MICROCONTOS - Contos Encolhidos - Silas Corrêa Leite Raposas

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MICROCONTOS - Contos Encolhidos - Silas Corrêa Leite Raposas
MICROCONTOS - Contos Encolhidos - Silas Corrêa Leite
Raposas
Chegou em casa e a mulher estava com o açougueiro na sua antiga cama
de casal. Já a vira com o padeiro, o lenhador, o entregador de raposas. Depois o leiteiro,
o encanador e o engolidor de fogos do Circo São Judas Tadheu. Foi pro quarto chorar
escondido. Fumou com um certo medo-coisa. Só tinha de vida o conhaque com Fernet,
o luar de Itararé, o violão e o dominó dominical com os amigos que o perdoavam por
ser impotente.
Vôo
Queria ter nascido Vôo de Pássaro e não Ser "humanus", disse certa vez o
pianista chorão à imã micro-empresária. Ela assustou-se a principio, mas estava
acostumada com ele que era mais novo e metido a Poeta Cubista e visionário nas horas
vagas. Quando o coitado finalmente um dia anoiteceu e não amanheceu nunca mais, ela
não se preocupou muito. Cuidou bem dos pertences íntimos, partituras clássicas e dotes
financeiros dele, porque também sabia escondido que, cada Pássaro pousa um dia e,
todo Vôo, cedo ou tarde vira cerca de tabuinhas brancas.
Gaiola
Criava pássaros raros. Além de pardais, corruíras, patativas, bem-te-vis
até alguns exóticos pássaros que sequer existiam. Quando a Polícia Florestal descobriu
foi preso por crime ambiental em flagrante delito sem direito a fiança. Na Cadeia
Pública de Itararé, triste e melancólico, sempre faminto e miserável canta Chitãozinho e
Xororó toda manhã e toda tarde que camufla no íntimo.
Finados
Vinham roubar flores no secreto jardim imperial todo dia de
Finados. Depois ele tinha trabalho dobrado para replantar, arar, colocar estrume e flor
de carinho para recuperar a invasão e o desperdício. Mas naquele dois de novembro
estava devidamente preparado. Armou a besta de mão e ficou esperando os guris
carvoeiros da periférica Vila dos Pobres de Itararé.
Ninhos
Para a Memória de Vladimir Herzog - Vlado)
“É preciso pagar nossa Taxa de Trevas”
(José Roberto Nool)
A estátua do Marechal Goiaba estava viva?. Bem esculpida em pedra-sabão, parecia
mesmo obra de gênio palacial, tal a qualidade estético-formal do desenho, do
acabamento e da vaidade do acerto garboso (e cheio de pompa) da arte final. Só os
pombos tinham medo dela, as chuvas tropicais desviavam de seu destino pétreo, e as
crianças ainda não desmamadas tinham vergonha do nojo oficial que ela provocava.
Mas, no Parque de Confinamento Redentor, as pessoas insensíveis como ovelhas
tosquiadas até a cumprimentavam, dando certo que era autoridade ilegal posando de
gente. Ou seria medo do Redil 3l de Março, um simbólico esgoto a céu aberto? O pior
foi quando a estátua começou a responder. Correu boataria por atacado. No entanto, um
político gagá, achando que aquilo tudo era obra de comunista provocador contra a
ordem militar do Ditador Lesma Três, mandou retirar a estátua doada pelas Moralistas
de Santana, e guardou aquele ícone sem controle num almoxarifado brechó (chamado
Bordel Excelência) do governo de exceção, com tudo aquilo de ruim que do regime de
arbítrio a estátua acintosamente representava, como corrupção endêmica
institucionalizada em todos os níveis, miséria absoluta, prostituição política e violência
secreta (e censurada) de ninhos de escorpiões. De lá nunca mais foi vista a obra com seu
oliva dolmã-de-tala. Somente estranharam o que encontraram no lugar dela, quase trinta
anos depois um monturo de sal cuja origem comprovadamente seriam lágrimas
equestres.
Relâmpago
O nome era Relâmpago mas poderia ser Serrote, Pelica ou Marrom.
Desde garraio ainda, já andava com passos nobres e tinha a crina como se arrebitada
para ornar-se. Na testa uma mancha branca em forma de estrela sobre meia lua. Um
final de exposição foi sequestrada e um bando exigiu alto resgate que o dono não tinha
condição de pagar. Apareceu morta meses depois, mas no corpo marrom-café já não
havia indício da estrela-lua. Tinha os olhos comido por formigas ou pássaros e o resto
da carne de égua sagrada nunca mais apodreceu.
Cego
Cego de nascença, aprendeu a ler no escuro. Desde pequeno os
livros lhe eram abertos, os toques lhe fundavam janelas, os sons lhe eram caminhos de
pedras, polindo vazios de serventias, ninhais e encantários em palavras timbrais. Um dia
achou um doador de córnea e pensou que os recursos adquiridos poderiam lhe render a
visão total. Não aceitou ser operado por conta do governo, nem enxergar no claro. Ficou
com medo de se olhar no espelho das pessoas e ter medo da escuridão que havia nelas.
(Conto lido por Antonio Abujamra no Programa Provocações da TV Cultura de São
Paulo)
Outra
Descobriu que o Pai tinha outra. Foi alvoroçar a mãe que disse que já sabia.
Desconfiou. Foi quando soube que a mãe era outra e também tinha um homem fora de
casa. Não ligaram uma coisa com outra, quando passou a usar drogas pesadas. Afinal,
que vida era aquela? Usando uma química artificial para fingir que era feliz, pelo menos
talvez tivesse também uma outra vida no pântano dos seixos íntimos.
Nave
A Nave pousou em São Paulo. Sondaram: favelas, menores na prostituição,
banco com lucros impunes, corrupção estatal endêmica, privado estado pseudo-público,
poluição, fome, sub-empregos. E um corrupto político do modus operandi “rouba, mas
diz que faz...” A Nave avaliou: tradicionais famílias hipócritas, riquezas injustas,
empresariado bandido, liberalismo câncer social, lucros impunes. E podre status-quo.
Isso mais as máscaras, as varizes, as posses e os totens amorais. Não valia a pena fazer
eventual contato. Não havia vida inteligente na terra. Voltaram ao Terceiro Sol do
hangar-mãe avisar que uma gama de evacuações não se fazia necessário. Outras
galáxias no cosmos deveria ter vida mais ética plural comunitária.
Crime
Quando entrou pro Partido Liberal foi que descobriu que o crime
compensava e dava imunidade parlamentar. E não havia riscos como nos assaltos a
bancos e nas montadas glosas ao Fisco. E ainda podia retornar sempre ao local do
crime, pois teria carteirinha do Juízo Eleitoral, o que lhe daria a guarida até da
imunidade diplomática.
Polenta
Fazia uma polenta como ninguém no mundo. Parentes, vizinhos,
amigos, todos brigavam por um pedaço daquela guloseima benta. Pensou em abrir um
fast food com polenta e frango, polenta e ovo de codorna, polenta e leite condensado,
polenta e mel-silvestre. Mas não deu certo o investimento e continuou caseiro e
artesanal. Ninguém sabia o segredo desse confeitar perene, sequer que ela tinha lepra e
as casquinhas das feridas ajudavam no delicioso e inigualável molho secreto.
Lico
Era um piá polaco com sardas e cabelo de milho que amava Os Beatles &
Tonico e Tinoco. Sonhava em crescer, trabalhar na NASA, escrever um livro, plantar
uma árvore, ter dúzias de curumins herdeiros-continução. Morreu de overdose num
baile de Carnaval, depois de rascunhar o prefácio de um livro de microcontos
surrealistas que pretendia escrever um dia quando se formasse em Ciências Sociais,
plantasse um filho, gerasse um livro, escrevesse uma árvore.
Volta
Com 33 anos, a idade de Cristo, resolveu mudar de sexo, descrente que
se restava com a herança genética-genital de varão molóide. Vendeu todos os bens e foi
para o exterior fazer a coisa certa. Voltou quase dez anos depois. É que a operação lhe
tirou toda a grana arrecadada, e, depois de fêmea artificial teve que se virar para
levantar fundos e poder então voltar pobre e com Aids à saudosa Pátria Amada.
Barriga
Cada vez que tomava água no Chafariz do Bairro Velho na Estância
Boêmia de Itararé, sentia borbulhos perto da barriga aos solavancos, com a sede não
passando e a inanição estranha piorando. Quando comia era pior ainda. Inchava.
Começou a engordar e alguns topetudos alegaram que ele, o Peu Cambalhota, estava era
grávido. Levado ao hospital foi que veio à tona o inusitado. Tinha criado um girino na
barriga que depois virou sapo-martelo com úlcera sonora.
(FIM)

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