o sonho da eternidade consiste em imaginar que despertamos

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o sonho da eternidade consiste em imaginar que despertamos
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
12ª lição do Curso - 02.05.2007
O SONHO DA ETERNIDADE CONSISTE
EM IMAGINAR QUE DESPERTAMOS
Jacques-Alain Miller
Durante o mês em que não os vi, acredito ter concluído a redação do que eu
chamei o ultimíssimo ensino de Lacan. Devo dizer que isso me tira um peso. Eu
estava, para utilizar uma palavra desse ultimíssimo ensino, atrapalhado com isso.
Agora, estou inteiramente aturdido.
Não estou aturdido com as voltas, reviravoltas e meandros desses ditos. De
todo modo, não mais. Justamente por ter seguido esses meandros até chegar a fazer
deles, pelo menos é com isso que sonho às vezes, uma via romana.
A v-i-a romana – a v-o-z1 é o que eu emito para me fazer ouvir –, como vocês
sabem, é a metáfora com que Lacan ornamentava o Nome-do-Pai, no seu terceiro
Seminário, via transcendente, transcendendo os divertículos, as atribuições, os
atalhos.
Evidentemente, eu exagero ao dizer que cheguei à via romana. Mesmo assim,
ontem à noite, procurando – durante algumas horas – qual título dar à primeira e à
última lições do último dos Seminário de Lacan, tive o sentimento fugidio de que
eu reconstituía a via romana desse ultimíssimo ensino. Uma via romana entre todos
esses meandros.
Mas a metáfora da via romana não convém de modo algum aos nós
borromeanos, nem ao que chamamos toro – a câmara de ar –, que são dois objetos
matemáticos associados por Lacan em seu ultimíssimo ensino. São, se quisermos,
bússolas das quais ele se serve, embora não indiquem exatamente pontos cardeais,
estes pontos em cruz que nos permitem orientar-nos a partir de sua posição.
A bússola tornou-se certamente mais complexa e mais precisa com o
desenvolvimento que lhe foi dado pelo GPS. Mas, enfim, elas são instrumentos
para indicar a direção a ser tomada. E é preciso acreditar que essa metáfora sempre
me foi cara, pois intitulei este curso, desde seu início, “A orientação lacaniana”.
Contudo, no ultimíssimo ensino de Lacan a direção é um giro em círculos e até
mesmo um repisar. É também um registro de metáforas completamente diferente.
Mesmo assim, esse TDE (Tout Dernier Lacan) explora a estrutura – palavra que,
aqui, é cuidadosamente evitada por razões que eu retomo e que direi mais adiante –
do girar em círculos. O girar em círculos tem uma estrutura. Podemos vê-la no nó
borromeano que associa vários giros em círculos de acordo com uma disposição
1
NT: no original, v-o-i-e, via, e v-o-ix, voz, Miller aproveita a homofonia entre elas.
antes de tudo surpreendente, pois mostra esse girar em círculos como sendo
suscetível de uma complexidade da qual não suspeitávamos.
Quanto ao toro, ele associa girar em círculos e furo. Aliás, eventualmente,
podemos nos servir de tantos aros de barbante como sendo tantos toros. Os toros,
por exemplo, são suscetíveis de se associar à moda borromeana.
Evidentemente, há algumas dificuldades para reconstituir e simplificar, em seu
conjunto, os desenhos de Lacan. Todavia, contrariamente ao que se pensa, essa não
é a principal dificuldade. A principal dificuldade está em redigir o que resta das
falas.
Então, se nos deixamos levar pelo girar em círculos, sem dúvida ficaremos
aturdidos. Em contrapartida, a estrutura é o que permite sair do aturdimento, o que
eu acredito ter conseguido. Cocoricó!
Não, o que me aturdiu hoje de manhã, neste momento, foi sair do diálogo com
Lacan, que me havia aspirado e no qual eu me fechei muito à vontade, tão à
vontade que esqueci de vocês. Aturdiu-me sair desse confinamento para lhes relatar
a seu respeito. Então, o que tenho a dizer no relato?
Posso informá-los que já estou com quatro Seminários de Lacan terminados, o
editor deverá publicá-los em seu ritmo. Acrescento, inclusive para me encorajar,
que, no próximo mês de setembro, estarei com seis, assim espero. E se for preciso
tranqüilizar os que estavam preocupados com a conclusão dessa tarefa antes do
meu desaparecimento, pois já me achavam um tanto adoentado, direi que, a seguir,
terei ainda seis deles para redigir antes de passar para outra coisa.
O ultimíssimo ensino de Lacan está exatamente constituído de dois
Seminários: o 24, que segue o do Sinthoma, e o 25. Eu os farei publicar num único
volume, o que então somará, quando o conjunto estiver disponível, 25 Seminários
em 24 volumes. Depois disso, Lacan não se calou, ele continuou a tomar a palavra,
me enviou dossiês e o que ele disse em 1980 foi publicado na época.
Porém, eu lhes informo, não se trata mais do Seminário de Jacques Lacan.
Considero que Lacan fixou os limites do seu Seminário propriamente dito ao
intitular o Seminário XXV, de 1977-78, O momento de concluir. E tudo demonstra
que isso deve ser tomado ao pé da letra.
Esse título é certamente uma referência à sua lógica temporal, desenvolvida,
publicada no fim da Segunda Guerra Mundial, sob o título “Tempo lógico”. E
podemos esperar da exploração desse Momento de concluir algumas luzes sobre o
que o antecedeu. Aliás, esse Momento de concluir não será publicado no final da
publicação do Seminário de Jacques Lacan, mas durante o seu curso.
O tempo era certamente uma preocupação de Lacan no momento de parar, mas
não só isso. No passado, em seu escrito “Radiofonia”, ele já havia destacado o
princípio segundo o qual é preciso ter tempo para análise. Podemos enfatizar que,
em seguida, Lacan quis falar sobre “A topologia e o tempo” o que, aliás, figura de
modo errôneo como título nas orelhas das capas dos Seminários. Não fui eu que fiz
inscrever isso ali. Foi alguém que insistia muito em garantir às edições Seuil que
tudo seria publicado por eles e, desse modo, a cada ano, ele acrescentava esse
título. Deixei isso como estava, mas não haverá os Livros 26, nem 27, nem 28 do
Seminário.
Enfim, essa é uma indicação de que Lacan se preocupava com a relação entre a
topologia e o tempo. Aliás, vemos essa preocupação apontar desde o Seminário
sobre o sinthoma. Entendemos não se tratar do tempo linear, do tempo necessário
para ir de A até B – esta é a via romana –, o tempo da trajetória quando se espera
que depois haja outra coisa.
O tempo associado à topologia é, em primeiro lugar, um tempo circular. É o
tempo do girar em círculos. Não é ausência de tempo. A ausência de tempo é a
eternidade da qual Lacan diz, precisamente em O momento de concluir, que ela
uma coisa com a qual sonhamos. Acrescentemos que o fato de ser algo com o qual
sonham não torna a eternidade especial. No ultimíssimo ensino de Lacan vemos
desfilar muitas coisas com as quais acreditávamos não sonhar, mas descobrimos ter
havido ao menos um que pensou tratar-se de sonhos ou – o que é ligeiramente
diferente – de fantasias.
O sonho da eternidade censurado por Lacan já no seu Seminário do sinthoma é
aquele que consiste em imaginar, diz ele, que despertamos. E, de acordo com o que
aparece no escrito que constitui o ponto final desse Seminário, de acordo com o “O
esp d’um laps”, o ultimíssimo ensino de Lacan se estende em um espaço em que
não há despertar, onde o despertar, eu o cito: “é impensável”, onde o próprio
despertar é um sonho.
Devemos reconhecer que isso é realista, realista no sentido do real. Alguma
vez se viu o passe constituir-se num despertar para alguém? O fato de não haver
despertar significa que, por todo um aspecto, não saímos do sonho. E talvez seja
precisamente isso o risível. Essa é a nova ênfase de Lacan: a vida é cômica.
Ah! Ele já havia dito que, na verdade, a comédia era muito superior à tragédia.
E ele o disse em nome do falo, em nome do valor sexual sempre escondido,
inclusive no fundo da lamentação, no fundo do impasse, na hiância da relação com
o outro. Mas, aqui, a comédia se deve à inutilidade do girar em círculos. E o
próprio sinthoma recebe o valor de ser, digamos, o inconsciente, porquanto não
saímos dele.
Por essa razão, eventualmente – digo eventualmente porque não é sempre
assim – Lacan formula, no seu ultimíssimo ensino, que não há liberação do
sinthoma, não há dissolução do sinthoma. Em outros momentos, ele pode falar de
desfazer o sinthoma. Aqui, porém, ele visa apenas, creio eu, os divertículos do
sinthoma e não o sinthoma como via romana. Quero dizer o sinthoma como esta
nova via romana que é o girar em círculo. Nada de liberação do sinthoma, trata-se
somente, diz ele, de saber a razão de se estar atrapalhado com ele.
Essa certamente é uma proposta problemática porque estabelece uma ligação
entre a análise e o saber. Ligação muito duvidosa, suspeita, adjetivo utilizado por
Lacan no seu ultimíssimo ensino, agitador de fantasias. Pode-se falar de uma
ligação da análise com o saber na qual se imagina que se progride porque
esclareceríamos a análise, esclareceríamos o que é a análise através do saber que se
acredita saber. Mas essa é de fato a questão aberta no ultimíssimo ensino de Lacan.
O que é o saber? Pode-se dizer, ao menos no nível desse ultimíssimo ensino, que o
saber não é um despertar e, se fosse preciso escolher, ele seria, antes, um sonho. É
nisso que Lacan trilha seu giro em círculos. O ser humano (l’être humain) – o que
na época ele escreve: les trumains – está condenado ao sonho.
Les trumains
Ah ! Há algo a dizer sobre les trumains comparativamente ao que Lacan
chamava falasser (parlêtre).
O falasser
A diferença é inicialmente ter escolhido, privilegiado o plural. E, para mim, o
que se destaca na leitura e na redação é a ênfase de Lacan sobre o fato de que o ser
humano é, por essência, social.
A topologia, tão aparente nos seus fastos borromeanos e tóricos, é
incessantemente duplicada de uma sociologia. Aliás, Lacan encontra aqui seus
amores da juventude, pois ele só havia abordado o tema da família mobilizando
referências à sociologia e à etnologia que continuaram a lhe fazer cortejo. Aqui, a
sociologia de Lacan colabora com o desarranjo, com a suspeita incidindo sobre a
fantasia onipresente.
Vejam, por exemplo, esta observação, que se poderia desprezar, na penúltima
lição de Lacan: “por que o desejo passa ao amor? Os fatos não permitem dizê-lo”.
Noto sua referência ao factual, que tem a ver com a questão de ser preciso falar e
distinguir os níveis. Lacan não erra ao opor os fatos à fantasia. Ainda que, num
outro nível, a atribuição aos fatos possa ser, é claro, suspeita. Sim, ele diz os fatos
da mesma maneira que, nesse último ensino, o que é falado utiliza, em geral e na
maior parte do tempo, os vocábulos mais correntes da língua.
Há um contraste constante entre o despojamento da língua, devido exatamente
à evisceração das fantasias, em que tudo é da ordem do: o que chamamos isto.
Aliás, ao redigir, é preciso que eu suprima as aspas, sem o quê isso não seria mais
legível. Mas, enfim, deixo o suficiente para se perceber que os termos técnicos, em
particular da psicanálise, são todos apreendidos com cuidado, postos à distância.
Portanto, há um contraste constante entre o uso da língua mais familiar e o hiper
tecnicismo aparente, bem evidente, das figuras topológicas.
“Por que o desejo passa ao amor? Os fatos não permitem dizê-lo. Há, sem
dúvida, efeitos de prestígio”. Dificilmente se pode ir mais longe na degradação
discreta da vida amorosa. Então, ao incluir assim a operação do semblante no amor,
Lacan verte essa noção no registro da sociologia.
Em minha opinião, o mesmo ocorre quando ele ousa dizer que a interpretação
– nossa santa interpretação que é tudo o que temos para operar na nossa tradição
lexical, pelos menos semântica – depende do peso do analista. Ou seja, aqui
também, efeito de prestígio. E, eventualmente, esse movimento chega a rebater a
interpretação sobre a sugestão, horresco referens.
O jogo do massacre, porque o ultimíssimo ensino de Lacan é isto, o jogo do
massacre, razão pela qual, contrariamente às aparências, é tão divertido, é
muitíssimo superior a todos os Livros Negros da Psicanálise. O jogo de massacre
continua até chegar a dizer que a análise é uma magia!, é verdade!, e que de fato
nos esforçamos, com os meios de bordo – mas a bordo temos essencialmente a fala
apoiada nos efeitos de prestígio –, para comover uma coisa velada. E imaginamos
que conseguimos. Então, quando somos dois a imaginá-lo, a coisa já melhora, mas
nem por isso damos provas contra a redução da psicanálise à magia. Eu
acrescentarei ainda a proposição à qual um Bourdieu não objetaria, cito Lacan: “a
análise é um fato social”. Não se deve acreditar que quando ele o diz, isso
signifique que ela seja um fato social entre outros. Ao contrário, é uma definição
de essência.
As evocações que acabo de fazer bastam para escorar a tese constituída pelo
ultimíssimo ensino de Lacan: ao mesmo tempo em que ele se esforça pela
psicanálise até quase o seu último suspiro, testemunhando, assim, ser uma espécie
de mártir da psicanálise, pois bem, esse ultimíssimo ensino constitui também uma
deflação da análise. Trata-se de saber se ela é salutar. Uma deflação da análise e, é
obvio, dos psicanalistas. Mas Lacan já o havia começado bem mais cedo. Uma
deflação, digamos, um esvaziamento.
Posso lhes dizer, agora, qual foi o verso que me veio à cabeça ao redigir O
momento de concluir, quando eu lhe dava meu último retoque. Foi um verso de
T.S. Eliot que é uma leitura de Lacan encontrada em seu Seminário. Foi também
com T.S. Eliot que Lacan escolheu concluir seu discurso de Roma: “Função e
campo da fala e da linguagem”, uma passagem sobre o que dizia a trovoada:
“Bang, bang!” No caso, isso vinha dos Upanixades: “Dadadá! diz a trovoada”, é
uma passagem do grande poema de T.S. Eliot chamado “The Waste Land” – “A
Terra devastada”.
Pois bem, o verso que me veio à cabeça foi, sem dúvida, o verso de Eliot mais
citado no domínio anglo-americano, é o último verso do poema intitulado “The
hollow men” – “Os homens ocos”. Ele se presta a muitas interpretações que não
vão mal com o homem tórico – que também é oco – proposto por Lacan.
Em T.S. Eliot há várias teses sobre de onde vem a expressão hollow men.
Segundo Eliot, ele havia tomado emprestado hollow num lugar e men, alhures. De
todo modo, encontramos em Julio César, de Shakespeare, na boca do conspirador
Cassius, a expressão hollow men. Em T.S. Eliot isso tem, sem dúvida, um valor
mais pascaliano: o coração do homem é oco e pleno de torpezas.
O início do poema tenta mostrar, cheio de ressonâncias, a descrição dos
últimos homens, a descrição do ser humano da última das civilizações. Eu o leio
em francês para que vocês acompanhem. A tradução é de Pierre Leiris. Não foi o
verso que me veio à cabeça, foi o ultimíssimo, mas, afinal, isso dá o clima.
Somos os homens ocos
Os homens empalhados
Buscando apoio juntos
A cuca cheia de feno
[Headpiece filled with straw]
Que pena!
Nossas vozes ressecadas, ao
Sussurrarmos juntos
São surdas, inanes
[Are quiet and meaningless]
Como o sopro do vento entre a palha seca
Ou o trote dos ratos sobre os cacos de vidro
[Or rats’ feet over broken glass]
Em nossa cave seca
Silhueta sem forma - é uma linda tradução para Shape without form,
Sombra desbotada,
[shade without colour]
Gesto sem movimento, força paralisada
[Paralysed force, gesture without motion].
Pois bem, esse poema que começa assim, termina com dois versos. O primeiro é
repetido três vezes:
É assim que o mundo acaba
[This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends].
Em seguida, vem o verso que me veio à memória naquele exato momento:
Not with a bang but a whimper.
Assim acaba o mundo: Not with a bang – Não com um Bang! –, ou com um
Bum!, diz Pierre Leiris, não acaba com uma trovoada, tal como o discurso de
Roma, but a whimper – mas com um murmúrio –, acaba com um murmúrio. Um
murmúrio é também um gemido. Para mim, é o barulho da câmara-de-ar se
esvaziando.
Lacan escolheu – é uma sacação minha – terminar seu Seminário não com
alguma coisa que falasse da trovoada – isso é o cúmulo da fantasia, a trovoada se
reporta à voz humana –, ele o termina com o esvaziamento do toro psicanalítico,
termina com passinhos miúdos, com o trote dos ratos.
Mas, mesmo assim, isso diz muito. De todo modo, fato é que as referências a
esse verso são inúmeras – fui depois verificar, graças ao Google, onde isso é
encontrado –, há grupos de rap que se chamam assim, há filmes, artigos científicos
que o têm como título ou como exergo, enfim, ele está por toda parte na cultura
anglo-americana. Isso me parece traduzir o valor a ser dado à deflação da
psicanálise à qual Lacan escolheu proceder.
Sua sociologia, como eu a chamei – observem que eu também sou forçado a
pegar as palavras com cuidado –, tanto no Seminário XXIV, quanto no Seminário
XXV, se deve à aprendizagem da língua. Desse modo, vemos claramente a
distância tomada por Lacan em relação à fantasia da estrutura.
A fantasia da estrutura implica, explicitamente, que a linguagem já esteja lá.
Não se enfatiza a aprendizagem. Aqui, ao contrário, a ênfase é posta na tecedura do
aprendiz, se assim posso dizer. E deve ser entendido da maneira mais simples do
mundo. Aprendemos a falar, diz Lacan, isso deixa traços, tem conseqüências.
Aliás, são essas conseqüências que chamamos sinthoma.
Aprendemos a falar e isso vem dos parentes próximos. Essa é a face do grande
Outro na aprendizagem da língua, razão pela qual há uma sociologia imediata do
falasser. Por isso, o falasser é les trumains. Estou conseguindo justificá-lo pra
vocês, heim!? Disse a mim mesmo que precisaria fazê-lo: não deixar escamotear
les trumains. Les trumains, é neles que se aparafusa a sociologia de Lacan.
Por isso, ele pode dizer a um só tempo: não há relação sexual, tudo o que for
relação sexual é um conjunto vazio, e, há relação sexual entre os pais e os filhos
ou, há relação sexual entre três gerações, o que se deve entender, sem dúvida, como
aqueles que nos ensinaram a língua, a partir dos quais aprendemos a língua, mais o
supereu, aqueles que assim nos veicularam o depósito cultural, o caldo de cultura
que nos fizeram beber.
Com efeito, de um lado, não há relação sexual, mas, do outro, há o Édipo, ou
seja, há, mesmo assim, um objeto sexual com o qual há relação sexual, a mãe, e há
alguém ou alguma coisa que o obstaculiza.
Então, eu perguntava ainda há pouco: qual é o saber que estaria profundamente
associado à psicanálise? Eu creio que a resposta a ser mantida vem do que diz
Lacan em O momento de concluir, isto é, a definição segundo a qual o saber
consiste no legível.
Não importa tanto a suspeita lançada por ele sobre a interpretação dos sonhos,
da qual diz em certo momento: “é impossível compreender o que Freud quis dizer”,
dizendo com isso que se tratava de um delírio. Não vemos porquê ele se privaria de
dizê-lo, uma vez que ele próprio, em certa ocasião, acusou-se de haver delirado em
seu Seminário. Contudo, podemos admitir que o sonho, o lapso, o chiste, se lê, e o
que chamamos interpretar é ler de maneira diferente.
Assim, quando ele formulou uma vez mais a questão “o que é o sujeito suposto
saber?”, sua resposta foi: é “o sujeito suposto saber ler de maneira diferente, com a
/ ).
condição de ligar o diferente à sigla S ( A
/ )
S (A
Aqui, ler de maneira diferente significa dizer quer que não podemos descartar
essa responsabilidade para ninguém. Ler de maneira diferente não é ler o Grande
Livro da Criação, a criação do inconsciente, por exemplo. Isso implica alguma
coisa de arbitrário.
Digamos, empregando a palavra entre aspas já que também perdemos a
confiança nesse saber: isso não é “científico”. Ler de maneira diferente não é
automático. Tampouco é a verdade, mesmo que possamos adorná-lo com esse
nome. Fazer acreditar, por prestígio, tem alguma coisa de aleatório.
Simplesmente, tudo o que se pode dizer é que a interpretação como ler de
maneira diferente demanda o apoio da escrita, isto é, a referência feita para que os
sons emitidos possam ser escritos de maneira diferente do modo como foi querido.
Por isso, Lacan diz, mas de modo a se ver o caractere esboçado: “Certamente há
escritura no inconsciente”.
Sim, a outra leitura de que se trata se apóia na intenção de dizer alguma coisa.
A outra leitura, que é a do analista, se apóia na intenção do analisante de dizer
alguma coisa. É essa intenção que atribuímos à consciência, ao eu. É dessa
intenção que definimos a consciência. Disso decorre o valor concedido por Lacan
ao equívoco, quando as palavras não servem à nossa intenção.
Em suma, o que Lacan chama simbólico se revela essencialmente inadequado.
E o ultimíssimo ensino de Lacan luta contra a inadequação do simbólico. Não
poderia ser de outro modo. O simbólico, no fundo, é um fator de confusão. O
significante faz com que não nos achemos nela. O significante é particularmente o
responsável pela não-relação sexual entre les trumains. Não-relação sexual. Diria
inclusive que em O momento de concluir, o que se destaca, e isso é dizer muito, é
uma relação sexual confusa. O amor é confusão. Sabemos muito bem que ele é
feito de bricabraque, de partes e de pedaços que, num certo momento, fazem com
que se produza a passagem do desejo ao amor. O amor é confusão, nele entra
prestígio, semblante, erro de pessoa.
Então, no ultimíssimo ensino de Lacan, é preciso se acostumar com a
degradação do simbólico. Evidentemente, esse não era o caso antes. Não era assim
quando o próprio Lacan se estigmatizava dizendo: eu delirei com a lingüística.
Em quê ele teria delirado com a lingüística? Seu delírio com a lingüística foi
precisamente enfatizar a primazia da palavra sobre as coisas, atribuir à palavra o
poder de fazer as coisas por nós. Assim, ele deu conta da Coisa freudiana dizendo
que ela significava: a moldagem das coisas sobre as palavras. Por essa razão, o que
ele desenvolveu da psicanálise incluía o fato de que, em todos os casos, a estrutura
lingüística prevalece. Aqui, a palavra estrutura estava em seu lugar e posta no
primeiro plano.
Em todo seu ultimíssimo ensino, sem dizer a palavra, opera uma definição de
estrutura completamente diferente. Leio da seguinte maneira a primeira frase da
sua última lição do dia 8 de maio de 1978: “As coisas podem legitimamente ser
ditas saber se comportar”.
Legitimamente. Esse advérbio é engraçado. Vem no lugar de veridicamente.
Não estamos no verdadeiro, temos o direito. Legítimo é um termo que decorre, se
assim eu posso dizer, da sociologia. “As coisas podem ser ditas saber se
comportar”. Aqui, caso haja estrutura, não é de estrutura lingüística que se trata,
mas sim de estrutura coisística, se me permitem dizê-lo. Isso supõe um saber se
comportar melhor do que nós mesmos podemos sabê-lo, como demonstram as
surpresas produzidas pelos objetos matemáticos, pelas coisas matemáticas, coisas
que Lacan manuseia – retiro as matemáticas, visto que ele faz delas objetos,
eventualmente manipuláveis com as mãos, por preensão. São as coisas que sabem
se comportar, precisamente pela diferença em relação a les trumains que não o
sabem, devido – entre aspas – “à estrutura simbólica”, à escola de confusão, à
escola de perdição constituída por lalíngua.
É justamente porque os seres humanos não sabem se comportar que se
inventou, em seu benefício, técnicas para ensiná-los. É sobre a confusão do
simbólico que repousa a emergência e a floração de nossas TCC, ao passo que as
coisas prescindem delas. E há análise para se tentar fazer com que um trumain
saiba como se comportar com o sinthoma. Em outras palavras, o problema, que não
podia ser formulado no delírio lingüístico lacaniano, é a inadequação das palavras
às coisas, o que quer dizer, por abstração, a inadequação do simbólico ao real.
Vemos assim, na sua última lição, se bem me lembro, Lacan figurar o que seria
adequação pelo enlaçamento de dois aros, o do simbólico e o do real. Esse
enlaçamento quereria dizer: “aí está, isso se mantém junto, o imaginário está
alhures”. O que não está longe de sua formulação no início de seu escrito: “A carta
roubada.”
Em contrapartida, é o que o ultimíssimo ensino de Lacan recusa, afirmando, eu
o cito: “a adequação do simbólico ao real só faz as coisas fantasmaticamente. É
uma fantasia acreditar que a palavra faz a coisa, que o simbólico seja adequado ao
real”. Então, quando ele diz fantasia, uma palavra chave em O momento de
concluir, Lacan não entende exatamente um sonho, a fantasia se distingue de uma
aspiração. Por isso, ele pode falar de uma sugestão do imaginário pelo simbólico.
É bem isso que põe em questão a definição da análise pelo saber, já que o saber
é apenas fantasia. Ou seja, é uma aspiração do simbólico sugerindo o imaginário.
Por isso, desde a primeira lição de O momento de concluir, Lacan pôde dizer que a
geometria euclidiana tem todas as características da fantasia, particularmente a
idéia da linha reta. E sabemos, eu o assinalei, que em seu Seminário do sinthoma,
Lacan ressalta toda uma crítica da linha reta. Por esse motivo, compreendemos o
que Lacan tenta fazer com a topologia. Ele tenta sair da fantasia geométrica. Só
encontrei uma boa referência a essa tentativa pescando na última lição de O
momento de concluir a expressão que figura, en passant, na frase: “ Não há nada
mais difícil do que imaginar o real”.
Em suma, ela se tornou para mim o título da última lição de Lacan e também a
palavra de ordem de O momento de concluir, desse esforço que, na época, deixou
perplexos todos os que não eram operários ajudando Lacan nessa tarefa. A
tentativa é imaginar o real.
Precisamente porque o simbólico não é adequado ao real, porque o simbólico
só se associa ao real pela fantasia como sugestão do imaginário, tentemos então
associar real e imaginário, tentemos imaginar o real. Essa, me parece, é a chave de
todas as manipulações de Lacan no seu ultimíssimo ensino. Imaginar o real passa
pela estranha materialização constituída por essas figuras de objetos que, diz Lacan
num certo momento, é uma materialização do fio do pensamento. Ele diz isso e eu
o relaciono com o que ele diz em outro lugar: “A análise é um fato social que se
fundamenta no pensamento”.
Pois bem, parece-me que, aqui, Lacan tenta uma materialização do
pensamento. O que também é imaginar o saber das coisas com precauções
oratórias, como ele diz, isto é, faladas. Esse é o ritmo desse Seminário. O que nele
é dito é da ordem da precaução oratória visando mostrar haver coisas que sabem se
comportar e que estamos interessados nelas, na maneira como elas se voltam, se
revertem, se atam etc. Essa materialização é sobretudo perceptível quando
procedemos ao que é o ato maior no último ensino de Lacan, a saber, o ato de
cortar. Ele torna perceptível o fato de termos de nos haver com o pano, o tecido.
No fundo, ele pretende que isso remeta ao que a psicanálise tem de pano.
Então, ele começa seu Seminário: o momento de concluir dizendo que é uma
prática de tagarelice, o que constitui um rebaixamento da fala. Mas é precisamente
por ser uma prática de tagarelice que tudo se assenta no seguinte: será que o
analista sabe como se comportar?
Disso decorre a oposição, nessa tagarelice, entre o analisante que fala, do qual
Lacan diz – é surpreendente – que ele faz poesia. Nesse Seminário, isso quer dizer:
não é a interpretação que é poesia. Esse é um passo à frente do que eu evoquei na
vez passada. O analisante fala, enquanto o analista corta. Podemos dizer que os
ensaios topológicos de Lacan o multiplicam, são justamente figurações do fato de o
analista cortar, figurações pelo corte, uma vez que este tem o poder de mudar a
estrutura das coisas. Aqui, não é a palavra que faz a coisa. Em termos precisos, é o
corte que muda a estrutura dos objetos representados.
Então, a dificuldade maior é que se o simbólico é inadequado ao real, também
não há o Lacan chama uma hiância entre o imaginário e o real, uma hiância onde se
aloje nossa inibição para imaginar como se comportam as coisas de que se trata.
No fundo, ele dá o exemplo de ser necessário repisar a fim de superar essa
inibição.
Isto não retira de maneira alguma a seriedade da psicanálise. O fato de as
palavras não terem o poder que se acreditava quando se delirava, não impede que
elas tenham conseqüências e que se trate de prestar contas e avaliar essas
conseqüências. Trata-se, diz Lacan, do analista se dar conta da importância das
palavras para seu analisante. No fundo, o modelo do ato analítico no ultimíssimo
ensino de Lacan e em toda sua última prática é o corte. Em certo momento, diz ele:
“agir por intermédio do pensamento confina à debilidade mental”. Por isso, ele
tenta elaborar um ato que não seria débil, diz ele: “um ato que não seja débil
mental”. Pois bem, no fundo, esse ato, tal como aparece no que nos resta do
Momento de concluir, o ato que não seria débil mental e que não passaria pelo
pensamento, é o corte. Por isso mesmo, levo a sério a aspiração testemunhada por
Lacan em certo momento e numa forma que merece ser mantida: “elevar a
psicanálise à dignidade da cirurgia”.
Como vocês podem observar, ele emprega a mesma forma sintática que aquela
utilizada por ele a respeito da sublimação: “elevar o objeto à dignidade da coisa”.
Com efeito, é a fantasia de Lacan que se exprime nessa aspiração. Tratar-se-ia da
sublimação: elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto
cirúrgico de cortar. Esta seria a salvaguarda da psicanálise.
Bom. Até a próxima semana.
Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes
Revisão: Vera Avellar Ribeiro
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
13ª lição do Curso - 09.05.2007
NO DESASTRE DO SIMBÓLICO FLUTUA
O IMAGINÁRIO DO CORPO
Jacques-Alain Miller
Bom. No desastre do simbólico, flutua o imaginário do corpo.
Então, a descrição que encontrei da minha pessoa neste curso e que pode ser
lida na Internet — talvez alguns de vocês o tenham feito — se impõe à reflexão.
Socorro! Fiquei pasmo.
Vejam o que li: “Jam está contente e parece mais jovem do que há um mês
atrás, numa forma física ‘aérea’ [entre aspas], a julgar por suas idas e vindas em
cena”. Essas linhas são do meu amigo Luis Solano que habitualmente divulga em
seu boletim eletrônico um resumo, um pequeno condensado do Curso da semana.
Nunca imaginei que vigiavam assim minha saúde, meu humor e meu
manequim. Em primeiro lugar, preciso dizer – e os que conhecem Luis Solano só
poderão me aprovar – que jamais terei um jeito tão solto e tão elegante quanto ele.
Sou forçado a pensar nisso. E temo que seja genético.
Sinto-me obrigado também a pensar neste valor de massa – será que eu
caminho como se deve? –, no qual se tornou o cuidado com o corpo. O
retardamento ou a maquiagem do envelhecimento é o que poderíamos chamar de
acesso democrático à beleza. São valores dos quais tenho bastante dificuldade de
compartilhar com a época, pois fui formado numa outra na qual isso não era o que
passou a ser atualmente.
Longe de mim a idéia de criticá-lo. Tendo mais a admirá-lo porque o assimilo a
algo como esvaziar a cabeça. É uma aspiração que podemos ter.
De todo modo, a aspiração ao nada de pensamento me toca. Posso apenas
considerar o pensamento zero como um alívio, uma vez que sou forçado a pensar, a
partir dessa descrição sensacional, que meus pensamentos me possuem, meus
pensamentos me gozam, como diz Lacan a respeito das fantasias.
Diderot o dizia à sua maneira: “Meus pensamentos são minhas putas”. Ele
enfatizava tratar-se de uma questão de gozo e que, tal como as cores e os gostos,
não eram para ser discutidos.
Talvez eu tenha a faculdade de produzir mais endorfinas girando em torno de
um certo número de pensamentos do que fazendo movimentos com o corpo. Mas,
afinal, a vantagem de Diderot é que aparentemente ele podia mandá-las embora.
Isso é o que as putas são. Quanto a mim, sem dúvida que minhas putas
permanecem comigo.
Pois bem, quando eu digo pensamentos, não tornem isso elevado demais, pois
não seria conforme ao ultimíssimo ensino de Lacan. Ao dizer “pensamentos”, não
pretendo significar nenhuma alta filosofia, mas sim o que se pode experimentar
como um parasita do corpo vivo e não algo a serviço do corpo.
Não tomo isso como a contemplação das idéias que seria o que de melhor se
poderia fazer, sobretudo porque, no caso, essa volta em círculos toma a forma de
um misto de leitura e de escrita, ou seja, o que constitui a tarefa de estabelecer o
Seminário de Jacques Lacan.
Nesses dias, passo meu tempo lendo o que resta disso, escrevendo, me relendo.
Faço essas idas e vindas até achar que fiz disso o melhor. Estabelecer o Seminário
de Jacques Lacan, me desculpem, não pode ser feito enquanto se faz jogging. Mas
enfim, eu concordo, isso não é mais do que um pretexto. E, acreditem: estabelecer
esse Seminário me torna mais pesado. Se Luis acha necessário sublinhar “aéreo”, é
porque antes ele devia me achar seriamente terrestre, escrevamos isso assim.
a est rien ( a é nada)2
De fato, quando chegamos ao a é nada, ficamos aliviados, não há nada que
faça peso. E talvez o que o entusiasmou na semana passada tenha sido o fato de eu
mesmo estar na elação de ter acabado o trabalho sobre ultimíssimo ensino de
Lacan, acabado uma parte do trabalho que me pesava desde o começo do ano.
Cabe dizer que a prática da psicanálise não favorece o aéreo. Lacan pôde dizer
que não há nada como a psicanálise para nos cretinizar. Isso tem um valor muito
preciso ao qual retornaremos. Mas, por outro lado, também não há nada como a
psicanálise para demolir você fisicamente. Isso é um fato, e posso apenas aprovar
meus colegas que tentam fazer contrapeso a isso entregando-se a esses valores de
massa.
Fui surpreendido com essa descrição. De todo modo, me senti lisonjeado, é
claro. Na verdade, o que mais me deu prazer foi a descrição de Luis sobre o Lacan
que eu teria posto em cena na vez passada. Eu o cito: “Um Lacan divertido,
impertinente, insolente, risonho, à vontade, jovem, muito jovem, profundamente
realista e decididamente livre”.
De fato, Lacan era exatamente assim. Pelo menos antes do seu último ensino.
Todavia, quando ele ministrou esse ensino, não foi nada assim que ele apareceu.
Parece-me que sua fadiga estava mais perceptível, havia uma forma de
esgotamento que ele próprio testemunhava nesses dois Seminários.
Certamente parecia velho, velho e pesado, sombrio e ofegante ao realizar a
tarefa e, além disso, há que dizê-lo, ligeiramente depressivo. Há toques, no
Seminário, que o indicam bastante bem. E por que não confessá-lo, já que era
público, eu próprio não resisti a isso. Deixei de ir escutá-lo, após O momento de
concluir, por desprazer. Retomei somente por cinco, seis meses no ano de 1980,
quando ele procedeu à dissolução da sua Escola, e fez todos os seus esforços para
reconstruir uma outra.
Aliás, talvez vocês tenham constatado que trabalhar esses dois últimos anos do
Seminário tem sido para mim, como dizê-lo, lacerante, patético, porque fui
impelido a consoar com aquele tom impresso por ele. Estive suficientemente
embebido nesse trabalho para ser conduzido a imitar alguma coisa dessa
dificuldade. Além do mais, com efeito, trabalhar esses dois últimos anos do
Seminário me comunicou certa alegria.
Talvez isso explique o que assinala Luis Solano sobre meu rejuvenescimento
súbito, no espaço de um mês, e que me faria hoje bem mais jovem. Portanto, é
necessário que eu continue a estabelecer o Seminário de Lacan. Isso é mais eficaz
do que o jogging. Esse alívio que ele notou, com amizade e certa malícia, é sem
2
NR: Miller faz um jogo de palavras aproveitando a homofonia entre aérien (aéreo) e a est
rien (a é nada).
dúvida devido ao que percebi: na verdade, quando tiramos certo número de
entulhos, Lacan apresenta, dá à luz uma psicanálise aérea. O ultimíssimo ensino de
Lacan realiza uma destruição, mas é sem dúvida – para retomar a famosa expressão
de Schumpeter – uma destruição criadora. Lacan, no seu ultimíssimo ensino,
saqueia a psicanálise.
E há um certo júbilo que já se pode extrair dessa atividade, dessa ferocidade.
Ao mesmo tempo, sobre essas ruínas, alguma coisa desponta, alguma coisa se
eleva, aberta, algo que não se deixa colar com cola.
Essa é a face amável do saltitar de Lacan voltada para nós, seu saltitar de uma a
outra figura de topologia, suas construções, manipulações, amiúde inacabadas, que
podem parecer abortadas, embora também tenham um efeito de comunicar que há
algo a ser achado, algo mantém-se aberto.
Há um segundo texto encaminhado apenas para mim, depois do de Luis Solano
endereçado a todos. Trata-se de um texto que veio da Suíça, onde reside Madame
Inma Guignard-Luz. Nele, há uma frase escolhida por ela, retirada dos Poemas em
prosa de Garcia Lorca, que tem ressonância com a lição da semana passada.
Acreditei poder encontrar o contexto no meu volume das Obras Completas de
Garcia Lorca. Erro meu, uma vez que comprei minhas Obras Completas de Garcia
Lorca em 1961 e esses textos permaneceram inéditos, só passando a constar da
edição Aguilar de 1986.
Somente hoje de manhã tomei conhecimento do contexto, graças ao exemplar
que Madame Inma Guignard-Luz – provavelmente aqui presente, em algum lugar –
deixou na minha casa. Peço-lhe então o favor de vir buscá-lo, pois vou
providenciar um para mim.
O importante, porém, é a frase que ela foi pescar no meio de um poema em
prosa, poema de amor e de erotismo, e que diz assim: es preciso romperlo todo
para que los dogmas se purifiquen y las normas tengan nuevo temblor. É preciso
quebrar tudo para que os dogmas se purifiquem e as normas tenham... (traduzindo
palavra por palavra).
Tal como whimper, traduzir temblor é complicado porque significa também
terremoto, dizemos tremor da terra, embora seja igualmente estremecimento,
arrepio, frisson. Poderíamos dizer: é preciso tudo quebrar para purificar os dogmas
e fazer tremer novamente, ou fazer novamente arrepiar-se os dogmas.
Com efeito, isso traduz bem o movimento, a necessidade que anima esse
ultimíssimo ensino de Lacan, tal como eu o apresentei da última vez.
O contexto que leva Garcia Lorca a romper tudo é um último abraço, um
último beijo numa mulher, fundamentalmente sua inimiga. Esse beijo procederia –
o que nos é bem sugestivo – em três tempos: o instante de ver, o tempo para
compreender e o momento de concluir. Um último beijo que se desenvolve de
maneira admirável e que o leva a dizer: “Desde então, abandonei a velha literatura
que cultivei com grande sucesso”. Em seguida vem a frase, a bela frase que ela me
trouxe da qual retenho, primeiro, o Nuevo tremblor.
Nuevo temblor
Isso faz com que eu me pergunte: o que fez Lacan para conseguir que a
psicanálise se arrepiasse, estremecesse em seu ensino? O tremor, foi o que ele fez,
desde o início. E, de um modo geral, podemos dizer, se nos pautamos no que o
levou ao Momento de Concluir, que ele fez isso a partir da distinção entre
simbólico, imaginário e real. Desde o começo, foi com isso que ele purificou os
dogmas da psicanálise.
Se quisermos ser mais precisos, eu diria que o primeiro instrumento do qual ele
se serviu para esse fim – que nos é esclarecido pela perspectiva de O Momento de
concluir –, para dizê-lo brevemente, foi o estádio do espelho. Ele próprio o
formulou e já o citei em outro momento: “Entrei na psicanálise com uma
vassourinha que se chamava estádio do espelho”.
Se quisermos nos inspirar nessa proposição para apreender como ele procedeu
no seu ultimíssimo ensino, eu diria que o segundo instrumento, aquele que
finalmente serve, é sua noção de real. Esta, afinal, é mais do que uma vassoura
necessária para fazer a faxina. Ela é um tornado, não se lustram os móveis, eles são
mudados de lugar. Nessa ótica, isso me faz pensar no caminho percorrido por
Lacan.
Eu já tinha percebido que ele começara a organizar a psicanálise a partir do
imaginário, antes do estádio do espelho.
I ] O imaginário
II ] O simbólico
III ] O real
Em seguida, o grande período do seu ensino que começa com o Discurso de
Roma se organiza a partir do simbólico. Por fim, e especialmente no ultimíssimo
ensino, há a virada. O real assume o comando e, para permanecer fiel a ele, as
construções precedentes são não só largamente suspeitas, mas evacuadas.
Tomemos agora as coisas no nível do que conhecemos e praticamos do ensino
de Lacan, seu período simbólico, se assim posso dizer. Esse período é dominado
por um afastamento do real que, depois, voltará.
R/S◊I
Há um afastamento do real e uma confrontação entre o simbólico e o
imaginário, aos quais vemos Lacan proceder de maneira ofegante nos seus seis
primeiros Seminários. Esse confronto consiste em distinguir, na psicanálise, o
conteúdo de imagem que está em jogo nos dados da experiência e a mola da
experiência que é a mola simbólica.
Isso se escreve numa partida dupla e de maneira polêmica. Podemos enumerar
as grandes categorias da psicanálise, expô-las ao nível do imaginário, constatar o
déficit de causalidade ali observado e reformular as categorias em termos
simbólicos.
Como o indiquei da última vez, esse é o programa exposto na primeira página
dos Escritos, depois da pequena abertura que Lacan acrescentou. É primeira
página dos Escritos e é a primeira página do “Seminário sobre A carta roubada”, p.
11, onde Lacan expõe – já dei conta dessa frase e a destorço agora – que a tomada
do simbólico se exerce até o mais íntimo do organismo humano [organismo
humano do registro do real] pelo viés do imaginário.
Aqui, o imaginário é reduzido a uma via de condução, mas a captura, a mestria,
é do simbólico. E Lacan formula a lei própria à cadeia simbólica, a saber: ela rege
os efeitos psicanalíticos determinantes para o sujeito.
Ele enumera os termos freudianos que havia sublinhado, Verwerfung,
Verdrangung, Verneinung – a foraclusão, o recalque, a denegação – como sendo
efeitos determinantes para o sujeito, efeitos determinados pelo simbólico que se
apresenta, nesse Seminário em particular, sob a forma de uma cadeia que responde
a uma lei.
O imaginário é reduzido a fatores caracterizados por sua inércia e por sua
natureza de sombras e reflexos, como ele se expressa. Então, aqui, não há whimper,
há um bang, o bang de um divisor de águas entre o simbólico e o imaginário. E a
causalidade, a determinação, está do lado do simbólico. É isso o que conta, se
assim posso dizer.
Digo divisor de águas, o que combina com o título do poema em prosa de
Garcia Lorca, do qual foi extraída a frase que li, seu título é Nadadora submergida,
poderíamos traduzir por Nadadora afogada, em suas águas. É preciso dizer que,
sob certo ângulo, por ocasião de O Momento de concluir, Lacan parecia uma
espécie de nadador afogado, mas que aplicava respiração artificial a si próprio.
Ou então, podemos dizer que essa nadadora afogada é a psicanálise e que, de
algum modo, ele é o seu salva-vidas – falei de salvaguarda no fim da última lição –
, mas suspeitando dele próprio porque nem ele escapava da sua suspeita universal
quanto ao fato de que, ao fazer avançar a psicanálise, ele talvez a afundava.
O momento simbólico do ensino de Lacan – que ocupa o lugar central, recobre
quase todo o conjunto, e que hoje comparamos com esse escasso ultimíssimo
ensino – conhece múltiplas fases que podemos distinguir, das quais é necessário
lembrar para apreendermos o alcance do questionamento e até mesmo da recusa do
simbólico, à qual Lacan procede no seu ultimíssimo ensino.
A primeira fase é a que conduz do símbolo ao significante. Com efeito,
encontramos no começo do ensino de Lacan, a partir do “Discurso de Roma”, o
símbolo posto em função como um elemento transcendente que realiza um acordo
e que, embora mobilize o imaginário, não tem correspondente no real.
O símbolo como elemento transcendente não carece de ecos religiosos
cultivados por Lacan com o seu público do qual fazia parte um bom número de
religiosos. Eles fizeram parte dos primeiros que fizeram ressoar a voz de Lacan, e
sem dúvida foram dos primeiros a se decepcionarem ao verem o símbolo lacaniano
emigrar, ao verem enfatizar-se cada vez mais o significante, não mais um elemento
transcendente, mas um elemento articulado.
No fundo, foi o que Lacan declarou inicialmente sob as espécies da estrutura
matemática. Por exemplo: na construção que ele fez a propósito de seu esquema do
estádio do espelho, que data de seu primeiro Seminário pós “Discurso de Roma”, o
Seminário dos Escritos técnicos, e que ele põe por escrito anos mais tarde no seu
“Observações sobre o informe de Daniel Lagache”, esquema que traduz bem a
transição do momento imaginário de sua reflexão para seu momento simbólico,
onde está o simbólico? Está certamente na construção desse espelho que gira até
transformar os reflexos, mas, antes de tudo, o simbólico, nesse esquema, é o
grande I do Ideal do Eu.
I
É um símbolo sozinho que figura nesse esquema. Por isso, o corte – aquele que
institui verdadeiramente a primeira fase do momento simbólico – é o momento em
que Lacan constrói, expõe – e, na época, isto foi recebido com muitas dificuldades
– a estrutura matemática do significante.
Vocês sabem como ele o fez, ou seja, a partir de uma série de acasos. A moeda
é lançada e cai aleatoriamente de um lado ou do outro; marcamos mais ou menos
para cara ou coroa, e escrevemos assim uma série que responde, creio eu – eu creio
porque não tive tempo de reler isso –, bastante exatamente à definição da cadeia de
Markov, a quem Lacan remete em seu escrito. Assim, o termo seguinte não
depende do termo anterior. Não é porque você conseguiu coroa numa jogada que
você terá cara na vez seguinte. A cada jogada, a incerteza é completa entre um ou
outro. Então, a aparição do símbolo seguinte, se assim posso dizer, não é
determinada pelo símbolo anterior. Simplesmente, a partir do momento em que
reagrupamos os símbolos, de acordo com certos modos diversos e escalonados,
vemos aparecer as determinações.
Se vocês têm dois sinais mais que se sucedem, vocês chamam isso de alfa; se,
na jogada posterior, vocês têm um menos, vocês sabem que não terão um alfa
depois dele.
Vocês não sabem se terão menos ou mais. Todavia, vocês saberão que não será
um alfa que aparecerá sobre a linha superior. Esse é o mínimo para se
compreender. Lacan, então, faz isso de outro modo. Ele os agrupa assim e depois
ele complica a coisa agrupando-os três por três.
Mas desde que vocês têm reagrupamentos, vocês fazem aparecer algo de
determinação, saem do indeterminado da cadeia para chegar à determinação. É isso
o que Lacan quer mostrar concernindo ao inconsciente: há determinação e até
mesmo uma determinação quase completa, respondendo a uma lei e manifestando
o que ele próprio chama triunfo da sintaxe. Isso ecoa no que encontraremos bem
mais tarde em seu O momento de concluir, a propósito de um estudo lingüístico
intitulado “Da sintaxe interpretação”, de Milner, quando ele nota que é bem
duvidoso que possamos passar da sintaxe à interpretação. No começo, ao contrário,
há o triunfo da sintaxe e a valorização, no simbólico, de sua determinação.
Não pode haver contraste mais acentuado do que aquele que existe entre esse
simbólico determinado, que é o summum, o paradigma da determinação – e só pode
haver determinação simbólica –, o contraste entre isso e o que resta, esse dejeto de
simbólico que Lacan apresenta, digamos, sobre as bordas do silêncio. É num
silêncio quase completo que ele irá bascular, após O momento de concluir, mas,
podemos dizer, em conformidade com o movimento que ali está e que o leva
Com efeito, devo fizer, eu que entrei em contato com o ensino de Lacan no
ápice da sua elaboração simbólica, que me parecia que o que ele produzia era um
sistema em vias de concluir-se. Eu o escrevi no próprio volume dos Escritos, como
“Esclarecimento” de meu “Índice”. Na verdade, isso não tomou essa forma.
Tomou, antes, a forma de uma sucessão de ensaios de estrutura, até chegar ao
momento de imaginar o real.
Então, a primeira fase é aquela, que causou entusiasmo, do inconsciente
determinista, o inconsciente que obedece a uma lei ou que é esta própria lei. É
preciso dizer que isso bajulava um certo cientificismo que será abjurado por Lacan
em O momento de concluir nos sarcasmos endereçados por ele à ciência.
Após a estrutura matemática através da qual ele instala o significante como
elemento articulado, a segunda fase, serviçal, prodigiosamente útil na prática da
análise, é a fase da estrutura lingüística.
Aqui, encontramos o simbólico organizado a partir das duas formas princeps
da metáfora e da metonímia, formalizadas por Lacan para pôr em evidência a
determinação do efeito de sentido, a partir da substituição da conexão significante.
Essa estrutura lingüística, combinada com a estrutura da comunicação, é
também a que inspira o grande grafo de Lacan que permite – cito Lacan p. 804 –
localizar no seu escalonamento a estrutura mais amplamente prática dos dados da
nossa experiência.
É um grafo que integra as lições do esquema do espelho. Com efeito, nele
encontramos o eu, a imagem de si etc., e, no seu escalonamento – há dois andares –
, reencontramos o andar da comunicação, onde funcionam as leis da linguagem e as
da fala. Depois, no andar superior o lastro dado pelo funcionamento da pulsão
concebido a partir do mesmo molde que o andar inferior.
Situo também, na estrutura lingüística de Lacan, com a metáfora e a
metonímia, o grafo e o que ele desprenderá como estrutura significante que, aliás,
lhe dará mais tarde o ponto de partida dos seus quatro discursos. Ou seja, a
estrutura significante que responde à formula: “um significante representa o sujeito
para outro significante”.
S1
s/
S2
a
E, no lugar do efeito de significação, ele acrescentará o objeto a. Portanto, no
lugar do efeito de sentido, uma produção de objeto. Isto nos conduz ao seu
Seminário 13: o objeto da psicanálise, em que, com base nisso, retoma um certo
número de construções concernentes ao imaginário.
Esse é o grande período da estrutura lingüística que fixou a identidade teórica
de Lacan para o porvir. De todo modo, temos uma terceira fase, simbólica, que é
distinta e que repousa sobre a referência feita à estrutura lógica. Tivemos a
estrutura matemática, a estrutura lingüística, temos a estrutura lógica.
No fundo, nos seus Seminários 14 e 15, A lógica do fantasma, O ato
psicanalítico, Lacan se apóia sobre o grupo de Klein para situar a estrutura da
experiência analítica, de uma maneira, cabe dizer, nada escalonada, não há a
riqueza e as nuances da sua construção do grafo, mas tem outros méritos.
Percebe-se bem, a partir de De um outro ao Outro, como Lacan formula a
questão da psicanálise em termos lógicos, até asseverar que a lógica seria a ciência
do real. No fundo, vemos despontar ali a interrogação sobre o real retida nas redes
da estrutura como estrutura lógica.
Essa fase da estrutura lógica nos deu De um outro ao Outro, a construção dos
quatro discursos e de sua permutação – os Seminários 16 e 17 – e, nos Seminários
18 e 19, a utilização da lógica quantificada para dar conta da sexualidade, da
diferença dos sexos na relação com o gozo. Aqui, Lacan utiliza, como vocês
sabem, a função F de x que, para ele, toma o valor grande phi de x, a função fálica,
o quantificador de existência, o quantificador universal, modificado pela negação,
etc.
É a fase em que o momento simbólico se apóia sobre a estrutura lógica e ao
mesmo tempo a leva ao auge.
A quarta fase é a estrutura topológica posta especialmente no primeiro plano
no Seminário: o sinthoma e no que o precede, RSI. Não vou desenvolvê-lo aqui.
Com essa estrutura topológica o real vem progressivamente para o primeiro plano.
Então, eu porei a estrutura topológica daquele lado. Por fim, temos o ultimíssimo
ensino de Lacan no qual o real se revela o instrumento capaz de dar
verdadeiramente um Nuevo temblor ao simbólico.
Um Nuevo temblor, tomei o cuidado de escrevê-lo porque, na verdade, não
consigo escolher entre tremor da terra/terremoto e arrepio. Aliás, o tremor de terra
lhes dá arrepio. Eu estive presente num terremoto e posso precisá-lo. Isso faz
arrepiar, com efeito, ocasiona um tremor simbólico, se assim posso dizer.
O ultimíssimo ensino de Lacan se abre primeiro para uma questão sobre o
sujeito. Encontramos, enunciado por Lacan, com suas aspas familiares: “o que
chamamos imprudentemente o sujeito”.
Há que sublinhar esse imprudentemente. Ele o questiona enquanto o define de
uma maneira que poderia parecer clássica: o inconsciente está situado no Outro,
portador dos significantes, que puxa as cordas do sujeito.
Isso nos conduz a seu grafo. A questão formulada por ele é: a dependência do
sujeito é tão completa que será que ainda podemos falar de sujeito? Eu apenas
gloso. No fundo, isso não fica claro de imediato. Por que lembrar a definição
clássica que ele deu na época do seu grafo o conduz, agora, a duvidar do termo
sujeito? Com a questão sobre o sujeito há uma questão sobre o inconsciente.
O inconsciente, tal como o sujeito, é apenas um nome do que estaria debaixo,
debaixo do que se constata, debaixo do que se comporta. Então, aqui também, a
resposta de Lacan pode parecer clássica: a materialidade que está debaixo não é
outra coisa senão o significante, uma vez que ele tem efeito de significação.
E vemos que no começo do ultimíssimo ensino – e quero proceder, a partir de
O momento de concluir, a uma releitura de L’insu que sait de l’une bevue que eu
havia começado – ele retoma suas definições clássicas e, por um ligeiro
deslocamento, ele devolve ao inconsciente seu caráter hipotético. No fundo, ele se
abstém de uma tese, de uma afirmação.
A terceira questão é sobre a psicanálise, cuja fraqueza ele destaca com prazer,
inclusive por referência a Popper, a fragilidade e, além disso, até mesmo o caráter
profundamente duvidoso. Isso se conjuga com o duvidoso que, para ele, abrange
tudo que é da ordem da verdade.
Nesse ultimíssimo ensino há, com efeito, uma ligação inquebrantável entre a
verdade e a crença. O verdadeiro, diz ele, é o que acreditamos como tal. E é por
isso que ele faz da verdade um ato de fé e até mesmo um ato da fé religiosa,
chegando a dizer, na entrada do seu ultimíssimo ensino, que a psicanálise é a forma
moderna da fé religiosa.
Todavia, mais uma vez, esse ultimíssimo ensino não é feito de teses e sim de
vislumbres sobre faces que giram. Então, se nós o imobilizamos, obteremos
horrores da mesma forma que obtemos o famoso: “a psicanálise é uma
escroqueria”. Mas, desde que foi formulado, isso gira e se torna: ela é uma
escroqueira? Em que condições ela deixa de o ser, etc.? Evidentemente, não
podemos nos servir dela com a segurança que acreditávamos ter nos momentos
precedentes do seu ensino. São outra coisa que teses. De fato, há um efeito
borracha que é coerente com o manejo do nó borromeo.
E, em particular, há a operação que ele efetua sobre o nó borromeo, concebido
como um nó borromeo não de simples rodinhas de barbantes, mas de toros, de
câmara de ar, cujo conduto é ocupado por um furo, pelo vazio, mas que podem
prestar-se à mesma disposição borromea que as rodinhas de barbantes.
Ele mostra que, se fizermos um tipo de furo bem preciso em um toro e o
virarmos pelo avesso, os outros dois se encontrarão incluídos no primeiro, os três
continuando a formar juntos um nó borromeo. Ele se serve dessa propriedade para
supor que o toro revirado e englobante é o do simbólico e para ilustrar o final de
uma análise.
O englobamento do imaginário e do real pelo simbólico é o que se produziria
no final de uma análise. E, como ele se expressa: isso arrisca provocar, no fim de
uma análise, uma preferência dada em tudo ao inconsciente. Aqui, nesse momento,
é preciso entender: uma preferência dada totalmente ao simbólico, porquanto este
teria surgido da própria prática da psicanálise.
Percebe-se porque ele o evoca no começo do seu ultimíssimo ensino, já que
para ele se trata de efetuar exatamente o contrário. Aliás, nesse momento ele
propõe ao próprio psicanalista, uma vez finalizada a análise, a necessidade de uma
contra-psicanálise. Evidentemente, só isso já basta para dar um Nuevo temblor ao
passe. Ele propõe a necessidade de uma contra-psicanálise destinada a arrancar o
privilégio indevido do simbólico, ou seja, apagar as conseqüências da inversão do
toro simbólico.
Não podemos nos impedir de pensar que seu ultimíssimo ensino é
precisamente isto: o equivalente dessa contra-psicanálise. No que diz respeito ao
seu ensino, a inversão do toro simbólico é, sob formas diferentes, o que ele realizou
no momento simbólico do seu ensino, ou seja, sim!, ele deu total preferência ao
simbólico. E em seu ultimíssimo ensino, é o que ele se esforça para pôr novamente
em questão ou para anular, mediante um movimento contra. E, de certo modo,
contra Lacan.
É preciso compreender que quando ele diz que Freud é um débil mental, ele
Lacan, que passou seu tempo a lê-lo, a logificá-lo, a fazer dele “jardins à francesa”,
como ele se expressava, evidentemente se põe no mesmo saco.
Então, a contra a psicanálise, o ponto de vista contra-psicanalítico sobre a
psicanálise, é uma obra de salubridade exemplificada por ele em seu Seminário
L’insu, ao debochar cruelmente de uma obra que na época fazia sucesso, intitulada
Le verbier de l’homme aux loups, que era a própria a ilustração de um simbólico a
rédeas soltas.
A partir do momento em que dominamos bem a cadeia da recusa do simbólico
e da contra-psicanálise, nos damos conta de que os pedaços desse Seminário e da
reflexão de Lacan daquele ano que poderiam parecer dispersos estão,
contrariamente, organizados. Compreendemos então a razão desse questionamento
do sujeito, a imprudência que implica falar de sujeito.
Em termos precisos, quando fazemos do sujeito a marionete do Outro, pois
bem, isso é legítimo porque o sujeito é definido como sujeito do significante, isto
é, como o sujeito adequado ao significante, adequado ao simbólico. É o sujeito que
quer o simbólico, se assim posso dizer. É o sujeito aderente ou conforme ao
simbólico. É justamente ele que se mostra determinado pelos agrupamentos,
conexões, substituições de significantes, os quais ele segue como um cachorrinho
que segue a lei determinista. Justamente aqui somos imprudentes porque há no
homem – não podemos mais dizer o sujeito –, naquele que fala, há no falasser uma
desconformidade com o simbólico.
A tese que funda o momento simbólico e expressa o termo sujeito é, ao
contrário, a da harmonia com o simbólico, do acordo com o simbólico, por meio do
simbólico. Acordo entravado, mas profundo, posto que o sujeito só aparece como
uma variável determinada por constantes significantes e variável em função da
mola simbólica.
Negligencia-se, aqui, o fato de que aquele que fala, o animal falante, o falasser,
aquele que sustenta seu ser com o falar, ao contrário, se embaralha com o
simbólico. E, no fundo, aqui, o fenômeno de embaralhar-se não aparece como um
acidente, um incidente, mas sim como nomeando a relação fundamental do falasser
com o simbólico.
Então, é claro que o sujeito lacaniano outrora também se embaralhava. Mas se
embaralhava com o imaginário. Toda a demonstração de Lacan era sobre como nos
embaralhávamos com o imaginário e, então, recorríamos ao simbólico a fim de
nos situarmos na psicanálise e na obra de Freud, para acabar fazendo jardins à
francesa, como se expressava Lacan no seu escrito do Aturdito, ou seja, de uma
maneira muito regular.
Com o ultimíssimo ensino de Lacan revelou-se precisamente que, aquilo que
era o recurso é, na realidade, o próprio mal. É o que eu chamaria de efeito Caligari.
Trata-se do célebre filme O Gabinete do Dr Caligari em cuja última cena é
revelado que o louco que aterroriza a cidade é precisamente o diretor do asilo.
Pois bem, há esse efeito Caligari no ultimíssimo ensino de Lacan. E,
metodicamente, podemos dizer que nesse ultimíssimo ensino observamos,
acompanhamos a desestruturação do simbólico realizada por Lacan e que ela passa
pela eliminação da gramática da estrutura do inconsciente.
Diz ele: “elimino a gramática, mas não elimino a lógica”. Depois, um pouco
mais tarde, ele elimina também a lógica. Então, o que resta? Resta um x, que é a
poesia. Mas uma poesia bem especial porque é ela que operaria, que permitiria,
seria o viés de uma relação direta do significante com o corpo. É o que ele o propõe
para a pulsão, que seria definida como eco do dizer no corpo.
Então, nada de gramática, nada de lógica, mas poesia. Sentimos, porém, que
isso tampouco é a poesia e que por baixo há, fundamentalmente o que ele se
expressa assim: uma coisa atrás da qual latimos e que não responde. De certo
modo, é melhor que ela não responda, porque, se ela respondesse, seria
simplesmente mágica.
Podemos dizer que o efeito natural do simbólico sobre o falasser é a
debilidade, o desvario, o embaralhamento. Podemos sair disso com a condição de
organizar a debilidade, e então é o delírio. Assim, a escolha que se oferece é:
debilidade ou delírio. Lacan diz o seguinte, eu o cito: “entre a loucura e a
debilidade mental, só nos resta a escolha”.
Portanto: debilidade ou delírio. Disso decorre a idéia, expressa no Seminário
24, de acabar com o simbólico. Vocês o encontram na lição 6 de L ’insu qui sait de
l’une bévue: “o ideal do eu seria, em suma, acabar com o simbólico”. Cabe dizer
que esse é o movimento principal, já que ele o traduz por: “em outras palavras, não
dizer nada”.
E aqui ele se interroga sobre a força demoníaca que o impele a continuar a
ensinar e que ele atribui ao superego freudiano. Por seu próprio movimento, vemos
assim a razão desse ensino que sonha em acabar com o simbólico, que prefere – em
detrimento do simbólico – o esforço para imaginar o real, caminhar na direção do
silêncio.
Ele foi rumo ao silêncio depois de seu Seminário no qual mostrou sobretudo
figuras topológicas. E sem dúvida ele rumou amplamente para o silêncio em sua
própria prática.
Bem, não sei se hoje fui tão alegre e aéreo como na vez passada. É duro fazer
isso toda vez. Vou continuar na semana que vem, sempre na linha que Luis Solano
me fixou.
Tradução: Marcela Antelo
Revisão: Vera Avellar Ribeiro
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
14ª lição do Curso - 16.05.2007
AS MULHERES SÃO DESSAS COISAS
QUE SABEM COMO SE COMPORTAR
Jacques-Alain Miller
O que é este Momento de concluir? Ele não é, eu já o disse, da ordem de um
sistema que se fecha, não é um acréscimo, um anexo, não é um apêndice, um
complemento, um suplemento e, como o próprio título o indica, não é
simplesmente a seqüência. É antes um gesto que rejeita, que desvaloriza – eu não
gosto desse verbo que não pertence à língua clássica – um gesto que denigre. É
uma palavra para auto-denegrir.
Poderíamos dizê-lo através de uma referência que Lacan utilizou e que se
tornou, creio, familiar aos seus leitores e aos seus alunos: é o sicut palea de Lacan.
Eu especifico, para quem essa expressão não é familiar, que essas duas palavras
latinas que significam como estrume, é a resposta de São Tomás no final de sua
vida, quando lhe perguntaram o que sua obra significava para ele, sua
Suma teológica. Talvez essa tenha sido sua última palavra em seu leito de morte,
quando tentavam, quem sabe, reconfortá-lo, mostrando o esplendor de sua
construção conceitual. Ele então teria respondido dando a esse agalma, a esse
esplendor, o valor do objeto de dejeto. Eu utilizei isso para ordenar os dois valores
possíveis do objeto a, o valor de esplendor, com a palavra grega agalma, e seu
valor de dejeto com palea, palavra latina.
Pois bem, apesar de eu ter, pelo que parece, me manifestado alegre na
retomada desse curso, há, nesse Momento de concluir, uma devastação que não
incide somente sobre a psicanálise mas afeta, da parte de Lacan, a suma de Lacan.
Esse é o valor que eu daria a essa fala que é, me parece, única nos enunciados de
Lacan – fala que lhe escapou talvez, podemos lamentá-lo, mas enfim esta fala aí
está, eu já a citei, e ela tem uma ressonância poderosa: “eu delirei com a
lingüística”. Essa fala, se nós a tomarmos seriamente, ela afeta o conjunto daquilo
que chamamos o ensino de Lacan, cujas fases e momentos eu ordenei para vocês
na vez passada. Eu me proponho, na medida em que ela aí está, levá-la a sério. Isso
exige sem dúvida examinar rapidamente o que Lacan fez com a lingüística em
psicanálise e também não negligenciar o valor próprio da palavra delírio nesse
ultimíssimo ensino de Lacan.
O valor próprio dessa palavra delírio é que, a meu ver, ela afeta, conforme o
ultimíssimo Lacan, quase todo, ou simplesmente todo uso do significante feito pelo
homem, todo uso do pensamento feito pelo homem. Só há delírio. É por isso que
Lacan pôde continuar dizendo, com outras coordenadas que não as fálicas, como eu
já assinalei, que a vida é cômica – ela é cômica porque cada um está ali com seu
delírio.
Na verdade, apesar disso Lacan reserva a palavra delírio, ele especializa a
palavra delírio quando se trata de construções. Há o delírio incoativo, iniciante,
debutante, emergente de cada um. E há, por outro lado, o delírio propriamente dito,
quando isso se combina, se desenvolve e se arma sobre a base equívoca, frágil, de
um simbólico inadequado ao real. A palavra delírio tem, para o ultimíssimo Lacan,
uma extensão tal que chega ao ponto de incluir a matemática.
The world of mathematic
Ele menciona, em passant, uma obra em quatro volumes percorrida por ele e
intitulada, The world of mathematics (O mundo das matemáticas), a partir da qual
ele conclui que não há o mundo das matemáticas propriamente dito, não há o
mundo consistente das matemáticas e, no final das contas, tudo isso é poesia.
Eu me lembro bem desses quatro volumes, fui eu que os ofereci a Lacan. É
uma coletânea inglesa de textos de matemáticos sobre as matemáticas. Por que eu
dei esse presente a ele? Naquela época foi sem dúvida para reconduzi-lo a
melhores sentimentos. De minha parte, deve ter sido um esforço desesperado para
reconduzi-lo ao simbólico, para salvar pelo menos as matemáticas. E eu vi chegar a
resposta sarcástica, do alto da cátedra – era diferente desse lugar aqui. Então, a
palavra delírio, nesse ultimíssimo Lacan, é realmente aplicada sem exceção. Isso é
bem coerente com o fato de ele não manejar sua topologia com instrumentos
matemáticos.
Aliás, os matemáticos não a manejam, eles a escrevem, eles não representam
os objetos. Contrariamente aos matemáticos, ao longo desse último ensino Lacan
ostenta figuras no quadro, da mesma forma que, na casa dele, ele manejava as
cordas e mesmo as câmaras de ar. Ele também distribui pela assistência – por
intermédio daquele que o seguia nesse momento, o primeiro da fila, Pierre Soury –,
quando se tratava de problemas de esferas ou toros, bolas com traçados
minuciosos. Pierre Soury era matemático, mas ele acompanhava Lacan nessa
topologia da qual, sem dúvida, o espírito matemático não estava ausente, embora
fosse uma topologia sem matemática. Aliás, naquele momento, Lacan evocava o
instrumento propício para capturar o objeto topológico dos nós, as matemáticas, o
grupo fundamental, ele o evocava para rejeitar seu uso com um argumento rápido e
sumário.
Eu então antecipei a seqüência dizendo que a expressão “eu delirei”, de Lacan,
é por certo uma confissão, mas enfim isso deve ser considerado cum grano salis,
deve ser ouvido no contexto em que a palavra delírio é estendida, como eu dizia, a
todo uso do pensamento, a todo uso do significante feito pelo pensamento. Mas,
todavia, sobra esse “eu delirei com a lingüística”, sobra, portanto, a reflexão, a
meditação que essa declaração pode nos incitar a fazer sobre o delírio lacaniano
com a lingüística.
Então, onde começa esse delírio ? O mais simples é dizer que ele começa com
o inconsciente estruturado como uma linguagem. Essa é uma fórmula que eu não
sei se ela foi de Lacan desde o início ou se ela lhe chegou vindo de um de seus
alunos. De todo modo, ele a adotou e ela era certamente bem feita para indicar o
impulso que Lacan trazia no início de seu ensino.
O que era essa estrutura de linguagem que, de forma evidente, é colocada em
causa, é questionada, é recusada pelo último Lacan ? A estrutura da linguagem foi
a fórmula retomada que marcou o pensamento de toda uma geração e mesmo de
várias gerações: grande S sobre pequeno s, significante sobre significado.
S
s
Essa fórmula incita a distinguir, no acontecimento da linguagem, o lado
significante e o lado significado. É uma fórmula que introduz uma separação das
águas, introduzida por Lacan em seu texto “Instância da letra”, escrito que eu reli
com essa idéia de que se trata de um delírio. Confesso que nunca havia lido esse
texto sob essa luz, até levar essa frase a sério
Lacan introduz então essa fórmula como um algoritmo, ou seja, como a lei de
uma seqüência. E, com efeito, a partir desse algoritmo, ele desenvolve o que ele
chama incidência do significante sobre o significado, na fórmula ƒ (função)
significante 1 sobre pequeno s. Essa fórmula é em seguida transformada em duas
outras possíveis: a da metáfora e a da metonímia – no sentido de Jakobson –,
conforme haja combinação entre os significantes, (S...S’), ou substituição, (S’/S).
Duas formas, portanto, para o significante se associar a ele mesmo, engendrando
dois tipos diferentes de efeito de significado.
Na metonímia, o significado corre sob o significante e isso é traduzido quando
se escreve S (-) s, o significante entre parênteses, menos ou barra, significado –
isso se apresenta como um menos mas trata-se da barra se tornando, se
manifestando como um operador. Já na metáfora, essa barra é supostamente
ultrapassada, o que se traduz pela escrita de um mais – S (+) s – que significa,
nesse caso, barra ultrapassada, fazendo com que o efeito de sentido – ou de
significação, aqui pouco importa – surja como uma significação nova.
O significante é a função da qual o sujeito é a variável
O privilégio da metáfora nesse delírio com a lingüística é que ela introduz uma
significação nova. Eu digo isso dessa forma para introduzir algo que ecoa com a
pesquisa de Lacan no final desse Seminário 24, sua pesquisa de um significante
novo que deve ser distinguido desse efeito.
A incidência do significante sobre o significado é diferente do simples
paralelismo do significante e do significado. Ao contrário, isso implica enfatizar a
primazia causal do significante sobre o significado. E a demonstração feita por
Lacan em seu “Instância da letra” é precisamente a de que o significado é função
do significante, se assim posso dizer, o significante é a função da qual o significado
é a variável – podemos considerar que essa é a maneira de ler a fórmula que eu
coloquei para vocês no quadro.
E já na “Instância da letra” se realiza a introdução do sujeito na questão, no
nível do significado, como Lacan o indica rapidamente. Ou seja, a decifração que
eu dei a vocês pode ser decalcada para dizer que o significante é a função da qual o
sujeito é a variável. E, sem dúvida, é precisamente o que o ultimíssimo Lacan visa
quando diz: aquilo que a gente chama imprudentemente o sujeito. A imprudência,
aqui, consiste em fazer do sujeito a variável do significante, de um significante que
o maneja a tal ponto que, em função do arranjo dos significantes, o estado do
sujeito é determinado.
E é assim que da não inscrição de um significante especial, Lacan pensa
podermos deduzir aquilo que eu chamaria, nessa circunstância, o estado psicótico
do sujeito. Para dizer a verdade, a fórmula, o esquema que emerge em seguida e
que comporta S1, S2, s
/ nada mais é que uma variação da fórmula inicial.
E quando Lacan acrescenta, em quarto lugar, a sigla pequeno a, nós estamos
ainda na mesma família de fórmulas. Trata-se do pequeno a ao qual ele termina
dando, no Seminário 16, a descrição do mais-de-gozar, ou seja do gozo moldado
pelo efeito de sentido.
O que Lacan censura como tendo sido o delírio com a lingüística inclui tudo
isso, inclui tudo aquilo que ensinamos de Lacan, há décadas. Aqui no
Departamento de Psicanálise não há cátedra, mas, se houvesse uma, no ponto em
que nós estamos, seria uma cátedra de delírio, de delírio psicanalítico, de delírio
moderno.
Então, essa formalização inclui tudo isso e, na minha opinião, inclui também
aquilo que comanda essa conceitualização, essa formalização, ou seja, o delírio
com a matemática. Não há razão para não se acrescentar ao delírio com a
lingüística o delírio lacaniano com a matemática. Não é que as fórmulas preparadas
por ele não sejam exatas. Sua construção, denominada “de mais e de menos”, que
eu relembrei rapidamente na vez passada, se sustenta matematicamente. É uma
variação sobre um grafo que não foi inventado por Lacan, ele inventou a variação.
Mas o delírio, se, tal como eu penso, há um delírio no sentido do ultimíssimo
Lacan, ele está na idéia de que a matemática comanda a lingüística. Isso explica o
fato de o delírio lingüístico de Lacan ter sido conduzido até a lógica. Esse delírio
com a matemática é um delírio determinista. É o que está manifesto e é a essência
do ensino de Lacan. Por essa razão, havia sugerido que a coletânea dos Escritos
começasse pela “Carta roubada”.
Eu o havia sugerido, na verdade, porque, quando me deram as provas para que
eu fizesse um “Índice”, eu me dei conta de que, como estávamos começando com
os anos 1930, seria preciso esperar duas centenas de páginas para encontrar o estilo
atual de Lacan. Eu achava que o leitor ficaria decepcionado em esperar tanto tempo
a marca contemporânea. Então, pensei que seria preciso fazer, nesse volume, uma
defasagem cronológica e que o texto deslocado fosse também emblemático. E eu
não via nenhum outro mais emblemático e, sob certos aspectos, de mais fácil
acesso para um público geral, que a leitura feita por Lacan do conto de Edgar Poe.
Mas enfim, com a “Carta roubada”, era a essência e a orientação do ensino de
Lacan que estavam postas no primeiro plano.
No comentário do conto que retraça os avatares de uma carta, Lacan já
sublinha que essa trajetória é estritamente determinada. A euforia produzida pelo
ensino de Lacan nessa época provinha do fato de que, naquilo que parecia incerto
na prática da análise – metodicamente incerto pois se trata de uma prática
condicionada pela associação livre, para tomar, na superfície, aquilo que se
apresenta da forma como chega – demonstrava-se, ao contrário, uma estrita
determinação, um inconsciente rigoroso comportando exigências comparáveis, ou
mesmo idênticas, àquelas de uma cadeia de símbolos respondendo a um algoritmo.
Assim, Lacan transportava para o inconsciente uma determinação de ordem
algorítmica.
Ele explicita isso na “Introdução” a seu “Seminário sobre a Carta roubada”,
“Introdução” que, nos Escritos, é colocada depois do “Seminário”, o que se
justifica, mas, enfim, é de uma outra ordem de dificuldades. Isso é suposto
explicitar o que significa exatamente a determinação da trajetória da carta. O
transporte de uma determinação de ordem algorítmica no inconsciente é, apesar de
tudo, feito por Lacan como um fiat. É uma decisão intelectual que, em seguida, é
argumentada. Ela é essencialmente argumentada a partir de conceitos freudianos.
Compreendamos com isso que esses conceitos freudianos conduziriam a isso.
Aliás, todo o último ensino de Lacan é posto sob a idéia de que ele seguiu nesse
rumo porque Freud indicou o caminho.
Resta, porém, verificar esse fiat. Entretanto, é uma decisão que se apóia mais
sobre a obra de Freud do que sobre o que é a prática da análise. Em contrapartida,
no ultimíssimo ensino a clivagem se faz entre a obra de Freud, inclusive sua
prolongação lacaniana, e um certo terra a terra da prática, de uma prática que deve
sua existência a Freud, mas sobre a qual o último Lacan diz o que ? Ele diz que
devemos constatar que Freud inventou uma certa arte, uma certa forma de fazer e
que essa forma de fazer teve êxito no sentido em que ela se propagou. Mas há
ainda a questão de saber se ela tem êxito nos fatos e, sobre esse ponto, Lacan
introduz nuanças: “isso opera, a gente se pergunta como isso opera”, e até mesmo,
“é muito duvidoso que isso opere”.
Então, se eu digo fiat, é porque Lacan, naquela época, falando de ordem
simbólica, ou seja, fazendo do simbólico uma realidade sui generis, atribui ao
simbólico um caráter constituinte. Constituinte, isto é, não constituído, não
deduzido, não produzido mas sendo anterior, estando já ali. Esse é o valor que
Lacan soube dar ao gesto da criança, observado e sublinhado por Freud, escandido
pelo Fort-Da. Lacan fez dele o emblema, o mito da entrada do indivíduo na ordem
simbólica já presente desde antes.
E, no mesmo fio, ele propõe então a ilustração matemática – partindo de uma
série escolhida ao acaso e escalonando um certo número de simbolizações desde a
simbolização ao rés do chão, dos mais e dos menos, combinada por três, depois
tornada opaca – de uma relação do sujeito com a sintaxe significante. Ele dá a idéia
de uma sintaxe, de uma organização do significante que não é dedutível do real,
que comporta uma memória não psicológica, mas matemática, e que conduz o
sujeito.
Materializar o processo subjetivo
Com relação a isso, na medida em que eu releio esses textos pensando no
Momento de concluir, eu gostaria de indicar a nota da p. 57 dos Escritos, onde
Lacan explica os desenvolvimentos que pôde dar à idéia de uma sintaxe subjetiva
assinalando a referência feita por ele ao que ele chama analysis situs, o nome
antigo da topologia, diz ele: a analysis situs, onde nós pretendemos materializar o
processo subjetivo.
Materializar o processo subjetivo. Temos o eco disso no ultimíssimo ensino
quando Lacan fala de suas figuras de topologia como de uma materialização do fio
do pensamento. Pelo menos há essa invariante na atitude de Lacan. Ele é um
pequeno materialista, ele não trata, inclusive no final, de noções vagas, ele precisa
de objetos materiais, quer seja essa moeda de onde vêm os mais e os menos, cara e
coroa, quer seja os pequenos símbolos que se seguem, isso precisa ser visto. No
ultimíssimo ensino de Lacan há por certo um certo privilégio da materialização e
do visual.
A estrutura da linguagem da qual se trata, e que seria o produto desse delírio
com a lingüística, é uma estrutura digamos diacrítica, ou seja, nela os elementos
tomam seu valor das relações que têm uns com os outros, ou seja, fazem sistema. E
cada um deles só tem valor pelo fato de fazer sistema. E é engraçado ver na p. 297
que Lacan, glosando sobre a estrutura da linguagem, acrescenta : “a diversidade
das línguas toma, sob essa luz, seu pleno valor”. Ele não diz mais do que isso e a
gente pode então meditar sobre qual é o valor que toma a diversidade das línguas
sob a luz trazida pela noção diacrítica do signo lingüístico. Mas percebemos,
sobretudo que em seu último ensino, que ele faz inverso. Ali, Lacan coloca a
diversidade das línguas sob a luz do conceito da linguagem, ao passo que seu
último ensino – não o ultimíssimo – começa ponde em causa, invertendo essa
relação. Ou seja, o que há de início no último ensino de Lacan é a diversidade das
línguas – e é dessa diversidade que a linguagem recebe sua luz.
É por isso que eu fazia começar o último ensino de Lacan com o Seminário 20:
mais, ainda, dado que, com a emergência, com a definição do que ele chama
lalíngua, a estrutura da linguagem é posta em questão. Aqui começa o abalo, aqui
estão os primeiros tremores do terremoto que sacudirá as construções no
ultimíssimo ensino de Lacan, aqui começamos a ouvir o Nuevo temblor do qual eu
falava.
Eu estava lá !
Eu me lembro. Eu estava lá. Eu me lembro que ele disse isso, eu me lembro
que isso me fez um efeito. Eu não posso dizer que foi um efeito de desaprovação,
nem de decepção, não. Era a percepção de que algo estava mudando no que
concerne a um ponto capital, aquele que eu havia justamente ressaltado sugerindo a
ele “A Carta roubada” para iniciar seus Escritos. Ali, isso estava sendo tocado
quando disse: “a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua”.
Eu me sinto bem mais livre para evocar essa lembrança no contexto da época
pelo fato de que, pouco depois, quando eu tive a ocasião de apresentar um trabalho
no retorno de minhas aventuras românticas na política, eu tentei me arranjar com
essa proposição que vocês encontrarão na última lição do Seminário 20. Ali, de
certa forma, o conceito de linguagem e a noção de estrutura de linguagem estão
denegridos. A linguagem, diz Lacan, nada mais é que aquilo que o discurso
científico elabora para dar conta de lalíngua. Nessa frase, o discurso científico de
certa forma já está presente denegrido.
Há sinais preliminares em Lacan, claro, mas já há a noção de que não é a
ciência quem dá a última palavra sobre o que seria uma realidade anterior que é a
de lalíngua, ou seja, da língua materna apreendida antes de qualquer ortografia,
como o indica o fato de a escrevermos em uma só palavra, como uma única
jaculação, antes que se tenha começado a distinguir as partes do discurso, o artigo,
o substantivo – é antes do saber.
Essa já é a direção que se desenvolve e que flameja em O Momento de concluir
onde vemos destruídos a maioria e, no horizonte, todos os instrumentos do quais
nos servíamos para capturar o que acontece, para capturar o acontecimento e o
objeto. E Lacan se pergunta: lalíngua serve ao diálogo ?, para responder: “nada é
menos seguro”. Isso já é o que se encaminha de suas proposições iconoclastas do
Momento de concluir, onde ele dirá que a psicanálise poderia ser um autismo a
dois. Mas ela não o é porque há a lalíngua, há, apesar de tudo, uma língua comum.
De todo modo, desde o final de seu Seminário 20, a linguagem é reduzida a uma
ficção, uma ficção científica, mas uma ficção. Por isso, ele pôde dizer: “a
linguagem, de início, não existe”.
Ele é dirigido pela idéia de visar o que existe, uma camada daquilo que existe
anterior às elucubrações de saber. Aliás, aquilo que na época ele chama
elucubração de saber já é o que ele censurará no final sob o nome de delírio. Já está
ali, simplesmente isso ainda é apenas uma musiquinha
Hipótese de Lacan
Retomar isso sob a luz do ultimíssimo Lacan esclarece a passagem, já
comentada por mim, da última lição de Mais ainda na qual Lacan diz: “Minha
hipótese é a de que o indivíduo que é afetado do inconsciente é o mesmo que forma
o que eu chamo o sujeito de um significante”. Indivíduo afetado do inconsciente
equivalente a sujeito de um significante.
Eu compreendo melhor o de que se trata. O inconsciente é estruturado como
uma linguagem, mas a linguagem é sempre hipotética com relação à lalíngua. Essa
hipótese de Lacan é a que sustenta a fórmula: um significante representa o sujeito
para um outro significante. Essa hipótese – o que o próprio Lacan faz emergir
como uma hipótese e que se compreende mal comparativamente ao que era antes
quando, de fato, isso estava tão confundido não se via os dois lados – é
precisamente o que é recusado no Momento de concluir. O Momento de concluir
cliva, de um lado, o indivíduo afetado do inconsciente, o falasser e, de outro lado, o
sujeito de um significante que se sustenta com a noção delirante de que o sujeito
nada seria senão a variável do significante.
O que se perde então nessa clivagem é a noção de uma determinação simbólica
estrita. É a idéia – para ir até a raiz – de que o significante seria o signo de um
sujeito, que se poderia supor sob o significante, um sujeito do qual o significante
seria o signo. O ultimíssimo ensino de Lacan é o abandono dessa hipótese e é a
crítica, aliás várias vezes repetida, da fórmula: um significante representa o sujeito
para um outro significante.
S1 → S2
Antes das férias de final do ano, eu já havia evocado a idéia da determinação
simbólica que, em suma, é a que aparece no discurso do mestre. Nesse caso, o
significante é o mestre que determina a seqüência significante sob o modo
algorítmico, determinando, como efeito, o sujeito que é engatado nessa cadeia de
saber – é o que significa que ele é representado pelo significante. Lacan toma como
referências, ao contrário, esses mesmos dois termos, tais como figuram no discurso
do analista, com uma barra e não uma flecha entre eles:
↑ ↓
S2 // S1
Então, nós partimos de S2, e chegamos a S1, mas aqui, //, há uma falha, há uma
descontinuidade, que Lacan traduz novamente em seu último ensino. Não podemos
dizer que o sujeito é representado pelo significante porque, para tanto, é preciso os
dois e, entre os dois, há uma falha. O saber só começa, ele nunca se completa.
Lacan se serve então do que ele extraiu da estrutura do discurso analítico para
criticar, para arruinar a estrutura da linguagem e para substituir a euforia
determinista do saber – estrutura da linguagem, no sentido de Lacan, é um saber
separado de qualquer eu sei, é um saber formal, se quiserem –, substituir a primazia
do saber pelo saber-fazer. Isso já aparece na última lição de Mais ainda onde, ao
mesmo tempo em que ele censura a linguagem como elucubração de saber sobre
lalíngua ele diz que o inconsciente é um saber-fazer com lalíngua.
E aqui nós já passamos a uma outra ordem. Ele mesmo se corrigirá mais tarde,
pois a idéia de um saber-fazer pode comportar a idéia de método, de procedimento
para fazer. E ele falará explicitamente de saber-fazer-com-isso o que, nesse caso,
significa: se sair bem, o que implica um pragmatismo de um grau superior. No
saber-fazer-com-isso não há mais idéia de método. Há o que? Há a idéia de um
acordo, de uma afinidade, sempre frágil, diante do qual o conceito fracassa.
O ultimíssimo ensino e a Carta roubada
É maravilhoso que em seu Seminário L’Insu, o Seminário 24, o primeiro dos
dois que eu situo no capítulo de seu ultimíssimo ensino, ele retorne à “Carta
roubada”. Ele retorna à “Carta roubada” na ocasião da apresentação de um trabalho
por um de seus alunos, um psicanalista que utiliza, se eu compreendi bem, “A carta
roubada” como apoio de sua idéia de fazer o passe por escrito. Lacan faz esse
comentário no capítulo VII de L’Insu e, nessa ocasião, ele não diz tudo o que eu
estou dizendo aqui. No entanto, o retorno à “Carta roubada” no L’Insu talvez não
seja sem relação com o fato de ele dizer, no Momento de concluir: “eu delirei com
a lingüística”.
Mas, na ocasião desse retorno à “A carta roubada” ele procede, me parece, a
uma clivagem entre o saber e o simbólico. Ele formula que o real não fala, que o
simbólico fala mas só para dizer mentiras e que, em todo caso, o imaginário está
sempre errado. O real não fala, mas não se trata de um real incoerente – como ele o
formulou em um momento dado. Aqui, é preciso distinguir, em se tratando do real,
palavra e escrita. O real não toma a palavra. Isso não impede que Lacan mantenha
que há saber no real, simplesmente, é um saber que não fala. Parece-me que o saber
no real do qual se trata – pois nessa data ele não renega essa construção da “Carta
roubada” – é o saber sobre o qual ele dirá, no extremo final do Momento de
concluir: “isso é o saber das coisas que sabem como se comportar. As coisas sabem
como se comportar e elas não falam”.
No fim das contas, só falamos, como o ser humano o demonstra, quando não
sabemos como nos comportar – falamos para pedir uma terapia comportamental
como eu já sublinhei. Aliás, é por isso que nessa ocasião ele critica seu aluno por
ter inventado um personagem suplementar na “Carta roubada”, que circula e conta
tudo ao personagem do rei. Ele o critica dizendo: esse personagem é o saber
absoluto e um saber absoluto tagarela. Aliás, ele imputa a seu aluno identificar-se
com o saber absoluto. E aqui ele objeta que pode muito bem haver saber no real,
mas o real não fala.
Ele distingue, do saber no real, o saber do significante e chama a isso: o
simbólico. Com efeito, vemos que ele tem um uso do simbólico que o amarra mais
à palavra do que à escrita, cuja referência na análise é de preferência a Verneinung,
o fato de dizer a verdade proferindo uma mentira. E o erro do imaginário é, no
fundo, ser florido. Lacan propõe, ao contrário, como ele o lembra, esvaziar a
evidência. Podemos dizer que as figuras topológicas constantemente traçadas por
ele no quadro são da ordem desse imaginário, desse imaginário esvaziado.
Eu não posso me impedir de citar o pequeno exemplo de família que Lacan
profere nessa ocasião. Primeiramente, é um momento de distração em seu
Seminário, o que é raro, mas é também muito emblemático do percurso do próprio
Lacan. Com relação ao saber absoluto, pois é disso que se trata, ele faz uma
confidência a respeito de sua irmãzinha que, no momento em que ele relata, já é
uma mulher idosa. Como lembra Lacan, ele era dois anos e meio mais velho que
ela. Sua irmãzinha, Madeleine, chamava a si mesma – nós não sabemos
exatamente que idade ela tinha quando ela dizia isso, mas não é impossível que ela
tivesse nessa época dois anos e meio e Lacan cinco – Manène, M-a-n-è-n-e. E ele o
define como um momento de apreensão. Em todo caso, isso permaneceu nele
através dos anos, o momento em que esse pequeno ser do sexo feminino – é disso
que se trata no final das contas – diz ao pequeno Lacan : Manène sabe [risos].
Aqui, ele vê o esplendor de um eu sei que, diz ele, tem consciência, ou seja não
somente saber, mas vontade de não mudar. Aliás, ele se corrige pois não se trata de
um “eu sei”, ela o formulou na terceira pessoa, é uma ela [asa], como ele diz3 E ele
diz : “aqui se trata de uma consciência de saber, mas que faz parte do inconsciente,
e ela mesma se considera portadora de saber”.
As mulheres são dessas coisas que sabem como se comportar
O momento de apreensão, que sem dúvida não abandonou Lacan ao longo de
seu ensino, é a noção da mulherzinha que sabe. É como se fosse o início do que
poderíamos chamar o delírio de Lacan com as mulheres [risos]. Aliás,
precisaremos examinar isso. O delírio com a lingüística, eu tento... mas eu não
avancei ainda no delírio de Lacan com as mulheres, com a feminilidade. Eu não me
lancei nisso, porque isso me foi de uma utilidade prodigiosa, se assim posso dizer,
tanto na vida quanto na prática [risos]. Então, eu nunca tive a idéia de considerar
isso como um delírio, mas, em todo caso, há aqui uma pequena indução. Lacan
aparentemente extraiu uma certa idéia do saber de seus livros de geometria, tudo o
indica em seu ensino. E também extraiu uma certa idéia do saber com Manène.
Bom, isso é dito en passant.
Eu percebi a profunda coerência dessa historieta, da qual eu me lembrava, com
o tema dessa lição, isto é, o tema do saber absoluto. Aqui, temos uma certa figura
do saber absoluto sob a forma de uma mulherzinha. Aliás, é preciso dizer, todo o
ensino de Lacan respira isto: o homem, o macho, não sabe se comportar,
especialmente com as mulheres, mas, em contrapartida, as mulheres são dessas
coisas que sabem se comportar. Em todo caso, elas têm mais chance que o macho
de escapar ao delírio, senão ao desregramento. Os homens terão o delírio e as
mulheres o desregramento [risos].
Que o significante no real não fale, que seja mudo, faz com que não nos
achemos nele, exceto quando fazemos construções nas quais podemos pôr o que
bem quisermos. Mas, quando se trata das coisas, o significante é mudo e só nos
reconhecemos nisso às apalpadelas. Aqui, nos reconhecemos no escuro. E Lacan
faz esta bela pergunta que ecoa muito bem quanto ao passe: “como reconhecer, no
escuro, um nó borromeano?”.
Mesmo esvaziadas, essas imagens e as confusões nas quais Lacan é jogado
pela sua prática topológica nos mostram que, quanto a essa topologia, ele quer
avançar no escuro. De todo modo, ele não lança mão das velas, das velinhas que os
matemáticos haviam elaborado para se achar nisso. E ele diz que o passe é também
3
NT : c’est une elle – é uma asa –, no orig. Lacan joga com a homofonia entre elle, ela e
aile, asa.
um esforço para se reconhecer no escuro, entre si, ou seja entre saberes, mas desses
saberes que não falam. Isso nos exige suavizar o tom do que eu chamaria a
ideologia do testemunho.
Eu fiquei sabendo, através de Pierre-Gilles Guéguen, que numa reunião em
Madrid utilizaram certas considerações minhas sobre o passe feitas nesse ano, a
partir do ultimíssimo Lacan. Tudo aquilo que faz esquecer que se trata de um
reconhecimento no escuro, de apalpadelas no escuro é, com efeito, delírio. Há, é
claro, uma tensão, e até mesmo uma contradição, entre a apalpadela no escuro em
que consiste a análise e o final da análise. E em seguida, há a exigência do
testemunho, a exigência de que isso fale, exigência que se faz ouvir, que se fez
ouvir, que se impôs em uma certa comunidade analítica. Essa exigência é, sem
dúvida, da ordem daquilo que Lacan chama, aqui, o simbólico, ou seja, fala muito,
mas só diz mentiras, ou melhor, só pode dizer mentiras. Então, há uma distância a
tomar e é nesse contexto que temos de nos haver.
Gostaria de explicar em quê Lacan podia dizer que a psicanálise era uma
mágica, seu conceito de magia. Eu queria ainda explicar um certo número de coisas
mas acho que a hora me obriga a terminar por aqui. É na semana que vem que eu
continuo ? Estão me dizendo que sim. Então, vocês só terão de esperar uma semana
para a seqüência das operações.
É isso.
Tradução: Maria de Souza
Revisão: Vera Avellar Ribeiro
15ª lição do Curso - 23.05.2007
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
LACAN ABALA AS
COLUNAS DO TEMPLO DA PSICANÁLISE
Jacques-Alain Miller
Na vez passada, eu comparei Lacan, o ultimíssimo Lacan, a São Tomás, aquele
que, no fim de sua vida, recusa o conjunto do que havia podido elaborar, construir,
elucubrar – no simbólico –, e o rejeita como se fosse lixo.
Mas Lacan é também, como fiz entender, aquele que abala as colunas do
templo, do templo da psicanálise, fazendo-o desabar sobre ele mesmo. Há uma
vantagem nisso. É que pelo próprio desmoronamento, as colunas que pareciam ali
estar desde sempre a sustentar a casa que habitamos se tornam visíveis. Nós nos
damos conta do que sustentava a construção.
Eu vejo claramente o que se poderá dizer, doravante, do ensinamento de Lacan,
e também o lado de onde isso virá: se dirá que esse ensino termina num fracasso.
Eu considero as coisas um pouco distintamente. Esse ultimíssimo ensino é antes
uma revelação, a revelação de um impasse consubstancial à psicanálise.
O que se chamava – Lacan enfatizou isso, mas foi Freud quem primeiramente
o formulou – o impossível da psicanálise é, nesse ultimíssimo ensino, posto à luz,
explicitado, tornado visível e quase palpável. Isso nos dá algo como uma
decomposição espectral do que é o ensino de Lacan e, no meu entender, ainda não
terminamos de derivar as conseqüências desse impasse trazido à luz. Se necessário,
ele é do tipo de nos deixar novamente apaixonados pelo que Freud e Lacan
puderam edificar sobre o fundamento desse impasse.
Eu disse Sansão porque eu poderia também realçar o detalhe de que Sansão,
naquele momento, estava cego, o que é consoante com a questão formulada na
última vez: como reconhecer um nó borromeano na escuridão?
Era preciso entender – eu o indiquei –, reconhecer um saber no escuro. Essa
era a definição que o ultimíssimo Lacan dava do passe: a prova de validação do fim
de uma análise. Mas é também referida a toda uma psicanálise: ela transcorre na
escuridão, num escuro, esperamos, listrado de lampejos.
Esse na escuridão dá, em minha opinião, o sentido do retorno à “Carta
roubada” que se realiza num capitulo do Seminário 24. A “Introdução ao
Seminário da “Carta Roubada” expõe, efetivamente, o que é um saber nos termos
de uma cadeia determinada, ou pelo menos parcialmente determinada.
Uma cadeia que, num certo nível de elaboração da sucessão de mais e de
menos –
não no nível mais baixo aonde é o aleatório que prevalece, o nível mais baixo é o
que ilustra a moeda na qual a aparição de um lado ou de outro é imprevisível e sem
lei – aparece uma lei de formação, um algoritmo, digamos.
O passe, idealmente, seria a apresentação de um tal algoritmo – o algoritmo de
seu inconsciente, por assim dizer – em plena luz. Seria o fato de um sujeito que
chegou a conhecer seu inconsciente como um saber determinado. Lacan teve
ternura pela metáfora das luzes. Ele próprio se apresentou como quem trabalha
numa empreitada em que buscaria fazer penetrar as luzes numa rede na qual, até
então, elas nunca haviam aparecido.
Quando retorna à “Carta Roubada” e à sua “Introdução” no Seminário de
“L’insu que sait de l’une bévue”, ele não desmente essa definição do saber, mas,
antes, o qualifica como saber absoluto.
Trata-se de um saber absoluto que, como eu o leio, nada tem a ver com o de
Hegel, ainda que, considerando o fato de não se saber exatamente o que é o saber
absoluto de Hegel e que isso serve à imaginação, eu não possa ser definitivo quanto
a esse ponto. Sim, vejo inclusive como, se eu me esforçasse mais, eu poderia dizer
que é o mesmo. Todavia, o saber absoluto, quando ele qualifica essa construção
matemática elementar erigida no início de seus Escritos, significa, antes de tudo,
que esse saber funciona sozinho, ou seja, ele é separado de todo o resto.
Isso, tal como Lacan o retoma. Na época em que seu delírio começava, se
estabelecia, ele não o teria qualificado de absoluto. Pelo contrário, ele fazia dele o
paradigma – como se diz –, o ponto ideal sobre o qual deveria se regular a escuta
psicanalítica.
Ele supunha esse saber engrenado na relação analisante-analista. É uma ênfase
completamente distinta do que seria qualificar esse saber como absoluto. Com
efeito, isso põe em questão o acesso a ele que nos é possível arranjar. E assim,
admitindo em seu comentário último de “A carta roubada” que há simbólico no
real e, cheguemos mesmo a dizê-lo, que o real é o lugar do simbólico, apesar disso
ele enfatiza – eu o lembrei da última vez – que ali o significante é mudo. Por mais
que o significante tente participar do real – se o admitirmos –, mesmo assim o real
não fala. Essa proposição, “o real não fala”, parece-me atravessar todo o último
ensino de Lacan, os dois últimos Seminários que estou triturando.
Não se trata de uma proposição submetida a variações, como outras, não se
trata de um ensaio de formulação. Eu lhes mostrei, oportunamente, como teses
contraditórias de Lacan deveriam ser entendidas a partir de um percurso feito por
ele de soluções possíveis experimentadas diante de uma dificuldade. Mas, aqui, ele
está às voltas com “o real não fala”. Eu concordo – enfim, estou de acordo com
vocês, com o que suponho vir de vocês – que essa noção é bem singular, ela nos
pega a contrapelo. É uma proposição que derruba uma coluna do templo.
Isso já implica que só podemos nos haver com esse real na escuridão, não na
claridade. Isso introduz a psicanálise como uma prática tateante, bem longe, ao
avesso dessa imagem da psicanálise como algorítmica que era a imagem dada pela
introdução de “A carta roubada”, e que prometia uma operação interpretativa, cheia
de segurança, inflada de uma arrogância cientista.
Mas o que estou dizendo? Deus meu!
É certo que esse ultimíssimo Lacan nos conduz a críticas muito mais severas e
mesmo mais selvagens do que jamais se tentou contra ele. Pode-se dizer que
encontramos um exemplo dessa prática tateante no manejo dos nós e dos toros. Eu
sublinhei que Lacan ali se abstinha de fazer referência ao que se tinha podido
elaborar de algoritmos sobre as figuras topológicas.
Então, o real não fala – aqui vocês verão que eu chego a dizer algo de claro,
simples, mas é preciso chegar a essa simplicidade – nos indica o valor a ser dado à
primazia da escritura que vai caminhando no ensino de Lacan até chegar ao seu
ápice em seu ultimíssimo ensino. Pois, por mais suspeito que ele se torne com
relação à formulação de teses que aparecem nesses dois últimos Seminários,
freqüentemente como tentativas, arranjos transitórios, frágeis, nem por isso ele
deixa de manter com ênfases diferentes que o inconsciente tem a ver com o escrito.
Disso ele fornece enunciados, proposições diferentes, mas o fio é este: trata-se do
escrito. Não se trata de matemática, não se trata de lógica, de gramática, nem
tampouco de poesia, mas, ainda assim, trata-se do escrito. Isso quer dizer que não é
a fala. E, se é o escrito, é no sentido em que isso não passa naturalmente para a
fala. Que caminho percorrido, 180o!
Na vez passada, eu lembrei a fórmula: “o inconsciente estruturado como uma
linguagem” e mostrei rapidamente como essa estrutura de linguagem fora abalada e
depois apagada.
Há uma outra, uma grande fórmula lacaniana, coluna do templo, por onde era
preciso passar para entrar, no umbral do templo: o inconsciente é o discurso do
Outro. Toda ambigüidade se encontra na palavra discurso. No contexto, é difícil
duvidar que isso queira dizer fala, fala ordenada. E, com efeito, o inconsciente
lacaniano – foi dali que ele partiu – era feito de falas.
De tal forma que ele podia valorizar a continuidade entre o discurso do
inconsciente e o discurso do analisante e, por pouco que o analista se situe no lugar
do Outro, como ele se exprimia, essa continuidade era a do discurso do analista e
do analisante.
O emitente recebe do receptor sua mensagem sob uma forma invertida. Mas a
inversão é o nome da continuidade. Ou seja, é a mesma coisa, com a diferença de
que é preciso interpretá-lo: significa passar da negação à afirmação? Ou será que,
ao contrário, seria uma mudança de direção, etc.? Inversão supõe continuidade.
Desde então se abria, efetivamente, uma doutrina da operação analítica, uma teoria
e o manejo, no quadro, de figuras e, desde já, duas figuras cujo modelo, a
referência, era a comunicação.
O esquema L, o primeiro andar do grande grafo, o segundo grafo, tudo isso são
esquemas da comunicação. E o que nessa ordem de idéias parecia ser o cúmulo,
fornecendo o paradigma da interpretação analítica nos seus efeitos transformadores
do sujeito, era a proposição performativa, diríamos nós: tu és minha mulher.
A fórmula que resume essa orientação, fórmula que é quase um desabafo, é:
“isso fala”. Quanto a mim, isso me faz pensar numa réplica num filme de Vittorio
de Sica, que assisti quando criança, no qual, num certo momento, a população se
reúne dizendo: “Miracolo! Miracolo!”: isso fala! É sobre esse entusiasmo que cai a
ducha fria: o real não fala. Aqui, nada de milagre, nada de Deus para fazer falar o
real.
O ultimíssimo Lacan está trabalhado e mesmo sobrecarregado de trabalho.
Quanto a mim, sou obrigado a lhes comunicar tudo isso num tom alegre por causa
de Luis Solano que me aprecia quando estou alegre!
Lacan começa freqüentemente seus Seminários dizendo: “eu gostaria tanto de
não fazê-lo”, porque ele não é um mensageiro de boas novas. A notícia que ele traz
é: “isso não se comunica” e, quando se comunica, verdadeiramente não se
compreende por quê, nem como. Aqui se pode dizer: Miracolo! Mas não nadamos
no milagre, agarramo-nos nos galhos de certas exceções. E isso caminha na cachola
de Lacan, se posso me exprimir assim, após pelo menos o Seminário: mais, ainda e
sua última lição que evoquei da vez passada. Mas, enfim, isso já está em marcha no
Seminário.
Em Mais, ainda ele já diz: a lalíngua não serve ao diálogo. Mas o que ele de
fato quer indicar com a palavra lalíngua, escrita num só termo, sem distinguir o
artigo do substantivo, é que ela serve ao gozo. É a partir da promoção do gozo no
ensino de Lacan que a referência à comunicação começou a se dissolver, o gozo
tornou-se um dissolvente conceitual e isso se compreende porque, digamo-lo
assim: o gozo não se comunica. É o paradigma evidenciado por Lacan, a esse
propósito, no que tange à relação das mulheres com o gozo delas, ou seja: elas nada
dizem a respeito, elas não sabem dizer nada a respeito.
Bom, isso está para ser verificado. Eu tentei, ainda esta semana, suplicar a uma
pessoa para que me dissesse algo a respeito. Pareceu-lhe suficiente dar-me um
sorrisinho de Gioconda. Precisaria, para estar mais certo da observação de Lacan,
empanturrar-se de literatura erótica feminina que, hoje em dia, conhece um certo
desenvolvimento.
Tudo o que disso pude ler, que não é muito, não me parece decisivo. Ou
acrescenta certas gotas de doçura e de ternura, se assim posso dizer, ou acaba
levando ao sadismo das descrições masculinas. Se alguém dentre vocês tiver uma
referência para me indicar, eu ficaria maravilhado.
De todo modo, para Lacan isto é, ainda assim, o próprio paradigma da relação
com o gozo, a saber: desse lado, isso não fala. Em contrapartida, do lado do amor,
sem dúvida, isso fala, remete às mentiras do simbólico. Sim, seria preciso
acrescentar o lado masculino que é muito orientado para o gozo do Um, mais do
que para o gozo do Outro, ou seja, orientado para o falo e para a contabilidade.
Se quisermos cogitá-lo, as fórmulas quânticas da sexuação elaboradas por
Lacan nos seus Seminários 18 e 19 e também em Mais, ainda, que ele transcreveu,
desenvolveu em seu escrito “O Aturdito”, essas fórmulas mostram antes que o
gozo encerra cada um dos sexos em si mesmo. Aliás, essa é uma das três lições que
Lacan extrai no fim desse escrito sob a forma: não há diálogo entre os sexos.
Isso não é evidente, nós papeamos. Não faltam discursos que se enderecem
indefinida e indiferentemente aos homens e às mulheres – trabalhadoras e
trabalhadores, eleitoras e eleitores!.
Vocês observam que a idéia de que há duas espécies, ali, progride; aliás, isso
embaraça enormemente o discurso político: “Para todas elas e para todos eles, dez
vezes seguida...”. Nada de diálogo entre os sexos deve ser ouvido, parece-me, num
nível que visa o gozo que não se comunica, e no qual o gozo do Um não assegura
nada quanto ao gozo do Outro.
Do amor, Lacan pôde dizer que ele era sempre recíproco, tendo recebido essa
fórmula, parece-me, de um de seus amores de juventude. Mas não se dirá, senão
para dar risadas, que o gozo é sempre recíproco.
Assim, a promoção da categoria do gozo, no ensino de Lacan, vai contra a
comunicação, abala sua coluna, as duas colunas – sim, as duas colunas e o arco do
grafo do desejo –, e já põe no horizonte o autismo, sobre o qual ele se questiona no
Seminário 24 para desmentir que a psicanálise seja um autismo a dois. Enfim, é
sobre esse fundo que ele se debate.
E se vê bem que ele tenta, num momento, criar a categoria do gozo do Outro a
partir do modelo do discurso do Outro. Ele chega à conclusão de que essa
categoria do gozo do Outro não se sustenta, não funciona, é vazia. No fundo, ela se
sustenta fantasmaticamente na relação do gozo feminino com a posição de Deus.
O caráter dissolvente da categoria do gozo com relação ao aparelho conceitual
se exerce também na noção de objeto a que é moldado sob o efeito de sentido,
como eu dizia da outra vez.
O objeto a, como sabemos, emergiu primeiramente como objeto metonímico
no Seminário 5: as formações do inconsciente. Lacan o integrou aos esquemas da
comunicação e o recolocou como uma espécie de efeito de sentido, talvez um
efeito de sentido real, etc.
Em Mais, ainda, no capítulo VIII que é verdadeiramente a porta de entrada
para o seu último ensino, Lacan traça um esquema do qual desprende as três letras
– I S R –, imaginário, simbólico e real, e dá um sentido giratório ao vetor que religa
esses três pontos. Este aqui.
I
Eu já chamo a atenção de vocês sobre a linha horizontal na qual o simbólico se
dirige para o real. Isso é uma linha de fundo. Confrontar o simbólico e o real até
ver, em seu ultimíssimo ensino, o simbólico fraquejar e mesmo, de certa forma,
desprezá-lo.
Aqui, já se tem a direção do simbólico para o real, movimento que se conclui
no ultimíssimo ensino. Então, é nesse caminho que Lacan situava o objeto a como
o que se pode apreender de real no simbólico, mas já enfatizando, através dessa
posição, o caráter ambíguo dessa categoria.
Se olharmos as suas asas e se olharmos as suas patas, as coisas se passam
diferentemente. Do lado das asas, isso voa com o simbólico, seus discursos e suas
mentiras; do lado das patas, isso fica ancorado no real. Mas, no capítulo VIII de
Mais, ainda, Lacan – foi o que me reteve na época, ainda que formulado em duas
frases – recusa o objeto a. Ele o recusa considerando que, em relação ao real, ele se
revela como um falso ser, isso não pode, diz ele, sustentar-se na abordagem do real,
sem dúvida, precisamente, porque isso conserva o efeito de sentido.
Nesse capítulo, Lacan já estava na via de uma cisão entre o real e o sentido. Ele
a explicitará em seu ultimíssimo ensino, dizendo – eu o havia sublinhado um pouco
antes esse ano o sentido é o Outro com relação ao real.
Ele podia, então, para se segurar nos galhos, retomar e validar sua fórmula,
segundo a qual o analista põe objeto a no lugar do semblante, o que é o mais
conveniente com seu modo de existência, ou seja, como tal, não passa de um
semblante. E ele acrescentava que a partir dali o analista podia – eu o cito –
interrogar, como saber, o que acontece com a verdade. Nessa interrogação já há o
que surgirá como problema: como se pode passar da verdade ao saber, na análise?
O simbólico fala, é a condição para que haja verdade, verdade rodeada de
mentiras à qual só se acede pela mentira, ela não é nada mais do que uma espécie
de mentira, uma vez que ela é variável. De todo modo, há verdade quando o
simbólico fala, há lampejos que listram a escuridão – dizia eu ainda há pouco –, ao
passo que o real é mudo, inclusive o saber incluído nele. E saber que ele inclui,
estamos no escuro. É um saber absoluto, absolutamente separado de vocês.
Então, esse esquema assim orientado para ressituar elementos que pertencem
ao ultimíssimo ensino de Lacan, não é mal. Poder-se-ia dizer que efetivamente o
imaginário se dirige ao simbólico, no sentido em que o imaginariza. É o que nos dá
a fantasia, a poesia, o delírio de toda construção simbólica.
Eu também darei um valor ao vetor que mostra o real se dirigindo para o
imaginário, sobre o qual eu disse que me parecia ser o movimento que anima o
Momento de Concluir de Lacan.
Isso me fez escolher como título do último capítulo: “Imaginar o real”. Sim, eu
validei esse título. Estou mais chateado com o título do primeiro capítulo que
responde ao vetor imaginário-simbólico, mostrando uma continuidade entre o
imaginário e o simbólico, que trata de delírios, inclusive o da ciência, mostra o
caráter imaginário da geometria euclidiana, que, no entanto, é paradigma do
simbólico. Eu acabei chamando isso de “Fantasias do simbólico”, no plural. Não é
que isso não seja exato, mas não está exatamente dessa forma no próprio texto de
Lacan. Portanto, eu ainda reflito sobre esse título. Eu gostaria de fazer melhor e
também de que se sentisse como o último capítulo do Momento de concluir ecoa
com a posição tomada no primeiro capítulo.
Uma outra coluna do templo que é também abalada, a saber: a coluna da
necessidade e seu correlato de impossibilidade. É a coluna do que Lacan chamava,
em “A carta roubada”, a determinação simbólica, e que punha no horizonte o
paradigma do algoritmo. O que abala essa coluna? A promoção cada vez mais
acentuada no ensino de Lacan da categoria da contingência.
Isso já está claro em Mais, ainda, quando Lacan, descontente com o adjetivo
arbitrário que Saussure outorgava ao significante, diz: “teria sido mais proveito
adiantar o significante da categoria do contingente”. E foi assim que ele abalou a
primazia, a necessidade do significante fálico, tentando demonstrar que isso não
passava de contingência, que, com a psicanálise, isso cessa de não se escrever.
Lacan chama contingência tudo o que submete a relação sexual a sempre estar
sob o regime do encontro. Vocês sabem também que Lacan ensaia essa
contingência por meio de diferentes categorias, conceitos, da psicanálise. O
encontro é um fato de acaso. Dar a primazia ao encontro é retornar ao andar mais
baixo dos mais e dos menos sobre o qual se tinha construído o edifício da
determinação simbólica.
Assim, à medida que Lacan promove a categoria da contingência, ele desfaz,
como Penélope, seu tecido de determinações. Isso quer dizer que o encontro opera
no escuro. É ali que se poderia inscrever, que ganha valor, a tese, fugidia sem
dúvida, mas que assombra o ultimíssimo Lacan, ou seja, a tese da análise magia.
Evidentemente, a questão já havia sido formulada a Lacan há muito tempo,
pois é nessa direção que Lévi-Strauss insistia em inscrever a operação analítica
comparando o psicanalista ao xamã. Na época, era uma gentileza feita por ele a seu
amigo Lacan, que nem por isso perdeu o equilíbrio e que, nessa ocasião, havia
posto em música o imaginário, o real e o simbólico.
Mas é no último texto dos Escritos, “A ciência e a verdade”, que Lacan retorna
à magia. E me parece que isso é o que o inspira em seu ultimíssimo ensino a evocar
a magia a propósito da psicanálise.
A magia restabelece a comunicação. Ela restabelece uma ligação entre
significantes. Lacan diz exatamente: “ela supõe o significante respondendo como
tal ao significante” (Eu os remeto à p. 871 dos Écrits).
A hipótese da magia tem a ver com algo que, de saída não fala, está doente...
tem relação com um disfuncionamento. Supomos então que, com o significante,
poderemos fazer a Coisa responder, a Coisa que não fala.
Sa → Chose
Incantation → nature
(encantamento) (natureza)
Aqui, a Coisa toma o valor da natureza e o significante tomará uma forma
encantatória para mobilizar o significante da natureza. E então, explicita Lacan: a
Coisa, desde que fale, responde às nossas altercações. Aqui, portanto, chegamos a
fazer falar o real mudo. E é notável que o ultimíssimo Lacan rebata a psicanálise
sobre uma operação desse tipo.
Isso supõe que o xamã, do lado do encantamento, se engaje pessoalmente, é
preciso que ele se ative, como eu aqui, que ele sue a camisa. Portanto, isso implica
conduzir o corpo e pagar com sua própria pessoa. Desse modo, por meio do corpo,
ele demonstra fazer parte da natureza: o emitente faz parte da natureza.
A isso Lacan opõe o sujeito da ciência que seria o suposto da experiência
analítica, o sujeito da ciência que não pertence à natureza. E o próprio analista
antes subtrai seu corpo do que o acrescenta, apesar de ser preciso que ele ali esteja,
ainda assim há esse mínimo. Sua argumentação da p. 871 é absolutamente válida se
pusermos em foco o sujeito da ciência, mas trata-se de algo totalmente distinto
quando se fala do falasser.
O falasser é uma categoria que inclui o corpo, de tal modo que não basta
esvaziar o corpo na análise dizendo que é um resíduo. O corpo, ao contrário,
quando se trata de um falasser, é um fundamental, como hoje se diz.
Poder-se-ia dizer que o analista também não somente faz parte da natureza pelo
suporte corporal que ele leva, como também faz parte da cultura. Por isso Lacan dá
importância a fatores tais como o prestígio e o peso social, na eficácia da
interpretação.
Sem dúvida, essa é também a razão pela qual ele disse uma vez: para saber o que
eu entendo por psicanálise, é preciso entrar em psicanálise comigo.
Efetivamente, não há nada mais pesado do que o lado prestígio e peso do
ultimíssimo Lacan. É preciso corrigir isso pelo fato de que a debilidade mental é
tamanha que o prestígio se apóia muito bem nos semblantes assim sustentados.
Vocês o constatam na elevação das grandezas sociais. Vocês tomam um de seus
representantes assim, ao acaso, o tornam presidente, ele faz exatamente o mesmo
ofício que os outros e é capaz de se fazer de besta como os outros. O lugar e o
semblante geram seu peso e a admiração que o acompanha.
Essa é a operação que se pode qualificar de mágica: “conseguir fazer falar o
real”. Lacan a aborda com o termo escroqueria e, num certo momento, se serve
dele para adornar a psicanálise e formular a questão: como superar a cisão do real e
do sentido quando ela é o contrário da prática psicanalítica que supõe que as
palavras têm um alcance no real?
Nesse ponto, não se trata do fracasso de Lacan, é uma antinomia, uma
dificuldade própria à psicanálise. Um dos esforços de Lacan é – eu o assinalei de
passagem – vencer a cisão entre o real e o sentido mediante o que seria a exceção
do sintoma, se o sintoma fosse a única coisa que conserva um sentido no real.
Assim, o sintoma, no fundo, poderia responder – como a Coisa do Xamã ao
encantamento – à interpretação tal como o corpo responde à sua ressonância. Aqui,
é preciso dar lugar à promoção do corpo – realizada no ensino de Lacan e que
emerge em seu ultimíssimo ensino – que está situado, eu lhes lembro, na
triplicidade de Lacan, no nível do imaginário.
O Momento de Concluir é especialmente marcado pela promoção do
imaginário através das manipulações de figuras que Lacan multiplica. Há um
tropismo rumo ao imaginário que é uma espécie de retorno às fontes, para Lacan,
posto que ele partiu do imaginário e a ele retorna numa forma diferente, muito mais
elaborada, de ordem matemática, se assim quisermos.
Eu digo “se assim quisermos” porque, de fato, essas figuras estão bem
distantes das matemáticas. A promoção do gozo, a da contingência, do corpo se
conjugam numa promoção do imaginário que me faz pensar que é assim que ele
responde ao apelo lançado por ele próprio no Seminário 24, ao final de L’insu que
sait de l’une-bévue, em que ele espera um significante novo. Outrora eu já havia
dado como título para esse capítulo, quando eu o publiquei em Ornicar?: “Rumo a
um significante novo”.
Pois bem, a reposta última trazida por O Momento de concluir é que esse
significante novo não é um significante, é, antes, uma imagem.
Continuarei na semana que vem com O Momento de concluir.
Tradução: Antonio Teixeira
Revisão: Vera Avellar Ribeiro
16ª lição do Curso - 30.05.2007
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
DEPOIS DO SINTHOMA, UM ENGANO
Jacques-Alain Miller
Eu me dei conta de que procurava por imagens de Lacan, do último Lacan,
aquele que está às voltas com o silêncio do real. Eu não as procurei, eu as
encontrei: São Tomás e, depois, Sansão. E encontrei uma terceira, Montaigne, O
Último Montaigne, que constitui o título de uma obra crítica de uma senhora
Nakam.
Nakam
Eu o li ontem, pensando em Lacan.
Esse último Montaigne, para dizê-lo em uma palavra, fez alguns rabiscos no
exemplar de seus Ensaios (Essais), na última edição publicada quando ele ainda
era vivo, em 1558.
Ele morreu em 1592 e, durante esses quatro anos, ele preencheu as margens,
especialmente de um exemplar que serviu, até pouco tempo, à maioria das edições
publicadas no século XX, o exemplar conhecido como o de “Bordeaux”.
Agora, parece que se confia mais na edição póstuma dada por aquela a quem
ele chamava sua filha de aliança, a senhora de Gournay. Em seus últimos anos, ele
encontrou nela a admiração e a escuta atenta que, parece, o preencheram.
Então, interessaram-se no conjunto desses acréscimos, que ele chamava de
prolongamentos (allongeailles), é um pouco como os papeizinhos de Proust. Ele os
chamou, em algum lugar, os “sobrepesos” que vêm fazer inflexões, corrigir,
mesmo que não haja cortes, as opiniões que ele pôde enunciar. Isso porque, no
fundo, não se pretendia outra coisa além de enunciar sua opinião e em toda a
variedade que ela podia conhecer.
O interesse desse Último Montaigne, falo do livro, está em considerar que os
acréscimos de quatro anos formam um outro texto que tem sua continuidade e seus
efeitos de transformação.
A bem dizer, desde o início do século XX distinguiu-se sistematicamente os
extratos dos escritos dos Ensaios (Essais). Esse é o extrato dito C que, de certo
modo, produz um efeito quando se segue à risca o fio desses prolongamentos.
A crítica que eu citei diagnostica em Montaigne – ela não pretende a exatidão
clínica – uma crise depressiva múltipla, tanto política como afetiva e física, uma
atitude pessimista e misantropa que se afirma em Montaigne. Isso não é aparente
quando se lê o texto sem colocar à parte o período de 1588-1592, já que Montaigne
escolheu não modificar seus impulsos otimistas como, por exemplo, aquele que
termina o último ensaio do volume “Da experiência”, que se conclui com um hino
a Apolo tomado emprestado de Horácio.
Mas, quando viramos as cartas e distinguimos o fio negro desses últimos anos,
há alguma coisa do ultimíssimo Lacan, já que o próprio Montaigne viu seu
desaparecimento, e não se pode pensar que Lacan tenha escolhido o título
Momento de concluir sem essa perspectiva, mesmo que ele próprio tivesse ficado
mudo acerca disso.
“Doravante”, disse Montaigne – o último Montaigne – “só penso em terminar, ter
minhas últimas férias”. É uma frase do extrato C do ensaio XXVIII do Livro II, que
se intitula “Toutes choses ont leur saison”.
Há também este adendo no famoso ensaio “De la vanité”, do Livro III, bastante
lacaniano: “Junto à aventura tenho alguma obrigação particular de só dizer pela
metade, de dizer confusamente, de dizer de maneira discordante”. A crítica, que
Lacan parece não ter lido, supõe que esse “dizer pela metade” implica no fato de
que Montaigne teria alguns segredos que não liberaria.
Com efeito, em uma passagem, Montaigne deixa entender que há um segredo o
qual ele confiou apenas a seu amigo La Boétie. Mas, para nós, esse dizer só pela
metade ressoa de outra forma: é o destino da verdade lacaniana de só se dizer
assim.
E, no ultimíssimo ensino de Lacan, acrescenta-se a esse dizer pela metade o
“dizer de maneira confusa”. Eu não o escondi e, aliás, Lacan formula que o escrito
como tal é confuso. Isso é assumido por Montaigne. Quanto às discordâncias do
dizer, elas são múltiplas no ultimíssimo ensino. Quando vocês o tiverem nas mãos,
revisado, estabelecido, redigido por mim, vocês o sentirão, talvez melhor do que
quando eu exponho, ainda que quando exponha, eu procure não pôr essas
discordâncias de acordo, mas sim, fatalmente, organizá-las, a tal ponto que pude
falar, num certo momento, da via romana que tracei desses entrelaçados.
Destaquei ainda este prolongamento de Montaigne – em seguida, passaremos
diretamente a Lacan: “Há tanta coisa nessas memórias, se as olharmos, que acharão
que eu disse tudo ou designei tudo. O que não posso exprimir – disse o último
Montaigne – eu o mostro com o dedo”.
Aqui, acreditaríamos encontrar uma prefiguração da última proposição do
Tractatus lógico-philosophicus de Wittgenstein.
Com efeito, no silêncio do real, Lacan mostra com o dedo, aponta com o dedo
as figuras traçadas no quadro. Tais figuras, quando complexas, são trazidas sobre
rolos brancos. Isso nos serve para relembrarmos de como ensinavam os antigos
gregos, os primeiros matemáticos. Eu evoquei isso em outra oportunidade, durante
um colóquio sobre o real em matemática. Eles traziam, em fanfarras, se assim
posso dizer, grandes painéis brancos sobre os quais eram traçadas, e de modo a não
poderem ser apagadas, as figuras geométricas que eram a matéria de suas
demonstrações. Eram, dizia-se, diagramas sobre os quais se inscreviam as letras à
medida que o curso ia se desenvolvendo.
É a ocasião para nos lembrarmos de que Lacan sempre apoiou seu ensino no
quadro negro, produzia traçados no quadro negro. Simplesmente, até seu último
ensino, isso era tão misturado com as palavras que se podia ali desconhecer sua
própria instância. É o que hoje chamaríamos visuais.
Hoje, quando temos uma conferência a fazer, perguntam-nos de antemão se
temos visuais para serem projetados. Pois bem!, essa técnica não estava
desenvolvida na época de Lacan, mas ele tinha, sempre teve visuais.
Ele mesmo fez tudo para que não se isolasse a instância própria quando
enunciava, por exemplo, que a leitura de tal esquema de seu grande grafo exigia
estar atento à mínima nuance de seu estilo. Isso era um convite para que só
víssemos na representação o acessório. É o que se inverte no ultimíssimo ensino.
São, antes, falas, oratórias, que Lacan emite com lentidão – e vejam como sou
camaleão, eu mesmo me deixo penetrar por essa lentidão –, são essas próprias
palavras que aparecem acessórios – porque eles nos olhavam e ainda nos olham –,
tendo em vista os traçados complicados que ele trazia consigo.
Temos algo desses traçados desde a organização de mais e de menos que Lacan
forjou na sua “Introdução do Seminário ‘A carta roubada’”, essas seqüências de
símbolos se organizam em um grafo.
A esse propósito, gostaria de corrigir alguma coisa que tive de dizer um tanto
rapidamente nas vezes passadas, quando coloquei em destaque a elucubração em
patamares da determinação simbólica, a partir de um nível zero, um nível real que é
aquele onde, em função do que se pode imajar da moeda que se lança, transcrevese, segundo seja cara ou coroa, mais ou menos.
E, com efeito, aqui, nada de ligação de uma jogada à outra. O que se obterá na
vez seguinte não está determinado pelo lance anterior. Portanto, aqui, há ausência
de sintaxe. O que é exato, mas é necessário um prolongamento, se assim posso
dizer.
Lacan assinala, um pouco mais tarde, creio, que é justo por se ter a idéia prévia
da sintaxe que se pode dizer que, aqui, ela não está. Portanto, a noção de sintaxe,
ou seja, de ligações determinadas, precede a produção do nível zero de uma
seqüência a-sintáxica. Isso não muda nada, no fundo, o que pude dizer a vocês, mas
mantive esse acréscimo que mostra muito bem a primazia para Lacan, para o Lacan
que forjou esse apólogo, a primazia do simbólico, pois o que se pode distinguir
como puro real aleatório depende, contudo, da prévia noção de sintaxe. Portanto,
por mais formalizada, matemática que seja esta construção de mais e de menos, ela
desemboca num visual.
Inútil dizer que o esquema construído por Lacan no Seminário 1, o esquema do
espelho destinado a ilustrar a identificação e suas transformações é, por excelência,
um visual. Trata-se, inclusive, de um visual sobre a visão.
Se tomarmos o Seminário 4, pois bem, encontramos nele, como visual, um
quadro, o quadro permutativo que instala a privação, a frustração, a castração e, no
Seminário 5, acompanhamos a construção minuciosa do grafo que, dotado
inicialmente de um primeiro patamar, acha-se em seguida redobrado por um
segundo, e isso prossegue no Seminário 6. Eu não vou assim enumerar, um após o
outro, os Seminários de Lacan. São raros os que não articulam e não manifestam
um visual, alguma coisa que se mostra com o dedo, como disse Montaigne.
Tem-se ali uma manipulação do que se poderia chamar, com um termo do
ensino de Lacan, de semblantes que estão, de alguma maneira, postos no lugar de
real. O historiador da ciência que já citei, Netz, viu muito bem a pertinência disso
para os matemáticos gregos, os antigos.
Netz
A introdução dos diagramas tornados letras permite a um universo de discursos
se desenvolver, o que faz o impasse sobre a questão ontológica. Interessam-se pelo
que é real e impossível, não se formula a questão do ser. Acreditei reconhecer nisso
a tendência principal que anima Lacan em seu uso dos visuais. Então, distingamos
duas modalidades desse uso dos visuais.
De início, como lembrei, Lacan abordou o simbólico como uma ordem. A
expressão “ordem simbólica” repercutiu com toda a força, já que a encontramos
ainda utilizada abundantemente em nossos dias, concernindo ao que seria uma
lição conservadora da psicanálise, do gênero: “não tocar na ordem simbólica”.
Desde que se queira manifestar um pouco de inventividade, de criatividade, na
manipulação, por exemplo, dos semblantes do casamento ou da filiação, Aah!:
Ordem simbólica!, ninguém prescinde!
Sim, é triste, é triste esse uso reacionário da psicanálise. E é divertido também
porque é absolutamente derrisório, no que concerne a parar os potentes
movimentos históricos, diferentemente bem informados de que ali só há
manipulação de semblantes com a inércia tradicional, e que não cabe sacralizar a
ordem, salvo se a sacralização é um negócio de vocês, o que também existe.
Precisamente porque os semblantes são apenas isso, desenvolveu-se na história
uma potente sacralização para evitar que isso caia. Enfim, como diria o ultimíssimo
Lacan: é delirante.
Na ordem simbólica, ordem quer dizer dimensão, sem dúvida. Mas não apenas.
Lacan não fez ordens do imaginário e do real, mesmo que a expressão possa surgir,
aqui e ali, como ordem imaginária, o que é apenas no sentido de registro.
Ordem, na ordem simbólica, quer dizer uma ordenação, um agenciamento
metódico. Poderíamos até mesmo dizer um computador (ordinateur). E Lacan
utilizou visuais congruentes com essa ordem: quadros, grafos, matrizes, nos quais a
permutação é sempre operatória, ou seja, ele utilizou visuais decorrentes da
combinatória.
Devemos pontuar, aqui, um desenganche que intervém quando Lacan muda de
referência, passa da linguagem estruturada como uma linguagem – é isto que passa
escamoteado quando dizemos o inconsciente estruturado como uma linguagem –
para lalíngua. Interessamo-nos apenas no inconsciente e na linguagem, e toda a
questão é saber em quê a linguagem é estruturada.
É nessa mudança que se apresenta o que chamei um desenganche,
especialmente com a última lição do Seminário 20: mais, ainda. É por essa razão
que eu datei dali o último ensino de Lacan.
Pode-se dizer que, a partir desse momento, Lacan faz uso de um novo visual
que é o dos nós. O uso desse novo visual consagra o eclipse da ordem simbólica
em sua reflexão, a ponto de o simbólico – já sublinhei isso – ali se manifestar como
homogêneo às duas outras dimensões.
À ponta dessa nova tentativa está o Seminário 23: o sinthoma. E o sinthoma
aparece assim como a categoria clínica atrelada ao visual do nó borromeano. Nesse
Seminário, as questões que relançam a reflexão são questões de arquitetura e
ligações.
Poderíamos até dizer que a grande questão tratada no Seminário com esses
visuais é: em que condições isso se mantém junto? Será que se mantém junto com
três? Com quatro? Tal é a pesquisa tateante que nele se desenvolve.
Eu coloquei à parte, vocês sabem, os dois últimos Seminários de Lacan, o 24 e
o 25. Primeiro porque o 24 introduz uma outra categoria clínica. Depois do
sinthoma, o que Lacan chama l’une bévue (um engano), que é uma tradução
fonética do Unbewusst freudiano. Se o traduzirmos semanticamente, em função do
sentido, diremos o inconsciente. Se traduzimos foneticamente – se assim posso
dizer assim – transcrevemos, dizemos um engano.
Um engano
Depois do sinthoma, um engano. Em relação a um engano, o sinthoma aparece
como uma macro unidade, que diz respeito ao inconsciente, sem dúvida, ao
inconsciente definido em O momento de concluir, como a face do real do qual se
está enredado.
Isso seria o testemunho, se fosse necessário, de que é bem sobre a via do
inconsciente real que Lacan avança em seu ultimíssimo ensino, a ponto de – nós
veremos em seguida –, o amor lhe parecer uma bizarrice, uma estranheza. Quer
dizer que aquilo que o orienta não é o que chamei de inconsciente transferencial.
Em relação a essa macro unidade, um engano é uma micro unidade que, se
seguimos a primeira lição de L’insu que sait de l’une bévue, inclui o ato falho, o
dito espirituoso e até mesmo o sonho.
Quer dizer que Lacan, com esse termo, retoma todos os fenômenos que
lançaram Freud em sua via e em função de suas obras iniciais que são “A
interpretação dos sonhos”, “A psicopatologia da vida cotidiana” e “Os chistes e
suas relações com o inconsciente”, nas quais Lacan se apoiou em seu primeiro
impulso em direção à construção da ordem simbólica.
Foi o que ele retomou no Seminário 5: as formações do inconsciente e, em
seguida, distinguiu em seu Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, da ênfase segundo a qual tratar-se-ia de um obstáculo da ordem
simbólica. Nessa época, isso já tinha sido colocado por ele em oposição com a
ordem simbólica de Lévi-Strauss.
Pois bem!, com Um engano, estamos na conclusão desse movimento iniciado em
janeiro de 1964. Quer dizer que, com um-engano, Lacan, que o desenvolve pouco
em seu ultimíssimo ensino, isola alguma coisa como – é necessário dizer alguma
coisa – uma unidade consti...tutiva - mas minhas anotações, eu havia escrito
constituinte, sim, eu havia hesitado entre estas duas palavras – do inconsciente. É
nesse sentido que Lacan pode dizer que com o seu tema do ano ele tentava, eu o
cito: “introduzir alguma coisa que além do inconsciente”.
É paralelo ao que se pode dizer de lalíngua. Com lalíngua Lacan introduzira
algo ia mais longe do que linguagem, pelo menos no sentido que, com respeito à
lalíngua, a linguagem aparece como uma elucubração de saber.
Então, com um engano, com essa unidade mínima que é um engano, é o
inconsciente freudiano que aparece como uma elucubração de saber sobre umengano. É aqui, me parece, que repousa o sentido a ser dado a esse mais além do
inconsciente. É que o inconsciente não aparece como um dado, mas sim como uma
elucubração, tendo seu ponto de partida num fato extremamente tênue, sobre o
qual se ergueram catedrais. Portanto, o ultimíssimo ensino de Lacan tem o valor de
um retorno, um retorno ao fato, à coisa mesma.
Do mesmo modo, ali onde Lacan falava de ordem simbólica – regrando-se ma
estrutura de linguagem tal como atestada pela lingüística, mesmo que ele
trabalhasse essa estrutura, a esculpisse – ali, em seu ultimíssimo ensino, ele tem de
se haver sobretudo com o corpo do simbólico que se chama lalíngua. O corpo do
simbólico no lugar da ordem simbólica.
O movimento de retorno a que me referi, é um retorno para aquém, aquém das
elucubrações. Portanto, é um discurso extremamente tênue comparado ao do
ultimíssimo Lacan, extremamente frágil, que está em uma constante relação de
vigilância consigo mesmo, sempre prestes a se agarrar no momento da
elucubração, para tentar manter-se na pureza do que acontece, do que ocorre. É
assim que eu entendo a razão de Lacan começar seu Seminário 24: l’insu, por
considerações sobre a identificação, à qual ele não volta.
Intitulei o primeiro capítulo “Ensaio de uma topologia da identificação”, por
que Lacan se propõe a ordenar os três tipos de identificações distintas por Freud em
sua “Psicologia das massas”, segundo três modos distintos de reviramento do toro.
Mas ele se interessa pela identificação na medida em que ela se cristaliza, diz ele,
em uma identidade. Ele se interessa por isso, me parece, na medida em que a
identidade só seria o produto de uma identificação.
E, precisamente, ele visa o que existe antes da identificação, se assim posso
dizer, ou seja: as unidades pré-identitárias, de tal modo que a identidade é uma
elucubração a partir de um não-identitário.
A esse respeito, a partir dos visuais, a questão assedia todo seu último ensino:
trata-se do mesmo? Quando se tem no quadro figuras complexas, isso é a mesma
coisa?
É como encenar aqui a crise de identidade quando se retornou ao aquém da
operação identificatória.
O ultimíssimo ensino de Lacan certamente se inscreve em continuidade com
seu último ensino, mas introduz um novo visual que não tem nada a ver com as
questões de arquitetura e de ligação – como foi o caso do nó borromeano em O
sinthoma –, um novo visual onde não se tem que perguntar em qual condição isso
se mantém junto. Esse novo visual é o do toro, a câmara de ar. E a quê responde
essa introdução? Pois bem, Lacan, me parece, escolheu o toro como via de acesso
privilegiado ao real.
Encontramos no primeiro capítulo de L’insu uma rápida reflexão sobre a noção
de modelo, que Lacan recusou de maneira arrogante em seu escrito intitulado
“Nota sobre o relatório de Daniel Lagache”. Foi o professor Lagache, com efeito,
que propunha modelos para a identificação. Lacan recusou essa noção em nome da
estrutura.
Quando se faz referência à estrutura, não se passa pelo modelo, ocupamo-nos
dos significantes que organizam o real. Eu simplifico a passagem que vocês
encontram nos Escritos.
Kelvin
Ali, ao contrário, Lacan lembra que foi Lord Kelvin – o qual, aliás, foi bastante
interessado nos nós – que esperava construir modelos permitindo prever, diz
Lacan, os resultados do funcionamento do real. Lacan nota, de passagem:
“recorremos, portanto, ao imaginário para se ter uma idéia do real”.
Essa frase, que parece qualificar, na seqüência dos enunciados, o ponto de vista
de Lord Kelvin, ganha uma outra ressonância para nós que conhecemos o título que
acreditei poder dar à última lição de O momento de concluir: “Imaginar o real”.
De algum modo, trata-se das primeiras notas da orientação do ultimíssimo
ensino. A propósito de Lord Kelvin, Lacan joga, parece-me, com a expressão se
fazer uma idéia (se faire une idée) convidando a que se compreenda (sphère une
idée) esfera uma idéia4.
esfera uma idéia
Isso é fazer ouvir que o modelo do modelo é sempre a esfera. Então, é nesse
movimento que Lacan pretende substituir a esfera pelo toro, que tem uma estrutura
completamente diferente da esfera.
esfera uma idéia
4
NT. Se faire une idée por homofonia, em francês, com sphère une idée (esfera
uma idéia). Em português, não é possível traduzir mantendo o jogo homofônico.
toro
Sem dúvida, o toro, assim como a esfera, tem um interior, à diferença do aro de
barbante puro e simples, mesmo que possamos nos servir tanto do toro como do
aro de barbante.
Vocês podem fazer com três toros um arranjo borromeano, vocês têm, com o
toro, uma figura que tem um interior, mas, tal interior é um furo distinto do
segundo furo que é o indicado pelo anel, o furo que está aberto para o exterior. É
nesse ponto que Lacan pode dizer que o toro se apresenta como dois furos em torno
do quê alguma coisa consiste.
Da esfera ao toro há uma diferença de estrutura que é, por exemplo, destacada
pelo reviramento de uma e do outro. No fundo, é o fio que Lacan segue em seu
ultimíssimo ensino. Ele tenta uma espécie de generalização do toro, a ponto que
acreditei poder intitular o segundo capítulo de L’insu que sait: “O universo tórico”.
Trata-se de uma tese de Lacan que eu retiro do Seminário: “a estrutura do homem é
tórica”.
E ele acrescenta – aqui se situa o “dizer confusamente” – que ele não o afirma,
mas podemos, eu o cito, “tentar ver onde isso se dá”. Toda uma parte desses dois
últimos anos será passada na manipulação do toro, com a idéia de que essa é uma
tentativa absolutamente inédita na história do pensamento, que o sistema do mundo
– como ele o exprime – foi, até então, esferoidal e que, para a psicanálise, ele
tentará o modelo tórico. Ele põe suas esperanças no toro. No ultimíssimo ensino,
nós temos uma multiplicidade de toros, torcidos e retorcidos de mil maneiras.
Isso ainda me dá bastante trabalho porque, a partir das palavras de Lacan, tive
muita dificuldade em recompor a figuração de que se trata. Aqui, eu ainda tropeço.
Isso me aborrece pois, além do mais, isso concerne ao que eu tinha dado muito
valor, a saber, o efeito de furo conjugado ao efeito de sentido. Lacan ilustra isso
com uma complicação tórica que não consigo reconstituir.
Aliás, há uma parte ou duas onde sou obrigado a dizer desenho para não
desenhá-lo; mas, enfim, isso me aborreceria porque eu gostaria de melhor
compreender topologicamente o efeito de furo ligado ao efeito de sentido.
Através dessa profusão de toros, surgidos de uma tentativa que Lacan pretende
absolutamente inédita, ele procura atingir o que ele chama, desde o início de L’insu
que sait, o tecido do inconsciente. Está na seguinte frase: “um sonho comporta
muitas coisas que dizem respeito ao que se pode chamar o tecido do inconsciente”.
E é sobre a necessidade de reconstituir esse tecido que O momento de concluir
chegará ao fim.
Com seus toros, Lacan busca, sem dúvida, evidenciar as modificações de
estrutura em função de cortes praticados. Mas não só. Ele confronta diferentes
representações da mesma estrutura.
Tudo se dá como se, para ele, tais diferentes representações da mesma estrutura
se sustentassem por elas mesmas. Ou seja, ele não procura reduzi-las à mesma
estrutura. É como se cada uma dessas representações diferentes – como vocês
sabem, para os nós borromeanos ele tenta várias representações do mesmo nó –
tivesse um valor. Dito de outra forma, se reflito a esse respeito, me digo que a
unidade não é mais da ordem do significante, mas sim da ordem da imagem.
A imagem aparece como uma unidade válida. A imagem aparece como um
real. Duas imagens podem ilustrar a mesma estrutura. Mas, se elas são diferentes,
elas se sustentam como tal. E elas destacam, se posso fazer um curto-circuito, um
fato clínico. Esse fato clínico domina o ultimíssimo ensino de Lacan, e chega até a
produzir no auditório fenômeno: a inibição. Inibição de imaginar, inibição no que
concerne às imagens.
A pulsão, é ainda um acordo do significante com o corpo, uma vez que se pode
mesmo evocá-la, eu lembrei isso, como ressonância. Mas o fato clínico mais
importante trabalhado por Lacan, do qual ele mesmo é o sujeito, constitui seu
patema, se assim posso dizer, é a inibição de imaginar, é a hiância que persiste
entre o imaginário e o real, quando se trata, segundo o ideal kelviniano, de recorrer
ao imaginário por se fazer uma idéia do real. Vê-se bem que, ali, o simbólico está
fora da jogada. Ele só está presente por esses palavras trôpegas que contornam as
imagens. Aliás, o simbólico tem a tendência a prosseguir no imaginário.
É isso que faz com que coloquemos em continuidade o sonho, a poesia, a
filosofia, a fantasia e o delírio, que são modos nos quais se vê o simbólico incidir
no imaginário. No sentido de Lacan, para se apreender o que ocorre em uma
análise, o que ele chama o pano/tecido de uma análise, há que superar a hiância do
imaginário e do real.
É o sentido que dou a esta proposição enigmática do Momento de concluir: “se
nós fizermos uma abstração sobre a análise, nós a anulamos”. E o que é fazer uma
abstração sobre a análise? No fundo, é ordená-la pela ordem simbólica. E o que se
perde na abstração? Perde-se o tecido, o estofo. É por isso que Lacan, em seu
ultimíssimo ensino, nos dá, com a topologia do toro, uma geometria, diz ele, do
tecido, do fio e da malha.
É por esse viés que compreendo o tempo lógico do Momento de concluir, que
está como que animado por uma asserção de certeza antecipada, que consiste, aqui,
em formular a primazia do toro. No fundo, no silêncio do real, e quando é preciso
sempre desconfiar do simbólico que mente, só resta o recurso ao imaginário, ou
seja, ao corpo, ou ao tecido.
Talvez assim e possa compreender sobre o que Lacan quis, mais além do
Momento de concluir –, continuar a falar, continuar a falar não mais dando
Seminários propriamente ditos.
Ele quis falar sobre “Objeto e representação”. E, com efeito, é a questão da
relação das diferentes representações do mesmo com o objeto do qual elas dão
distintas visões. É também seu título “ A topologia do tempo”, pois – é assim que o
compreenderia – o tempo é também um tecido. Mas é o que, na análise, obriga a
restituir um antes e um depois, que, na topologia, não é constitutivo.
Lacan não quer fazer da topologia uma elucubração, ele não lhe dá o status de
elucubração, ou, digamos, em sua elucubração ele lhe dá um valor de ser o próprio
tecido da experiência. Um tecido em que não há distâncias, um tecido que não é
governado por uma métrica. Se há uma distância, é aquela que é trazida pela
estrutura do tempo. Pelo menos é assim que entendo o título que nos resta da
intenção de Lacan: “A topologia e o tempo”.
Concluirei na próxima semana a tentativa de lhes esclarecer o Momento de
concluir.
Tradução: Luis Fernando Carrijo da Cunha
Revisão: Vera Avellar Ribeiro
17ª lição do Curso - 06.06.2007
ORIENTAÇÃO LACANIANA III, 9
O MOMENTO DE CONCLUIR
É LACAN SAINDO DA PRISÃO DO LACANISMO
Jacques-Alain Miller
Bem. Eis aqui o momento de concluir sobre O momento de concluir e, para
mim, o de lançar minha última cantiga do ano. Estou contente de ter feito o que eu
fiz este ano, porque eu não o refarei.
Quando eu reabro meu dossiê do texto estabelecido deste ultimíssimo ensino,
eu me reencontro, em todas as linhas, diante da mesma perplexidade do início. Será
preciso que eu leia meu Curso deste ano para compreender alguma coisa do
Seminário de Lacan. Como eu cheguei a esta última vez – não sei mais como –,
pois bem, eu me felicito. Todavia, uma vez mais, uma última, eu me remeto a ele.
É necessário escolher um fio, e eu tomei este.
É a mesma perplexidade? Eu gostaria sempre de reencontrar o fio de Lacan nas
lições que aparecem, às vezes, descosturadas. Eu conservo a hipótese de que há
idéias intermediárias que não são ditas, e que, se as descobríssemos, elas dariam
conta da passagem de um enunciado ao outro. Daqui a pouco darei o exemplo de
um progresso que eu fiz.
Enfim, para resumir, é necessário escolher, puxar um fio, e eu puxo este aqui:
não importa o que Lacan diga contra a lógica, e Deus sabe que ele diz muito contra
ela em seu ultimíssimo ensino – não em extensão, há somente algumas frases, mas
em intensidade – é, no entanto, à lógica que ele evidentemente recorre para situar
todo seu último ensino, pois ele o colocou sob a primazia do momento de concluir.
Sobre o Momento de concluir, sobre esta expressão e seu conceito, que são
dele, ele não diz nada no seu Seminário 25, somente que faz dele seu título, depois
de ter confiado aos seus ouvintes, ao começar o ano, que ele não tinha a menor
vontade de se exprimir e que teria podido usar o pretexto de um incidente – não se
sabe mais qual, uma greve? Uma queda de luz ? – para não o fazer. E então, ele se
encanta com a gentileza dos que vêm seguir o que ele tem a dizer, o que ele situa
sob o título Momento de concluir, deixando-nos a sonhar sobre isso.
Não é um simples: “acabou”, mesmo se é assim que eu o tenha escutado
naqueles dias antes do início daquele ano. Ele me havia confiado esse título me
olhando nos olhos, me pareceu então. Não é um simples: “acabou”, é uma
referência a uma elaboração sobre o tempo que data de antes do começo
propriamente dito de seu ensino.
Essa elaboração, vocês a encontram no volume dos Escritos, sob o título “O
tempo lógico e a asserção da certeza antecipada.” É um texto que Lacan
aparentemente elucubrou durante a última guerra e, tendo decidido se abster então
de toda publicação, foi na época da liberação (do território francês) que ele
publicou essas páginas.
Então, o tempo o ocupa na primeira lição do Seminário: o momento de
concluir. Já tive a oportunidade de citar e de utilizar a passagem, mas vocês vão me
permitir – é claro – de relê-la, como fiz para mim mesmo: “A análise diz algo” –
sim, podemos perguntar se não teria sido necessitado transcrever, ou estabelecer, o
analista, mas a frase que precede e que termina com a palavra análise impele a
conservar o termo aí.
“A análise diz algo. O que isto quer dizer? Dizer tem algo haver com o tempo.
A ausência do tempo, coisa que se sonha, é o que chamamos de eternidade. Este
sonho consiste em imaginar que a gente desperta”. Aí, eu inseri um parágrafo no
ritmo que dou a esses enunciados. “Passa-se seu tempo a sonhar. Não se sonha
somente quando se dorme. O inconsciente é exatamente a hipótese de que não se
sonha somente quando se dorme”.
Como eu já ressaltei, a eternidade ocupa o último Lacan. Sobre essa palavra, há
aquela passagem que eu reutilizei do Seminário 23: o sinthoma, e cada vez nos
mesmos termos: a recusa da eternidade.
Aqui, esta recusa toma a forma de defini-la como um sonho e, precisamente, o
sonho do despertar (le rêve du reveil). É uma bonita assonância que me levou a
verificar a etimologia das duas palavras. E me dei conta de que, se elas soam
alegremente em nossa orelha, na língua francesa as etimologias de cada uma dessas
duas palavras é heterogênea: sonho viria – eu me contentei de consultar o Robert –
de um verbo galo-romano: esvo,
esvo
querendo dizer vagabundo e procedente do latim popular, exvagus, e de vagus5,
que deu uma outra palavra em nossa língua. Ao passo que o despertar (réveil) tem
origem em espertar que vem de exvigilare, há menção de que é um verbo do latim
popular: velar sobre (veiller sur) ou despertar-se (s’éveiller). Aí estão, então, duas
palavras que, aparentemente, não têm nada a ver juntas e que se encontram
poeticamente associadas na língua e nessa passagem de Lacan.
Não é evidente definir a eternidade como o sonho de um despertar6. A
eternidade poderia ser a continuação indefinida do tempo. Aqui, o tom dado por
Lacan é que se trata do sonho de uma saída do tempo, uma saída para fora do
tempo. E, dizendo assim, isso se associa, no contexto cultural que todavia
dividimos com Lacan, à noção de uma contemplação do verdadeiro, para sempre.
Há nisso um tom platônico.
Mas, além disso, será que não lhes evoca a expressão, mesmo familiar,
utilizada em numerosos contextos: sub specie aetemitatis. Não? Isto, a sub specie
aetemitatis, é de Spinoza, que esteve muito ocupado com a noção de eternidade,
que fez dela o pivô do momento de concluir a sua Ética, o pivô do Livro V que se
intitula De libertate (“Da liberdade”).
Se vocês seguirem o fio até aqui, bem, vocês se aperceberão que o Momento de
concluir de Lacan inicia com um diálogo com Spinoza, que permite ouvir suas
primeiras notas no Seminário: o sinthoma. Eu vou até aqui: é uma réplica a
Spinoza. Claro! Como não se aperceber disso mais cedo? E não é completamente
natural que, ao começar a se lançar no seu Momento de concluir, Lacan tenha sido
levado a Spinoza como a seu instante de ver?
É um fato de sua bibliografia que conhecemos e que foi publicada, a dileção
particular que ele mostrou, desde muito jovem, pela A Ética de Spinoza, da qual ele
teria tentado, por volta de seus 13, 14 anos, estabelecer a cartografia que liga as
5
6
NT. Vagar, errante.
NT. Réveil – despertar.
proposições entre elas. É necessário imaginar isto, hein? Lacan tendo como pano
de fundo o plano total da Ética de Spinoza, tal como se representa Fleschig tendo,
atrás de si, um cérebro aumentado. E Lacan tinha escolhido como epígrafe de sua
tese uma proposição do Livro III da Ética do qual eu teria outrora comentado a
pertinência desse lugar.
Bem, nada mais natural que seja a eternidade de Spinoza a que assombra Lacan
no Momento de concluir. É aquela na qual se entra, ou melhor, aquela na qual nos
damos conta de que já estávamos, quando a alma se considera ela mesma – eu cito
Spinoza – sem relação com a existência do corpo. Isso sempre pareceu aos
interpretes uma dificuldade a superar, pois a alma é, por outro lado, definida por
Spinoza como a idéia de um corpo.
Para chegar a esse ponto de vista em que se considera a alma sem relação com
a existência do corpo, é preciso toda uma propedêutica que Spinoza detalha na
primeira parte do Livro V, onde se vê a alma racional se dedicar a regular e a
controlar a afetividade e, assim, a aumentar o domínio da razão. É uma maneira de
convidar a alma a se reencontrar naquilo em que ela se entrava. Spinoza pensa que
se a alma aprende a formar idéias claras de seus afetos, isto é, a ter uma idéia de
suas causas, pois bem, esses afetos cessarão de ser paixões e ela parará de penar.
É um convite a se reencontrar no seu funcionamento mental, a compreender como
os afetos se formam a partir de certas causas e, desse modo, tomar certa distância
para com os afetos dos quais ela sofre. Ele pensa que isso é possível, por boa
vontade, lendo A Ética, bom.
Para chegarmos a isso, temos uma via mais complicada, mais dialógica e que
dura mais tempo, sem dúvida. De todo modo, isso não é sem eco para nós. Ele
propõe, de algum modo, elevar o afeto à dignidade do conhecimento, à dignidade
do conhecimento das causas, permanecendo ao mesmo tempo sob o que ele chama
ratio temporis, a regra do tempo.
Ele destaca a ratio temporis, que ordena a vida afetiva como a empresa, difícil
de controlar, ele isola a ratio temporis porque ele pensa que podemos nos safar.
Ele não o diz assim. Enfim, após a Proposição XX, ele abre uma porta, ele acha
que se pode subtrair a alma da ratio temporis, da regra do tempo e da existência do
corpo, e que é uma conquista, sem dúvida, mas nos leva ao que há de mais – como
dizer na nossa linguagem? –, ao que há de mais real em nós, pois ele é capaz de
formular, com a Proposição XXIII, este enunciado que não parou de circular,
através dos séculos, com um acento de base spinozista: nós sentimos e
experimentamos que somos eternos.
Então, é um escândalo situar isso no nível do vivido, porquanto somos
submergidos pelo caos dos afetos. Mas isso ali está, precisamente, para recobrir,
velar, fazer esquecer a eternidade que está em cada um, ou o fato de que cada um
está também na eternidade.
Com efeito, há uma experiência que, para Spinoza, nos faz sentir eternos,
mesmo se, aparentemente, não nos damos conta disso. Para dizê-lo mais
francamente, não está em A Ética, é a experiência da geometria, a experiência da
demonstração geométrica.
Ah! Quando você começou a fazer geometria euclidiana na quinta série, você não
se sentiu eterno? Sem dúvida não, porque passou para a rotina do ensino.
Mas, no tempo em que isso impactou tanto Spinoza como Hobbes, que
testemunha a emoção que lhe causou fazer geometria depois de ter sido saciado de
retórica e de história – tem-se testemunhos disso, eu acredito já o haver evocado –,
aqui, com efeito, vocês podem ter o sentimento de aceder a uma outra ordem de
realidade, a uma necessidade ne varietur: é para sempre assim. Acedemos a esse
para sempre. É preciso então que haja algo em nós que seja homogêneo ao para
sempre. E isso, é nosso intelecto.
É o sentido que precisa ser dado, parece-me, ao enunciado que figura na nota
crítica da Proposição 23: “De fato os olhos da alma – mentis enum oculi – são as
próprias demonstrações”.
Assim, a existência da alma não pode ser definida pelo tempo, ou seja,
explicada pela duração, diz Spinoza, mas é preciso considerá-la sub aeternitatis
specie, ou seja, do ponto de vista ou sob o ângulo da eternidade. A sub specie
aeternitatis se apóia, se fundamenta nas demonstrações necessárias da geometria
euclidiana. É aí que se vê juntar-se o racional, o geométrico, o eterno e o
necessário.
- Racional
- Geométrico
- Eterno
- Necessário
É precisamente a isso que Lacan se dirige na primeira lição do Momento de
concluir. Após a passagem que eu li sobre a eternidade: “O inconsciente é
exatamente a hipótese de que não se sonha somente quando se dorme”, há uma
frase sobre o que ele chama o razoável e que, diz ele, é uma fantasia.
Isso nos dá o ângulo lacaniano, não o racional, mas, simplesmente, o razoável.
- Racional Razoável
- Geometria - Eterno
- Necessário
Temos a geometria, mas, precisamente, Lacan a evoca: “A geometria
euclidiana, diz ele, tem todas as características da fantasia”. E, de fato, isso parece
disjunto, quando se lê o Seminário. De um lado, ele fala da eternidade, em seguida
ele chega à geometria que seria fantasia. Mas isso é descosturado somente se vocês
não tiverem encontrado o fio que eu acabo de lhes indicar, e que estou muito
contente de ter encontrado hoje.
Pode-se reler isso várias vezes, pode-se mesmo escrever e é somente no fim...
Aliás, é coerente com o que Lacan evoca no L’ insu que sait, o Seminário 24, que a
geometria é para os anjos, ou seja, para o que não tem corpo, para a alma sem
relação com a existência do corpo.
No Momento de concluir, Lacan se felicita que se tenha saído disso e que se
tenha uma topologia que é uma geometria que tem um corpo.
- Racional Razoável
- Geometria Topologia
- Eterno Temporal
- Necessário Contingente
Correlativamente, compreende-se que o culto do eterno seja recusado e que
seja, ao contrário – o que se pode dizer? –, o temporal, o tempestivo, que prevalece
e cuja instância é preciso preservar. Eu acrescentaria que, à primazia do necessário,
vemos Lacan opor a promoção constante do contingente.
Ou seja, o Momento de concluir é posto sob a proteção de Spinoza, ou seja, do
que foi, na ordem intelectual, o instante de ver de Lacan, que, de fato, teve para ele
ressonância. E tudo o que Lacan desenvolve do mos topologicus, em seu
ultimíssimo ensino, ali está para manifestar a saída para fora da geometria
euclidiana.
Em Spinoza, tudo isso converge para este amor de Deus que ele chama de
“amor intelectual de Deus”. A alma está banhada na alegria, no gozo, na serenidade
que vai até a beatitude. Tudo isso, no fundo, induzido pela intangível verdade
necessária da demonstração euclidiana: delectamur, diz ele, nós nos deleitamos.
Delectamur
É assim que Luis Solano gostaria que eu fosse. Eu me esforço para satisfazê-lo,
mas arrasto atrás de mim o ultimíssimo Lacan que, no lugar da beatitude, põe a
inibição. Nesse ultimíssimo ensino, não é o apaziguamento, é a preocupação que dá
sua nota fundamental, sua Stimmung.
É o “ quebro minha cabeça” lançado por Lacan ao acrescentar: “e nem sei por
causa de quê”, o que dá a tonalidade fundamental. Então, talvez eu não faça vocês
rirem o bastante, mas pelo menos não estou fazendo vocês chorarem! É em relação
a Spinoza que se compreende o chamado de Lacan de que não se deve pensar sem
o corpo, o pensamento não deve pensar sem relação com o corpo. Mas do modo
correto, não se modelando sobre a imagem do corpo. Não pensar sem o corpo,
contrariamente ao convite de Spinoza no Livro V de A Ética, é ao que nos abre a
topologia, uma vez que ela restitui a importância da tecelagem.
Então, esse anti-Spinoza, é um ponto sensível do qual nos damos conta quando
lembramos – como eu fiz da última vez – o título do que poderia ter sido o
Seminário 26, o título sob o qual Lacan continuou a tomar a palavra e que era “A
topologia e o tempo”, sobre o qual foi feito um grande mistério que acabou se
esclarecendo, se compreendermos que é o inverso da geometria e a eternidade.
Eu poderia ainda trazer aqui a frase pela qual, em um momento, Lacan reflete
sobre a palavra idéia. Considero que isso toma sentido em relação a Spinoza, e que
Lacan dá, como corpo, à idéia, a palavra.
Durante sua trajetória, ele procura isolar o corpo do simbólico, lalíngua, o
corpo do imaginário, o corpo do real, até equivocar o “corpo de” (corps-de) com
“corda” (corde).
Corpo de corda
O instante de ver spinozista, de Lacan, o simples instante de ver spinozista é a
primazia do mos geometricus, da maneira geométrica, e é a concepção da
demonstração como o olho da alma.
O instante de ver lacaniano, depois de seu momento spinozista, é aquele do
qual testemunha sua conferência sobe o simbólico, o imaginário e o real, que se
encontra publicada e é desenvolvida em seu texto “Função e campo da fala e da
linguagem”.
Podemos distinguir duas teses fundamentais desse instante de ver. A tese um é
triplicidade do simbólico, do imaginário e do real. A tese dois é a da primazia do
simbólico que faz do significante a mola determinante, o que interessa o imaginário
e dominando o real.
Do outro lado, o Momento de concluir e mais amplamente o último ensino de
Lacan, conserva a tese número um e, em contrapartida, sacrifica a tese número
dois. Por isso, no começo do Momento de concluir, Lacan dá um destaque à
proposição: “a palavra faz a coisa”. É precisamente isso que ele recusa. Essa é a
proposição que permite dizer que a lógica é a ciência do real – como isso aconteceu
com ele –, e foi o que ele deixou para trás.
Se vocês quiserem ter uma idéia do instante de ver lacaniano em “Função e
campo da palavra e da linguagem”, vejam nos Escritos, p. 276, onde Lacan rediz
quase a mesma coisa três vezes seguida: “o conceito engendra a coisa”. Vou dar o
texto completo: “O conceito, salvando a duração do que passa, engendra...” Eis o
gosto do primeiro Lacan para a eternidade: “o conceito salva a duração do que
passa”.
Segunda formulação: o universo das coisas vêm se alinhar com o universo de
sentido de uma língua. Vocês vêem então a língua, seu suposto universo de sentido,
como se ali houvesse um universo e, em seguida, as coisas que surgem se
colocarem justo em seu lugar. Tudo isso desenha para nós um mundo de coerência
e harmonia, que é sem dúvida desfeito em outros lugares do texto, mas que
domina, mesmo assim, da da da, a voz do trovão do final de “Função e campo”.
Terceira formulação. É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas.
Essas três formulações são as formulações mais elementares e muito filosóficas da
tese número dois, aquela da qual eu creio não ser excessivo marcar o ridículo aos
olhos do ultimíssimo ensino de Lacan. Não é o hospital que ri da caridade, é Lacan
que ri de Lacan!
O último enunciado se prolonga. “É o mundo das palavras que cria o mundo
das coisas”, diz ele, inicialmente misturadas no hic et nunc do todo porvir. Vocês
vêem a depreciação do que acontece, as coisas são confusas, estão no caos quando
só as localizamos no aqui e agora do porvir. É verdadeiramente uma posição anti
Heráclito do primeiro Lacan e também um essencialismo, já que ele precisa: “o
mundo das palavras dá seu ser concreto à essência das coisas”. É um ponto de vista
também, hegeliano. Pela palavra, o que é transitório, o que morre tem acesso à sua
essência eterna, já que Lacan acrescenta: “o mundo das palavras dá lugar por toda
parte ao que é de sempre”. E, para fixar o espírito do leitor nessa glória da
eternidade conceitual e lingüística – é o que está ilustrado no Seminário I pela
palavra elefante, que subsiste mesmo se os elefantes se dirigem para o cemitério.
Pela palavra, eles permanecem.
Então, para que esteja bem fixada pelo leitor essa postulação para a eternidade,
Lacan vai buscar no grego a expressão: Ktèma es aeï. Então, isso se torna
inesquecível, não é?
É uma citação de Tucídides: es aeï, quer dizer para sempre, e Ktèma é algo
como agalma é, primeiro, o bem como uma propriedade e, em seguida, passou a
designar a coisa preciosa, o tesouro, o objeto desejável. Então, Ktèma es aeï é: o
tesouro para sempre. Eis o que é, para o primeiro Lacan, o conceito e a palavra. É
verdadeiramente o agalma, da eternidade.
É preciso esse lembrete para compreendermos qual é a melodia que Lacan
bate em seu tambor em O momento de concluir, a respeito da eternidade. Então,
longe desse tesouro para sempre – essa frase de Tucídides é muito spinozista, de
fato, é em direção ao tesouro para sempre que se dirige o Livro V de A Ética –, em
relação a isso, o tempo do qual não se sai e que é, para resumir, um real. Não o
tempo simbólico que é o tempo contado, numerado, não o tempo imaginário que é
o tempo vivido, mas o tempo como real, ou seja, aquele que não pode ser
ultrapassado pelo para sempre. O Momento de concluir se opõe a esse para
sempre. Isso exige que se pegue com cuidado a referência ao tempo lógico que o
título Momento de concluir comporta. Sem dúvida, para Lacan, o tempo apressa,
mas apressa tanto pelas necessidades do corpo vivo como pela urgência do
movimento lógico.
Será que há uma asserção de certeza antecipada no Momento de concluir? A
asserção de certeza antecipada exige uma certeza que, no Momento de concluir, se
dissimula. Podemos dizer que nesse Seminário não há outra certeza senão a dúvida,
a tentativa, o ensaio. E se é preciso um ato para gerar a certeza, poderíamos dizer
que esse ato está suspenso aqui.
O que Lacan chama de antecipação da asserção de certeza remete a um ato que
vai criar as condições de verificação da asserção. É um ato ao qual a verdade não é
prévia, um ato que introduz uma asserção e, a introduzi-la, introduz ao mesmo
tempo as condições para que ela seja verificada, ou seja, feita verdadeira.
Era o valor secreto da frase de Picasso quando foi retomada por Lacan: “eu não
procuro, eu acho”. Isso queria dizer: primeiro eu encontro, no ato de antecipação,
em seguida eu procuro. É assim que sempre vimos Lacan proceder: primeiro
encontrar e, em seguida, explorar as conseqüências e os contornos do achado. Ele
faz algo assim uma vez que, apelando a um significante novo que não teria
nenhuma espécie de sentido no final do Seminário 24, está claro que sua asserção
de certeza é deve ser encontrada do lado da topologia. Na base dessa asserção ele
procura e, desta vez, sem encontrar. Mas, enfim, ele achou inicialmente que era do
lado da topologia. Em seguida, ele procurou o que pode, aqui, servir, ser útil para
nos acharmos na experiência analítica.
Há duas coisas que realçarei a respeito dessa topologia: a função do tempo e a
função do corpo. Sim, é preciso que eu justifique a razão da topologia estar desse
lado, do lado do tempo, e não do lado da eternidade, diferentemente da geometria
euclidiana. É que na topologia – e Lacan gosta de mostrar isso várias vezes – há
um problema de reconhecimento das formas.
Na geometria euclidiana, as figuras são retas, são engomadas, são invariáveis.
Vocês podem pegar um cubo, colocá-lo sobre uma face ou outra, até imaginá-lo
sobre uma ponta, ele é o mesmo. Isso lhes dá a imagem de uma forma eterna. Além
disso, vocês sabem que, se vocês mudarem o comprimento do lado, vocês
encontrarão as mesmas relações entre os diferentes termos.
Na topologia, em contrapartida, temos deformações. Isso quer dizer que você
está o tempo todo se perguntando: é o mesmo ou não é o mesmo? Essas
deformações e reformações, se tentarem identificar, elas são necessariamente
temporais. O cubo ou os outros seres, entidades euclidianas, vocês as deslocam. O
deslocamento não é a mesma coisa que a deformação.
O deslocamento permanece externo à coisa, ao passo que a deformação supõe
um processo temporal: fazer furos e fazer passar pelos furos. Você distingue um
tempo, um outro, você puxa as cordas.
Você tem um pequeno nó borromeano reconhecível, já catalogado, bem
arrumado em seu lugar no universo dos sentidos. Depois você puxa as cordas e
você consegue produzir uma desordem extraordinária que não deixa de ser um nó
borromeano, e será preciso tempo, puxando as cordas – imaginemos – em
determinada ordem para reencontrar uma forma, dar-lhe uma forma humana, se
assim posso dizer isso, ao nó borromeano.
Então, há ali, de maneira não eliminável, uma função tempo. A topologia
respeita o real da função tempo, que é esvaziada pela abstração euclidiana.
A função corpo, da qual Lacan não cessa de falar, enfim, sempre brevemente é,
nessa matéria topológica, o tecido, o estofo a ser distinto das linhas métricas no
espaço euclidiano, que são puras criaturas do simbólico, que são criaturas
fatasísticas, fantasmáticas, ao passo que, na topologia, o tecido faz matéria.
E aqui reencontro o chiste de Lacan que em L’ insu que sait, convida a
escrever: a alma a três (l’âme-à-tiers).
l’âme-à-tiers
Precisamente, l’âme-à-tiers é o contrário da alma spinozista, que é desenodada
do corpo, é geometrizada.
Eu poderia ainda observar que o Momento de concluir, se nos referirmos ao
“Tempo lógico”, diz respeito a uma lógica coletiva que está ausente do Seminário,
mesmo que Lacan se cerque de um certo número de colaboradores. O “Tempo
lógico”, o artigo de 1944-45, expõe as condições de uma saída em grupo, não para
uma excursão! Uma saída em grupo determinada por uma demonstração que tem
escansões e por onde são prisioneiros que fogem.
Bem, aqui, o que eu poderia dizer? Que o Seminário 25: o momento de
concluir, é Lacan saindo da prisão do lacanismo. E é o valor, muito sério, a ser
dado a seu enunciado eu não sou lacaniano, que ele fará escutar três anos mais
tarde. Ele não é lacaniano e ele pode trazer como testemunho o que ele articula em
seu Momento de concluir.
Então, ele disse, o que também é verdade: “eu sou freudiano”. Por um lado, é
uma ilusão, para ser alguma coisa, por outro, é, de fato, a referência que ele pode
fazer a Freud como aquele que inventou o modo de fazer que se tornou hábito para
nós. Nisso, somos freudianos, procedemos da arte freudiana da psicanálise.
É a tese desse Momento de concluir: a psicanálise é uma arte. Lacan diz: “de
todo modo, não é uma ciência”. E, precisamente, sua primeira tese é que a
psicanálise é uma prática. Essa é uma das teses positivas do Momento de concluir,
a ponto de Lacan reduzir o sujeito suposto saber a: suposto saber como operar. Em
todo caso, ele o evoca.
Então, dizer que a psicanálise é uma prática, quando se tem 24 Seminários
atrás de si, é preciso dizer que se trata de um achatamento da psicanálise. Não há
dúvida, Lacan achata a psicanálise ali onde outrora, ao contrário, ele demonstrava
suas relações com a transcendência, à transcendência do significante, é claro. Mas
ali onde havia transcendência, há agora achatamento. Sempre se ganha quando se
achata, diz o ultimíssimo Lacan.
E então, ele propõe reflexões sobre a prática; a clínica, quando ele a evoca,
procede integralmente da prática. E a teoria, ele faz dela apenas uma elucubração,
dando à manipulação dos toros e dos nós um outro status que não o da teoria. Na
teoria, há sempre contemplação, ao passo que aqui, trata-se, ao contrário, de
manipulações, isso já seria uma diferença.
Em segundo lugar, ele definiu a psicanálise como uma prática que duraria o
que ela duraria. E isso não é feito para nos surpreender e não é somente como uma
anotação banal, isso quer dizer, precisamente, que ela não se inscreve do lado
esquerdo: a psicanálise não vale sub specie aeternitatis e, em sua antecipação,
Lacan já a vê também sob o ângulo onde ela desaparecerá.
Em terceiro lugar, a psicanálise é uma prática de tagarelice, diz ele. Isso já é
nos afastar de fundamentá-la somente sobre a estrutura da linguagem. E, se
quisermos dar um novo valor ao que ele chamava outrora palavra vazia – outrora
ele preferia palavra cheia à palavra vazia, aquela que acerta na mosca, a palavra da
verdade e, aqui, ele restitui, se assim posso dizer, sua dignidade ou sua indignidade,
já que ele propõe uma prática sem valor, cujo nome é tagarelice –, mais do que
palavra vazia, digamos uma palavra furada, da qual Lacan encontra uma
materialização no toro.
E, quarta tese, digamos é a primazia do imaginário, que está em todo lugar.
Primeiramente, o imaginário do simbólico, que nos dá o razoável ou a geometria,
ou seja, definitivamente, uma fantasia, o que poderíamos chamar, o que o próprio
Lacan chama de simbolicamente imaginário, o imaginário incluído no simbólico.
S
I
E que leva, naturalmente, nossas elucubrações até a fantasia, a poesia e o delírio. A
isso opõe, eu já disse, imaginar o real. Ou seja, o que se poderia ser traduzido – o
termo não está em Lacan – por realmente imaginário.
R
I
O imaginário incluído no real, o que explica tal ou tal trecho em que Lacan
mistura imaginário e real. Por exemplo, falando do tecido em sua última lição do
Momento de concluir, ele diz: é o imaginário, é o real. Penso que é preciso
compreendê-lo a partir desse esquema elementar, a saber, que há um imaginário
incluído no real. De todo modo, se há uma asserção de certeza antecipada em
Momento de concluir, é essa.
Eu gostaria de marcar esse trecho em que Lacan evoca Freud, no final do
Momento de concluir, em termos que são surpreendentes. “Freud tinha tomado a
precaução” – já evoquei esse trecho a respeito de outra coisa – de ser louco de
amor por aquilo que chamamos uma mulher. É preciso dizê-lo, é uma bizarria, uma
estranheza: por que o desejo se transforma em amor?”. Eu dei um destaque a esta
frase: “os fatos não permitem explicá-lo. Há, sem dúvida, efeitos de prestígio, etc.
Freud era religioso? É certo que é preciso se perguntar sobre isso. De todo modo, é
curioso que haja alguma coisa que se chama a mística. A mística é uma praga,
como o provam todos aqueles que acabam caindo nela”.
Como se deve ler isso e esse encadeamento de proposições? Bem, é preciso lêlo a partir, me parece, dessa palavra amor que aparece ali. E vejo, ali também, um
eco anti-spinozista. É que a ética de Freud não abre sobre o amor intelectual de
Deus. Ela abriria, ao contrário, para o amor a uma mulher.
O amor por uma mulher, é uma precaução que evita cair no amor de Deus. É
por isso que logo depois ele pergunta: Freud é religioso? Ou seja, além de seu amor
por uma mulher, ele tinha a noção do amor de Deus sob as espécies da mística,
cujos ecos se fazem ouvir no Livro V da Ética, em particular nas passagens sobre
a beatitude?
É a isso que Lacan opõe: achatar alguma coisa, seja lá o que for, sempre serve.
O deve ser entendido em relação a isso.
Oh! Mas eu ainda tinha coisas a dizer! É preciso que eu..., não, não as
conservarei para o ano que vem! Vou passar à minha conclusão que,
primeiramente, explora uma palavra que figura no Seminário, no fim da primeira
lição e que, aliás, figura também no texto do “Tempo lógico”. É a palavra
“esfolhear”. Lacan diz no Momento de concluir: “para que o imaginário se
esfolheie, basta reduzi-lo à fantasia”.
Vocês sabem o que quer dizer “esfolhear”: esfolhear uma planta é deixar cair
suas folhas; isso qualifica também, em medicina, a queda das partes necrosadas,
como as unhas, e se esfolhear é se desprender por folhas, por parcelas.
Bem, essa palavra me fazia pensar que o Momento de concluir se abria para
uma esfoliação do ensino de Lacan, para seu desprendimento por parcelas e que é
assim que será preciso, no futuro, aproveitá-lo.
O Momento de concluir é algo como Lacan julga Jacques Lacan, para lembrar
o título de Jean-Jacques Rousseau. E Lacan, juiz de Jacques Lacan, o condena ou,
pelo menos, se distancia.
Não se pode nos defender da idéia de que esse último Seminário está animado,
em Lacan, por uma transferência negativa para com ele mesmo, se assim posso
dizer. Ele tinha se vangloriado de sua transferência negativa com Freud, mas não se
pode desconhecer, aqui, uma transferência negativa para com o próprio Lacan,
uma transferência negativa em relação a seu saber.
Então, é preciso remunerar esse defeito de amor intelectual celebrando em seu
lugar a majestade e a utilidade de sua construção? Tudo o que sei no momento em
que lhes falo é que, pelo menos para mim, Lacan nunca mais será o mesmo depois
deste Curso. Ele pede para ser esfoliado.
Todavia, além disso, será que não sabemos que a análise nunca mais será a
análise que ela foi? Todos os dias experimentamos isso. É o que deixa lugar para
que ela chegue à invenção.
Até o ano que vem.
Fim do Curso de Jacques-Alain Miller de 6 de junho de 2007.
2006/2007
Tradução: Gilberto Rudeck Fonseca
Revisão: Vera Avellar Ribeiro

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