Democracia Participativa e Movimentos Sociais
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Democracia Participativa e Movimentos Sociais
Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky Democracia Participativa e Movimentos Sociais: Novos e antigos impasses na América Latina Cândido Grzybowski, Sociólogo, diretor do Ibase Após ditaduras e guerras revolucionárias, a América Latina trilha caminhos da construção democrática. Enquanto a Colômbia vive uma guerra cujas motivações perdidas se situam nos conturbados anos de 1950 e 1960, onde a Cuba revolucionária desponta como paradigma, o México finalmente dá a chance à alternância no poder após sete décadas de domínio do PRI e o Paraguai ainda ensaia os primeiros passos pós-ditadura. Numa ponta, a democracia atropelada e esgarçada, como nos casos da Argentina e do Peru. Na outra, busca e esperança, como no Brasil de Lula. Temos uma nova versão de populismo de “descamisados”, como na Venezuela, e a volta ao velho populismo autoritário e sanguinário, como no Haiti. Temos, também, o bom discípulo da globalização neoliberal dominante, como o Chile. E temos muita crise, muita violência, muita desilusão. Estamos numa espécie de impasse no enfrentamento da miséria, pobreza e desigualdade social. Nossa identidade está em crise. Afinal, quem somos e qual nosso lugar neste planeta Terra? Quais as alternativas diante da globalização para que a democracia crie entre nós as bases de um desenvolvimento humano sustentável, com todos os direitos humanos para todas e todos os latinoamericanos? Uma questão emergente são os desencontros e brechas na relação entre sociedade civil e institucionalidade política. Com a democratização, cresce em importância a sociedade civil organizada, com novos atores sociais, novas demandas e novas mediações. No processo, se produz um alargamento do espaço público e acentua-se a desestatização da política. Mudam a cultura política e as formas de organização e participação cidadã. Este fato gera tensões no seio das próprias sociedades civis, na relação entre movimentos sociais e organizações como as ONGs ou entre antigos e novos movimentos. A vitalidade das sociedades civis contrasta com a endêmica crise do sistema político e partidário e com o crescente descrédito nos políticos profissionais e nas formas de representação. Fruto das políticas de desmonte e reajuste para estar em sintonia com a globalização econômico-financeira, o próprio Estado Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 1/1 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky se burocratizou e distanciou, contribuindo para ampliar o fosso entre sociedade civil e instituições políticas. Um resultado assustador de tal situação é o fato que em vários países a própria institucionalidade e a democracia como ideal começam a ser questionadas. Como inverter esta onda, canalizando a vitalidade das sociedades civis para a renovação democrática? Um ponto crucial na análise do processo de democratização na América Latina diz respeito às mudanças nas sociedades civis. Não se trata de pensar a realidade com as categorias formais da democracia liberal, que limita a questão democrática às formas de constituição e funcionamento dos governos. Tratase, isto sim, de pensar os complexos processos que movem por dentro as sociedades latinoamericanas e que permitem qualificá-las como sociedades em situação de construção da democracia como modo de ser e se desenvolver. Um primeiro aspecto a salientar neste sentido é que democracias não são produzidas por economias e nem por Estados, apesar destes serem uma condição necessária das possibilidades históricas de democracia numa sociedade dada. Democracias para existir precisam de sujeitos sociais – seus portadores e construtores efetivos. Para tanto, é necessário que se criem sujeitos históricos que imaginem e desejem a democracia, que se organizem e lutem por ela, que a constituam nas condições econômicas, culturais e políticas existentes. A conquista da democracia e o processo de democratização que daí decorre implica em mudanças no desenvolvimento da economia e no poder de Estado, maior ou menor, dependendo da diversidade de sujeitos e extensão da luta e da correlação de forças políticas assim obtida. A economia e, particularmente, o Estado são estratégicos como espaços de avanço e promoção da democracia. Mas quem os empurra e constitui, em última análise, são os sujeitos sociais. Estes são, na expressão de Gramsci, blocos históricos que combinam os modos de sua inserção na estrutura social e na diversidade de relações de que fazem parte mais a própria consciência e vontade. Por isto, o espaço de constituição dos sujeitos sociais – a sociedade civil – é por excelência o locus da democracia. Recorte analítico Neste contexto de avassaladora globalização neoliberal, o conceito de sociedade civil é fonte de dubiedades e confusões, denunciando tanto o déficit de análise e reflexão teórica como a própria fragilidade das democracias na América Latina. Por sociedade civil deve-se tomar o conjunto de práticas sociais – com suas relações, processos, normas, valores, percepções e atitudes, instituições, organizações, formas e movimentos – que não se enquadram como econômicas ou político-estatais. Trata-se de um recorte Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 2/2 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky analítico na complexa realidade social, ela vista como uma unidade “síntese de múltiplas determinações”, conforme a genial expressão de K. Marx. Entre a economia/mercados e o Estado/poder, existe a cunha da sociedade civil, mais ou menos desenvolvida. As sociedades civis, assim como as economias e os Estados, não são um valor em si, expressão de uma positividade em abstrato. São, isto sim, históricas e mais ou menos desenvolvidas, dependendo da diversidade e complexidade dos sujeitos sociais que a constituem, moldam, dão vida, expressam o que são e desejam as sociedades reais. O tipo e grau de seu desenvolvimento é uma condição indispensável do modo como se desenvolvem as democracias. Assim concebida a questão, é possível destacar algumas dimensões e processos das sociedades civis na América Latina. Aliás, se faz urgente uma ampla radiografia do recente desenvolvimento das sociedades civis e sua relação com a democracia entre nós. Por exemplo, é evidente que as ditaduras dos 60 até meados dos 80 nos diferentes países não foram iguais porque tinham diante de si diferentes tipos e modos de constituição das respectivas sociedades civis. Tome-se o caso da Argentina e Chile, de ditaduras particularmente sanguinárias, onde qualquer um reconhece o tecido social organizativo mais abrangente e forte do que em países como o Brasil e Peru, onde as ditaduras foram de tipo diverso, para ficar em casos clássicos da história recente. Além do mais, no Brasil, o novo e até surpreendente desenvolvimento da sociedade civil se fez primeiro em direta oposição à ditadura militar e explica muito do processo que vem percorrendo a democratização a partir de então. Como, em outro caso, o da Argentina, a destruição social feita pela ditadura, abalou profundamente o desenvolvimento posterior dos diferentes sujeitos constitutivos de sua exuberante sociedade civil, não criando as mesmas possibilidades que no Brasil no período recente. No Brasil, diante da fragilidade de sua sociedade civil, o processo autoritário gerou uma economia e um Estado forte – de Mal Estar, na expressão de Francisco de Oliveira, mas forte e competente. Na Argentina, com uma sociedade civil mais organizada, além dos 30 mil mortos e desaparecidos, a ditadura destruiu a capacidade do Estado e fez a sua economia patinar. Aqui fica clara a idéia das sociedades civis como cunhas entre economia e poder, mas cunhas que podem se desenvolver ou ser destruídas, determinando o processo democrático daí resultante. Aprofundando essa questão – começando pelos novos sujeitos sociais e seus atores concretos – uma fundamental novidade é a irrupção das mulheres, através da multiplicidade de organizações e movimentos. Hoje, em todos os Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 3/3 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky países da região, mais num e menos noutro, a democracia e o processo de democratização têm nas mulheres uma referência, seja como uma das dimensões da desigualdade social a enfrentar, seja como sujeitos sociais cuja participação acaba sendo decisiva. A importância deste fato ainda não se expressa da mesma forma na institucionalidade política – da representação e dos partidos – e nem nas estruturas de poder, muito menos em igualdade de oportunidades a nível de trabalho e renda. Atravessando as classes sociais e as redefinindo historicamente, a questão da desigualdade de relações de gênero, trazida pelas mulheres para o debate público, exprime a força de sua presença na constituição das sociedades civis da América Latina. Um aspecto a salientar ainda é que as mulheres se organizam em redes e movimentos que extrapolam os países da própria região, sendo mais internacionalistas do que outros sujeitos e atores. Cabe, também, lembrar que as mulheres produziram ONGs que se encontram entre as mais importantes de cada país, mas sua bandeira está hoje no centro de organizações tradicionalmente arredias à questão, como o movimento sindical e camponês, ao menos no Brasil da CUT, do MST e da Contag. Questões camufladas A desigualdade étnico-racial, pela importância que vem adquirindo nos últimos anos, vai ser base da constituição de novos e aguerridos sujeitos sociais, cujo perfil ainda é cedo para definir. Aliás, em torno a este problema se forjou o nó mais duro da questão democrática em nossas sociedades colonizadas e escravizadas. Tendo na contribuição dos negros e indígenas parte fundamental de sua história, cultura e identidade, a América Latina não tem conseguido se reconhecer como é. A questão étnico-racial, por mais que as estatísticas mostrem, é camuflada, negada, não só pelo poder estatal, mas no seio da própria sociedade civil. Aqui estamos diante de um impasse ainda não resolvido. O racismo e a discriminação estão no coração mesmo das sociedades civis e limitam o seu desenvolvimento democrático, com reconhecimento da diversidade étnico-racial que nos constitui. A fragilidade de movimentos e organizações em torno a tal questão são a maior prova do quanto ainda temos que andar neste campo. Já o movimento ambientalista – de promoção da sustentabilidade e de justiça ambiental – não tem o mesmo desenvolvimento e a mesma presença que os movimentos de mulheres. Mas há que se registrar a sua vitória em termos éticos, transformando a preocupação com o bem comum representado pelo patrimônio natural em um valor a perseguir, que atravessa as diferentes classes e grupos da população. Isto se fez sobretudo pelo debate público, Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 4/4 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky tendo a Conferência da Eco-92, no Rio de Janeiro, dado um grande impulso. Além do mais, muitos movimentos de excluídos e marginalizados se constituíram e conseguiram presença pública através da bandeira ambientalista – como as comunidades de indígenas e seringueiros atingidos por grandes desmatamentos ou camponeses expulsos por barragens para hidroelétricas, no Brasil, ou a privatização de águas em Cochabamba, na Bolívia. Na mesma linha vão trabalhos de ONGs que promovem a agroecologia e são contra a produção de alimentos transgênicos. Os exemplos são muitos e neste campo é de se esperar um grande desenvolvimento de movimentos e organizações da sociedade civil na América Latina. A agenda do desenvolvimento sustentável não pode mais ser contornada, mesmo se não são tão visíveis seus sujeitos e atores. O fato é que todos os governos se obrigam a implementar políticas a respeito e as empresas se sentem acuadas neste campo, mesmo que seja até visível o predomínio de modelos insustentáveis, em termos ambientais e democráticos, no acesso e uso dos recursos naturais. Para lembrar Galeano, na América Latina as veias continuam abertas. Permeando todos os novos movimentos e organizações, do mesmo modo que cada vez mais também nos mais tradicionais, muitas vezes não se diferenciando deles, mas ao seu modo contribuindo para o desenvolvimento das sociedades civis na América Latina, é importante reconhecer as iniciativas em torno aos direitos humanos. Em termos mais simples, muitas das organizações e movimentos, que têm os direitos humanos como sua referência, se auto definem como promotores da cidadania. Aqui entramos num campo mais difuso do próprio desenvolvimento recente das sociedades civis. Afinal, o conceito e a prática da cidadania são intrínsecos da democracia, como concepção e como processo histórico. É impossível conceber democracia sem cidadania, sem cidadãs e cidadãos no exercício de seus direitos e responsabilidades. Mas um fato político da história recente, e que contem uma radicalidade democrática até aqui pouco analisada, é a redefinição prática da noção de cidadania a partir do desenvolvimento das próprias sociedades civis. Isto acontece em vários países da América Latina, mas em particular naqueles, como o Brasil, em que se renovam velhas lutas e movimentos ou literalmente se criam novos sujeitos a partir exatamente de sua situação de exclusão ou subordinação econômica, cultural e política. Como categoria política, a partir de Rousseau e da Revolução Francesa, a cidadania tem como referência um Estado e o território nacional que ele controla. São cidadãs e cidadãos apenas aquelas e aqueles que o Estado reconhece como tendo os direitos civis e políticos iguais em seu território. A apropriação da noção de cidadania por aquelas e aqueles que tomam os direitos humanos universais como referência Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 5/5 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky e lutam por eles, se contrapondo aos próprios Estados, alarga e redefine a cidadania como categoria política e analítica. Tal ponto nos remete aos invisíveis nas sociedades latinoamericanas – os que não fazem parte das sociedades civis, simplesmente porque não têm identidade, projeto, organização social e forma de luta para se afirmar, se defender, para conquistar direitos e reconhecimento público. São os politicamente destituídos de qualquer poder real. A bem da verdade, é necessário reconhecer o avanço da cidadania formal. Mas ter direito político de votar não é a mesma coisa que ser cidadão. Entre 30 e 60% da população de nossos países sofre de alguma forma de exclusão social, negadora de sua cidadania. Estes, quando não conseguem se organizar e lutar, para politicamente voltar a se incluir e ter alguma perspectiva de mudança na situação geradora de desigualdade, pobreza e exclusão social, constituem o enorme contingente de invisíveis das nossas sociedades. Perdem as sociedades civis e perde a democracia. Mas se por alguma razão grupos de invisíveis se organizam, ganha a sociedade civil e ganha a democracia, pois sua presença como atores concretos é a condição indispensável de sua inclusão sustentável na cidadania. Muitas das ONGs da América Latina, trabalhando com perspectivas de educação popular e para a cidadania, também têm como alvo exatamente os grupos e comunidades de invisíveis. São incontáveis, em todos os países, exemplos de relativo sucesso das iniciativas em termos de organização e participação de tais segmentos da população, baseadas em grande parte na cumplicidade política dos militantes das ONGs com as suas demandas. Pobreza e miséria produzimos de modo persistente ao longo de nossa história, com muita violência, se necessário. Somadas às múltiplas formas de desigualdade social – étnico-racial, de gênero, entre regiões e setores, onde a pura análise em termos de relações de classes sociais é simplesmente insuficiente e até simplificadora – constituem o centro da questão democrática entre nós. A exclusão social atravessa o conjunto das lutas democráticas em nossos países, condicionando alianças e propostas dos diferentes sujeitos sociais, o desenvolvimento da sociedade civil, a institucionalidade política, o controle do Estado e o modo de gerir a economia. A exclusão social cataliza os processos de exploração, dominação e desigualdade, rompendo laços sociais básicos e alimentando o apartheid social. A luta por novas formas de inclusão que se dá nas diferentes relações, processos e estruturas, tanto na economia, como na vida social, cultural e política, é a expressão mesma das possibilidades e limites da democratização na nossa realidade. Trata-se de Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 6/6 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky romper com a lógica essencialmente antidemocrática que, ao incluir parte da sociedade, condena a outra a alguma forma de exclusão e desigualdade social. Olhando desta perspectiva, as mudanças provocadas pela globalização neoliberal em nosso meio levam a democracia ao impasse ao acentuar a exclusão social. Estamos vivendo uma contradição entre a demanda crescente de inclusão nos direitos fundamentais e os processos reais de expulsão e migração, inclusive para fora dos países e da região, favelização, informalização do trabalho (isto é, sem direitos trabalhistas), desemprego. A contradição cria situações dramáticas como as crises vividas no Equador, Argentina e Bolívia ou inviabiliza qualquer projeto de nação, como parece ser o caso do Haiti de hoje, primeiro país a acabar com a escravidão entre nós, há quase duzentos anos. Mas, em todos os países, em graus diversos, piora a situação dos que já vivem em situação de pobreza e miséria, com novos segmentos se juntando aos pobres de ontem, enquanto aumenta a concentração de renda e se acentua a desigualdade. Podemos sair deste impasse? Ou, de um modo mais direto, como poderá a democratização romper com esta lógica, para não revertermos a uma situação autoritária ou deixarmos de sermos sociedades minimamente viáveis? Protagonismos Estamos diante de uma rica e complexa história, mas muito diferenciada de país a país e não faltam sujeitos constitutivos dessas sociedades. Destaque-se os sindicatos, que ocupam posições centrais nos processos de democratização, além de terem sido as maiores vítimas da onda de ditaduras anteriores. São, mais do que outras formas de organização e movimentos da sociedade civil, verdadeiros celeiros de partidos políticos e, por isto mesmo, muito mais intrinsecamente ligados à institucionalidade do poder nas diferentes sociedades. Mas suas estratégias podem variar muito, tanto pelo tamanho e lugar nos respectivos países, como pelos momentos de seu desenvolvimento e até pelas concepções e visões que adotam. Na América Latina, onde mais de 50% estão na informalidade – são invisíveis, na linguagem aqui usada –, o movimento sindical diz respeito à parte visível dos que trabalham e vivem do seu trabalho. É importante afirmar que, ao contrário do que pensa toda uma tradição de esquerda, o movimento sindical não tem assegurado um protagonismo político-cultural por ter raízes no operariado das empresas. O protagonismo, quando o exerce, é por força de sua própria capacidade, das lutas que desenvolve, do modo como articula suas lutas às lutas dos outros. O protagonismo é um atributo político que se desenvolve e não algo decorrente da posição na estrutura de relações de produção. Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 7/7 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky No pólo oposto ao movimento sindical, as organizações de proprietários e capitalistas de todos os tipos constituem outro sujeito social. Também faz parte do núcleo duro das sociedades civis, mesmo que, na maior parte das vezes, ele não se reconheça como tal. Aqui não me refiro as estratégias privadas de organização de empreendimentos produtivos de bens e serviços, comerciais, financeiros e das relações ao nível do mercado. Estou tendo em mente as suas organizações classistas, de defesa coletiva de interesses, de formulação de visões e de propostas, de incidência política direta. Aliás, é preciso que se diga em alto e bom tom que este sujeito social, como coletivo, em todos os países latinoamericano, sem nenhuma exceção, forjou-se como um ser antidemocrático. Sua conversão, ainda parcial, está se dando por força das lutas que todos os outros sujeitos sociais fazem. Sua matriz política não é a sociedade civil, nem o Estado. Nossos proprietários e capitalistas descendem de uma identidade conquistadora e colonizadora de “donos de gado e gente”. Só com a democratização é que assistimos a uma oportuna mudança de importantes setores. Uma nova geração de proprietários e capitalistas, por força da democratização e dos impasses da própria globalização neoliberal, que lhes tira riquezas e poder, está sendo constituída na América Latina. De qualquer forma, não dá para esperar desta burguesia, que finalmente não esconde as próprias fragilidades, ruptura na lógica de exclusão social. É importante não perder de vista outros sujeitos que constituem as sociedades civis e, a seu modo, têm impacto na democratização da América Latina. Aqui me limito a chamar a atenção para a comunicação de massa. A propriedade dos meios – quase exclusivamente privada em nossos países, ao menos do que realmente conta como comunicação de massa – não nos deve impedir de ver a função pública e política da comunicação. Hoje os meios de comunicação de massa são espaços de construção do imaginário coletivo, de modos de ver e conceber, de movimentos de opinião, alimentando os processos em curso nas sociedades civis em termos de identidade e participação. São espaços de disputa democrática atravessados por enormes contradições onde a propriedade significa enorme poder. Mas é fundamental ver como certas questões são tratadas e conquistam lugar nos meios de comunicação. Do mesmo modo, é indispensável analisar a ressonância social do que veiculam os meios, o modo como é captado pelos diferentes sujeitos e suas estratégias. Esta é uma frente de lutas democráticas que precisa de maior destaque, subordinando a liberdade mercantil dos proprietários dos meios ao interesse público. Como a democracia pode tratar um bem público privado e monopolizado como a Rede Globo, hoje presente em toda a América Latina? Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 8/8 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky Esgotamento de regimes Nas últimas duas décadas, a América Latina foi marcada por um amplo processo constituinte de nova institucionalidade. De fato, não foram exatamente rupturas institucionais bruscas e radicais que estão na origem de tal institucionalidade democrática. Dado o esgotamento dos regimes anteriores – caso das ditaduras militares – ou o impasse nas guerras revolucionárias – como na América Central – , a transição para a democracia e a nova institucionalidade guardam resquícios do passado que não podem ser desprezados na análise do estado da questão democrática entre nós. O exemplo do Chile é emblemático a respeito. Apesar da vitória do “NO”, a nova institucionalidade reservou poder para o antigo ditador e o Exército. A institucionalidade estabelecida não foi capaz de barrar a volta de antigo ditador por via eleitoral, como na Bolívia. Os acordos, base da nova institucionalidade, rapidamente são rompidos, como na Guatemala. Ou a institucionalidade não resiste ao oportunismo político dos que conquistam hegemonia pelo voto e procuram se reproduzir de todas formas no poder. Este é um mal que parece atingir uma amplo espectro político, pois o que, além de mudarem constituições de seus países e garantirem condições para se reeleger, têm em comum figuras tão diferentes como Ménem, na Argentina, Fujimore, no Peru, Chaves, na Venezuela, e Cardoso, no Brasil? Enfim, mal implantada, a institucionalidade democrática da América Latina revela os seus limites e, o que é pior, pode ser uma fonte de enormes crises políticas. A questão é como a partir da institucionalidade política fazer avançar a democracia, criando até nova institucionalidade e um poder estatal mais adequados. O processo é determinante, as instituições uma condição dele, condição que pode se transformar no próprio desenvolvimento. Esta é, aliás, a natureza da democracia, onde apenas as condições de partida são definidas, mas os resultados são incertos para todas e todos que participam de sua aventura. Vendo de uma perspectiva histórica, a brecha entre sociedade civil e política institucional, que hoje aparece como problemática, foi fundamental para levar ao esgotamento os regimes militares no passado recente. Sem o desenvolvimento concreto dos sujeitos sociais ao nível das sociedades civis, opondo-se e enfrentando nas ruas o regime, seria impossível superar as ditadura no terreno político estatal. Hoje, em que novamente Parlamentos e governos parecem divorciados de demandas das sociedades civis, volta a aparecer a tal brecha. Traz enormes riscos? Sem dúvida, mas enormes possibilidades também! A “cunha” da sociedade civil deve ser vista como indispensável, mesmo quando chega ao limite da ruptura. De um modo simples, se pode dizer que Parlamentos e governos, em última análise, são Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 9/9 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky constituídos fora deles, na esfera da sociedade civil, e só funcionam de fato empurrados por forças ativas que dela emanam e que os tencionam permanentemente. Ao menos nas democracias não ritualizadas e formalizadas é assim que acontece. O problema é que democracias, em termos institucionais e de poder, se transformam em ritos e se formalizam facilmente, autonomizando-se das sociedades que as produzem e até se impondo a elas. Todo poder estatal se vê e, sobretudo, age como se ele próprio fosse constituinte e não um poder constituído pela cidadania. O poder e as instituições políticas nas democracias são derivados, com mandato delegado. Esta é a sua essência como regime político. Não é a sociedade civil que se distancia, pelo contrário, é o poder estatal que tende sempre a se distanciar de sua base real na sociedade. Na América Latina de hoje, o grande agravante para o rápido distanciamento e estranhamento entre institucionalidade e poder, de um lado, e as sociedades civis, de outro, são as políticas de ajuste e reestruturação adotadas, em momentos variados, mas em todos os países, para se adequar à globalização econômico-financeira do livre mercado. O fato da globalização entre nós ter sido tão depredadora revela a própria fragilidade da institucionalidade e poder estatal democrático conquistado. Aliás, mais que nas dinâmicas das sociedades civis internas, é na globalização, no modo como vem se dando, que a democracia na América Latina sofre limites e ameaças. É da agenda da globalização neoliberal que emanam políticas de desmonte do Estado, de flexibilização de direitos trabalhistas, de autonomização de instâncias decisórias fundamentais como os Bancos Centrais, de prioridade do direito financeiro e comercial aos direitos humanos e de cidadania. A globalização operou uma verdadeira transferência de poder de decisão sobre os rumos do desenvolvimento político e econômico dos países para instâncias multilaterais alheias, distantes e nada democráticas, como o FMI, BM e OMC, quando não diretamente aos que dão as cartas ao nível de mercados, os grandes conglomerados econômico-financeiros. A seu modo, a globalização esvaziou a política estatal de sua essência: o poder de decidir, na correlação de forças que o legitimam, para onde vai o país, o tipo de desenvolvimento que lhe é mais adequado. A política baseada em valores e princípios éticos reduz-se à boa gestão, a uma administração com responsabilidade... sobretudo fiscal, segundo os desejos dos mercados. A pergunta que cabe fazer é por que, em plena redemocratização, a América Latina inteira acabou presa da globalização? Por que, com a democracia, não fomos capazes de definir estratégias diferentes de desenvolvimento? Incluir-se Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 10/10 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky na globalização econômico-financeira foi uma opção de governos constituídos em plena redemocratização, que significou na prática derrota política aos setores democráticos de ponta nos diferentes países. Houve momentos de “empate”, por assim dizer, em que nem se definiam políticas mais democratizadoras, com uma reinserção mais soberana na ordem mundial, nem a inclusão a qualquer preço se viabilizava. Exemplo mais claro é o do Brasil, um tardio aderente das teses do neoliberalismo, só no começo dos anos 90. O mais incrível nisto tudo é que a dependência, expressa no descontrole da dívida, foi fator extremamente importante na corrosão dos velhos regimes. Uns países de forma até rápida, outros mais lentamente, todos acabaram adotando as políticas neoliberais, base da inclusão na tal globalização econômicofinanceira. O processo que levou a isto é revelador da questão da crise. No geral, os governos se elegeram com uma agenda contra a dependência e o tipo de desenvolvimento selvagem e excludente que a gerou. Uma vez no poder, operou-se uma espécie de conversão, tornando-se eles adeptos das políticas propostas. Por quê? É como se a América Latina desenvolvesse novas lutas e elas tivessem que se exprimirem numa institucionalidade ainda velha, defasada. Em todas as partes é visível a crise do sistema partidário, mesmo do Brasil do novo PT e do governo Lula. Dinamizam-se as sociedades, radicalizam-se, mas na mesma proporção parece decrescer a capacidade de representação e a própria confiança nos partidos e nos políticos profissionais. Tal “vazio” foi se ampliando ao invés de diminuir. No contexto da democratização, as instituições e o poder estatal tiveram que se abrir de algum modo, ser mais transparentes. Isto, contraditoriamente, contribuiu para revelar o quanto a representação é vilipendiada no exercício dos mandatos obtidos por eleição, podendo até o interesse particular se sobrepor ao público. As novas institucionalidades, definidas por Parlamentos viciados de origem, não enfrentaram o problema do sistema político-eleitoral, mesmo tendo dado muito mais poder aos próprios Parlamentos, como, aliás, convêm que assim seja nas democracias. Grosso modo, pode-se dizer que nossos Parlamentos são ainda confederação de interesses e não representação política da pluralidade social das nações latinoamericanas. De todos modos, é fundamental ressaltar que os partidos políticos nas democracias, por definição, são aparatos de expressão e direção política geral de forças e coalizões de forças sociais e, ao mesmo tempo, aparatos de conquista e exercício de poder. Sem partidos consistentes como organizações e capazes de representação e governo não é possível construir democracias sustentáveis. Vendo a realidade da América Latina, impõe-se uma Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 11/11 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky urgente reforma político-eleitoral, capaz de por as instituições políticas em sintonia com os grandes movimentos e processos da sociedade civil. Despolitização A década dos 90 foi, em toda a América Latina, da vitória do neoliberalsimo. Vitória ideológica inclusive, legitimada pelo controle do selvagem mecanismo de transferência de rendas dos mais pobres para os mais ricos que é a inflação. As esquerdas ficaram acuadas, o idealismo saiu da agenda, a ética sucumbiu. Tudo isto contribuiu para criar um sentimento de “despolitização”, coisa, aliás, buscada pela globalização neoliberal, como ideologia, proposta e prática política. É verdade que as esquerdas também, no geral, não se renovaram na América Latina. O PT continua sendo uma grande exceção neste quadro. As novas agendas do feminismo, do ambientalismo, da diversidade étnico-racial, das minorias, enfim, as novas demandas não se traduziram em agendas de partidos consistentes. Os que aqui foram chamados de invisíveis simplesmente parecem não existir como questão para a política e os políticos. Mas, nada como um dia após o outro, segundo a sabedoria popular. A falta de sustentabilidade do neoliberalismo como modelo econômico e sua intrínseca incompatibilidade com a democracia mais além do que a formal revelaram-se na prática, na forma de crise, aqui entre nós e no mundo todo. Este fato abriu espaço para mudanças nas correlações de forças políticas, nos diferentes países. Mudanças vem acontecendo como uma nova onda. Mas ainda não têm se traduzido em políticas sinalizadores de novos rumos. O caso De La Rúa, na Argentina, é exemplar. Novas propostas ganham as eleições, mas acabam dando continuidade às mesmas políticas. Toledo, no Peru, é outro exemplo. Mas em duas décadas de democracia na América Latina, com os limites já apontados, foram desenvolvidas experiências de governos e de dinamização da democracia que valem a pena resgatar. Não existe ainda uma mapa completo de tais experiências, mas elas são mais extensas e impactantes do que se imagina, gerando dinâmicas que apontam para novas possibilidades. Trata-se do que vem se chamando de governos participativos, onde as questões da institucionalidade e do poder estatal começam a ser redefinidas e novas pontes – superando “brechas” – são construídas entre o dinamismo das sociedades civis e a política institucional. A importância disto explica o avanço do PT como partido e como proposta na sociedade brasileira. Mas vem ocorrendo no Peru, na Colômbia, na Bolívia, no Equador e agora, por força da própria crise, na Argentina. Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 12/12 Nom del diàleg: Fòrum d’Autoritats Locals de Porto Alegre Data: 8 Maig Sessió: Democràcia participativa i moviments socials Ponent: Candido Grybowsky Só as experiências participativas podem “desempatar” o impasse institucional e político das democracias na América Latina. Mas sob uma fundamental condição: têm que ser capazes de promover uma nova institucionalidade, uma espécie de refundação de baixo para cima, levando os Parlamentos e governos a produzirem as mudanças necessárias. Para avançar na democratização, para radicalizar a democracia, precisamos chegar ao Estado, invertendo o desmanche promovido recentemente e criando condições para a gestão e regulação democráticas da economia, da política, do projeto de desenvolvimento. Para isto é fundamental uma institucionalidade e um poder estatal baseado nos princípios e valores éticos da cidadania. Mas é fundamental também que não se adie mais a inclusão de todos e todas, fazendo o encontro entre povo e nação. Não é mais possível esperar para crescer e então distribuir, incluir, democratizar. O desempate pode ser feito de antemão, empoderando os excluídos e junto com eles formando um bloco de forças democráticas e democratizadores como base de um novo desenvolvimento para a região. Desafio de monta. Devemos começar por imaginar, sonhar, criar utopias, para estimular a vontade. Afinal, democracias começam por sonhos e tem demonstrado que podem produzir felicidade humana, mais do que outros modos de organização econômica e política na história. Texto apresentado no IV Fórum de Autoridades Locais de Porto Alegre, Barcelona dias 7 e 8 de maio de 2004. Diàlegs - Fòrum Universal de les Cultures – Barcelona 2004 13/13