notas sobre o repertório da TAUC em 1958

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notas sobre o repertório da TAUC em 1958
A Tuna e o seu reportório em 1958
por ALVES FERREIRA
Logo que assumi a direcção artística da Tuna Académica, um dos primeiros
problemas que tive de resolver, foi o da renovação do seu reportório.
Na verdade, sucediam-se as gerações académicas e as músicas a tocar eram sempre
as mesmas. É óbvio que este estado de coisas não podia continuar. Foi uma revolução e
um acontecimento, quando, no l.º sarau da Queima das Fixas em que a Tuna se
apresentou sob a minha direcção, o publico notou que a Tuna tocava três números
novos!... De então para cá a evolução do reportório tem sido constante e intensa e de tal
modo que podemos apresentar quatro programas diferentes!
Das velhinhas apenas ficou a Marcha Turca, a Serenata de Raposo Marques e uma
nova versão do Momento Musical, que a Tuna já toca desde 1929.
À música portuguesa reservei o lugar a que tinha direito. Actualmente a segunda
parte dos nossos programas é inteiramente constituída por música da nossa terra, tanto
quanto possível inspirada no rico folclore nacional.
1. Seguindo tanto quanto possível a ordem cronológica dos seus autores, temos:
a) SAMMARTINI. Canto Amoroso (1701,1775)
Sammartini foi o pioneiro da arte sinfónica em Itália, pois a ele se devem as
primeiras sonatas para orquestra, arquitectadas segundo um plano lógico, com
desenvolvimentos bem estudados e tessitura equilibrada. Foi mestre de Gluck, inspirador
de Bach e Mozart. Estes títulos seriam, por si sós, mais do que suficientes para lhe
reservar lugar destacado na história da música.
O grande violinista M. Elman transcreveu o seu «Canto Amoroso» para violino e
piano. A Tuna, pela sua orquestra de arco, apresenta uma versão para violino solo
acompanhado a orquestra.
A melodia é fácil e de grande beleza, e é bem uma amostra dessa música que com
Mozart havia de atingir o apogeu.
b) MOZART. Marcha Turca (1756-1791)
Todos sabemos que a produção musical do génio de Salzburg abrangeu as mais
diversas formas: sinfonias, óperas, sonatas, trios, quartetos, música vocal, instrumental,
etc.
Da sua obra pianística destacam-se, naturalmente, as sonatas. É da sonata em lá
maior, de que constitui o terceiro andamento, a celebrada e conhecidíssima Marcha
Turca. O seu nome, para alguns algo misterioso, deriva do facto de Mozart em várias das
suas passagens pretender imitar os instrumentos de percussão turcos.
A característica da «Alla Turca» é a alternância de períodos de tonalidade modificada
e frases rítmicas em contraposição com movimentos rápidos em semicolcheias. Para
vencer as dificuldades inerentes a estes movimentos rápidos, preferiu-se a seguinte
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A TUNA E O SEU REPORTÓRIO EM 1958 – ALVES FERREIRA
solução: um violino solista ataca as mais difíceis passagens, seguindo-se noutras o tutti
dos 1.°s violinos. O efeito é agradável e a dificuldade superada, como se pretendia.
A Marcha termina com uma brilhante coda em lá maior.
c) SCHUBERT. Momento Musical (1797-1828)
O grande músico vienense não podia faltar no nosso programa, onde figura não só
com o Momento Musical mas ainda com a Marcha Militar.
O valor da sua música – como tantas vezes acontece só foi reconhecido após a sua
morte. As suas sinfonias – nomeadamente a Incompleta –, os seus trios e quartetos e os
lied que ele criou, na forma moderna, fazem hoje parte dos programas de todos os
concertos. O cinema projectou o nome de Schubert para lá das salas de concertos e tornou
bem conhecidas algumas das suas obras.
Os momentos musicais, danças alemãs, marchas militares e impromptus dão-nos uma
ideia da sua tendência para o virtuosismo e cultivo da música popular.
O formoso e delicado Momento Musical que a Tuna toca, num novo arranjo, e a
Marcha da Bravura, são dois números de agrado certo, tal o poder de comunicabilidade
que deles emana.
d) CHOPIN. Prelúdio em lá maior (1810-1894)
Da produção pianística do extraordinário artista polaco, fomos tirar o Prelúdio em lá,
o n.° 7 da série.
Chopin sob a designação de Prelúdios, compus 24 números – op. 28 – que bem
podem considerar-se o germen dos seus Estudos (op. 29).
Segundo Georges Sand estes Prelúdios foram escritos na Cartuxa de Valdemosa
durante o curto período que ambos passaram em Maiorca. Diz Georges Sand: «são obrasprimas, trazendo-me muitos deles à memória visões de monges mortos e ecos de cantos
fúnebres, enquanto que outros se caracterizam pela sua melancolia e suavidade».
O prelúdio que a Tuna toca é como que uma miniatura, uma jóia de raro preço, que
dura um instante – apenas 16 compassos que não mais esquecem tal a beleza e Dureza da
sua melodia.
e) OFFENBACH. Barcarola (1819-1880)
Offenbach, músico franco-alemão, nasceu em Colónia e morreu em Paris; foi o
renovados da Ópera Cómica francesa.
Da sua nem sempre valiosa obra, destacam-se «Os contos de Hoffmann». Embora os
tivesse escrito até ao fim, foi Guiraud quem completou a sua orquestração, dado que
Offenbach, quando nela trabalhava, foi surpreendido pela morte.
Os «Contos de Hoffman» são divididos em três actos e um epílogo. O excerto que
apresentamos é a Barcarola, trecho que se casa admiravelmente com a constituição da
Tuna. Os violinos, primeiro e os bandolins, depois, fazem ouvir a balouçante melodia em
6/8. A Barcarola deve a Tuna alguns dos seus êxitos mais assinalados.
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f) BRAHMS. Valsa em lá (1833-1897)
Do admirável sinfonista alemão, do amigo dilecto de Clara Wieck, apresenta a Tuna
a formosíssima valsa em lá.
Procuramos no seu arranjo dar lugar primacial aos violinos que nos fazem ouvir a
melodia em sextas; numa fusão corda friccionada – corda percutida, a que se sobrepõem
oitava superior – o violino solo, a valsa resulta leve e ao mesmo tempo brilhante.
Brahms que escreveu as admiráveis Danças Húngaras, passara no futuro a figurar no
nosso programa com outras obras.
g) STRAUSS. Pizzicato-Polka (1825-1899)
O delicioso Pizzicato-Polka – o maior sucesso da Tuna – foi escrito pelos dois irmãos
Strauss. João e José.
Embora o José nem de longe tenha conhecido o êxito que assinalou a carreira do rei
das valsas, criou com o seu irmão uma pequena obra-prima.
O Pizzicato-Polka parece ter sido imaginado para uma tuna. Na verdade o casamento
dos violinos em pizzicato – com os bandolins, bandolas e violas, dá ao trecho uma
unidade e beleza que noutros conjuntos não atinge.
h) PUCCINI. Coro dos Marinheiros (1858-1924)
Sem dúvida Giacomo Puccini foi o mais afortunado compositor da escola verista que
floresceu em fins do séc. XIX na Itália. As suas óperas mais populares são a Boémia, a
Tosca e a Madame Butterfly.
Foi a esta que fomos buscar a apreciadíssima melodia, conhecida por «Coro dos
Marinheiros».
Na Tuna a melodia é ouvida – em surdina – no naipe de violinos e no de cordas
dedilhadas, alternadamente; os acordes que as harpas, na ópera, tocam são feitos, também
alternadamente, pelas violas e instrumentos de arco.
i) MASCAGNI. Intermezzo (1863-1945)
É sabido que Mascagni concorreu ao concurso levado a cabo pelo «Teatro Ilustrado»
de Milão com uma ópera cujo libreto foi extraído do drama «Cavalleria Rusticana» do
fundador da escola verista italiana: João Verga.
Em tão boa hora o fez que o primeiro prémio lhe foi atribuído. Com o prémio veio a
glória.
Estreada no Teatro Costanzi de Roma – hoje Teatro de Ópera – o sucesso foi
estrondoso e a tal ponto que autor e intérpretes tiveram 40 chamadas em cena aberta!
Se a ópera alcançou tal êxito, o seu Intermezzo superou-o. Podemos afirmar não
haver agrupamento musical que o não inclua no seu programa.
Os primeiros compassos são a repetição da Regina coeli; segue-se-lhe uma larga
frase nos instrumentos de corda a que os baixos – na falta de orgão – dão apoio. Se a
frase não sai com a nobreza exigida resulta, contudo, amplamente satisfatória.
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j) KETCHEKOPP. A la balalaika
Deste pouco conhecido autor russo apresentamos um curioso trecho denominado «A
la balalaika».
Não tem Ketchekoff, como é óbvio, a grandeza e categoria dos grandes nomes russos
do final do século XIX, nem a projecção do doce Tchaikowsky; contudo esta peça é de
agradável efeito, dado que com os bandolins, bandolas e violas é possível substituir as
balalaikas.
Trata-se dum trecho que constitui o exame das possibilidades destes naipes; diga-se
de passagem, que os tunos merecem aprovação...
k) LADAMAY. Canção Húngara
Sob o pseudónimo de Ladamay encobre-se o nome dum antigo Director da Tuna
Académica.
A Canção Húngara é de agrado seguro, pois bastava o tipo de música – a húngara
encontrou sempre óptima receptividade em quem a escuta – para lhe dar realce.
Abre este número com um belo solo de violoncelo, nostálgico e de fácil linha
melódica, a que se seguem movimentos cada vez mais rápidos até ser atingido o Presto
final, meia dúzia de compassos que encerram esta curiosa e aplaudida obra do.. D. José
Pais de Almeida e Silva
I I – MÚSICA PORTUGUESA.
a) XISTO LOPES. Ecos da Romaria
Não foi, de modo algum, o pianista portuense já falecido, um compositor de real
valor. As suas obras revelam pouco domínio da harmonia e a sua orquestração é frouxa.
Apesar de todas as limitações, os seus Ecos da Romaria são tocados com muita
frequência e tem conhecido sempre grande sucesso.
Não tivemos dúvida em introduzir, na nossa versão, uma variação à guitarra que
serve de apresentação ao Fado da Águia cantado pelo Zeca Afonso.
Discutível sem dúvida esta nossa intromissão no plano da rapsódia, que justiçamos
pelo desejo que tivemos de juntar à Tuna aqueles pólos que nos atraem a Coimbra: a
guitarra e o fado coimbrão.
b) RUY COELHO. Melodia de Amor e Fado
Apesar do crescente número dos seus detractores, Ruy Coelho não pode deixar de ser
considerado um dos mais representativos músicos portugueses.
A sua vasta obra – compôs óperas, bailados, cantatas, sinfonias, obras para piano,
suites orquestrais, lieds, etc. – é desigual e, naturalmente, tem defeitos. Contudo ele foi o
primeiro músico dos nossos dias a tornar conhecida a música portuguesa lá fora e, pareceme, ter sido ele quem abriu o caminho a Lopes Graça e Joly Braga Santos.
Da sua autoria tocamos a deliciosa Melodia de Amor e o Fado da Suite Portuguesa
N.° 1.
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A nossa versão da Melodia de Amor – discutível por isso mesmo – apresenta dois
solistas: violino e violoncelo. Sendo esta melodia uma das mais inspiradas que
conhecemos, estamos certos que nesta sua estreia na Tuna, terá o êxito que sempre a tem
acompanhado.
O Fado é por demais conhecido para que dele falemos.
c) D. JOSÉ PAIS. Gaiteiros
Do ex-director artístico da Tuna Académica, violinista, maestro e compositor de
certas possibilidades, apresentamos este curioso trecho: os gaiteiros.
Compostos para Orfeon – foram tocados sob a direcção do autor pelo Orfeon de
Leiria e Tuna – adaptei-os à Tuna. A escrita é fácil e a ideia curiosa: os gaiteiros ouvemse ao longe e dirigem-se para a festa; aí se fazem ouvir – fortíssimo – e aplaudir, para se
retirarem de novo – pianíssimo.
Distinguimos na composição o tema final, de delicada e harmoniosa idealização.
d) RAPOSO MARQUES. Serenata
Raposo Marques, figura bem conhecida de todos os que nestes últimos 30 anos
passaram por Coimbra, é um músico nato.
As suas obras contam-se por dezenas e destinam-se a Orfeon e Tuna. Escolhi a
Serenata, para nós uma das mais inspiradas, por uma razão de saudosismo: é que toquei
tantas vezes o solo desta Serenata que é como que um retroceder no tempo o dirigi-la.
Escrita em 3/8 apresentamos uma bem idealizada melodia tocada a solo no violino;
segue-se um tutti, género barcarola que por modulações sucessivas se entronca na
melodia primitiva, uma vez mais tocado no violino solo.
e) JULIO FERNANDES. Suite de Danças
Júlio Fernandes, músico profissional de real valor, foi buscar ao nosso folclore quatro
danças bem representativas que constituem esta suite: do Minho trouxe-nos um Vira com
uma saborosa instrumentação – a aparente monotonia da frase acompanhante é de belo
efeito – e um magnífico Malhão; ao Douro foi buscar uma característica chula, cuja
melodia se repercute em todos os instrumentos da Tuna; do Algarve deu-nos um animado
corridinho, com que termina a suite, tocado a solo, como não podia deixar de ser, no
acordeon.
in Rua Larga nº16; Coimbra, 1 de Agosto de 1958
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