Alexandre Andrade é professor no Instituto de Biofísica e

Transcrição

Alexandre Andrade é professor no Instituto de Biofísica e
lê assim uma vez nunca mais quer outra coisa.
Na linha amarela do metropolitano, um leitor
que parecia demasiado jovem para se preocupar com os arcanos morais de Raskolnikov lia
"Crime e Castigo".
Na plateia do cinema São Jorge, em plena Festa
do Cinema Francês, um leitor lia "O Cónego",
de A.M. Pires Cabral. O prazer da leitura antes
do cinema é um dos prazeres mais subestimados. Pena é que nem sempre a iluminação da
sala colabore.
Na linha amarela do metropolitano, um leitor
lia o "Kafka" de Deleuze e Guattari. De pé,
debaixo da terra e a grande velocidade. Quem
No comboio Alfa Pendular, entre Lisboa e o
Porto, um leitor tinha à sua frente "O Medo",
de Al Berto. Não o estava a ler, mas assinalar a
simples presença desta obra numa carruagem
que se deslocava a 200 à hora de Sul para Norte pareceu-me ser uma obrigação moral, assim
como um acto compatível com a essência desta
rubrica.
Alexandre Andrade é
professor no Instituto de
Biofísica e Engenharia
Biomédica da Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa. Estreouse em 1997 com o
romance Benoni, tendo publicado em
seguida os volumes de contos As NãoMetamorfoses (2004) e Cinco Contos
sobre Fracasso e Sucesso (2005), o
romance Aqui Vem o Sol (2005) e, ainda,
a obra de contos, Quartos Alugados
(2015). É autor do blogue: umblogsobrekleist.
Março 2016
Manter ao alcance e à vista das crianças e adultos
Na linha amarela do metropolitano, uma leitora lia "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen. Ia no capítulo 47, pelo que já se deve ter
apercebido de que Mr Darcy é afinal um ser
humano decentíssimo e que Mr Wickham é
um desprezível estouvado.
No cais da estação do metropolitano do Campo Grande, e subsequentemente na mesma
linha verde (sentido Telheiras), uma leitora lia
"Manhã Submersa", de Vergílio Ferreira. Da
minha língua vê-se a 2ª Circular, o Hospital de
Santa Maria e o Estádio Alvalade XXI.
Na linha vermelha do metropolitano, em dias
diferentes, um leitor lia "Os Irmãos Karamazovs", de Dostoyevsky, e uma leitora lia "O
Monte dos Vendavais", de Emily Brontë. E
faziam bem. Sem os clássicos não se chega a
lado algum. Ou, se se chegar, chega-se de
forma trôpega, enviesada e laboriosa.
Na sempiterna linha verde do metropolitano,
um leitor lia a "Crónica da Vida Lisboeta", de
Joaquim Paço d'Arcos. Pareceu-me tratar-se
do volume I da edição da Guimarães ("Ana
Paula"/"Ansiedade"). Ver alguém a ler Joaquim Paço d'Arcos no metro é mais ou menos
como ver alguém a ler Sá de Miranda num
A380 a quarenta mil pés de altitude. É um
choque entre dois mundos.
Este folheto contém informação importante para si. Leia-o atentamente.
Um vigilante de uma das salas da colecção
Wallace (Londres), tranquilamente instalado
na sua cadeira, lia a peça "Timon of Athens".
Estava a começar o 3º acto. Por um lado, isto
é obviamente de louvar. Por outro lado,
impõe-se a dúvida: em caso de pulsão vandalizadora por parte de um qualquer visitante,
será que o tempo de reacção de alguém que
está imerso numa tragédia shakespeareana
será suficiente para salvar a integridade da
obra de arte?
Na linha verde do metropolitano, um leitor
lia Cesare Pavese. Pareceu-me ser "A Lua e
as Fogueiras". Curiosamente, o leitor trazia
um outro livro, não identificado, na mão e em
posição de leitura iminente. Um plano B para
o caso pouco provável de o Pavese não estar
à altura?
Na plataforma da estação do metropolitano
do Campo Grande, uma leitora peripatética lia "A Peste", de Camus. Parecia estar no
início da leitura. Os cidadãos de Orão ainda
têm muitas provações pela frente.
Na inevitável linha verde do metropolitano, um leitor impecavelmente vestido lia "O
Processo", de Franz Kafka. Tudo levava a
crer que estava a encetar a leitura ali mesmo.
Pareceu imperturbável quando se inteirou de
que alguém deve ter andado a difamar Josef
K., que numa manhã foi preso sem ter cometido qualquer crime.
O jovem que lia "Daisy Miller" na linha verde
do metropolitano faria bem em meditar nas
seguintes palavras de James Thurber: I have
the reputation for having read all of Henry
James. Which would argue a misspent youth
and middle age. ("The Paris Review Interviews", vol.2)
No cais da estação do metropolitano da BaixaChiado (linha verde, direcção Telheiras), um
cavalheiro lia "Temor e Tremor", de Kierkegaard. A sua indumentária (sobretudo as sandálias de praia com a bandeira do Brasil) mais
depressa evocavam o estádio estético da vida
do que o ético ou o religioso. Mas desde quando a leitura requer dress code?
Na linha amarela do metropolitano, uma
jovem lia "Dom Casmurro", de Machado de
Assis. A sua expressão era a de quem cisma
acerca do verdadeiro carácter da enigmática
Capitu.
Nos degraus de entrada da Faculdade de Belas
-Artes, uma jovem lia um volume de poemas
de Robert Burns, no original, assim respondendo categoricamente e na afirmativa à pergunta que brota de todos os lábios: «Será que
ainda alguém lê Burns nos dias de hoje»?
No comboio Lisboa-Porto, uma jovem lia "Os
Irmãos Karamazov" em finlandês. Na linha
vermelha do metropolitano de Lisboa, outra
jovem lia "Diário para Eliza", de Laurence
Sterne, enquanto comia quadrados de chocolate. O elemento-chave destas descrições é, no
primeiro caso, o finlandês, e no segundo o
chocolate.
No comboio Cambridge-Londres, uma jovem
lia "The Crying of Lot 49", de Thomas Pynchon. Pelo menos durante uma manhã, o sinistro segredo de Trystero pairou sobre as estações de Foxton, Shepreth, Meldreth, Royston,
Ashwell & Morden, Baldock…
Um cavalheiro lia o "Crátilo" de Platão na
zona de restauração do centro comercial
Acqua, na avenida de Roma. Tão súbita foi a
minha euforia perante este avistamento que
pouco faltou para que eu derrubasse o meu
tabuleiro, onde se equilibravam precariamente, entre outros, um bacalhau com natas muito
satisfatório e um copo a sério, daqueles de
vidro. O que pensaria Platão se viesse a saber
que, dois milénios e meio após o seu falecimento, uma obra sua guardaria no seu bojo o
poder de provocar uma quase-catástrofe burlesca?
Um cavalheiro, instalado numa carruagem de
metropolitano da linha verde, dedicava a sua
atenção ao romance de Fernanda Botelho
"Lourenço é Nome de Jogral", um livro muito
bom que não é lido em público com a assiduidade que mereceria. Havia, nos modos do
cavalheiro em questão, um quê de fleuma e
apaziguada compostura que contrastava flagrantemente com a de outros leitores em lugares públicos. Para citar apenas um exemplo:
um leitor de "O Estrangeiro", há dias, na linha
vermelha, a quem não parecia faltar mais do
que um quase nada para emular o próprio
Meursault.
Local: linha verde do metropolitano. Um
jovem folheava a antologia de Montale da
Assírio & Alvim. Abriu-a no poema "Voz que
Vem com os Galeirões" ("Voce Giunta con le
Folaghe"). Possam os leitores de Montale proliferar pela rede do metropolitano, até suplantarem em número os não-leitores de Montale.
(Aviso: salvo indicação em contrário, estes avistamentos ocorreram na cidade de Lisboa. Todos estes avistamentos são
autênticos. Pretender o contrário seria sobrestimar grosseiramente a capacidade de efabulação do autor.)

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