Maria Bethânia Guerreira Guerrilha
Transcrição
Maria Bethânia Guerreira Guerrilha
REYNALDO JARDIM “Reynaldo Jardim, poeta, louco, inventor, apaixonado, brilhante e, sobretudo, guerreiro. Andou pelo Brasil espalhando poesia e reformando jornais. Criando suplementos culturais. E uma legião de discípulos e admiradores, entre os quais me incluo.” — Ana Arruda Callado “Os anos se passaram, o Brasil mudou, o mundo mudou, nós mudamos. Reynaldo se mudou do Rio para Curitiba e depois para Brasília, onde desenvolveu intensa atividade como jornalista, realizador e estimulador de várias iniciativas culturais. E se manteve o poeta e o artista inovador que sempre foi.” — Ferreira Gullar nheci em minha vida. Primeiro de tudo ele é um poeta. Um dos amado pelos que conhecem sua obra. Além da poesia, que percorre tudo que faz, Reynaldo é um inventor compulsivo: escultor, ilustrador, desenhista, prosador, diretor de arte, designer, animador cultural, artista de vanguarda (desde quando existiu vanguarda entre nós brasileiros).” — Ziraldo “Tudo, para Reynaldo Jardim, é tema de poesia. Tudo é espantoso, mesmo as realidades aparentemente mais banais. Tudo arde, na retina, ou na pele. Nesta medida, o poeta cumpre, com exemplaridade, o Fotos: Mila Petrillo seu dever de artista.” — Hélio Pelegrino MARIA BETHANIA GUERREIRA GUERRILHA grandes poetas brasileiros de seu tempo, respeitado por seus pares, REYNALDO JARDIM “Reynaldo Jardim é uma das pessoas mais criativas que jamais co- MARIA BETHANIA GUERREIRA GUERRILHA ISBN 978-85-64502-04-8 www.mobileditorial.com.br capa v2.indd 1 04/10/11 19:11 REYNALDO JARDIM MARIA BETHANIA GUERREIRA GUERRILHA bethania v2.indd 3 04/10/11 19:06 Copyright © 1968/2011 Reynaldo Jardim Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Edição Eduardo Coelho Organização/Pesquisa Marcio Debellian e Ramon Mello Editoração e Produção Gráfica Leandro Collares | Móbile Editorial Capa Reprodução do original de 1968 Fotos de quarta capa Mila Petrillo Nota da produção: Nesta edição de Maria Bethânia Guerreira Guerrilha procurou-se manter o padrão gráfico estabelecido à época da primeira impressão. Devido àquele processo de produção ter sido baseado em tipografia móvel, as tipologias atuais apresentam pequenas variações em serifas, curvas e acabamentos. Contudo, a essência da construção gráfica deste livro foi mantida e respeitada diante da apresentação atual das famílias tipográficas disponíveis. Este livro foi composto em Century Schoolbook e impresso em papel off-set 180g/m2 e Cartão Duplex 250 g/m2 pela gráfica Imprinta em outubro de 2011. DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) Jardim, Reynaldo. 1926-2011 Maria Bethania Guerreira Guerrilha / Organização de Marcio Debellian e Ramon Mello — Rio de Janeiro : Móbile, 2011. ISBN 9-78-85-64502-04-8 1. Poesia brasileira I. Debellian, Marcio. II. Mello, Ramon. Todos os direitos desta edição reservados à Móbile Editorial R. Senador Dantas, 80 sl. 1305 Rio de Janeiro — RJ — 20031-922 Tel.: (21) 2210-1787 www.mobileeditorial.com.br bethania v2.indd 4 04/10/11 19:06 Sumário Dupla homenagem Marcio Debellian e Ramon Mello 7 A vida como luta e delicadeza Júlio Diniz 9 Um pedaço da história Reynaldo Jardim 13 Maria Bethânia Guerreira Guerrilha 15 PESQUISA bethania v2.indd 5 Bethânia em canto maior (O Sol) 63 Bethânia: é um povo que canta, é samba, é um hino (Visão) 67 Bethânia, a força do canto (Jornal do Brasil) 75 Barrabás dá início à poesia sinfônica (Diário de Notícias) 76 Depoimento de Reynaldo Jardim 77 Gaivota 80 04/10/11 19:06 Dupla homenagem Marcio Debellian e Ramon Mello* O desejo de reeditar Maria Bethânia Guerreira Guerrilha, de Reynaldo Jardim, surgiu da vontade de ler esta obra lançada em 1968, mas que nunca propriamente chegou ao público. Da tiragem de cinco mil exemplares impressos na gráfica Fon-Fon, poucos restaram. Lançado às vésperas do AI-5 — o ápice do regime ditatorial que barbarizava o país —, este livro entrou na lista negra do governo militar, foi considerado subversivo e pornográfico, confiscado, e retirado das livrarias. Reynaldo Jardim conseguiu salvar algumas cópias, que enviou às pressas para a casa de sua cunhada. Maria Bethânia teve a sua cópia queimada. Os exemplares que restaram adquiriram status de raridade e passaram a ser comercializados a preços exorbitantes em sebos e sites na internet. Para quem, como nós, é de uma geração que tem formação musical, poética e afetiva que passa, necessariamente, pelo encanto de ouvir Maria Bethânia declamar poetas como Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, apenas para citar alguns, parecia incoerente e injusto que uma ode poética em sua homenagem permanecesse, quarenta e três anos depois, ainda sob o cálice da ditadura. O impulso de trazer esta obra de volta ao público coincide com o melhor dos espantos: o encontro com a vastidão e a originalidade da obra de Reynaldo Jardim, poeta e artista inventor, jornalista visionário que reformou jornais, criou revistas e suplementos culturais. Conforme a organização deste livro tomava forma, e nos aproximávamos do universo de Reynaldo, algo ficava muito claro: além de tudo, Rey, como seus amigos o chamavam, era queridíssimo, amado e festejado. Algumas pessoas foram fundamentais para que ganhássemos alguma “intimidade” com o autor. Elaina Maria Daher Jardim, sua esposa, nos orientou de maneira muito gentil com recomendações de como deveríamos conduzir a reprodução do livro e nos enviou o Sangradas escrituras (Brasília: Star Print, 2009), antologia que reúne toda a sua * Marcio Debellian e Ramon Mello são responsáveis pela organização e pesquisa desta reedição. Marcio tem formação em Economia e Teatro, é realizador do documentário Palavra (En)Cantada, sobre a relação entre música e poesia, e coorganizador da antologia Liberdade até agora (Mobile, 2011); e Ramon é jornalista e poeta, autor de Vinis mofados (Língua Geral, 2009). 7 bethania v2.indd 7 04/10/11 19:06 obra, além de inúmeros recortes de jornais sobre a época do lançamento do Maria Bethânia Guerreira Guerrilha, alguns deles aqui reproduzidos. Fomos apresentados a amigos de Reynaldo que acabaram colaborando decisivamente com este projeto. Entre eles, devemos um agradecimento especial a Alisson Sbrana, jovem cineasta de Brasília que filmou o belo curta metragem Profana via Sacra, a partir da obra de Reynaldo, e nos enviou o registro de um comovente depoimento em que o poeta relembra a história deste livro e declama um novo poema que havia feito para Maria Bethânia. Editamos estas imagens para montar um vídeo e utilizamos como trilha sonora a bela interpretação de Lourdes Ábido (Golfinho Gaivota, 2007) para versos musicados de Maria Bethânia Guerreira Guerrilha. Acrescentamos a transcrição do depoimento do Reynaldo e a partitura da canção ao final do livro. O vídeo pode ser assistido em www.debe.com.br. A organização, pesquisa e publicação desta segunda edição de Maria Bethânia Guerreira Guerrilha também não seria possível sem o apoio de algumas instituições como o SESC Rio e a Fundação Biblioteca Nacional, além de um coro de amigos e admiradores de Reynaldo Jardim. Nossos agradecimentos a Ana Basbaum, Ana Luisa Chafir, Ana Arruda Callado, Branca Lee, Carmen Xavier, Eduardo Coelho, Ferreira Gullar, Júlio Diniz, Leandro Collares, Lourdes Ábido, Luiza Moscoso, Maria Bethânia, Maria Edith, Martha Alencar, Mila Petrillo, Nicolas Behr, Paulo Cezar Saraceni, Paulo Roberto Pires, Washington Novaes, Ziraldo e, especialmente, Elaina Daher e seus filhos Rafael, Gabriel e Micael pela confiança e parceria. Aventura aberta a sorte te valha 8 bethania v2.indd 8 04/10/11 19:06 A vida como luta e delicadeza Júlio Diniz** Reynaldo Jardim foi um ser inquieto por definição. Poeta, jornalista, agitador cultural, ativista da inteligência e da sensibilidade, este homem da luta e da paixão nos deixou em fevereiro de 2011, aos oitenta e quatro anos. Viveu intensamente tudo o que fez e tudo o que sonhou. Para os seus inúmeros amigos, uma perda inestimável. Para os seus leitores, a certeza do valor da obra que esse paulistano filho do mundo nos legou. Esse irrequieto e criativo homem das palavras afiadas participou de grandes momentos da vida cultural brasileira das últimas décadas. Foi um dos responsáveis pela modernização e constante inovação da imprensa, como pode ser constatada, por exemplo, na reforma do Jornal do Brasil nos anos 1950 e na criação do jornal-escola O Sol, na década seguinte. A sua atuação no grupo neoconcreto, ao lado de Lygia Pape, Lygia Clark, Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann e Hélio Oiticica, entre outros, foi notável. Como notável foi a sua participação na série “Violões de Rua” dos Cadernos do Povo Brasileiro, editados pela Civilização Brasileira no início dos anos 1960. Lá estavam Moacir Félix, Affonso Romano de Sant’Anna, Félix de Athayde, entre tantos poetas que lutavam com palavras por um desejo de Brasil mais justo, feliz e humano. Seu último livro, Sangradas Escrituras, publicado em 2010, reuniu toda a sua obra poética e alcançou o 2o lugar na categoria Poesia do Prêmio Jabuti daquele ano. São quase mil e duzentas páginas que representam uma trajetória literária marcada pelo compromisso com o pensamento e a ação das vanguardas e o forte conteúdo humanista e ético da sua poética e política textuais. Pensando dessa forma o lugar que Reynaldo Jardim ocupa, podemos compreender melhor o valor histórico e estético do livro Maria Bethânia Guerreira Guerrilha, publicado originalmente em 28 novembro de 1968, duas semanas antes do famigerado AI-5. Trata-se de um longo poema, concebido pelo seu autor como uma polifonia coral acompanhada de tambores. Segundo o próprio Reynaldo: * Júlio Diniz é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, onde também coordena os projetos do Núcleo de Estudos em Literatura e Música — NELIM. 9 bethania v2.indd 9 04/10/11 19:06 Maria Bethânia Guerreira Guerrilha é uma ode heroica. É o primeiro poema polifônico, constituindo, por isso, uma inovação cultural; formalmente, como nas polifonias, é composto de várias melodias dentro da mesma tonalidade, e a mudança tipográfica assinala a mudança de vozes nas várias partes do poema. Sabemos que polifonia é a música que combina em contraponto distintas vozes ou instrumentos. A utilização desse conceito na concepção e criação literária aproxima de forma bastante produtiva o fazer poético do fazer musical, ou, dizendo de outra maneira, potencializa o diálogo entre textualidades e sonoridades. Utilizando os argumentos de Mário de Andrade no “Prefácio interessantíssimo” (1922) e no ensaio A escrava que não é Isaura (1925), diríamos que em lugar da prática discursiva da sucessividade das palavras e dos versos na lírica tradicional, surge a proposta da atitude moderna de combinação das palavras em versos simultâneos. A defesa do verso harmônico em substituição ao melódico, a perspectiva vertical e o seu contraponto superpondo horizontalmente melodias e vozes distintas. Não mais a leitura meramente horizontal, e sim a superposição do eixo verticalizante sobre a linha melódica, produzindo a polifonia poética. É dessa forma que Reynaldo concebeu e construiu a sua ode heroica. A concepção de uma poética polifônica e de uma obra polifônica como Maria Bethânia Guerreira Guerrilha sustenta-se na defesa radical do diálogo, signo do pensamento livre e transformador, do reconhecimento da alteridade como fundamento do espírito criativo e, em sentido maior, de toda e qualquer criação. Vozes dispersas, discursos pluridisseminados e percepções fragmentadas constroem uma dialogia em permanente desconstrução. Polifonia e contraponto passam a ser constantes metáforas de leitura do social, do simbólico, do cultural. Nesse sentido o uso da expressão poema polifônico ultrapassa a sua etimologia musical e passa a ser uma possível chave de acesso à compreensão de todo um circuito comunicativo e interpretativo não só da obra de Reynaldo Jardim como também da cultura contemporânea. Maria Bethânia Guerreira Guerrilha apresenta inovações formais e veicula um conteúdo libertário que irritou os censores da ditadura militar no ano de sua publicação. O livro foi proibido, recolhido das livrarias, o autor processado e a sua musa inspiradora levada ao Departamento de Ordem Política e Social — DOPS para prestar depoi10 bethania v2.indd 10 04/10/11 19:06 mento. A reação de um regime monológico e monotônico diante da anarquia carnavalizante da poética de Reynaldo reduziu durante décadas a polifonia ao silêncio. O poema foi concebido não só para ser lido, como também para ser falado a três vozes, num ato que reafirmava o caráter performático e plural do texto. Por tudo isso se justifica a sua reedição, além de reafirmar a necessidade de reativar os mecanismos críticos da nossa memória individual e coletiva. O ritmo do poema é alucinante, veloz, cinético e perturbador. Como numa ação guerrilheira, os atos e fatos são processados por versos livres, brancos, tensionados pela utilização de letras de estilos, fontes e tamanhos distintos, em constante e ininterrupto movimento de ir adiante. Esse estar à frente confirma a vocação vanguardista do poeta e a qualidade da sua percepção do panorama cultural e político do Brasil na década de 1960. A grande homenageada, a razão do poema, a sua força propulsora, é uma das personagens centrais da vida musical e artística brasileira dos últimos quarenta anos. Bethânia, como a foto da capa do livro indica, representava todo um espírito de renovação estética, afirmação identitária e força telúrica que o momento histórico demandava. Como uma guerrilheira que atravessava a dor do silêncio e da opressão com a voz afiada da liberdade, Bethânia ia, do seu jeito, sem concessões nem aprisionamentos, multiplicando em distintas vozes a razão e essência do seu canto. O tributo é mais que justo. Foi importante na época e ainda o é até hoje. Reynaldo lembrava sempre que tudo começou quando ele interrompeu a apresentação de Bethânia no Teatro Opinião e leu um poema que escrevera em sua homenagem. O pequeno e apaixonado poema foi a semente fértil que gerou este livro. Bethânia é, como Reynaldo um dia dissera, “um padrão de soberba dignidade”. Tomo estes dois personagens da nossa cultura, das nossas artes, da história de nossas vidas, para confirmar uma ideia que me movimentou na escrita deste prefácio: a vida com luta e delicadeza. Reynaldo e Bethânia são brasileiros marcados pela luta, pela gana, pela vontade de querer mais, de querer melhor, de querer. São criadores cuidadosos com o seu trabalho artístico sem perder a chama incandescente da paixão pela fala, pela palavra, pelo mistério do verbo. São vozes que polifonicamente nos ajudam a compreender o lugar sagrado e delicado que a vida reserva aos que sonham, e querem fazer dos seus sonhos solo fértil, e deixam outros com eles sonhar. 11 bethania v2.indd 11 04/10/11 19:06 Um pedaço da história* Reynaldo Jardim Teatro Opinião. Rio de Janeiro, 1968. Bethânia no palco substituindo Nara Leão. Ninguém a conhecia. Chegara da Bahia trazida por Vianinha. Aquela quase menina, na arena do Opinião, parecia, pela potência dramática, postura corporal, força emotiva, uma deusa-mulher adultamente deslumbrante e sedutora. Quando acabou de cantar “Carcará”, a plateia entrou em delírio. A baianinha tornara-se a musa de toda uma geração romântica, audaciosa e revolucionária. Em uma das apresentações, subi ao palco e li o início de um poema que escrevi em sua homenagem. Posteriormente desenvolvi o tema e nasceu o polifônico Maria Bethânia Guerreira Guerrilha. Era véspera do AI-5. Com a publicação do livro, considerado justamente subversivo, fui processado. E deixei minha musa em uma posição muito delicada. Teve que prestar depoimento no DOPS. A edição foi apreendida, retirada das livrarias. Minha casa, invadida. Republico aqui o livro só para reverenciar essa que, sendo a melhor atriz da canção brasileira, é um padrão de soberba dignidade. * Nota que o autor de Maria Bethânia Guerreira Guerrilha escreveu para a reunião de suas obras, Sagradas escrituras (Brasília: Star Print, 2009). 13 bethania v2.indd 13 04/10/11 19:06 MARIA BETHANIA GUERREIRA GUERRILHA bethania v2.indd 15 04/10/11 19:06 Não se canta no escuro no silêncio do quarto sob o luar na praia no vazio mulher que for assim plena mulher feita de mil tensões Mulher que for assim Bethânia toda canta-se no palco onde se nua estivesse já veríamos entre os seios azuis um tormentoso rio Aqui te canto para fazer de tua boca um canto o teu canto na tua rude voz áspera e rouca onde os dentes se travam onde o ácido gosto de teu canto ácido nada tem de doce ou amargo Aqui te canto a revolta de tua raiva e beijo as duas mãos espalmadas teu pulso e o pulsar de teu pulso esse mar que se alarga de mão a mão gesto distendido e elástico Aqui te beijo bethania v2.indd 17 04/10/11 19:06 Aqui te canto Aqui te peço que entre minhas mãos se entregue esse feixe de tensões o corpo teu erguido de manhã plantado no horizonte guerreira guerrilha Aqui te canto guerreira guerrilha Venha dormir conosco guerreira guerrilha e nos incita guerreira guerrilha e nos ensina a força de tua juventude aberta e alegre guerreira guerrilha e nos ame quando for de manhã e tudo parecer guerreira guerrilha bethania v2.indd 18 04/10/11 19:06 e tudo parecer perdido Ao duro canto teu nos ergueremos guerreira guerrilha serás nossa bandeira guerreira guerrilha e nossa pomba Aqui te canto e aqui te vejo flor armada pomba alçada em voo guerreira guerrilha bethania v2.indd 19 04/10/11 19:06 De metal e nostalgia guerrilheira faço a rede de teus nervos Serena de emoção ei-la sem susto contemplando a ternura que a envolve: os olhos mais argutos esquadrinham o objeto do amor em vez de amar-se De revolta e alegria guerrilheira teço o pranto de teus erros de saudade e rebeldia armo a glória de teus medos Serena de emoção ela se sabe eterna e antiga em sua juventude: em vez de responder ou respondendo se afasta do corpo e dobra a alma para ver onde vai o que pretende a própria alma e corpo sob a mira do olhar: tormento que vê sem misturar a coisa vista com os pensamentos De pudor e água fria guerrilheira risco o mapa de segredo de inferno e fantasia guerrilheira abro a porta enquanto cedo Reencontro de infância: amor primeiro flor renascida na adolescência: canto: deslumbramento matinal: insepulta bethania v2.indd 21 04/10/11 19:06 lembrança amanhecida: certo constrangimento: a inibição e o espanto: o espanto esmaecendo e anunciando a iniciação do amor quando já sabe a duração efêmera do ciclo ameaçado: e o perigo de amor quando a ternura já não pode tolher o medo e o susto De tragédia enquanto é dia guerrilheira encho a noite de torpedos de chumbo e melodia calço as luvas de teus dedos de azul e ventania abro as velas dos cabelos de seda e artilharia organizo teus brinquedos Amar e perder no gesto de amor o terno amor e ver se desmanchando entre as mãos o sentido das coisas e saber sem horizonte a essência do carinho e o movimento para além frustar-se no efêmero: amar e ganhar tênue quase amor o instante do eterno: a permanência: memória juvenil onde se grava a glória agora de ver a vida clara Te lanço nessa aventura guerrilheira bem-vestida e preparada com a alma bem nutrida com a cara bem lavada com a fúria bem contida com as unhas afiadas bethania v2.indd 22 04/10/11 19:06 Nesse plano de tempo onde nos pomos fímbria de azul asa sem voo amor sem posse: o desconhecimento de quem somos canta e torna a ser espanto por não ser quase nada sendo tão intenso imenso não imenso: um pouco o desvario de ocupar no coração vazio a dimensão do tédio: algum rancor contido: amor inexistido flor de aragem: mas como pulsa e dói não ver além do encontro o teu rosto sorrir e o beijo sendo entrega não trazer além do beijo em si resposta alguma Te lanço nessa aventura guerrilheira no sentido da vitória com a história bem sentida guerrilheira sentindo o peso da história a história de nossa gente guerrilheira gente de amarga história A te perder construo no momento a eterna duração sem sofrimento bethania v2.indd 23 04/10/11 19:06 É por aqui senhores que se entra no amaro verbo ser quando se é Despede de tua mãe um adeus sem oratória Enquanto a criança brinca a morte espreita Não chamemos de pórtico à cancela por onde entra o homem não a fé Beija a cara de teu pai pai adeus eu vou me embora Enquanto a criança inventa não suspeita que a morte com sua corte fome tifo maleita oculta na sombra densa aguarda espera espreita Aqui se canta o mar dos abdômens das coxas desvairando: da maré subindo a tensão de cem mil homens comendo anjos que julgam mulher Diz “até” pro teu irmão que te deseja a vitória É insuportável saber que de minuto em minuto sopra o vento tomba o fruto a morte com seu cortejo sorri satisfeita Aqui se fala do útero florindo o outono licitante as escamas os mísseis florescendo nas campinas germinando em mulheres pela cama bethania v2.indd 25 04/10/11 19:06 Abre bem o coração na hora da despedida ao passar pelo portão você deixa meia vida A morte já não espreita ataca a morte ataca ataca tocando sua matraca insuportável matraca ceifa Ou não se canta o homem antes se mostra de sua eternidade quase tônica: se prova deus comendo o sol do inverno se mostra o vivo fúria catatônica: se canta e prova da eternidade explodindo explosão estereofônica Controla tua emoção e caminha decidida Insatisfeita ceifa Insaciável ceifa Explodindo explosão estereofônica Tua mãe chora escondida você finge que não viu Nordeste? Vietcong? Não: aqui do nosso lado em frente à esquerda à direita Aqui se mostra: ao ar irrespirável o corpo resistência tal levanta que para silenciá-lo nada existe a não ser a vontade de ser triste bethania v2.indd 26 04/10/11 19:06 Você beija a boneca ela finge que não viu Com sua corte amarela favela a morte já não espreita ataca ceifa a morte com sua corte de fome febre maleita ataca morde pisa e ceifa a não ser a vontade de ser planta o não ser da vontade de ser morto mas quando o corpo fala a vida canta Você monta seu cavalo sem esquecer seu fuzil o fuzil de tua voz teu jeito de ser brasil bethania v2.indd 27 04/10/11 19:06 Assim quando se arma de foice um braço assim quando se ama de amor um abraço Assim quando se doma um fuzil na trincheira assim quando se toma de carinho uma fêmea Assim quando se morde um cachorro no front assim quando se beija a criança na fronte Assim quando se avança algo além do perigo assim quando se pasta entre os seios e o umbigo Assim quando se junca o chão de cem mil bombas assim quando se chama a vagina de pomba Assim quando a fuga tem o gosto de vaia assim quando se fere a mão por sob a saia Assim quando se come no rim a faca acesa assim quando se janta a moça sobre a mesa Assim quando se tenta surpreender o inimigo assim quando o amor vale mais se ferido bethania v2.indd 29 04/10/11 19:06 Pacífica armadilha o sol levante Aventura aberta a sorte te valha um levante de garras silencie o fogo do sonho não é fogo de palha a usura do tempo a altos juros tem o corte seco de seca navalha cobrada por quem não vivencie no capim mimoso o fogo se espalha os golpes do presente nos futuros tece o labirinto de estreita malha os futuros nos golpes galopantes a trama medida não aceita falha os galopes de sangues sobre muros se o caminho é longo a vereda atalha os muros recobertos de meus sangues o fogo do sonho não é fogo de palha os sangues escorrendo por mil furos no corpo se tem a melhor arma os duros saques nos fazendo exangues o ar do pulmão a mão fechada bethania v2.indd 30 04/10/11 19:06 Pacífica explosão de mil granadas o impulso do pé a fé raivosa arme no temporal tal armadilha a prosa da boca o lábio selado para nelas cair bois em manadas a dívida paga na faca dos dentes presa nas praias de fundidas ilhas o urgente fogo no esôfago aceso que se mordam quermesses desvairadas o preço do gesto no acesso do tiro sobre guerreiros mortos em guerrilhas o sentido do olho no molho do sangue caia teu corpo o corpo mergulhando o exangue corpo torto na trincheira no fundo de tuas próprias armadilhas a fieira dos nervos acesos no arsenal mulher de mil paixões desarvoradas o quintal do ventre entre a glória e o pasto o casto silêncio no incêndio do açúcar o azul do carbono bethania v2.indd 31 04/10/11 19:06 no sono em vigília o dia nos ombros o peso das coxas o sal dos tecidos retido na pele o leque da mão rápido no golpe o fole dos brônquios contido no salto no alto do corpo o cérebro frio que risca o fósforo e acende o pavio no segundo exato em que a vida pende depende da ponta de um fio no fundo de tuas próprias armadilhas mulher de mil paixões desarvoradas trincheira de napalm entre as virilhas bethania v2.indd 32 04/10/11 19:06 Na fenda do monte NA FORMA DO LAGO na pomba voante NO GOMO DA FRUTA no arco sem flecha NO BRILHO DA RELVA no cerco da ilha NO LANCE DO DARDO no salto da cabra NO TIRO CERTEIRO No pano rasgado NA GEMA VERMELHA no gesto contido NO PASSO RETIDO no sopro inventado EU VOLTO A DIZER a vida é um gesto NO CANTO QUE RAIVA no ferro do parto NO FEITO DESFEITO no nervo exposto NO VERBO DE GUERRA bethania v2.indd 38 04/10/11 19:06 na fonte fendida NA ÁGUA RETIDA na polpa do figo NO AZEDO DO TRIGO na senda selvagem NO AVESSO DA VAGEM na ponte perdida NA QUEDA SUICIDA no óleo fervente NO GESTO CLEMENTE na pólvora clara N O S E G U E E N O PA R A no ser delirante NA BALA VOLANTE no invento medido E SEMPRE REPITO terrível e aflito NO PRANTO NO GRITO na dor lancinante NO PEITO CANTANTE no fêmur fendido NO FRONT INIMIGO bethania v2.indd 39 04/10/11 19:06