Pubeíte: uma causa de dor inguinal em atletas

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Pubeíte: uma causa de dor inguinal em atletas
Artigo Original
Pubeíte: uma causa de dor inguinal em atletas
Osteitis pubis: a cause of inguinal pain in athletes
RESUMO
Henrique Antônio Berwanger Cabrita1
e Wagner Castropil2
A pubeíte é uma inflamação da púbis e pode ser confundida com patologias abdominais que provocam dor
inguinal ou pélvica. É comum em atletas e seu diagnóstico pode demorar, levando à cronicidade da doença.
O tratamento conservador é o de escolha, mas em casos crônicos ou aqueles sem resposta ao tratamento conservador o
tratamento cirúrgico pode ser necessário, apresentando bom
resultado e taxa de retorno ao esporte em 93,3% dos casos.
O objetivo deste estudo é apresentar a patologia e analisar os resultados do tratamento cirúrgico em casos onde
o tratamento conservador não foi eficaz.
Mestre e Doutor pela USP; Especialista em Traumatologia, Cirurgia
de Quadril e Medicina Esportiva; Membro do Instituto Vita
2
Mestre e Doutor pela USP; Especialista em Ortopedia e Medicina
Esportiva; Fundador e Presidente do Instituto Vita
1
Recebido em 07.03.2014
Aceito em 12.05.2014
Cabrita, H.A.B., Castropil, W. Pubeíte: uma causa de dor inguinal em
atletas. Ars Cvrandi. 2015;39(1):19-22.
PALAVRAS-CHAVE
Sínfise púbica, osteíte, esporte.
ABSTRACT
Osteitis pubis is an inflammatory disease of pubis and
can be misdiagnosed with abdominal or pelvic conditions associated with groin pain. It is a common condition in athletes and the diagnosis can be delayed.
Conservative treatment is the primary choice but in
chronic cases surgery can be necessary leading to good to
excellent results and return to sport in 93,3% of the cases.
The purpose of this study is present the pathology and
analyze the results of an operative technique in cases
when conservative treatment was ineffective.
Cabrita, H.A.B., Castropil, W. Osteitis pubis: a cause of inguinal pain
in athletes. Ars Cvrandi. 2015;39(1):19-22.
KEYWORDS
Pubic symphysis, osteitis, sports.
INTRODUÇÃO
A primeira descrição da osteíte púbica foi feita por Beer
1924) como uma inflamação que envolve a sínfise púbica após cirurgias urológicas.
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reservados a Ars Cvrandi
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Artigo Original
Alguns anos depois veio a primeira associação da patologia com a atividade física quando Spinelli (1932) definiu a “dor na virilha do esgrimista”, uma inflamação da
púbis comum em praticantes deste esporte.
Segundo Kapandji (1977) a articulação Inter pubiana
é uma anfiartrose com movimentos mínimos, caracterizando uma forte união articular onde são necessárias
forças de grande magnitude para que haja movimento.
O mecanismo de cisalhamento descrito por Gomes (1997) ocorre durante o apoio unilateral quando o membro apoiado produz
uma força cranial e o membro sem apoio tende ao deslocamento distal da articulação. Quanto maior a força imposta sobre a
musculatura maior a tração que os adutores causarão à sínfise.
Vieira (2001) descreve algia na região pélvica e na parte
inferior do abdome com irradiação para região perineal
e raiz da coxa nos indivíduos com osteíte púbica. Este
autor faz um alerta sobre o diagnóstico diferencial desta
condição em relação a doenças como osteomielite, espondilite anquilosante, artrite reumatóide e hérnia inguinal.
Algumas definições são feitas quanto ao local de acometimento: Andrivet (1972) define como “entesite dos adutores”; outros
autores denominam osteíte púbica por tratá-la como doença
osteoarticular, e Durey (1976) denomina osteopatia dinâmica
do púbis por relacionar com a causa dinâmica da patologia.
Em relação ao tratamento, Vleeming (1990) e Batt (1995)
et. al. preconizam o tratamento conservador primário,
associando o afastamento da atividade esportiva, fisioterapia e medicação anti-inflamatória. Se os sintomas persistem a infiltração com corticosteroide pode ser considerada.
Tabela 1. Relação dos pacientes operados
Iniciais
Idade
Esporte
R. F.
S. D. P.
S. R. R.
E. Z.
D. R. B.
R. M.
L. M. G.
A. N.
R. P.
L. M.
A. M.
R. F. F.
M. S.
S. O. M.
D. K.
MÉDIA
30
22
29
24
35
22
18
24
21
37
38
26
18
34
23
26.7
Judô
Judô
Futebol
Judô
Futebol
Judô
Judô
Basquete
Judô
Futebol
Futebol
Voleibol
Futebol
Futebol
Futsal
O objetivo deste trabalho foi descrever nossa casuística
de pacientes com diagnóstico de pubeíte submetidos ao
tratamento cirúrgico, assim como descrever os resultados
obtidos com esta técnica considerando-se dor, satisfação e
retorno às atividades.
METODOLOGIA
Avaliamos retrospectivamente 15 pacientes que procuraram o nosso serviço com diagnóstico clínico confirmado por pelo menos um método de imagem e que
tenham sido submetidos ao tratamento conservador por
pelo menos 3 meses sem resposta.
A tabela 1 descreve os pacientes com relação à idade,
tempo de dor, esporte praticado e nível competitivo.
O gráfico 1 apresenta a casuística de acordo com o
esporte praticado.
ARS CVRANDI | V. 39 | nº1 | JANEIRO • FEVEREIRO • MARÇO • 2015
Nível
Estadual
Nacional
Internacional
Recreacional
Nacional
Internacional
Internacional
Estadual
Nacional
Recreacional
Recreacional
Estadual
Estadual
Recreacional
Estadual
7%
7%
7%
Futebol
39%
Judô
Basquete
Em pacientes com dor crônica (duração maior que três
meses), sem resposta ao tratamento conservador e com
lesão evidente à ressonância magnética ou à cintilografia óssea, pode-se considerar o tratamento cirúrgico.
Encontramos na literatura a descrição de inúmeras técnicas cirúrgicas. Rocosa (1981) aconselha a tenotomia dos
adutores longo e curto e do reto abdominal. Cabot (1996)
aconselha somente a tenotomia do adutor longo, associando perfurações no púbis na região de origem dos tendões.
Tempo
de Dor
10
8
6
6
12
8
12
6
5
7
15
24
4
20
10
10.2
Voleibol
Futsal
40%
Gráfico 1. Distribuição dos pacientes por esporte praticado.
Todos os pacientes receberam o diagnóstico de pubeíte e foram
operados pela mesma técnica cirúrgica e equipe médica.
A técnica cirúrgica utilizada pelos autores foi a preconizada
por Rocosa e Cabot modificada, posicionando-se os pacientes em decúbito dorsal horizontal com os quadris em abdução e rotação externa (foto 1).
A via de acesso foi suprapúbica, com incisão transversal mediana de aproximadamente cinco centímetros (foto 2) com dissecção até a fáscia do reto femoral e, através da mesma incisão,
abordagem da origem dos adutores, na região inguinal.
Realiza-se a fasciotomia superficial do tendão do músculo
reto abdominal, com identificação dos ventres musculares e preservação da fáscia profunda. No ventre muscular
foi possível identificar áreas de fibrose que foram ressecadas. Realiza-se a tenotomia dos músculos adutores longos,
sempre bilateralmente. Finalizava-se a cirurgia com perfurações múltiplas no púbis com fio de Kirschner 2.0.
Pubeíte: uma causa de dor inguinal em atletas - Cabrita H.A.B.A. et al.
máticos até o presente estudo. Sete pacientes voltaram
à prática da atividade física em nível competitivo e os
outros sete praticam atividade física regularmente. Um
paciente não retornou à prática de atividade física no
nível esperado. O tempo médio de retorno à atividade
esportiva foi de 5,25 meses (variando de 3 a 8 meses).
Figura 1. Posicionamento do paciente.
Treze pacientes apresentaram-se satisfeitos com os resultados (86,6%), não referindo desconforto ou dor durante a prática de atividade física. Um paciente (6,67%)
apresentou satisfação em grau moderado, apresentando
certo desconforto nas atividades mais intensas, mas que
não o impossibilitava de realizar as atividades desejadas e um mostrou-se insatisfeito com o procedimento
(6,67%), apresentando restrição à prática das atividades físicas que gostaria de realizar.
Nenhum paciente apresentou sintomatologia para
atividades de vida diária ou qualquer limitação para
atividades físicas que não envolviam movimentos de
explosão (tais como nadar, pedalar, correr).
Dois pacientes apresentaram complicações pós-cirúrgicas. Uma das complicações foi uma infecção superficial
com deiscência de sutura que evoluiu bem com antibioticoterapia oral.
Um caso evoluiu com trombose de Monroe (trombose da
veia peniana) após ter apresentado hematoma escrotal, o
que prejudicou o protocolo de reabilitação pós-operatório.
Figura 2. Tenotomia do reto-abdominal e exposição do púbis.
O paciente tem alta em geral no 1o pós-operatório com o
uso de suspensório escrotal que é mantido por três semanas.
O protocolo de reabilitação pós-operatória consiste de
analgesia, manutenção da amplitude de movimentos dos
quadris e alongamentos passivos no limite de dor do paciente e controle do edema da primeira à terceira semana.
A partir da terceira semana, iniciam-se exercícios isométricos, alongamentos mais intensos e treino de marcha, além
de correção da postura antálgica adotada após a cirurgia.
Na sexta semana iniciam-se os exercícios isotônicos e
aeróbios na bicicleta estacionária e piscina.
Da oitava à décima semana o paciente realiza corridas
leves/trote e intensifica-se o fortalecimento muscular,
esperando o retorno à atividade específica à partir do
terceiro mês.
Os pacientes foram avaliados por meio de questionamento subjetivo de sua satisfação em relação ao tratamento (VAS) e retorno ao esporte.
RESULTADOS
O tempo de seguimento médio dos pacientes foi de
40,5 meses (variando de 17 a 73 meses). Na casuística
analisada, 14 pacientes (93,3%) retornaram à atividade
física no mesmo nível pré-lesão e permanecem assinto-
DISCUSSÃO
A literatura sobre osteíte púbica é escassa e a terminologia empregada bastante variável e não padronizada.
Optamos pela denominação pubeíte por acreditarmos
tratar-se de uma inflamação óssea que pode ser comprovada
por meio da cintilografia óssea ou ressonância magnética.
O aparecimento da pubeíte está associado a atividades
que promovem intenso esforço sobre região púbica,
especialmente sobre a sínfise, que constitui origem e
inserção de potentes grupos musculares, como o reto
abdominal e os adutores da coxa.
Estas atividades incluem os esportes em que se realizam movimentos multidirecionais, com aceleração e
desaceleração como descrevem Holt (1995) e De Paulis
(1998). O movimento de pivô realizado pelo esgrimista
é um dos exemplos característicos.
A nossa casuística confirma este fato, mostrando que
todos os pacientes acometidos praticam esportes de
explosão e mudança de direção.
O tempo de dor pré-operatório foi bastante prolongado
(média de 10,2 meses), o que confirma a dificuldade
diagnóstica e o caráter desta patologia.
O protocolo de tratamento conservador é eficaz na maioria dos casos como mostra a literatura e a prática clínica, porém em alguns pacientes mostra-se ineficaz (com
recidivas) ou muito prolongado, o que em atletas pode
corresponder a longos períodos e afastamento da carreira.
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Nestes casos existe a indicação cirúrgica e inúmeras
técnicas são descritas na literatura e podem ser utilizadas.
A técnica cirúrgica em questão libera a inserção ou origem tendíneas dos principais músculos que se originam ou se inserem no
púbis, diminuindo desta forma a tração no osso inflamado.
As complicações encontradas (deiscência de sutura e
trombose da veia peniana) foram relacionadas ao edema e
processo inflamatório que se forma na região pelo sangramento, uma vez que a região é bastante vascularizada e
acreditamos que elas podem ser evitadas ou minimizadas
com hemostasia cuidadosa e o uso de suspensório escrotal.
O protocolo de reabilitação pós-operatório é importante para manutenção do ganho de amplitude e alongamento dos tendões alcançados na cirurgia.
O paciente que apresentou complicações pós-operatórias
e que modificou o protocolo de reabilitação foi o que
apresentou o maior grau de insatisfação e também o que
não retornou ao nível de atividade física que gostaria.
Em 86,6% dos pacientes tivemos retorno à prática esportiva desejada no pós-operatório, inclusive possibilitando a
prática de esportes em alto nível em oito pacientes (53,3%).
Após 40,2 meses de tempo médio de seguimento não
houve recidiva da patologia na amostra analisada.
CONCLUSÕES
A pubeíte é patologia de difícil diagnóstico e pode ser
confundida com patologias abdominais e inguinais.
O tratamento conservador da pubeíte apresenta bom
resultado e deve ser empregado na maioria dos casos.
O tratamento cirúrgico promove a satisfação de 86,6% dos
pacientes e retorno à prática esportiva em 93,3% dos casos,
com complicações transitórias em 13,3% dos casos analisados.
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CONFLITOS DE INTERESSE
Os autores declaram não haver conflitos de interesse para o
presente artigo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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