Democracia Participativa e Movimentos Sociais

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Democracia Participativa e Movimentos Sociais
Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre
Data: 8 Maig
Sessió: Democràcia participativa i moviments socials
Ponent: Candido Grybowsky
Democracia Participativa e Movimentos
Sociais: Novos e antigos impasses na América
Latina
Cândido Grzybowski, Sociólogo, diretor do Ibase
Após ditaduras e guerras revolucionárias, a América Latina trilha caminhos da
construção democrática. Enquanto a Colômbia vive uma guerra cujas
motivações perdidas se situam nos conturbados anos de 1950 e 1960, onde a
Cuba revolucionária desponta como paradigma, o México finalmente dá a
chance à alternância no poder após sete décadas de domínio do PRI e o
Paraguai ainda ensaia os primeiros passos pós-ditadura. Numa ponta, a
democracia atropelada e esgarçada, como nos casos da Argentina e do Peru.
Na outra, busca e esperança, como no Brasil de Lula. Temos uma nova versão
de populismo de “descamisados”, como na Venezuela, e a volta ao velho
populismo autoritário e sanguinário, como no Haiti. Temos, também, o bom
discípulo da globalização neoliberal dominante, como o Chile. E temos muita
crise, muita violência, muita desilusão. Estamos numa espécie de impasse no
enfrentamento da miséria, pobreza e desigualdade social. Nossa identidade
está em crise. Afinal, quem somos e qual nosso lugar neste planeta Terra?
Quais as alternativas diante da globalização para que a democracia crie entre
nós as bases de um desenvolvimento humano sustentável, com todos os
direitos humanos para todas e todos os latinoamericanos?
Uma questão emergente são os desencontros e brechas na relação entre
sociedade civil e institucionalidade política. Com a democratização, cresce em
importância a sociedade civil organizada, com novos atores sociais, novas
demandas e novas mediações. No processo, se produz um alargamento do
espaço público e acentua-se a desestatização da política. Mudam a cultura
política e as formas de organização e participação cidadã. Este fato gera
tensões no seio das próprias sociedades civis, na relação entre movimentos
sociais e organizações como as ONGs ou entre antigos e novos movimentos. A
vitalidade das sociedades civis contrasta com a endêmica crise do sistema
político e partidário e com o crescente descrédito nos políticos profissionais e
nas formas de representação. Fruto das políticas de desmonte e reajuste para
estar em sintonia com a globalização econômico-financeira, o próprio Estado
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se burocratizou e distanciou, contribuindo para ampliar o fosso entre sociedade
civil e instituições políticas. Um resultado assustador de tal situação é o fato
que em vários países a própria institucionalidade e a democracia como ideal
começam a ser questionadas. Como inverter esta onda, canalizando a
vitalidade das sociedades civis para a renovação democrática?
Um ponto crucial na análise do processo de democratização na América Latina
diz respeito às mudanças nas sociedades civis. Não se trata de pensar a
realidade com as categorias formais da democracia liberal, que limita a questão
democrática às formas de constituição e funcionamento dos governos. Tratase, isto sim, de pensar os complexos processos que movem por dentro as
sociedades latinoamericanas e que permitem qualificá-las como sociedades em
situação de construção da democracia como modo de ser e se desenvolver.
Um primeiro aspecto a salientar neste sentido é que democracias não são
produzidas por economias e nem por Estados, apesar destes serem uma
condição necessária das possibilidades históricas de democracia numa
sociedade dada. Democracias para existir precisam de sujeitos sociais – seus
portadores e construtores efetivos. Para tanto, é necessário que se criem
sujeitos históricos que imaginem e desejem a democracia, que se organizem e
lutem por ela, que a constituam nas condições econômicas, culturais e políticas
existentes. A conquista da democracia e o processo de democratização que
daí decorre implica em mudanças no desenvolvimento da economia e no poder
de Estado, maior ou menor, dependendo da diversidade de sujeitos e extensão
da luta e da correlação de forças políticas assim obtida. A economia e,
particularmente, o Estado são estratégicos como espaços de avanço e
promoção da democracia. Mas quem os empurra e constitui, em última análise,
são os sujeitos sociais. Estes são, na expressão de Gramsci, blocos históricos
que combinam os modos de sua inserção na estrutura social e na diversidade
de relações de que fazem parte mais a própria consciência e vontade. Por isto,
o espaço de constituição dos sujeitos sociais – a sociedade civil – é por
excelência o locus da democracia.
Recorte analítico
Neste contexto de avassaladora globalização neoliberal, o conceito de
sociedade civil é fonte de dubiedades e confusões, denunciando tanto o déficit
de análise e reflexão teórica como a própria fragilidade das democracias na
América Latina. Por sociedade civil deve-se tomar o conjunto de práticas
sociais – com suas relações, processos, normas, valores, percepções e
atitudes, instituições, organizações, formas e movimentos – que não se
enquadram como econômicas ou político-estatais. Trata-se de um recorte
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analítico na complexa realidade social, ela vista como uma unidade “síntese de
múltiplas determinações”, conforme a genial expressão de K. Marx. Entre a
economia/mercados e o Estado/poder, existe a cunha da sociedade civil, mais
ou menos desenvolvida. As sociedades civis, assim como as economias e os
Estados, não são um valor em si, expressão de uma positividade em abstrato.
São, isto sim, históricas e mais ou menos desenvolvidas, dependendo da
diversidade e complexidade dos sujeitos sociais que a constituem, moldam,
dão vida, expressam o que são e desejam as sociedades reais. O tipo e grau
de seu desenvolvimento é uma condição indispensável do modo como se
desenvolvem as democracias.
Assim concebida a questão, é possível destacar algumas dimensões e
processos das sociedades civis na América Latina. Aliás, se faz urgente uma
ampla radiografia do recente desenvolvimento das sociedades civis e sua
relação com a democracia entre nós. Por exemplo, é evidente que as ditaduras
dos 60 até meados dos 80 nos diferentes países não foram iguais porque
tinham diante de si diferentes tipos e modos de constituição das respectivas
sociedades civis. Tome-se o caso da Argentina e Chile, de ditaduras
particularmente sanguinárias, onde qualquer um reconhece o tecido social
organizativo mais abrangente e forte do que em países como o Brasil e Peru,
onde as ditaduras foram de tipo diverso, para ficar em casos clássicos da
história recente. Além do mais, no Brasil, o novo e até surpreendente
desenvolvimento da sociedade civil se fez primeiro em direta oposição à
ditadura militar e explica muito do processo que vem percorrendo a
democratização a partir de então. Como, em outro caso, o da Argentina, a
destruição social feita pela ditadura, abalou profundamente o desenvolvimento
posterior dos diferentes sujeitos constitutivos de sua exuberante sociedade
civil, não criando as mesmas possibilidades que no Brasil no período recente.
No Brasil, diante da fragilidade de sua sociedade civil, o processo autoritário
gerou uma economia e um Estado forte – de Mal Estar, na expressão de
Francisco de Oliveira, mas forte e competente. Na Argentina, com uma
sociedade civil mais organizada, além dos 30 mil mortos e desaparecidos, a
ditadura destruiu a capacidade do Estado e fez a sua economia patinar. Aqui
fica clara a idéia das sociedades civis como cunhas entre economia e poder,
mas cunhas que podem se desenvolver ou ser destruídas, determinando o
processo democrático daí resultante.
Aprofundando essa questão – começando pelos novos sujeitos sociais e seus
atores concretos – uma fundamental novidade é a irrupção das mulheres,
através da multiplicidade de organizações e movimentos. Hoje, em todos os
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países da região, mais num e menos noutro, a democracia e o processo de
democratização têm nas mulheres uma referência, seja como uma das
dimensões da desigualdade social a enfrentar, seja como sujeitos sociais cuja
participação acaba sendo decisiva. A importância deste fato ainda não se
expressa da mesma forma na institucionalidade política – da representação e
dos partidos – e nem nas estruturas de poder, muito menos em igualdade de
oportunidades a nível de trabalho e renda. Atravessando as classes sociais e
as redefinindo historicamente, a questão da desigualdade de relações de
gênero, trazida pelas mulheres para o debate público, exprime a força de sua
presença na constituição das sociedades civis da América Latina. Um aspecto
a salientar ainda é que as mulheres se organizam em redes e movimentos que
extrapolam os países da própria região, sendo mais internacionalistas do que
outros sujeitos e atores. Cabe, também, lembrar que as mulheres produziram
ONGs que se encontram entre as mais importantes de cada país, mas sua
bandeira está hoje no centro de organizações tradicionalmente arredias à
questão, como o movimento sindical e camponês, ao menos no Brasil da CUT,
do MST e da Contag.
Questões camufladas
A desigualdade étnico-racial, pela importância que vem adquirindo nos últimos
anos, vai ser base da constituição de novos e aguerridos sujeitos sociais, cujo
perfil ainda é cedo para definir. Aliás, em torno a este problema se forjou o nó
mais duro da questão democrática em nossas sociedades colonizadas e
escravizadas. Tendo na contribuição dos negros e indígenas parte fundamental
de sua história, cultura e identidade, a América Latina não tem conseguido se
reconhecer como é. A questão étnico-racial, por mais que as estatísticas
mostrem, é camuflada, negada, não só pelo poder estatal, mas no seio da
própria sociedade civil. Aqui estamos diante de um impasse ainda não
resolvido. O racismo e a discriminação estão no coração mesmo das
sociedades civis e limitam o seu desenvolvimento democrático, com
reconhecimento da diversidade étnico-racial que nos constitui. A fragilidade de
movimentos e organizações em torno a tal questão são a maior prova do
quanto ainda temos que andar neste campo.
Já o movimento ambientalista – de promoção da sustentabilidade e de justiça
ambiental – não tem o mesmo desenvolvimento e a mesma presença que os
movimentos de mulheres. Mas há que se registrar a sua vitória em termos
éticos, transformando a preocupação com o bem comum representado pelo
patrimônio natural em um valor a perseguir, que atravessa as diferentes
classes e grupos da população. Isto se fez sobretudo pelo debate público,
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tendo a Conferência da Eco-92, no Rio de Janeiro, dado um grande impulso.
Além do mais, muitos movimentos de excluídos e marginalizados se
constituíram e conseguiram presença pública através da bandeira ambientalista
– como as comunidades de indígenas e seringueiros atingidos por grandes
desmatamentos ou camponeses expulsos por barragens para hidroelétricas, no
Brasil, ou a privatização de águas em Cochabamba, na Bolívia. Na mesma
linha vão trabalhos de ONGs que promovem a agroecologia e são contra a
produção de alimentos transgênicos. Os exemplos são muitos e neste campo é
de se esperar um grande desenvolvimento de movimentos e organizações da
sociedade civil na América Latina. A agenda do desenvolvimento sustentável
não pode mais ser contornada, mesmo se não são tão visíveis seus sujeitos e
atores. O fato é que todos os governos se obrigam a implementar políticas a
respeito e as empresas se sentem acuadas neste campo, mesmo que seja até
visível o predomínio de modelos insustentáveis, em termos ambientais e
democráticos, no acesso e uso dos recursos naturais. Para lembrar Galeano,
na América Latina as veias continuam abertas.
Permeando todos os novos movimentos e organizações, do mesmo modo que
cada vez mais também nos mais tradicionais, muitas vezes não se
diferenciando deles, mas ao seu modo contribuindo para o desenvolvimento
das sociedades civis na América Latina, é importante reconhecer as iniciativas
em torno aos direitos humanos. Em termos mais simples, muitas das
organizações e movimentos, que têm os direitos humanos como sua
referência, se auto definem como promotores da cidadania. Aqui entramos num
campo mais difuso do próprio desenvolvimento recente das sociedades civis.
Afinal, o conceito e a prática da cidadania são intrínsecos da democracia, como
concepção e como processo histórico. É impossível conceber democracia sem
cidadania, sem cidadãs e cidadãos no exercício de seus direitos e
responsabilidades. Mas um fato político da história recente, e que contem uma
radicalidade democrática até aqui pouco analisada, é a redefinição prática da
noção de cidadania a partir do desenvolvimento das próprias sociedades civis.
Isto acontece em vários países da América Latina, mas em particular naqueles,
como o Brasil, em que se renovam velhas lutas e movimentos ou literalmente
se criam novos sujeitos a partir exatamente de sua situação de exclusão ou
subordinação econômica, cultural e política. Como categoria política, a partir de
Rousseau e da Revolução Francesa, a cidadania tem como referência um
Estado e o território nacional que ele controla. São cidadãs e cidadãos apenas
aquelas e aqueles que o Estado reconhece como tendo os direitos civis e
políticos iguais em seu território. A apropriação da noção de cidadania por
aquelas e aqueles que tomam os direitos humanos universais como referência
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e lutam por eles, se contrapondo aos próprios Estados, alarga e redefine a
cidadania como categoria política e analítica.
Tal ponto nos remete aos invisíveis nas sociedades latinoamericanas – os que
não fazem parte das sociedades civis, simplesmente porque não têm
identidade, projeto, organização social e forma de luta para se afirmar, se
defender, para conquistar direitos e reconhecimento público. São os
politicamente destituídos de qualquer poder real. A bem da verdade, é
necessário reconhecer o avanço da cidadania formal. Mas ter direito político de
votar não é a mesma coisa que ser cidadão. Entre 30 e 60% da população de
nossos países sofre de alguma forma de exclusão social, negadora de sua
cidadania. Estes, quando não conseguem se organizar e lutar, para
politicamente voltar a se incluir e ter alguma perspectiva de mudança na
situação geradora de desigualdade, pobreza e exclusão social, constituem o
enorme contingente de invisíveis das nossas sociedades. Perdem as
sociedades civis e perde a democracia. Mas se por alguma razão grupos de
invisíveis se organizam, ganha a sociedade civil e ganha a democracia, pois
sua presença como atores concretos é a condição indispensável de sua
inclusão sustentável na cidadania. Muitas das ONGs da América Latina,
trabalhando com perspectivas de educação popular e para a cidadania,
também têm como alvo exatamente os grupos e comunidades de invisíveis.
São incontáveis, em todos os países, exemplos de relativo sucesso das
iniciativas em termos de organização e participação de tais segmentos da
população, baseadas em grande parte na cumplicidade política dos militantes
das ONGs com as suas demandas.
Pobreza e miséria produzimos de modo persistente ao longo de nossa história,
com muita violência, se necessário. Somadas às múltiplas formas de
desigualdade social – étnico-racial, de gênero, entre regiões e setores, onde a
pura análise em termos de relações de classes sociais é simplesmente
insuficiente e até simplificadora – constituem o centro da questão democrática
entre nós. A exclusão social atravessa o conjunto das lutas democráticas em
nossos países, condicionando alianças e propostas dos diferentes sujeitos
sociais, o desenvolvimento da sociedade civil, a institucionalidade política, o
controle do Estado e o modo de gerir a economia. A exclusão social cataliza os
processos de exploração, dominação e desigualdade, rompendo laços sociais
básicos e alimentando o apartheid social. A luta por novas formas de inclusão
que se dá nas diferentes relações, processos e estruturas, tanto na economia,
como na vida social, cultural e política, é a expressão mesma das
possibilidades e limites da democratização na nossa realidade. Trata-se de
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romper com a lógica essencialmente antidemocrática que, ao incluir parte da
sociedade, condena a outra a alguma forma de exclusão e desigualdade social.
Olhando desta perspectiva, as mudanças provocadas pela globalização
neoliberal em nosso meio levam a democracia ao impasse ao acentuar a
exclusão social. Estamos vivendo uma contradição entre a demanda crescente
de inclusão nos direitos fundamentais e os processos reais de expulsão e
migração, inclusive para fora dos países e da região, favelização,
informalização do trabalho (isto é, sem direitos trabalhistas), desemprego. A
contradição cria situações dramáticas como as crises vividas no Equador,
Argentina e Bolívia ou inviabiliza qualquer projeto de nação, como parece ser o
caso do Haiti de hoje, primeiro país a acabar com a escravidão entre nós, há
quase duzentos anos. Mas, em todos os países, em graus diversos, piora a
situação dos que já vivem em situação de pobreza e miséria, com novos
segmentos se juntando aos pobres de ontem, enquanto aumenta a
concentração de renda e se acentua a desigualdade. Podemos sair deste
impasse? Ou, de um modo mais direto, como poderá a democratização romper
com esta lógica, para não revertermos a uma situação autoritária ou deixarmos
de sermos sociedades minimamente viáveis?
Protagonismos
Estamos diante de uma rica e complexa história, mas muito diferenciada de
país a país e não faltam sujeitos constitutivos dessas sociedades. Destaque-se
os sindicatos, que ocupam posições centrais nos processos de
democratização, além de terem sido as maiores vítimas da onda de ditaduras
anteriores. São, mais do que outras formas de organização e movimentos da
sociedade civil, verdadeiros celeiros de partidos políticos e, por isto mesmo,
muito mais intrinsecamente ligados à institucionalidade do poder nas diferentes
sociedades. Mas suas estratégias podem variar muito, tanto pelo tamanho e
lugar nos respectivos países, como pelos momentos de seu desenvolvimento e
até pelas concepções e visões que adotam. Na América Latina, onde mais de
50% estão na informalidade – são invisíveis, na linguagem aqui usada –, o
movimento sindical diz respeito à parte visível dos que trabalham e vivem do
seu trabalho. É importante afirmar que, ao contrário do que pensa toda uma
tradição de esquerda, o movimento sindical não tem assegurado um
protagonismo político-cultural por ter raízes no operariado das empresas. O
protagonismo, quando o exerce, é por força de sua própria capacidade, das
lutas que desenvolve, do modo como articula suas lutas às lutas dos outros. O
protagonismo é um atributo político que se desenvolve e não algo decorrente
da posição na estrutura de relações de produção.
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No pólo oposto ao movimento sindical, as organizações de proprietários e
capitalistas de todos os tipos constituem outro sujeito social. Também faz parte
do núcleo duro das sociedades civis, mesmo que, na maior parte das vezes,
ele não se reconheça como tal. Aqui não me refiro as estratégias privadas de
organização de empreendimentos produtivos de bens e serviços, comerciais,
financeiros e das relações ao nível do mercado. Estou tendo em mente as suas
organizações classistas, de defesa coletiva de interesses, de formulação de
visões e de propostas, de incidência política direta. Aliás, é preciso que se diga
em alto e bom tom que este sujeito social, como coletivo, em todos os países
latinoamericano, sem nenhuma exceção, forjou-se como um ser
antidemocrático. Sua conversão, ainda parcial, está se dando por força das
lutas que todos os outros sujeitos sociais fazem. Sua matriz política não é a
sociedade civil, nem o Estado. Nossos proprietários e capitalistas descendem
de uma identidade conquistadora e colonizadora de “donos de gado e gente”.
Só com a democratização é que assistimos a uma oportuna mudança de
importantes setores. Uma nova geração de proprietários e capitalistas, por
força da democratização e dos impasses da própria globalização neoliberal,
que lhes tira riquezas e poder, está sendo constituída na América Latina. De
qualquer forma, não dá para esperar desta burguesia, que finalmente não
esconde as próprias fragilidades, ruptura na lógica de exclusão social.
É importante não perder de vista outros sujeitos que constituem as sociedades
civis e, a seu modo, têm impacto na democratização da América Latina. Aqui
me limito a chamar a atenção para a comunicação de massa. A propriedade
dos meios – quase exclusivamente privada em nossos países, ao menos do
que realmente conta como comunicação de massa – não nos deve impedir de
ver a função pública e política da comunicação. Hoje os meios de comunicação
de massa são espaços de construção do imaginário coletivo, de modos de ver
e conceber, de movimentos de opinião, alimentando os processos em curso
nas sociedades civis em termos de identidade e participação. São espaços de
disputa democrática atravessados por enormes contradições onde a
propriedade significa enorme poder. Mas é fundamental ver como certas
questões são tratadas e conquistam lugar nos meios de comunicação. Do
mesmo modo, é indispensável analisar a ressonância social do que veiculam
os meios, o modo como é captado pelos diferentes sujeitos e suas estratégias.
Esta é uma frente de lutas democráticas que precisa de maior destaque,
subordinando a liberdade mercantil dos proprietários dos meios ao interesse
público. Como a democracia pode tratar um bem público privado e
monopolizado como a Rede Globo, hoje presente em toda a América Latina?
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Esgotamento de regimes
Nas últimas duas décadas, a América Latina foi marcada por um amplo
processo constituinte de nova institucionalidade. De fato, não foram
exatamente rupturas institucionais bruscas e radicais que estão na origem de
tal institucionalidade democrática. Dado o esgotamento dos regimes anteriores
– caso das ditaduras militares – ou o impasse nas guerras revolucionárias –
como na América Central – , a transição para a democracia e a nova
institucionalidade guardam resquícios do passado que não podem ser
desprezados na análise do estado da questão democrática entre nós. O
exemplo do Chile é emblemático a respeito. Apesar da vitória do “NO”, a nova
institucionalidade reservou poder para o antigo ditador e o Exército. A
institucionalidade estabelecida não foi capaz de barrar a volta de antigo ditador
por via eleitoral, como na Bolívia. Os acordos, base da nova institucionalidade,
rapidamente são rompidos, como na Guatemala. Ou a institucionalidade não
resiste ao oportunismo político dos que conquistam hegemonia pelo voto e
procuram se reproduzir de todas formas no poder. Este é um mal que parece
atingir uma amplo espectro político, pois o que, além de mudarem constituições
de seus países e garantirem condições para se reeleger, têm em comum
figuras tão diferentes como Ménem, na Argentina, Fujimore, no Peru, Chaves,
na Venezuela, e Cardoso, no Brasil? Enfim, mal implantada, a
institucionalidade democrática da América Latina revela os seus limites e, o
que é pior, pode ser uma fonte de enormes crises políticas.
A questão é como a partir da institucionalidade política fazer avançar a
democracia, criando até nova institucionalidade e um poder estatal mais
adequados. O processo é determinante, as instituições uma condição dele,
condição que pode se transformar no próprio desenvolvimento. Esta é, aliás, a
natureza da democracia, onde apenas as condições de partida são definidas,
mas os resultados são incertos para todas e todos que participam de sua
aventura. Vendo de uma perspectiva histórica, a brecha entre sociedade civil e
política institucional, que hoje aparece como problemática, foi fundamental para
levar ao esgotamento os regimes militares no passado recente. Sem o
desenvolvimento concreto dos sujeitos sociais ao nível das sociedades civis,
opondo-se e enfrentando nas ruas o regime, seria impossível superar as
ditadura no terreno político estatal. Hoje, em que novamente Parlamentos e
governos parecem divorciados de demandas das sociedades civis, volta a
aparecer a tal brecha. Traz enormes riscos? Sem dúvida, mas enormes
possibilidades também! A “cunha” da sociedade civil deve ser vista como
indispensável, mesmo quando chega ao limite da ruptura. De um modo
simples, se pode dizer que Parlamentos e governos, em última análise, são
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constituídos fora deles, na esfera da sociedade civil, e só funcionam de fato
empurrados por forças ativas que dela emanam e que os tencionam
permanentemente. Ao menos nas democracias não ritualizadas e formalizadas
é assim que acontece. O problema é que democracias, em termos
institucionais e de poder, se transformam em ritos e se formalizam facilmente,
autonomizando-se das sociedades que as produzem e até se impondo a elas.
Todo poder estatal se vê e, sobretudo, age como se ele próprio fosse
constituinte e não um poder constituído pela cidadania. O poder e as
instituições políticas nas democracias são derivados, com mandato delegado.
Esta é a sua essência como regime político. Não é a sociedade civil que se
distancia, pelo contrário, é o poder estatal que tende sempre a se distanciar de
sua base real na sociedade.
Na América Latina de hoje, o grande agravante para o rápido distanciamento e
estranhamento entre institucionalidade e poder, de um lado, e as sociedades
civis, de outro, são as políticas de ajuste e reestruturação adotadas, em
momentos variados, mas em todos os países, para se adequar à globalização
econômico-financeira do livre mercado. O fato da globalização entre nós ter
sido tão depredadora revela a própria fragilidade da institucionalidade e poder
estatal democrático conquistado. Aliás, mais que nas dinâmicas das
sociedades civis internas, é na globalização, no modo como vem se dando, que
a democracia na América Latina sofre limites e ameaças. É da agenda da
globalização neoliberal que emanam políticas de desmonte do Estado, de
flexibilização de direitos trabalhistas, de autonomização de instâncias
decisórias fundamentais como os Bancos Centrais, de prioridade do direito
financeiro e comercial aos direitos humanos e de cidadania. A globalização
operou uma verdadeira transferência de poder de decisão sobre os rumos do
desenvolvimento político e econômico dos países para instâncias multilaterais
alheias, distantes e nada democráticas, como o FMI, BM e OMC, quando não
diretamente aos que dão as cartas ao nível de mercados, os grandes
conglomerados econômico-financeiros. A seu modo, a globalização esvaziou a
política estatal de sua essência: o poder de decidir, na correlação de forças que
o legitimam, para onde vai o país, o tipo de desenvolvimento que lhe é mais
adequado. A política baseada em valores e princípios éticos reduz-se à boa
gestão, a uma administração com responsabilidade... sobretudo fiscal, segundo
os desejos dos mercados.
A pergunta que cabe fazer é por que, em plena redemocratização, a América
Latina inteira acabou presa da globalização? Por que, com a democracia, não
fomos capazes de definir estratégias diferentes de desenvolvimento? Incluir-se
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na globalização econômico-financeira foi uma opção de governos constituídos
em plena redemocratização, que significou na prática derrota política aos
setores democráticos de ponta nos diferentes países. Houve momentos de
“empate”, por assim dizer, em que nem se definiam políticas mais
democratizadoras, com uma reinserção mais soberana na ordem mundial, nem
a inclusão a qualquer preço se viabilizava. Exemplo mais claro é o do Brasil,
um tardio aderente das teses do neoliberalismo, só no começo dos anos 90. O
mais incrível nisto tudo é que a dependência, expressa no descontrole da
dívida, foi fator extremamente importante na corrosão dos velhos regimes. Uns
países de forma até rápida, outros mais lentamente, todos acabaram adotando
as políticas neoliberais, base da inclusão na tal globalização econômicofinanceira. O processo que levou a isto é revelador da questão da crise. No
geral, os governos se elegeram com uma agenda contra a dependência e o
tipo de desenvolvimento selvagem e excludente que a gerou. Uma vez no
poder, operou-se uma espécie de conversão, tornando-se eles adeptos das
políticas propostas. Por quê?
É como se a América Latina desenvolvesse novas lutas e elas tivessem que se
exprimirem numa institucionalidade ainda velha, defasada. Em todas as partes
é visível a crise do sistema partidário, mesmo do Brasil do novo PT e do
governo Lula. Dinamizam-se as sociedades, radicalizam-se, mas na mesma
proporção parece decrescer a capacidade de representação e a própria
confiança nos partidos e nos políticos profissionais. Tal “vazio” foi se ampliando
ao invés de diminuir. No contexto da democratização, as instituições e o poder
estatal tiveram que se abrir de algum modo, ser mais transparentes. Isto,
contraditoriamente, contribuiu para revelar o quanto a representação é
vilipendiada no exercício dos mandatos obtidos por eleição, podendo até o
interesse particular se sobrepor ao público. As novas institucionalidades,
definidas por Parlamentos viciados de origem, não enfrentaram o problema do
sistema político-eleitoral, mesmo tendo dado muito mais poder aos próprios
Parlamentos, como, aliás, convêm que assim seja nas democracias. Grosso
modo, pode-se dizer que nossos Parlamentos são ainda confederação de
interesses e não representação política da pluralidade social das nações
latinoamericanas. De todos modos, é fundamental ressaltar que os partidos
políticos nas democracias, por definição, são aparatos de expressão e direção
política geral de forças e coalizões de forças sociais e, ao mesmo tempo,
aparatos de conquista e exercício de poder. Sem partidos consistentes como
organizações e capazes de representação e governo não é possível construir
democracias sustentáveis. Vendo a realidade da América Latina, impõe-se uma
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urgente reforma político-eleitoral, capaz de por as instituições políticas em
sintonia com os grandes movimentos e processos da sociedade civil.
Despolitização
A década dos 90 foi, em toda a América Latina, da vitória do neoliberalsimo.
Vitória ideológica inclusive, legitimada pelo controle do selvagem mecanismo
de transferência de rendas dos mais pobres para os mais ricos que é a
inflação. As esquerdas ficaram acuadas, o idealismo saiu da agenda, a ética
sucumbiu. Tudo isto contribuiu para criar um sentimento de “despolitização”,
coisa, aliás, buscada pela globalização neoliberal, como ideologia, proposta e
prática política. É verdade que as esquerdas também, no geral, não se
renovaram na América Latina. O PT continua sendo uma grande exceção neste
quadro. As novas agendas do feminismo, do ambientalismo, da diversidade
étnico-racial, das minorias, enfim, as novas demandas não se traduziram em
agendas de partidos consistentes. Os que aqui foram chamados de invisíveis
simplesmente parecem não existir como questão para a política e os políticos.
Mas, nada como um dia após o outro, segundo a sabedoria popular. A falta de
sustentabilidade do neoliberalismo como modelo econômico e sua intrínseca
incompatibilidade com a democracia mais além do que a formal revelaram-se
na prática, na forma de crise, aqui entre nós e no mundo todo. Este fato abriu
espaço para mudanças nas correlações de forças políticas, nos diferentes
países. Mudanças vem acontecendo como uma nova onda. Mas ainda não têm
se traduzido em políticas sinalizadores de novos rumos. O caso De La Rúa, na
Argentina, é exemplar. Novas propostas ganham as eleições, mas acabam
dando continuidade às mesmas políticas. Toledo, no Peru, é outro exemplo.
Mas em duas décadas de democracia na América Latina, com os limites já
apontados, foram desenvolvidas experiências de governos e de dinamização
da democracia que valem a pena resgatar. Não existe ainda uma mapa
completo de tais experiências, mas elas são mais extensas e impactantes do
que se imagina, gerando dinâmicas que apontam para novas possibilidades.
Trata-se do que vem se chamando de governos participativos, onde as
questões da institucionalidade e do poder estatal começam a ser redefinidas e
novas pontes – superando “brechas” – são construídas entre o dinamismo das
sociedades civis e a política institucional. A importância disto explica o avanço
do PT como partido e como proposta na sociedade brasileira. Mas vem
ocorrendo no Peru, na Colômbia, na Bolívia, no Equador e agora, por força da
própria crise, na Argentina.
Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004
12/12
Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre
Data: 8 Maig
Sessió: Democràcia participativa i moviments socials
Ponent: Candido Grybowsky
Só as experiências participativas podem “desempatar” o impasse institucional e
político das democracias na América Latina. Mas sob uma fundamental
condição: têm que ser capazes de promover uma nova institucionalidade, uma
espécie de refundação de baixo para cima, levando os Parlamentos e governos
a produzirem as mudanças necessárias. Para avançar na democratização,
para radicalizar a democracia, precisamos chegar ao Estado, invertendo o
desmanche promovido recentemente e criando condições para a gestão e
regulação democráticas da economia, da política, do projeto de
desenvolvimento. Para isto é fundamental uma institucionalidade e um poder
estatal baseado nos princípios e valores éticos da cidadania. Mas é
fundamental também que não se adie mais a inclusão de todos e todas,
fazendo o encontro entre povo e nação. Não é mais possível esperar para
crescer e então distribuir, incluir, democratizar. O desempate pode ser feito de
antemão, empoderando os excluídos e junto com eles formando um bloco de
forças democráticas e democratizadores como base de um novo
desenvolvimento para a região. Desafio de monta. Devemos começar por
imaginar, sonhar, criar utopias, para estimular a vontade. Afinal, democracias
começam por sonhos e tem demonstrado que podem produzir felicidade
humana, mais do que outros modos de organização econômica e política na
história.
Texto apresentado no IV Fórum de Autoridades Locais de Porto Alegre,
Barcelona dias 7 e 8 de maio de 2004.
Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004
13/13