetição.
Toda a linguagem implica uma transmissão de símbolos passíveis de serem interpretados, é
por ela que vislumbramos a pulsão sob forma do desejo. Contudo para chegar aos
processos de simbolização é preciso primeiro mediar essa energia, caso o eu não consiga
efetuar essa ordenação, temos aí algo caótico, estranho ao eu, conhecido como o
irrepresentável – energia pura.
O irrepresentável, segundo Miller (1992) “se acha ancorado/cristalizado no corpo e
parece repetir de maneira compulsiva o fracasso da realização alucinatória do desejo” (p.
57-58)14. O irrepresentável seria, então, aquilo que não se pode decifrar de maneira
adequada para colocar em palavras, de forma que esse excesso encontra uma outra forma
de manifestação, como vimos nos exemplos acima. Seriam “tanto ligados à fantasias
libidinais arcaicas, contemporâneos da aquisição do „sim‟ e do „não‟, quanto seriam
clivados, enquistados antes que recalcados” (Id., Ibid., p. 58)15, retornando sob a forma da
compulsão à repetição.
Frente ao excesso experienciado e o inundamento do aparato pelo montante de
energia, o eu, pego de surpresa, não tem poder para refrear o impacto desta experiência.
Como não existe um meio de impedir que o aparato psíquico seja alvo constante das
excitações, o problema central para a sobrevivência do sujeito é a defesa e a dominação
dessa energia. Ligar a energia está diretamente relacionado com a pulsão, pois é através da
ligação que a energia pulsional pode assumir formas organizadas e ser representado
psiquicamente. Ligar consiste, em outras palavras, amarrar a energia pulsional a certos
conteúdos; significa um freio, uma contenção desta energia, que após dominada pode ser
ligada a representações. O que Freud apresenta em 1920 é uma forma de narrativa
proveniente dos sobreviventes das grandes catástrofes, em especial a primeira grande
guerra, que foge por completo da forma de narração tradicional encontrada nos casos
clássicos das neuroses de transferência.
Walter Benjamim (1933[1994]) espantou-se com a mudez dos soldados da primeira
guerra mundial, perguntando por que eles “tinham voltado silenciosos dos campos de
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15
Tradução nossa.
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95
batalha. Mais pobres em experiências comunicantes e não mais ricos” (Id., Ibid., p. 115).
Normalmente as experiências vividas pelo homem são aprendidas e adicionadas a sua
bagagem cultural como um novo conhecimento sobre determinada questão. Porém durante
a guerra nunca houve experiências tão traumáticas, de excesso e limite; o ser humano foi
colocado além do limite suportável, ao caos, fome, medo, desamparo; sobrevivendo ao
terror caótico das trincheiras e a “explosões destruidoras, em meio a isso, estava o frágil e
minúsculo corpo humano” (Loc. cit.).
Para lançar luz sobre esse questionamento Benjamim (Ibid.) cita uma parábola na
qual um pai, dono de um vinhedo, conta aos filhos que havia um tesouro enterrado nas
vinhas. De posse desta informação os filhos escavam todo o terreno das vinhas e nada
encontram. Contudo com a chegada da estação da brotação os vinhedos produzem mais
que qualquer outro na região. A partir disso os filhos compreendem que o pai não havia
escondido nenhum tesouro, mas legou uma experiência preciosa: “sua riqueza lhes advém
dessa experiência” (GAGNEBIN, 2006, op. cit., p. 50).
Walter Benjamin mostra através desta parábola o estatuto da experiência que passa
de geração em geração. Na modernidade esta experiência se perde, acarretando com isso a
perda das formas tradicionais de narrativas. O trauma tal como exemplificado no terror
caótico das trincheiras impossibilita a narração tradicional. Não havendo uma possibilidade
de responder por essa via a saída se dá pela compulsão à repetição. “O fim da narração
tradicional (...) esboça como que a idéia de uma outra narração nas ruínas da narrativa,
uma transmissão entre cacos” (Id., Ibid., p.53).
A experiência se inscreve em uma temporalidade comum a várias gerações, como
um tesouro, retomado dentro de uma tradição compartilhada através da palavra transmitida
a cada nova geração. Essa experiência carrega o conhecimento que se aplica à prática
comum. O pai moribundo no limiar da morte aproxima o mundo vivo e familiar deste outro
mundo desconhecido e estranho que de certa forma é comum a todos através do
compartilhamento da experiência. A este respeito, Herzog (2011) salienta que não se trata
de lamentar a perda da experiência, mas “de fazer a experiência da perda, podendo assim
inventar outro modo de expressão a partir dos fragmentos (Darstellung)” (p. 10). A
Darstellung irá configurar como um lugar diferente do registro representacional, como um
lugar de passagem, da ordem do sensível.
Benjamin (1933/1994, op. cit.), nota algumas consequências a respeito do
esfacelamento da narrativa após o término da primeira guerra e a volta dos soldados do
96
front. Há uma mudança no comportamento burguês, procurando compensar o silêncio
opressivo que acomete os sobreviventes. Nota-se aí uma perda gradual do sentido da
coletividade, um imperativo de interiorização, que se faz notar em um segundo momento
no âmbito espacial. A arquitetura começa a valorizar o interior, a casa principalmente se
transforma em um refúgio contra o hostil e perigoso mundo externo. Aqui podemos notar
uma correlação com o eu fragilizado que projeta para o exterior a angústia de morte que o
assola, o sujeito busca proteger-se através da segurança das sólidas paredes da casa
própria. Da mesma forma quando a criança se vê em apuros busca refúgio nos braços dos
pais, o adulto procura proteção no interior de sua morada, na qual se tem uma ilusão de
segurança e controle.
Frente à despersonalização provocada pelo trauma, Walter Benjamin, citado por
Gagnebin (2006, op. cit.), observa uma crescente preocupação das pessoas em deixar sua
marca nos objetos que lhe pertencem, como sinal de sua posse e de sua própria existência.
Iniciais são bordadas em lenços, roupas, caixas, estojos, etc. O veludo ganha grande
destaque nesse período, nele o proprietário deixa facilmente seu rastro ao tocá-lo. Vemos
aí uma necessidade de confirmar a existência, seja através dos rastros da mão calcada no
veludo ou pela letra inicial do nome próprio nos objetos; é sobretudo nestes casos que
Benjamin percebe uma nova forma de narrativa, uma mediação simbólica.
A fim de exemplificar o que vimos até aqui sobre a compulsão à repetição e como se
dá essa outra forma de narrativa, mencionaremos o caso de Tito de Alencar, descrito por
seu psiquiatra Jean-Claude Rolland (1986). Tito era brasileiro, padre dominicano, estudou
filosofia na USP (Universidade de São Paulo) e era ligado aos comunistas - opositores do
regime militar vigente no Brasil a partir do golpe de estado de 1964. Tito foi preso em
1969 pela polícia brasileira, foi cruelmente torturado durante trinta dias sob as ordens do
delegado/comissário Fleury, nos porões do DOPS (Departamento de Ordem Política e
Social) – órgão criado durante a presença militar no governo brasileiro com o intuito de
controlar e reprimir os movimentos que eram contra o regime no poder.
A liberdade chegou a Tito e outros graças à possibilidade de troca desses prisioneiros
pelo embaixador da Suíça, sequestrado pelos insurgentes, em 1970. Tito de Alencar é
imediatamente expulso do Brasil, junto com os demais prisioneiros. Inicialmente após a
soltura permaneceu um curto período no Chile, mas sob o perigo de ser preso (pois os
militares chilenos também haviam tomado o poder em um golpe de estado) foge para a
Itália, onde não encontra apoio da Igreja católica. Finalmente, é acolhido pela ordem
97
dominicana na França. É a partir daí que Rolland (Ibid.) conhece Tito, ou melhor, o que
sobrou dele após a experiência carcerária. Rolland (Ibid.) descreve que encontrou um
homem quebrado, um farrapo humano, uma sombra do homem idealista que fora outrora.
Durante sua estada no presídio Tiradentes, em São Paulo o qual abrigava presos
políticos durante a ditadura militar, Tito redige de forma febril e bastante literal todo
processo de tortura sofrido. Esses escritos correram o mundo e tornaram-se o símbolo do
movimento pelos direitos humanos e da luta pelo fim da tortura no Brasil. Tito continua a
redigir essas experiências durante a estada na França, mas de forma menos acentuada. Tais
escritos parecem ser uma maneira de “reconstituir uma verdade interior, é certo que neste
ponto bem preciso a tortura tinha sido a razão para isso” (Id., Ibid., p. 224)16. A forma
febril e a frieza da narrativa da experiência de tortura se caracterizam por uma descarga
sem mediação; compulsão à repetição onde Tito revivia freneticamente o traumático, em
uma tentativa desesperada de conter a dor desta experiência avassaladora.
Benjamin (1994, op. cit.) aponta que nos 10 anos subsequentes ao término da
primeira guerra mundial (1914-1918), centenas de livros contendo histórias dos
sobreviventes inundaram o mercado literário. Nestes livros se encontravam relatos pessoais
de experiências que não eram transmissíveis de boca em boca, eram narrativas das
vivências devastadoras nas trincheiras e nos campos de batalha. Narrativas idênticas aos
relatos de Tito sobre sua experiência carcerária.
No período o qual Tito foi acolhido pelos confrades dominicanos tem início um
drama, que leva-nos a perceber a quão destrutiva a tortura foi, envolvendo manifestações
alucinatórias, fugas do mosteiro e, uma série de acontecimentos sem explicação aparente.
Certa vez Tito havia ficado parado sob chuva torrencial, embaixo de uma árvore,
localizada bem em frente ao mosteiro; foi aí que um padre muito próximo de Tito descobre
a razão desses acontecimentos – o comissário Fleury aparecia alucinatoriamente para Tito
– e dava ordens, tais como: não entrar no mosteiro, ficar sob a chuva, não dormir, entre
outras. Várias vezes os dominicanos encontravam Tito em posições diversas, ou
suplicando, ou como se escondendo de alguém. Essas cenas dramáticas sempre repetidas
por Tito aos poucos foram compreendidas por Rolland (1986, op. cit.): tratava-se de uma
repetição “Integral, literal da situação de tortura” (p. 224)17.
16
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Tradução nossa.
Tradução nossa.
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Segundo Rolland (Ibid.) havia uma dimensão intencionalmente teatral nestas cenas
reproduzidas por Tito: cenas que repetiam compulsivamente todo aviltamento sofrido nas
sessões de tortura, toda “espécie de sevícias que o tinham submetido durante sua tortura,
muito melhor e muito mais precisamente que ele podia escrever. Nós tocamos aqui no
limite da linguagem, que não pode compreender aquilo que escapa à consciência” (Id.,
Ibid., p. 225)18. As cenas dramatizadas traziam uma dimensão mais profunda, tais cenas
podiam transmitir tudo àquilo que havia sido trocado inconscientemente entre torturado e
torturador. No entanto esse sentido não é compreendido pelo torturado devido ao excesso a
que é exposto na tortura. Mesmo escrevendo de forma literal a experiência sofrida nos
porões do DOPS, a linguagem parece impotente para dar vazão ao afluxo de excitação
presente nesses casos traumáticos, porque não há palavra que possa representar a força do
trauma. Não há palavra que possa equivaler à dimensão do que foi vivido.
No caso de Tito de Alencar essa dramatização se deve à forma sistemática e cruel
empregada pelo carrasco durante a tortura. Nos relatos de Tito sempre há menção a várias
pessoas que estavam presentes durante as sessões de tortura como expectadores, ele notava
a presença de vários olhos observando-o enquanto era espancado, eletrocutado, sofria
sevícias e humilhações. Esse voyeurismo a que foi exposto parece ter relação com a
dramatização de seus estados delirantes, havia um exibicionismo compulsivamente
encenado nestes estados, caracterizando uma repetição da própria experiência de tortura
sob o olhar de terceiros, da qual ele nunca se libertou. A compulsão à repetição observada
em Tito foi a última barreira defensiva de um eu entrando em colapso, sendo esmagado
pela pressão das forças pulsionais sem ter qualquer meio para dominá-las. Amarrado nu ao
pau-de-arara durante trinta dias, por até 12 horas seguidas Tito foi torturado. Por fim, seu
suicídio na França prova o poder destrutivo do trauma vivido sob a forma da tortura.
Há toda uma explanação feita pelo próprio Tito, em seus escritos, sobre a tortura
sofrida e retomada por Rolland para demonstrar que os torturadores tinham um propósito
bem definido ao fazê-lo passar por essa via-crucis; entretanto tal detalhamento foge aos
propósitos deste trabalho. Buscamos apenas exemplificar a presença da compulsão à
repetição nessas situações traumáticas. No caso de Tito a tortura o faz identificar-se
permanentemente a um corpo que foi sistematicamente ligado à dor. “Deposto em seguida
de sua fala de sujeito, na medida onde a empresa sexual a qual vai tomar o carrasco faz a
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Tradução nossa.
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vítima se identificar a um corpo erógeno que apenas fala de excitação e de compulsão à
repetição” (Id., Ibid., p. 232,)19.
Por meio desse trágico exemplo vemos que o trauma é entendido como algo da
ordem do excesso, excesso que rompe os limites que definem o próprio sujeito. O
rompimento destes limites refere-se à invasão do eu por montantes energéticos que o
desafiam a dominá-los. A compulsão à repetição evidencia justamente a presença deste
excesso não ligado, que retira do sujeito a possibilidade de escoá-lo via simbolização.
Dessas observações destacamos um limite ao modelo da interpretação proposto por Freud
durante a primeira tópica. Portanto um novo modelo tópico aparece no horizonte, assim
como um novo modelo de temporalidade daí advém, uma vez que será preciso construir
uma memória para que este excesso encontre vazão. A compulsão à repetição das neuroses
traumáticas evidencia que não há rememoração, não existe um caminho para ser
reconstituído com a finalidade de chegar até a lembrança recalcada, porque sequer houve
representação e, consequentemente não há o que recalcar.
Tito, portanto, age a dor; seja por meio de seus escritos, seja nos estados delirantes.
O eu de Tito foi sufocado, dia a dia, por quantidades de mensagens – sonoras e corporais,
as quais não conseguia filtrar ou codificar; sob a presença mortífera deste excesso uma
defesa é acionada para evitar a morte do eu – a compulsão à repetição. Frente a estas
observações uma pergunta se faz necessária: como barrar a compulsão à repetição? Como
trabalhar com algo que não foi representado? Parafraseando Freud, uma nova ação
psíquica deve ser acrescentada à compulsão à repetição para que finalmente o excesso seja
ligado e o sujeito possa escapar do efeito devastador da pulsão de morte. Essa nova ação
psíquica seria proporcionada pelo outro que funcionaria como um eu auxiliar,
possibilitando ligar a pulsão de morte.
III.6. Como proceder frente ao irrepresentável?
Freud (1933[1932]/1996) nas „Novas conferências introdutórias sobre psicanálise‟
define o trauma como uma experiência que traz à mente, em um período muito curto de
tempo, uma excitação grande demais para ser absorvida. Como consequência, conforme
ressalta Seligmann-Silva (2000), o que vem à tona, nos sobreviventes de grandes
catástrofes, são fragmentos, “ou cacos de uma memória esmagada pela força das
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Tradução nossa.
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ocorrências que nunca chegam a se cristalizar em compreensão ou lembranças” (p. 10); o
que figura uma outra forma do aparato operar fora do princípio de prazer, característica dos
casos de neurose traumáticas. O autor supracitado está fazendo referência à narrativa de
cacos proposta por Walter Benjamin (1994, op. cit.).
Havíamos apontado no início do capítulo, através do exemplo do sonho de Primo
Levi (1990, op. cit.), a necessidade da narração do trauma como confirmação de uma
vivência que dificultou sua apreensão. Os outros, como testemunhas, fazem o papel de um
anteparo, suportando e, reflexivamente ajudando o sobrevivente a dar um sentido à
experiência traumática. Da mesma forma, segundo Gagnebin (2006, op. cit.), alguns
soldados, tocados pelas condições subumanas dos campos de concentração, com um
simples olhar, ou uma troca de palavras davam ao prisioneiro um suporte, retirando-os da
indiferença e trazendo, assim, um mínimo de humanização ao ambiente cáustico destes
campos.
Frente ao trauma a perspectiva de futuro vai se apagando diante de uma necessidade
bem mais urgente: a sobrevivência. A consequência de uma vivência traumática é a
destruição da capacidade de discernir entre o real e o irreal, ocorrendo uma fragmentação
no eu. Tal ferida implica “uma impressão repentina, muito forte, de não ter escapado à
morte, mas tê-la atravessado” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.94). O trauma é uma ferida
aberta no eu por um acontecimento violento que o impede de ser elaborado
simbolicamente configurando as marcas psíquicas. São estas marcas que despertam uma
ânsia violenta de narrar; entendemos essa narração como uma tentativa de contenção do
traumático, um jorro de palavras as quais na medida em que são “transpostas para os
outros, permite que o sobrevivente inicie um trabalho de religamento ao mundo, de
reconstrução” (Id., Ibid., p. 66).
A esse respeito já vimos no capítulo I que a leitura da carta 52 (FREUD, 1896/1996)
permite fazer uma distinção entre traço e marcas psíquicas. Tendo em vista essa questão
Herzog (2011) afirma que a concepção de aparelho psíquico fica “ampliada sendo que a
produção de representação (Vorstellung) não é sua única alternativa; em outros termos
produzir uma narrativa encadeada não é a única saída” (p. 9), de forma que o aparato
psíquico comporta outra forma de expressão.
Contudo é preciso ter presente que essa capacidade de escape pela via narrativa
parece ter um limite. Seligmann-Silva (Ibid.) baseado em Primo Levi (1990 op. cit.),
afirma que nos campos de concentração da segunda grande guerra, aqueles que puderam
101
testemunhar posteriormente os acontecimentos somente o conseguiram porque mantiveram
uma certa distância, por várias razões, dos eventos do campo. “A história do Lager foi
escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo.
Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo
sofrimento e pela incompreensão” (LEVI apud SELIGMANN-SILVA, 2008, op. cit., p.
68). Assim como Perseu vislumbrou a Medusa pelo reflexo de seu escudo conseguindo
evitar seu olhar mortal, aquele que encara, por assim dizer, o trauma é
petrificado/paralisado, por uma necessidade urgente: conter a energia que rompeu o paraexcitação.
Kafka (1998) em uma novela chamada: “Na colônia penal” descreve uma máquina
hedionda que serve de punição aos apenados. Nesta obra podemos extrair algumas
informações que nos ajudam a compreender melhor como o traumático se configura
enquanto marca psíquica. Essa máquina escreve na carne do condenado a palavra que
corresponde ao seu crime, fazendo-o sentir de forma literal o peso e a especificidade da
sentença que recebeu.
No decorrer do texto um observador, convidado a assistir a execução, pergunta ao
operador da máquina se o condenado conhece a própria sentença, o operador responde
negativamente, e faz uma breve explicação: “Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la
na própria carne” (Id., Ibid., p. 36). O observador, espantado com a resposta, pergunta se o
prisioneiro teve julgamento ou alguma possibilidade de defesa, ambas as perguntas são
respondidas negativamente, com um complemento surpreendente do operador da máquina:
“a culpa é sempre indubitável” (Id., Ibid., p. 38). O crime cometido pelo prisioneiro, que é
um soldado da colônia penal, foi faltar com o seu dever, dormindo na hora do plantão, e
faltar com o respeito a um superior que o repreendeu por dormir em horário de trabalho.
Através dessa série de perguntas feitas pelo observador podemos destacar os aspectos
que aproximam esta situação do traumático. A surpresa do prisioneiro em ser condenado à
morte, sem julgamento para poder defender-se; o desamparo a que é acometido por essa
revelação e a impotência a que é submetido ao ser amarrado nu à máquina enquanto a
sentença é cumprida. Tal como ocorre nos acontecimentos traumáticos nos quais figura
uma impossibilidade de defesa, o sujeito é surpreendido por algo que não esperava,
impossibilitando uma reação adequada.
Na ficção kafkiana o suplício dura 12 horas até a máquina transpassar o corpo do
condenado. Durante a descrição do processo de escrita, é explicado ao observador, que
102
após 6 horas é retirado da boca do condenado um pedaço de feltro, colocado desde o início
do processo, porque agora ele não tem mais forças para gritar – “como o condenado fica
tranquilo na sexta hora” (Id., Ibid., p. 44). O entendimento o iluminou, pois ele começa a
decifrar o que a máquina está escrevendo em seu corpo, não com os olhos, mas através da
dor. Temos aí um corpo que fala pela dor, marcado em seus limites pela dor. Nesse sentido
a dor, como uma pseudo-pulsão, eterniza a ferida; a dor é aquilo que não nos permite
esquecer, é através da sua força destrutiva agindo sobre o eu que encontramos a presença
da pulsão de morte.
A dor repetida em atos, característica dos processos traumáticos, esclarece Birman
(2005, op. cit.), denota uma experiência na qual a subjetividade se fecha narcisicamente em
uma espécie de solipsismo. Neste fechamento podemos notar, por um lado, a expressão da
pulsão de morte que pela via da repetição mortifica o sujeito, coagindo-o a eternizar a sua
dor; e por outro, uma tentativa de ligação, característica das pulsões de vida. As duas
pulsões aparecem sempre imbricadas “temos que supô-las associadas, desde o início”
(FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 67). Em 1937 Freud aproxima-se das teses de Empédocles
de Agrigento quando afirma que “Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça
por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se
esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem”
(p. 262-263). Esse fechamento em uma espécie de mônada narcísica é uma forma de defesa
frente a uma exposição ao pulsional, que fere o eu de forma brutal.
Para Roussillon (1999) o sujeito se retira, para sobreviver, da experiência traumática,
cortando-a (clivando) de sua subjetividade. “De um lado, a experiência foi vivida e,
portanto, ela deixou traços mnésicos de sua experiência e ao mesmo tempo, de outro lado,
ela não foi vivida e apropriada como tal na medida onde, como o diz Winnicott, ela não foi
colocada na presença do eu” (p. 20), o que suporia sua representação. O fato de o eu clivar
a experiência traumática não faz com que ela desapareça, as marcas deixadas no psiquismo
conservam sua força quantitativa e, irão reproduzir-se pela via da compulsão à repetição,
nesse sentido, estão em um modo de funcionamento além do princípio de prazer.
Assim a compulsão a repetição remete a um empobrecimento dos processos de
simbolização; caracterizada por uma “forma perturbada da ação, na qual o sujeito não
consegue mais regular os seus impulsos, que se descarregam como atos rudes e que voltam
até mesmo contra sua própria autoconservação do corpo” (BIRMAN, 2003, p. 27).
103
A passagem ao ato, uma característica dos transtornos alimentares, por exemplo, é
compulsão à repetição. São descargas momentâneas, irruptivas, que não sofrem mediação,
tomam o sujeito e o coagem em determinada direção; uma vez feita a descarga, após certo
tempo, o processo precisa ser repetido, já que o ato extingue apenas temporariamente sua
força. Essa ação denota uma violência sobre o próprio sujeito, e também sobre o outro em
casos de delinqüência, por exemplo; contudo queremos marcar que a compulsão à
repetição se caracteriza “como uma descarga psicossomática com nulo poder de
simbolização” (loc. cit.). É a ausência de uma simbolização que alimenta a repetição como
defesa. “É certo que a vida se protege pela repetição” (DERRIDA, 1995, op. cit., p. 188), a
repetição é um dispositivo defensivo para lidar com o excesso de excitação que irrompe
sobre o aparato.
Isso causa uma repetida presentificação da vivência dolorosa, remetendo a um
passado que não passa; sustentados por manifestações corporais implicadas na ordem da
compulsão à repetição e “da ação desagregadora da pulsão de morte no interior do eu.
Tratar-se-ia de uma memória ligada ao registro da sensibilidade, memória ligada ao corpo”
(MALDONADO E CARDOSO, 2009, op. cit., p. 53). Seguindo esta idéia Godfrind (1994,
op. cit.) afirma que a repetição é uma ruptura em relação ao funcionamento simbólico e
portador de sentido, sendo assim enigmática para o analista que busca informações dentro
do registro simbólico.
Na busca de semelhanças entre o passado e o presente Proust (1913/2003), no livro I
da trilogia “Em busca do tempo perdido”, nos proporciona através de suas percepções a
presentificação do passado. Evocando memórias que são despertadas mediante certas
sensações: “Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe
apresentava sucessivamente vários quartos onde havia dormido (....) meu corpo recordava
cada quarto, o tipo de cama, o local das portas” (Id., Ibid., p. 12). Embora Proust se esforce
para encontrar uma memória quase integral do ambiente que o cerca, o interessante é uma
memória que só pode ser evocada pelo sensível, uma memória corporal que é
posteriormente construída, ou melhor, definida, com ajuda da imaginação.
Nessa concepção de uma memória do sensível, Birman (1999, op. cit.) pontua que o
afeto se inscreve no registro da consciência, o que leva a indagar-nos de que consciência se
trata. É a consciência-percepção (assim como Freud concebeu em 1900 na „Interpretação
dos sonhos‟): “a porta de entrada da força pulsional no organismo e é ainda por ela que se
realiza seu retorno a partir do outro” (Id., Ibid., p. 69). Assim o pulsional exigirá uma
104
medida do sujeito para dominar sua força; caso esse trabalho não se realize o sujeito estaria
condenado a repetir o impacto traumático dessa afetação e “seria precipitado
impiedosamente ao masoquismo mortífero (...) assim se o sujeito não passar pela mediação
do outro, ele estará condenado ao trauma mortífero e a uma hemorragia contínua das forças
pulsionais” (loc. cit.), que tomará a via da descarga através da compulsão à repetição. É,
pois, o outro que possibilita essa ligação ao simbólico e rompe o fechamento traumático.
Nesta perspectiva Felman (2000) entende que testemunhar é realizar um ato de fala,
o testemunho, diferente da narração tradicional, “volta-se para aquilo que, na história, é
ação que excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer, é impacto
que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e delimitação constativa” (Id.,
Ibid., p. 18). O testemunho é pessoal, traz consigo o pesado fardo daquele que o profere e,
portanto, é único, não é intercambiável “é um fardo solitário” (Id., Ibid., p. 15), não há
como testemunhar pela testemunha. O testemunho é notadamente paradoxal, pois se
caracteriza como um rompimento do isolamento da experiência traumática, para falar
intercedendo pelos outros e para os outros. Portanto ele torna-se o veículo de uma
ocorrência, da própria realidade traumática, conferindo um lugar na história do sujeito de
algo que estava para “além dele mesmo” (Id., Ibid., p. 16).
A narrativa, composta de fragmentos, na concepção de Walter Benjamin (1994, op.
cit.), consiste em um trabalho de religamento ao mundo. Narrar o trauma, nas palavras de
Seligmann-Silva (2008 op. cit.), tem o sentido primário do desejo de renascer, a que
podemos remeter a manifestação da pulsão de vida. Contudo o narrador irá se deparar com
a dificuldade extrema de encontrar na linguagem uma forma de traduzir o excesso vivido;
uma vez que as palavras sempre ficarão aquém da realidade experienciada, faltaria
realidade às palavras. É aí que a “imaginação é chamada como arma que deve vir em
auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra
na imaginação um meio para sua narração” (Id., Ibid., p. 70). O termo buraco negro parece
bastante adequado para caracterizar o empuxo que o trauma realiza no sujeito; devido à dor
produzida constantemente o trauma é pura presentificação, puxando para si toda força
produzida para contra-investir até drená-la por completo, levando, assim, o sujeito à morte.
Tendo em vista estas questões evocamos a figura do narrador caracterizado por
Walter Benjamim (1986) como sucateiro; conforme ressalta Gagnebin (2006, op. cit.), esta
figura tão comum nas caóticas grandes cidades, recolhe os cacos, fragmentos, em meio aos
detritos. Uma alusão à nova forma de narrativa que foge ao convencional, pois a narrativa
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do traumático é constituída por essas ruínas, “uma transmissão entre cacos e migalhas”
(Id., Ibid., p. 53). Cremos que o analista deve estar atento justamente a esses fragmentos
que brotam via ato; e são movidos, certamente pela força destrutiva da pulsão de morte,
mas também encerram um clamor da vida em não se deixar perder nestas partes
desconexas. Deste modo remetemos a uma alusão muito próxima do narrador sucateiro:
Freud em „Construções em análise‟ (1937/1996, op. cit.) afirma que a tarefa do analista se
aproxima de arqueólogo escavando fragmentos do passado, ou seja: é preciso “completar
aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente,
construí-lo” (p. 276).
A construção seria a via que ajudaria a descartar a repetição. Dentro desta acepção a
construção, mediada pelo outro funcionando como um eu auxiliar, emerge como uma
forma de ordenar o caos, possibilitando unir elementos dispersos. O analista como o
sucateiro juntaria esses cacos dispersos e daria uma forma a essa massa desorganizada. A
possibilidade de organizar os elementos caóticos provenientes do traumático em uma
organização temporal e histórica – permitiria enfim, um arranjo diferente do trauma.
Duparc (2008) considera que a construção está do lado da interpretação e, aponta
alguns perigos nesta empreitada, tal como a sugestão baseada na sedução da autoridade do
analista. O analista pode negligenciar o papel do analisando e sustentar sua autoridade
sugestiva, na qual o analisando corre o perigo de alienação. São ameaças que devemos
levar em conta, não somente nas construções relacionadas ao traumático, mas no próprio
trabalho de interpretação das neuroses de transferência.
Entendemos a construção como uma retomada dos elementos perceptivos
desorganizados, tal como a figura da mãe que ajuda o bebê a organizar as pulsões parciais
inicialmente em um todo. Dessa forma a construção é preparatória à interpretação, na
medida em que o analista como um eu auxiliar, empresta forças ao eu quase esvaziado do
analisando para ligar a energia disruptiva. Longe de ser uma tarefa fácil “a mente do
escavador está lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e importantes partes
certamente se perderam, pela violência mecânica, pelo fogo ou pelo saque” (FREUD,
1937[1940], op. cit., p. 277).
Freud (Ibid.) lembra que para o analista, a construção constitui apenas um trabalho
preliminar. O analista ao completar um fragmento comunica ao paciente para que a partir
desse material construído se possa agir sobre ele. Dessa forma se constrói um novo
fragmento a partir do novo material e assim por diante. A simbolização gera uma
106
temporalização do traumático encriptado. É por esta via que há uma possibilidade de sair
do campo da sobrevivência para voltar à vida. No entanto, conforme indica SeligmannSilva (2008, op. cit.), trabalhar com sobreviventes de acontecimentos traumáticos “nos
ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o
sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter
morado como que do outro lado do campo simbólico” (Id., Ibid., p. 69).
Considerações finais
Tivemos como principal objetivo nesta dissertação realizar um mapeamento do
conceito de repetição na obra freudiana. Para essa empreitada partimos do Projeto de 1895,
texto no qual a repetição aparece colocando questões importantes para o desenvolvimento
teórico-clínico da psicanálise. Detemo-nos particularmente na vivência de dor, que nos
permitiu destacar a presença da repetição de uma vivência dolorosa que o eu não consegue
refrear devido às quantidades excessivamente intensas envolvidas neste processo; fato que
traz impasses ao modelo de aparato neuronal criado para dominar excitações e, também
não se adequa às exigências do princípio de prazer.
É importante lembrar que o Projeto de 1895 ocupa um lugar singular entre os outros
textos produzidos por Freud, uma vez que foi abandonado e, anos depois ao ser descoberto,
Freud tentou por todos os meios destruí-lo. Entretanto, encontramos neste manuscrito
renegado germens de elementos conceituais importantes, que aos poucos serão retomados e
desenvolvidos de acordo com o avanço das pesquisas teórico-clínicas freudianas. Dentre
desses elementos destacamos a vivência de dor, o para-excitação, vivência de satisfação,
princípio de inércia, energia livre e ligada, entre outros.
Ao propor uma “psicologia científica” Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) dispôs os
neurônios, matrizes que compõem o sistema nervoso, em três sistemas distintos (phi (),
psi () e ômega (ω)). A principal diferença entre os sistemas é a capacidade de reter ou
não a excitação que passa por eles: tal disposição o sistema psi () de ser a sede da
memória, na medida em que os neurônios deste sistema são os únicos capazes de guardar
informações da passagem da quantidade. A energia ao passar pelas barreiras de contato
existentes nesse sistema neuronal encontra uma resistência que somente é transposta
quando a energia da corrente é superior a da barreira. Dessa forma é deixado um traço
mnêmico referente à passagem da energia nesta barreira, possibilitando formar uma
memória e, permitindo ao aparato nervoso empreender o caminho mais eficiente para
escoar a energia que por ele circula.
Escoar a energia de forma eficaz é fundamental porque o sistema nervoso, proposto
por Freud (FREUD, 1895[1950]/1996), opera de acordo com duas funções básicas: (1)
seguindo o modelo do arco-reflexo – descarga energética total; (2) pela fuga do estímulo:
função primária e secundária, respectivamente. A função primária corresponde de maneira
mais ampla à finalidade de todo o organismo – princípio de inércia (livrar-se de toda
108
excitação); A esse propósito tal formulação, segundo Derrida (1995, op. cit.), impede de
nos surpreendermos com o artigo escrito 25 anos depois: Além do princípio de prazer
(FREUD, 1920/2006, op. cit.), no qual Freud declara que as exigências da vida obrigam o
aparato a seguir um caminho mais amplo, mas no final das contas segue o propósito de
toda a vida – a morte (nível zero de excitação no aparato). A função secundária, por sua
vez, responde ao princípio de constância – funcionamento do aparato em um nível mínimo
de energia, essencial para realizar a ação específica a fim de satisfazer os estímulos
endógenos.
O sistema psi (), também, é a sede do eu (psi () núcleo) caracterizado por um
núcleo de neurônios permanentemente investidos (fato que implica certa tolerância à
tensão), isso os capacita de transformar a energia em estado livre (processo primário) em
energia ligada (processo secundário); fundamental para sobrevivência do aparato neuronal.
A vivência de dor se aproxima da noção trauma (referente ao Além do princípio de prazer
(FREUD, 1920/2006, op. cit.)) precisamente pela insuficiência egóica em gerir um nível
muito grande de excitação que o invade. Há outro ponto que toca a questão da repetição, a
energia exerce violência nos pontos de resistência entre os neurônios (as barreiras de
contato) e, os sinais dessa violência são os traços após sua passagem. Portanto, a formação
desses traços implica a dor, conforme aponta Derrida (1995, op. cit.), assim como o eu
deve possuir uma tolerância à dor para permanecer constantemente investido de energia,
problema que será resolvido apenas em 1924 com a formulação do masoquismo primário.
Os traços mnêmicos capacitam à rede neuronal de poder escoar a excitação pelos
caminhos mais facilitados, que serão os mais repetidos. Vemos aqui o cumprimento à
exigência de manter a energia sempre que possível em um nível constante, mas na verdade
também cumpre, em um sentido mais amplo a função primária/princípio da inércia. Uma
vez que há sempre energia afluindo para o aparato temos sempre novos caminhos sendo
traçados, o que implica uma certa seletividade e capacidade de rearranjo dos caminhos a
serem seguidos. A carta 52 (FREUD, 1896/1996, op. cit.) nos possibilita distinguir dois
tipos de impressões que são realizadas nos neurônios responsáveis pela memória – os
traços e as marcas, distinção que será importante para diferenciar uma repetição como o
retorno do recalcado e uma compulsão à repetição que se encontra além do processo de
recalque.
A dor, apresentada no Projeto de 1895, tem a capacidade de derrubar por completo às
barreiras de contato nos neurônios psi (), deixando atrás de si facilitações permanentes. A
109
ocorrência da dor nos permite diferenciar os traços mnêmicos (formados por uma pequena
quantidade energética) de algo mais grave, uma vez que a intensidade da vivência de dor
tem a capacidade de tornar os neurônios psi () permeáveis (como os neurônios do sistema
phi ()) a sua passagem, denotando um perigo regressivo para o aparato. Diferente dos
traços a presença da dor forma marcas psíquicas. Na Carta 52 (Id., Ibid.) Freud nos
apresenta os “fueros”, como regiões nas quais vigoram leis de um período anterior, de
forma que as leis vigentes no aparato não são levadas em conta por essas formações. A
partir dessa observação podemos referenciar as marcas psíquicas, criadas a partir da
vivência de dor, situando-se fora do campo representacional, pois não sofrem os mesmos
processos de retranscrições e rearranjos, citados na Carta 52 (Id., Ibid.), como ocorre no
caso dos traços mnêmicos.
A vivência de dor nos leva a pensar que as marcas, tais como os fueros, se
caracterizam por uma impossibilidade de mudança, o sujeito fica como paralizado diante
de um evento que se caracteriza por uma grande descarga energética a qual o eu não pode
refrear. Conforme as indicações de Caropreso e Simanke (2006), a partir disso há um
processo repetitivo que continua ocorrendo enquanto as representações provenientes da
vivência de dor não forem ligadas. Essa repetição ocorre porque a capacidade de ligação
do eu foi ultrapassada em muito pela energia invasora. O que leva o aparato a realizar um
modo de resposta muito semelhante à compulsão à repetição, conforme Freud nos
apresenta em 1920.
A função do eu é mediar a energia livre que irrompe no aparato, evitando que certos
caminhos (experiências dolorosas) sejam percorridos. Portanto, o eu interfere na circulação
da quantidade, e procura livrar-se dessa quantidade pelo método da satisfação, buscando,
para isso, no exterior o objeto que lhe trouxe alguma satisfação (o exemplo dado por Freud
é a mãe/cuidador que alimenta o bebê cumprindo a ação especifica que este ainda é
incapaz de realizar, devido à imaturidade física e neurológica). Entretanto, Freud se depara
com um impasse: o domínio pelo eu dos processos primários resultantes de uma vivência
de dor são muito mais difíceis de serem alcançados, devido à quantidade excessivamente
intensa proveniente de phi (), o que leva o aparato a uma repetição da vivência dolorosa
sem que o eu consiga prontamente refreá-la.
Frente a uma série de impasses Freud abandona a configuração neurológica do
Projeto de 1895 e se detém na vivência de satisfação como fundadora de um aparato
psíquico regido pelo princípio de prazer (FREUD, 1900/1996, op. cit.). Pensar o aparato
110
psíquico nessas condições permite manter uma estreita articulação com a repetição, uma
vez que o objetivo do desejo (estados desiderativos cujo paradigma é a fome do bebê) é
reproduzir uma identidade perceptiva que envolveu um declínio da excitação e foi sentido
como prazer. A repetição, nesta acepção, consiste em uma busca constante em reencontrar
o objeto que foi perdido na experiência original de satisfação.
A vivência de dor não aparece na Interpretação dos Sonhos (Id., Ibid.),
consequentemente desaparece também a ideia de um processo primário que possa levar o
aparato a reativar vivências desprazerosas, pois agora, em uma configuração de aparato
psíquico governado pelo princípio de prazer, tais vivências serão originalmente evitadas. O
princípio de prazer impõe ao aparato uma inclinação a barrar qualquer representação
aflitiva ou fugir, se possível, de toda experiência que possa implicar uma elevação da
tensão energética, porque todo aumento da excitação implica necessariamente o desprazer.
A partir daí Freud se volta para a questão da defesa contra as representações que
possam causar desprazer ao eu. Para tais representações o eu se utiliza do mecanismo de
recalque forçando-as para fora da consciência. Após o abandono da primeira teoria do
trauma (1897), Freud se detém nas fantasias inconscientes relacionadas ao período edípico.
As fantasias referentes ao período edípico são posteriormente recalcadas devido à
incompatibilidade com as aspirações morais introjetadas pelo eu através da educação.
Embora recalcar não impede que as representações sejam rearranjadas, como vimos na
Carta 52 (FREUD, op. cit.) de modo a aparecerem sob uma formação de compromisso que
lhes dá acesso à consciência sob a forma de sintomas, é aí que repetição entra em cena
através do retorno do recalcado.
O fracasso clínico no caso Dora destaca a repetição das fantasias referentes ao
complexo de Édipo, ou seja, é a repetição do sexual que Freud se refere. O desejo sexual
da criança é inicialmente dirigido aos seus pais, seus objetos mais próximos; isso ocorre
porque os pais/cuidadores são os primeiros reguladores da excitação pulsional e, portanto,
o primeiro objeto de satisfação da criança. Nesta configuração o sujeito se fixa
libidinalmente na vivência edípica de satisfação, alimentando pela fantasia a satisfação que
lhe é negada pela realidade. São essas aspirações edípicas que reaparecem via
transferência.
O caso Dora forneceu à Freud uma importante lição clínica – tudo que não pode ser
enunciado pela fala irá se apresentar de outro modo, até então inesperado, ou seja, se
apresenta em ato no registro da transferência. Assim Freud desenvolve o modelo do acting
111
out, o qual supõe um conteúdo psíquico recalcado que é repetido em uma encenação com o
analista, reproduzindo não através de lembranças, mas como ato. A repetição via ato é a
repetição do sexual, é a manifestação das moções sexuais barradas pelo eu por gerarem
tensão entre o sistema consciente e inconsciente. Temos aí uma temporalidade, do passado
sobre o presente, que se apresenta (encena) como uma repetição massiva de conteúdos
sexuais recalcados.
O analista busca rastrear e tornar acessível à consciência o que é repetido em ato pelo
analisando, com o intuito de conferir um destino diferente do recalque à libido fixada
nestas cenas primitivas. O trabalho analítico, entretanto, não é fácil, pois a mesmas forças
libidinais que regrediram alimentando essas fixações se erguerão como resistências ao
trabalho de análise. A partir disso para vencer a resistência do paciente em recordar, Freud
procura se servir da transferência, tomando-a como uma aliada no processo terapêutico.
O manejo transferencial ganha destaque como a principal ferramenta que o analista
poderá utilizar para barrar a repetição e conduzir para o âmbito da recordação tudo o que
emerge via ato. Em outras palavras é preciso traduzir em palavras aquilo que o paciente
procura obstinadamente repetir pelo ato. Entretanto casos clínicos onde a repetição de um
mesmo destino trágico se impunha, casos que eram interrompidos ou não avançavam
devido a uma resistência feroz, mostram uma repetição muito mais como uma compulsão,
excedendo a repetição explicada pelo retorno do recalcado. Nesse sentido voltamos o olhar
para as diferenças estabelecidas no primeiro capítulo entre traços mnêmicos e marcas
psíquicas, os primeiros estão dentro da concepção de recalque no qual as representações
desprazerosas têm seu acesso barrado à consciência e, também, podem ser rearranjadas de
modo a aparecer como sintomas. No segundo caso, tudo se passa de forma diferente, os
fueros (FREUD, 1896/1996, op. cit.), como mostramos, são “localidades” psíquicas, que
não levam em conta a lei vigente do aparato psíquico – o princípio de prazer; estão,
portanto, à margem de suas atribuições. Isso traz uma severa consequência para a
formulação teórico-clínica de Freud.
Tal como a repetição em ato de Dora passou despercebida de Freud, casos em que a
repetição não era condizente com o retorno do recalcado também podem ter passado
despercebidos. Em uma nota de rodapé acrescentada em 1924 no caso clínico da Sra.
Emmy von N. (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, op. cit.) Freud reconhece, que os
inúmeros abandonos ao tratamento da Sra. Emmy ocorriam sempre que ela obtinha uma
melhora, era um “caso autêntico de compulsão à repetição” (Id., Ibid., p. 133). Percebe-se
112
aí um imperativo que obriga o sujeito a repetir determina situação. Entretanto, Freud ainda
não dispunha de um aparato teórico que respondesse a esse fenômeno.
Notamos a partir daí uma passagem ao ato na qual o sujeito não apresenta seu desejo
por meio de uma mise em scène com o analista. Pelo contrário, nas passagens ao ato o
desejo é transformado diretamente em ato sem qualquer mediação, o que denota um
assujeitamento frente às forças pulsionais que impõem uma direção a qual o sujeito se vê
impotente de contrariar. Nesta perspectiva temos uma descarga sem a medição egóica, não
há representação, mas um imperativo energético que impele a descarga; o que denota algo
que está fora, ou que não passa pelo campo representacional e parece forte o bastante para
prevalecer sobre o princípio de prazer. Estas descargas trazem um limite à conceituação
freudiana fundada sobre o princípio de prazer porque elas repetem situações dolorosas para
o sujeito, situações as quais ele gostaria de resistir, mas não consegue fazer frente ao
imperativo das forças em jogo.
A eclosão da primeira grande guerra mundial (1914-1918) e o consequente
aparecimento de vários casos de neuroses traumáticas envolvendo os sobreviventes deste
conflito, somado a impasses teóricos (narcisismo, resistência inconsciente do eu, repetição
excedendo o recalque), levam Freud a rever e reestruturar a primeira tópica. Em 1919, no
artigo O Estranho, Freud já dá alguns índicos de um outro tipo de repetição que nada tem a
ver com o recalque, remetendo pela primeira a idéia de uma compulsão à repetição,
proveniente das moções pulsionais poderosa o bastante para sobrepujar o princípio de
prazer.
A partir de 1920, com o artigo Além de princípio de prazer, Freud inicia uma
reformulação tópica. O trauma começa a ser redefinido, partindo agora da ideia de que há
na psique uma forte tendência ao princípio de prazer, mas que há outras forças que se
opõem a esta tendência, uma vez que ela nem sempre será levada em conta. Os sonhos das
neuroses traumáticos chamam a atenção de Freud para uma espécie de compulsão à
repetição que toda noite recoloca o sobrevivente de um evento traumático
alucinatoriamente ante a situação que desencadeou o trauma. Essa observação leva Freud a
entender os sonhos destas neuroses fora da fórmula proposta em 1900 – de que todo sonho
é uma realização de desejo.
Para explicar como a neurose traumática ocorre, Freud toma emprestado da biologia
a ideia de uma vesícula viva; com isso vários temas referentes ao Projeto de 1895 são
retomados. A vivência de dor ressurge, em outro nível de elaboração conceitual, mas os
113
termos são basicamente os mesmos do Projeto de 1895 – o aparato é atingido por uma
grande quantidade de excitação que rompe o escudo protetor e o invade. Frente a essa
energia estrangeira o eu pego de surpresa não tem forças para realizar um contra-ataque à
altura; o que ocorre, então é uma repetição da vivência dolorosa – agora sob o nome de
compulsão à repetição.
O esquema energético do aparato psíquico, baseado em uma homeostase (constância)
é quebrado pelo evento traumático, a energia livre invade o aparato, frente a isso o
princípio de prazer é colocado de lado para que uma tarefa mais importante seja realizada –
ligar a excitação. Enquanto a ligação não ocorre um mecanismo defensivo é acionado: a
compulsão à repetição. Nesse sentido configura-se uma nova disposição da angústia – o
susto representa a falta de preparo do eu frente ao impacto de uma vivência, ou seja, não há
uma prontidão energética (contra-investimento) para assegurar a integridade egóica – não
houve um sinal (angústia-sinal) para a mobilização de contra-investimentos.
A partir dessa nova configuração a ligação da energia é uma tarefa fundamental para
a sobrevivência do aparato (como também era para no Projeto de 1895), caso ela não seja
efetivada, impossibilita o princípio de prazer de ser ativado e, também, a manutenção da
energia em um nível constante. Na impossibilidade de proceder um destino como o
recalque, pois o princípio de prazer ainda não foi acionado, o evento traumático é clivado
do eu. O aparecimento da compulsão à repetição é um indicativo que o eu falhou em sua
tarefa de ligar a energia pulsional em representantes. A postulação da compulsão à
repetição coloca Freud no caminho da pulsão de morte reformulando o dualismo pulsional.
Em 1924 ao postular o masoquismo primário, Freud o coloca como o estado no qual
a pulsão de morte é dirigida para o próprio sujeito, mas através da um enlaçamento
libidinal, ou seja, ligada pela libido. Tal intricamento é possibilitado justamente a partir do
laço libidinal entre mãe e filho. Daí tem origem um núcleo masoquista no eu que
possibilita reter e receber certa quantidade de energia ligada, sem esse núcleo qualquer
acúmulo energético seria insuportável para o eu. Nesses apontamentos reencontramos a
indicação de Derrida (1995, op. cit.) acerca da presença e de uma tolerância à dor nas
formações dos traços pela passagem da quantidade nas barreias de contato do Projeto de
1895.
Foi o trauma que revelou a compulsão à repetição e expôs os limites do método
interpretativo, revelando uma outra face do aparato psíquico fora do campo
representacional e do princípio de prazer. Assim o sujeito repete em ato elementos que
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escapam ao campo da simbolização, de forma que nos deparamos com algo que não possui
representação, que não pode ser decifrado de maneira a ser colocado em palavras;
justamente porque não houve capacidade do eu para ligar essa energia, só após a
dominação a excitação pode assumir formas organizadas, dentre elas a de ser representada
psiquicamente.
O caso de Tito de Alencar expõe a repetição compulsiva da dor em que o traumático
lança o sujeito. Neste caso temos um eu sufocado por quantidades de mensagens
excessivas as quais não pode traduzir; a única forma de tentar dar um contorno ao
traumático foram às passagens ao ato via escrita e os episódios alucinatórios que o
recolocavam na situação de tortura. A gravidade deste caso clínico nos coloca a pergunta –
como podemos proceder clinicamente em tais situações? Cremos que uma nova ação
psíquica deve ser acrescentada à compulsão à repetição para ligar a energia indomada –
essa nova ação seria realizada pelo outro que funcionaria como um eu auxiliar, ligando a
pulsão de morte, tal qual o cuidador o fez nos tempos de infância.
Walter Benjamin (1994, op. cit.) aponta uma narrativa de fragmentos nestes casos
envolvendo sobrevivente de grandes catástrofes, uma narrativa que foge a forma
tradicional uma vez que a compulsão à repetição remete a um empobrecimento dos
processos de simbolização. É aí nestes fragmentos que brotam em ato no sobrevivente que
Seligmann-Silva (2008 op.cit.) enxerga um sentido primário de renascimento, embora o
narrador encontre uma dificuldade extrema de colocar em palavras toda a dor vivida, a
imaginação é chamada em auxílio ao simbólico como meio de construir uma narrativa que
possa refrear a ação destrutiva da pulsão de morte.
Tendo em vista estas observações remetemos a Freud (1937/1966, op. cit.) que vê na
construção desses fragmentos, no sentido de uma retomada dos elementos não
simbolizados, uma forma preparatória para o sujeito dar um contorno a vivência
traumática. Para isso o analista precisa funcionar como um eu auxiliar emprestando forças
que podem ajudar na tarefa primordial de ligação da energia disruptiva que desencadeou a
compulsão à repetição.
Podemos afirmar após essas considerações que a repetição sempre funcionou como
um motor para as reflexões de Freud, trazendo impasses tanto para a teoria quanto para a
clínica, impasses que foram fundamentais para o avanço da psicanálise. As questões
desenvolvidas em nossa pesquisa certamente não esgotam o campo de reflexões acerca da
repetição; entendemos que as investigações sobre a memória, a dimensão do
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irrepresentável, a questão da temporalidade, temas das reflexões de Walter Benjamin
podem contribuir para a compreensão da complexidade do que cerca a repetição dos
acontecimentos traumáticos. Na presente dissertação deixamos apontada a importância
destas ideias que pretendemos explorar em nossas futuras investigações.
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