Rodrigues, Luís Estevinha. 2013. O Conhecimento como

Transcrição

Rodrigues, Luís Estevinha. 2013. O Conhecimento como
O Conhecimento como Crença
Verdadeira Garantida
Luís Estevinha Rodrigues
ISBN: 978-989-8553-23-2
CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ACADEMICA 1
O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida
Luís Estevinha Rodrigues
FICHA TÉCNICA
TÍTULO: O Conhecimento como Crença Verdadeira Garantida
AUTOR: Luís Estevinha Rodrigues
COLECÇÃO ONLINE: Academica 1
EDITOR: ©Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Autor, 2013.
Este livro ou partes dele não poderão ser reproduzidos sob qualquer forma, mesmo
electrónica, sem explícita autorização do Editor e do Autor
CAPA: Carla Meneses Simões. Detalhe de “A Queda”, Michelangelo, Capela Sistina, 1535
ISBN: 978-989-8553-23-2
APOIO:
LUÍS ESTEVINHA RODRIGUES
O CONHECIMENTO
COMO
CRENÇA VERDADEIRA GARANTIDA
Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa
2013
Índice
Tabela de figuras............................................................................................................ 2
Prefácio ..........................................................................................................................3
Citações ..........................................................................................................................5
Introdução......................................................................................................................6
PRIMEIRA PARTE .......................................................................................................................10
1. Notas Introdutórias Sobre a Definição Tradicional do Conhecimento .................11
2. Teorias Inaugurais Pós-Gettier................................................................................32
3. Justificacionismo......................................................................................................50
Primeiro Interlúdio ...................................................................................................80
4. Não-justificacionismo ............................................................................................103
5. Outras teorias ........................................................................................................ 126
SEGUNDA PARTE ....................................................................................................................150
6. Rumo a um modelo da garantia epistémica ........................................................151
Segundo interlúdio ................................................................................................. 225
7. Um argumento ......................................................................................................229
Bibliografia Primária ......................................................................................................a
Bibliografia Secundária...................................................................................................f
Manuais de apoio ........................................................................................................... f
Webgrafia e imagens......................................................................................................f
Índice remissivo .............................................................................................................. I
1
Tabela de figuras
Figura 1 ______________________________________________________________________________ 139
Figura 2 ______________________________________________________________________________ 141
Figura 3 ______________________________________________________________________________ 143
Figura 4 ______________________________________________________________________________ 143
Figura 5 ______________________________________________________________________________ 168
Figura 6 ______________________________________________________________________________ 170
Figura 7 ______________________________________________________________________________ 171
Figura 8 ______________________________________________________________________________ 213
Figura 9 ______________________________________________________________________________ 214
Figura 10 _____________________________________________________________________________ 215
Figura 11 _____________________________________________________________________________ 215
Figura 12 _____________________________________________________________________________ 216
2
Prefácio
É um lugar-comum dizer que um trabalho académico está em constante
reformulação e parece sempre incompleto aos olhos de quem o produz. O presente caso
não é diferente, bem pelo contrário. Volvidos dois anos da apresentação da tese exposta
neste livro, e apôs cuidada releitura, fica-me a impressão de que ela contém várias
imprecisões descritivas e argumentativas. Por outro lado, parece-me também agora
evidente que várias críticas à sua estrutura podem ser lançadas com inteira justiça, em
especial no que se refere à dispersão de tópicos abordados em torno do tema central: a
natureza do conhecimento. Esta dispersão resultou dos desideratos de infalsicabilidade e
exaustividade da tese defendida. A materialização destes desideratos era obviamente, vejo
agora, um sonho impossível de realizar.
Não obstante, o trabalho concretiza, por um lado, uma investigação séria e
genuinamente própria em torno de um problema filosófico relevante, exibindo, por outro
lado, uma proposta de solução bem definida para esse problema. No que diz respeito a
esta última, compete dizer que as intuições e ideias que estiveram na sua génese tiveram
continuidade em três artigos publicados em revistas da especialidade com boa cotação.
Não sendo este facto suficiente para aferir em definitivo o mérito dessa proposta, ele é no
entanto indiciador da sua plausibilidade.
Crucialmente, defendi na tese que o processo pelo qual é possível determinar as
condições necessárias e suficientes para uma crença ser um estado epistémico
maximamente positivo e, logo, ser conhecimento, deve ter lugar na (1) compreensão do
que faz uma crença ser um estado de ignorância, e que só depois de concretizada essa
determinação é possível (2) inverter as condições suficientes para a ignorância em
condições necessárias—e suficientes—para haver conhecimento. A plausibilidade do
sistema assenta, defendi eu, na intuição de que é mais fácil determinar o que faz com que
uma crença não seja conhecimento do que determinar o que faz dela conhecimento. Nunca
o tendo dito explicitamente na primeira versão do trabalho, vejo agora com clareza que a
minha intuição era (e ainda é) a de que o conceito de ignorância é explicativamente mais
primitivo que o conceito de conhecimento, simplesmente porque é mais fácil de
estabelecer o que é ignorar algo do que estabelecer o que é conhecer algo. Era essa
3
primitividade explicativa da ignorância que permitiria, no meu entender, explicar melhor o
fenómeno do conhecimento. Claro que a execução de (1) revelou-se muito mais fácil e
plausível do que a execução de (2). O problema com (2) é que, embora as condições
inversas das condições suficientes para a ignorância se apresentem, na generalidade, como
condições necessárias para o conhecimento, não parece ser satisfatório supor que a
efetivação do conjunto destas últimas seja suficiente para haver conhecimento. O
problema não está pois (mais uma vez, como é hábito surgir na literatura) na demonstração
da necessidade dessas condições, mas sim na demonstração da sua suficiência conjunta.
O trabalho agora editado em livro contém algumas alterações relativamente à
versão de tese de doutoramento que lhe está na origem, a qual foi submetida em 2010 na
Universidade de Lisboa, onde foi aprovada com distinção e louvor por um júri de filósofos
nacionais e internacionais. Corrigiram-se algumas gralhas. O número de secções
disponibilizadas no índice foi também agora reduzido em nome da parcimónia estrutural.
A disposição gráfica foi alterada de modo a facilitar a leitura. Todas estas alterações são
contudo acessórias, não introduzindo qualquer mudança s ubstancial à estrutura geral da
obra ou ao seu conteúdo teórico.
Agradeço à Prof.ª Dr.ª Adriana Silva Graça, minha dedicada orientadora, tudo o que
fez por mim. Sem ela a confusão teria sido muito maior e o resultado final por certo muito
mais pobre. Agradeço também ao júri a suas pertinentes interrogações e sugestões.
Agradeço igualmente à Fundação para a Ciência e Tecnologia e ao Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, que me apoiaram a vários níveis.
Desejo também agradecer aos meus pais, que tudo fizeram para que eu pudesse
alcançar o meu sonho de estudar e fazer filosofia. Agradeço à Vera, minha mulher, que me
deu o apoio e o alento necessários, estando incondicion almente ao meu lado em todos os
momentos. Agradeço, por último, à Cloé. Por nascer, ela deu-me a motivação de que eu
necessitava para percorrer a distância que ainda faltava para a meta.
4
Citações
áà o s i iaàhu a aàfoiàfeitaàpa aàpa tilha àideias.àQue àdize ,àaài te fa eàhu a aà
do utilizador foi criada pela evolução, quer biológica q uer cultural, e surgiu em
resposta a uma inovação comportamental: a actividade de comunicar crenças e
planos e de trocar ideias. Isto transformou muitos cérebros em muitas mentes e a
distribuição de autoria tornada possível por esta interconectividade é não somente
a fonte da nossa enorme vantagem tecnológica sobre o resto da natureza como da
nossa moralidade (Dennett 2003: 270)
H à uitoà ueàdoisàp o le asà ueàdize à espeito ao conhecimento humano me têm
intrigado. O primeiro é o de explicar como é que podemos saber tanto a partir de
uma evidência tão limitada. O segundo é o de explicar como podemos saber tão
pou oàaàpa ti àdeàta taàe id ia (Chomsky 1986: 15)
áà sa edo iaà o sisteà u aà sóà oisa,à e à o he e ,à o à juízoà e dadeiro, como
todasàasà oisasàs oàgo e adasàat a sàdeàtudo. à(Fr. 41, Diógenes Laércio ix, 1)
5
Introdução
A célebre falsificação por Edmund Gettier (1963) da chamada Definição Tradicional
do Conhecimento (doravante abreviada para DTC) deu origem a um problema no seio da
epistemologia contemporânea que teve repercussões por todo o espectro filosófico. Esse
é o chamado Problema de Gettier, o qual é também por vezes referido como o Problema
da Quarta Condição. Como veremos, a ideia de que o conhecimento não pode ser apenas
crença verdadeira justificada adquiriu muitos adeptos desde essa altura. A consciência do
problema deu origem a sucessivas tentativas de análise do conhecimento, análises que se
propunham corrigir, refinar ou mesmo substituir a análise submetida pela DTC. Na
sequência das sucessivas falsificações a que foram sujeitas essas novas análises, a ideia de
não ser possível encontrar uma análise do conhecimento foi recrutando partidários um
pouco por todo o lado. Da nossa perspectiva, o resultado desta abundância de análises e
falsificações acabou por não ser o melhor, pois as dificuldades para se perceber quais são
as condições necessárias e suficientes para alguém ter conhecimento, ao invés de serem
mitigadas, agravaram-se substancialmente na sequência da discussão, continuando o
problema aparentemente por solucionar.
O objectivo deste trabalho é apresentar uma resposta alternativa quer às usuais
respostas analíticas ao Problema de Gettier quer às respostas que demitem liminarmente
a possibilidade de uma análise. Por um lado, o nosso ob jectivo não passa certamente por
submeter qualquer análise do conhecimento. Não desejamos também defender ou sequer
melhorar qualquer uma das análises que foram sendo submetidas e falsificadas no período
pós-Gettier. Por outro lado, também não desejamos abraçar as mais recentes e
conceituadas teorias sobre a impossibilidade de se encontrar uma análise do conceito de
conhecimento. Desejamos pois seguir por uma terceira via. O nosso objectivo passa por
apresentar uma elucidação do fenómeno do conhecimento proposicional que não consiste
numa análise, mas que não descura o que de melhor foi proposto por várias tentativas de
análise. Crucialmente, preocupa-nos o processo de satisfação de condições por via do qual
uma atitude de crença numa proposição verdadeira se torna excelente do ponto de vista
epistémico. Pensamos e defendemos que a excelência epistémica de uma crença deriva do
facto de estar epistemicamente garantida, no sentido em que a satisfação de um conjunto
6
de condições permite à crença ser apropriada e infalsificavelmente verdadeira, quer dizer,
no sentido em que a faz ser um estado epistémico maximamente positivo. No final do
trabalho propomos um argumento, provisional e não dogmático, para apoiar a ideia de que
este estado de crença epistemicamente excelente e o estado de conhecimento são o
mesmo estado.
Dividimos o trabalho em duas partes, cada uma contendo várias secções e
subsecções. Cada uma das partes inclui também dois interlúdios, nos quais se discutem
tópicos colaterais ao tópico principal mas que, como o leitor certamente concordará depois
de os ler, não podem deixar de ser abordados.
Na primeira parte, secções 1.1. a 1.6., introduzimos a maquinaria elementar para a
compreensão e subsequente tratamento do problema que nos ocupa. As secções 1.7. e
1.8. introduzem aspectos históricos, quanto a nós fund amentais, para haver uma boa
compreensão do problema. As secções 1.9. e 1.10. introduzem o problema propriamente
dito. As secções 1.11. e 1.12. remetem para a motivação para solucionar o problema e para
algumas posturas teóricas adoptadas em função do mesmo. Nas secções 2.1. a 2.6.
inspeccionamos e discutimos algumas das primeiras e mais proeminentes tentativas
encetadas para solucionar o problema, entre as quais se encontram, por exemplo, as
tentativas de Brian Skyrms ou de Peter Unger. Já as secções incluídas na secção 3 são
dedicadas a um conjunto de três correntes de pensamento que visam ou visaram
aprimorar a noção de justificação (a qual está no âmago do problema por nós discutido).
Entre outras, serão visitadas as teorias da justificação de Alvin Goldman, Earl Conee &
Richard Feldman e Richard Foley. Nessa sequência, o Primeiro Interlúdio versa sobre os
tópicos da estrutura e da origem da justificação epistémica. São revistas as posições
clássicas e algumas das discussões cruciais no interior desse tópico. A secção 4 marca uma
viragem de perspectiva e contém secções dedicadas a teorias do conhecimento que não
recorrem à noção de justificação, algumas das quais usam conceitos modais para erigir
análises do conhecimento, enquanto outras propõem definições do conhecimento tendo
por base concepções naturalistas do mesmo e da sua origem. Nesta secção visitaremos,
também entre outras, as perspectivas de Robert Nozick e de Ernest Sosa. Por último, a
secção 5 é votada a inspeccionar teorias do conhecimento que, julgamos nós, pela sua
7
natureza peculiar, não se encaixam em nenhum dos grupos anteriormente estudados de
teorias. Nesta linha, dedicamos a secção 5.2. a uma teoria que sugere uma definição do
conhecimento que, também em nossa opinião, compila o que de melhor é oferecido pelas
teorias modais e naturalistas inspeccionadas na secção 4. Trata-se da teoria híbrida de
Duncan Pritchard. A secção 5.3., na qual nos deteremos um pouco mais do que nas outras,
é dedicada a estudar uma recente e conceituada teoria, da autoria de Timothy Williamson,
segundo a qual o conhecimento nem é decomponível nem é, por isso mesmo, susceptível
de ser analisado.
A conclusão geral da primeira parte do trabalho é a de que nenhuma das teorias aí
descritas oferece, só por si, uma solução completamente satisfatória para o problema em
discussão. Mais especificamente, concluiremos também no final desta primeira parte que
nenhuma das análises inspeccionadas é satisfatória, uma vez que, por terem contraexemplos, são todas falsas (ou não são sequer análises).
Na segunda parte submetemos a nossa proposta de solução do problema.
Começamos, na secção 6.1., por formular elucidações do fenómeno de um estado
epistémico positivo, as quais aceitaremos condicionalmente enquanto hipóteses de
trabalho, até submetermos a nossa defesa da sua plausibilidade. Depois, na secção 6.2,
introduzimos aquelas que nos parecem ser as principais intuições constantes na literatura
a propósito das condições necessárias e suficientes para ocorrer um estado epistémico
maximamente positivo. Fazemo-lo com o intuito de mostrar, no final da segunda parte,
que a nossa solução acomoda bem todas essas intuições, o que quanto a nós contribui para
mostrar a sua plausibilidade, bem como para dar a essa solução alguma vantagem teórica
face às suas concorrentes. Posto isto, viramo-nos para a perspectiva de William Alston
sobre quais são os principais desideratos epistémicos. Discutimo-los e convertemo-los em
condições. Essa revisão vai ter lugar nas secções 6.3.1/2/3. Não convencidos pelo resultado
final a que chegámos no decorrer dessa inspecção, em termos da suficiência das condições
sugeridas por Alston, propomos na secção 6.4 uma mudança de metodologia, face ao que
é habitual, no que respeita à identificação das condições necessárias e suficientes para
ocorrer um estado epistémico maximamente positivo. Como primeiro passo de
implementação dessa metodologia, tentamos na secção 6.5. identificar estados de crença
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que sejam candidatos plausíveis ao estatuto de estado epistémico maximamente positivo.
Assumindo que encontrámos esses candidatos, tentamos a partir deles propor nas secções
6.6.1/2 critérios para a identificação das condições necessárias e suficientes para a
ocorrência desses estados. As secções seguintes, 6.7. e 6.8., são reservadas para essa
tarefa, e na secção 6.9. antecipamos algumas objecções ao método que usámos,
respondendo-lhes. O segundo interlúdio remete-nos para a discussão de uma escolha que
o nosso sistema parece forcar-nos a fazer, a escolha entre particularismo e metodismo.
Acabamos por fazer essa escolha (escolhendo o particularismo), tratando, depois disso, na
última secção, a 7, de submeter um argumento a favor da ideia de que estados epistémicos
maximamente positivos, tal como os elucidámos, são afinal estados de conhecimento.
Finalizamos com uma breve conclusão.
9
PRIMEIRA PARTE
10
1. Notas Introdutórias Sobre a Definição Tradicional do Conhecimento
1.1. Resumo
A segunda metade do século XX viu ressurgir o interesse por uma definição precisa
do conhecimento. O objectivo desta secção é oferecer uma introdução ao tema. Começo
por introduzir algumas noções básicas de análise, de definição, de conhecimento
proposicional,àdeà e ça,àdeà e dadeàeàdeà te ei aà o diç o .àUso-as depois para aclarar o
que está em jogo quando se fala de uma definição/análise tradicional do conhecimento.
Faço-o passando em revista aqueles que me parecem ser os acontecimentos filosóficos
que mais diretamente contribuíram para a estruturação da definição/análise tradicional,
dando depois especial relevo aos argumentos de Edmund Gettier que conduziram,
segundo muitos, à falsificação da referida definição. Fin alizo a secção com uma tipologia
resumida das respostas ao chamado Problema de Gettier, preparando dessa forma o
terreno para efectuar uma digressão e uma discussão substancial de algumas dessas
respostas.
1.2. Análises
Algumas definições são sustentadas por análises. Distin guem-se actualmente três
tipos fundamentais de análise: a análise decomposicion al, a análise regressiva, e a análise
transformativa (Beaney 2009). Avanço de seguida um breve esclarecimento sobre cada
tipo.
Uma análise decomposicional visa a explicitação de um conceito por via da
decomposição desse conceito em conceitos mais primitivos, mais claros e mais
compreensíveis. Por exemplo, explicitar e definir o conceito de luz usando os conceitos de
onda e de partícula é ensaiar uma análise decomposicional do conceito de luz. Supondo
que os conceitos de onda e de partícula, o analisans, são mais primitivos e mais claros que
o conceito de luz, o analisandum, e supondo também que a extensão conjunta dos
conceitos que constituem o analisans é, necessariamente, a mesma que a do conceito que
constitui o analisandum, quer dizer, tudo o cai sob o domínio do conceito a definir cai
também sob o domínio dos conceitos que definem esse conceito, então uma análise
decomposicional do conceito de luz em termos dos conceitos de partícula e de onda é o
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mínimo exigível para que se possa avançar uma definição para o conceito de luz. Grosso
modo, a definição teria portanto o seguinte formato:
Algo X é luz se, e somente se, é uma partícula, uma onda, ou ambas.
A bicondicional material na definição sinaliza uma equivalê ncia necessária das
extensões dos conceitos que ocupam ambos os lados dessa bicondicional, o que se afigura
como o mínimo para que a análise possa obter. 1
Uma análise regressiva (ou redutiva) consiste em proceder-se retroactivamente até
se encontrar os princípios, teoremas ou causas fundamentais daquilo que se deseja definir
ou explicar. A demonstração, definição ou explicação são depois alcançadas por via de um
processo de síntese que consiste em assumir-se esses princípios, teoremas ou causas
fundamentais, e proceder-se progressivamente até se alcançar essa demonstração,
definição ou explicação. Por exemplo, a explicitação clássica do conceito de Número
Natural é tornada possível por uma análise regressiva da noção de número em termos de
certos axiomas e princípios: os Axiomas de Peano e os Princípios de Igualdade e de
Sucessor. A explicitação do conceito é depois obtida p or um processo de síntese construído
a partir desses axiomas e princípios.
O terceiro tipo de análise é a chamada análise transformativa ou interpretativa, por
vezes também chamada análise lógica, semântica ou linguística. Grosso modo, oferecer
uma análise transformativa de um conceito, proposição, frase, etc., é transformá-lo nos
seus componentes linguísticos, sintácticos, semânticos, lógicos, etc., e defini-lo à luz dos
mesmos. Nesta acepção, analisar transformativamente aà p oposiç oà Todosà osà ho e sà
s oà o tais à ,àpo àexe plo,àtransformar esta proposição nos seus constituintes lógicos
identificados pela Lógica de Predicados (de primeira ordem). À luz desta lógica, o resultado
daàa liseàse àpo ta toàalgoàdoàg
[em símbolos: x (Hx →àDx)].
1
e oà Pa aàtodoàoà x, se x é homem então x à o tal à
A equivalência extensional é alegadamente apenas uma das condições necessárias para que uma análise
decomposicional seja completamente bem-sucedida. Outras condições são que a bicondicional seja analítica e a priori.
(Devo em especial o esclarecimento deste importante ponto ao professor João Branquinho, o qual agradeço). Não me irei
deter nesta discussão porque, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, a implementação da tese central deste
trabalho não depende da pressuposição de uma qualquer análise decomposicional do conceito de conhecimento.
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A literatura trata por norma as análises dos conceitos de conhecimento, de
justificação e de garantia como análises decomposicionais. Como se verá adiante, uma
análise decomposicional do conhecimento falha se o seu analisans não satisfaz o seu
analisandum, quer dizer, quando não existe no mínimo uma equivalência extensional
necessária entre analisans e analisandum, ou o primeiro é viciosamente circular, por
conter e usar o último.
Importa nesta fase avaliar uma notável objecção à possibilidade de análise do
conceito de conhecimento (aplicando-se aparentemente o problema a qualquer análise de
qualquer conceito). Trata-se do chamado Paradoxo da Análise, uma extensão natural do
Paradoxo da Investigação identificado por Platão no Ménon (71b, 79c e 80d). Uma
interpretação possível do paradoxo é a seguinte: se, por um lado, não se sabe de antemão
e pré-investigação o que é o objecto da investigação, então a investigação torna-se
impossível, porque não se sabe o que é o alvo da investigação e, portanto, não há forma
de se descobrir se a investigação acerca dessa coisa é ou não bem-sucedida; se, por outro
lado, se sabe de antemão e pré-investigação o que é o objecto da investigação, então esta
torna-se redundante, uma vez que nesse caso o objectivo é alcançado antes mesmo de
essa investigação ocorrer. Segue-se, aparentemente, que qualquer tentativa de
investigação está condenada ao fracasso, uma vez que ou é impossível ou é desnecessária.
Algo de semelhante pode ser insinuado acerca de qualquer tentativa de análise: ou não
pode ser bem-sucedida pelo simples facto de não se conseguir detectar quando é que é
esse sucesso ocorre, ou é redundante, na medida em que o sujeito da análise já está
encontrado antes de se efectuar a análise.
Uma proposta usual de solução para o problema passa por su gerir que quem enceta
uma investigação ou uma análise dispõe à partida de suficiente informação para identificar
correctamente o alvo da sua investigação ou análise, isto apesar de não ter à partida uma
definição completa e acabada dessa coisa. Se isto estiver minimamente correcto, então é
possível encetar uma investigação ou uma análise sobre o que quer que seja, desde que
quem o faça disponha de alguma informação de base que permita direccionar essa
investigação e enquadrar essa análise. Ora, se há coisa que os epistemólogos do século XX
e XXI possuem em abundância é informação—teorias, definições, noções, argumentos,
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etc.,—sobre a natureza do conhecimento. Seria implausível que dois mil e quinhentos anos
de investigação filosófica incidente sobre estes tópicos não tivessem produzido resultados
minimamente plausíveis. Pode-se portanto rejeitar com alguma segurança o Paradoxo da
Análise (Sorensen 2009), uma vez que existe muito e bom material que permite, a quem o
deseja, identificar satisfatoriamente um conceito pré-teórico de conhecimento, um
conceito que se estabelece como objecto e alvo de investigação filosófica.
1.3. Definições
Sugeri acima que uma análise decomposicional do conceito x em termos dos
conceitos w, z, y visa obter uma definição de x. Mas qual é o tipo de definição que se
procura obter por via de uma análise decomposicional?
Lite atu aà e e teàespe ializadaà oàtópi oà defi iç o à efe eà
iosàtiposàpossí eisà
de definição, discutindo-os (Gupta 2009). Os mais comu ns são: definição real, definição
nominal, definição ostensiva, definição descritiva, definição estipulativa, definição
extensionalmente adequada, definição intensionalmente adequada, definição explicativa
(informativa), definição circular e definição não-circular. Como em quase tudo em filosofia,
as próprias definições destes tipos de definição são alvo de debate, mas podemos ensaiar
definições mínimas para elas e usá-las condicionalmente. Assim, costuma supor-se que
uma definição real de x visa apresentar a coisa x via o que é essencial a x (a água é H20), e
que uma definição nominal de x visa captar a coisa x via as propriedades de x (a água é um
líquido incolor). A distinção nem sempre é clara, muito menos pacífica. Uma definição de
x é ostensiva quando o objecto x é apresentado por exibição directa de x. Uma definição
de x é descritiva quando o objecto x é apresentado descritivamente. Uma definição de x é
estipulativa sempre que a explicação do que x é resulte de uma estipulação. Uma definição
é extensionalmente adequada sempre que a extensão dos conceitos do definiendum e do
definiens for a mesma. Uma definição é intensionalmente adequada sempre que as
expressões no definiendum e no definiens tenham o mesmo significado (a mesma
intensão). Uma definição de x é explicativa desde que o definiens acrescente informação á
informação disponibilizada pelo definiendum. Uma definição de x é não-circular desde que,
sendo x o definiendum, x não faça parte do definiens. Como se verá, alguns filósofos
defendem que há definições viciosamente circulares e definições virtuosamente circulares.
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O critério, se há critério, nem sempre é de fácil apreensão, pelo que opto por uma avaliação
caso a caso das propriedades de vício ou de virtude da circularidade de uma definição.
Os epistemólogos concordam geralmente que uma definição do conhecimento
deve ser no mínimo extensionalmente adequada e informativa, não podendo ser
viciosamente circular (Lehrer 1974: 7-9).
1.4. Conhecimento proposicional ou factual
Uma definição do conhecimento é obviamente sobre o conhecimento. Mas que
tipo de conhecimento? A literatura do último século distingue por norma dois tipos gerais
de conhecimento: o proposicional (knowing-that) e o não-proposicional ou de habilidade
(knowing-how). A diferença normalmente apontada é, grosso modo, a seguinte. O
conhecimento proposicional é o conhecimento de uma proposição ou de um facto, o
conhecimento não-proposicional envolve uma habilidade o u uma competência, sendo
geralmente apontado como um tipo de conhecimento que não envolve necessariamente
uma crença numa proposição. A autoria da distinção é por no rma apontada a Gilbert Ryle
(Stanley & Williamson 2004: 411-444). Depois de imputarem a autoria da distinção a
Gilbert Ryle (Ibidem 412, nota 4) e a David Lewis (Ibidem 411, nota 2), Stanley e Williamson
defendem que o todo o conhecimento não-proposicional é redutível a conhecimento
proposicional—ou que todo o conhecimento é proposicional ( Ibidem 417 e ss). A tese de
Stanley e Williamson não tem qualquer impacto na presente tese. Se, por um lado, todo o
conhecimento e proposicional, então a presente tese é sobre todo o conhecimento. Se,
por outro lado, algum conhecimento é não-proposicional , então a presente tese, uma vez
que é sobre o conhecimento que envolve uma proposição, deixa de fora essa parte do
conhecimento que não envolve uma proposição.
Se o conhecimento proposicional implica que a proposição conhecida é verdadeira,
supondo, como supõem por exemplo alguns defensores da teoria da verdade como
correspondência, que uma proposição implica um facto no mundo que torna a proposição
verdadeira, segue-se alegadamente que o conhecimento proposicional é não apenas o
conhecimento de proposições verdadeiras mas também o conhecimento dos factos que
tornam essas proposições verdadeiras. O conhecimento proposicional é por isso também
por conotado com o conhecimento factual.
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Existe também quem faça a distinção entre conhecimento de uma proposição e
conhecimento de um objecto ou de uma coisa. A distinção parece ter origem em Bertrand
Russell. Hintikka (1996: 251-275) faz uma defesa da distinção usando lógica epistémica.
Esta discussão não se inclui no âmbito deste trabalho, n em nos parece ser crucial para o
seu bom desenvolvimento, e portanto não vai ser mais tida em consideração
A literatura refere vários subtipos de conhecimento proposicional. Conhecimento
comum, conhecimento científico, conhecimento técnico, conhecimento a priori,
conhecimento a posteriori, conhecimento por descrição, conhecimento perceptual, entre
outros. Não é de todo fácil estabelecer uma tipologia exaustiva e maximamente explicativa
de todos os subtipos de conhecimento proposicional. Por exemplo, há quem distinga
´ o he i e to/sa e à
ue…`à
Knowing-that)
ou
conhecimento
descritivo,
de
´conhecimento/saber por que` (Knowing-why), ou conhecimento explicativo (Kim 1994:5169). Igualmente difícil é perceber as fronteiras e as zonas de intersecção. Mas não nos
devemos afligir em demasia com esta diversidade. Importa reter que sempre que se falar
de conhecimento nesta primeira secção estar-se-á a falar de conhecimento proposicional,
conhecimento de proposições verdadeiras, independentemente do tipo de conhecimento
específico para que remete o tipo de proposição conhecida.
1.5. Crença
Todas ou quase todas as análises do conhecimento contempor âneas pressupõem
que o conhecimento implica no mínimo a crença proposic ional. A seguinte implicação
define uma condição necessária para o conhecimento:
i) Se S sabe que p, então S acredita que p.
Há contudo casos que parecem disputar a necessidade desta condição. Trata-se de
casos em que, prima facie, a antecedente de i é verdadeira e a sua consequente falsa. O
caso mais paradigmático de disputa da condição de crença na literatura é talvez o caso do
aluno que acerta na resposta à questão do teste sem todavia acreditar nessa resposta.
Suponha-se que um aluno responde correctamente numa prova escrita de História
de Portugal que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. Aparentemente, o
aluno não acredita que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal porque, também
aparentemente, não se recorda do que estava escrito sobre o assunto no seu manual
16
escolar de História. Podemos supor que ele se recorda que D. Afonso Henriques foi um dos
reis de Portugal, mas que não se recorda que ele foi o primeiro rei de Portugal. Ainda assim,
continuamos a supor, ele decide arriscar e a sua resposta está correcta, uma vez que D.
Afonso Henriques foi de facto o primeiro rei de Portugal. Esta correcção da resposta pode
levar-nos a considerar a hipótese de ele saber que D. Afonso Henriques foi de facto o
primeiro rei de Portugal mesmo sem acreditar (i.e., sem ter uma crença) nessa proposição.
Contudo, por outro lado, não parece ser razoável atribuir conhecimento ao aluno que se
encontra nesta situação, pois ele acertou na resposta por mero acaso e, como veremos
adiante com algum detalhe, isso colide com a forte intuição de que não há conhecimento
quando um agente acerta acidentalmente na verdade.
A ortodoxia é a de que não há conhecimento sem haver concomitantemente
crença, sendo relativamente consensual que há crença sem haver conhecimento. Timothy
Williamson (2000: 42), por exemplo, crê que não estarem disponíveis contra-exemplos
para a tese da necessidade da crença.2 Para ele, à falta de evidência em sentido contrário,
só há conhecimento se houver crença. Há no entanto quem não concorde com esta
perspectiva (Radford 1970: 1-11). Correndo o risco de sermos obrigados a rever a nossa
posição se confrontados no futuro com informação suplem entar, assumimos que
Williamson et al estão correctos no que diz respeito à necessidade de haver crença para
haver conhecimento.
No que respeita à definição de crença, utilizarei aquela que me parece mais comum
no seio da discussão epistemológica contemporânea (que não necessariamente a mais
comum noutras áreas da filosofia e das ciências, como por exemplo na filosofia da mente
ou nas ciências da cognição). Opto portanto pela defini ção clássica segundo a qual crenças
são essencialmente atitudes proposicionais. Quer dizer, é uma crença é uma disposição
que um agente tem para aceitar uma proposição como sendo verdadeira. Nesta acepção
minimalista e sobejamente restritiva, uma crença é simplesmente uma atitude de adesão
a uma proposição (Russell 1918). 3
2
Williamson remete o exemplo do aluno para outros filósofos. Não é contudo fácil perceber a origem exacta do
3
O sentido de “crença” que usamos não se deve confundir com o sentido religioso, científico, político, ideológico,
caso.
etc., de “crença”. Trata-se de um sentido que se deseja o mais possível neutro.
17
Esta definição bastante rude não toma nota da diferença entre crença numa
proposição, por um lado, e aceitação de uma proposição, por outro. A distinção é sugerida
por Cohen (1993: 4). O seu ponto é o de que uma crença pode ser descrita como uma
disposição de um agente S relativamente a uma proposição p, embora essa disposição não
implique que S aceite p no sentido de usar p como premissa ou como ponto de partida
para uma acção. Este tipo de eventos exige, ainda segundo ele, mais do que uma crença
em p; exige uma inequívoca aceitação de p. Alguém pode por exemplo não aceitar uma
proposição e no entanto crer nessa proposição. S pode recusar-se a aceitar que o cão está
doente porque não deseja perdê-lo; mas pode, apesar disso, acreditar que o cão está
doente ao ter evidência nesse sentido (o seu veterinário disse que o cão está de facto
doente). Esta distinção não é contudo essencial para os pr opósitos deste trabalho. Nele
supomos que há por parte de S uma aceitação de que p sempre que S acredita que p.
1.6. Verdade
Todas as definições/análises antigas ou contemporâneas do conhecimento
pressupõem que o conhecimento implica a verdade da proposição conhecida. Se essas
definições estiverem correctas, a seguinte condicional tem de ser verdadeira
ii) Se S sabe que p, então p
Nesta acepção (há por certo muitas outras) rudimentar, a verdade não é algo
relativo ao foro interno do agente. Consideramos que a propriedade que uma proposição
tem de ser verdadeira não é algo que seja produzido pela mente de um agente. A verdade
tem de ser aqui entendida como uma condição independente da mente, uma condição
externa: o que é verdade é o que é o caso, não o que o agente pensa ser o caso ou o que a
sua mente constrói como sendo o caso.
A definição de verdade que iremos adoptar é a seguinte: uma proposição é
verdadeira, ou pelo menos contingentemente verdadeira, desde que corresponda a um
18
facto no mundo actual. 4/5 Claro que esta definição não é muito informativa e levanta
dificuldades. Por exemplo, que tipo de facto sustenta a verdade de uma proposição
u i e salàafi
ati aà o oà Todosàosàho e sàs oà o tais ?àHa e à es oàtalàfa toà oàdeà
todos os homens serem mortais)? A questão não vai ser aqui respondida. A nossa definição
rude de verdade cumpre um único objectivo: prevenir a possibilidade de haver
conhecimento de proposições falsas. Com isto não quer emos dizer que não se possa saber
que uma determinada proposição é falsa. Queremos somente dizer que uma proposição
falsa não pode ser objecto de conhecimento.
1.7. A Terceira Condição Necessária
Alguns filósofos contemporâneos atribuem a Platão o mérito de ter inaugurado a
investigação sobre a natureza das condições necessárias e suficientes para haver
conhecimento (Cf. Chisholm 1966: 5-6, e Audi 2003: 220). Surgem com efeito no Ménon e
no Teeteto bons indicadores que Platão tinha em mente indagar a natureza dessas
condições.6 Por exemplo, no Ménon
“ó ates—Portanto, para uma pessoa que está no estado de ignorância, acerca de
coisas que não sabe, existem, dentro dela, opiniões verdadeiras acerca daquilo que ignora?
Ménon—Pa e eà ueàsi
(Platão, Ménon 85c)
Esta passagem parece supor que o conhecimento depende da satisfação de pelo
menos duas condições (vide também Sofista 260 b-c). A primeira é a de que o agente (neste
caso o jovem escravo) tenha uma opinião (doxa). A segunda é a de que essa opinião seja
verdadeira. Esta concepção recebe apoio no final do diálogo, quando Platão acrescenta
uma terceira condição necessária para haver conhecimento.
4
Muito embora a definição vá de encontro às nossas preferências no que concerne a uma teoria da verdade—teoria
da verdade como correspondência—, não nos é contudo possível fazer uma defesa substancial da referida teoria neste
trabalho. Devemos por isso estar preparados para rever as nossas preferências.
5
De acordo com a semântica dos mundos possíveis, uma proposição é contingentemente verdadeira se, e só se, há
pelo menos um mundo possível no qual é falsa. Esta restrição é necessária para evitar que o conhecimento seja apenas
conhecimento de verdades necessárias.
Sobre as diversas teorias da verdade disponíveis e respectivos problemas, ver Blackburn & Simmons, 1999: 1-28.
6
Para uma defesa mais elaborada da tese que Platão sustentou uma definição tripartida do conhecimento vide Fine
1979: 369.
19
“ó ates— … à Estou-me a referir às opiniões verdadeiras. Na verdade, estas,
durante todo o tempo em que permanecem em nós, operam uma bela riqueza e tudo
quanto é bom. Mas elas não aguentam ficar muito tempo e fogem da alma humana, de
modo que são dignas de pouco valor, enquanto uma pessoa as não prender, por raciocínio
expli ati o (Platão, Ménon 98a)
Trata-se pois de assentar a opinião verdadeira em algo mais. Algo que possa de
algum modo garantir que a verdade não escapa ao agente. Algo que possa garantir ao
agente que a sua opinião é de facto verdadeira. Segundo se depreende, o que permite essa
garantia é a explicação racional.
Já no Teeteto, Platão contempla ainda mais explicitamente a hipótese de a opinião
verdadeira ter de ser acompanhada de modo a obter o estatuto de conhecimento.
Teeteto—Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e ouvi
alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião
a e teàdeàexpli aç oàseàe o t aà à a ge àdoàsa e
(Platão, Teeteto 201c-d)
Ouàseja…
“ó ates— … à ua doàalgu
à hegaà àopinião verdadeira sobre alguma coisa, sem
explicação, a sua alma encontra-se na verdade a respeito disso, mas não a conhece. Com
efeito, aquele que não for capaz de dar e receber uma explicação sobre algo ignora-o. Por
sua vez, se chegou a uma explicação, não só isso lhe veio a ser possível, como além disso
te à o pleta e teàoàsa e
(Platão, Teeteto 202 c)
Este enunciado deixa claro que Platão via com bons olhos uma definição do
conhecimento que contivesse no mínimo três condições separadamente necessárias e
conjuntamente suficientes para haver conhecimento. São elas:
i)
Que o agente tenha uma opinião;
ii)
Que essa opinião seja verdadeira;
iii)
Que o agente consiga explicar (sustentar, justificar) racionalmente essa
opinião.
Mas Platão também estava ciente das dificuldades que se deparam a quem deseja
propor uma definição do conhecimento simultaneamente informativa e livre de
p o le as.à Depoisà deà lo gaà i estigaç o,à eà i satisfeitoà o à aà sua à p opostaà deà u aà
20
terceira condição, Sócrates reconhece que nenhuma das definições do conhecimento
inspeccionadas por ele e por Teeteto é inteiramente satisfatória. Conclui então, com uma
boa dose de cepticismo envolvida nessa conclusão, que nenhuma das hipóteses
investigadas até esse momento da investigação consegue dar conta da natureza do
conhecimento. Eis a passagem relevante:
“ó ates—Por conseguinte, Teeteto, o saber não será sensação, nem opinião
verdadeira,à e àexpli aç oàa o pa hadaàdeàopi i oà e dadei a (Platão, Teeteto 210 ab)
O cepticismo é compreensível dada a dificuldade do problema. E apesar do
aparente auto-reconhecido falhanço de Platão em fornecer uma definição plausível e
convincente, é presumivelmente desde a altura em que ele encetou a tentativa que a
interpretação canónica acerca da natureza do conhecimento passa por uma definição
decomponível em elementos mais primitivos.
Não tendo sido completamente esquecida ou abandonada, a ideia de que o
conhecimento implica opinião ou crença verdadeira reavivou-se apenas no final do século
XIX e no começo do século XX. 7 Bertrand Russell (1912) foi certamente dos primeiros a
recuperá-la no século XX. Russell alega explicitamente que a conjunção de crença e
verdade pode não ser suficiente para haver conhecimento. Segundo diz, casos há em que
alguém acredita na verdade acidentalmente ou com base em falsidades, o que impede que
esses casos possam ser realmente creditados como casos de conhecimento. Crucialmente,
Russell questiona-se sobre o que faz a diferença entre mera crença verdadeira e
conhecimento. Embora não ofereça uma análise do conceito de conhecimento em sentido
estrito, Russell parece inclinar-se para a ideia de que este é um género de opinião ou crença
com elevada probabilidade de ser verdadeira. Esta ideia leva-o contudo a concluir, algo
cepticamente, que não devemos colocar grandes esperanças em adquirir uma definição
precisa do conhecimento, uma vez que tal definição implicaria que a vagueza associada à
7
Embora seja um facto raramente mencionado, a concepção de que o conhecimento é crença subjectivamente e
objectivamente verdadeira encontra-se na principal obra de Kant (1997: B 850 e B 851).
21
noção de probabilidade pudesse ser evitada, algo que Russell pensa ser bastante difícil de
alcançar.8
Só no entanto na segunda metade do século XX floresce realmente o interesse por
uma definição do conhecimento apoiada por uma análise dec omposicional do conceito de
conhecimento. Subsistem poucas dúvidas sobre o facto de a discussão contemporânea à
volta da definição/análise do conhecimento se ter iniciado com o célebre artigo de Edmund
Gettier (1963: 121-123), artigo no qual a chamada Definição Tradicional do C onhecimento
é, conforme consensualmente reconhecido, falsificada. Curiosamente, e a confiar em Alvin
Plantinga (1993a: 7),àasàexp essõesà Defi iç oàT adi io alà doà Co he i e to à eà á
liseà
T ipa tidaà doà Co he i e to à sóà pa e e à te à sidoà u hadasà após o artigo de Gettier.9
Existem contudo análises tripartidas e quadripartidas do conhecimento anteriores a esse
artigo, sendo as mais salientes provavelmente as que são mencionadas no próprio artigo,
as de Carl Lewis (1946: 9), Alfred Ayer (1956), Roderick Chisholm (1957: 16).
Tal como Platão e Russell, Lewis preocupa-se em diferenciar o conhecimento da
mera crença verdadeira. Da sua perspectiva, o conhecimento não só tem de ser crença
verdadeira como tem também de ser crença verdadeira justificada.
Tal como Platão, Russell e Lewis, Ayer também está preocupado em diferenciar o
conhecimento de mera crença verdadeira. Grosso modo, Ayer defende que o que
estabelece a diferença entre um agente ter uma crença verdadeira que não é
conhecimento e ter uma crença verdadeira que é conhecimento é o facto de esse agente
ter o direito a ter a certeza que aquilo em que acredita é verdade.
A preocupação de Chisholm é similar em muitos aspectos à de Lewis e Ayer. Para
Chisholm, o que faz com que uma crença verdadeira seja conhecimento é o facto de o
agente da crença ter evidência suficiente para a verdade daquilo que é alvo da sua atitude
de crença.10
1.8. A Definição Tradicional Tripartida do Conhecimento
8
Russell rejeita neste lugar que a probabilidade de a verdade de uma opinião possa ser dada pela coerência dessa
opinião com as crenças pertencentes a um sistema coerente de crenças, uma vez que há sistemas coerentes de crenças
falsas.
9
A expressão “Definição Tradicional do Conhecimento” surge explicitamente em Skyrms 1967: 373.
10
A definição é posteriormente refinada em Chisholm 1966: 5 ss.
22
Foram acima descritas cinco propostas de definição/análise do conhecimento, são
elas:
Platão: Conhecimento é i) opinião, ii) verdadeira, iii) acompanhada de explicação
racional;
Russell: Conhecimento é i) crença, ii) muito provavelmente verdadeira;
Lewis: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) justificada;
Ayer: Conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) acompanhada de certeza, porque
iv) o agente da crença tem legitimidade epistémica suficiente para ter a certeza;
Chisholm: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) evidencialmente sustentada. 11
Gettier supõe, no seu artigo, que as definições de Ayer e Chisholm são equivalentes
à definição de Lewis. A definição discutida e posteriormente rejeitada por Gettier,
correntemente chamada Definição Tradicional do Conhecimento (DTC), é portanto a
seguinte:
DTC: conhecimento é i) crença, ii) verdadeira, iii) justificada.
Quer dizer,
i)
S acredita que p;
ii)
p;
iii)
A crença de S que p está justificada.
A DTC assenta numa análise decomposicional do conceito de conhecimento, uma
vez que o conceito analisado, o conceito de conhecimento, é decomposto em conceitos
aparentemente mais primitivos, mais claros e mais explicativos que esse conceito. Tratase de uma análise tripartida do conhecimento uma vez que a análise estabelece três
condições separadamente necessárias e conjuntamente suficientes para que haja
conhecimento.12 A DTC congrega portanto três teses sobre a necessidade de cada condição
11
Adoptamos aqui a formulação que surge em Chisholm (1977: 102).
12
Existem diversas análises tripartidas ou quadripartidas do conhecimento, ou seja, análises que propõem três ou
quatro condições necessárias e suficientes, mas existe apenas uma definição/análise tradicional do conhecimento.
23
com uma tese sobre a suficiência conjunta das três condições. Cada uma destas quatro
teses pode ser, e geralmente é, alvo de discussão.13
1.9. Contra-exemplos originais à DTC
A DTC falha se pelo menos uma das quatro teses supracitadas falhar. Podemos por
exemplo supor, tal como fizemos acima de forma condicional, que a tese da necessidade
da crença para haver conhecimento é falsa. Se fosse este o caso, então a DTC seria falsa.
Já para falsificar a tese da necessidade da crença seria necessário apresentar um caso em
que o agente tivesse conhecimento que p sem ter concomitantemente a crença que p. Para
falsificar a tese necessidade da verdade que p, teríamos de divisar um caso em que o
agente tivesse conhecimento que p sem ser verdade que p (talvez a mais rejeitada das
hipóteses de falsificação). E para falsificar a tese da necessidade da justificação da crença,
teríamos se apresentar um caso no qual o agente soubesse que p mas em que a crença do
agente que p não estivesse justificada.
Gettier não rejeita nenhuma das teses da necessidade. O que rejeita no seu artigo
é apenas a tese da suficiência conjunta das três condições. O seu ponto é simplesmente
que a tese da suficiência tem contra-exemplos e que, por conseguinte, a DTC não pode
estar em ordem. Segundo esta perspectiva, há casos em que um agente S tem uma crença
verdadeira justificada que p e ainda assim não tem conhecimento que p. Os contraexemplos originais sugeridos por Gettier no seu artigo introduzem dois casos em que,
plausivelmente, isto acontece. Revisito de seguida o segundo contra-exemplo para ilustrar
o ponto.
Suponha-se que Smith possui no momento t evidência para acreditar
justificadamente que
(a) Jones tem um Ford.
Suponha-se também que Smith não tem qualquer forma em t de saber onde possa
estar o seu amigo Brown. Apesar disso, Smith infere a partir de (a) as seguintes proposições
b) Jones tem um Ford ou Brown está em Boston;
c) Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona;
13
Sobre as três teorias da necessidade vide Audi (2003: 220 ss). Sobre eventuais problemas que podem assolar as
três teses da necessidade vide, por exemplo, Steup (2008).
24
d) Jones tem um Ford ou Brown está em Brest-Litovsk.
Por um acaso fortuito, mas sem que Smith possua qualquer evidência nesse
sentido, Brown está de facto em Barcelona nesse momento, e, portanto, c é verdadeira.14
E Smith possui evidência para acreditar justificadamente que c é verdadeira, uma vez que
possui evidência para acreditar justificadamente que a é verdadeira. Sendo assim, Smith
acredita justificadamente que c é verdadeira e c é de facto verdadeira. Contudo, diz Gettier,
nestas circunstâncias não pode ser atribuído a Smith conhecimento de c. Não pode, pois a
crença de crença Smith acerta de forma acidental na verdade de c. Este é então,
alegadamente, um caso em que um agente tem uma crença verdadeira justificada que não
é conhecimento.
Embora possam existir variações, os contra-exemplos de Gettier e outros similares
que designaremos tipo-Gettier partilham uma mesma estrutura:
1) S tem uma crença, C, que p;
2) A evidência que S tem para C não é suficiente para estabelecer a verdade de p,
uma vez que p é falsa, mas essa evidência é suficiente para justificar C;
3) S infere q a partir de p e forma a crença justificada, C*, que q nessa base
inferencial;
4) C* é verdadeira, uma vez que q é verdadeira;
5) S tem uma crença verdadeira e justificada, C*, que q;
6) C* não é conhecimento, uma vez que S acredita acidentalmente na verdade de q;
não é a justificação de C* que estabelece a ligação entre essa crença e a verdade de
q, e portanto não basta S ter uma crença verdadeira e justificada para ter
conhecimento.
Agora, o ponto 2 depende da aceitação de que há crenças justificadas falsas. Ter
evidência para r pode ser suficiente para justificar a crença que r, mas pode não ser
suficiente para estabelecer a verdade de r. Por outro lado, o ponto 3 depende do princípio,
nem sempre pacífico (ao qual voltaremos na secção 4.2.2), segundo o qual a justificação se
transmite através de implicação lógica (Gettier 1963: 121). O ponto 4 assenta na ideia que
se podem formar crenças verdadeiras a partir de crenças falsas. Estes podem constituir-se
14
(c) é uma disjunção. A lógica proposicional elementar diz-nos que uma disjunção só é falsa no caso de ambos
os disjuntos serem falsos.
25
como problemas para os contra-exemplos avançados por Gettier, mas outros contraexemplos do mesmo tipo conseguem evitar as críticas e as objecções movidas aos contraexemplos originais.
1.10. Outros contra-exemplos à DTC
Sem prejuízo da sua eficácia na falsificação da DTC, os contra-exemplos
apresentados por Gettier não são talvez os mais intuitivos. Sofrem também, além disso, de
alguns problemas estruturais. O debate sobre a sua eficácia, a forma de os contornar, e
sobre novas propostas de definição do conhecimento trouxe outros contra-exemplos que,
para além de mais acessíveis e mais intuitivos, parecem evitar algumas objecções
inicialmente a levantadas aos originais. Como dissemos acima, alguns desses contraexemplos não dependem, por exemplo, do facto de haver crenças justificadas falsas a
partir das quais se infere crenças verdadeiras ou do próprio princípio do fecho (para a
justificação).
Seguem-se agora mais quatro contra-exemplos à DTC. O objectivo da exposição é
diversificar a amostra de contra-exemplos disponíveis à referida definição e preparar o
terreno para introduzir mais a fundo o debate do chamado Problema de Gettier, por vezes
designado por Problema da Quarta Condição, uma vez que parece haver uma quarta
condição necessária para haver conhecimento.
Keith Lehrer (1974: 18-19) sugere uma variante mais intuitiva do segundo contraexemplo de Gettier. Esta variante, a que vamos chamar Nogot (na linha do que surge na
literatura), tem o mérito de simplificar o segundo caso de Gettier, evitando em especial a
introdução de uma disjunção arbitrária.
Suponha-se que Smith possui evidência para acreditar justificadamente que um seu
aluno tem um Ferrari. A crença de Smith está justificada porque Smith costuma ver Nogot,
um seu aluno, a conduzir um Ferrari, além de Nogot ter dito a Smith que tinha um Ferrari,
etc. Contudo, não é de todo verdade que Nogot seja proprietário de um Ferrari, isto apesar
de toda a evidência aduzida nesse sentido. Porém, um outro aluno de Smith, Havit, é de
facto proprietário de um Ferrari, embora Smith não possua qualquer evidência nesse
sentido. Temos então que a crença de Smith que um seu aluno tem um Ferrari é
verdadeira, porque Havit tem realmente um Ferrari, e está justificada, porque Smith tem
26
evidência suficiente para acreditar justificadamente que um seu aluno (que Smith julga ser
Nogot) tem um Ferrari. As três condições estabelecidas pela DTC são portanto satisfeitas,
mas não pode ser creditado conhecimento a Smith acerca de um seu aluno ter um Ferrari.
Tal como acontece no segundo contra-exemplo de Gettier, existe um desfasamento óbvio
entre a evidência que justifica a crença de Smith e o facto que torna essa crença verdadeira.
Dito de outro modo, Smith tem evidência para acreditar justificadamente na proposição
u à euàalu oàte àu àFe a i àpo ueàte àe id
iaàpa aàa edita àjustifi ada e teà aà
proposiç oà Nogotàte àu àFe a i à p oposiç oàfalsa ,à
oàpo ueàte haàe id
iaàpa aà
a edita àjustifi ada e teà aàp oposiç oà Ha itàte àu àFe a i à p oposiç oà e dadei a).
Sendo assim, aceita-se que Smith tenha uma crença justifi adaà aàp oposiç oà te hoàu à
alu oà ueàte àu àFe a i ,à asà
oàseà editaà o he i e toàaà“ ith,àpoisà o p ee de-
se que a justificação que Smith tem para a sua crença nessa proposição não é a correcta.
Tendo como objectivo de mostrar que o conhecimento não pode ser meramente
crença verdadeira, Bertrand Russell imagina a seguinte situação, a que vamos chamar
Broken-clock (1948: 170).15 Suponha-se que S olha para um relógio que marca 12h00 no
exacto momento em que são 12h00. O relógio está contudo avariado. Sem que S possa
sabê-lo, o relógio avariou no dia anterior e parou exactamente às 12h00. Vinte e quatro
horas depois, o relógio marca 12h00 no momento exacto em que S olha para ele. Não
possuindo qualquer razão para pensar que o relógio está avariado e parado, S forma a
crença de que são 12h00 com base na indicação dada pelos ponteiros do relógio. Como
são realmente 12h00, a crença é verdadeira. E uma vez que o relógio marca 12h00 e S não
sabe que o relógio está avariado, a crença de S de que são 12h00 está justificada. Sendo
assim, a crença de S é verdadeira e está justificada. Uma vez mais, porém, não pode ser
creditado a S—nesse momento e nessas circunstâncias—conhecimento acerca da hora
correcta. Algo mais seria necessário para que S tivesse esse conhecimento. Seria
necessário, em particular, que a justificação que S possui para a sua crença verdadeira fosse
suficiente para estabelecer a ligação entre essa crença e o facto de serem 12h00, o que
não acontece, uma vez que não é a justificação mas sim o acaso que estabelece essa
ligação. Essa ligação entre crença e verdade é também neste caso meramente acidental.
15
O caso que agora apresento tem algumas diferenças em relação ao original.
27
Tal como descrito, o caso dispensa o princípio do fec ho para a justificação, uma vez
que S não faz qualquer inferência, limitando-se a cons tatar as horas ao olhar para os
ponteiros do relógio.
Roderick Chisholm (1977: 105) propõe um caso, a que vamos chamar Sheep, que
transporta os contra-exemplos para a província da percepção.
Suponha-se que S acredita que está uma ovelha na encosta porque ao olhar para a
dita encosta vê um animal que lhe parece ser uma ovelha. Mas esse animal é afinal um cão;
digamos, um cão tão semelhante a uma ovelha que levou S a confundi-lo por uma, sem no
entanto se dar conta da sua confusão. Contudo, por mero acaso, há realmente uma ovelha
na encosta, embora S não a consiga ver, uma vez que, por estar atrás de uma rocha, se
encontra fora do campo visual de S. Assim, S tem uma crença verdadeira e justificada de
que está uma ovelha na encosta. A crença é verdadeira porque está de facto uma ovelha
na encosta, e está justificada porque a evidência (perceptual) que S possui justifica a sua
crença. Apesar disso, diz Chisholm, não é possível creditar a S conhecimento de que está
uma ovelha na encosta. Não é possível pois, uma vez mais, a justificação de S não
estabelece a ligação apropriada entre a crença na proposição e o facto descrito por essa
proposição. S tem realmente evidência para justificar a sua crença, pois vê um animal
muito similar a uma ovelha, mas essa evidência não é a evidência necessária e suficiente
para que S possa saber que está uma ovelha na encosta. Essa evidência teria de ser, no
mínimo, a experiência visual da ovelha que está na encosta.
Alvin Goldman (1976: 773) discute um célebre contra-exemplo, que designaremos
por Barney, à DTC e à teoria habitualmente designada por fiabilismo (a qual voltaremos na
secção 3.5.1) Este é por norma visto como um contra-exemplo muito especial, ao introduzir
circunstâncias de acidentalidade incomuns, mesmo tendo como medida os elevados
padrões de acidentalidade apresentados pelos habituais contra-exemplos tipo-Gettier.
Suponha-se que, ao passear pelo campo, S se depara com um número considerável
de imitações de celeiros. Estas imitações são da perspectiva visual de S indistinguíveis de
celeiros reais. Encaixado no meio das imitações de celeiros está no entanto um celeiro. Ao
olhar para esse celeiro, S forma naturalmente crença de que está a ver um celeiro (ou de
que o edifício que vê é um celeiro, ou que está ali um celeiro). S tem portanto uma crença
28
verdadeira (é verdade que o edifício é um celeiro) e justificada (por S ter evidência visual
nesse sentido). É todavia difícil creditar conhecimento a S de que está ali um celeiro. Esta
é a intuição que guia muitos epistemólogos quando se recusam a atribuir esse
conhecimento a S nestas circunstâncias muito particulares.
Ao contrário dos casos anteriores, o problema aqui não parece residir num
desfasamento entre a evidência disponível para S e a verdade da proposição de que é alvo
a crença de S. Com efeito, parece que S dispõe de toda a evidência de que necessita para
sustentar a sua crença, quer em quantidade quer em qualidade. Todavia a sua crença
poderia facilmente ter sido falsa. Para tal bastaria que S tivesse olhado para uma das
muitas imitações de celeiro disponíveis no seu campo visual ao invés de olhar para o
celeiro. Esta fragilidade introduzida por circunstâncias muito especiais de acidentalidade
faz com que a crença de S não possa ser reconhecida como conhecimento.
1.11. Porquê tentar uma solução para os contra-exemplos de Gettier?
Esta primeira amostra de contra-exemplos apenas levanta ligeiramente o véu sobre
a real dimensão do problema. 16 Como veremos nas secções seguintes, algumas reações ao
Problema de Gettier deram origem a novos e sofisticados contra-exemplos, a que se
seguiram novas tentativas de reparar a DTC, novas soluções e novos contra-exemplos.
Parece-nos que esta espiral nunca foi realmente parada, constituindo-se com um nó górdio
da epistemologia contemporânea.
Face à proliferação de soluções propostas para o Problema de Gettier e quando
confrontados com a espiral, alguns filósofos argumentaram contra o projecto de solucionar
o referido problema. No essencial, e na nossa interpretação, o ponto destes filósofos é o
de que não faz sentido procurar uma definição apropriada p ara o conhecimento desde que
esteja disponível uma definição apropriada para a justificação, uma definição que seja
suficientemente explicativa ao ponto de dar conta de um vasto número de sucessos
cognitivos.
No lado oposto da barricada, outros filósofos apresentaram argumentos contra
esses argumentos e a favor da necessidade de solucionar o Problema de Gettier e de
encontrar uma definição apropriada do conhecimento. Earl Conee é um destes filósofos.
16
Uma referência explícita ao Problema da Quarta Condição pode ser encontrada em Pollock (1986: 9).
29
Contra as perspectivas de Michael Williams e David Kaplan, em especial contra a de Kaplan,
segundo as quais uma resolução do Problema de Gettier ou é um projecto espúrio, uma
vez que é uma vã tentativa de responder ao cepticismo epistemológico (Williams), ou é
inútil, uma vez que nem dá, nem pode vir a dar, conta daquelas que devem ser as
finalidades da investigação racional e correcta (Kaplan), Conee escreve o seguinte:
áà atu ezaà daà o e taà i estigaç oà depe deà daà fi alidadeà daà i estigaç o.à áà
finalidade da pura investigação racional não é ter uma crença verdadeira justificada. É ter
conhecimento. Assim, quem meramente faz o que é necessário para ter uma crença
justificada pode não ter o que realmenteàp o u a (Conee 1988: 55)
Segundo julgamos ter percebido da passagem, importa resolver o Problema de
Gettier porque o principal desideratum epistémico e epistemológico é o conhecimento,
não a crença verdadeira justificada. Se o mais importante do ponto de vista compreensão
dos fenómenos epistémicos fosse elucidar a natureza da justificação (epistémica), então
empenharmo-nos numa cruzada pela correcta definição do conhecimento iria afigurar-se
como uma iniciativa desprovida de sentido, uma vez que compreender o que é a
justificação epistémica (ou a crença verdadeira justificada) seria suficiente para satisfazer
a nossa curiosidade sobre o principal desideratum epistemológico. Assumindo que a
compreensão do que é a justificação epistémica não é suficiente para a compreensão dos
mais importantes fins da cognição, uma vez que o fim último e mais importante da
cognição é o próprio conhecimento, impõe-se continuar a investigação sobre a natureza
deste último.
Esta valoração do conhecimento face à justificação não é contudo pacífica. Por
exemplo, Pollock diz o seguinte:
A teoria do conhecimento é uma tentativa de responder à questão ´como sabes
ue…?`,à asà estaà à u aà uest oà so eà como sabemos algo, e não sobre o
conhecimento per se. Ao perguntarmos como é uma pessoa sabe algo estamos
habitualmente a perguntar o que sustenta a sua crença. Queremos saber o que
justifica essa pessoa a ter essa crença. Assim, tradicionalmente a epistemologia
debruçou-se mais sobre a justificação epistémica do que sobre o conhecimento. A
epistemologia deveria ser chamada ´Doxalogia`(Pollock 1986: 7)
Tanto Conee como Pollock parecem ter boas razões a apoiar as suas preferências.
Não cremos todavia que essas razões produzam uma vantagem assinalável para qualquer
30
das partes, embora nos inclinemos ligeiramente para a perspectiva de Conee, porque a
ideia de que o conhecimento é o fim último da cognição e da investigação racional, e, logo,
o que de mais relevante há a ser explicado no interior da epistemologia, é algo que se nos
apresenta como bastante intuitivo.
O restante do presente trabalho de alguma forma alinha com as duas perspectivas,
pois daremos especial relevância a uma solução para o problema de Gettier que contemple
uma explicação do processo (de satisfação de condições) pelo qual uma crença chega a
estar epistemicamente garantida a ponto de ser conhecimento.
1.12. Reações aos contra-exemplos de Gettier
Submete-se agora, em jeito de preparação das restantes secções desta primeira
parte, uma tipologia simplificada das principais reaçõe s ao artigo de Gettier. Segundo nos
parece, estas reações podem ser dispostas em três categorias mutuamente exclusivas e
conjuntamente exaustivas. Na primeira categoria inserem-se todas aquelas reações que se
propõem recuperar a DTC, por norma adicionando uma quarta condição que complementa
a condição de justificação. Na segunda categoria inserem-se todas aquelas reações que
propõem uma nova definição com base numa análise tripartida, quadripartida ou npartida, que substitui completamente a condição de justificação por outra ou outras
condições (Compare-se com Williams 2001: 29). Na terceira categoria incluem-se aquelas
reações que rejeitam que o conhecimento possa ser definido por via de uma análise, não
sendo contudo essa rejeição impeditiva de ser avançada uma elucidação do conceito de
conhecimento.
A duas primeiras correntes, que no fundo se estabelecem como as bases do
programa analítico de que falávamos acima, dominaram a investigação filosófica durante
cerca de quatro décadas. Esse domínio foi recentemente desafiado por Timothy
Williamson (2000: 42), ao defender a impossibilidade de uma análise simultaneamente
não-circular e informativa do conceito de conhecimento. Como veremos na secção 5.3., a
sua perspectiva é a de que qualquer analisans do conceito de conhecimento inclui o
analisandum, i.e., inclui o próprio conceito de conhecimento, o que torna, ainda segundo
ele, viciosamente circular qualquer tentativa de definir o conhecimento por via de uma
análise. Como também veremos, esta linha de argumentação tem vindo a ser contestada.
31
Mas por ora vamos centrar a nossa atenção nas duas primeiras correntes e nas mais
salientes propostas que lhe dão vida.
2. Teorias Inaugurais Pós-Gettier
2.1. Resumo
Esta parte do trabalho é dedicada a algumas das primeiras tentativas para
solucionar o Problema de Gettier. As teorias que nasceram dessas tentativas procuraram
fundamentalmente corrigir a DTC. Fizeram-no ora sugerindo uma definição revista,
embora na mesma linha da original, ora sugerindo uma definição que tendia a romper com
a terceira condição da DTC.
Mesmo usando uma tipologia simplificada, situar e reuni r com precisão estas
tentativas iniciais num determinado grupo de teorias é uma tarefa difícil, uma vez que é
igualmente difícil identificar os aspectos comuns às diferentes propostas de solução por
elas apresentadas. Sendo assim, optámos por seguir um esquema de apresentação e de
comentário dessas propostas de solução que assenta fundamentalmente em dois critérios:
o cronológico e o da relevância (de cada proposta para as discussões que se lhe seguiram).
O objectivo a cumprir nesta secção passa por identificar os problemas de que
padecem essas propostas de solução, problemas que aparentemente condenaram essas
soluções ao fracasso.
Sobre esta consideração, há a dizer que ela não é de todo um exclusivo do corrente
trabalho, surgindo, como veremos, directa ou indiretamente defendida na literatura.
Todavia, pela parte que nos toca, não nos podemos contudo dar ao luxo de a assumir
tacitamente. Dedicamo-nos pois de seguida a tentar entender que razões se encontram na
sua origem, bem como se essas razões obtêm ou não.
2.2. A teoria da ausência de falsas razões
A teoria sobre a qual agora me debruço surge por vezes na literatura (Huemer 2002)
como sendo a primeira resposta ao artigo de Gettier. Segundo Michael Clark (1963: 46-48),
o autor dessa resposta, o conhecimento é crença verdadeira justificada, em que a
justificação da crença deve ser compreendida como justificação total ou completa, na
32
medida em que não deriva de qualquer falsidade (no false lemma).17 Desta perspectiva, o
conhecimento ocorre aquando da satisfação das três condições estipuladas pela DTC e da
satisfação de uma quarta condição.
A ideia de Clark é prima facie atraente. Considere-se o conjunto de fundamentos
ou razões no qual assenta uma determinada crença. Se esses fundamentos forem
verdadeiros, quer dizer, se forem proposições verdadeiras, então a crença está totalmente
justificada, sendo portanto conhecimento. O ponto é n ão existirem falsidades na cadeia de
fundamentos que contribuem para justificar a crença. Evita-se deste modo o problema de
a justificação de uma crença numa proposição verdadeira poder assentar na evidência que
o agente da crença tem ou possa ter para uma proposição falsa.
À luz da solução de Clark, os contra-exemplos de Gettier não colhem, uma vez que
esses contra-exemplos mostram casos de crenças justificadas cuja justificação assenta em
alicerces falsos.
Da forma como vemos a solução, a quarta condição sugerida por Clark levanta,
infelizmente, pelo menos dois problemas. 18 O primeiro diz respeito à putativa suficiência
adquirida pela versão revista da DTC de Clark quando complementada por essa condição.
O segundo diz respeito à forma como poderemos fazer atribuições correctas de
conhecimento no caso da quarta condição estar em ordem. Por causa da sua importância
para a definição sugerida por Clark, estes problemas merecem ser tratados em separado.
O primeiro problema. Suponha-se que uma crença de S numa proposição
verdadeira p assenta apenas em razões verdadeiras. Por exemplo, suponha-se que S
acredita que o João foi à biblioteca em todos os dias úte is de 2009, e que aàp oposiç oà oà
Jo oàfoià à i liote aàe àtodosàosàdiasàúteisàdeà
9 à à e dadei a.àPode osàsupo àai daà
que, além de ser verdadeira, essa proposição assenta em evidência sólida, por exemplo,
que a Sara e o Pedro, pessoas cujo testemunho é geralmente fiável e verdadeiro, disseram
a S ter visto o João na biblioteca em todos os dias út eis de 2009. Tendo em atenção os
17
Uma discussão desta e de outras repostas iniciais surge em Lycan (2006: 148-168), que acaba por defender uma
versão melhorada da teoria de Clark.
18
A versão melhorada da teoria de Clark sugerida por Lycan esbarra aparentemente em contra-exemplos do tipo
Barney, forçando o próprio Lycan a admitir que, no caso Barney e similares, o agente da crença tem conhecimento, o que
milita contra as nossas melhores intuições acerca da falta de conhecimento por parte desses agentes nesses casos.
33
testemunhos da Sara e do Pedro, a crença de S está justificada e assenta apenas em
verdades. Este é portanto um caso em que são satisfeitas todas as condições introduzidas
pela definição de Clark, pois...
i)
S tem uma crença,
ii)
verdadeira,
iii)
justificada,
iv)
formada apenas com base em verdades.
Mas suponha-se agora que a Sara e o Pedro confundiram o João por outro aluno
extremamente parecido com o João, o Diogo, que acontece ser irmão gémeo do João, e
que, tal como o João, foi também à biblioteca todos os dias úteis de 2009. Mais, para além
de terem visto o Diogo, eles viram também o João na biblioteca em todos os dias úteis de
2009, embora, sem que eles se tivessem apercebido, o João tenha usado sempre uma
cabeleira e uma barba postiças que o tornou irreconhecível aos seus olhos. O testemunho
da Sara e do Pedro é por isso verdadeiro, pois é um facto que o João foi de facto à biblioteca
todos os dias úteis de 2009 e eles viram lá o João, mas não é possível atribuir conhecimento
a S nestas condições, uma vez que o testemunho da Sara e do Pedro, embora verdadeiro
(pois eles viram de facto o João), não se refere ao João mas sim ao Diogo. Neste caso, S
acredita numa proposição que está plenamente justificada—segundo a definição de Clark
de plenamente justificada—, mas não se pode atribuir conhecimento a S acerca do João
ter estado na biblioteca. Isto revela que a definição corrigida de Clark falha em fornecer as
condições necessárias e suficientes para que alguém possa saber que p.
O segundo problema. Suponha-se agora que ao contrário do que é sugerido pelo
exemplo anterior, o João nem tem um irmão gémeo, nem usou cabeleira e barba postiças
sempre que foi à biblioteca em 2009. Neste caso evitar-se-ia a objecção anteriormente
aduzida e poder-se-ia afirmar que S sabe o João foi à biblioteca em todos os dias de 2009,
uma vez que a crença de S estaria plenamente justificada e, além disso, todos os
fundamentos nos quais a crença assenta seriam os apropriados, por serem verdadeiros (e
não há erro). Mas isto levanta um problema adicional, que é o de como se conseguiria
avaliar que todos os fundamentos seriam os apropriados, e, portanto, de como se poderia
34
fazer uma atribuição correcta de conhecimento a S. Parece que uma tal tarefa exigiria uma
avaliação exaustiva dos fundamentos, dos fundamentos dos fundamentos, dos
fundamentos dos fundamentos dos fundamentos, etc.
Este é o venerável problema do regresso da cadeia dos fundamentos ou das
justificações, um problema que não é abordado por Clark (e ao qual voltaremos no
Primeiro Interlúdio). Mesmo considerando que a análise de Clark é viável do ponto de vista
da elucidação do conceito de conhecimento, o que não parece ser o caso, impõe-se com
alguma naturalidade a ideia de que uma definição saída de ssa análise não seria
confirmável, uma vez que, havendo um regresso infinito na cadeia de fundamentos, não
haveria forma de se confirmar se todos os fundamentos seriam (ou não) verdadeiros (pelo
menos para muitas proposições alvo de crença com uma etiologia complexa). Embora este
seja aparentemente um problema para todas as teorias da justificação, ele parece afectar
negativa e irremediavelmente a solução de Clark, uma vez que esta parece depender
excessivamente de poder ser oferecida uma elucidação de quais seriam, numa dada
situação de avaliação e atribuição de conhecimento, os fundamentos verdadeiros de uma
crença.
2.3. A Teoria da Causalidade
2.3.1. A Teoria Causal de Goldman
As teorias causais do conhecimento visam eliminar os desfasamentos típicos entre
a crença e o facto descrito pela proposição que é alvo de crenças, e que se encontram no
cerne dos casos Gettier. As teorias causais do conhecimento propõem, grosso modo, que
S sabe que p desde que...
i)
S acredite em p,
ii)
seja (ou venha a ser) o caso que p,
iii)
a crença de S que p esteja numa relação causal apropriada com o facto
descrito por p.
Por exemplo, se S sabe que Barack Obama é o quadragésimo quarto presidente dos
EUA, então...
35
i)
S acredita que Barack Obama é o quadragésimo quarto presidente dos EUA.,
ii)
Barack Obama é de facto o quadragésimo quarto presidente dos EUA,
iii)
O facto de Obama ser o quadragésimo quarto presidente dos EUA é a causa
(ou uma das causas) da crença de S que Barack Obama é o quadragésimo
quarto presidente dos EUA.
Alvin Goldman (1967: 369) é um dos pioneiros da condição iii da teoria da
causalidade.19 Para ele não é possível atribuir conhecimento aos agentes nos casos Gettier
porque o que acontece nesses casos é que o facto que torna verdadeira a proposição que
é alvo da crença dos agentes não está numa relação causal apropriada com essa mesma
crença. Por exemplo, no segundo contra-exemplo de Gettier, a crença de Smith de que
Brown está em Barcelona não está numa relação causal com o facto de Brown estar em
Barcelona, pois o facto de Brown estar em Barcelona não é a razão pela qual Smith acredita
que Brown está em Barcelona. Não é portanto esse facto que está na origem, i.e., que é a
causa (eficiente, para usar o velho jargão aristotélico), da crença de Smith, e Goldman julga
que essa falha explica por que razão não é possível neste caso creditar conhecimento a
Smith sobre o paradeiro de Brown.
Entendida à guisa de Goldman e de outros famosos epistemólogos, uma ligação
causal apropriada entre o facto e a crença tende a eliminar a possibilidade de essa crença
ser acidentalmente verdadeira, tornando-a um candidato plausível a conhecimento.20
19
A formulação de Goldman dispensa as condições (i) e (ii) uma vez que a condição (iii) pressupõe que o agente
tem uma crença numa proposição verdadeira (pois descreve um facto). Optei por uma exposição tradicional da teoria em
forma de três condições apenas para manter o figurino habitual deste tipo de definições/análises.
O Goldman da teoria causal é o “primeiro” Goldman. Como se verá aquando da discussão do fiabilismo, o
“segundo” Goldman considera a sua teoria causal insuficiente para explicar o fenómeno do conhecimento proposicional.
Como se verá também, o fiabilismo aproveita contudo a ideia de que a memória, a percepção e sistemas de inferência são
processos causais apropriados para a formação de crenças que são conhecimento ( Cf. 369)
20
Goldman argumenta no mesmo lugar que a definição/análise de Clark falha por duas razões. A primeira, da qual
já forneci também um exemplo, é a de que uma crença pode assentar apenas em verdades e ainda assim não poder ser
creditado conhecimento em virtude de os factos que estão na origem dessas verdades (dos fundamentos) não estarem
causalmente ligados à crença de modo apropriado (cf. 366). A segunda é que a definição de Clark é demasiado forte, uma
vez que há casos em que nem todos os fundamentos de uma crença são verdadeiros e ainda assim pode ser creditado
conhecimento a um agente (cf. 367-369). Goldman não exige portanto que todos os fundamentos de uma crença sejam
verdadeiros, apenas que os necessários sejam verdadeiros.
36
Goldman alega no entanto que o facto descrito pela proposição que é alvo da
crença não tem de ser forçosamente a causa directa da crença, isto para antecipar o
problema que o conhecimento acerca do futuro (ou do conhecimento matemático)
poderia constituir para a sua teoria causal, Goldman (Ibidem: 364-365) configura a
condição iii de modo a poder incluir aqueles casos em que alguém sabe aparentemente
algo acerca do futuro, mas em que o acontecimento na base da proposição que é alvo de
crença ainda não teve lugar. Suponha-se, por exemplo, que se credita conhecimento a S
sobre um acontecimento no seu futuro, digamos, que S sabe que estará no Rossio na
próxima quarta-feira. Se a teoria causal estivesse em ordem, então o acontecimento no
futuro de S teria de alguma forma de ser a causa, ou pelo menos uma das causas, da crença
de S no presente (sobre esse mesmo acontecimento futuro). A suposição de que
acontecimentos no futuro podem ser a causa de acontecimentos no presente é todavia
pouco plausível, uma vez que, alegadamente, algo que ainda não aconteceu não pode ser
a causa de algo que já aconteceu—eventos no futuro não podem causar eventos no
presente.21
Ora, como Goldman deseja preservar a ideia de que é possível ter conhecimento
acerca do futuro e deseja também preservar a teoria causal, propõe que a crença de S
pertence a uma rede causal na qual a intenção que S tem no domingo de estar no Rossio
na quarta-feira seguinte (ao domingo no qual S teve essa intenção) é tanto uma das causas
da crença de S de que estará no Rossio na quarta-feira como uma das causas da ida e
posterior estada de S ao Rossio nessa mesma quarta-feira.
Fica porém a ideia que esta objecção, uma objecção que é levantada por Goldman
à sua própria teoria causal, nunca parece ter sido convincentemente solucionada, por ele
ou por qualquer outro filósofo. Uma solução relativament e simples para o problema passa
por supor e aceitar que não há conhecimento (de proposições contingentes, pelo menos)
21
Esta teoria metafísica pode não ser de todo pacífica. Talvez algumas teorias possam afirmar que eventos futuros
podem realmente ser a causa de eventos no presente; como, por exemplo, a tempestade que se avizinha no futuro (ou que
foi prevista pelos meteorologistas) poder ser a causa da minha crença de que devo proteger a minha casa o melhor possível.
Mas esta crença não é causada pelo facto (futuro) de haver uma tempestade, mas pela possibilidade forte de vir a ocorrer
essa tempestade. Não há portanto aparentemente neste caso um sentido legítimo em que se possa dizer que a tempestade
futura é a causa da minha crença de que devo proteger a minha casa contra uma tempestade.
37
acerca do futuro, algo que daria mais alguma viabilidade à teoria. Mas Goldman não opta
por esta linha de defesa. Mantém essa possibilidade em aberto no seu artigo, sujeitando
portanto a condição (iii) ao escrutínio de contra-exemplos que pressupõem a possibilidade
de haver esse conhecimento.
Considere-se, por exemplo, o seguinte caso que julgamos paradigmático da não
necessidade da satisfação da condição iii para haver conhecimento. Suponha-se que um
astrofísico prevê, com base em observação científica fidedigna, que uma determinada
estrela vai tornar-se numa supernova num futuro próximo. Com base na sua observação,
o cientista forma a crença de que essa estrela vai tornar-se supernova, o que passado
algum tempo acaba por acontecer e, logo, acaba por servir de confirmação dessa previsão
e dessa crença. Afigura-se natural conceder-se que o astrofísico sabe, à data da sua
previsão e da sua crença, antes de ocorrer a supernova, que a estrela se vai tornar numa
supernova. Todavia não há qualquer ligação causal entre a previsão do astrofísico que a
estrela se iria tornar uma supernova e o facto da estrela se tornar uma supernova. Esses
dois eventos não pertencem à mesma rede causal, uma vez que nem a previsão poderia
causar a supernova, o que é evidente, nem a supernova poderia causar a previsão, pois a
supernova não tinha ainda ocorrido à altura da previsão, e para uma coisa ser a causa de
outra tem pelo menos de ocorrer antes ou, quanto muito, ao mesmo tempo.
Se, tal como aceite por muitos pensadores, as melhores previsões científicas têm o
estatuto de conhecimento científico, e se o conhecimento científico é uma subespécie de
conhecimento proposicional, então pode haver conhecimento sem que seja
concomitantemente necessário que a crença que constitui esse conhecimento seja
causada pelo facto que torna verdadeira a proposição (contingente) alvo da crença.
Outros subtipos de conhecimento proposicional que cau sam dificuldades à teoria
causal são o conhecimento matemático e o conhecimento moral. O que o subscritor da
teoria causal tem de ser capaz de demonstrar é que género de factos estão na origem, quer
dizer, são a causa, das crenças em proposições matemáticas e morais. Não nos podendo
alongar na discussão do tópico, fica a ideia de que a ident ificação e delimitação dos
referidos factos não é uma tarefa fácil, o que parece constituir motivo de preocupação
acrescida para o defensor da referida teoria.
38
2.3.2. A Teoria Causal de Skyrms
A segunda teoria causal que desejo revisitar na linha de discussão do Problema de
Gettier é da responsabilidade de Brian Skyrms (1967: 373-389). Embora menos discutida
que a de Goldman, a teoria de Skyrms adiciona duas condições à teoria causal do
conhecimento tal como descrita acima (Ibidem: 386-387).22 A primeira é a condição de que
a crença tenha realmente origem no facto descrito pela proposição que é alvo da crença,
e não apenas que o agente tenha algum género de evidência para sustentar uma eventual
relação causal entre facto e crença, não existindo todavia essa relação (Ibidem: 384). A
segunda é a de que exista uma implicação forte, mas não demasiado forte a ponto de
excluir alguns casos claros de conhecimento, entre a evidência disponível para p e o facto
descrito por p, em símbolos, e→p. Teço de seguida breves comentários a estas duas
condições.
A primeira condição de Skyrms elimina claramente o conhecimento do futuro. A
condição deixa de fora casos que são aceites como casos claros de conhecimento, como
por exemplo o conhecimento do astrofísico agora (em t) de que uma estrela irá (em t à
tornar-se numa supernova.
A segunda condição exige um tratamento mais detalhado. A perspectiva de Skyrms
é a seguinte. Suponha-se que, ao ver um homem decapitado (Fa), S forma crença que esse
homem está morto (Ga). Todavia, sem que S possua qualquer evidência nesse sentido, o
homem decapitado não morreu devido a ter sido decapitado, mas sim devido a ter sofrido
um ataque cardíaco (Ha). A decapitação aconteceu post-mortem e foi da autoria de um
lunático que, ao ver o homem deitado e indefeso, decapitou o infeliz já depois de este estar
morto. S forma portanto a crença que o homem morreu com base Fa e não com base em
Ha. Como a teoria causal exige que a crença de S de que o homem decapitado está morto
tivesse sido causada por Ha (a causa da morte) e não por Fa (a putativa causa da morte),
22
Skyrms está preocupado não apenas com conhecimento não-básico mas também com conhecimento básico.
Conhecimento básico é, segundo ele (e muitos outros), conhecimento que não assenta em qualquer crença ou proposição,
mas tão-somente em experiências (fundamentalmente da ordem da percepção). De uma determinada perspectiva, ele pensa
que as condições necessárias para que ocorra este último tipo de conhecimento (não-derivativo) são mais finas do que as
condições necessárias para que ocorra conhecimento não-básico, construindo e oferecendo portanto uma definição que
considera esta exigência suplementar.
39
segue-se que, aparentemente, não pode ser creditado conhecimento a S acerca do facto
de o homem decapitado estar morto (Ga), o que se afigura como um absurdo, uma vez que
Fa é causa mais do que suficiente para Ga, mesmo não o tendo sido dessa vez, por ter sido
Ha essa causa. Skyrms conclui que a condição necessária para S saber que Ga, ou seja,
Fa→Ga, e à ueà aà o o
iaà deà → à i di aà u aà elaç oà deà ausalidadeà eà
oà u aà
condicional material, é demasiado exigente; pois, tal como formulada, simpliciter, demite
este caso como um caso de conhecimento, uma demissão se apresenta como implausível.
Para resolver o problema, Skyrms propõe uma outra leitura da condição de
causalidade, uma leitura que envolve modalidade. Simplific ando, mesmo que Fa não
tivesse sido a causa de Ga na situação descrita pelo exemplo, e portanto não fosse a
evidência correcta para a crença de S nesse contexto, uma vez que nesse contexto a
condicional Fa→Ga àfalsaà u àse tidoàdeà falsa à ueàte àdeàse àto adoà o àu àg oà
de sal), Fa poderia ter sido verdadeira e contaria como evidência, desde que a sua
contrafactual o t apositi aàta
oà ho e à te à deà esta à
ào ti esse.à“e doà “eàoàho e àfoiàde apitadoàentão
o to à aà o di io alà ueà pode iaà satisfaze à aà o diç oà deà
causalidade (de evidência causal), então a contrafactual contrapositiva desta condicional,
“eàoàho e à
oàesti esseà o to,àe t oàaàsuaà a eçaà
oàte iaàsidoà o tada ,àta
ém
tem de obter.23 Este é o critério sugerido por Skyrms para a condição de relevância das
causas para fins de evidência, em que a ideia de relevância estipulada pela condição se
refere à relevância das causas da evidência para crenças que são conhecimento. Segundo
este critério, Fa estabelece-se como causa relevante da evidência que S possui para Ga
porque □~Ga→~Fa obtém (por ser plausivelmente uma necessidade física: pessoas
decapitadas têm de estar mortas).24
Tal como estabelecida, a condição parece ter um problema difícil de contornar.
Trata-se do problema da identificação das causas relevantes em contextos de causa e
23
Skyrms assume que quer a condicional quer a contrafactual obtêm em função de estabelecerem necessidades
nómicas.
24
Alguém pode supor que não se trata realmente de uma necessidade física, uma vez que há mundos possíveis nos
quais uma pessoa decapitada sobrevive à custa de maquinaria, artefactos sofisticados, etc. Embora não admitamos essa
possibilidade, podemos concordar que ela é plausível. Sendo assim, resta-nos alterar o exemplo para uma necessidade
física (e conceptual) indisputável, uma escolha que deixo ao critério dos especialistas.
40
efeito em que as partes não envolvem necessidades, sejam elas físicas, metafísicas ou
conceptuais, mas apenas contingências. Considere-se, por comparação com o caso
descrito por Skyrms, a seguinte relação de causa e efeito: Se Barack Obama ganhou as
eleições presidenciais em 2008 (Ba), então é o quadragésimo quarto presidente dos EUA
(Pa). Pelo critério de relevância da evidência, Ba é causa de evidência relevante para Pa,
desde que □~Pa→~Ba. Mas constata-se com alguma facilidade que esta relação de
causalidade não obtém, pois podemos facilmente divisar um mundo possível no qual
Barack Obama não é o quadragésimo quarto presidente dos EUA mas, ainda assim, ganhou
as eleições presidenciais em 2008. Em símbolos, a seguinte relação de causalidade é
possível: ◊Ba ^ ~Pa. Imagine-se, por exemplo, um mundo no qual Barack Obama ganhou
as eleições mas nunca chegou a ser investido (por ter sido assassinado antes, por ter
renunciado ao cargo, etc). O que isto nos revela é que a aplicação com sucesso da condição
de relevância sugerida por Skyrms fica aparentemente confinada a um número restrito de
casos, os que envolvem necessidades. Casos que envolvem contingência tornam o critério
obsoleto.
2.4. A teoria da não-acidentalidade
Entre as primeiras e mais salientes reações à falsificação da DTC no artigo de Gettier
encontram-se algumas teorias que visam estabelecer uma ou mais condições que tornem
impossível que o vínculo entre a crença de um agente e a verdade da proposição que é alvo
dessa crença seja meramente acidental. Como se pode constatar na secção anterior, as
teorias causais propõem geralmente que esse vínculo seja de natureza causal. Uma
alternativa aos problemas geralmente associados às teorias causais passa por instituir uma
exigência de não-acidentalidade, entre crença e verdade, como uma condição necessária
para o conhecimento. Peter Unger (1968: 157-170) oferece-nos uma dessas tentativas ao
sugerir que o conhecimento (factual) pode ser analisado da seguinte forma:
àPa aà ual ue àp oposiç oàp, alguém sabe que p [no momento t] se, e só se, não
é de modo algum acidental [em t] que essa pessoa esteja correcta acerca de ser o caso que
p. (Ibidem: 158)
Parafraseando a análise, obtemos: S sabe que p, no momento t, se, e só se, em t
41
i)
S acredita em p,
ii)
é o caso que p,
iii)
S está não-acidentalmente correcto que p.
Inspeccionamos de seguida alguns aspectos da definição/análise de Unger que nos
parecem cruciais.
O primeiro aspecto diz também espeitoà à a epç oà deà
o-acidentalmente
o e to àsuge idaàpo àU ge . Nesta acepção, não é necessário S ter a certeza (psicológica)
que p para poder estar não-acidentalmente correcto que p. S estar não-acidentalmente
correcto é, por assim dizer, uma condição externa (à mente de S). S acerta na verdade de
p e esse acerto não é de todo acidental. Isto não implica contudo que a condição i não
esteja presente ou possa ser dispensada da definição/análise de Unger. Apesar de não ser
uma condição totalmente explícita nesta definição, ela surge na primeira definição
avançada por Unger, e noutros lugares do texto (Ibidem: 163).
O segundo aspecto a esclarecer tem que ver com o tipo de não-acidentalidade
indicada pela condição iii. No sentido ungeriano, trata-se de não-acidentalidade do vínculo
entre a aceitação de S da verdade do facto descrito por p e o próprio facto. Esse vínculo
não pode ser acidental, como o é em inúmeros casos Gettier. Segundo Unger (Ibidem: 159160), tudo o que origina ou está na base do vínculo pode ser acidental, mas o vínculo não.
O terceiro aspecto refere-se à pretensão de Unger de que a sua definição/análise
dispensa várias condições consideradas necessárias por outras definições/análises, em
particular a condição sugerida por Ayer, segundo a qual S sabe que p desde que S tenha o
direito a ter certeza que p, bem como a condição sugerida por Chisholm, segundo a qual S
sabe que p desde que tenha evidência adequada para p. A rejeição de Unger destas duas
condições, em especial a de Chisholm, é crucial porque, segundo me parece, e segundo irei
defender, põe em causa a viabilidade da própria definição/análise de Unger. Esta
pretensão merece portanto um tratamento mais detalhado, algo que iremos fazer de
seguida.
Unger utiliza um caso-exemplo para ilustrar que estas condições falham. Podemos
designá-lo por exemplo da bola de cristal, o qual tem a seguinte estrutura (Ibidem:163164).
42
a) S tem uma bola de cristal que, sem que S compreenda como ou porquê, dá sempre
a S indicações correctas sobre qualquer tópico/facto, i.e., revela a verdade a S.
b) Devido a ter sido ensinado desde tenra idade a confiar nos resultados
apresentados pela referida bola, S nunca se preocupou em verificar por que razão
lhe dá ela esses mesmos resultados, aceitando-os e acreditando neles apenas por ter
sido ensinado pela sua família desde tenra idade a aceitá -los e a acreditar neles, isto
apesar de S ter adquirido, ao longo da sua vida, evidência para a crença falsa de que
a bola de cristal apenas lhe pode dar falsidades, crença essa que S ignora
propositadamente, dando crédito apenas ao que aprendeu com a sua família.
c) Em virtude de (a) e (b) e, mais em geral, em virtude da sua atitude pouco razoável
do ponto de vista epistémico, S nem tem evidência adequada para acreditar em p,
nem tem o direito a estar certo que p.
d) Uma vez que a bola de cristal é um instrumento fiável para chegar à verdade, e
uma vez que o vínculo entre as crenças de S e os factos indicados pela bola não é
acidental, S tem conhecimento acerca daquilo que a bola de cristal lhe apresenta
como sendo o caso.
e) Uma vez que as crenças que S tem com base nas indicações fornecidas pela sua
bola de cristal são conhecimento, apesar de S não ter evidência adequada ou direito
a estar certo, segue-se que ter evidência adequada e ter o direito a estar certo não
são, portanto, condições necessárias para S ter conhecimento.
Alguma coisa parece-nos menos bem com este argumento. Fica-nos a ideia de que
em virtude do que a, b e c estabelecem, d tem de ser falsa, o que, por conseguinte, faz com
que e seja no mínimo implausível.
A objecção que desejo submeter ao exemplo da bola de cristal é de que S está
realmente acidentalmente correcto acerca dos factos indicados pela bola de cristal, e que
portanto o exemplo nem apresenta um caso de conhecimento segundo a própria definição
de Unger, nem revela que a principal condição constante nessa definição, a condição de
não-acidentalidade, dispensa as condições de evidência, justificação e certeza
(epistémica).
Vejamos. Parece-nos que, no referido exemplo, S está acidentalmente correcto, na
ú i aà a epç oà possí elà deà a ide talidadeà epist
i a ,à istoà si ples e teà po ueà aà
relação entre a verdade da informação fornecida pela bola de cristal e os factos por ela
descritos é acidental, e não, tal como propõe Unger, não-acidental.
Para ver que assim é, examinemos o seguinte caso. Dr. H é um médico que, ao
realizar uma cirurgia delicada, é acometido por uma súbita amnésia, perdendo três quartos
43
das suas memórias, incluindo todas as suas memórias de como proceder naquela cirurgia
particular. Suponha-se também que, como o Dr. H é simultaneamente teimoso e muito
pouco escrupuloso, decide não dar conta da sua perda de capacidades aos outros
presentes na sala de operações. Felizmente para o paciente, um dos assistentes do Dr. H,
o Dr. Z, levou uma cábula descritiva desses mesmos procedimentos para a sala de
operações. Em dificuldade, o Dr. H opta por seguir os procedimentos indicados na cábula
do Dr. Z, acreditando neles e na sua eficácia justamente por serem da autoria do Dr. Z,
pessoa que o Dr. H (com base nas memórias que ainda possui) tem por fiável nestas
matérias, uma vez que o Dr. H sabe que o Dr. Z nunca falhou anteriormente. Como é óbvio,
por causa da sua amnésia, o Dr. H não faz a menor ideia de como esses procedimentos
estão relacionados com certos factos médicos, em especial os factos médicos relevantes
para a cirurgia que decorre naquele momento. Tudo parece no entanto estar, e dar, certo.
Todavia, e sem que o Dr. H tenha forma de o saber, desta feita o Dr. Z inventou os
procedimentos! O vínculo entre a crença do Dr. H e os factos médicos descritos pela cábula
do Dr. Z é neste caso puramente acidental, uma vez que a cábula também está
acidentalmente correcta. Substitua-se agora o Dr. H pelo agente de Unger e a bola de cristal
do referido agente pela cábula do Dr. Z. Temos que o agente está acidentalmente correcto
em ambos os casos, uma vez que o vínculo entre a informação correcta, porque verdadeira,
fornecida por instrumentos fiáveis (a bola de cristal e a cábula do Dr. Z), e os factos a que
se refere essa informação é também ela acidental.
Resta-nos agora tentar perceber se a satisfação da condição de não-acidentalidade
da definição ungeriana é per se suficiente para que haja conhecimento. Se nos for possível
divisar pelo menos um caso no qual a exigência de não-acidentalidade ungeriana é
satisfeita mas no qual não há conhecimento, então teremos um caso que falsifica essa
mesma definição.
Suponha-se que, com base em toda a sua experiência médica, Dr. H diagnostica a
doença Ʊ a um seu paciente R. O Dr. H avança esse diagnóstico com base nos sintomas
evidenciados por R, sintomas que, sem que o Dr. H o saiba, são em tudo idênticos aos que
R teria no caso de ter a doença Ɯ (digamos, uma doença descoberta recentemente). Ao
receber os exames médicos de R necessários para despistar a doença Ʊ, resultados que
44
o fi
a à ueà‘àte àƱ,à o stitui do-se aparentemente dessa forma como a evidência
e ess iaàpa aàoàD .àHàa edita à ueà‘àte àƱ,àesteàpassaàaàa edita à ueà‘àte àƱ.àCo tudo,à
sem que o Dr. H se aperceba, o cabeçalho do relatório indica que aqueles são os resultados
daà despistage à deà Ɯ,à
oà osà esultadosà daà despistage àdeà Ʊ.àá o te eà ueà oàt
i oà
laboratorial equivocou-se ao escrever no cabeçalho os resultados da despistagem, isto por
osà esultadosàdaàdespistage à deà Ʊà eà deà Ɯà se e à e àtudoà iguais,à te doà es itoà ueà seà
t ata aàdaàdespistage àdeàƜàeà
oàdeàƱ.àN oàfosseàoàD .à Hàdist aídoàeàti esseàto adoà
atenção ao cabeçalho, teria recusado os resultados da despistagem, apesar de serem os
resultados correctos! Como não o fez, o Dr. H possui não-acidentalmente os resultados
o e tosàpa aàa edita à ueàoàseuàpa ie teà‘àte àƱ,à asà oàpossuiàaàe id
iaàade uada
para apoiar esse desfecho.
Temos assim que, com base na evidência disponibilizada pelo relatório de exame,
i)
O Dr. H acredita que R tem Ʊ,
ii)
É verdade que R tem Ʊ,
iii)
O Dr. H está não-acidentalmente correcto acerca de R ter Ʊ.
Note-se que é legítimo dizer-se que iii obtém neste caso porque a evidência técnica
disponibilizada pelo relatório é, num certo sentido, a evidência necessária para o Dr. H
fo
a à o e ta e teàaàsuaà e çaàdeà ueà‘àte àƱ.àápesa àdissoà oà àpossí elà edita àaà
Dr. H conheci e toà a e aà deà ‘à te à Ʊ,à poisà ele não cumpriu todos os seus deveres
epistémicos, e.g., verificar toda informação recebida como evidência, não detendo, por
conseguinte, a evidência adequada pa aàa edita à ueà‘àte àƱ.à
A definição de Unger não apresenta portanto as condições conjuntamente
suficientes para alguém saber que p. Não obstante, parece-nos que a exigência de nãoacidentalidade é uma exigência razoável. Mas uma solução para o problema da nãoacidentalidade parece exigir outros ingredientes que não apenas aqueles que constam na
análise de Unger.25 Adiante tentarei mostrar de que forma algumas teorias que recorrem
à modalidade epistémica se propõem refinar a ideia da não-acidentalidade.
25
Neste trabalho serão ainda descritas outras concepções de não-acidentalidade e condições anti-sorte epistémica.
Uma concepção recente de não-acidentalidade claramente inspirada na ideia de Unger surge em Howard-Snyder, D;
45
2.5. A teoria da infalibilidade
Uma das mais relevantes tentativas de solução do Problema da Quarta condição no
período imediatamente seguinte ao problema ter sido colocado por Gettier é da autoria
de Keith Lehrer e Thomas Paxson (doravante L&P), que no seu célebre artigo (1969/2002:
454-464) sugerem uma definição/análise que se apoia no conceito de infalibilidade da
justificação.26 Discuto de seguida a proposta de L&P, tentando no decorrer do processo de
exposição realçar as suas principais vantagens e desvantagens.
Segundo L&P, nem a satisfação da condição iii da DTC, n em a satisfação da eventual
o diç oàiii*,à “àest àtotalmente justificado em acreditar em p , uma espécie de condição
iii melhorada (vide a solução de Clark na secção 2.2.), implicam que o que é sujeito da
crença seja verdade, ou que seja verdade e constitua conhecimento. A justificação pode
pois ser falível.
A noção de falibilidade da justificação não é um exclusivo d e Gettier, sendo
geralmente aceite, por vezes de forma tácita e não argumentada. Essa noção assenta na
quiçá venerável ideia de que alguém pode estar justificado (como veremos adiante,
situacional ou doxasticamente justificado) em acreditar que p e ainda assim essa
justificação não providenciar a S nem verdade de p nem o conhecimento de p.27 A exigência
de infalibilidade da justificação avançada pela definição/anál ise de L&P visa corrigir este
problema, fortalecendo o conceito de justificação ao ponto de, à luz desse conceito, não
ser possível haver crenças falsas justificadas ou crenças verdadeiras justificadas que não
são conhecimento (não básico). A definição/análise de L&P tem o seguinte figurino:
Howard-Snyder, F., Feit (2003: 309). Esta concepção inclui já outros elementos que incorporam uma única condição,
nomeadamente a da garantia epistémica, sendo esta uma condição que irei tentar descrever mais adiante.
26
A definição/análise oferecida pelos autores refere-se ao conhecimento não-básico, quer dizer (assumindo
condicionalmente que a distinção é válida), aquele tipo de conhecimento de uma proposição que depende de outras
proposições, e não apenas de experiências não mediadas por proposições.
A proposta é também uma forma de justificacionismo, tal como o iremos circunscrever na secção 3. Optámos por
introduzi-la nesta altura por razões que se prendem com a sequência temporal das soluções ao Problema de Gettier.
27
Esta concepção pressupõe obviamente um sentido forte para “justificação”.
46
Definição 1—infalibilidade da justificação:
“àte à o he i e toà o-básico que h se, e só se,
i)
h é verdadeira,
ii)
S acredita que h, e
iii)
há uma proposição p que justifica completamente S em acreditar que h, e
não há qualquer proposição q que derrote esta justificação. (Ibidem: 465466)
L&P oferecem uma explicação da condição iii em termos de falibilidade. A ideia é
perceber o que é suficiente para uma justificação ser derrotada e, portanto, o que é
suficiente para uma justificação ser falível. L&P movem assim provisoriamente o eixo da
análise do conceito de justificação total para o conceito d e justificação falível, extraindo
depois no final do exercício o conceito de justificaç ão infalível por oposição ao conceito de
justificação falível.
Crucialmente, a ideia subjacente à noção de falibilidade da justificação é seguinte:
há uma proposição verdadeira q que, sendo considerada falsa por S, e estando S
completamente justificado em acreditar que é falsa, derrota a proposição p que poderia
justificar totalmente a crença de S em h, isto porque a conjunção de p e q não justifica
totalmente S em acreditar em h. A formulação de falibilidade da justificação submetida por
L&P é portanto a seguinte:
Definição 2—falibilidade da justificação:
“eàp justifica totalmente S em acreditar em h, esta justificação só é derrotada por q
se, e só se,
a) q é verdadeira,
b) S está totalmente justificado em acreditar que q é falsa, e
c) a conjunção de p e q não justifica totalmente S em acreditar em h. (Ibidem 467)28
A conjunção destas condições intenta fortalecer o conceito de justificação ao ponto
de garantir infalivelmente que uma crença assim justificada, segundo os parâmetros
28
L&P introduzem depois mais uma condição para resolver o problema de conjunções de proposições não-
relacionadas:
47
introduzidos por esse conceito, não possa ser falsa ou não possa deixar de ser
conhecimento. Note-se, contudo, que b e c implicam circularidade explicativa, uma vez que
recorrem à noção de justificação total e, por conseguinte, à noção de justificação infalível.
Dito de outro modo, para que b e c possam obter, é necessário que a Definição 1 seja
aplicável. A plausibilidade dessa definição depende tod avia da obtenção da Definição 2,
onde surgem b e c. Temos assim um problema de circularidade explicativa. O problema
pode porventura não ser letal para a definição de infalibilidade desde que a circularidade
não seja viciosa, mas não se revela fácil mostrar que isso é o caso mantendo as formulações
originais submetidas por L&P.
Por outro lado, a exigência nestes parâmetros de uma justificação completa ou
infalível parece ser demasiado forte, uma vez que parece haver casos de conhecimento
nos quais a justificação disponível para a crença de S é falível, no sentido descrito pela
Definição 2. Discuto de seguida uma situação hipotétic a indiciadora do que sugerimos. 29
Suponha-se que, com base na sua vasta experiência e capacidade de diagnóstico, o
Dr. H acredita justificadamente na proposição que h) ‘à sof eà daà doe ça Ʊ ,à aà ualà à
verdadeira. A crença do Dr. H que h é justificada por p) ‘àap ese taàtodosàosàsi aisàdeàƱ .à
Por ser um médico responsável, o Dr. H pede um exame de diagnóstico laboratorial para
o fi
a à ueà‘àte àdeàfa toàƱ.àOà esultadoàdoàexa eà à o tudoà egativo, revelando que
a proposição q) ‘à
oàap ese taàtodosàosàsi aisàdeàƱ à à e dadei a. 30 Mas o Dr. H está
totalmente justificado em acreditar que q é falsa, pois sabe que o técnico laboratorial que
deveria ter tratado de fazer o exame nunca no passado procedeu para que esse tipo de
exame desse os resultados correctos. Porém, o Dr. H está equivocado, uma vez que desta
feita o resultado do exame é o correcto, independentemente da incúria habitual do
“iv) se c é uma consequência lógica de q de maneira a que a conjunção de c e q não justifica totalmente S em
acreditar em h, então S está completamente justificado em acreditar que c é falsa.” (Ibidem: 468).
Podemos no entanto dispensar esta restrição adicional uma vez que a nossa crítica à definição de L&P não parece
depender do alvo da restrição.
29
Ernest Sosa (1970: 62-63) levanta também várias objecções à Definição 1.
30
Note-se que um exame laboratorial pode dar os resultados certos e ainda assim não demonstrar que alguém sofre
de uma determinada doença. Uma dose razoável de falibilidade não está excluída. Daí ser possível o resultado indicar que
alguém não sofre de uma doença quando isso é afinal o caso.
48
técnico. Temos assim que todas as condições de falibili dade (introduzidas por L&P) da
justificação da crença do Dr. H na proposição verdadeira que h são satisfeitas, pois...
a àáàp oposiç oàq é verdadeira.
àO Dr. H está completamente justificado em acreditar que q é falsa.
àáà o ju ç oàdeàp e q não justifica totalmente o Dr. H a acreditar que h.
Pode ser alegado que para b obter não poderia haver uma proposição na qual o Dr.
H acreditasse e que tornasse falível a justificação que ele tem para acreditar que r)
à à
falsa”. Pode ser alegado que essa proposição é s) osà esultadosàdoàexa eàdeàdiag ósti oà
est oàa ide tal e teà o e tos .àMasà
oàseà islu
aà o oà àoàD .àHàa edita iaà ueà s
sem possuir alguma indicação nesse sentido. Nestas circunstâncias, do facto de existir tal
proposição verdadeira não se segue que o Dr. H acredite nela. Se não acredita que s, então
forteriori não acredita justificadamente que s. Como tal, b obtém.
Uma vez que reconhecemos ao Dr. H uma vasta experiência médica e uma ímpar
capacidade de diagnóstico de doenças a partir de sintomas exibidos pelos pacientes, temos
também uma intuição muito forte de que ele sabe realmente que h. Contra isto pode ser
objetado que nem a sua vasta experiência, nem a sua capacidade médica, dão conta da
evidência necessária para ele saber que h. Pode inclusive ser argumentado que saber que
h de a daàu à í elàdeàe id
iaà uitoàp e isoàeà o plexo,àu aà ezà ueàƱàpode ser uma
doença com elevado grau de complexidade, exigindo para a sua detecção perícias e
despistage sà ta
doe ças,à asà istoà
à
uitoà o plexas.à Co ede osà oà po toà seà Ʊà fo à u aà destasà
oà afe taà aà ossaà p ete s o,à poisà astaà su stitui
osà Ʊ à po à u aà
simples gripe (das estirpes mais comuns) para vermos que todos os dias milhares de
médicos sabem que um determinado paciente sofre de gripe sem que, para o saberem,
tenham de recorrer a exames laboratoriais complexos. Isto permite-nos atribuir
conhecimento a esses médicos sem grandes receios ou dúvidas acerca da correcção dessas
atribuições.
2.6. Síntese
Se há algo que a exposição das teorias iniciais e dos seu s problemas nos mostra é
que é difícil encontrar um equilíbrio perfeito. Algumas definições/análises parecem ser
49
demasiado fracas, não dando por isso conta do que é necessário para que alguém possa
ter conhecimento, ao passo que outras parecem ser demasiado fortes, excluindo por isso
mesmo casos aceites como casos de conhecimento. O que se apresenta como crucial é por
conseguinte não apenas a exaustividade mas também o equilíbrio. Uma definição/análise
completa e satisfatória deve aparentemente conseguir dar conta do que é necessário e
suficiente para todos os casos de conhecimento, incluindo talvez aqueles que estão numa
zona cinzenta, mas que nos inclinamos intuitivamente a aceitar como casos de
conhecimento.
3. Justificacionismo
3.1. Resumo
O justificacionismo é geralmente concebido de duas formas: ora é concebido como
a teoria de que a justificação é necessária para o conhecimento, ora é concebido como a
teoria de que a justificação é necessária e suficiente para o conhecimento. A distinção nem
sempre surge explicitamente delineada na literatura. No que diz respeito à presente
exposição, a linha será traçada aquando da apresentação de cada espécimen de
justificacionismo discutido.
Considerando a extensa discussão que geraram na literatura, é possível afirmar com
alguma segurança que existem três grandes tipos ou géneros de justificacionismo. São eles
o evidencialismo, o fiabilismo, e o deontologismo. Com o seria de esperar, cada um destes
tipos encerra subtipos. Também neste caso não é fácil delinear as linhas de fronteira que
separam os diferentes territórios, nem no que diz respeito aos tipos mais gerais, nem no
que diz respeito aos subtipos. Não parece sequer ser possível encarar esses territórios
como absolutamente estanques, a não ser quando as teorias a que correspondem esses
territórios propõem hipóteses inconsistentes entre si, o que é raro acontecer. Discuto de
seguida aquelas que me parecem ser as amostras mais representativas e bem-sucedidas
de cada tipo de justificacionismo. O objectivo é detectar os pontos fortes e fracos dessas
teorias, tentando assim perceber se algum tipo de justificacionismo consegue por si só
solucionar o problema central tratado neste trabalho.
50
Oàte
oà justifi aç o àte à i doàaàse àusadoàat àa uiàdeà odoàalgoài p e iso.àÉà
chegado o momento de rectificar essa imprecisão. 31 A literatura mostra que o termo
adquiriu diversos sentidos e interpretações ao longo do tempo, servindo frequentemente
para denotar diferentes coisas. Estão todavia actualmente disponíveis distinções
conceptuais fundamentais que permitem evitar a perplexidade e a confusão. Segue-se uma
descrição breve dessas distinções.
. .àOà ueàde otaàaàexp ess oà justifi aç o ?
No contexto filosófi oàeàepiste ológi o,àoàte
oà justifi aç o à àge al e teàusadoà
para referir uma de quatro coisas. Ou serve para referir uma propriedade, a propriedade
da justificação, ou um estado, o estado de algo—por norma um agente ou uma crença—
estar justificado, ou um processo, o processo de justificação, ou ainda aquilo que justifica
ou providencia a justificação—a evidência, as razões, os fundamentos, etc.32 Não existindo
uma directriz doutrinal sobre como proceder em Teoria da Justificação, constata-se no
entanto que os filósofos tendem a explicar a propriedade da justificação e,
consequentemente, o estado de justificação, explicando o processo de justificação que
leva ao surgimento da propriedade e do estado. A explicação do processo de justificação
contém obviamente uma explicação sobre aquilo que justifica. Por exemplo, Pryor (2005:
181-182) dá especial relevância à justificação enquanto aquilo ( justification-maker) que
legitima a crença de um agente, tornando mais apropriada a atitude de adesão de um
agente a uma proposição do que uma eventual atitude de não adesão a essa proposição.
Este é o sentido mais habitual e menos ambicioso do te rmo, mais também o que gera mais
problemas, uma vez que não nos compromete nem com a verdade nem com o
conhecimento—o que pode tornar a propriedade pouco interessante ou mesmo inócua. A
justificação é neste caso entendida como algo falível, o que não deixa de ser uma fraqueza.
3.3. Tipos de justificação
A mais primitiva distinção entre tipos de justificação é porventura a que é
estabelecida entre justificação epistémica e justificação não-epistémica. Embora intuitiva,
31
Principalmente nas subsecções (1.7.) “A terceira condição necessária” e (1.8.) “A Definição Tradicional
Tripartida do Conhecimento”. Mas a imprecisão foi propositada, uma vez que só agora estou em condições de introduzir e
discutir convenientemente o tópico.
32
As três primeiras distinções surgem explicitamente em Audi 2003: 2 ss.
51
esta distinção não é contudo fácil de estabelecer. Os filósofos parecem concordar que o
permite estabelecer a diferença entre os dois tipos de justificação é, grosso modo, o facto
de a justificação epistémica ser aquele tipo de justificação que contribui activamente para
elevar a probabilidade de a proposição acreditada ser verdadeira e ser conhecimento, não
sendo isso o caso se a justificação não for epistémica. Tome-se como exemplo o famoso
caso do doente que acredita optimisticamente que vai melhorar, dispondo assim, num
certo sentido, de uma justificação para a sua crença de que vai melhorar, embora essa
justificação não possa, ceteris paribus, contribuir para elevar a probabilidade de verdade
da sua crença (Fumerton 2002: 205). Segundo este critério de probabilidade, este não é
um caso de justificação epistémica, isto considerando q ue a justificação da crença em nada
contribui para a aumentar a probabilidade da mesma ser verdadeira.
Tendo em conta alguma literatura, um critério para diferenciar a justificação
epistémica da não-epistémica assenta no facto de, respectivamente, alguém ter ou não
razões que podem aumentar a probabilidade de a crença ser verdadeira. Gilbert Harman
dá o mote, propondo a seguinte condição necessária para uma razão ser epistémica:33
RA— ‘àsóà àu aà az oàepist i a para a crença que p se a probabilidade de p dado
R é maior do que a probabilidade de p dado não-‘ . (Harman 1999: 17)
Esta definição não se afigura contudo totalmente satisfatória. Suponha-se que um
agente tem duas péssimas razões para acreditar que p, sendo que a primeira razão eleva
quase insignificantemente a probabilidade de a crença ser verdadeira relativamente à
segunda, que não eleva absolutamente nada. 34 Será que nestas circunstâncias a primeira
razão é epistémica só pelo facto de satisfazer RA? Sem nos queremos comprometer mais
do que o necessário com esta posição, parece-nos que RA não fornece as condições
suficientes para uma razão ser epistémica. Não fornece, pois outras condições, e.g., que a
razão seja uma proposição verdadeira, têm de ser satisfeitas por exigência da ordem da
eficácia epistémica. Apesar deste (e talvez de outros problemas) com RA, iremos usá-la
provisionalmente como ponto de partida e ponto de referência.
33
Harman remete a autoria da distinção entre razões epistémicas e não-epistémicas para Richard Foley.
34
Nelson (2002: 274) argumenta contra uma concepção probabilista da justificação dizendo que esta última pode
aumentar indefinidamente, enquanto a probabilidade de verdade de uma crença não, o que faz delas coisas diferentes.
52
Uma outra distinção sobejamente referida na literatura (e.g., Lowy 1978: 106) é a
distinção entre a justificação de uma crença e a justificação de um agente. No primeiro
caso, a justificação é uma propriedade de um agente, enquanto no segundo é uma
propriedade de uma crença.
Embora possam existir excepções, um agente estará justificado em acreditar que p
desde que tenha uma crença justificada que p, pois a justificação da sua crença torna-se,
por assim dizer, uma justificação para si próprio. O inverso pode todavia não ser o caso,
pois um agente pode estar justificado em acreditar que p e não ter uma crença justificada
em p, isto pela simples razão de não ter essa crença. Esta possibilidade remete para a
distinção entre justificação situacional ou proposicional, e justificação dóxastica (cf. Audi
1993: 275; Fumerton 2002: 206). Alguém pode estar na posse dos justificantes necessários
e suficientes para poder acreditar justificadamente que p, não acreditando todavia
justificadamente que p pela simples razão de não ter formado a crença que p. Já
justificação doxástica envolve sempre a presença de uma crença numa proposição. Por
exemplo, um agente pode estar situacionalmente justificado em acreditar que
(13409+34567)x3=143928 por razões matemáticas elementares, embora não esteja
doxasticamente justificado em acreditar nessa proposição, simplesmente porque não tem
uma crença nela (nunca lhe ocorreu).
Uma vez que um agente só pode estar doxasticamente justificado em acreditar que
p caso disponha de razões, evidência, etc. (justificantes que aumentem a probabilidade de
verdade da proposição acreditada) para sustentar a sua crença que p, segue-se que é
necessário que esse agente esteja situacionalmente justificado em acreditar que p para
poder estar doxasticamente justificado em acreditar em p. Contudo, o facto de um agente
estar situacionalmente justificado em acreditar que p não é suficiente para um agente estar
doxasticamente justificado em acreditar que p, uma vez que, como se viu acima, é possível
um agente estar situacionalmente justificado em acreditar que p sem estar
doxasticamente justificado em acreditar que p. Por outro lado ainda, S estar
doxasticamente justificado em acreditar em p é suficiente, embora não necessário, para S
estar situacionalmente justificado em acreditar em p.
53
Robert Audi (1993: 275-276) propõe ainda uma outra distinção, talvez um pouco
mais fina. Trata-se da distinção entre justificação proposicional e justificação estrutural. O
primeiro tipo de justificação ocorre quando existe uma justificação para uma proposição
mas as razões que geram essa justificação não estão na posse de um qualquer agente. Por
exemplo, é provável que haja uma justificação forte para a proposição de que existe vida
inteligente extraterrestre, mas a verdade é que, a julgar pela informação disponível sobre
a matéria, ninguém possui essa justificação. Por outro lado, o que Audi chama de
justificação estrutural poderia também ser chamado de justificação potencial. Grosso
modo, S tem uma justificação estrutural para uma crença que p desde que pudesse aceder
a dados, razões, etc., que, presentes no seu sistema cognitivo, e ainda que inoperacionais
num determinado momento, pudessem justificar a crença de S que p.
A literatura estabelece ainda outras importantes distinções sobre as quais não nos
iremos pronunciar exaustivamente, por exemplo, a distinção entre justificação de uma
crença e justificação de uma proposição (Conee 1992: 667)35, justificação a priori e
justificação a posteriori (Russell 2008), entre justificação sincrónica e justificação
diacrónica (Swinburne 2001, passim), ou ainda entre justificação internalista e justificação
externalista (tópico a visitar no Primeiro Interlúdio).
3.4. Evidencialismo
Na secção 3.1. afirmei que o justificacionismo se manifesta através de três
subespécies dominantes. A presente secção é dedicada a discutir as principais propostas
de uma dessas subespécies: o evidencialismo.
A literatura especializada das últimas quatro décadas apresenta bastantes amostras
e manifestações de evidencialismo, pelo que seria talvez um erro pensarmos que a defesa
do evidencialismo está apenas a cargo de um conjunto muito restrito de autores,
nomeadamente Roderick Chisholm, Earl Conee ou Richard Feldman. Note-se, por exemplo,
uma das primeiras análises do conhecimento sugerida por Ernest Sosa.
35
Segundo Conee, a justificação que permite a ligação entre crença e a verdade é do segundo tipo, sendo o primeiro
tipo justificação-Gettier (ou similar), que não garante essa ligação.
54
“àsa eà ueàp se, e só se,
i)
p é verdadeira;
ii)
S acredita que p;
iii)
p é evidente para S; e
iv)
há um conjunto de proposições tal que a) esse conjunto de proposições
torna p evidente para S, e b) esse conjunto não inclui um subconjunto de
proposições que são epistemicamente deficientes com relação a S e a p
(Sosa 1970: 63)
Com o intuito de superar os habituais problemas levantados por acertos das crenças
na verdade por mero acaso, algo que refere como sendo o princípio da feliz coincidência,
Peter Klein defende uma análise do conhecimento que inclui também uma forte
componente evidencialista. Segundo essa análise,
“àsa eà ueàp se, e só se,
i)
p é verdadeira;
ii)
S acredita que p em t¹;
iii)
p é evidente para S em t¹;
iv)
Não existe uma proposição verdadeira tal que, se essa proposição fosse
evidente para S em t¹, p deixa iaàdeàse àe ide teàpa aà“ (Klein 1971: 475)
Tendo em vista sugerir uma quarta condição, uma condição de invencibilidade da
justificação que lhe permitisse corrigir os habituais problemas da justificação gettierizada,
Marshall Swain oferece, na mesma veia que Sosa e Klein, a seguinte análise
eminentemente evidencialista do conhecimento.
55
K à– S tem conhecimento não-básico que p se, e só se,
(i)
p é verdadeira;
(ii)
S acredita que p;
(iii)
a justificação que S tem para p torna p evidente para S;
(iv)
não há qualquer contra-evidência q tal que q derrota a justificação que S tem
para p (Swain 1972: 292)
Estas análises revelam que o evidencialismo pode ser concebido ou como uma
teoria da justificação ou como uma teoria do conhecimento. Alguns filósofos pensam que
alguém ter a evidência apropriada para a verdade de uma proposição é quanto basta para
ter justificação forte para essa proposição.
Dou de seguida alguma atenção ao evidencialismo clássico de Roderick Chisholm
enquanto teoria da justificação e do conhecimento. Depois exponho e discuto alguns
aspectos cruciais do mais contemporâneo evidencialismo de Earl Conee e Richard Feldman,
que no essencial é uma teoria apenas da justificação.
3.4.1. Evidencialismo chisholmiano
Na sua segunda Teoria do Conhecimento, Chisholm diz o seguinte:
Podeà afi a -se que a teoria do conhecimento tem como principal assunto a
justificação das crenças, ou mais exactamente, a justificação do acreditar (Chisholm
1977: 5)
Chisholm preocupa-se em discernir o que pode dar a alguém o direito em acreditar,
ou de não acreditar, numa determinada proposição (ou suspender o juízo qualquer sobre
a verdade ou a falsidade dessa proposição). O que confere esse direito é para Chisholm a
justificação.36
A resposta de Chisholm para a questão de se saber o que confere a um agente o
direito de acreditar ou de rejeitar uma proposição é intuitiva: agentes racionais e
epistemicamente responsáveis regem as suas atitudes de aceitação, de rejeição, ou de
suspensão da aceitação ou da rejeição de uma crença numa proposição em função dos
indícios ou sinais que tornam evidente a verdade ou a falsidade dessa proposição. Quer
36
Daí Chisholm ser também apontado como um dos precursores do deontologismo contemporâneo (Cf. Plantinga
1992: 49).
56
dizer, os agentes racionais e epistemicamente responsáveis regem as suas atitudes de
aceitação, de rejeição ou de suspensão de uma proposição em função da evidência de que
dispõem para essa proposição. No essencial, um comportamento epistémico responsável
resulta do modo como o agente forma ou ajusta a sua crença à evidência de que dispõe.
Mas quando é que a verdade de uma proposição se torna evidente para um agente
ao ponto de esse agente ter conhecimento? A resposta encontrada por Chisholm para esta
questão é pautada pelo desejo de obter um compromisso entre a dúvida razoável e a
certeza absoluta. Grosso modo, uma proposição é evidente para um agente desde que os
indicadores ou sinais que o agente possui para a verdade dessa proposição permitam que
a verdade dessa proposição esteja acima da dúvida razoável, não sendo contudo exigível
que esses indicadores ou sinais confiram ao agente (uma irrealista) certeza absoluta acerca
dessa verdade. Por conseguinte, uma proposição é evidente para um agente desde que
esteja inserida no território que medeia a dúvida razoável e certeza absoluta (Chisholm
1977: 10-12).
Importa salientar que uma porção significativa do evidencialismo chisholmiano
assenta na ideia de que um agente só possui suficiente evidência para acreditar
justificadamente numa proposição p se não dispuser, conscientemente, de qualquer razão
que o faça duvidar da verdade de p, por um lado, e na ideia de que algumas proposições
de que estamos conscientes tendem a confirmar e a justificar o que pensamos saber e
pensamos percepcionar, por outro (Chisholm 1977: 85-86). A exigência desta segurança
epistémica, uma segurança presumivelmente assente em eventos e factores pertencentes
à vida mental do agente, impõe um fardo pesado ao evidencialismo preconizado por
Chisholm, nomeadamente no que respeita ao vulgarmente muito criticado requisito
internalista da justificação. A tomar em consideração algumas vozes críticas, este é um
problema que nunca foi solucionado de forma convincen te ou definitiva.
O evidencialismo chisholmiano destaca-se pela forma como se propõe resolver o
Problema de Gettier. Segundo a análise do conhecimento de Chisholm apresentada na
secção 1.7., temos que o conhecimento é...
57
i)
crença,
ii)
verdadeira,
iii)
evidencialmente sustentada.
Ora, segundo Chisholm, a expressão e ide ial e teà suste tada à podeà se à
su stituídaàpelaàexp ess oà justifi ada .àOà elhoàp o l e aàdaàfalsidadeàdeàalgu asà e çasà
evidencialmente justificadas teima em persistir.
Tendo em vista a eliminação desta incómoda possibilida de, algo que milita
activamente contra qualquer teoria da justificação que admita a falibilidade da evidência
e da própria justificação, Chisholm propõe uma análise do conhecimento revista. Essa
análise é a seguinte:
“àsa eà ueàh =df:
S aceita h;
h é verdadeira;
e h é não-defi ie te e teàe ide teàpa aà“ (Chisholm 1977: 110)37
Na base da definição encontra-se o desiderato de eliminar a evidência deficiente
que pode servir de sustentáculo epistemicamente inadequado para uma crença. Uma vez
que os contra-exemplos de Gettier e similares assentam em casos em que as proposições
que se constituem como evidência podem ser falsas ou tornar evidentes proposições
falsas, Chisholm sugere que a condição iii deve eliminar essa possibilidade.
Por exemplo, no segundo contra-exemplo de Gettier à DTC, algumas proposições
tornam evidente a proposição falsa
Jo esà t
à u à Fo d ,à aà ual,à aià a a a à po à
t a s iti à essaà justifi aç o pa aà aà p oposiç oà Jo esàt
Ba elo aà ,à ujaà e dadeà
à u à Fo dà ouàB o
à est à e à
oà àga a tidaàpelaàjustifi aç oà ueà“ ithàte àpa aàoàp i ei oà
disjunto mas à custa de o segundo ser acidentalmente verdadeiro. A condição iii da
definição de Chisholm visa essencialmente corrigir esse problema ao impedir que a
37
Chisholm (1982: 46) discute directamente a sua solução evidencialista para o Problema de Gettier. Ele reafirma
a ideia de que a evidência para a justificação conducente ao conhecimento não pode ser deficiente, no sentido de
“deficiente” aqui exposto.
58
e id
ia à dispo í elà pa aà aà p oposiç oà Jo esà t
à u à Fo d à possaà ealmente contar
como evidência.
Mas suponha-se agora, na linha do que alguns filósofos (e.g., Goldman 2009)
actualmente sugerem, que nem toda a evidência que serve para justificar uma proposição
é ela própria proposicional, quer dizer, nem toda a evidência é constituída por proposições.
Se assim for, segue-se que a condição de h ser não-deficientemente evidente para S não é
aplicável em alguns casos, uma vez que a referida condição depende do eventual facto de
toda a evidência ser proposicional, e se isso não for o caso, haverá casos de conhecimento
em que a condição não se aplica—o que torna a definição/análise de Chisholm, tal como
formulada, demasiado exigente.
Mesmo suponho que análise de Chisholm possa não ser imu ne a contra-exemplos
ou a outros problemas, permanece a ideia de que o tipo de justificação que conduz à
verdade e ao conhecimento exige que o agente tenha evidência, não num sentido liberal
deà e id
ia à ueài luiàe id
iaài ade uada,à asàsi àoàtipoà e toàdeàe id
ia.àEstaà
ideia é tacitamente aceite por muitos filósofos, sendo explicitamente adoptada e
rigorosamente desenvolvida por outros. Também nós nutrimos alguma predilecção por
ela, algo que se tornará claro na segunda parte do nosso trabalho.
3.4.2. Evidencialismo de Conee e Feldman
Entre as mais destacadas formas de evidencialismo contemporâneo contam-se as
sustentadas Earl Conee e Richard Feldman, por um lado, e a de Timothy Williamson, por
outro. Uma vez que a teoria do conhecimento de Williamson será alvo de especial atenção
mais adiante, coloco agora o foco na teoria de Conee e Feldman (doravante C&F).
No capítulo 4 de Evidencialism, C&F definem do seguinte modo uma atitude
epistemicamente justificada:
59
EJà– Uma atitude doxástica D para com uma proposição p está epistemicamente
justificada para S em t se e só se S ter D se ajusta à evidência que S tem para p em
t. (Conee & Feldman 2004: 83)38
Tal como C&F fazem questão de sublinhar, EJ é por eles oferecida como uma
elucidação da natureza da justificação epistémica, uma elucidação que se sustenta apenas
na noção de evidência e de ajuste da atitude de crença, de descrença ou de suspensão da
crença, à evidência disponível para o agente. Todavia, como os próprios C&F reconhecem,
a noção de ajuste da atitude à evidência é algo vaga, sujeita a várias interpretações e, como
tal, susceptível de levantar dificuldades. Para contornar ou colmatar este problema, C&F
oferecem outra definição. Esta (ES) diz fundamentalmente que...
...existe uma relação de superveniência que enquadra justificação e evidência, sendo
que a primeira é superveniente em relação à segunda. (Ibidem: 101)
Descodificando e complementando a definição, isto significa basicamente que o
grau de justificação de uma crença varia consoante o nível quantitativo e qualitativo de
evidência disponível para o agente dessa crença. Se o nível de evidência for elevado, o grau
de justificação também o será. Se o nível de evidência for baixo, o grau de evidência
também o será, etc.
C&F discutem três objecções ao núcleo da sua teoria, especialmente a EJ,
rejeitando-as. Para aferiremos da plausibilidade do evidencialismo enquanto teoria da
justificação, vamos agora rever essas objecções e as réplicas de C&F.
A primeira objecção vale-se da possibilidade de determinadas crenças não
resultarem da vontade dos agentes, quer dizer, da possibilidade de ser involuntárias.
Supondo que isso pode ser o caso, parece então que alguns agentes podem ter as suas
crenças justificadas muito embora não satisfaçam a condição imposta por EJ de ajustarem
a sua crença numa proposição à evidência que possuem para essa proposição (Ibidem: 8586).
Réplica. C&F argumentam que um agente pode ter involuntariamente uma crença
em p e ainda assim essa crença em p resultar da evidência que esse agente possui para p.
38
De notar que o ensaio original data de 1985 (Philosophical Studies 48). Mas, uma vez que C&F publicaram o
ensaio de novo em 2004, mantendo aí o essencial do que sugeriram na primeira versão, é possível designar de
contemporâneo o evidencialismo descrito neste ensaio.
60
O exemplo que dão é de alguma forma esclarecedor. Se ao entrar para uma sala iluminada
por luz artificial, um agente passa a crer, ainda que involuntariamente, que as luzes nessa
sala estão ligadas, então a crença resulta da evidência que o agente tem para crer que as
luzes nessa sala estão ligadas, e portanto a cláusula de ajuste da crença à evidência
preconizada por EJ é satisfeita.
Parece contudo existir um problema com esta réplica. Esse problema tem a ver com
a intenção do agente. EJ parece impor que o agente ajuste intencionalmente a crença em
p à evidência que tem para acreditar que p. E se S não ajusta intencionalmente a sua crença
de que as luzes estão ligadas à sua evidência, então talvez o espírito de EJ não seja
completamente satisfeito.
A segunda objecção que C&F discutem prende-se com o pesado fardo que EJ parece
impor às capacidades cognitivas dos agentes humanos. Uma vez que em virtude das
limitações cognitivas próprias dos agentes, tem de existir um desfasamento entre a
evidência disponível para os agentes e a quantidade (e qualidade) de crenças que esses
agentes conseguem desenvolver, parece seguir-se que algumas crenças que estariam
justificadas segundo os parâmetros de EJ não podem sequer ter lugar. Se não podem ter
lugar, então, a forteriori, não são crenças justificadas. Quer dizer, como as limitações
cognitivas do agente tornam impossível que ele tenha todas as crenças que se ajustariam
à evidência para si disponível, parece seguir-se que algo tem de estar menos bem com EJ,
pois a definição indica que o agente teria de ter essas crenças justificadas por dispor da
evidência de que dispõe.
Réplica. C&F pensam que mesmo que em certos casos um agente não consiga
ajustar a sua crença à sua evidência, pelo facto de as suas capacidades cognitivas não lhe
permitirem formar essa crença, ela estaria ainda assim justificada, segundo os parâmetros
de EJ, caso as capacidades cognitivas do agente lhe permitissem ir além das suas limitações
naturais, quer dizer, se o agente pudesse desenvolver a referida crença. No fundo, C&F
alegam que a incapacidade para produzir um número ilimitado de crenças não inviabiliza
que essas crenças estivessem justificadas em razão da evidência disponível, segundo o que
é avançado por EJ, caso as capacidades cognitivas dos agentes o tivessem permitido.
61
A terceira objecção que C&F discutem prende-se com a possibilidade de alguém
dispor de evidência para ter uma crença mas essa evidência não ser a indicada (por várias
razões) para sustentar satisfatoriamente a crença. Se fosse esse o caso, haveria situações
nas quais o agente ajustaria a sua crença que p à sua evidência para p, mas ainda assim
essa crença não poderia contar como justificada, o que tornaria EJ falsa.
Réplica.
C&F
(Ibidem:93)
valem-se
da
noção
da
adequação
dos
fundamentos/razões que constituem a evidência de um agente para responder a esta
objecção. Embora usando uma análise diferente, a definição de crença bem-fundada
oferecida por C&F recupera muito do espírito da definição sugerida por Chisholm. No
essencial, um agente não pode ter uma crença bem-fundada se desenvolve essa crença
com base em evidência deficiente. Este complemento para EJ revela-se não apenas
plausível mas também necessário para uma teoria da justificação que assenta na noção de
evidência suficiente para uma justificação epistémica de elevada qualidade. Aliás, a
exigência de que o agente tem de ter evidência necessária e suficiente do ponto de vista
quantitativo e qualitativo para ter justificação de elevada qualidade—no sentido em que
essa justificação é condutiva, primeiro, de forma correcta à verdade e, segundo, ao
conhecimento—reúne geralmente o consenso dos epistemólogos. Por isso a cláusula ou
condição de não-deficiência da evidência é também bastante consensual, pois a sua
satisfação é um primeiro passo para o agente ter aquele tipo de justificação que pode
explicar o que é necessário para resolver casos Gettier, casos de quase-conhecimento, etc.
(Ibidem: 105).39
3.4.3. Problemas do evidencialismo de Conee e Feldman
Além das dificuldades típicas do evidencialismo identi ficadas e respondidas por
C&F, a literatura aponta ainda outras duas dificuldades q ue nos parecem cruciais e que
têm por isso de ser discutidas (Ibidem: 296). Ambas estão relacionadas com o modo como
o evidencialismo concebe o que C&F chamam justificação-de-nível-de-conhecimento
(knowledge-level justification), quer dizer, justificação conducente ao conhecimento. A
39
Contra Alston et al, Feldman (2005: 95-96) também defende a ideia de que é por vezes necessário um agente ter
evidência, de segunda ordem, acerca da fiabilidade do seu processo de cognição para poder estar justificado. Como teremos
ensejo de defender na secção 6.7., também julgamos que ter evidência ou conhecimento de segunda ordem sobre a verdade
da crença ou do processo que a gerou é por vezes necessário para um agente estar num estado epistémico positivo
62
primeira dificuldade diz respeito à qualidade e quantid ade de evidência necessária e
suficiente para que um agente possua justificação deste tipo, enquanto a segunda diz
respeito à necessidade, reconhecida por C&F, de uma quarta condição, uma condição não
evidencialista, para resolver o Problema de Gettier (Ibidem: 299).
Sobre a primeira dificuldade. C&F acolhem a ideia de que a justificação-de-nível-deconhecimento ocorre desde que a evidência, cujo standard C&F comparam ao standard da
prova forense, que está na origem dessa justificação assente em três eixos:
i)
Que o agente tenha fortes razões para acreditar no que acredita,
ii)
Que o agente não tenha pelo menos uma razão não-vencida para duvidar
daquilo em que acredita,
iii)
Que o agente não tenha pelo menos uma razão não-vencida para acreditar
que a evidência para aquilo em que acredita não é fiável (no sentido
epistémico de fi el .
C&F sustentam que a satisfação destes três parâmetros permite um tipo de
justificação que se encontra entre as fronteiras da dúvida razoável e da certeza, concebida
enquanto certeza matemática.40 Contudo, C&F admitem a possibilidade destas três
condições serem satisfeitas e ainda assim a justificação resultante dessa satisfação ser
falível, quer dizer, a satisfação dos três parâmetros pode conduzir, ipso facto, à justificação
de crenças falsas, e, por conseguinte, não garantir conhecimento.
Esta parece-nos uma dificuldade grave para esta teoria da evidência e da
justificação epistémica de C&F, isto considerando que a finalidade última de qualquer
teoria da evidência e da justificação epistémica passa, parece-nos, por explicar de forma
apropriada o modo como evidência qualitativa e quantitativa suficiente está na origem de
justificação conducente ao conhecimento.
C&F acabam por confessar que não conseguem por exemplo dizer quão fortes têm
de ser as razões indiciadas por i para que a evidência resultante dessas razões gere
justificação-de-nível-de-conhecimento. Se o evidencialismo de C&F não consegue
responder a esta questão, qual será a vantagem que detém face aos seus concorrentes
directos, em especial sobre o fiabilismo de Goldman?
40
Um equilíbrio que Chisholm já tinha sugerido na sua segunda Teoria do Conhecimento .
63
A segunda dificuldade está na dependência da primeira. C&F sustentam que os
standards para a justificação evidencialista podem ser falíveis, tornando dessa forma a
própria justificação falível. Tal como sugerem, a justificação assim concebida pode não
excluir a possibilidade de falsidade da crença ou evitar que a crença acerte na verdade por
mero acaso. E, sendo assim, C&F assumem que a condição de justificação preconizada pelo
evidencialismo tem de ser complementada por uma quarta condição que determine de
que modo a evidência é necessária e suficiente para que uma crença tenha justificação-denível-de-conhecimento, evitando portanto acertar acidentalmente
na verdade.
Resumindo, na medida em que EJ e ES autorizam a falibilid ade da justificação, o
evidencialismo de C&F não fornece uma resposta cabal para solucionar o Problema de
Gettier.41
3.5. Fiabilismo
3.5.1. O fiabilismo de processos de Goldman
Esta secção é dedicada a inspeccionar alguns dos principais aspectos, méritos e
problemas da teoria da justificação que mais rivaliza com o evidencialismo. Essa teoria, ou
grupo de teorias, é o fiabilismo. Algumas manifestações de fiabilismo (e.g. Armstrong 1973)
tendem a ser apenas teorias sobre o conhecimento, remetendo o problema da justificação
para outro patamar de discussão, ou mesmo recusando fazer a sua discussão. No que se
segue, irei debruçar-me sobre o fiabilismo de Alvin Goldman, o qual começou por ser uma
teoria sobre a justificação epistémica.
Naà p i ei aà pa teà deà Whatà isà Justifiedà Belief? (original 1976), Goldman (2000:
340-353) preocupa-se em argumentar contra várias teorias da justificação. Mais
exactamente, Goldman rejeita teorias da justificação cuja definição implica o uso de um
termo epistémico na antecedente. Por exemplo, Goldman rejeita teoria da justificação de
Chisholm porque, entre outras coisas, a definição (condição-de-base) que dá corpo a essa
teoria contém na antecedente um termo de natureza epist
41
i a,àoàte
oà auto-evidente .à
Tem de se reafirmar, fazendo-se justiça às intenções de C&F, que o evidencialismo não é uma teoria vocacionada
para solucionar o Problema de Gettier. Ainda assim, na medida em que é um teoria que pretende definir as condições
necessárias e suficientes para haver justificação conducente ao conhecimento, deixa por explicar que algo crucial para que
a justificação seja completamente eficaz desse ponto de vista.
64
A seguinte definição evidencialista da justificação não é pois satisfatória na perspectiva de
Goldman.
“eà“àa editaà ueàp em t e p é auto-evidente, então a crença de S que p em t está
justifi ada (Ibidem: 341)
A necessidade apontada por Goldman de não existirem termos de natureza
epistémica na antecedente de uma definição da justificação prende-se com o facto de essa
explicação ter de ser não-circular. Uma tal definição não deve pois conter expressões de
teo àepist
i oà aàa te ede te,àexp essõesà o oàpo àexe ploà te à azõesàpa a... ,à te à
fundamentos pa a... ,à se à e dadeà ue... ,àet .
Uma outra razão que leva Goldman a rejeitar as determinadas teorias da
justificação é o facto de as condições-de-base descritas por essas teorias não precaverem
a possibilidade de uma crença poder resultar de um processo de formação de crenças
deficiente, algo que, ainda segundo ele, fomenta a possibilidade de existirem contraexemplos eficazes a essas teorias. Goldman propõe-se encontrar uma condição-de-base
que não sofra desse problema. A sua solução passa por supor que crenças
epistemicamente justificadas têm de ser crenças que derivam de processos não-deficientes
de formação de crenças ou, dito à guisa de Goldman, processos fiáveis de formação de
crenças.
Para Goldman (Ibidem 345), processos deficientes e não-fiáveis de formação de
crenças são todos aqueles processos que tendem a produzir um elevado número de
crenças falsas. Goldman aponta alguns desses processos: raciocínio confuso ou pouco
claro, palpites, generalizações precipitadas, etc. Na outra face da moeda, processos fiáveis
são processos que tendem a produzir um elevado número de crenças verdadeiras (algo
susceptível de ser verificado estatisticamente), por exemplo, raciocínio válido ou
percepção.
65
Nestaàa epç oàdeà
o-fiabilidade àeà fia ilidade ,àaà
o-fiabilidade e a fiabilidade
são propriedades dos processos de formação de crenças, não das próprias crenças, nem
dos agentes das crenças.42
Tendo em mente a possibilidade de a justificação poder ser definição em termos da
fiabilidade dos processos, Goldman sugere a seguinte condição-de-base:
à “eà e à t a crença de S que p resulta de um processo fiável de formação de
crenças, então a crença de S que p est àjustifi ada (Ibidem: 347)
Contudo, no entender de Goldman, algumas precisões têm de ser feitas a (5), por
exemplo, que a justificação não requer um nível (impossível) de fiabilidade que origine
sempre crenças verdadeiras, i.e., um nível infalível de fiabilidade, bastando, ainda no se u
entender, que os processos sejam suficientemente fiáveis, no sentido em que a sua
aplicação/ocorrência produz um elevado número de crenças verdadeiras e um baixo
número de crenças falsas. Crucialmente, Goldman sustenta que uma crença está justificada
desde que tenha sido bem-formada, em que isto significa que a crença resultou de um
... à o ju toàdeàope açõesà ognitivas suficientemente fi eis (Idem)43
Ser um conjunto de procedimentos suficientemente fiável não implica porém a
infalibilidade desse mesmo conjunto.
Embora esta exigência de infalibilidade da fiabilidade dos processos seja rejeitada
por Goldman, este introduz desde logo algumas modificações na sua definição de base de
modo evitar problemas que se prendem fundamentalmente com a) a necessidade de
acesso dos agentes à fiabilidade dos processos dos quais resultam as suas crenças, isto para
terem o estatuto de justificadas, e com b) a necessidade de reduzir a possibilidade de haver
crenças contraditórias resultantes de processos igualmente fiáveis. No que diz respeito ao
ponto a, Goldman considera que a exigência que estipula é não apenas falsa como também
42
Por exemplo, para uma versão de fiabilismo que privilegia a fiabilidade dos agentes face à fiabilidade dos
processos, ver Greco (1999: 273-296). Ver especialmente a partir da p. 284. Voltarei a este texto quando discutir os
problemas apontados ao fiabilismo de processos.
43
O itálico é nosso. A concepção surge também perfeitamente delineada noutro famoso texto de Goldman.
“Numa determinada concepção [a de justificação forte], uma crença justificada é (grosso modo) uma crença
correctamente formada (ou sustentada) a partir de métodos, processos ou procedimentos apropriados e adequados”
(Goldman 1988: 52).
66
desnecessária.44 No que ao ponto b diz respeito, Goldman propõe a seguinte condição-debase:
“eàaà e çaàdeà“àdeà ueàp em t resulta de um processo cognitivo fiável, e se não há
para S qualquer processo fiável ou condicionalmente fiáv el que, no caso de ter sido usado
por S em conjunção com os processos fiáveis que de facto usou, tivesse resultado na
descrença de S de que p em t, então a crença de S de que p em t est àjustifi ada. (Goldman
2000: 351)
Apesar de Goldman introduzir algumas restrições a esta condição de base, ela é,
quando complementada pela condição (5), o cerne do fiabilismo de processos primitivo.
Em função das objecções que foram sendo levantadas ao fiabilismo de processos,
Goldman foi obrigado a rever substancialmente a sua teoria. Revisito de seguida duas
dessas objecções. A primeira objecção, conhecida por Objecção da Generalidade, está
talvez ainda hoje por solucionar de modo completamente satisfatório. 45 A segunda, a
resposta de Goldman à chamada Objecção da Não-necessidade parece levantar mais
problemas para a teoria do que aqueles que esta última consegue resolver.
Por razões de economia, descrevo e discuto apenas a duas objecções que me
parecem ser as mais importantes. Não obstante, existe uma outra conhecida objecção ao
fiabilismo genérico, o Swamping Problem, que merece ser brevemente vistoriada. Grosso
modo, o problema pode ser resumido da seguinte forma. Uma vez que a crença verdadeira
é um valor epistemológico (quase) absoluto, e uma vez que fiabilismo genérico é a teoria
que depende da ideia de que o objectivo da cognição é obter crenças verdadeiras (o maior
número possível), parece seguir-se que não há diferença de valor entre ter uma crença
verdadeira simpliciter e ter uma crença verdadeira que seja o resultado de algum tipo de
fiabilidade de processos, de agentes, etc. Do ponto de vista do valor, parece que uma
crença verdadeira já é suficientemente valiosa apenas por ser verdadeira, o que parece
imputar ao fiabilista o ónus de mostrar por que razão é uma crença verdadeira fiável mais
44
Tal como parecem indicar certos casos de justificação de crenças de animais superiores e de jovens adultos. Vide
Goldman 2000: 350.
45
Um resumo dos cinco principais problemas que afectam o fiabilismo e das principais respostas a esses problemas
pode ser encontrado em Goldman 2009.
67
valiosa que uma crença verdadeira simpliciter. Como sugere Ernest Sosa (2007), usando
uma interessante analogia, é como tentar mostrar por que razão seria melhor um
determinado café, que já de si é bom, só pelo facto de ter uma determinada origem.
3.5.2. A Objecção da Generalidade
A objecção da generalidade (Goldman 2000: 345), (doravante OG), é por vezes
também conhecida por Problema da Especificação (Audi 2003: 231). A objecção assenta na
seguinte ideia. Supondo, como supõe o fiabilismo, q ue uma crença está justificada desde
que o processo causal particular (token) que lhe deu origem é fiável, e supondo também
que a fiabilidade deste processo particular depende da fiabilidade de múltiplos processos
causais genéricos (type), torna-se difícil ou mesmo impossível determinar qual o processo
ou quais processos genéricos (type) que conferem ao processo particular (token) a
fiabilidade exigível para cada caso de formação de crença justificada.
Eis uma descodificação possível para o problema. 46 A questão é a seguinte: Quais
as circunstâncias exactas que fazem com que um processo de formação de crenças seja
fiável, e possa assim ser declarado fiável ao ponto de conferir justificação às crenças que
dele resultam? Por exemplo, em que circunstâncias pode o acto visual de percepcionar
uma águia na escarpa constituir um processo fiável para a produção, sustentação, e
justificação da crença de que está uma águia na escarpa? Bem, pode talvez sê-lo desde que
recolha a sua fiabilidade de um ou mais processos genéricos (type) fiáveis de formação e
sustentação de crenças. Mas qual ou quais processos genéricos concorrem
suficientemente para essa possibilidade? Existem múltiplos processos genéricos (type),
quer no aspecto físico quer no aspecto mental e/ou psicológico, cuja fiabilidade, digamos,
genérica, parece ser necessária para a fiabilidade, digamos, particular, do processo
particular. Mas como determinar, seio da multiplicidade de processos genéricos, quais os
necessários e conjuntamente suficientes para conferir essa fiabilidade ao processo
particular? É pois um problema de especificação que é neste ponto introduzido pelo crítico
do fiabilismo. Trata-se da especificação dos processos genéricos que contribuem
46
Grosso modo, esta descodificação é a que aparece em Conee & Feldman 2004: 136-137. Uma resposta fiabilista
ao problema da especificação ou da generalidade aparece em Comensanã 2006.
68
suficientemente para fiabilidade de um processo particular de formação e sustentação de
uma crença.
Uma análise exaustiva dos meandros da OG e das respostas que obteve não parece
ser necessária para mostrar que a objecção não foi ainda convincentemente refutada, uma
vez que o próprio Goldman, na qualidade de comentador da sua própria teoria, considera
que ainda não foi apresentada uma resposta satisfatória para a referida objecção
(Goldman 2009). A OG levanta um problema para o fiabilismo de processos que parece
estar ainda por resolver.
3.5.3. A Objecção da Não-necessidade
Suponha-se que a OG não obtém. Segue-se daí que o fiabilismo tal como descrito
não tem mais problemas? Não. A objecção da não-necessidade (ONN) deixa o fiabilismo
em maus lençóis.
Imagine-se uma realidade alternativa (um mundo possível) no qual as crenças dos
agentes cognitivos resultam aparentemente do mesmo género de processos fiáveis de
formação de crenças partir dos quais resultam as crenças dos agentes cognitivos do mundo
actual, por exemplo, determinados exercícios da capacidade percepcionar, determinados
episódios de memória, de inferência, etc. Não obstante, nesse mundo alternativo os
agentes são enganados por um demónio, algo ou alguém que os faz crer apenas em
falsidades, fazendo-os simultaneamente crer que essas falsidades são afinal verdades. É
razoável supor que as cre çasà dosà age tesà doà u doà de o izado à est oà prima facie
justificadas, isto porque essas crenças parecem resultar (da perspectiva dos agentes nesse
mundo) de processos de formação de crenças que (em circunstâncias normais, não
de o izadas àp oduze àu àelevado número de crenças verdadeiras e um baixo número
de crenças falsas. No entanto, apesar de justificadas, essas crenças não resultam de
processos fiáveis de formação de crenças, mas sim da actividade do demónio (que não é
de todo fiável), e, por conseguinte, essas crenças não derivam a sua justificação da
fiabilidade dos processos, seguindo-se portanto que esta última não é uma condição
necessária para a justificação (Cf. Cohen 1984: 280 ss).
Goldman usa duas distinções para estabelecer a sua resposta a esta objecção. A
primeira (1988: 52 ss) é a distinção entre duas formas ou concepções de justificação: a
69
justificação forte, por um lado, e a justificação fraca, por outro. A segunda (1992: 155-175)
é a distinção entre crenças que resultam de processos virtuosos de formação de crenças,
por um lado, e crenças que resultam de processos corrompidos (vicious) de formação de
crenças, por outro.
Quanto à primeira distinção, importa reter que a justificação só é forte se derivar
de processos, métodos ou procedimentos fiáveis de e para a formação de crenças. Crença
plenamente justificada é, neste sentido avançado por Goldman, crença bem-formada a
partir de processos, métodos e procedimentos fiáveis, isto no sentido habitual de
fia ilidade à ueà te hoà i doà aà des e e ,à u à se tidoà ueà implica que dos processos,
métodos ou procedimentos fiáveis resulte um elevado número de crenças verdadeiras.
Este sentido de justificação forte pressupõe pois uma ligação estreita entre crença e
verdade.
Já o mesmo não acontece com a justificação fraca. Goldman sustenta que uma
crença pode estar justificada, ainda que debilmente justificada, mesmo considerando que
essa crença não tem origem em processos fiáveis de formação de crença. A crença está
justificada porque, apesar de não ter origem num processo ou método fiável, ainda assim
não é possível culpabilizar o agente por a ter. A noção de justificação fraca assenta pois na
noção de não-culpabilidade. Por exemplo, quando alguém u sa um processo de raciocínio
ferido de invalidade para chegar a uma determinada conclusão e, não se dando conta desse
vício, passa a acreditar nessa conclusão. Ou então quando alguém que desconhece que a
superfície da terra é curva vê um navio a afastar-se no horizonte e forma a crença de que
o barco está a afundar-se lentamente. Ambas são situações em que o agente não pode ser
culpabilizado por acreditar no que acredita, e a sua crença assenta em algo que a justifica,
a inferência viciada, no primeiro caso, e o acto de percepção enganador, no segundo.
Feita esta distinção, Goldman sugere que ela é crucial para explicar o que realmente
se passa com os agentes cognitivos doà u doà de o izado .àEàoà ueàseàpassaà à ueàessesà
agentes têm a suas crenças justificadas, mas apenas fracamente justificadas. Eles não
podem ser culpabilizados por terem formado essas crenças com base no que julgam ser
processos fiáveis de formação de crenças, mas que afinal não são fiáveis, seja porque esses
processos foram manipulados pelo demónio, seja porque o demónio fez os agentes pensar
70
que esses processos tiveram lugar quando isso não foi o caso. Este tipo de justificação fraca
não estabelece, ainda segundo Goldman, uma ligação entre as crenças dos agentes e a
verdade, e portanto não satisfaz um requisito essencial, um requisito que, ainda segundo
Goldman, só pode ser satisfeito pela justificação no seu sentido forte, tal como é por ele
concebida e descrita. Portanto Goldman concede a Cohen et al que as crenças dos agentes
no mundo demonizado estão de alguma forma justificadas, e mbora não conceda que estão
apropriadamente justificadas.
A moral que Goldman retira é a de que a objecção do mundo demonizado não
mostra que a fiabilidade dos processo cognitivos não é uma condição necessária para a
justificação simpliciter, mas somente que não é uma condição necessária para aquele tipo
de justificação fraca (e, como veremos, de carácter internalista) que não garante um
número significativo de crenças verdadeiras.
Apesar de aparentemente eficaz, esta resposta à ONN não anula outros problemas
mais recentes apontados ao fiabilismo, nomeadamente o Problema do Bootstrapping
(Vogel 2009: 602-623) e o Problema do Conhecimento Fácil (Cohen 2002: 309-329), os
quais não irei discutir aqui.
3.6. Deontologismo
Para finalizar a inspecção das principais propostas no in terior do justificacionismo,
importa agora tratar daquele género de teorias que porventura melhor representa o
conceito de justificação epistémica lato sensu, e que é habitual designar-se em
epistemologia por deontologismo ou concepção deontoló gica da justificação (Alston 1985:
57-89). Outras designações para o deontologismo surgem amiúde na literatura,
nomeadamente, concepção normativa da justificação e/ou responsabilismo (Cf. Greco
1990: 246).
O deontologismo assenta em duas ideias basilares que por vezes surgem indistintas
na literatura. A primeira é a de que um agente cognitivo tudo deve fazer para obter a
verdade e evitar a falsidade, e/ou o erro.47 A segunda é a de que um agente cognitivo deve
reger a sua atitude de aceitação ou de rejeição de uma proposição em função,
47
Esta ideia surge recorrentemente imputada a William James na literatura. É por exemplo o que faz Chisholm
(1977: 14), que remete a descrição da ideia para James (1911: 17).
71
respectivamente, da verdade ou da falsidade dessa proposição. Esta última ideia impõe o
chamado Requisito Intelectual. 48
Segue-se uma descrição das raízes e das propriedades que marcam o
deontologismo. No final da secção são apresentados e discutidos alguns dos problemas
desta forma particular de justificacionismo.
3.6.1. Deontologismo clássico
Talvez a mais lúcida análise sobre as origens do deontologismo em epistemologia
seja a que nos é oferecida por Alvin Plantinga (1992: 43-77).49 Plantinga introduz o que
apelida de Internalismo Clássico, discutindo a sua relaç ão com o que está aparentemente
na sua origem: a noção de responsabilidade epistémica (Ibidem: 49 ss). Esta noção e as
exigências que a acompanham são no essencial atribuídas por Plantinga a René Descartes,
John Locke e Roderick Chisholm. Crucialmente, Plantinga considera que as noções de dever
e de responsabilidade epistémica são transversais a bastantes teorias da justificação, em
particular às teorias destes três filósofos.
Grosso modo, tal como é descrita por Plantinga, esta noção de responsabilidade
epistémica assenta em duas condições-de-base. Essas condições são que…
a) o agente ajuste a sua atitude de crença numa determinada proposição p à
evidência que tem para p 50
e que...
b) o agente faça tudo em seu poder para acreditar apenas em verdades, evitando
portanto, na medida das suas possibilidades, acreditar em falsidades.
As presentes condições referem-se, claro está, a deveres epistémicos que têm de
ser observados pelos agentes cognitivos. Como sugere Plantinga, a condição a recolhe
muito da sua força na ideia de Descartes segundo a qual um agente só deve aceitar p se
conseguir conceber clara e distintamente p como verdadeira. Como S só pode
racionalmente conceber p como verdadeira se tiver evidência para p, parece seguir-se com
48
Outras traduções possíveis são O Preceito Intelectual ou A Condição Intelectual.
49
Ver também Fumerton (2001).
50
O que é obviamente uma condição geralmente subscrita pelos defensores do evidencialismo, e daí o
evidencialismo, o internalismo e o deontologismo andarem geralmente de mãos dadas.
72
alguma naturalidade que a versão contemporânea de “à o segueà o e e à la aà eà
distintamente que p ao ponto de aceitar racionalmente p o oà e dadei a à te à
plausi el e teà deà se à “à te à e id
iaà sufi ie teà pa aà a eita à a io al e teà p como
e dadei a .à I agi e-se que S não satisfaz este requisito e que decide acreditar em
proposições para as quais não dispõe de qualquer evidência. Se assim for, dificilmente se
pode afirmar que S faz o que deve para alcançar a verdade e evitar a falsidade (e/ou o
erro), violando dessa forma a condição b, ficando o seu comportamento epistémico aquém
do que é aceitável, o que é a perspectiva de Locke sobre o dever epistémico (Ibidem: 51).51
Plantinga também imputa a Descartes, a Locke e a Chisholm a tese de que um
agente cognitivo só é digno de louvor e isento de culpa no caso de satisfazer as referidas
condições. As suas crenças serão portanto justas (num certo sentido liberal do termo),
vindo dessa forma a adquirir o estatuto de crenças justificadas.
A
concepção
clássica
de
justificação
é
portanto
uma
concepção
deontológica/normativa, no sentido em que impõe regras e deveres, gerais ou específicos,
que têm de ser observados pelos agentes cognitivos para que estejam epistemicamente
justificados em acreditar no que acreditam.
3.6.2. Deveres: epistémicos vs não-epistémicos e objectivos vs subjectivos
Começamos por voltar a uma importante distinção que já tínhamos alinhavado
(vide secção 3.3.) e que nos surge explicitamente delineada por William Alston (1988: 258
ss) quando nos oferece a sua principal abordagem à concepção deontológica da
justificação. Trata-se da diferença entre justificação deontológica epistémica e justificação
deontológica não-epistémica (e.g., moral ou prudencial). Grosso modo, para Alston, a
diferença assenta no facto de a primeira resultar do respeito e da obediência que o agente
cognitivo presta a regras ou normas epistémicas, enquanto a segunda resulta do respeito
e da obediência que o agente moral presta a regras ou normas não-epistémicas (e.g.,
princípios morais ou prudenciais). Uma vez que a concepção deontológica pressupõe que
as crenças dos agentes só estão justificadas na medida em que estes agentes satisfazem
certos deveres epistémicos, importa perceber o que diferencia os deveres epistémicos dos
deveres não-epistémicos.
51
Plantinga remete a posição de Locke para uma famosa passagem do Ensaio sobre o Entendimento Humano .
73
Richard Feldman, por exemplo, defende (2002: 373) que para um dever ser
epistémico não basta estar relacionado com a forma como um agente aceita ou rejeita uma
proposição, pois há atitudes de aceitação (ou de rejeição) de uma proposição
cognitivamente louváveis (ou cognitivamente reprováveis), e há atitudes de aceitação (ou
de rejeição) de uma proposição moralmente louváveis (ou moralmente reprováveis).52
Nesta linha, ele propõe um critério teleológico para distinguir entre deveres epistémicos e
deveres não-epistémicos. Segundo este critério, um dever epistémico é um dever que o
agente tem de cumprir de modo a conseguir satisfazer um telos epistémico (e.g., a
e dade àouài tele tualà desdeà ueà i tele tual àsejaà e p egueà o àalgu asà est ições ,à
enquanto um dever não-epistémico é um dever que o agente tem de cumprir de modo a
satisfazer um telos moral (e.g., praticar uma boa acção).
À luz do critério de Feldman, a definição de Alston de justificação deontológica
compreende-se melhor. Alston sugere que...
“àest àJᵈ [deontologicamente justificado] em acreditar que p se, e somente se, S não
viola qualquer dever epistémico ao acreditar que p (Alston 1985: 59)
Esta definição apresenta-se bastante intuitiva quando mantida no nível de
generalidade estipulado pelas condições a e b, mas torna-se informativamente insuficiente
quando a exigência de detalhe aumenta. Suponha-se que, no momento t, S acredita que a
lua possui água (L). S acredita que L com base na evidência que tem no momento t para
acreditar que L. Pode ainda supor-se que a evidência que S possui para acreditar em L
confere a L uma elevada probabilidade objectiva de ser verdadeira (embora, podemos
também supor, uma probabilidade de L=<1). Uma vez que, neste caso, S satisfaz
claramente a e b, não é possível culpabilizar S pelo seu comportamento epistémico. S fez
objectivamente o que devia para poder acreditar justificadamente em L, pois
aparentemente satisfez os seus deveres epistémicos no que respeita a L. S só acredita que
L é verdadeira porque dispõe de boa evidência para a verdade de L, e, portanto, nada mais
faz do que ajustar (não intencionalmente, podemos supor) a sua crença à sua (boa)
52
Outras distinções importantes entre deveres epistémicos são apontadas neste lugar, por exemplo, a distinção
entre o dever de acreditar apenas na verdade e o dever de tentar acreditar apenas na verdade. Estas distinções não me
parecem todavia cruciais para uma defesa da concepção deontológica da justificação, e portanto não voltarei a elas.
74
evidência para a verdade de L. Alston sugere que, nestas circunstâncias, a crença de S que
L está objectivamente justificada. Um agente cognitivo S tem uma crença objectivamente
justificada em p desde que S tenha evidência adequada para p e ajuste a sua crença a essa
evidência.
Suponha-se todavia que S dispõe de motivos para acredit ar que L mas que esses
motivos não se constituem realmente como boas razões, razões objectivamente boas, para
a verdade de L. Por exemplo, suponha-se que S leu num jornal pseudo-científico, no qual
são apenas publicadas falsidades, que foi descoberta água na lua aquando da alunagem da
Apolo XI, no ano de 1969. Suponha-se que S ajusta a sua crença a esses dados
pseudocientíficos apenas porque desconhece que o jornal só publica falsidades. Na medida
em que estes dados de algum modo sustentam a crença de S (ou estão na base da sua
formação), é legítimo pensar-se que esta crença está de algum modo justificada, embora
esteja justificada por más razões. E, podemos ainda supor, uma vez que S acredita que
esses dados se constituem realmente como evidência para L (embora como fraca
evidência, percebemos nós enquanto observadores privilegiados), e não dispondo S de
evidência para acreditar na falsidade de L, a sua atitude de acreditar que L não é
deontologicamente censurável. Pode pois dizer-se que esta crença de S está justificada,
subjectivamente justificada, pois está justificada da perspectiva do agente—embora não
esteja justificada por boa evidência, quer dizer, objectivamente justificada.
Alston defende que a justificação subjectiva não pode ter o estatuto de justificação
epistémica, uma vez que existe geralmente um conflito entre o facto de a evidência não
ser adequada para a verdade do que é acreditado e o facto de o agente supor o contrário.
O exemplo que demos revela com efeito que algumas razões que não se constituem como
e id
ia,à oàse tidoà o je ti o àdeàe id
ia,àpode à oàe ta toàle a àoàage teàaàa edita à
justificadamente, embora indevidamente do ponto de vista objectivo, numa proposição
verdadeira. A justificação não será neste caso epistémica, pois o que a torna justificação
não conduz o agente à verdade (apesar de a sua crença assim justificada ser verdadeira).
3.6.3. Justificação, racionalidade e responsabilidade
Definir a justificação epistémica usando a ideia de responsabilidade epistémica via
racionalidade é uma proposta alternativa ao evidencialismo tout court de Conee e Feldman
75
e ao fiabilismo de Goldman. A perspectiva tem sido defendida por Richard Foley (2005:
313-326) e pode rotular-se como sendo em certa medida um subproduto do
deontologismo. Foley recomenda, por um lado, uma teoria da justificação que não esteja
condicionada pela exigência de a justificação ser conducente ao conhecimento. O ponto é
que uma vez abandonada esta exigência é possível encontrar uma definição mais
completa, plausível e bem-sucedida do que é a justificação em termos de racionalidade.
Por outro lado, Foley sustenta também que certas considerações de ordem
pragmática condicionam a forma como um agente cognitivo adquire justificação para as
suas crenças. Sugere, por exemplo, que a recolha de evidência e subsequente deliberação
por parte de um agente cognitivo sobre se é ou não racional aceitar um determinado tópico
depende de considerações de ordem pragmática (Ibidem: 321). O ponto geral é portanto
que a justificação epistémica, seja ela suficiente ou não para alcançar a verdade e o
conhecimento, depende da racionalidade que é empregue por um agente cognitivo na
procura pela satisfação de determinados meios e fins epistémicos. Segundo o próprio Foley
próprio, esta concepção está mais virada para a noção vulgar de justificação enquanto
crença responsável do que propriamente para noções mais exigentes de justificação
desenhadas para resolver casos gettierizados. Concordamos.
A concepção responsabilista da justificação sugerida por Foley assenta em duas
condições-de-base (Ibidem: 322). A primeira diz basicamente que um agente cognitivo S só
tem uma crença justificada (Cj) que p se S tiver uma outra crença racional (C*) sobre o seu
aceitável comportamento epistémico com relação a p. Ainda segundo Foley, S só terá C*
desde que, tudo considerado, S despendeu uma aceitável quantidade de tempo e energia
a recolher e considerar evidência para p.
A segunda condição-de-base diz basicamente que S forma de maneira não
negligente a crença que p e sustenta de uma forma não negligente essa crença desde que
S não tenha sido irracional em acreditar que p e em sustentar essa crença. Segundo Foley,
estas duas condições de base completam-se no sentido de sustentarem um conceito de
justificação enquanto comportamento epistémico responsável. Mas estas condições
parecem ter problemas.
76
O primeiro problema é identificado pelo próprio Foley .à áà exp ess oà ... à tudo
considerado, S dependeu uma aceitável quantidade de tempo e energia a recolher e
considerar evidência para p àle a taàoàp o le aàdeàseàpe e e à ualàoà it rio a usar para
a alia à oà ueà de eà i lui à tudoà o side ado à e à adaà asoà deà
e ça,à istoà po ueà
diferentes tipos de crença parecem impor diferentes exigências. É portanto uma espécie
de problema da generalidade (vide a secção sobre o fiabilismo) que se levanta aqui.
Foley defende a sua concepção responsabilista da justificação deste problema ao
supor que crenças com objectos diversos exigem também diferentes níveis de actuação
epistémica responsável por parte dos agentes. Por exemplo, uma crença numa proposição
que expõe uma determinada hipótese científica parece exigir por parte do agente um
elevado nível de responsabilidade epistémica (e.g., que o agente seja minucioso na recolha
e consideração de evidência), ao contrário de crenças em proposições mais vulgares,
crenças que não parecem exigir que o agente se aplique com grande grau de minúcia e
precisão na descoberta da verdade. Mas isto parece tornar o critério para se aferir o grau
de minúcia, precisão e responsabilidade empregue pelo agente demasiado geral, vago e
elástico. O problema, que não irei perseguir aqui, é o de como estabelecer as fronteiras, os
limites e as quantidades necessárias para se poder qualificar uma crença como responsável
e, portanto, justificada.
O segundo problema com a primeira condição-de-base (a mais relevante para o que
me ocupa neste trabalho) prende-se com a exigência de S ter uma meta-crença, C*, sobre
o seu aceitável comportamento epistémico com relação a p. A propósito desta exigência,
Nicholas Wolterstorff (2005: 342) defende que um agente pode gerar a sua crença C* de
modo irresponsável, correndo-se portanto o risco de essa irresponsabilidade transmitir-se
para a crença de primeira ordem para a qual a crença de segunda ordem visa contribuir em
termos de justificação. Mas o problema parece ser ainda mais grave se se considerar que
para que possa surtir algum efeito e instanciar alguma credibilidade da perspectiva do
agente e de quem avalia as crenças do agente, a crença de segunda ordem deve ela própria
estar justificada. Isso parece todavia exigir que o agente tenha uma crença C** sobre o
facto de ter chegado responsavelmente à sua crença C*. É então fácil de perceber onde
pode incidir a crítica à condição-de-base. Se o agente tem de ter crenças de segunda ordem
77
sobre o modo responsável como forma e sustenta uma crença de primeira ordem, então
(se a crença de segunda ordem for encarada ela própria como uma crença de primeira
ordem) existe o perigo de um regresso.
O problema parece residir na acumulação de exigências de responsabilidade. As
questões que parecem resultar daqui são as seguintes:
1) Onde termina a exigência de responsabilidade epistémica?
2) O que é necessário e suficiente em termos de responsabilidade epistémica para
uma crença de primeira ordem estar justificada?
3) O que é necessário e suficiente em termos de responsabilidade epistémica para
uma crença de primeira ordem estar justificada de modo conducente à verdade e ao
conhecimento?
Apesar de oferecer no seu artigo algumas respostas para as questões 1 e 2, Foley
deixa a questão 3 por responder. Deixa-a por responder porque, como o próprio Foley faz
questão de salientar, a sua concepção racionalista e responsabilista da justificação não visa
responder-lhe. Foley não está preocupado com uma teoria de uma condição (a que Foley,
no trilho de Plantinga, chama garantia) que seja invariavelmente necessária e suficiente
para alcançar a verdade e o conhecimento, podendo portanto aparentemente esquivar-se
a responder a essa questão. Como o modo de justificação visado pela DTC e outras
definições/análises do conhecimento que usam a condição de justificação é justamente o
odoà o du e teà à e dade ,àaà o epç oàde justificação oferecida por Foley não pode
ser eleita como explicativa desse fenómeno, isto na medida em que não reclama
estabelecer ou descrever as condições necessárias e suficientes para essa propriedade.
3.6.4. Um problema clássico do deontologismo: dever implica poder
Talvez o maior perigo para o deontologismo enquanto teoria da justificação
epistémica esteja sediado na crítica segundo a qual algumas crenças podem estar
justificadas mesmo que o agente não seja epistemicamente responsável (ou irresponsável)
ao formar essas crenças. Trata-se no fundo de admitir que a responsabilidade epistémica
de um agente não é uma condição necessária para que esse agente tenha crenças
justificadas.
A crítica pressupõe o venerável princípio segundo o qual o exercício do dever implica
o poder de exercer o dever. A capacidade para formar responsavelmente uma crença
78
implica ter o poder para formar responsavelmente uma crença (Cf. Alston 1988: 259;
Feldman 2001). Mas, plausivelmente, casos há em que o agente não controla o modo como
forma as suas crenças. Quem olha para uma montanha verdejante não consegue evitar a
crença de que vê uma montanha verdejante. Quem vê um automóvel a vir na sua direcção
a alta velocidade não consegue evitar a crença de que vem um automóvel na sua direcção,
etc. Ora, supondo que os agentes não conseguem controlar, espontânea e
voluntariamente, algumas das suas crenças, e supondo também que essas crenças estão
justificadas (e.g., por boa evidência perceptual), parece seguir-se que a responsabilidade
epistémica dos agentes pouco ou nada tem a ver com essa justificação. Sendo assim, a
responsabilidade epistémica pode ser dispensada em certos casos de crença justificada,
algo que a impede ser uma condição (universalmente) necessária para a justificação.
O voluntarismo doxástico simples é a teoria segundo a qual os agentes conseguem
controlar a maneira como formam as suas crenças. O invonlutarismo doxástico simples é a
teoria contraditória desta. A tendência entre defensores de formas moderadas ou
mitigadas de deontologismo ou de responsabilismo é a de defender formas também elas
moderadas de voluntarismo doxástico. Alston, por exemplo, defende que os agentes
cognitivos conseguem controlar, ainda que de forma indirecta, acreditar ou não acreditar
(justificadamente). Alston argumenta (Ibidem: 277) a favor do controlo indirecto da
formação de crenças por parte de um agente.53 No essencial, a sua perspectiva é a de que
o agente tem controlo à distância das crenças por via de uma cadeia causal. Desta
perspectiva, o agente pode ser responsável no que toca ao seu comportamento
epist
i o,àai daà ueà u aàa epç oà aisàf a aàdeà espo s el .
Já Carl Ginet (2001) emprega outra táctica para defender o voluntarismo. O seu
ponto, o qual sustenta com vários exemplos, é o de que um agente S controla
voluntariamente a formação da sua crença que p—i.e., decide acreditar que p—se...
a) S espera que p,
e se...
53
Ver Audi (2001) para uma estratégia semelhante. Ele sustenta que há uma diferença entre as causas de uma
crença, que são controláveis pelo agente, e o acto de crer, que nem sempre o é.
79
b) S decide apostar em p (desenvolver uma acção com base no pressuposto da
verdade de p) com base na expectativa descrita em a,
e se...
c) ao esperar e apostar que p, tal como definido por a e b, S não espera nem aposta
que não-p.
Porém, ainda que aceitável, esta perspectiva não exclui casos de crença em que,
alegadamente, o agente nem espera que p, nem aposta que p, e ainda assim não pode
evitar ter a crença que p. Ginet reconhece essa possibilidade, sendo o mais razoável supor
que algumas dessas crenças involuntárias estão no entanto justificadas. Segue-se portanto
que a perspectiva de Ginet não tem como consequência que a responsabilidade epistémica
seja uma condição necessária para a justificação epistémica.
Com algumas restrições aqui e ali, todas as perspectivas voluntaristas parecem
permitir o mesmo tipo de conclusão, a saber, que a responsabilidade epistémica não é uma
condição necessária para a justificação. Uma alternativa plausível é supor que a
responsabilidade epistémica é necessária para a justificação num conjunto alargado de
casos, casos em que o agente tem algum tipo de controlo sobre a formação as suas crenças
ou sobre o tratamento e uso dos fundamentos das suas crenças. Esta não é talvez uma
solução que agrade aos defensores do deontologismo, mas parece ser a mais plausível e a
que melhor preserva o espírito da concepção, uma vez que preserva parte do requisito
deontológico, permitindo que seja aplicável em casos nos quais a natureza da proposição
acreditada não pode dispensar a observação de princípios epistémicos.
Primeiro Interlúdio
Resumo
O problema da justificação epistémica ocupa um especial lugar de destaque na
epistemologia pós-Gettier. A variedade de teorias disponíveis sobre que género de
propriedade/condição é a justificação, bem como do que depende, atesta essa realidade.
Considerando este facto, faz algum sentido que se lhe dispense um pouco mais de atenção.
Este interlúdio é dedicado a duas discussões quase sempre associadas ao tema da
80
justificação epistémica. Trata-se do problema da estrutura da justificação, por um lado, e
o problema da origem da justificação, por outro.
a) A Estrutura da Justificação Epistémica: Fundacionism o, Coerentismo ou Outro
Modelo?
—O modelo fundacionista de Bonjour
Na linha de outros filósofos, Lawrence Bonjour preocupa-se em perceber como
podem os agentes ter crenças básicas justificadas, quer dizer, como podem ter crenças que
sirvam de fundação ao edifício de crenças que alegadamente constitui o conhecimento. A
solução de Bonjour é fundacionista. 54
Bonjour tem algumas preferências filosóficas na base da sua teoria
fundacionista/internalista da justificação. A primeira é a de que a noção de verdade como
correspondência é a melhor alternativa para dar conta da relação entre estados de coisas
no mundo e a conceptualização desses estados de coisas. Ele considera a adopção desta
teoria indispensável porque é a que melhor dá conta da ligação e t eà u à i te io àdoà
age teà oà ualàsu ge àosà o teúdosà o eptuais/ og iti osàeàu à exte io àdoàage te,à
onde estão alegadamente as coisasà ueà o espo de
àaàessesà o teúdos.à
A segunda ideia de Bonjour consiste em evitar o uso do conceito de conhecimento
para explicar o de justificação epistémica (e inversamente), pois para tal seria forçoso que
se pudesse indicar de antemão o grau/nível de justificação necessário para a ocorrência de
conhecimento. À falta de compreensão desse grau ideal, não é sensato tentar definir o
conceito de conhecimento usando o conceito de justificação (ou o inverso). Bonjour aponta
o Problema de Gettier e as indefinições que dele resultam como exemplos paradigmáticos
desta dificuldade.
O terceiro ponto consiste na exclusão de crenças em proposições analíticas e/ou
necessárias do campo de investigação estabelecido por Bonjour. O que se encontra em
jogo são crenças em proposições contingentes, cuja justificação depende da experiência.
54
Uma descrição elucidativa do problema das crenças básicas justificadas surge em Bonjour (2002: 193-219).
Como veremos, a solução de Bonjour surge explicitamente delineada em Bonjour & Sosa (2003). Bonjour abraçou primeiro
o coerentismo, tendo posteriormente revisto a sua posição, tornando-se um adepto do fundacionismo.
81
Posto isto, Bonjour questiona-se sobre onde começa a justificação. 55 Suponha-se
que S possui uma crença sobre um determinado estado de coisas no mundo, uma crença
empírica, possuindo também uma boa justificação para essa crença, digamos, dispõe de
boas razões para pensar que aquilo em que acredita é o caso. Mas como justifica S a sua
crença de que essas são boas razões? Irá provavelmente fazê-lo recorrendo a novas razões
que possam apoiar as primeiras, e assim sucessivamente, gerando-se dessa forma uma
sequência de razões e, logo, de justificações. Onde acaba (ou começa, dependendo do
sentido que se queira adoptar) essa sequência? Indagar onde acaba (ou começa) essa
sequência é indagar pelas razões e justificações primitivas, básicas ou fundacionais.
Bonjour apresenta aquelas que são no seu entender as três vias disponíveis para
este solucionar este problema. Supondo que a sequência acima referida é constituída por
crenças justificadas, parece-se seguir-se que ou
a) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença para a
qual não existe qualquer razão e/ou justificação disponíve l;
ou…
b) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença que é
justificada por uma qualquer crença pertencente à própria sequência;
ou…
c) A sequência de crenças sequencialmente justificadas acaba numa crença que
consegue autojustificar-se.
Como Bonjour pensa que a e b levam ao cepticismo, rejeita essas hipóteses e
defende c. Não obstante, Bonjour também reconhece problemas a c, sendo o principal
perceber o que faz com que essas crenças se autojustifiquem.
Bonjour opta pela resposta clássica: muitas crenças com origem na percepção estão
autojustificadas, sendo portanto fundacionais. Estão autoju stificadas na medida em que a
apreensão do conteúdo da crença por parte do agente realiza-se de modo directo (ou
55
Para um argumento céptico a este propósito, ver Oakley (1976: 222-223). Ver especialmente 228 para uma fuga
de Oakley ao cepticismo radical, mantendo-o ao nível da possibilidade da justificação das crenças.
82
quase directo). Dito de outro modo, há por parte do agente uma espécie de acto cognitivo
de segunda ordem que consiste na apreensão directa do conteúdo.
O problema que aflige esta perspectiva é contudo, como próprio Bonjour indica, o
de se perceber qual a natureza deste acto cognitivo de segunda ordem. Qual a natureza
deste acto suplementar de apreensão? E o agente apreende exactamente o quê? A
formulação do problema é a seguinte:
Hipótese 1 – O acto de apreensão possui conteúdo proposicional, jud icativo e/ou
assertivo, por via do qual é possível justificar uma crença.
Se esta hipótese obtém, o conteúdo proposicional nela referido tem de estar
justificado de modo a poder desempenhar o seu papel de justificante. Ou em alternativa...
Hipótese 2 – O acto de apreensão não possui o referido conteúdo proposicional,
sendo não-proposicional e/ou não judicativo por natureza.
E portanto, não havendo conteúdo, não há necessidade de uma ulterior
justificação. Mas se for este o caso, fica por explicar a natureza não-proposicional do
processo pelo qual esse acto de apreensão permite a uma crença autojustificar-se.
Um exemplo. Suponha-se que S acredita que está a chover (C1). Esta crença é um
acto mental de S.56 Dir-se-ia pois que este acto mental é de primeira ordem, uma vez que
reporta diretamente a um estado de coisas no mundo. Supondo agora que a H1 está
correcta, S teria de acreditar que estou a ter a crença de que está a chover lá fora (C2) para
poder estar consciente do conteúdo de C1. Assim, C2 constituir-se-ia como um acto mental
de segunda ordem, o tal acto suplementar acima referido, que se reportaria não ao estado
de coisas no mundo a que se reporta C1 mas sim ao conteúdo de C1. Mas este acto mental
seria assim uma crença numa proposição, o que retiraria a C1 o estatuto de crença
autojustificada, pois necessitaria de uma justificação, C2, que por sua necessitaria de uma
justificação, etc. Portanto, para Bonjour, H1 não está em ordem.
56
Esta crença que apresento como exemplo pode ser catalogada como aquilo que Bonjour chama uma occurrent
belief. A tradução para português é espinhosa; a definição ainda mais. Uma occurent belief parece ser uma crença que
ocorre na mente e possui conteúdo conceptual identificável. É o caso da que apresento. Bonjour diferencia este tipo de
crenças do tipo de crenças que derivam única e exclusivamente da experiência sensorial, que, segundo ele, reportam
directamente a estados de coisas físicos no mundo. O problema está em discernir a fronteira entre crenças sobre o mundo
com conteúdo puramente conceptual e crenças sobre o mundo com conteúdo puramente sensorial.
83
Mas H2 também é um problema. Se o acto de apreensão não possui conteúdo
proposicional, então não se constitui aparentemente como uma razão que possa justificar
uma crença, pois uma razão é algo eminentemente proposicional. Qual pois a alternativa?
Tendo ainda C1 como referência, Bonjour argumenta que a consciência do
conteúdo de C1 por parte do agente da crença está, por assim dizer, auto-embutida (builtin) na própria crença: o conteúdo proposicional de C1 é constitutivo da própria crença. A
consciência do conteúdo de C1 não é exterior ao próprio conteúdo de C1, quer dizer, a
consciência do conteúdo de C1 é intrínseca à própria crença.
Bonjour avança também a possibilidade desta autoconsciência do conteúdo ser
i falí el.àMasà i falí el à
oàde ota neste caso que a proposição é verdadeira. A palavra
indica simplesmente que a consciência que tenho desse conteúdo não pode deixar de ser
e dadei aà usa doàu àse tidoà uitoàlatoàdeà e dadei a ,à ue àdize ,à
oàpodeàdeixa à
de ser o caso que o agente tem consciência do conteúdo específico e constitutivo do seu
estado mental.
É portanto esta propriedade, a saber, a infalibilidade da consciência do conteúdo
(proposicional) da crença, que lhe permite ser uma crença autojustificada e, logo,
fundacional. Se esta solução estiver em ordem, não é necessário existir uma crença de
segunda ordem para justificar cada crença fundacional de primeira ordem. Para haver
autojustificação, quer dizer, justificação de carácter fundacional, não é necessário haver
uma crença de segunda ordem que justifique o conteúdo dessa crença. Se fosse esse o
caso, argumenta Bonjour, teria que existir ainda uma crença de terceira ordem cujo
conteúdo permitisse ao agente justificar o conteúdo dessa crença de segunda ordem, e
assim sucessivamente. Daqui resultaria um óbvio e indesejável regresso na cadeia de
justificações. Essa não é portanto uma opção viável do ponto de vista do fundacionista,
pois este regresso conduziria ao cepticismo, uma vez que ficaria por se perceber onde
assenta em última instancia qualquer justificação.
A primeira consideração a tecer relativamente à solução de Bonjour, é a de que a
de não nos parece económica do ponto de vista explicativo. Com efeito, a solução postula
a existência de uma consciência infalível do conteúdo (proposicional) de crenças, mas
demonstrar a existência deste tipo de consciência não se afigura uma tarefa fácil.
84
Um outro problema que parece afectar a solução de Bonjour é que ela nunca
consegue fugir completamente a uma certa ambiguidade explicativa. Para analisar esta
ambiguidade, revisitamos agora uma tipologia de candidatos a crenças fundacionais da
autoria de Jonathan Dancy. Segundo Dancy, crenças fundacionais podem ser:
[ ]à e ças que são justificadas por outra coisa sem ser crenças;
[2] crenças que se justificam a elas próprias;
[3] crenças que não necessitam de justificação . (Dancy 1985: 85)
Repare-se que, a ser correcta esta tipologia, a solução de Bonjour para o problema
do regresso oscila entre 1 e 2. Com efeito, a solução de Bonjour prevê que as crenças
fundacionais são crenças que autojustificam, por um lado , e, por outro, estão justificadas
por algo que não a própria crença: a consciência infalível e directa do conteúdo
proposicional. Se as três hipóteses forem mutuamente exclusivas, o que parece ser o caso,
então o facto de a solução de Bonjour oscilar entre as duas primeiras parece torná-la
ambígua.
—O modelo naturalista/externalista de Sosa
Ernest Sosa (Bonjour & Sosa 2003: 99 ss) submete uma solução alternativa à de
Bonjour no que respeita à estrutura da justificação. Descrevemo-la de seguida,
adicionando-lhe também o nosso comentário.
Começamos por introduzir as principais razões que Sosa aponta para reclamar a
indispensabilidade da justificação epistémica para haver conhecimento, isto é, os motivos
pelos quais, segundo ele, a justificação se estabelece como uma condição necessária para
que aquilo em que um agente acredita se possa constituir como conhecimento. Sosa
começa por nos dar exemplos do que não serve para justificar as crenças de um agente.
Por exemplo, não parece razoável atribuir o estatuto de conhecimento a uma crença
acidentalmente verdadeira acerca dos números de uma lotaria. Estes são casos em que o
agente não dispõe alegadamente de razões epistémicas para apoiar a sua crença. Quando
se indaga pelas razões que levam um agente a formar uma crença nos números de uma
lotaria encontra-se por norma apenas superstição, algo que não pode contar como razões
epistémicas e, logo, não pode contar como justificação epistémica.
85
Por outro lado, Sosa desmonta a concepção segundo a qual para uma crença se
constituir como conhecimento é suficiente o agente acreditar que p e ser verdade que p.
Sosa argumenta, recorrendo a uma analogia interessante (à qual voltaremos na secção
4.3.2.), que tal como no tiro-ao-alvo (com arco), um tiro que acerte no centro do alvo por
mera sorte não deve ser, nem pode ser, considerado um bom tiro. É um facto que o
resultado final de um tiro que acerte no centro do alvo é o melhor e o mais desejado, mas
esse resultado não é alcançado graças ao mérito e à perícia do arqueiro, mas sim a factores
acidentais (e.g., a força do vento que começou a soprar). Isto revela que o conhecimento
não pode ocorrer apenas graças à satisfação das condições de crença e de verdade da
proposição acreditada.
Tendo assentido que um agente só tem conhecimento se tiver justificação
epistémica, Sosa dedica-se a perceber que condições permitem a um agente acreditar
justificadamente que p. Uma vez mais a ideia é perceber que estrutura deve ter a
justificação, ou que estrutura deve presidir às relações de justificação.
Sosa começa por criticar e rejeitar a solução coerentista para o problema da
justificação. Esta solução assenta na possibilidade de a jus tificação de uma crença derivar
do facto de essa crença pertencer a um conjunto de crenças coerentes. Um dos problemas
apontado para esta concepção, um que já tinha sido apont ado por Russell e que agora é
adoptado por Sosa, é o de que há conjuntos coerentes de crenças tais que as crenças que
os constituem não se referem a quaisquer estados de coisas no mundo (e.g., ficções
literárias ou conjuntos de crenças coerentes aceites por pessoas com problemas mentais),
podendo pois, apesar de coerentes, ser todas falsas. Se o conhecimento implica verdade e
se a justificação coerentista pode dar origem a crenças falsas ou a conjuntos de crenças
falsas, então este tipo de justificação não é suficiente para haver conhecimento.
Tendo afastado a hipótese do coerentismo conseguir dar conta do que é necessário
para haver justificação de qualidade, quer dizer, justificação conducente ao conhecimento,
Sosa apresenta e discute a resposta do fundacionista. Neste particular, a crítica de Sosa ao
fundacionismo clássico incide sobre a noção tradicional de justificação fundacional
avançada por Descartes ou Leibniz. Segundo esta noção, algo aceite como uma espécie de
86
Santo Graal pelos fundacionistas clássicos, sejam racionalistas ou empiristas57, a
justificação epistémica depende em larga medida do acesso privilegiado, etc., a algo que é
dado, seja por introspecção, intuição racional ou percepção directa.58 Sosa pensa que esta
noção clássica de justificação não é satisfatória. 59
A ideia de que sobre o fundacionismo clássico também recai o ónus de explicar que
tipo de consciência (awareness) da experiência, experiência-consciente-notada ((N)oticing
(A)wareness) ou experiência-consciente-simples ((E)xperiencing-(A)wareness), permite ao
agente aceder ao dado na base de uma justificação de carácter directo para as crenças
fundacionais, pode ser colada a Sosa. Se, por um lado, o acesso ocorre graças à NA, então,
argumenta ele, a justificação nem pode ser directa nem pode ser imediata, uma vez que a
57
Sosa aborda estas duas ramificações do fundacionismo na secção 6.7., pp. 115-118. São explicadas nestas
páginas as diferentes possibilidades de fundação defendidas por essas duas ramificações: no caso do racionalismo, uma
(qualquer) axiomática, assente na intuição racional, da qual sairia por dedução todo o edifício do conhecimento; no caso
do empirismo, a experiência sensorial que, coadjuvada por processos dedutivos e indutivos, forneceria as bases onde
assentaria o conhecimento empírico. São também expostos resumidamente por Sosa neste lugar alguns componentes de
algumas variantes híbridas, ou independentes, destas formas mais elementares de fundacionismo, e.g., o fenomenalismo e
o empirismo liberal, bem como algumas razões por que parecem ser isoladamente insuficientes para dar conta do que
poderá eventualmente estar na base da justificação e do conhecimento.
58
A natureza do “Dado” (The Given) é discutida na epistemologia contemporânea. O Dado é alegadamente uma
entidade não-verbal e elementar, derivada, por assim dizer, de episódios mentais de experiência consciente. O dado é, nesta
acepção, primitivo, não-inferido, auto-sustentado, servindo portanto como base ou ponto inamovível de sustentação
daquilo que contribui para justificar crenças empíricas. Sobre esta ideia de dado imediato da experiência consciente, algo
a que o agente dessa experiência acede directamente, incide uma famosa crítica apresentada por Wilfrid Sellars (2000,
original 1956). Sellars argumenta nesse artigo que o reconhecimento daquilo que permitiria considerar crenças
observacionais—do tipo “Isto é verde”—como crenças fundacionais, habitualmente consideradas fundacionais por não
dependerem precisamente de qualquer inferência ou de qualquer outra coisa senão o que é dado na experiência consciente,
e.g., um dado-dos-sentidos, a percepção, sense-qualia ou outras entidades mentais, depende, afinal, de uma concepção
prévia do significado de “isto”, “verde” e outros componentes da proposição; além de depender também daquilo que
permitiria aceitar e reconhecer previamente esse mesmo significado: uma espécie de reconhecimento prévio do próprio
Dado, de como se articula e de como contribui para a sustentação das referidas crenças fundacionais. A crítica do dado é,
portanto, basicamente uma crítica à ideia de que o que justifica as crenças básicas é um conjunto de episódios não-verbais,
que não resultam de qualquer inferência, e que, assim, fornecem directa e imediatamente ao agente aquilo que é necessário
e suficiente para ele ter as suas crenças básicas vindicadas.
59
Do mesmo modo, são rejeitados quer o infinitismo quer o cepticismo, alternativas naturais ao fundacionismo. O
infinitismo epistemológico é a teoria segundo a qual há um regresso infinito na cadeia de crenças e justificações; não
havendo portanto, segundo esta perspectiva, crenças fundacionais justificadas para sustentar o edifício do conhecimento.
O cepticismo global é, por sua vez, a teoria de que ou o conhecimento não é possível ou, o que vai dar ao mesmo, não é
possível saber se é possível.
87
NA parece ser um tipo de experiência que depende já do agente fazer algumas inferências.
O ponto é o de que o agente tem de fazer inferências básicas isolar e notar
conscientemente uma porção do que experiencia conscientemente. Se isto for o caso, o
que resulta da NA não pode ser de todo o dado primitivo, não-proposicional e não inferido.
E se, por outro lado, o acesso ocorre graças à EA, surgem então, segundo Sosa, ou
redundâncias—pois tudo na experiência consciente de um agente seria fundacional—ou
buracos (gaps) entre a EA e a NA que não facilitam em nada a explicação do que pode
contar como dado imediato da experiência consciente. 60
O problema não parece ficar por aqui. O próximo passo de Sosa consiste em mostrar
que dos vários tipos de conteúdos primários disponíve is, apenas os de conteúdo muito
insuficiente satisfazem a exigência de fornecer o dado fundacional. Para vincar este ponto,
Sosa identifica três tipos de conteúdos primários oriundos da experiência, três tipos de
dado, que poderiam eventualmente estar na base da justificação das crenças ditas
fundacionais. Esses conteúdos são: i) conteúdos indexicais; ii) conteúdos fenomenais; iii)
conteúdos que comportam a descrição de propriedades matemáticas e geométricas
simples. Sosa encontra problemas em todos eles.
i) Conteúdos indexicais.àQua doàu àage teàa editaà ueà isto àassi
àfi aà
na posse de um conteúdo que indexicaliza aquilo que é referido por esse próprio
conteúdo. Porém, esse tipo de conteúdo indexicalizante é, na perspectiva de Sosa, muito
60
Um destes gaps é apresentado pelo problema da Galinha dos Pontos, problema esse levantado por Roderick
Chisholm e no qual Sosa se apoia para mostrar o seu ponto. O problema é, grosso modo, o seguinte: podemos notar
imediatamente, por via da nossa experiência (sensorial), que uma linha – relativamente simples – de cinco pontos dispostos
em sequência possui, de facto, cinco pontos e que é uma sequência. Há pois neste caso uma espécie de concordância entre
a EA e a NA no que respeita ao dado de que há uma linha-sequência e de que é constituída por cinco pontos, i.e.,
experienciamos conscientemente que tem cinco pontos e notamos conscientemente que tem cinco pontos, em simultâneo.
Até aqui tudo bem para o fundacionalista, pois o dado experienciado está de acordo com, por assim dizer, o dado notado.
O problema começa quando, por exemplo, deparamos com uma imagem cujos múltiplos pontos, suponhamos, quarenta e
oito, formam uma representação de uma galinha. Nesta situação, a EA fornece de imediato uma representação de uma
galinha constituída por n pontos. Mas a NA não nos fornece de imediato quantos pontos ao certo formam a representação
da galinha, o que é indicador de uma falha, ou buraco, entre o que é imediata e directamente fornecido pela EA e o que é
mediata e indirectamente fornecido pela NA. O exemplo parece então mostrar que há muito pouco que possa contar como
dado imediato e directo da, e na, nossa experiência consciente. O que está realmente em causa éque a complexidade
fornecida por uma grande parte da nossa experiência consciente milita contra a ideia de um dado primitivo, não-verbal,
directo e, logo, com as propriedades necessárias para se tornar fundacional. Sosa 2003: 121.
88
insuficiente, tendo muito pouco substrato que possa contribuir eficazmente no sentido de
justificar crenças básicas. Pensar que uma sequência de cinco pontos em linha é assim não
parece contribuir de forma decisiva para justificação da crença de que uma sequência de
cinco pontos em linha é de facto uma sequência de cinco pontos em linha. O problema
com o substrato fornecido por estes conteúdos de conteúdo indexical é então o de que
esseà o teúdoà ei ulaà uitoà pou aà i fo
aç o ,à
oà esulta doà po à o segui teà oà
objectivo de fornecer aquilo que é necessário para vindicar crenças que o fundacionista
julga serem fundacionais.
ii) Conteúdos fenomenais. Conteúdos deste tipo já parecem ter, quantitativa e
qualitativamente, mais substrato do que os anteriores. São portanto um pouco mais
i fo
ati os à ueà osà deà tipoà i, distinguindo-se deles principalmente por permitirem
indicar, identificar, discriminar e reconhecer os constituintes referenciados pelos
conteúdos proposicionais de crenças básicas (Sosa 2003: 125-126). Permitem, por
exemplo, a um agente que vê uma linha horizontal de cinco pontos desenhada num pape l
identificar, discriminar e reconhecer no conteúdo dessa experiência consciente
(perceptual) uma sequência ou uma configuração específica, quer dizer, algo que se
apresenta com uma determinada forma, estando disposto de uma determinada maneira e
dispondo, portanto, de certas características fenomenais que podem talvez ser
representadas num conteúdo proposicional mínimo. Não o bstante, para Sosa esta
capacidade de discriminação e de reconhecimento providenciada pelo conteúdo
fenomenal de uma experiência sensorial ainda não permite de per se ao agente ter um
grau de definição ou informação suficiente para dar conta de importantes propriedades
das coisas que se dão à experiência consciente. O que é dado pelo conteúdo fenomenal da
experiência não é portanto suficiente para justificar crenças fundacionais.
iii) Conteúdos matemáticos/geométricos simples. Sosa sugere por último que
alguns conteúdos matemáticos e geométricos simples podem sustentar algumas crenças
empíricas fundacionais. 61 Crençasà o oàa edita à ueà estaà àu aàli haàdeà cinco pontos
61
Sosa não está a falar de crenças com conteúdo proposicional matemático ou geométrico abstracto, crenças do
género de S acredita que “2 + 2 = 4”. O que está aqui em causa são crenças com conteúdo empírico, crenças que incluem
e discriminam simultaneamente nesse conteúdo propriedades matemáticas ou geométricas, crenças do género de S acredita
que se acrescentar duas laranjas a duas laranjas fica com quatro laranjas.
89
dispostosà u aà se u
ia à ouà o oà aà ep ese taç oà daà gali haà ueà estouà aà e à à
formada por quarenta e oito po tos àpa e e àesta àautojustifi adasài ediata e teàpeloà
seu conteúdo matemático, dado na e pela experiência. Parece, todavia, que dificilmente
estes conteúdos que identificam características matemáticas e geométricas podem aspirar
a serem fundacionais no sentido descrito e pretendido pelos fundacionistas. O problema é
que a partir de um determinado grau de complexidade das propriedades descritas por
estes conteúdos não é possível haver um acesso directo, não-inferencial, etc (Ibidem: 127129).
A posição de Sosa quanto à eficácia do dado posto à disposição por estes três tipos
de conteúdos oscila. Ele crê, por um lado, que esses conteúdos são insuficientes da maior
parte das vezes para justificar crenças fundacionais, mas julga, por outro, mas que o
fundacionismo encontra nesses conteúdos uma explicação prima facie consistente para o
que pode ser o dado fundacional. O fundacionismo encontra aí alguma sustentação p orque
esses conteúdos parecem viabilizar funções cognitivas mínimas como identificar formatos,
reconhecer configurações, distinguir padrões, etc. Na outra face da moeda, contra o
fundacionismo trabalha o problema de que esses conteúdos não parecem ser de per se
suficientes para cumprir funções de justificação.
Rejeitando de algum modo o fundacionismo clássico, Sosa deixa contudo perceber
a sua predilecção por uma forma peculiar de fundacionismo (externalista). O seu apelo a
esta forma de fundacionismo recolhe apoio na distinção f eita pelo próprio fundacionista
entre conteúdos justificantes básicos e conteúdos justificantes não-básicos. É-nos sugerido
que esta distinção depende de alguma forma do correcto exercício das capacidades
cognitivas do agente. Eis a ideia:
álgu asà a a te ísti asà i t í se asà dosà ossosà pe sa e tosà s oà at i uí eisà
diretamente a eles, ou seja, fundacionalmente, enquanto outras só o são por meio
de inferências e cálculos. Como é que o fundacionista p ode especificar que
características pertencem a que lado dessa bifurcação? É difícil ver como pode isso
ser feito sem apelarmos a virtudes cognitivas localizadas no sujeito. Por exemplo, a
atribuição de uma característica a uma experiência ou a um pensamento só está
tal ezàjustifi adaà ua doàde i aàdeàp o essosà i tuososàeàfi eis. (Idem)
Nesta linha, Sosa defende (Ibidem: 137) ainda que uma condição necessária para
ocorrer conhecimento empírico é existir uma espécie de conexão causal e/ou contrafactual
90
entre o que é dado na experiência consciente e os conteúdos proposicionais das crenças
empíricas fundacionais. Grosso modo, três condições devem de ser satisfeitas para que
haja, primeiro, justificação fundacional e, segundo, conhecimento empírico assente nessa
justificação. Essas condições são as seguintes:
Que o conteúdo da experiência consciente (o dado) ide tifi ue à o e ta e teàasà
propriedades daquilo a que essa experiência se refere;
Que o conteúdo proposicional da crença que identifica e discrimina essas
propriedades o faça correctamente;
Que haja concordância entre os conteúdos referidos nas duas condições anteriores.
A satisfação destas condições permite alegadamente que haja justificação
fundacional para crenças com conteúdos proposicionais pouco complexos, mas não para
crenças com conteúdos sobejamente complexos (e.g., a crença cujo conteúdo
proposicional inclui uma representação, complexa, de uma galinha constituída por
quarenta e oito pontos).
Assim, uma crença empírica estará fundacionalmente justificada se forem
satisfeitas as seguintes condições: (Ibidem: 138)
Que a crença tenha um conteúdo proposicional pouco compl exo, dado pela
experiência de forma directa e não mediada;
Que esse conteúdo seja um conteúdo epistemicamente seguro, na medida em que
o seu processo de criação seja fiável e permita ao agente aderir a ele sem reservas;
Que esse conteúdo seja fiável por derivar do exercício de uma ou mais virtudes
cognitivas do agente.
Esta perspectiva naturalista/externalista de Sosa da justificação fundacional 62
apresenta-se como uma alternativa quer ao fundacionismo clássico de Descartes, Leibniz
e Locke, quer ao fundacionismo neo-clássico de Chishol m e Bonjour. A seguir veremos
como estes estão ligados ao internalismo.
b) Internalismo ou externalismo?
62
Esta perspectiva será desenvolvida mais à frente na secção 4.3.2., onde será feita a exposição da sua teoria da
aptidão epistémica de uma crença.
91
O internalismo pode ser visto como uma teoria sobre a origem da justificação ou
sobre a origem do conhecimento. Na versão aqui discutida é a primeira.
Enquanto teoria da justificação, o internalismo preconiza que esta depende de
factores internos ao agente ou, o que vai dar quase ao mesmo, depende de algo na vida
mental do agente. Parece haver pelo menos duas leituras possíveis para esta ideia. A
primeira é a de que o internalismo preconiza condições necessárias para o agente ter uma
crença justificada; a segunda é a de que o internalismo preconiza condições necessárias e
suficientes para o agente ter uma crença justificada. A primeira leitura remete para um
internalismo moderado, já a segunda leitura remete para um internalismo ambicioso
(Alston 2001: 102).
O internalismo também é por vezes definido por oposição à teoria rival: o
externalismo. Nesta versão, o externalismo é a teoria que nega que a justificação seja algo
exclusivamente do foro interno do agente.
Estas distinções não bastam contudo para circunscrever as fronteiras do
internalismo. Elas apenas identificam o núcleo de uma co rrente de pensamento com
contornos nem sempre bem definidos. É por isso que começamos por esclarecer que
família ou famílias de teorias da justificação melhor enq uadram o internalismo.
Recorremos a Goldman para nos ajudar nesta taxonomia. Ele afirma ser possível
distinguir duas famílias abrangentes de teorias da justif icação: i) as descritivas e ii) as
regulativas (Goldman 2001: 37). As teorias do tipo i descrevem propriedades de crenças,
já teorias do tipo ii impõem propriedades a crenças.
Goldman entende que o internalismo é uma teoria da família ii, uma vez que muitas
formas de internalismo prescrevem princípios de decisão pelos quais se devem regular as
atitudes doxásticas dos agentes. Estes são portanto, segundo Goldman, de princípios de
decisão doxástica (PDD). Desta perspectiva normativa, se os PDD correctos forem
respeitados, as atitudes de crença estarão justificadas.
Goldman defende que não é possível encontrar um PDD satisfatório de carácter
internalista, pois qualquer PDD internalista estipula con dições demasiadamente exigentes,
condições quase sempre impossíveis de satisfazer. Algo que ainda segundo Goldman
também impede que a satisfação de qualquer PDD internalista seja suficiente no sentido
92
de haver justificação é o facto de qualquer PDD internalista só ser satisfeito desde que
algumas condições externalistas o sejam. Goldman acaba por concluir que a versão
internalista da justificação não é suficiente para explicar a propriedade da justificação.
Alguns dos principais defensores do internalismo vêem contudo o problema por
outro prisma. Para esses, o internalismo descreve correctamente que condições têm de
ser satisfeitas para que uma crença esteja justificada. Como exemplo dessa corrente de
pensamento, eis uma definição submetida por Conne & Feldman
Def1— ... àOài te alis o não é mais do que uma teoria geral sobre a localização
dos factores determinantes para a justificação epist i a (Conee & Feldman 2004:
80)
Numa outra definição, da autoria de Mathias Steup, aparecem elementos
descritivos e normativos, bem como duas estirpes de internalismo:
Def 2— Deàa o doà o àosàdefe so esàdoài te alis o, as coisas que fazem com que
as crenças estejam ou não justificadas—vamos chamar-lhes factores-J—têm de ser
internas do ponto de vista da mente. Como é que deve ser entendida esta
internalidade? De acordo com uma forma de responder a esta questão, os factoresj têm de possuir um estatuto epistémico privilegiado: têm de ser reconhecíveis
debaixo de reflexão. De acordo com uma resposta alternativa, apenas estados
mentais podem constituir-se como factores-J. Os externalistas negam que os
factores-Jàte ha àdeào ede e àaàesteà e uisito . (Steup 2005: 251)
A distinção conceptual sugerida por Steup parece-nos crucial para distinção entre
subtipos de internalismo. Há quem defenda que basta os factores-J pertencerem à vida
mental do agente para haver justificação, mesmo que o agente não possua um acesso
reflexivo a eles, e há quem defenda que os factores-j têm de ser reconhecíveis sob reflexão.
Podemos chamar a estas estirpes, respectivamente, mentalismo e reflexionismo. 63 Como
é óbvio, o reflexionismo implica o mentalismo, pois reconhecimento por reflexão dos
factores-j é um acontecimento da vida mental de um agente. Contudo, não é verdade que
o mentalismo implique o reflexionismo, uma vez que há plausivelmente factores-j mentais
que não exigem reconhecimento por reflexão (e.g., certos conteúdos mentais originários
da percepção).
63
Devo a designação da primeira estirpe a Conee e Feldman, como adiante se verá aquando da exposição das
estirpes de internalismo que estes filósofos identificam.
93
A literatura mostra que estas duas estirpes de internalismo não são exaustivas. Por
exemplo, Sosa considera que há duas estirpes clássicas de internalismo: a cartesiana e a
chisholmiana. Eis as definições que oferece para cada uma delas:
Def3— I te alis oà a tesia o:à aà justifi aç o apenas requer correcção de
pensamento por parte do agente: se uma pessoa acredita em algo apropriadamente
com base na correcção do seu pensamento, então essa pessoa está justificada em
acreditar no que acredita—em que a correcção do pensamento é uma questão do
foro interno da mente dessa pessoa, não dependendo do ambiente (...) Def4—
Internalismo chisholmiano: a tese de que temos acesso privilegiado ao estatuto
epistémico das nossas crenças (ou pelo menos ao seu estatuto justificacional) por via
deà eflex o (Sosa 2003: 144-145).
Esta interpretação que Sosa faz do internalismo cartesiano pode ser chamada de
correcionismo, uma vez que o que é segundo ela necessário e suficiente para justificar uma
crença é justamente que a justificação resulte da correcção de pensamento do agente,
obviamente uma característica interna do agente. A definição congrega aparentemente as
dimensões descritiva e prescritiva do internalismo, constituindo-se como um subtipo de
mentalismo.
Já a interpretação que Sosa nos apresenta da estirpe chisholmiana de internalismo
impõe exigências mais fortes. Desta feita é necessário que o agente consiga determinar,
por reflexão, o estatuto epistémico da sua própria crença, algo que pressupõe a satisfação
das condições estabelecidas pelo mentalismo, pelo reflexionismo e pelo próprio
correcionismo. Vamos chamar reflexionismo-forte a esta estirpe de internalismo para o
diferenciar do reflexionismo apresentado anteriormente na Def2.
As definições não se ficam contudo por aqui. Conee & Feldman identificam outra
estirpe na definição que se segue:
Def5— Oà ueài e osà ha a à a essi ilis o àsuste taà ueàaàjustifi aç o epistémica
da crença de uma pessoa é determinada por coisas a que a pessoa tem algum tipo
espe ífi oàdeàa essoà[ o s ie te] (Conee & Feldman 2004: 55)
Num certo sentido, a versão preferencial de internalismo desenvolvida e defendida
por C&F é o evidencialismo (vide secção 3.4.) Segundo eles, o evidencialismo determina
que as crenças justificadas de um agente resultam da evidência de que dispõe esse agente,
sendo a evidência (neste sentido) algo proeminentemente mental. Uma actualização da
ideia é-nos proposta por Feldman:
94
Def6— ... àU ài te alistaàdefe deà ueàu aàpessoaàest àjustifi adaàe àa edita à
numa proposição em função de razões e evidência, sendo que estas razões e esta
evidência são coisas internas, em sentido est ito (Feldman 2005: 275)
Salvaguardando a forte possibilidade de existirem mais estirpes de internalismo a
que não podemos fazer justiça nesta peça, passo a mencionar duas mais, para finalizar a
lista. Trata-se do perspectivismo e do responsabilismo.
Comece-se pelo perspectivismo. Numa tentativa circunscrever informativamente o
internalismo, Dancy afirma o seguinte:
Def7— áà a a te izaç oàstandard do internalismo é a ideia de que a justificação só
pode ser alcançada desde que se recorra a elementos que são internos [i.e., que
pertencem] à perspectiva doàage te (Dancy 1992: 93)
Na mesma linha de caracterização, William Alston atribui ao trabalho de Alvin
Goldman a descrição da seguinte estirpe de internalismo:
Def8— “óàoà ueàseàe o t aàde t oàdaà pe spe ti a àdoàsujeitoàpodeàdete
justificação deàu aà e ça (Alston 2001: 70)
i a àaà
Uma outra definição estruturalmente similar é avançada por Lawrence Bonjour
(segundo alguns comentadores, o fundador do perspectivismo):
Def9— áà sugest oà fu da e talà doà i te alis o (...) é a de que as questões
epistémicas surgem e têm de ser tratadas a partir da perspectiva cognitiva da
primeira pessoa de um indivíduo, apelando somente para as coisas que são
a essí eisàaàesseài di íduoàaàpa ti àdessaàpe spe ti a (Bonjour 2002: 222)
Por fim, uma breve referência ao responsabilismo. Não há uma definição
completamente explícita de responsabilismo na literatura. Todavia, como vimos acima (cf.
Secção 3.6.), certas concepções deontológicas da justificação implicam a tese de que um
agente só pode consumar os seus deveres epistémicos na medida em que consegue aceder
ao conteúdo desses deveres, compreender qual deve ser o comportamento epistémico
correcto, agindo depois em conformidade com esses deveres no sentido de justificar as
suas crenças. Na medida em que o responsabilismo postula que a crença (fortemente)
justificada é aquela crença que se ajusta à (boa) evidência disponível para o agente, e
considerando que a evidência é algo mental, então o responsabilismo é uma forma de
internalismo.
95
Sobressai do exercício de listagem de definições de internalismo agora terminado
que todas estas estirpes de internalismo são diferentes manifestações de uma mesma
corrente de pensamento, uma corrente que tem por base a ideia de que a justificação é
superveniente em relação a diversos factores da vida mental do agente: acesso consciente,
reflexão, intencionalidade, etc. Parece-nos, porém, que está longe de existir um consenso
acerca da disposição, necessidade e da eficácia desses factores. Esta seria já por si uma boa
razão para desconfiar do alcance do internalismo enquanto teoria da origem da
justificação, mas outras objecções há que cumprem talvez melhor esta tarefa de
desacreditar a teoria (supondo que há uma única teoria e que é possível desacreditá-la
convincentemente). Passo de seguida em revista algumas dessas objecções.
A parlance filosófica sobre os méritos e deméritos do internalismo costuma
identificar dois géneros de objecção. É por um lado habitual encontrarem-se objecções que
realçam os problemas e as fraquezas das chamadas condições internas. É por outro lado
habitual encontrarem-se objecções que se valem mais dos méritos da teoria rival (ou
correntes rivais de teorias), o externalismo, do que propriamente dos deméritos do
internalismo. Vão de seguida ser apresentadas amostras (julgamos que significativas) dos
dois géneros de objecção.
A primeira objecção a considerar é a conhecida objecção da ausência de
sofisticação. Esta objecção disputa a necessidade de factores-j internos para haver
justificação. O argumento (Bonjour 2002: 224) que está na base da objecção tem a seguinte
estrutura:64
1. Se ter acesso consciente e reflexivo a factores-j mentais é uma condição necessária
para haver justificação, então criaturas mentalmente pouco sofisticadas não têm
crenças justificadas;
Contudo,
2. Pelo menos algumas crenças de criaturas mentalmente pouco sofisticadas estão
justificadas;
Portanto (por modus tollens),
64
O argumento é formulado por Bonjour, mas não é por ele subscrito.
96
3. O acesso consciente e reflexivo a factores-j mentais não é uma condição
necessária para a justificação.
As estirpes visadas são claramente o acessibilismo e os dois reflexionismos. Notese que o peso da demonstração cai principalmente sobre 2, parecendo que a sua verdade
depende da verdade da conclusão, o que é aliás o que o detractor do argumento
certamente dirá, ou seja, que a premissa incorre numa petitio principi. Já o proponente do
argumento dirá que a premissa é plausível, dando como exemplo casos de crianças ou
animais superiores que têm crenças justificadas. Parece estabelecer-se neste ponto um
impasse que não é aparentemente ultrapassável apenas por inspecção filosófica. Perceber
se 2 é ou não verdadeira é algo que talvez só possa ser decidido usando dados empíricos
resultantes de experiências controladas, algo que de certa forma exigiria que se préesta ele esseàu àdete
i adoàse tidoàpa aà justifi aç o .àà
Alvin Goldman (2001) coloca duas objecções de outro tipo ao mentalismo. 65 As
objecções questionam a pretensão internalista de que o acesso reflexivo ou introspectivo
a factores-j mentais seja suficiente para haver justificação. Goldman recusa esta suficiência
principalmente com base em dois argumentos. Trata-se do argumento das crenças
armazenadas (ou das crenças não-ocorrentes), por um lado, e o argumento da evidência
esquecida, por outro.
Goldman (Ibidem: 212) pensa que o problema das crenças armazenadas é um
problema para o que designa por internalismo forte. Segundo ele, o internalismo forte
pressupõe que só os factores-j acedidos por um agente num dado momento t podem
contribuir para justificar uma crença que S tenha em t. Mas Goldman pede-nos para
considerarmos, por exemplo, a crença armazenada e não-ocorrente que S tem em t sobre
o número do seu bilhete de identidade. Embora armazenada em t e embora os factores-j
que a justificam não sejam acedidos por S em t, essa crença está justificada em t. Para
Goldman isto é sugestivo de que a justificação da crença de S em t não depende do que
pertence à vida mental de S em t.
Diz Goldman que o internalista pode tentar minorar os danos sugerindo que não é
necessário o agente ter acesso em t aos factores-j que poderiam justificar a sua crença que
65
Goldman (2001). Existem outras objecções do mesmo género colocadas por Goldman e outros filósofos.
97
p para ter essa crença justificada em t. Grosso modo, bastaria que tivesse tido acesso aos
factores-j ou que de alguma maneira eles estejam preservados na mente do agente.
Goldman designa esta variante por internalismo fraco. No entanto, ainda segundo ele,
também esta hipótese sofre de graves problemas. Imagine-se o caso de alguém que
formou em t, com base em boa evidência, a crença de que o primeiro Rei de Portugal se
chamava Afonso Henriques. Entretanto, num momento t1 posterior a t, essa pessoa acabou
por esquecer toda a evidência que poderia justificar essa sua crença. Não parece haver
portanto nestas circunstâncias qualquer factor na mente de S que possa servir de
justificante para a sua crença em t1.
Porém, em desfavor da posição de Goldman, importa salientar que também não
parece ser legítimo atribuir a essa crença o estatuto de injustificada. Há uma forte intuição
por detrás da ideia de que essa crença está justificada pela evidência que S teve em
tempos. Se tal for correcto, fica em aberto a possibilidade de a crença estar justificada sem
que haja acesso imediato a qualquer factor-j.
C&F (2004: 61) respondem a estas objecções de Goldman. No que respeita ao
problema das crenças armazenadas, sugerem duas hipóteses: ou apenas podem estar
justificadas crenças no modo ocorrente, ou estas crenças podem ser justificadas por
material mental não-ocorrente.
A réplica de C&F ao problema da evidência esquecida introduz duas propriedades
cuja identificação não é de todo fácil. Por um lado, é sugerido que uma impressão vívida
do que justificava (a evidência) uma crença num determinado momento pré-esquecimento
pode justificar essa crença num determinado momento pós-esquecimento. Por outro lado,
é sugerido que um sentimento de confiança de que a crença esteve em tempos justificada
pode, num momento em que a evidência foi esquecida, contribuir para essa crença ter ou
manter o estatuto de crença justificada.
C&F sugerem também (2004: 69) que nem toda a evidência que pode servir para
justificar uma crença tem de estar presente à consciência. Sugerem pois que alguma da
evidência necessária para justificar uma crença para a qual a evidência original foi
esquecida poderia ser uma espécie de evidência indirecta. Por exemplo, o agente que
esqueceu a evidência que sustenta a sua crença que D. Afonso Henriques foi o primeiro Rei
98
de Portugal poderia ter como evidência indirecta saber que D. João I não foi o primeiro Rei
de Portugal.
Sem nos comprometermos com um lado nesta contenda, parece-nos que os
argumentos de C&F não colhem com a lisura pretendida pelos seus proponentes. Com
efeito, no que concerne ao problema das crenças armazenadas, a ideia de que só crenças
ocorrentes estão justificadas parece-nos descabida. Se assim fosse, teríamos de admitir
que todas as nossas crenças não-ocorrentes estariam injustificadas, o que se afigura
absurdo. Por outro lado, não é transparente o mecanismo pelo qual material mental nãoocorrente pode justificar crenças armazenadas. Mesmo que houvesse tal mecanismo ou
processo (e não estamos a sugerir que não possa haver), teria de ser explicado em que
medida o processo de justificação continuaria a ser interno, no sentido pretendido pelo
internalista, não havendo apenas a concorrência de coisas como o acesso aos justificantes,
a reflexão, etc.
A posição de C&F em relação ao problema da evidência esquecida também corre o
is oàdeà olapsa àseàpe sa
osà ueàosàte
osà i p ess o àeà se ti e to às oàde asiadoà
vagos para poderem ser suficientemente esclarecedores. O que é ter-se uma impressão ou
um sentimento de que já se teve evidência para acreditar que p? Mais, que grau de
intensidade têm de ter essas impressões e sentimentos para poderem justificar
epistemicamente as crenças de um agente? Sem serem talvez decisivos, estes problemas
fazem-nos pensar que algo está menos bem com as respostas de C&F.
Passamos agora a uma objecção realça os deméritos do internalismo ao
alegadamente mostrar que o internalismo pressupõe condições externas. No essencial, a
objecção põe em causa o argumento que sustenta o responsabilismo. Segundo John Greco,
o autor da objecção, esse argumento tem a seguinte estrutura:
.àU aà e çaàdeà“à ueàp só está epistemicamente justificada se foi formada de um
modo epistemicamente responsável.
2. A responsabilidade epistémica é inteiramente uma questão de factores que são
internos à perspectiva de S.
Portanto,
99
3. A justificação epistémica é inteiramente uma questão de factores que são internos
àpe spe ti aàdeà“.à po à àeà . (Greco 2005: 260)
Greco alega que 2 é falsa. Segundo afirma, um comportamento epistémico
responsável exige mais do que apenas a satisfação de requisitos internos (no sentido até
agora descrito), o que abona a favor da hipótese de que esta estripe de internalismo
assenta em condições externas, sendo por isso auto-refutante. Para mostrar o ponto,
Greco procede por exemplos. Eis o primeiro.
Exe ploà .àáàMa iaàa editaà ueàoàDea àMa ti à àitalia o.àElaàa editaà istoàpo ueà
parece lembrar-se que isso é o caso e não tem actualmente razões para duvidar da
sua crença. Mas suponha-se agora que Maria formou essa crença de forma leviana
e irresponsável. Ela formou a crença há muitos anos com base no testemunho da sua
mãe, alguém que acredita que todos os bons actores são italianos. Maria sabia nessa
altura que a sua mãe não era fiável nestas matérias, percebendo também que não
e aà a io alàa eita àoàteste u hoàdaà e . (Ibidem)
Greco extrai deste exemplo que a história e, mais em geral, a etiologia de uma
crença são factores importantes para a formação responsável de crenças. Ora, como estes
dois factores não são internos, nada tendo a ver com a vida mental dos agentes, sendo por
isso externos, segue-se que a premissa 2 do argumento responsabilista, uma premissa que
atribui o ónus da formação responsável de crenças exclusivamente a factores internos, tem
de ser falsa.66 Por consequência, pensa Greco, Esta forma de internalismo tem de ser falsa.
Ainda segundo Greco, isto arrasta consequências menos boas para a tese
internalista segundo a qual dois agentes que sejam internamente iguais—do ponto de vista
das razões e da evidência de que dispõem—também serão iguais do ponto de vista da
justificação.67 Tome-se o caso da Maria e da Maria*. Ambas acreditam que Barack Obama
é norte-americano. Se ambas são internamente iguais em t—novamente do ponto de vista
das razões e da evidência de que dispõem—, e se a etiologia da crença da Maria mostra
que esta não está a ser epistemicamente responsável em ter essa crença, enquanto a
etiologia da crença da Maria* mostra que esta está a ser responsável em ter essa crença,
66
O exemplo aqui apresentado tenta ser uma compilação dos três exemplos apresentados por Greco no seu texto.
O argumento aparece também na p. 266 numa formulação mais sofisticada com a qual se sugere que nenhuma avaliação
relevante dos justificantes de uma crença pode dispensar aspectos externalistas. Mas como para discutir o ponto principal
da objecção de Greco não é necessário desenvolver a exposição do tópico, não farei esta discussão.
67
Esta tese é um aprimoramento da tese da superveniência de C&F cuja formulação foi dada na secção 3.4.3.
100
então não são iguais do ponto de vista da justificação, i ndependentemente de serem
internamente iguais.68 Claro que o defensor da tese da superveniência apela para a ideia
de que as duas Marias não estão iguais do ponto de vista interno, pois, alegam, a evidência
que possuem é diferente. Dirão que a Maria* tem boa evidência, assente numa boa
etiologia da crença, enquanto a Maria tem má evidência, assente numa má etiologia da
crença. Mas a verdade é que a evidência é a mesma nos dois casos, apenas a forma como
foi recolhida é que é diferente. Isto milita contra a réplica do internalista.
Juan Comênsana adopta uma linha de argumentação similar contra o mentalismo
de C&F. Comênsana começa por identificar o que, segundo ele, apregoa o mentalismo:
Mentalismo—Todos os factos que contribuem para a justificação de uma atitude
doxástica de um sujeito S para com uma proposição p são estados mentais de S à
(Comesaña 2005: 59)
Assim definido, o mentalismo é uma forma ambiciosa de internalismo. Comesaña
opta por situar a fasquia do internalismo no nível mais al to. Um claro indício dessa opção
é o uso da quantificação universal na definição. Se todos os factos que podem contribuir
para a justificação ou para a suportar são internos, então a justificação é apenas do foro
interno do agente.
Ao colocar a fasquia neste nível quase olímpico, Comesaña prossegue a sua
refutação do mentalismo com o seguinte argumento:
1. Se o mentalismo é verdadeiro, então todos os factos de suporte são mentais;
2. Nem todos os factos de suporte são mentais.
Portanto,
3. O mentalismo não é verdadeiro. (Ibidem)
Estes factos de suporte são para Comensaña factos que podem contribuir para o
estatuto de justificação de uma crença (factores-j, por exemplo).69 Segundo ele, certas
68
O exemplo é meu, não de Greco.
69
O tipo de justificação a que Comesaña se refere é justificação prima facie: justificação para a crença c de S na
proposição p no momento t que pode vir a ser anulada no momento t*, posterior a t, pelo aparecimento em t* de dados que
permitam essa anulação. Comensaña (2005: 73, nota 5).
101
relações de dependência que existem entre uma crença e a evidência que serve para a
justificar constituem-se como factos extra-mentais que contribuem para a justificação
dessa crença. Para Comesaña isto mostra que a premissa 2 do seu argumento é verdadeira
e que, portanto, a conclusão de que o mentalismo é falso é verdadeira.
Enquanto defensor do internalismo, Feldman tenta contor nar este tipo de
objecção. Usa duas estratégias para o fazer. A primeira passa por distinguir entre diferentes
se tidosà oàte
oà justifi aç o .àáàsegu daàpassaàpo à aixa àaàfas uiaàdoài te alis o.à
Feldman (2005: 274) distingue entre os sentidos internalista e externalista de
justifi aç o .à Noà P i ei oà sentido, o internalista, a justificação é essencialmente uma
questão de o agente aceder a razões e ter suficiente evidência para acreditar. No segundo
sentido, o do externalista, condições externas (e condições internas) têm de ser satisfeitas
para que haja justificação. Segundo ele, os dois sentid os pertencem a esferas diferentes,
sendo possível compreender os dois à luz de diferentes exigências. Para o defensor do
sentido internalista, é crucial o agente ter boas razões e evidência para ter crenças
justificadas. Mas como por vezes ter justificação com base em boas razões e evidência não
basta para alguém ter conhecimento—o que é sobejamente revelado pelos contraexemplos tipo Gettier—, o defensor do sentido externalista supõe que certas condições
externas têm de ser satisfeitas para que a justificação seja conducente ao conhecimento.
Feldman sugere que o defensor do sentido internalista pode aceitar esta exigência
externalista e ainda assim manter a sua pretensão de que a justificação é no essencial uma
questão do foro interno do agente. Desta perspectiva, a justificação depende crucialmente
de factores internos, enquanto o conhecimento depende de haver justificação concebida
internalisticamente e da satisfação de certas condições externas (Ibidem: 276).
Independentemente do sucesso ou insucesso das respostas de Feldman às
objecções que são movidas ao internalismo, parece-me claro que este tem uma
desvantagem crucial relativamente ao seu rival externalismo. O internalismo tem
evidentes dificuldades em lidar com a questão de como é que a justificação pode ser
suficiente ao ponto de gerar conhecimento. Se, como o próprio Feldman (Ibidem)
reconhece, o que é interno (e.g., possuir boas razões, ter evidência, etc.) pode não ser
102
suficiente para um agente ter conhecimento70, torna-se então notório que o internalismo
fica numa espécie de desvantagem explicativa perante teorias externalistas da justificação
que têm poder explicativo acerca desse aspecto crucial. Não é pois inocente a separação
que Feldman faz dos dois sentidos de justificação. É q ue essa distinção minora essa
desvantagem. Infelizmente para o internalista, o externalista parece dispor de melhores
instrumentos conceptuais para lidar com o problema de como é que a justificação pode
ser conducente ao conhecimento. Repare-se que o externalista não nega que o que é
interno desempenha um papel epistémico importante, mas nega que a justificação do
calibre necessário para que haja conhecimento dependa fundamentalmente desses
aspectos internos, dispondo depois de melhores e mais completas explicações (de carácter
externalista) de como é que esses factores internos podem, em conjunção com factores
externos, fazer com que a justificação leve ao conhecimento. Ao ter de conceder esta
virtude teórica ao externalismo, o defensor do internalismo terá de reconhecer que a sua
teoria fica debilitada e em desvantagem face à sua rival.
4. Não-justificacionismo
4.1. Resumo
Prestamos agora atenção a um conjunto de teorias que não recorre à noção de
justificação para preencher o espaço da terceira (ou quarta) condição necessária numa
definição/análise do conhecimento. Este conjunto pode talvez ser subdividido no
subconjunto das teorias modais do conhecimento, por um lado, e no subconjunto das
teorias naturalistas do conhecimento, por outro. 71 Descrevemos de seguida aqueles que
são porventura os mais discutidos espécimes de cada família. No final da secção fazemos
um balanço do que foi discutido, finalizando com a ideia de que dificilmente esses
representantes ou as famílias de teorias que representam conseguem por si só solucionar
o problema que nos ocupa nesta primeira parte, e que é, relembramos, que condição ou
70
Partilhado com Steup (2001).
71
Estes dois subconjuntos podem não ser exaustivos.
103
condições devem ocupar o lugar da terceira (ou quarta) condição numa definição
suficientemente explicativa do fenómeno do conhecimento proposicional.
4.2. Teorias modais do conhecimento
4.2.1. A Teoria das Razões Conclusivas
A estratégia de trocar a condições de justificação por condições que envolvem
modalidade cumpre plausivelmente dois propósitos. O p rimeiro passa por evitar ou
superar as habituais restrições do internalismo epistémico e do psicologismo cognitivo. O
segundo passa por propor uma teoria que consiga dar conta do vínculo necessariamente
não-acidental entre a crença de um agente numa proposição p e a verdade dessa mesma
proposição.
Fred Dretske (2000: 3 e 17) apresenta uma definição de conhecimento que se
enquadra nesta moldura. A definição estabelece, em primeiro lugar, que S só sabe que p
se tiver razões conclusivas, R, para p.72 Na acepção considerada por Dretske, se R é uma
razão conclusiva para p, então não seria o caso que R se não fosse o caso que p. Dito de
outro modo, R é uma razão conclusiva para p se, e somente se, não é possível que R e nãop.
R ↔à¬à◊ R ^ ¬p)
(Ibidem: 13)
Isso porém não chega para S saber que p, uma vez que pode não haver uma crença
que p por parte de S, mesmo tendo S razões conclusivas para p. Para saber que p, S terá de
acreditar que p com base nessas razões conclusivas. Tendo isto em mente, Dretske
diferencia razões conclusivas lógicas de razões conclusivas empíricas. A componente lógica
é dada pela fórmula acima indicada, enquanto a componente empírica é dada pela
seguinte definição:
72
O texto é originalmente de 1971. Segundo Dretske, o termo “razões” não remete necessariamente nesta acepção
para algo que resulta de um processo de inferência. Razões são fundamentos e nada há no texto supracitado que aponte
para a ideia de que só proposições podem ser razões conclusivas (Cf. p. 20).
104
i)
R é uma razão conclusiva (lógica) para p;
ii)
S acredita que p com base em R;
iii)
S sabe que R é o caso ou R é um estado experiencial de S. (Ibidem)
Note-seà ueà “à sa eà ue... à o o eà e à iii, mas Dretske nota que apesar disso a
definição não é circular, pois é possível usar i, ii e iii para, recursivamente, eliminar a
o o
iaà deà “à sa eà ue... à daà defi iç o. 73 Dretske não especifica contudo de que
a ei aà aà apli aç oà e u si aà dasà t sà o diçõesà pe
iteà hega à aà R é um estado
expe ie ialàdeà“ àdes a ta doà “àsa eà ueàR àoà aso .
Um problema que afecta a generalidade das concepções do conhecimento que
propõem condições modais ou contrafactuais prende-se com a exigência, aparentemente
não satisfeita por essas concepções, de que o sucesso cognitivo de um agente num caso
particular de crença não se fique a dever apenas à sensibilidade (definida modalmente)
dessa crença à verdade da proposição acreditada. A análise de Dreske não parece constituir
excepção. Suponha-se que S forma invariavelmente uma crença verdadeira acerca da
temperatura que está numa determinada sala com base na indicação fornecida por um
termómetro que se encontra nessa mesma sala. Não há qualquer hipótese de S ter crenças
falsas acerca da temperatura da sala. Apesar de avariado, o termómetro indica invariável
e correctamente a temperatura ambiente, isto graças à intervenção de alguém que, tendo
acesso a um termómetro em perfeitas condições de funcionamento, mas escondido de S,
faz com que essa indicação coincida com a temperatura da sala. Olhando para a descrição,
fica a ideia de que a análise de Dretske é satisfeita nestas circunstâncias. S tem razões
conclusivas para acreditar que está uma determinada temperatura na sala—pois se não
fosse o caso de estar essa temperatura na sala, S não teria essas razões—e S acredita,
porque R é um estado experiencial de S, que está essa temperatura na sala. Todas as
condições são portanto satisfeitas. Mas será que é possível atribuir a S conhecimento
acerca da temperatura que está na sala? Não. Seria estranho atribuir conhecimento a S
nestas circunstâncias. A atribuição de conhecimento não é correcta porque o vínculo entre
a crença de S de que está uma determinada temperatura na sala e o facto de estar essa
73
Dretske diz o seguinte: Habilitamo-nos a ter conhecimento quando temos razões conclusivas para acreditar; mas
não precisamos adicionalmente de saber que temos razões conclusivas” Dretske (2000: 23).
105
temperatura na sala é meramente acidental (embora o vínculo seja causal), não podendo
por isso ser creditado ao trabalho epistémico de S, o que impede que S tenha
conhecimento.
Pode ser objetado que pelo menos uma parte do sucesso cognitivo de S (ao acertar
na verdade) se deve ao seu trabalho epistémico. Seja. Mas isto não invalida que o acerto
na verdade seja creditável ao agente. Se se desse o caso de a pessoa que altera as
indicações do termómetro avariado não alterar essas indicações, as crenças de S seriam
falsas e S não teria portanto razões conclusivas para acreditar na temperatura indicada
pelo termómetro. Mas S continuaria a ter as mesmas crenças nessas circunstâncias, pois
desconhece que o termómetro está avariado. O que isto revela é que o mérito cognitivo
das crenças verdadeiras formadas por S acerca da temperatura da sala quando a indicação
dada pelo termómetro avariado é manipulada pela pessoa que tem o termómetro a
funcionar correctamente não é atribuível ao labor cognitivo de S mas sim as circunstâncias
ambientais estranhas a esse labor.74
4.2.2. A Teoria Condicional do Conhecimento
Robert Nozick sugere uma análise do conceito de conhecimento que partilha a ideia
de sensibilidade com a definição sugerida por Dretske. Como vimos, para Dretske são as
razões que suportam a crença que têm de ser sensíveis à verdade. Se fosse falso que p,
então S não possuiria razões conclusivas para p. Dito de outro modo, as razões para p (ou
para acreditar que p) só são conclusivas no mundo actual se rastreiam a verdade em todos
os mundos nomologicamente possíveis.75 Já para Nozick é a própria crença que tem de ser
sensível à verdade ao longo de todos os mundos nomologicamente possíveis. Portanto, é
a crença que p tem de rastrear a verdade de p. Assim, para Nozick, S sabe que p se, e só se,
as seguintes condições são satisfeitas (Nozick 1999: 156-179):76
74
A objecção, da autoria de Duncan Pritchard, vai ser desenvolvida na secção 5.2.
75
A restrição é imposta pelo próprio. Cf. Dretske (2000: 16).
76
Originalmente 1981, 172-179. Usarei a paginação de 1999.
106
i)
p;
ii)
S acredita que p;
iii)
Se não fosse verdade que p, S não acreditaria que p;
iv)
Se fosse verdade p, então S acreditaria que p.77/78
Esta análise parece dar conta de alguns casos Gettier. Parece resolver, por exemplo,
o caso Sheep (ver. 1.10.) A crença de S de que está uma ovelha na encosta, apesar de
verdadeira, não é conhecimento, pois S continuaria a acreditar que está uma ovelha na
encosta (porque confunde o cão com por uma ovelha) mesmo se não fosse o caso de estar
uma ovelha na encosta. Não há conhecimento neste caso porque, segundo a definição, a
condição (iii) não é satisfeita.
Mas outros casos há que revelam as fragilidades da análise. Por exemplo, Sosa
imagina um caso em que alguém que reside num andar localizado no topo de um prédio
introduz um saco de lixo no canal usado para enviar o li xo para o depósito do lixo localizado
no andar térreo do referido prédio.79 Sosa sugere que, em circunstâncias normais, o saco
desce até ao depósito e que a crença da pessoa (a ter formado essa crença) de que o saco
chegou ao depósito é não apenas verdadeira como está de alguma forma garantida pelo
facto de o saco ter alcançado o depósito em múltiplas ocasiões passadas (garantida com
base numa indução, portanto). O ponto de Sosa é que este é um caso de conhecimento,
mas não um caso em que iii seja satisfeita, uma vez que quem enviou o saco continuaria a
acreditar que este teria alcançado o depósito mesmo no caso de ele não alcançar o
depósito, isto por, digamos, existir alguma deficiência momentânea do canal, intervenção
esporádica para manutenção do canal, etc. O ponto de Sosa é portanto que concepção de
Nozick exclui casos de conhecimento como este e não pode por isso estar completamente
correcta.
77
Klein (2009) remete uma extensiva discussão da análise de Nozick para Luper-foy (1987). Essa discussão não
pode ser desenvolvida neste trabalho. Iremos pois centrar a nossa atenção naquelas que nos parecem ser as principais
consequências dessa análise.
78
Nozick (1999: 152, nota 13) alega que a condição (iv) não torna as condições (i) e (ii) redundantes, nem
conversamente. O ponto é que a condicional contrafactual em (iv) indica algo mais forte do que S acredita com verdade
que p, pois indica que (i) e (ii) obtêm nos mundos possíveis mais próximos do mundo actual.
79
Sosa (1999).
107
A Teoria Condicional do Conhecimento 80 parece realmente criar problemas tão ou
ainda mais graves do que aqueles que aparentemente soluciona. Nozick é o primeiro
indicar aquele que parece ser o maior problema da sua análise, um problema que,
independentemente dos seus esforços, parece estar ainda por resolver de forma
satisfatória.
Suponha-se que S é um cérebro numa cuba (CNC). 81 Suponha-se também que
dispõe da mesma informação, em quantidade e qualidade, da que disporia caso não fosse
um CNC, quer dizer, se S estivesse na nossa (aparentemente normal) condição de seres
humanos (que não são cérebros em cubas). Uma vez que S não consegue distinguir o
cenário em que é um CNC do cenário em que não o é, se S fosse um CNC, não acreditaria
que o era. A condição iii não é satisfeita nestas circunstâncias, pois se não fosse verdade
que S não é um CNC, S acreditaria que não é um CNC. Se a análise de Nozick estiver
correcta, S não pode saber que não é um CNC, pois duas condições necessárias para o
conhecimento não são, nem podem ser, satisfeitas. 82
O céptico pode valer-se deste resultado aparentemente indesejável e concluir que,
se S não pode saber que não é um CNC, então também não pode saber muitas das coisas
comuns que dá geralmente por garantidas, como por exemplo que conduz um automóvel,
que come um biscoito ou que escreve num computador. Nozick morde a isca e o anzol
quando confrontado com este argumento céptico. Ele prefere salvaguardar a sua
análise/definição, hipotecando no entanto no processo a possibilidade de haver muito do
conhecimento comum que habitualmente damos por certo. No entanto, como Nozick não
é um céptico e deseja salvaguardar a possibilidade de conhecimento em geral, avança uma
solução que lhe permite alegadamente rejeitar o argumento do céptico e preservar a sua
80
Por vezes também chamada Truth-Tracking Theory.
81
Esta hipótese céptica é extensivamente discutida na literatura contemporânea. Um marco dessa discussão aparece
em Putnam (1981), reimpresso em De Rose & Warfield (1999: 27-42). Muito ao de leve, e segundo uma certa interpretação,
Putnam rejeita o argumento céptico com base na ideia de que se o céptico estiver correcto na sua pretensão de que somos
cérebros em tanques a quem são fornecidas todo do tipo de ilusões acerca daquilo que é dado normalmente por garantido
(e.g., que há relva e que é verde), então dificilmente as expressões no argumento do céptico podem referir o que quer que
seja, caso em que a falha de referência nos autoriza a ignorar o próprio argumento (e infelizmente tudo o resto).
82
Nozick (1999: 167) reconhece explicitamente este resultado.
108
análise/definição. Esta solução é porém onerosa do pont o de vista teórico, uma vez que
gera outros problemas tão ou mais graves do que aqueles que soluciona.
A solução de Nozick passa por rejeitar uma premissa fundamental do argumento
céptico, uma premissa sem a qual o argumento não pode ser posto de pé. Essa premissa é
o Princípio do Fecho para o Conhecimento e a subsequente ideia de que o conhecimento
é fechado sob implicação. Segundo este princípio, se S sabe que p, e se S sabe que p implica
que q, então S sabe que q.83 Por exemplo, se S sabe que está no lugar X, e se S sabe que
estar no lugar X implica que não seja um CNC, então S sabe que não é um CNC. Todavia,
segundo Nozick et al, o céptico usa o princípio no sentido contrário: se S não pode saber
que não é um CNC, então S também não pode saber que está no lugar X, isto porque S não
saber que não é um CNC tem como consequência que não possa saber que está no lugar X
(pois pode ser um CNC e estar iludido acerca da sua localização espácio-temporal). Nozick
(1999: 170) rejeita porém o referido princípio com base na ideia de que a transição por ele
enunciada falha. Supondo que S sabe que está no lugar X, e supondo também que S sabe
que estar no lugar X implica não ser um CNC, parece seguir-se com naturalidade que S sabe
que não é um CNC. Mas Nozick não concorda com este diagnóstico, pois crê que S não tem
forma de saber que não é um CNC, uma vez que se S fosse um CNC continuaria a acreditar
que não o era. Estas e outras considerações levam Nozick a pensar que o Princípio do Fecho
falha. Apesar de S saber que está no lugar X, e apesar de saber que estar no lugar X implica
não ser um CNC, S não pode saber que não é um CNC—pois, uma vez mais, se fosse um
CNC, não acreditaria que o era.
Esta rejeição do princípio do fecho, uma rejeição que visa salvaguardar a condição
iii, parece originar um novo argumento céptico. Com efeito, o céptico pode alegar que o
bloqueio do princípio parece ter como consequência que não se possa aumentar o
conhecimento comum por via de inferências. O bloqueio do princípio parec e por exemplo
83
Este princípio não deve ser confundido com o Princípio do Fecho para a Justificação mencionado acima (secção
1.9.) aquando da descrição dos contra-exemplos de Gettier.
Assume-se regra geral na literatura que a implicação céptica , se assim se lhe pode chamar, se fica a dever ao facto
de a situação de alguém que é um CNC ser opaca do ponto de vista epistémico para essa pessoa, justamente por força dessa
pessoa se encontrar nessas circunstâncias. O termo “implica” tem pois de ser interpretado aqui com um grão de sal e não
como se referisse uma implicação lógica estrita. Aliás, o próprio Nozick não usa uma condicional material para a relação
de implicação “S sabe que p implica que q”.
109
bloquear a possibilidade de se transitar do conhecimento de que há zebras na jaula no Zoo
de Lisboa para o conhecimento de que os animais na jaula das zebras no Zoo de Lisboa não
são mulas pintadas (como zebras, para parecerem zebras). A questão que o céptico pode
levantar é esta: por que motivo haveria o princípio do fecho de autorizar esta transição
entre conhecimento comum (e.g., se sei que os animais são zebras, então sei que não são
mulas pintadas) e não autorizar a transição entre conhecimento comum e conhecimento
extraordinário (e.g., sei que estou no Zoo de Lisboa, sei que não sou um CN C). A verdade é
que parece ser suficiente haver pelo menos um caso em que o princípio falha para se
duvidar da sua aplicabilidade em todos os casos. Parece portanto que a concepção de
Nozick salva a possibilidade de haver conhecimento ao hipotecar a possibilidade de ampliar
inferencialmente o conhecimento, o que é um resultado indesejável. 84
Dretske (2005: 13-26) rejeita este diagnóstico. Opõe-lhe a ideia de que a rejeição
do princípio pode salvar muito do conhecimento comum. O ponto é que o cepticismo pode
ser confinado se o âmbito do princípio for limitado. Crucialmente, Dretske pensa que o
princípio é, se assim se pode dizer, epistemicamente inválido. Por exemplo, S pode saber
que há biscoitos na caixa de biscoitos (porque vê esses biscoitos na caixa) e saber que haver
biscoitos na caixa implica que haja um mundo físico/mate rial (onde esses biscoitos têm de
estar), mas ainda assim não saber que existe um mundo físico/material. Apesar de esta nos
parecer uma pretensão estranha, ela acaba por fazer algum sentido se, como Dretske
parece defender, a aplicação do princípio não serve per se para demonstrar a existência do
mundo físico/material, uma vez que a aplicação do princípio não é suficiente para remover
84
Segundo De Rose, a satisfação da definição de Nozick pode dar azo ao aparecimento das chamadas conjunções
abomináveis. Uma conjunção abominável é uma conjunção do tipo “Eu sei que tenho mãos mas não sei que não sou um
cérebro numa cuba”. Cf. De Rose (1995: 200). As conjunções abomináveis recolocam a discussão no centro do velho
problema mooreano. O contextualismo de De Rose e de outros visa suplantar o problema levantado por estas conjunções,
por um lado, e o argumento céptico, por outro. Claro que o contextualismo é também alvo de muitas objecções, não
reunindo o agrado e o acolhimento de muitos filósofos. Uma discussão do contextualismo de De Rose (Cf. 1999b para uma
defesa e 2000 para uma comparação com o invariantismo e mais defesa), sai no entanto fora do âmbito deste trabalho, pois
a sua relação com tema central é suficientemente indirecta para justificar essa saída. Versões clássicas e moderadas de
contextualismo podem ser encontradas em Stine 1999: 145-155 (uma das primeiras respostas ao problema de se saber o
que pode contar como alternativa relevante à verdade de uma proposição e de uma crença com aspirações a ser
conhecimento); e em Lewis (1999: 220-239)—(uma tentativa de evitar o cepticismo ao circunscrever as condições que
podem ditar a relevância ou irrelevância de uma alternativa).
110
da equação alternativas relevantes à possibilidade da existência de um mundo
físico/material. Remover, por exemplo, a alternativa de que um génio tenha criado na
mente de S a ilusão de um mundo físico/material no qu al se encontra e, entre muitas
outras coisas, uma caixa (ilusória) com biscoitos (ilusó rios). Tal como Nozick, Dretske
reclama que a aplicação indiscriminada do princípio trabalha a favor do céptico: caso se
conceda que o princípio é indiscriminadamente aplicável, então, uma vez que certas
alternativas cépticas não podem ser falsificadas—uma vez que não há aparentemente uma
forma eficaz de as falsificar definitivamente—, parece seguir-se que não é possível garantir
que há conhecimento comum. A solução é, sugere ainda Dreskte (Ibidem: 23),
circunscrever o âmbito do princípio apenas às transições entre excertos de conhecimento
comum, rejeitando porém as transições entre o conhecimento comum e as consequências
extrordinárias (e.g., existe um mundo físico/material) do conhecimento comum. Se assim
for, as possibilidades de haver conhecimento comum e de aumentar o conhecimento
comum serão preservadas.
Embora prima facie atractivas, as soluções de Nozick e Dretske parecem gerar
outros problemas. John Hawthorne identifica um que irei aqui expor a título de exemplo
com o intuito de mostrar que as análises/definições que sobrevivem à custa da rejeição ou
restrição do Princípio do Fecho matam o paciente (o conhecimento) com a terapêutica que
propõem para o salvar (a rejeição do princípio em certos casos). Basicamente, Hawthorne
acusa a solução de Dretske de violar o muito intuitivo princípio da distibuição:
Dist i uiç o:à“eà o he e osàu aà o ju ç oà p e q, então desde que consigamos
deduzir p de p e q ficamos em condições de saber que p (Hawthorne 2005:31)
Por exemplo, se sabemos que a relva é verde e que a neve é branca, podemos
deduzir que a relva é verde, ficando a saber que a relva é verde. A solução de Dretske não
viola o princípio neste caso, pois nada de extraordinário é sabido, mas fica com ónus de
explicar por que razão o princípio é aplicável neste caso e não quando há transições entre
o conhecimento comum e o conhecimento extraordinário. O que torna o princípio aplicável
num caso e não no outro?
4.2.3. A Teoria da Segurança Epistémica
111
A condição de segurança epistémica é por vezes apresentada como uma alternativa
às condições de sensibilidade epistémica, sendo também vista como uma resposta ao
cepticismo radical (Pritchard 2007: 277-297). Havendo várias versões da condição
disponíveis, vou centrar-me por ora naquela que é porventura a mais discutida, da autoria
de Sosa.
A motivação de Sosa (1999:143) para apresentar a condição de segurança, em
formato modal, é a de resolver a velha problemática mooreana.85 Viu-se acima como a
condição iii não era satisfeita no caso de S ser um CNC. Se não fosse verdade que S não é
um CNC (quer dizer, se o fosse), S acreditaria ainda assim que não é um CNC, e, portanto,
segundo Nozick, não sendo satisfeita a condição iii, S não poderia saber que não é um CNC.
S não acreditaria que é um CNC por não conseguir distinguir, por percepção ou inferência,
a má situação, de engano massivo ou de ilusão massiva, da boa situação, o caso em que
não há ilusão ou engano (Cf. Williamson 2000: 164-183).
Eis a formulação do problema sugerida por Sosa (1999).à“e doà ueàH= “ouàu àCNCà
sem mãos massivamente enganado por uma ilusão elaborada à eà O= Te hoà ago aà duasà
os ,àoàa gu e toà pti oàdaàig o
ia (AI) pode ser estabelecido do seguinte modo:
1)
Não sei que não-H (não é possível saber-se que não-H);
2)
Se 1, então (via Princípio do Fecho para o Conhecimento) não posso saber
que O.
C:
Não sei que O.86
Sosa identifica então três posições-chave a respeito do AI:
85
O texto clássico que dá a origem ao famoso problema encontra-se em Moore (1939: 273-300).
86
A mesma formulação surge em diversos lugares, por exemplo, em De Rose (1999: 3).
112
a)
A céptica: 1, 2, C
b)
A de Nozick e de outros (Dretske incluído, certamente): 1, ~2, ~C
c)
A de Moore: 2, ~C, ~1. (Sosa 1999: 144)87
Acaba por rejeitar a e b, propondo-se defender c. A sua defesa assenta na
introdução da chamada Condição de Segurança Epistémica (CSE):
CSE— Cha e-se a uma crença de S que p segu a àseàeàsóàseà“àa editasseà ueàp se
p fosse o caso (ou em alternativa, a crença de S que p à segu a àseàeàsóàseà“à oà
acreditasse que p sem que p fosse o caso; ou melhor ainda, embora talvez não sendo
uma questão de necessidade estrita, S não teria facilmente acreditado que p se não
fosse o caso que p . (Sosa 1999: 142)
A CSE é para Sosa não apenas diferente da condição iii de Nozick, como também
lida com o AI de forma mais eficaz que esta última. Resumidamente, o que Sosa reclama é
que se a crença C de S que O é segura no sentido descrito pela CSE, então O no caso de C—
ou, pelo menos, O nos mundos possíveis mais próximos do actual se C no m undo actual.
Aplicando ao Problema de Moore, obtém-se o seguinte resultado: se a crença de S
de que tem mãos é segura, então se S tem essa a crença no mundo actual, S tem mãos no
mundo actual e nos mundos possíveis mais próximos do m undo actual. Sosa defende que
esta condição de segurança pode ajudar a garantir, primeiro, a premissa fulcral de Moore
segundo a qual temos mãos e, segundo, servir de base, via dedução (pela aplicação do
princípio do fecho) para rejeitar a premissa 1 do AI—o que era proibido pela condição iii
de Nozick.
A CSE não é contudo isenta de críticas. Uma das principais (a qual visitaremos com
mais pormenor na secção 5.2.), prende-se com o facto de não ser uma condição cuja
satisfação (conjuntamente com a condição de verdade) seja suficiente para haver
conhecimento.
4.3. Teorias naturalistas do conhecimento
Em epistemologia há uma corrente naturalista, se assim se lhe pode chamar, que
sustenta que o alcançar de um qualquer sucesso epistémico (conhecimento, justificação,
87
De notar que a formulação de Moore do AI utiliza o clássico cenário do sonho e não o mais recente cenário do
cérebro no tanque.
113
garantia, verdade, etc.) por parte de um agente depende do exercício das suas capacidades
cognitivas naturais (Cf. Kim 1988: 381 ss).88/89 A definição é rude. Não obstante, como se
verá, fornece as bases necessárias para se apresentar as duas teorias constantes nesta
secção. Trata-se da teoria naturalista da garantia epistémica, de Alvin Plantinga, e da teoria
semi-naturalista da aptidão epistémica de uma crença, de Ernest Sosa.
4.3.1. Garantia Epistémica
Plantinga lança uma forte crítica às várias concepções deontológicas/internalistas
da justificação. Após rejeitar diversas possibilidades (coerentistas, bayesanas, etc.) sobre
natureza da garantia epistémica, sugere no final de Warrant (1993a: 211)90, a sua própria
perspectiva sobre o que é essa propriedade que, segundo ele, em quantidade suficiente
epistemiza uma crença a ponto de ser conhecimento.
A teoria da garantia de Plantinga assenta no pressuposto, naturalista, de que os
sucessos epistémicos de um agente dependem no essencial do correcto funcionamento e
correcto exercício das capacidades cognitivas de um agente. As capacidades cognitivas,
vistas à guisa de Plantinga, tal como aqui descritas, têm de ser encaradas como um
conjunto de virtudes físicas e intelectuais. Greco e Turri (2010) oferecem uma taxonomia
das virtudes intelectuais, colocando de um lado as virtudes que são manifestamente
faculdades cognitivas (percepção, intuição, memória), as quais são privilegiadas pelos
defensores do fiabilismo naturalista, colocando no outro virtudes aparentemente nãonaturais, como por exemplo a responsabilidade epistémica ou a consciência moral
(aplicada aos deveres epistémicos).
Segundo esta concepção, um agente terá, por exemplo, uma crença garantida de
que está uma ovelha na encosta desde que a sua capacidade de visão, ao funcionar
correctamente, lhe permita ver que está de facto uma ovelha na encosta; tal como o
88
A distinção incide fundamentalmente sobre os conceitos de justificação normativa, por exemplo, de Descartes,
e justificação naturalizada, mas estendeu-se mais recentemente, como se verá pela inspecção da teoria de Plantinga, para
os conceitos de garantia, virtudes e aptidão epistémicas.
89
Uma distinção relacionada surge em Sartwell (1992: 168). A diferença é entre a questão ‘O que é o
conhecimento’, pertencente, segundo o autor, à epistemologia descritiva , e a questão ‘Como se chega ao conhecimento”,
pertencente, ainda segundo esse autor, à epistemologia normativa .
90
A ideia central já havia contudo sido avançada em Plantinga (1988: 32)
114
correcto funcionamento de um coração permite que o sangue seja correctamente
bombeado e disperso para todo o corpo humano.
Porém, Plantinga (1993b) também pensa que o correcto exercício das capacidades
cognitivas de um agente pode não ser suficiente para que esse agente tenha crenças
garantidas. Outras condições têm de obter para que haja garantia. Uma dessas condições
é, por assim dizer, teleológica. Crucialmente, as capacidades cognitivas de um agente têm
de ser o resultado de um bom plano ou desígnio, divino ou evolucionário, que lhes permita
um correcto funcionamento, isto num ambiente para o qual foram planeadas ou
desenhadas (Cf. 1993b: 22). Este bom funcionamento das capacidades cognitivas é
e su
el à peloà ele adoà g auà deà fia ilidade que essas capacidades patenteiam, bem
como pelo elevado número de crenças verdadeiras que produzem.
Mas a satisfação das condições acima descritas pode ainda revelar-se insuficiente
para que haja garantia epistémica, tal como é pensada por Plantinga. Como o próprio
sugere, é possível divisar casos em que o agente se encontra num ambiente epistémico
hostil, o que o impede de ter crenças garantidas. Por exemplo, em cenários radicais que
des e e àu àa
ie teàepist
i oà
a ipulado àpo àu àp oduto àsiste
ti oàdeàilusões,à
sendo que, nesse ambiente, o agente está sistematicamente iludido acerca do que pensa
ver. Nesse ambiente não há portanto garantia epistémica.
Sintetizando a perspectiva de Plantinga, há duas condições necessárias (e
presumivelmente suficientes) para haver garantia epistémica. São as seguintes:
A) Há um plano ou desenho (evolucionista ou divino) que resulta em capacidades
cognitivas dos agentes (humanos).
B) As capacidades cognitivas naturais de um agente são exercidas eficazmente em
ambientes propícios a esse exercício (i.e., ambientes para os quais as capacidades
foram desenhadas ou planeadas).
Segundo o seu proponente, estas são condições cuja satisfação tende a produzir
apenas crenças verdadeiras. Crenças que exibem a propriedade de estarem garantidas,
esteàse tidoàdeà ga a tia ,às oà o he i e to.à
Um primeiro problema com esta concepção prende-se com o que cai sob o conceito
de conhecimento. Há, presumivelmente, vários conceitos de conhecimento, sendo difícil
reconhecer antecipadamente qual o conceito que é visado pela concepção. O conceit o
115
usado por Plantinga é aparentemente um conceito naturalista. Mas esta concepção
naturalista do conhecimento é quase sempre omissa no que respeita à necessidade de, por
exemplo, o agente ter um comportamento epistémico responsável para poder ter
conhecimento. Pressupõe-se que basta este exercer correctamente as suas capacidades
naturais de cognição para ter crenças garantidas que são conhecimento. Mas podem
divisar-se casos em que, apesar de haver um correcto funcionamento dessas capacidades,
o agente não tem conhecimento porque não tem uma atitude epistémica responsável.
Considere-se, por exemplo, o caso de alguém que vê um oásis no meio do deserto. Segundo
a concepção naturalista do conhecimento, basta essa pessoa ter a sua capacidade de visão
a funcionar em perfeitas condições para saber que o que vê é um oásis. Contudo, se essa
pessoa não afastar a hipótese da sua capacidade de visão estar em más condições de
funcionamento, afastando também de caminho a hipótese de e star iludido a respeito da
presença de um oásis, não será possível atribuir-lhe conhecimento. Uma condição
necessária não é satisfeita: que o agente confirme que os resultados do exercício da sua
capacidade de visão estão em ordem. Essa condição apela por sua vez para um
comportamento epistémico responsável, sendo que este impõe um requisito
deontológico. Requisitos deontológicos não são habitualm ente contemplados por
concepções naturalistas do conhecimento. Pode portanto ser alegado que concepções
naturalistas do conhecimento apenas explicam parte do conceito de conhecimento; ou,
em alternativa, um conceito particular de conhecimento.
O segundo problema que afecta a concepção de Plantinga tem a ver com o
Problema de Gettier. Plantinga inclina-se para a ideia de que a sua concepção da garantia,
tal como estabelecida pelos pontos A e B acima, dá conta da generalidade dos problemas
levantados por casos Gettier. Há casos Gettier quando, por exemplo, alguma coisa falha no
ambiente epistémico em que está inserido um agente, o que impede que as suas crenças
estejam garantidas a ponto de serem conhecimento. Segundo ele (1993b: 34), os casos
originais de Gettier revelam que a crença de Smith não está garantida porque o facto de
essas crenças acertarem na verdade fica a dever-se a elementos estranhos (e.g.
116
acidentalidade) presentes no ambiente epistémico no qual surgem, algo que contribui para
aà poluiç oà og iti aàa
ie tal . 91
Plantinga apresenta uma outra abordagem interessante ao Problema de Gettier.
Trata-se da ideia de que os contra-exemplos tipo-Gettier, pelo menos uma razoável
amostra, colhem porque o desenho (ou o plano) não criou (ou desenvolveu) as capacidades
cognitivas dos agentes humanos tendo como fim a produção de crenças verdadeiras.
Segundo esta perspectiva, o processo evolutivo (se se for adepto da Teoria da Evolução
darwiniana) ou Deus (se se for adepto de uma perspectiva religiosa) teriam formado estas
capacidades tendo em atenção não apenas objectivos cognitivos mas o sucesso evolutivo,
se assim se pode dizer, de um agente cognitivo humano. Como esse sucesso depende de
outros factores que não apenas a produção de crença verdadeiras ou de crenças
verdadeiras que são conhecimento, segue-se que os casos de Gettier e similares devem-se
a essa ausência propositada de infalibilidade das capacidades cognitivas de um agente. Por
exemplo (um exemplo que não é da autoria de Plantinga), a crença falsa de que uma vara
está torta quando imersa na água é aparentemente necessária para que um indivíduo da
espécie humana aja com alguma prudência quando perto de lagos ou rios. Parece existir
nestas situações uma espécie de compromisso entre o conhecimento e a utilidade. No
essencial, a ideia é a de que o agente teria menos vantagens do pronto de vista
evolutivo/prático se o desenho ou plano tivesse projectado as capacidades cognitivas de
uma agente para a infalibilidade, em vez de as estabelecer de modo a permitir a sua
falibilidade e, portanto, de modo a estabelecer um género de equilíbrio benéfico para o
agente. É esta falibilidade consentida que, no entender de Plantinga (Ibidem: 38), permite
o surgimento de casos Gettier, casos de ilusão massiva, etc. Trata-se de algo negativo do
ponto de vista da cognição, mas que pode conferir vantagens do ponto de vista da
preservação do indivíduo e da evolução da espécie.
Ainda uma outra ideia interessante de Plantinga (Ibidem: 43) prende-se com a
quantidade de condições necessárias para haver garantia. É por ele defendido que em
certas situações um agente não tem de saber ou que estar garantido acerca das razões que
tem para acreditar que a sua crença é fiável, garantida ou conhecimento, enquanto
91
Ver (1993b: 35-36) para o caso do ranger australiano.
117
noutros casos parece haver essa exigência. Este é um sinal de que as condições necessárias
para haver garantia epistémica podem variar de caso para caso.
A literatura oferece um conjunto significativo de objecções à teoria naturalista da
garantia de Plantinga, à qual se junta um conjunto significativo de respostas. 92 É-nos
impossível dissecar todas as objecções e respectivas respostas. Por essa razão,
seleccionamos e discutimos neste lugar aquela que nos parece ser a objecção mais
interessante e mais bem-sucedida relacionada com o Problema de Gettier. Essa objecção
é da autoria de Linda Zagzebski (1994). 93 O seu ponto óbvio é que é possível divisar casos
em que um agente tem uma crença e dadei aà eà ga a tida,à oà se tidoà deà ga a tida à
avançado por Plantinga, e ainda assim não tem conhecimento.
O argumento de Zagzebski assenta num forte pressuposto. Qualquer proponente
de uma definição/análise do conhecimento tem de se debater com a eventualidade de a
terceira (quarta, etc.) condição não conseguir anular o habitual hiato entre crença e
verdade, um hiato explorado por todos os contra-exemplos tipo-Gettier. Ainda segundo
Zagzebski, a teoria de Plantinga autoriza que uma crença possa estar suficientemente
garantida, segundo os preceitos considerados necessários pela teoria (em particular do
ponto de vista da fiabilidade das capacidades cognitivas d o agente e do seu correcto
exercício um ambiente epistémico propício), e ainda assim ser falsa.
Zagzebski (1994: 69) expõe um modus operandi para elaborar um contra-exemplo
a qualquer definição/análise do conhecimento com o form ato tradicional. Esse
procedimento é o seguinte:
Passo 1—Imagine-se um caso em que uma (terceira, quarta, etc.) condição (e.g.,
justificação, garantia) cuja satisfação em circunstâncias epistémicas normais se
revelasse suficiente para que a crença fosse verdadeira (ou que a crença acertasse
92
Um debate de algumas das principais objecções à teoria de Plantinga feito pelo próprio pode ser encontrado em
Plantinga (1995: 427-464). São debatidas objecções de Alston, Ginet, Steup, Swinburne e Taylor.
93
Zagzebski é uma das defensoras contemporâneas da ideia de virtudes epistémicas. Uma apresentação histórica
concisa da chamada epistemologia das virtudes e seus derivados pode ser encontrada em Fairweather & Zagzesky (2001:
3-14). A ideia de virtude cognitiva aparece amplamente explicada neste e noutros lugares, como por exemplo em Greco
(1993: 414 ss). A autoria da noção de virtude cognitiva é atribuída por diversos filósofos e comentadores a Aristóteles, que
a terá presumivelmente introduzido no De Anima , principalmente a partir de 424b 25.
118
na verdade da proposição), mas um caso em que a crença é prima facie falsa devido
a circunstâncias epistémicas anormais (e.g., má sorte epistémica);
Passo 2—Mostre-se depois que a crença é afinal verdadeira, e que ser verdadeira
nada tem a ver com a satisfação da condição descrita em (1), mas que se deve
também a circunstâncias epistémicas anormais (e.g., boa sorte epistémica, o que faz
com que a crença acerte acidentalmente na verdade da proposição acreditada);
Passo 3—Conclua-se que a crença não pode ser conhecimento apesar de haver
satisfação da condição descrita em (1), uma satisfação que em circunstâncias
epistémicas normais permitiria que essa crença fosse conhecimento, mas que não
se revela suficiente em circunstâncias epistémicas anormais, nomeadamente em
circunstâncias de acidentalidade epistémica, e que portanto a definição/análise do
conhecimento que contém essa condição tem contra-exemplos.
Eis um dos dois alegados contra-exemplos de Zagzebski à teoria de Plantinga que
tem por base este modus operandi. (Passo 1) Suponha-se que, sob circunstâncias
ambientais propícias para a formação de uma crença verdadeira (e.g., nível de
luminosidade correcto, raciocínio correcto, etc.) e no perfeito exercício das suas
capacidades cognitivas (que tiveram origem num bom plano ou desenho, tal como é
suposto por Plantinga), Maria forma a crença de que o homem na sua sala é o seu marido.
Ora, segundo a concepção da garantia de Plantinga, a crença de Maria está
suficientemente garantida a ponto de ser conhecimento. Infelizmente a crença não é
(prima facie) verdadeira porque, acidentalmente o homem que Maria vê na sala é o irmão
do seu marido, pessoa fisionomicamente idêntica ao seu marido e que, tanto quanto Maria
pode afirmar, não está no país de momento. Portanto, apesar de garantida à guisa
Plantinga a crença de Maria não pode ser conhecimento. Não o é porque uma condição
necessária para o ser não é satisfeita: a condição da verdade. (Passo 2) Suponha-se porém
que o marido de Maria está de facto na sala, embora fora do alcance visual de Maria. Sendo
assim, a crença de Maria de que o seu marido está na sala é no fim de contas (ultima facie)
verdadeira. Como a crença já estava garantida em virtude do correcto funcionamento e
exercício das capacidades cognitivas de Maria num ambiente propício a esse exercício, etc.,
segue-se que Maria tem uma crença verdadeira e garantida de que o seu marido está na
sala. (Passo 3) Todavia é óbvio que a crença de Maria não pode ser conhecimento, pois
apesar de ser verdadeira e estar garantida à guisa de Plantinga, o facto de a crença acertar
na verdade não se deve ao desempenho cognitivo de Maria, mas sim à sorte.
119
Plantinga (1997: 144 ss) adiciona uma nova condição necessária à sua definição de
modo a evitar este alegado contra-exemplo. Trata-se no essencial da exigência de que se
uma crença é prima facie falsa então a garantia que possui não pode ser suficiente para
gerar conhecimento.94 Evita-se deste modo a possibilidade de um grau de garantia
aparentemente suficiente para gerar conhecimento poder resultar afinal numa crença
falsa, bloqueando-se desta forma o primeiro passo do contra-exemplo. Este epiciclo
permite aparentemente resolver o problema, embora o faça aparentemente a expensas
de uma desagradável estipulação. Com efeito, torna-se difícil perceber de que modo é
possível aferir com exactidão que grau de garantia plantingiana é suficiente para cada caso
de crença verdadeira ser conhecimento, excepto pressupondo de antemão que esse grau
é de facto suficiente para esse efeito.
Mesmo considerando a possibilidade de a concepção de Plantinga tal como
formulada e posteriormente corrigida pelo próprio ter contra-exemplos ou outros
problemas, tal não significa que tal definição é inútil do ponto de vista da elucidação do
fenómeno do conhecimento. Com efeito, parece-nos que existem aspectos desta
concepção que são muito aproveitáveis e têm lugar numa outra concepção mais
abrangente da garantia epistémica.
4.3.2. Aptidão Epistémica de uma Crença
Ernest Sosa é actualmente tido como um defensor das ideias de aptidão cognitiva
de uma crença e de crença segura. Esta última já recolheu acima alguma da nossa atenção
(aquando da discussão da condição de segurança, secção 4.2.3). É agora chegado o
momento de inspeccionar a primeira.
O objectivo de Sosa ao propor o requerimento de aptidão epistémica de uma crença
passa por resolver alguns dos puzzles cépticos tradicionais. A proposta deixa entender que
o objectivo será cumprido no caso de se conseguir definir correctamente dois tipos de
conhecimento: o conhecimento animal e o conhecimento reflexivo (Cf. Sosa 2007 passim).
Não se trata portanto aparentemente de uma concepção do conhecimento que tenha
como primeiro objectivo solucionar o Problema de Gettier. A concepção é por isso de
94
Uma crítica das tentativas de Plantinga para emendar a sua concepção de garantia de modo a acomodar os
problemas que lhe foram sendo levantados surge em Crisp (2000: 42-50).
120
alguma forma marginal ao tópico deste trabalho. Todavia, na medida em que essa
concepção propõe justamente a aptidão de uma crença verdadeira enquanto condição
suficiente para dois tipos de conhecimento, tipos de conhecimento que têm uma
componente proposicional, uma inspecção à própria concepção e à natureza das condições
que preconiza faz todo o sentido.
A concepção sosiana diz primeiramente que uma crença é precisa quando atinge a
verdade da proposição, e que essa crença é competente quando essa precisão resulta de
uma capacidade ou habilidade cognitiva do agente (ou a mani festa).
Uma crença pode contudo ser precisa sem ser competente. Tal acontece, por
exemplo, em muitos dos casos acima estudados que estão na base de contra-exemplos a
diversas definições do conhecimento. Num número considerável destes casos, o facto de
a crença alcançar a verdade da proposição acreditada não se deve de modo algum ao
exercício de uma ou mais capacidades cognitivas de um agente, mas sim a um qualquer
factor de acidentalidade presente no ambiente epistémico, um factor que, por assim dizer,
contamina esse ambiente.
A julgar por esta concepção, será suficiente que essa crença seja precisa e
competente para ser bem-sucedida do ponto de vista cognitivo. Porém, uma crença pode
ser precisa e competente sem que seja simultaneamente bem-sucedida no sentido
descrito. É possível divisar casos em que a crença é precisa, por alcançar a verdade, que
são também casos em que há um exercício efectivo das capacidades cognitivas do agente
que vai no sentido de alcançar a verdade, o que faz com que sejam casos em que há
competência, mas que ainda assim são casos em não há conhecimento. Trata-se de casos
nos quais o sucesso epistémico (i.e., alcançar a verdade) não se deve à competência do
agente, apesar de esta se efectivar, mas que se deve, mais uma vez, a um qualquer factor
de acidentalidade contido no ambiente.
Sosa usa uma analogia feliz para elucidar este ponto (a analogia corre sob o
pressuposto que tiros e crenças são performances que partilham características comuns).
Suponha-se que um arqueiro (um agente) visa o centro de um alvo (a verdade) exercendo
todas as suas capacidades naturais e técnicas (capacidades/habilidades cognitivas). O seu
objectivo é obviamente atingir o centro do alvo com o seu tiro/seta (a crença do agente).
121
Suponha-se que, no exercício das suas competências naturais e técnicas, o arqueiro
consegue avaliar correctamente as condições de vento, a distância, a força necessária para
alcançar o alvo, e, de um modo geral, tudo o resto que é suposto ser avaliado para—em
circunstâncias normais—o tiro ser bem-sucedido. Suponha-se ainda que o arquei ro teria
de facto atingido o alvo com o seu tiro/seta caso as circunstâncias em que ocorre o tiro
fossem normais. Suponha-se por fim que, num primeiro momento após o arqueiro soltar
a seta, a intervenção de um génio imensamente poderoso, digamos, poderoso ao ponto
de conseguir controlar as brisas no ambiente físico onde está o arqueiro, faz com que a
seta se desvie do percurso originalmente previsto por este último, apenas para, num
segundo momento e por capricho, voltar a desviá-la na direcção do centro do alvo, o qual
acaba por atingir. Ora, este é ipso facto um caso em que o tiro resulta do exercício de todas
as capacidades naturais e técnicas de tiro do arqueiro, mas ainda assim um caso em que o
sucesso não se fica a dever a esse exercício mas sim à intervenção caprichosa do demónio.
Assim, não é a competência do arqueiro que é a causa do sucesso do seu tiro, e esse
sucesso não pode prima facie ser creditado ao arqueiro.
Uma crença epistemicamente apta é uma crença em que a competência do agente
é a causa da precisão epistémica da crença. A crença será precisa, ou seja, alcançará a
verdade (ou será verdadeira) porque resulta do exercício das capacidades cognitivas do
agente. A relação entre competência do agente e a precisão da sua crença deve pois ser
de ordem causal: as capacidades cognitivas do agente, ou o seu exercício, têm de ser a
causa pela qual a sua crença é precisa.
Sosa (2007: 78-81) defi eà
o he i e toà
a i al
Co he i e toà
eflexi o à à defi idoà o oà
fo
si asà deà o he i e toà a i al à eà deà o he i e toà
alizaçõesà
e çaà aptaà so eà
como crença apta.
e çaà apta.à Eisà asà
eflexi o
disponibilizadas por Sosa: 95
(CA)—“àte à o he i e toà a i al que p se e só se S tem uma crença verdadeira
e apta que p;
e…
95
CA espelha aquela que é geralmente designada por intuição da habilidade (cognitiva).
122
(CS)—“àte à o he i e toà eflexi o à ueàq relativamente à sua crença apta que p
(i.e., relativamente ao seu conhecimento animal de p) se e só se S tem uma crença
apta que q sobre a sua crença apta que p.
CA estabelece alegadamente as condições necessárias e suficientes para o
o he i e toà a i al . Basicamente, o ponto de Sosa é que CA fornece essa suficiência
desde que a aptidão descrita seja exercida em condições normais. Para decifrar esta
pretensão e verificar a sua plausibilidade há agora que deslocar o foco do problema
novamente para a ideia de crença segura.
Como vimos acima, Sosa estabelece as condições sob as quais uma crença pode ser
considerada segura. Numa fórmula mais simples, temos que...
...uma crença que p é segura se, e só se, não poderia ter sido facilmente falsa,
e à ueà
oà pode iaà te à sidoà fa il e teà falsa à de eà te à u aà leitu aà odalà doà
género...
aà e çaà à e dadei aà oà u doàa tual e nos mundos possíveis mais próximos do
mundo actual a crença continua a se à e dadei a . (Ibidem: 24)
Um mundo possível próximo do actual é, nesta acepção, um mundo possível em
tudo igual ao actual excepto, por exemplo, na existência de um génio enganador que altera
a direcção das setas de um arqueiro ou faz com que um agente tenha uma crença
verdadeira por mera sorte.
Voltando agora explicitação das condições de normalidade s ob as quais uma crença
pode ser considerada apta e, logo, segundo CA, conhecimento, Sosa distingue entre...
i àfa to esàpo à ausaàdosà uais as circunstâncias poderiam facilmente não ter sido
normais, sem que essas circunstâncias sejam ipso facto a o ais à
e...
ii àfa to esà ueài pede àipso facto aà o
alidadeàdasà i u st
ias . (Ibidem: 82)
Ainda segundo Sosa, uma vez que apenas os factores do tipo descrito por ii
impedem que a precisão da crença se fique a dever à competência do agente, na ausência
desses factores as crenças podem ser aptas sem serem seguras. A segurança epistémica
não é então, neste sentido, uma condição necessária para a aptidão epistémica e, portanto,
123
não é uma condição necessária para o conhecimento (animal). Pouco importa, desta
perspectiva, que as circunstâncias pudessem ter sido facilmente manipuladas de modo a
que a causa da precisão de uma crença não se tivesse ficado a dever à competência do
agente mas um qualquer factor espúrio (de acidentalidade ou outro) presente no
ambiente. Crença epistemicamente apta não tem de ser crença epistemicamente segura.
Co he i e toà a i al à e ue àfu da e tal e teà ueàhajaà o pet
iaà og iti aàdeàu à
agente, competência exercida em condições normais, quer dizer, em que as condições
normais do seu exercício não sejam adulteradas.
A CA recolhe algumas críticas. Duncan Pritchard, por exemplo, pensa que a
definição não estabelece as condições necessárias e suficientes para o conhecimento
porque não contempla a satisfação da condição de segurança epistémica. O argumento de
Pritchard assenta em dois casos que, alegadamente, são contra-exemplos a CA. O primeiro
é o caso Barney (apresentado na secção 1.10); o segundo é o caso do bom-testemunho
(que Pritchard designa por caso Jenny) e que ainda teremos de introduzir (Pritchard: 2008
por publicar). Vamos por partes.
Segundo Pritchard, Barney não pode ser considerado um caso de conhecimento.
Apesar de a crença ser verdadeira (o que vê é de facto um celeiro e não uma das muitas
imitações) e ser o resultado do exercício das suas capacidades cognitivas (o exercício em
boas condições da sua capacidade de visão), o facto de haver demasiada sorte ambiental
envolvida impede, intuitivamente, que seja creditada como conhecimento. A grande
quantidade de imitações de celeiros disponíveis nesse campo e o facto de haver apenas
um celeiro faz com que a crença pudesse facilmente ter sido falsa. A crença não é pois
epistemicamente segura no sentido que temos vindo a ver, quer dizer, a crença é falsa em
pelo menos alguns dos mundos possíveis relevantes mais próximos do mundo actual, pois
nesses mundos o agente vê uma imitação de celeiro em vez de ver um celeiro. Se Pritchard
estiver correcto acerca desta avaliação, o correcto exercício das capacidades cognitivas por
parte de um agente não é suficiente pa aàesseàage teàte à o he i e toà a i al , o que
faz com que CA falhe.
Uma réplica ao argumento de Pritchard pode passar pela ideia de que Barney é um
afinal um caso de conhecimento, mas o ponto não é de fácil demonstração. Barney é
124
claramente um caso de fronteira, em que a fronteira tem contornos pouco definidos. Há,
por um lado, uma intuição forte de que o caso não parece estar suficientemente fora do
núcleo de casos que estaríamos dispostos a admitir como casos paradigmáticos de
conhecimento a ponto de podermos recusar com certeza apodíctica que não é realmente
um caso de conhecimento (Cf. Lycan 2006); mas, por outro lado, há uma intuição forte a
favor da ideia de que as circunstâncias de acidentalidade descritas pelo caso impedem que
seja um caso em que há conhecimento.
Dado que concede que Barney é um caso polémico que opõe diferentes opiniões,
resultantes de também diferentes intuições, não podendo por isso ser apontado como um
caso que apresente uma demonstração conclusiva contra a suficiência de CA, Pritchard
propõe um outro contra-exemplo a esta definição, uma definição que considera ser o
corolário de uma epistemologia forte das virtudes.96 Trata-se do caso Jenny, o qual tem o
seguinte formato:
Jenny— Jenny chega de comboio a uma cidade que não lhe é de todo familiar e, ao
descer do comboio, pergunta à primeira pessoa que encontra o caminho para ir para
um determinado sítio nessa cidade. A pessoa a quem Jenny perguntou direcções é
de facto conhecedora da área e, prestavelmente, dá a Jenny as informações
necessárias. Acreditando no que lhe foi dito por essa pessoa, Jenny segue o seu
a i hoàat àaoàseuàdesti o. (Pritchard 2008a)97
Alegadamente, o caso Jenny mostra que CA falha porque apesar Jenny adquirir
conhecimento, por ter recebido boas e fiáveis informações, as suas capacidades cognitivas
não desempenham um papel crucial na formação da sua crença. Pritchard concede que
Jenny usa as suas capacidades cognitivas no presente caso, mas não concede que o sucesso
cognitivo da crença de Jenny (ou de Jenny) se fique a dever a esse exercício. Esse sucesso
deve-se, ainda segundo ele, ao facto de o informador ser fiável e providenciar um bom
testemunho a Jenny, que apenas é, por assi àdize ,à oaà e epto a àdessaài fo
96
aç o.
Segundo Pritchard, a diferença entre uma epistemologia forte e uma epistemologia fraca das virtudes parece
estar no facto de a primeira impor que exista uma relação causal forte entre o exercício das capacidades cognitivas de um
agente e a sua crença, enquanto segunda propõe apenas que o habitual “porque” na expressão “acredita porque...” seja
apenas de ordem explicativa, mas não necessariamente causal. Os meandros desta discussão não são todavia cruciais para
o presente ponto.
97
O exemplo original é da autoria de Jennifer LAckey.
125
Da perspectiva de Pritchard, o caso Jenny mostra que CA é uma definição
demasiado forte, pois é uma definição que exclui casos de sucesso cognitivo, casos que são
presumivelmente casos de conhecimento, apenas porque a exigência do exercício activo
de capacidades cognitivas não é satisfeita.
Se, por outro lado, como quer Pritchard, o caso Barney mostra que CA é uma
definição demasiado fraca, então CA está aparentemente no meio de uma tensão: se for
tornada mais forte, cada vez menos conseguirá dar conta de casos do mesmo tipo do caso
Jenny, mas se for tornada mais fraca cada vez menos conseguirá dar conta de casos do
mesmo tipo do caso Barney. Se Pritchard estiver correcto, afigura-se remota a
possibilidade de CA conseguir dar conta das condições necessárias e suficientes para o
conhecimento.
5. Outras teorias
5.1. Resumo
Nesta secção revisitamos teorias que, em virtude das suas características
peculiares, aparentemente não se encaixam em nenhuma das famílias de teorias que
visitámos até este momento. Focamos em especial duas teorias. A primeira insere-se de
certo modo na linha tradicional de pensamento que privilegia a possibilidade de uma
análise do conhecimento, mas supera essa linha ao sugerir uma solução que alegadamente
capta o melhor daquilo que é recomendado por duas epistemologias: a epistemologia
modal e a epistemologia naturalista. Nos antípodas dest a concepção, apresentamos a
teoria que inaugura o que parece ser uma nova perspectiva em epistemologia. Trata-se da
teoria segundo a qual o conceito de conhecimento não é analisável.
5.2. Uma epistemologia das virtudes e da segurança
Viu-se que os contra-exemplos à DTC (e a outras definições que se lhes seguiram)
introduzem situações em que o facto de uma crença acertar na verdade se fica a dever a
uma boa dose de acaso. Viu-se igualmente que a principal consequência da presença de
acidentalidade epistémica, se assim se lhe pode chamar, é fazer com que o conhecimento
126
seja impossível nessas circunstâncias. Esta consequência é explicitamente reconhecida. Por
exemplo, Lehrer e Paxson dizem:
Talà o oà Ed u dà Gettie mostrou, é possível encontrar exemplos em que uma
frase/proposição falsa p implica uma proposição [verdadeira] h, justificando S em
acreditar em h, de tal forma que, embora S acredite correctamente em h, o facto de
acreditar correctamente se fica a dever à sorte [ao acaso]. (Lehrer & Paxson 2002:
465)
Confrontados com esta possibilidade, alguns filósofo s pensam que a melhor forma
de lidar com o problema do acaso epistémico é justamente propor uma
definição/análise/explicitação do conhecimento que conte nha uma ou mais condições que
permitam erradicar esse acaso (ver 4.2.). Segundo essas definições, crenças que acertam
na verdade por mero acaso não podem ter o estatuto de conhecimento. Pritchard é um
dos principais defensores de uma definição do conhecim ento que contenha condições que
possam prevenir e excluir a possibilidade de haver sorte epistémica a contaminar o
ambiente no qual uma crença é conhecimento.
U aà fo aà deà eli i a àaà so teà epist i aà daà ossaà teo iaà doà o he i e to—e
portanto de evitar os contra-exemplos de Gettier—passa (...) por identificar uma
condição epistémica externa que assegure que a crença verdadeira de um agente
não possa por ele ser adquirida graças à intervenção da sorte epistémica. Mais
especificamente, precisamos de identificar uma condição externa que permita não
apenas que as condições epistémicas relevantes sejam satisfeitas mas que assegure
também que a crença em questão rastreie a verdade ao longo dos mundos possíveis
relevantes mais próximos do mundo actual, isto de modo a garantir que a sorte
epist i aà oàsejaà apazàdeài te i . (Pritchard 2005: 151)
Tendo em mente o objectivo de encontrar uma condição anti-sorte epistémica
satisfatória, Pritchard começa por avançar uma definição modal de sorte (simpliciter) ou
de evento resultante do acaso (Lucky Event, LE), usando para esse efeito a já habitual
semântica dos mundos possíveis.
LE—Um evento é o resultado de sorte se e somente se esse evento ocorre no
mundo actual mas não ocorre numa ampla classe de mundos possíveis próximos do
actual nos quais as condições iniciais relevantes para a ocorr ência desse evento
essesà u dosàs oàasà es asà ueàasàdoà u doàa tual . (Pritchard 2007)
Depois de colocar LE, Pritchard aplica-a à noção de crença, extraindo a seguinte
definição de crença verdadeira resultante de sorte (Lucky True Belief, LTB):
127
LTB—Uma crença verdadeira resulta do acaso se e somente se há uma ampla classe
mundos possíveis próximos do mundo actual nos quais S c ontinua a acreditar na
proposição-alvo, sendo as condições de base relevantes de formação da crença
nesses mundos as mesmas que no mundo actual, e no entanto a crença é falsa nesses
u dos. (Ibidem)
Posto isto, Pritchard sugere a seguinte condição anti-sorte (CAS):
Cá“—A crença verdadeira de S não é o resultado de sorte se e somente se não há
uma ampla classe de mundos possíveis próximos do actual n os quais S continua a
acreditar na proposição-alvo, sendo as condições de base relevantes de formação da
crença nesses mundos as mesmas que no mundo actual, e no entanto a crença é
falsaà essesà u dos . (Ibidem)
Dois pontos parecem sobressair desta apresentação sequencial de definições. Por
um lado, e tal como o próprio Pritchard sugere, a CAS assemelha-se bastante à condição
de segurança epistémica (CSE) sugerida por Sosa. Na definição de Pritchard, o princípio da
segurança epistémica de uma crença tem originalmente o seguinte formato:
“egu a ça—Um agente S tem uma crença segura numa proposição
contingentemente verdadeira p =df: na maior parte dos mundos possíveis mais
próximos do mundo actual nos quais S acredita que p, p à e dadei a. (Pritchard
2008b)
Aliás, a duas condições CSE e CAS como que se fundem na mais recente versão do
princípio de segurança (PS) sugerido por Pritchard, um princípio que tem por objectivo
solucionar alguns problemas apontados às primeiras formul ações. Numa primeira
formulação,
P“—A crença de S é segura se S a continua a ter na maior parte dos mundos
possíveis mais próximos do mundo actual nos quais S form a essa crença da mesma
forma que o faz no mundo actual, e se em todos os mundos possíveis muito próximos
do mundo actual nos quais S continua a formar a sua crença d a mesma forma que o
faz no u doàa tual,àessaà e çaà o ti uaàaàse à e dadei a. (Pritchard 2009: 33-45)
E numa formulação simplificada muito próxima de CA,
PS—Se S sabe que p, então a crença verdadeira de S que p não poderia facilmente
ter sido falsa. (Pritchard 2007)
Por outro lado, tal como já havíamos visto, dificilmente o PS consegue estabelecer
uma condição suficiente para o conhecimento. Esta contingência é reconhecida por
128
Pritchard (Ibidem), o qual alega que sendo a satisfação do PS suficiente para haver
conhecimento em alguns casos, outros há em que isso não acontece.
O PS não é com efeito isento de crítica. Pritchard (2007) considera e recusa uma
objecção ao princípio da autoria de Christoph Kelp. 98 Este imagina um caso (Working-clock)
em que um agente tem a crença verdadeira de que são 8:22 com base na indicação dada
por um relógio extremamente fiável, embora um relógio que poderia ter sido facilmente
manipulado—com o óbvio intuito de enganar o agente—por um demónio para marcar
8:22. Todavia, uma vez que o demónio sabe que o agente vai formar a crença de que são
8:22 sem que seja necessária a sua intervenção, decide nada fazer para alterar o rumo dos
acontecimentos. O agente acaba pois por acreditar que são 8:22 (sendo 8:22) com base na
indicação fornecida relógio. Kelp afirma que pode ser creditado conhecimento ao agente
neste caso, mas que é um caso no qual o PS não obtém. Não obtém, porque nos mundos
possíveis muito próximos do mundo actual, mundos nos quais o agente forma a crença do
mesmo modo que no mundo actual (simplesmente olhando p ara o relógio fiável), mas nos
quais o demónio decide intervir para fazer o relógio marcar falsamente 8:22 (quando não
são realmente 8:22), a crença do agente é falsa. No fundo, Kelp sugere que apesar de poder
ter sido facilmente falsa, esta crença é conhecimento. O PS falha, pois reclama que crenças
que poderiam facilmente ter sido falsas não podem ser conhecimento.
Pritchard defende o PS desta objecção de Kelp apelando para a distinção entre um
acto de cognição bem-sucedido e um acto de conhecimento. Para Pritchard, a crença do
agente (no mundo actual) é um acto do primeiro tipo, mas não pode ser considerado um
acto do segundo tipo, uma vez que um acto do segundo tipo exclui a possibilidade de sorte
epistémica (activa ou ambiental), enquanto o primeiro é compatível com essa sorte.
Pritchard avança como exemplo o caso do arqueiro de Sosa. Argumentavelmente, apesar
de exercer a sua competência, e apesar de o tiro ser bem-sucedido, não é possível creditar
esse sucesso à competência do agente. Como tal, defende Pritchard (e Sosa), o tiro não é
bem-sucedido porque competente. Quer dizer, a competência do arqueiro não é a causa
eficiente do sucesso do seu tiro, e portanto dificilmente se pode atribuir ao arqueiro o
mérito desse sucesso. Estabelecendo o paralelo com o caso do agente imaginado por Kelp,
98
Ibidem.
129
nas circunstâncias epistémicas adversas em que esse agente se encontra (o demónio está
à espreita e pronto a intervir) dificilmente é atribuível a esse agente o mérito de ter
acertado na hora correcta, isto apesar de esse agente usar os seus atributos cognitivos de
forma competente, de o relógio ser fiável, etc. Segundo Pritchard, parece pois seguir-se
que, na ausência desse mérito por parte do agente de Kelp, não pode ser-lhe creditado
conhecimento, embora lhe possa ser creditado um acto cognitivo bem-sucedido.
Sendo ou não a resposta de Prichard eficaz contra a objecção de Kelp, o certo é que
o primeiro acaba por não aceitar que a satisfação do PS (ou de uma qualquer condição antisorte) é per se suficiente para haver conhecimento. Pritchard recorre a um caso, que
designa por Temp, para marcar a sua posição.
Temp—Temp forma a crença verdadeira de está uma determinada temperatura na
sua sala ao olhar para o termómetro que marca correctamente a temperatura
ambiente na sua sala. O termómetro sempre foi fiável no passado e sempre marcou
a temperatura certa. Contudo, sem que Temp se possa aperceber, o termómetro
avariou e só indica a temperatura correcta da sala de cada vez que Temp o consulta
porque alguém faz coincidir os valores que o termómetro marca com a temperatura
ambiente. (Pritchard 2009)
Este é, alegadamente, um caso em que o agente não pode ter conhecimento acerca
da temperatura na sala, apesar de a sua crença ser segura, no sentido estipulado pelo PS
(Ibidem, nota 16).
Outro caso de uma crença segura, no sentido preconizado pelo CA de Sosa e pelo
PS de Pritchard, e que não parece ser conhecimento, é o caso Alvin (originalmente da
autoria de Plantinga e que alteramos aqui um pouco para melhor compreensão do leitor).
Alvin é alguém que tem uma lesão cerebral que afecta de forma muito negativa as suas
capacidades cognitivas (percepção, memória, capacidade de realizar inferências, etc). Essa
lesão fá-lo crer numa proposição verdadeira no mundo actual e nos mundos possíveis mais
próximos do actual. Sendo assim, a crença de Alvin é epistemicamente segura. Infelizmente
para Alvin e para os defensores do PS e da CSE, o sucesso cognitivo (se assim se pode
chamar) de Alvin sob estas condições não pode ser considerado conhecimento, uma vez
que não se deve ao exercício de capacidades cognitivas (que alvin não tem), e portanto
esse exercício é muito presumivelmente uma condição necessária para que alguém possa
ter conhecimento.
130
Se Pritchard estiver correcto, os princípios que sustentam, respectivamente, as
definições de conhecimento originárias da epistemologia naturalizada de Plantinga, Sosa,
etc., e as definições de conhecimento originárias da epistemologia modal de Sosa e do
próprio Pritchard99, não são isoladamente suficientes para dar conta de uma definição do
plausível do conhecimento. Pritchard pensa que é possível superar as insuficiências de
ambas as epistemologias, contando que se retenham as intuições básicas que sustentam
as condições que estão na base dessas epistemologias: a intuição de que o conhecimento
não pode ser crença acidentalmente verdadeira e a intuição de que o conhecimento tem
de algum modo resultar das capacidades cognitivas do agente. Desejando conservar estas
duas intuições, Pritchard propõe a seguinte definição, que irei apelidar de Solução Híbrida
(SH):
SH— S sabe que p se e só se a crença verdadeira e segura de S que p é o produto das
capacidades cognitivas relevantes de S (tal que o sucesso cognitivo seguro de S é
significativamente atribuível à actividade cognitiva de S). (Pritchard 2008a)
Pritchard defende que SH dá conta da panóplia de casos que afectam ora a
epistemologia das virtudes cognitivas ora a epistemologia modal. Em acréscimo,
argumenta, dá conta dos casos tipo Gettier, acomodando assim num único local uma
solução compreensiva e eficiente.
Creio que apesar de a SH ir no bom caminho no que respeita ao desiderato de
oferecer uma definição completa do conhecimento, ainda assim não é imune a problemas.
No que se segue proponho o que me parecem ser alguns desses problemas.
Devemos, em primeiro lugar, sugerir identificar o princípio na base da nossa crítica.
Este princípio, sobejamente usado na literatura, atesta algo que nos parece bastante
plausível, mas sobre o qual é necessário lançar luz. O princípio pode ser formulado da
seguinte forma:
99
Note-se que Pritchard é um adepto do chamado projecto analítico, defendendo a possibilidade do conceito de
conhecimento poder ser analisado em conceitos mais primitivos e mais esclarecedores do que esse conceito.
131
Princípio da falsificação (PF)—Se é possível divisar um caso de conhecimento que
não exija a satisfação de uma condição descrita como necessária por uma definição
do conhecimento, então essa definição é falsa.
Considerando o PF e a SH, temos que, por PF, se for possível divisar um caso claro
de conhecimento no qual uma das condições tidas por nec essárias em SH é afinal
desnecessária, então a SH é falsa. Apresento o que me parecem ser dois casos de
conhecimento que não exigem a satisfação, à vez, de uma condição estabelecida por SH.
Suponha-se que ao viajar de carro por uma estrada a caminho de Edimburgo, S vê
um sinal indicativo da distância a que está dessa cidad e. Esse sinal indica que falta 20 milhas
para lá chegar e está colocado de facto a 20 milhas. Com base no que vê em circunstâncias
normais, quer dizer, usando as suas capacidades de cognição num ambiente propício a esse
exercício, S forma naturalmente a crença verdadeira de que está a 20 milhas de Edimburgo.
Acontece, porém, que o sinal foi colocado naquele local por alguém que nunca coloca os
sinais no local certo. Invariavelmente, ora os coloca a mais ou a menos de uma milha da
distância correcta. Noutras circunstâncias, pois, o sinal estaria colocado à distância errada,
o que faria com que a crença de S fosse falsa.
Estamos na presença de um caso claro de conhecimento, pois não há
aparentemente forma de negar a forte intuição de que nestas circunstâncias S sabe que
está a 20 milhas de Edimburgo. Porém, este é também um caso no qual a crença não é
segura (tal como estabelecido pelo PS), pois poderia muito facilmente ter sido falsa. Para
tal bastaria que a pessoa que coloca os sinais tivesse seguido o seu modus operandi
habitual. Segue-se que a segurança epistémica, tal como estabelecida pelo PS, não é uma
condição necessária para o conhecimento, e portanto, considerando o PF, a SH é falsa.
Suponha-se que S se encontra numa situação igual à do exemplo anterior, excepto
no que respeita a dois aspectos. A primeira diferença é que o sinal foi colocado por alguém
que cumpre escrupulosamente as regras de colocação de sinais indicativos das distâncias,
e portanto, ceteris paribus, a haver crença por parte de S de que está a 20 milhas de
Edimburgo, será uma crença segura, uma vez que nos mundos possíveis mais próximos do
mundo actual a crença continua a ser verdadeira. A segunda diferença é que, desta feita,
uma luz intensa que incide sobre o sinal impede S de ver a distância correcta por ele
indicada. Tal facto impede S de formar a crença de que está a 20 milhas de Edimburgo com
132
base nas suas aptidões cognitivas (a sua boa visão, o seu b om discernimento, etc.). Por
sorte, S vai acompanhado de outra pessoa, uma pessoa que S sabe ser fiável e conhecedora
do local, e que, ao reconhecer o local onde está o sinal, diz a S que está a 20 milhas de
Edimburgo. S forma a crença verdadeira e segura de que está a 20 milhas de Edimburgo
com base nesse testemunho e, muito plausivelmente, fica a saber que está a 20 milhas de
Edimburgo. Contudo, e tal como no caso Jenny, o sucesso cognitivo seguro de S não é
significativamente atribuível à actividade cognitiva de S, e portanto, uma vez mais, uma
condição estabelecida por SH não tem de ser satisfeita para haver conhecimento. Extrai-se
novamente que a SH é falsa.
5.3. A Teoria da Não-analisibilidade
A suposição de que o conceito de conhecimento é susceptível de análise foi
recentemente desafiada por Timothy Williamson (2000). 100 Esta é a teoria da nãoanalisibilidade do conhecimento (TNA). Ela vem opor-se a uma longa tradição na
epistemologia contemporânea que, como vimos, privilegia a possibilidade de esse conceito
ser analisado em termos conceitos aparentemente mais primitivos e claros. Esta secção é
dedicada a inspeccionar a TNA bem como algumas réplicas.
Williamson oferece pelo menos três argumentos para sustentar a sua rejeição do
projecto analítico, que designa por programa reducionista. O primeiro argumento procura
estabelecer a conclusão de que o conceito de conhecimento e o conceito de crença
verdadeira + X não podem ser o mesmo conceito (independentemente do que possa tomar
o lugar de X na fórmula). O segundo argumento visa estabelecer que qualquer análise do
conceito de conhecimento ou é, ou terá de ser, viciosamente circular. O terceiro
argumento, que se apoia nas conclusões dos dois primeiros e na inspecção do percurso
histórico do problema, procura estabelecer a baixa probabilidade de ser encontrada uma
análise do conceito de conhecimento.
Passamos a inspeccionar o primeiro argumento a favor da TNA. Williamson pensa
que o conhecimento é um estado mental, um estado semelhante, mas não igual, aos
estados mentais factivos de ver, de acreditar (na verdade) ou de recordar. Sendo o
conhecimento um estado mental, segue-se que o conceito de conhecimento é um conceito
100
Vide também Haddock & Millar & Pritchard 2010: capítulo 5, Jackson 2002: 517 e Harman 2002: 420.
133
de algo que é mental (Ibidem: 27). Trata-se, pois, para usar a expressão de Williamson, de
um conceito mental. Já o estado de acreditar na verdade, quer dizer, o estado em que um
agente está sempre que acredita numa proposição verdadeira, não é, segundo Williamson,
um estado mental. Não o é porque é um estado constituído por uma componente mental,
o estado mental de acreditar, e uma componente não-mental, a verdade da proposição
que é alvo de crença. O conceito de acreditar na verdade, ou de crença verdadeira, não
pode pois ser um conceito de algo estritamente mental, não podendo ser portanto um
conceito mental tal como o é o conceito de conhecimento. O conceito de acreditar na
verdade é, visto deste prisma, um conceito não-mental. Basicamente, Williamson pensa
que...
álgoà ueàest àe aixadoà oà eioàdeàdoisàestadosà e taisà
mental (Ibidem)
oàte àdeàse àu àestadoà
Se o conceito de conhecimento é um conceito mental e o conceito de crença
verdadeira é um conceito não-mental, segue-se que não podem ter a mesma extensão.
Uma vez que não há uma equivalência de extensões dos conceitos, pois o que cai sob a
extensão de um conceito é sempre diferente do que cai sob a extensão do outro, então
não é expectável encontrar satisfatória uma análise do conhecimento (Ibidem: 30).
Considere-se agora novamente a fórmula standard de uma análise do conceito de
conhecimento:
Conhecimento é crença verdadeira + X
Co oà
i osà so eja e teà a i a,à X à podeà se à su stituídoà po à diversas
condições/propriedades justificação (deontológica, infal ível, evidencial, etc,), a da
fiabilidade (genérica, de processos, da justificação, etc), a do princípio de segurança
epistémica, a da aptidão de uma crença, a da garantia plantingiana, e por aí em diante. O
leque de oferta é vasto e diversificado (como vimos também, conjuntos de condições
podem tomar o lugar de X). Agora, se o argumento de Williamson estiver em ordem, é
indiferente queà o dições/p op iedadesàto a àoàluga àdeà X à u aà ual ue àte tati aà
de análise. É indiferente porque qualquer que seja a condição/propriedade que tome o
lugar de X nessa análise, a extensão do conceito no analisandum e a extensão do conceito
134
no analisans ja aisàpode oàse àe ui ale tes.àLogo,à ual ue àfó
ulaà fe hada à ueàte haà
por base a fórmula standard a e ta àse àfalsa.
Quassim Cassam (2009) critica activamente este argumento de Williamson, ao qual
se refere como o argumento dos dois conceitos distintos. A sua crítica bifurca-se. Cassam
focaliza-se no problema do conceito, por um lado, e no problema do estado, por outro.
Quanto ao problema do conceito, a crítica de Cassam desenvolve-se a partir de um
paralelo que estabelece entre o conceito de conhecer e o conceito de solteiro. Suponha-se
que o conceito conhecer é do mesmo tipo que o conceito solteiro. Suponha-se também
que procedemos para uma análise do conceito solteiro usando em conjunção os conceitos
casado e o conceito homem. Temos então a seguinte análise:
Um solteiro é um homem não-casado.
Cassam alega que se a avaliação que Williamson faz acerca da impossibilidade de
se analisar o conceito de conhecimento estiver correcta, então análises como um solteiro
é um homem não-casado também não podem obter. Não podem, porque o conceito
marital solteiro não pode ser conceptualmente analisado usando uma conjun ção de
conceitos que contém como componentes um conceito pertencente à classe dos conceitos
maritais, (não)casado, e um conceito que não pertence a essa classe, homem.
O paralelo estabelecido por Cassam visa mostrar que se não estamos preparados
para rejeitar análises deste género, análises que se apresentam como bastante intuitivas,
com base na ideia de que um conceito, como o conceito de solteiro, não pode ser analisado
em componentes que pertencem a classes de coisas diferentes (casado e homem), então
também não deveríamos rejeitar a possibilidade de uma análise do conceito de
conhecimento em termos de componentes que pertencem a classes de coisas diferentes
(a classe das coisas mentais: crença; e a classe de coisas não-mentais: verdade, justificação,
etc). Dado que Cassam pensa que o primeiro argumento de Williamson não exclui à partida
análises como um solteiro é um homem não casado, pensa também que esse argumento
não exclui a possibilidade de uma análise como o conheci mento é crença verdadeira + X.
Apesar de o esforço de Cassam ser meritório, devemos questionar se é de facto
bem-sucedido. O problema é que talvez seja possível aceitar-se a análise do conceito
solteiro sem ter de se aceitar simultaneamente a análise do conceito conhecer. A primeira
135
análise aparece na forma de uma proposição analítica, a qual é verdadeira apenas à custa
do significado dos seus constituintes, estabelecendo também uma necessidade
conceptual.101 Já a segunda análise não parece estabelecer nenhuma das anteriores. Com
efeito,àaà e dadeàdaàp oposiç oà oà o he i e toà à e çaà e dadei a +àX à e à ueà aisà
u aà ezà X à podeà to a à
iosà alo es à
oà apa e taà pode à se à esta ele idaà ape asà à
custa dos termos envolvidos nessa proposição. Por conseguinte, a proposição não pode ser
analítica. E, por outro lado, não se vê como poderia ser essa proposição uma necessidade
o eptual,à oà es oàse tidoàe à ueàs oà e essidadesà o eptuais,àpo àexe plo,à u à
solteiro é um homem não- asado à ouà aà guaà à H 2O . Se esta avaliação for correcta, o
paralelo acima descrito e, logo, a objecção de Cassam ao primeiro argumento de
Williamson correm o perigo de se desmoronar.
Damos agora a nossa atenção à perspectiva de Cassam sobre o problema do
estado. O peso da sua crítica neste particular recai sobre a pretensão de Williamson
segundo a qual o conhecimento não é um híbrido metafísi co. Cassam explora a intuição de
que se o conhecimento é uma atitude factiva, no sentido descrito por Williamson, então
essa atitude terá de ser mais do que um estado mental, uma vez que inclui também uma
componente não-mental. Cassam não apresenta porém razões substanciais para suportar
esta intuição. A sua crítica incide sobre a postura teórica de Williamson, reclamando que
não é a mais correcta, ao assumir a posição por defeito, isto é, ao assumir que o
conhecimento é de facto um estado mental com as características que alega ter, e que para
prová-lo basta mostrar que as posições contrárias estão de alguma forma equivocadas. Tal
como admitido pelo próprio Cassam, não cremos que isto seja por si só suficiente para
rejeitarmos perspectiva de Williamson sobre o problema do estado, a qual merece um
pouco mais de inspecção.
Segundo Williamson (Ibidem: 49-51), o internalista (genérico)102 assenta a sua
pretensão de que o conhecimento é factorizável, em componentes mentais e não-mentais,
porque não é um estado mental. Para se compreender o argumento que Williamson atribui
101
Aliás, o próprio Williamson refere-se ao conceito de solteiro como uma excepção à habitual dificuldade em se
encontrar um conceito analisável, não como um protótipo dessa possibilidade. Cf. Williamson (2000: 31).
102
O internalismo referido aqui é uma teoria sobre estados mentais, não a teoria epistemológica sobre a origem da
justificação (ou do conhecimento) que visitámos no primeiro interlúdio.
136
ao internalista, há que rever sucintamente a maquinaria conceptual que o primeiro avança
para circunscrever estados e condições.
Uma condição restrita (narrow) é uma condição tal que se essa condição obtém no
caso a em que um agente está determinada configuração física interna, então obtém no
caso b em que um agente está exactamente na mesma configuração física. Por exemplo,
seà aà o diç oà C à ...sa eà ueà p... obtém no caso a para S quando este está numa
determinada configuração física, então C também obtém no caso b em que um agente está
exactamente na mesma condição física que S está em a. Nesta acepção, condições restritas
são condições supervenientes em relação ao estado físico interno dos agentes (Ibidem: 51
ss).103 C será uma condição estendida (broad) se não for restrita.
Uma condição ambiental (environmental) é uma condição tal que se essa condição
obtém no caso a em que o ambiente tem uma determinada configuração (física, externa
relativamente ao agente e à sua mente), então também obtém no caso b em que o
ambiente está na exactamente mesma configuração. Nesta acepção, condições ambientais
são condições supervenientes em relação ao estado físico do ambiente.
A condição C é uma condição compósita (composite) se, e só se, é a combinação de
uma condição restrita, interna, e de uma condição ambiental, externa. A condição C é
primária (prime) se, e só se, não é compósita (Ibidem: 65-67).104
Às condições restritas, estendidas, compósitas e primárias correspondem estados,
estados que adoptam a mesma designação que essas condições.
Agora, Williamson chama internalismo à teoria segundo a qual estados mentais são
estados/condições restritos, quer dizer, estados mentais são estados supervenientes
apenas em relação ao estado físico interno de um agente. Tendo em conta esta
interpretação, o internalismo recusa que o conhecimento seja um estado/condição
mental, uma vez que recusa que seja um estado/condição restrito.
Na base desta recusa está a ideia, incontroversa, também segundo Williamson
(Ibidem: 55), de que é possível divisar casos em que o agente está exactamente na mesma
configuração física em a e b, mas C obtém em a e não em b. Esses são casos nos quais o
103
Casos são, neste sentido, mundos possíveis centrados no agente.
104
. Para uma caracterização alternativa de condição primária, Cf. Brueckner (2002: 97-202).
137
estado interno dos agentes é o mesmo, mas em que o agente no caso a sabe que p e o
agente no caso b não sabe que p. Por exemplo, no caso a, o agente está num determinado
estado físico interno e sabe que está um ecrã de computador à sua frente porque (além de
ter o seu sistema cognitivo em perfeitas condições de funcionamento) vê um ecrã de
computador à sua frente, o qual é a origem da sua percepção. No caso b, o agente está
exactamente no mesmo estado físico que o agente em a mas, vítima de uma ilusão massiva
(induzida por cientista, máquina, génio, etc.) não vê um ecrã à sua frente, simplesmente
porque não existe tal ecrã, apenas a ilusão de que existe. Por conseguinte, S sabe que está
um ecrã à sua frente no caso a mas não no caso b. Conclui-se então que C, tal como definida
acima, terá de ser uma condição estendida, uma vez que não é superveniente apenas em
relação ao estado físico interno de um agente.
Williamson pensa contudo que a pretensão internalista s egundo a qual o estado
de conhecimento não é um estado mental, sendo por isso factorizável em factores mentais
e extra-mentais, está equivocada. Com efeito, Williamson argumenta que o conhecimento
é, simultaneamente, um estado mental, um estado/condição estendido e um
estado/condição primário. Uma revisão dos seus argumentos a favor desta perspectiva não
cai porém no âmbito deste trabalho. Desejamos apenas salientar que parece existir alguma
tensão entre a ideia de que o conhecimento é um estado/condição estendido e a ideia de
que é um estado/condição primário.
Com efeito, parece-nos, a ideia de um estado condição/estendido acomoda prima
facie melhor a ideia de que esse estado/condição é um estado/condição compósito do que
propriamente a ideia de que é um estado/condição primário. Dizemos isto porque não
conseguimos vislumbrar uma maneira consistente de fugir ao problema de que se C é uma
condição estendida, dependendo não apenas do estado físi co do agente, mas também de
factores externos a esse estado físico, então também depende de algum modo do
ambiente. A estar correcta, esta perspectiva obriga a que C seja uma condição compósita
e não primária. Se o for, então o estado/condição C é decomponível/factorizável em
elementos internos e externos. Por conseguinte, supondo ainda que esse é o caso, o
conceito de conhecimento poderia ser analisado em conceitos (relativos a componentes)
internos e externos do estado de conhecimento.
138
Colocando-nos por momentos na pele do defensor do pro grama analítico (da qual
iremos sair no final da secção), podemos talvez retomar a estratégia de mostrar que há
uma incongruência na ideia de Williamson segundo a qual o conhecimento é um estado
mental puro, no sentido em que não é factorizável em componentes mentais e extramentais. Apresentamos de seguida um gráfico (vide Figura 1) que esquematiza as relações
conceptuais e metafísicas definidas por Williamson que t emos vindo a referir até este
momento.
Orientação
Conhecimento
Crença
verdadeira
Crença
simpliciter
Metafísica
Estado
mental
Estado nãomental
Estado
mental
Conceptual
Conceito
mental
Conceito
não-mental
Conceito
mental
Figura 1
Note-se que a principal razão que leva Williamson (Ibidem: 27) a propor que o
estado de crença verdadeira não é um estado mental é o alegado facto de esse estado não
ser puramente mental, uma vez que depende de um elemento não-mental: a condição da
verdade. Este diagnóstico é todavia rejeitado no que respeita ao estado do conhecimento
e ao estado de crença simpliciter, pois, alegadamente, esses estados não admitem
elementos extra-mentais.
Este diagnóstico parece contudo ser contra-intuitivo. Uma forma rude mas
porventura eficiente de avaliar o conflito de intuições é a seguinte. Suponha-se que...
(1) Se um estado é puramente mental, então esse estado não inclui elementos extramentais.
(2) O estado de crença verdadeira inclui elementos extra-mentais.
Portanto, por 1, 2 e Modus Tollens, segue-seà ue…à
139
(3) O estado de crença verdadeira não é um estado puramente mental.
Esta interpretação parece acomodar a perspectiva de Williamson. Suponha-se
então agora que...
(4) O estado de conhecer é um estado puramente mental.
Por 1, 4 e Modus Ponens, segue-se que
(5) O estado de conhecer não inclui elementos extra-mentais.
Contudo, também para Williamson,
(6) O estado de conhecer é uma atitude proposicional factiva.
Ora,
(7) Atitudes proposicionais factivas incluem elementos extra-mentais: uma
proposição—supondo que proposições são entidades extra-mentais—e a verdade
de uma proposição.
Portanto, por 4, 5, 6, 7 e introdução da conjunção obtém-se que...
(8) O estado de conhecer é um estado puramente mental (por 4) e uma atitude
proposicional factiva (por 6), não incluindo (por 5) e incluindo (por 7) elementos
extra-mentais.
Estamos a pensar em 8 quando nos colocamos na pele do defensor do projecto
analítico e sugerimos que há um conflito de intuições na posição segundo a qual o
estado/condição conhecimento é simultaneamente compósito e primário. Talvez o
defensor do projecto analítico não tenha aqui suficiente s bases para reclamar que existe
uma contradição formal, mas talvez tenha bases para sugerir que há intuições
contraditórias a operar entre 1 e 8.
Assumindo contudo, algo ambiciosamente, é certo, que o defensor do projecto
analítico tem uma reductio ad absurdum entre mãos, segue-se que pelo menos uma
premissa de 1 a 7 tem de ser falsa. Ora, uma vez que 6 e 7 são premissas relativamente
pacíficas, e uma vez que 2 e 3 não parecem ser diretamente influentes para o
estabelecimento de 8, segue-se que 1, 4 e 5 se apresentam como as melhores candidatas
a serem falsas. Agora, não parece ser preciso determinar com exactidão qual de entre estas
140
premissas é falsa (a haver apenas uma falsa) para se compreender que, seja ela qual for,
há um problema com a ideia de que o conhecimento é um estado puramente mental, no
sentido em que é um estado que não inclui condições extra-mentais.
Se a premissa falsa for a 1, então não se seguirá do facto de um estado ser
puramente mental que esse estado não inclua elementos extra-mentais. Se assim for, não
é por incluir elementos extra-mentais que o conhecimento deixará de ser um estado
puramente mental. Mas, no reverso da medalha, também não será por incluir elementos
extra-mentais que o estado de acreditar com verdade deixará de ser um estado puramente
mental. E se ambos forem estados puramente mentais, menor será a probabilidade de
existir uma discrepância entre as extensões dos conceitos, o que abona a favor da hipótese
de que esse conceito pode ser analisado à guisa tradicional.
No caso de 4 ou 5 serem falsas, o defensor do projecto analítico poderá reclamar
que por o conhecimento não ser um estado puramente mental, 4, ou por incluir condições
extra-mentais, 5, não fica por isso bloqueada a possibilidade de análise e respectiva
decomposição do seu conceito em condições mentais e extra-mentais.
Nada parece haver intuitivamente de errado com a hipótese segundo a qual
estados mentais incluem elementos não-mentais. O esquema mais intuitivo para o
defensor do projecto analítico parece portanto ser o descrito pela seguinte figura.
Crença
verdadeira
Crença
simpliciter
Orientação
Conhecimento
Metafísica
Estado mental
Estado mental
Estado mental
Agregação
elementos
extra-mentais
elementos
extra-mentais
elementos
extra-mentais
Conceptual
Conceito nãopuramente
mental
Conceito nãopuramente
mental
Conceito nãopuramente
mental
Figura 2
Note-se que mesmo o estado de crença simpliciter, a haver um tal estado, parece
admitir elementos extra-mentais, e.g., proposições. Isto contribui para a plausibilidade da
141
ideia de que uma larga maioria, ou mesmo todas as atitudes proposicionais, factivas ou
não, incluem componentes mentais e extra-mentais. Esta não é contudo uma hipótese que
possamos demonstrar aqui. Entregamo-la por isso desde já ao defensor do projecto
analítico, para fazer dela o que achar por bem.
Mesmo supondo que o defensor do projecto analítico consegue de algum modo
mitigar a força do primeiro argumento de Williamson a favor da TNA, isso não significa que
o assunto esteja resolvido. Com efeito, o segundo argumento de Williamson contra a
possibilidade de análise coloca problemas igualmente complicados para o projecto de
análise do conceito de conhecimento. Este segundo argumento visa estabelecer que
qualquer análise do conceito de conhecimento é viciosamente circular e, por conseguinte,
desinteressante.
Viu-se que Williamson aceita que o conhecimento que p implica que o agente tenha
uma crença verdadeira que p. O conhecimento implica crença verdadeira uma vez que, tal
como sugerido pelo próprio Williamson (Ibidem: 34), é a mais inclusiva das atitudes
proposicionais factivas. 105 Apesar da sua relutância para com o projecto analítico, também
Williamson formula (Ibidem: 34) classicamente a implicação do conhecimento para a
crença verdadeira: se S sabe que p, então S tem de ter uma crença que p e tem de ser
verdade que p (Ibidem: 8-10 e 41-44). Parece pois, uma vez mais, que uma decomposição
informativa do conceito de conhecimento em é de algum modo possível. Williamson
discorda contudo deste diagnóstico, pois pensa que qual quer análise do conceito de
o he i e toà usa doà aà fó
ulaà o he i e toà à e çaà e dadei aà +à X à a a aà po à deà
alguma forma conter o próprio conceito de conhecimento no analisans, sendo portanto
viciosamente circular. O argumento procede por analogia, eis a passagem relevante:
“eà Gà [aà e ça]à à e ess iaà pa aà Fà [oà o he i e to],à oà te à deà ha e à u aà
condição suplementar H [e.g., a justificação], definível independentemente de F, tal
que a conjunção de G e H é necessária e suficiente para F. Ser colorido, por exemplo,
é necessário para ser vermelho, mas se procuramos uma outra condição que em
conjunção com ser colorido seja necessária e suficiente para ser vermelho, apenas
105
Trata-se alegadamente da mais inclusiva das atitudes factivas porque basta ter uma qualquer atitude factiva, por
exemplo, ver que p ou recordar que p, para a ter.
142
e o t a osà o diçõesà defi í eisà e à te
a e elhadoàseà olo ido. (Ibidem: 32)
osà deà
e
elho :à se à e
elho,à se à
Para facilitar a sua compreensão, a analogia pode ser esquematizada do seguinte
modo:
Analisandum
Conhecimento
Analisans
Crença
Verdade
Justificação
Conhecimento
Figura 3
Analisandum
Vermelho
Analisans
Avermelhado
Colorido
Vermelho
Figura 4
O esquema revela que o analisans de alguma maneira inclui e contém o analisadum
em ambos os casos, e há portanto, também em ambos os casos, uma circularidade na
análise. Williamson pensa que esta circularidade impede que as análises sejam
informativas e, por conseguinte, impede que sejam interessantes.106
106
Williamson descarta também a possibilidade de uma concepção disjuntiva de crença em termos de
conhecimento e opinião. Segundo ele, não podemos usar os termos “opinião” e “conhecimento” sem estamos a usar
simultaneamente o conceito de crença. Por consequência, também aqui existe circularidade explicativa. (Cf. 2000: 44-45).
143
Cassam não concorda com este resultado. Segundo ele (2009), esta analogia não
obtém porque os analisanda em cada extremo da analogia, respectivamente, o conceito
de conhecimento e o conceito vermelho, pertencem a diferentes classes de conceitos.
Cassam vale-se da clássica distinção lockeana entre ideias simples e complexas para
estabelecer a sua posição. Para ele, os conceitos de vermelho e de conhecimento assentam
em diferentes tipos de ideias, tendo por isso diferentes estruturas, propriedades e
comportamentos sob análise. Enquanto ao conceito de vermelho corresponde, por assim
dizer, uma ideia simples (grosso modo, uma ideia adquirida com base apenas na sensação),
ao conceito de conhecimento corresponde uma ideia complexa (grosso modo, uma ideia
adquirida não apenas com base na sensação mas também na reflexão). Daqui segue-se
alegadamente que, por um lado, o conceito de vermelho não é susceptível de análise por
ser, digamos assim, um conceito simples, e, por outro lado, o conceito conhecimento é
susceptível de análise, uma vez que é, digamos assim também, um conceito complexo.
Mais uma vez, a estratégia de Cassam pode contudo não ser a melhor. Com efeito,
apesar de aparentemente mostrar que esta analogia não colhe, uma vez que emprega
conceitos susceptíveis de serem identificados com ideias simples e complexas, é difícil
perceber se é possível aplicá-la a outras analogias sugeridas por Williamson que empregam
apenas conceitos susceptíveis de serem identificados com ideias complexas, como por
exemplo o conceito de paternidade. Isto parece inviabilizar o sucesso da objecção.
Talvez as dificuldades levantadas pelo segundo argumento não sejam
absolutamente fatais para o projecto analítico. O defensor deste projecto pode talvez
tentar negar que todas as tentativas de análise do conceito de conhecimento sejam
circulares. Alternativamente, pode também tentar defender que, sendo essas tentativas
de análise circulares, pelo menos algumas (e.g., Sosa 1974: 394) são virtuosamente
circulares, na medida em que são suficientemente informativas ao ponto de poderem ser
consideradas interessantes do ponto de vista filosófico.
Uma forma que o defensor do projecto analítico tem de sustentar qualquer um
destes pontos é procedendo por exemplos. Se ele conseguir apresentar pelo menos um
exemplo de uma análise não-circular e informativa, então terá mostrado que algo está
menos bem com a acusação de circularidade viciosa feita por Williamson. E se conseguir
144
apresentar pelo menos um exemplo de uma análise circular mas informativa, então terá
mostrado que há análises circulares do conceito de conhecimento que podem ser
interessantes.107 O que vamos fazer de seguida é pormo-nos condicionalmente na pele do
defensor do projecto analítico, tentando apoiar o melhor possível o seu ponto.
A teoria causal de Goldman apresenta o que parece ser uma análise não-circular e
informativa do conceito de conhecimento (vide acima secção 2.3.1.) Parece que essa teoria
apresenta uma análise informativa uma vez que é difícil aceitar que o conceito de
conhecimento esteja contido no seguinte analisans:
... à àoà asoà ueàp, e a crença de S que p está numa relação causal apropriada com
o facto descrito por p
O conceito de conhecimento não está aparentemente incluído na noção de
verdade, pois pode ser verdade que p sem que se saiba que p, o que, para usar uma
et fo a,àti aàoà o eitoàdeà o he i e toàdaà esfe a àdoà o eitoàdeà e dade.àPo ta to,à
o conceito de conhecimento não está incluído, por assim dizer, na condição ´é o caso que
p`. Por outro lado, não se vislumbra que papel desempenha o conceito de conhecimento
oà i te io àdaà o diç oà´aà e çaàdeà“à ueàp está numa relação causal apropriada com o
facto descrito por p`. Nada há na condição que seja eminentemente do foro epistémico ou
que, directa ou indiretamente, remeta para o conceito de conhecimento. Portanto,
estamos aparentemente na presença de uma análise do conceito de conhecimento que
não contém o analisandum no analisans. Para ajudar, a análise é claramente informativa,
pois introduz uma condição necessária para todos ou quase todos os casos que estaríamos
dispostos a rotular como casos de conhecimento. Se assim for, esta proposta constitui-se
plausivelmente como um contra-exemplo à pretensão de que não há análises
simultaneamente não-circulares, informativas, e por isso interessantes, do conceito de
conhecimento.
Há, contudo, um problema que bloqueia de imediato esta pretensão. É que,
informativa ou não, a proposta falha em fornecer as condições suficientes para o
107
Assumo pois sem discussão prévia, embora também condicionalmente, que o que faz a diferença entre um
círculo explicativo vicioso e um círculo explicativo virtuoso é o facto de este último ser informativo, enquanto o primeiro
não.
145
conhecimento e, por conseguinte, não se trata de uma análise. A fortiori, uma proposta
que não é uma análise não pode ser uma análise informativa, isto independentemente de
essa proposta ser de alguma forma informativa no que concerne a algumas condições
necessárias para haver conhecimento. O defensor do projecto analítico não pode pois
seguir por este trilho.
Williamson antecipa a tentativa de salvar o projecto analítico recorrendo a
propostas que são aproximações sofisticadas a uma análise do conceito de conhecimento .
Também esta possibilidade é por ele rejeitada. O seu ponto (Ibidem: 4 passim) é
justamente que pode haver muitas propostas suficientemente rebuscadas ao ponto de
estarem muito próximas de serem uma análise, sem no entanto haver realmente uma que
o seja.108 Esta é uma hipótese que, a ser correcta, remete imediatamente o projecto
analítico para o arquivo morto.
Uma outra forma de encarar o problema é supor que há várias formas de elucidar
o conceito e o fenómeno do conhecimento em função do que é circunstancialmente
necessário e suficiente para haver conhecimento. Com efeito, aceita-se geralmente que
diversas pseudo-análises, quer dizer, tentativas de análise que foram sendo falsificadas e
foram tombando quando passadas pelo crivo de contra-exemplos, lançam luz sobre, pelo
menos, algumas condições necessárias para haver conhecimento. Essas elucidações,
vamos chamar-lhes assim, embora não fossem análises, seriam dessa forma propostas
interessantes do ponto de vista filosófico, pois seriam de algum modo informativas. Esta é
uma via que desejamos explorar na segunda parte deste trabalho.
Note-se que, não sendo uma análise, a própria elucidação que Williamson dá do
conceito de conhecimento também usa conceitos (Cf. Goldman 2009). Por exemplo, o
conceito de estado, o conceito de atitude, o conceito de proposição, o conceito de
factividade, o conceito inclusividade, etc. Apesar de rejeitar o projecto analítico,
Williamson mantém aparentemente o desiderato de esclarecer o conceito de
conhecimento usando conceitos mais primitivos (ou tão primitivos), mais claros (ou tão
claros) e mais informativos (ou tão informativos) do qu e esse conceito.
108
Principalmente a analogia entre círculos e triângulos, por um lado, e o conceito de conhecimento e análises do
conceito de conhecimento, por outro.
146
Dito isto, voltamo-nos agora para a segunda hipótese que propusemos estar ao
alcance do defensor do projecto analítico. Trata-se da hipótese segundo a qual há análises
circulares mas informativas do conceito de conhecimento. O defensor do projecto analítico
pode talvez apontar a análise do conhecimento de Pritchard como um caso que confirma
esta hipótese. Recordando a referida análise, temos que...
Solução Híbrida (SH)—S sabe que p se e só se a crença verdadeira e segura de S que
p é o produto das capacidades cognitivas relevantes de S (tal que o sucesso cognitivo
seguro de S é significativamente atribuível à actividade cognitiva de S)
Sob inspecção, é crível que o conceito de conhecimento esteja de algum modo
incluído no analisans desta tentativa de análise. Note-se que esse conceito parece
desempenhar um papel importante na formulação do princípio de segurança que está na
base da condição de segurança contida na análise. Recordando o PS:
PS—Se S sabe que p, então a crença verdadeira de S que p não poderia facilmente
ter sido falsa. (vide acima secção 5).
Éà otó ioà ueàaà o diç oà
e çaà e dadei aàeà segura de S que p” em SH assenta
no PS, sendo também evidente que o conceito de conhecimento está de algum modo
previamente incluído do PS. Presumivelmente, pois, a tentativa de análise na base da SH é
circular.109 Segue-se todavia daqui que o analisans sugerido por Pritchard não acrescenta
qualquer informação relevante acerca do analisandum? Não vemos como. O analisans usa
de facto o conceito (ou a noção) de conhecimento, mas ao fazê-lo consegue sem dúvida
acrescentar informação relevante, as noções de segurança e de virtude epistémica, noções
que servem para lançar luz sobre o conceito e o fenómeno do conhecimento. Neste
sentido, a SH não apresenta um círculo vicioso mas sim de um círculo virtuoso. Pode ser
alegado nesta base que a tentativa de análise é, neste sentido, não só uma análise, como
uma análise interessante.
Mas, mais uma vez, supondo, como supusemos acima (secção 5.2.) que a SH é falsa,
então não pode ser uma análise, pois a tentativa de análise que lhe subjaz não é bemsucedida. Sendo falsas, tentativas de análise não são realmente análises, por mais
109
O mesmo parece aplicar-se à outra parte da SH que preconiza que o conhecimento tem de ser o resultado de
virtudes cognitivas. Esta última expressão parece já pressupor o conceito de conhecimento.
147
informativas que possam ser. Aos olhos do crítico do p rojecto analítico, essas tentativas
constituem-se, quanto muito, como decomposições imprecisas, incompletas, falsas, ou
todas as anteriores, do conceito de conhecimento. Segundo esta exigência imposta pela
a epç oà o e io alà deà a liseà o eptual ,à
oà seà e o t aà dispo í elà ual ue à
análise do conceito de conhecimento, porquanto todas de composições (as putativas
análises) sugeridas até este momento são falsas. 110
Tanto quanto podemos perceber, há duas formas de o defensor do projecto
analítico responder a esta objecção. A primeira é contrariar a acepção convencional de
análise acima referida. A estratégia passaria pois por arregimentar forças contra essa
acepção e argumentar a favor de uma acepção mais fraca deà a
lise à ueà pudesseà
a o oda à aà i tuiç oà a alíti a à doà defe so à doà p oje toà a alíti o.à áà segu daà forma de
responder passa por contornar o problema, concedendo ao crítico do projecto analítico o
ponto de que estas tentativas de análise não são realmente análises, mas mostrando que,
apesar de incompletas e imprecisas, podem ser utilizadas para lançar luz sobre o conceito
de conhecimento. Esta segunda resposta tem a vantagem de não ir contra o sentido
t adi io alàdeà a lise ,à asà a egaàoàó usàdeà ost a àe à ueà edidaàs oàpe ti e tesàeà
interessantes as elucidações que não são análises.
Centramo-nos agora no terceiro argumento que Williamson levanta contra o
projecto analítico. Basicamente, o argumento usa as conclusões dos dois primeiros
argumentos como premissas, às quais acrescenta uma premissa de carácter histórico, a
constatação de que nenhuma tentativa de análise foi, até à data, bem-sucedida.
Não iremos medir forças com este argumento. Tal como Goldman (2009) et al, não
cremos que a conjunção dos três argumentos seja de per se suficiente para se poder
p o la a à oà fi à daà episte ologiaà doà a tiga e te à o oà lheà ha aà Gold a ,à u aà
epistemologia que assenta ou no projecto analítico ou nas intuições que lhe subjazem.
Noutra frente, Lycan (2006) pensa que o Problema de Gettier continua a necessitar
de uma resposta mesmo que não seja possível encontrar uma análise para o
conhecimento. O ponto de Lycan é o de que há que explicar por que razão inúmeros casos
de crença verdadeira justificada são (consensualmente) casos de conhecimento e outros
110
Devo o esclarecimento deste ponto ao Professor João Branquinho.
148
não o são. No nosso entender, Lycan chama a atenção para um importante ponto. Esse
ponto é o de que a DTC apresenta as condições necessárias e suficientes para múltiplos
asosà deà “à sa eà ueà p ,à e
o aà
oà pa aà todas. A questão relevante que parece daí
resultar é: o que faz com que essas condições sejam suficientes para esses casos e não para
outros?
A resposta de Williamson (2000: 184 ss) para este problema é bem conhecida. Para
ele, casos de crença verdadeira justificada que são conhecimento são todos aqueles casos
em que a justificação advém do facto de o agente ter suficiente evidência, sendo que essa
evidência só pode ser conhecimento. Assim, o conceito de crença verdadeira justificada
não é conceptualmente anterior ao conceito de conhecimento, mas sim o contrário. É este
que explicita aquele, e não, como era tradicionalmente suposto, aquele que explicita este.
Claro que, ao apresentar esta concepção, Williamson compromete-se de alguma forma
com a ideia de que várias condições têm de ser satisfeitas para que um agente tenha
evidência, nomeadamente que a evidência confira à crença um elevado grau de
probabilidade de ser verdadeira, que seja fiável, etc. Se considerarmos que a estas e outras
condições correspondem conceitos, diríamos que a concepção de Williamson incorre no
risco de cair na armadilha que o seu autor montou para o projecto de análise.
Pensamos que há pelo menos três formas de defender a intuição que sustenta o
projecto analítico. A primeira, e talvez mais eficaz, passa muito provavelmente por
submeter uma análise bem-sucedida do conceito de conhecimento. A segunda passa por
mostrar que os argumentos de Williamson não colhem. A terceira passa por mostrar que
é possível usar as intuições que subjazem ao projecto analítico para elucidar o conceito e
o fenómeno do conhecimento, sem no entanto submeter uma análise. Tentaremos esta
terceira via na segunda parte do presente trabalho.
149
SEGUNDA PARTE
150
Resumo da segunda parte
O objectivo da segunda parte do trabalho é ensaiar, enquanto hipótese de trabalho
e tanto quanto para nós possível, uma elucidação das condições necessárias e suficientes
para ocorrer um estado maximamente positivo do ponto de vista epistémico, o qual
tentaremos identificar com o estado de conhecimento proposicional.
6. Rumo a um modelo da garantia epistémica
6.1. Uma hipótese de trabalho
A primeira parte do trabalho revelou uma amostra significativa de tentativas
falhadas de análise do conceito de conhecimento (propo sicional). Tal amostra levou-nos à
conclusão de que encontrar uma análise deste conceito (supondo que é possível encontrar
essa análise) não é de todo uma tarefa fácil. Deixando desde já espaço para quem desejar
prosseguir o projecto analítico, vamos por ora pô-lo de parte. Não desejamos pois
apresentar uma análise do conhecimento nesta segunda parte do nosso trabalho. Mas isso
não é porém impeditivo de apresentarmos uma elucidação do fenómeno. A elucidação que
propomos como hipótese de trabalho e que iremos defender é a seguinte:
CON—Um estado X de S é conhecimento de que p se S tem uma crença que p
excelente do ponto de vista epistémico.
Note-se que não submetemos CON como uma análise ou uma definição. A
elucidação não é uma análise, pois, se o fosse, o conceito no definiendum não ocorreria,
como ocorre, no definiens. Com efeito, o conceito de conhecimento está incluído na
exp ess oà epist
i o ,àu aà ezà ueàaàexp ess oà epistêmê à ἐπιστήμη), quase sempre
t aduzidaàpa aà sa e àouà o he i e to ,àest à aào ige àdesseà o eito (Cf. Santos 2005,
nota 6, e Parry 2008). Não obstante, tentaremos mostrar que a elucidação, tal como a
concebemos, é informativa, o que, a ser o caso, lhe confere algum valor filosófico.
Feito este reparo, importa- osà ago aà expli ita à aà oç oà deà
po toàdeà istaàepist
e çaà ex ele teà doà
i o .àáà ossaàp opostaàdeàelu idaç o é a seguinte:
151
EXC—Uma crença que p é excelente do ponto de vista epistémico se for um estado
epistémico maximamente positivo. 111
Esta explicitação também não pretende ser uma análise, exactamente pelas
mesmas razões que aduzimos para CON. Mas, mais uma vez, pensamos ser possível usar a
noção no explanans para lançar luz sobre a noção no explanandum, sendo por isso a
elucidação informativa e, por conseguinte, filosoficamente interessante.
Importa-nos pois agora esclarecer a noção de estado epistémico maximamente
positivo (doravante abreviado para EEMP). Pensamos que um estado de crença que p é
maximamente positivo do ponto de vista epistémico se...
EEMP
i)
Há um agente S, tal que S tem uma atitude de aceitação, i.e., de crença, da
proposição p;
ii)
A crença que p de S descrita em i está epistemicamente garantida;
iii)
A garantia, tal como descrita em ii, faz com que a crença de S que p descrita
em i seja apropriadamente verdadeira e (ultima facie) infalsificável.
Mais uma vez chamamos a atenção para o facto de, pelos mesmos motivos
apontados para CON e EXC, não oferecermos EEMP como uma análise. Por outro lado, não
reclamamos que estas três formas de elucidar o fenómeno do conhecimento proposicional
são as únicas ou sequer as melhores formas de o fazer. Admitimos, sem reserva, a
possibilidade de existirem muitas formas alternativas e mais bem-sucedidas de elucidar a
natureza do fenómeno.
Desejamos ainda introduzir uma consideração preliminar a respeito destas
condições. Prende-seà o à oà
odoà o oà e te de osà osà te
osà epist
i oa ,
episte i a e te ,àet .àOà íti oàpodeàte ta àde iti àasàelu idaçõesàa i aàap ese tadasà
com o argumento de que estamos a usar os termos no sentido habitual, quer dizer, no
sentido de conhecimento, o que implicaria uma óbvia circularidade explicativa. Mas a
verdade é que não desejamos fazer tal paráfrase. Deixaremos de fora o sentido de
111
A noção de excelência aqui empregue inspira-se claramente na venerável noção acarinhada por Aristóteles e
outros filósofos. Reconhecidamente, este identificava dois tipos de excelências, as éticas e as teóricas, as quais seriam
disposições dignas de louvor. Vide Aristóteles, Ética a Nicómaco, 2004, Livro I, 1103 a1. Adaptamos aqui a noção e
aplicamo-la não a pessoas mas a coisas, neste caso, a estados de crença.
152
epist
i o à ueàp i ilegiaàaàha itualà oç oàdeà o he i e toàeàda e osàespe ialà ele oà
aoà se tidoà ueà p i ilegiaà aà oç oà deà ap op iada e teà e dadei o .à áà p i ei aà oç oà
implica a segunda, mas a segunda não implica a primeira. Esse facto incute-nos a obrigação
de apresentarmos uma teoria das condições necessárias e suficientes para um estado de
crença que p estar numa relação apropriada com a verdade de p. Como vimos na
elucidação que demos de um EEMP, designaremos por garantia epistémica a propriedade
que possibilita e potencia essa relação. 112 As próximas secções são dedicadas a explicitar a
natureza de um estado de crença garantida de tal modo que, não apenas a crença atinge
apropriadamente a verdade de p, como é infalsificável. Um tal estado é, da nossa
perspectiva, um estado de crença epistemicamente garantida ou, alternativamente, um
EEMP.
6.2. Intuições e condições
Quase sempre os aspectos relevantes da história de um problema revelam ser o
ponto de partida privilegiado para se iniciar uma investigação sobre esse problema.
Pensamos que o nosso caso não foge à regra. Assim, julgamos ser possível descrever um
conjunto de intuições, cinco, para sermos mais exactos, que nem sempre conviveram bem
na história, distante e recente, de tentativas encetadas no sentido de elucidar a natureza
de um EEMP. A primeira parte deste trabalho, no qual fizemos uma retrospectiva histórica
do referido problema, identificou genericamente algumas dessas intuições. No sentido de
preparar o terreno para introduzir a nossa proposta, é agora chegado o momento de as
identificar com outro grau de pormenor.
A primeira intuição, pouco polémica, mas ainda assim longe de ser consensual, é a
de que há um conjunto de condições que têm de ser satisfeitas (condições necessárias)
para que ocorra um EEMP. Vamos chamar Intuição da Necessidade das Condições a esta
intuição.
112
A manobra poderia ajudar-nos a cimentar a ideia de que CON, EXC e EEMP são realmente análises, uma vez
que o uso de “epistémico” que nelas fazemos não se refere ao conhecimento. Mas isso iria comprometer-nos com a
possibilidade de se poder analisar o conceito de conhecimento, o que não desejamos fazer pelas razões apontadas
anteriormente.
153
A segunda intuição, mais polémica que a primeira, mas que ainda assim reúne
bastantes adeptos, indica que a satisfação de um conjunto de condições é suficiente para
que ocorra um EEMP. Vamos chamar Intuição da Suficiência das Condições a esta intuição.
A terceira intuição é a de que um EEMP é no fim de contas um estado de crença
verdadeira que, por exibir uma determinada propriedade que se revela crucial do ponto
de vista epistémico, além da propriedade de ser verdadeira, se distingue das crenças
meramente verdadeiras que não exibem essa propriedade. Como vimos, esta intuição
remonta aos filósofos gregos clássicos, em especial a Platão (Cf. secção 1.7.) Vamos chamar
Intuição da Terceira Condição a esta intuição.
A quarta intuição é a de que tem de existir uma ligação adequada entre a crença
de que p e a verdade de que p, sem o que não poderá ocorrer um EEMP. Faz pois
aparentemente todo o sentido apelidar esta intuição de Intuição da Ligação Adequada.
A quinta intuição, talvez menos explícita e menos clara na literatura, mas ainda
assim perfeitamente identificável na mesma, é a de que só haverá a satisfação da condição
que permite essa ligação apropriada entre crença e verdade, geralmente a condição
identificada pela Intuição da Terceira Condição (e.g., justificação, garantia, etc), no caso de
serem satisfeitas outras condições. Não sendo uma tarefa fácil nomear esta condição,
optamos por chamá-la Intuição das Subcondições.
Uma inspecção da literatura como a que fizemos na primeira parte mostra que, de
uma forma ou de outra, algumas destas intuições, ou mesmo todas, estiveram na origem
do próprio projecto analítico. Infelizmente para os epistemólogos, porém, essas intuições
parecem estar na base de outras que lhes são contrárias ou contraditórias, como por
exemplo as intuições de Williamson acerca da não-analisibi lidade do conceito (e do estado)
de conhecimento. Senão vejamos. A verdade é que Williamson não rejeita a Intuição da
Necessidade das Condições, pois considera, explicitamente, diga-se, que a condição de
crença e a condição de verdade são condições necessárias para haver conhecimento.
Apesar disso, na medida em que rejeita a possibilidade de uma análise do conceito de
conhecimento em termos das condições de crença, de verdade e outras, pode dizer-se que
demite de forma categórica a Intuição da Suficiência. Curiosamente, porém, Williamson
não demite nem a Intuição da Ligação Adequada nem a Intuição das Subcondições, pois a
154
sua concepção fiabilista e probabilista da justificação, da evidência e do conhecimento
indicam uma tendência para pensar que deve existir uma ligação adequada entre a crença
e a verdade (isto independentemente de Williamson formular ou não o problema desta
maneira), por um lado, e que essa ligação só obtém no caso de serem satisfeitas algumas
subcondições, por outro. Parece-nos que se há uma ilação a extrair deste exame à relação
existente entre a posição teórica de Williamson e as intuições que referimos é a de que
uma teoria que aceite algumas intuições e rejeite outras incorre, por melhor que seja essa
teoria do ponto de vista conceptual e argumentativo, em resultados aparentemente
contra-intuitivos. Daqui extraímos que ou se deve tentar acomodar todas estas intuições
no interior de uma única concepção, ou então, alternativamente, rejeitá-las a todas sem
excepção. Como rejeitá-las a todas é, face à força dessas intuições, uma manobra pouco
prudente do ponto de vista filosófico, a melhor opção p arece ser acomodá-las numa única
concepção.
Ensaiaremos de seguida uma tentativa de mostrar como podem todas estas
intuições ser acomodadas numa única concepção de EEMP. O primeiro episódio desta
tentativa passa por identificar, via inspecção da literatura, aqueles que são aparentemente
os desideratos epistémicos fundamentais. O ponto do exercício é justamente verificar que
condições têm de obter no sentido de acomodar a Intuição das Subcondições e a Intuição
da Ligação Adequada. Faremos isto como o auxílio de crité rios que introduziremos na
devida altura. Com base nos resultados obtidos, construímos e apresentamos depois um
modelo do processo de satisfação de condições que está na origem de uma crença
epistemicamente garantida. Com isso pretendemos acomodar a Intuição da Terceira
Condição, que no nosso caso será, como é óbvio, a condição da garantia epistémica. Como
o leitor terá oportunidade de constatar, a acomodação das intuições da Necessidade e da
Suficiência despontará naturalmente do enunciado.
6.3. Desideratos Epistémicos
6.3.1. É a justificação um desiderato epistémico legítimo?
Na linha do que é defendido por Williamson, William Al ston (2005) abraça a ideia
de que o projecto analítico tradicional está de alguma forma esgotado (Ibidem: 11-21
passim). Alston é especialmente crítico no que respeita à tentativa de tornar clara a noção
155
de justificação epistémica. Tal como Plantinga, Alston inspecciona um conjunto alargado
de propostas sobre a natureza da justificação, propostas que vêem nesta propriedade um
desiderato epistémico fundamental. Em todas encontra problemas.113
Alston propõe-se também distinguir entre o grupo das concepções deontológicas
da justificação e o grupo das concepções da justificação que é conducente à verdade. A
distinção assenta na ideia de que a justificação meramente deontológica não tem
necessariamente que ser condutiva à verdade (como também já vimos acima, na secção
. . à Éà possí elà u à age teà te à e çasà deo tologi a e te à justifi adasà asà falsas.à Po à
conseguinte, a justificação dessas crenças não pode ser conducente à verdade. Assim,
segundo a perspectiva asltoniana, a justificação deontológica e a justificação conducente
à verdade podem ocupar esferas conceptuais distintas, tendo na sua raiz desideratos
epistémicos também distintos.
Alston elenca alguns dos desideratos identificados pelas teorias justificacionistas.
Ei-los. Acessibilidade cognitiva às razões, à evidência e aos fundamentos que podem
justificar uma crença (segundo Alston, condição necessária mas não suficiente para a
justificação); conhecimento de segunda ordem sobre o status justificacional da própria
crença (também condição necessária mas não suficiente para a justificação); defesa bemsucedida do status epistémico da crença (igualmente uma condição necessária mas não
suficiente para a justificação); fiabilidade do proces so de formação da crença
(aparentemente também, uma condição necessária mas não suficiente para a justificação);
coerência com outras crenças no interior de um sistema coerente de crenças (mais uma
vez, condição necessária mas não suficiente para a justificação); a crença deve resultar do
exercício de virtudes cognitivas do agente (outra condição também necessária mas não
suficiente para a justificação); racionalidade, exercida por reflexão sobre a evidência
disponível para o agente (alegadamente, apenas condição necessária). (Ibidem: 19-20)
Posto isto, Alston recomenda que se abandone a fútil demanda por uma noção
correcta e maximamente inclusiva da justificação epistémica. O pedido sustenta-se no
argumento que do facto de haver uma pluralidade de perspectivas incompatíveis sobre a
113
Muitos dos quais já foram identificados e discutidos na primeira parte deste trabalho, em especial na secção 3.
Não iremos portanto reincidir nessa discussão.
156
noção de justificação se segue que há uma elevada probabilidade de se estar à procura de
uma propriedade fantasma, no sentido de não poder ser capturada por uma única noção
ou expressão.
Não estamos porém totalmente convencidos de que a principal premissa deste
argumento seja verdadeira. Com efeito, não parece ser um dado adquirido que as
diferentes perspectivas sobre a justificação e sobre os desideratos que lhe estão
subjacentes são incompatíveis.114 É verdade que restam poucas dúvidas sobre o facto de
haver diferentes perspectivas sobre a justificação que têm por base também diferentes
desideratos. Mas só isso não chega para mostrar que são essas perspectivas são
incompatíveis. Da diferença não se segue a incompatibilidade. Pode perguntar-se, por
exemplo, qual é o tipo de incompatibilidade aqui acti va. Trata-se talvez de
incompatibilidade lógica? Não vemos como. Não parece haver qualquer tipo de
incompatibilidade lógica entre, por exemplo, o fiabilismo e o evidencialismo. O mesmo
pode ser dito a propósito de outros pares e trios de teorias da justificação, a não ser que
Alston tenha em mente a reivindicação de suficiência que cada uma destas teorias faz
incidir sobre as propriedades que considera necessárias para haver justificação. Mas este
problema é facilmente eliminável eliminando a pretensão de suficiência ou aceitando que
essa suficiência só pode ser alcançada em conjunto com a satisfação de outras condições.
Se isto for correcto, a premissa da incompatibilidade hiperboliza aparentemente um
problema que ou não existe ou, a existir, tem solução.
Alston considera e demite outras razões que poderiam levar-nos a pensar que é
vantajoso do ponto de vista da epistemologia (e não só) preservar a demanda por tal
propriedade. Entre elas está a pretensão de muitos filósofos de que a justificação é uma
propriedade valiosa do ponto de vista epistémico. Est a é uma pretensão afastada por
Alston principalmente com base na ideia de que, sendo o principal desiderato epistémico
ter-se crenças verdadeiras, e sendo a justificação habitualmente concedida como uma
propriedade que não pode caucionar a verdade das crenças—uma vez que é vulgarmente
aceite que há crenças falsas justificadas—, e supondo adicionalmente que há crenças
114
Por exemplo, Oakley (1988: 278) parece pensar que a noção de justificação compreende diversos desideratos
epistémicos, e que o engano pode estar em supor que apenas um deles satisfaz essa noção.
157
verdadeiras mas injustificadas, segue-se que a justificação não parece ser uma propriedade
valiosa do ponto de vista epistémico.
Claro que esta demissão do valor epistémico da justificação assenta desde logo
numa concepção fraca da justificação epistémica, segundo a qual pode haver crenças
justificadas falsas ou crenças verdadeiras injustificadas. Trata-se pois de desvalorizar e de
demitir uma propriedade epistémica com base numa ideia preconcebida acerca da
falibilidade dessa propriedade. Defensores de uma concepção forte da justificação
rejeitariam por certo essa avaliação. Não nos iremos contudo deter mais neste problema.
6.3.2. Desideratos epistémicos e não-epistémicos
Uma ideia interessante de Alston é certamente a de que as funções primárias da
cognição são, por razões de ordem prática, a aquisição, o uso e a retenção de crenças
verdadeiras—e não a aquisição de crenças justificadas. Segundo o própr io, isto apresentase-nos como evidente. A aquisição de crenças verdadeiras é o objectivo primário da
cognição, sendo a obtenção da verdade o principal desiderato epistémico). (Cf. Ibidem: 24).
A ideia é por certo agradável, mas pensamos que pode ser disputada com sucesso.
Para tal basta pensarmos em alguém que só adquire crenças verdadeiras, por assim dizer,
gettierizadas. Suponha-se que um demónio faz com que S tenha apenas crenças
verdadeiras deste género. De cada vez que S forma uma crença, ela não pode deixar de ser
verdadeira por acção do demónio. Contudo, sem que disso se possa aperceber (pois o
demónio impede-o), S forma as suas crenças sempre com base em razões inapropriadas,
pseudo-evidência, pseudo-fundamentos, etc. Nestas circunstâncias, S não está
massivamente enganado em relação à verdade das proposições nas quais acredita, mas
está massivamente enganado em relação à correcção epistémica das suas crenças. Se
exacto, o que isto revela é que a função primária da cognição não pode ser a aquisição de
crenças verdadeiras. O que o nosso exemplo mostra é que não basta as crenças serem
verdadeiras para serem valiosas e, logo, o objectivo primário da cognição não pode ser a
aquisição de crenças verdadeiras, mas sim a aquisição de crenças verdadeiras valiosas.115
115
O problema do valor do conhecimento e das crenças verdadeiras, bem como da diferença entre ambas, é
tortuoso. Uma incursão profunda pelo mesmo não está no âmbito deste trabalho.
158
O valor das crenças verdadeiras não residirá no facto de serem verdadeiras mas sim no
facto de serem apropriadamente verdadeiras. Da nossa perspectiva, este último é um
desiderato epistémico fundamental, um desiderato ao qual voltaremos mais adiante.
De salientar agora que Alston quer submeter uma epistemologia das crenças, não
do conhecimento (Ibidem: 40, nota 1). Esta epistemologia visa fundamentalmente
al ula à oà alo à dasà
e çasà deà u à age teà e à fu ç oà dasà suasà a a te ísti as.à
Sinteticamente, uma crença é epistemicamente valiosa se satisfaz determinados
desideratos epistémicos. Alston elenca estes desideratos, organizando-os em grupos
hierarquicamente dispostos segundo um critério de importância para o desiderato
fundamental, o da verdade, e segundo um critério de semelhança de propriedades desses
desideratos. O resultado é o seguinte.
Desiderato do Grupo I
Verdade.
Principalmente pelas razões acima apontadas e porque é recomendável para haver
justificação, mesmo não sendo uma condição necessária e suficiente para que haja
justificação.
Desideratos do Grupo II
(desideratos cuja satisfação é diretamente conducente à verdade)
1. O agente tem evidência adequada para a sua crença (C).
2. C é suportada por evidência adequada.
3. C foi formada a partir de um processo de formação de crenças suficientemente
fiável.
4. C foi formada com base no correcto funcionamento das propriedades cognitivas
de S.
5. C foi formada com base no exercício de uma virtude intelectual.
Antes de descrevermos os desideratos que segundo Alston não pertencem ao
Grupo II, importa desde já reflectir sobre esta lista e questionar se estará completa.
Considerando a listagem de desideratos epistémicos constantes na primeira parte, pelo
menos dois parecem estar omissos na descrição de Alston. O primeiro é a exigência de
159
haver uma relação causal entre o facto que torna p verdadeira e a crença que p. O segundo
é que a crença seja segura, isto de modo a satisfazer o desiderato não-acidentalidade
(extensivamente tratados nas secções 4.3.2. e 5.2.) Repare-se que estes desideratos, qua
condições, são de extrema importância do ponto de vista da avaliação epistémica de uma
crença. É na realidade difícil de descortinar em que medida poderia ser feita uma avaliação
positiva de uma crença se essa crença não estivesse causalmente ligada ao facto que torna
a crença verdadeira.116 E é difícil de ver em que medida poderia ser feita uma avaliação
positiva de uma crença se essa crença fosse acidentalmente verdadeira, no sentido que
temos vindo a descrever. A ausência destes desideratos na lista alstoniana revela
aparentemente lacunas nessa mesma lista.117
Passamos agora ao terceiro conjunto de desideratos apontado por Alston.
Desideratos do Grupo III.
(Desideratos cuja satisfação é tida como favorável para a formação e discriminação
de crenças verdadeiras)
6. S tem um alto grau de acesso cognitivo à evidência para C.
7. S tem conhecimento de segunda ordem, ou crença bem-fundamentada, que C tem
um status epistémico positivo e/ou que isto ou aquilo é respons ável por isso.
8. S pode fazer uma defesa bem-sucedida da probabilidade de C ser verdadeira.
Estes desideratos estipulam meta-condições. Alston alega que a sua satisfação não
contribui diretamente para tornar as crenças verdadeiras, mas reconhece-lhes (Ibidem: 4345) algu à pode àepist
i o, no sentido em que a sua satisfação conduz indiretamente à
verdade.
116
Mesmo supondo que conteúdos proposicionais com teor matemático ou éticos (entre outros) constituem um
problema para a concepção causal, uma vez que há alegadamente proposições cujo facto que lhe subjaz é de difícil
identificação, existem muitas outras crenças em que é exigível essa ligação causal e o facto é facilmente identificável (e.g.
proposições acerca de objectos físicos), pelo menos da perspectiva do senso comum.
117
Alston refere-se esporadicamente a estes desideratos, mas não os inclui na sua lista. Cf. Ibidem: 84 para uma
referência explícita, á qual voltaremos, à importância do que causa uma crença. Como veremos de seguida, os desideratos
deontológicos contêm também uma referência à história causal da crença tendo por base as obrigações intelectuais do
agente, mas a noção de causalidade a que nos referimos agora ultrapassa em muito esse sentido estrito de “causa”. Cf. 91
para uma referência cruzada ao desiderato da não-acidentalidade).
160
Não iremos disputar a distinção alstoniana entre desideratos cuja satisfação é
diretamente conducente à verdade e desideratos cuja satisfação é indiretamente
conducente à verdade. Apenas desejamos tecer alguns comentários acerca do que parece
motivar a distinção.
Segundo nos parece, tal como indicado por Alston, a satisfação de 6 não tem
necessariamente como consequência a verdade de uma crença. Este parece ser aliás o
problema que afecta as concepções clássicas da evidência, como a de Chisholm (vide
secção 3.4.1.), que parecem reclamar que esse acesso é suficiente para garantir a verdade
de uma crença.
O mesmo não pode talvez ser dito do desiderato 7. Com efeito, se tomarmos em
consideração a definição canónica de conhecimento, a qual implica a factividade, a
satisfação de 7 parece ter necessariamente como consequência a verdade de uma crença
acerca da qual há conhecimento acerca do seu estado epistémico positivo, uma vez que
este estado implica por sua vez a verdade da crença. Dito de outro modo, conhecimento
de que uma crença é verdadeira implica a verdade dessa crença. Se tal for o caso, podemos
então talvez sugerir que 7 pertence afinal ao grupo II, isto em vez de pertencer ao grupo
III. Tal não é contudo aceite por Alston, o qual pensa que a satisfação deste desiderato não
é conducente à verdade da mesma forma que, por exemplo, a satisfação de 2 no grupo II
o é. Resumidamente, enquanto a satisfação de 2 é, por assim dizer, diretamente
responsável pela verdade de uma crença, já a satisfação de 7 e 8 de algum modo contribui
indiretamente para a verdade de crença, mas não é a razão imediata dessa verdade.
Noutro registo, Alston rejeita que os chamados desideratos deontológicos
pertençam à classe dos desideratos cuja satisfação é conducente à verdade. Eis os
desideratos tal como identificados por Alston:
Desideratos do Grupo IV.
(Desideratos deontológicos, não necessariamente conducentes à verdade)
161
9. C é tida permissivelmente.
10. C é formada e tida responsavelmente.
11. A história causal de C não contém violações de obrigações intelectuais.
Grosso modo, a rejeição liminar por parte de Alston de que estes desideratos
pertencem aos grupos II ou III tem por base a ideia de que a sua satisfação não é crucial
para a criação de um vínculo entre crença e verdade. Por outras palavras, um grande
número de crenças que satisfazem, separada ou conjuntamente, 9, 10 e 11, são falsas.
Duas coisas têm de ser ditas acerca da escolha de Alston em não incluir os
desideratos do grupo IV nos grupos II e III. Importa, em primeiro lugar, ver que a satisfação
isolada de qualquer desiderato pertencente a um destes dois últimos grupos não parece
garantir que uma crença seja verdadeira—vimos alguns exemplos na primeira parte. Alston
alega no entanto que a satisfação dos desideratos dos grupos II e III, ao contrário da
satisfação dos desideratos do Grupo IV, dá origem a uma taxa (ou frequência) elevada de
crenças verdadeiras, bem como a uma taxa (ou frequência) reduzida de crenças falsas. Mas
estes parece ser um critério algoàdifusoàpa aàdisti gui àdeside atosà ligados à à e dadeàeà
deside atosà desligados àdaà e dade.àEà ueà it ioàpode iaàse àesse?àTal ezàu à it ioàdeà
quantidade? Talvez o problema possa ser resolvido supondo-se, por exemplo, que a
satisfação de um desiderato é, directa ou indiretamente, conducente à verdade desde que
essa satisfação tenha como resultado mais de metade de crenças verdadeiras numa
amostra constante de crenças. Mas como se verifica isto? Qual é a amostra indicada? Que
tipo de crenças tornaria a experiência bem-sucedida?
Por outro lado, julgamos que mesmo não sendo a satisfação destes desideratos
deontológicos diretamente conducente à verdade, daí não se segue que a satisfação das
condições que resultam desses desideratos não é importante no sentido de garantir a
verdade de uma crença. Aliás, o próprio Alston tem uma perspectiva sobre o alcance do
desiderato 11 que pode contribuir para consolidar esta ideia. Segundo ele, a seguinte é
uma interpretação possível desse desiderato:
á.à“à ài tele tual e teà o de elàpo àa edita à ueàp se, e somente se, tivesse
S cumprido todas as suas obrigações intelectuais, então o acesso de S a
162
considerações relevantes, ou os hábitos ou tendências de formação de crenças de S,
ter-se-iam se alterado de modo a que S não tivesse acreditado que p. (Ibidem: 77)
O ponto de Alston é que 11A identifica um desiderato intelectual genuíno, no
sentido em que o que é prescrito é eminentemente bom do ponto de vista das práticas
intelectuais e cognitivas de S. Apesar de Alston aceitar que a satisfação deste desiderato é
recomendável tendo em vista fins de cognição, não aceita porém que estejamos perante
um desiderato epistémico,à e à ueà epist
i o à sig ifi aà ueà aà suaà satisfaç oà sejaà
conducente à verdade. Alston apresenta casos que alegadamente mostram essa realidade.
Não os iremos discutir, nem precisamos de o fazer para demonstrar o nosso próprio ponto.
Esse ponto é o de que 11A introduz uma condição necessária para pelo menos alguns casos
de EEMP.
Procuramos pois um caso em que a satisfação do desiderato em 11A leve o agente
a ter uma crença verdadeira, e a não satisfação desse desiderato leve o agente a ter uma
crença falsa. Procuramos portanto um caso em o facto de um agente ser intelectualmente
responsável, tal como descrito por 11A, faça a diferença entre a verdade e a falsidade, no
sentido em que ser intelectualmente responsável faça o agente ter um crença verdadeira
e evitar uma crença falsa.
Suponha-se então que o Dr. H recebeu um diagnóstico que indica que o seu
paciente P sofre de ɸ. Com base no que leu no relatório de diagnóstico, o Dr. H passa a
acreditar que P sofre de ɸ. Contudo o diagnóstico está incorrecto, pois, por esquecimento,
o Dr. K, o médico que realizou os exames de diagnóstico a P, não realizou um exame crucial
para a despistagem dessa patologia. Sendo assim, a crença do Dr. H de que P sofre de ɸ é
falsa. Contudo, tendo uma atitude claramente responsável do ponto de vista da satisfação
dos seus deveres intelectuais, o Dr. H lê o diagnóstico mas desconfia do resultado, pois
desconfia da capacidade médica do Dr. K. Convencido da fals idade do resultado, o Dr. H
pede um novo diagnóstico, desta feita ao Dr. L, o qual lhe entrega um diagnóstico correcto
que indica que P não sofre de ɸ. Com base nesse resultado (o acesso a considerações
relevantes), o Dr. H passa a acreditar que P não sofre de ɸ. Por ser intelectualmente
responsável, tal como preconizado por 11A, o Dr. H deixa portanto de acreditar numa
falsidade e passa a acreditar numa verdade. O corolário é que a satisfação do desiderato
163
em 11A conduz à verdade em pelo menos um caso. A tese de que 11A não é um desiderato
cuja satisfação é conducente à verdade é, por conseguinte, falsa.
Para finalizar listagem de desideratos submetida por Alston, debruçamo-nos agora
sobre o que ele pensa serem as propriedades de sistemas de crenças mais desejáveis do
ponto de vista dos fins da cognição.
Grupo V. Desideratos que se referem a sistemas de crenças.
12. Explicação.
13. Compreensão.
14. Coerência.
15. Sistematicidade.118
Os desideratos 12 e 13 referem-se, respectivamente, ao desejável poder explicativo
que um conjunto de crenças tem de ter e ao bom nível de compreensão (do agente ou
agentes) que deve gerar. O desiderato 14 refere-se obviamente à coerência que deve ser
exibida por um sistema de crenças. Já o desiderato da sistematicidade é mais intrincado e
menos claro. Trata-se, aparentemente, da exigência de que um conjunto de crença possua
uma estrutura organizada segundo um critério lógico, racional ou que pelo menos
manifeste algum grau de inteligência e organização. 119
Também estes desideratos são vistos por Alston como não pertencendo ao lote de
desideratos cuja satisfação é diretamente conducente à verdade. Alston submete como
exemplo o alegado facto de uma crença poder ser coerente com um sistema de crenças,
por sua vez também coerente, sem que haja por isso verdade envolvida. Usando o
conhecido argumento contra a necessidade da coerência para o conhecimento, basta
pensar em alguém que tem um conjunto fechado e coerente de crenças num conjunto de
proposições pertencentes apenas ao foro ficcional. 120 De acordo. Mas não é a coerência de
118
A palavra não faz parte do vocabulário português. Apresento-a porque é a melhor aproximação que me ocorre
para denotar a ideia que lhe dá origem.
119
Esta é a ideia que retiro da leitura de Schwitzgebel (2008).
Ver em especial o ponto 1.1.1. Não abraço contudo incondicionalmente esta interpretação e deixo obviamente
espaço para interpretações alternativas.
120
Compare-se com Russell, Sosa et al.
164
um sistema de crenças desejável do ponto de vista da cognição? Parece-nos que, mesmo
que não seja necessária para haver crenças verdadeiras, é porém desejável que haja
coerência entre crenças que visam o estatuto de EEMP.
Suponha-se que S, um paleontólogo, encontra provas físicas plausíveis por exemplo
para a teoria de que existiu um determinado tipo de hominídeo. Apesar de plausíveis, essas
provas não são conclusivas. Sem ter hipóteses de confirmação da sua teoria apenas com
base nessas provas, S submete-as ao crivo de investigadores especializados no campo da
genética. Suponha-se ainda que estes investigadores encontram evidência que corrobora
aàhipóteseàdeà“àa e aàdaàexist
iaàdeàu à o o àho i ídeo.àDitoàdeàout oà odo,àessaà
evidência descoberta pelos geneticistas é consistente com a suposição teórica de S de que
houve em tempos um determinado tipo de hominídeo, havendo portanto coerência entre
a crença que S forma com base nas suas razões/provas e as crenças desenvolvidas pelos
outros investigadores acerca do material genético que analisaram. Vamos ainda supor que
não existe outra forma de corroborar a hipótese de S. O que este caso mostra é que
dificilmente poderíamos atribuir a S um EEMP acerca da existência passada de uma
determinada estirpe de hominídeo caso a crença (vamos supor, verdadeira) de S nessa
proposição não fosse coerente com as crenças (manifestamente verdadeiras) dos seus
colegas geneticistas.
Considerando o que inspeccionámos até este momento, não podemos evitar a ideia
de que as crenças podem gozar de dois estatutos epistémicos muito positivos. Por um lado,
que as crenças sejam verdadeiras. Por outro lado, que sejam conhecimento. Segundo
Alston, o primeiro estatuto é alcançado graças à satisfação, total ou parcial, dos
desideratos/condições pertencentes aos grupos II, III e V. Pela parte que nos toca, o
alcançar do segundo estatuto requer mais do que apenas a satisfação de
desideratos/condições conducentes à verdade. Requer adicionalmente a satisfação de
alguns desideratos/condições que fazem com que a crença seja verdadeira de modo
apropriado. A distinção entre estatutos pode auxiliar-nos a enquadrar o que está na base
das intuições mencionadas na secção anterior. Já lá iremos. Por ora vamos verificar qual é
na opinião de Alston o mais importante desiderato do g rupo II. O objectivo do exercício é
perceber que género de hierarquia pode haver entre desideratos conducentes à verdade.
165
Daí partiremos para um primeiro esboço da nossa própria hierarquização de
desideratos/condições, tendo como horizonte aquele estatuto epistémico positivo das
crenças a que habitualmente se dá o nome de conhecimento.
À semelhança de outros epistemólogos, Alston elege o desiderato 2 como o mais
basilar e importante (Ibidem: 82). Para que uma crença goze de um estatuto epistémico
positivo do ponto de vista da sua verdade, terá, inter alia, de assentar em fundamentos
adequados. Fundamentos adequados constituem evidência, sendo esta adequada na
medida em que confere a uma crença uma elevada probabilidade de ser verdadeira
(Ibidem: 112).121 Neste sentido, a condição estabelecida pelo desiderato descrito por 2 é
parasitária e prioritária em relação às condições estabelecidas por 1, 3, 4 e 5. Não basta
um agente ter evidência adequada para uma crença (condição/desiderato 1), nem que a
crença C seja formada a partir de um processo de formação de crenças suficientemente
fiável (condição/desiderato 3), nem que a crença seja formada com base no correcto
funcionamento das propriedades cognitivas de S (condição /desiderato 4), nem que tenha
sido formada com base no exercício de uma virtude intelectual (condição/desiderato 5).
Segundo Alston, todas estas condições e respectivos desideratos estão de certo modo na
origem da satisfação de 2, o que é o que realmente permite que a crença formada
principalmente com base em 2 tenha um estatuto epistémico positivo (Ibidem: passim).
Cremos que a disposição hierárquica descrita por Alston está quase correcta, pelo que
tentaremos aproveitá-la e desenvolvê-la.
6.3.3. Modelos de avaliação epistémica de crenças
A disposição hierárquica dos desideratos diretamente conducentes à verdade
defendida por Alston pode talvez ser estabelecida num esquema. Nesse esquema estão
incluídos não somente os desideratos/condições que d izem respeito à evidência necessária
para a formação de crenças que tenham um estatuto epistémico positivo, como também
os desideratos/condições cuja satisfação permite que um agente possua essa evidência. O
esquema apresenta naturalmente uma primeira aproximação, considerando os
121
Alston associa a noção de probabilidade com a noção, eminentemente fiabilista, de elevada frequência de
crenças verdadeiras geradas por um qualquer processo de formação de crenças, por oposição à baixa frequência de
formação de crenças falsas produzida por esse processo.
166
desideratos e a sua hierarquia apenas genericamente. O objectivo passa apenas por
submeter um primeiro instrumento gráfico e conceptual que facilite a compreensão das
relações de causalidade e de dependência no que respeita aos desideratos epistémicos
previamente identificados.
167
Estatuto epistémico
positivo da crença
que p
Elevada
probabilidade de
verdade da crença
que p
Crença que p
formada com base
em evidência
adequada
Fundamentos
(evidência)
adequados para a
crença que p
Fiabilidade dos
processos de
formação de crenças
Correcto
funcionamento das
capacidades
cognitivas do agente
Virtudes intelectuais
Figura 5
168
Na medida em que está vocacionado para explicitar um percurso linear de
satisfação de desideratos/condições, e na medida em que parece deixar de fora pelo
menos tantos desideratos/condições quanto os que admite, o esquema constante na
figura 5 pode ser polémico. Com efeito, para respeitar a concepção alstoniana, o modelo
apresenta uma concepção mais ou menos linear em que a satisfação de cada
desiderato/condição descrito em cada passo só pode ocorrer caso ocorra a satisfação do
desiderato/condição descrito no passo anterior. Por exemplo, uma crença só poderá ser
formada com base em evidência adequada caso o agente disponha de fundamentos
(evidência) adequados para formar essa crença. Mas esta linearidade e esta simplificação
podem ser contestadas.
Por outro lado, e como já dissemos acima, o esquema deixa de fora
desideratos/condições que parecem desempenhar um papel importante na sequência
que, segundo Alston, conduz ao desiderato epistémico mais valioso e primário: a verdade
(de uma crença). Na realidade, o modelo deixa de fora os desideratos/condições incluídos
nos grupos III, IV, e V. Apontámos acima as razões que nos levam a pensar que pelo menos
alguns dos desideratos constantes nesses grupos teriam lugar no esquema, mas não
voltaremos por ora ao assunto. O nosso objectivo passa nesta fase apenas por aprimorar
o esquema.
Iniciamos este projecto de aperfeiçoamento tentando fazer com que o modelo
acomode as noções de sucesso e insucesso epistémico de uma crença. Diremos que uma
crença terá um estatuto epistémico positivo se for bem-sucedida relativamente ao
desiderato de alcançar a verdade. A crença não terá um estatuto epistémico positivo caso
não seja bem-sucedida no sentido indicado. Supomos, c ondicionalmente, por um lado, que
o que produz o sucesso e o estatuto epistémico positivo é a satisfação de todos os
desideratos/condições, e supomos, condicionalmente, por outro lado, que o que produz o
insucesso é a não satisfação de pelo menos um desiderato/condição. Com base nestas
suposições, chegamos ao seguinte esquema.
169
Estatuto epistémico
positivo da crença
que p
Crença que p
bem-sucedida
Elevada
probabilidade de
verdade da crença
que p
Crença que p
formada com base
em evidência
adequada
Fundamentos
(evidência)
adequados para a
crença que p
Fiabilidade dos
processos de
formação de
crenças
Correcto
funcionamento das
capacidades
cognitivas do
agente
Virtudes
intelectuais
Figura 6
170
Estatuto
epistémico
negativo da crença
que p
Crença que p
mal-sucedida
Baixa
probabilidade de
verdade da crença
que p
Crença que p
formada com base
em evidência
inadequada (se
houver evidência)
Fundamentos
(evidência)
inadequados para
a crença que p (se
existentes)
Ausência de
fiabilidade dos
processos de
formação de
crenças
Ausência ou
Incorrecto
funcionamento das
capacidades
cognitivas do
agente
Ausência de
virtudes
intelectuais
Figura 7
171
Note-se que a simetria é meramente indicativa. O esquema poderia não
estabelecer uma simetria e ainda assim ser de algum modo elucidativo. Aliás, é duvidoso
que à simetria no esquema corresponda uma simetria na realidade.
Note-se igualmente que Alston não considera a elevada probabilidade de verdade
de uma crença como um desiderato de direito próprio, a não ser que se identifique esta
elevada probabilidade de verdade da crença com a própria verdade da crença, o que
pressupõe uma concepção de verdade enquanto probabilidade que não estamos
preparados para aceitar sem aduzir mais argumentos.
Parece-nos também que estes esquemas não são suficientemente elucidativos. A
nossa conjectura assenta em duas hipóteses. Por um lado pensamos que a satisfação
conjunta dos seis primeiros desideratos/condições (de baixo para o topo) que constam na
Figura 6 do modelo pode não ser suficiente para que a crença seja verdadeira. Teríamos
pois um caso de crença falsa apesar da satisfação desses desideratos. Pela nossa suposição,
uma crença falsa é uma crença epistemicamente mal-sucedida e não goza de um estatuto
epistémico positivo. Por outro lado, consideramos a hipótese de a satisfação dos seis
primeiros passos na Figura 7 do modelo serem satisfeitos e ainda assim a crença ser
verdadeira, caso em que essa crença seria bem-sucedida e teria um estatuto epistémico
positivo.122
Para avaliar a plausibilidade da primeira hipótese retornamos ao caso Barney (Vide
secção 1.10.), o qual alteramos um pouco para servir os nossos intentos, designando-o por
isso agora por Barney2. Suponha-se que, ao invés de existirem muitas fachadas de celeiro
no campo e apenas um celeiro, existem muitos celeiros e apenas uma fachada de celeiro.
Suponha-se também que S verifica (confirma, etc.) que todos os celeiros que vê são
realmente celeiros, excepto a fachada celeiro, vindo por isso (por indução) a acreditar que
a fachada também é um celeiro. Ora, S usa neste caso as suas virtudes intelectuais, sendo
que as suas capacidades cognitivas estão também em ordem e a laborar com perfeição, o
que satisfaz os dois primeiros passos do esquema. Por outro lado, o processo pelo qual S
122
Excluo obviamente aqui a possibilidade de uma crença não poder ser valorizada ou desvalorizada do ponto de
vista do seu estatuto epistémico. Não possuo contudo de momento qualquer argumento a favor desta ideia. Não obstante,
deixo como sugestão que a provável existência de crenças cuja avaliação epistémica não é possível em nada afecta a crítica
que agora movemos ao modelo alstoniano.
172
forma a sua crença—indução a partir de boa amostra—é fiável, o que satisfaz o terceiro
passo. Assim, S passa a acreditar que vê um celeiro (onde vê a fachada) com base em
fundamentos adequados, o que satisfaz o quarto passo. Por conseguinte, S tem evidência
adequada para acreditar que vê um celeiro e, dada essa evidência, a sua crença tem uma
elevada probabilidade de ser verdadeira, o que satisfaz, respectivamente, o quinto e o
sexto passo. Não obstante, a crença é falsa, pois S vê uma fachada de celeiro e não um
celeiro. Temos portanto um contra-exemplo ao esquema na Figura 6: os seis primeiros
passos desse esquema são satisfeitos e ainda assim a crença não é bem-sucedida, não
podendo por isso gozar de um estatuto epistémico positivo.
Pode ser objetado que dois passos/desideratos/condições não são satisfeitos
nestas circunstâncias impostas por Barney2: o de que a evidência seja adequada, por um
lado, e o de que a crença seja formada com base nessa evidência adequada, por outro.
Com efeito, Alston considera que
... àu àfu da e toàpa aàu aà e çaà oàpodeàse à o side adoà ade uado à ... àaà
não ser que tenha uma relação com a verdade daà e ça (Ibidem: 92, O itálico é
meu)
Com base nesta pretensão, o alstoniano pode apelar para a falta de adequação da
evidência que está na base da formação da crença de S no cenário acima descrito, pois uma
vez que essa crença é afinal falsa, jamais poderia, segundo os padrões alstonianos, assentar
em evidência adequada. Porém, a não ser que Alston e seguidores considerem que o
desiderato da elevada probabilidade de uma crença é o mesmo que o desiderato primário
da verdade de uma crença—o que me parece nunca ser por ele dito—, existirá sempre a
possibilidade de haver desfasamento entre a elevada probabilidade uma crença ser
verdadeira e a crença ser de facto verdadeira.123 Se esta suposição estiver em ordem,
cenários como o apresentado acima revelam que a satisfação dos referidos
desideratos/condições tornam bastante elevada a probabilidade de verdade de uma
crença, mas não garantem que essa crença seja realmente verdadeira. A alternativa de
Alston é talvez supor ad hoc que a verdade de uma crença é uma condição necessária para
a adequação da evidência, mas não parece ser isso que ele tem em mente.
123
Note-se que Alston fala de elevada probabilidade de verdade, mas não de probabilidade de grau 1.
173
Voltamo-nos agora para a segunda hipótese acima submetida, a que reclama que a
satisfação dos passos na Figura 7 pode conduzir a uma crença bem-sucedida e,
considerando o critério de positividade epistémica que apresentámos condicionalmente
acima, a uma crença que tem um estatuto epistémico positivo.
Considere-se portanto o seguinte caso. Suponha-se que S sofre de uma patologia
mental, e.g., esquizofrenia, e que devido ao facto de sofrer dessa patologia, S tem delírios
e alucinações constantes, confundindo factos e ficções, tomando geralmente falsidades
por verdades, etc. S está por isso mesmo internado num hospital psiquiátrico, onde passa
o seu tempo a ver televisão. Um dia, estando na sala de convívio, S vê Barack Obama
discursar na televisão. S forma então a crença de que Obama está nesse preciso momento
atrás de si. Claro que, em virtude da sua condição médica, e, podemos também supor, pelo
facto de estar fortemente sedado, as virtudes intelectuais e as capacidades cognitivas de S
est o,àpo àassi àdize ,ài ope a tesàouà desligadas ,àoà ueàsatisfazàosàdoisàp i ei osàpassosà
do lado direito do esquema. Assim, a crença de S não pode derivar de um processo fiável
de formação de crenças. Com efeito, podemos facilmente supor que a patologia de que
sofre S e o facto de estar fortemente sedado são factores (ou processos) que têm a
tendência para gerar um elevado número de crenças falsas e um baixo número de crenças
verdadeiras, o que demite de imediato a possibilidade de a crença ter sido formada com
base em fundamentos adequados. Se a evidência não é adequada, então a probabilidade
de a crença ser verdadeira será também será por certo baixa.124 Isto dá conta dos restantes
passos constantes na Figura 7. Podemos, não obstante, supor que a crença de S é
verdadeira! Suponha-se que, sem que S possa ter qualquer indício a esse favor, Obama
decidiu visitar naquele dia o hospital onde S se encon tra, estando, por mero acaso, atrás
de S precisamente no momento em que S forma a sua crença. Se correcto, este caso
falsifica o esquema na Figura 7.
A despeito de sofrer aparentemente de problemas como os que agora julgamos ter
apontado, o esquema/modelo alstoniano estabelece um primeiro guia para a
compreensão do processo de satisfação de passos/desideratos/condições que faz com que
124
Não privilegiamos aqui qualquer concepção de probabilidade (e.g., como frequência estatística ou grau de
crença racional). Quanto muito usamos a noção probabilidade indutiva, embora de forma muito despretensiosa.
174
uma crença possua ou adquira um estatuto epistémico posit ivo. Por julgarmos que o
esquema/modelo é um bom ponto de partida para a compreensão do referido fenómeno,
iremos adoptá-lo como base para o nosso próprio modelo. A ideia é acrescentar-lhe o que
pensamos faltar-lhe, isto tendo em atenção dois objectivos que quanto a nós se cruzam:
capacitá-lo de mais poder explicativo, por um lado, e torná-lo mais resistente a contraexemplos, por outro.
A nossa tarefa não passará contudo por tentar definir ou explicitar a natureza de
cada desiderato/condição identificado no modelo alstoniano ou naquele que tencionamos
apresentar. Considerando a diversidade de propostas disponíveis sobre a natureza de cada
desiderato, tal tarefa seria monstruosa e irrealizável. Uma estratégia mais promissora é
usar o material já avançado por Alston et al, usando-o para construir um modelo plausível
que permita explicitar como pode uma crença estar epistemicamente garantida de modo
a possuir um estatuto epistémico maximamente positivo e, logo, lhe permita ser
epistemicamente excelente.125 Trata-se pois de apresentar um esquema que mostre não
apenas como é que uma crença adquire valor em função da sua proximidade com a
verdade, no sentido em que a satisfação de determinadas condições confere uma elevada
probabilidade de verdade à crença, mas que mostre também quais os passos que têm de
ser satisfeitos para que a relação entre a crença e a verdade da proposição que é alvo dessa
crença seja a mais correcta.
6.4. Outra metodologia
Ao tentarem elucidar a natureza de um EEMP, uma larga maioria de epistemólogos
aponta um conjunto de condições necessárias e suficientes para ocorrer esse EEMP. Depois
examinam casos particulares, vindo quase sempre a constatar que, pelos mais variados
motivos, muitos dos quais inspeccionámos na primeira parte, mas principalmente por não
serem satisfeitas determinadas condições, ou por as que são satisfeitas serem demasiado
exigentes, esses casos se constituem como contra-exemplos a essas elucidações. Esta
forma de actuar constitui-se como um paradigma. Vamos chamar-lhe Paradigma
Procedimental Clássico.
125
Pedimos ao leitor que recorde as elucidações sugeridas na secção 6.1.
175
O programa analítico que consiste (ou consistiu), particularmente no período pósGettier, na tentativa de encontrar uma análise do conhecimento é um exemplo claro do
Paradigma Procedimental Clássico. Como vimos, há quem defenda que este programa está
esgotado: Williamson é sensível a essa possibilidade quando as elucidações respeitam ao
conhecimento, enquanto Alston é sensível a essa possibilidade quando as elucidações
respeitam à justificação. Sem nos havermos comprometido com estas perspectivas, não
podemos contudo deixar de contemplar a hipótese de elas estarem correctas, justamente,
pensamos nós, por o paradigma que dita a metodologia de actuação no interior do
programa analítico estar esgotado.
Para divisarmos onde e porquê provavelmente falha o paradigma procedimental
clássico como metodologia, vamos mais uma vez trabalhar sobre uma das tentativas de
oferecer uma definição/análise do conhecimento (neste caso duas definições de base)
encetadas na era pós-Gettier. Assim, Graham Dawson sugere o seguinte:
àCo he i e toà↔à e çaàjustifi adaà e dadei aà
é uma análise falsa, pois...
2) Conhecimento →à e çaàjustifi adaà e dadei a
é falsa. No entanto, Dawson considera que...
3) Crença fiável verdadeira →à o he i e to
é verdadeira, e
4) Crença justifi adaà e dadei aà→à o he i e to (Dawson 1981: 316)
também é verdadeira. O ponto de Dawson é portanto, em primeiro lugar, por 1 e
por 3, que o conhecimento não é, estritamente falando, apenas crença justificada
verdadeira. A implicação material descrita por 2 é falsa em virtude da implicação descrita
em 3 ser verdadeira. Quer dizer, há casos de conhecimento que não são casos de crença
verdadeira justificada mas sim casos de crença fiável verdadeira. Por conseguinte, ter uma
crença justificada verdadeira não é uma condição necessária para se ter conhecimento, tal
como ter uma crença fiável verdadeira não é uma condição necessária para se ter
176
conhecimento, pois há casos de conhecimento que são casos de crença justificada
verdadeira mas não casos de crença fiável verdadeira (Ibidem: 323).
Ainda segundo Dawson, todos os casos de crença justificada verdadeira—em que a
justificação da crença é concebida como racionalidade da crença—são casos de
conhecimento. Por conseguinte, ter-se uma crença justificada verdadeira é, ainda segundo
Dawson, suficiente para se ter conhecimento. Do mesmo modo, é razoável supor-se que
um agente ter uma crença fiável verdadeira é suficiente para se ter conhecimento. Daqui
retira-se que, em determinadas circunstâncias, a satisfação de um conjunto de condições
é suficiente para haver conhecimento, mas que noutras não é sequer necessário ocorrer
essa satisfação para haver conhecimento. A suficiência das condições não implica pois a
necessidade das condições.
Vemos que, se Dawson estiver correcto, a noção de EEMP pode ter diferentes
elucidações, as quais têm origem na satisfação de diferentes conjuntos de condições; e se
isso for o caso, deixam por certo de fazer sentido as tentativas de submeter uma única
elucidação que seja válida para todos os casos de EEMP. Sendo assim, o Paradigma
Procedimental Clássico está destinado a falhar, pois falhará qualquer a tentativa de
submeter uma elucidação que, absolutamente rígida no que respeita ao conjunto restrito
de condições necessárias e suficientes que propõe, seja aplicável a todos os casos de EEMP;
isto porque será sempre possível encontrar um caso de EEMP que não decorre da
satisfação do conjunto de condições descrito por essa definição. Não concordamos com
este resultado e pensamos que é possível evitá-lo.
Experimente-se então alterar a metodologia habitual. Quando se trata de
esclarecer que condições são realmente necessárias e suficientes para todos os casos de
EEMP, em vez de tentarmos a habitual direcção...
Detecção das condições necessárias e suficientes para a ocorrência de um EEMP (não
usando candidatos a EEMP ou casos de EEMP) → Detecção de casos de EEMP,
experimente-se a direcção...
177
Detecção de casos de EEMP
oà usa doà o diçõesà e ess iasà eà sufi ie tes à →
Detecção de condições necessárias e suficientes para a ocorrência de um EEMP.
Se for possível verificar, partindo do exame de candidatos plausíveis a EEMP e de
critérios plausíveis, que condições são realmente necessárias e suficientes para a
ocorrência de um EEMP, então certamente que a nova metodologia será proveitosa. Será,
em primeiro lugar, mais inclusiva do que a anterior, no sentido em que nos permitirá
elencar um conjunto exaustivo de condições necessárias e suficientes. E será, em segundo
lugar, mais eficiente do ponto de vista da elucidação, uma vez que, como veremos, a
metodologia permitirá organizar e hierarquizar um vasto número condições e, logo,
acomodar melhor as cinco intuições acima referidas. As principais desvantagens da
metodologia serão abordadas mais adiante.
6.5. Candidatos plausíveis a EEMP
É pois chegado o momento de submetermos alguns candidatos plausíveis a EEMP.
O critério que apresentaremos para a detecção desses candidatos não assenta contudo
exclusivamente nas habituais razões oriundas da epistemologia. A ideia de procurar razões
que não venham da província da epistemologia visa essencialmente não contaminar as
atribuições de EEMP com considerações e pressupostos pré-teóricos oriundos dessa
província.
Quando nos referimos a candidatos a EEMP estamos a referir-nos a casos plausíveis
de EEMP, casos que o mais céptico dos filósofos (tirando talvez algumas raríssimas
excepções126) não descartaria enquanto tal. Talvez alguns desses filósofos tenham, qua
filósofos, dúvidas acerca da plausibilidade desses caso s, mas tal não lhes passaria pela
cabeça enquanto pessoas comuns. Existe sem dúvida uma cisão entre a atitude céptica tida
por alguns epistemólogos, nomeadamente em contexto de discussão académica e
filosófica, e a atitude dogmática tida por muitas pessoas, incluindo filósofos, em contexto
normal. O loci classici de David Hume exemplifica com rigor esta duplicidade de
circunstâncias na avaliação. Hume diz o seguinte:
Oàg a deàsu e so àdoà pirronismo ou dos princípios excessivos do cepticismo é a
acção, o trabalho e as ocupações da vida comum. Esses princípios podem
126
Talvez alguns dos trabalhos de Unger (1975: 7-44, 92-147) e de Stroud (2000) dêem corpo à perspectiva céptica
mais radical.
178
efectivamente triunfar nas escolas, onde, efectivamente, é difícil se não impossível,
refutá-los. Mas, logo que abandonam a sombra e, em virtude da presença de
objectos reais que movem as nossas paixões e sentimentos, entram em oposições
com os mais poderosos princípios da nossa natureza, esvanecem-se como fumo e
deixam o céptico mais decidido na mesma condiç oà ueàosàout osà o tais (Hume
2009: 143)
Mais recentemente, mas na mesma linha, Chisholm afirma o seguinte:
Osàpuzzlesà o eça àaàfo a -seà ua doà osàpe gu ta os,à Oà ueà à ueàpossoà
eal e teàsa e àa e aàdoà u do? àEstamos cientes de que há pessoas que pensam
que sabem mais do que de facto sabem. Estou a pensar em fanáticos, sectários,
místicos e dogmáticos de vária ordem. E já todos ouvimos falar de pessoas que
reclamam saber bem menos do que de facto sabem. Estou a referir-me àquelas
pessoasà ueàseàautode o i a à pti os àeàgosta àdeàdize à ueàasàpessoasà oà
podem saber como o mundo realmente é. As pessoas tendem a ficar
temporariamente cépticas depois de lerem livros de ciência popular: os autores
dizem-nos que não podemos saber como as coisas realmente são (mas usam uma
grande quantidade de conhecimento, ou uma vasta quantidade do que é tido como
conhecimento, para sustentar a sua conclusão céptica). E, como sabemos, as pessoas
tendem a tornar-se temporariamente dogmáticas sob a influência do álcool, das
drogas, de experiências religiosas e emocionais. É aí que reclamam ter uma visão
interior do mundo e pensam estar na posse de um conhecimento profundo que lhes
dá a chave para o funcionamento do universo. Se é portador de um salutar senso
comum, vai sentir que algo está errado com ambos os extremos e que a verdade está
algures no meio: podemos saber bem mais do que o céptico diz que podemos saber
eà e à e osàdoà ueàoàdog ti oàouàoà ísti oàdizà ueàsa e os. (Chisholm 1982:
61)
Para nós o que nos ocupa, é suficiente que se possa admitir a existência de casos
consensuais de EEMP, consensuais mesmo entre epistemólogos. Não tivéssemos outras
bases para declarar a sua plausibilidade qua casos de EEMP, e cremos tê-las, teríamos o
testemunho de tão ilustres vultos da filosofia. Quer o leigo em epistemologia quer o
epistemólogo aceitam pois a sua existência. O primeiro tem a tendência para a aceitar
tacitamente, já o segundo tem a tendência para a aceitar à luz de argumentos sólidos. 127 À
falta de demonstração em contrário por parte do céptico radical, aceitaremos também
essa tese como hipótese de trabalho e como ponto de partida e inspeccionamos de seguida
o que nos parecem ser alguns candidatos plausíveis a EEMP.
Candidato 1 a EEMP:
127
O contraste entre aspectos sociais e não-sociais da epistemologia pode ser encontrado em Goldman (1986: 295-
311).
179
—S acredita garantidamente que 2+3=5.
A proposição 2+3=5 é aceite e tida como uma verdade ou realidade aritmética quer
pelo epistemólogo quer pelo leigo. Existem várias teorias matemáticas e filosóficas acerca
da natureza dos números naturais e das relações de adição. Todas têm problemas, mas
todas contribuem de algum modo para explicitar o fenómeno que o leigo dá por garantido.
Tome-se, como exemplo, a explicação logicista de número natural avançada por
Frege. Como é sabido, o objectivo do programa de Frege é reduzir a aritmética à lógica (ou
reduzir as verdades da aritmética às verdades da lógica). No essencial, o seu ponto passa
por derivar as proposições da primeira das proposições da segunda. Como para Frege a
lógica oferece uma sistematização dos cânones da razão, espelha a validade das nossas
inferências e, logo, oferece justificações a priori para a aritmética, as vantagens mais óbvias
em adoptar este processo de sistematização lógica seriam: i) revelar as relações de
dependência lógica que existem entre verdades da aritmética; ii) facultar uma melhor
compreensão dos conceitos envolvidos na aritmética e na matemática. Para concretizar o
seu objectivo explanatório, Frege usa um sistema de lógica de segunda ordem, pois é um
sistema no qual as quantificações existenciais e universais incidem sobre conceitos, o que
faz delas quantificações de segunda ordem. Apesar disso, o sistema usa também
quantificações de primeira ordem, quer dizer, quantificações sobre objectos (que não são
conceitos ou propriedades em sentido estrito). Frege adiciona a este sistema de segunda
ordem um operador de extensão (ê) que simboliza a extensão de conceitos (Cf Zalta 2009).
Sem dúvida que ao programa logicista de Frege foram diagnosticados dois
problemas.128 Isso tornou o programa vulnerável e conduziu a várias tentativas de o
128
O problema da definição do conceito de número natural ser uma definição impredicativa e o problema do
paradoxo que decorre da teoria das extensões e das classes: o célebre Paradoxo de Russell. Uma explicação completa do
primeiro problema não cabe nesta nota. Já o Paradoxo de Russell é uma contradição que decorre da teoria fregeana de que
todos os conceitos têm extensão. Essa teoria revelou-se fundamental para a filosofia da matemática de Frege, mas Russell
mostrou que ela encerra a seguinte contradição. Consideremos o conceito «o conjunto que não é elemento de si próprio»
(1). Suponhamos agora que (1) tem uma extensão R. Segue-se que R = «ao conjunto x tal que x não é elemento de si
próprio». Concluímos então que x pertencerá a R sse x não pertencer a R, i.e., x  R  x  R, o que é contraditório. E
como x é igual a R, podemos então substituir x por R e dizer que R  R  R  R, o que é igualmente contraditório, pois
ou R pertence a R ou R não pertence a R, i.e., ou é verdade que R  R ou é verdade que R  R, não podendo ambas ser
verdadeiras. O que a colocação do paradoxo mostra é que há conceitos, como é o caso do conceito (1), que não podem ter
180
substituir por outros programas (sendo que as mais bem-sucedidas tentativa são
provavelmente aquelas que usam a Teoria dos Conjuntos). Não nos iremos contudo deter
nestes aspectos mais particulares do problema. O nosso ponto é de que há várias
explicitações possíveis para a noção de número e de soma, o que dá algumas garantias de
que a noção não é totalmente inacessível do ponto de vista cognitivo e da explicação.
Estando disponível uma noção plausível de número natur al, as relações de adição tornamse explicáveis usando, por exemplo, as Leis de Morgan. Sendo estas relações explicáveis,
as relações de subtracção tornam-se também explicáveis, e assim sucessivamente.
Mas o leigo não requer estas complicadas explicações para ter uma crença
garantida de que 2+3=5. O leigo em filosofia da matemática domina cognitivamente este
tipo de operações aritméticas básicas usando a sua experiência, isto sem sequer se dar
conta do que as pode alicerçar. Ninguém, num estado psicológico considerado normal, que
o p ee daàosà o eitosàdeà ú e o,àdeà
,àdeà
àeàdeàadiç o,àa e taàaàpossi ilidadeàdeà
a adição de 2 com 3 não resultar em 5. Quem se encontra nestas condições tem uma crença
verdadeira e garantida de que 2+3=5.129 Estamos pois inclinados para a ideia de que,
genericamente, em circunstâncias de avaliação normais, este tipo de crenças constituemse plausivelmente como casos de EEMP, isto independentemente das razões filosóficas,
extensão (pelo menos se atendermos ao paradoxo e não houver outra saída); pois qualquer tentativa de considerar as
extensões de conceitos como objectos com propriedades “auto-predicáveis” conduz inevitavelmente a contradições. Como
a filosofia da matemática de Frege, e em particular a sua tentativa de extrair a aritmética da lógica, dependiam em larga
medida da ideia de que todos os conceitos têm que ter extensão, é natural que a contradição patente no paradoxo tenha
abalado a referida filosofia.
129
Não vislumbramos um mundo possível no qual 2 + 3 ≠ 5, a não ser que nesse mundo os conceitos de 2, 3 e de
adição sejam diferentes do que são no mundo actual, referindo-se a outras entidades que não as que referem no mundo
actual. A seguinte passagem de Saul Kripke sustenta de algum modo a nossa pretensão.
“Agora suponha que encontro um céptico bizarro. Esse céptico põe em causa a certeza da minha resposta, em
termos do que referi com sendo o ‘significado metalinguístico’. Ele sugere porventura que, como usei o termo ‘mais’ no
passado, a resposta que eu pretendia dar para ‘67+58’ deveria ter sido ‘5’! Claro que a sugestão do céptico é obviamente
insana. A minha réplica a esta sugestão poderia ser que o céptico deveria voltar para a escola e aprender a somar” (Kripke
1982:8)
181
matemáticas, do senso-comum130, ou todas em conjunto, que nos levam a atribuir-lhes
esse estatuto.
Candidato 2 a EEMP:
—S acredita garantidamente que a água é H2O.
áà guaà à H2O à à u aà p oposição metafisicamente necessária a posteriori (Cf.
Kripke 1981: passim. Por um lado, a proposição especifica uma necessidade física e
metafísica, uma vez que a água é efectivamente H2O no mundo actual e em todos os
mundos possíveis (nos quais há o líquido água). Por outr o lado, a proposição é a posteriori
porque que a sua verdade é determinável empiricamente.
Supondo que S tem os conceitos de água, de líquido, d e molécula, de hidrogénio e
de oxigénio e que acredita a água é H2O, não escandaliza sugerirmos que esta crença é um
candidato plausível a EEMP. Claro que outras condições do foro epistémico têm de ser
satisfeitas para que este seja um caso de conhecimento.
Candidato 3 a EEMP:
—S acredita garantidamente que está agora onde está
áàf aseà estouàa uiàago a ,àasse e adaàpo à“à oà o e toàt, estabelece, em t, uma
verdade contingente determinável a priori. Trata-se de uma verdade contingente uma vez
que S poderia ter estado noutro sítio em t. Trata-se de uma verdade determinável a priori
por S, uma vez que essa verdade não deriva da experiência (embora tenha origem na
experiência).131 Para qualquer agente, em circunstâncias normais, a sua ideia de que está
onde está, na altura em que está, é-lhe transparente sob reflexão. A maneira como esta
verdade se apresenta a alguém confere-lhe aparentemente um alto grau de autoevidência, o que parece ser suficiente para, ceteris paribus, qualificar a crença como um
EEMP.
Candidato 4 a EEMP:
130
A noção de senso-comum aqui empregue pode ser reconduzida à noção encontrada em Reid (1843: 381). Reid
remete o significado de “senso-comum” para a noção de capacidade comum de ajuizar ou de discernir (por exemplo,
discernir o verdadeiro do falso).
131
Usamos aqui a velha distinção Kantiana entre origem e derivação do conhecimento, aplicando-a à noção de
verdade. Cf. Kant 1997 b1.
182
—S acredita garantidamente que isto é vermelho
Pergunte-se a qualquer pessoa se, em circunstâncias pessoais e ambientais
regulares, ao apontar para um objecto totalmente vermelho duvida que aquilo para o qual
aponta é vermelho. Uma larga maioria de pessoas, incluindo muitos epistemólogos
(possuidores do bom senso descrito por Chisholm, ver acima), responderá que não duvida.
Contudo, a possibilidade de erro massivo dos sentidos preocupa os filósofos. Acima (ver
secções 4.2.2 e 4.2.3.) visitámos diversos cenários cépticos nos quais o agente está
massivamente enganado acerca do que julga percepcionar e, logo, está enganado acerca
do estatuto epistémico das suas crenças, o qual julga ser positivo, quando afinal é negativo.
Esses cenários colocam hipóteses cépticas radicais que causam perplexidade e
aparentemente nos impedem de encontrar nas crenças perceptuais candidatos plausíveis
a EEMP. Daí julgarmos ser pertinente voltar novamente ao tópico das restrições que os
cenários cépticos radicais colocam a qualquer tentativa de elucidar fenómenos
epistémicos.
Há várias formas de responder ao desafio céptico. As hipóteses que fazem mais
sentido parecem ser as seguintes:
1— Concordar com ele.
2— Ignorá-lo.
3—Aceitá-lo para mostrar que é auto-refutante.
4—Declarar o empate entre a posição do céptico e a não-céptica (por vezes também
referida por posição dogmática).
Ao escolhermos 1 estamos a dar razão ao céptico e tornamo-nos por isso também
cépticos. A resposta não é pois por isso interessante da nossa perspectiva. Ao escolhermos
2 estamos certamente a contrariar o céptico. Estamos no fundo a dizer-lhe que o cenário
que idealiza não é suficientemente convincente ou perigoso do ponto de vista
epistemológico para justificar a nossa preocupação e a nossa réplica. Esta é quase sempre
a reacção típica do leigo em epistemologia quando confrontado com cenários cépticos
radicais. Se nos for permitido usar a semântica dos mundos possíveis para explicar a atitude
do leigo, diremos que este pensa nos cenários radicais idealizados pelo céptico como
183
mundos possíveis nomologicamente distantes ou como mundos impossíveis, merecendolhe assim esses cenários pouco crédito, principalmente por considerar que a probabilidade
de o mundo actual ser um desses mundos é bastante baixa. Infelizmente para o leigo,
porém, há formas de estabelecer o cenário céptico de maneira a contornar a objecção da
não proximidade no mundo demonizado. Sosa (2007 passim) apresenta um desses casos,
que é simplesmente o caso de alguém que no mundo actual se diverte a mudar a cor de
uma parede branca para que possa parecer vermelha a quem a vê. Não há nada de
nomologicamente dista te à esteà aso.àOàage teàpensa estar a ver uma parede vermelha
mas, como está de facto a sofrer uma ilusão de óptica motivada por quem altera a cor da
parede, não vê que a parede é vermelha, não podendo portanto a sua crença de que isto
é vermelho ser EEMP.
Podemos conceder provisionalmente o ponto ao céptico e fazê-lo notar que, por
ter razão, se encontra na mesma situação do que nós. A ideia é mostrar-lhe não nos pode
afirmar o que quer que seja se tiver razão, incluindo que tem razão. Suponha-se que o
céptico reclama que pode afirmar que tudo o que experienciamos é uma aparência e que
nada do que percepcionamos é o caso, segue-se que a afirmação que faz perde todo o
sentido, pois, na ânsia ter razão, assume que os alvos da sua afirmação (nós os nãocépticos) podem ser meras ilusões da sua percepção (incutidas por génios, cientistas,
demónios, extraterrestres, etc).132
A derradeira hipótese, a 4, não se configura também como muito favorável para o
não-céptico. A possibilidade de empate entre o céptico e o não-céptico surge geralmente
explícita na disputa entre mooreanos e não mooreanos. Essa possibilidade leva os filósofos
mooreanos ou neo-mooreanos a optar por uma postura epistemologicamente agressiva
contra as possibilidades cépticas. Como se viu acima, o mooreano tem a tendência para
132
A ideia de que, mesmo sendo nós seres incubados, muitas das nossas crenças tidas nessa situação são EEMPs
é, pace Chalmers (2005)., uma ideia pouco plausível, pelo menos no que respeita a crenças com origem na percepção. A
ideia de que temos crenças verdadeiras com origem na nossa capacidade de percepcionar tem de ser confrontada com a
pergunta: O que é nesse caso percepcionado? Por certo que não é uma superfície vermelha. Mesmo que o nosso argumento
não seja conclusivo ou não convença o céptico (e não nos referimos a Chalmers), podemos sempre optar pela estratégia
anti-céptica habitual. Se o céptico reclama nenhum estado de crença é um EEMP, então só temos que lhe fazer ver que não
somos forçados a aceitar o que afirma, pois o seu estado de crença não tem um estatuto epistémico relevante. Isto é válido,
pensamos, para vários tipos de conteúdos proposicionais, oriundos da percepção ou de qualquer outra fonte.
184
apresentar um argumento simplificado em defesa da possibilidade de conhecimento.
Pritchard, por exemplo, descreve a contenda do seguinte modo:
Mooreanismo:
M1. Eu sei que tenho duas mãos.
M2. Se eu sei que tenho duas mãos, então sei que não sou um CNC.
MC. Eu sei que não sou um CNC.
Cepticismo:
S1. Eu não sei que não sou um CNC.
S2. Se eu sei que tenho duas mãos, então sei que não sou um CNC.
SC. Eu não sei que tenho duas mãos. (Pritchard 2008)
O sucesso do mooreanismo depende pois em larga medida da capacidade do
mooreano em nos mostrar a verdade de M1, enquanto o sucesso do cepticismo depende
em larga medida da capacidade do céptico de nos mostrar a verdade de S1. Como diz
Prichard, a situação traduz-se numa espécie de empate entre o mooreano e o céptico, pois
é tão difícil ao primeiro mostrar que M1 é verdadeira quanto ao segundo mostrar que S1
é verdadeira.
Pritchard (Ibidem) crê, quanto a nós correctamente, que esta situação acaba por
constituir uma objecção à postura do mooreano e gerar o que Pritchard chama a objecção
do impasse.133 Esta objecção diz basicamente que a postura e o argumento do mooreano
não é suficientemente eficaz ao ponto de demitir o argumento e a postura do céptico. De
facto, a situação de empate aparenta ser mais favorável para as pretensões do céptico do
que para as do mooreano, pois aquele não precisa de fazer vingar a possibilidade de ilusão
massiva, bastando-lhe sugerir essa possibilidade, suspender o juízo a respeito dela, para
de algum modo fazer valer o seu ponto. O que as hipóteses cépticas radicais fazem é
bloquear a pretensão do mooreano de apontar, sem margem para dúvida, um EEMP. Aliás,
a necessidade que o neo-mooreano sente de contrariar o argumento céptico e a sua
133
O texto identifica mais duas objecções ao mooreanismo clássico. A primeira está ligada à segunda que agora
discutimos, enquanto a terceira parece-nos menos interessante por se apoiar em razões de linguagem.
185
conclusão reflecte justamente esse sentimento de urgência que o não-céptico tem em
derrubar o bloqueio imposto pelo argumento do céptico. (Conhecem-se poucas tentativas
intencionais do contrário, ninguém deseja realmente que as hipóteses cépticas radicais
sejam verdadeiras). A tentativa neo-mooreana de refutar o céptico que expomos de
seguida reflecte essa mesma necessidade.
Resumidamente, o ponto neo-moreano contra o argumento céptico é o seguinte:
Independentemente da experiência que o agente tem que isto é vermelho ser, do ponto
de vista fenoménico, indistinguível no bom e no mau caso, as razões (fundamentos) de que
o agente dispõe no bom caso como evidência para acreditar que vê algo vermelho e as
razões de que o agente dispõe para acreditar no mau caso que vê algo vermelho são
diferentes. Crucialmente, as primeiras são factivas, enquanto as segundas não. Isto faz com
que os conteúdos das experiências sejam diferentes, apesar de elas serem indistinguíveis
do ponto de vista do agente. Esta perspectiva é, segundo Pritchard (Ibidem), uma espécie
de disjuntivismo epistémico, a qual atribui a McDowell. 134 Conseguindo o agente ter acesso
reflexivo às razões factivas que sustentam a sua crença perceptual no bom caso, terá
também, desta feita segundo Pritchard, uma forma eficaz de bloquear ou mesmo demitir
o argumento céptico. Segundo estes pensadores, em especial Pritchard, a vantagem
teórica dos neo-mooreanos é estar por defeito (default) numa posição de senso-comum
(commonsense) a respeito das razões que possui para a sua crença perceptual. É assim
porque, avança o neo-mooreano, em casos rotineiros de conversação os agentes fazem
por defeito um uso linguístico correcto (que explica de alguma maneira comportamentos
linguísticos e o sucesso de muitos desses comportamentos) de expressões que implicam
razões factivas (ou que implicam a factividade da crença perceptual), expressões como
... à ue... ,à ... ejoà ue... ,àet .,àoà ueà àdeà e toà odoàu à o ài dicador de que não é
o neo-mooreano que é revisionista em relação à posição por defeito, sendo portanto o
revisionismo atribuível à posição do céptico. Pritchard alega pois que isto confere uma
pequena vantagem teórica à posição do neo-mooreano. O que nos é dito é que apesar de
134
O disjuntivismo é epistémico por a diferença entre conteúdos de experiências ser de razões e não ser de
conteúdos simples da percepção, como no caso do disjuntivismo perceptual simpliciter . Tal como notado por Pritchard, a
tese também é defendida em género por Williamson (2000: 169).
186
o pressuposto de que o senso-comum está geralmente na posição por defeito ser um
pressuposto altamente falsificável, esse pressuposto representa ainda assim uma boa base
de sustentação para a teoria de McDowell.
Pritchard alega também, por outro lado, enquanto parte da solução, que o
externalismo epistémico está em boas condições de oferecer uma perspectiva plausível de
como o agente pode ter boas razões no bom caso e más razões no mau caso, isto
independentemente do conteúdo da experiência fenoménica ser o mesmo. Eis a passagem
relevante:
... àN oàpa e eàexisti à ual ue à az oàdeàp i ípioàó iaàpelaà ualàu àexte alistaà
epistémico devesse considerar que a evidência perceptual de um agente esteja
limitada em termos daquilo que é fenomenologicamente distinguível para esse
agente. O externalista pode alegar, por exemplo, que a natureza da nossa evidência
perceptual é em parte determinada por factos que dizem respeito ao pedigree do
mecanismo de percepção através do qual essa evidência é adquirida—a sua
fiabilidade no seio do ambiente [cognitivo] relevante, por exemplo—o que são factos
que, segundo a concepção externalista clássica, não estão reflexivamente
disponíveis para o agente. Numa concepção da evidência deste tipo externalista, a
natureza da evidência perceptual seria diferente [em cada um dos casos] por causa
do diferente pedigree do mecanismo percepção, isto apesar dos dois casos serem
fenomenicamente indisti guí eisàpa aàoàage te (Ibidem)
Claro que, dizemos nós agora, parece que o facto de o agente ter boas razões do
ponto de vista externalista, na linha do que é sugerido por Pritchard, não parece ser
suficiente para ditar ao agente que está bom caso. A exigência não satisfeita de capacidade
de discernimento reflexivo entre boas e más razões pode deixar o agente na mesma
condição de incerteza acerca do conteúdo da sua experiência mesmo estando no bom
caso. Como diz Pritchard, imputando a posição a McDowell, o truque está pois em supor
que não apenas o agente tem boas razões, por exemplo, por via da sua experiência
perceptual derivar de um processo cognitivo fiável, mas que esse agente pode também
discernir que essas são de facto boas razões, pois só isso parece poder garantir ao agente
que está no bom caso.
Basicamente, segundo Pritchard, o neo-mooreano (neste caso McDowell) responde
alegando que há três ordens de considerações para sustentar que o seu disjuntivismo dá
conta da diferença entre o bom e o mau caso. Duas delas, mais passivas, referem-se à
forma como o disjuntivismo se ajusta à prática linguís tica e ao senso-comum, e à forma
187
como o céptico não oferece boas razões para pensarmos que não é possível para o agente
distinguir entre razões factivas e não-factivas contidas na sua experiência perceptual. Não
iremos dissecar aqui essa argumentação. No que respeita à tese mais positiva, é
importante referir que ela assenta fundamentalmente no pressuposto de que uma
perspectiva do senso-comum pode fazer pender a balança para o lado do neo-mooreano.
Talvez. Mas o céptico pode valer-se do mesmo tipo de armas, alegando que duvidar e
expressar cepticismo em relação à eficácia e ao alcance das nossas razões (fundamentos)
também está conforme a prática linguística comum e à intuição.
Por fim, quanto ao último ponto aduzido por Pritchard a favor do neomooreanismo, o que se tenta mostrar é que é possível transpor as dificuldades
(wittgensteinianas) relacionadas com o facto de as asserções do tipo mooreano poderem
ser concomitantemente verdadeiras e inapropriadas. Mas isto não parece também ser
suficiente para mostrar que o agente consegue discernir entre boas e más razões. Apenas
mostra que a eventual verdade dessas asserções, asserções que fazemos em função do que
julgamos ser o nosso conhecimento perceptual, é compatível com o facto de ser
inapropriado fazê-las. O céptico pode conceder isso sem ter de conceder que o mooreano
tem um bom critério para distinguir reflexivamente boas e más razões que saem de
experiências indistinguíveis do ponto de vista fenom énico.
Identificámos de forma muito resumida alguns problemas filosóficos que envolvem
uma atribuição do estatuto de EEMP a uma crença perceptual, algo que se afigura
extremamente plausível para o leigo. Detivemo-nos mais um pouco na discussão deste
candidato a EEMP porque pensamos que mesmo considerando todos os problemas
filosóficos em redor deste candidato, ninguém duvidaria que, em circunstâncias normais,
este é realmente um bom candidato a EEMP. Claro que o céptico poderá desafiar-nos a
mostrar o que são essas circunstâncias. Mas mesmo que não consigamos desenvolver essa
demonstração, isso não invalida que não possamos admitir 4 como um candidato plausível.
O facto de termos dúvidas acerca da capacidade filosófica de um aluno não é um factor
eliminatório da candidatura desse aluno a filósofo. O cé ptico é preconceituoso se rejeitar
a analogia e inconsistente se a aceitar e continuar a supor que 4 não é um candidato
plausível.
188
Candidato 5 a EEMP
—S acredita garantidamente que morreram milhões de pessoas por causa da
Segunda Grande Guerra Mundial
Face à evidência disponível (de vários tipos), parece absurdo não acreditar que
morreram milhões de pessoas por causa da Segunda Guerra Mundial. Essa crença numa
proposição de carácter histórico é pois, em circunstâncias normais, um candidato plausível
a EEMP.
6.6. Critérios de identificação de condições necessárias e suficientes para a
ocorrência de um EEMP
Tendo encontrado alguns candidatos plausíveis a EEMP, que remos nesta fase
fundar nessa plausibilidade a nossa busca por um crit ério de identificação de condições
necessárias e suficientes para ocorrer um EEMP. Uma vez que acima (ver secção 6.1.)
avançámos como hipótese de trabalho um EEMP é um estado de crença epistemicamente
garantida, no sentido em que a garantia permite à crença ser apropriadamente verdadeira
e infalsificável, procuramos agora critérios para identificar as condições necessárias e
suficientes para que ocorra esse tipo de garantia e, logo, para que possa ocorrer um EEMP.
6.6.1. Um critério de identificação de condições necessárias para a ocorrência de
um EEMP
Considere-se o estado E que goza de um estatuto epistémico maximamente
positivo e o estado E*, em tudo igual a E, excepto no que respeita a gozar desse estatuto.135
E e E* são estados de crença verdadeira ou, se o leitor preferir, estados de aceitação de
uma proposição verdadeira.136 Suponha-se adicionalmente que, num mundo possível w, S
está num estado E relativamente a p, enquanto no mundo possível w*, S está num estado
E* relativamente a p. Suponha-se agora que w é o mundo actual e que, neste mundo, pelas
135
Repare-se que E* pode ser um estado que goza de um estatuto epistémico positivo simpliciter , por exemplo, à
guisa alstoniana.
136
Casos de crença falsa não podem obviamente ser casos epistemicamente positivos, uma vez que a verdade não
é alcançada. O defensor da tese contrária tem o ónus de explicar em que medida são epistemicamente positivos casos de
crença falsa. Talvez possa alegar que certas crenças falsas são epistemicamente importantes para a aquisição de crenças
verdadeiras e, logo, são estados epistemicamente positivos. Esta é uma possibilidade que rejeitamos até possuirmos mais
e melhores indícios a seu favor.
189
razões acima apontadas aquando da apresentação dos candidatos p lausíveis a EEMP, o
estado E é um bom candidato a EEMP. Supondo que assim é, e não vemos nenhuma boa
razão para não o ser, pergunta-se agora como poderia E perder esse estatuto e, portanto,
transformar-se em E*, na passagem de w para w*. A nossa resposta é a de que algo crucial
do ponto de vista epistémico é perdido nesta transição.137 Propomos que o que causa essa
perda é uma condição suficiente para um EEMP deixar de o ser.
Considere-se agora o seguinte critério:
C-Nec—Se X é uma condição suficiente para um estado E não ser maximamente
positivo do ponto de vista epistémico, então a condição Y inversa a X é uma condição
necessária para E ser um estado maximamente positivo do ponto de vista
epistémico.
Por exemplo, se a falta de evidência adequada para acreditar que p for uma
condição suficiente para um agente transitar de um estado do tipo E para um estado do
tipo E*, então ter evidência adequada será uma condição necessária para um estado do
tipo E.
Não detectamos qualquer contra-exemplo a C-Nec. Quer dizer, não conseguimos
vislumbrar uma condição filosoficamente relevante tal que, sendo essa condição suficiente
para S transitar de um EEMP para um não-EEMP, então a condição inversa dessa condição
não seja necessária para ocorrer um EEMP. Deixando em aberto essa possibilidade,
entregamos ao crítico o ónus de a demonstrar.
Deve agora indagar-se como pode C-Nec realmente auxiliar-nos na detecção das
condições necessárias para ocorrer um EEMP. A nossa primeira impressão é a de que CNec sugere uma trivialidade, pois parece que é igual usar a direcção que descreve as
o diçõesàsufi ie tesàpa aà t a sita àdeàEàpa aàE*àouàaàdi e ção que descreve as condições
e ess iasà pa aà t a sita à deàE*à pa aà E.à H à o tudoà u à fa to à ueà podeà se i -nos de
critério de escolha entre a direcção E/E* e a direcção E*/E, permitindo-nos dar a prioridade
na ordem da explicação à primeira direcção. Esse factor é o seguinte:
137
Por “passar” e “transição” queremos apenas indicar a transição entre mundos possíveis ligeiramente diferentes,
e não a passagem diacrónica, no mundo actual, de um estado ao outro. Não se trata de pois perder ou de ganhar
conhecimento, ou outro estado epistémico, no sentido convencional e temporal das expressões.
190
F-ɵ — Em casos de fronteira, a aceitação de que um estado não é um EEMP é mais
fácil e mais consensual do que a aceitação de que um estado é um EEMP.
Podemos apoiar F-ɵ em duas ordens de razões. Por um lado, podemos apelar para
o facto de ser intuitivamente mais fácil apontar um caso que falha em ser um caso de EEMP,
porque é intuitivamente mais fácil de perceber que algo falha do ponto de vista epistémico
nesse caso, sendo portanto mais fácil apontar uma condição suficiente para que esse caso
seja um putativo EEMP do que apontar uma condição necessária para ocorrer um EEMP.
Note-se que com isto não estamos a supor que é difícil encontrar um bom candidato a
EEMP, tal como o fizemos na secção anterior. Estamos apenas a dizer que é mais fácil
apontar as condições suficientes para a não ocorrência de um do que encontrar condições
necessárias para que ocorra.
A segunda razão tem a ver com a aceitação consensual dos sucessivos contraexemplos colocados às sucessivas definições de conhecimento e de justificação (de crenças
verdadeiras), etc., apresentadas na história recente da epistemologia. Há na realidade uma
aceitação, por vezes tácita, por vezes explícita, de que os inúmeros contra-exemplos
disponíveis para diferentes definições de conhecimento revelam claramente estados, em
casos de fronteira, que não são estados maximamente positivos do ponto de vista
epistémico.138 Muito do que expusemos na primeira deste trabalho acerca do percurso
histórico do Problema de Gettier milita a favor desta pretensão, atestando por conseguinte
a correcção de F-ɵ.
Se o F-ɵ for, como pensamos ser, válido, milita favor da plausibilidade de C-Nec,
disponibilizando dessa forma esta última um critério geral para a identificação de
condições necessárias para a ocorrência de um EEMP.
6.6.2. Um critério de identificação de condições suficientes para a ocorrência de um
EEMP
Encontrar um critério eficaz que nos permita identificar as condições suficientes
para a ocorrência de um EEMP é por certo uma das mais complicadas tarefas da história
da epistemologia. O rescaldo do Problema de Gettier exemplifica na perfeição essa
138
A excepção à regra são casos do tipo caso Barney, nos quais as intuições se dividem, havendo aí indecisão
genuína acerca de serem casos de conhecimento ou de ignorância.
191
dificuldade (Cf. Shope 1983). Recorde-se que o problema nasce em virtude da falsificação
da DTC enquanto tese da suficiência das três condições. Na realidade, os epistemólogos
p eo upadosà o àoàP o le aàdeàGettie àte ta a à espo de à à uest oà Queà o dições
são necessárias e suficientes para S saber que p? sem se preocuparem, primeiro, em
espo de à à uest oà Qualà oà it ioà pa aà ide tifi a à aà sufi i
iaà dasà o diçõesà pa aà “à
saber que p? ,à uest oàestaà ueàpa e eà u aàte àsidoàde ida e teà espo dida.àSe alguém
ensaiar um demissão do problema respondendo que o critério é óbvio, sendo o da
suficiência das condições propostas como suficientes, só temos de perguntar como se
ede à ouàdete
i aà essaà sufi i
ia,à olta doàdeà i ediatoà aà olo a -se o problema. O
nosso ponto é que não basta propor condições que, aparentemente, são suficientes para
S saber que p. Da nossa perspectiva, tem de se discernir em primeiro lugar qual o critério
de suficiência usado para aferir a suficiência dessas condições, sem o que não é possível
realizar uma atribuição de suficiência do género pretendido.
A não existência de um tal critério abre por exemplo a porta ao que pode ser
desig adoà o oà oà p o le aà daà a
iguidadeà doà sig ifi adoà deà
o he i e to .à
Crucialmente, tal como descrito por Mathias Steup (2008 a e b), o problema resume-se à
possi ilidadeà deà da à últiplosà sig ifi adosà aoà te
oà
o he i e to ,à depe de doà doà
contexto de avaliação. Assim, num contexto pouco exigente, e.g., um contexto extraacadémico e/ou extra-filosófico, o conhecimento pode ser apenas crença verdadeira.
Noutros contextos mais exigentes do ponto de vista científico e/ou filosófico,
o he i e to à podeà sig ifi a à
e çaà e dadei aà justifi ada, de-gettierizada, etc. A
consequência destas diferentes avaliações acaba por ser a ambiguidade semântica da
exp ess oà
o he i e toà p oposi io al à ou,à aà
elho à dasà hipóteses,à aà exp ess oà
denotar diferentes conceitos ou conceitos aparentados, mas não iguais.139
Propomos agora nós como alternativa que a solução do problema do critério de
suficiência das condições para a ocorrência de um EEMP esteja de alguma forma contida
na história do problema. Com efeito, se for possível divisar um conjunto de condições que
consegue resistir a todos os contra-exemplos tipo-Gettier (disponíveis para diversas
tentativas de definir o conhecimento proposicional), então esse será plausivelmente o
139
Na linha da célebre proposta constante em Wittgenstein 2002: § 66.
192
conjunto de condições suficientes para que ocorra um EEMP. O nosso critério de suficiência
usa portanto os habituais contra-exemplos como instrumentos privilegiados e como ponto
de partida para se aferir da suficiência de um conjunto de condições. A diferença entre o
nosso critério e os outros métodos é que estes últimos reclamam a suficiência das
condições a partir de outros pontos de partida e instrumentos conceptuais, enquanto o
nosso critério usa os contra-exemplos que falsificam as definições saídas desses pontos de
partida e instrumentos. Tendo isto presente, propomos o seguinte critério para identificar
um conjunto de condições suficientes para ocorrer um EEMP:
C-Suf—Se os usuais contra-exemplos que falsificam as definições de conhecimento
não resistem à satisfação de um conjunto de condições, então esse conjunto contém
as condições suficientes para a ocorrência de um EEMP.
O critério será explicitado na secção 6.8., especialmente a noção na antecedente, a
qual é, sem ulterior qualificação, não apenas duvidosa como também obscura.
Há porém que fazer já duas observações a respeito de C-Suf. A primeira é a de que
não nos compromete imediatamente com a ideia de que, se um estado é um EEMP, então
é um estado de conhecimento. Com efeito, pensamos que do facto de a seguinte
implicação...
Conhecimento → EEMP
ser trivialmente verdadeira, não se segue que a seguinte implicação...
EEMP →à o he i e to
o seja. Não há a possibilidade (conceptual) de haver casos de conhecimento que
não são casos de EEMP, mas há talvez a possibilidade (conceptual ou lógica) de haver casos
de EEMP que não são casos de conhecimento. O facto de um estado de crença resistir a
todos os contra-exemplos de tipo-Gettier garante-lhe um estatuto epistémico
maximamente positivo, mas não garante prima facie que esse estado seja um estado de
conhecimento. Algo mais tem de ser dito para que a segunda implicação obtenha. Adiamos
novamente (pois já a ela tínhamos aludido no começo da segunda parte) essa discussão.
Voltaremos a ela no final do trabalho.
193
A segunda observação prende-se com o sentido restrito de suficiência que C-Suf
propõe. Trata-seà deà sufi i
iaà i duti a ,à seà assi à seà lheà podeà ha a ,à u à do í ioà
circunscrito. Se a satisfação de um conjunto de condições é suficiente para a ocorrência de
um estado que resiste sistematicamente a contra-exemplos lançados contra tentativas de
definir o estado de conhecimento, e se qualquer estado de conhecimento é um EEMP,
então a satisfação desse conjunto de condições é—dado a amostra disponível de contraexemplos—suficiente para a ocorrência de um EEMP. É portanto um sentido de
sufi i
ia à i u s itoà àa ost aàdispo í elàdeà o t a-exemplos, dependendo dela.
6.7. Condições necessárias para a ocorrência de um EEMP
Temos agora, da nossa perspectiva, os instrumentos de que precisamos para
identificar as condições necessárias e suficientes, filosoficamente relevantes, para a
ocorrência de um EEMP. Vimos, por um lado, um vasto conjunto de condições legado pela
investigação recente feita em epistemologia e temos, por outro, critérios que podem
servir-nos de guia para a identificação dessas e de outras condições. Iniciamos pois o
exercício de identificação de condições necessárias tendo por referência a lista de
condições vistoriada na primeira parte e a lista de desideratos indicados por Alston .
Recordando o que dissemos quando submetemos C-Nec, o leitor deverá ter em
consideração que, para uma larga maioria dos casos a discutir, supomos que há um mundo
possível (o actual) no qual ocorre um EEMP e um mundo possível, relevantemente próximo
do actual, no qual obtém uma condição suficiente para esse estado não ocorrer. Diremos
que a condição inversa dessa condição suficiente que obtém nesse mundo possível será
uma condição necessária para a ocorrência de um EEMP no mundo actual. Esperamos
assim construir a nossa própria taxonomia de condições ne cessárias para a ocorrência de
um EEMP.
Começamos por inspeccionar duas condições consensualmente aceites, passandoas pelo crivo de C-Nec. Plausivelmente, se...
(-1)
S não acredita que p.
e
194
(-2)
Não é o caso que p.
então não ocorre um EEMP. A forteriori, se S não acredita que p então não há
qualquer estado de aceitação de uma proposição, e portanto não pode ocorrer um EEMP.
Por outro lado, Se é falso que p, então o estado epistémico não pode ser positivo, pois
acreditar numa falsidade é claramente um estado epistemicamente negativo. Assim, por
C-Nec, as seguintes são condições necessárias para a ocorrência de um EEMP:
(1)
S acredita que p.
e
(2)
É o caso que p.
Estas são condições pouco (ou mesmo nada) disputadas na literatura. São, salvo
raras excepções, condições presentes em todas as tentativas de elucidação da natureza de
um EEMP. Sem crença e verdade (ou sem crença verdadeira) não pode ocorrer um EEMP.
Suponha-se agora que a fundamentação (seja de que ordem for) que S tem para a
verdade de que p não garante apropriadamente a verdade de que p, sendo, por
conseguinte, a crença de S falsificável. Como é óbvio, não pode ocorrer um EEMP nessas
circunstâncias. A seguinte é uma condição suficiente para que não ocorra um EEMP:
(-3)
A crença de S que p não está garantida de modo a alcançar apropriadamente
a verdade, sendo falsificável.
A mera possibilidade de falsificação da crença por ausência de garantia de que não
só não alcança a verdade, como não a alcança apropriadamente, retira a essa crença a
possibilidade de ter um estatuto epistémico maximamente positivo. Considere-se a crença
de Ptolomeu de que o Sol orbita (circunda) a Terra. Apesar de fundamentada, essa
fundamentação não garantia a sua verdade de forma apropriada, pois não garantia sequer
a verdade (como se sabe hoje, a crença é falsa). Por C-Nec, a seguinte é pois uma condição
necessária para a ocorrência de um EEMP:
195
(3)
A crença de S que p está garantida de modo a alcançar apropriadamente a
verdade e ser (ultima facie) infalsificável.
Como o leitor já deve ter notado, a condição 2 e a condição 3 combinam as
condições ii e iii da elucidação de EEMP que submetemos no começo da secção 6.1.
Pensamos que as restantes condições necessárias para ocorrer um EEMP que iremos
sugerir de seguida são subalternas a 3, no sentido em que esta só obtém se obtiverem as
outras. A ideia ficará em estado bruto até expormos, na secção seguinte, o método que
nos permitirá apresentar as devidas relações de hierarquia entre condições.
O facto de S não ter evidência adequada para acreditar que p, mesmo sendo p
verdadeira, é suficiente para 3 não obter e, por conseguinte, é suficiente para, ceteris
paribus, não ocorrer um EEMP. A seguinte é pois uma condição suficiente para não ocorrer
um EEMP.
(-4)
S não tem evidência adequada para acreditar que p.
Assim, por C-Nec, a seguinte tem de ser uma condição necessária para ocorrer um
EEMP:
(4)
S tem evidência adequada para acreditar que p.
Claro que, tal como notado por Alston et al, o facto de S ter evidência adequada
para acreditar que p não é suficiente para a crença de S que p alcançar a verdade de p de
forma apropriada, pois se S tem evidência adequada para a verdade de p, mas a sua crença
não assenta nessa evidência mas noutra coisa qualquer, então esse estado de crença não
pode ser um EEMP. Suponha-se que, ao ler o De Revolutionibus Orbium Coelestium, de
Copérnico, S fica na posse de evidência adequada para aceitar a verdade da teoria
heliocêntrica. Mas suponha-se também que S não vem a acreditar que essa teoria é
verdadeira com base nessa evidência mas sim pelo facto de pensar que Ptolomeu,
reconhecidamente, o principal defensor da teoria geocêntrica na antiguidade, era mau
astrónomo. Certamente, pois, que o facto de a crença de S não assentar em evidência
adequada (mas sim em pseudo-evidência), apesar de S possuir evidência adequada, é
suficiente para a crença de S que p não ser um EEMP. Assim, a seguinte é uma condição
suficiente para não ocorrer um EEMP:
196
(-5)
A crença de S que p não assenta em evidência adequada.
Por C-Nec, a seguinte será uma condição necessária para ocorrer um EEMP:
(5)
A crença de S que p assenta em evidência adequada.
Note-se, em primeiro lugar, que 4 é uma condição necessária para 5. Além disso,
com base no exame que fizemos na primeira parte das várias teorias da evidência,
pensamos que 4 e 5 dão conta das condições de base necessárias para uma crença estar
garantida. Pensamos que as restantes condições necessárias para ocorrer um EEMP que
iremos sugerir de seguida são subalternas a 4 e 5, no sentido em que são diretamente
necessárias para a obtenção destas e indiretamente necessárias para a obtenção da
condição 3. Mais uma vez remetemos descrição dessa hierarquia para a próxima secção.
Há, da nossa perspectiva, diversas condições suficientes quer para um agente não
ter evidência adequada para p (condição -4) quer para a crença desse agente não assentar
nessa evidência adequada (condição -5). Listamo-las de seguida.
Começamos pelas condições suficientes para a condição (-4) obter. Suponha-se
que, tal como sugerido pelo céptico, vivemos num cenário de ilusão massiva criado por
uma entidade poderosa. Nesse cenário, sem que o possamos contrariar, julgamos ter
evidência perceptual para p, mas essa evidência é afinal pseudo-evidência, pois todas as
nossas percepções são, num certo sentido, pseudo-percepções, uma vez que as coisas que
julgamos percepcionar não existem. Assim, a seguinte é uma condição suficiente para 4
não obter e, logo, para não ocorrer um EEMP:
(-6)
As circunstâncias ambientais em que se forma a crença de S que p são
desfavoráveis para S do ponto de vista da obtenção da verdade de que p ou há um
elemento no ambiente de formação da crença que é desfavorável do ponto de vista
da adequação das razões/fundamentos que S tem para acreditar que p.
Estamos razoavelmente convictos que ninguém duvida que as circunstâncias
descritas em (-6) se constituem como factores impeditivos de um agente possuir evidência
adequada para acreditar que p. Assim, por C-Nec, a seguinte será uma condição necessária
para S ter evidência adequada para acreditar que p:
(6)
As circunstâncias ambientais em que se forma a crença de S que p são
favoráveis para S do ponto de vista da obtenção da verdade de que p e não há
197
qualquer elemento no ambiente de formação da crença que seja desfavorável do
ponto de vista da adequação das razões/fundamentos que S tem para acreditar que
p.
A condição 6 dá parcialmente conta dos cenários cépticos radicais comuns na
literatura. Dizemos parcialmente porque outras condições têm de obter para que tal
aconteça. Iremos introduzi-las um pouco mais adiante, quando tratarmos da forma como
uma crença deve assentar em evidência adequada, no sentido já descrito acima.
Vimos na primeira parte, especialmente nas secções 4.3.1. e 4.3.2 que, no que
respeita a circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao surgimento de evidência
adequada, algo de muito similar ao que foi dito sobre as c ircunstâncias ambientais pode
ser dito a respeito das condições de base pessoais para recolher evidência ou às fontes
sociais de evidência. Suponha-se que S chega ao resultado correcto de que 1526+6549 é
igual a 8075 não porque o seu cérebro consiga fazer a inferência mas porque está a ser
comandado por uma entidade o faz acreditar apenas em verdades aritméticas. E, suponhase também, por outro lado, que S acredita que comeu cereais ao pequeno-almoço, tendo
de facto comido cereais ao pequeno-almoço, não porque se recorde de o ter feito mas
porque alguém que lhe deseja mentir lhe diz acidentalmente a verdade. Suponha-se ainda
que S acredita que está um frasco com bolachas à sua frente quando está afinal a confundir
um holograma de um frasco com bolachas por um frasco com bolachas, estando contudo
realmente um frasco com bolachas escondido por detrás do holograma. Todas estas são
circunstâncias de crença verdadeira (provavelmente justificadas) nas quais há um qualquer
problema relacionado com o exercício deficiente das capacidades cognitivas do agente
(capacidade de realizar inferências válidas, capacidade de memorizar e recuperar
memórias, capacidade de percepcionar correctamente) ou com a fonte social de evidência
(testemunho). A seguinte é pois, a nosso ver, uma condição suficiente para não ocorrer um
EEMP:
(-7)
As virtudes intelectuais de um agente, as suas capacidades cognitivas e, em
geral, as fontes de evidência ou fundamentos, sejam elas de carácter pessoal (a
capacidade de realizar inferências, a capacidade memorizar e recuperar memórias,
e a capacidade de percepcionar) ou social (testemunho), não estão a operar
correctamente.
Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:
198
(7)
As virtudes intelectuais de um agente, as suas capacidades cognitivas e, em
geral, as fontes de evidência ou fundamentos, sejam elas de carácter pessoal (a
capacidade de realizar inferências, a capacidade memorizar e recuperar memórias,
e a capacidade de percepcionar) ou social (testemunho), estão a operar
correctamente.
A condição 7 nada mais faz do que sintetizar um conjunto de exigências
epistemológicas consensuais (ou praticamente consensuais), pelo que não nos deteremos
mais na sua discussão.
O leque de condições suficientes para não ocorrer um EEMP não termina aqui.
Suponha-se que o processo, seja ele qual for, pelo qual S poderia adquirir a evidência para
acreditar que p não é afinal fiável, quer dizer, trata-se de um processo do qual resulta
e id
iaà ueà p oduz à u à g a deà ú e oà deà e çasà falsasà eà u à aixoà ú e oà deà
crenças verdadeiras. A título de analogia, suponha-se que S emprega, ao jogar xadrez, uma
combinação de lances que produz, contrariamente ao que é por si expectável (um elevado
número de vitórias), um elevado número de derrotas. Certamente que essa combinação
não é adequada para o objectivo primário de S, o qual é ganhar o jogo, pois não é fiável.
Do mesmo modo, um processo de aquisição de evidência que não seja fiável, no sentido
em que não produz os resultados desejáveis do ponto de vista epistémico, não produz
evidência adequada. A seguinte é pois uma condição suficiente para não ocorrer um EEMP:
(-8)
O processo (ou processos) por via do qual S adquire evidência para acreditar
que p não é fiável.
Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:
(8)
O processo (ou processos) por via do qual S adquir e evidência para acreditar
que p é fiável.
Repare-se que adaptamos aqui a tradicional noção de fiabilidade à noção de
evidência, sugerindo que esta só é adequada caso o processo que esteja na sua origem seja
fiável. Isto permite-nos talvez evitar algumas objecções habitualmente levantadas às
noções de fiabilidade de crenças e de fiabilidade da justificação (vide secções 3.5. e 3.5.3.),
mas certamente que não todas. Quanto a isso temos apenas a propor, como defesa
sumária do nosso fiabilismo, que pode não ser uma cond ição suficiente para ocorrer um
EEMP, mas tal não impede que seja uma condição necessária, como aliás julgamos ter
199
mostrado com a analogia apresentada acima. Uma defesa deste género de fiabilismo não
cabe contudo aqui por razões de economia, pelo que optamos por deixar a noção em
bruto.
Exigência de fiabilidade do processo que produz a evidência conduz-nos a outras
exigências. Suponha-se que S acredita que há vulcões nas luas de Júpiter apenas com base
em falsidades. Quer dizer, suponha-se que todas as razões, que S tem para acreditar que
há vulcões nas luas de Júpiter ou são falsas ou não estão causalmente ligadas ao facto de
haver vulcões nas luas de Júpiter. Mesmo sendo esta crença de S verdadeira, até que ponto
se lhe pode creditar o estatuto de EEMP? Vimos na primeira parte do trabalho que Clark
(secção 2.2.) e Williamson (secção 5.3.) têm, respectivamente, teorias da justificação e da
evidência que excluem a possibilidade de, também respectivamente, haver fundamentos
falsos e evidência que não é conhecimento (ou pseudo-evidência) a justificar/garantir
apropriadamente uma crença. Vimos também que Goldman e Skyrms pensam que deve
existir algum tipo de ligação causal entre o facto que torna verdadeira a proposição
acreditada e as razões para crer justificadamente nessa proposição. Se estes pensadores
estiverem correctos, então, considerando a nossa elucidação de EEMP, a seguinte é uma
condição suficiente para não ocorrer um EEMP:
(-9)
S acredita que p com base em falsos fundamentos, pseudo-evidência, ou
razões que não estão causalmente ligadas ao facto que torna p verdadeira.
Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:
(9)
S acredita que p com base em fundamentos verdadeiros, evidência que é
conhecimento, causalmente ligados ao facto que torna p verdadeira.
Crucialmente, a crença de S de que há vulcões nas luas de Júpiter só será um EEMP
caso a evidência que S tem para acreditar que isso é o caso seja constituída apenas por
verdades e conhecimento ligados ao facto de que há vulcões nessas luas. Por exemplo, que
Io tem vulcões.
Suponha-se agora que S acredita que o sistema solar não contém luas com vulcões.
Uma vez que essa proposição é inconsistente com a proposição verdadeira de que Io tem
vulcões, segue-se que a crença de S não pode ser um EEMP. A seguinte é portanto uma
condição suficiente para não ocorrer um EEMP:
200
(-10) A proposição alvo de crença é inconsistente com pelo menos uma
proposição verdadeira (relevante).
Por C-Nec, a seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP:
(10)
A proposição alvo de crença tem de ser consistente com todas as
proposições verdadeiras (relevantes).
Verificar se a condição 10 obtém é uma tarefa porventura irrealizável. Isso não é
contudo razão para a demitirmos. Uma teoria plausível das alternativas relevantes ao
estatuto epistémico positivo de uma crença pode mitigar o problema da verificação. David
Lewis (1996), por exemplo, está preocupado com a forma como são possíveis atribuições
infalíveis de conhecimento, tal como são exigidas pelo desafio do céptico. Após rejeitar a
noção de infalibilidade epistémica exigida pelo céptic o, Lewis submete o seu falibilismo a
meio caminho entre a exigência de infalibilidade e o desespero céptico. A sua concepção
supõe que as seguintes são as circunstâncias ideais para a ocorrência de atribuições
correctas, embora falíveis, de conhecimento a um agente.
S sabe que p se e somente se a evidência que S tem para p elimina qualquer
possibilidade em que não-p, exceptuando: (a) Aquelas possibilidades/alternativas em que
não-p que são correctamente ignoradas; (b) Aquelas possibilidades/alternativas que
entram em conflito com as nossas correctas pressuposições (relacionadas com a verdade
de p). (Ibidem)
Lewis preocupa-se em submeter regras que permitam identificar alternativas não
podem ser correctamente ignoradas. Tendo presente que por alternativa não-p a p se
entende uma possibilidade que falsifica p, temos que...
Regra da Actualidade—Se uma possibilidade/alternativa obtém, então essa
possibilidade não pode ser correctamente ignorada.
Regra da Crença—Se o agente acredita que uma determinada possibilidade
/alternativa obtém, então essa possibilidade não pode ser correctamente ignorada.
Regra da Semelhança—Se uma possibilidade/alternativa se assemelha a outra
possibilidade que não pode ser correctamente ignorada, então essa possibilidade
não pode ser correctamente ignorada.
Lewis indica também algumas regras que indicam que possibilidades podem ser
correctamente ignoradas. São elas:
201
Regra da Fiabilidade—Uma possibilidade/alternativa que nasça de um processo nãofiável de formação de crenças pode ser correctamente ignorada.
Regra da Conservação—Possibilidades/alternativas ignoradas em geral por outros
podem ser correctamente ignoradas.
Regra da Atenção—Se uma possibilidade é consciente e racionalmente ignorada,
então é correctamente ignorada, pois o facto de ser ignorada dessa forma implica
que deveria de facto ser ignorada.
Lewis é bastante prudente no que respeita a reivindicar a eficácia destas últimas
regras. Da sua perspectiva, elas podem ser falsificadas, constituindo-se apenas como guias
cuja aplicação é plausível para um conjunto alargado de casos, embora não para todos os
casos. Um exemplo claro disso (que Lewis menciona) é o insucesso que a Regra da
Fiabilidade pode exibir em determinados casos. Suponh a-se que um diagnóstico médico
verdadeiro que é alternativa a um diagnóstico médico falso nasce de um processo nãofiável de formação de crenças. Será que podemos nessa situação ignorar o diagnóstico
médico verdadeiro? Sim, podemos, mas o resultado é indesejável do ponto de vista
epistémico. Extrai-se daí a ideia de que uma alternativa não-p a p não pode ser
correctamente ignorada apenas em função do que é prescrito pela Regra da Fiabilidade.
A moral da história contada por Lewis é, aparentemente, que esta falibilidade
moderada das regras abre a porta a uma falibilidade moderada das atribuições de
conhecimento. Atribuições de conhecimento correctas são aquelas que satisfazem
sistematicamente as regras acima descritas. Essas regras podem no entanto não ser
suficientes para se determinar com exactidão se uma determinada atribuição de
conhecimento é ou não correcta. O ponto de Lewis parece-nos certeiro. Em epistemologia
temos definições, elucidações, condições, regras, guias e modelos falíveis que nos ajudam
a perceber, por aproximação e falivelmente, se uma determinada atribuição de
conhecimento é ou não correcta. A falibilidade é um fardo do epistemólogo que não segue
nem a via do cepticismo nem a via do dogmatismo.
Voltamos agora ao problema das condições necessárias para ocorrer um EEMP.
Desta feita centramos a nossa atenção nas condições ditas deontológicas, de segunda
ordem ou relacionadas.
202
Começamos pela exigência de responsabilidade epistémica, a exigência predilecta
de algumas formas de internalismo epistemológico (vide se çõesà . .,à . à eà P i ei oà
I te lúdio ,à asàespe ial e teàaàse ç oà . . . à“upo ha-se pois que, no mundo possível
w, S é advogado de defesa R num processo judicial no qual R é acusado de ter cometido
homicídio. Suponha-se que S acredita em w que R não cometeu o homicídio de que é
acusado. Suponha-se, adicionalmente, que a crença de S é verdadeira e que S fez tudo o
que devia fazer do ponto de vista da satisfação dos seus deveres epistémicos. Agora tomese em consideração o mundo w*, em tudo igual a w, excepto no facto de nesse mundo S
não ter feito tudo o que devia fazer do ponto de vista da satisfação dos seus deveres
epistémicos para encontrar a verdade acerca de p. Se a crença de S for um EEMP em w,
intuitivamente, não o será em w*, pois uma condição suficiente para o não ser obtém
nesse mundo. É a seguinte:
(-11)
S não é epistemicamente responsável.
Por C-Nec, seguinte terá de ser uma condição necessária para ocorrer um EEMP...
(11)
S é epistemicamente responsável.
Estamos a supor que a responsabilidade epistémica implica a satisfação dos deveres
subjectivos e objectivos de um agente na procura pela verdade ou na forma como aceita
uma proposição (Cf. secção 3.6.2.). Claro que, se Foley (Cf. secção 3.6.3.) e Alston (Cf.
secção 6.3.2.) estiverem correctos, 11 não é uma condição cuja satisfação conduza
diretamente à verdade. Isso não é contudo impeditivo de, em determinadas circunstâncias,
como por exemplo a retratada pelo caso do advogado, a sua satisfação ser necessária para
ocorrer um EEMP.
Por outro lado, também parece ser verdade que em algumas situações pode
ocorrer um EEMP sem que o agente cumpra intencionalmente os seus deveres epistémicos,
o que faz com que a exigência de responsabilidade epistémica seja demitida nesses casos.
Com efeito, todos aqueles casos em que o agente forma involuntariamente uma crença (cf.
secção 3.6.4.) são casos em que, aparentemente, o agente não aloca qualquer tipo de
responsabilidade epistémica quando forma a sua crença. Como não choca admitir que
muitos desses casos são casos em que ocorre um EEMP, parece seguir-se que a satisfação
203
dessa condição não se revela necessária para ocorrer um EEMP. Isto parece constituir um
problema para as concepções que privilegiam a necessidade de condições deontológicas
ou para concepções que privilegiam outras condições que não são sempre necessárias para
ocorrer um EEMP.
A nossa réplica a esta crítica é a de que, quando se trata de submeter uma
concepção acerca da natureza de estados epistémicos positivos e do que é necessário e
suficiente para obterem, é preferível supor que essas condições são necessárias para
alguns casos e não para outros, do que supor que nunca são necessárias. É preferível
porque a concepção torna-se mais plausível desse modo do que desconsiderando
simpliciter a necessidade das condições. Uma solução para a dificuldade é dizer que elas
são vacuamente satisfeitas nos casos em que a sua satisfação não se mostra necessária.
Isso habilita-nos a dizer que elas são não-vacuamente satisfeitas nos casos em que a sua
satisfação se revela necessária. Assumiremos a plausibilidade e a aplicabilidade desta
solução no que toca a algumas condições necessárias que ainda não apresentámos, mas
não a todas. Consideramos, no fundo, que algumas condiçõ es são absolutamente
necessárias, i.e., necessárias para todos os casos, enquanto outras são circunstancialmente
necessárias, i.e., necessárias para alguns casos. As condições do primeiro tipo são as
condições de 1 a 10, bem como a 13 e a 14 (por apresentar). As condições do segundo tipo
são as condições 11 e 12 (estando esta última também ainda por apresentar)
Passamos a inspeccionar mais uma condição suficiente para um EEMP deixar de o
se à oàse tidoà odalàdeà deixa
.à“upo ha -se que S é filósofo no mundo w e que, para
fundar o edifício do conhecimento, decide de tudo du vidar, isto até encontrar uma verdade
tão certa, irrefutável e inabalável que dela não possa duvidar. Suponha-se que esse filósofo
admite como hipótese de trabalho que tudo aquilo que percepciona é afinal obra de um
génio maligno, alguém (ou algo) que cria na mente do nosso filósofo uma ilusão massiva
acerca de todas as coisas que ele julga percepcionar e saber. Confrontado com esta
possibilidade, o filósofo infere que o génio o pode enganar acerca de tudo, mas que se o
engana naquele momento, então ele, que é o enganado, tem de ser alguma coisa que
pensa que está a ser enganada. S conclui que terá de ser uma substância pensante. Mas
suponha-se agora que, no mundo w*, em tudo igual ao mundo w, excepto nos pormenores
204
de que os agentes racionais nesse mundo não conseguem ter crenças de segunda ordem
sobre o estatuto epistémico positivo das suas crenças de primeira ordem porque, podemos
imaginar, o seu cérebro não lhes permite ter crenças de segunda ordem sobre as crenças
de primeira ordem. Assim, em w*, S não consegue ter uma crença de segunda ordem sobre
o estatuto epistémico da sua crença de primeira ordem na proposição sou uma substância
pensante, na qual acredita, podemos também supor, fortuitamente. Se assim for, a
seguinte é uma condição suficiente para não ocorrer um EEMP.
(-12) S não tem um EEMP de segunda ordem relativamente ao seu EEMP de
primeira ordem.
Por C-Nec, temos...
(12)
S tem um EEMP de segunda ordem sobre o seu EEMP de primeira ordem.
Em w, não só S acredita que é uma substância pensante, como acredita que acredita
que é uma substância pensante. O facto de S acreditar nesse mundo que acredita que é
uma substância pensante é fonte de evidência adequada para a sua crença de primeira
ordem de que é uma substância pensante. Como é óbvio, a limitação em w* impede S de
ter essas razões, e portanto o seu estado de crença de primeira ordem nesse mundo não
pode ser um EEMP.
Tal como a condição 11, também a condição 12 parece ser apenas
circunstancialmente necessária. Exemplos disso são talvez todas aquelas crenças cujo
conteúdo proposicional deriva da percepção. Não parece ser necessário ter um EEMP de
segunda ordem sobre um estatuto epistémico de uma crença perceptual de segunda
ordem de modo a que essa crença seja um EEMP. A condição 12 é vacuamente satisfeita
nesses casos.
Ponto da situação. As condições 1, 2 e 3 dão quanto a nós diretamente conta do
que é necessário para a ocorrência de um EEMP. As restantes condições dão, também
quanto a nós, conta do que indiretamente necessário a ocorrência de um EEMP, mais
exactamente, do que é necessário e suficiente para a evidência ser adequada. Antes ainda
de continuarmos a apresentação das restantes condições necessárias, as quais dirão
respeito à forma como a evidência adequada liga adequadamente crença e verdade, via
205
garantia epistémica, desejamos antecipar uma objecção que se começa a formar na mente
do leitor. Trata-se da objecção de que existem muitas condições que têm de obter de forma
a que as condições 4 a 12 também obtenham. Tenha-se por exemplo em consideração a
ideia de Jason Stanley segundo a qual os interesses práticos dos agentes desempenham
um papel marcante aquando das atribuições de conhecimento, e portanto de um EEMP. A
ideia de Stanley é que
... à oà fa toà deà algu à sa e à ouà oà ueà p pode ser determinado em parte por
azõesàdeào de àp ti aà o tidasà oàa ie teà oà ualàseài se eàoàage te (Stanley
2005: 85)
Não desejamos contestar esta objecção. O que nos apraz dizer é que a condição de
Stanley, a obter, é contemplada pela nossa condição 6, a qual se refere às circunstâncias
ambientais ideais para a ocorrência de um EEMP. Listar todas as condições necessárias
particulares para que essas circunstâncias tenham lugar não é a nossa tarefa, sendo
provavelmente algo que excede a reflexão filosófica e entra no campo da
experimentalidade científica. Por outro lado, há por certo que evitar as indesejáveis
consequências oriundas das tentativas de elucidar todas as condições necessárias e
suficientes para que cada uma das condições de 4 a 12 obtenha. A mais perigosa dessas
consequências é, parece-me, o regresso ao infinito do conjunto de condições que têm de
obter para que cada condição obtenha. Pensamos, em todo o caso, que esse problema
pode ser contornado supondo que as condições, tal com o formuladas, são suficientemente
esclarecedoras. Dizer o contrário impõe consequências pesadas a qualquer teoria
filosófica. Não precisamos talvez de resolver o Paradoxo de Sorites para ter uma
perspectiva esclarecedora das condições necessárias para a ocorrência de um EEMP.
Para finalizar a secção debruçamo-nos sobre aquelas condições cuja satisfação
julgamos ser crucial para haver uma ligação adequada entre a crença na proposição e a
verdade da proposição, fazendo assim a crença atingir apropriadamente a verdade, o que
lhe valerá, da nossa perspectiva, o estatuto de crença verdadeira epistemicamente
garantida e, por conseguinte, o estatuto de EEMP. A primeira é um princípio de segurança
epistémica para a evidência, enquanto a segunda é um princípio de segurança epistémica
206
para a garantia. Tal como os concebemos, o segundo é superveniente em relação ao
primeiro.
Vimos acima (nas secções 2.4., 4.2.2., 4.2.3. e 5.2.) que os epistemólogos têm há
muito a ideia de que uma crença não pode ser acidentalmente verdadeira. Vimos também
que existem múltiplas formas de estabelecer os problemas relacionados com o acaso
epistémico,à o àaàso teàepist
i a,àe,àe àge al,à o àasàdi e sasà disfu ções àexiste tesà
nos ambientes de formação de crenças que fazem com que não se lhes possa creditar o
estatuto de EEMP, mesmo considerando que estas crenças acertam na verdade. Também
nós cremos que a eliminação de factores que permitem que uma crença seja
acidentalmente verdadeira é um desiderato epistémico legítimo. Neste sentido, propomos
que a seguinte é uma condição suficiente para uma crença ser acidentalmente verdadeira
em w e, consequentemente, para que essa crença não seja um EEMP em w:
(-13) A evidência adequada que S tem para acreditar que p em w, evidência com
base na qual S forma em w a sua crença de que p, é inadequada nos mundos possíveis
relevantes mais próximos de w nos quais S continua a acreditar que p com base nessa
mesma evidência.
Por C-Nec, a seguinte é uma condição necessária para S ter uma crença não
acidentalmente verdadeira, porque assente em evidência adequada:
(13)
A evidência adequada que S tem para acreditar que p em w (o mundo actual),
evidência com base na qual S forma em w a sua crença de que p, é igualmente
adequada nos mundos possíveis relevantes mais próximos de w nos quais S continua
a acreditar que p com base nessa mesma evidência.
Viu-se que a adequação da evidência que um agente tem para acreditar que p
ocorre por via da satisfação das condições 6 a 12. A condição 13 dá conta do acaso
epistémico no que respeita à evidência, ao indicar que a não satisfação de qualquer uma
dessas condições faria com que S não tivesse evidência adequada num mundo w*
relevante e próximo de w.
Note-se que as condições 6 a 12 são satisfeitas, por exemplo, no célebre caso
Barney. A condição 6 é satisfeita, pois S não está a sofrer de qualquer ilusão, nem se
vislumbra qualquer outro factor ambiental que impeça que a evidência seja adequada
quando S vê o celeiro. Essa evidência é adequada porque 7 e 8 também obtêm. S está a
207
percepcionar correctamente, o que dá conta de 7, e a percepção é um processo fiável de
aquisição de evidência, o que dá conta de 8. Por outro lado, não existe qualquer falsidade
na origem da crença, o que permite que 9 seja satisfeita. 10 é igualmente satisfeita, pois a
proposição, sendo verdadeira terá de ser consistente com todas as proposições
verdadeiras (relevantes). Como S é epistemicamente responsável (não se vê por que razão
não o estaria a ser), 11 é satisfeita, ao passo que 12 é vacuamente satisfeita, sendo que a
sua satisfação não é circunstancialmente necessária neste caso.
Não obstante, temos alguma relutância em admitir que a crença de S assenta em
evidência adequada no caso Barney porque compreendemos que a evidência poderia
muito facilmente ter sido inadequada. Para ver que assim é, basta imaginar um mundo
possível, muito próximo do mundo actual, no qual S forma a sua crença ao olhar para uma
fachada de celeiro e não para o único celeiro presente no campo. Estamos inclinados a
aceitar que pelo menos as condições 6, 9 e 10 não seriam satisfeitas nessas circunstâncias,
o que faria com que a evidência fosse inadequada nesse mundo. À luz da condição 13, a
qual propomos como um princípio de segurança modal par a a evidência, o caso Barney,
por não a satisfazer essa condição, é um caso no qual a crença de S assenta prima facie,
mas não ultima facie, em evidência adequada. Dito de outro modo, S não assenta em
evidência adequada no caso Barney porque, apesar de as condições 6 a 12 serem satisfeitas
nesse caso, a condição 13 não o é. Por isso pensamos que a obtenção das condições 4 e 13
são diretamente necessárias para a obtenção da condição 5, sendo a obtenção desta
diretamente necessária para a obtenção de 3. Esta hierarquia será devidamente explicada
adiante.
O crítico de 13 pode todavia apelar para a ideia de que o princípio de segurança que
o sustenta é espúrio, uma vez que não permite realmente discernir entre a adequação da
evidência e a inadequação da evidência (ou entre evidência e pseudo-evidência) no mundo
actual. O crítico pode alegar que não há diferenças, no mundo actual, a respeito da forma
como S adquire a evidência para acreditar, bem como a respeito da forma como a sua
crença assenta nessa evidência neste caso, e noutros casos em que, por via da satisfação
das mesmas condições, estamos inclinados a atribuir o estatuto de adequada à evidência
disponível para o agente, não havendo portanto boas razões para amparar a distinção
208
entre evidência adequada e inadequada apenas com base num princípio que usa a noção
de modalidade.
A isto só podemos responder que está na natureza de um princípio de segurança
modal cumprir a função de nos autorizar a decidir, em casos limite, quer dizer, em casos
que nos impõem circunstâncias de avaliação extremas, se algo obtém ou não. Mais
exactamente, no assunto que nos ocupa, se o agente dispõe ou não, em circunstâncias que
extravasam em muito a normalidade, de evidência adequada. Princípios de segurança são
pois, a nosso ver, instrumentos conceptuais úteis para decidir em casos extremos, cabendo
ao crítico mostrar que não o são.
Assumindo a utilidade de tais princípios, inspeccionamo s de seguida uma
derradeira condição, assente num desses princípios, que nos parece crucial para completar
aquela que é, novamente da nossa perspectiva, a lista de condições necessárias para que
ocorra um EEMP.
Suponha-se, pois, que todas as condições de 4 a 13 obtêm. Sendo assim, supondo
que a condições 1 e 2 também obtêm, parece que a crença de S que p estará
epistemicamente garantida no sentido descrito pela primeira parte da condição 3. Com
efeito, não conseguimos divisar outro processo plausível de satisfação de condições que
melhor personifique a noção de garantia epistémica. 140 Apesar disso, o falibilista pode
apelar para o facto de a crença (não a proposição) ser de algum modo falsificável, no
sentido em que existe a possibilidade de todas as condições serem satisfeitas e ainda assim
a crença não estar apropriadamente ligada à verdade da proposição, o que abriria as
portas para a possibilidade de falsificação da crença. 141 É esta possibilidade que é
necessário precaver e demitir. Tendo em vista esse objectivo, submetemos que a seguinte
é uma condição necessária para um agente ter uma crença epistemicamente garantida, de
modo a ser infalsificável:
(14)
Se a crença verdadeira de S que p está epistemicamente garantida em w (o
mundo actual) em virtude da satisfação das condições necessárias e suficientes para
140
Embora admitamos que possa haver melhor elucidação dessa propriedade.
141
O termo falsificação ocorre claramente aqui num sentido fora do normal. Entendemos que proposição que é
alvo da crença pode ser verdadeira e ainda assim a crença ser falsificada, justamente porque não atinge de forma apropriada
essa verdade.
209
estar epistemicamente garantida (as condições de 4 a 13), então essa crença
continua a estar epistemicamente garantida nos mundos possíveis relevantes mais
próximos de w nos quais S acredita garantidamente que p em virtude da satisfação
das mesmas condições necessárias e suficientes para que ocorra essa garantia em w.
Noutra formulação:
(14*) A garantia epistémica da crença verdadeira de S que p, a qual estabelece a
ligação apropriada entre a crença que p e a verdade de que p, não pode facilmente
ser anulada ou cancelada.
Para ver que 14* descreve uma condição necessária para 3 obter e,
consequentemente, para a ocorrência de um EEMP, basta imaginar um mundo possível
muito próximo do mundo actual no qual, em virtude da n ão satisfação de qualquer uma
das condições de 6 a 11, as condições 4 ou 5 (ou ambas) não obtêm, o que impediria a
satisfação de 13 no mundo actual. Esse é um mundo em tudo igual ao actual, excepto no
que toca às circunstâncias que fazem com que a crença de S que p não esteja
apropriadamente ligada à verdade de p. A garantia da crença de S que p seria pois
facilmente anulável e essa crença seria falível, no sentido já descrito.
Vamos de novo recorrer ao caso Barney para ilustrar o nosso ponto. Notoriamente,
no caso Barney, a crença de S não está apropriadamente ligada à verdade no sentido
indicado por 3, pois o que permite essa ligação, a garantia epistémica, pode facilmente ser
cancelada ou anulada, bastando para tal imaginar um mundo p ossível, ligeiramente
diferente do actual, no qual, ceteris paribus, 9 não obtém pelo simples facto de S olhar para
uma fachada de um celeiro e não para o único celeiro presente no campo. Isso explica por
que razão bastantes epistemólogos se inclinam para a ideia de que não pode ser creditado
o estatuto de EEMP ao estado de crença de S no caso Barney. Plausivelmente, a satisfação
de 14 é necessária para ocorrer um EEMP.
Se o que dissemos estiver correcto, torna-se evidente que 14 é superveniente em
relação a 13. Se 13 (ou alguma condição necessária para 13 obter) não obtêm, 14 não
obtém. Se 13 obtém, então 14 obtém.
Isto termina a nossa exposição das condições necessárias para a ocorrência de um
EEMP.
210
6.8. Um método heurístico de identificação das condições suficientes para a
ocorrência de um EEMP
Na secção 6.6.2. propusemos um critério, C-Suf, para identificar um conjunto de
condições suficientes para ocorrer um EEMP. Agora que temos um conjunto candidato a
satisfazer esse critério, é chegado o momento de explicitar o critério e aferir se esse
conjunto de condições realmente o satisfaz. Se isso for o caso, o conjunto de condições
necessárias que propusemos para a ocorrência de um EEMP será também o conjunto de
condições suficientes para a ocorrência de um EEMP.
Para facilitar a nossa tarefa de explicitação de C-Suf, introduzimos primeiro alguma
otaç o.à Va osà usa à Cn para denotar o conjunto das condições necessárias, c1 a c14,
des itasà aà se ç oà a te io .à Utiliza e osà Cs pa aà de ota à oà o ju toà dasà o diçõesà
suficientes para a ocorrência de um EEMP .ààEàutiliza e osà “at àpa aàde ota à satisfaç o ,à
‘es àpa aàde ota à esiste ,àeà CxG àpa aàde ota à o t a-exemplos tipo-Gettier .àPode osà
pois empregar estas abreviaturas para construir uma fórmula que explicite o significado de
C-Suf.
C-Suf: ~(CxG/Res/Sat/Cn) → (Cn = Cs)
Cabe-nos agora elucidar a antecedente da fórmula e mostrar que, se obtiver, a
consequente também obtém. E para cumprir estes objectivos temos de implementar um
método que nos permita aferir se os contra-exemplos resistem ou não à satisfação de Cn.
Da maneira como vemos o problema, o melhor método para os realizar tem um formato
heurístico.
Mas ainda antes de prosseguir importa fazer um ligeiro desvio para aclarar noção
de um método com o formato heurístico. Começamos fazendo uma observação (ou
recuperando uma ideia) que nos parece de suma importância. Quando nos propomos
apresentar um esquema que exiba um processo ou um método de satisfação de condições
pelo qual se pode chegar a um EEMP
oà esta osà aà usa à asà exp essõesà p o esso à ouà
todo à u aàa epç oàque aparece por vezes na literatura especializada. Goldman, por
exemplo, propôs uma distinção entre processo e método que marcou a epistemologia, ao
sugerir que...
211
Po à p o esso à ue oà efe i à u à p o essoà psi ológi oà
est utu aà fu da e talà doà siste aà og iti oà hu a o.à Po à
sico, algo essencial à
todo à ueà efe i à u à
algoritmo apreensível, uma heurística, uma fórmula ou procedimento que não faça parte
doà ossoà e a is oà og iti oà atu al. (Goldman 2006: 297)
Oàse tidoàdeà
todo à ueàte osàe à e teà àsemelhante, mas não idêntico, ao
de Goldman. Arriscamos por isso a incluí-lo naquele co mpartimento da epistemologia que
Goldman apelida de epistemologia secundária.
Por outro lado, a ideia de que as atribuições de conhecimento podem assentar em
metodologias heurísticas encontra-se num texto recente de Finn Spicer (2007). Entre
outros, o ponto de Spicer é fundamentalmente o de que as pessoas (absolutamente alheias
aos temas e problemas académicos e/ou especializados que têm a ver com o
conhecimento e a sua obtenção) dispõem de módulo ou de um instrumento (mental) que
lhes permite fazer atribuições correctas de conhecimento. Estas atribuições típicas da
epistemologia popular (folk epistemology), como lhe chama Spicer, assentam em
heurísticas, modos de resolver problemas relacionados com a atribuição ou não atribuição
de conhecimento. O nosso método toma emprestado um pouco de cada uma destas duas
concepções e depois tenta andar pelo seu próprio pé.
Co eça osàpo àsuge i àu àes ueletoàhie
ui oàdoà
todo.àOà í elàdeà aseà
à
contém as heurísticas para resolver as condições que permitem haver evidência adequada.
Oà í elàsegui teà
à o t
àaàheu ísti aàpa aà esol er a ligação adequada da evidência à
e dade.à Oà í elà segui teà β à o t
à aà heu ísti aà pa aà esol e àaà ligaç oà ap op iadaà daà
e çaà à e dade.àOà í elàdeàtopoà α à o t
àaàheu ísti aàge alàpa aà esol e àaàelu idaç o
EEMP à cf. secção 6.1.) A observação da figura 8 pode auxiliar o leitor a compreender o
que temos em mente.
212
Nível αà- Heurística 'EEMP'
Nível βà- Heurística 'Ligação Garantia'
Nível à- Heurística 'Ligação Evidência'
Nível
- Heurística 'Evidência Adequada'
Figura 8
No final da apresentação do método demonstramos ~(CxG/Res/Sat/Cn)
submetendo os contra-exemplos (uma amostra representativa) ao seu crivo, verificando
assim que todos eles deixam pelo menos uma heurística por resolver.
Todas as heurísticas são apresentadas sequencialmente em formato gráfico: Nível
(figura 9); Ní elà à(figura 10); Ní elàβà(figura 11); Ní elàα (figura 12).
213
Ní elà
Condição 4
Sim
Condição 10
Não
Sim
Condição 11
Condição 9
Sim*
Condição 12
Não
Sim
Condição 8
Nã
o
Não
Sim
Não**
Condição 7
Não
Sim
Condição 6
Não
Não
~ Condição
4
Figura 9
* Ou vacuamente satisfeitas. ** Se necessárias.
214
Ní elà à
Condição 5
Sim
Condição 13
Não
Nã
o
Sim
Nível δ
Não
~ Condição 5
Figura 10
Ní elàβà
Condição 3
Sim
Condição 14
Não
Nã
o
Sim
Nível γ
Não
~ Condição
3
Figura 11
215
Ní elàαà
EEMP
Sim
Condição 3
Não
Sim
Condição 2
Não
Nã
o
Sim
Condição 1
Não
~ EEMP
Figura 12
216
É agora tempo de verificar se os contra-exemplos resistem ao método heurístico
(MH) que apresentámos. Começamos pelos contra-exemplos de Gettier e continuamos
com os restantes contra-exemplos clássicos que introduzimos na secção 1.10. e noutras
secções. Terminamos introduzindo e discutindo um ale gado contra-exemplo que, devido à
sua complexidade e alcance, se apresenta como um bom candidato a resistir ao MH.
Concluímos que nem esse nem os anteriores o conseguem fazer, embora por diferentes
motivos.
CE-Gettier. Tal como para todos os contra-exemplos que inspeccionaremos, para
ver que o primeiro contra-exemplo de Gettier não resiste ao crivo do MH temos de ver
qual a heurística do modelo que não é satisfeita nesse contra-exemplo. A inspecção do
referido contra-exe ploà e elaà ueà
oà esisteàaoà í elà àCo àefeito,ào ambiente no qual
Smith forma a crença verdadeira e justificada de que (e) o homem que conseguirá o
trabalho tem dez moedas no bolso, não é um ambiente epistemicamente favorável. Há
uma (in)feliz coincidência no ambiente. Acontece que, contra as suas próprias expectativas,
Smith é de facto o homem que vai conseguir o trabalho, e não Jones, como pensa Smith. O
facto de, sem o saber, Smith satisfazer as condições para vir a ser o homem que vai
conseguir o trabalho, e de o conseguir realmente, introduz uma dose de acidentalidade no
ambiente que se revela fatal do ponto de vista epistémico. A condição 6 não é satisfeita.
A falha agora mencionada é também quanto basta para o segundo contra-exemplo
de Gettier não resistir à luz do MH, pois também neste caso há uma larga dose de
acidentalidade no ambiente, uma vez que Smith acerta por mero acaso na verdade de
Brown estar em Barcelona. Mas este contra-exemplo também não resiste ao MH porque
falham certamente as condições 9 e 11. Com efeito, no caso descrito pelo contra-exemplo,
“ ithàa editaàjustifi ada e teà aàp oposiç oàfalsaà Jo esàte àu àFo d àaà ualà o stituià
evidência pa aà aà suaà
e çaà aà p oposiç oà Jo esà te à u à Fo dà ouà B o
à est à e à
Ba elo a .à Falhaà aà o diç oà 9.à Po à out oà lado,à à ext e a e teà du idosoà ueà “à sejaà
epistemicamente responsável ao acreditar que Brown está em Barcelona sem ter qualquer
indício nesse sentido. Falha por isso a condição 11. O s contra-exemplos à DTC não resistem
por isso ao nosso MH para detectar um EEMP, algo que vai de encontro da nossa intuição
deà ueà asosàGettie à pu os à
oàpodem ser casos de EEMP.
217
Passamos agora aos que, quanto a nós, são os mais eficazes contra-exemplos do
período pós-Gettier a diversas concepções de EEMP.142 Trata-se dos contra-exemplos que
designámos atrás por Nogot, Sheep, Broken-clock (e Temp), Homem-decapitado, Barney,
Working-clock e Jenny. Inspeccionamos também um putativo contra-exemplo que ainda
não tínhamos introduzido. Trata-se do alegado contra-exe mplo Jill (Lycan 2006).
Consideramos que estes contra-exemplos constituem uma amostra significativa e que
podemos por isso generalizar as nossas conclusões para todos os contra-exemplos do
mesmo género.
CE-Nogot. Como se viu aquando da sua apresentação, este contra-exemplo não
difere muito dos contra-exemplos de Gettier. Tem realmente a virtude de dispensar uma
disjunção arbitrária, é verdade. No entanto, como qualquer caso com a habitual tipologia
dos casos Gettier, também este introduz uma elevada dose de acaso ou de acidentalidade.
Recorde-se que Smith crê justificadamente que é Nogot, um seu aluno, quem tem um
Fe a ià o à aseàe à oa àe id
e id
ia suprida por Nogot (e outros, podemos supor). Essa
iaà à o tudoà ap iosa.àElaà àe id
u àFe a i àpo ueà àe id
iaàpa aàaàp oposiç oà u àalu oàdeà“ ithàte à
iaàpa aàaàp oposiç oà Ha itàte àu àFe a i —uma proposição
verdadeira—pois é Havit quem tem realmente um Ferrari, ao passo que a proposição na
qual Smith realmente acredita quando acredita que um seu aluno tem um Ferrari é a
proposição—falsa— Nogotà te à u à Fe a i .à Oà o t a-exemplo não resiste pois às
condições 6 e 9, pois há acidentalidade no ambiente (6) e a evidência disponível não está
causalmente ligada ao facto que torna a proposição verdadeira (9). Daí a nossa inclinação
para afirmar que o caso Nogot não pode ser um EEMP,àpoisàaàheu ísti aàdeà í elà à
oà à
satisfeita.
CE-Broken-clock. Diz-se geralmente que casos como este não são casos de EEMP
porque há demasiado acaso no modo como a crença atinge a verdade. O contra-exemplo
não resiste pois a 6. Concordamos. Há no entanto que acrescentar que este parece ser um
caso no qual a condição 12 deveria ser satisfeita, mas não é. A verdade é que S não tem,
nem poderia ter nestas circunstâncias, um EEMP de segunda ordem sobre a condição
epistémica maximamente positiva da sua crença (de primeira ordem), simplesmente
142
Exceptuando, como vimos, o de Russell, que antecipa os de Gettier
218
porque essa condição é inexistente. O contra-exemplo não resiste pois também à condição
12. Broken-clock
oà àu à asoàdeàEEMPàpo ueàaàheu ísti aàdeà í elà à
oà àsatisfeita. 143
CE-Sheep. O contra-exemplo não resiste fundamentalmente às condições 6 e 9, isto
pelas mesmas razões que os contra-exemplos anteriores não o fazem. Mais difícil de
compreender é se o contra-exemplo não resiste ao MH porque também não resiste às
condições 7 e 11. Não nos parece que as fontes de evidência estejam a operar
correctamente no caso Sheep. A percepção do animal que S vê não é suficientemente boa
para ser eficaz do ponto de vista da cognição, o que faz falhar a condição 7. Por outro lado,
é duvidoso que, naquelas condições pouco favoráveis, S tenha sido epistemicamente
responsável ao acreditar que o animal é uma ovelha. Se isso se confirma, segue-se que
também a condição 11 não é satisfeita. Seja como for, é razoavelmente claro que a
heurística deà í elà à oà àsatisfeita.
CE-Homem-decapitado. Parece-nos que, em última instância, o contra-exemplo de
Skyrms não resiste ao MH porque não resiste à condição 9. O agente que vê um homem
decapitado e infere que a sua morte se ficou a dever a essa decapitação, tendo afinal o
homem morrido por outra razão, não é um EEMP po ueàaà e id
ia à ueàoàage teàte à
para a acreditar que o homem está morto porque foi decapitado é afinal pseudo-evidência,
no sentido em que é constituída por uma falsidade, a d e que a morte do homem ficou a
dever à decapitação. Pode parecer estranho afirmar que ver um homem decapitado não
constitui evidência para acreditar justificadamente que o homem está morto. Não é isso
que é por nós dito. Há realmente um sentido em que o agente tem evidência para acreditar
que o homem está morto: ver que está decapitado. O que dizemos é que essa evidência, a
ser realmente evidência, não é a evidência indicada para o agente acreditar que o homem
está morto porque foi decapitado, quanto muito será evidência para o agente acreditar
que o homem está morto, uma vez que a decapitação é, ceteris paribus, uma condição
suficiente pa aà algu
à o e .à Pe sa osà poisà ueà heu ísti aà deà í elà à
oà à ta
à
satisfeita nestas circunstâncias, o que não autoriza que o caso descrito por Skyrms seja um
143
Parece-nos que o contra-exemplo Temp é da mesma índole que este e, portanto, a nossa resposta segue o mesmo
padrão no que respeita às circunstâncias ambientais, que não são as mais propícias para a aquisição de evidência adequada.
219
EEMP, uma ideia que partilhamos com ele e com muitos outros, mas para a qual
oferecemos a nossa própria sustentação.
CE-Barney. Como temos vindo a afirmar, Barney descreve um caso que satisfaz a
heu ísti aàdeà í elà .àVi o-lo aquando da discussão da condição 13 e não iremos rei ncidir
nessa discussão. Pensamos a esse propósito que Barney não resiste ao MH porque falha
e àsatisfaze àaà o diç oà
àe,àlogo,àfalhaàe àsatisfaze àaàheu ísti aàdeà í elà .àN oàh à oà
caso Barney uma ligação adequada entre a evidência disponível para S e a sua crença, pois
a evidência poderia muito facilmente ter sido pseudo-evidência. Barney descreveria um
EEMP se 13 fosse satisfeita, o que não é o caso.
Uma alternativa à nossa perspectiva de que Barney não é um EEMP é considerar
que o é com base na ideia de que é um caso de conhecimento falível, numa acepção muito
pa ti ula àdeà falí el àdaàauto iaàdeà“tephe àHethe i gto à 999 .àNestaàa epç o,àoà asoà
Barney descreve um caso de conhecimento que poderia muito facilmente ter falhado em
se à u à EEMP,à oà se tidoà odalà deà
uitoà fa il e te , bastando para tal imaginar um
mundo possível, relevantemente próximo do mundo actual, no qual tivesse falhado pelo
menos uma condição necessária—crença, verdade e boa evidência ou boa justificação—
pa aà“àte àoà o he i e toà ueàte à oà u doàa tual.àáàdefi iç oàdeà o he i e toà failí el
(failable) submetida por Hetherington é a seguinte:
... àálgu
àxàsa eàfaili el e teà ueà p, se e só se, (1) x sabe que p, e (2) há um
mundo possível acessível no qual (i) p é falsa (mas x acredita que p com base na mesma
boa evidência para p que x tem no mundo actual), ou (ii) x não acredita que p (embora p
seja verdadeira e x tenha a mesma boa evidência para acreditar que p que tem no mundo
actual), ou (iii) x não tem a mesma boa evidência para p que tem no mundo actual (mas
ainda crê que p e p é verdadeira). (E um mundo possível acessível, no que respeita a x
saber que p no mundo actual, é um mundo que contém pelo menos dois elementos do
seguinte conjunto: {p é verdadeira, x acredita que p, x tem a mesma boa evidência para p
que tem no mundo actual}.( Hetherington 1999: 567)
A concepção de Hetherington, ao contrário da nossa, indica que Barney descreve
um EEMP, embora se trate de um EEMP que, pelas suas características peculiares, é falível,
no sentido em que há mundos acessíveis muito próximos do actual nos quais uma condição
220
necessária para o agente ter conhecimento não é satisfeita e, portanto, o agente não tem
conhecimento nesse mundo. O grau de falibilidade (ou failibilidade) de um estado de
conhecimento como Barney é pois literalmente aferido por comparação entre o mundo
actual e os mundos possíveis próximos nos quais há uma f alha epistémica.
Cabe em primeiro lugar dizer que a definição de Hetherinton, a ser uma análise do
conhecimento falível, é falsa, uma vez que circular, pois o analisandum ocorre na condição
1 estabelecida no analisans. Com efeito, define-se conhecimento falível e, a forteriori,
define-seà o he i e to,à dize doà ueà xà sa eà ueà p à seà
à xà sa eà ueà p (2)... etc,
mostrando-se de seguida o que faria com que não o fosse. A definição poderia até ajudar
na tarefa de esclarecer a natureza de um EEMP não fosse supor, sem qualquer qualificação
prévia adicional, que se está perante um caso claro de um EEMP, algo que parece ser mais
uma estipulação do que uma suposição—uma vez que nunca é descartada. Preferimos pois
não optar por supor que Barney e similares descrevem casos de EEMP que poderiam
facilmente (mais uma vez no sentido modal) não o ser. Aliás, não seriam contra-exemplos
a EEMP se o fossem. A inclinação para os aceitar como tal fornece boas indicações de que
não os vemos intuitivamente como descrevendo um EEMP.
CE-Working-clock. Visitámos este contra-exemplo na secção 5.2. Pensamos que que
tem basicamente, a mesma estrutura que Barney.à áà heu ísti aà à à satisfeitaà peloà asoà
descrito pelo contra-exe plo,à asàaàheu ísti aà à
oàoà .àásà azõesàs oà ueàsuste ta àaà
nossa pretensão são iguais ou muito similares às que aduzimos para o caso Barney.
Concluímos pois da mesma forma que o contra-exemplo não resiste ao MH.
CE-Jill. Algo de muito diferente pode ser dito a propósito do seguinte, da nossa
perspectiva, putativo, contra-exemplo a um EEMP. Tendo por base evidência adequada,
Jill acredita numa notícia verdadeira (N) que é contradita por informação falsa (I) de que
ela não está consciente. Assim, Jill acredita numa proposição verdadeira para a qual há
evidência contraditória, falsa mas plausível, tal que, Jill não teria acreditado em N se tivesse
tido contacto e considerado I. Note-se que, apesar das semelhanças, Jill difere de Barney e
de Working-clock. Nestes dois últimos casos não existe qualquer evidência contrária ao que
o agente acredita, mas no primeiro caso há. Assim, Jill tem evidência adequada para
acreditar que N é verdadeira. Apenas acontece que há pseudo-evidência para apoiar uma
221
falsidade contrária à verdade na qual Jill acredita com base em evidência adequada. Claro
que podemos divisar mundos possíveis nos quais Jill entra em contacto com I e passa a
acreditar numa falsidade. Mas isso apenas tem como consequência que Jill passa a
acreditar numa falsidade nesses mundos, não que não tenha evidência adequada para
acreditar na verdade nesses mundos. A condição 13 e 14 são por isso satisfeitas por Jill (no
mundo actual). Com base no que dissemos, pensamos que este é um caso de EEMP, sendo
Jill um putativo contra-exemplo.
Com isto terminamos a inspecção dos contra-exemplos e concluímos que nenhum
resiste ao MH. Se a noção compreensão do problema for correcta, o conjunto de condições
necessárias que propusemos para a ocorrência de um EEMP é também o conjunto de
condições suficientes para essa ocorrência. Note-se que, assim estabelecidos, temos um
método e um resultado que acomoda as cinco intuições acima descritas. Na próxima
secção lançamos um olhar sobre a nossa proposta, antecipando algumas críticas e
respondendo-lhes.
6.9. Algumas objecções antecipadas
Podemos antecipar pelo menos três objecções de base à forma como nos
propusemos identificar um EEMP. A primeira prende-se com a acusação de alcance restrito
do sistema. A segunda prende-se com falta de parcimónia do método. A terceira tem a ver
com eventual trivialidade da proposta. Vistoriamos de seguida cada uma destas objecções,
as quais julgamos não obterem.
Sobre a objecção do alcance restrito. Pode ser alegado que, mesmo supondo que
está correcto, o nosso sistema apenas identifica as condições suficientes para a ocorrência
de um EEMP que são válidas para um número restrito de casos, nomeadamente para todos
aqueles casos iguais ou similares aos descritos pelos contra-exemplos ou para os casos
menos problemáticos do que esses. O crítico cimenta a sua objecção afirmando que o
sistema não consegue dar conta de casos que não estão dentro dos parâmetros
predeterminados.
A respeito desta objecção, parece-nos que o sistema é suficientemente versátil para
acomodar novas situações. Suponha-se que surge um novo contra-exemplo a uma
qualquer noção de EEMP. Suponha-se também que a config uração desse contra-exemplo
222
difere das configurações tipo que submetemos ao crivo do MH. Não iria esse contraexemplo resistir a esse crivo? Não nos forçaria essa situação a corrigir o conjunto das
condições suficientes para a ocorrência de um EEMP e, por conseguinte, a abandonar o
sistema? A resposta é sim para a primeira parte e não para a segunda. Sim, temos de
admitir a possibilidade de ser encontrado um contra-exemplo que, pela sua sofisticação,
pudesse resistir ao conjunto de condições necessárias e suficientes que propusemos, e
teríamos assim de corrigir o sistema. Todavia, não pensamos que essa revisão não nos força
a abandonar o sistema. Se a este propósito o crítico alegar que a possibilidade de sucessivas
correcções do sistema invalida a própria viabilidade do sistema, então temos de retorquir
que qualquer sistema plausível, mas não infalível, é susceptível de revisão, sem que por
isso perca a sua utilidade, o seu alcance ou a sua plausib ilidade—a não ser que acabe por
ser falsificado. Embora tenhamos presente que essa resposta não é inteiramente
satisfatória, não nos parece ser possível dar outra. Admitir a não-revisibilidade do sistema
seria um acto de dogmatismo que não estamos preparados para tomar, tal como admitir a
sua falsidade. A melhor solução parece pois ser uma solução de compromisso, a meio
caminho.
Direccionamos agora a nossa meditação para o problema da falta de parcimónia.
Pode ser alegado que o modelo não tem a simplicidade desejável na elucidação de como
ocorre um EEMP, e que, consequentemente, como há concepções mais simples e mais
explicativas do mesmo fenómeno, devemos optar por essas elucidações, rejeitando a
nossa. Aceitamos a acusação de falta de simplicidade, mas rejeitamos as consequências
que o crítico quer tirar daí, em particular, que a nossa elucidação é menos boa do que as
outras pelo facto de não exibir a propriedade de ser simples.
A objecção da parcimónia assenta num venerável princípio de economia
explicativa, um princípio de parcimónia (PP), o qual pode ser formulado do seguinte modo:
PP—Se duas hipóteses explicativas conseguem elucidar igualmente bem o mesmo
fenómeno, deve ser escolhida a mais simples das duas por uma questão de economia de
recursos explicativos.
Se se gastasse os mesmos ingredientes a preparar uma refeição do que se gastaria
de outro modo, e o resultado final (o sabor, a textura, o valor nutricional, etc.) fosse o
223
mesmo, então não haveria uma boa razão para se usar mais ingredientes, algo que só traria
complicações e gastos adicionais. O mesmo parece ser válido para o caso das elucidações
dadas em epistemologia. Por conseguinte, supondo que a nossa elucidação tem a mesma
capacidade de lançar luz sobre como ocorre um EEMP que outras elucidações rivais, e se a
nossa é menos parcimoniosa que as outras, então deveremos escolher essas detrimento
da nossa.
Não recusando a plausibilidade do PP, julgamos que a obj ecção da falta de
parcimónia assenta contudo numa suposição falsa, uma supos ição que desejamos
contestar. Trata-se da suposição de que a nossa elucidação tem o mesmo poder explicativo
que as elucidações rivais. Não acreditamos que isso seja o caso. Acreditamos que a nossa
é mais explicativa porque acomoda melhor as cinco intuições que descrevemos acima.
Veja-se por exemplo a elucidação de crença epistemicamente garantida (EEMP) sugerida
por Plantinga e comparemo-la com a nossa (se é que é possível compará-las). Sem dúvida
que esta é uma elucidação incomparavelmente melhor do que a nossa em muitos aspectos,
excepto talvez num que julgamos ser crucial: o facto de não fazer qualquer referência a
uma condição de segurança epistémica assente na semântica dos mundos possíveis. Isso
torna a elucidação de Plantinga menos versátil e mais fraca do que uma elucidação que
contenha essa condição. Pensamos ser possível alargar esta interpretação a todas as
elucidações que, de uma forma ou doutra, negligenciam uma ou várias condições que
incluímos no conjunto de condições necessárias para a oc orrência de um EEMP. Quando
vista desta perspectiva, a parcimónia pode não ser a propriedade mais importante de uma
elucidação. Mais do que parcimoniosa, uma elucidação do qu e é necessário e suficiente
para ocorrer um EEMP deve, do nosso ponto de vista, ser suficientemente compreensiva,
no sentido em que tende a deixar pouco ou mesmo nada de fora. Uma elucidação com
pontas soltas é uma elucidação que se presta a ser falsificada. Uma larga maioria das
elucidações de EEMP favorece apenas três ou quatro condições separadamente
necessárias e conjuntamente suficientes, privilegiando regra geral a terceira condição, mas
descurando muitas outras. Todas essas elucidações apresentam sistemas mais simples que
o nosso. Embora essa simplicidade lhes confira uma aparê ncia de sucesso, a verdade é que
se tornam por isso mesmo insuficientes do ponto de vista da explicação.
224
Sobre a objecção da trivialidade, alguém pode tentar levá-la por diante afirmando
que ninguém contesta que há um conjunto de condições, relevantes do ponto de vista
epistemológico, que têm de ser satisfeitas de modo a que ocorra um EEMP; e que, por isso
mesmo, uma tal elucidação nada apresenta de novo do ponto de vista filosófico.
A réplica que nos ocorre em defesa da nossa proposta é a de que se a nossa
elucidação apresenta realmente uma solução trivial, então a solução para o problema é
realmente trivial. Gostaríamos de clarificar esta ideia com um argumento concludente.
Porém, como não temos a pretensão de que tal argumento existe, nada mais podemos
fazer do que apelar mais uma vez para a ideia de que a satisfação de um conjunto de
condições que acomoda as intuições acima descritas é o candidato ideal para elucidar a
noção de EEMP. Se a elucidação se torna por isso trivial não é algo que o crítico consiga
mostrar com facilidade. Ele tem por exemplo de explicar por que razão algumas
elucidações empregam condições necessárias que usam modalidade enquanto outras não
o fazem. Só isso parece chegar para impedir o crítico de atribuir um carácter de trivialidade
à nossa elucidação, pois esta não admite apenas condições consensualmente ou
tacitamente aceites, como por exemplo o agente ter de ter evidência adequada para
acreditar que p.
Segundo interlúdio
Resumo
A elucidação que acabámos de apresentar parece forçar-nos a escolher entre o
particularismo e o metodismo, tal como definidos por Roderick Chisholm (1982: 61-75).
Neste interlúdio defendemos que essa elucidação é particularista e que abraçar o
particularismo é provavelmente a melhor opção disponível para o epistemólogo, isto
porque é a opção que está mais de acordo com as nossas intuições do senso comum.
a) Particularismo ou Metodismo?
O dilema colocado pela dicotomia particularismo/metodismo é geralmente
referido por Problema do Critério, colocando-se tanto ao nível das crenças como ao nível
do conhecimento. Basicamente, S tem de ter um método para discernir se a sua crença b
225
é verdadeira ou falsa. Todavia, esse método tem de constituído por crenças c1...cn,
verdadeiras para ser eficaz. A questão é pois a de perceber o que tem prioridade, se a
verdade das crenças que constituem o critério ou se o critério para aferir a verdade das
crenças.
O problema transporta-se naturalmente para o tópico do conhecimento. Para se
saber o que sabemos temos de (A) ter um critério para avaliar e decidir o que é
conhecimento e o que não é. Mas não podemos ter esse critério sem (B) ter casos
particulares de conhecimento, em especial, sem saber se o critério é ou não válido. Não
podemos pois ter A sem ter primeiro casos particulares de conhecimento, quer dizer, não
podemos ter A sem que B obtenha em primeiro lugar; e não podemos ter B sem ter em
primeiro lugar um critério válido para decidir que certos casos particulares são casos de
conhecimento, quer dizer, não podemos ter B sem que A obtenha em primeiro lugar. O
círculo sobressai com nitidez (Cf. Amico 1995: 73-74).
Na perspectiva de Chisholm, é metodista quem defende a ideia de que A vem em
primeiro lugar na ordem da explicação. Por outro lado, é particularista quem defende a
ideia de que a B vem em primeiro lugar na ordem da explicação.144
Metodismo e particularismo são teorias tidas como mutuamente exclusivas, mas
não como mutuamente exaustivas. Chisholm reconhece uma terceira hipótese: o
cepticismo. Esta é uma hipótese para os que defendem a ideia de que o dialellus é
insuperável, não se podendo pois fazer qualquer atribuição correcta de conhecimento,
uma vez que para que essa atribuição fosse correcta teria de ser possível decidir o que vem
em primeiro lugar. Uma vez que não é possível decidir-se isso, há que optar entre uma
prudente suspensão do juízo ou negar a possibilidade de se saber se há ou não
conhecimento.
Chisholm recusa o cepticismo e prefere o particularismo ao metodismo. O seu
ponto é que é possível encontrar casos que, pelas suas características peculiares,
nomeadamente por serem factos inegáveis (e.g., verdades que se auto-apresentam ao
agente: que S sabe que acredita que p se acredita de forma consciente que p) ou verdades
144
Chisholm aponta Thomas Reid e G.E. Moore como sendo particularistas, rotulando John Locke e David Hume
de metodistas.
226
de razão (e.g., axiomas e/ou proposições cuja verdade é detectável a priori) não podem
deixar de casos de conhecimento. Pegando nesses casos, ainda segundo ele, é possível
generalizar para um leque mais vasto de casos de particulares de conhecimento,
construindo a partir daí uma metodologia segura com a qual se torna possível avaliar que
casos são casos de conhecimento e que casos não o são. Trata-se no fundo de confiar que
as faculdades e os processos de cognição habituais (percepção, memória, inferência) nos
permitem adquirir evidência adequada, a qual nos autoriza a preferir hipóteses
sustentadas por essa evidência em detrimento de outras que não o são. Não havendo
motivo para desconfiar dessas faculdades, desses processos e dos seus resultados,
podemos tomá-los como bons (para lá da dúvida razoável) por defeito, pelo menos até ser
nos apercebermos de algo em contrário, algo que possa contrariar ou trabalhar em
desfavor dos referidos resultados.
Chisholm acaba contudo por oscilar no final da sua defesa do particularismo. O seu
ponto, ao pôr-se na pele do metodista e do céptico, é o de que a pretensão do particularista
só obtém porque este comete uma espécie de petição de princípio, ao supor que as
atribuições particulares de conhecimento feitas com base no que o particularista afirma
ser necessário e suficiente para um caso de conhecimento ser um caso de conhecimento
pressupõem de algum modo que o critério à luz do qual essas atribuições de conhecimento
são correctas seja válido e, por conseguinte, seja um caso de conhecimento.
b) Particularismo
A nossa elucidação do que é necessário e suficiente para ocorrer um EEMP, tal como
ta tasà out as,à podeà se àa usadaàdeàpade e àdaà
aleita à episte ológi aàa i aà des ita.à
Prima facie, para estamos na posse de um critério que nos permita discriminar
correctamente que condições são necessárias e suficientes para ocorrerem crenças que
são EEMP temos de ter crenças que são EEMP. Parece pois que a nossa elucidação tem de
ser ou particularista ou metodista (uma vez que rejeitamos o cepticismo).
Tal como Chisholm, optámos já pelo particularismo. Com efeito, partimos da
inspecção de casos particulares de EEMP e do seu acolhimento (Cf. secção 6.5.) para
construir critérios de identificação de condições necessárias e suficientes para a ocorrência
de um EEMP (Cf. secção 6.6.) A nossa escolha assenta fundamentalmente na ideia de
227
intuição razoável do senso comum acerca da ocorrência de estados epistémicos
maximamente positivos, uma intuição cuja razoabilidade pode ser defendida de duas
formas. A primeira, que se inspira na venerável tradição cartesiana e chisholmiana, passa
por invocar o facto de que a verdade de determinadas proposições apresenta-se de uma
tão forma clara e tão explícita que é praticamente impossível as crenças nessas
proposições não estarem por isso mesmo indubitavelmente garantidas. A segunda, que se
inspira na venerável tradição anti-céptica, passa por invocar o facto de não ser possível
recusar validamente a ideia de uma intuição razoável acerca da ocorrência de estados
epistémicos maximamente positivos sem apelar para a ocorrência de pelo menos um de
esses estados, justamente o putativo—porque auto-refutante—estado epistémico
maximamente positivo o qual consiste numa crença do céptico acerca da impossibilidade
de haver o estado de crença em que está.
Amico (1993: 85-86) argumenta que Chisholm não consegue oferecer uma defesa
do particularismo que lhe dê vantagens teóricas sobre os rivais, metodismo e cepticismo,
e que, como tal, não é possível escolher o primeiro em detrimento dos segundos. Temos a
noção que o que agora propusemos em favor do particularismo é também muito pouco,
mas é preferível a nada ou a uma posição que beneficie o céptico.145
Não obstante, alguém pode sugerir que para discernir as boas intuições das más, e
para discernir o bom senso-comum do mau senso-comum, e para discernir a boa inspecção
filosófica da má inspecção, há que recorrer a critérios, retornando por isso o problema do
critério, agora noutro patamar. A nossa resposta é que esse não é um problema que
respeite apenas ao epistemólogo. Este deve confiar nos resultados de outras áreas da
filosofia e, tanto quanto possível, usando uma boa dose de prudência, no senso comum.
Descobrir até que ponto as nossas intuições e a inspecção filosófica são eficazes depende
não só de intuições como também da própria inspecção filosófica e de uma boa dose de
senso-comum. O círculo explicativo é portanto inevitável, mas daí não se segue que não
haja bons indícios da ocorrência de estados epistémicos maximamente positivos. Se
145
Não cremos também que que a nossa solução caiba no intuicionismo particularista ou no intuicionismo
metodista, tal como definidos por Amico (Ibidem: 96). Mas não estamos de momento em condições de defender esse ponto,
e portanto termos de optar por uma forma mitigada do primeiro, pois pensamos que é possível adoptá-la e ainda assim ter
a esperança de que pode ser encontrado um método.
228
eventualmente o céptico nos quiser fazer ver que estamos em apuros por causa disso, só
temos de lhe fazer ver que, mesmo que o círculo seja inevitável, teremos sempre crenças
com um estatuto epistémico maximamente positivo, por exemplo, a crença de que o
círculo explicativo é inevitável. Se o céptico ficar em silêncio, então não teremos de nos
preocupar.
7. Um argumento
…àpara a identificação de casos de crença epistemicamente garantida (EEMP) e de
casos de conhecimento.
Dissemos na secção 6.6.2. que a implicação de um EEMP para o conhecimento não
se segue da implicação do conhecimento para um EEMP. Agora que estamos na posse de
uma elucidação da natureza de um EEMP como sendo um tipo particular de crença
verdadeira garantida (CVG), julgamos ser possível substituir as duas expressões salva
veritate. O resultado desta substituição, geralmente não aceite na literatura especializada
(Zagzebski 1994, Williamson 2000, et al), é o seguinte:
Conhecimento → CVG
Mas não...
CVGà→à o he i e to
Uma solução para esta dificuldade passaria por abandonar a noç ão de
conhecimento mantendo as noções de EEMP e de crença garantida como principais
desideratos epistemológicos e candidatos à elucidação. Mas isto arrasta desvantagens
óbvias, por exemplo, ao nível do raciocínio prático. O chamado Paradoxo da Lotaria 146
revela que um agente/apostador pode ter um elevadíssimo grau de garantia para a sua
crença na proposição de que não lhe saiu o primeiro prémio e ainda assim não o saber,
apenas porque essa proposição é falsa (Hawthorne 2004: 30). Faria pois toda a diferença,
do ponto do acto de apostar, entre o agente ter conhecimento ou ter uma crença
garantida. Não nos iremos debruçar sobre o tópico do valor do conhecimento (Cf. Pritchard
2007). Assumimos, quase tacitamente (exceptuando pelo que dissemos nas secções
6.3.2/3), que é preferível tentar uma elucidação da noção de conhecimento do que
146
Ou “Caso da Lotaria”, para quem pensar que não se trata realmente de um paradoxo.
229
abandonar essa noção, simplesmente porque o conhecimento é mais valioso que os outros
desideratos epistémicos e, portanto, elucidá-lo também o é.
Sem desejarmos comprometer-nos inabalavelmente com a tese da identificação do
conhecimento com o estado de CVG, gostaríamos no entanto de submeter, para efeito de
discussão, um argumento para suportar essa tese. Do nosso ponto de vista, esse
argumento tem dois momentos e pode ser formalizado do seguinte modo:
Momento1
P1 — Se não houvesse uma noção partilhada de conhecimento não seria possível
decidir em conjunto se um determinado caso é (ou não) um contra-exemplo a uma
tentativa de definição do conhecimento.
P2 — É possível decidir em conjunto se um determinado caso é (ou não) um contraexemplo a uma tentativa de definição do conhecimento.
C1: Há, portanto, uma noção partilhada de conhecimento (K).
Momento 2
P3 — Há duas categorias, conjuntamente exaustivas e mutuamente exclusivas, de
casos: a categoria de casos que pertencem a K e a categoria de casos que não pertencem
a K.
P4 — Só os casos que pertencem a K resistem, ultima facie, a todos os contraexemplos às definições que tentam circunscrever K.
P5 — Só casos de conhecimento resistem a todos os contra-exemplos às definições
que tentam circunscrever K.
P6 — Só casos de EEMP resistem a todos os contra-exemplos às definições que
tentam circunscrever K.
C2: Casos de conhecimento são casos de EEMP, e conversamente.
A conclusão do momento 1 é relativamente incontroversa, seguindo-se
validamente de P1 e de P2. A P1 é quase auto-evidente e a P2 foi amplamente sustentada
pela exposição feita na primeira parte deste trabalho. Supondo que a conclusão do
momento 1 é verdadeira, a P3 segue-se dela com naturalidade. Com efeito, supondo que
K obtém, segue-se que há uma categoria de casos que satisfaz K e uma categoria de casos
230
que não satisfaz K, quer dizer, há uma categoria de casos que cai sob a extensão da noção
e há uma categoria de casos que não cai sob essa extensão.
Por outro lado, embora talvez mais polémica, P4 é também bastante plausível, pois
se um caso não pertence a K, então esse caso é já um contra-exemplo a uma qualquer
tentativa de circunscrever K numa definição ou é um candidato potencial a contra-exemplo
a uma qualquer tentativa de circunscrever K por via de uma definição. A P5 é incontroversa:
só casos de conhecimento caem na extensão de K, e portanto só casos de conhecimento
podem resistir a todos os contra-exemplos a K. A plausibilidade de P6 foi extensivamente
defendida na segunda parte deste trabalho. Se assim for, parece-nos que a conclusão do
momento 2, aquela que desejamos submeter como hipótese de trabalho para futuras
ocasiões, também obtém.
Conclusão
Propusemos neste trabalho uma elucidação do fenómeno do conhecimento
proposicional. Tentámos mostrar que esse fenómeno é um estado epistémico
maximamente positivo que ocorre por serem satisfeitas determinadas condições. Depois
de inspeccionar, na primeira parte, algumas das principais teorias sobre as condições
necessárias e suficientes para haver justificação epistémica, garantia epistémica e
conhecimento, submetemos, na segunda parte, uma elucidação do referido fenómeno.
Defendemos, nesta linha, que o conhecimento é um estado epistémico maximamente
positivo, quer dizer, uma espécie particular de crença que, em função da sua excelência
epistémica, se diferencia das crenças verdadeiras simpliciter ou de outras crenças
verdadeiras que exibem outras propriedades importantes do ponto de vista epistémico
mas que não exibem aquela. Argumentámos que essa espécie particular de crença exibe a
propriedade de ser epistemicamente excelente porque está epistemicamente garantida,
no sentido em que a garantia resulta da satisfação de um conjunto de condições que, por
sua vez, depende da satisfação de vários subconjuntos de condições. Não oferecemos a
elucidação do fenómeno como uma análise. Aceitámos também outras elucidações (como,
por exemplo, que o conhecimento é a atitude proposicional factiva mais inclusiva).
Dissemos que são económicas e elegantes. Não aceitámos contudo que haja apenas uma
elucidação. Cremos que a nossa remete para uma outra forma de ver o referido fenómeno,
231
uma outra perspectiva do mesmo problema. Trata-se, no nosso entender, de uma
perspectiva que também acrescenta informação pertinente, sendo por isso válida.
232
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Imagem da capa: O Oásis, René Magritte.
g
Índice remissivo
Ch
A
acaso epistémico, 116, 190, 191
Chisholm, 17, 20, 21, 25, 39, 50, 51, 52, 53, 54, 57, 58,
acidentalidade epistémica, 40, 109, 116
59, 65, 66, 67, 81, 84, 147, 164, 165, 168, 208, 209,
agentes cognitivos, 63, 64, 66, 67, 73
210, a
agentes racionais, 52, 188
C
Alston, 8, 65, 67, 68, 69, 72, 73, 84, 87, 108, 142, 143,
144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 155,
circularidade explicativa, 44, 132, 140
158, 159, 161, 178, 180, 187, a
círculo virtuoso, 136
analisandum, 10, 11, 29, 124, 134, 136, 203
Clark, 30, 31, 32, 33, 42, 184
analisans, 10, 11, 29, 124, 131, 132, 134, 135, 136, 204
Cohen, 16, 64, 65, a
análise do conhecimento, 6, 19, 20, 50, 53, 95, 108,
conceito de conhecimento, 7, 10, 11, 19, 21, 28, 29,
109, 116, 123, 135, 138, 161, 162, 203
aptidão epistémica, 84, 104, 110, 113
32, 75, 98, 106, 116, 120, 122, 123, 124, 127, 131,
132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 140, 141
argumento céptico da ignorância, 103
conceito mental, 123
atitude doxástica, 55, 93
concepção deontológica da justificação, 65
atitude proposicional, 129, 214
concepção responsabilista, 70
Audi, 17, 21, 47, 49, 62, a
condição ambiental, 126
auto-evidente, 59, 213
condição filosoficamente relevante, 175
Ayer, 20, 21, 39
condição necessária, 14, 17, 36, 38, 46, 48, 64, 65, 72,
73, 78, 83, 89, 95, 106, 109, 110, 113, 120, 122, 134,
B
Barney, 26, 30, 114, 115, 158, 176, 191, 193, 201, 203,
143, 146, 149, 159, 162, 174, 175, 178, 179, 180,
181, 182, 183, 184, 187, 190, 193, 194, 203
condição restrita, 126
204
condição suficiente, 111, 118, 174, 175, 178, 179, 180,
Broken-clock, 24, 201
181, 182, 183, 184, 186, 188, 190, 202
C
Cassam, 124, 125, 132, 133, a
condicional, 16, 21, 36, 37, 98, 100
Conee, 7, 27, 28, 50, 51, 54, 55, 57, 62, 69, 85, 86, 87
Causalidade, 32
o he i e toà failí el , 203
cepticismo, 18, 19, 27, 76, 77, 80, 101, 102, 164, 170,
o he i e toà a i al , 112, 113, 114
172, 186, 209, 210
certeza absoluta, 52
conhecimento a posteriori, 14
conhecimento a priori, 14
conhecimento científico, 14, 35
conhecimento de segunda ordem, 143, 147
Conhecimento fácil, 65
conhecimento matemático, 34, 35
I
conhecimento moral, 35
178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 186, 187, 188,
conhecimento proposicional, 7, 9, 13, 14, 33, 35, 95,
189, 190, 192, 193, 194, 195, 199, 200, 201, 202,
203, 204, 205, 206, 207, 210, 211, 212, 213
138, 139, 177, 213
consequência lógica, 44
elucidação, 7, 28, 32, 55, 110, 135, 138, 139, 140, 163,
contrafactual, 37, 83, 98
179, 180, 184, 192, 195, 206, 207, 208, 210, 211,
correcção epistémica, 145
212, 213
credibilidade, 71
epistêmê, 138
Crença, 14, 64, 110, 114, 162, 185
epistemologia das virtudes, 108, 116, 121
crença do céptico, 210
epistemologia modal, 116, 120, 121
crença epistemicamente apta, 112
epistemologia naturalista, 116
crença epistemicamente garantida, 140, 142, 174, 193,
equivalência de extensões, 123
estado de justificação, 47
207, 211
crença fiável, 162
estado epistémico, 7, 8, 139, 148, 174, 179, 210, 213
crença objectivamente justificada, 68
estado mental, 77, 123, 125, 126, 127, 128
crença perceptual, 171, 173, 189
estatuto epistémico maximamente positivo, 161, 174,
crença segura, 110, 113, 118, 120, 122
178, 179, 211
estatuto epistémico positivo, 152, 153, 155, 158, 159,
crença simpliciter, 128, 130
crença verdadeira epistemicamente garantida, 190
crença verdadeira justificada, 6, 20, 22, 27, 30, 137,
160, 174, 185, 188
evidência, 15, 16, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 30, 31, 36, 37,
39, 40, 41, 45, 47, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
162, 177
critério, 13, 37, 48, 68, 70, 71, 146, 148, 150, 159, 164,
173, 174, 175, 176, 177, 194, 208, 210, 211
59, 66, 68, 69, 70, 71, 72, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93,
94, 137, 141, 143, 145, 146, 147, 151, 152, 155, 158,
159, 160, 168, 171, 172, 173, 175, 180, 181, 182,
D
definição do conhecimento, 8, 13, 18, 19, 23, 27, 117,
183, 184, 185, 188, 189, 190, 191, 192, 195, 200,
201, 202, 203, 204, 208, 209
evidência adequada, 40, 41, 42, 68, 152, 159, 175, 180,
121, 212
181, 183, 189, 191, 192, 202, 204
definição modal, 117
evidencialismo, 46, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 57, 58, 59,
definiendum, 13, 138
66, 69, 87, 144
definiens, 13, 138
deontologismo, 46, 52, 65, 66, 69, 72, 73, 74
exemplo da bola de cristal, 39, 40
desiderato epistémico, 142, 143, 144, 145, 149, 155,
experimentalidade científica, 189
explanandum, 139
190
desiderato fundamental, 146
explanans, 139
desiderato intelectual, 149
externalismo, 84, 88, 94, 171
dever epistémico, 67, 68
F
dialellus, 209
factividade, 135, 147, 171
E
EEMP, 139, 140, 141, 142, 149, 151, 161, 163, 164,
165, 167, 168, 169, 170, 173, 174, 175, 176, 177,
factores mentais, 127
falibilidade, 42, 43, 44, 45, 53, 59, 108, 145, 186, 203
falibilidade da justificação, 43, 59
II
falsidades, 19, 30, 39, 63, 66, 69, 160, 183
Feldman, 7, 50, 51, 54, 55, 57, 62, 67, 68, 69, 85, 86,
internalismo, 66, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93,
94, 95, 126, 186
Intuição da Ligação Adequada, 141, 142
87, 94, a, b
fenómeno do conhecimento, 7, 33, 95, 110, 135, 136,
Intuição da Necessidade, 140, 141
Intuição da Suficiência das Condições, 141
138, 139, 213
fiabilidade, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 105, 109, 123, 143,
Intuição da Terceira Condição, 141, 142
Intuição das Subcondições, 141, 142
172, 183
fiabilismo, 26, 33, 46, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 70,
intuição razoável, 210
intuições, 8, 30, 115, 120, 128, 129, 137, 138, 140,
105, 144, 183
Foley, 7, 48, 69, 70, 72, 187, b, f
141, 142, 152, 163, 176, 205, 206, 207, 208, 211
Frege, 165, 166, g
J
fundamentos, 30, 32, 33, 47, 57, 59, 74, 96, 143, 145,
152, 155, 158, 160, 171, 172, 181, 182, 184
Jenny, 114, 115, 122, 201
Jill, 201, 204
G
justificação, 7, 11, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 30, 32, 40, 42,
Garantia, 104, 198
43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 57,
garantia epistémica, 42, 104, 105, 106, 108, 110, 138,
58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71,
140, 142, 189, 192, 193, 213
Gettier, 6, 9, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 32,
72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 86,
87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 104, 109, 123, 124,
33, 35, 38, 39, 42, 53, 57, 59, 74, 75, 94, 98, 100,
126, 131, 137, 141, 142, 143, 144, 146, 161, 162,
107, 108, 111, 116, 117, 121, 137, 161, 162, 176,
175, 183, 184, 203, 213
177, 178, 194, 200, 201, b, c, d, f
justificação deontológica, 67, 143
Goldman, 7, 26, 32, 33, 34, 35, 54, 58, 59, 60, 61, 62,
justificação diacrónica, 50
63, 64, 65, 69, 85, 87, 89, 90, 133, 135, 137, 165,
justificação dóxastica, 49
184, 195, b, f
justificação epistémica, 7, 27, 47, 57, 58, 59, 69, 70,
74, 79, 80, 144
H
justificação estrutural, 49
Hawthorne, 102, 212, c
justificação externalista, 50
Hetherinton, 203
justificação forte, 49, 51, 64
heurísticas, 195, 196
justificação internalista, 50
híbrido metafísico, 125
justificação não-epistémica, 47
hipóteses cépticas, 168, 170
justificação sincrónica, 50
Hume, 164, 209, c
justificação situacional, 49
justificacionismo, 42, 46, 50, 65, 66, 95
I
K
ideia complexa, 133
ideia simples, 133
Klein, 50, 51, 98, c
Infalibilidade, 42
Kripke, 167, f
inferência, 25, 33, 63, 64, 80, 96, 103, 182, 209
III
L
Paradoxo da Lotaria, 212
parcimónia, 205, 206
Lehrer, 13, 24, 116, c
ligação, 23, 25, 33, 35, 64, 65, 74, 141, 142, 146, 184,
Particularismo, 208, 210
Paxson, 116, c
190, 193, 195, 203
pirronismo, 164
limitações cognitivas, 56
Plantinga, 20, 52, 66, 67, 104, 105, 106, 107, 108, 109,
M
110, 120, 142, 207, b, d
Platão, 11, 17, 18, 19, 20, 141, d
memória, 33, 63, 105, 120, 209
Ménon, 11, 17, 18, d
Pollock, 26, 28
Princípio da falsificação, 121
meta-condições, 147
princípio da segurança epistémica, 117
Metodismo, 208, 209
Pritchard, 8, 97, 102, 114, 115, 116, 117, 118, 119,
método heurístico, 194, 200
120, 121, 122, 135, 136, 169, 170, 171, 172, 212, a,
metodologia, 9, 161, 162, 163, 209
modalidade, 37, 42, 95, 192, 207
mundo actual, 17, 63, 98, 104, 113, 114, 117, 118, 119,
120, 122, 167, 169, 174, 178, 190, 191, 192, 193,
203, 204
c, d, e, g
probabilidade, 19, 47, 48, 49, 68, 123, 130, 137, 143,
147, 152, 158, 159, 160, 161, 169
Problema da Quarta Condição, 6, 24, 26
problema do conceito, 124
mundo alternativo, 63
processo, 7, 10, 28, 42, 47, 60, 61, 62, 64, 65, 76, 84,
mundos possíveis, 17, 37, 98, 104, 113, 114, 117, 118,
120, 122, 126, 167, 168, 174, 190, 193, 203, 204,
207
91, 96, 100, 107, 142, 143, 146, 152, 158, 160, 165,
172, 183, 185, 186, 191, 192, 194, 195
processos fiáveis, 60, 61, 63, 64
N
projecto analítico, 120, 122, 129, 130, 131, 133, 134,
135, 136, 137, 138, 141, 142
não-acidentalidade, 38, 39, 40, 41, 42, 146, 147
proposição analítica, 125
necessidade física, 37, 167
proposição verdadeira, 7, 14, 24, 30, 31, 33, 43, 45, 48,
No false lemma, 30
51, 69, 120, 123, 174, 184, 201, 204
Nogot, 24, 201
propriedade da justificação, 47, 85
propriedade fantasma, 143
O
objecção, 11, 31, 34, 40, 55, 56, 57, 61, 62, 63, 64, 65,
88, 91, 92, 94, 97, 108, 118, 119, 125, 133, 136, 169,
propriedades cognitivas, 146, 152
Pryor, 47, d
puzzles cépticos, 110
170, 189, 205, 206, 207
Q
Objecção da Generalidade, 61, 62
obrigações intelectuais, 147, 148, 149
quarta condição, 24, 28, 30, 51, 57, 58
opinião verdadeira, 18, 19
R
P
raciocínio, 18, 60, 64, 109, 212
Paradigma Procedimental Clássico, 161, 163
razão epistémica, 48
Paradoxo da Análise, 11, 12
razão não-vencida, 58
IV
relação causal, 33, 36, 115, 134, 146
relação de superveniência, 55
T
Teeteto, 17, 18, 19, d, e
responsabilidade epistémica, 66, 69, 71, 72, 73, 91,
105, 186, 187
Teoria da Justificação, 47
teoria da não-analisibilidade do conhecimento, 122
Russell, 14, 16, 19, 20, 24, 50, 79, 151, 166, 201, d, g
Ryle, 13
teorias causais, 32, 38
tese da suficiência, 22, 176
S
sabe que p, 15, 16, 32, 38, 39, 50, 51, 96, 98, 100, 118,
U
Unger, 7, 38, 39, 40, 42, 164, e
120, 126, 127, 131, 135, 136, 137, 185, 203, 204
segurança epistémica, 52, 102, 113, 114, 117, 122,
V
124, 190, 207
Sheep, 25, 98, 201, 202
Skyrms, 7, 20, 35, 36, 37, 184, 202, e
Sócrates, 17, 18, 19
Solução Híbrida, 120, 135
sorte ambiental, 114
Sosa, 8, 44, 50, 51, 62, 74, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84,
vacuamente satisfeitas, 187, 197
valor epistémico, 144
verdade contingente, 167
viciosamente circular, 11, 13, 29, 123, 131
vínculo, 38, 39, 40, 95, 97, 148
virtude intelectual, 146, 152
86, 98, 103, 104, 110, 111, 112, 113, 117, 119, 120,
W
151, 169, a, b, c, d, e, f
Stanley, 13, 189, e
Swain, 51, e
Williamson, 8, 13, 15, 29, 54, 103, 122, 123, 124, 125,
126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135,
137, 138, 141, 142, 161, 171, 184, 211, a, c, e
Working-clock, 118, 201, 204
V

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