revista completa - Observatório da Diversidade Cultural

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Revista Observatório da Diversidade Cultural
Volume 2 Nº1 (2015)
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Índice
Expediente.............................................................................................................................. 4
Editorial................................................................................................................................. 5
CULTURAS POPULARES E TRADICIONAIS
E ntre o material e o imaterial: o caso do tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth do Timbó..............................................................................................7
OS MERCADOS E FEIRAS LIVRES COMO LUGARES ANTROPOLÓGICOS DE RELAÇÕES
SOCIAIS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS NO VALE DO JEQUITINHONHA: Tecendo
alguns horizontes e perspectivas na promoção da diversidade cultural.........................22
REFERÊNCIAS CULTURAIS E PATRIMÔNIO CULTURAL: precedentes, práticas e perspectivas para a diversidade..................................................................................................36
PROMESSAS E MILAGRES NAS DEVOÇÕES POPULARES: A Dança de São Gonçalo em
Campo Maior-PI..............................................................................................................50
A POEIRA DO SAMBA E A FESTA QUE ANTECEDE O BRILHO: as sambadas de Maracatu
como espaços espontâneos de comunicação e de uma tradição renovada...................66
TERRITÓRIO, TRADIÇÕES E A COMUNIDADE: um recorte das manifestações culturais
em Chapada Gaúcha.......................................................................................................79
A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DOS POVOS INDÍGENAS: Os direitos culturais e a indústria do petróleo na Colômbia......................................................92
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Índice
ARTES
AUTOBIOGRAFIA PROCESSUAL: violências...................................................................109
Corpo e diferença: Relato de experiência no campo dos afetos...........................122
A METONÍMIA DO ILÓGICO: A desconstrução da linguagem, a negação da imagem, a
busca do “eu” e a tragicidade do ser humano em Film, de Samuel Beckett.................137
A construção do real e o cinema verdade de Jean Rouch.......................151
R elações contemporâneas: moda e cultura, o designer Ronaldo Fraga e suas
coleções literárias.........................................................................................................165
TRAVESSIA ENTRE GLAUBER ROCHA E GUIMARÃES ROSA: O discurso autoconsciente de
Deus e o diabo na terra do sol e sua relação com Grande sertão: Veredas..................178
DIREITO À CULTURA
DIREITOS CULTURAIS NO BRASIL..................................................................................194
DO DIREITO À CULTURA: Reafirmando a Cultura como Direito Universal....................203
CIDADE
A cidade e os efeitos da crise do espaço público: Repensando os espaços da
diversidade . .................................................................................................................211
A expansão urbana e seus impactos para a paisagem cultural da cidade: o conjunto paisagístico da Igreja de São Francisco em Sabará-MG...................223
C arnaval de rua de Belo Horizonte 2015: uma experiência etnográfica........234
HIP HOP E DIÁSPORA: Reflexões acerca do movimento em Maceió, AL. . ...................244
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EXPEDIENTE
ISSN: 2358-9175
Editor:
José Márcio Barros - UEMG e PUC Minas
http://lattes.cnpq.br/1604785658347017
Editora Associada:
Raquel Salomão Utsch - Observatório da Diversidade Cultural
http://lattes.cnpq.br/2207126908579051
Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural - CNPQ
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Projeto gráfico: Richardson Santos
Revisão: Raquel Utsch​e Alcione Lana​
Revisão/tradução: Luan Barros
​Apoio: Fundo Municipal de Cultura - Belo Horizonte​
Pareceristas - Volume 2 Nº 1 (2015)
​Daniele Canedo (UFRB)​, Giselle Lucena​(UFAC)​, Helena Lopes da Silva​(UEMG)​, José Oliveira Junior​
(PUC Minas)​, José Márcio Barros​(UEMG/PUC Minas)​, Lívia Espírito Santo​(FCS)​, Luiz Naveda​(UEMG)​,
Maria Ângela Matos​(PUC Minas)​, Maria Regina Álvares,​(UEMG),​Núbia Braga Ribeiro​(UEMG)​, Pablo
Gobira​(UEMG)​, Rachel Viana​(UEMG)​, Raquel Utsch​(ODC)​, Simone Fernandes​(IPHAN MG)​
Conselho Editorial – Revista ODC
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Giselle Lucena – UFAC - http://lattes.cnpq.br/8232063923324175
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EDITORIAL
Diálogos e transformações no campo da cultura
A segunda edição da Revista ODC reúne olhares sobre temáticas relevantes no campo da
cultura, em sua diversidade de manifestações tradicionais, populares e identitárias; reflete
sobre a vitalidade das expressões culturais no contexto das cidades contemporâneas,
linguagens e manifestações artísticas; bem como destaca o direito à cultura como eixo das
reflexões propostas. Nesse contexto, a publicação enfatiza o necessário debate sobre as trocas
culturais, tendo em vista a condição de equidade no plano destas práticas que traduzem
valores, pertencimentos e modos de vida singulares.
Em meio às dinâmicas contemporâneas de interação social, as manifestações culturais são
observadas na atualidade das expressões dos modos de vida tradicionais, artísticos e urbanos e
apontam para inadiável discussão quanto à dimensão cidadã da cultura, como direito universal
e inalienável, implicando contextos de pluralidade no que se refere a redes de produção,
fruição e difusão cultural.
Expressões e práticas culturais são analisadas pelos autores em estreita relação com as
configurações do território, tradições e vida em comunidade, assim como na dimensão do
patrimônio material e imaterial, a exemplo das experiências dos mercados e feiras livres no Vale
do Jequitinhonha, povos indígenas, devoções populares da Dança de São Gonçalo em Campo
Maior (PI) e manifestações culturais do samba e na Chapada Gaúcha (MG). No universo das
linguagens e expressões artísticas, trata-se da riqueza simbólica e da dimensão estética e sensível
da cultura, nos contextos criativos da performance, teatro, cinema, moda e literatura.
As relações indissociáveis entre a cultura e a configuração das cidades contemporâneas, por
sua vez, colocam no centro das discussões a crise do espaço público, as consequências da
expansão urbana para a paisagem cultural hoje, o movimento hip hop em Maceió e a experiência
do carnaval de rua de Belo Horizonte, marcada pela atuação dos movimentos ativistas que
reivindicam o direito à cidade, por meio da ocupação política do espaço coletivo.
Dessa forma, a revista propõe o horizonte do debate e reforça o compromisso do ODC
com a reflexão e a produção de conhecimento; promove assim o diálogo, ao enfatizar a
transversalidade e importância central da cultura como elo vinculante e espaço dinâmico de
produção dos sentidos, na perspectiva da transformação da vida social.
José Márcio Barros e Raquel Utsch
Editores
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Culturas populares
e tradicionais
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Entre o material e o imaterial:
o caso do tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth do Timbó
Jaqueline Silva1
Nilson Cordeiro2
RESUMO
O presente texto é parte de uma investigação histórico-etnográfica de temas relacionados
aos usos e significados da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth do Timbó, edificação própria
da comunidade quilombola de Timbó, município de Garanhuns, estado de Pernambuco. O
intuito deste trabalho é apresentar a dimensão imaterial como um instrumento possível de
ser mobilizado no âmbito da proteção do patrimônio construído, ressaltando sua importância,
tanto para a identidade local, quanto para a manutenção da diversidade cultural nacional.
Palavra chave: patrimônio cultural, comunidade quilombola, Timbó.
ABSTRACT
This article is part of a historical-ethnographic research related to the uses and meanings
of the Church of “Nossa Senhora de Nazareth do Timbó”, made by the maroon community
of Timbó, the city of Garanhuns, Pernambuco. The purpose of this paper is to present the
immaterial dimension as a possible instrument to mobilize for the protection of the built
heritage, emphasizing its importance for the local identity and for the maintenance of national
cultural diversity.
Keywords: cultural heritage, maroon community, Timbo.
1 Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora do setor de Patrimônio Imaterial da
Diretoria de Preservação Cultural da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. Contato: [email protected].
2 Co-autor: Mestrando em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco. Assessor Administrativo da
Diretoria de Preservação Cultural da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. Contato: 81 8798 5834.
[email protected].
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APRESENTAÇÃO
O presente texto é parte de uma investigação histórico-etnográfica elaborada no intuito
de compor o processo o tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth3 do Timbó
e posterior estabelecimento de um Sítio Histórico, composto pela Igreja, o cemitério e um
conjunto de casas. O principal aspecto que norteou esta investigação é a imaterialidade que
circunda os objetos materiais, tendo em vista que os objetos são impulsionadores de relações
pessoa-pessoa, pessoa-objeto, objeto-objeto (GELL, 1998).
A edificação alvo deste estudo recebeu um parecer desfavorável ao tombamento no ano
de 1986. Neste contexto, os técnicos da Diretoria de Preservação Cultural da Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) argumentaram que a Igreja de
Nossa Senhora de Nazareth de Timbó não possuía o valor arquitetônico e histórico necessário
para o tombamento, uma vez que a construção havia passado por uma série de modificações
que teriam transformado características principais da Igreja.
Em 2014, a equipe técnica da Fundarpe, composta por uma antropóloga, um historiador e
uma arquiteta, elaborou um novo parecer, na perspectiva de integração entre o patrimônio
material e imaterial. Neste artigo estão presentes as principais informações no âmbito histórico
e etnográfico, assim como os pressupostos teóricos e metodológicos do Exame Técnico4 que
concluiu pela recomendação do tombamento da edificação.
MÉTODOS DE TRABALHO: RECONSTRUINDO A MEMÓRIA DA IGREJA
E DA COMUNIDADE
O Exame Técnico Preliminar da Igreja Nossa Senhora de Nazareth do Timbó foi elaborado
tendo por base dados documentais e de campo. Com relação aos dados documentais, nos
foi de grande valia o Relatório Técnico de Delimitação e Identificação (RTDI), elaborado pelo
antropólogo Jhonny Cantarelli, do Instituto Nacional Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
no intuito de embasar o processo de regularização fundiária da comunidade. Pautamo-nos
também nos dados do processo de Tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth do
Timbó que consta nos autos da Fundarpe, além de teses e dissertações que tiveram por base
a comunidade quilombola em questão.
Por se tratar de uma comunidade tradicional, o uso de relatos orais foi de suma importância
para a construção do histórico. Ao lado dos registros documentais, os depoimentos coletados
serviram de base para o entendimento da formação e da trajetória de Timbó, bem como
3 Encontramos as diferentes grafias com relação ao nome da Igreja: “Igreja de Nossa Senhora de Nazareth”, “Igreja de Nossa
Senhora de Nazaré do Timbó”, “Igreja de Nossa Senhora de Nazaré”.
4 Exame Técnico Preliminar. Igreja Nossa Senhora de Nazareth de Timbó, município de Garanhuns, Pernambuco. Processo
0404542-1/2009.
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permitiram a compreensão de como os próprios moradores constroem para si sua história.
A história oral, como um dos procedimentos metodológicos de análise crítica e interpretação
da realidade, alicerça-se na busca de qualidade e profundidade investigativa com os atores
sociais envolvidos no processo de construção do conhecimento. Trata-se de um procedimento
metodológico interdisciplinar, ou seja, como um caminho para a construção de conhecimento,
que abarca tanto uma dimensão teórico-política, quanto uma dimensão técnica, e que tem tido
uma expansão significativa, no Brasil, nas últimas décadas. De acordo com Meihy e Holanda
(2007, p. 64), a “história oral é um processo de registro de experiências que se organizam
em projetos que visam a formular um entendimento de determinada situação destacada na
vivência social”. O principal fundamento da história oral constitui-se em uma dimensão social
que abarca a memória coletiva e a identidade social (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 131).
Peter Burke (2000) descreve a memória como uma reconstrução do passado, uma vez que
lembrar e escrever sobre ele não são atividades ingênuas e inocentes. A memória é sempre uma
construção feita no presente a partir de vivências ocorridas no passado. Como procedimento
metodológico, a história oral busca registrar – e, portanto, perpetuar – impressões, vivências,
lembranças daqueles indivíduos que se dispõem a compartilhar sua memória com a coletividade
e, dessa forma, permitir um conhecimento do vivido muito mais rico, tanto do passado como
do presente.
O resultado desta pesquisa nos mostrou uma diversidade e uma riqueza de informações a
respeito do histórico e da organização social de Timbó que foge do escopo do presente texto.
Atemos-nos aqui a apresentar informações que consideramos pertinentes na discussão a
respeito do estabelecimento de instrumentos de proteção do patrimônio cultural que, além
dos valores históricos e arquitetônicos, leve em conta as relações simbólicas e sociais existentes
entre a comunidade quilombola e a edificação.
A EDIFICAÇÃO COMO REFERÊNCIA CULTURAL
Para a realização de um estudo integrado e interdisciplinar envolvendo o patrimônio material e o
imaterial, faz-se necessário o uso de categorias de análise, no sentido de nominar e referenciar
aspectos culturais pertinentes aos dois campos. O conceito de “referência cultural”, amplamente
utilizado nas metodologias de pesquisa e inventário, promovidas pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), nos permite referenciar os elementos culturais de valor
simbólico, valorados e reconhecidos pelos indivíduos diretamente envolvidos com os bens
materiais passíveis de tombamento. Tal noção, juntamente com o conceito antropológico de
cultura, introduziu na prática da preservação bens culturais de caráter dinâmico e processual.
Assim, a Constituição Federal de 1988, por meio dos artigos 215 e 216, estabeleceu a noção
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de que o patrimônio cultural brasileiro compõe-se de bens de natureza material e imaterial,
incluídos aí os modos de criar, fazer e viver dos grupos formadores da sociedade brasileira.
A partir da noção de referência cultural, que tem como princípio a compreensão dos valores
e sentidos atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais, pode-se compreender
que a preservação de bens culturais não atende a um interesse unicamente museológico,
arquitetônico ou historiográfico. Através desta perspectiva, os sujeitos não têm apenas o papel
de informantes, mas também de agentes e intérpretes do seu patrimônio cultural.
Desta forma, o presente texto foi elaborado sob a premissa de que os objetos desempenham
uma importante função simbólica no processo de elaboração de identidades, relacionados a seus
usos cotidianos, rituais ou reclassificados como acervo museológico ou patrimônio cultural.
A perspectiva adotada é informada pela antropologia social ou cultural,
portanto essencialmente voltada para a análise comparativa das categorias
de pensamento e seus usos na vida social. [...] Os objetos podem nos trazer
novas perspectivas sobre os processos pelos quais definimos, estabilizamos ou
questionamos nossas memórias e identidades. (GONÇALVEZ, 2007, p. 10).
O processo de tombamento do Sítio Histórico da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth de
Timbó já é de conhecimento dos moradores do território quilombola e também de outras
instituições que trabalham com a comunidade. Uma situação interessante é que o autor
do Relatório Técnico de Delimitação e Identificação (RTDI) recomenda, em seu texto, o
tombamento da Igreja:
Sem sombra de dúvida o templo, a Igreja de Nossa Senhora de Nazareth, é o mais
representativo monumento da comunidade, sendo necessário o seu tombamento e
a garantia de cuidado por parte do IPHAN, dado o seu valor histórico, identitário, e
como o símbolo da resistência histórica do grupo social que tanta importância teve
no desenvolvimento da região. (CANTARELII, p 242. 2013).
O fato de o autor citar apenas o IPHAN, responsável pelo tombamento de bens culturais
em nível federal, revela o provável desconhecimento do processo em trâmite em nível
estadual. Por outro lado, e talvez em virtude da demora do processo e da falta de retorno
à comunidade em relação ao processo estadual, o pesquisador, assim como os moradores,
revelam simultaneamente certa “descrença” e “esperança” com relação à possibilidade de
tombamento da Igreja, como se pode perceber pelas falas a seguir:
Não sei quais os elementos que está [sic] faltando [pra concluir o
tombamento da Igreja] tendo em vista que a questão imaterial também
deve ser levada em consideração. Pelo que eu sei, essa Igreja é registrada
como sendo a primeira Igreja católica dentro do município de Garanhuns,
pelo menos é que tá na história, e que realmente ele vem a confirmar.
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(PROFESSORA HISTÓRIA)5.
Se a gente falar hoje de tombamento ninguém acredita, o povo ri da gente.
Por que tem muitas pessoas que realmente não acreditam, que acha que
com o tempo vai [a igreja] ficar assim, ou ela vai piorar e ninguém vai fazer
nada, são muitas promessas. (ALUNA 1) 6.
Pesquisadora: Se restaurasse a Igreja qual poderia ser a consequência?
Informante 2: Eu acho que ia melhorar, por que as famílias... as famílias que moram
aqui no Timbó, aqui de dentro mesmo, não vão mais pra Igreja. Na época, das
professoras, assim que tinha mais conhecimento [sic] na lei católica, ela levava as
crianças pra dar catecismo, rezava terço junto com as crianças, convidava mãe, tia,
padrinho, vizinho, ia todo mundo pra dentro da Igreja. E no primeiro lugar é a missa,
por que nós temos uma Igreja, antiga, muita gente fala que é a mais velha que tem
em Garanhuns, outros diz [sic] que é a idade de Garanhuns, aí eu fico pensando, que
ia aumentar a união de todo mundo (MORADORA) 7.
As atuais discussões a respeito da política de patrimonialização defendem que deve ser
colocado em evidência o valor diferenciado que a comunidade local – os detentores – confere a
determinado bem cultural e como este valor estaria articulado num processo de tombamento/
salvaguarda. Os relatos orais são de grande relevância, uma vez que se reproduzem em toda
a comunidade, em especial entre os moradores da área próxima a Igreja. A Igreja, para os
moradores de Timbó, não é apenas uma construção religiosa, mas um local em torno do
qual a identidade do grupo se constrói e se atualiza – uma importante referência cultural. No
próximo tópico, iremos trazer alguns pontos a respeito da formação da comunidade, no intuito
de situar Timbó enquanto comunidade quilombola, ressaltando como a história da edificação
está imbricada na história do território e de seus moradores.
CONTEXTUALIZANDO TIMBÓ
Comunidade quilombola
A respeito da noção de comunidades remanescentes de quilombo, o autor do RTDI da
Comunidade Quilombola de Timbó nos lembra de que:
O conceito de quilombo foi ressignificado após a promulgação da Constituição de 1988
para significar arranjos sociais bem mais diversos do que aquele que remete a ideia
de “quilombo” como “local de escravos fugidos”, que traz como corolário a ideia de
“isolamento” e de um modo de vida “congelado no tempo”. (CANTARELLI, 2011).
Consideramos como comunidades quilombolas grupos étnico-raciais, segundo critérios de
5 Entrevista realizada em 19 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
6 Entrevista realizada em 19 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
7 Entrevista realizada em 20 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
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autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas
e com ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida,
conforme Decreto nº 4887/038. Essas comunidades possuem direito de propriedade de suas
terras consagrado desde a Constituição Federal de 1988.
A comunidade quilombola de Timbó é um dos cento e doze (112) territórios pernambucanos
titulados pela Fundação Cultural Palmares. O processo administrativo para a regularização
fundiária da comunidade foi aberto pela Associação Rural Comunitária dos Remanescentes
de Quilombo de Timbó, em 12/01/2005. Atualmente, o Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação já foi publicado e está em fase de contestação.
A comunidade quilombola de Timbó é composta por doze (12) sítios, cujo núcleo central é a
área chamada de “Patrimônio de Nossa Senhora de Nazareth”, “Patrimônio da Santa”, “Terra
da Santa” ou apenas “Patrimônio”. Ao todo, são cento e setenta e cinco famílias (175) que
vivem em áreas férteis e com oferta abundante de água, o que seria um dos principais motivos
do interesse de fazendeiros e grileiros pela região.
FIGURA 1. Localização Timbó. Fonte: INCRA, 2009.
As principais atividades da região são a agricultura de subsistência, criação de animais de
pequeno porte e a pecuária leiteira também de pequeno porte. A renda obtida com estas
atividades é complementada com as políticas públicas, como a Bolsa Família, Minha Casa
8 Informações disponíveis no site do Ministério do Desenvolvimento Social http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/povosecomunidadestradicionais/quilombolas, e no site da Fundação Cultural Palmares www.palmares.gov.br.
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Minha Vida e Chapéu de Palha9.
A Igreja de Nossa Senhora de Nazareth
Existem diversas versões para a origem da capela, entretanto, todas dão conta de que a imagem
da santa chegou à região pelas mãos de um escravo vindo da Bahia chamado José Vitorino10.
Algumas narrativas dão conta de que José Vitorino já chegou à região trazendo a imagem da
santa, em outras ele teria se instalado em Garanhuns e posteriormente trouxe a imagem,
outras ainda contam que ele teria encontrado a imagem no local. Apesar das diferenças nos
relatos, todos são unânimes em afirmar que a imagem está no local por causa de José Vitorino,
que teria feito uma promessa pedindo por proteção.
É impossível afirmar a data precisa da construção sem um estudo arqueológico aprofundado.
Entretanto, é provável que a edificação tenha sido construída por José Vitorino quando de sua
chegada à região de Garanhuns nas primeiras décadas do século XIX (provavelmente antes de
1822). Segundo Cantarelli (2011):
Apesar de aqui se defender que a construção data no início do século XIX,
isto não significa retirar o título de “mais antiga” da Igreja de Nossa Senhora
de Nazareth do Timbó, pois não há outra ainda de pé tão antiga quanto ela
no município de Garanhuns. (CANTARELLI, 2011, p. 83).
Figura 2 - Imagem Nossa Senhora de Nazareth – Timbó. Fonte: FUNDARPE, 2014.
9 Bolsa Família: o Programa Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda, criado em 2004, que beneficia
famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país. Chapéu de Palha: programa criado pelo governo do
estado de Pernambuco como medida de combate aos efeitos do desemprego decorrente da entressafra da cana de açúcar e
da fruticultura em 60 municípios do Estado. Minha Casa Minha Vida: em áreas quilombolas, o programa financiado pela Caixa
Econômica Federal constrói casas que, para a comunidade, custam entre R$ 1.500,00 e R$ 3.000,00.
10 O nome do escravo varia bastante nas diferentes narrativas, contudo, esse é o nome que aparece na maioria dos relatos e
também nos dos moradores mais antigos, parecendo ser o mais consistente. Cabe lembrar que o nome do escravo, em si, não
é o mais importante, uma vez que em todos os relatos o que fica mais evidente é a conexão que a comunidade busca traçar
deles mesmos com as lutas dos escravos.
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A história de formação da comunidade de Timbó confunde-se com a história da Igreja e da
imagem de Nossa Senhora de Nazareth. Percebe-se que a religiosidade cristã esteve presente
no grupo desde a sua formação, lembrando que José Vitorino fez uma promessa para a santa
que seria paga com a doação de partes da terra em seu nome. Essas terras são parte do
que compõe hoje a área chamada de “Patrimônio”, onde os moradores vivem seu cotidiano
permeado da religiosidade popular, que tem como aspecto principal o culto na Nossa Senhora
de Nazareth. Um depoimento de uma aluna é bastante interessante neste sentido:
Eu já vi muito gente dizer, eu lembro muito assim de memoria, eu só tô aqui
por causa da santa, eu só vim aqui por causa da Igreja. // de pessoas de fora
ou daqui?// pessoas próximas, dos outros sítios, que falam que só vem aqui
por causa da Igreja. Eu só vou ali em respeito a nossa senhora de Nazareth.
Imagina se acabar um negócio desse [sic] (ALUNA 2) 11.
Valores e usos
O culto a Nossa Senhora de Nazareth é uma referência fundamental da identidade do grupo,
tanto pelos aspectos históricos, como pelo conteúdo simbólico. Uma situação interessante
refere-se ao fato de que é possível encontrar na comunidade uma grande quantidade de
mulheres chamadas “Maria de Nazareth” que, geralmente, foram batizadas com o nome da
santa como forma de cumprir alguma promessa ou agradecer a graças recebidas.
Como ressaltamos, o culto à Santa em Timbó tem início com a chegada de José Vitorino e
a formação da comunidade do Timbó. De acordo com a memória local, desde então a festa
ocorre sempre no dia 02 de fevereiro, após um período da novena. A data da festa em Timbó
não corresponde à data oficial da Igreja Católica, comumente entre os meses de setembro
e outubro. O Círio de Nazareth – festa mais tradicional em celebração a N. S. de Nazareth –
ocorre no dia 10 de outubro.
Segundo Silva (2002), este fato é uma singularidade da comunidade. Uma possível explicação
reside na trajetória percorrida por Vitorino entre a Bahia, possível local de sua origem, e
Pernambuco. Existe uma grande possibilidade de ele ter passado pela cidade de Nazareth, na
Bahia, um importante local de romaria desde o século XVII. Além da padroeira em comum,
Timbó e Nazareth homenageiam sua padroeira na mesma data.
A importância da Igreja e da santa como referência é amplamente relatada pela comunidade,
cuja fala de uma das professoras da escola rural é bastante exemplar e significativa:
Essa Igreja é alicerce. Ela é a base de tudo. Sempre foi e vai continuar sendo,
independente de qualquer coisa, vai continuar sendo o ponto principal da
comunidade. Isso é o alicerce da comunidade, isso é a base, é o ponto turístico de
Garanhuns. É a primeira na historia de Garanhuns. [...] É o ponto de referência da
11 Entrevista realizada em 20 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
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historia de Garanhuns, é essa Igreja. Quando se fala do Timbó se fala dessa Igreja12.
(PROFESSORA 2).
O calendário de atividades da Igreja incluía missas mensais, terços, novenas e eventuais cerimônias
de casamento, como nos relata uma antiga liderança da comunidade. Atualmente, as missas e as
“rezas” estão suspensas por receio em relação à segurança, pois a madeira central13 que sustenta
o telhado da Igreja está bastante danificada. Ao mesmo tempo, esta mesma madeira possui um
importante papel simbólico para a comunidade, pois possui gravações ao longo de sua extensão
que são vistas como atestado da antiguidade e da singularidade da construção.
Vejamos os depoimentos a seguir:
O que eles pedem [os moradores] é preservar como ela está, por que se você
vê ainda tem coisa do tempo da construção, a questão dos desenhos nas
madeiras do teto, então quando eles pedem pra [sic] vir, pra [sic] preservar, é
pra deixar como ela está. É um processo de restauração. (ALUNA 2) 14.
Essa Igreja pra [sic] gente é de suma importância, sabe por quê? Desde que
eu me entendendo por gente, a minha avó era que rezava os terços aqui,
hoje ela já faleceu, Dona Liu, [Maria Francisco] ela trazia mesmo, arrastava
todo mundo de casa, até mesmo quando ela começou a ficar doente, ela
vinha sentada embaixo do pé de pau, todos os domingos, ela arrastava a
gente, rezava o terço, que o nosso terço tem uma tradição, que a gente
ainda reza a ladainha em latim, e depois da minha avó ficou eu, minha mãe,
que a gente ainda reza [sic]. E realmente, de uns tempos assim, a gente fica
até com desgosto de ver como era a nossa Igreja e ver como ela está hoje.
Que a gente fala? Ah, vamos rezar o terço. E o povo responde: faz até medo
dessa Igreja cair por cima da gente. Outro dia veio um padre aí e disse: o
telhado dessa Igreja tá [sic] igual a fé de vocês. Eu discordei um pouco. Eu
acho, eu não contestei, que eu não ia discutir com padre, por que eu acho
que a nossa fé não morreu e nem vai morrer. Falta realmente pessoas que
estejam dispostas a ajudar, a gente se sentir à vontade na nossa Igreja como
era antes, a gente fazer nossas orações sem ter medo de que ela caia por
cima da gente. (ALUNA 1) 15.
Um momento religioso importante é a “reza do terço” no mês de maio, também chamado
de mês de Maria. Uma das nossas informantes relatou que uma peculiaridade do terço do
Timbó é ser rezado em latim, como pode se ver pelo relato anterior. Nesta cerimônia, não há a
presença de nenhum representante “oficial” da Igreja católica, sendo todo o processo de rezas
de “terços” e “ladainhas” encaminhado por moradores da comunidade.
Outro momento de grande importância para o calendário local é a novena de Nossa Senhora,
que culmina na festa no dia 02 de fevereiro, como relata uma moradora que mora bem próximo
12 Entrevista realizada em 19 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
13 Terça da cumeeira.
14 Entrevista realizada em 20 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
15 Entrevista realizada em 20 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
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a Igreja, na área do Patrimônio: “Na época da novena de Nossa Senhora de Nazareth, é muita
gente aqui. Eu quero que você venha nessa época, de 24 de janeiro a 2 de fevereiro. Dá prazer,
dá gosto e tem o que se ver.” (INFORMANTE 1)16.
A festa da padroeira cumpre a função social de fortalecer os laços religiosos entre os moradores
e o “sagrado”, mas também entre os próprios moradores, tendo em vista que há o encontro
entre habitantes de sítios vizinhos, assim como o retorno de parentes e familiares que
moram em outras localidades. Há uma série de obrigações que precisam ser cumpridas pelos
moradores, em especial aqueles que são os “noiteiros”, também chamados de “festeiros”.
O “noiteiro” pode ser uma pessoa, ou um grupo de pessoas que é responsável por oferecer
uma noite na novena. O grupo de “noiteiros” pode ser composto por pessoas da mesma
família, que têm a mesma a profissão ou qualquer outro ponto em comum. Por exemplo, em
2014, os “noiteiros” foram seis (06) famílias, o grupo de “jogadores” e “toda a comunidade do
Patrimônio”. Segundo uma informante, essa prática tem diminuído bastante:
Pesquisadora: O que é um noiteiro?
Informante 1: Dia primeiro de Maio é dia do trabalhador. Aí nesse dia todo
mundo trabalha, você que é trabalhador vai dar uma noite, traz vela, traz
fogos, convida os amigos, os compadres, a criançada e vem. Traz fogos... E
ainda dá um lanche. Antes, isso faz tem muito anos [sic], mas que agora tá
[sic] acabando tudo, ninguém sabe, tá [sic] diminuindo17 (INFORMANTE 2).
Para a definição destas obrigações, são feitos encontros e reuniões em que a comunidade
precisa dialogar; definir a programação de shows e oficinas e de quem será o “padrinho” da
bandeira no ano seguinte. Esta articulação, ainda segundo os informantes, está cada vez mais
difícil, em virtude da “desunião” da comunidade:
A novena, todo mundo se reunia e fazia uma cotinha [sic], comprava uma
tinta, comprava cimento, e fazia a novena. Agora fica jogando pra [sic]
secretário, prefeito, governador, fica jogando e não chega nada no Timbó.
Eu sei que foi uma negação a novena de 2014. Não teve policiamento, não
teve quem organizasse. Os noiteiros, são nove pessoas, são nove noiteiros, a
gente costumava fazer uns livrinhos, fazer uns convites, mas não chegou [sic].
Quando terminou a novena chega um caminhão, chega um ônibus, chega
uma multidão de gente. (INFORMANTE 2) 18.
Durante o trabalho de campo, foi possível perceber que a comunidade atravessa um momento
politicamente delicado. A atual liderança e seus familiares, importantes sujeitos do movimento
quilombola nacional, responsáveis, junto com a liderança da comunidade de Castainho19 pela
16 Entrevista realizada em 17 de outubro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
17 Entrevista realizada em 19 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
18 Entrevista realizada em 19 de novembro de 2014, na comunidade quilombola de Timbó.
19 Comunidade Quilombola pertencente ao município de Garanhuns, com a qual a comunidade de Timbó possui estreitas
relações de parentesco e afinidade política.
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representação regional na Comissão Nacional de Comunidades Quilombolas, não possui
aceitação em toda a comunidade, tendo inclusive sofrido ameaça por parte de quilombolas e
fazendeiros da região. Para além, o território conta com outras duas Associações de Moradores,
mas que não possuem uma atuação expressiva no diálogo com o poder público e demais
instituições que atuam no intuito de facilitar o acesso da comunidade às políticas públicas.
A falta de consenso com relação à representatividade se une a uma questão complexa relacionada à
identidade quilombola. Alguns moradores, em especial dos sítios mais distantes do “Patrimônio” e
que se mantem alheios às discussões políticas a respeito da questão quilombola, não se identificam
como quilombolas, ou mesmo, se recusam a utilizar a categoria negro para se definir racialmente,
preferindo em diversos casos o uso de termos mais “amenos” como “moreno”.
Tal questão é bastante complexa e não cabe ser analisada neste momento com a profundidade
que necessita, mas no intuito deste texto é importante ressaltar alguns pontos. Primeiramente,
é importante lembrar que “quilombo”, “quilombola”, e “remanescente de quilombo” são
categorias jurídicas, criadas pela legislação, e não categorias nativas, que emergem do próprio
grupo. Assim, a não identificação com o termo não significa, necessariamente, a inexistência
da realidade política e cultural que é compreendida pelo mesmo termo.
É importante lembrar que muitos destes que se recusam a “ser quilombolas” possuem laços de
parentesco com outros, que “são quilombolas”. Segundo, as palavras “negro” e “quilombola”
tiveram, e ainda têm, um caráter fortemente pejorativo e ofensivo na comunidade. Não raro,
ouvimos diversas referências à expressão “Negros do Timbó” como a forma como os moradores
da comunidade eram chamados por moradores da cidade de Garanhuns. Os negros do Timbó
eram vistos como “ladrões e violentos”, como é relatado por Cantarelli (2011).
Pernambuco possui uma história de resistência à escravidão manifestada sob diferentes
modelos de organização, formação e estratégias, demonstrando quão diversas foram as formas
encontradas por sua população. Ocupando lugares ora pouco acessíveis, ora próximos às vilas,
fazendas ou engenhos, os grupos eram formados. A partir deles, surgiam comunidades, com
regras particulares, religiosidades próprias, formas distintas de economia, alianças, redes
de proteção e sociabilidade, numa constante negociação por liberdade, que viria a definir a
diferença étnica e política destes grupos.
A comunidade de Timbó apresenta-se como um remanescente que guarda parte dessa história
do Estado, sendo um caso peculiar de organização social marcada pela religiosidade e pela
luta por terra. Cabe lembrar que a história de muitas dessas comunidades confunde-se com
a história dos seus municípios, ou mesmo de suas regiões, permitindo uma comunhão nos
processos históricos de ocupação territorial.
O valor arqueológico tanto da igreja como do cemitério também é evidente, ressaltando
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ainda mais a importância de se proteger esses bens, tanto para a preservação da memória da
comunidade e do Estado, como também para preservação e enriquecimento do conhecimento
arqueológico sobre o período da formação das muitas comunidades remanescentes de
quilombo em Pernambuco.
CONCLUSÃO: PARA QUEM E POR QUEM TOMBAR?
A legislação brasileira a respeito da cultura imaterial nasce do intuito de colocar em destaque
a dimensão social e política do patrimônio cultural. Assim, a partir de meados dos anos 1990,
forjou-se um cenário em que se torna possível o questionamento da legitimidade, dos valores
e interesses em torno de um bem que passa a se tornar objeto de proteção. Entende-se hoje
que o patrimônio cultural não deve se restringir aos grandes monumentos, aos testemunhos
da história “oficial” em que, sobretudo, as elites se reconhecem. Noutra direção, afirmamos
que a proteção ao patrimônio deve incluir as visões de mundo, valores e sentidos dos diversos
grupos que compõe a sociedade brasileira.
Nesta direção, o presente estudo pautou-se na perspectiva de integração entre o patrimônio
material e imaterial. Procurou-se deslocar o foco de descrição e análise dos objetos
materiais, de suas formas, materiais e técnicas de fabricação, para seus usos e significados.
Consequentemente, o estudo teve um viés mais voltado para as relações sociais que estão
envolvidas na construção e manutenção do patrimônio construído.
De acordo com esta perspectiva teórica e metodológica, nos distanciamos de uma visão que
prioriza a razão prática (SAHLINS, 1976), em que a classificação dos objetos pelos sujeitos
sociais seria realizada tendo por base sua utilidade a partir de suas necessidades e interesses
supostamente universais. Afastamo-nos também da ideia de que a suposta complexidade estética
de um objeto significa uma complexidade da cultura, visão esta evolucionista e etnocêntrica.
Pautamo-nos na compreensão da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth de Timbó, como um
objeto material que se coloca diante da organização social da comunidade quilombola de
Timbó como um fato social total (MAUSS, 2003), em que, mais que organizar e representar, os
objetos são considerados capazes de organizar e constituir a vida social.
Consideramos, na direção apontada pelo antropólogo José Reginaldo dos Santos, a
patrimonialização como um processo político, social e simbólico em que um objeto passa
a ser transformado ou transfigurado em ícone legitimador de ideias, valores e identidades,
assumidos por diversos grupos e categorias sociais. Na medida em que assim classificados
e coletivamente reconhecidos, esses objetos patrimonializados desempenham uma função
social e simbólica de mediação entre o passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando
a sua continuidade no tempo e sua integridade no espaço.
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Ressaltamos que o tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Nazareth de Timbó e o processo
de preservação que dele advém, irá ressaltar a função simbólica desta edificação, não apenas
expressando simbolicamente as identidades individuais e sociais, mas organizando a percepção
da comunidade sobre si mesma e em relação ao poder público.
Do ponto de vista histórico e arqueológico, o sítio histórico do Timbó apresenta significativa
importância dentro do contexto de preservação da diversidade cultural. Integra verdadeiro
cordão de remanescentes de aldeamentos negros que hoje servem como locais detentores
de memória. A importância do quilombo do Timbó para a afirmação da identidade negra é
extraordinária, pois é impossível não considerar as singularidades da comunidade e o processo
de construção coletiva de suas memórias.
Sabe-se que o território brasileiro esteve marcado pela presença de comunidades negras
que ainda hoje resistem às pressões de latifundiários – caso do Timbó – pela manutenção
ou reconquista de seus territórios. Desta forma, o processo de territorialização quilombola
constitui-se muitas vezes, na luta para continuar a existir, na reinvenção de uma identidade
política portadora de direitos que é informada por uma memória ancestral.
A capela de Nossa Senhora de Nazareth do Timbó, enquanto símbolo da comunidade, sintetiza
em sua materialidade e imaterialidade toda a história e tradição da comunidade e, por extensão,
de toda a região onde está inserida. Como elo entre o passado (seja histórico ou mítico) e o
presente da comunidade, a Igreja do Timbó é um bem de relevante valor histórico e cultural para
toda a região e para Pernambuco, uma vez que representa um período histórico importante e,
também, por apresentar singularidades que a colocam como patrimônio a ser preservado.
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Culturas populares
e tradicionais
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OS MERCADOS E FEIRAS LIVRES COMO LUGARES ANTROPOLÓGICOS
DE RELAÇÕES SOCIAIS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS NO
VALE DO JEQUITINHONHA: Tecendo alguns horizontes e perspectivas
na promoção da diversidade cultural
Carolina Rezende de Souza1
Resumo
Este artigo, pautado em uma revisão bibliográfica, tem o objetivo de tecer horizontes teóricos
e analíticos sobre os mercados e feiras livres, especificamente no Vale do Jequitinhonha,
enquanto lugares antropológicos de relações sociais, de trocas materiais e simbólicas entre
importantes atores sociais como feirantes e fregueses. Pode-se constatar que os mercados e
as feiras livres, em contextos como o Vale do Jequitinhonha, representam lugares de trocas
materiais e simbólicas e, neste sentido, desempenham papeis fundamentais na promoção da
diversidade cultural no Vale do Jequitinhonha.
Palavras-chave: Mercados; Feiras Livres; Diversidade Cultural
Abstract
This article, based on literature reviews, aims to draw theoretical and analytical horizons on
markets and fairs, specifically in the Jequitinhonha Valley, as anthropological sites of social,
material and symbolic exchanges between important social actors as merchants and customers.
It can be seen that the markets and fairs, in contexts such as the Jequitinhonha Valley, represent
places for material and symbolic exchanges, with key roles in promoting cultural diversity in
the Jequitinhonha Valley.
Key-words: Markets; Street markets; Cultural diversity
1 Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação/ Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (FAE/CBH/UEMG); E-mail: carolzitacs@
hotmail.com.
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INTRODUÇÃO
A compreensão dos processos socioeconômicos, como reflete Servilha (2008), era essencialmente
marcada por visões e pressupostos objetivistas, que buscavam a análise das atitudes e práticas
econômicas dos diferentes atores sociais, enquanto determinadas pela chamada racionalidade
econômica. Porém, como discorre este mesmo autor, tendo em vista buscas por rupturas e
ressignificações em relação ao processo de construção do conhecimento, disciplinas como
a Antropologia e a Sociologia passam a debruçar-se sobre os processos econômicos, com o
intuito de superação destas análises e, mais do que isto, buscando abordagens que focassem
os processos econômicos, tendo em vista a valorização dos arranjos socioculturais que estão
vinculados às atividades econômicas, não mais independentes das realidades que cercam os
diferentes atores sociais, mas pensando os processos econômicos enquanto inseridos nos
contextos históricos e experiências socioculturais mais amplas que devem ser investigados
(SERVILHA, 2008).
Neste sentido, a Antropologia Econômica passa a apresentar um grande potencial que deve
ser imensamente valorizado na análise dos processos econômicos, para além de pressupostos
abstratos, mas inseridos em contextos históricos, políticos e socioculturais (FIRTH, 1974).
Desta forma, estudar e compreender as questões culturais e subjetivas relacionadas aos
processos econômicos, a partir deste novo contexto, enfoque e olhar acadêmico engendrados
pela Antropologia Econômica, torna-se de extrema importância, no universo acadêmico,
sobretudo a partir da investigação das relações sociais de trocas materiais e simbólicas
realizadas e tecidas cotidianamente por diferentes atores sociais, tendo em vista uma
diversidade de universos empíricos, como os mercados e as feiras livres que, no Vale do
Jequitinhonha, representam um papel fundamental na promoção da segurança alimentar,
fortalecimento do campesinato, da agricultura familiar, na afirmação de identidades sociais e
modos de vida coletivos. Tais reflexões se revelam de extrema importância na medida em que
podem oferecer horizontes teóricos e analíticos importantes que devem ser valorizados no
que concerne à promoção da diversidade cultural.
Considerando-se todas as questões acima elencadas, este artigo2, pautado em uma revisão
bibliográfica, tem o objetivo de tecer horizontes teóricos e perspectivas analíticas acerca
de mercados e feiras livres, especificamente no Vale do Jequitinhonha, enquanto lugares
antropológicos de relações sociais, de trocas materiais e simbólicas entre importantes atores
2 Este artigo é fruto de reflexões e problematizações viabilizadas no universo da disciplina isolada Troca e reciprocidade,
cursada no segundo semestre de 2014, no universo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), ministrada pela professora doutora Deborah Lima.
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sociais como feirantes e fregueses e, desta forma, as contribuições de tais reflexões no que
concerne à promoção da diversidade cultural. Para tanto, buscou-se a exposição de alguns
exemplos etnográficos em articulação com referenciais importantes teóricos da chamada
Antropologia Econômica e as possibilidades destas análises teóricas para pensarmos o universo
empírico do Vale do Jequitinhonha.
Evidenciou-se, por meio das análises realizadas a partir de pesquisa bibliográfica, que as
feiras livres e mercados em universos como o Vale do Jequitinhonha devem ser pensados
como lugares antropológicos de trocas materiais e simbólicas que devem ser valorizadas
como fundamentais para a consolidação de movimentos que permitam a ampliação da esfera
pública de direitos subjetivos, no que diz respeito a diferentes atores sociais como feirantes e
fregueses e, que desta forma, acolham e reconheçam a diversidade cultural como possibilidade
de efetivação democrática e não como naturalização das desigualdades sociais, através da
valorização destes atores sociais, enquanto protagonistas, portadores de saberes, identidades
individuais e coletivas.
O PAPEL DAS FEIRAS LIVRES E MERCADOS NO UNIVERSO DO VALE
DO JEQUITINHONHA: ALGUMAS BREVES CONSIDERAÇÕES
O papel dos mercados e das feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha deve ser aqui
destacado. Ribeiro et al (2003), que analisaram especificamente a Feira Livre de Turmalina,
discorrem que as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha possuem uma grande
importância enquanto relevantes e espaços dinâmicos de comercialização, elevação da renda
agrícola, promoção do abastecimento das cidades, bem como contextos fundamentais no que
concerne à criação de políticas públicas destinadas às famílias que sobrevivem da chamada
agricultura familiar.
Silvestre, Ribeiro & Freitas (2011) analisando especificamente a Feira de São Francisco,
também localizada no universo do Vale do Jequitinhonha, afirmam que as Feiras Livres
desenvolvidas na região revelam-se pontos de convergência de produtos e comercialização
da produção local, revelando-se assim circuitos de troca e consumo que promovem a geração
de trabalho e renda, segurança alimentar destas famílias ligadas à agricultura familiar, bem
como são fundamentais na manutenção de identidades e modos de vida ligados a uma
cultura alimentar regional.
Na mesma perspectiva destes autores, mas especificamente analisando a importância do
Mercado Municipal de Araçuaí, Servilha (2008) destaca o papel do mesmo enquanto um
espaço e um lugar de produção cultural, de sociabilidades, de construção de relações sociais
materiais e simbólicas, que revela este universo analisado como um elemento fundamental na
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dinâmica cultural e de construção da identidade coletiva regional.
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AS FEIRAS LIVRES E OS MERCADOS COMO LUGARES ANTROPOLÓGICOS
DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
INICIAIS NECESSÁRIAS
Servilha & Doula (2009), autores que trabalham com a temática das feiras livres e os
mercados municipais, afirmam que buscar a compreensão das relações sociais materiais e
simbólicas, presentes em locais como os mercados municipais, traz a necessidade de análise e
aprofundamento acerca da subjetividade das relações no/com o lugar. Cabe então, inicialmente,
no âmbito deste trabalho, pensarmos os mercados e as feiras livres como importantes lugares
antropológicos. Para estes autores, é no lugar “que o ser humano constrói suas relações
comunitárias, suas percepções do espaço e suas dinâmicas sociais específicas”. Para Carlos
(2007), os lugares exprimem-se pelas relações que os indivíduos mantêm com os espaços
habitados e se exprimem nos modos de uso, nas condições mais banais, sentidos, pensados,
apropriados e vividos através do corpo, onde se processa a vida.
Nesta mesma perspectiva, para Ludwig (2008) o lugar é dotado de significados para aqueles que
o vivenciam, que têm particularidades históricas, por meio das quais se desenvolveu um modo
de vida especifico, de acordo com a organização social e cultural, levando-se em consideração
sua inserção na sociedade global. Nesta mesma perspectiva, o lugar antropológico para MarcAugé (2004) define- se como identitário, relacional e histórico. Identitário porque é o lugar
de nascimento, as regras de residência, etc. são como uma inscrição no solo que compõe a
identidade individual. Referências compartilhadas que designam fronteiras, marcam a relação
com seus próximos e com os outros. Por fim, é histórico na medida em que os nativos vivem
na história (AUGÉ, 2004).
Desta forma, os mercados e feiras livres, sobretudo no universo do Vale do Jequitinhonha, devem
ser pensados como importantes lugares antropológicos onde são realizadas trocas materiais
e simbólicas entre diferentes atores sociais como feirantes e fregueses, na medida em que se
revelam contextos espaciais carregados de signos, representações e relações sociotemporais,
construídas e reconstruídas entre o homem e seu meio (SERVILHA & DOULA, 2009). Enfim, lugares
antropológicos de trocas materiais e simbólicas, caracterizados por atos, gestos, performances
corporais, movimentos e dizeres, formas de agir e se relacionar – fomentadas por feirantes e
fregueses, onde se ergue uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos atores sociais no âmbito
desses territórios construídos e reconstruídos cotidianamente (VEDANA, 2004).
ANÁLISES E RESULTADOS ALCANÇADOS
Buscou-se, neste momento, analisar alguns exemplos etnográficos de feiras livres e mercados,
identificados a partir de revisão bibliográfica realizada, em diálogo com os pressupostos teóricos
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da Antropologia Econômica, que nos permitiram refletir e problematizar sobre as relações de
trocas materiais e simbólicas realizadas. Tais reflexões e análises foram capazes de fornecer
horizontes teóricos, especificamente no universo do Vale do Jequitinhonha, sobretudo no que
concerne à promoção da diversidade cultural neste universo empírco, a partir da constatação
dos mercados e feiras livres enquanto lugares antropológicos, marcados por trocas materiais
e mercantis, que dizem respeito às relações de venda e compra de mercadorias, a partir do
estabelecimento de relações sociais com o dinheiro (moralidades do dinheiro), tendo em
vista um elemento importante que deve ser aqui considerado: a circulação da palavra, de
trocas simbólicas caracterizadas pela circulação de saberes, por relações com o sagrado, com
a religiosidade popular e pela tessitura de relações de parentesco no contexto destas trocas.
As feiras livres e os mercados como lugares antropológicos de trocas materiais e
mercantis: Trocas, mercadorias, reciprocidade, relações com o dinheiro e
a circulação da palavra
Para Bloch & Parry (1989) em Money and the morality of Exchange, o dinheiro revela-se
representado simbolicamente de diferentes modos no universo de diferentes sociedades. Estes
autores ressaltam as variações culturais e, neste sentido, a diversidade de formas por meio
das quais o dinheiro está simbolizado e que dizem respeito às noções de produção, consumo,
circulação e trocas em diferentes contextos socioculturais. Estes autores refletem sobre a
necessidade de se colocar entre parênteses esta hostilidade e visão negativa do dinheiro e nos
convidam a interrogar os usos sociais do dinheiro a partir de seus componentes morais.
Nesta mesma perspectiva, para Firth (1974) o dinheiro apresenta simbologias que devem ser
consideradas e que dizem respeito ao domínio sobre bens e serviços, que só pode operar,
efetivamente, quando todos confiarem em sua condição de símbolo válido para o sistema
econômico em questão e, enquanto for reconhecido como tal pelos outros, através do
exercício da confiança e da reciprocidade. Bill Maurer (2006) em The Antropology of Money
analisa os diferentes papéis assumidos pelo dinheiro e seus significados sociais, bem como sua
pragmática em diferentes modalidades de intercâmbio e circulação.
Sobre isto Michel de Certeau (et al, 1996, p.52 apud Almeida, 2009) ratifica:
Assim, comprar não é apenas trocar dinheiro por alimentos, mas além disso ser
bem servido quando se é bom freguês. O ato da compra vem “aureolado” por uma
“motivação” que poder-se-ia dizer, o precede antes de sua efetividade: a fidelidade.
Esse algo mais, não é contabilizável na lógica estrita da troca de bens e serviços,
é diretamente simbólico: é o efeito de um consenso, de um acordo tácito entre o
freguês e o seu comerciante que transparece certamente no nível dos gestos e das
palavras, mas que jamais se torna explícito por si mesmo.
Desta forma, podemos considerar que a compra e venda de mercadorias, no universo dos
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mercados e feiras livres, em contextos empíricos como o Vale do Jequitinhonha, envolvem
relações sociais com o dinheiro (moralidades, simbolismos e seus significados sociais) que se dão
em contextos específicos de relações socioculturais de reciprocidade, confiança, credibilidade e
fidelidade, possibilitadas pela circulação da palavra, da troca de palavras no sentido de Bordieu
(2008) que criam laços sociais entre feirantes e fregueses. Tais questões são respaldadas pelos
exemplos etnográficos a seguir e, inclusive, fornecem-nos horizontes teóricos e analíticos para
pensarmos as feiras e mercados realizados no universo do Vale do Jequitinhonha.
Vedana (2004) em sua dissertação de Mestrado, intitulada Fazer a feira: estudo etnográfico das
artes de fazer de feirantes e fregueses da feira livre da Epatur no contexto da paisagem urbana
de Porto Alegre, defendida no universo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), demonstra como no universo
desta feira livre o processo de compra e venda de mercadorias envolve relações sociais com
o dinheiro, que dizem respeito a certa moralidade do dinheiro, baseadas em mecanismos de
confiança, credibilidade e fidelidade. Para a autora, no universo desta feira, na cidade de Porto
Alegre, as relações com o dinheiro envolvidas nas trocas de mercadorias acontecem a partir
de jogos verbais e estratégias de performance oral dos feirantes, representadas por piadas,
jocosidades e brincadeiras.
A venda e compra de mercadorias e, consequentemente, as relações com o dinheiro, dãose na possibilidade de negociação entre fregueses e feirantes, caracterizadas por jogos e
performances orais que permeiam a negociação das mercadorias (VEDANA, 2004). A autora
evidencia uma dimensão simbólica do trato com o dinheiro nas trocas de mercadorias nesta
Feira Livre. Para esta autora, a subjetividade e intimidade das relações cotidianas entre freguês
e feirante, é que vão definir as relações sociais com o dinheiro por parte de fregueses e feirantes
(VEDANA, 2004);
Servillha (2008) em sua dissertação de Mestrado, intitulada “ As relações de trocas materiais
e simbólicas no Mercado Municipal de Araçuaí” defendida no universo do Programa de PósGraduação em Extensão Rural , da Universidade Federal de Viçosa(UFV), também demonstra
como, no universo deste mercado, o processo de compra e venda de mercadorias, envolve
relações de troca, evidenciando o uso do dinheiro, onde um vendedor troca sua mercadoria
por certa quantidade de dinheiro, que ele denomina Relação de troca-mercadoria dinheirofiel. Desta forma, para este autor, as relações sociais estabelecidas com o dinheiro na feira
analisada, estão inseridas em contextos socioculturais, que são caracterizados pela criação de
laços sociais de fidelidade e confiança entre freguês e feirante como reflete este autor.
Este autor demonstra como, no universo desta feira livre, o processo de compra e venda de
mercadorias envolve relações de troca e reciprocidade, permeadas por relações sociais com
o dinheiro, que envolvem questões como o crédito. O autor mostra como nas relações de
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trocas de mercadorias, envolvendo dinheiro no Mercado Municipal de Araçuaí, os feirantes
utilizam-se das chamadas vendas a prazo, nomeadas por mercadores e feirantes através da
chamada caderneta, por meio da qual os fregueses compram mercadorias durante todo o
mês, para realizarem o pagamento apenas no dia de recebimento de sua renda mensal, através
de dinheiro, aposentadoria ou das contribuições de programas governamentais como Bolsa
Família, quando a conta é quitada.
Tal venda a prazo possibilita a manutenção da clientela e o atendimento de um público
importante, como os aposentados, nestes contextos rurais. Para este autor, no universo do
Mercado Municipal de Araçuaí, é realizada a venda a prazo, caracterizada pela confiança dos
mercadores e feirantes na palavra dos fregueses. A garantia da palavra do cliente é fundamental
na troca-mercadoria, dinheiro a prazo. Desta forma, nas relações de crédito que permeiam as
relações com o dinheiro, neste universo, a confiança é um elemento de grande relevância na
coordenação econômica no Mercado de Araçuaí (SERVILHA, 2008).
As feiras livres e os mercados como lugares antropológicos de trocas imateriais
e simbólicas
Os mercados e as feiras livres também devem ser qualificados enquanto lugares antropológicos
de trocas imateriais e simbólicas, que devem ser consideradas. Neste momento, busco
analisar alguns exemplos etnográficos à luz de pressupostos teóricos, que, em consonância
com exemplos etnográficos, nos permitam pensar as relações de trocas imateriais e simbólicas
nos mercados e feiras livres e fornecer horizontes analíticos e teóricos, para pensarmos o
universo empírico do Vale do Jequitinhonha, a partir de alguns eixos principais: a circulação
de conhecimentos, que podem envolver as trocas de mercadorias, tendo em vista o uso da
palavra, as relações com o sagrado e com a religiosidade popular, bem como as relações de
parentesco, que também podem ser evidenciadas nestes universos.
Mercados, feiras livres, trocas, reciprocidade, conhecimentos e circulação da palavra
Para Apaidurai (2008) as mercadorias engendram formas sociais e partilhas de conhecimento
que estão relacionadas com componentes técnicos, mitológicos, de ordem cosmológica que são
compartilhados nos processos de trocas. No universo dos mercados e das feiras livres, em diferentes
universos, evidenciamos a construção e reconstrução cotidiana de conhecimentos no universo de
trocas de mercadorias, que envolvem o estabelecimento de mecanismos de reciprocidade entre
feirantes e fregueses, a partir de um elemento fundamental: a circulação da palavra na perspectiva
de Bordieu (2008), como apontam os exemplos etnográficos a seguir, importantes para pensarmos
os mercados e as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha.
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Vedana (2004), em sua dissertação de Mestrado, demonstra como no universo desta feira livre o
processo de compra e venda de mercadorias envolve relações de troca e reciprocidade, permeadas
por trocas de conhecimentos entre fregueses e feirantes. Na dissertação, ela denomina artes
de fazer de feirantes e fregueses, que dizem respeito aos conhecimentos destes atores sociais,
relacionados às trocas de mercadorias, viabilizadas a partir da circulação da palavra.
Os feirantes, para Vedana (2004), possuem diferentes artes de fazer que acionam no universo
das trocas de mercadorias com os fregueses e que dizem respeito a conhecimentos e saberes
vinculados aos alimentos comercializados, exemplificados pelas artes de dizer e anunciar
os alimentos, que dizem respeito às relações sociais entre fregueses e feirantes. Além dos
saberes relacionados às estratégias de comercialização, evidenciadas pelas piadas, jocosidades
e performances orais, pelos gestos de manipulação do alimento, formas de exposição do
alimento nas bancas e até mesmo saberes vinculados aos usos dos corpos como olhar firme
na direção dos fregueses.
Já os fregueses, para a autora, também possuem diferentes artes de fazer que são acionadas
no universo das trocas de mercadorias com os feirantes e que também dizem respeito a
conhecimentos e saberes vinculados à comercialização de alimentos, que ela denomina
artes de nutrir, relacionados aos gestos de escolha, manipulação dos alimentos, a partir da
percepção tátil, bem como às formas e estratégias de organizar, combinar, misturar, modificar
e cozinhar os alimentos.
Mercados, feiras livres, trocas, reciprocidade, relações com o sagrado e religiosidade
popular
Marcel Mauss (1974) em o Ensaio sobre a dádiva discorre sobre a obrigação de dar, receber
e retribuir, relacionadas com direitos e deveres e que envolvem laços espirituais. Ele reflete
sobre a existência de moral dos presentes, que permeia as trocas de prendas entre homens
e espíritos, as trocas entre homens e seres sagrados, visando obter a retribuição divina. O
autor discorre sobre o ato de praticar a esmola que envolve a relação com os deuses e com o
sagrado. Deuses retribuem e recompensam. Ele dá o exemplo dos Haúcas do Sudão: quando
o trigo da Guiné está maduro, acontece que se espalham febres e a única maneira de evitar a
febre consiste em dar presentes e dar trigos aos pobres.
Godelier (2001) em O Enigma do Dom também reflete sobre as relações de troca de dons
entre os homens e seus deuses, a partir de preces, oferendas e sacrifícios. A realização destes
sacrifícios cria naqueles que recebem uma obrigação maior de dar de volta, havendo uma
comunicação, trocas e alianças com os deuses e com o sagrado (GODELIER, 2001).
As relações sociais de troca de mercadorias no universo dos mercados e feiras livres podem
envolver relações de troca e reciprocidade, são marcadas por vínculos com o sagrado na
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perspectiva preconizada por Mauss (1974) e Godelier (2001), como demonstra a dissertação
de Mestrado intitulada As relações de trocas materiais e simbólicas no Mercado Municipal de
Araçuaí, de Servillha (2008).
Para este autor, no universo do Mercado Municipal de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha,
ocorrem sobras das mercadorias ao final das feiras. Tais sobras possuem diferentes destinos,
como a alimentação das criações dos feirantes e, também, revelam-se “presentes” concedidos
pelos mesmos aos mais necessitados. Este ato de presentear com alimentos, por parte dos
feirantes aos mais necessitados, e de dar “esmola” está relacionado com relações de trocas e
de reciprocidade com o sagrado.
Feiras livres, trocas, reciprocidade, mercadorias e relações de parentesco
Sahlins (1976) considera o parentesco como importante para o entendimento das relações
de troca e reciprocidade. As relações de parentesco, para este autor, são relevantes para a
realização de trocas e reciprocidade, em especial, para a viabilização de trocas generalizadas.
Parentes próximos tendem a compartilhar e entrar em trocas generalizadas como salienta
este autor. Lévi-Strauss (1982), neste sentido, também demonstra como processos como
alianças matrimoniais e filiações envolvem relações de reciprocidade e trocas. Desta forma, as
comunidades de parentesco afetam os modos de trocas e reciprocidade em contextos como
os mercados e as feiras livres, como apontam os exemplos etnográficos a seguir.
Conrado & Alencar (2005) em seu artigo “Família de feirante, feirante também é: mães, pais,
filhos e netos da Feira da Prainha de Belém do Pará, apresentado no Encontro de História
Oral do Nordeste: Memória, patrimônio de identidades, também discute o papel das relações
de troca e reciprocidade entre familiares na reprodução da atividade e do trabalho na Feira
da Prainha de Belém do Pará. O artigo de Lelis, Pinto, Fiúza & Doula(s/d), intitulado Vínculos
de sociabilidade e relações de trocas entre feirantes de Viçosa–MG, que tem como contexto
empírico a Feira Livre da cidade de Viçosa-MG, entre os vários aspectos abordados no texto,
analisa o papel das trocas e reciprocidade entre familiares, a partir dos valores e obrigações
entre seus membros, para a manutenção e continuidade do trabalho na feira livre e para a
reprodução das famílias.
Lima (2008), em sua dissertação de Mestrado defendida no universo do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da UFPA, Ver-o-Peso, patrimônio e práticas sociais: uma
abordagem etnográfica da Feira mais importante de Belém do Pará ressalta que as atividades
realizadas no Ver-o- Peso são realizadas por famílias tradicionais, cujas barracas e boxes são
passados de geração em geração.
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RELAÇÕES SOCIAIS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS NOS MERCADOS
E FEIRAS LIVRES NO VALE DO JEQUITINHONHA: ALGUNS HORIZONTES
E PERSPECTIVAS NA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL
Como visto anteriormente, os mercados e as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha
apresentam um papel fundamental na geração de renda, promoção da segurança alimentar,
reprodução do campesinato e da agricultura familiar, sociabilidade, identidade cultural, de
territorialidades e saberes tradicionais. Neste sentido, é de extrema importância pensar
os mercados e feiras livres enquanto lugares antropológicos e espaços públicos, sobretudo
no universo do Vale do Jequitinhonha, de construção cultural, de territorialidades e de
pertencimentos por diferentes atores sociais como feirantes e fregueses. E mais do que
isto, lugares antropológicos de trocas, que devem ser pensados nos seus aspectos materiais
e simbólicos, a partir das enormes contribuições da chamada Antropologia Econômica que
inaugura novos olhares e horizontes de análises dos processos econômicos, enfocando seus
aspectos políticos e socioculturais, que necessitam ser problematizados no universo acadêmico
a partir das contribuições das diferentes áreas do conhecimento e da pesquisa.
Os exemplos etnográficos apresentados em diálogo com alguns teóricos da Antropologia
Econômica corroboram para pensarmos os mercados e feiras livres como lugares antropológicos
de trocas materiais e mercantis que envolvem trocas baseadas em relações sociais com o
dinheiro e com o crédito, bem como de relações simbólicas, a partir da circulação de
conhecimentos, relações com o sagrado, com a religiosidade popular e de trocas permeadas
por relações de parentesco.
Enfim, podemos concluir que os mercados e as feiras livres revelam-se contextos e universos
preciosos para a pesquisa acadêmica e investigação antropológica das trocas materiais e
simbólicas estabelecidas, a partir das contribuições da Antropologia Econômica, em contextos
e universos como o Vale do Jequitinhonha, que devem ser valorizados e, mais do que isto, nos
quais se deve estimular a permanência de atividades tão antigas como os mercados e as feiras
livres, que ainda resistem e lutam para sobreviverem no contexto da contemporaneidade e
que devem ser problematizados, mais do que nunca, em nossas investigações acadêmicas e
com horizontes e perspectivas no que concerne à promoção da diversidade cultural.
As reflexões teóricas sobre as feiras livres e mercados enquanto lugares antropológicos de
trocas materiais e simbólicas apresentam contribuições que devem ser ressaltadas, no que se
refere à promoção da diversidade cultural em universos como o Vale do Jequitinhonha. Assim
sendo, espera-se que a valorização das feiras livres e mercados como lugares antropológicos
de diferentes atores sociais, como feirantes e fregueses, possa possibilitar a efetivação
democrática de direitos e, assim, o reconhecimento das práticas destes sujeitos socioculturais
e históricos no universo de nossas investigações e pesquisas acadêmicas.
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Culturas populares
e tradicionais
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REFERÊNCIAS CULTURAIS E PATRIMÔNIO CULTURAL:
precedentes, práticas e perspectivas para a diversidade
Fernanda Rocha de Oliveira1
João Amaral2
Resumo
A atual Constituição Federal define patrimônio cultural como bens materiais e imateriais
referenciais para os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A partir da
atuação do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), refletimos sobre a
apropriação da noção de Referência Cultural na preservação dos bens materiais, sobre os quais
se consagraram critérios estético-estilísticos eurocêntricos. Por fim, apontamos as ideias de
Alöis Riegl como promissoras para uma reflexão sobre a construção de patrimônios culturais
representativos da diversidade cultural do país.
Palavras-Chave: referência cultural, diversidade cultural, patrimônio cultural.
Abstract
The current Federal Constitution defines cultural heritage as tangible and intangible bearers
of cultural references to the various groups of Brazilian society. From the IPHAN performance
(Historic and Artistic Heritage Institute), we reflect on the appropriation of Cultural Reference
notion in the preservation of material heritage, on which are consecrated aesthetic and stylistic
eurocentric criteria. Finally we point out the Alöis Riegl ideas as promising for a reflection on
the construction of representative cultural heritage of the country’s cultural diversity.
Keywords: cultural reference, cultural diversity, cultural heritage.
1 Arquiteta e Urbanista, graduada pela Universidade Federal da Paraíba (2011), bolsista do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural - PEP/MP, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. E-mail: fernanda.
[email protected]; [email protected].
2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
A cronologia da constituição do campo do patrimônio denuncia seu caráter eminentemente
material e sempre envolto por uma atmosfera de poder. Desde a antiguidade, os monumentos
eram construtos propositais para garantir que fatos e pessoas ficassem registrados na memória
coletiva. Mas foi após a Revolução Francesa que o Estado organizou, pela primeira vez, um
aparelho administrativo para proceder ao recolhimento e inventário dos monumentos e da
produção artística herdados do clero e nobreza (SANT’ANNA, 1995, p. 2).
No âmbito nacional, o modelo francês de proteção ao patrimônio com ênfase ao monumento
foi bastante referencial. A institucionalização da prática da preservação no Brasil teve como
cenário a década de 30 do século passado, que foi palco de uma ampla reforma do Estado
brasileiro e cujo ápice foi a instauração do regime autoritário, em 1937. Neste contexto, o
Ministério da Educação e Saúde (MES), sob o comando de Gustavo Capanema, de 1934 a 1945,
tem lugar de destaque. Entre as diversas instituições culturais criadas, estava o Serviço de
Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) - hoje Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) -, responsável por forjar uma unidade à nação através da
construção de uma identidade brasileira, representada por seu patrimônio edificado.
Considerando-se, por outro lado, os estudos de Chuva (2009), Rubino (1996) e Motta
(2000), pode-se dizer que a atuação inicial do SPHAN foi o período mais significativo na
construção e disseminação de uma imagem e de uma significação sobre o patrimônio
histórico e artístico nacional. Também que, em sua gestão, não houve alteração nos
critérios e na tipologia de bens tombados por longos anos. Segundo a síntese proposta
por Falcão (1984 apud Chagas, 2009), ao analisar os bens tombados em nível federal nas
primeiras décadas de atuação do órgão,
indica tratar-se de: a) monumento vinculado à experiência vitoriosa branca;
b) monumento vinculado à experiência vitoriosa da religião católica; c)
monumento vinculado à experiência vitoriosa do Estado (palácios, fortes,
fóruns, etc) e na sociedade (sedes de grandes fazendas, sobrados urbanos
etc) da elite política e econômica do país. (FALCÃO, 1984, p. 28 apud Chagas,
2009, p. 106).
Em decorrência desta prática, Motta (2000) aponta que o patrimônio construído pelo IPHAN ao
longo de suas primeiras décadas de atuação formou um quadro social da memória em relação à
noção de patrimônio cultural, fixando a imagem do que foi preservado. Esse quadro consolidou
uma referência, com seus padrões estético-estilísticos eruditos e de excepcionalidade, que foi
se incorporando à memória social como definição de patrimônio cultural no seu sentido mais
amplo, sendo modelo das práticas de seleção e preservação nos anos subsequentes e em
instituições análogas.
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Maria Cecília Londres Fonseca (1996), por sua vez, analisando a trajetória do IPHAN desde a
saída de Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1967, até 1990, distingue-a em dois momentos:
um ao longo da década de 1970, marcado pela apresentação da atividade preservacionista
sobre os patrimônios culturais como compatível com o desenvolvimento do país; e outro
pari pasu à chamada “distensão” no regime civil-militar, marcado pela atuação de Aloísio
Magalhães e que buscaria nas ideias de participação da comunidade “os recursos para legitimar
uma política cultural que se queria democrática” (FONSECA, 1996, p. 154). Ainda segundo
a autora, a atuação do órgão era considerada inadequada aos novos tempos pretendidos
pela administração federal, em que deviam ser compatibilizadas a gestão patrimonial e o
desenvolvimento socioeconômico do país. Por outro lado, também parte da intelectualidade
da época via a atuação do órgão como sendo “elitista, pouco representativa da pluralidade
cultural brasileira, e alienada em relação aos problemas fundamentais do desenvolvimento
nacional” (FONSECA, 1996, p. 155).
É neste contexto que, em 1975, é criado o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), no
Ministério da Indústria e Comércio. Segundo Márcia Chuva (2012) o Centro, sob a liderança
do designer Aloisio Magalhães, não trabalhava com a noção de patrimônio cultural, mas de
bem cultural. O CNRC propunha, segundo Fonseca (1996), uma associação entre cultura e
desenvolvimento que se coadunava aos parâmetros fornecidos pelos Planos Nacionais de
Desenvolvimento dos governos militares e trazia consigo a proposta de identificar um “sistema
referencial básico a ser empregado na descrição e na análise da dinâmica cultural brasileira”
(SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1980, p. 23).
O CNRC promoveu levantamentos socioculturais, inventários de padrões de tecelagem
manual e de trançado indígena, debates sobre a questão da propriedade intelectual de
processos culturais coletivos, a discussão sobre legislação e políticas públicas sobre produtos
artesanais e programas de fomento à atividade. Essa movimentação ao longo dos anos
produziu a ampliação da concepção sobre os patrimônios e bens culturais e a complexidade
da atuação do Estado na sua proteção. É neste contexto de ampliação conceitual e política
que, em 1985, o IPHAN tombou a Serra da Barriga, em Alagoas, onde se localizaram os
quilombos de Palmares e, em 1986, foi tombado o Terreiro da Casa Branca, na Bahia, um dos
mais importantes e antigos do candomblé.
Segundo Cecília Londres Fonseca (2000), a perspectiva das referências culturais veio deslocar
o foco dos bens em si e seus atributos estéticos e estilísticos para a dinâmica de atribuição de
sentidos e valores, marcando uma nova postura em relação à noção de patrimônio cultural.
Levada às últimas consequências, essa perspectiva afirma a relatividade
de qualquer processo de atribuição de valor - seja valor histórico, artístico,
nacional, etc. - a bens, e põe em questão os critérios até então adotados para
a constituição de ‘patrimônios culturais’, legitimados por disciplinas como a
história, a história da arte, a arqueologia, a etnografia, etc. Relativizando o
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critério do saber, chamava-se a atenção para o papel do poder. (FONSECA,
2000, pp. 11).
A autora lembrará ainda que a noção de referência cultural será utilizada, sobretudo, numa
perspectiva que enfatiza a diversidade cultural do país, tanto da produção material quanto dos
sentidos e valores atribuídos pelos diferentes segmentos formadores da sociedade brasileira.
Assim, os emblemáticos tombamentos do terreiro de Casa Branca e da Serra da Barriga, além
das ações do CNRC, somadas a uma efetiva articulação dos movimentos sociais ao longo do
processo de redemocratização do país, contribuíram para que, na Constituição Federal de 1988,
o artigo 215 estabelecesse que: “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional”. Já no artigo seguinte lemos que:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material
e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e cientifico.
Diferentemente da concepção de política patrimonial norteada pelo interesse público
entendido sob o ponto de vista do Estado – como define o Decreto 25/1937, que institui o
Tombamento como forma de proteção e organiza a preservação do patrimônio histórico e
artístico no país -, a Constituição de 1988 referencia a perspectiva da política patrimonial a
partir dos diversos segmentos componentes da sociedade brasileira. Neste sentido, o processo
de Tombamento, inaugurado com o Decreto-Lei, deve submeter-se à definição mais ampla do
patrimônio cultural apresentada na atual Carta Magna.
Neste sentido, ao relacionar a patrimonialização de um determinado bem à sua vinculação a
um sistema referencial, o constituinte imprimiu à atual Constituição Federal uma concepção de
cultura segundo a qual os elementos (materiais ou não) produzidos pelos diversos segmentos
da sociedade são indissociáveis dos significados a eles atribuídos por aqueles que os vivenciam.
A concepção que se pode extrair do texto constitucional é que as produções culturais ou
artísticas apresentam uma relação atávica com outras práticas e aspectos da vida social, com
elas compondo (e revelando) a cosmologia, a forma de ver o mundo e se posicionar nele que
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particulariza os diferentes segmentos da população brasileira.
Assim, mais que tratarmos um artefato ou bem cultural segundo suas propriedades formais,
seus elementos estilísticos e estéticos ou sua vinculação a episódios da história oficial, há que
se considerar os conteúdos simbólicos, valores referenciais e vínculos entre estes elementos e
dimensões estruturantes da vida social (como a memória e a identidade) para os grupos sociais
que os produzam e vivenciem. Perspectiva que possibilita configurar patrimônios culturais
mais representativos da diversidade cultural brasileira.
PERSPECTIVAS DE VALORAÇÃO: DA ESTÉTICA ERUDITA À CULTURA POPULAR
O entendimento do que deve ou não ser protegido enquanto patrimônio cultural está
diretamente conectado aos valores considerados nos processos de identificação dos bens
ao longo do tempo. Mas, conforme colocado, esses valores vêm mudando com os anos. Da
valorização e do fomento das belas-artes, iniciados desde o período monárquico, herdouse uma concepção dicotômica de cultura: por um lado a “erudita”, própria dos intelectuais
e artistas da classe dominante, por outro a “popular”, própria dos trabalhadores urbanos
e rurais, muitas vezes também denominada de “folclore” (CHAUI, 2006, p.13). Embora os
debates ocorridos no campo do patrimônio tenham caminhado rumo à dissolução conceitual
desta dicotomia, alguns ruídos parecem persistir ainda hoje nas ações de patrimonialização.
Na época das primeiras ações do IPHAN, a estética e o estilo eram palavras-chave nas
operações de seleção e proteção de bens e objetos considerados de valor. Junto ao critério
estético-estilístico, a vinculação a fatos memoráveis da história do país e o discurso totalizante
da nação marcaram a consolidação da preservação dos patrimônios históricos e artísticos no
Brasil. A estes critérios subjazem discursos e processos sociais de atribuição de valor que dão
complexidade adicional ao considerarmos os limites para a construção de patrimônios culturais
representativos da diversidade cultural brasileira. Em seu ensaio “Arte como Sistema Cultural”
(1997), o antropólogo Clifford Geertz afirma que a abordagem que conhecemos sobre a arte
se consolidou a partir do século XVIII, paralelamente à noção peculiar de “belas artes” e uma
série de formalismos a priori para a sua execução.
Enrique Dussel (1997), por outro lado, nos apresenta o filósofo alemão Alexander Baumgarten
como tendo desenvolvido a estética como “teoria da sensibilidade”, no século XVIII. De matriz
platônica, esta ideia se desenvolveria numa concepção segundo a qual tão mais superior seria
a arte quanto mais se aproximasse do belo quanto manifestação de uma ideia (eidós) abstrata
de beleza.
Desde o século XVIII, especialmente a partir do Iluminismo, foi se construindo a ideia de que a
Europa e os europeus constituiriam um nível mais avançado numa escala evolutiva unilinear e
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unidirecional, distinguindo-se a partir desta concepção a população mundial entre superiores
e inferiores, mais ou menos racionais, mais ou menos primitivos ou civilizados, tradicionais ou
modernos (QUIJANO, 2014). De acordo com esta concepção, tais distinções se manifestariam
na cultura material de cada povo. Assim, tanto mais bela seria uma obra quanto mais próxima
estivesse do ideal de beleza eurodescendente. Diferentes manifestações deste padrão
configurariam as belas artes, distinguindo-se das artes folclóricas, populares ou étnicas.
Segundo Márcia Chuva (2003), Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade
e Lucio Costa identificavam-se profundamente entre si pela crença na universalidade e origem
comum da arte, “sendo este um ponto crucial na concepção de nação que se consagrou no Brasil
a partir do SPHAN” (CHUVA, 2003, p. 315). Com esta concepção, a “arquitetura tradicional” foi
classificada em tipologias segundo as manifestações de arte europeias ocorridas no Brasil. Esta
tipificação, em períodos, seguiu uma cronologia de estilos específicos, “que colocava as origens da
nação brasileira sincronizadas com a história do mundo ‘civilizado’”. (CHUVA, 2003, pp. 325-326).
De acordo com Paula Porta (2012), as primeiras décadas de atuação do IPHAN moldaram as concepções
e ações sobre os patrimônios culturais no país e “estiveram estritamente voltadas à proteção do
legado material da colonização portuguesa e do período imperial” (PORTA, 2012, p. 11).
No Brasil, os modernistas, que encabeçaram um dos principais movimentos de base artística
a princípios do século XX, foram legitimados como os possuidores da capacidade de eleger
os objetos que, por conterem os valores por eles considerados excepcionais e dignos de
preservação, mereceriam proteção do Estado. Desde que se instituiu a categoria patrimônio, no
sentido como conhecemos, tem-se assistido a uma hegemonia do objeto, do artefato material
e dos padrões estéticos eurodescendentes, em torno dos quais se organizou a memória
nacional em monumentos, museus e seus acervos. Este processo não só marca o modo como
o patrimônio tem sido delimitado conceitualmente, mas também a própria institucionalização
e sedimentação da prática da preservação ao longo do país, o que tem excluído a contribuição
histórica de segmentos sociais significativos, não representados na tipologia predominante
dos patrimônios culturais consagrados.
Os anos finais do século XX, porém, vieram trazer novos rumos a este panorama. Em 1985, a
Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (organizada pelo Conselho Internacional dos
Monumentos e Sítios - ICOMOS3 - e que originaria a Declaração do México) pode ser
apontada como um dos marcos da ampliação da concepção sobre os patrimônios
culturais no mundo. A declaração oriunda do evento afirma que
o patrimônio cultural de um povo compreende as obras de artistas, arquitetos,
músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da
alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as
obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a
3 ICOMOS - International Council of Monuments and Sites.
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língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as
obras de arte e os arquivos e bibliotecas (ICOMOS, 1985, p. 4).
Vê-se, diante deste pensamento, a transição de uma valorização patrimonial meramente
pautada em objetos e fruto da valoração de pequenos grupos de intelectuais, passando a
abarcar outras formas de manifestações culturais igualmente merecedoras de proteção, como
as chamadas artes populares.
No Brasil, o artigo 216 da atual Constituição Federal, como supracitado, define como
patrimônio cultural os bens materiais e imateriais portadores de referência à identidade, à
ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa perspectiva
de apreender a cultura a partir de uma dimensão valorativa e referencial pode ser vista
também como uma transição do conceito de patrimônio histórico e artístico para o conceito
de patrimônio cultural, de forte cunho antropológico e que enfatiza a diversidade não só da
produção material, como também dos sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos
a bens e práticas sociais.
A política de preservação dos patrimônios culturais organizou-se no Estado brasileiro baseada
em critérios estético-estilísticos eurocêntricos ao longo dos anos. Porém, novas concepções
definem os patrimônios tendo por critério as referências culturais dos diferentes segmentos
que compõem a sociedade. Então, como apreender estas referências para fins de aplicação de
uma política pública sobre os patrimônios culturais?
O INRC
Paralelamente às discussões que culminaram na promulgação do Decreto nº 3.551/2000, que
instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro,
o IPHAN empreendeu a elaboração de uma metodologia que fosse adequada à identificação e
produção de conhecimento sobre bens culturais, agora segundo a noção de referência cultural
e a concepção de patrimônio em vigor com a Constituição Federal de 1988. É nesse panorama
que se encaixa o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).
Segundo o manual para aplicação do INRC, trata-se de um instrumento de identificação
configurado a partir de dois objetivos centrais: identificar e documentar bens culturais de
qualquer natureza “para atender à demanda pelo reconhecimento de bens representativos
da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade” e “apreender
os sentidos e significados atribuídos pelos moradores de sítios tombados, tratando-os como
intérpretes legítimos da cultura local e como parceiros preferenciais de sua preservação”
(IPHAN, 2000, p. 8).
O objeto principal de investigação do INRC são as Referências Culturais, entendidas como
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os sentidos e valores de importância diferenciada, atribuídos pelos diversos sujeitos aos
bens culturais que constituem, para eles, marcos de identidade e memória. Para Maria
Cecília Londres Fonseca (2000), o INRC “tem por objetivo identificar, documentar e registrar
sistematicamente os bens culturais expressivos da diversidade cultural brasileira”, incluindo-se
aí Saberes, Celebrações, Linguagens e Espaços (FONSECA, 2000, p. 23). Ou seja, trata-se de um
instrumento de aplicação tanto a bens materiais quanto imateriais.
Mas a prática tem deixado perguntas no ar: o INRC tem sido, de fato, uma ferramenta utilizada para
apreender as referências culturais também em relação aos patrimônios materiais? As edificações e
lugares apontados nos Inventários aplicados têm repercutido em processos de Tombamento?
A prática: o conceito “referência cultural” no âmbito do patrimônio material
Fonseca (2007), tratando da trajetória do IPHAN e da baixa capilaridade das políticas de
patrimônio na sociedade brasileira até os dias de hoje, observa que, nas décadas de 1970 e
1980, dois fatores foram considerados essenciais para uma correção de rumos - no sentido de
aproximar a sociedade brasileira do patrimônio: “buscar instrumentos para incluir no conjunto
dos bens legalmente protegidos testemunhos das culturas indígenas e afro-brasileiras e abrir
a prática política para a participação da sociedade” (FONSECA, 2007, p. 168). Socióloga e
membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN, a autora analisou a questão
da participação da sociedade na preservação de seu patrimônio por meio do envolvimento
dos grupos sociais e verificou que os avanços são tímidos. A participação de cidadãos em
conselhos locais de apoio aos órgãos de patrimônio ou em associações civis voltadas para esse
fim é ainda bastante restrita e o poder público continua sendo o protagonista das solicitações
de preservação, notadamente de Tombamento (FONSECA, 2007).
Segundo dados do Relatório de Atividades do IPHAN (IPHAN, 2015), entre 2008 e 2014 foram
realizadas 95 pesquisas mediante aplicação do INRC, tendo sido concluídas, até a publicação do
Relatório, 56 delas. Dentre os resultados obtidos dos inventários estão: 1 lançamento de livro
sobre Lugares de Culto, 3 projetos culturais relativos a memórias, cantos, saberes e resgates de
cultura tradicional, 20 bens Registrados ou em processo de Registro como patrimônio imaterial,
5 bens reconhecidos pelo Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), 2 ações de
salvaguarda e apenas 1 pedido de Tombamento (do Terreiro Pai Adão, em Recife - PE).
Estes dados suscitam reflexões importantes, como, por exemplo, a predominância da aplicação
do INRC para levantamento e o registro de referências de natureza majoritariamente imaterial.
Embora as categorias Lugares e Edificações componham o Inventário, abarcando assim suportes
materiais que sejam referenciais para dado grupo social, pode se inferir que têm sido poucos
os desdobramentos do INRC no que diz respeito às ações e processos de Tombamento.
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Além de uma possível limitação no uso do INRC para apreensão de referências culturais em relação
a bens materiais, tais questões também permitem indagar a respeito da apropriação da noção
de referência cultural para o Tombamento de Centros Históricos ou bens materiais individuais:
quantos, dos 80 processos de Tombamento solicitados e deferidos entre 2006 e 2014 (IPHAN, 2015,
p. 18), consideraram em suas análises, a despeito da metodologia empregada, um levantamento
da significação e valores atribuídos a estes bens para a população que os vivencia?
O caso do recente Tombamento ocorrido em Natal (provisoriamente em 2010 e homologado
em 2014) é uma evidência de que ainda persiste a linha de atuação técnica e elitista do IPHAN
no âmbito do patrimônio material. Os estudos que compõem o dossiê que embasa o pedido
de Tombamento versam meramente sobre questões relativas a valorações técnicas, tendo
como ferramentas documentos, dados, fotos, mapas e inventários que levantaram somente
dados arquitetônicos e históricos das edificações e espaços livres. Se, como diz a Constituição
Federal, é da sociedade que devem emanar estes valores, a utilização apenas de instrumentos
técnicos para valorar os bens que merecem proteção significa manter procedimentos verticais
em detrimento da apreensão dos referenciais culturais da população mais ampla.
Em última instância, a persistência de práticas implica a manutenção de tipologias consagradas, o
que obstaculiza os patrimônios culturais de consagrarem referências culturais mais diversas.
A PROPOSTA DE ALOIS RIEGL
Sobre estas questões é oportuna uma reflexão acerca das proposições de Alöis Riegl (18581905), que estabeleceu um marco diferencial nos princípios de proteção aos monumentos
da Áustria. Seus critérios não se pautavam pela classificação exclusivamente arquitetônica
dos monumentos existentes, mas pela discussão dos valores que levaram à sua seleção,
“mostrando que o culto ao passado parte de uma exigência cultural e artística do presente”
(SANT’ANNA, 1995, p. 30).
Escrevendo o prefácio de uma tradução da obra de Riegl, “O culto moderno dos monumentos”
(2006), Françoise Choay destaca a importância de não se repetir a experiência de Bologna, na
qual “o postulado conservador e o imperialismo do monumento ainda reinam sob a capa de
uma legitimidade social, ela também postulada e arbitrariamente confirmada.” (RIEGL, 2006,
p. 14). Defende a autora, diante da recente contestação do dogmatismo do monumento frente
às novas políticas de reabilitação e participação de usuários, a relevância do trabalho elaborado
por Riegl que, segundo ela, foi o primeiro a “empreender o inventário dos valores não ditos e
das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de monumento histórico” (Ibid.).
Neste sentido, a supracitada obra de Riegl é ainda hoje atual por considerar, na análise do
culto aos monumentos, não apenas o olhar dos intelectuais, treinados para valorar as
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características objetivas do valor de rememoração - como feito até então -, mas também o
das massas, contemplando efeitos subjetivos e afetivos do monumento (RIEGL, 2006, p. 59).
Na obra, o autor aponta algumas distinções essenciais entre os tipos de monumentos, para
que se pondere que, havendo mais de um tipo de motivação ao culto, deverá haver também
tratamentos diferenciais para estes, ainda que algumas vezes conflitantes.
Para Riegl (2006), haveria, então, três tipos principais de monumentos: o Monumento
Intencional (obras comemorativas que relembram momentos específicos, construídas com
essa finalidade); o Monumento Histórico (obras que remetem a momentos específicos, mas
cuja escolha é determinada pelas preferências subjetivas, podendo incluir os intencionais) e o
Monumento Antigo (que abarca todas as criações humanas e que testemunhem sua passagem
no tempo, independente da finalidade original ou significação atribuída a posteriori).
O culto moderno aos monumentos estaria, então, atendendo basicamente a dois tipos
principais de valores: os de rememoração (revivendo imagens, sentimentos e/ou informações
do passado) e os valores de contemporaneidade (que atendem aos anseios do presente). Como
valores de rememoração, por sua vez, o autor assinala: o “valor de antiguidade”, que valoriza
as marcas do tempo nos objetos, de modo a suscitar nas pessoas “a representação do ciclo
necessário do devir e da morte, da emergência do singular fora do geral e de seu progressivo
e inelutável retorno ao geral” (RIEGL, 2006, p. 51); o “valor histórico”, que representa “um
estado particular, de alguma forma único, no desenvolvimento de um domínio humano” (Op.
Cit. p. 76); e o “valor de rememoração intencional”, que busca guardar sempre presente e
vivo na consciência das gerações futuras os monumentos. “Essa terceira classe de valores de
rememoração constitui assim a transição para o sentido dos valores atuais” (Op. Cit. p. 85), que
seriam os de contemporaneidade. Estes, por sua vez, residem na propriedade que possuam
de responder às expectativas dos sentidos (valor de uso) ou do espírito (valor de arte) tanto
quanto as criações novas o fazem.
Com esta metodologia ou perspectiva analítica, Alöis Riegl (2006) mostra que é possível
aprofundarmo-nos nos estudos que analisam as motivações de preservação de bens materiais,
não nos limitando a classificações pautadas em conhecimentos restritos à estética e estilo.
Pondera-se, em sua proposição, não apenas diferentes valores de acordo com as intenções
objetivas de se preservar, mas também aquelas intenções subjetivas, ampliando o leque de
valores contemplados neste cenário.
As ideias de Alöis Riegl, assim, podem dar contornos mais objetivos à noção de referência
cultural e nortear sua apreensão em relação aos bens edificados, contribuindo com uma
perspectiva teórico-metodológica útil, tanto na aplicação do INRC, quanto para a eventual
experimentação de metodologias que tenham por foco as referências culturais e a diversidade
de sujeitos e de valores atribuídos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O patrimônio cultural construído pelo IPHAN ao longo de suas primeiras décadas de atuação
formou um quadro social da memória, fixando a imagem do que foi preservado. Esse quadro
consolidou uma referência, com seus padrões estético-estilísticos eruditos, foi se incorporando
à memória social como definição de patrimônio cultural no seu sentido mais amplo, sendo
modelo das práticas de seleção e preservação nos anos subsequentes e em instituições análogas
(MOTTA, 2000). Não obstante, a trajetória conceitual e prática do IPHAN levou à ampliação não
apenas do conceito de patrimônio, mas também dos sujeitos sociais que devem ser partícipes
de sua delimitação e gestão. Neste processo, foi-se gerando a noção de Referência Cultural como
forma de orientar a política patrimonial, deslocando o foco dos bens em si para a dinâmica de
atribuição de valores, o que significa buscar formas de aproximação com o ponto de vista dos
detentores dos bens ou práticas culturais patrimonializadas (FONSECA, 2000).
Se a própria concepção de um patrimônio cultural mais amplamente representativo é recente
na história institucional e jurídica do país, o trânsito e absorção deste conceito pelos diversos
órgãos do Estado e sua apropriação por parte dos diferentes sujeitos que se imbricam na gestão
patrimonial ainda é demasiado incipiente. Quanto mais lentamente têm-se metabolizado estas
concepções, mais demoradamente têm-se posto em prática políticas públicas devidamente
abrangentes e que contemplem a diversidade cultural do país.
Assim, mesmo com o avanço de conceitos que tentam compatibilizar as ações de
patrimonialização, ainda parece ser grande a persistência de antigas práticas. Enquanto as
ações voltadas ao patrimônio imaterial seguem buscando apreender da população suas
demandas, as direcionadas ao patrimônio material permanecem limitadas à valoração de
poucos agentes. Neste sentido, é preciso refletir sobre o objetivo e a metodologia adotada
nos processos: Para quem, de fato, são referências os objetos patrimonializados? Que valores,
para além dos tradicionalmente utilizados pelos técnicos, podem classificar os diversos tipos
de bens? Que instrumentos devem ser utilizados para selecionar tais objetos, seguindo os
preceitos constitucionais de protagonismo social? Ainda há muito a se evoluir na busca por
respostas. Mas o primeiro passo é, talvez, saber responder à primeira pergunta.
Quiçá a experiência acumulada possibilite reflexões promissoras e subsídios, tanto para
um melhor entendimento das concepções e instrumentos vigentes, quanto para seu
aperfeiçoamento, a fim de que as políticas públicas federais sobre os patrimônios culturais
possam, efetivamente, ser mais representativas da sociedade brasileira em sua diversidade de
memórias e referências culturais.
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Culturas populares
e tradicionais
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PROMESSAS E MILAGRES NAS DEVOÇÕES POPULARES:
A Dança de São Gonçalo em Campo Maior-PI
Márcio Douglas de Carvalho e Silva1
Resumo
O presente artigo tem como foco de análise a devoção popular a São Gonçalo na zona rural
do município Campo Maior-PI. Trata-se de santo de origem portuguesa que, desde o período
colonial, ganhou muitos fiéis e, graças aos pagadores de promessas que atribuem ao santo
diversos milagres, tem sua prática de devoção viva até a atualidade, manifestada em um rito
festivo que apresenta características comuns da cultura popular. A pesquisa buscou analisar
os aspectos característicos do ritual de agradecimento ao santo com sua dança e cantigas que
envolvem o sagrado e o profano. Para chegarmos a este enfoque, além de embasamentos
bibliográficos, a pesquisa etnográfica foi fundamental para alcançarmos nossas conclusões.
Palavras-Chave: Dança de São Gonçalo, Cultura Popular, Ritual.
Abstract
This article is focuses on the popular devotion of São Gonçalo in the rural municipality of Campo
Maior-PI. He is a Portuguese born saint, who, since colonial times, has won many faithful.
Many people credit him with providing miracles, he finds lively devotion in the present time,
manifested in a festive rite of popular culture. The research sought to analyze the features of
the ritual, with their dance and songs involving sacred and the profane. To get to this approach,
as well as bibliographic emplacements ethnographic research, were essential to reach our
conclusions.
Keywords: Dance São Goncalo, Popular Culture, Ritual.
1 Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Faz curso de Especialização em História e Cultura Afro-brasileira e Africana (UESPI). Professor efetivo da rede Estadual de Ensino do Piauí. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
É possível encontrar, em um país multicultural como o Brasil, conjunções diversas de
representações que atravessam os vários aspectos do comportamento humano. No âmbito
religioso, com facilidade é possível perceber as várias demandas de expressões religiosas que,
mesmo sendo representações de fé, acabam se distinguindo de acordo com o modo como
essa fé é encarada, o que reflete profundamente na maneira como ela se torna explícita.
Desde os primórdios da colonização portuguesa, o Brasil já nascia portando uma demanda
muito grande de representações de fé; a adição constante de práticas religiosas vindas de outros
continentes, mesmo com a prevalência oficial da religião católica, somadas às dos nativos,
formaram no “paraíso terrestre” um verdadeiro paraíso no que diz respeito à maneira como o
homem busca entrar em contato com os seres que julga serem superiores a ele mesmo e que,
por isso. é portador de um poder que pode modificar o seu curso natural de acontecimentos
mediante a fé em quem ele crê.
O cristianismo, presente no Brasil desde a introdução portuguesa, sempre se manteve firme
na sua doutrina, porém, isso não foi suficiente para conter as demandas assimilativas que a
religião foi incorporando de outras crenças.
As manifestações envolvendo a devoção a santos apresentam-se na religião católica desde
muito cedo e até a atualidade sempre se preserva o culto a mártires cristãos. A contabilidade
dos eleitos pelo povo e dos atestados pela igreja oficial não é confluente, pois, muitas vezes,
benfeitores acabam caindo na veneração popular sem ter o aval institucional religioso, o que
não implica dizer que perdem a sua notoriedade diante dos fiéis.
A hagiografia regular e a popular são díspares. Santos podem ser santos para o povo, mas não
santos para a igreja. O ideal de santidade nesse caso depende muito do julgamento do crente.
É o que acontece nas representações religiosas populares.
O ponto de que parte esse trabalho baseia-se nesse tipo de devoção – a não oficial – a um
determinado beato português que nas graças do povo torna-se santo e milagroso. Famoso por
operar milagres e de ser festeiro, nosso santo vem de longe.
São Gonçalo de Amarante é português, mas já é velho conhecido dos brasileiros. É comum
encontrar em quase todo o Brasil práticas religiosas que memorizam a sua existência e atuação
na cura de males que assolam a vida dos seus fiéis.
Tendo seu primeiro registro feito pelo viajante francês Gentil de La Barbinais, na Bahia, em
1718, São Gonçalo faz-se presente no contexto religioso do brasileiro em várias regiões do
Brasil até a atualidade. Institucionalizado ou não, ganhou respaldo e atualmente está presente
no cotidiano religioso do nordestino ao paulista, apresentando uma demanda ampla de
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manifestações no ato do seu culto através das promessas.
Encarado por muitos como manifestação cultural, para seus praticantes essa é uma “maneira
a mais” de buscar contato com as divindades, o que não implica a participação desses fiéis nos
cultos oficiais da igreja católica.
Para entender como se constitui essa devoção a São Gonçalo, foi importante considerar que
a tradição religiosa popular é, na maioria das vezes, estendida adiante através da oralidade. É
desse ponto que parte a nossa principal fonte de informações sobre São Gonçalo, assim como
o uso iconografias e entrevistas com os promesseiros e participantes ativos das danças. O
contato com as festas de louvor a São Gonçalo tornou-se um elemento básico. A observação
das cantigas, a melodia saída da sanfona, a batida do zabumba, o tocado do triângulo, as vozes
das cantadeiras, o bater de pé no chão, assim como todo o gingado que envolve a festa ao
santo português foram analisados.
CULTURA POPULAR E DEVOÇÃO
Os aspectos pertinentes ao catolicismo popular no Brasil são oriundos ainda da época colonial;
segundo Laura de Melo e Sousa (2009), o catolicismo romano “a se mesclar com elementos
estranhos a ele, multifacetados (...), como a própria religião africana transmigrada (...) a colônia
viria proliferarem em seu solo as santidades sincréticas (...) fazendo com que “traços católicos,
indígenas e judaicos, misturaram-se (...) na colônia” (SOUZA 2009, p. 130-134), nos revelando
uma crença formada por um conjunto de concepções religiosas díspares.
As relações de devoção e “favores” que se estabeleciam entre santos e os fiéis eram possuidores
de um grau muito forte de intimidade. Mott (1998) em um artigo no primeiro volume da
coleção História da Vida Privada no Brasil deixa bem claro como se davam essas relações. Esse
contato mais pessoal com a divindade dispensava o intermédio de um sacerdote e facilitaria
o contato e o pedido ao santo.
Nessa abordagem da cultura popular no que tange ao aspecto religioso, podemos perceber que,
para Marilena Chauí (2007), a religião popular pode ser vista como uma prática comumente
aceita no meio social dos mais desfavorecidos economicamente, havendo uma contraposição à
religião do templo religioso oficial; a religiosidade popular, mais praticada no âmbito rural por
pessoas simples, acaba por se objetar ao catolicismo oficial na sua forma de manifestação e com a
“oposição entre leigos e clero, e entre festividades e sacramentos, isto é, entre uma religiosidade
espontânea e uma religião vertical imposta autoritariamente” (CHAUÍ, 2007, p. 82).
Essa espontaneidade avistada por Chauí (2007) caracteriza esse aspecto do comportamento
humano como algo que muitas vezes nos revela ser motivada pela necessidade de alimentação
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de suas esperanças, uma solução para suas aflições, faz com que o homem recorra diretamente
à divindade sem fazer uso do intermédio do clero.
As designações de cultura popular e erudita são rebatidas por Arantes (2006), quando
afirma que ambas são concepções que não se sustentam como objetivas, pois, segundo o
autor, no seu contexto mais abrangente, a cultura deve ser vista em suas diferentes formas
de manifestação “como partes inter-relacionadas” (ARANTES, 2006, p. 39); mesmo que se
apresente de diferentes formas, quando representada no grupo, ela possui sempre uma
relação de aproximação e troca com outros modos de manifestações culturais.
Essa análise da cultura popular das classes que estão à margem e da chamada cultura letrada
é bem exposta na obra de Carlo Ginzburg (2006) intitulada O queijo e os Vermes, podendo ser
percebida certa relação de influências que uma acaba provocando sobre a outra. Na análise
da obra, é possível perceber, a partir do intercurso de relações das classes dominantes com as
subalternas, o que o autor defende como “circularidade”, ou seja, “um relacionamento circular
feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo
[...]” (GINZBURG 2006, p. 10).
Essas “versões” culturais prestadas ao longo do tempo pelos grupos sociais são, também
no aspecto religioso, apresentadas em formas de símbolos que são como um “código” que
tentam formar maneiras de se estabelecer as relações sociais e representar as suas práticas
religiosas. Analisando nesse viés, podemos ver essas práticas como próprias da cultura popular
“adotadas na vida em sociedade e relacionadas com o folclore e a tradição. (...) Muitas vezes,
a cultura popular vem de ágrafos, entretanto eles assimilam sabedoria pela oralidade, signos
e vivência”. (SOUZA, et al, 2006, p. 06).
Na religiosidade popular, a maneira como é constituída a promessa pode se caracterizar como
“um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema
apresentado” (DaMATTA, 1986, p. 75). Para alcançar o que desejam – essa salvação/cura
imediata, os fiéis encontraram uma forma de fazer por onde merecer o milagre: a promessa.
Esta é feita como uma forma de “pressionar” o santo ou mesmo acreditar que com uma
promessa determinada a um santo, certamente será atendido. O modo como a promessa é
vista pelos praticantes torna-se um dos grandes trunfos da religiosidade popular, essa relação
de troca, o chamado “toma-lá-dá-cá”, “a economia das trocas entre homens e deuses é regida,
desde sempre pela fórmula latina do ut dês, “eu dou para que dês” (MATA, 2010, p. 130).
São várias as formas de pagamento, dependendo do “tamanho” do milagre que é pedido,
essa curiosa troca de favores entre uma pessoa e uma divindade é muito comum na cultura
popular. A crença é o que vale, o significado exercido pela fé é o que move as pessoas a
fazerem promessas com a certeza de que alcançarão a graça desejada. O milagre é o produto
final desse contrato; após o recebimento do milagre, chega a vez do receptor agradecer o
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bem recebido: o votos antes feitos agora tornam-se ex-votos que, geralmente, são conhecidos
como representações tangíveis.
Essas relações de trocas voto/ex-voto, milagre/ritual são bem definidas por Marcel Mauss
(1974) no livro Sociologia e Antropologia, em que o autor faz um ensaio sobre a Dádiva,
estabelecendo uma analogia entre as relações de trocas de dádivas e a obrigação de dar e
receber. Nesse sistema, Mauss define essas relações de trocas como “sistemas de prestações
totais”, definindo ainda que “o mais importante, entre esses mecanismos espirituais, é evidente
o que se obriga a retribuir o presente recebido” (MAUSS, 1974, p. 48).
Na retribuição, ou pagamento da graça recebida, o fiel geralmente realiza um ritual religioso. O
rito a São Gonçalo é possuidor de vários símbolos que são transmitidos às gerações seguintes por
meio da cultura popular, sendo que “as forças morais que os símbolos religiosos exprimem são
forças reais, com as quais devemos contar (...) elas são tão necessárias ao bom funcionamento
da nossa vida moral quanto os alimentos para o sustento da vida física” (DURKHEIM, 1996,
p. 416-417). Os milagres atribuídos a São Gonçalo fazem com que o mesmo seja digno de
crédito e de depósito de esperanças; sobre esses ritos praticados em forma de pagamento da
promessa podemos perceber que
Os ritos só podem ser definidos e distinguidos das outras práticas humanas,
notadamente das práticas morais, pela natureza especial do seu objeto. Com
efeito, uma regra moral, assim como um rito, nos prescreve maneiras de
agir, mas que se distinguem a objetos de um gênero diferente. Portanto, é
o objeto do rito que precisamos caracterizar para podermos caracterizar o
próprio rito. (DURKHEIM, 1996, p. 19).
O contexto/motivo estabelecido para a realização do rito é a promessa que se dirige ao santo,
tendo ele uma função básica de “manter a vitalidade dessas crenças, para impedir que elas se
apaguem da memória” (DURKHEIM, 1996, p. 409). Quanto ao modo que o rito é apresentado
na Dança de São Gonçalo podem ser percebidas algumas modificações na intenção inicial
da promessa. Um sentido dúbio na prática religiosa vem apresentando aspectos profanos
juntamente com o ritual sagrado.
Para Durkheim (1996) esse caráter dúbio está presente em todas as religiões. Nessa
abrangência, percebe-se que o sagrado e o profano se estabelecem como maneiras do ser
humano posicionar-se diante da sua existência. Em linhas gerais, o autor afirma que o sagrado
produz uma ligação entre o transcendente e o material, sendo que, ao sacralizar determinado
objeto, lugar ou pessoa, está distinguindo-os dos demais.
Essa nova modalidade de relação com o sobrenatural, mesclando elementos profanos
juntamente com os sagrados são bem característicos da devoção a São Gonçalo até a
atualidade, no decorrer da efetivação do ritual de agradecimento, onde essas duas modalidades
de transcendência se conjuntam na realização da festa religiosa, levando a crer que essa
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mesclagem de traços profanos no ritual sagrado seja, talvez, dada de forma não proposital,
uma vez que o ser humano sempre está buscando o sagrado, que é como uma “necessidade
indestrutível” do homem.
SÃO GONÇALO E A PROPAGAÇÃO DO CULTO NO BRASIL
As principais informações sobre a vida de São Gonçalo, contidas em um verbete do Dicionário
do folclore brasileiro de Câmara Cascudo (1954), mostram uma história de vida dedicada ao
trabalho paroquial e a peregrinações eremíticas. Vários são os adjetivos atribuídos ao beato
português, cabe aqui destacar o seu legado nas tradições populares, a imensa alegria a ele
é atribuída e a habilidade de tocar viola, esta que o mesmo utilizava para animar as noites,
quando também dançava com as prostitutas no intuito de tentar convertê-las a não cair em
tentação. Para punir-se por essa atitude, nas suas danças usava pregos nos sapatos que feriam
os seus pés.
Considerado milagreiro, São Gonçalo começou a operar milagres que puderam ser conhecidos
quando o mesmo ainda era vivo. Santo muito venerado no Brasil, além da sua fama de ser
casamenteiro, possui muitas “especialidades”, sendo procurado pelos devotos para os mais
variados pedidos que vão desde a cura de doenças a problemas financeiros.
O culto a São Gonçalo chegou ao Brasil por meio de devotos vindos de terras lusitanas e
espalhou-se pelas terras do além-mar. As indicações da existência do seu culto na Bahia no
século XXIII estão presentes na 15ª carta do viajante francês La Barbinais que atesta a presença
do culto a São Gonçalo na capela do Rio Vermelho, na Freguesia de Nossa senhora da Vitória,
proximidades de Salvador em 1718.
De acordo com Cascudo (1954, p. 43), a “festa veio para o Brasil com os fiéis do santo de
Amarante” e deixou marcas na tradição de muitas regiões do Brasil.
As descrições do viajante francês Gentil La Barbinais nos dão uma ideia de como eram
executadas as festas de louvor a São Gonçalo e a importância que devotar o santo português
tinha na sociedade brasileira. As descrições de Barbinais, além de destacar a presença de
diferentes grupos sociais na devoção ao santo, dão a entender que o culto era povoado pela
bagunça, pela algazarra, mesclando traços profanos na festa sagrada.
Atualmente, é possível encontrar a Dança de São Gonçalo em praticamente todas as regiões do
Brasil. No Norte, Sudeste e principalmente Nordeste, onde o sertanejo, incansável de recorrer
a seres que considera superiores, deposita sua confiança em São Gonçalo para resolver os
problemas que o aflige.
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O CULTO POPULAR A SÃO GONÇALO: CARACTERÍSTICAS
A movimentação dos preparativos para a realização de um ritual de agradecimento a São Gonçalo
começa por volta de meio-dia. Além de organizar todos os detalhes como arrumar puxadores2
da dança, cantadeiras, tocadores e os demais preparativos, também há a preocupação de
preparar as joias para serem leiloadas depois do ritual (como assados, bolos e doces).
O altar é preparado no terreiro da casa do promesseiro, geralmente em frente à porta da
casa. É feito no chão com cipós posicionados em forma de arco e depois coberto por lençóis
e enfeitado com duas canas-de-açúcar que, fincadas no chão, cruzam-se em frente ao altar
do santo. Dentro do arco é colocado algum objeto que de suporte para colocar a imagem do
santo, sendo completado quase sempre com duas velas e, em alguns casos, algumas flores,
muito raro se ver uma decoração mais enfeitada com flores, por se tratar de um santo do sexo
masculino.
Algo que destacamos na imagem de São Gonçalo, é que a mesma está sempre amarrada com
muitas fitas de várias cores, em algumas imagens dificultando até a visualização do corpo
do santo. Segundo informações colhidas dos devotos, essas fitas são amarradas à imagem
de acordo com os milagres que o santo vai fazendo, quanto mais fitas, mais ele é milagroso.
Podemos perceber alguns desses aspectos nas figuras 01 e 02.
Fig. 01. Altar de São Gonçalo
Fonte: Arquivo pessoal do autor
2 São geralmente homens que ficam a frente das fileiras de dançadores conduzindo a dança.
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Fig. 02. Imagem de São Gonçalo
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Além das características pertinentes ao altar de São Gonçalo já descritas acima e presentes
na figura 01, damos atenção agora às joias que se encontram penduradas na frente do arco.
Essas joias não fazem parte das outras demais preparadas para o leilão, são as joias que são
conhecidas como “as do arco de São Gonçalo”, que também são leiloadas dando início ao leilão
das demais, porém, as mesmas têm conotação especial. Na maioria das vezes, são penduradas
no altar bananas, laranjas, bolos de goma, pudim, manga, uva, maçã, entre outras coisas. As joias
do arco são um caso à parte, pois, geralmente, são leiloadas por um preço muito acima do seu
valor real, caso fossem compradas no comércio convencional, e quem as arremata geralmente
ganha notoriedade, pois todo mundo quer saber quem arrematou o arco de São Gonçalo, por
ser um conjunto de joias aparentemente com pouco valor e que vale muito no leilão.
Atentando-nos para a figura 02, verificamos na imagem de São Gonçalo características
pertinentes à representação do santo português no Brasil, como a viola. Os demais componentes
da imagem não são perceptíveis na figura justamente porque a mesma está encoberta por
fitas da cintura para baixo; o que nos resta concluir é que a imagem usada para os cultos no
município de Campo Maior é a mesma que obedece ao padrão do restante do país: a de São
Gonçalo camponês com calção, bota, chapéu na cabeça e capa azul além da viola na mão.
Após a preparação do altar, começam a chegar as pessoas que vão participar da dança, entre
eles tocadores, puxadores, dançarinos/cantadores e as demais pessoas que vêm prestigiar o
culto. Tendo seu início programado geralmente entre as oito e nove horas da noite, a dança
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de São Gonçalo começa com tiros de foguetes, que se tornam frequentes assim que tem início
uma nova jornada3, que variam de acordo com a promessa, podendo ser de 08, 10, 12, e até
24 jornadas.
O ritual inicia-se quando se posicionam o sanfoneiro, zabumbeiro e um triângulo ao lado do
altar do santo. Em seguida, formam-se duas fileiras de dançadores em frente ao altar, compostas
por quatro homens na frente (os puxadores - dois de cada lado) seguidos das cantadoras. Não
há restrição do sexo, idade ou se precisa saber dançar São Gonçalo ou não para participar da
fila, é só entrar e começar a dançar como os mais velhos fazem na frente. A única exigência
é que se formem números iguais de participantes de cada lado, para combinar os pares nos
momentos em que os participantes se cruzam nas filas.
Fig. 03. Fila para a dança de São Gonçalo
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Fig. 04. Finalização de uma jornada
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Após formadas as filas, acompanhados ao som dos instrumentos musicais já citados acima,
os puxadores dão início à dança de São Gonçalo, acompanhados pelos demais seguidores
da dança, que é caracterizada pelo jogar de um corpo de um lado para o outro, em forma de
zigue-zague, sempre pisando forte no chão. Os que sabem as cantigas do santo acompanham
cantando. Ao longo desse processo, são comuns os gritos de “Viva São Gonçalo” e algazarras
e gritos sem sentido com a dança. Observamos que os poucos que se envolvem na fila sabem
cantar as cantigas, muitos entram pela folia e põem-se a sorrir e a conversar enquanto se
dança em frente ao altar.
A figura 04 mostra o momento do término de uma jornada, quando dois participantes se
ajoelham em frente ao altar e, enquanto isso, o som dos instrumentos diminui seu tom alegre
e a sanfona, com um tom choroso acompanha a finalização da jornada. Na imagem, é possível
ainda perceber no mesmo plano a presença de dois puxadores. Em seguida, todos se levantam,
3 É o período em que se realiza cada parte da dança com inicio e finalização ao pé do altar do santo, cada uma das fileiras tem
direito a conclusão de cada jornada em frente a São Gonçalo e logo em seguida se inicia uma nova fase da dança.
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entram nas suas filas e recomeçam a dança com muita animação. Dependendo da promessa,
em algumas jornadas, os promesseiros ficam de joelhos em frente ao altar com a imagem de
São Gonçalo nas mãos, já outras vezes seguram a mesma sobre a cabeça.
Ao término do ritual, na maioria das vezes, os “mais velhos” que participam da roda reúnemse em frente ao altar e rezam um terço. Logo em seguida, o sanfoneiro anima com a “Valsa de
São Gonçalo”.
Fig. 05. Valsa de São Gonçalo
Fonte: Arquivo pessoal do autor
Homens e mulheres juntam-se em frente ao altar para dançar a valsa, geralmente executada
em um terreno de chão batido; sobe a poeira, o que não desanima os dançarinos, em um dos
momentos mais animados do ritual. Em seguida são realizados os leilões.
O PROFANO NA DANÇA DE SÃO GONÇALO
Possuindo traços na sua execução que lembram características associadas a cultos pagãos,
a dança de São Gonçalo, embora seja voltada para uma divindade cristã, mescla algumas
características profanas. La Barbinais já as identificara em sua viagem ao Brasil no século XVIII,
elementos que ele mesmo considerou de caráter dessa natureza.
Gilberto Freyre (2006) exemplifica bem as situações nas quais São Gonçalo era usufruto de
ritos profanos, afirmando ser a prática do culto a São Gonçalo aquela possuidora de caráter
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mais sensual, envolvendo safadezas e porcarias. A fama de arrumador de casamento para
as mais velhas faz com que essas práticas exóticas se espalhem e a intimidade com o santo
aumente como exemplificado abaixo: “Casai-me, casai-me, São Gonçalinho, que hei de rezarvos, amigo santinho” (FREYRE, 2006, p. 327).
Essa modalidade de relação com o sobrenatural, mesclando elementos profanos juntamente
com os sagrados, bem característicos na devoção a São Gonçalo, está presente até a atualidade
no decorrer da efetivação do ritual de agradecimento, onde essas duas modalidades de
transcendência se conjuntam na realização da festa religiosa. O que leva a crer que essa
mesclagem de traços profanos no ritual sagrado seja, talvez, dada de forma não proposital,
uma vez que o ser humano sempre está buscando o sagrado que é como uma “necessidade
indestrutível” do homem.
Durante as observações dos rituais ao santo em localidades do município de Campo Maior,
verificamos vários tipos de comportamento - desde o preparo para a dança à sua concretização
e após o seu término - que identificam características profanas, juntas ou presentes naquele
ritual que, por si só, deveria ser sagrado.
Já sabemos que o ritual a São Gonçalo é animado, com danças, cantigas, foguetes, sanfoneiros,
gritos, etc. Porém, além desses elementos que fazem parte da dança, verificamos que nos
preparativos para a festa alguns dançadores se alcoolizavam e acabaram por realizar a dança
completamente embriagados, fazendo com que o fiel ficasse mais animado e aumentasse a
sua algazarra, enquanto dançava em frente ao altar de São Gonçalo. O uso de bebida alcoólica
nos rituais de São Gonçalo já é rotineiro.
Na maioria dos casos, os dançantes fumam e bebem enquanto cultuam São Gonçalo, em
uma de nossas observações foi possível verificar uma garrafa, já seca, de vinho junto ao altar
do santo, como é possível observar pela figura 06. Além de uma garrafa de vinho tinto já
totalmente consumida, também é possível perceber pela imagem que o altar de São Gonçalo
é montado em cima de uma caixa seca de cerveja, o que significa que há bebida alcoólica a ser
consumida, antes, durante e após o ritual.
Em outra ocasião, foi possível perceber que um dos dançarinos bebia ao mesmo tempo em
que dançava em louvor a São Gonçalo; o mesmo guardava um copo com cachaça ao lado da
imagem do santo e, ao fim de cada jornada, quando ele se posicionava de frente para o altar,
tomava um gole.
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Fig. 06. Altar de São Gonçalo4
Fonte: Arquivo pessoal do autor
A fusão de vários elementos comportamentais, religiosos e profanos é o que mais acontece nessas
danças de devoção. Não raro, sempre após a dança a São Gonçalo, são feitas festas com bandas
de forró ou serestas, o que faz com que mais pessoas apareçam para apreciar o adjunto.
Geralmente, a Dança a São Gonçalo começa por volta das 8 horas da noite, como estratégia
para terminar cedo para dar início à festa. Há uma associação da história de vida do santo
com as festas após os rituais, como forma de justificar em parte a realização das mesmas e
que, muitas vezes, as festas são promovidas aproveitando a ocasião da dança de São Gonçalo,
como forma de angariar fundos para o organizador devoto do santo.
Em todo esse universo de promessa, fé e contrato com uma divindade, percebemos a existência
de caracteres profanos ocasionados por várias causas. Desde a colônia, o culto a São Gonçalo
já recebia denominações profanas, sendo trazido para atualidade com a fama de ser um santo
bagunceiro e que gosta de folia. Em certo ponto percebemos que os devotos aproveitam-se
dessa condição para justificar os exageros cometidos na Dança de São Gonçalo.
OS PRATICANTES DA DANÇA DE SÃO GONÇALO
Mediante a apresentação das principais características do culto de devoção a São Gonçalo em Campo
Maior-PI no que diz respeito a sua execução, cabe também destacarmos e analisarmos, de forma
mais detalhada, quem são na verdade as pessoas que mantêm viva a devoção ao beato português.
4 As moedas e notas de dinheiro do lado da imagem de São Gonçalo são ofertas que os participantes colocam ao longo das
jornadas, que ficam para o organizador da festa.
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Foi possível observar no decorrer da pesquisa que, desde a idealização até a execução da festa,
há o envolvimento de muitos atores. Tudo parte da promessa: o promesseiro é o responsável
principal - na maioria das vezes, após fazer um pedido ao santo, concebida a benção é hora
de devolver a graça recebida, e o pagamento da promessa é feito a partir da execução do
ritual de louvor. É esse pagador de promessa que fica responsável de agrupar todos os demais
integrantes necessários para a realização da dança, que envolve a participação tanto de
homens como de mulheres.
Um dos integrantes primordiais é o tocador, como já destacamos acima; o sanfoneiro é um dos
mais importantes, pois anima e dá ritmo às cantigas que serão executadas ao longo do ritual
por cantadores e cantadoras que, ao mesmo tempo em que dançam, cantam. Não há uma
quantidade exata de participantes que devem cantar e dançar, mas é de extrema importância
que existam pelo menos dois puxadores, um em cada fileira. Os puxadores são pessoas,
homens ou mulheres que têm mais experiência na realização do ritual e servem como guias
para conduzir os que seguem o mesmo formando as fileiras.
Além dessas pessoas que estão diretamente ligadas à execução do ritual em si, há a participação
de muitas outras. Ao longo do dia inteiro, homens e mulheres trabalham na confecção do altar do
santo que é exposto no terreiro da casa do promesseiro e serve como base para toda a execução
do ritual, além das mulheres que são as principais responsáveis pela preparação das joias que
serão leiloadas, fazendo-se importante também a participação do gritador do leilão.
Sabendo que a motivação principal para a efetivação da festa é o recebimento de uma graça,
percebemos, ao longo da pesquisa, que essas pessoas estão enquadradas em uma faixa etária
e uma classe social praticamente determinada. Pela observação feita, chegamos ao número
médio etário de 58 anos. Podemos perceber, ainda, que tanto esses promesseiros como os
demais integrantes são pertencentes a um mesmo nível social, geralmente agricultores e
aposentados que não possuem uma renda mensal muito acentuada e nem são portadores de
algum grau de instrução escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dança de São Gonçalo, além do caráter religioso-devocional, é possuidora de aspectos culturais
extremamente associados a nossa pluralidade de representação, ganhando importância na vida
dos devotos que disseminam a sua devoção constantemente, significando-a e ressignificando-a
de acordo com suas necessidades.
Geograficamente, quase em sua totalidade praticada por pessoas que vivem na zona rural do
município de Campo Maior, a Dança de São Gonçalo está quase sempre associada à indústria
milagreira. A sobrevivência da prática religiosa vem sendo garantida graças aos fiéis (maioria de
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idosos) que acreditam no santo e fazem promessas diante necessidade de encontrar respostas
para suas indagações, recorrendo a São Gonçalo. Essas pessoas quase sempre possuem pouco
grau de instrução, além de poucos recursos financeiros, o que demonstra que São Gonçalo é
um santo mais presente na concepção de classes desfavorecidas.
Na realização do ritual não pode ser esquecida a existência de um lado profano, caracterizado
por uso de bebidas alcoólicas pelos participantes no momento da execução da dança, e até a
existência de festas e serestas ao final do ritual de louvor.
Contudo, pode ser observado, dentro do contexto campo-maiorense, que a importância cultural
da dança de São Gonçalo está centrada, além do seu caráter devocional, à expressão artística
que vive em confluência com a fé, o que leva a crer que a dança é possuidora de uma carga
cultural altamente rica que ainda persiste até os dias atuais, ganhando forte representatividade
no município de Campo Maior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Publicações. 1972. 3ª edição.
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Cortez, 2007.
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Culturas populares
e tradicionais
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A POEIRA DO SAMBA E A FESTA QUE ANTECEDE O BRILHO:
as sambadas de Maracatu como espaços espontâneos
de comunicação e de uma tradição renovada
Ivanice Oliveira de Lima1
Resumo
As sambadas representam o encontro para exaltar determinada brincadeira. Na Mata Norte
de Pernambuco elas são mais frequentes a partir da entrada do segundo semestre, são
festas organizadas nas comunidades como forma de ensaio para o Carnaval. Especificamente
busca-se, no trabalho, analisar as sambadas de Maracatu de Baque Solto da Mata Norte de
Pernambuco como espaços espontâneos onde se dão, além da preparação para a o “Carnaval
Oficial”, processos comunicacionais e relações entre o massivo e o popular. Representam
verdadeiros espaços onde a tradição e a modernidade coexistem e renovam-se.
Palavras-Chave: sambadas; comunicação; culturas populares.
Abstract
The sambadas represent the communal meeting to perform certain play acts. In the North
Forest of Pernambuco they are more frequent from the start of the second half of the year.
They are parties organized in the communities as a way to prepare for Carnival. Specifically
trying to analyze sambadas of Maracatu, and its spontaneous spaces of performance, and the
preparation for the “Official Carnival”, and its communication processes, and the relationship
between the masses and popular culture. They all represent real spaces where tradition and
modernity coexist and are constantly renewed.
Keywords: sambadas ; communication; popular cultures
1 Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (UFRPE); Graduada em Comunicação Social/ Rádio e TV (UFPE); Professora do Curso de Comunicação Social da Faculdade Joaquim Nabuco, Recife, PE. E-mail: [email protected].
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SAMBADAS, CULTURAS POPULARES E COMUNICAÇÃO
Um período de recomeço é o que representa a chegada do segundo semestre de cada ano
no interior de Pernambuco. É a preparação para as grandes festas dos Maracatus da Zona
da Mata Norte. É o tempo das sambadas de Maracatu. A origem da palavra samba remete
a uma derivação do quimbundo semba, que significa umbigada, ou do umbundo samba que
significa estar animado. Há ainda uma linha que entende a origem da palavra ligada à língua
luba e a outras línguas bantas, em que samba significa pular ou saltar com alegria (ROSCHEL,
s.d, p.1). Assim, com base nas teorizações em torno da palavra samba, já dá para concluir que,
ao contrário do que muita gente ainda imagina, samba é mais do que um ritmo popular do
carnaval carioca.
Samba representa a festa e a sambada, o encontro para exaltar determinada brincadeira; os
ensaios de Maracatu, Cavalo-marinho, Caboclinho e de várias outras manifestações culturais
em que a comunidade vai para ver mestres desafiando-se, pessoas afinando as brincadeiras
com ou sem objetivos de uma posterior apresentação oficial nos palcos maiores dos festivais ou
encontros produzidos pela iniciativa pública ou por produtores culturais em grandes eventos
como o carnaval, por exemplo (LIMA, 2013).
Para este trabalho, nos atemos a analisar a preparação dos Maracatus de Baque Solto e os
processos comunicacionais que estão presentes nos encontros que antecedem as “festas
oficiais” do Carnaval. Na sessão seguinte, aparecerão as características principais dessa
representação artística das culturas populares da Região da Mata Norte de Pernambuco.
Busca-se perceber como os ensaios, sambadas dessa representação cultural, configuramse como espaços de trocas comunicacionais entre os indivíduos de uma comunidade e,
para isso, consideramos os aportes teóricos da folkcomunicação e dos Estudos Culturais na
América Latina.
As apresentações artístico-culturais funcionam como uma importante forma de expressão entre
os atores das culturas populares, não apenas durante o cantar, o bailar dos corpos nas brincadeiras,
mas em relação a um todo muito maior, que envolve a forma como as pessoas se relacionam
nesses espaços, trocam experiências e informações, são reconhecidas social e politicamente,
processo esse definido por Luiz Beltrão como Folkcomunicação: “processo de intercâmbio de
informações e manifestação de opiniões, ideias e atitudes da massa, por intermédio de agentes
e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore.” (BELTRÃO, 2004, p.47). Para além de espaço
para a diversão, as sambadas aparecem como momentos para a celebração cívica e oportunizam
observar como os grupos sociais pensam, sentem e agem (MELO, 2008).
Para Nina Friedmann, citada por Marques de Melo, as festas populares podem ser entendidas
como “rituais de comunicação, cada um com seus sistemas próprios de signos, seja no âmbito do
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sagrado, seja no mundano” (1995, p.18. apud MELO, 2008, p.79). A festa enquanto ativadora das
relações humanas produz comunhão grupal ou comunitária em torno de motivações socialmente
relevantes. Trata-se de um fluxo de comunicação interpessoal (MELO, 2008, grifo do autor).
Em tempos de grandes oligopólios de comunicação, de uma cultura cada vez mais
mediatizada, de uma espetacularização das representações da cultura popular, onde “ao
invés da participação comunitária, é proposto um espetáculo para ser admirado” (CANCLINI,
1982, p.112 apud MELO, 2008, p.77), as sambadas tendem a apresentar-se como espaços
mais espontâneos de troca de informações por proporcionarem as expressões das culturas
populares nos próprios espaços onde elas estão inseridas, embora tenhamos a convicção que
o tempo todo essa cultura popular recebe influências do massivo, porque se relaciona com ele,
ressignificando os sentidos. O popular representa correntes culturais variadas que reivindicam
uma intercomunicação massiva permanente.
Para Canclini, citado por Escosteguy (2001), o popular não aparece como o oposto ao massivo,
mas como um modo de atuar nele. E o massivo não é, nesse caso, somente um sistema vertical
de difusão e informação; mas é também a expressão e amplificação dos vários poderes locais
que vão difundindo no corpo social. Para esse autor, as culturas populares constituem-se por
um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia,
por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão, reprodução e transformação,
real e simbólica, das condições gerais e específicas do trabalho e da vida (CANCLINI, 1983). Ele
entende a construção das culturas populares em dois espaços:
a) as práticas profissionais, familiares, comunicacionais e de todo tipo através
das quais o sistema capitalista organiza a vida de todos os seus membros; b)
as práticas e formas de pensamento que os setores populares criam para si
próprios, mediante as quais concebem e expressam a sua realidade, o seu lugar
subordinado na produção, na circulação e no consumo. (CANCLINI, 1983, p.43)
A noção de consumo faz-se essencial para o entendimento acerca das culturas populares,
pois é certo que, ao se relacionar com o massivo, essas culturas populares consomem o que é
produzido no massivo. No estudo do popular é preciso analisar não só aquilo que culturalmente
produzem as massas, mas também o que consomem, aquilo de que se alimentam e de pensar
o popular na cultura não como algo limitado ao que se relaciona com o seu passado, mas
também e principalmente, o popular ligado à modernidade, à mestiçagem e à complexidade
do urbano (MARTIN BARBERO, apud TAUK SANTOS, 2008, p.4).
Daí ser muito importante perceber que, no momento de trocas de informações das sambadas,
os temas do Brasil e do mundo encontram um espaço favorável para aparecerem não somente
nas conversas do público que observa as apresentações, mas também esses mesmos temas
acabam virando o mote condutor das loas, dos versos dos mestres cantadores que, nesses
versos, já imprimem a sua marca e a sua interpretação para os fatos dos quais “ouviram falar”
através dos meios de comunicação de massa.
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A partir dessa conexão com “o novo”, com o que “aparece na televisão”, com o que é informação
dentro das comunidades, novos versos são criados, denotando, assim, uma renovação nas loas,
nos cânticos, uma tradição renovada, “modernizada”. “Moderno é tudo o que se demarca em
relação àquilo que permanece como tradicional, tal como tradicional é tudo o que se demarca
em relação àquilo que se apresenta como moderno” (RODRIGUES, 1997, p. 2).
Para Rodrigues (1997), o tradicional aparece como transferência, doação. O termo tradição
vem do latim traditio, do verbo trans-dare, dar completamente, de um lado ao outro, enquanto
modernidade representa ruptura. “A Tradição revela uma experiência do mundo [...] através
das gerações. É [...] a partilha dessa sabedoria transmitida através das gerações que mantém
a identidade e a coesão tanto individual como colectiva, no seio da comunidade de pertença”
(RODRIGUES, 1997, p. 4).
É importante observar que a modernidade não deve ser vista como uma substituta à
Tradição:
Considerar a modernidade como uma dimensão da experiência, e já não
como uma etapa histórica destinada a substituir a tradição, faz com que
contrapor hoje as sociedades tradicionais às sociedades modernas se tenha
convertido numa postura simplista e redutora. Na sequência da revisão crítica
do processo de modernização, ambas as modalidades da experiência, tanto
a tradicional como a moderna, deixaram de ser vistas como etapas epocais
para passarem a ser encaradas como modalidades distintas da experiência
que coexistem num mesmo espaço e numa mesma época (RODRIGUES,
1997, p. 3).
A partir do exposto, percebe-se que a prática comunicativa, através de uma manifestação
tradicional das culturas populares, permanece, justamente porque se adapta, porque interage
com o meio massivo, com os aparatos modernos, com as mensagens difundidas massivamente;
vemos, então, uma tradição relacionando-se com a modernidade.
AS SAMBADAS DE MARACATU: a poeira que antecede o brilho
Um terreiro batido, plano, varrido ou as pontas de ruas calçadas transformam-se no espaço
para as apresentações que, no geral, não possuem rigor quanto ao uso de figurino especial,
número mínimo de brincantes, ou tempo de duração. O cenário é composto por elementos
simples: algumas gambiarras para iluminar o terreiro, barracas onde são vendidas as bebidas e
os tira-gostos e amplificadores e microfones modestos ou, quando muito, carros de som para
amplificar as vozes (LIMA, 2013).
Preparação é uma palavra que define muito as sambadas. Amorim (2002) destaca que, no caso
do Maracatu de Baque Solto, assim como os bordadores precisam preparar as fantasias da
“caboclaria”, assim como os caboclos devem sair pelas ruas e estradas com o surrão nas costas
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em preparo físico (e também religioso), o brinquedo precisa de reuniões em torno do mestre,
do terno (grupo de músicos tocadores de cuíca, caixa, mineiro e gonguê), para afinar tudo para
o próximo carnaval, daí a importância de se realizarem as sambadas.
Os Maracatus Rurais ou de Baque Solto são grupos folclóricos típicos do carnaval da zona
canavieira de Pernambuco (BENJAMIN, 1989). Embora, atualmente, possam ser encontrados
na zona urbana também, visto que muitos trabalhadores, ao migrarem para as grandes cidades,
levaram consigo a tradição do Maracatu de Baque Solto, constituindo novos grupos com as
características dos folguedos originados na área rural.
São personagens tradicionais dos Maracatus Rurais os caboclos de lança, que portam
cabelereiras coloridas, gola bordada de vidrilhos e/ou lantejoulas sob camisas de mangas
compridas, calça de chitão, surrão com chocalhos, óculos escuros, guiada, ou lança enfeitada
com tiras coloridas e, na boca, um cravo branco (BENJAMIN, 1989). Os caboclos de lança talvez
sejam os personagens mais conhecidos do Maracatu de Baque Solto, têm a função de proteger
seus maracatus, agitando as lanças que carregam. Além dos caboclos de lança, constituem
também os Maracatus Rurais os caboclos de pena, pois carregam uma coroa de penas de pavão
na cabeça, encontram-se em número bem menor do que os caboclos de lança; as baianas, hoje
também encarnadas por mulheres, antes só os homens brincavam os maracatus; também há
o tirador de loas, ou mestre responsável pelos versos; e a orquestra formada geralmente por
trombone, cuíca, caixa, surdo e gonguê (BENJAMIN, 1989).
No espaço das sambadas, relacionam-se os membros de uma determinada comunidade que
vão para ver os mestres desafiarem-se, e, mais recentemente, percebe-se um interesse de
grupos até de grandes centros urbanos que se dirigem aos espaços rurais e arruados das sedes
das cidades do interior de Pernambuco, para apreciar as apresentações que, tradicionalmente,
estendem-se até as primeiras horas da manhã2. Na seção seguinte, destaca-se a percepção dos
personagens participantes das sambadas de maracatu em relação ao espetáculo, preparação,
representação da cultura de um povo, espaço para as trocas comunicacionais e mais do que
representam as sambadas.
2 Desde de meados de 2011 os Maracatus da Mata Norte de Pernambuco, em razão de uma determinação da Polícia Militar
do Estado, através do Programa Pacto Pela Vida, foram obrigados a encerrar os ensaios no máximo até às 2 horas da manhã,
fato que desagradou a comunidade maracatuzeira, adeptos e frequentadores dessas apresentações. De acordo com a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, as limitações de horários foram impostas para preservar a segurança das pessoas
e evitar casos de violência, no que a comunidade maracatuzeira rebateu, alegando que as sambadas representam eventos
tradicionais da cultura de um povo e que, portanto, merecem ter respeitada a sua realização plena e sem interferências do
Estado. Organizados, alguns representantes de Maracatus de Baque Solto e militantes da Cultura Popular conseguiram, depois
de algumas audiências no Ministério Público de Pernambuco, que o MPPE expedisse recomendação que assegura que o Maracatu seja respeitado em suas tradições e a Polícia Militar não mais interferisse impondo horários para o término das apresentações. No anexo Fig. 1 é possível conferir o banner divulgado nas redes sociais da 1ª Festa da Alvorada, evento realizado
em janeiro de 2015 e que comemorou o fim das restrições aos ensaios e sambadas de Maracatu de Baque Solto. 70
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UMA BRINCADEIRA LEVADA A SÉRIO: as sambadas por quem participa
Nesta seção, a partir dos depoimentos dos brincantes e frequentadores das sambadas,
podemos perceber melhor como eles se relacionam nesses espaços e quais representações
existem nelas.
Há mais de trinta anos em meio à brincadeira do Maracatu Rural, o Mestre João Paulo, do Leão
Misterioso de Nazaré da Mata, considera a sambada um grande exercício para cada folgazão,
do mestre cantador ao dançante que fará as manobras do caboclo de lança, e também uma
oportunidade de reunir todos os integrantes do Maracatu, o que ressalta o capital social que
existe em torno do evento:
A gente junta o grupo, tem um que mora em Lagoa Seca, outro mora no
Recife... Aí quando faz esse ensaio, a gente faz um jeitinho de juntar os
componentes todos, e faz aquela festa, aquela confraternização, e cada qual
já fica sabendo o que vai fazer no carnaval. (Mestre João Paulo, entrevista
concedida à autora, 2011).
Para Manuel Carlos de França, o popular Mestre Barachinha, primo de João Paulo e também
mestre de Maracatu:
Onde se conhece o autêntico maracatuzeiro é no terreiro, é onde a gente fica
observando quem sabe dançar, quem gosta de dançar, porque eu acho que
no carnaval é só uma exibição de fantasia. (Mestre Barachinha, entrevista
concedida à autora, 2011).
O depoimento de Mestre Barachinha, do Maracatu Leão Mimoso, grupo surgido em 1984 em
Upatininga, distrito de Aliança, Mata Norte de Pernambuco, deixa claro que é nos espaços
das sambadas que a comunidade conhece melhor os mestres de maracatu e os folgazões. As
sambadas representam, assim, os eventos em que os membros de uma coletividade podem
conferir reconhecimento a um determinado mestre pela qualidade de suas loas (versos,
métrica etc).
Para o músico e pesquisador Climério Oliveira, as sambadas são ambientes geralmente
frequentados por apreciadores dessa poesia oral, pessoas que conhecem muito essa poética e
podem avaliar qual mestre cantador está tendo desempenho excelente, regular, ou fraco.
A partir do bom desempenho do mestre, o Maracatu dele cresce politicamente
na comunidade de Maracatus (Climério Oliveira, entrevista concedida à
autora, 2011).
O Mestre Barachinha destaca que é nas sambadas que os mestres têm a grande oportunidade
de improvisar na poesia com os temas do cotidiano da comunidade local, até do Brasil e do
mundo; sobre política, cultura, esportes, embora muitos entoem também versos de balaio,
aqueles previamente decorados:
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Todo mestre de Maracatu sai de casa já com um balaio pronto, quer queira,
quer não queira, ele acaba cantando alguma coisa que ele já sonhou em casa,
já pensou em casa... Agora, com certeza, tem um que improvisa mais que
o outro, mas, de acordo com a sambada, a gente é forçado a improvisar,
tudo vai do momento, da inspiração da gente. (Mestre Barachinha, entrevista
concedida à autora, 2011).
Mais do que as aptidões artísticas dos mestres de maracatu, com os versos é possível perceber
como aquele mestre, reconhecido pela comunidade, demonstra a sua visão de mundo, o seu
entendimento para fatos do cotidiano, qual leitura ele tece, a partir dos fatos aos quais tem
acesso, por meio da cobertura da mídia. Nessa perspectiva, é possível entender os versos, as
loas, como materiais elaborados frutos de recepções mediáticas e pouco passivas, mas atentas
e reelaboradas.
Quanto à participação de pessoas da comunidade nas sambadas de Maracatu, elas vão
para se divertir, dançar, beber, além de também terem a oportunidade de conhecer qual
mestre se destaca em relação aos demais. Essas pessoas, via de regra, tomam conhecimento
da realização de uma sambada a partir do contato interpessoal com os membros de suas
comunidades. Mas - se não são apresentações oficiais, divulgadas na grande mídia, e com todo
o aparato de uma divulgação massiva e/ou de interesses turísticos - o que leva as pessoas a
frequentarem as sambadas? Para muitos, o interesse parte justamente por serem elas eventos
mais espontâneos, em que ainda é possível apreciar as brincadeiras com mais autenticidade e
menos presas às amarras das apresentações dos grupos culturais nos grandes palcos.
Obviamente, com a maior facilidade de comunicação possibilitada pelos avanços tecnológicos,
as informações circulam de maneira mais rápida e abrangem públicos muito maiores do
que aqueles restritos às comunidades rurais onde se realizam as sambadas do interior de
Pernambuco. É possível hoje já encontrar diferentes grupos de grandes cidades que frequentam
as sambadas do interior e até divulgam eventos em redes sociais da internet, como já foi
mencionando anteriormente e pode ser visto na Figura 1.
Ainda assim, parece ser a interação aparentemente espontânea entre grupos de universos
distintos (mas conectados e com muito em comum) que chama a atenção de muitas pessoas
da capital, muitos jovens que vêm descobrindo as sambadas e a representatividade delas nos
espaços rurais:
É uma brincadeira que quem brinca, os brincantes, brincam por amor, muitos
são pessoas da cultura canavieira. As pessoas são pessoas simples que sabem
o valor que tem suas próprias brincadeiras. Essa interação das pessoas da
capital, daqui de Recife, com o pessoal do interior é o que eu acho bacana.
(Ronaldo Santos, universitário, entrevista concedida à autora, 2015).
Na opinião de Climério Oliveira, outro grande segredo do prestígio das sambadas na própria
comunidade – ganhando, em muitos casos, a concorrência com a televisão - é que as elas se
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impõem como eventos de força:
Elas não são importantes apenas porque meia dúzia de pesquisadores o
afirma, mas por que elas se impõem; a energia delas tem resistido a tour de
force da mass media que tenta sugar toda a atenção para si. Nas sambadas,
as pessoas discutem seus problemas, desabafam, discutem política, trocam
informações sobre trabalho e sobre tudo o mais, conhecem novas pessoas e
por aí vai. (Climério Oliveira, entrevista concedida à autora, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se percebe é que, mesmo com a ausência, nas sambadas, das exuberantes indumentárias
- preparadas durante meses para o carnaval com não menos zelo do que os versos e os passos
- prevalece a poeira das brincadeiras que dá um colorido especial a elas, por mais incoerente
que isso possa parecer ao leigo, ou a quem aprecia as brincadeiras pela primeira vez. Afinal,
muito antes de as purpurinas, as penas e as lantejoulas estarem presentes nas apresentações
“oficiais” do carnaval, é a poeira dos terreiros batidos que enche de energia os brincantes
dessas manifestações.
São espaços onde se dão as trocas comunicacionais, são reelaboradas mensagens difundidas
pela cultura de massa, reinterpretadas para o ambiente da cultura popular, fruto dessa conexão
e concessões do relacionamento entre o massivo e o popular. Ambientes onde a tradição
renova-se e interage com o moderno, com os temas difundidos na mídia e reinterpretados em
forma de versos.
Espaços mais espontâneos de comunicação, um tanto mais afastados dos palcos iluminados
das apresentações oficiais e, ainda assim, ou talvez por isso mesmo, reconhecidos pela
comunidade. Espaços onde a comunidade se vê representada e empodera-se, consome,
realimenta-se emprestando sentidos.
REFERÊNCIAS
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de Cultura Cidade do Recife, 2002. 124 p.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: UMESP,
2004. 160 p.
BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. Folguedos e Danças de Pernambuco. Recife: Fundação
de Cultura Cidade do Recife, 1989. 134 p.
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CANCLINI, Néstor Garcia. As culturas populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
p. 42 – 56.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino-americana.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 107 – 137.
LIMA, Nice. Sambada: da poeira se faz o brilho. Revista Continente, Recife, n.156, p.62 – 65,
2013.
MELO, José Marques de. Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia da
Folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Tradição e modernidade. Disponível em:http://www.bocc.ubi.
pt/pag/rodrigues-adriano-tradicao-modernidade.pdf Acesso em: 12 abr. 2015.
ROSCHEL, Renato. Samba. Almanaque Música. UOL. Disponível em: http://almanaque.folha.
uol.com.br/samba.htm Acesso em: 26 mar. 2014.
TAUK SANTOS, Maria Salett. Receptores Imaginados: os sentidos do popular. XVII Encontro da
Compôs. UNIP, São Paulo, junho, 2008.
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ANEXOS
Anexo 1
Fig.1
Banner produzido para a 1ª Festa da Alvorada, realizada no dia 17 de janeiro de 2015,
na cidade de Nazaré da Mata, Mata Norte de Pernambuco. Abaixo o texto da divulgação do evento:
I Festa da Alvorada
Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha convidam para a I Festa da Alvorada, sábado - 17 de janeiro de 2015,
em comemoração ao fim das restrições aos ensaios e sambadas de Maracatu de Baque Solto.
Com os Maracatus Estrela Brilhante de Nazaré e Mestre Bi, Maracatu Águia Formosa de Tracunhaém
e Mestre José Mário e massiva presença de Poetas de toda Mata Norte, que cantarão juntos na hora do amanhecer.
Fonte: Facebook, 2015.
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Fig.2
O mestre de maracatu entoa os versos cercado por brincantes e pelo terno (orquestra)
Fonte: LIMA, Ivanice, 2015.
Fig.3
Brincantes fazem as manobras da dança nas sambadas de Maracatu
Fonte: LIMA, Ivanice, 2015.
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Fig.4
Tradicionalmente, as sambadas vão até as primeiras horas da manhã
Fonte: LIMA, Ivanice, 2015.
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Culturas populares
e tradicionais
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TERRITÓRIO, TRADIÇÕES E A COMUNIDADE:
um recorte das manifestações culturais em Chapada Gaúcha
Nadja Maria Mourão1
Rita de Castro Engler2
Resumo
Este artigo busca contextualizar e analisar os conceitos relacionados ao território, tradições
e comunidades e a importância das manifestações culturais de algumas comunidades de
Chapada Gaúcha e arredores, em especial, as narrativas colhidas durante o evento “Encontro
dos Povos”. Tratamos de pesquisa-ação em que foram aplicadas oficinas de design, cultura e
identidade, para estimular a inovação na produção artesanal, valorizando os atributos locais
identificados. Entre os resultados da pesquisa, gerou-se a oportunidade de conhecimento e
desenvolvimento de técnicas e novos modelos, sustentados nos recursos e cultura local.
Palavras Chave: Comunidade, Território, Tradições.
Abstract
This article seeks to contextualize and analyze concepts related to territory, traditions and
communities, and the importance of cultural manifestations of some communities of Chapada
Gaúcha area, especially conversations collected during the “Encounter of Peoples”. Active
research on culture and identity design workshops were implemented to stimulate innovation
in craft production, valuing the identified local attributes. The results of this research generated
the opportunity of learning and development of techniques, as well as new models, focused
on local resources and culture.
Keywords: Community Planning, Traditions
1 Doutoranda em Design – PPGD/UEMG (Orientadora: Rita de Castro Engler); membro e professora do CEDTec – Centro de Estudos em Design e Tecnologia da Escola de Design/Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
2 Doutorado em Engenharia de Produção e Gestão de Inovação Tecnológica – Ecole Centrale Paris/FR, Pós-doutorado em
Design Social na Ryerson University – Toronto/CA, coordenadora Mestrado e Doutorado do PPGD/UEMG e do CEDTec. E-mail:
[email protected].
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INTRODUÇÃO
Este artigo busca contextualizar e analisar os conceitos relacionados ao território, tradições
e comunidades e a importância das manifestações culturais de algumas comunidades do
município de Chapada Gaúcha e arredores, em especial durante o evento “Encontro dos
Povos”. Busca-se inclusive, verificar se as oficinas de design, cultura e identidade contribuem
para a inovação dos produtos artesanais, valorizando os atributos locais identificados.
Chapada Gaúcha localiza-se nas proximidades da divisa com Goiás e Bahia, no noroeste
de Minas Gerais, região do sertão e das veredas, divulgadas pelo poeta e escritor João
Guimarães Rosa.
O estudo analisa as narrativas do conhecimento popular de membros das comunidades na
região, durante o 10º Encontro dos Povos, em 2011. Trata-se de um recorte da pesquisa do
mestrado em Design, PPGD-UEMG: “Sustentabilidade na produção artesanal com resíduos
vegetais: uma aplicação prática de design sistêmico no Cerrado Mineiro”, premiada em
Economia Criativa - Arranjo Produtivo Local, do Ministério da Cultura, em 2012.
Como referência, utilizam-se as reflexões sobre a categoria “cultura” no contexto do território e
as formas pelas quais as pessoas da localidade se apropriam desta cultura. Cunha (2009) relata
que a temática em conhecimentos tradicionais direciona um processo de amadurecimento
teórico que avança em várias frentes, abrangendo um conjunto de questões que dialogam
com contextos políticos.
Foi utilizada metodologia de natureza qualitativa, com formato de estudo de caso. O estudo
qualitativo “se desenvolve numa situação natural, é rico em dados descritivos, tem um plano
aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada” (LÜDCKE e ANDRÉ,
2007, p.18).
As atividades foram executadas em pesquisa-ação, através das práticas do design social3.
Considera-se pesquisa-ação, conforme Thiollent (1985), quando ocorre uma ação ativa
do pesquisador ao estudo social em questão, em busca de resultados centrados no agir
participativo e coletivo.
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social que é concebida e realizada
em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema
coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da
situação da realidade a ser investigada estão envolvidos de modo cooperativo
e participativo (THIOLLENT,1985, p.14).
3 O design social pode se definido como um processo de projeto de produtos ou serviços, com aplicabilidade na sociedade
e que contribui para melhorar a qualidade de vida. Papanek (1984) defende o conceito de que os designers e profissionais
de criação podem causar mudanças positivas no mundo através de um bom design. Ou seja, o design com responsabilidade
ambiental, social e econômica. Como responsável, o profissional deve saber escolher como projetar, qual material utilizar e
como atender à demanda.
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Assim, foram analisados os conceitos, respeitando os múltiplos olhares e vozes dos membros
das comunidades, considerando-os atores e autores do processo, pensado e construído em
conjunto, buscando resgatar e valorizar os conhecimentos artesanais da região.
A pesquisa teve como pré-requisito dados do mapeamento “sócio econômico cultural
ambiental”, de projetos antecessores dos pesquisadores, e aplicação das oficinas de design,
cultura e identidade. Os participantes das oficinas foram os artesãos das comunidades de
Buraquinhos, Ribeirão do Areia e Serra das Araras no município de Chapada Gaúcha, em Minas
Gerais. As oficinas buscaram fomentar novas possibilidades de produção artesanal, visando
estimular a identificação do território nos produtos artesanais, através do conhecimento
cultural na produção artesanal.
Na sequência, apresentam-se estudos conceituais da cultura em uma comunidade e “cultura”
no sentido de metalinguagem, abordando aspectos do território e da identidade, para
confrontar a realidade com o referencial teórico. São analisados os resultados da metodologia
participativa nas comunidades selecionadas, verificando qual a importância do Encontro dos
Povos para a comunidade e qual a contribuição das oficinas de design, cultura e identidade
para a produção artesanal e valorização das comunidades.
COMUNIDADE E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Entre as comunidades que residem no Cerrado estão os povos tradicionais. Esses povos
fazem parte do patrimônio histórico e cultural brasileiro e detêm um amplo conhecimento
tradicional da biodiversidade. Na região de Chapada Gaúcha, residem os nativos e os
imigrantes que, por questões de ocupação territorial, através do Projeto de Assentamento
Dirigido a Serra das Araras - PADSA, fixaram-se e fundaram a Vila dos Gaúchos, conforme o
IBAMA/Funatura (2003).
Dentro da implementação de políticas agropecuárias para a região de
cerrados, a região do noroeste mineiro foi foco de um programa de ocupação
territorial chamado Projeto de Assentamento Dirigido a Serra das Araras PADSA, realizado pela Fundação Rural Mineira – RURALMINAS, um órgão
estadual da Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Após estudos topográficos específicos e loteamento feito pela Ruralminas.
(IBAMA/FUNATURA, 2003; IBGE, 2008, p.2).
Aproximadamente dez a doze famílias, oriundas do Rio Grande do Sul, iniciaram a ocupação
ainda no ano de 1976. Este foi o início do cenário que resultou especialmente na Vila dos
Gaúchos, atualmente, Município de Chapada Gaúcha.
Com relação aos nativos, além das comunidades indígenas, são encontrados os povos
tradicionais do Cerrado que incluem: sertanejos, ribeirinhos, chapadeiros, geraizeiros,
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vazanteiros, quilombolas, entre outros. Estes, conhecendo o território local, aprenderam a
extrair do bioma os recursos para alimentação, utensílios e artesanato. Geralmente, estas
comunidades aproveitam os recursos do bioma de forma racional, equilibrada e sem prejudicar
significativamente os ecossistemas (MMA, 2004).
Entender a diversidade e estabelecer limites da pesquisa é tarefa que merece zelo e atenção.
Para o estudo dos povos tradicionais, Cunha (2009) assinala a importância do diálogo, para
quaisquer pesquisas:
Os acessos aos conhecimentos tradicionais sobre recursos genéticos e a sua
utilização exigem negociações com consentimento formal e repartição de
eventuais benefícios com populações tradicionais, tudo isso intermediado,
ou radificado pelo Estado. Essas exigências decorrem de um construto legal e
institucional, firmado em âmbito internacional em 1992: a Convenção sobre
Diversidade Biológica, das Nações Unidas (CUNHA, 2009, p.317).
Os imigrantes da região são os gaúchos que carregaram as festas e as danças do sul para
os sertões. O tradicionalismo gaúcho é dominante e imponente, mantido pelos Centros de
Tradições Gaúchas - CTGs. A convivência entre os povos encontra-se ainda desordenada,
provocando alguns choques culturais entre os hábitos do sul com os dos sertanejos, na região.
No entanto, configura-se num jogo de disputas dos rituais que despertam a autovalorização
dos representantes. No livro Grandes Sertões: Veredas, Guimarães Rosa narra os conflitos
íntimos do personagem Riboaldo. A luta entre a tradição e o novo. Do mesmo modo, torna-se
perceptível no cotidiano deste povo a afirmação do personagem: “o sertão é dentro da gente”
(GUIMARAES ROSA, 1986).
Cunha (2009) relata que, ao lidar com conceitos e regimes de conhecimento tradicional, a
imaginação ocidental permanece ligada ao terreno conhecido. “A conceituação dominante do
conhecimento tradicional raciocina como se a negação do indivíduo fosse sempre o coletivo”
(CUNHA, 2009, p.328). Em contraste com a autoria individual, a cultura dos povos deve
ter uma autoria coletiva. O que nos remete à força que as comunidades apresentam como
representantes do território.
De acordo com Cunha (2009), a cultura (sem aspas) é considerada a partir de direitos
costumeiros, onde, por exemplo, existe a noção de direitos privados sobre conhecimentos,
havendo uma correlação paradoxal: quanto menos uma sociedade concebe direitos privados
sobre a terra, mais desenvolve os direitos sobre “bens materiais“.
Desde 2002, a Prefeitura Municipal de Chapada Gaúcha, com o apoio de instituições parceiras
do município, realizam o projeto “Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas”. O evento
idealizado pela Fundação Pró-Natura (Funatura), com o objetivo de sensibilizar os participantes
para a preservação ambiental e cultural, promove a valorização e difusão dos conhecimentos
tradicionais e as manifestações culturais das comunidades existentes nas proximidades do
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Parque Nacional Grande Sertão Veredas e outras.
O Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas reúne pessoas de outros municípios, estados
e países. Em meio aos festejos, encontram-se visitantes, pesquisadores e turistas (figura
1). Durante todos os dias do evento, o artesanato das comunidades do Vale do Urucuia
destacam-se, além das diversas atividades culturais, educacionais, ambientais e a variedade
de produtos da região. Enquanto ocorrem seminários e debates, apresentações folclóricas
e danças de varias origens acontecem no palco, no pátio e entre as barracas de artesanato
e de comidas tradicionais.
Figura 1: 10º Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas
Fonte: MOURÃO, 2011.
Desenvolvimento: a outra margem do Velho Chico
A bacia hidrográfica do rio Urucuia nasce na Serra Geral de Goiás, fronteira deste Estado com
Minas Gerais. Suas águas vão deslizando entre morros e chapadões, no sentido oeste-leste,
até chegar ao rio São Francisco (Velho Chico). Os córregos que formam suas nascentes estão
nos municípios de Formosa e Cabeceiras, em Goiás, e Buritis – MG. Geologicamente, a maioria
dos tipos de solo dessa bacia é parte da Formação Urucuia, que apresenta idade variável entre
80 e 50 milhões de anos (MENDES, 2011).
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O município de Chapada Gaúcha está situado a aproximadamente 130 km de distância do
município de São Francisco e aproximadamente a 800 km da capital mineira, com vias de acesso
pavimentadas somente até o Rio São Francisco. Assim, pelas dificuldades de deslocamento,
foram escolhidas as comunidades de Ribeirão do Areia, Buraquinhos e do distrito de Serra das
Araras, para realização das entrevistas e registros em vídeos.
O Distrito de Serra das Araras, no passado, foi passagem dos cangaceiros e desbravadores dos
sertões, histórias de mais de 100 anos das veredas e dos sertões. Na figura 2, imagens dos
buritizais, da Reserva Sustentável do Acari, no Distrito de Serra das Araras.
Figura 2: Reserva de Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari - Chapada Gaúcha /MG.
Fonte: MOURÃO, 2011.
O que se pensar desta gente, cujo tempo e espaço possuem significados diferenciados nos
moldes das cidades urbanas? A complexidade do território para a comunidade não é considerada
como empecilho para a estrutura de vida de cada um. Depende de como o pesquisador aborda
e o que pretende levar do local. Então, os direitos intelectuais oriundos de muitas sociedades
tradicionais diz respeito à cultura; os projetos políticos que consideram a possibilidade de
colocar conhecimento tradicional em domínio público dizem respeito à cultura, sendo isso
uma consequência da refletividade, conforme Cunha (2009). Desta forma, devem-se analisar
as relações da cultura, território e identidade.
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Cultura, território e identidade
“Cultura” é, no sentido de metalinguagem, falar de si mesmo, sendo difícil distinguir a cultura
com aspas e cultura sem aspas, pois há coexistência dos universos de discursos, o que pode
gerar contradições. Deve-se considerar que o discurso é inerente à linguagem completa, capaz
de falar de si mesma, conforme Cunha (2009). Assim, o uso reflexivo da noção de cultura
(cultura com aspas) e a convivência mútua da noção invisível da cultura (sem aspas) gera
efeitos dessa convivência, mas não se contradizem.
A respeito da construção do território, Teixeira (2006) diz que esta possibilidade advém
do poder que os indivíduos exercem sobre um determinado espaço, tal como Sack (1986)
define territorialidade: “A territorialidade está intimamente ligada ao modo como as
pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão
significado ao lugar” (SACK, 1986, p.31). É a significação do lugar, no conjunto de duas
especificidades, que o torna único, dotado de uma identidade. Sack (1986) completa
que, em função da memória do lugar, é o que forma e define a sua história. Trata-se
aqui, a definição de território sob uma dimensão simbólica, associado a sentimentos de
pertencimento e de enraizamento, exercido pelos próprios indivíduos que se apropriam
do espaço.
Os espaços construídos envolvem relações ambientais, sociais e políticas, sujeitos a
determinações e modificações dos homens. Certeau (2003) relata que estas relações podem
ser decorrentes tanto de fatores econômicos, políticos ou socioculturais, estabelecendo seu
domínio sobre todo e qualquer ambiente, o que pode ser também uma apropriação simbólica
de referência ou identidade.
O estudo das identidades necessita de investigação sobre o universo mental dos seres
humanos em sociedade, os seus modos de sentir. Segundo DURAND (2001, p.86), “o conceito
de identidade não é apenas uma extensão do objeto, mas uma representação que permite
compreensão”. Ou seja, é no conjunto das qualidades e atributos que o significam, que se
distingue um ambiente de outro, além dos elementos materiais.
Castells (1999) define identidade como o processo de construção de significados com base
em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, os
quais prevalecem sobre outras fontes de significado. As identidades, na maioria das vezes, são
construídas e reconstruídas no tempo e nas fronteiras com novas culturas.
Nas comunidades pesquisadas, a produção de esteiras de buriti é um ritual passado de gerações
a gerações. Ninguém sabe ao certo quem começou a fazer as esteiras de buriti, mas, como
comunidade tradicional, eles mantêm a cultura artesanal. A técnica de produção artesanal de
esteiras (figura 3) é utilizada para quase todos os produtos executados. Caminhos de mesa,
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suporte para panelas, revestimento de pisos, paredes e forro de telhados, divisórias e outros
são produzidos com a palha do buriti. Também é utilizada a técnica de corte, encaixe e pegos
com os talos (pecíolo) da folha do buriti, para confecção de bancos grandes e pequenos, camas,
prateleiras e outros objetos utilitários de residências.
Figura 3: Artesãs e produção de esteiras - comunidadede Buraquinhos.
Fonte: MOURÃO, 2011.
A comercialização do artesanato é precária, não há um local devido para estocagem dos
produtos. Assim, geralmente a produção é feita por encomenda. Os artesãos valorizam mais o
trabalho na lavoura e aproveitam os resíduos para alimentação de animais ou como adubo.
Resultados: um recorte da “cultura”
As oficinas de design, cultura e identidade conseguiram atingir ao objetivo principal, pois foram
apresentados novos modelos para produção artesanal, com aspectos mais regionalizados,
usando a matéria prima de resíduos vegetais locais. Foram atividades experimentais, mas os
produtos apresentados possuem potenciais para a expansão do artesanato na região. A melhoria
da qualidade nos métodos de produção e o aproveitamento dos resíduos, gerando produtos
diferentes, apontam que a identidade das comunidades está preservada em cada objeto.
Os produtos foram desenvolvidos integralmente pelos artesãos, sem a interferência da
pesquisadora designer. Estes apresentam vínculo ao contexto cultura, aproveitando o despertar
da comunidade quanto à utilização dos resíduos vegetais.
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O respeito à diversidade possibilita a expansão de produtos diferenciados, inovadores e
criativos. Cada comunidade não se interessa em copiar o trabalho da comunidade vizinha,
mas observa a técnica e aprimora, criando novos produtos artesanais. Recorda-se, ainda,
que “a pluralidade de etnias, em processo harmonioso na formação da sociedade brasileira,
favoreceu a maturação da sua própria multiculturalidade” (MORAES, 2008). O caminho do
design brasileiro desponta na diversidade e não na unidade.
A força e a riqueza da constante renovação e criatividade podem contribuir para a
estruturação da economia local. Assim, nascem outras formas de identificar o design,
público, associado aos valores culturais, de identidade e de domínio popular. Incidem
sobre a expansão do design para outros aspectos, buscando qualificá-lo como processo
criativo, inovador e provedor de soluções. Desta forma, comprova-se acréscimo do design
na produção artesanal.
A atividade artesanal é tão antiga quanto o homem que fabricava suas próprias ferramentas
nas cavernas, afirmam Maynart e Trufem (2009). Para as autoras, em relação a atividades
artesanais que se desenvolvem em locais distantes dos centros comerciais, ou pouco
explorados por turistas, o que se percebe é que os produtos e a dinâmica da produção
ainda possuem muito das características tradicionalmente mantidas através dos tempos.
Nestas localidades pode-se observar a técnica ser transmitida de geração a geração através
do aprender fazendo, próprio deste tipo de atividade, e grande parte da produção artesanal
ainda é utilizada para suprir a comunidade das suas necessidades básicas de utensílios e
outros artigos ali desenvolvidos.
Segundo Araújo (2013), conhecer a cultura da região onde se vive, além de ajudá-la a
se manter, reforça a própria identidade e protagonismo, bem como o pertencimento,
valores de solidariedade, alteridade, bem como o interesse pela arte e cultura popular e o
desenvolvimento de uma consciência multicultural. O projeto “Mestres do Sertão: Griôs da
Folia” estimula a aprendizagem através das manifestações culturais. “Seu” Jonas ensina os
jovens a tocarem rabeca utilizando as cantigas da festa do Divino (figura 4). Nesse sentido,
destaca-se a importância da cultura enquanto recurso educacional.
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Figura 4: “Seu” Jonas ensina jovens a tocarem rabeca e canticas da Festa do Divino Projeto Mestres do Sertão: Griôs da Folia”. CG – MG.
Fonte: Instituto Rosa Sertão, 2011.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreende-se que a iniciativa de fazer um encontro dos povos residentes em Chapada
Gaúcha, arredores e noroeste de Minas, região de sertão e veredas, possibilitou o diálogo
e divulgação das tradições e das manifestações culturais entre todos envolvidos. Tornou-se
uma ferramenta de convívio social, importante para a vida dos povos e comunidades que se
reúnem no evento, sejam ribeirinhos, sertanejos, chapadeiros, gaúchos, entre outros.
Para os artesãos, participantes das oficinas de design, território e identidade, foi gerada
oportunidade de conhecimento e desenvolvimento de técnicas e novos modelos, sustentados
nos recursos e cultura local. Na união dos saberes e das diversas habilidades de cada artesão,
incentiva-se a geração de inovações na produção artesanal. O artesanato é uma atividade
que estimula o espírito de cidadania, organização social, autoestima, desenvolvimento local
e preservação das tradições. Enfim, na convivência com a sabedoria popular, apropria-se
poeticamente das palavras de Guimarães Rosa (1986, p. 271): “Mestre não é aquele que
ensina, mas quem, de repente, aprende”.
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Culturas populares
e tradicionais
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A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
DOS POVOS INDÍGENAS:
Os direitos culturais e a indústria do petróleo na Colômbia
Mônica Moreno-Cubillos1
Resumo
As expressões culturais estabelecem a identidade dos povos. Linguagem, conhecimento,
criações artísticas, organização política, crenças e outros aspectos sociais representam
elementos intangíveis que moldam a diversidade cultural, originada na relação com o território.
No entanto, as principais atividades econômicas (como a indústria do petróleo) colocam em
risco o meio ambiente e afetam práticas sociais, expondo os grupos ao extermínio físico e
cultural. Nesse sentido, as políticas públicas de patrimônio cultural imaterial deveriam proteger
os costumes e as circunstâncias que lhes dão origem.
Palavras-Chave: Políticas públicas de patrimônio cultural imaterial, indústria petrolífera,
comunidade indígena U’wa.
Abstract
Cultural expressions establish people’s identity. Language, knowledge, artistic creations, political
organization, beliefs and other social aspects represent intangible elements that shape cultural
diversity originated in connection with the territory. However; the main economic activities
(such as the oil industry) endanger the environment and affect social practices, exposing
groups to physical and cultural extermination. In this sense, intangible cultural heritage public
policies should protect customs and circumstances that give rise to them.
Keywords: Intangible cultural heritage public policies, oil industry, U’wa indigenous
community.
1 Administradora de empresas - Universidade Nacional da Colômbia. Mestranda em Políticas Públicas - Universidade Federal
do Maranhão. E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Para os grupos étnicos, em particular para as comunidades indígenas, a terra é parte de sua
construção cultural. Para Bello Maldonado (2004, p.98), “os sujeitos veem no território um
diacrítico da sua identidade e da sua cultura porque tem significados diferentes que combinam
o material e o simbólico a partir de um conjunto de unidades de significação inscritas no espaço”2
(tradução nossa). É por esta razão que a defesa dos territórios que habitam é um elemento de
proteção primária da sua cultura, linguagem e conhecimento, manifesta em torno da relação
que se tem com a natureza. Estes elementos representam a sua identidade como um grupo, o
que os diferencia de outras tribos. Em outras palavras, a geração de diversidade cultural.
Por outra parte, nas últimas duas décadas, na Colômbia, nota-se que megaprojetos no setor
de mineração e energia, principalmente no campo dos hidrocarbonetos, intensificaram-se.
No entanto, este modelo de desenvolvimento baseado na exploração dos recursos naturais
envolve drasticamente a transformação de territórios. Portanto, este trabalho tem como
objetivo analisar o problema das comunidades indígenas em áreas de produção de petróleo e
a aplicação da legislação para protegê-las.
Dessa forma, este problema será abordado em quatro segmentos. O primeiro incide sobre a
definição de patrimônio cultural imaterial e sua relação com o território. No segundo, políticas
públicas internacionais e também colombianas para a proteção e salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial são analisadas. Já no terceiro, é levado em consideração o caso da comunidade
U’wa e a defesa de seu território e de sua cultura. Finalmente, concluiu-se através de um
abalançamento do alcance das políticas de patrimônio cultural imaterial e seu impacto como
um mediador dos contratempos que ocorrem nos territórios da atividade petrolífera.
Para isso, revisaram-se os seguintes documentos: as políticas públicas de patrimônio cultural
imaterial nos níveis internacional e nacional, a cultura e território em comunidades indígenas,
o Plano Nacional de Desenvolvimento 2010-2014 da Colômbia e relatórios de entidades
de controle colombianas sobre a situação dos grupos étnicos em áreas de exploração de
hidrocarbonetos.
ALGUNS REFERENTES TEÓRICOS PARA O ESTUDO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
IMATERIAL
Ao longo do tempo, os seres humanos desenvolveram uma série de características e expressões
que são apropriadas para certos grupos sociais. A linguagem, os conhecimentos, as crenças, a
forma como os indivíduos se relacionam com o meio ambiente, sua comida, suas expressões
2 Los sujetos ven en el territorio un diacrítico de su identidad y su cultura porque posee diversos significados que conjugan lo
material y lo simbólico a partir de un conjunto de unidades de significación inscritas en el espacio.
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artísticas, entre outros, fazem parte deste conjunto de itens que passam a definir e diferenciar
as comunidades. Todos estes aspectos são chamados cultura da sociedade. De acordo com a
UNESCO (2002a), a cultura é entendida como “o conjunto dos traços distintivos espirituais e
materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que
abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas
de valores, as tradições e as crenças”.
Assim, segundo Botelho (2001) o conceito de cultura compreende duas dimensões. De acordo
com a antropologia, a cultura é o resultado da interação social dos indivíduos que fazem as suas
formas de pensar e de sentir, constroem seus valores e identidades dadas as suas diferenças e
estabelecem suas rotinas. A cultura é dinâmica por natureza. Esta varia no tempo e no espaço. Há
mudanças que ocorrem de geração em geração, fazendo com que traços específicos desapareçam
e novos surjam de acordo com situações específicas nas quais as pessoas vivem.
Como a cultura é uma forma de responder a determinadas condições ambientais, ela também
varia de acordo com as características naturais semelhantes ou diferentes de cada lugar. Ou
seja, não se tem a mesma cultura em áreas rurais e urbanas ou nos trópicos e nos polos. E
mesmo que os grupos compartilhem o mesmo espaço geográfico, haverá diferenças culturais
marcantes na língua, crenças, organização social, entre outros aspectos. Eis um ponto crucial,
porque todas essas diferenças afetam o conceito de diversidade cultural.
Voltando à UNESCO (2002a), fica claro que todas estas diferenças são fonte de inovação e
criatividade, sendo patrimônio comum da humanidade, o qual deve ser reconhecido e
consolidado em benefício de gerações presentes e futuras. Considera-se patrimônio cultural
aquelas manifestações ou propriedades que têm um valor especial e constituem elementos
de referência simbólica a uma cultura (GUERRERO VALDEBENITO, 2005). Essa herança é
basicamente uma construção histórica e social que mobiliza vários atores que atribuem a
esses símbolos fins sobre a identidade e de pertencimento presentes na memória de todos os
membros do grupo social.
O patrimônio cultural pode ser pensado como uma divisão em dois componentes: a parte
material, incluindo os bens móveis, imóveis e elementos arqueológicos; e a parte imaterial
que envolve a linguagem oral tradicional, o conhecimento e as artes que se manifestam em
festivais e rituais desenvolvidos em espaços culturais e / ou locais sagrados.
Assim sendo, o patrimônio cultural imaterial é ao mesmo tempo caracterizado por ser coletivo,
tradicional e contemporâneo, e ainda integrador e representante da comunidade, exigindo o
reconhecimento do grupo que transmite e recebe.
No entanto, em muitas ocasiões,
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a produção do valor e apropriação do patrimônio cultural como manifestações
compartilhadas e vividas de uma cultura, estão diretamente ligadas às especificidades
do contexto sócio-territorial a partir do qual estas são símbolos característicos.
Territorializar o patrimônio, então, significa enfatizar que este é uma expressão de
uma comunidade específica, visto que este está sempre baseado em seu próprio
espaço, ou “terra natal ou pátria”, na qual constitui-se uma herança fortemente
regionalizada. Isso envolve a compreensão do território, não só como um espaço em
que a vida social transcorre, mas também um artífice dessa realidade, um território
historicamente construído em que ocorrem e se desenvolvem processos sociais
e culturais que intervêm na experiência vivida por seus habitantes3 (GUERRERO
VALDEBENITO, 2005, tradução nossa).
Assim, o território tem uma relação direta não só com a riqueza material, mas também com
a intangível, visto que a partir dessa as comunidades constroem suas cosmogonias, tradições,
costumes, crenças e estilos de vida próprios. Em última instância, isto produz diversidade
cultural.
Esta relação território-patrimônio cultural deu origem ao conceito “paisagem cultural” que liga
as manifestações do homem ao seu ambiente natural. Tal termo busca associar as expressões
religiosas, artísticas e culturais do grupo com o seu ambiente, ou seja, estas são resultantes da
interação das comunidades com o território que habitam. Assim, “a paisagem cultural é uma
realidade complexa, composta por elementos naturais e culturais, materiais e imateriais, cuja
combinação define o caráter que a identifica como tal, por isso deve ser abordada a partir de
múltiplos ‘olhares’”4 (CORREA & HAYAKAWA, 2010, tradução nossa).
Levando em consideração a definição de políticas públicas dada por Alejo Vargas Velásquez
(1999), como “o conjunto de iniciativas sucessivas, decisões e ações do regime político diante
de situações socialmente problemáticas e que procuram a resolução das mesmas ou levá-las a
níveis administráveis”5 (tradução nossa) poder-se-ia determinar como situação problemática,
no domínio do patrimônio cultural intangível, a perda constante e permanente desaparecimento
das manifestações culturais que, eventualmente, diminui a diversidade cultural e que, por
vezes, força ao extermínio de comunidades.
Por conseguinte, uma política pública nesta área deve se orientar a partir dos seguintes
3 La producción del valor y apropiación del patrimonio cultural como manifestaciones compartidas y vividas de una cultura, se vinculan directamente a las especificidades del contexto socio-territorial del cual estos son símbolos característicos.
Territorializar el patrimonio, entonces, significa destacar que este es expresión de una comunidad particular, en el sentido
que se encuentra siempre arraigado a un espacio propio, al “suelo natal o patrio”, por lo cual se constituye en un patrimonio
fuertemente territorializado. Ello implica entender el territorio no sólo como un espacio sobre el cual transcurre la vida social,
sino un artífice de esa realidad, un territorio históricamente construido en el cual ocurren y se han desarrollado determinados
procesos sociales y culturales que intervienen en la experiencia de vida de sus habitantes.
4 El paisaje cultural resulta una realidad muy compleja, integrada por componentes naturales y culturales, materiales e inmateriales, cuya combinación configura el carácter que lo identifica como tal, por ello debe abordarse desde múltiples “miradas”.
5 El conjunto de sucesivas iniciativas, decisiones y acciones del régimen político frente a situaciones socialmente problemáticas y que buscan la resolución de las mismas o llevarlas a niveles manejables.
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pontos: identificar as manifestações culturais intangíveis nas comunidades presentes no
território de um país; preservar através da formalização por meio de documentos, a fim de
dispor dados e expor rastreabilidade em sua evolução; a salvaguarda relativa à defesa e à
proteção dos indivíduos, das manifestações e elementos que dão origem a eles: natureza,
meios de comunicação, espaços, etc.; a difusão através da conscientização da importância
como elemento de identidade cultural; e a proteção de produções intelectuais e expressões
do folclore6.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS INTERNACIONAIS E DA COLÔMBIA DE PROTEÇÃO E
SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
Em um primeiro momento, a proteção do patrimônio cultural se concentrou em sua parte
material. Em 1972, na Conferência Geral da Convenção da UNESCO se produziu a Convenção
sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que objetivava a salvaguarda
nacional e internacional do patrimônio cultural e natural focado nos monumentos, conjuntos
e locais históricos.
No entanto, recentemente, o foco concentra-se na sua parte imaterial. Essa preocupação
“(...) surge a partir da conscientização da importância de salvaguardar e garantir a criatividade
contínua da sociedade, a sua valorização como parte integrante da identidade nacional e
da percepção social da sua fragilidade e perda”7 (MINISTÉRIO DE CULTURA DA COLÔMBIA,
2010, p.250, tradução nossa). Assim, em 1989, a UNESCO publicou a Recomendação sobre a
Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, com o reconhecimento de que as expressões e
eventos particulares que passam de geração em geração e que são identificadores de grupos
específicos devem ser protegidos.
A partir do século XXI, a UNESCO introduziu termos como diversidade cultural e patrimônio
comum da humanidade, aos quais são atribuídos uma importância semelhante ao da
biodiversidade biológica, pois esses são objetos de proteção para o benefício das gerações
presentes e futuras. Esses conceitos foram articulados a outros como o pluralismo cultural,
os direitos humanos, a criatividade e a solidariedade internacional, visto de uma perspectiva
de desenvolvimento “entendido não somente em termos de crescimento econômico,
mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual
satisfatória” (UNESCO, 2002a).
Então, com a Declaração de Istambul, o termo patrimônio cultural imaterial define-se como
6 Os elementos acima referidos são o mínimo destacado pela UNESCO nas Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura
Tradicional e Popular emitido em 1989 na sessão XXV da Conferência Geral.
7 Surge a partir de la toma de conciencia sobre la importancia de su salvaguardia como garantía de la creatividad permanente de la sociedad, de su valoración como parte constitutiva de la identidad nacional y de la percepción social de su
fragilidad y pérdida.
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a fundação da identidade cultural dos povos e comunidades, pois constitui uma
riqueza comum para toda a humanidade (...) um conjunto vivo e em constantemente
renovação de práticas, conhecimentos e representações que permitem aos indivíduos
e às comunidades, em todos os níveis da sociedade, expressarem as formas de
conceber o mundo através de sistemas de valores e referências éticas. O patrimônio
cultural imaterial cria entre as comunidades um sentimento de pertencimento e
de continuidade, o que o torna uma das principais fontes de criatividade e criação
cultural (UNESCO, 2002b, tradução nossa)8.
Finalmente, na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (dado na sessão
XXXII da Conferência Geral da UNESCO) estabelecem-se órgãos, funções e métodos de trabalho
a nível nacional e internacional, para orientar os esforços de países membros em quatro áreas
de ação (UNESCO, 2003). Elas são: a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial; o respeito
do patrimônio cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos; a sensibilização a nível
local, nacional e internacional sobre a importância do patrimônio cultural intangível e seu
reconhecimento mútuo; a cooperação e assistência internacional.
No entanto, inicialmente, o governo colombiano adere à Convenção para a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, pela Lei 45 de 1983, quando retomou as
definições de patrimônio cultural e natural e as recomendações para a sua proteção.
Depois, com a Constituição de 1991, o Estado colombiano reconheceu a cultura em suas
diversas manifestações como a base da nacionalidade e estabeleceu que o patrimônio
cultural da nação fosse protegido por ele. Já com a Lei 397 de 1997 foram regulados os
artigos da Constituição9, ditaram-se regras sobre o patrimônio cultural, fomentos e incentivo
à cultura, e o Ministério da Cultura foi criado como a entidade que coordena a ação do
governo nessa área.
Logo, por ocasião da comemoração do bicentenário da independência da Colômbia, o
Governo, através de um exercício de planejamento estratégico e prospectivo, conhecido como
Visão Colômbia Segundo Centenário ou Visão Colômbia 2019, construiu um modelo políticodemocrático para o fortalecimento de um outro socioeconômico sem exclusões, levando em
conta um mundo em mudança, um território privilegiado e uma população em transição.
Dentro deste quadro, propôs-se a seguinte visão em termos de cultura:
Em 2019, a Colômbia será uma nação criativa e responsável por sua memória, onde
todos os cidadãos, sem distinção de qualquer espécie, serão capazes de interagir
e cooperar entre si, com oportunidades de criação e de usufruto das expressões
8 El fundamento de la identidad cultural de los pueblos y las comunidades, al tiempo que constituye una riqueza común para
el conjunto de la humanidad (...) un conjunto vivo y en perpetua recreación de prácticas, saberes y representaciones, que
permite a los individuos y a las comunidades, en todos los niveles de la sociedad, expresar las maneras de concebir el mundo a
través de sistemas de valores y referencias éticas. El patrimonio cultural inmaterial crea en las comunidades un sentido de pertenencia y de continuidad y es considerado como una de las fuentes principales de la creatividad y de la creación cultural.
9 Artigos 70, 71 e 72.
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culturais, em condições de igualdade e respeito à diversidade10 (DEPARTAMENTO
NACIONAL DE PLANEACIÓN, 2005, p.266, tradução nossa).
Os princípios sustentados são: o reconhecimento da diversidade cultural como uma contribuição
para a convivência e construção da cidadania; a apropriação social do patrimônio cultural
como fonte de memória individual e coletiva; liberdade, dignidade e igualdade para a criação,
produção cultural e acesso a atividades, bens e serviços culturais.
Como pode se observar, essa visão inclui elementos ressaltados pela UNESCO em suas
declarações de 1989, 2001, 2002 e 2003. Assim, com o objetivo de adotar a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, a Lei 1037 de 2006 é sentenciada e a Lei 397 de
1997 é alterada pela Lei 1185 de 2008, estabelecida como a Lei Geral da Cultura. Finalmente,
para campo do patrimônio cultural imaterial, o Decreto 2941 de 2009 e a Resolução 0330
de 2010 são publicados, regulando os mecanismos de gestão da Lista Representativa do
Patrimônio Cultural Imaterial e do Plano de Salvaguarda Especial.
Tudo isso deu origem à Política de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial contida dentro
do Compêndio de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, no qual se afirma que essa
reflete a necessidade de salvaguardar a vasta riqueza contida no patrimônio cultural
imaterial da nação (...) e que parte de um conjunto de princípios derivados da ordem
constitucional e da Lei Geral da Cultura, onde se afirma que é uma obrigação do
Estado e das pessoas valorizar, proteger e difundir o patrimônio cultural da nação, e
reconhecer, valorizar e respeitar a diversidade cultural como fundamento da nação11
(MINISTERIO DE CULTURA, 2010, p.267, tradução nossa).
Como tal, o objetivo geral da política é fortalecer a capacidade de gestão social do patrimônio
cultural imaterial para sua salvaguarda e promoção, como condição de desenvolvimento e
bem-estar coletivo. Para o cumprimento, são propostas seis estratégias: o fornecimento da
gestão social do patrimônio cultural imaterial; o incentivo e a promoção do conhecimento
sobre o patrimônio cultural intangível; a salvaguarda efetiva do Patrimônio Cultural Imaterial;
o reconhecimento da diversidade cultural; o Patrimônio Imaterial Cultural como um fator
estratégico de desenvolvimento sustentável; a comunicação e divulgação do patrimônio
cultural intangível.
10 En el 2019, Colombia será una Nación creativa y responsable de su memoria, donde todos los ciudadanos, sin distingo de
ninguna índole, sean capaces de interactuar y cooperar entre sí, con oportunidad de creación y disfrute de las expresiones
culturales, en condiciones de equidad y respeto por la diversidad.
11 Obedece a la necesidad de salvaguardar la inmensa riqueza contenida en el patrimonio cultural inmaterial de la nación (…) y
que parte de un conjunto de principios derivados del orden constitucional y la Ley General de Cultura, en donde se establece
que es una obligación del Estado y de las personas valorar, proteger y difundir el patrimonio cultural de la nación, y en donde
se reconoce, valora y respeta la diversidad cultural como fundamento de la nación.
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A PROTEÇÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL EM TERRITÓRIOS DA ATIVIDADE PETROLÍFERA: O CASO DA COMUNIDADE U’WA
O Plano Nacional de Desenvolvimento “Prosperidade para Todos” (DEPARTAMENTO NACIONAL
DE PLANEACIÓN, 2011), proposto pelo atual presidente, Juan Manuel Santos, em seu governo
2010-2014, teve três pilares para alcançar os objetivos do Estado, voltados para o crescimento
sustentável baseado em uma economia mais competitiva, produtiva e inovadora; igualdade
de oportunidades para garantir que todos os colombianos tenham acesso às ferramentas
básicas que permitam moldar seu próprio destino; a consolidação da paz em todo o território
nacional, o reforço da segurança, o pleno respeito pelos direitos humanos e funcionamento
eficaz da justiça.
Para desenvolver a primeira estratégia, propõe-se avançar em três áreas fundamentais: a
inovação; a política de concorrência e melhoria da produtividade; e a revitalização dos setores
“locomotores” que, através de seu impacto direto e indireto, lideram o crescimento e geração
de emprego. Tais setores possuem um elevado potencial de crescimento econômico nos
próximos anos: nove baseados na inovação, agricultura, habitação, infraestrutura e mineração
energética. Portanto, a indústria do petróleo teve primazia sobre outros setores e, assim, seu
desenvolvimento e expansão foram abertamente apoiados pelo governo.
As áreas para atividades de petróleo cobrem cerca de 13% do país, uma das mais importantes
nas atividades de uso da terra. Em 2001, 9.7 milhões de hectares foram destinados às
atividades de exploração, enquanto que 1.7 milhões foram destinados à produção. Estas foram
localizadas em quase todo o país, que se estende ao longo das três cadeias de montanhas,
leste da Colômbia e a plataforma offshore na região costeira de La Guajira (SÁNCHEZ et al.,
2001). Além disso, a infraestrutura para o transporte de hidrocarbonetos conecta 50% do país
e até consegue ter ligações com redes equatorianas.
Coincidentemente, em grande parte dos territórios onde se realizam todas essas atividades
convergem outras dinâmicas das populações indígenas que, historicamente, têm violados os
seus direitos sem receber proteção adequada do Estado colombiano. Se os mapas de produção
e exploração de petróleo sobrepõem-se com a localização das populações indígenas, é notável
a proximidade das atividades deste setor com os assentamentos em áreas específicas, como
em La Guajira, a Serra Nevada de Santa Marta, o norte do Norte Santander, os departamentos
de La Orinoquía, o ocidente de El Valle e Putumayo.
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Figura 1: Localização dos povos indígenas e atividades de produção de petróleo
Territórios indígenas e campos de petróleo
ativos - 2014
Territórios indígenas e extração de
hidrocarbonetos - 2014
Fonte: Geoactivismo.org.
É precisamente em Norte de Santander onde a comunidade U’wa é localizada. Segundo
Restrepo (2007) esta comunidade é
uma expressão dessa maravilhosa diversidade étnica que a Colômbia ainda tem
para contribuir ao mundo, e que é expressa em 87 etnias indígenas diferentes. São
compostas por cerca de 6.000 pessoas, distribuídas em 22 comunidades, que ainda
zelosamente conservam a essência da espiritualidade, da linguagem e algumas
práticas culturais e religiosas próprias que as ligam a uma visão abrangente e única
de seu território ou “madreterra”12 (RESTREPO, 2007, tradução nossa).
Este grupo tem desenvolvido formas de organização social e política nas quais a construção de
espaços é fundamental para reuniões, rituais sociais e tomada de decisões coletivas (RODRÍGUEZ,
2001). O encontro de atividades petrolíferas em territórios indígenas (especificamente no
território U’wa) apresenta uma problemática sobre as prioridades do Estado, em matéria
de exploração dos recursos do subsolo, contra a sobrevivência da cultura e território como
universo concreto de relacionamento.
Então, o que para o Estado é um problema de oportunidade econômica, para os U’wa é de
12 Una expresión de esa maravillosa diversidad étnica que todavía tiene Colombia para aportar al mundo, y que se expresa en
87 grupos étnicos indígenas diferentes. Son un pueblo conformado por unas 6.000 personas, distribuidas en 22 comunidades,
que todavía conserva con celo la esencia de su espiritualidad, su lengua, y algunas prácticas culturales y religiosas propias que
los ligan a una visión integral y particular de su territorio o “madretierra”.
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subsistência, uma vez que, como entidade étnica e cultural, moldou seu ciclo de vida com
o uso das condições climáticas do seu território no desenvolvimento das suas atividades
socioeconômicas (RODRÍGUEZ, 2001). A ação petrolífera no território U’wa não só provoca
conflito ambiental, mas a intervenção viola os seus direitos, pois atinge os locais sagrados.
Figura 2: Mapa do território U’wa, campos de petróleo ativos e produção
Fonte: Geoactivismo.org.
Como tal, as questões estão relacionadas com a preservação da diversidade e se a proteção
da cultura (a partir de políticas) pode contribuir para a sobrevivência física das comunidades,
defesa de suas manifestações e o território que as origina. Portanto, é concebível que, com
regulamentos adequados para a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial das
comunidades indígenas, possa evitar-se ou, pelo menos, mitigar alguns dos impactos negativos
da produção de petróleo.
Em diferentes regulamentações para a proteção do patrimônio cultural imaterial e o respeito
dos direitos das comunidades indígenas na Colômbia, reconhece-se a sua participação nas
decisões sobre seus territórios e salvaguarda dos eventos culturais, a fim de proteger a sua
integridade e diversidade cultural em geral. Além disso, a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho prevê a utilização de mecanismos de consulta como ferramenta
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necessária para as decisões que afetam o habitat cultural dos povos tribais e demanda que os
governos respeitem a importância dos povos em relação à terra e / ou territórios.
Em outras palavras,
o reconhecimento da posse ancestral obriga os Estados a transcender e superar a
visão relativista e limitada de direitos à terra equivalente a propriedade superficial.
O território ou habitat não pode se limitar ao chão, meramente, mas envolve outros
elementos do território como o subsolo e os recursos naturais e intangíveis que fazem
parte da vida cotidiana das pessoas e têm um significado espiritual fundamental
para a coesão social e de reprodução da cultura13 (VARGAS VALENCIA, 2013, p.260,
tradução nossa).
Por outro lado, não há dúvida de que os interesses das empresas de petróleo estão focados em
questões econômicas. Infelizmente, estes definem e conduzem os resultados das negociações
com os povos indígenas, observando que nos casos em que existam grandes quantidades de
recursos para a extração em seus territórios, as empresas do setor oferecem a garantia na
compensação de impactos ambientais (INTURIAS CANEDO, 2004).
Isso revela as tensões de poder que existem em torno deste assunto, estando em jogo, por um
lado, interesses socioculturais e de sobrevivência dos povos indígenas cobertos por diferentes
normas internacionais ratificadas pelo país, por outro lado, os interesses econômicos do
petróleo promovidos pelo modelo de desenvolvimento imposto pelo Estado colombiano.
BALANÇO GERAL
Como pode ser notado, a importância e a urgência de proteger a propriedade cultural indígena
estão sendo cada vez mais reconhecidas pela sociedade, a nível nacional e internacional. Isto
não só por causa da riqueza da diversidade cultural que os povos indígenas proporcionam à
humanidade, mas porque, para alguns, é um fator importante para o desenvolvimento, no
sentido de acumular as práticas de gestão do conhecimento em ambiente sustentável, uso e
conservação dos recursos naturais, diferentes estilos de vida e abordagens alternativas para
a espiritualidade e expressão cultural. Consequentemente, a fim de manter as expressões
culturais e intelectuais indígenas, é preciso o compromisso dos povos não indígenas de
respeitar em propriedade, o território e o patrimônio cultural (SIMPSON, 1997).
Embora existam diferentes regulamentos para a salvaguarda do patrimônio cultural,
especialmente relacionados com os povos indígenas, as comunidades na Colômbia não estão
realmente protegidas. A ONU destaca, dentro dos principais efeitos de projetos de grande
13 El reconocimiento de la posesión ancestral obliga a los Estados a trascender y superar la visión relativista y limitada de los
derechos territoriales asimilables a la propiedad superficiaria. El territorio o hábitat no puede circunscribirse al suelo sino que involucra otros elementos del territorio como el subsuelo y los recursos naturales e intangibles que hacen parte de la vida cotidiana
de los pueblos y que tienen un significado espiritual clave para la cohesión social y la reproducción de la cultura propia.
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escala em território indígenas,
a perda de territórios e terras tradicionais, despejo, migração e eventual
reassentamento, esgotamento dos recursos necessários para a sobrevivência física
e cultural, destruição e poluição do ambiente tradicional, desorganização social e
comunitária, impactos negativos na saúde e nutricionais a longo prazo e “em alguns
casos, o abuso e violência”14 (VARGAS VALENCIA, 2013, p.274, tradução nossa).
A declaração de patrimônio cultural afirma que o bem a ser protegido deve estar fora da
exploração comercial e industrial que o transforma diretamente ou indiretamente. Assim, o
Estado deve procurar limitar o benefício econômico de alta rentabilidade que pode produzir
para os indivíduos, ou mesmo para o Estado, o seu uso digno e o registro na lista de Patrimônio
Mundial da UNESCO (ORTIZ SOBALVARRO, 1993).
Alguns povos indígenas têm utilizado o mecanismo de consulta para expressar seu desacordo
com as atividades de mineração em seus territórios. Segundo registros a partir de 2009 do
Observatório de Conflitos de Mineração na América Latina (OCMAL), esta foi uma iniciativa das
pessoas afetadas, a maioria deles antigos habitantes de Murindó e Jiguamiandó em Chocó Colômbia, a qual foi concebida para combater o abuso de poder e danos sociais e ambientais já
causados pela ​​mineração no Atrato, por meio do projeto Mandé Norte15. No entanto, os resultados
não são reconhecidos, nem pelo governo, nem pela empresa que continua suas atividades.
Assim, a falta de uma verdadeira implementação das convenções que protegem o patrimônio
cultural imaterial e os povos indígenas continua a gerar tensões no território, que se traduzem
em fortes disputas entre pessoas, empresas, governos e grupos armados, como jornais
colombianos registraram em 2014, por causa da resistência da comunidade U’wa ao reparo do
oleoduto Caño Limón - Coveñas que guerrilheiros dinamitaram em março desse ano.
Neste sentido, a tribo pede ao governo que tome medidas urgentes para garantir a preservação
de sua cultura, da água e dos ecossistemas afetados pela indústria do petróleo, além da entrega
de suas terras ancestrais, quando se tornou evidente a falta de compromisso e seriedade do
Executivo para resolver os problemas da sua população. A resposta do governo através do
Diretor de Hidrocarbonetos do Ministério de Minas e Energia é contundente:
A Colômbia respeita os direitos das minorias, mas isso tem um limite. Não se pode
ir contra todo o país. O Estado é limitado em sua capacidade de agir e isso se tornou
quase uma questão de chantagem para a indústria do petróleo16 (SANDOVAL DUARTE,
2014, tradução nossa).
14 La pérdida de territorios y tierra tradicional, el desalojo, la migración y el posible reasentamiento, agotamiento de recursos
necesarios para la subsistencia física y cultural, la destrucción y contaminación del ambiente tradicional, la desorganización social
y comunitaria, los negativos impactos sanitarios y nutricionales de larga duración y “en algunos casos, abuso y violencia”.
15 Desenvolvido pela empresa Muriel Mining Co, concedido pelo governo de Álvaro Uribe Vélez, para explorar uma área de
aproximadamente 16.000 hectares. Neste projeto extractivista se procuram minerais como ouro, cobre e o pouco nomeado
molibdênio, como explicou Alfredo Molano Bravo em seu artigo “La socia Mandé Norte” em El Espectador, 2009.
16 Colombia es respetuosa de los derechos de las minorías, pero esto tiene un límite. No se puede ir en contra de todo el país. El
Estado está limitado en sus posibilidades de actuar y esto se ha vuelto casi un tema de chantajes a la industria del petróleo.
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Embora a Colômbia formulasse documentos no sentido de defender os grupos étnicos, a
autonomia, o território e a cultura, estes foram desenvolvidos fragmentariamente, o que minimiza
seu impacto nas comunidades e não permite que os objetivos sejam efetivamente atingidos.
Para os povos indígenas, tanto os seus conhecimentos quanto a integridade de sua cultura são
a fonte de sua identidade própria. Pensar em suas criações culturais separadas do território, ou
sua independência e organização política, econômica e social é inadequado, porque
tentar subdividir a herança dos povos indígenas nas categorias jurídicas separadas
como “cultural”, “artístico” ou “intelectual”, ou em elementos separados, como
músicas, história, ciência ou locais sagrados (...) implicaria em oferecer diferentes
níveis de proteção a diferentes elementos do patrimônio17 (SIMPSON, 1997, p.58,
tradução nossa).
Portanto, as políticas públicas para a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural intangível
devem propor mecanismos para lidar com todos os elementos que o constituem como um
todo único, integrado e inter-relacionado.
O Ministério da Cultura reconheceu quatorze locais e manifestações culturais da Colômbia como
patrimônio. Sete deles, na sua qualidade de bens materiais, foram listados como Patrimônio
da Humanidade. Os outros sete estão incluídos na Lista Representativa do Patrimônio Cultural
Imaterial da Humanidade. A partir desta lista, pode se concluir que o nível de segmentação
dos conceitos que compõem o patrimônio é evidente. Por exemplo, conceitos como o sistema
Wayúu normativo, os conhecimentos tradicionais dos xamãs jaguares de Yurupari e as músicas
de marimba e canções tradicionais do Pacífico Sul são resgatados, mas o ambiente que
lhes deram origem não é reconhecido; ou seja, as manifestações estão protegidas, mas as
comunidades dentro dos territórios e essa relação não.
Além disso, o mecanismo de consulta não foi aplicado de acordo com o estipulado na
legislação internacional que o rege. A Controladoria-Geral da República, depois de fazer um
estudo exaustivo sobre as regulamentações que existem neste domínio a nível nacional e
internacional e mostrar a forma como foram licenciados e desenvolvidos projetos de mineração
em territórios indígenas, conclui que
apesar das disposições da Constituição e do Convênio 169 da OIT - aprovado pela Lei
21 de 1991 - que é parte do bloco constitucional, é recorrente a violação do direito
fundamental à consulta prévia das comunidades étnicas para a adoção de medidas
legislativas, administrativas, projetos, obras ou atividades que possam afetá-los18
(NEGRETE MONTES, 2013, p. 335, tradução nossa).
17 Tratar de subdividir el patrimonio de los pueblos indígenas en categorías legales separadas como “cultural”, “artístico”, o
“intelectual”, o en elementos separados como canciones, historias, ciencia o sitios sagrados (…) implicaría dar diferentes niveles de protección a diferentes elementos del patrimonio.
18 A pesar de lo dispuesto en la Constitución Política y del Convenio 169 de la OIT - aprobado mediante la Ley 21 de 1991que hace parte del bloque de constitucionalidad, es recurrente la violación del derecho fundamental a la consulta previa de
las comunidades étnicas ante la adopción de medidas legislativas, administrativas, proyectos, obras o actividades que puedan
afectarlos.
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Em conclusão, tanto as regras para a proteção do patrimônio cultural, como os mecanismos
para influenciar as decisões sobre a exploração de recursos são tão fracos que populações
indígenas continuam em um “limbo” para o Estado garantir a sua sobrevivência.
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ARTES
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AUTOBIOGRAFIA PROCESSUAL:
violências
Gilmara Oliveira1
Resumo
Provocando uma reflexão acerca dos padrões sociais, da diversidade e do desrespeito por detrás,
o texto discorre de forma autobiográfica, relatando vivências cotidianas, em uma pesquisa
sobre aceitação e violência. O compartilhamento de processos criativos pessoais misturados
a relatos de rotina intentam se aproximar do pensamento de John Dewey, que defende a
arte como experiência. As situações experienciadas são tomadas como impulsionadoras de
poéticas performáticas, que não se fecham em uma única leitura imagética e ou representativa,
permitindo a ativação memorial do outro, expectador, plateia, segundo histórico individual.
Palavras-Chave: Violências, Diferença, Processo artístico.
Abstract
Provoking reflection on social patterns, diversity and hidden disrespect, the essay discusses
the autobiographical form, reporting daily experiences in a survey of acceptance and
violence. Sharing personal creative processes mixed with routine reports intend to approach
the thoughts of John Dewey, who defends art as experience. The experienced situations are
transformed into poetic performances, which are open for more than a single reading and/or
imagery representation, allowing the memorial activation of another spectator: the audience,
according to their individual history.
Keywords: Violence, Difference, Artistic process
1 Bacharel em Escultura e graduada em Licenciatura em Desenho e Plástica pela Escola de Belas Artes da UFMG - email: [email protected].
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Fig. 1 – “Indício II” – Gilmara Oliveira – Performance – Registro fotográfico: Ana Antunes
Belo Horizonte (MG) – 2014
INTRODUÇÃO
Na arte contemporânea, principalmente, em performance art, é comum alguns artistas exporem
o próprio corpo à violência, como recurso para criações corporais viscerais – como é o caso
de Gina Pane (ITA) em Azione Sentimentale (1973). Mas deparamos-nos também com os que
expõem esta truculência apenas de maneira simbólica, [como Ana Mendieta (CUB) em Rape
Scene(1973)]; o que, de qualquer forma, institui uma relação diferenciada com o público.
Nas ações compartilhadas, ao longo deste texto, a aproximação de questões simbólicas,
enquanto poética para tratar da violência, tomará corpo como elemento ativador do devir.
Segundo Seligmann-Silva (2014),
a arte, ao longo do século XX, assumiu um importante papel político na
construção da identidade social, atuando como espaço de intensificação
de afetos, de abertura a novas experiências sensíveis e de desalienação do
corpo em relação ao mundo concreto, auxiliando na articulação memorial
dos indivíduos como um convite ao enfrentamento, em contrapartida à
tendência de negação e recalque frente à violência vigente (SELIGMANNSILVA, 2014, p.30).
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Seguindo este pensamento nas investigações processuais, a partir de vivências poéticas e ou
viscerais, a memória de situações truculentas são reavivadas em ações performáticas, numa
negação à alienação social. Visto que, como a violência é inerente ao ser humano, negá-la não
a faz deixar de existir, nem traz a paz e o respeito entre os seres.
Dadoun (1998) defende que
(...) não apenas toda violência é violência do outro, mas é o outro, como
tal, que é violência: pelo simples fato de ser ele outro, pelo simples fato de
ele estar presente, pelo simples fato de ele ser. (...) O outro me inflige uma
dupla violência: violência da alteridade como tal, e violência da alteridade
por tentar me identificar, por corroer ou soterrar minha identidade (...).
(DADOUN, 1998, p.66)
Os julgamentos nos distanciam do eu, referencial interno, prevalecendo o outro, referencial
externo, que aponta, segrega, oprime e esquece.
Luzia Silva afirma que
apesar de não parecer ser violência: calar-se, não se envolver, mentir,
adulterar, agir com indiferença diante de situações conflituosas, andar com o
espírito armado e carregar armas para se defender do outro, isto configurase como agir com e a favor da violência; é como projetá-la, e, enquanto a
projetamos, só estamos identificando um referencial externo, e fugindo do
nosso referencial interno, porque o que parece mais problemático e difícil
é identificar a violência tão próxima e tão íntima, originária, nossa. (SILVA,
2010, p.97)
Pensando os pontos levantados pela autora e seguindo o parecer de Seligmann-Silva que
afirma que “(...)a arte de inscrição da memória da violência tem de ir a contrapelo, buscando
restaurar os traços e rastros. (...)” (SELIGMANN-SILVA, 2014, p.32), intenta-se, ao longo deste
artigo, abordar algumas razões da linha de pesquisa, sem, no entanto, fechar as possibilidades
de leitura das ações compartilhadas.
MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA, EXPURGO POÉTICO
OU INSCRIÇÃO DA VIOLÊNCIA?
Violência, do latim violentìa:
impetuosidade (do vento), ardor (do sol); arrebatamento; ferocidade; sanha;
rigor; severidade’; derivado de violéntus: impetuoso, furioso, arrebatado.
Violência refere-se ao uso abusivo ou injusto do poder, assim como o uso da
força que resulta em sofrimento, ferimento, tortura ou morte. (HOUAISS, 2002)
O trauma decorrente de um abuso sexual, por um tio-avô, vivenciado na pré-adolescência
torna a abordagem da violência enquanto processo artístico um tanto quanto óbvio, porém,
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como afirma Subirats (2006), a violência está nas ruas, ligada às drogas e a miséria, mas
também relacionada com a ganância e o poder, trazendo muitos desdobramentos no cotidiano
(SUBIRATS, 2006, p.44-45); o que inviabiliza que um único fato pessoal seja o ativador criativo
de uma artista contemporânea.
Em 1999, num ímpeto autobiográfico, através da representação de atos sexuais entre seres
sem face (fig.2), aquarelas revelavam o devir do abuso misturado a uma apreciação dos
corpos, pensando no tempo como algo estático e nas personagens envolvidas como mutáveis;
parafraseando um trecho recorrente na obra literária Sinfonia em Branco de Adriana Lisboa,
“o tempo é imóvel, só as criaturas passam” (LISBOA, 2001, p.22-215).
Fig. 2 – “Sem Título” – Gilmara Oliveira – Aquarela – 21 X 29,7cm
Belo Horizonte (MG) – 1999
Durante dez anos (1999-2009), a pausa no processo artístico individual se deu pela dedicação
exclusiva à arte educação, onde outras violências, disfarçadas de moral e ética sistêmicas,
foram experenciadas. Os estereótipos eram recorrentes, mas ninguém via isto como uma
violência; apenas como algo a ser tolerado devido à escolha de andar na contramão do
socialmente permitido.
Muito foi apreendido, talvez mais do que ensinado, ao passar por onze diretorias distintas nas
oito escolas vivenciadas durante a trajetória de docente; porém, a última gestão, de uma das
instituições particulares de ensino, foi a mais castradora e frustrante, devido à sua forma de
manipulação e intimidação do outro. Num período de dois anos, fez-se necessário de cobrir as
tatuagens a evitar o vermelho dos cabelos, pelo receio, por parte desta diretoria, da possível
influência que tais escolhas físicas poderiam acarretar na formação de opinião dos discentes
que, por sinal, já eram alunos daquela, antes da chegada desta.
Paulo Freire afirmava que
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apesar da tendência a que determinados grupos ou classes têm de ocultar
verdades em prol de seus interesses, a transgressão da ética não deveria
ser entendida como um direito, mas sim uma possibilidade contra a qual
precisamos lutar em prol do respeito ao outro, ao humano (FREIRE, 1996,
p.38,39).
Deprimida e frustrada com o anulamento de uma identidade construída em vida, em processo;
houve a entrega a um tratamento nocauteador devido a medicamentos fortes e um psiquiatra
mais louco que a paciente.
Pós-interrupção do tratamento, por escolha, e retomada da fase institucional, houve o
fechamento do ciclo enquanto educadora, a reconciliação com o processo artístico e as
investigações acerca da violência; e da vivência deixada pra trás permanecem os encontros na
vida e na arte com ex-alunos engajados culturalmente.
Em 2009, ano da retomada do processo artístico, alguns trabalhos bidimensionais foram
apresentados em uma coletiva no Rio de Janeiro (RJ) e, em 2011, as experimentações com
bolhas de sabão pigmentadas aproximaram as investigações poéticas autobiográficas do
universo da performance, apesar da não consciência disso naquele momento. A agressão do
estouro, proposital ou não, de algo tão delicado, efêmero, que remetia ao feminino por sua
forma, apesar de tantos olharem apenas como confirmação das leis da física/química, era o
que interessava em um primeiro momento.
Neste processo, as marcas deixadas eram colhidas e sofriam intervenções gráficas com base
no pensamento do excesso visual enquanto representação da diversidade e até mesmo um
desdobramento da agressão do estouro em forma de incômodo. Porém, lembrando Aristóteles
que afirmava que um mestre em qualquer arte evitava o excesso e a falta, preferindo meio
termo (ARISTÓTELES,1984, p.72), o abandono das informações gráficas e da colheita incessante
de marcas do efêmero deu lugar à valorização do primor contido em uma única bolha que
nascia do sopro, esvaía-se no estouro e eternizava-se no indício.
Para além do pensamento de Aristóteles, o despertar da eliminação do excesso se deu
também por via de uma vivência artística (Permeabilidades) propiciada pelo CEIA (Centro de
Experimentação e Informação de Arte), em 2012, em Belo Horizonte (MG), a qual permitiu
que o corpo em ação fosse para o vídeo (Fig. 3). Num trabalho colaborativo com as artistas da
Capital Mineira (Deise Oliveira e Eliana Magela), sobre a orientação da performer nigeriana
Otobong Nkanga, a valorização do processo, do fazer e ou do experimentar, despertou o corpo
e o olhar para a arte da ação e o desejo de aprofundamento nesta área do saber.
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Fig.3 – Fotografia de processo – CEIA 2012 – Permeabilidades - Registro fotográfico e frame de vídeo:
Fonte: Deise Oliveira – Belo Horizonte (MG)
A performance passa a ser pensada como uma junção de diversas linguagens artísticas, ou
não, onde o corpo torna-se o elemento principal na construção da poética desejada, através
da qual uma ponte se abre frente ao espectador, seja ele passante ou plateia; aproximando-se,
inclusive, da ideia de Dewey acerca das obras artísticas, que defendia nascer da experiência de
sua recriação no organismo de quem dela provar (DEWEY, 2010, p.646).
Numa pausa para dissertar sobre o vermelho, sua importância simbólica no cotidiano e no
processo artístico autobiográfico, alguns adjetivos são pensados: sangue, vida, morte, corte,
fraco, forte, vergonha, raiva, paixão, explosão, tesão, tensão, fogo, bebida, sexo, espelho,
pedra, porta, pentelho, cabelo, puta, cigana, pomba-gira, luxúria, labuta, boca, menstruação,
hemorroida, nudez, histeria, pecado, indumentária, fetiche, perigo, pare,etc. Todos eles podem
soar como óbvios, mas, qual o problema? O que é óbvio para uns não o é para outros, e a
isto implica o que fazemos criativamente com o evidente, e quão a fundo pesquisa-se. Darcy
Ribeiro desmitifica o óbvio em um texto de 1986:
É óbvio, por exemplo, que todo santo dia o sol nasce, se levanta, dá sua volta
pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem que isto não é verdade. Mas foi
preciso muita astúcia e gana para mostrar que a aurora e o crepúsculo são
tretas de Deus. Não é assim? Gerações de sábios passaram por sacrifícios,
recordados por todos, porque disseram que Deus estava nos enganando com
aquele espetáculo diário. Demonstrar que a coisa não era como parecia, além
de muito difícil, foi penoso, todos sabemos (...) O ruim deste procedimento
é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma
obviedade para descobrir outras, mais óbvias ainda. (RIBEIRO, 1986, p.1)
Mas, o reforço de algumas questões/indagações sociais, políticas e sistêmicas na vida e na
arte acerca do óbvio, banal, podem aprimorar a capacidade de percepção pessoal e do outro,
público, espectador, passante, dependendo de como tais coisas são abordadas, investigadas.
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Ainda nas questões autobiográficas, a relação com o vermelho vem desde a infância e os
adjetivos associados a este matiz é fruto do que foi construído socialmente por situações
como: não colocar esta cor em unhas ruídas por parecer uma empregada doméstica ou talvez
uma meretriz, não utilizar esta cor em lábios carnudos por ser excessivamente provocador e
sedutor - algo nada conveniente para uma moça de família -, não utilizá-la nos cabelos por
ser demasiadamente chamativo e símbolo de rebeldia e perdição etc. Padrões e estereótipos
puritanos e Católicos enraizados culturalmente desde a colonização Portuguesa.
Sair de casa aos dezessete anos para estudar Arte configurou-se como algo sem futuro e de
obstinação tamanha, segundo as heranças patriarcais familiares de se construir uma carreira
de acordo com o que dita o ‘sistema’. Mas foi nesta saída que a mente expandiu quanto ao
entendimento de que existem verdades distintas e que a escolha é um direito, como consta na
Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo XVIII: “Todas as pessoas tem direito
à liberdade de pensamento, consciência e religião”.
O vermelho dantes um fruto de desejo passou a ser uma conquista, uma constante, uma
presença identitária. Os comentários circunstanciais eram recorrentes no meio social fechado
e preconceituoso, porém, sem afetação direta, uma vez curada da necessidade de aprovação
alheia. Tocha humana, pica-pau, vermelhinha, cabelo de fogo, Natasha, doidona, Rita Lee,
Moranguinho eram alguns dos adjetivos escutados no cotidiano.
Sobre o respeito à diversidade, a educadora da UFBA, Edméa dos Santos, coloca que
é uma forma de garantir que a cidadania seja exercida e os vínculos sociais
fortalecidos. Trata-se de uma atitude política para com a diversidade gerada
pelas diferenças de classe, gênero, etnia, opção sexual, capacidades, enfim,
de atributos que fazem parte da identidade pessoal e definem a condição
do sujeito na cultura e na sociedade. O desenvolvimento de atitudes de
tolerância e respeito à diversidade tem a ver com o direito à educação, o
direito à igualdade de oportunidades e o direito à participação na sociedade
(SANTOS, s/d, p.3).
Em todas estas situações de violência ressurge o vermelho na memória - como cor pulsante
nos olhos de quem julga e na face de quem é julgado –, mesmo com tantos signos relacionados
a este matiz. Mas, em se tratando de violência, será que até o rubro mais pulsante, em meio
a uma sociedade que tende ao esquecimento e banalização do que lhe é incômodo ou fora da
normalidade, não seria visto como ‘en passant’? E o que é ser normal na contemporaneidade?
Para que o respeito seja trabalhado, como pontuado na citação de educadora, talvez a
recorrência de ações artísticas pontuais, tantas vezes vistas como mero enfrentamento, devam
continuar coexistindo nos espaços possíveis.
Na performance, enquanto caminho poético, o vermelho foi recorrente por um tempo,
dominando como expurgo de agressões vivenciadas outrora e oferta de afetos em alguns
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casos, visto que dentro dos signos existentes em torno deste matiz podemos localizá-lo tanto
como representação da maldade mais perversa, conforme acreditavam os egípcios antigos;
quanto como representação do Espírito Santo, do amor e da caridade, segundo os preceitos
Cristãos (CHEVALIER, 1986, p.318-320).
Na performance Indício (Fig. 4), por exemplo, ao pintar todo o corpo com vermelho, na rua, em
pleno horário de rush, e deixar marcas pela cidade, a ação apontava para o olhar do outro e
sua relação com o que lhe é estranho. Até o instante da limpeza deste sangue simbólico - que
representa a vida, mas em se tratando de violência também retrata a morte - muitos correram,
outros encararam, alguns gritaram ofensas, teve quem riu e até quem indagasse acerca do
que se passava; mas a intenção era a quebra da lógica cotidiana por meio de uma provocação
imagética daquilo que se tenta ignorar socialmente e, às vezes, agredir por incompreensão.
Fig. 4 – “Indício” – Gilmara Oliveira – Performance –
Fonte: Registro fotográfico: Ronald Nascimento
Belo Horizonte (MG) – 2012
Inúmeras ações foram realizadas neste contexto e com esta cor no domínio das construções
poéticas de 2012 a 2014, mais especificamente até o dia 10 de outubro de 2014 – data em
que foi realizada a ação ‘Liber[t]a’ (Fig. 5) pelo Perpendicular Bienal, na 31ª Bienal de Arte de
São Paulo, sob curadoria e convite do artista Wagner Rossi. Durante esta ação performática, o
vermelho presente foi retirado, através do corte do cabelo, e distribuído aos presentes como
forma de partilha da energia que os pelos representam. Segundo Jean Chevalier (1986), os
cabelos simbolizam as propriedades de cada ser, como espiritualidade e virtudes, portanto,
cortá-los representa uma penitência para muitos. Santos (2009) cita o corte como simbolismo
do luto na cultura indígena, por exemplo: “(...)entre os Tapuias Tarairiús, quando o pai ou
a mãe morriam, estes arrancavam todos os cabelos da cabeça(...)” (SANTOS, 2009, p.276),
mas, no caso de Liber(t)a, o corte não simboliza propriamente uma penitência, mas sim uma
experimentação desta condição e do olhar do outro acerca de.
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Ao concluir a ação em São Paulo, o relato de outra artista sobre o comentário de uma criança
de dez anos que assistia à performance, junto a um grupo de colegas de escola, trouxe uma
reflexão quanto à escolha de experimentação e vivência desta condição, por algum tempo.
Quando questionada sobre o que estaria havendo ali, a jovem respondeu que a performer
cortava os cabelos pra mostrar que as mulheres eram muito mais que só pelos.
Fig.5 - “Liber[t]a” – Gilmara Oliveira – Performance
Fonte: Registro fotográfico: Eli Neira - Perpendicular Bienal –
31ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo – São Paulo (SP) – 2014
A partir de então, a investigação acerca da violência passou a se dar na ausência de pelos, de
cor e de novas propostas, definidas como ‘releituras autobiográficas’, com momentos de pausa
para vazão à experimentação. Uma das primeiras ações a serem repensadas foi a performance
Indício, originando Indício II (Fig. 6), onde o vermelho deu lugar ao preto que, apesar de
representar a somatória de todas as cores, em cor-pigmento, simboliza a ausência delas em
cor-luz. Chevalier (1986) destaca como signos do preto a vida eterna entre os egípcios antigos,
a penitência entre os Cristãos e a existência Divina entre os místicos, onde todas as cores são
entendidas, mas nenhuma reconhecida, no entanto, o entendimento enquanto penitência é o
mais comum dentre os que experienciam a ação, devido à somatória do fator Cristão operante
na sociedade brasileira, sua relação com os signos deste matiz e da ausência de cabelos na
figura feminina.
As vivências com a careca no cotidiano são bem próximas às experimentadas com o vermelho
no que concerne ao olhar do outro. As abordagens na rua, os questionamentos nos ambientes
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de frequência cotidiana e nas instituições de relação trabalhista permanecem no lugar do
não saber lidar; poucos são os que olham sem julgamento e respeitam a atitude enquanto
escolha. Perguntam acerca do câncer, indagam sobre o Candomblé, sobre as escolhas sexuais,
a educação dos filhos e até sobre a relação com o crime organizado, mas nunca se a opção
é estética. Será que o que foge ao padrão deve ser sempre questionado ou até agredido? E
quem determina o tal padrão? Será que nem propriedade sobre o próprio corpo temos?
Medina (2007) aponta que
se é verdade que a infraestrutura econômica da sociedade define as linhas
do poder e, através dele, estabelece as relações de dominação, produzindo
os nossos corpos; não menos verdade é o fato das pessoas, na medida de
suas circunstâncias históricas e de classe, poderem lutar pela satisfação de
seus próprios desejos. (...) Nesta dialética o corpo passa a ser objeto e sujeito
da transformação (...). (MEDINA, 2007, p.99)
Colocar o corpo como objeto e sujeito da transformação é reivindicar contra o sistema
dominante; e é neste ponto que a investigação acerca das violências e do olhar do outro,
sobre o diferente, ganha corporeidade na performance enquanto linguagem autobiográfica
instigadora e de incitação à reflexão, rompendo, talvez, com a hegemonia dos iguais.
Em uma época desumana, violenta e de adoção da política do medo em função da intolerância
com o jeito de ser do outro - por questões religiosas, filosóficas e ou políticas -, a arte
contemporânea só poderia ser reflexo destas situações vivenciadas. Mas, abordar tais questões,
de forma óbvia ou não, seria expurgo, memória ou mera inscrição da violência? Parafraseando
Dewey, tudo dependerá da experiência, dado que o objeto artístico, por si só, não existe até
ser presentificado pelo observador (DEWEY, 2010, p. 17-19).
CONCLUSÃO
Todas as questões abordadas neste artigo são de cunho autobiográfico; portanto, as referências
usadas como parâmetro de defesa do pensamento construído configuram-se como citações
do pensar do outro, numa ótica conveniente ao que se investiga, e não o próprio pensar,
fechado e concluso.
Sendo diferentes e coexistindo numa Era onde as identidades são erguidas durante as vivências
no mundo, por que ainda encontramos parâmetros de normalidade apontando para apenas
‘um’ padrão, patriarcal e puritano?
Se a singularidade do outro está na construção que cada ser organiza visualmente e ou
mentalmente, segundo a bagagem que possui e tradição que segue, não deveria o respeito à
conduta alheia ser exaltado, em contrapartida à violência?
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Esta época desumana, agressiva e de adoção da política do medo aproxima o fazer artístico,
muitas vezes, da intolerância e de outras truculências experienciadas diariamente, tornando-se
uma espécie de reflexo destas vivências cotidianas – não que todos os trabalhos contemporâneos
exaltem agressividade, mas é frequente permear neste lugar de choque do outro ou mesmo
de ofertas afetivas, para trabalhar o oposto do que se vivencia socialmente.
Talvez o caráter autobiográfico do texto permita uma aproximação maior do relato pessoal
do que das questões sociais por detrás e isto gere um sentimento de vitimização; no entanto,
o essencial foi colocado à mesa, como cartas, já que o intuito não é gerar solução, mas sim
provocar uma possível discussão.
Logo, em defesa da diversidade e da não violência, acreditando que, enquanto artista, o que
incomoda e configura-se como desrespeito social deva ser repensado, aquilo que ignoro para
viver a identidade escolhida em meu dia-a-dia passa a ser reforçado poeticamente através de
ações pela cidade.
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ARTES
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Corpo e diferença:
Relato de experiência no campo dos afetos
Angela Barban Morelli1
Resumo
Ensaio teórico-afetivo sobre as políticas de produção de subjetividade na arte contemporânea
que se estruturam através do corpo do performer/atuador e suas possíveis reverberações
práticas. A partir da experiência da criação de uma peça/performance de rua, proponho o
estudo sobre o corpo, pelo viés cênico e político, com um olhar que privilegia a percepção dos
atravessamentos afetivos e o jogo das forças no campo micropolítico. Costura-se um relato
provocativo sobre as potencialidades do corpo-vibrátil e suas desterritorializações no campo
das sensibilidades.
Palavras-Chave: [corpo-vibrátil, afeto, performance].
Abstract
This is a theoretical and emotional essay on the subjectivity production policies in contemporary
art, that are structured through the body of the performer / actor and the possible reverberations
of this in practice. From an experience of creating a play / street performance, I propose the
study of the body, in the scenic and political bias, with a look that emphasizes the perception
of affective crossings and the play of powers in the micro-political field. Sewing a provocative
account of the potential of the body-vibrating and their deterritorializations in the field of
sensitivities.
Keywords: [body-as-vibrating, affection, performance].
1 Angela Barban Morelli, performer e arte-educadora, formada em licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, cursando a pós-graduação em Ciências, Arte e Cultura na Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz-FIOCRUZ. Email:
[email protected].
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A EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA DO AFETO
O corpo como campo de batalha
O processo de criação e realização da peça de teatro de rua “B-T-G-P-T-1-4-0-5-9-CAMBIO”
(btgpt)2 que compôs a primeira edição do “Projeto Vivências” proposto pelo coletivo Teatro de
Operações (TO)3 e vivenciada por mim em 2011, teve como eixo de suas indagações o corpo
e sua ação nas subjetividades. Como exercer nossa capacidade de perceber o jogo das forças
invisíveis que atuam no mundo e produzir diferença? (ROLNIK, 1989, p.15) *
Acredito que a escolha pelo tema do corpo dentro de um processo artístico é uma tentativa de
responder essa pergunta.
Para nos lançarmos em responder tais indagações, formamos um leque de conceitos que
fundamentaram a experimentação de todos. A ideia de o corpo como campo de batalha foi a
que estruturou a pesquisa. Essa ideia vem sendo trabalhada nos últimos 50 anos por diferentes
movimentos políticos e por artistas que visam resistir à ordem hegemônica vigente e criar
novas frentes. Dentre as citações teóricas ressalto uma que me pareceu ser a mais próxima do
entendimento que viemos a ter como norteador do projeto:
Em 2004 o coletivo feminista francês Ma Colére lança um livro que trabalha
com discursos visuais e textuais com praticamente o mesmo título, porém com
uma inversão significativa: “Meu corpo é um campo de batalha”. Na publicação,
inspirada por um artigo da canadense Carla Rice, as autoras articulam uma série de
problemáticas – exigência de padrões de beleza, gordofobia, anorexia, preconceitos
com relação a distintas maneiras de se vivenciar tanto o gênero como as sexualidades
– relacionadas a como vivenciavam corporal e subjetivamente tais questões, como
estas atravessavam e inscreviam-se em seus corpos, ou nos corpos das mulheres.
(BARCELLAR, 2015, p.32).
Tais atravessamentos são produtores de subjetividades e modos de vida. Isso vai de encontro
ao conceito da biopolítica de Michael Foucault onde, para este, somos ordenados e operados
socialmente através de instituições como a medicina, o sistema carcerário, a escola e assim
2 Nome retirado do documentário de Marcos Prado “Estamira” de 2005. Estamira é a personagem da vida real que vive no
limite da vida, da saúde, da consciência. Figura esquizoide, múltipla, com uma fala que dispara profecias sobre o mundo e
verdades incontestáveis em um fluxo entre lucidez e insanidade. Sua subjetividade desviante é atormentadora, penetrante e
criativa e nos lança para os limites possíveis da subjetividade em um mundo que esmaga as pessoas. A frase “B-T-G-P-T-1-4-05-9-CAMBIO-EXU” é pronunciada pela protagonista em certo momento do documentário, onde Estamira atende um telefonelixo e passa a conversar em outra língua, uma espécie de gromelô, com os seres invisíveis com os quais mantém contato. Btgpt
é o código que transita entre os mundos.
Link para o documentário completo: https://www.youtube.com/watch?v=jSZv8jO9SAU
Link para o trecho em questão: http://www.youtube.com/watch?v=JJ8SmoJQdmE
3 Teatro de Operações é um grupo formado por artistas de diversas partes do Brasil, e que se dedica à pesquisa de formas
de conjugar arte e ativismo político, através da criação de operações para teatro de rua e do desenvolvimento de pedagogias
periféricas. “Operação artística” é o termo usado pelo grupo em oposição à ideia de obra de arte. “A cena é pública” e “B – T
– G – P – T – 1 – 4 – 0 – 5 – 9 – CÂMBIO” são as criações para teatro de rua que o grupo opera atualmente (texto retirado do
site do grupo, disponível em: <www.teatrodeoperacoes.com>).
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por diante, a fim de que sejamos condicionados a constituir um corpo dócil que reproduza
discursos e normatizações e com isso mantenha a produção do capital. O corpo como campo
de batalha aqui, pode ser entendido como uma chave que abre as janelas da percepção dessas
relações apresentadas pelo autor e que geram uma batalha travada dentro da subjetividade.
Outro conceito com o qual entrei em contato um ano após o Projeto Vivências4, e que
reverberou em mim e no grupo como ferramenta de entendimento do que vivemos foi o
conceito de corpo-vibrátil. Para Suely Rolnik, estão presentes em nossos órgãos do sentido
basicamente duas maneiras de apreender o mundo: uma é pela capacidade do córtex
cerebral de perceber as formas (visualmente) e instituir um sistema de representações que
deem sentido a estas, sendo que é esta a capacidade que constitui as identidades nas quais
as subjetividades estão ancoradas5 (ROLNIK, 2013, informação oral). Porém, como coloca a
autora, “nossa realidade não se restringe ao visível e a subjetividade não se restringe ao eu”
(ROLNIK, 1992, p.3). A outra maneira de apreender o mundo, ainda segundo a autora, é que
somos sujeitos possuidores de uma segunda capacidade, que vem da região do sub-córtex
cerebral e que diz respeito ao modo de apreensão e percepção as forças e seus efeitos em
nosso corpo. Esta é chamada pela autora de corpo-vibrátil, e é a capacidade que possibilita
uma desterritorialização das identidades-representações a fim de produzir diferença
no interior da subjetividade em contato com essas forças. Segundo a autora, esta última
capacidade vem sendo recalcada na sociedade moderno-ocidental, para dar preferência à
prática apenas da primeira, a capacidade de representação. Para Suely, isso acontece desde
o império romano, seguindo com os 300 anos de colonizações, exploração da escravidão e
inquisição, que se instituíram nesse período, gerando uma verdadeira política de produção
de subjetividade que renega e recalca a capacidade do corpo de gerar diferença, ou seja,
reprime o corpo-vibrátil. Este é o corpo que sabe dos efeitos do outro na própria consistência
de si (ROLNIK, 2013). O que é diferente do corpo que percebe as formas e cria representações
das mesmas para fazer sentido, constituindo identidades fixas. O que interessa no corpo que
extrapola o campo das representações é que este está constantemente produzindo novas
possibilidades de si, ou seja, é uma subjetividade móvel e não condicionada ao mapeamento
da formação das identidades.
Rompe-se assim, irreversivelmente, o equilíbrio dessa nossa figura, tremem
seus contornos. Podemos dizer que a cada vez que isso acontece há uma
violência, vivida por nosso corpo em sua forma atual, que nos desestabiliza e
nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo - em nossa existência, em
nosso modo de sentir, de pensar, de agir etc. - que venha encarnar o estado
4 A proposta reuniu cerca de 10 pessoas de diferentes áreas, que conheciam ou não o trabalho do grupo. Chamada por estes
de Vivências, consistiu em permanecermos um mês dentro de uma rotina diária em que ficávamos a maior parte do nosso
tempo (de 6 a 8 horas), entre exercícios, conversas, troca de referências e afetos. A intenção era de nos lançarmos em um fazer
teatral a partir do convívio e dos afetos.
5 Informação oral retirada de palestra de Suely Rolnik no 8° Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política,
realizado em São Paulo em janeiro de 2013. Link da palestra completa em: http://hemisphericinstitute.org/hemi/es/enc13keynote-lectures/item/2085-enc13-keynote-rolnik
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inédito que se fez em nós, a diferença que reverbera à espera de um corpo
que a traga para o visível. E a cada vez que respondemos à exigência imposta
por um desses estados - ou seja, a cada vez que encarnamos uma diferença nos tornamos outros. (ROLNIK, 1992, P.3).
Entendendo isso, o conceito-chave corpo como campo de batalha pode ser compreendido
a partir de um olhar atento para essa violência da desestabilização da identidade quando se
acessa o corpo vibrátil. Vemos então um estado que gera caos e a ativação de uma subjetividade
que destitui o campo da representação como lugar dominante e faz desse lugar o próprio
motor de diferenciação de si. Isso por que “para a gente se conceber como uma identidade,
temos que ter essa dimensão (do corpo vibrátil) recalcada” (ROLNIK,2013). Esse entendimento
da chave corpo como campo de batalha não foi algo intrínseco ao processo e essas reflexões
foram elaboradas no decorrer de pesquisa, já depois do Projeto Vivências ter acontecido.
No entanto, esta é uma chave que só pode ser disparada quando outras portas já foram
abertas, pois funciona como uma espécie de baú largo e sem fundo de onde o processo de
experimentação vivenciado tira e coloca outras chaves a todo momento. Para nos lançarmos
na ativação do corpo como campo de batalha, tivemos que primeiramente aceitar estarmos
sendo desterritorializados de nosso contorno cotidiano para criarmos rupturas nas nossas
subjetividades. Isso só foi possível depois de diversos exercícios que funcionavam como
dispositivos de contato, atenção e jogo, que possibilitaram uma atmosfera de confiança e
entrega. Dentre esses dispositivos pretendemos destacar dois que foram usados para criarmos
um élan coletivo; a “dádiva” e a “caminhada do desapego”.
O primeiro exercício importante que fizemos logo no início do processo, foi o que chamamos
de dádiva, dinâmica inspirada no ritual do Kula, realizado na Melanésia. Segundo afirma o
sociólogo Marcel Mauss, a dádiva cria um vínculo de almas (MAUSS, 1971 apud BARCELLAR,
2015, p.93), o que podemos entender por um laço entre as pessoas que participam do ritual.
Para nós, consistiu em cada um levar um objeto ou ação que dissesse ao nosso respeito, para
ser trocado mutuamente. A dinâmica já se iniciava alguns dias antes do evento da dádiva,
pois tivemos que escolher algo de nós mesmos que além de darmos para outra pessoa, teria
de contar algo sobre a nossa história pessoal. Fazer essa seleção demanda uma energia que
é ao mesmo tempo de coragem e vontade de se expor para um coletivo ainda desconhecido,
funcionando como desapego e renúncia a favor deste coletivo. No dia da dinâmica, nos
posicionávamos em roda e um por vez ia disponibilizando seu objeto ou ação para o coletivo.
Nesse momento, além de simplesmente colocarmos o objeto no centro da roda como uma
oferta, deveríamos dizer o “porque” dessa escolha, ou o que ela dizia sobre nós mesmos.
Essa parte da dinâmica abria os afetos para a entrega e confiança de quem estava oferecendo
a dádiva assim como criava um clima de acolhimento e curiosidade nas outras pessoas da
roda. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, qualquer pessoa que estivesse na roda poderia
sentir interesse por aquele objeto ou ação e assim toma-lo para si. O interessante é que este
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“tomar para si” consistia em ficar com o que estava sendo compartilhado e dizer por que se
interessou pelo mesmo, mais uma vez trazendo à tona um jogo de exposição e acolhimento.
Nenhum objeto ou ação poderia ficar sem um novo guardião, sendo que as pessoas que não
se interessassem por nada deveriam ficar com o que sobrou na roda.
Esse pequeno ritual de trocas acionou uma intimidade entre o grupo, e proporcionou ao
mesmo tempo um espaço de exposição dos integrantes da vivencia que já descortinava as
singularidades. Cada um com seu jeito de se colocar – humorados, solenes, irreverentes – e
com o que deram importância de expor para o grupo através dos objetos ou ações, já se fazia
ver na sua forma pessoal e singular, apesar de ainda se tratar de um eu identitário.
A partir deste ponto destacamos o segundo exercício a ser mencionado: a caminhada do
desapego, originário do Buthoh6. Este exercício foi fundamental em um momento em que já
havíamos criado um espaço de intimidade e confiança, pois apesar dessas questões terem sido
trabalhadas sistematicamente pelo grupo durante toda a vivência, essa preocupação foi mais
intensa no início. Consistia em nos posicionarmos um do lado do outro na mesma linha de
partida, e caminharmos até uma linha de chegada. Nessa caminhada, devíamos nos desapegar
de tudo o que pudesse impedir de estarmos em um estado aberto da subjetividade ou “ponto
zero”, conforme a terminologia do exercício. É interessante notar que fizemos essa caminha
diversas vezes ao longo do processo e que assim como a caminhada era diferente para cada
um – em termos de ritmo, gestos, respiração – era também diferente a cada nova vez que
realizávamos, pois implicava em nos tornarmos neutros a partir da nossa consciência atual,
para assim podermos nos conectar com uma consciência dos afetos ou corpo-vibrátil. No
entanto mesmo com a singularidade de cada integrante da caminhada, existia ao mesmo tempo
uma respiração coletiva, um pulso que nos atravessava mutuamente e que se diferenciava,
dependendo principalmente do ambiente no qual a realizávamos.
Foi a partir do acesso ao corpo-vibrátil que começamos a ser expostos as outras chaves de
ativação que atravessavam nossa processualidade, a fim de iniciar a criação das diferenças
em nossos corpos, chamarei essas chaves de dispositivos, para facilitar a leitura. Como essa
experimentação se deu de forma radical, para que pudéssemos realmente encarnar o corpo
como campo de batalha, esses dispositivos serviam para potencializar a desterritoralização
ou desequilíbrio do eu (campo das representações), e aprofundar a diferenciação. Isso
significa que nos empreendemos em estados-limites ou liminóide7, áreas fronteiriças da
nossa subjetividade, afim de ativarmos o nosso sub-córtex cerebral ou corpo-vibrátil há
tanto tempo recalcado.
6 O Buthoh é uma dança que surgiu no Japão pós-guerra e ganhou o mundo na década de 1970. Esta dança preocupa-se em
expressar o que passa no interior da subjetividade do dançarino, mesmo que isto signifique expressar afetos que poderiam
ser tidos como “ruins” dentro de um pensamento binário, como o medo, a inveja e assim por diante. Por isso é uma dança
que extrapola os limites das convenções da arte técnica e coreografada.
7 Conceito elaborado por Vitor Turner, antropólogo que pesquisou os estados limites da consciência, nos rituais de passagem
da povo Ndembu da Zâmbia, e mais tarde aproximou tais ideias ao campo da performance (CAVALCANTI, 2013).
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Para tanto, o principal dispositivo que usamos foi conforto-desconforto. Neste, expúnhamos
nossos corpos a um desconforto extremo indo ao limite e voltando para o conforto, trabalhando
tanto na respiração como nas posturas corporais. Proporcionávamos tais alterações de maneira
sistemática até adentrarmos no que chamamos de dançar-pensando/pensar-dançando8, onde
nossos corpos, ativados por esse estado alterado de consciência, ocupavam o espaço de maneira
livre e sinérgica com os fluxos afetivos, numa dança singular e constante. Convencionamos
chamar esse cenário de gira, fazendo uma clara alusão às giras dos terreiros de umbanda
e candomblé, onde os médiuns dançam de maneira singular e ao mesmo tempo coletiva,
conforme o jogo das forças que atuam naquele momento. A nossa gira, era a dança que
fazíamos com nosso corpo-vibrátil ao tomarmos “decisões a favor das diferenças”9 de maneira
a encarná-las completamente, ou seja, dançar um devir permanente dos atravessamentos.
Como estávamos abrindo um processo para trabalharmos nosso o corpo como campo de
batalha, alguns dispositivos foram escolhidos para serem detonadores dessa encarnação
da diferença ou como escolhemos nomear a composição da travesti10. Primeiramente foram
usados uma sequência de quatro dispositivos que se referiam diretamente ao corpo e as
subjetividades. Eram estes: corpo-matéria, corpo-memória, corpo-informacional e corpoimagem ou criação. Cada dispositivo funcionava como instrumento relacional com o corpo
como campo de batalha, onde o corpo-matéria diz respeito a nossa formação física – estrutura
e resistência - e abarca os dispositivos dos 5 elementos do Butoh – água, terra, fogo, ar e
lama – que também foram usados no processo. O corpo-memória abre o campo das relações
dos afetos inscritos em nosso corpo durante nossa vida e que criam fluxos ou bloqueios na
nossa vitalidade. Por sua vez, o corpo informacional corresponde aos discursos sociais de
raça, gênero, classe e assim por diante, informações estas que nos classificam e determinam
no jogo social. Por fim o corpo-imagem ou criação, que consistia em, depois de ativados os
outros corpos, compor outras e novas relações corporais que dessem conta do que estivesse
vindo à tona através do corpo-vibrátil dessa subjetividade que estava se criando. Em relação
ao uso desses dispositivos, verificamos que nosso próprio corpo conta a história e isso é
profundamente transformador, em uma reflexão sobre como o processo de aplicação desse
repertório reverberou em nossas tessituras subjetivas.
Estas chaves foram fruto das experiências anteriores dos integrantes do grupo e da pesquisa
8 Ideia retirada do estudo do Butoh.
9 “Conquistar a liberdade é conquistar a capacidade de selecionar e de tomar decisões a favor das diferenças, decisões que
são disparadoras de processualidade.” – Suely Rolnik, À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da
democracia. 1992, pág.16.
10 O termo travesti é amplamente usado para designar uma relação de gênero específica que é a do homem que se traveste de mulher, dando expressão a sua subjetividade feminina através da montagem de um corpo feminino, com gestos, sons,
posturas, ritmos que dizem respeito a esse universo. O que nos interessa dessa relação é a capacidade de produzir uma
subjetividade que “fabrica” a si mesma e ao seu corpo. Nossa intenção em nomearmos as figuras que criamos de travesti não
significa que pretendemos tratar da questões do gênero, em um aspecto particular e próximo intencionamos criar figuras que
dialoguem com diversas e diferentes camadas da sociedade e que desestabilizem essas fronteiras de gênero, raça, classe e
assim por diante.
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realizada com bibliografia de Milton Santos, geógrafo brasileiro que detém vasta obra sobre
questões da cidade e sociedade contemporânea. Trabalhamos principalmente com alguns
capítulos de “A natureza do espaço” e com os documentários, “Por uma outra globalização” e
“Encontro com Milton Santos ou o mundo visto do lado de cá”11. Para Santos (2006) vivemos
em um meio técnico científico informacional, no qual utilizamos permanentemente próteses
tecnológicas que acabam por moldar nossos hábitos e cultura. O autor vai ainda mais longe
quando coloca que vivemos em um mundo artificial, distante dos ritmos naturais, onde, em
vez do objeto técnico ser criado pelo homem a partir de sua interação com o espaço, é o serhumano que se constitui como sujeito insubordinado às ondas de tecnologias que compõe o
espaço e as relações.
Diante dessas questões também foram criados os dispositivos: animal e máquina, para
trabalhar o mito moderno evolucionista de que no passado éramos animais e no futuro
seremos máquinas (cyborgs). Dessa forma, busca-se encontrar olugares possíveis de se criar
rupturas nesse binômio no qual a humanidade se encontra, onde ela é tanto animal como
máquina e ao mesmo tempo não é nenhum nem outro.
Todos esses dispositivos eram acionados a fim de que entrássemos em devires-outros. Não
buscávamos uma representação dessas figuras, mas sim acessávamos uma outra perspectiva
de atuação da consciência. Esse exercício vai de encontro com o que Sônia Maluf aponta sobre
as sociedades indígenas onde,
ao contrário da concepção moderna hegemônica da Pessoa, centrada na
noção de individuo, no pensamento das sociedades indígenas a Pessoa não
aparece como um ser substantivo, dado ou acabado, mas como um ser em
processo permanente de transformação e aberto para experimentar diferentes
possibilidades de metamorfose... O corpo não é um dado, mas é performado,
praticado. (MALUF, 2001, p.7).
Desses dispositivos surgiram posturas corporais, movimentos (partituras), ritmos, olhares que
compõe um novo repertório de gestos a serem lançados no espaço público por nossos corpos.
Como se cada integrante tivesse criado uma dança singular e contínua do seu corpo como
campo de batalha.
A rua, relato de uma intervenção.
É fundamental nesse trabalho traçar como a dança das travestis ou operação btgpt se articula
no espaço público. Procurando se diferenciar do teatro de rua tradicional que pensa a rua
como palco, forma roda e realiza a encenação, o coletivo optou por pensar a rua como campo
de forças permanente onde usamos a ideia de operação em substituição a de espetáculo.
Derivando do próprio nome do coletivo, Teatro de Operações, oriundo do universo militar,
11 Documentários disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=WLYZmfJXEDY / https://www.youtube.com/
watch?v=0nom9LyCH3g
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este nome vem designar o mapa que se faz dos fluxos e fixos, e as estratégias de ação do local
onde se dará a batalha. No caso de um grupo de teatro, o estudo feito pelos componentes do
coletivo se dá para criar a cena e as estratégias de ações possíveis nos diferentes lugares em
que haja uma apresentação.
Nenhuma operação é a mesma, pois mesmo que funcione em um lugar repetido, o dia,
horário, época do ano e outras variantes, vão influenciar exatamente nesse mapeamento ou
cartografia dos fixos e principalmente, dos fluxos do espaço. A proposta, em uma operação,
não é traçar uma trajetória linear de início e fim, mas sim instituir novas dinâmicas no espaço
e dessa forma causar possíveis rupturas de perceptos e afectos, como coloca Deleuze ao
refletir sobre a função da obra de arte. Para Deleuze, se a filosofia tem a tarefa de criar novos
conceitos, a arte cria novos agregados sensíveis (DELEUZE, 1988 apud MACHADO, 1990, p.4).
Por isso também essas ações tem um caráter de realizar uma “operação” no sentido cirúrgico
do espaço, desvelando discursos pouco legitimados ou deslocando sentidos dos discursos
instituídos. Ou seja, fazer uma leitura política do espaço, percebendo as forças que operam
nele e operar a favor, contra ou em paralelo a elas.
Em btgpt costumamos fazer essa leitura política dos fluxos e fixos, levando em consideração
os dispositivos usados para os corpos. Investigando a cena em diversas camadas – memória:
história daquele espaço e das pessoas que circulam por este; matéria: estrutura, cores e
texturas; informacional: símbolos, hábitos, discursos, e por último, imagem: que funciona
como um agregado das anteriores. Investigar a rua dessa maneira nos permite percebê-la como
campo de forças que competem permanentemente nos corpos, e assim fazer as escolhas de
ocupação desse espaço que melhor se estruturam em uma busca por desestabilizar os eixos
que constituem o espaço e as subjetividades ali presentes.
Ocupar o espaço da rua com nossos corpos como campo de batalha expostos já é em si uma
ação que desencadeia uma série de reverberações e indagações por parte dos passantes,
fazer isso nos propondo a dançar o espaço, ou seja, a fazer a gira das travestis, tem sido de
muitas maneiras um processo mágico. Aqui uso da palavra “magia” não como referência a
truques de circo ou histórias fantásticas, mas sim a um intenso exercício de ativação das forças
invisíveis que habitam o espaço, a partir da dança do nosso corpo-vibrátil em uma exposição
permanente e muitas vezes inquietante do corpo como campo de batalha.
Como exemplo, relata-se aqui uma descrição da operação btgpt realizada em São Luis do
Maranhão dois meses depois do Projeto Vivências. O Teatro de Operações havia sido convidado
a participar da VI Semana de Teatro do Maranhão, e na ocasião decidimos transportar nossas
investigações para São Luis, capital do estado. Isso significou uma semana de vivência com
artistas locais em uma escola de artes cênicas, que ao mesmo tempo nos serviu de hospedagem.
Nessa “mini” vivência, nos dividimos para ministrar oficinas da metodologia usada para a
formação das travestis e estudar o espaço que seria usado para a operação a ser realizada no
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término da oficina, agregando os integrantes do Teatro de Operações e os participantes.
Durante esse processo, coletivamente fizemos a escolha da trajetória que iríamos traçar no
espaço procurando agregar todas as pessoas na cena. Optamos por uma trajetória que sairia
da Rua Grande, uma rua de comércio bem similar ao famoso Saara do Rio de Janeiro, partindo
em direção à Fonte do Ribeirão. A fonte em questão localiza-se no centro histórico da cidade,
palco de muitas histórias e lendas da região, e se encontrava praticamente abandonada, por
mais que a sede da secretaria de cultura ficasse logo do outro lado da rua.
Fig1. Mapa de estudo da trajetória completa realizada desde a Rua Grande até a Fonte do Ribeirão- São Luiz do Maranhão.
Fonte: dados da pesquisa.
Nessa trajetória cada travesti teria seu percurso singular a cumprir, funcionando como um
efeito em cadeia onde começávamos com três travestis posicionadas em pontos diferentes da
Rua Grande e que conforme desciam até a Fonte do Ribeirão iam encontrando com as outras
travestis que estavam já espalhadas por diversos pontos dessa caminhada. Alguns exemplos
desses pontos são a igreja do Carmo, localizada no coração da cidade, e o teatro municipal.
Desses encontros entre as travestis e dessas com o público, ia se formando uma espécie de
procissão até chegar à Fonte. Para essa descrição destacam-se três pontos fundamentais que
ocorreram e que funcionaram como dispositivos de ativação dessas forças invisíveis do espaço,
ou o que chamamos anteriormente de magia.
São Luis é uma cidade povoada por lendas que se originam de um povo mestiço principalmente
entre índios e negros. Uma das lendas da cidade que faz alusão à Fonte do Ribeirão diz que:
Ao redor da Ilha de São Luís haveria uma descomunal serpente sempre a crescer,
até que um dia sua cauda alcance a cabeça. Na ocasião em que tal acontecer, o
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monstro reunirá todas as suas forças para, num abraço estupendo, comprimir
a porção de terra envolvida, provocando o completo desaparecimento de São
Luís, que será tragada pelo oceano. (MORAES,1995, p.143).
A crença de que a cabeça da bestial serpente repousa dentro da Fonte do Ribeirão é algo dito
por toda a população local, e nos foi contada por um dos integrantes da oficina. A partir disso o
interesse do coletivo por aquele local adquiriu nova roupagem, já que a Fonte do Ribeirão em
si, na sua construção arquitetônica e histórica já era bastante interessante. Começamos, então,
a estabelecer diálogo com esse imaginário local e decidimos que uma das travestis (no caso a
minha) estaria em cima dos muros da fonte a esperar pela comitiva de travestis e público que
chegaria ao local. Essa escolha se deu pelo fato de minha travesti possuir um tecido vermelho
de 10 metros, que funcionaria como um tapete vermelho a receber o público na Fonte. Este
vem sendo puxado pela figura se unindo a um outro tecido vermelho que entra na roupagem
preta pelo ventre e reaparece na cabeça, cobrindo toda a sua superfície. Essa imagem faz uma
clara referência à cabeça de serpente que habitaria aquele local e assim traça desenhos vivos
do que aquele espaço possui no mundo invisível.
Fig.3. Momento da chegada do público na Fonte. Foto de Paulo Socha, 2011.
Junto com essa lenda, paira na cidade uma outra estória, com a qual entramos em contato
depois que a operação já havia acontecido. Uma pessoa do público veio conversar comigo
após a apresentação e disse que uma das nossas travestis fazia referência à lenda de Ana
Jansen. Tal lenda conta que a personagem em questão foi uma baronesa da cidade que era
muito cruel como seus escravos, promovendo verdadeiros genocídios em suas terras. Conta
ainda que depois que ela morreu foi condenada a vagar em um carroça de cavalos de cabeça
chamejante ao redor da lagoa que leva seu nome, por toda a eternidade segundo relatos da
tradiçãoo oral local. A travesti em questão que foi comparada a essa história é negra e veste um
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vestido de noiva junto com uma espécie de máscara feita de fitas de VHS, por baixo do vestido
há uma meia arrastão vermelha e botas plataforma de cano alto também vermelhas. De sua
pele só se podem ver as costas e as mãos que permanecem descobertas. Para a operação em
São Luis, optamos por esta travesti fazer todo o trajeto em uma carroça conduzida por um
homem negro e acompanhada por um rapaz também negro a tocar o hino de São Luis de forma
errada propositalmente, no trompete. Poderia dizer que o fato dos três personagens serem
negros foi uma coincidência feliz, pois esse mesmo amigo que notou a referência à lenda disse
“emocionante ver como vocês reverteram a estória ao colocar a relação dos escravos da Ana
Jansen no lugar da própria” (informação oral). Emocionante também foi saber disso depois
que já havíamos feito toda a ação.
Fig.4. Chegada da carroça na Fonte do Ribeirão. Foto de Paulo Socha, 2011.
Por último, uma das coisas que mais marcaram essa operação foi que ao chegarmos na Fonte
do Ribeirão, tivemos que decidir coletivamente o que todas essas figuras reunidas iriam
fazer para dar um desfecho a caminhada. Normalmente, quando estamos com apenas os
integrantes do Teatro de Operações, escolhemos fazer uma dispersão aleatória no espaço,
como se aparecêssemos e desaparecêssemos. No entanto nesta ocasião, estávamos em um
grupo maior de pessoas e a Fonte em si não dava muita chance de nos dispersar, pois sua
arquitetura fechada assemelha-se a uma arena. Como logo em sua frente do outro lado da
rua esta a secretaria de cultura da cidade, os participantes da oficina que são na sua maioria
artistas locais, sugeriram de finalizarmos a ação em uma espécie de ‘protesto’ pela forma com
que a secretaria vinha trabalhando a cultura local. Como em nossas operações não fazemos o
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uso da fala, e procuramos ao máximo não fixarmos nossos gestos em algo explícito, a opção
que encontramos foi de que, no fim da trajetória, ao adentrar a área da Fonte, iríamos nos
despir e nos lavar. Depois seria formado um paredão dentro da Fonte olhando em direção a
secretaria, relacionando com os paredões de fuzilamentos das guerras.
Fig5
Fig6
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Fig7
Fig. 5, 6 e 7. Momento final da apresentação, com a formação do paredão. Foto de Paulo Socha, 2011.
Não é necessário dizer o quanto realizar uma ação como essa move os afetos tanto de quem
executa como de quem assiste, e certamente diversas camadas de significação foram atribuídas
pelas pessoas locais. Depois dessa semana a maioria dos integrantes do Teatro de Operações
voltaram para o Rio de Janeiro, permanecendo apenas eu e mais uma pessoa no local. Muito
foi dito entre as pessoas sobre “o que tinha acontecido na Fonte do Ribeirão” e certo tempo
depois uma das participantes da ação, que é moradora da cidade, nos descreveu que a Fonte
do Ribeirão, que antes estava entregue as moscas, agora havia se tornado um verdadeiro
espaço de encontro de artistas, com bares e uma vida noturna agitada.
É impossível definir o quanto isso se deu a partir ou como consequência de nossa ação, mas
sem dúvida existiu toda uma movimentação em torno da Fonte, que muitos artistas e pessoas
ligadas a cultura realizaram, após o desassossego que a ação causou em todos. Para mim
foi duplamente significativo estar realizando a ação, pois fui moradora da cidade de São Luis
durante o ano de 2007. Essa descrição serve para tentar de alguma forma relatar como os
movimentos das forças que operam o espaço podem se desarticular e rearticular a partir de
uma ação estética, silenciosa e intensa.
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ARTES
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A METONÍMIA DO ILÓGICO:
A desconstrução da linguagem, a negação da imagem, a busca do “eu”
e a tragicidade do ser humano em Film, de Samuel Beckett
Jefferson Assunção1
Resumo
Esse artigo pretende analisar o curta-metragem Film, película muda de autoria do dramaturgo
irlandês Samuel Beckett e estrelada pelo comediante Buster Keaton em 1965, pouco antes de
seu falecimento. Esse estudo se dará sob o prisma da relação dessa produção com o Teatro do
absurdo (do qual Beckett foi um dos protagonistas), da desconstrução da linguagem narrativa
clássica do cinema e da negação da imagem promovidas pelo autor, que acabam resvalando
em conceitos que serão trabalhados no artigo, como escritura, metonímia e poesia.
Palavras-chave: Absurdo; imagem; poesia.
Abstract
This article analyzes the short feature Film, a 1965 silent movie by the Irish play writerSamuel
Beckett, starring comedian Buster Keaton shortly before his death. This study will be oriented
under the prism of the relationship of this production with the Theater of the Absurd (which
Beckett was one of the protagonists), deconstruction of classical narrative of cinema and
the denial of the image promoted by the author, which will end up touching other concepts
described in this article, such as scripture, metonymy and poetry.
Keywords: Absurd; image; poetry.
1 Mestrando em Estudo de Linguagens pelo CEFET-MG. E-mail: [email protected].
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“É difícil para quem vive fora do mundo não buscar o seu próprio”
(MALRAUX apud BECKETT, 2013, p.122).
Em 1963, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), em uma de suas únicas
contribuições diretas para o cinema, escreveu o roteiro do curta-metragem silencioso intitulado
como Film, que viria a ser dirigido por ele e por Alan Schneider (1917-1984), seu amigo e
diretor teatral, em 1965, e lançado no mesmo ano no Festival de Cinema de Veneza.
Inicialmente pensado como um veículo para Charles Chaplin (1889-1977) ou Zero Mostel
(1915-1977), ambos comediantes perseguidos pelo Macarthismo2, Beckett logo sugeriu Buster
Keaton (1895-1966) para o papel principal. Keaton havia sido um dos grandes astros da era
muda do cinema americano, que terminou em 1928 após o lançamento de O cantor de Jazz
(1927), de Alan Crosland, a primeira produção a apresentar diálogos (e até números musicais)
gravados em uma tecnologia especial, o chamado vitaphone, um sistema desenvolvido pela
Warner Brothers e que contava com discos executados e sincronizados no mesmo momento
da projeção do filme.
Keaton, um exímio diretor, roteirista e ator que começara no teatro de variedades e no
vaudeville, em seu auge entre os anos 1910 e meados dos 1920, rivalizava com Chaplin,
Harold Lloyd (1893-1971) e a dupla Stan Laurel (1890-1965) e Oliver Hardy (1892-1957) pela
atenção do público. O comediante desenvolveu um estilo próprio, baseado no humor visual,
pantomímico e pastelão, no qual, mesmo após uma sucessão de trapalhadas, sua expressão
séria jamais se modificava, o que o fez ganhar a alcunha de “homem que nunca ri”.
Em 1926, ele sofreu com o fracasso de crítica e público de A General, uma superprodução sobre
a Guerra de Secessão (hoje tida como uma das melhores comédias da história do cinema) que
custou caro aos cofres da produtora United Artists e levou Keaton a um profundo desagrado
artístico, isso às vésperas da chegada do cinema sonoro. Mesmo assim, ele ainda insistiu nas
comédias mudas até o final da década de 1920, porém, sem o mesmo sucesso de Chaplin, que
resistiu ao cinema falado com sua personagem do Vagabundo até 1936 (ano de lançamento
de Tempos modernos), uma vez que ele produzia seus próprios filmes de forma independente
e ainda contava com uma enorme popularidade.
Até o seu falecimento, Keaton amargou papeis coadjuvantes em produções menores para
o cinema e para a TV, ao lado de pontas e participações em filmes de amigos, através de
personagens que resgatavam seus dons pantomímicos. Com mais de sessenta anos de idade e
2 Também conhecido como o período de “Caça às bruxas” (em referência às execuções promovidas pela Santa Inquisição na
Idade Média), o chamado Macarthismo se deu quando, nos anos 1940 e 1950, o senador republicano Joseph McCarthy junto
ao Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado passou a investigar aqueles que tinham supostas ligações com o comunismo, o que resvalou na comunidade de Hollywood com a criação de uma lista negra para onde iam os nomes dos artistas e
profissionais investigados que, dali para frente, viam-se impedidos de trabalhar.
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encarando a decadência dentro de um modelo industrial que ajudou a construir, Keaton aceitou
o convite de Beckett para viver o protagonista de Film, uma personagem fantasmagórica que
parece uma espécie de expiação sobre seu passado no cinema mudo.
Film tem início com uma imagem (um plano de detalhe) de um olho melancólico e profundo
cujas rugas e marcas de expressão típicas da velhice são bastante visíveis. O dono do olho é
Keaton. Com esse enquadramento, duas questões são colocadas para o espectador. A primeira
diz respeito à apresentação da principal temática trabalhada no curta-metragem por Beckett:
a imagem como identidade do ser humano. A segunda questão liga-se à quebra da linguagem
clássica do cinema, uma vez que iniciar um filme com um enquadramento tão fechado e
específico é algo que foge das convenções indiretamente impostas por Hollywood.
Esse último ponto referente à linguagem convencionalizada e à sua desconstrução é algo que
ficará claro no desenrolar da narrativa, uma vez que o curta-metragem não obedece a uma
decupagem clássica onde se respeita o raccord, termo entendido por Jacques Aumont e Michel
Marie no Dicionário teórico e crítico de cinema como o principal elemento da continuidade
entre um plano e outro e o responsável por guiar o olhar do espectador na construção da
narrativa fílmica através da montagem ou “a simbolização de uma percepção da continuidade
do mundo físico, que é visível” (2003, p.251).
Dessa forma, o raccord diz respeito muito mais à noção de um cinema de narrativa realista
que não busca causar de forma alguma desorientação ou estranhamento no espectador e sim
transformar a montagem em algo transparente, cujos cortes sejam pouco ou nada perceptíveis
ao olhar, pois, segundo André Bazin em A evolução da linguagem cinematográfica, “a utilização
da montagem pode ser ‘invisível’; é o caso mais frequente do filme americano clássico anterior
à guerra” (2014, p.96).
Como esse plano de detalhe do olho que abre o curta-metragem não se liga a nenhuma outra
imagem vinda em seguida, ele acaba por se tornar resultado de uma dialética construída ao
redor da narrativa, uma vez que essa mesma imagem irá se repetir novamente ao final da
história e irá guiar todo o desenrolar do filme, que se desenvolve em cima da imagem3 e
do olhar e da negação de ambos. Essa quebra, assim, parece absurda e ilógica aos olhos do
espectador, algo típico do estilo de Beckett provindo do chamado Teatro do absurdo.
De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0, o vocábulo absurdo
tem origem etimológica no latim surdus, que significa, dentre outras coisas, surdo, “que
não ouve, insensível, silencioso” (HOUAISS, 2009) ou “que ou quem não quer ouvir, prefere
ignorar, que não demonstra empatia ou solidariedade; indiferente, insensível, impassível”
(Ibid., 2009). O prefixo ab designa como advérbio distanciamento ou afastamento, e como
3 Sobre o conceito vasto de imagem, Bazin afirma que “por ‘imagem’, entendo de modo bem amplo, tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada. Essa contribuição é complexa, mas podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos da montagem” (2014, p.96).
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preposição significa a partir de ou depois de. Dessa maneira, ab + surdus formam o vocábulo
latino absürdus (absurdo) que significa destoante, tolo ou sem sentido. Pode também ser
entendido, de acordo com Nicola Abbagnano, no Dicionário de filosofia, como “aquilo que não
encontra lugar no sistema de crenças a que se faz referência [...] ‘irracional’, isto é, contrário
ou estranho àquilo em que se pode crer racionalmente, ou ‘inconveniente’, ‘fora de lugar’”
(2007, p.7).
Foi partindo desses conceitos que o crítico e pesquisador teatral húngaro Martin Esslin
estudou vários dramaturgos europeus do período pós-Segunda Guerra Mundial que possuíam
características estilísticas semelhantes. Assim, ele criou a expressão Teatro do absurdo – que
dá título a seu livro homônimo publicado em 1961 na Europa e em 1968 no Brasil – para
designar uma série de autores de nacionalidades distintas que não se encaixavam em um
movimento propriamente dito nem formavam um, mas que, coincidentemente, após as ruínas
abstratas, metafísicas e sentimentais deixadas pela Segunda Grande Guerra no homem, vinham
através de suas peças questionar a falta de sentido da existência e da condição humanas e as
convenções sociais impostas pelo modelo capitalista de mundo, e iam de encontro à busca do
ser humano por seu “eu” interior, tudo isso através de narrativas antirrealistas com situações
e diálogos ilógicos e incongruentes.
Os autores estudados por Esslin (dentre eles, Beckett) foram contemporâneos do romancista
Albert Camus e dos filósofos Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger e Søren Kierkegaard, todos
eles estudiosos da existência humana e que, com seu pensamento exposto em suas obras,
passaram a raciocinar em cima dessa existência de forma crítica (no sentido de colocar em
crise), o que ficou conhecido como uma corrente filosófica chamada de Existencialismo.
A diferença é que as obras teatrais desses dramaturgos não raciocinavam logicamente,
objetivamente ou diretamente sobre as circunstâncias da existência humana e sim de maneira
subjetiva e metafórica, pois o “Teatro do Absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da condição
humana; ele apenas o apresenta tal como existe – isto é, em termos de imagens teatrais
concretas. Essa é a diferença entre a atitude do filósofo e a do poeta” (ESSLIN, 1968, p.21).
Essa apresentação desse universo próprio de um século de inúmeras guerras obscuras que
destruíram o mundo várias vezes vai ao encontro da definição de Alain Badiou no capítulo
Questões de método do livro O século, onde ele afirma que “o século é o lugar de acontecimentos
tão apocalípticos, tão apavorantes, que a única categoria com que seja apropriado pronunciar
sua unidade é a de crime” (2007, p.11).
O que se entende como absurdo no campo artístico liga-se à ideia de escritura, que
desfuncionaliza a lingüística e a linguagem e se aproxima do discurso poético. Para Roland
Barthes no capítulo O que é a escritura? de seu livro O grau zero da escritura, ela se encontra
entre a língua e o estilo, “é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária
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transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua intenção humana e ligada
assim às grandes crises da História” (1971, p.23). O autor define a escritura também como “a
moral da forma, a escolha da área social no seio da qual o escritor decide situar a Natureza de
sua linguagem” (1971, p.24).
De acordo com Leyla Perrone-Moisés no capítulo Crítica e escritura de seu livro Texto, crítica,
escritura, a escritura liga-se ao ato de expressão e à ambigüidade, uma vez que ela afirma
e interroga simultaneamente, mas não é um método de comunicação, diferenciando-se da
fala, que é um instrumento da lingüística. Perrone-Moisés (2005) afirma que Barthes no
capítulo Écrivains et écrivants de seu livro Essais critiques faz a “distinção entre escritores
que escrevem algo (écrivants), e escritores que escrevem, ponto final (écrivains); entre uma
escritura transitiva, portadora de mensagem (écrivance), e uma escritura intransitiva, produtora
de sentidos (écriture)” (2005, p.32). A autora traduziu esses termos como, respectivamente,
escreventes, escritores, escrevência e escritura. Os escritores que fazem escritura optam pela
linguagem poética e voltada para os significantes, raciocinando criticamente de forma indireta
sobre o mundo e confrontando a sociedade.
A poesia, esse vocábulo de difícil definição, é conceituada por Percy Shelley (1792-1822)
em Defense of poetry, citado por Geraldo Holanda Cavalcanti no capítulo Poesia, do livro A
herança de Apolo: Poesia poeta poema, como “the expression of the Imagination” (SHELLEY
apud CAVALCANTI, 2012, p.21). Essa “expressão da Imaginação”, em tradução à descrição
de Shelley, é uma definição por demais aberta, porém, por sua generalidade, pode se partir
para conceituações mais específicas. Para Charles Baudelaire (1821-1867), citado por Michael
Hamburger no capítulo Utopia pueril e imagem brutal do livro A verdade da poesia: tensões
na poesia modernista desde Baudelaire, “a poesia não pode, sob pena de morrer ou decair,
integrar-se à ciência nem à moral; a poesia não tem a Verdade por objetivo, seu fim é ela
mesma” (BAUDELAIRE, 1923, p.97 apud HAMBURGER, 2007, p.15). Sobre a fala de Baudelaire –
que se apresenta à frente de seu tempo –, pode-se afirmar que a poesia repudia o cientificismo
ou o historicismo, uma vez que, segundo Badiou, em análise do poema O século, do russo
Óssip Mandelstan, no capítulo A besta, “trata-se de romper com os modelos mecânicos, ou
termodinâmicos, que o cientificismo do século XIX propõe” (2007, p.30). A poesia, assim, ligase ao conceito de escritura de Barthes e é uma expressão da fragilidade e da tragicidade da
existência humana.
Cavalcanti, citando Roman Jakobson (1896-1982), discute que a poesia na visão do poeta existe
exteriormente a si mesma, que ela não se encontra nas coisas, pois a poesia é elas próprias,
é aquilo “que nos protege da automatização, contra o enferrujamento que ameaça nossa
fórmula do amor e do ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da negação” (JAKOBSON,
1977, p.47 apud CAVALCANTI, 2012, p.37).
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Dentro de uma análise análoga sobre a poesia, Badiou diz que “o poeta é o protetor, na língua,
de uma abertura esquecida; é, como diz Heidegger, o ‘guardião do Aberto’” (2007, p.40).
Por isso, essa capacidade do poeta de enxergar de forma lírica esses elementos citados por
Jakobson, isso através de seus significantes, o distingue dos outros seres humanos. A isso pode
se somar a definição de Marcos Siscar no capítulo O discurso da crise e a democracia por vir
do livro Poesia e crise: Ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade, segundo
o qual a poesia é o ato de colocar o mundo em crise, confrontá-lo em seu âmago, criticar o
discurso e as convenções dominantes, pois
o discurso da crise é um dos traços fundadores do discurso da modernidade,
que atesta um modo particular de relação com o presente, por parte da
literatura, no qual a estética (e até mesmo o “esteticismo”) é entendida como
elemento, por assim dizer, de “resistência” (SISCAR, 2010, p.21).
Esses traços da poesia estão impressos nos textos de vários dramaturgos do Teatro do absurdo,
que podem ser vistos como escritura e não como escrevência, uma vez que eles se valem
de recursos narrativos que colocam em crise o mundo que constroem como substrato do
mundo real, fugindo da automatização que esse último impõe ao ser humano através dos
sistemas políticos e econômicos, da cultura e da linguagem, pois, segundo Barthes, em sua
aula inaugural da cadeira de semiologia no Colégio de França, pronunciada em 1977, “a língua,
como desempenho de toda linguagem, não é reacionária, nem progressista; ela é simplesmente
fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (2013, p.15).
Além disso, as peças do Teatro do absurdo podem também ser entendidas como uma
expressão ou manifestação do Id de seus autores. Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da
língua portuguesa 3.0, o Id seria o “sistema básico da personalidade, que possui um conteúdo
inconsciente, por um lado hereditário e inato e, por outro, recalcado e adquirido, de acordo
com a segunda teoria freudiana do aparelho psíquico” (HOUAISS, 2009). Conceito cunhado por
Sigmund Freud (1856-1939) em O mal estar na civilização, o Id relaciona-se à definição de Ego,
ou seja, a “instância do aparelho psíquico que se constitui através das experiências do indivíduo
e exerce, como princípio de realidade, função de controle sobre o seu comportamento, sendo
grande parte de seu funcionamento inconsciente” (HOUAISS, 2009), isto é, o ser humano como
se apresenta diante do mundo.
Freud afirma que
o ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado
de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora – apesar de que, pelo
contrário, o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação
nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como
id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada –, configurou uma
descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica,
que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento
do ego com o id (FREUD, 1996, p.74).
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O protagonista de Film é um homem idoso que anda pelas ruas sujas de um subúrbio (que
mais parecem um cenário de ruínas de um pós-guerra) com um pano preto cobrindo seu
rosto. Ele esbarra em pessoas, afasta-se delas e dirige-se para a solidão de seu apartamento,
onde, relutantemente, foge de tudo o que o faz lembrar-se de rostos ou que observa suas
feições, como alguns animais que vivem em sua morada e desenhos na parede, o que rende
algumas piadas pantomímicas. É como se ele não quisesse ser observado, nem por si mesmo,
uma vez que se ver no espelho ou passar pela janela causam-lhe apreensão, que é revertida
quando ele tampa o espelho ou fecha a cortina.
A respeito disso, Deleuze, no capítulo O maior filme irlandês (Film de Beckett) do livro Crítica
e clínica, afirma que
nesse sentido as coisas são mais perigosas que os seres humanos: eu não as
percebo sem que elas me percebam; toda percepção como tal é percepção
de percepção. A solução desse segundo caso consiste em expulsar os
animais, velar o espelho, cobrir os móveis, arrancar o cromo, rasgar as fotos;
é a extinção da dupla percepção (DELEUZE, 1997, p.34).
A personagem é, assim, uma referência oposta ao mito de Narciso. Enquanto Narciso
contemplava a si mesmo ainda depois de morto, o protagonista de Film, ao invés de admirar
sua própria imagem, a repele, como se buscasse isolar-se do mundo e de si mesmo, além de
apagar seu passado, o que se percebe quando rasga algumas fotografias presentes em uma
pasta que carrega com esmero, como se a mesma fosse uma maldição da qual tem de se
livrar. As fotos apresentam basicamente uma mulher com um bebê, depois a mesma mulher
com um menino de colo, em seguida, um homem dando de comer a um cão, logo após, dois
homens apertando-se as mãos, um homem e uma mulher de mãos dadas, um homem com
uma menina no colo e, por último, um homem de casaca grande, chapéu e tapa olho. Esse
último é o Keaton de agora, o protagonista.
Mesmo rasgando as fotos com certa raiva, ele passa as mãos com carinho em uma delas, ou
seja, quer apagar suas lembranças ainda que elas signifiquem algo para ele. Ao final, o homem
encontra-se com si mesmo e torna-se um duplo. Ele está sentado em uma cadeira de balanço,
fecha seus olhos, os abre, vê os olhos marejados de seu duplo, os fecha novamente e para
de balançar como se houvesse falecido, mas não há uma surpresa nisso, pois a personagem
havia até então examinado sua pulsação sanguínea inúmeras vezes, como se soubesse que seu
tempo de vida estava terminando. Há um corte para o plano de detalhe inicial do olho, o que
sugere um ciclo cumprido.
Esse encontro com o duplo causa estranhamento no espectador também pelo fato de Keaton
mostrar-se contido, caso se tenha em mente suas atuações exageradas da época do cinema
mudo. O comedimento é, em si, impressionista, delicado, voltado para o interior de sua alma,
de sua psique, uma repressão de seus sentimentos, subjetivados em seu olhar, tudo isso
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causado, principalmente, pela decupagem de planos variados pautada em uma alternância de
poucos planos abertos com vários enquadramentos fechados que enclausuram o protagonista.
O rebuscamento, ao contrário, está no cenário do apartamento, lotado de objetos de cena, e
não nas atuações.
No momento em que o homem e o duplo se veem frente a frente, os planos lembram pinturas
emolduradas, nesse caso, pelo enquadramento cinematográfico, inclusive, com um ponto de
fuga (os olhos), o que, aliás, não se mostra como momento único, pois, em vários outros instantes,
Beckett trabalha com pontos de fuga, quer seja o desenho na parede que a personagem rasga
ou parte da cadeira de balanço, ou mesmo os buracos na parede do apartamento etc., porém,
tudo isso de forma a criar um substrato da realidade ao colocar um ponto de vista em cima
dela, uma vez que o enquadramento cinematográfico em si é um recorte.
Como afirma Bazin no artigo Pintura e cinema, “os limites da tela não são, como vocabulário
técnico daria por vezes a entender, a moldura da imagem, mas a máscara que só pode
desmascarar uma parte da realidade” (BAZIN, 2014, p.206). Aumont, no capítulo De um quadro
a outro: A borda e a distância do livro O olho interminável (Cinema e pintura), em referência a
esse texto de Bazin citado acima, diz que
o quadro fílmico, por si só, é centrífugo: ele leva a olhar para longe do centro,
para além de suas bordas; ele pede, inelutavelmente, o fora-de-campo, a
ficcionalização do não-visto. Ao contrário, o quadro pictórico é “centrípeto”:
ele fecha a tela pintada sobre o espaço de sua própria matéria e de sua
própria composição; obriga o olhar do espectador a voltar sem parar para
o interior, a ver menos uma cena ficcional do que uma pintura, uma tela
pintada, pintura (AUMONT, 2011, p.111).
Dessa maneira, o enquadramento cinematográfico leva o olhar do espectador para além das
bordas, para o fora-de-campo, e o quadro pictórico conduz o espectador ao centro. Assim,
quando Beckett cria pontos de fuga em Film e leva o olhar do espectador ao centro da imagem,
como em uma pintura, ele aproxima o cinema dessa outra forma de arte.
Como dito, em Film há uma negação da imagem em si através de uma desconstrução indireta
do mito de Narciso. O duplo do protagonista passa uma ideia de simultaneidade, ou mesmo
de onisciência, o que, aliás, observa-se em toda a narrativa, uma vez que o espectador é
levado a assumir o ponto de vista da personagem a partir de enquadramentos subjetivos que
correspondem ao seu olhar sobre o mundo. Com isso, esse aspecto simultâneo da imagem
avoca certo caráter espectral, fantasmagórico. Nesse sentido, para Alfredo Bosi, no capítulo
Imagem, discurso do livro O ser e o tempo da poesia, uma das principais características da
imagem é o finitismo e a simultaneidade onipresente e onisciente a partir do momento em
que a imagem “advém de ser um simulacro da Natureza dada” (1977, p.17).
O olho em Film funciona, assim, como metonímia. O Dicionário eletrônico Houaiss da língua
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portuguesa 3.0 define metonímia como uma figura de linguagem utilizada para substituir
uma palavra por outra equivalente em sentido alegórico4 de geral para específico através de
relação de proximidade e “no uso de uma palavra fora do seu contexto semântico normal,
por ter uma significação que tenha relação objetiva, de contiguidade, material ou conceitual,
com o conteúdo ou o referente ocasionalmente pensado” (HOUAISS, 2009). Nesse sentido,
o olho é tanto uma metonímia para a imagem quanto para o ato de abrir e fechar cortinas
no teatro, ambos podendo ser vistos como metáforas para o nascimento e para a morte,
respectivamente.
O título da produção (Film, ou filme em inglês) é também uma metonímia para cinema,
porém, usada de maneira irônica, tendo-se em vista que em inglês costuma se denominar um
filme como movie – vocábulo que transpõe de forma mais completa o aspecto do movimento
presente na imagem cinematográfica –, sendo que essa é uma denominação utilizada de
forma mais comercial, dando um aspecto de produto para o cinema. Para além do caráter
metonímico, o título do curta-metragem é dúbio, pois guarda também em seu significante a
questão da negação discutida até aqui.
O fato de os créditos iniciais e finais (que são mostrados dentro do olho) conterem a rubrica
“Film by Samuel Beckett” – ou “Um filme de Samuel Beckett” em tradução para o português,
ou seja, uma produção sem nome –, contraria e contesta nas entrelinhas as imposições e
regras da indústria do entretenimento. Beckett está ali subjetivamente questionando o porquê
de ter de conferir um título a uma obra de arte, se isso não se trata de um claro comercialismo,
uma vez que, ao dar um nome, em certo sentido, leva para dentro da obra um significado
demarcado pelo autor para identificar do que ela se trata. Se Beckett foge da identificação, por
que dar um nome a seu curta-metragem?
Ademais isso, a imagem em si guarda um aspecto subjetivo ligado à psicanálise, pois de acordo
com Bosi, ela é uma purgação do Id, uma vez que ela “resulta de um complicado processo
de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância” (1977, p.15). Nesse
aspecto, quando o protagonista oculta seu rosto por trás de um pano preto, esconde-se dos
outros e dos animais para que esses não o vejam, veda seu espelho, rasga fotografias (que
supostamente são de seu passado) e fecha os olhos quando vê seu duplo, ele está negando sua
imagem, mas ironicamente ele leva seu Id para fora – ou seja, seu desejo reprimido de isolarse e renegar sua própria imagem – para paradoxalmente destruir-se e cometer um suicídio
alegórico, entregando-se à transparência ou à invisibilidade.
Para tanto, a montagem de Film foge dos aspectos clássicos e busca mostrar-se para o
espectador através de cortes, planos e movimentos de câmera pouco usuais e completamente
4 A alegoria é o “modo de expressão ou interpretação que consiste em representar pensamentos, ideias, qualidades sob
forma figurada” (HOUAISS, 2009).
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perceptíveis (que sempre enquadram o protagonista de costas5), mas a personagem procura a
invisibilidade e a negação de sua imagem, o que faz o curta-metragem tornar-se paradoxal por
si só quando se tem consciência de que o cinema é a arte da imagem em movimento.
Em termos pessoais, a personagem principal funciona como uma espécie de prestação de
contas com o passado de Keaton e de tantos outros atores e atrizes que, por vários motivos
que aqui não cabem ser discutidos, não conseguiram mais trabalho após o fim da era muda
no cinema, o que exemplifica a crueldade da indústria do entretenimento que substitui as
“peças defeituosas” como as de um produto montado em série em uma fábrica. Com tudo isso,
Beckett, um voraz crítico dos males do capitalismo, nega o aspecto comercialista da imagem,
que se torna vendável pela indústria.
Beckett constrói essa crítica levando para dentro da narrativa as características do Teatro do
absurdo apontadas anteriormente (referentes à escritura e à poesia), a partir do momento
em que transforma seu curta-metragem em uma grande reflexão sobre o mundo através
do “eu”, simbolicamente representado pelo protagonista solitário e isolado do universo, um
“herói” (ou anti-herói) moderno e baudelairiano, um renegado, um pária, como o definido por
Walter Benjamin no capítulo Paris do Segundo Império do livro Charles Baudelaire: Um lírico
no auge do capitalismo, onde ele diz que esse modelo de herói é contrário ao do romantismo,
pois transforma “a paixão e poder decisório; já o romantismo glorifica a renúncia e a entrega.
Contudo, o novo modo de ver é incomparavelmente mais reticulado, incomparavelmente
mais rico em restrições, no poeta lírico que no romancista” (1989, p.73). Esse é um “herói”
típico dos de Beckett, vistos, por exemplo, em suas principais obras, como a peça Esperando
Godot e o romance Murphy, que carregam grande influência de Baudelaire na construção de
personagens marginalizadas da sociedade capitalista.
Assim, o protagonista de Film funciona, minimalistamente, como uma instância do Ego
humano. O duplo do homem pode ser visto como seu Superego, compreendido por Freud,
segundo Abbagnano, como “aquilo a que geralmente se dá o nome de consciência moral
e que é o conjunto das proibições instiladas ao homem em seus primeiros anos de vida,
acompanhando-o depois, mesmo que de forma inconsciente” (2007, p.807). Dessa maneira,
o duplo é uma extensão dessas forças e das inibições guardadas pelo homem em seu Id, isto
é, sua imagem, representada pelas fotografias (ou lembranças), por seu reflexo no espelho e
pelo olhar dos outros sobre ele mesmo, afinal, são os meios exteriores ao ser humano que
edificam sua imagem. Pode-se atribuir a isso a aparição misteriosa e conveniente do duplo,
que surge para o homem para lhe assombrar e de alguma forma lembrar-lhe que não pode
apagar sua imagem, uma vez que a negação dela em direção à transparência, à invisibilidade,
representa a morte, o que de fato ocorre.
5 Deleuze afirma que “enquanto a percepção (câmara) mantém-se atrás da personagem, ela não é perigosa, pois permanece
inconsciente. Ela só apreende o personagem quando forma um ângulo que a atinge obliquamente e lhe dá a consciência de
ser percebido” (1997, p.33).
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Essas instâncias da poesia e da escritura são organizadas por Beckett em sua narrativa, ao
conceber um mundo ao mesmo tempo diferente e próximo do mundo real. Se as ruas e o
apartamento se parecem com o mundo tal como ele é e as demais personagens comportamse dentro das convenções sociais, o estranho ali é Keaton. Afinal, para a sociedade, o artista
(como Keaton e Beckett o eram) é sempre o estranho. Entretanto, Beckett não leva para Film
um dos principais aspectos do Teatro do absurdo: a incongruência e a falta de lógica dos
diálogos. O curta-metragem é mudo, não por falta de recursos técnicos de captação de som,
tal como ocorria até a invenção do vitaphone, e sim por escolha metafórica, uma vez que as
dores do protagonista não podem ser expressas através de sons, uma alegoria para o fato de o
capitalismo exigir do homem apenas o trabalho e suas conseqüências e negar a reflexão sobre
si mesmo, que leva à dor e à purgação.
Bosi, no capítulo O som no signo, ao discutir a teoria lingüística de Ferdinand de Saussure (18571913), afirma que tanto o pensamento quanto o som são incutidos ao ser humano como signos,
aparecendo para ele em sociedade, são imposições arbitrárias, tal como a linguagem, que
Barthes discute em citação exposta anteriormente, pois “o som em si e o pensamento em si
transcendem a língua. [...] O signo, enquanto junção de certos pensamentos a certos sons, é um
fenômeno histórico e social” (1977, p.39). Assim, Beckett trabalha com a falta de som, como se
esse nunca tivesse feito parte da existência humana, pois, dentro de uma tradição moderna, “os
sons e as formas eram [...] material cuja destinação se deve reformular” (BADIOU, 2007, p.21).
Quando Beckett apresenta o mundo em Film tal como ele é, com imagens concretas ao invés
de refletir filosoficamente sobre ele, essas ditas imagens concretas apresentam-se no realismo
seco (que lembra sua peça Esperando Godot), presente em uma visão dura, desencantada e
melancólica da sociedade. A negação da imagem indiretamente imposta pelo protagonista
sobre si mesmo é uma forma de anular-se como ser humano, pois, com a morte, o que sobra do
homem são as imagens que o identificam, quer sejam estáticas (fotografias) ou em movimento
(cinema ou vídeo), desenhos e/ou pinturas. Porém, tais imagens não são o indivíduo, e sim
uma representação dele próprio.
Assim, a trajetória do ser humano sobre a Terra consiste em nascer, viver e morrer. A morte é a
anulação da imagem concreta em direção à representação dela mesma, ou à imagem abstrata. A
vida, como bem discute Badiou, ao metaforizá-la dentro da problemática do século, é sofrimento
ininterrupto, que vai do nascimento à morte. Alegoricamente, a personagem principal de Film
cumpre tal trajetória trágica. Se ela não emite sons e não quer ver a sua própria imagem é porque
sabe que ambos são símbolos da angústia cíclica da vida que, muitas vezes, demonstra-se como
uma aporia6 sem fim que leva à tragicidade da vida humana e a seu vazio. Por isso, a morte é
buscada pelo protagonista de Film, pois essa seria a única forma de aliviar seu sofrimento.
6 Abbagnano afirma que o termo aporia “é usado no sentido de dúvida racional, isto é, de dificuldade inerente a um raciocínio, e não no de estado subjetivo de incerteza. É, portanto, a dúvida objetiva, a dificuldade efetiva de um raciocínio ou da
conclusão a que leva um raciocínio” (2007, p.75).
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ARTES
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A construção do real e o cinema verdade de Jean Rouch
Amanda Barros1
Resumo
Este artigo discutirá perspectivas sobre a construção do que seja real ou imaginário na obra
cinematográfica de Jean Rouch, tomando como objeto seu filme Moi, um noir (1958). Serão
tecidas elucidações a partir das fronteiras e imbricações do Cinema Verdade, tendo como
norte sua condição de filme documentário.
Palavras chave: Cinema Verdade; real; ficção.
Abstract
This article will discuss perspectives on drafting what is real or imaginary in Jean Rouch’s film
work, having the movie Moi, un noir (1958) as the central object. It will discuss the borders and
overlaps of cinema veritè, taking his status as a documentary film as guide.
Keywords: Cinema verite; real; fiction.
1 Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela PUC Minas (2009); especialista em Comunicação Social: Imagens e
Culturas Midiáticas (lato sensu) pela UFMG (2010). [email protected].
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INTRODUÇÃO
Jean Rouch sabia explorar conjuntamente o lugar do sujeito em uma dada sociedade, o lugar do
real e das encenações possíveis que este abarca, com a condição da subjetividade e alteridade
que o sujeito/personagem admite e repassa por meio da encenação. Acima de tudo, sua obra
convida, fortemente, a pensar o real de uma maneira diferente, o real criado no e pelo filme.
Suas obras desafiam as convenções e os limites que dividem a produção cinematográfica em
dois grandes gêneros: o ficcional e o documentário.
Pensar em filmes como Jaguar, Petit à petit e Eu, um negro, dentro de uma construção documental
requer reflexões tanto sobre o momento da produção quanto o da recepção. São todos filmes
encenados e montados como os filmes de ficção. Mas quem os encena, de que maneira, em
quais condições, com a presença ou ausência de um roteiro, e talvez o mais importante, sobre o
que estão falando, se tornam perguntas cruciais para a análise dessas obras.
Este artigo faz a análise do filme Eu, um negro, por julgar que esta obra ressalta e é produto de
um modo expressivo desenvolvido e experimentado por Jean Rouch, o Cinema Verdade, aqui
tomado como uma prática de criação de filmes documentários, que parte do princípio de que o
real se constrói de forma circunstancial e relacional. A obra é um dos mais célebres e significativos
exemplos da revolução empreendida por Rouch, dentro da linguagem do documentário e,
mais amplamente, do cinema. Foi produzida não somente pelo cineasta francês, mas também
por seus protagonistas, em uma troca entre pesquisador e pesquisado. Através da filmagem
e montagem de Eu, um negro, Rouch estende sua autoria e compartilha a voz onisciente de
narrador em off com a voz adicionada posteriormente pelos seus personagens.
Na posição de pesquisador, Rouch torna problemático o limite que o separa do pesquisado.
Ao realizar etnografias sobre rituais de tribos africanas, a formação das sociedades recém
descolonizadas e as migrações entre cidades e países da África, ele propõe que se passe para
o outro lado das aparências, a fim de enxergar não somente o Outro através do comum olhar
etnocêntrico, mas a se colocar e experienciar, de maneira mediada, a situação proposta por
seus personagens. Tudo a partir de uma percepção que julga o diferente como uma adição e
não uma restrição, o sujeito não como objeto de estudo, mas como, ele também, sujeito.
O pesquisador e o pesquisado são englobados numa situação que lhes escapa à
medida que eles a definem. (...). É um convite a prosseguir o questionamento, a
procurar para além do campo oferecido e da representação proposta, uma sugestão
constantemente renovada para explorar e experimentar a diferença, para trocar –
senão mudar – os pontos de vista e, por conseguinte, alterar e, sobretudo, descentrar
a análise (GONÇALVES, 2008, p. 18).
A câmera participativa de Rouch era então instrumento a partir de um gesto inventivo e não
meramente de captura, mas de compreensão da realidade. O cineasta aportou no Níger em
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1940 para ser engenheiro da administração colonial, mas logo admitiu uma nova função: a
de etnólogo, sempre mantendo contato próximo dos hábitos culturais e sociais dos locais em
que estava. Em sua obra, aparece a distinção entre os filmes que são feitos sobre a África,
nos quais a participação dos nativos é apenas parte constituinte do ambiente, e os filmes que
são realizados “na África”, em que a participação dos africanos é ativa e consciente. Rouch foi
capaz de dividir a palavra com os atores das histórias filmadas, que não necessariamente eram
histórias dos atores do filme (BAMBA, 2009).
A definição do conceito de documentário toma aqui sua dimensão demasiado ampla, pois
abarca tanto concepções e objetos distintos quanto diferenciados modos de se produzir.
(...) um documentário organizado como Ele fala deles para nós tem qualidades
e afetos muito diferentes de outro, organizado como Nós falamos sobre
nós para eles. No entanto, essas diferenças são apenas o começo. Como
veremos, existem várias distinções entre um documentário e outro, embora,
apesar delas, continuemos a pensar em todo um conjunto de filmes como
documentários (NICHOLS, 2005, p. 48).
Se a definição de documentário estivesse condicionada à visão do senso comum de que filmes
de ficção são construídos através da fábula e filmes documentários são registros da realidade,
o caminho a se percorrer estaria atrelado ao reducionismo e muitos embates no campo da
discussão sobre o tema seriam solucionados. O documentário não corresponde à reprodução
da realidade, pois assim seria apenas um registro, uma cópia. A produção documental implica
na constituição de representações do mundo e completa seu sentido de acordo com aquele
que a assiste. Como resultado de reprodução, o documentário seria algo como a filmagem de
um evento esportivo, o registro de um casamento. Ele vai além, por não ser a representação
do mundo ou o registro do real, mas sim uma determinada visão do mundo, a qual talvez
nunca se tenha percebido antes, ainda que verse sobre algo familiar (NICHOLS, 2005).
(...) entendemos e reconhecemos que um documentário é um tratamento
criativo da realidade, não uma transcrição fiel dela. Transcrições ou registros
documentais estritos têm seu valor, como nos vídeos de sistemas de
segurança ou na documentação de um acontecimento ou situação específica,
como no lançamento de um foguete, o progresso de uma sessão terapêutica
ou a apresentação de uma peça ou de um evento esportivo em particular.
Entretanto, costumamos ver tais registros estritamente como documentos
ou “simples filmagem”, não como documentários. Os documentários reúnem
provas e, em seguida, utilizam-nas para construir sua própria perspectiva ou
argumento sobre o mundo, sua própria resposta poética ou retórica para o
mundo (NICHOLS, 2005, p. 68).
O documentário não é simples registro pelo mesmo motivo que não é espelho do real. A
expressão de John Grierson que define o documentário: “o tratamento criativo da realidade”,
desconstrói a ideia de pretensão do real, de verossimilhança e de verdade à qual o documentário
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costuma ser submetido. O tratamento criativo implica justamente no modo de produção,
que recorre a estratégias distintas, seja para cobrir uma deficiência técnica ou para atender
aos requisitos de determinada linguagem cinematográfica, o que nem sempre evidencia ao
espectador a construção da realidade à qual ele assiste.
A narrativa com imagens-câmera estabelece asserções sobre o mundo e é preparada objetivando
sua conclusão apenas no momento em que é assistida. A produção de sentido é realizada no
mesmo momento em que é estabelecida para tantos outros produtos midiáticos, durante a
recepção e considerando o contexto cultural do espectador. Além de que, a produção, mesmo
de documentários, não é desinteressada. Ainda que as tecnologias utilizadas no momento da
filmagem e o estilo do cineasta levem a crer em uma correspondência direta entre o filmado e
a realidade, sempre há efeitos que são utilizados para garantir a autenticidade do que é visto.
A impressão de verdade é sempre fabricada e construída, com o uso de determinada lente, o
tipo de película, a cor, alta resolução, a montagem e as sequências das cenas, enfim, todo um
aparato que se conclui mesmo no momento da recepção, pela forma como será apreendido
pelo espectador (NICHOLS, 2005).
No entanto, ainda que o documentário guarde certa correspondência com o real, este aparece
de maneira completamente diversa daquela que acontece no filme de ficção. Ele não pode se
desprender por inteiro do referente, o que deixa claro seu empirismo e suas limitações quanto
ao fato de prescindir desse objeto real. O documentário é pensado a partir do momento que
é compartilhado entre aquele que filma e o que ou quem é filmado. Convoca o espectador
a pensar a partir de um lugar e tempo deslocados pelo “devir”, retirando o sujeito de toda
identidade substancial possível para levá-lo a um estado de contemplação da experiência.
(GUIMARÃES; CAIXETA, 2008).
O cinema, na sua versão documentária, traz de volta o real como aquilo que,
filmado, não é totalmente filmável, excesso ou falta, transbordamento ou
limite – lacunas ou contorno que logo nos são dados para que os sintamos, os
experimentemos, os pensemos (COMOLLI citado por GUIMARÃES; CAIXETA,
2008, p. 44).
Da mesma forma que o documentário não se iguala aos relatos objetivos jornalísticos, também
não pode ser equiparado às narrativas ficcionais. Ele solicita a invenção, mas a realiza sob uma
perspectiva distinta da que envolve os discursos da ficção. Se o documentário se constrói a partir
de um mundo já dado e deste não pode se desvencilhar, ele, porém, atua no campo das invenções
que estão ligadas à experiência estética e aos afetos, e tanto menos às concretizações de planos
e roteiros. Sua peculiaridade não está na forma e na estrutura narrativa, pois aqui não se difere
da ficção, ela está no lugar e no espaço que são reservados aos sujeitos filmados, está na miseen-scène destes e na do próprio cineasta. (GUIMARÃES; CAIXETA, 2008). O documentário “coloca
para o espectador um compromisso com o mundo visto, imaginado, colocado em cena pelas
pessoas filmadas” (GUIMARÃES; CAIXETA, 2008, p. 47).
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Para além da definição sobre o que é ou não documentário, torna-se então mais relevante
a análise sobre os diversos modos de expressão, práticas, ressaltando os casos que
trouxeram inovações para esse domínio tão contraditório, ampliando seus limites. Este é
o caso de Jean Rouch.
O CINEMA VERDADE E A ANTROPOLOGIA COMPARTILHADA DE ROUCH
O desenvolvimento de equipamentos leves e sincrônicos, na década de 1950, almejados
pelo telejornalismo norte-americano e por acadêmicos da sociologia e etnologia, na França,
estimularam o desenvolvimento de métodos de trabalho baseados na improvisação e na
espontaneidade. Nos Estados Unidos e no Canadá, aparecia o Cinema Direto de Robert Drew, de
Leacock, dos irmãos Mayles, de Pierre Perrault e Michel Brault, enquanto que na França iniciavase o Cinema Verdade de Jean Rouch e Edgar Morin. As câmeras leves podiam ser manuseadas
fora de seu suporte, sem o uso do tripé, as películas eram mais sensíveis a condições de luz
baixa e os acessórios de som permitiam a captação direta. As equipes podiam ser reduzidas e ao
cineasta era permitido entrar com a câmera em situações antes impossíveis.
Mas as similitudes entre as duas escolas, uma americana/canadense e a outra francesa, se
interrompem por aqui. Se a técnica era a mesma, a metodologia, no entanto, era distinta e
as concepções e conceituações também não eram análogas. Em linhas gerais, diríamos que
o Cinema Direto possuía um caráter marcadamente observacional, enquanto que o Cinema
Verdade era, em grande medida, interativo. No primeiro, a câmera era dissimulada e se
posicionava à espreita das situações a serem registradas. Não se pode deixar de considerar
certo nível de interferência do realizador no Cinema Direto, afinal, a simples presença da
câmera e da equipe de filmagem, ainda que restrita, transforma a situação a ser filmada,
uma vez que os sujeitos irão performar ante o processo de filmagem. No entanto, os
diretores dessa escola tentavam, ao máximo, se “ausentar” da cena, mimetizarem-se junto
ao ambiente, em prol da objetividade da filmagem. Assim era a prática do Cinema Direto
para Mário Ruspoli:
O cameraman, como o técnico de som, deve carregar seu aparelho com
a discrição que só o hábito do mimetismo pode trazer. Devem saber
instintivamente se dissimular na multidão, nunca fazer gestos bruscos
para chamar a atenção dos companheiros de equipe, nunca gritar, falar o
mínimo possível e nunca sobre a filmagem – em resumo, não fazer nenhum
movimento que pareça insólito. É preciso armarem-se de paciência, serem
ao mesmo tempo simpáticos e ausentes, em uma palavra, confundir-se com
as paredes (RUSPOLI citado por DA-RIN, 2006, p. 125).
Mas no segundo modelo, a intervenção ativa se faz condição essencial, e a figura do idealizador
é potencializada ao invés de ser suprimida. Este tinha o papel de provocar as situações latentes,
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a fim de que elas fossem reveladas no e pelo filme. Para o Cinema Verdade, o real podia ser
expresso por inúmeras possibilidades cinematográficas. Trata-se de um ato de imaginação que
compreendia uma reorganização cinemática da verdade (FLAHERTY citado por DA-RIN, 2006).
Enquanto os americanos do Cinema Direto rejeitavam todo o som que não fosse proveniente
da captação direta, em estrita sincronia com as imagens, a escola francesa do Cinema Verdade
introduzia a dimensão fabular através da narração acrescentada pós-filmagem. Um tratamento
criativo que guardava relação com a reivindicação de uma produção compartilhada entre
cineasta e sujeitos filmados. O Cinema Direto é diferente do Cinema Verdade, ainda que muitas
vezes sejam compreendidos como estéticas idênticas de produção cinematográfica.
A função da câmera no Cinema Verdade passa de simples registro para agente provocador e
deflagrador de situações que não aconteceriam não fosse a sua presença, ou pelo menos, não
aconteceriam da forma como se deram frente a ela. Para Rouch, aproximar-se da ficção era
tratá-la como se fosse realidade, era partilhar os sonhos das pessoas como uma maneira de
fazer filmes, era o que ele entendia por Cinema Verdade. Nesse sentido, Eu, um negro seria um
documentário de ficção, pois fora realizada uma pesquisa profunda sobre os modos de vida
dos imigrantes de Abidjan e os protagonistas que encenavam sua própria vida para o filme
revestiam seus sonhos de certa realidade.
A construção do Cinema Verdade se resumia a uma estética próxima da realidade – atravessada
por ela -, mas não se configurava como a tentativa de transcrição desta: a realidade, no filme,
era o resultado da intervenção/provocação de Rouch, em parceria com os personagens. As
obras não resultavam no registro de uma realidade dada e sim, propriamente, da “verdade
fílmica” (GONÇALVES, 2008).
O kino-pravda, tradução conceitual do Cinema Verdade que se apresentou na forma de
manifesto com Dziga Vertov, apontava para essa realidade que apenas se constituía enquanto
obra cinematográfica. Rouch vê nessa característica a condição essencial para se ter acesso à
realidade, mas não a realidade objetiva, e sim aquela que é construída pela câmera e compreende
a complexidade do que se possa entender como real. A prática etnográfica estabelecida em
seus filmes promovia uma reflexão sobre as possibilidades de produção de sentidos por meio da
relação entre objetividade e subjetividade e entre real e ficção. Deleuze, citado por Gonçalves
(2008), sintetiza o Cinema Verdade a partir de Rouch da seguinte forma:
O que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem,
real ou fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir
da personagem real quando ela própria se põe a ‘ficcionar’, quando entra
‘em flagrante delito de criar lendas’, e assim contribui para a invenção de
seu povo... Então o cinema pode se chamar cinema-verdade para se tornar
criador, produtor de verdade: não será um cinema da verdade, mas a verdade
do cinema... É isso que Jean Rouch entendia ao falar em ‘cinema-verdade’
(DELEUZE citado por GONÇALVES, 2008, p. 144).
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O permanente cine-diálogo estabelecido entre Rouch e seus etnografados apreendia o
conhecimento sobre a cultura do outro não como um conhecimento roubado e que posteriormente
seria foco das análises e dos estudos em terras ocidentais. Sua relação com os sujeitos filmados
resultava um método de pesquisa que consistia em partilhar com as pessoas que deixam de ser
apenas objeto de estudo para passar a serem sujeitos (GONÇALVES, 2008).
A antropologia compartilhada de Rouch também foge de um olhar algo romântico, através do
qual não se produzem tensões e diferentes percepções sobre o que está sendo realizado. A
realidade fílmica era o objeto principal e esta nem sempre coincidia de forma idêntica com a
realidade da sociedade a qual era estudada. Rouch também enfrentou resistência, mas colocava
o trabalho cinematográfico acima de uma concepção etnográfica. A verdade da etnografia,
a transcrição da fala do outro a partir de si próprio e sobre seu mundo, pode resultar na
credibilidade da etnografia. Mas para Rouch, a ficção e a fabulação não se configuravam como
planos opostos ao da realidade.
Para mim, como etnógrafo e cineasta, não existe quase barreira entre filme
documentário e filme de ficção. O cinema, a arte do duplo, é sempre a
transição do mundo real para o mundo imaginário, e etnografia, a ciência
dos sistemas de pensamento dos outros, é um permanente cruzar de um
universo conceitual para outro; ginástica acrobática, em que perder o pé é o
mínimo dos riscos (ROUCH citado por GONÇALVES, 2008, p. 129).
Adotando tal modo de produção, Rouch abandona a condição básica da tradição do documentário
clássico para utilizar outras ferramentas, as quais, ao invés de espelhar e refletir a natureza e a
sociedade, quer mais transformá-las. O cinema interativo de Rouch, ao provocar as situações
a serem filmadas, cria representações espontâneas, na medida em que essas representações
são dimensões de si mesmas e reúnem aspectos do real e do imaginário simultaneamente (DARIN, 2006). A história apresentada em Eu, um negro, assim como em outros filmes da mesma
vertente de Rouch, era, ao mesmo tempo, inventada, vivida e filmada. Tratava-se de uma pura
ficção, termo paradoxal cunhado por ele, segundo o qual as pessoas encarnam seus próprios
papeis. “Entrava-se em um domínio que não era a realidade, mas a provocação da realidade, que
revelava essa realidade” (ROUCH citado por DA-RIN, 2006, p. 160-161).
EU, UM NEGRO, CONSTRUÇÃO FICCIONAL DA REALIDADE
O interesse de Rouch pela ficção como instrumento de compreensão da realidade inicia-se
concomitantemente à sua solidariedade em compartilhar a criação e realização de seus filmes,
como foi visto. Jaguar, apesar de ter sido concluído apenas em 1967, marca essa transição,
pois começou a ser rodado em 1954. A história de três jovens que migram para a Costa do
Ouro (atual Gana), traz uma relação inédita de alteridade, em que os sujeitos filmados vão
construindo o enredo no momento mesmo da gravação.
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Antes, porém, desse que é considerado seu primeiro longa metragem, Rouch lançou Eu, um
negro, em 1958, contando as histórias, aventuras e sonhos de personagens criados pelos
próprios protagonistas. Oumarou Ganda, o Edward G. Robinson e Petit Touré como Eddie
Constantine, dão vida a personagens que comportam lados ambíguos. Se Robinson e Eddie
Constantine, ambos inspirados em personagens e atores de filmes norte-americanos, são
fictícios por serem representados por Oumarou Ganda e Petit Touré, eles também são reais
na medida em que são a fabulação desses dois sujeitos. Assim, logo nas tomadas iniciais,
Rouch expõe suas intenções e explicita para o espectador a poética de que se utiliza para
dar vida aos personagens que começa a apresentar: “Propus fazermos um filme em que eles
representariam a si mesmos, em que eles teriam direito a fazer tudo, a dizer tudo. Foi assim
que improvisamos este filme”.
É importante ressaltar que em nenhum momento há a pretensão de “enganar” quem assiste
ao filme. A condição de personagens é afirmada por Rouch logo nas primeiras cenas: “Todo
dia, jovens parecidos com os personagens deste filme chegam às cidades da África”. Tal ação
denuncia o caráter documental da obra, que ainda nessa parte guarda relações estreitas
com a documentação clássica. Uma voz em off, carregada de didatismo e credibilidade narra
o que se passa a partir de uma posição privilegiada e exclusiva. Mas essa voz onisciente
busca justamente evidenciar a condição de ficção que o filme carrega. Apenas a primeira
ambiguidade apresentada por Rouch, que tanto se vale de aspectos contraditórios para a
construção do real, um jogo que, ainda que apresente determinada denotação, instiga o
pensamento relativizado.
Mas a condição de narrador à parte não dura para além dos primeiros quadros que querem
situar o espectador. Os primeiros registros mostram os jovens migrantes que vão até Abidjan
em busca de melhores condições de vida, mostram a cidade em si, com planos abertos e ao
som de uma trilha sonora que enaltece as características locais. “Bord de lagune / Remplie de
parfums / Miliers de rosiers / L’amour vous bercez / Abidjan / Quand on dit ton nom / Abidjan de
lagune, beau séjour!”2. Porém, logo Rouch passa a palavra para aquele que é seu personagem
principal, Robinson3, e que desta vez apresentará a cidade e os hábitos nela praticados de uma
maneira diferente.
Para Paulin Soumanou Vieyra, não há dúvida quanto ao caráter enganoso da confusão
que Rouch estabelece entre o olhar sobre os homens e o olhar desses homens, pois
isso cria uma “grande ilusão cinematográfica”. Mas, com essa mentira-verdade,
é como se Rouch tentasse inventar a figura do cineasta africano antes mesmo do
advento do cinema africano (BAMBA, 2009, p. 103).
2 Tradução livre: “À borda da lagoa / Cheia de perfumes / Milhares de rosas / O amor irá embalá-lo / Abidjan / Quando dizemos seu nome / Abidjan da lagoa, que belo lugar!”
3 Oumarou Ganda, o Edward G. Robinson, se tornou grande amigo de Jean Rouch e o acompanhava em suas viagens e produções pela África, inclusive em sua derradeira visita ao Níger, quando o cineasta veio a falecer em um acidente de carro, em
fevereiro de 2004.
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Robinson mostrará mais especificamente um bairro de Abidjan: Treichville, apresentando as
pessoas que, assim como ele, nele trabalham. Emigrante da Nigéria, Robinson se mostrou um
personagem peculiar. Sua relação com a câmera tomou destaque e por isso veio a se tornar
o personagem principal. É ele quem apresenta outros personagens que completam a trama
como Tarzan, o motorista de táxi com o qual vai à praia nos sábados, Petit Jules, o cobrador de
passagens, Elite, carregador como Robinson e Eddie Constantine. Este, ganha destaque e toma
a fala durante um episódio do filme. Há também Dorothy Lamour, uma prostituta, que mais
tarde se tornou personagem de outro filme de Rouch, Petit à petit (1971).
O filme segue uma sequência cronológica, foi filmado com uma câmera Bell & Howell 16mm,
que não permitia que os planos durassem mais que 25 segundos, além de que a captação
do som não era direta, este era introduzido em uma pós-produção. As ações transcorrem
divididas em blocos, separados pela recorrente intromissão de Rouch, que ao final de cada
bloco, introduz o próximo e assim se faz presente sobre a obra filmada. “A narração de Rouch
é deliberada, não pode ser considerada argumento de autoridade ou a ‘voz do dono’ (...)”
(GONÇALVES, 2008, p. 196).
Inicialmente o filme mostra A Semana, na qual Robinson apresenta Treichville, suas rotinas,
seus aspectos físicos e os hábitos sociais que ali transcorrem. Os tipos de trabalho, o comércio
local, os modos de consumo, a realidade social de cada personagem. Nessa parte é interessante
ressaltar que ainda que esteja desenvolvendo uma ficção, Robinson evidencia aspectos
cruciais para se compreender os hábitos culturais de um povo e de determinadas classes,
principalmente a dos migrantes dentro da própria África. Aqui, a representação da realidade
tem de ser confrontada à realidade da representação (NICHOLS, 2005).
O segundo bloco, O Sábado, acompanha os momentos de lazer, quando os personagens vão
descansar da semana de trabalho. Nesse momento, eles parecem ainda mais livres para criar,
pois o imaginário ganha força nas reflexões de Robinson. Se na primeira parte tudo era ruim, a
vida era dura, agora aparecia a oportunidade de passar momentos de felicidade. A linguagem
do Cinema Verdade permite que o desejo aflore sem o controle da razão e do trabalho. As
brincadeiras na praia logo dão lugar ao sonho de Robinson: ser um boxeador profissional.
Ele treina, ele boxeia em uma luta profissional, mas em seguida, denuncia sua condição de
não boxeador. À noite, no bar, seu status também não se modifica: a falta de dinheiro para
conseguir “conquistar” as mulheres é sempre um empecilho recorrente e que gera revolta.
As limitações impostas por sua condição de pobreza aparecem em suas ações mais cotidianas,
quer na hora do almoço durante um dia de trabalho, em que a comida comprada era a mais
barata, quer em seu momento de lazer, para o qual era necessário mais dinheiro. É latente o
tom melancólico de Robinson, sua lamentação, sempre comparando o que os outros têm, mas
que ele não consegue obter. Seja uma profissão valorizada, se tornar um boxeador profissional
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ou conseguir as mulheres que deseja. Sua encenação melodramática consegue transmitir ao
espectador as reais condições em que muitos jovens viviam naquela época, em Abidjan. Ainda
que a representação não seja propositada, planejada anteriormente por um roteiro ou temática
a seguir, as situações que aparecem no decorrer das filmagens dizem muito sobre a realidade
representada, que se consolida enquanto filme. “(...) o mundo não é tomado como modelo do
filme e, por conseguinte, o filme não se pretende espelho do mundo (DA-RIN, 2006, p. 167)”.
Esse processo de filmagem, junto da narração que é adicionada posteriormente, após a exibição
do copião do filme para os personagens que reinventam e realizam nova interpretação sobre
o filmado, configura uma “escrita automática”, termo lançado por Breton e pelos precursores
do surrealismo. As histórias representadas e desempenhadas pelos personagens no momento
da filmagem acabam muitas vezes por gerar novas cenas, relações que desencadeiam novos
acontecimentos e por isso configuram e atualizam a tensão entre documentário e ficção
(GONÇALVES, 2008).
Rouch filmava, assim, o que havia para ser filmado e “forjava” uma imagem da África
contemporânea, que fugia do enfoque estereotipado que era recorrente na época. Dava
forma ao presente modernizante africano que sofria com o colonialismo em seu auge
(GONÇALVES, 2008).
Uma tal realidade não poderia estar latente nas esquinas de Abidjan à
espera de que uma câmera as revelasse visualmente, “de improviso”. Ela foi
introduzida pelo filme e só no filme pode ter lugar. É um fato fílmico por
excelência, composto tanto do factual quanto do imaginário, como dimensões
tornadas indissolúveis. Em 1967, Rouch confessou que este [Eu, um negro]
era um de seus filmes preferidos concernente a uma das coisas que mais o
tocavam no mundo: “a ficção mais extravagante e mais desgrenhada que é,
afinal, a pintura mais real de uma realidade dada (DA-RIN, 2006, p. 163).
Em seguida, entra novamente Rouch para apresentar O Domingo, dia de ir à missa e participar
do culto na mesquita, ou melhor, nas calçadas das ruas por não haver tantas mesquitas quanto
fiéis. É também dia da Goumbé, festa na qual os nigerianos se encontram. Nesse bloco, Eddie
Constantine toma seu lugar de “segundo personagem principal” e mais uma vez as mulheres
e a conquista delas tornam-se o foco do cotidiano. Assim como o ato de cortar os cabelos de
acordo com a moda vigente e de assistir a uma partida de futebol. Cenas que mais uma vez
evidenciam a realidade local, com registro de acontecimentos reais e fictícios, concretizados
enquanto filme. Mas logo a fala volta a Robinson.
As tomadas que se seguem mostram as celebrações na Goumbé, e fica clara a participação
de Rouch nesse momento. A câmera não está escondida e não se pretende esconder ante ao
que é filmado. Muitas pessoas olham para a lente, performam ao serem filmadas durante o
desfile da festa nigeriana. As imagens das danças apresentadas na Goumbé contraditoriamente
ressaltam o registro do ritual, como no documentário clássico, mas no lugar da voz em off
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está a voz de Robinson. Rouch quer evitar a possibilidade de exotização, a qual muitas vezes
aparece no documentário clássico e, para isso, cede a voz aos africanos. São eles que contam
seus próprios rituais, ações e reações.
Depois da Goumbé, Robinson e seus amigos saem para os bares a fim de comemorar a
conquista de Eddie Constantine como o rei da Goumbé. Mas a felicidade momentânea de
Robinson junto a seus amigos e, especialmente, junto a Dorothy Lamour, termina quando um
italiano se aproxima e acaba por passar a noite com ela. Robinson então se entrega às bebidas
e novas cenas de revolta sobre sua condição transcorrem. Eis que ocorre nova fabulação de
Robinson, que sonha casar-se com Dorothy Lamour e ter sua própria casa, um sonho filmado
e encenado no filme.
Após tais sequências, aparece novamente Rouch, em outro corte brusco, para apresentar
A Segunda, o “dia da verdade” para Robinson. Se na noite anterior ele havia perdido sua
garota para um italiano, agora é a hora de se equiparar ao europeu. Então, os dois brigam e
trocam insultos, mas ele é derrotado. Bêbado e de volta à “realidade” da semana, os sonhos
parecem ter acabado junto do final de semana. Os aspectos do início do filme voltam com
maior potência e reforçam as péssimas condições em que seus personagens se encontravam.
Tanto para Robinson quanto para Eddie Constantine, preso por se confrontar com a polícia ao
defender seu personagem de agente federal americano ao extremo, nada mudou.
Ainda que a narrativa tenha se desenrolado no sentido de promover uma mudança da
condição inicial, que apontasse para a resolução dos problemas dos personagens, as cenas
finais mostram exatamente a impossibilidade de mudança. Assim, Robinson confirma essa
imposição ao fazer explanações sobre a vida com seu amigo Jules, sem deixar de apresentar
suas incertezas, esperanças e ambiguidades: “Vamos Jules. Tudo isso não é nada. É a vida.
Talvez a vida mude. Mas ela é complicada. Nós somos amigos e continuaremos amigos. A
vida é boa. A vida é bela, Jules. Tudo isso não é nada. Tenha coragem e, talvez, nós dois ainda
sejamos felizes. Como a vida é complicada!”
Rouch faz de Eu, um negro uma ferramenta para contar o que para ele não pode ser dito de
outra forma. Isso, devido ao cineasta defender que a única verdade possível de ser alcançada é
a produzida pelo próprio filme, através do personagem que se inventa diante da câmera e por
causa dela. Não há método ou técnica que assegure o acesso direto ao real (DA-RIN, 2006). A
ficção para Rouch se torna realidade e uma experiência compartilhada, construída ao se filmar
relações vividas e não pré-estabelecidas. São encenações do plausível – mas que ampliam
seus limites – montadas e contadas a partir de uma visão do mundo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Classificar os documentários de linha clássica como mais documentais que os filmes do Cinema
Verdade de Jean Rouch seria um equívoco que não compreende a amplitude e as possibilidades
da definição do conceito de documentário. Se toda relação abarca certo nível de encenação/
representação, não se pode afirmar que os documentários clássicos, compostos pela voz off
e imbuídos de um discurso baseado na credibilidade científica, sejam mais “reais” que os
documentários produzidos via perspectivas cinematográficas distintas. Aliás, o que garante
que um seja fidedigno e o outro não?
O que está em jogo no ato de documentar está mais atrelado à ética da representação do que
estritamente à representação da verdade. A realidade não estaria à espera por ser revelada
pelo filme, pois ela foi produzida por este e apenas nele terá lugar como representação factual.
No entanto, ela pode ser a representação que diz muito mais sobre a realidade encenada, se
comparada a documentários clássicos que o tentaram fazer.
Eu, um negro é seguramente um ponto de inflexão, no cinema de Rouch
e no cinema em geral. Dizendo mais, certamente, sobre Treichville e seus
habitantes do que muitas constatações de aparência mais “objetiva”. Dizendo
mais, e sobretudo, de modo diferente (FIESCHI, 2009, p. 25).
Atribuir a qualidade de verdade ou o conceito de real para separar o que é documentário ou
não, implica na redução e conceituação simplistas dos dois domínios que estão intensamente
imbricados. O que não nos impede de defini-los e marcar a diferença entre eles. A atividade
principal seria deduzir o que é um documentário ético e o que não é, mas não considerar que,
por tratar o desconhecido com uma perspectiva que foge da abordagem clássica, deixe de ser
considerado documentário.
Outro ponto importante a se considerar é que toda narrativa é direcionada e somente se efetiva
a partir do momento da recepção e da consequente produção de sentido. E isso equivale para
todas as narrativas cinematográficas.
Rouch, ao explicitar suas intenções em Eu, um negro, deixa claro para os espectadores que
o filme a que irão assistir não se trata de um registro do real, mas sim de uma criação que,
por suas características, constituiu-se uma revolução no campo do cinema documentário.
Assim como apresentava seus personagens e situava o espectador sobre a identidade ficcional
que eles interpretavam em Eu, um negro, o mesmo posicionamento era tomado em outros
filmes, como Crônica de um verão, realizado junto de Edgar Morin em 1960: “Este filme não
foi representado por atores, mas vivido pelos homens e mulheres que dedicaram momentos
de suas vidas a uma experiência nova de cinema-verdade” (DA-RIN, 2006, p. 150).
Sem hesitar em introduzir a dimensão do imaginário, seus personagens fabulam acerca dos
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fatos que vivenciam, fazendo com que o real e o ficcional se imbriquem ciclicamente. Mas
são fundamentalmente essas fabulações que apresentam as revelações mais comoventes e
representativas de determinada condição social ou cultural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DA-RIN, Sílvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro:
Azougue, 2006.
DEVIRES – Cinema e Humanidades. Rouch. UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
V.6 n.1, 2009. P. 12-34; 92-126.
GONÇALVES, Marco Antônio. O real imaginado. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
GUIMARÃES, César; CAIXETA, Ruben. Pela distinção entre ficção e documentário,
provisoriamente. In: COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – A inocência perdida: cinema,
televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. P. 9-72; 210-220.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.
P.9-127.
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ARTES
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Relações contemporâneas:
moda e cultura, o designer Ronaldo Fraga e suas coleções literárias
Adriana Dornas1
Marcelina das Graças de Almeida2
Resumo
A sociedade contemporânea demanda a criação de padrões e tendências de consumo, exigindo
dos criativos um despojamento permissível às artes e aos produtos industriais. Neste sentido,
o artigo pretende compreender a dinâmica criativa do designer de moda Ronaldo Fraga em
sua originalidade, além de tentar destacar as características que o faz representativo no
mundo da moda. Foram analisadas duas coleções bem como a análise da produção intelectual
relacionada ao perfil do profissional. Conclui-se que atuação de Fraga tem sido de inovação,
explorando os traços culturais da sociedade brasileira, recriando e ressaltando aspectos que
demonstram os valores e a identidade que marcam a mesma.
Palavras-Chave: design brasileiro, moda, diversidade cultural
Abstract
Contemporary society demands the creation of patterns and consumer trends, requiring from
creatives an allowable stripping to arts and industrial products. In this sense, the article seeks
to understand the creative dynamics of the fashion designer Ronaldo Fraga in its originality,
and try to highlight the features that makes him representative in the fashion world. We
analyzed two collections and his intellectual production related to the professional profile. It
concludes that Fraga’s actions have been innovative, exploring the cultural traits of Brazilian
society, andrecreating and highlighting aspects that demonstrate the values and the identity
that mark itself.
Keywords: brazilian design, fashion, cultural diversity
1 Mestre em Design e docente na Escola de Design, UEMG. E-mail: [email protected].
2 Doutora em Historia e docente na Escola de Design,UEMG. E-mail: [email protected] .
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INTRODUÇÃO
Ao analisar o percurso da sociedade contemporânea no quesito consumo de produtos
industrializados, observa-se uma tendência na aceitação de soluções estético-técnicofuncionais, em geral, evidenciados pela história e cultura de seus designers. Obviamente,
tais requisitos não são os únicos, especialmente em países como Brasil, onde houve um forte
apelo da industrialização advinda de países emergentes. Tal fato é confirmado por Moraes, ao
ressaltar o desempenho das multinacionais em solo brasileiro, levando-o à industrialização e
distanciando-o das referências do design local. O autor relembra a frenética busca de soluções
projetuais industrializáveis concomitante com a baixa estima do design brasileiro, ocasionado
especialmente no período do regime governamental militar. Por sua vez, na década de 1980,
chamada de pós-militar, o designer prenunciava erguer a bandeira “contra a indiferença das
multinacionais com suas estratégias de lucro fácil e falta de apreço pela causa do design local”
(MORAES, 2013, p. 78).
Para Roizenbruch (2009), em meados da década de 1990, o design brasileiro se vê inserido
na pós-modernidade e globalização. Vê-se claramente a absorção do domínio cultural e das
questões identitárias na dinâmica de criação, reforçando a produção e originalidade dos
designers locais.
Laraia (2001) afirma que cultura é um processo cumulativo e o homem é o resultado do meio
cultural em que foi socializado. Por isso, ele torna-se herdeiro desse processo que é proveniente
de experiências adquiridas ao longo de muitas gerações que o antecederam, desenvolvendo a
partir daí valores próprios.
O resultado criativo advindo desse contexto culminará, sob o ponto de vista de Lahire (2006),
em sua maioria, na formação do produto com influências culturais sintetizadas, subjetivas
e sutis. Ele acredita que a fraca ou forte legitimidade que um campo cultural proporciona
pode ser delimitado pelo aprofundamento ou não que o designer faz, mas, em geral, isso
não acontece na íntegra. Isto porque conceitualmente cultura é algo construído, somado e
variante – o que por si só já impossibilita a imposição de formas.
Neste contexto, o design que, até então, tinha a função de concretizar “uma ideia em forma
de projetos ou modelos” (LÖBACH, 2001, p. 16) encontra-se influenciado por uma história ou
cultura, assumindo formas múltiplas e mutáveis, “fruto de uma sociedade pós-moderna que
associa o local e o global”, caraterizando-se como multicultural (ROIZENBRUCH, 2009, p. 33).
Nesse sentido, pretende-se apresentar a dinâmica criativa do designer de moda de Minas
Gerais Ronaldo Fraga, em duas coleções que utilizam a obra de dois reconhecidos escritores
mineiros, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Guimarães Rosa (1908-1967). Além de
demonstrar como, em várias coleções, ele estabelece um diálogo com a cultura brasileira.
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Design, Cultura e Identidade: relações contemporâneas
No que diz respeito ao uso dos elementos culturais na dinâmica da criação no design, é
importante ressaltar que a transferência de signos é feita através das informações passadas e
das presentes no meio social. Lahire (2006) entende que essa transferência gera características
muito próprias e sutis nos elementos criados.
Por outro lado Santana (2001, p. 170) mostra que, de um modo geral, o homem, diante
de suas necessidades de autoafirmação, tende a modificar algumas bases dessa herança,
tornando a cultura possível de mutação. Para ela, cultura é “um produto da atividade
humana”, portanto, não é estática. Finalmente, para Laraia (2001), cultura é um processo
cumulativo e o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Por isso, ele
torna-se herdeiro desse processo proveniente de experiências adquiridas ao longo de muitas
gerações que o antecederam.
Para o autor, no final do século XVIII, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar
o conjunto de aspectos espirituais de certa comunidade, enquanto a palavra Civilisation (de
origem francesa), referia-se às realizações materiais de um povo. Estes termos foram então
sintetizados pela primeira vez por Edward Tylor (1832-1917), no vocábulo inglês Culture, palavra
utilizada para definir um conceito complexo que incluiria conhecimentos, crenças, moral, leis,
costumes, expressões artísticas, ou qualquer outro tipo de hábito que um indivíduo poderia
adquirir como integrante de uma sociedade, criando uma simbologia cultural.
Podemos destacar que o sujeito pós-moderno desenvolve-se justamente a partir da
desestabilização entre a relação do eu com a sociedade. Assim, esse sujeito define-se
como não tendo uma identidade fixa, essencial ou imutável. “A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
2000, p. 16).
No Brasil, por exemplo, essa modificação é em parte ocasionada pela pluralidade de origens
sociais e étnicas, característica da formação histórica do país e de sua dinâmica sociocultural.
Ribeiro (1995) vem reforçar: a identidade étnica e a configuração cultural do Brasil vieram se
formando “destribalizando índios, desafricanizando negros e deseuropeisando brancos”. Desta
maneira, podemos perceber na afirmação anterior que a formação multicultural, multireligiosa
e multiétnica do país levou a um sincretismo que se vê presente na base da cultura brasileira.
Assim, essa multiculturalidade aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e
étnicas são inúmeras (RIBEIRO, 1995, p. 179).
Em um ambiente multicultural, as interferências entre culturas devem ser encaradas como
parte de um processo natural do seu amadurecimento; todavia, a coexistência de culturas não
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deve ser vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação a outras. A
inter-relação entre diversas culturas, que é a fusão entre diferentes tradições culturais, pode
ser vista como uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade,
produzindo novas formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado.
Ono (2004) considera que as influências multiculturais de uma sociedade geram uma cultura
material capaz de criar produtos com significados particulares que refletem os valores e
referências culturais dessa sociedade.
Diante do exposto, refletir sobre a influência das multiculturas na dinâmica criativa do
design brasileiro hoje torna-se pertinente, afinal, parte-se do pressuposto que a sociedade
contemporânea tem perdido seus referenciais de identidade através do processo de
globalização, o que a leva, por outro lado, a uma busca ávida por produtos cuja identidade e
cultura possam estar explicitadas.
O antropólogo Keesing (1974), em seus estudos sobre a cultura, considera que é possível
entendê-la sob duas correntes: 1) aquela que considera cultura como um sistema adaptativo,
ou seja, padrões de comportamento sociais transmitidos e adaptados em comunidades
humanas de acordo com os estilos de vida; 2) uma teoria idealista dividida em: cultura como
sistema cognitivo, ou seja, um sistema de conhecimento; cultura como sistemas estruturais
onde se define cultura como um sistema simbólico que é a criação acumulada da mente
humana; cultura como sistema simbólico onde cultura é um sistema de símbolos e significados
compartilhados pelos membros de uma sociedade.
Entretanto sob o ponto de vista da simbologia, Arantes (1981) afirma que os elementos culturais
não significam nada se tratados individualmente, ou seja, só se tornam legítimos quando se
conceituam participantes de um grupo. As variadas compreensões destes elementos inseridos
nestes grupos são chamadas de eventos culturais. A partir daí, a cultura torna-se atividade
concreta, passando por um jogo político divergente de segmentos sociais, adequando-se ao
contexto de cultura como produto.
Assim, Hall (2000) entende que uma identidade:
[...] é formada na interação entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado
num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que os mundos oferecem.(HALL, 2000, p. 11)
Deste modo, o conceito de identidade transita entre o interior do indivíduo e o exterior que
o influencia. O indivíduo, com sua identidade própria, é composto não de uma única, mas de
várias identidades. À medida que os sistemas formadores de identidade cultural se multiplicam
os indivíduos se esforçam para se identificar de forma única dentro de uma “identidade
possível” (HALL, 2000, p. 12).
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Por outro lado, Berger (1998, p. 112) afirma que “[...] as identidades são atribuídas
pela sociedade”. Neste caso, é preciso que a sociedade as sustente com regularidade.
Um indivíduo não pode ser humano sozinho e, aparentemente, não pode apegar-se a
qualquer identidade sem o amparo da sociedade. As concepções estabilizam os sujeitos e
os mundos culturais. Santos ressalta que a identidade de um povo não é rígida ou imutável;
ela se constrói e se modifica na sequência de um constante processo de transformação
(SANTOS, 2005).
A diversidade cultural aparece em cenários onde a pluralidade de origens sociais e étnicas
caracterizam a formação de um ambiente e da dinâmica sociocultural de uma sociedade.
Num ambiente como esse, as interferências entre culturas são entendidas como parte de um
processo natural do seu amadurecimento. No entanto, a coexistência de culturas não deve ser
vista como busca do predomínio ou da sobreposição de umas em relação às outras. A interrelação da diversidade é a fusão entre diferentes tradições culturais e pode ser vista como
uma forma natural de evolução das sociedades, promovendo a criatividade, produzindo novas
formas de cultura e até mesmo contestando as identidades do passado (HALL, 2000).
Na realidade, a identidade não é consequência direta da diferença cultural, mas das interações
dos grupos sociais e dos procedimentos que estes utilizam para apresentar tais diferenciações.
O território local passa então a representar os limites físicos de uma determinada identidade
cultural, cujas fronteiras são construídas socialmente. (FLORES, 2002)
O próprio conceito de território refere-se a uma identidade cultural coletiva. Segundo Teófilo
(2002), território
[...] tende a ser uma microrregião com claros sinais de identidade coletiva
compreendendo um número de municípios que mantenha uma ampla
convergência em termos de expectativas de desenvolvimento, articulado
com novos mercados, e que promova uma forte integração econômica, e
social, ao nível local (TEÓFILO, 2002, p. 47).
Semprini (1999) destaca que o território multicultural é, antes de tudo, um espaço de sentido
onde circundam símbolos de uma sociedade. Um país pode ser considerado território
multicultural quando formado por diversos povos e culturas que convivem e trocam
informações. Barbosa (1998) caracteriza esse cenário de multicultura ativa.
O resultado disso são produções com forte apelo cultural oriundos das comunidades que
os produzem em seus respectivos territórios. Todavia, é importante ressaltar que tais
favorecimentos criativos precisam ser trabalhados com cautela; afinal, é necessário aterse à originalidade e riqueza de significados dessas culturas. Para Krucken (2009), esse é um
caminho muitas vezes seguido por diversas áreas. O design, por exemplo, tende a unir técnica
e conhecimento em projetos repletos de elementos culturais e simbólicos.
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Kistmann (2001) pondera que o design contemporâneo pode ser denominado como híbrido;
isto porque ele se reporta, da mesma forma, ao processo moderno de produção e às bases
tradicionais típicas das culturas locais. A autora ressalta que a aproximação do tradicional e
do moderno não é um consenso, permanecendo em constante discussão, principalmente por
ainda existirem produtos com essa configuração que não tenham resolvido totalmente seus
processos produtivos.
Podemos perceber que no campo atual do design, identidade, cultura, diversidade cultural e
globalização ocupam uma posição ímpar no cenário atual e, assim, podemos destacar:
O percurso feito pelo design brasileiro dentro de um cenário de reconhecida
multiculturalidade legitima-o, portanto, como um laboratório a ser conhecido
e levado em consideração por todos os que querem prospectar novos modelos
no âmbito da disciplina do design, dentro da segunda modernidade e dentro
do controverso fenômeno de globalização mundial. Procurar entender o
paradigma brasileiro, com toda sua energia e pluralidade intrínsecas, é, em
hipótese, uma maneira de refletir sobre as novas e possíveis estradas para o
design no mundo global (MORAES, 2013, p. 78).
Pode-se dizer que o conceito de design na modernidade tornou-se muito complexo, levando
os produtos a se adaptarem às diversidades. Nessa perspectiva, ele vem mediar produção e
consumo, tradição e cultura, inovação e qualidade.
ESTUDO DE CASO – Ronaldo Fraga: representante de um Brasil
não caricato
A seguir será brevemente apresentada à trajetória artístico-profissional de Ronaldo Fraga no
cenário brasileiro, seus trabalhos e algumas de suas experiências criativas. Posteriormente
faremos uma descrição do estudo de caso propriamente dito, e da influência multicultural
brasileira em sua obra, e por fim, destacamos duas de suas coleções de inverno 2005 e verão
2006∕7. Podemos perceber uma grande expressividade e originalidade em seu traço, o que o
faz conhecido pela pesquisa em seu trabalho e principalmente o olhar atento e de preocupação
em destacar personalidades e características da cultura brasileira.
O critério do estudo de caso se apoiou em menor proporção no entendimento da obra do
designer, no que diz respeito às formas de inspiração/criação, materiais utilizados, técnicas
de acabamento da costura, mas nos debruçamos principalmente nos conceitos desenvolvidos
nestas duas coleções. O requisito de escolha foi sua significância na trajetória da marca Ronaldo
Fraga, bem como, a aproximação dos critérios conceituais dos dois trabalhos, que podemos
chamar de: Duas Coleções Literárias, pois o próprio designer destaca: “moda e literatura são
dois instrumentos para escrever, e contar a história” (FRAGA, 2012, p. 73).
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Breve histórico sobre a vida e obra de Ronaldo Fraga
Ronaldo Fraga nasceu em Belo Horizonte no dia 27 de outubro de 1966 e é formado pelo curso
de estilismo da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação na Parson’s
School of Design de Nova York e vários cursos livres na Saint Martins School de Londres. Em
1997, no evento promovido pelo Phytoervas e MTV, ganha o prêmio de Estilista Revelação de
1997, apresentando a coleção “Álbum de Família” e “Em nome do Bispo”. Em 2001, estreou
no São Paulo Fashion Week, com a coleção “Rute-Salomão”, uma estória de amor fictícia entre
um judeu ortodoxo e uma cristã; a partir daí passa a ser reconhecido como um estilista com
grande contribuição para a moda brasileira.
Uma marca em todos os seus trabalhos é estabelecer um diálogo entre cultura, principalmente
a brasileira, com o mundo contemporâneo, em toda a sua complexidade. Ao longo de sua
carreira, estabeleceu uma ligação com projetos sociais e projetos de geração de emprego
e renda com cooperativas e comunidades diversas. Sua primeira coleção recebeu o nome
de “Eu amo coração galinha” e foi promovida no inverno de 1996; desde então vem, com
regularidade, exibindo seu talento e criatividade. Suas coleções infringem as normas
estilísticas vigentes e a proposta de suas roupas ultrapassam os códigos comuns que exaltam
a sexualidade, as tendências fáceis, o mundo comercial e mundano. As coleções de Fraga
propõem discussões mais profundas sobre o lugar da moda no contexto da diversidade
cultural brasileira. O mesmo acredita que:
[...] escolher um objeto de pesquisa para uma coleção de moda pode
ser como definir um tema ou uma “estória” para cinema, teatro, ópera,
quermesse ou enredo para escola de samba. Quase sempre, na busca por
narrativas para a moda, mergulha no universo da literatura e da música
brasileira, da cultura popular e nas histórias absurdas do homem comum.
(FRAGA, 2012, p. 269)
Para tanto, Fraga desfilou algumas de suas coleções no Chile (2006), no Japão (2008), na
Inglaterra (2009), no México (2010), na Colômbia (2010) e na Holanda (2011). Participou da
mostra When lives become form, no Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, e do Festival
Cultural de Amsterdam (2011). Foi também eleito, em 2011, representante da moda no Conselho
do Ministério da Cultura e recebeu o prêmio Trip Transformadores, em reconhecimento ao
trabalho realizado pela valorização da cultura brasileira.
Duas coleções Literárias: quando se lê as roupas e se vestem palavras
A cada coleção Ronaldo Fraga faz novas pesquisas, refaz trajetórias e homenageia personagens,
anônimas ou conhecidas. Com o cruzamento entre memória afetiva e cultura, ele dá o tom de
seu trabalho, evocando canções, murmurando palavras, percorrendo o tempo, atravessando
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uma espécie de “passado” e “futuro”, não apenas num sentido de temporalidade, mas
principalmente, numa complexa tessitura daquilo que se foi, e do que virá. Assim, não é
diferente nas coleções apresentadas a seguir. E ao se explicar pela escolha dos dois nomes, o
próprio designer, diz: “nunca me lembro que eles eram mineiros. O meu grande interesse é
pela universalidade e atemporalidade do que foi construído por eles” (FRAGA, 2012, p. 73).
Coleção Todo mundo e ninguém – inverno 2005 - CDA
Esta coleção é baseada na obra de Carlos Drummond de Andrade, em todo seu universo
poético (o universo drummondiano, com sua escrita drummondiana) e faz alusão às suas
poesias, uma coleção romântica e delicada que apresenta, em sua confecção, volumes tímidos,
cortes enviesados, páginas pautadas, bebês em batismo, cartões postais, memórias de amor.
A roupa apresenta-se como um registro do tempo. As estampas são de manuscritos e bilhetes
do poeta Drummond, relógios de pulso, labirintos e galhos de jabuticabas. Os tecidos são
chevron, brocado de seda, filós, algodão, laise bordada, tweeds, tules e jeans brutos lavados,
em sua maioria, segundo o próprio designer, com cara de “extintos”.
A trilha sonora musical do desfile é o próprio Drummond acompanhado por Billy Forghieri
e a cenografia são páginas soltas de um caderno em brancas gigantescas que caem do teto
da passarela, escritas com a letra tão minúscula e marcante do escritor, confeccionadas por
Clarissa Neves. Os volumes são tímidos, retos e enviesados, são vestidos para dormir, para
casar, para o footing, dentre outros.
Podemos perceber que as roupas de Ronaldo Fraga são para homens, mulheres, ou crianças,
pessoas comuns, inventivas como o próprio designer. E como afirma Kalil (2007):
[...] suas roupas são pouco convencionais, cheias de referências infantis e
vagamente nostálgicas. Não entram neste universo a sexualidade explícita,
as tendências fáceis da moda, os apelos comerciais, nenhuma gota de
vulgaridade. Jamais numa passarela deste cidadão belo-horizontino vão
desfilar um decote exagerado, microssaias vertiginosas, fendas provocantes
(KALIL, 2007, p. 7)
A seguir apresentamos, na figura 1, algumas imagens do desfile da coleção inverno 2005.
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Figura 1 – Coleção Todo mundo e ninguém
Fonte: Fraga, 2012, p. 32, 33 e 34.
Coleção A cobra ri – uma história de Guimarães Rosa - verão 2006∕07
Esta coleção aproveita a data comemorativa de centenário da publicação Grande Sertão:
Veredas. Fraga afirma: Sempre fui enlouquecido pelo “universo roseano” e destaca que “o
universo de Guimarães é seco e por isso não existe a necessidade de desperdício de detalhes”
(FRAGA, 2012, p. 12).
A coleção aborda o tema do sertão que, embora seja um universo seco, é cheio de cores
e texturas. Os vestidos são curtos e os decotes profundos, os tecidos são de algodão e
cambraia. O designer usou elementos que remetem à beleza do sertão: pássaros azuis,
folhas, estrelas e lua no céu do sertão com muitos bordados e aplicações nos vestidos.
O pano de fundo é o amor de Riobaldo e Diadorim, aqui, o homem é representado mais
frágil que a mulher.
A principal peça da coleção é o vestido. A cartela de cores é dividida em três gamas: cores
do amanhecer (branco, amarelo, cor de giz, encardidos e pálidos), cores do dia (vermelho,
verde água, laranja e terra), cores da noite (azul marinho, turquesa e charuto). Nas estampas,
cobras e flores. E o próprio designer acrescenta: “o ponto central do desfile é a genialidade
de Guimarães Rosa em colocar o erudito alinhado ao popular com desenvoltura tal que faz
parecer que um nasceu para o outro” (FRAGA, 2012, p. 73). A direção de cenografia é de
Rodrigo Câmara e a trilha sonora Ronaldo Gino.
E para reforçar as palavras de Fraga, Mesquita afirma que, nesse sentido, é possível pensar
que, desde a primeira coleção “Eu amo coração de galinha” (inverno 1996) até “O cronista do
Brasil“ (verão 2011/12), Fraga consegue resgatar significados. A mesma autora acrescenta:
[...] o traço de Fraga multiplica os sentidos [...] inventa idiomas, demarca
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lugares, cria territórios e convida um povo para habitá-los. E depois se vai,
para desbravar outro universo. Expõe marcas de afetos, afagos, alegrias,
encontros, despedidas, fascínios, fragilidades, fissuras, gargalhadas, loucuras,
paixões, preciosidades, saudades, sonhos, ternuras e tristezas. Permeadas
por uma melancolia intensa e delicada ao mesmo tempo [...]. O conjunto
da obra e os diversos modos de sua apresentação – cadernos de criação,
desfiles, textos, vitrines de lojas e corpos vestidos – compõem suas paisagens
(MESQUITA, 2012, p. 15).
Assim a seguir apresentamos na figura 2, algumas imagens do desfile da coleção verão
2006-7:
Figura 2- Coleção A cobra ri – uma história de Guimarães Rosa
Fonte: Fraga, 2012. p. 54,56,58,59.
Como as imagens revelam e Kalil chama atenção: Ronaldo Fraga escapa de diversos padrões,
pois seus valores estéticos provêm da sua criação mineira associada à sua “proximidade com
os anjos e os santos das igrejas.” (KALIL, 2007, p. 9).
E neste diálogo Mesquita (2012) pondera:
Nesse território híbrido, Ronaldo trama espaços e culturas com tamanha
perspicácia que, mesmo sem essa pretensão, reivindica para a moda um
lugar irreversivelmente político, pois é sobre história, fronteiras e poderes
que essa geografia improvável nos fala (MESQUITA, 2012, p. 23).
Diante disso, observamos que as duas coleções apresentadas nos dão uma noção de identidade,
território e vasto simbolismo, demonstrando a enorme importância da linguagem no trabalho
deste designer de moda e, apesar da multiplicidade de significados, seu trabalho apresenta-se
como uma resposta possível de caminhos que, embora representem riscos e incertezas, auxilia
o enorme desafio de reforço das identidades neste mundo globalizado.
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Apontamentos finais
Pretendeu-se identificar os principais elementos expressivos que permeiam o design na
atualidade e, no caso particular, do trabalho de Ronaldo Fraga. A partir disto, foi feito um
estudo de caso da obra do designer, destacando as duas coleções do ano de 2000 e 2006, que
exploram dois personagens consagrados da cultura brasileira. Essa escolha foi fundamental
para consolidar o objeto principal desta pesquisa.
Percebeu-se que o Brasil possui uma pluralidade de origens sociais e étnicas que dão ao
designer um repertório que, uma vez apropriado, resulta em produtos diferenciados com forte
apelo cultural, pois o trabalho de Ronaldo Fraga traduz uma linguagem internacional, local, de
transformação e reinvenção, de pluralismo e hibridização, podendo assim ser uma fonte de
reflexão sobre a sociedade brasileira e mesmo latino-americana.
No trabalho de Ronaldo Fraga, percebemos que o mesmo tem procurado os caminhos
traçados pelas culturas que, aqui miscigenadas, desenvolveram linguagem própria de pura
brasilidade. Concluindo, acreditamos ser de suma importância que se dê um passo em direção
à contribuição cultural que cada projeto pode e deve representar, enquanto avanço e libertação
dessa mesma cultura, sendo possível tratar o design como matéria cultural, permeada por
contemporânea brasilidade.
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ARTES
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TRAVESSIA ENTRE GLAUBER ROCHA E GUIMARÃES ROSA:
O discurso autoconsciente de Deus e o diabo na terra do sol e
sua relação com Grande sertão: Veredas
Jefferson Assunção1
Resumo
Esse artigo tem como objetivo analisar o filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber
Rocha, a partir de sua relação com o romance Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa
(publicado originalmente em 1956). O ponto de convergência a ser estudado entre as obras
diz respeito à autoconsciência do universo ficcional vista nas respectivas narrativas. Assim,
busca-se aqui definir a ideia de literatura autoconsciente e fazer um panorama da relação do
discurso indireto livre com o dispositivo cinematográfico no cinema moderno como elemento
politicamente ciente de sua natureza.
Palavras-chave: Cinema moderno; dispositivo; autoconsciência.
Abstract
This article aims to analyze the movie Black god, white devil (1964), by Glauber Rocha, from his
relationship with the novel The devil to pay in the backlands, by João Guimarães Rosa (originally
published in 1956). The point of convergence to be studied among the works concerns the selfawareness of the fictional universe viewed in their respective narratives. Thus, the attempt of
setting the idea of self-conscious literature and an overview of the relationship of the free
indirect speech, with the cinematic device in modern cinema, as an element politically aware
of its nature will be found here.
Keywords: Modern cinema; device; self-conscience.
1 Mestrando em Estudo de Linguagens pelo CEFET-MG. E-mail: [email protected].
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“Tá contada a minha estória, verdade, imaginação. Espero que o sinhô tenha
tirado uma lição: que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra
é do homem, não é de Deus nem do Diabo!” (ROCHA; RICARDO, 1964).
“De inventar pouco se ganha. Regra do mundo é muito dividida” (ROSA,
1972, p.52).
A intenção desse artigo é partir de um estudo de comparativismo2 entre literatura e cinema
para se analisar questões ligadas à autoconsciência e ao dispositivo, conceitos que serão
definidos mais à frente, além de alguns pontos centrais pelos quais tanto João Guimarães Rosa
quanto Glauber Rocha tocam nas duas obras aqui tratadas, no caso Grande sertão: Veredas
e Deus e o diabo na terra do sol, respectivamente, como a tragicidade do universo do sertão,
cenários das duas obras.
Em uma passagem do romance Grande sertão: Veredas, o protagonista Riobaldo, que narra
sua própria estória para um senhor desconhecido, fala sobre uma fazenda no Ribeirão EntreRibeiros que teria um cômodo embaixo do local onde os escravos eram no passado torturados
até a morte. Riobaldo afirma não acreditar nisso, mas sim no fato de que ali nesse cômodo
se ocultava um tesouro com ouro, armas, munições e até mesmo dinheiro falso. Em seguida,
ele conclui sua fala da seguinte maneira: “esse povo diverte por demais com a baboseira,
dum traque de jumento formam tufão de ventania. [...] Querem-porque-querem inventar
maravilhas glorionhas, depois eles mesmos acabam tremendo e crendo” (1972, p.59).
Guimarães Rosa lança nesse fragmento, e em outros ao redor de Grande sertão: Veredas, duas
reflexões preponderantes para a compreensão de sua escritura3: a sabedoria popular (nesse
caso de humor escatológico) e a autoconsciência do universo ficcional onde se inserem. No
livro, essa última característica é percebida no modo de Riobaldo narrar sua estória de forma
a deixar claro para o leitor que a própria personagem sabe que seu relato se trata de uma
realidade exageradamente ficcional.
Robert Alter, citado por Robert Stam no capítulo Um prelúdio cervantino: De Dom Quixote
ao pós-modernismo do livro A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da
adaptação, parte da ideia de autoconsciência a partir da definição de romance autoconsciente
como uma obra onde
2 Tania Franco Carvalhal, no capítulo Literatura comparada: Os primórdios do livro Literatura comparada, vê o comparativismo como “uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas” (2006, p.5). Porém, a autora vê essa
definição como generalista, uma vez que “aos poucos torna-se mais claro que literatura comparada não pode ser entendida
apenas como sinônimo de ‘comparação’” (2006, p.6), ou seja, a comparação é um meio do qual se parte para se analisar a
relação de uma obra literária com outros tipos de obra, quer sejam de natureza literária, filosófica, cinematográfica, etc., o
que será realizado no artigo.
3 Aqui se utiliza o termo escritura no sentido definido por Roland Barthes no capítulo O que é a escritura? de seu livro O grau
zero da escritura. Ela se encontra, segundo o autor, entre a língua e o estilo, “é a relação entre a criação e a sociedade, é a
linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua intenção humana e ligada assim às
grandes crises da História” (1971, p.23). Barthes define a escritura também como “a moral da forma, a escolha da área social
no seio da qual o escritor decide situar a Natureza de sua linguagem” (1971, p.24).
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do começo ao fim, através do estilo, do manejo do foco narrativo, dos nomes
e palavras impostos aos personagens, da padronização da narrativa, da
natureza dos personagens, e através do que lhes acontece, existe um esforço
consistente em transmitir-nos a impressão do mundo ficcional como um
construto autoral montado sobre um pano de fundo de tradição e convenção
literária (ALTER, 1975, p.11 apud STAM, 2008, p.43).
Normalmente, de acordo com Stam, a autoconsciência na literatura se dá através de questões
narrativas que extrapolam os limites da própria obra e a fazem ser reconhecida por seu leitor
como uma ficção e não como uma realidade posta no papel, como é o caso, por exemplo, do
modo como Riobaldo narra sua estória para seu interlocutor/leitor em Grande sertão: Veredas.
Desde suas primeiras obras, Guimarães Rosa apresentava tal característica, ou seja, estórias
contadas sob o ponto de vista de um narrador-personagem de certa forma onisciente e cônscio
de que o que conta se trata de uma verdade “aumentada” pela sabedoria popular barranqueira
– segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0, o barranqueiro é “aquele
que mora junto à margem de rio” (HOUAISS, 2009), tal como Riobaldo que, em seu próprio
nome, possui uma relação direta com a água presente no prefixo “rio” –, uma vez que as obras
de Guimarães Rosa foram inspiradas nas narrativas orais dos grotões do Brasil e do mundo,
pois o sertão do autor é um microcosmo do mundo, é universal. Nesse sentido, o sertão não se
situa apenas no romance Grande sertão: Veredas, ressoa por toda a escritura rosiana.
Ainda no que diz respeito à autoconsciência, em A hora e vez de Augusto Matraga (conto
presente no livro Sagarana, publicado originalmente em 1946), por exemplo, o narrador diz:
“esta aqui é uma história inventada, e não é um caso acontecido não senhor” (1974, p.343).
Em Deus e o diabo na terra do sol, Glauber Rocha também lança mão desse mesmo recurso
narrativo de autoconsciência, mas se valendo das linguagens cinematográfica e teatral, como
será discutido mais à frente.
Guimarães Rosa, a partir desse tom memorialístico e da linguagem misturada, investida tanto
do erudito quanto do popular, desafia certo discurso convencionalizado academicamente,
quando leva seu narrador a ter ciência de si mesmo e diante do leitor. Ele era um leitor voraz
e, ao mesmo tempo, admirador da cultura popular, características essas que levou para dentro
de suas obras, principalmente, a partir da influência da literatura de cordel, gênero impresso
de prosa poética ritmada (pois narra uma estória muitas vezes de nascedouro oral) e que
remonta à colonização portuguesa do Brasil, de onde tem sua origem na trova.
Porém, essa particularidade da autoconsciência não está presente apenas na literatura,
mas também em outras mídias, como o cinema e o teatro. Neles, para se evidenciar a
autoconsciência, muitas vezes recorre-se a um recurso vindo das letras: o discurso indireto
livre – a partir de um pensamento ou reflexão da personagem ou de uma narração –, cujo uso
na fala de uma personagem faz distanciar ator e papel.
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Apesar de presente no teatro desde os seus primórdios (por influência direta da literatura),
o discurso indireto livre intensificou-se nas peças do dramaturgo alemão Bertold Brecht, ao
se valer, segundo Walter Benjamin no artigo Que é o teatro épico?: Um estudo sobre Brecht,
presente no livro Magia e técnica, arte e política - Ensaios sobre literatura e história da cultura,
de um sistema de distanciamento onde suas personagens refletiam sobre suas próprias
naturezas e sobre a narrativa onde se inseriam, de modo a levar o espectador a ver que a
peça representada tratava-se de uma ficção e a confrontar a sua própria realidade. Benjamin
confirma essa relação com a literatura ao dizer que “o teatro épico é gestual. Em que sentido
ele também é literário, na acepção tradicional do termo, é por si só uma questão” (2012, p.85).
Ao contrário do teatro naturalista, o teatro épico
conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva.
Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da
realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as
“condições”. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas
dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no
teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico
presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática. No
indivíduo que se assombra desperta o interesse (BENJAMIN, 2012, p.86).
No cinema, a autoconsciência pode se dar não apenas na narrativa, mas também na própria
linguagem cinematográfica em si, a partir de cortes pouco usuais e de uma montagem de
seqüências que não se enquadre em uma linguagem clássica convencionalizada, até meados
dos anos 1940, pela indústria hegemônica de Hollywood. Entretanto, a principal característica
de um cinema autoconsciente vem através da câmera na mão, elemento tipicamente moderno,
uma vez que rompe com a tradição clássica ao evidenciar os movimentos da câmera para o
espectador. Sendo assim, a câmera se trata de um dispositivo ideológico.
O termo dispositivo deriva-se do conceito de Gestell de Martin Heidegger, relacionado à técnica.
Francisco Rüdiger, na apresentação do livro Martin Heidegger e a questão da técnica: Prospectos
acerca do futuro do homem, define a técnica: “a técnica ou racionalidade é o saber posto em
prática de forma mais ou menos alienada (na máquina). A cultura ou imaginação é o elemento
criador desse saber, a força que transcende a ação corporal e a operação maquinística” (2006,
p.16). O “Gestell” de Heidegger – que pode ser traduzido como “instrumento”, “composição”,
“artefato”, “armação” –, é definido pelo autor em A questão da técnica, capítulo do livro Ensaios
e conferências, como algo que explora a natureza através do desencobrimento:
o apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre
como dis-ponibilidade. [...] “Gestell” significa também o esqueleto. [...]
Com-posição, “Gestell”, significa a força de reunião daquele por que põe, ou
seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição,
como dis-ponibilidade. Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de
desencobrimento que rege a técnica moderna mas que, em si mesmo, não é
nada técnico (HEIDEGGER, 2012, p.23-24).
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O Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0 define desencobrir como “tirar (de algo
ou de si mesmo) o que cobre ou tampa; descobrir(-se), destapar(-se), revelar(-se)” (HOUAISS,
2009), ou seja, o desencobrimento, a técnica e o Gestell (sua essência) vão contra a natureza,
buscam explorá-la de forma desenfreada. Dessa forma, o dispositivo, segundo Michel Foucault
em Sobre a história da sexualidade, capítulo do livro Microfísica do poder, é uma tecnologia
concreta que gera reações abstratas na sociedade através de um discurso de poder e
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos
(FOUCAULT, 2015, p.364).
No que diz respeito ao cinema, Jacques Aumont no capítulo A parte do dispositivo do livro A
imagem, define o dispositivo cinematográfico da seguinte forma:
A primeira função do dispositivo é propor soluções concretas à gestão desse
contato antinatural entre o espaço do espectador e o espaço da imagem, que
qualificaremos de espaço plástico [...]. [...] Este é pois o primeiro dado de
todo dispositivo de imagens: trata-se de regular a distância psíquica entre um
sujeito espectador e uma imagem organizada pelo jogo dos valores plásticos
(AUMONT, 1993, p.136).
Ismail Xavier corrobora o que diz Aumont ao afirmar, em referência à teoria de Christian Metz
– um dos primeiros teóricos e pesquisadores a estudar o cinema sob o olhar da semiologia e
da lingüística –, no artigo As aventuras do dispositivo (1978-2004), um dos apêndices do livro
O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência, que
o Dispositivo não é apenas o aparato técnico, mas toda a engrenagem que envolve
o filme, o público e a crítica; enfim, todo o processo de produção e circulação das
imagens onde se atuam os códigos internalizados por todos os parceiros do jogo.
Deste modo, o Dispositivo se põe como uma “instituição social da modernidade” que
começa então a ser decifrada em suas bases mais profundas (XAVIER, 2005, p.176).
No início do século XX e até meados dos anos 1940, o cinema de ficção em sua maioria
(principalmente o americano) vinha de uma tradição clássica que estabelecia uma espécie de
“contrato” implícito com o olhar do espectador, ao fazê-lo inserir-se no universo do espetáculo
representado pela imagem em movimento, dispositivo esse que buscava falsear e recortar a
realidade para transformá-la em um imaginário ficcional e mágico onde as regras da vida não
se aplicavam e onde tudo seria possível, contando com isso com essa inserção do público
dentro desse mundo de fantasia para identificar-se lá dentro.
O termo dispositivo liga-se, assim, à experiência da recepção das imagens em movimento por
parte do público dentro de uma sala de cinema. O cinema moderno e todos os seus aparatos
experimentais de linguagem induzem o espectador a outro tipo de experiência que está longe
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da simples identificação. Com isso, a evidenciação do dispositivo cinematográfico gera tipos
de recepção distintos. O uso moderno desse dispositivo intensifica mais a indução do olhar
proporcionada anteriormente pelo cinema clássico.
A respeito dessa questão ideológica citada anteriormente, que é imposta pela imagem
cinematográfica (amparada pelo discurso de seu dispositivo) em relação ao espectador, JeanLouis Baudry em Cinema: Efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base, artigo do livro
A experiência do cinema: Antologia, organizado por Ismail Xavier, afirma que
o mecanismo ideológico em ação no cinema parece, pois, se concentrar na
relação entre a câmera e o sujeito. O que se trata de saber é se a câmera
permitirá ao sujeito se constituir e apreender num modo particular de
reflexão especular. [...] Aqui delineia-se a função específica preenchida pelo
cinema como suporte da ideologia: esta passa a constituir o “sujeito” pela
delimitação ilusória de um lugar central [...]. Aparelho destinado a obter um
efeito ideológico preciso e necessário à ideologia dominante: gerando uma
fantasmatização do sujeito, o cinema colabora com segura eficácia para a
manutenção do idealismo (BAUDRY, 1983, p.397-398).
A câmera na mão seria para Xavier, no capítulo Deus e o diabo na terra do sol: As figuras da
revolução do livro Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome, com isso, um dispositivo
rompedor com o discurso dominante do cinema dos países e continentes centrais, ao trazer
um novo olhar para o espectador que causasse uma ruptura com certa alienação imposta pelo
cinema clássico e fizesse as pessoas refletirem sobre sua própria realidade e sobre o papel da
arte ao representar o mundo no universo da ficção, pois “a câmera na mão estabelece [...] um
efeito de atualidade à sua experiência – vemos a cena através do olhar de uma câmera que
não se esconde e que procura, pela sua presença confessa, acentuar o aqui e agora da situação
testemunhada” (2007, p.97).
Então, a utilização da câmera na mão é muito mais do que uma nova forma de trabalhar a
tecnologia propiciada pelo cinema. Esse recurso é uma afirmação de uma ideologia políticosocial questionadora e rompedora do modelo industrial de se fazer cinema – típico dos EUA e
da Europa e até do próprio Brasil que, durante muito tempo, copiou esse modelo estrangeiro
–, que preza pela beleza plástica e por certa “higienização” da imagem, o que não leva o
espectador a um desconforto causador de um questionamento sobre aquilo a que ele assiste
e sobre o próprio universo em que está inserido.
A evidenciação da ficção vista por intermédio da câmera na mão é por si só um uso metalingüístico
da câmera, além de outros dispositivos, como o citado discurso indireto livre, uma ligeira falta
de sincronia nos diálogos e o olhar do ator para a câmera. Esse olhar para a câmera faz parecer
que o ator dialoga com o espectador, tal como no momento memorialístico de Deus e o diabo
na terra do sol onde o cangaceiro Corisco recorda a morte de Lampião e a encena em um
monólogo onde encarna a si e a seu mestre, o que remonta à narrativa de Riobaldo em Grande
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sertão: Veredas, que mistura procedimentos análogos aos do teatro brechtiano e da literatura
de cordel.
Tudo isso se trata de metalinguagem, definida pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 3.0 como uma figura de “linguagem (natural ou formalizada) que serve para
descrever ou falar sobre uma outra linguagem, natural ou artificial” (HOUAISS, 2009). Entendese, assim, que a arte de falar sobre si mesma ou expor seus recursos e artifícios expressivos
representa uma metalinguagem. Esse processo de se valer de uma linguagem para falar de
outra e de conscientizar o espectador do universo ficcional no qual a obra se insere passa por
uma dialética entre o real e o imaginário que se mostra como transgressora, “um ato de fingir”,
como afirma Wolfgang Iser, citado por Haroldo de Campos, no capítulo Ficção como fundação
do livro Metalinguagem & outras metas: Ensaios de teoria e crítica literária. Iser ainda diz que
“o ato de fingir, no texto ficcional, manifesta-se como uma relação dialética entre o imaginário
e o real” (ISER apud CAMPOS, 2006, p.280).
Em Deus e o diabo na terra do sol, Glauber Rocha se vale desse ato de fingir transgressor e
desse recurso de indução do olhar citado anteriormente, porém, desconstrói esse último à sua
maneira quando, em quatro planos básicos presentes logo na abertura do filme, informa seu
público do que trata sua obra através das referências presentes nessas imagens.
Primeiro, há um longo passeio de câmera na mão pela secura do sertão, o que alude ao universo
de Guimarães Rosa e que, por se tratar de uma tomada longa (que evoca um plano-seqüência)
em plano geral, com ângulo de câmera superior ao ambiente feita com luz natural, remete ao
Neo-Realismo, movimento surgido no pós-Segunda Guerra Mundial na Itália cujos cineastas
foram para as ruas registrar a destruição física e metafísica causada pela invasão nazista
através de filmes de ficção, isso se valendo de planos-sequências, luz natural e profundidade
de campo na imagem. Segundo André Bazin, em A evolução da linguagem cinematográfica,
isso representou novos padrões estéticos no cinema, pois
graças à profundidade de campo, cenas inteiras são tratadas numa única tomada,
a câmera ficando até mesmo imóvel. Os efeitos dramáticos, que anteriormente
se exigia da montagem, surgem aqui do deslocamento dos atores dentro do
enquadramento escolhido de uma vez por todas (BAZIN, 2014, p.105).
Como afirma Gilles Deleuze, em referência a Bazin, no capítulo Para além da imagemmovimento do livro A imagem-tempo, para o Neo-Realismo “o real não era mais representado
ou reproduzido, mas ‘visado’” (DELEUZE, 2007, p.9). Isso criava, ainda de acordo com Bazin e
Deleuze, uma espécie de “imagem-fato” testemunha de seu próprio tempo, o que foi uma das
principais características do Cinema Novo, movimento no qual Glauber Rocha se insere, que
teve como uma de suas bases o Neo-Realismo, inclusive, utilizando o prefixo “neo” (de origem
no grego “νέο”) traduzido para o português para fixar essa influência.
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Rocha demonstra essa tentativa de visar o real nessa tomada longa vista na abertura de Deus
e o diabo na terra do sol, seguida por dois planos (que, pelo mesmo conteúdo, valem por um
só) mais fechados mostrando as ossadas de um boi carcomidas pela seca e por mosquitos:
primeiro seu focinho, depois um de seus olhos. Trata-se de uma montagem dialética ou de
atrações, definida por Bazin “como o reforço do sentido de uma imagem pela aproximação com
outra imagem que não pertence necessariamente ao mesmo acontecimento” (2014, p.97) e
como uma justaposição de duas imagens de ordens aparentemente distintas que causam um
efeito no espectador.
Esse estilo de montagem foi teorizado e utilizado pelo cineasta e teórico russo Sergei
Eisenstein nos anos 1920 – em filmes como A greve (1924), O encouraçado Potemkin (1925) e
Outubro (1927) –, sendo ele uma das grandes influências de Rocha. O efeito causado por essa
justaposição de imagens empreendida por Rocha seria o de, através da imagem, incutir na
mente de seu público a destruição causada pela seca no sertão nordestino, local onde se passa
sua estória. Assim, ele opõe duas coisas distintas: o plano-seqüência – ou pelo menos uma
simulação deste através de uma tomada longa – e a montagem de atrações eisensteiniana.
Em seguida, há um primeiro plano de Manuel, o vaqueiro protagonista da narrativa – que
possui ecos do Riobaldo de Grande sertão: Veredas e do Fabiano de Vidas secas, romance de
Graciliano Ramos. Ele leva em seu rosto uma expressão mista de preocupação e desolação
para com a situação atual que força a fome e a pobreza aos oprimidos como ele. O modo de
Manuel vestir-se, com o típico chapéu de vaqueiro, também mostra outra influência de Rocha:
o western americano, isso ao levar algumas das características desse gênero para um cenário
brasileiro, desconstruindo-o.
Todavia, essas referências (o plano-seqüência e a montagem de atrações) aparecem de maneira
a causar choque no espectador habituado à montagem clássica “invisível”, uma vez que há um
corte de um plano aberto para três enquadramentos seguidos extremamente fechados em
uma montagem brusca. Esse choque metalingüístico faz o público constatar já na abertura que
o filme se trata de uma ficção e não de um espetáculo, fazendo-o refletir sobre a situação da
seca e da fome.
Outro ponto que chama a atenção nessa mesma abertura diz respeito aos créditos, quando
as canções originais compostas por Rocha e musicadas e cantadas por Sérgio Ricardo são
atribuídas ao último através da inscrição “romance na voz e violão”. Isso remete à natureza
literária e ao mesmo tempo autoconsciente de Deus e o diabo na terra do sol presente nessas
músicas que têm como sua base a literatura de cordel, assim como a linguagem escritural e
poética trabalhada por Guimarães Rosa em Grande sertão: Veredas.
No romance de Guimarães Rosa, há momentos em que as personagens entoam canções do
imaginário popular que, de certa forma, narram sua trajetória de momento, funcionando
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como um discurso indireto livre e também como um relato ritualístico que remonta ao coro da
tragédia grega. Além disso, o próprio romance em si tem um tom poético-musical escrito em
forma de prosa por Guimarães Rosa.
Glauber Rocha transpõe isso para Deus e o diabo na terra do sol quando se vale do mesmo
recurso na trilha sonora que acompanha as personagens narrando cada um de seus passos,
desde a revolta de Manuel com seu patrão (o coronel Morais), passando por sua busca de
salvação (ao lado de sua esposa, Rosa), primeiro junto ao beato Sebastião e depois quando se
associa ao grupo de cangaceiros liderados por Corisco, até o confronto final entre Corisco e o
pistoleiro Antônio das Mortes.
Nesse ato de autoconsciência por parte de Rocha, são criados dois pólos de possível salvação
para Manuel e Rosa: Sebastião, o beato e Deus negro que acredita no poder da religião para
salvar o povo de sua condenação à pobreza – salvação essa que vem de uma ordem metafísica,
ligada à remissão dos pecados para se chegar ao paraíso representado, segundo suas próprias
palavras, pelo sertão milagrosamente transformado em mar –; e Corisco, o diabo loiro, chefe
de um bando de cangaceiros que funciona como uma espécie de Robin Hood ao tomar de
assalto os ricos para, assim, alimentar os pobres, no caso seu próprio grupamento, e fazer
justiça com as próprias mãos. Apesar de dispostos de forma didática, esses dois pólos são
colididos de maneira brusca, tal como a montagem do filme, de modo a fazer o espectador
observar que aquilo se trata de uma ficção.
Sebastião é uma mistura de Antônio Conselheiro, Padre Cícero e beato Lourenço (do qual
mais se aproxima, inclusive, pelo fato dele e Sebastião serem negros) e evoca os movimentos
messiânicos que tomaram conta do sertão nordestino entre o final do século XIX e o início
do século XX, como Canudos, a Revolta de Juazeiro e o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto,
além de rememorar a personagem Quelemém, o compadre kardecista de Riobaldo em
Grande sertão: Veredas. Sebastião representa o fanatismo religioso que, ao mesmo tempo
em que serve de conforto ao povo, serve também de alienação, ambivalência da qual
Glauber Rocha não escapa.
Enquanto isso, Corisco traz à memória o jagunço Joca Ramiro, chefe do bando de Riobaldo
no romance de Guimarães Rosa, e, mais precisamente, Lampião, seu mentor e uma espécie
de figura paterna, além de ser uma representação ficcionalizada do verdadeiro Corisco. Além
disso, essa dicotomia entre as duas personagens de Deus e o diabo na terra do sol é uma
referência ao próprio tom religioso judaico-cristão de Grande sertão: Veredas, presente na
contradição que toma Riobaldo a respeito da crença em Deus e no diabo.
No meio de Sebastião e Corisco e do que eles simbolizam (a religião e a revolta,
respectivamente) está Manuel, que leva junto Rosa, sua esposa. Do outro lado está Antônio
das Mortes, pistoleiro pago pelos latifundiários locais e pela Igreja Católica que veem nas
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manifestações, tanto de Sebastião quanto de Corisco, um embrião socialista que pretende
desmantelar o poderio estabelecido naquela região que alimenta financeiramente a própria
Igreja. Ele se parece com o ambíguo Zé Bebelo de Grande sertão: Veredas, descrito como
um homem pago por políticos e pelo governo para perseguir o bando de jagunços do qual
Riobaldo faz parte, além de lembrar o vingativo Hermógenes4. Porém, Antônio das Mortes
ganha uma dimensão trágica e ambígua, pois ele tem consciência do dever que deve cumprir,
mas parece cumpri-lo para encerrar com o sofrimento do homem que luta por igualdade
social, pois não suportaria essa angústia.
Glauber Rocha filma tudo isso como uma espécie de transe vindo da terra, representado nos
confrontos travados pelos cangaceiros, o que vem de influência dos combates entre os grupos
de jagunços descritos por Guimarães Rosa em Grande sertão: Veredas, e realiza uma espécie
de tradução em imagem fílmica da narrativa ligeira do autor, vertendo em imagens as palavras
de Riobaldo, como, por exemplo, o trecho que melhor define seu relato e a luta de jagunços
e cangaceiros por melhores condições de vida (simbolizada no transe citado anteriormente):
“a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho” (ROSA, 1972, p.77). O transe é
definido pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0 como um
estado de aflição, angústia; fenômeno religioso e social de representação coletiva, no
qual o médium experimenta um sentimento de identificação com comportamentos
correspondentes a determinada divindade ou entidade; estado afim do sono ou de
alteração da consciência, marcado por reduzida sensibilidade a estímulos, perda
ou alteração do conhecimento do que sucede à volta e substituição da atividade
voluntária pela automática; estado de abstração ou de exaltação de alguém que se
sente transportado para fora de si e do mundo sensível, e em sintonia com algo
transcendente (HOUAISS, 2009).
Todas essas definições ajudam a explicar a intenção estética de Rocha, pois o uso da câmera
na mão e a montagem brusca seria uma forma de levar seu espectador a ter consciência do
universo ficcional da narrativa e a transportá-lo “para fora de si e do mundo sensível”. Sobre
esse transe, Euclides da Cunha afirma em Os sertões que “o homem dos sertões [...] mais
do que qualquer outro está em função imediata da terra” (2003, p.92). Rocha parece levar
essa afirmação a fundo quando irrompe sua câmera na mão autoconsciente pela paisagem
do sertão como se ela fosse um olhar da terra – aqui entendida como metonímia do sertanejo
em consonância com a fala de Euclides da Cunha – revoltada com o tratamento dado pelos
poderosos a ela, que a possuem em vastas imensidões quando, ao mesmo tempo, os
camponeses não possuem terra alguma e são uma espécie de semiescravos.
Esse transe é filmado por Rocha a partir de sua Estética da fome, onde a fome e a miséria
4 O primeiro rascunho do roteiro de Deus e o diabo na terra do sol, escrito por Rocha, chamava-se A ira de Deus. José Carlos
Avellar, no livro homônimo ao filme, afirma que “o interesse pela história de Corisco veio quando ele descobriu como ela acabava” (1995, p.27). A personagem Antônio das Mortes teria sido inspirada no major José Rufino, que teria sido o assassino do
verdadeiro Corisco. Segundo contou o próprio Rufino a Rocha, após a morte de Corisco, um casal que acompanhava o bando
do cangaceiro teria fugido, o que influenciou o final da narrativa, onde Manuel e Rosa correm pelo sertão sem destino.
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são apresentadas tal como o são, sem artificialismos narrativos ou estéticos que embelezem
a pobreza para a burguesia, tudo isso mostrando as revoltas que tomaram espaço no campo
em busca de novas condições de vida, como se fossem uma irrupção da própria terra, pois,
segundo Rocha em Eztetyka da fome 65, artigo presente no livro Revolução do Cinema Novo,
“enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo” (2004, p.66). No caso do cineasta,
sua arma é a câmera na mão.
Tudo isso se dá a partir do modo como Glauber Rocha assume a fala do oprimido em sua
luta hercúlea em busca de vencer o jugo da burguesia que monopoliza a terra e o capital e
transforma os camponeses em semiescravos. Rocha rompe, assim, com o discurso dominante
do capital e das instituições, representado em Deus e o diabo na terra do sol pelos fazendeiros
amalgamados na figura do coronel Morais, na Igreja Católica e no próprio Antônio das Mortes,
instrumento de colocação em prática da violência dessas autoridades.
Segundo Foucault em A ordem do discurso, esse conceito “pode ser entendido como uma
forma de dominação e alienação, e como algo que “não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (1996, p. 10), além de como aquilo que rege as sociedades em geral, e
cala os questionamentos que vão contra o modelo de dominância do mundo que o divide entre
oprimidos e opressores, o que se vê de maneira ainda mais forte nas comunidades interioranas
e pobres, onde o coronelismo é vigente, o que se apresenta em Grande sertão: Veredas e, mais
precisamente, em A hora e vez de Augusto Matraga, e em Deus e o diabo na terra do sol.
Glauber Rocha faz esse rompimento citado anteriormente a partir do conceito de autoria em
oposição ao industrialismo. Obviamente se sabe que a visão da fome, da pobreza e da seca
são mostradas em Deus e o diabo na terra do sol pelo ponto de vista de Rocha, que não era
um camponês pobre como Manuel e Rosa, nem um cangaceiro revoltado como Corisco ou
um beato como Sebastião. Entretanto, o simples fato do diretor lançar mão de um olhar seco
e desglamourizado (e, por isso, consciente de sua realidade) que ia contra o industrialismo,
demonstra sua preocupação para com essa situação da fome e da miséria, bem como seu
conflito interno entre a religião como salvação e alienação e a revolução violenta por parte do
povo como única forma de se conseguir mudar o status quo dominante.
No final de Deus e o diabo na terra do sol, Corisco e Antônio das Mortes se confrontam, numa
seqüência construída em cima de uma encenação de western no cenário do sertão nordestino
(com uma montagem dialética à Eisenstein) e do discurso indireto livre roseano, presente
na trilha sonora com caráter de literatura de cordel (com versos como “procura Antônio
das Mortes” e “se entrega Corisco”), e na própria fala de Corisco no momento de sua morte
teatralizada: “mais forte são os poderes do povo”. Tudo isso se dá em uma encenação e estética
que buscam revelar seu caráter ficcional. Além disso, a autoconsciência se vê nos próprios
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movimentos das personagens: o girar de Corisco em volta de si mesmo (e a montagem com
três ou quatro enquadramentos dele em posições diferentes, o que causa desorientação no
espectador) e os vários planos seguidos de Antônio das Mortes atirando – o que busca afirmar
seu poder destrutivo e remonta a outra seqüência do filme: o atentado em Monte Santo, onde
inúmeros camponeses são assassinados por Antônio.
A frase “mais forte são os poderes do povo” se trata na verdade de uma fala de Sebastião,
na voz dele próprio, sincronizada com a boca de Corisco, que cai de braços abertos como
uma espécie de Jesus Cristo crucificado. Esse efeito antinaturalista teria a função de atribuir
ao filme uma visão alegórica do mito transmitido oralmente – amalgamando em Corisco os
estereótipos do cangaceiro e do fanático, pois ambos lutam pela libertação de seu povo –, visão
essa transformada em estória memorialística das figuras revoltosas do sertão que buscavam o
fim da opressão, cada uma a seu modo. Segundo Jair Tadeu da Fonseca no artigo Auto-retrato
do artista-intelectual enquanto outro (ou outra coisa), Glauber Rocha demonstra, assim, “que
a história é um processo descontínuo, em que fragmentos de sentido apenas fazem supor uma
totalidade oculta, da qual são indícios” (2002, p.47).
Morto Corisco, Antônio das Mortes poupa Manuel e Rosa5, que correm sem destino pelo
sertão enquanto a trilha sonora afirma essa questão da história, da autoconsciência, do mito e
da memória, ao dizer: “Tá contada a minha estória, verdade, imaginação. Espero que o sinhô
tenha tirado uma lição: que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do
homem, não é de Deus nem do Diabo!”.
Manuel esquece Rosa para trás e a imagem do sertão se funde com uma imagem do mar –
ao mesmo tempo em que a música afirma que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão –,
como se Manuel corresse para um futuro de esperança, onde o sertão finalmente seria mar
e onde a justiça social estaria concretizada, ou se fosse preciso correr para se chegar a um
fim. Entretanto, a “moral” é ambígua, pois “enquanto o refrão afirma a certeza metafísica de
beato e cangaceiro, os versos do cantador propõem a moral humanista que coloca o futuro do
homem nas mãos do próprio homem” (XAVIER, 2007, p.90).
Esse refrão demonstra mais uma vez a característica de autoconsciência de Deus e o diabo na terra
do sol, pois, segundo Xavier, “se imagem e som celebram a representação do télos6, renovando
a certeza revolucionária, tal coroamento do discurso é uma intervenção direta do narrador”
(2007, p.91), o que prova novamente a interferência de Rocha na narrativa para despertar seu
espectador para a ficcionalidade de seu filme e fazê-lo ver o mundo fora da tela.
5 Conferir nota de rodapé número 3.
6 O télos é caracterizado como um “ponto ou estado de caráter atrativo ou concludente para o qual se move uma realidade;
finalidade, objetivo, alvo, destino; fase final, derradeira” (HOUAISS, 2009). Porém, de acordo com Heidegger, “com muita
freqüência, traduz-se τέλος por ‘fim’, entendido, como meta, e também por ‘finalidade’, entendida, como propósito, interpretando-se mal essa palavra grega” (2012, p.14), pois o fim na verdade seria o início de outra fase.
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Com isso, foi demonstrado nesse artigo que tal recurso de interferência na narrativa não
se mostra apenas na câmera na mão em si, mas a partir de outros dispositivos propícios
do cinema, como a montagem, a sincronização de falas e a própria encenação, que traz
influência do teatro épico de Brecht, além de dispositivos próprios da literatura, como o
discurso indireto livre, presente nas falas das personagens (em monólogos e diálogos) e
nas canções de origem na poesia e no cordel. Alguns desses recursos literários também
se apresentam em Grande sertão: Veredas, como prova a comparação entre ele e o filme
de Rocha exposta aqui. Apesar de tais recursos autoconscientes hoje serem vistos como
recorrentes na literatura e no cinema, no período em que surgiram, trataram-se de grandes
rupturas e revoluções dentro do campo artístico e, por isso, tanto Glauber Rocha quanto
Guimarães Rosa podem ser tidos como dois artistas modernos e revolucionários, cada um a
seu modo e em sua área específica de atuação.
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Direito à Cultura
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DIREITOS CULTURAIS NO BRASIL
Ícaro Vasques Inchauspe1
Resumo
O breve artigo visa observar e compreender o contexto e a trajetória das políticas culturais
enquanto direitos culturais no Brasil. Atenta para aspectos importantes da história relacionada
à cultura como direito, na perspectiva de verificar como foram pensadas e elaboradas as
políticas culturais, e de que forma ocorreram as transformações nos processos políticos,
econômicos, governamentais e sociais, propondo a reflexão do estudo, e um breve panorama
dos resultados alcançados na efetivação das políticas culturais nos dias de hoje.
Palavras-Chave: cultura, direitos culturais, políticas culturais.
Abstract
This brief article aims to reflect and better understand the context and history of cultural
policies as cultural rights in Brazil. Situating important aspects of history related to culture
as a right, in order to check how cultural policies were conceived and developed, and how
the changes occurred in the political, governmental and social processes through the aimed
historical period. Then, proposing the study of reflection, and a brief overview of the results
achieved in the execution of cultural policies today.
Keywords: culture, cultural rights, cultural policies.
1 Graduando em Bacharelado de Produção e Política Cultural da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA. Email: [email protected].
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INTRODUÇÃO
Este breve trabalho tem o objetivo de expor algumas transformações que o termo “cultura”
através de seus significados e variações vem sofrendo modificações em torno da sociedade
para a sua conquista de fato como direitos culturais através dos direitos humanos.
O escopo desse pensamento percorrerá desde sua concepção primária de cultura até os tempos
atuais, luta dos movimentos contra hegemônicos, em tempos de globalização, chegando até
a realidade em que estamos inseridos e de que forma é pensada e articulada a cultura como
direito social na legislação brasileira.
Pensar a cultura desde seus conceitos e significados históricos, tendo em vista como atividade
social que institui um objeto de símbolos e significados de valores, comportamentos e práticas,
acrescentando que há campos culturais diferenciados no interior da sociedade, em decorrência
da divisão social das classes e da pluralidade de grupos e movimentos sociais.
De forma que é preciso entender e interpretar a relação entre o Estado e a cultura, como e de
que forma se manifestaram na sociedade através de condições, práticas políticas e sistemas
econômicos, como elementos integrantes da cultura, isto é, como uma das maneiras pelas
quais, em condições históricas determinadas e sob os imperativos da divisão social das classes,
uma sociedade cria para si própria os símbolos, os signos e as imagens do poder.
O direito à participação nas decisões de política cultural é o direito dos cidadãos intervirem na
definição de diretrizes culturais, a fim de garantir tanto o acesso quanto a produção cultural
pela sociedade. Trata-se de uma política cultural definida pela ideia de cidadania cultural,
onde a cultura se realiza como direito de todos os cidadãos, para que possam manifestar-se
e trabalhar nas práticas e ações no que tange ao exercício do direito à cultura, como sujeitos
sociais que podem entrar em contato, através da interação, troca de experiências, conflitos,
para que possam criar e descontruir todo o processo cultural.
UNIVERSO DA CULTURA: SISTEMA DE SIGNICADOS
Inicia-se então uma reflexão histórica sobre o termo cultura, originário do latim, que remete
ao significado do cultivo e cuidado com plantas e animais. O antropólogo francês Denys Cuche
(1999), transcrevendo a evolução do termo, afirma que este adquire um sentido figurado
no qual representa uma ação que serve para desenvolver uma faculdade ou realização de
potencialidades. Desta maneira, aproxima-se do pensamento no século XVIII, através da
revolução iluminista, quando se associa com as ideias de progresso e razão.
Seguindo o mesmo raciocínio, a filósofa Marilena Chauí (2008) defende que cultura, neste
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momento, deve assemelhar-se a civilização e progresso. Chauí (2008) cita que as sociedades
passam a ser medidas e comparadas pelo seu grau de civilização, determinado pelas suas
práticas culturais.
A cultura torna-se medida e critério para hierarquizar as sociedades, afirma
ainda Chauí (2008), e a referência padrão é o modelo ocidente capitalista.
O padrão dominante é formado pelo seu modo de organizar a economia
por meio da supremacia dos mercados, das relações salariais e das trocas
mercantis e pelo modelo estruturado do conhecimento adotado pelas
sociedades ocidentais; às demais, restou a denominação de “sociedades
primitivas. (CHAUÍ, 2008, p.55).
Conforme Cristina Amélia Pereira de Carvalho, professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, e pesquisadora do Observatório da Realidade Organizacional, no Pará, cujo foco
de interesse de pesquisa são as mudanças no universo da cultura e das organizações culturais,
trata-se de uma clara construção etnocêntrica das ideias, na qual se forma uma hierarquia
das nações e dos povos classificados em estágios “avançados” e “primitivos”. Estes últimos
estariam dispostos a desenvolver esforços para alcançar aqueles. Ainda assim, Cuche
(1999), sustenta que o termo cultura é empregado no singular para indicar o caráter
universalista da ideologia iluminista, que o aproxima de “civilização”.
Diante disso, percebe-se que a cultura é uma grande disputa de significados entendendo o
termo civilização como ponto de partida inicial para a possibilidade de conquista dos direitos
culturais. Tanto a sua apropriação por diferentes áreas da ciência como a popularização de
seu uso resultam em diferentes definições e propósitos. No Brasil, apontam Sophia Cardoso
(2012) e Ana Lúcia Aragão (2012), ao entender que
Os direitos culturais podem ser elencados como aqueles que dizem respeito à
valorização e proteção do patrimônio cultural; à produção, promoção, difusão
e acesso democrático aos bens culturais, à proteção dos direitos autorais e
à valorização da diversidade cultural. Direitos que exigem um protagonismo
por parte do Estado, eles estão intrinsecamente relacionados à consolidação
da democracia, ideais de cidadania plena e fator de desenvolvimento.
(CARDOSO, ARAGÃO, 2011, p.1).
Compreendendo a cultura como um grande potencial de desenvolvimento humano, através
de suas especificidades individuais e coletivas, os direitos culturais entraram na agenda
internacional, especialmente, através da iniciativa das Nações Unidas (ONU).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, concebido pós-guerra e
marco direto da internacionalização desses direitos, descrito no artigo 22, diz que “todo ser
humano, como membro da sociedade, deve ter assegurados, os direitos culturais, considerados
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”. Já o artigo
27 “enfatiza o direito das pessoas de participar e fruir dos benefícios da cultura”.
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Em 1996, sob a coordenação da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco), foi realizado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, correspondente aos desdobramentos do DUDH. No processo de implementação
mundial dos direitos culturais, foi adotada pela UNESCO, em 2001, a Declaração Universal
sobre a Diversidade Cultural.
Segundo Cavalcante (2011), nesse momento, certifica-se o direito das pessoas pertencentes
às minorias a fruir da livre expressão cultural. O direito à participação na vida cultural situa-se
historicamente no contexto emergente dos Estados social-democráticos. De forma que pode
ser incluído entre os direitos conquistados pelo movimento operário em suas lutas por mais
igualdade. Nos termos em que foi formulado, fica nítida a preocupação com a universalização
do acesso aos bens culturais, até então restrito às classes elitistas ou privilegiadas.
POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL
Para entender os direitos culturais e os direitos humanos no Brasil, faz-se necessário
contextualizar o percurso e trajetória de aspectos importantes da história relacionada à cultura,
como a formação e construção dos direitos culturais, a partir dos direitos humanos. De que
forma a cultura foi pensada através das mais diversas ideologias políticas e suas relações entre
Estado e sociedade?
Inicia-se em 1933, na Era Vargas, um governo, segundo Carvalho (2015) autoritário e populista
que faz das massas sua base de sustentação, enquanto se estabelece um corporativismo de
Estado classista, em cujos conselhos de decisão política apenas os empresários tinham o poder
de decisão. O papel da cultura nesse momento é de extrema importância, pois tem o seu
objetivo no plano ideológico/simbológico, com a finalidade de legitimar o projeto nacional de
regime. Segundo Doria (2007), forma-se uma estrutura institucional de promoção de políticas
públicas para a cultura.
Há a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e diversos
institutos nacionais para as artes. O cinema foi muito utilizado através de propagandas, com a
exibição da identidade nacional ajustada ao gosto do Estado, centralizador e articulador, pela
definição dos valores culturais da sociedade.
Em 1955, chega-se ao governo de Juscelino Kubitschek, implantando-se uma política econômica
liberal sobre forte influência estadunidense no país. Seu governo foi conhecido popularmente
como nacional-desenvolvimentista, cuja meta associa-se a programa de desenvolvimento
econômico pelo crescimento da industrialização e da infraestrutura.
João Goulart, em 1961, procurou implementar políticas de avanço social, com reformas de
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base, entre elas, agrária, política, educacional, entre outras. Na cultura, são criadas estruturas
públicas, como o Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação (MEC),
centralizando os assuntos culturais e artísticos, de forma incluí-los nas políticas de governo.
Após o golpe de estado no governo de João Goulart, no período da ditadura-civil militar (19641985), através da forte repressão do Estado à sociedade por governos autoritários, de certo
modo, as políticas culturais foram se modificando e operando de forma centralizada. Após o
declínio da ditadura civil-militar, a década é marcada por forte movimentação da sociedade
civil que abre espaço para um novo sistema político-social, a democracia.
Neste momento, através do texto constitucional de 1988, são reformuladas as noções de
cultura, abrangendo e inserindo a memória dos grupos sociais. A Constituição Federal de
1988 foi igualmente um marco nas estruturas de representação, ao diversificar e pluralizar a
representação dos interesses e garantir a participação direta dos cidadãos conforme Carvalho,
Gameiro e Goulart (2008) e ainda conforme Tapia (2004) e Almeida (2004).
A partir dos anos 80 inicia-se uma nova concepção econômica neoliberal, descendente do
período ditatorial na cultura, marcada pela intermediação dos mecanismos de fomento
privado facilitados pelas leis de incentivo fiscal, detentores do capital de mercado.
Somente em 2003, com um governo dito progressista pensando a diversidade cultural
enquanto a principal marca da identidade nacional, há a criação de mecanismos inclusivos e a
participação da sociedade civil, com a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), em 2012,
nas esferas estaduais e municipais e a criação de conselhos de políticas culturais nas esferas da
união, estados e município, com plena autonomia para definir as prioridades para o controle e
o acompanhamento das ações.
Outra grande ação de inclusão é o Programa Cultura Viva, criado pelo Ministério da
Cultura em 2004. No dia 22 de julho de 2014, foi sancionada a Lei 13.018, Lei Cultura Viva
que transforma o Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural
– Cultura Viva – em uma Política de Estado Brasileiro, dando perenidade as ações do programa,
independente das alternâncias de gestão na administração pública:
Art. 2º: [...] promover o acesso aos meios de fruição, produção e difusão
cultural;
[...] estimular a exploração, o uso e a apropriação dos códigos, linguagens
artísticas e espaços públicos e privados que possam ser disponibilizados para
a ação cultural.
De acordo com a Portaria 156/2004, o Cultura Viva deve ser viabilizado através de publicações
de editais dirigidos para organizações privadas sem fins lucrativos e entidades públicas e a sua
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execução deve acontecer através de projetos e ações. Indica, também, que tem como público
“populações de baixa renda; estudantes da rede básica de ensino; comunidades indígenas,
rurais e quilombolas; agentes culturais, artistas, professores e militantes que desenvolvam
ações no combate à exclusão social e cultural. ” (Art. 3º).
A partir dessas definições, percebe-se que o Programa está voltado ao âmbito da inclusão
cultural e social:
[...] apoia, valoriza e dinamiza as culturas tradicionais e comunitárias,
promovendo também sua articulação com meios modernos e tecnológicos de
produção e difusão cultural [...]. Visa garantir os direitos culturais e construir
a democracia cultural. Atua no estímulo a circuitos cujos agentes culturais
principais são associações periféricas e comunitárias que, sem política deste
tipo, não ganhariam visibilidade nem receberiam apoio público. (BARBOSA;
ARAÚJO; IPEA, 2010, p. 12-14).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As modificações da cultura no sistema político são percebidas, mediante as formulações de
políticas públicas de cultura centralizadas, para a democratização do acesso e participação da
sociedade civil na gestão pública contemporânea que visa o individual, coletivo e minorias,
através de mecanismos dinâmicos assegurados na legislatura brasileira.
De forma que os processos sociais transformaram-se ao decorrer do tempo, passando do
Estado como “detentor autoritário” da produção da cultura hegemônica para interlocutor e
mediador com a finalidade de potencializar e promover a multiculturalidade, com o objetivo
de criar condições de acesso, produção, difusão, preservação e livre circulação; regulando as
economias da cultura para evitar monopólios, exclusões e ações predatórias que antecederam
a democratização do acesso aos bens e serviços culturais e assegurando o direito a participação
da sociedade civil nas decisões sobre políticas culturais.
A cultura nunca foi tratada como objeto propulsor e disseminador das práticas de cidadania
cultural, enquanto elemento de transformação e inclusivo na sociedade, através da
participação da sociedade civil na tomada de decisão em suas ações e, mais além, propiciando
desenvolvimento político, social e econômico através da pluralidade cultural garantidos na
legislação, enquanto direitos culturais subsequentes aos direitos humanos.
No atual momento, entende-se que este é um processo social de desenvolvimento humano, a fim
de propiciar a construção do indivíduo, enquanto liberdade de criação, fruição e acesso a bens
culturais como formas de expressão que, fazendo parte da rotina dessas pessoas, organiza-se em
um processo mútuo entre direitos culturais, no qual estão inseridos atores individuais e coletivos,
diversidade cultural, recurso sistêmico, e o capital, entendido por suas capacidades adquiridas.
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Direito à Cultura
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DO DIREITO À CULTURA:
Reafirmando a Cultura como Direito Universal
Luiza Maria Paixão Lepos1
Resumo
Este trabalho buscará fazer uma análise da cultura enquanto elemento constitutivo dos Direitos
Humanos. Primeiramente, serão expostas as legislações acerca dos direitos culturais e, em
seguida, será apresentada uma análise sociológica do problema. Como reflexão, constatouse que apesar das legislações progressistas, grande parte da população não usufrui o direito
à cultura, sendo esses direitos pouco reconhecidos e pouco estimulados, por isso, no atual
contexto, torna-se necessária a luta pela efetivação dos direitos culturais já reconhecidos na
forma da lei.
Palavras-Chave: Cultura, Direitos Humanos, Politica Cultural.
Abstract
This study will make an analysis of culture as a constitutive element of human rights. First will
be exposed the laws concerning the cultural rights, followed by a sociological analysis of the
problem. Just as a reflection, it was found that despite progressive legislation, much of the
population does not enjoy the right to culture, and these rights are not properly recognized or
stimulated, so in the current context, it is necessary to fight for the realization of cultural rights
already recognized under the law.
Keywords: Culture, Human Rights, Cultural Policy.
1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, UNIFESSPA. E-mail: luizalepos@gmail.
com.
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INTRODUÇÃO
A cultura reflete o modo de vida da sociedade e a identidade de um povo, sendo uma
característica intrínseca do ser humano, portanto, o reconhecimento da cultura enquanto direito
mostra-se necessário para a garantia da dignidade humana e das liberdades fundamentais,
devendo ser defendido como direito universal, indissociável e interdependente. Faz parte
dos direitos culturais o direito autoral, o direito à criação, fruição, difusão e participação nas
decisões de política cultural, o direito à proteção do patrimônio cultural e de cooperação
cultural internacional.
Os Direitos Humanos, por meio da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura - UNESCO, e dos documentos oficiais como o Pacto Internacional pelos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
(2001) e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais
(2005), vem amadurecendo histórica e politicamente a compreensão da cultura como elemento
estratégico de políticas para desenvolvimento dos Estados. Dessa forma, os Direitos Humanos
assumem papel central na configuração de políticas culturais que respeitem a diversidade
cultural, principalmente, nesse contexto de desigualdades sociais e desequilíbrios no acesso aos
bens e serviços culturais. Diante disso, este trabalho dedica-se ao estudo da cultura enquanto
direito humano fundamental, analisando as legislações referentes aos direitos culturais e uma
abordagem sociológica da cultura.
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA CULTURA
O conceito de cultura é muito amplo e compreende praticamente todos os aspectos da vida
humana. Nesse sentido, quais os direitos culturais assegurados juridicamente? E o que significa
a garantia desses direitos? Para responder a essas perguntas, analisaremos a seguir algumas
legislações que tratam do direito à cultura.
O Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) reconhece que,
para a concretização dos Direitos Humanos e alcançarmos o “ideal do ser humano livre, liberto
do medo e da miséria”, é necessária a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais,
por isso, o pacto busca reconhecer o direito ao trabalho, segurança social, família, direito à
alimentação, alojamento e vestuário, acesso à saúde, educação e cultura.
Sobre o direito à cultura, o pacto diz que é dever do Estado garantir a todos o direito “de
participar da vida cultural; beneficiar do progresso científico e suas aplicações; beneficiar
da proteção dos interesses morais e materiais que decorrem de toda a produção científica,
literária ou artística de que cada um é autor” (art. 15, I).
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A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural diz que a “ampla difusão da cultura e
da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para a
dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir”
(UNESCO, 2001).
A Declaração conceitua a cultura como
o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos
que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das
artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas
de valores, as tradições e crenças. [...] encontrando-se no centro dos debates
contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de
uma economia baseada no saber. (UNESCO, 2001).
Traz como importante avanço na compreensão da cultura temas como diversidade, pluralismo
e intercâmbio cultural, introduz temas como patrimônio cultural e o mercado de bens e serviços
culturais, e reconhece o papel das tecnologias na difusão e democratização cultural.
O terceiro dispositivo internacional analisado foi a Convenção sobre a Proteção e Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais (2005), o qual apresenta como objetivo e princípios
diretores o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; a soberania
dos Estados; a igualdade, dignidade e o respeito por todas as culturas; a solidariedade e
cooperação internacionais; a complementaridade dos aspectos econômicos e culturais;
o desenvolvimento sustentável; o acesso equitativo aos bens culturais; a abertura a outras
culturas e o equilíbrio.
De acordo com a convenção, os Estados Parte deverão tomar medidas para a promoção
das expressões culturais, tais como: encorajar indivíduos e grupos sociais a criar, produzir,
difundir, distribuir suas próprias expressões culturais, e a elas ter acesso; propiciar o acesso às
diversas expressões culturais provenientes do seu território e dos demais países do mundo;
reconhecer a importante contribuição dos artistas, de todos aqueles envolvidos no processo
criativo; desenvolver sistemas de educação e conscientização pública; garantir e estimular a
participação da sociedade civil na proteção e promoção da diversidade das expressões culturais
e propiciar condições para o desenvolvimento sustentável. Estabelece ainda que os Estados
Parte deverão implementar medidas para a proteção das expressões culturais que estejam em
risco de extinção, ou sob séria ameaça.
No que se refere à cooperação internacional, as Partes deverão colaborar para a redução da
pobreza, contribuindo para o fortalecimento da capacidade dos países em desenvolvimento de
proteger e promover a diversidade das expressões culturais, incentivando o desenvolvimento
de parcerias entre o setor público, o setor privado e organizações sem fins lucrativos, a fim de
cooperar com a melhoria da infraestrutura, dos recursos humanos e políticos e o intercâmbio
de atividades, bens e serviços culturais.
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A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) também foi analisada. Esta dispõe
acerca da cultura nos artigos 215 e 216; expressa a responsabilidade do Estado brasileiro em
“garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
apoio e incentivo a valorização e a difusão das manifestações culturais.” (art. 215). Estabelece
também no inciso 3º deste mesmo artigo a criação do Plano Nacional de Cultura, visando ao
desenvolvimento cultural do país no que diz respeito a:
I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II – produção, promoção
e difusão de bens culturais; III – formação de pessoal qualificado para a gestão
da cultura em suas múltiplas dimensões; IV – democratização do acesso aos bens
de cultura; V – valorização da diversidade étnica e regional. (art. 215, § 3º)
A constituição define também o patrimônio cultural brasileiro como:
I – formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações
cientificas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e cientifico. (art. 216)
UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA CULTURA
A cultura pode ser conceituada como a relação dos homens entre si e deles com o ambiente
ao seu redor, relações essas construídas social e historicamente; compreende os diferentes
modos de comunicação, alimentação, espiritualidade, expressão das tradições e crenças, a
organização familiar, os diferentes sistemas educacionais, esportivos e de lazer, entre outros
elementos presentes em todas as sociedades humanas.
Conforme Chauí (2008),
cada cultura exprime, de maneira historicamente determinada e materialmente
determinada, a ordem humana simbólica com uma individualidade própria
ou uma estrutura própria. [...] A cultura passa a ser compreendida como o
campo no qual os sujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem
as práticas e os valores, definem para si próprios o possível e o impossível,
o sentido da linha do tempo (passado, presente e futuro), as diferenças
no interior do espaço (o sentido do próximo e do distante, do grande e do
pequeno, do visível e do invisível), os valores como o verdadeiro e o falso,
o belo e o feio, o justo e o injusto, instauram a ideia de lei, e, portanto, do
permitido e do proibido, determinam o sentido da vida e da morte e das
relações entre o sagrado e o profano. (CHAUÍ, 2008, p. 07)
Não obstante, existem diferentes formas de encarar a cultura, sendo que essas concepções
influenciam nas políticas culturais, entre as quais podemos destacar a visão hierárquica e a
visão democrática da cultura.
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A primeira concepção diz que existem diferentes níveis culturais, existem aquelas mais
“evoluídas”, de melhor qualidade, a cultura branca, vinda da elite nacional e internacional; do
outro lado há os “sem cultura” ou “cultura inferior” que, em geral, é composta pela cultura
afro, da periferia e da população pobre. Nesse sentido, essa concepção leva em consideração
apenas a cultura erudita, as belas artes, e a cultura estrangeira, geralmente, de origem europeia
e norte-americana.
A concepção democrática baseia-se no princípio de que todos os agrupamentos humanos
produzem sua própria cultura e que, portanto, a negação dos diferentes formatos culturais
configura-se como uma grave contradição; além disso, busca romper com o etnocentrismo da
visão hierárquica da cultura, como visto acima, devendo ser estimulada, nessa perspectiva,
a produção cultural das classes populares, encarando o povo como sujeito de sua própria
identidade cultural e reconhecendo o valor cultural das experiências cotidianas.
Enquanto política pública, a cultura tem sido abordada em seus múltiplos aspectos, sendo
debatidas questões relacionadas à produção, fruição, participação, formação, criação e
financiamento. E ainda os bens culturais considerados como necessidade profunda do ser
humano e direito indispensável para a vida em sociedade.
É sabido que, no sistema capitalista, a marginalização e a exclusão social atinge grande parte
da população, privando-os, direta ou indiretamente, do acesso aos direitos fundamentais da
humanidade, assim, o mesmo ocorre no campo da cultura, no qual os cidadãos não têm acesso
às produções culturais.
De acordo com Souza (2012),
essa exclusão vem aumentando à medida que as políticas públicas têm
investido prioritariamente em políticas culturais “especializadas”, isto é, em
atividades relacionadas com as chamadas linguagens artísticas. Mas cultura
não é só a arte erudita e, embora ela seja importante para a educação cultural,
não se constitui na única referência para o entendimento da cultura criativa e
viva de uma sociedade. (SOUZA, 2012, p. 02)
Diante do exposto, questionamos: como o Estado tem tratado a cultura? Como o ele tem
garantido à população o acesso à cultura?
Segundo Chauí (2008), o Estado brasileiro sempre teve uma postura antidemocrática em relação à
cultura; primeiramente, ao apresentar-se como “produtor cultural”, buscando criar uma “cultura
oficial”. A crítica de Chauí ao Estado como produtor cultural refere-se ao fato de a cultura ser
algo muito amplo, não sendo possível uma homogeneização da cultura brasileira; além disso, o
Estado é um dos elementos integrantes da cultura nacional, mas não o elemento que a produz.
Considerando-se a cultura como atividade social, composta de símbolos, valores,
comportamentos e práticas e considerando-se, ainda, a pluralidade cultural dentro de uma
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mesma sociedade, a ação estatal como produtora da cultura nacional torna-se antidemocrática,
sendo agravada a situação se pensarmos que quando o Estado privilegia um aspecto da cultura
acaba marginalizando as outras expressões culturais da sociedade.
Continuando a tese da postura antidemocrática do Estado brasileiro em relação à cultura,
Chauí coloca que, a partir da década de 1990, “o Estado propõe o ‘tratamento moderno da
cultura’ e considera arcaico apresentar-se como produtor oficial de cultura. Por modernidade,
os governantes entendem os critérios e a lógica da indústria cultural” (CHAUÍ, 2008, p. 13).
Dessa forma, o Estado passa a tratar a cultura de acordo com os padrões de mercado. A cultura
é transformada em produto, valorizada de acordo com os interesses econômicos, sendo
marginalizadas as atividades culturais menos “lucrativas” ou sem lucro algum. Além disso, a
autora ainda aponta a alienação do trabalho criativo, ao dizer que “a cultura é tomada em seu
ponto final, no momento em que as obras são expostas como espetáculo, deixando na sombra
o essencial, isto é, o processo de criação” (CHAUÍ, 2008, p. 14).
Assim, Chauí (2008) propõe que o Estado deve conceber a cultura como um direito do cidadão,
assegurando não só o direito ao acesso às obras culturais, mas também o direito de produzilas, participando de todo o trabalho cultural e tendo acesso aos conhecimentos decorrentes
desse processo. A autora ainda nos oferece o conceito de Cidadania Cultural, apresentada
como o direito que todo cidadão tem de participar e intervir na definição das políticas culturais
e dos orçamentos públicos, a fim de garantir o acesso e a produção cultural.
Além disso, apresenta importante reflexão sobre a política cultural, ao indagar o “por que não
oferecer condições teóricas e técnicas para que, conhecendo as várias modalidades de suportes
da memória (documentos, escritos, fotografias, filmes, objetos, etc.), possam preservar sua
própria criação como memória social?” (CHAUÍ, 2008, p. 16). Dessa forma, a cultura não se
reduziria aos padrões do mercado ou às atividades de entretenimento, mas se efetivaria como
direito de todo cidadão, como sujeitos sociais e políticos, transformando sua própria realidade
a partir do movimento dialético de reflexão e intervenção sobre as práticas socioculturais.
CONCLUSÃO
De forma geral, as legislações analisadas apresentam uma compreensão atualizada e progressista
da cultura e dos direitos culturais, reconhecendo a diversidade cultural como característica
essencial da humanidade, necessária para a plena realização dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais. A análise sociológica traz reflexões ao questionar se esses avanços
têm refletido na realidade da população brasileira; se está sendo garantido, de fato, o acesso
popular à cultura. E o que pode ser considerado acesso (ou não) à cultura? Considerando-se
aqui a cultura presente em praticamente todos os aspectos da vida humana.
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Chegamos a um paradoxo: de um lado temos legislações progressistas que asseguram o direito
à diversidade cultural, por outro lado, muitos desses direitos são sonegados à grande parte
da população, sendo os direitos culturais pouco reconhecidos e pouco estimulados, tidos,
muitas vezes, como algo supérfluo e menos importante. Por isso, no atual contexto, torna-se
necessária a luta, não mais pela garantia legal dos direitos culturais, mas pela efetivação dos
direitos já reconhecidos na forma da lei.
É necessária a implantação de uma política de cultura democratizante que impulsione a criação
de mais espaços socioculturais, para uso de todos, que promova o combate às formas de exclusão
social, utilizando os recursos públicos em projetos públicos e coletivos, considerando-se nas políticas
públicas os movimentos sociais e culturais, dando visibilidade a sujeitos não reconhecidos.
Souza (2012) considera que a política cultural não deve ser concebida como mero entretenimento,
ou um adorno na paisagem, colocada em um departamento ou disciplina “optativa”, mas deve
ser compreendida como elemento essencial da vida humana. Portanto, o acesso à cultura deve
ser compreendido como o direito à formação integral dos sujeitos, criando espaços públicos em
que os grupos possam desenvolver sua própria cultura e refletir sobre ela.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y emancipación: Revista latinoamericana de
Ciencias Sociales. Buenos Aires, 2008.
SOUZA, Valmir. Políticas Culturais em São Paulo e o Direito à Cultura. Políticas Culturais em
Revista, n. 2 (5), p. 52-64, 2012.
ONU. Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. UNFPA 1966. Disponível
em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf, acesso em: 06 dez. 2014.
______. Preguntas frecuentes sobre los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Folleto
informativo Nº 33. United Nations Human Rights. Disponível em: http://www.ohchr.org/
Documents/Publications/FS33_sp.pdf, acesso em: 06 dez. 2014.
UNESCO. Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. UNESCO, Paris, 2001. Disponível
em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf, acesso em: 06 dez.
2014.
______. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais. UNESCO, Lisboa, 2005. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0015/001502/150224por.pdf, acesso em: 06 dez. 2014.
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CIDADE
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A cidade e os efeitos da crise do espaço público:
Repensando os espaços da diversidade
Marina de Melo Marinho Brochado1
Resumo
“É preciso fazer das nossas cidades algo politicamente criativo e cultural e socialmente
sustentável”. Esta é a conclusão de Carlos Fortuna no texto “culturas urbanas e espaços
públicos: sobre as cidades e a emergência de um novo paradigma sociológico”. Para refletir
sobre a necessidade desse modelo proposto por Fortuna e avaliar em que medida nossa
cidade aproxima-se ou afasta-se dele, este artigo trata de algumas questões acerca da gestão e
intervenção no espaço público, em especial no Viaduto Santa Tereza, realizadas pela prefeitura
de Belo Horizonte e pelos movimentos sociais. Tendo em conta as considerações de Fortuna
sobre a “cidade e a não-cidade”, o “dentro e fora” criados a partir das intervenções no espaço,
relacionam-se os efeitos dessas intervenções e a violência urbana e analisa-se o modo como
as comunicações digitais dos movimentos sociais colocam o assunto - a ocupação do espaço na pauta pública e os resultados disso.
Palavras-Chave: gestão do espaço público, direito à cidade, direito à diferença
Abstract
“We need to make our cities something politically creative, culturally and socially sustainable”.
This is the conclusion of Carlos Fortuna in his essay “Urban cultures and public spaces: about
the cities and the emergence of a new sociological paradigm.” To reflect on this proposal and
evaluate how do we approach or move away from that, this read will bring some questions
about the management and intervention in public space, particularly in the Viaduct “Santa
Tereza”, held by the municipality of Belo Horizonte and the social movements. Considering
the terms “city and non-city,” the “in and out” created from the interventions in space, it will
make a relationship between the effects of these interventions and urban violence. Finally, it
will review how digital communications of social movements put it (space occupation) on the
public agenda and the results of that.
Keywords: management of public space, right to the city, right to difference
1 Graduada em Comunicação Social, pela PUC Minas e pós Graduada em Gestão Pública pela Fundação João Pinheiro. Esse
texto foi produzido, inicialmente, como trabalho final de uma disciplina, feita como isolada pela autora, no mestrado da
UFMG: Comunicação e Espaço Público.
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O VIADUTO – QUE CONJUGA A CIDADE COM A NÃO-CIDADE
Ei você aí, me enxergue por favor!
Agora que estou sofrendo você me abandona? Agora que me cortam, me remodelam, me limpam...
Você finge que não me vê?
Sou pedaço da cidade! Artéria pulsante que impulsiona...
Carros, bicicletas, pessoas, criatividade, obscenidade... Eh o Duelo, eh a praia, eh o fora, eh reunião, eh samba e explosão! Também tem os pixador que sobe em marquise mermão
Tem os que ficam,
Os que moram, os que trabalham, os que apenas passam...
To precisando de atenção! Parem de esperar! Parem de me olhar! Venham me ocupar!
O viaduto precisa da gente pra respirar!
#viadutoocupado
(Nath Orleans, 2014)
O Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, que liga os bairros Floresta e Santa Tereza ao
centro da cidade, foi construído em 1929. Na década de 1990, foi tombado como patrimônio
cultural do município. E, para muito além da engenharia, o viaduto foi apropriado por muitos
moradores como palco de importantes manifestações culturais, políticas e democráticas,
ganhando referência de lugar de encontro das diferenças.
Uma das manifestações culturais que mais atraiu pessoas para região foi o “Duelo de MCs”,
organizado pelo coletivo Família de Rua. Em uma entrevista para jornal “O Tempo”2, um dos
membros da Família de Rua, conhecido como “Monge”, conta que, no final de 2006, o grupo
começou a ocupar a área debaixo do viaduto. Ele relata que pararam ali, pela primeira vez, para
se esconderem da chuva. E, apesar da falta de iluminação e limpeza, acharam que o local era
interessante para continuar o Duelo de MC’s e ali seguiram realizando os Duelos por seis anos.
Em junho de 2010, no final da avenida Arãao Reis, bem próximo ao viaduto, foi inaugurada
uma casa de shows com propostas alternativas, “Nelson Bordelo”, que também favoreceu a
cena cultural da região. A casa se diferenciava pela decoração, opções gastronômicas e ofertas
musicais, dando espaço para bandas autorais da cidade.
O Nelson Bordello surge como um QG desses novos agitadores da vida noturna no
centro de Belo Horizonte, contribuindo para a propagação da cultura na região.
(KENNEDY, 2010).
2 http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/o-sil%C3%AAncio-no-viaduto-do-rap-1.670316
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Também em 2010, no mês de outubro, o grupo de teatro Espanca inaugura sua sede naquela
região. Um grupo que se encontrou em 2004 e, desde então, se apresentam-se na cidade e se
coloca atento e aberto às coisas da cidade.
O espanca! é um grupo de pessoas a procura de uma arte que seja reflexo
do tempo em que vivemos. Até hoje, estivemos essencialmente envolvidos
em processos de criação de espetáculos de teatro. Estes espetáculos nos
ajudaram, e ajudam, a refletir sobre nossa condição de estar no mundo.
(ESPANCA, s/d)
Pra completar, em 2012, a região começa a receber apresentações do grupo Samba da Meia
Noite, manifestação cultural que celebra o candomblé e a umbanda. “É uma festa, que antes
só ocorria nos terreiros e, agora, ganhou as ruas. Democratiza o acesso a um bem patrimonial,
que é a cultura do samba de roda”, relatou a sambadeira Erika Rocha em entrevista à jornalista
Ana Clara Brant ao jornal (BRANT, 2014).
Ou seja, a região tinha uma movimentação de manifestações culturais diversificadas. Em 2013,
no período das grandes manifestações que ocorreram em junho (que inicialmente surgiram
para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público), a área situada embaixo do
viaduto, onde antes aconteciam os duelos, foi palco das assembleias horizontais populares,
durante as quais os cidadãos se encontravam para discutir as pautas das manifestações e
planejar algumas atuações. Dali saíram alguns grupos de trabalhos que atuavam em questões
de interesse coletivo, principalmente, com foco local (no município).
Ali muitos desejos se encontravam e, com criatividade, construía-se um jeito de estar na cidade.
Ali parecia possível fazer o que Carlos Fortuna chama de “ler sociologicamente a cidade do
avesso” e “reinventar o sentido do acto e do espaço público, participado e democrático” (2002,
p.129). É um lugar onde as pessoas insistem em conjugar a “cidade” e a “não cidade” e ousam
vivê-la, ou seja, é um local no centro da cidade onde o encontro com a periferia se faz possível.
“com o cultural turn dos anos 80 (Chaney, 1994), o velho grito de Lefebvre
sobre o “direito à cidade” está hoje assegurado. Mas é incompleto e é
preciso dar-lhe consistência e juntar-lhe o direito à diferença. É aceitar
que, em democracia, a cidade concede liberdade. Mas que é preciso juntarlhe criatividade. É defender que a política está presente na cidade, mas
que é preciso reinventá-la para a aproximar da velha e abstracta polis, da
participação cívica e da garantia dos direitos de cidadania. É admitir que,
além da sua forma, da sua estética, do seu uso e função, a arquitectura
deve também re-imaginar-se na sua relação com o espaço, o tempo, os
sentidos e as pulsões da cidade. É indispensável reconhecer que nem o
espaço é monolítico nem o tempo absoluto e linear. Por estas razões, ler
sociologicamente a cidade de “baixo para cima” e “das margens para o
centro” é, numa palavra, reinventar o sentido do acto e do espaço público,
participado e democrático. É imaginar a conjugação da cidade com a “não”cidade e ousar vivê-la. (FORTUNA, 2002 p.129)
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Mas, infelizmente, o poder público parece não conseguir considerar “os sentimentos e pulsões
da cidade”, e age de forma horizontal e burocrática, buscando invisibilizar o que ganhou uma
organização e força para acontecer, mas “ofende a frágil sensibilidade do olhar burguês” (Engel
apud Fortuna, 2002, p. 126).
Em 2013, por uma dificuldade em conseguir apoio da prefeitura e fazer um acordo de ação
conjunta, que cuide dos desafios e contradições naturais do espaço urbano, o Duelo de MCs
suspendeu as apresentações, como relatado em matéria do jornal O Tempo.
“O problema real é o descaso das instâncias municipal e estadual. Foram
seis anos de muita dificuldade”, desabafa Monge. Falta de iluminação, de
segurança preventiva, de lixeiras e de banheiros químicos são alguns dos
itens enumerados por ele. “Apesar de todo o diálogo estabelecido, há uma
dificuldade muito grande do poder público em dar conta desse contexto,
da juventude ocupando o espaço público. Quando a gente foi percebendo
que os problemas iam se afunilando mais, avisamos a polícia, por exemplo.
Mas não havia condições para eles fazerem o policiamento de forma correta,
tanto em se estruturar contingencialmente, quanto de material. Ficamos
reféns disso”. (O SILÊNCIO..., 2013)
O proprietário do Nelson Bordelo também encontrou dificuldade em regularizar o uso do espaço
junto à prefeitura municipal, o que ocasionou o fechamento da casa em 2012, como relatado
em entrevista concedida à Júlia Boynard, da revista VEJA (2012). Com ajuda de artistas que se
apresentavam no ambiente, foi realizada uma festa para reabertura do local, o que, no entanto,
não foi suficiente para permanência do bar que, até o fim de 2014, encontrava-se fechado.
No final de 2013, o viaduto foi interditado para uma reforma, sem nenhum diálogo com os
movimentos sociais e grupos culturais da região. A prefeitura, junto ao governo do Estado, tem
uma proposta de criar um “corredor cultural”, que pretende associar a região do baixo centro
de Belo Horizonte (onde o viaduto está localizado) à Praça da Liberdade. Do que já se conhece
de equipamentos culturais da Praça da Liberdade, vê-se que a proposta é bastante diferenciada
do que se tem no baixo-centro. Em geral, são espaços geridos por grandes empresas, com
divulgação de trabalhos de artistas renomados.
Além disso, o público que frequenta esses locais (do entorno da Praça da Liberdade) são da classe
média e alta. Portanto, entende-se que a proposta do “corredor cultural” é de descaracterizar
o espaço atual e torná-lo elitista, deixando de ser referência para o público que ali se encontra
e aumentando, assim, as separações dos espaços da cidade.
Os grupos e membros da sociedade civil que faziam uso do espaço se organizaram e em
fevereiro de 2014 ocuparam a obra. Alguns levaram barracas e dormiram no local, outros
cuidavam das programações culturais para movimentar o local e de chamar atenção para a
falta de diálogo e transparência do poder público, além de uma organização para arrecadar
mantimentos e produtos para estadia das pessoas. Tudo isso era comunicado por meio das
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mídias sociais. Criou-se nessa ocasião o perfil do “viaduto ocupado” no facebook. Depois de
oito dias de ocupação contínua, quando já havia dado visibilidade à intervenção e iniciado uma
conversa com a prefeitura, que se comprometeu a definir junto ao movimento uma comissão
de acompanhamento da obra, foi acordada a desocupação do espaço.
Apenas em agosto de 2014 aconteceu a primeira reunião da comissão. A prefeitura tomou
providências em formalizar e receber a comissão só depois de uma audiência pública convocada
em maio, durante a qual a sociedade civil denunciou irregularidade da obra que se iniciou sem
aprovação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), já que o viaduto
é um patrimônio público, e exigiu que se cumprissem os encontros com a comissão. Ainda
assim, a prefeitura optou por abrir um chamamento público para criar a comissão, contrariando
acordo feito anteriormente, quando já se havia definido a comissão3.
Os relatos feitos em reuniões e postados na página do viaduto ocupado por representantes
da comissão dizem de uma falta de consideração, diálogo e transparência com os mesmos:
houve recusa à discussão de pautas como o uso de tinta anti-pixo na parte interna do viaduto
- membros da comissão defendem o grafite como arte de rua e acreditam na importância
da cidade dar espaço a esse tipo de manifestação -; conversas muito técnicas e focadas no
projeto arquitetônico e de engenharia, desconsiderando-se, antes, o uso do espaço e não
se propondo a dialogar sobre a gestão do espaço pós-obra. Além disso, os prazos de entrega
da obra não eram bem esclarecidos. Alguns projetos como o Duelo Nacional e o encontro de
fotografia “Erro 99” foram planejados para serem realizados no local, considerando uma data
informada pela prefeitura em reunião da comissão. Mas a obra não havia sido concluída nas
datas dos eventos (ocorridos em 22 e 23 de novembro de 2014) e, mesmo parecendo faltar
pouco, a prefeitura alegou que a obra só poderia ser entregue em fevereiro de 2015. Por meio
da pressão dos movimentos sociais, a prefeitura liberou o espaço para a realização dos dois
eventos planejados e, na sequência, voltou a interditar o espaço para dar continuidade à obra.
Alguns membros da comissão consideravam as reuniões pouco efetivas para pensar o uso do
espaço e acreditavam que isso se dará na rua, com outros movimentos e não com prefeitura.
Esse é um histórico das atuações realizadas nesse espaço público no centro de Belo Horizonte e
as teorias de Carlos Fortuna nos ajudam a analisar para onde algumas intervenções sinalizam e
de que forma é possível resistir, ousando viver o que é público com diversidade de públicos.
A INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO E A RETRAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO
A intervenção do poder público, sem diálogo, num espaço que estava sendo claramente
apropriado de forma espontânea por parte da população e com intenções de uma organização
3 Detalhes sobre essa audiência estão registrados em post da página do facebook do Viaduto Ocupado de 30 julho de 2014.
www.facebook.com/viadutoocupado
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política, interfere não só no espaço físico, mas no jeito de estar na cidade. A atuação do poder
público parece caminhar para o que Fortuna chama de “crise” do espaço público das cidades.
Ele sinaliza uma histórica disputa entre a cidade e a “não-cidade” que se refere, por sua vez, a
espaços de exclusão e/ou invisibilidade.
“O contraponto simbólico da “morte” do campo é a “morte” também simbólica de uma parte
da cidade – a dos mais frágeis, pobres e incultos – às mãos da outra parte – a dos mais ricos
e poderosos” (Fortuna, 2002 pág. 126). E, para compreender a “crise do espaço público” que
essas separações geram, o autor faz uma análise dos contornos de participação social, cívica e
cultural em Portugal pós-1974. Para isso, classifica alguns períodos em “ciclos de governação
política das cidades”, que são organizados em função da vitalidade da sociedade civil e da
capacidade de regulação estatal” (Fortuna 2002, p. 130).
Ele classificou três ciclos: o primeiro ciclo de governação das políticas da cidade é da
espontaneidade da sociedade civil. “Participar era a palavra de ordem mais mobilizadora, que
continha uma carga simbólica muito particular: a de estar na rua, em grupo, soltando gestos
e opiniões sobre a vida pública” (Fortuna 2012, p.30); Ou seja, um cenário muito próximo ao
que estava sendo vivenciado no viaduto Santa Tereza até 2014, antes do local ser interditado
para obras.
O segundo ciclo de governação é o da institucionalização da vida política. Nesse ciclo, observouse em Portugal que os termos da discussão política foram sendo canalizados para o domínio
do desenvolvimento socioeconômico e de infraestruturação do país e, assim, a esfera cultural
ficava retida a um segundo plano. Aqui, não diferente, o que o poder público propõe, a partir
da intervenção no viaduto, não passa pelo social ou cultural: “o viaduto será transformado
em circuito de esportes radicais, terá a estrutura e o revestimento original recuperados.”
(MOVIMENTO..., 2014).
O terceiro ciclo de governação é o da europeização. Fortuna chama atenção para os efeitos da
globalização, que acabam por provocar uma massificação e estetização dos consumos e a essa
mesma lógica de mercado são submetidos os planejamentos urbanos. É importante observar
que a proposta da PBH de criar um circuito cultural parece caminhar nesse sentido: excluir o
que se deseja invisibilizar e colocar algo que possa despertar desejo de consumo.
A participação pública dos cidadãos, grupos e movimentos sociais surge
condicionada e, perante os efeitos sensíveis da globalização da economia,
da cultura e da comunicação, o espaço público das cidades surge pautado
pelos desígnios da massificação e da estetização dos consumos, do mesmo
modo que o planejamento urbano e mesmo numerosas imagens identitárias
e promocionais das cidades passam a sujeitar-se à lógica do mercado.
(FORTUNA, 2002, p. 131)
Quando o que é público é enquadrado na lógica de mercado, quem não tem capital fica
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cada vez mais sem espaço na cidade, reforçando os fragmentos do tecido social e cultural.
Portanto, Fortuna aponta que a cidade vista de “cima pra baixo” promove uma organização
também ao longo de um eixo horizontal “do centro e das margens”. E, no meio dessa disputa,
o que o movimento “viaduto ocupado” faz é se colocar conscientemente, resistente “ao lado”
ou “fora” do centro. E nesse caso, Fortuna apresenta o conceito de bell hooks, que diz que
“estar à margem é ocupar um lugar de criatividade a partir do qual se constrói um outro
sentido do mundo” (Hokks apud Fortuna, 2002, p.133). Isso é feito se opondo à estética do
desaparecimento e dando espaço às diferenças.
Este “outro sentido do mundo” revela, na verdade, uma cidadania disputada,
de resistência, oposta à “estética do desaparecimento” de que fala Paul Virilio
(1989). Mais do que um jogo de dualidades, este é um jogo de recombinações
de referências, estilos de vida e práticas sociais que conduz à experiência de
incoerência e diversidade culturais como condição urbana e, logo também,
como imperativo imposto a uma renovada análise sociológica. (FORTUNA,
2002, p.133)
Portanto, o que está colocado, tanto nas teorias e experiências apresentados por Fortuna,
quanto na dinâmica da cidade de Belo Horizonte, são as fragmentações históricas e que
parecem evoluir, dentro da cidade (da cidade com a “não cidade”). Diante disso, o desafio
que se tem colocado e que é alvo do movimento “viaduto ocupado” é de conjugar/unir esses
espaços e sujeitos segregados, de insistir no encontro das diferenças e na potencialidade das
construções que esse encontro pode promover.
A CIDADE E A CRIMINALIDADE
“O direito é primeiro e o crime lhe é relativo antes de sê-lo criminoso”.
Lacan
Até então, foi apresentado o desejo de um grupo de Belo Horizonte em manter os locais de
encontro na cidade e a forma como a prefeitura tem feito a gestão do espaço – que busca
reforçar as separações entre os espaços e as pessoas. Aqui serão analisados alguns impactos
desse tipo de gestão, como a sua relação com a criminalidade. Para tanto, iremos analisar
alguns registros feitos pela professora de psicanálise Andrea Guerra que, a partir da escuta de
jovens que apresentam algum envolvimento com a criminalidade4, desenvolve seus estudos.
Um dos seus textos tem como título “Defunto?! Defunto ele era antes de entrar pra guerra”,
frase de um jovem envolvido com o micro tráfico da comunidade onde mora. Nesse texto,
Guerra, Aranha e Rocha (2014) discorrem sobre o contexto de homicídios no Brasil. No decorrer
do texto, tratam da tentativa desses jovens em se inscrever na vida política, mas verifica-se
4 Refere-se a adolescentes que realizaram algum assalto, têm envolvimento com o tráfico e/ou cometeram homicídio.
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que essa consiste na exclusão e no abandono.
Segundo Agamben (2002, p.9), o homo sacer (homem sagrado) apresentaria
a figura originária através da qual se constitui a dimensão política. A
sacralidade da vida, que hoje se faria valer contra o poder soberano como
um direito humano, por exemplo, exprime, ao contrário e em sua origem, a
sujeição da vida a um poder de morte; uma relação, portanto, de abandono.
(apud GUERRA, 2014)
Dessa forma, vemos que a tentativa de invisibilizar parte da sociedade tem se concretizado. E
como resposta à invisibilidade, tudo vale para se tentar existir, até matar e morrer. As autoras
trazem, ainda na introdução do texto, a seguinte conclusão: “a epidemia homicida que assola
os jovens brasileiros exige uma tomada de posição ativa por parte da população.” (GUERRA,
et al, 2014).
Em outro texto, Guerra (2011) observa que o capital é o “mestre contemporâneo”. Os adolescentes
dizem com clareza como o dinheiro é determinante, inclusive, para se fazer (in)justiça. E assim,
eles entendem o que está colocado: para estar na cidade é preciso dinheiro, de outra forma,
ficarão apenas na não cidade e ainda apanhando, literalmente, por não ter dinheiro.
M: Também a diferença que tem da gente que mora na favela e os de classe
média é, tipo assim, por causa dos rico. Rico, tipo assim, vai preso ali agora
armado, fumando, nem algemado eles não é não. Nós não, se nois for preso
com um baseadinho...
Co: Ele entra ali, sai pela outra porta e vai embora. Tem dinheiro né? Pega um
de nós com um fino de bagulho e uma bala de calibre 22. Eles vão querer o
revólver pra começar. Aí vai bater muito...
M: O rico não.
A: Então tem essa diferença?
Co: É lógico que tem. Brasil, quem tem dinheiro vive, quem não tem corre. Se
pegar e você não tem dinheiro, aí é couro. (sic) (GUERRA, 2011 p.1)
Considerando-se que a proposta de “europeização” diz de um modelo que busca adequar-se à
lógica do capital, diante disso, o desejo das pessoas em relação aos espaços e o envolvimento
delas na construção dos mesmos acabam não tendo lugar. Diminuir as possibilidades de uma
construção coletiva interfere nas possibilidades de construção das identidades e relações dos
sujeitos. Principalmente na adolescência, se o desejo se resume ao consumo e/ou não ganha
possibilidade de construção nas várias relações (na relação com o pai, na relação sexual e,
como estamos vendo, na relação com a cidade), corre-se o risco do crime apresentar-se como
única possibilidade de relação.
No momento em que há o estancamento pelo Outro social da dialética que
permitiria a extração de uma identificação resolutiva na adolescência, podese formular como resposta a construção de objeto criminogênico, assinalado
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um impasse sem superação no confronto com a angústia de castração na
puberdade, somado ao fracasso da função paterna em transmitir forma de
gozo e orientação ao desejo. Assim, fixa-se fórmula e lugar para o sujeito.
(Guerra, 2012 p.1)
Ou seja, vimos que a construção de um sentido coletivo é algo disputado e, no caso de Belo
Horizonte, o poder público esforça-se na tentativa de “europeização” dos espaços, reforçando
a exclusão de alguns. É interessante notar aqui que o discurso dos adolescentes envolvidos
com a criminalidade tem relação com a forma de fazer do poder público, de quem entende
que o espaço público é para alguns, para os que têm condições de consumi-lo. E, nessa busca,
alguns que não têm isso dado arriscam-se. A sociedade reclama da violência, mas parece não
ter consciência do que a promove. Portanto, não é possível tratar a violência sem repensar a
cidade e o que esta oferece de possibilidades de construção de sentido para a vida.
A COMUNICAÇÃO E AS POSSIBILIDADES DE RESSIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO
Na tentativa de ressignificar o espaço público, Fortuna defende não ser possível limitar o
entendimento da vida urbana no tempo e no espaço. Para buscar essa compreensão que
considere a plasticidade da sociedade, ele analisa as “zonas de intermediação cultural”, que
consideram a complexidade dos contatos que se confluem e se contaminam mutuamente
no espaço urbano. Ele identifica a existência de quatro zonas de intermediação urbanas:
Terceiras culturas; Relações sociais de estranhamento e tolerância; Domesticidade e práticas
socioculturais; Espaços sociais de proximidade relacional. Aqui ficaremos apenas com a
primeira zona de intermediação, referente às terceiras culturas, que permite refletir sobre as
possibilidades oferecidas pelas novas mídias para repensar esses lugares.
Fortuna classifica as terceiras culturas como sendo o “território transnacional de negociação
de problemas e conflitos decorrentes do contacto intercultural” (Fortuna, 2002 p. 135 apud
Featherstone, 1997). Ele aponta que os protagonistas das terceiras culturas atuam na retradução
e acomodação dos sentidos e significados da cultura local e global, podendo agregar várias
referências. Podemos dizer que no território transnacional amplia-se a disputa de sentidos, ao
mesmo tempo em que se estendem as possibilidades de interferências, dando assim um lugar
para as diferenças. Essas trocas podem se refletir no relacionamento entre as pessoas e os
lugares. Para isso, Fortuna chama atenção para a necessidade do uso de linguagens e discursos
que convoquem uma atuação solidarista que considere a diversidade cultural e a alteridade.
Ao potenciar a aproximação entre entidades distantes e opostas, as terceiras
culturas e o possível ethos em emergência podem converter-se em agentes da
revitalização dos espaços e dos encontros públicos das cidades. O requisito de
base para que a hipótese frutifique é que o encontro de posições, discursos e
narrativas dissonantes accione códigos alternativos e linguagens solidaristas
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que capacitem os sujeitos para o diálogo com a diversidade cultural e a
alteridade. (FORTUNA, 2002 p.135)
Esse parece ser o esforço das comunicações realizadas pelo movimento “viaduto ocupado”, que
se depara com os que querem o espaço para realizar o duelo, outros que buscam condições de
praticar esportes radicais, os que têm a região como abrigo (pessoas com trajetória de rua), os
que pretendem manter a referência do local como espaço para articulações políticas e, ainda,
os que pretendem colocar o espaço num circuito cultural. O movimento não tem um líder e
não se escolhem os membros, estes se encontram no desejo de manter o espaço como “algo
politicamente criativo e cultural e socialmente sustentável”. Ao invés de se propor a delimitar
o uso do espaço, o convite é para somar esforços e negociar essa ocupação, reconfigurando a
proposta elitista e segregadora executada pela prefeitura, cada um com seu desejo e juntos.
É interessante notar que a internet possibilita que as pessoas, em um primeiro momento, não
muito próximas ao espaço, interessem-se pela discussão e propostas colocadas “na nuvem” (no
caso do “viaduto ocupado”, principalmente o facebook) e, a partir disso, passem a contribuir e
a se envolver em novas formas de se relacionar com a cidade. Esse é, portanto, um importante
canal de articulações e coordenação de ações.
CONCLUSÃO
A partir do que foi discutido, fica posto que, ou repensamos a forma como os espaços públicos
estão sendo planejados e executados, ou continuaremos criando cidades e “não cidades”,
reforçando a lógica do “dentro e fora” e, assim, quem está fora, na não cidade, disputará com
quem tem e com quem não tem o “seu” espaço.
Os que têm criatividade poderão resistir com ela! E como estamos vendo, no caso do viaduto Santa
Tereza, esse tipo de resistência consegue alguns efeitos. Não fosse isso, provavelmente a região
já teria outra cara e outra ocupação. E o que parece que o movimento entendeu e a prefeitura
ainda não é que a arquitetura importa menos, diante do desejo de continuar reforçando aquele
espaço enquanto lugar de encontro de diferentes públicos e manifestações culturais.
Certamente, as novas mídias possibilitam muitas trocas e contribuem para que as pessoas
se organizem e atuem no espaço público, na rua. No caso do “viaduto ocupado”, o facebook
é onde as pessoas articulam as reuniões presenciais e compartilham os desejos e esforços
de uma ocupação onde a diferença tenha lugar. Se não fosse essa plataforma, certamente,
esses compartilhamentos seriam mais difíceis ou, talvez, não aconteceriam. O que parece
necessário é ampliar o convite para que a cidade seja pensada, desejada e ocupada por todos.
Precisamos querer e insistir que a política se proponha a isso, ou viveremos apenas vidas
privadas e limitadas.
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CIDADE
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A expansão urbana e seus impactos para
a paisagem cultural da cidade:
o conjunto paisagístico da Igreja de São Francisco em Sabará-MG
Luiz Henrique De Lucca Munaier1
Resumo
Este artigo reflete sobre as relações entre a ocupação irregular em Sabará-MG, o patrimônio
cultural material, especificamente, a Igreja São Francisco, localizada no centro histórico de
Sabará, o conjunto paisagístico do morro São Francisco e os impactos sobre a paisagem
cultural da cidade. Em 2008, o município iniciou um processo de tombamento deste conjunto
paisagístico que hoje sofre com a expansão do bairro do Rosário. Para tratar do tema, o artigo
recupera um termo de cooperação técnica firmado no ano de 2000 entre poder público
municipal, IPHAN, IEPHA e CREA-MG.
Palavras-chave: Paisagem urbana, Sabará, expansão urbana.
Abstract
This article reflects on the relationship between the illegal occupation in Sabara-MG, cultural
heritage, and, more specifically, the San Francisco Church, located in the historic center of
Sabará, the landscape set of the hill San Francisco and its impact on the cultural landscape
of the city. In 2008, the city began a process to preserve this landscape set that today suffers
from the expansion of the Rosário neighborhood. To address the issue, the article retrieves a
technical cooperation agreement signed in 2000 between the municipal government, IPHAN,
IEPHA and CREA-MG.
Keywords: Urban Landscape, Sabara, urban expansion.
1 Mestrando em Ambiente construído e Patrimônio sustentável pela UFMG, graduado em Turismo e pós graduado em MBA
Gestão de Marketing pela Newton Paiva. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
Sabará surgiu das expedições à procura de pedras preciosas. Fundada, provavelmente, em fins
do século XVII, foi importante núcleo comercial e de mineração. Segundo ÁVILA (1984), o acervo
histórico de Sabará constitui marco inicial para o conhecimento de todo o Barroco Mineiro.
A cidade possui monumentos das três fases deste período e acervo como importante
testemunho em Minas, incluindo não apenas obras consagradas pelo seu caráter monumental
ou de comprovado valor histórico, mas também espaços públicos e conjuntos de edificações
nas várias expressões da evolução urbana. A cidade abrigou milhares de escravos que
trabalhavam em suas jazidas. O ouro encaminhado à Coroa Portuguesa era em tal quantidade
que o governo instalou a Casa da Intendência de Sabará, para facilitar a cobrança do quinto,
imposto cobrado pela Coroa portuguesa sobre o ouro encontrado em suas colônias.
Em 1838, a então Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará foi elevada à categoria
de cidade, sendo denominada, simplesmente, Sabará.
O município não foi exceção à regra de que, durante a colonização portuguesa no Brasil,
quase tudo, em matéria de educação, cultura e assistência social, correu por conta das ordens
religiosas, corporações de irmandades e ordens terceiras.
A chegada da Estrada de Ferro Central e da siderurgia à Sabará teve como objetivo dar vida nova
ao estado de prostração econômica provocada pela decadência da mineração. O município foi
atraído pelo futuro, modernização e transformação de seu espírito colonial. Na década de 1890,
as obras de construção da Estrada de Ferro Central do Brasil em Sabará foram iniciadas.
Por localizar-se próxima à recente capital do Estado, a estrada adquiriu grande importância
política e estratégica e contribuiu para a alteração da vida na cidade. As jazidas de ouro de
Minas Gerais estavam esgotadas e o crescimento do setor industrial do Brasil demandava
novas iniciativas.
Porém, as condições internacionais desfavoráveis da Primeira Guerra Mundial atrasaram a
instalação da siderurgia que só teve o seu projeto implantado a partir de 1920.
Além disso, a infraestrutura precária e a concorrência estrangeira exigiam novos investidores.
Por intermédio do rei Alberto I da Bélgica, chegou a Minas Gerais o grupo belgo luxemburguês
Arbed (Aciéries Reunies de Burbach-Elch-Dudelange) que resolveu se associar à Companhia
Siderúrgica Mineira que, então, passou a se chamar Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. Foi
instalada uma usina piloto, porém, seu desempenho não foi o esperado pelos investidores,
pois o ramal ferroviário necessário para sua operação não tinha sido construído.
Entre 1926 e 1927, a usina ficou paralisada quando o grupo belga resolveu enviar ao Brasil o
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engenheiro Louis Incha, que assumiu a chefia, providenciou novos equipamentos e melhorou
a qualidade do produto. Mas as condições econômico-sociais da cidade ainda não eram
adequadas para garantir mão-de-obra. Atrelada à condição de prolongamento da capital,
Sabará viveu, durante anos, o abandono e foi condenada ao papel de “cidade dormitório”.
O município, distante 20 Km do centro da capital mineira, é hoje economicamente fragilizado.
A cidade sofre intensamente as consequências do processo de metropolização de Belo
Horizonte. A expansão demográfica transformou-a em alvo de ocupações irregulares, exigindo
grandes investimentos no setor de serviços e infraestrutura. Sabará sofre, há décadas, com a
chegada de pessoas que buscam melhorar de vida. Com a proximidade da capital, as pessoas
acabam por se estabelecer, de forma irregular, nos morros e montanhas que circundam o
município. Essas ocupações irregulares causam um grande impacto na economia da cidade
que, a cada ano que passa, vê sua arrecadação diminuir e seus gastos com infraestrutura básica
(pavimentação, esgoto, água e luz) aumentarem, causando desequilíbrio orçamentário.
A fim de se discutir essas ocupações irregulares, será feito um recorte espacial e o conjunto
paisagístico do morro São Francisco, juntamente com a Igreja São Francisco, ambos localizados
no centro histórico da cidade, serão usados como estudo de caso para ilustrar os impactos
causados na paisagem cultural de Sabará.
Foto 1- Ocupações irregulares no Morro São Francisco e Igreja de São Francisco de Assis em Sabará-MG
FONTE: Fotógrafo João Starling (24.jul.2015)
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Paisagem cultural
As Paisagens Culturais são um objeto científico de estudo que reflete as interações entre
homem e natureza, tendo como produto uma realidade física, ou uma construção social ou
cultural, são, portanto um tema de natureza e foco disciplinar muito diverso.
O conceito de paisagem cultural foi adotado pela UNESCO em 1992 e incorporado como uma
nova tipologia de reconhecimento dos bens culturais, conforme a Convenção de 1972 que
instituiu a Lista do Patrimônio Mundial.
Recentemente, mais especificamente no dia primeiro de julho de 2012, o Rio de Janeiro se
tornou a primeira cidade do mundo a receber da UNESCO o título de Patrimônio Mundial como
paisagem cultural. Esse título se torna um importante mecanismo de proteção patrimonial. Os
locais da cidade valorizados com o título da UNESCO ganharam projetos de ações integradas
visando à preservação da sua paisagem cultural. São eles o Pão de Açúcar, o Corcovado, a
Floresta da Tijuca, o Aterro do Flamengo, o Jardim Botânico e a praia de Copacabana, além da
entrada da Baía de Guanabara.
Até pouco tempo atrás, os sítios reconhecidos mundialmente como paisagem cultural
relacionavam-se a áreas rurais, a sistemas agrícolas tradicionais, a jardins históricos e a outros
locais de cunho simbólico, religioso e afetivo. O reconhecimento do Rio de Janeiro culminou em
uma nova visão e abordagem sobre os bens culturais inscritos na Lista do Patrimônio Mundial.
Por isso, apesar da inclusão do conceito, há mais de vinte anos, como nova tipologia do
patrimônio mundial, a discussão se faz recente e presente, ganhando novo patamar a cada
nova inscrição de um local como possível paisagem cultural, ou a cada chancela de um local
como nova paisagem cultural a entrar na lista dos patrimônios mundiais. A cada nova inscrição,
cria-se a possibilidade de aprofundar e expandir o conceito, além de se incentivar, cada vez
mais, os locais a se candidatarem, em função do valor agregado conferido a cada localidade
escolhida como paisagem cultural.
Como visto anteriormente, a ideia de paisagem cultural foi consagrada pela UNESCO em 1992,
mas foi regulamentada no Brasil apenas em 2009, ou seja, ainda não havia se traduzido em
instrumento de preservação do patrimônio cultural no país. O que se mostrava um problema,
tendo em vista que nos dias atuais é grande a preocupação de se preservar a paisagem que
relaciona elementos naturais, culturais e imateriais brasileiras.
A chancela da Paisagem Cultural Brasileira foi realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – IPHAN, em 2009, e representou a inclusão de mais uma ferramenta
de preservação do patrimônio cultural, além dos instrumentos federais de proteção e
reconhecimento existentes (a exemplo do tombamento, do cadastro de sítios arqueológicos e
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do registro de bens imateriais). Sua regulamentação é dada pela Portaria IPHAN 127/09 que
apresenta definições sobre o conceito de paisagem cultural e, também, dispõe sobre os meios
de inscrição e procedimento para candidatar uma possível paisagem cultural.
Problema
Após breve histórico a fim de se localizar o objeto de estudo proposto e breve conceituação
de paisagem cultural, será feita uma análise quanto ao problema relacionado ao tema: a
expansão urbana no município de Sabará, com suas ocupações irregulares que se espalham
pelas montanhas e morros ao redor do município, de forma cada vez mais visível, e os impactos
sobre uma possível paisagem cultural, qual seja, o conjunto paisagístico do morro São Francisco
e a Igreja São Francisco, ambos localizados no centro histórico de Sabará.
Quando se pensa nos atuais problemas decorrentes desta ocupação, devem-se buscar suas
causas no passado do município que se encontrava em transição da era colonial do ouro em
abundância para a era industrial que chegava promovendo mudanças à cidade.
Como visto, em uma parte da história da cidade, o ouro estava se esgotando e a era industrial
fazia-se presente nos planos de todo o país. Uma das causas das mudanças morfológicas
presentes no município foi a transformação do tecido colonial, sobreposto pela estrutura
urbana criada para atender a demanda por habitação para funcionários da indústria, na
primeira metade do século XX.
Novos rumos foram abertos para Sabará, convertendo-a em importante centro industrial.
Este foi um dos períodos de grandes mudanças na situação política, social e econômica da
região, tornando-se a Belgo-Mineira a principal empresa siderúrgica do Brasil até 1946, ano da
criação da Companhia Siderúrgica Nacional, instalada no Rio de Janeiro e não em Minas, como
ambicionavam os políticos mineiros.
A partir da década de 1940, intensificou-se o crescimento populacional da capital do estado, Belo
Horizonte. Na década de 1960, a cidade de Belo Horizonte chegou a um milhão de habitantes.
O crescimento da capital acabou por fazer com que aumentasse o processo, mesmo que em
proporções pequenas, de êxodo da cidade para os municípios vizinhos, dentre eles, e talvez
um dos mais atingidos pela maior proximidade com a capital mineira, encontrava-se Sabará.
A cidade de Sabará do século XXI sofreu inúmeras alterações. Por se encontrar em área
periférica em relação à capital, a “favelização” é um processo quase inevitável. Inúmeros
processos de degradação do ambiente urbano e, também, da economia local fazem com que
a cidade busque novas formas de desenvolvimento econômico e social.
Ao longo dos anos, o turismo tenta se firmar e fornecer à cidade um meio de preservar suas
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joias arquitetônicas e urbanísticas, mas, com fraco planejamento, quando se pensa em médio
e longo prazo; nunca foi capaz de realizar seu papel preservacionista quanto ao patrimônio
cultural e, também, seu papel sustentável quanto ao patrimônio ambiental e social da cidade.
O que fica perceptível é que a imagem da cidade hoje revela as lacunas e os rompimentos
decorrentes do crescimento desordenado da era industrial.
Igreja de São Francisco de Assis
A Igreja de São Francisco de Assis foi construída, a partir de 1781, para substituir a primitiva
capelinha dedicada a Nossa Senhora Rainha dos Anjos (Arquiconfraria do Cordão de São
Francisco); em 1822, as obras estavam concluídas.
O centro histórico de Sabará, incluindo aqui a Igreja em questão, foi tombado pelo IPHAN no
ano de 1938. Esta igreja possui, além de valor histórico e arquitetônico, pormenores que a
diferenciam das demais do município. Algumas tradições são mantidas há séculos. As duas
maiores se fazem presentes na semana santa: na quinta-feira a abertura do santo sepulcro,
onde repousa uma imagem com impressionantes detalhes de Jesus Cristo. O descerramento
do sepulcro precede a morte de Cristo que, pela história, ocorre na sexta-feira. Por isso, o ato
não integra as celebrações da semana santa na Igreja Católica.
A representação do velório de Cristo é também um momento de penitência. Vários grupos
passam a madrugada em vigília. A Guarda do Senhor só pode deixar o local do sepulcro ao
anoitecer da Sexta-Feira da Paixão. A tradição já dura 300 anos.
A igreja também é o ponto de encontro dos fiéis na madrugada da sexta-feira santa. Eles
reúnem-se na porta da Igreja e, por volta das 4 horas da madrugada de sexta para sábado,
seguem na procissão que sobe o Morro da Cruz em direção à Capela do Senhor Bom Jesus.
Os fiéis param 14 vezes ao longo do percurso para lembrar a morte de Cristo. Este percurso é
acompanhado pelos matraqueiros que tocam o instrumento ao longo do caminho, para chamar
os fiéis à procissão. Alguns utilizam matracas de 1840, passadas de geração a geração.
Apesar do tombamento, tanto da Igreja quanto do conjunto paisagístico do morro do São
Francisco, ocupações irregulares vêm sendo constante problema nesta paisagem. Como
forma de proteção, não só neste caso, especificamente, mas a todo o município e seus bens,
naturais ou culturais, tombados, foi criado um termo de cooperação técnica no ano de 2000 e,
posteriormente, no ano de 2006, o conselho deliberativo do patrimônio cultural e natural de
Sabará entregou um projeto para o tombamento, na esfera municipal, do conjunto paisagístico
do morro do São Francisco e bens integrados.
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Termo de cooperação técnica
Uma das situações preocupantes no município de Sabará é o controle do uso e ocupação do solo
nas áreas que contêm bens tombados e seu entorno, abrangendo, praticamente, toda a sede
municipal. No bairro do Rosário, que faz divisa com o bairro São Francisco, já se faz presente
com várias residências, frutos de ocupações irregulares, no alto do morro São Francisco, local
inserido no conjunto paisagístico do morro São Francisco, como será visto mais adiante.
Pensando neste problema que já vinha tomando forma e tamanho difíceis de serem controlados,
foi assinado sobre o altar da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em dezessete de agosto de 2000,
um termo de cooperação técnica que, entre si, celebraram o Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e o
Município de Sabará, com a interveniência do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura
– Seção Minas Gerais2.
O objeto deste Termo de Cooperação Técnica era o exame conjunto de projetos de
intervenções urbanas e a adequação do uso dos instrumentos legais já existentes, além de
sua operacionalização. O escopo deste convênio compreendia, também, a elaboração de
diretrizes para identificação de zonas diferenciadas de proteção, controle e preservação
dentro do perímetro de tombamento e de seu entorno, seguida pela proposição de legislação
para o parcelamento, uso e ocupação do solo nas áreas de interesse histórico e cultural, nas
áreas de influência de bens tombados e de seus entornos, bem como nas áreas de tutela e de
preservação paisagística e ambiental da cidade de Sabará.
O objetivo visado foi a uniformização dos procedimentos e dos critérios de análise e
aprovação de projetos e de ações de preservação no município de Sabará, incluindo-se aí o
acompanhamento e verificação de obras e intervenções realizadas nos referidos bens e áreas
de preservação paisagística e ambiental.
Tombamento do Conjunto paisagístico morro São Francisco
Pensando em toda essa preocupação relacionada à preservação, tanto dos bens tombados
quanto de seu entorno, o poder público iniciou um projeto de tombamento municipal.
No ano de 2006, foi proposto, pelo Conselho deliberativo do Patrimônio Cultural e Natural do
município de Sabará, o tombamento do conjunto paisagístico do morro São Francisco.
A área proposta para tombamento é localizada numa das vertentes da Serra do espinhaço,
2 Os signatários deste termo foram Wander José Goddard Borges, prefeito, pelo município de Sabará, Sérgio Abrahão pelo
IPHAN, Flávio de Lemos Carsalade, pelo IEPHA e Marcos Túlio de Melo, pelo CREA.
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continuidade da cadeia da Serra da Piedade. O Morro São Francisco, ou Serra de São Francisco,
compõe a paisagem natural na encosta ao norte do centro da cidade. Inserido em uma área
verde de 107,19 hectares, fica entre os bairros do Rosário, São Francisco, Caieira, Vila Esperança
e o centro histórico de Sabará.
O projeto de tombamento, com o título de “Conjunto paisagístico Morro de São Francisco e
bens integrados” inclui o tombamento não apenas da paisagem natural ali percebida, mas
também de dois importantes vestígios de usos e ocupações históricas na Serra.
São eles:
- Em um ponto da Serra está localizado um forno de cal, utilizado para produção da cal na
construção civil e religiosa em Sabará e região circunvizinha, inclusive, para a construção da
própria Igreja de São Francisco, em meados do Século XVIII.
- Um calçadão de pedras, evidenciando que ali se localizava a principal rota de tráfego comercial
no período colonial e imperial, integralizando a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do
Sabará ao arraial de Santa Luzia, e deste, com a cidade da Bahia (Salvador) via sertões do Rio
São Francisco. Tal rota tornou-se conhecida como Caminho da Bahia ou Caminho dos curras
do sertão do São Francisco.
Este calçadão de pedras foi construído em princípios do século XVIII, para facilitar o trânsito
das tropas de muares, dos comboios de escravos e do gado que subiam ou desciam a Serra,
última barreira natural a ser vencida para chegar a esse centro comercial e minerador dos
tempos coloniais.
Os resquícios do trecho possuem 900 metros de extensão por 3,80 metros de largura e foi
alvo de importante obra de engenharia de pavimentação, contando com terraplanagens e
locomoção de grandes pedras, cuidadosamente encaixadas pelos escravos calceteiros,
evitando, com isso, os frequentes acidentes, principalmente, em tempos chuvosos.
A área de proteção do morro de São Francisco consiste em uma encosta de morro, composta,
principalmente, por vegetação de cerrado e campos limpos. Uma das justificativas para o
tombamento era não apenas a manutenção estética de um “emolduramento”3 ao conjunto
arquitetônico do núcleo histórico (o conjunto arquitetônico do núcleo histórico vai além de
seu patrimônio histórico-cultural material, leva em conta toda a estética do entorno, seja na
concepção da beleza crua de quem olha ou também do entendimento técnico de quem a
estuda), mas também para protegê-la da ocupação urbana irregular nesta área.
Outras justificativas foram a preservação do calçamento histórico e do forno de cal confeccionado
em pedra seca, visto que, além de fontes de informações sobre o passado colonial mineiro,
3 Termo utilizado no Projeto de tombamento, com o título de “Conjunto paisagístico Morro de São Francisco e bens integrados”, consulta na Secretaria de Cultura de Sabará-MG.
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ambos os bens podem ser elencados como atrativos turísticos da cidade. Vale a ressalva de
que, para se tornar atrativo turístico, esses bens teriam que passar por várias etapas, a fim de
se estudar seu estado de preservação e as formas possíveis de inseri-los em alguma rota, sem
sacrificá-los com o desgaste advindos do turismo mal planejado).
O tombamento do conjunto paisagístico morro São Francisco poderá ajudar em futuros
estudos acerca do entendimento da história do município e da economia mineira a partir de
seus caminhos, rotas comerciais, técnicas construtivas para a pavimentação das estradas e
caminhos, bem como para a compreensão das técnicas de feitura da cal vastamente utilizada
nas construções antigas da cidade de Sabará.
Enfim, em 25 de maio do ano de 2007, o então prefeito Sérgio Luiz de Freitas, após estudar o
parecer favorável do conselho deliberativo do patrimônio cultural e natural de Sabará a este
tombamento, assinou o decreto 1629/2007 que “Dispõe sobre o tombamento do conjunto
paisagístico do morro de São Francisco”.
No artigo 1º deste decreto, fica aprovado este tombamento por seu valor histórico, estético,
cultural, arqueológico e natural, o qual será inscrito no Livro do Tombo a que se refere o artigo
3º, da lei nº 423, de 06/05/1991.
Conclusão
A preocupação com a preservação do patrimônio cultural e natural é cada vez mais visível e,
com a nova conceituação da paisagem cultura (interações entre homem e natureza, tendo
como produto uma realidade física, ou uma construção social ou cultural), faz-se presente
um novo mecanismo de proteção, que agora engloba segmentos do patrimônio antes vistos
como separados.
Em Sabará essa preocupação com a preservação do patrimônio ainda não é vista com sentido
amplo, visto que, de uma forma geral, os bens tombados são analisados apenas como
patrimônio cultural material, a exemplo das igrejas, museu e teatro.
O termo técnico assinado no ano de 2000 foi um grande avanço rumo a um planejamento
ou gestão territorial integrada, onde não apenas os bens tombados ou áreas de preservação
ambiental se fazem foco de proteção, mas as áreas dentro do perímetro de tombamento e
de seu entorno, além da proposição de legislação para o parcelamento, uso e ocupação do
solo nas áreas de interesse histórico e cultural, nas áreas de influência de bens tombados e
de seus entornos, bem como nas áreas de tutela e de preservação paisagística e ambiental
da cidade de Sabará.
O projeto de tombamento do conjunto paisagístico do morro São Francisco foi outro passo
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importante e agora já foi percebida uma preocupação conjunta, do meio natural com o ambiente
construído. Tanto a fauna e a flora dos 107,19 hectares da Serra, quanto o calçadão de pedras e
o forno de cal, foram inseridos no projeto de tombamento municipal, aprovado em 2007.
Mas o que fica perceptível é que, tanto o termo técnico, quanto o tombamento deste conjunto
paisagístico, acabam por se tornar meramente documentos para consulta, tendo em vista que
não se fazem valer juridicamente.
A falta de fiscalização constante dos órgãos competentes nessa área delimitada causa ocupações
irregulares que já invadem toda a paisagem tombada do morro São Francisco. Se nada for feito
com certa urgência, todo o entorno do município, seus morros e encostas estarão tomados por
residências advindas de ocupações irregulares, já que são construídas em áreas de proteção.
Talvez a junção da Igreja de São Francisco, com todo seu valor arquitetônico e histórico e suas
tradições, com o conjunto paisagístico do morro São Francisco e a tentativa de se realizar um
projeto de inscrição destes bens como paisagem cultural, seja uma poderosa ferramenta para
regressão de uma situação que só vem crescendo, a expansão urbana irregular na cidade de
Sabará, que acarreta impactos negativos não só para a estética do município, mas para toda a
preservação de sua rica história e de seu acervo histórico e arquitetônico.
Referências Bibliográficas
ÁVILA, Afonso. Iniciação ao Barroco Mineiro. São Paulo: Nobel, 1984.
IPHAN-Instituto do Patrimônio histórico e artístico nacional- Chancela da paisagem cultural
Brasileira. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1756 acesso
em 01.mar.2015
UNESCO - Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural. UNESCO, 1972.
Disponível em http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf acesso em 07.jul.2014
Prefeitura Municipal de Sabará. Termo de Cooperação técnica. 2000 Secretaria de Cultura de
Sabará. Conjunto paisagístico Morro de São Francisco e bens integrados. 2006
Siglas
CREA-MG - Conselho Regional de Engenharia e Agronomia
IEPHA-MG - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UNESCO - United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização para a
Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas)
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CIDADE
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Carnaval de rua de Belo Horizonte de 2015:
uma experiência etnográfica 1
Ródinei Páscoa Amélio 2
Resumo
O presente artigo objetiva compreender a o “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015 sob
a perspectiva antropológica. Assim, a partir da etnografia de quatro blocos do “carnaval de
rua” da cidade procuramos explorar suas principais diferenças. Entre as questões pertinentes
ressaltamos a os dilemas e paradoxos da sociedade brasileira refletidos no processo de
“inversão do carnaval” em Belo Horizonte e a defesa de carnaval revolução.
Palavras-chave: carnaval de rua, inversão do carnaval, carnaval revolução.
Abstract
This article aims to understand the “street carnival” of Belo Horizonte 2015 under the
anthropological perspective. Thus, from the four blocks ethnography of “street carnival” of
the city we seek to explore their major differences. Among the relevant issues we highlight the
dilemmas and paradoxes of Brazilian society reflected in the process of “reversal of Carnival”
in Belo Horizonte and the defense carnival revolution.
Keywords: street carnival, inversion carnival, carnival revolution.
1 Nossos agradecimentos a Carine Viana, Ester Lilian da Silva e Ronaldo Junior A. Braga pela leitura e críticas incorporadas à
versão final deste artigo sem as quais esta publicação não seria possível.
2 Bacharel em Ciências Sociais pela PUC Minas em 2011. Email: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva compreender o “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015 sob
a perspectiva antropológica partindo da reflexão sobre a “inversão do carnaval” proposta na
obra Carnavais, Malandros e Heróis de Roberto DaMatta. O capítulo 2, Objetivo Geral, expõe
os argumentos do autor a este respeito.
O capítulo 3, “Carnaval de rua de Belo Horizonte de 2015: notas sobre alguns blocos” apresenta
a descrição de quatro blocos do carnaval de rua de Belo Horizonte procurando ater-se a
informações que respondessem a questões como “onde”, “quando”, “como”, “quem”, “com
quem”, “porque”, “contra quem” para produzir um texto com parcimônia – para dar conta
do objeto em questão e devido as limitações da própria pesquisa. O capítulo 4, “Entre outras
atrações, o carnaval de rua” faz um panorama geral das opções atuais oferecidas a brincantes
do carnaval de Belo Horizonte. O capítulo 5, “Considerações finais” tenta sintetizar as principais
diferenças de cada bloco considerando a construção interna de cada.
2. OBJETIVO GERAL
O presente artigo objetiva compreender o carnaval de rua de Belo Horizonte (BH) de 2015
através de uma perspectiva antropológica partindo da reflexão sobre a “inversão do carnaval”
proposta na obra Carnavais, Malandros e Heróis de Roberto DaMatta. Ao analisar o carnaval
do Rio de Janeiro durante a década de 1970, o antropólogo em sua obra “Carnavais, malandros
e heróis – Para uma sociologia do dilema Brasileiro” propõe uma interpretação do Brasil não
através de relatos históricos ou documentos oficiais, mas partindo de nossa cultura marcada
por dilemas e antagonismos. Para o autor, o carnaval, a parada militar e a procissão são ritos
privilegiados para a compreensão sobre a cultura brasileira implicada em noções como ordem
social e de desordem, autoritarismo, paternalismo e vocação democrática. Assim sendo, o
triângulo “paradas, procissões e carnavais” constituem-se ritos nacionais, aos quais, o tempo
histórico e o tempo mítico (das paradas), uniformes e fantasias (das paradas e do carnaval),
santos, pecadores, povo e autoridades unidos nas ruas (da procissão) significam a estrutura da
sociedade brasileira. Neste sentido, aspectos da realidade social durante o carnaval ressurgem
dramatizados de forma a facilitar-nos a compreensão sobre ela. Deste modo, o carnaval inserese a um contexto mais amplo que nos permite interpretar o que faz o brasil, Brasil.
Partimos da noção de “inversão do carnaval” de DaMatta como fator intrínseco da dinâmica
social brasileira que torna grupos e classes sociais marginalizadas em personagens centrais
desta festa popular. O autor exemplifica a “inversão do carnaval” através de cenas corriqueiras
durante o carnaval como a de mulheres fantasiadas de homens e a de homens fantasiados de
mulheres (homossexuais ou não) durante o carnaval. Para o autor, no carnaval as mulheres
assumem o lugar típico da cultura brasileira ou de pecado ou de pureza por meio da figura
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simbólica da prostituta e da Virgem Maria (mediante fantasias e maquiagens exageradas e
comentários moralistas dos não brincantes sobre os foliões).
Atores sociais marginalizados como malandros, prostitutas, travestis, etc são normalmente
vistos como “gente da rua”. Quando o carnaval coloca ao centro da festa grupos marginais,
afirma o autor, faz com que por um momento não levemos tão a sério a rigidez dos papéis
sociais que nos orienta socialmente, afinal, no carnaval, “somos todos iguais”. “Livres e iguais”.
As pessoas normais, que representam o padrão social, não tem graça durante o carnaval,
garantida pelos grupos sociais minoritários. A sensação de sermos todos iguais e de liberdade
vivida no carnaval relaciona-se à inversão do carnaval através das inversões de lugares sociais
ocupados por pessoas de diferentes identidades. Os deslocamentos produzidos durante
o carnaval podem ser observados em sua dinâmica considerando as dicotomias analíticas:
centro/periferia, público/privado, padrão-social-vigente/minorias-sociais. Com a inversão do
carnaval a “loucura” dá o tom da festa como verifica Roberto DaMatta na citação abaixo:
No carnaval, no seu espaço típico, o instante supera o tempo e o evento
passa a ser maior do que o sistema que o classifica e lhe empresta o sentido
normativo. Não é por outra coisa que a palavra mais ouvida nesse momento
é loucura. Loucura porque estamos na “rua” que, subitamente, se torna um
lugar seguro e humano. Loucura, finalmente, do nosso mundo social, tão
preocupado com as hierarquias e as lógicas do “você deve saber o seu lugar”
e do “sabe com quem está falando?” (cf. o Capítulo IV), que está oferecendo
mais aberturas do que aquelas em que podemos realmente entrar. (DAMATTA,
1997, p. 118)
Concordando com DaMatta (1997), a intensidade do momento faz parecer superar o tempo
e o evento, produzindo deslocamentos simbolizados na fala dos brincantes como loucura,
dramatizando os paradoxos da sociedade brasileira através da inversão do carnaval conduzindonos a uma experiência, libertadora, mágica, possível, extraordinária. Acrescento na análise do
autor, que toda dinâmica do carnaval passa, também, pela dimensão simbólica de tudo aquilo
que nos humaniza – nossa música, nossa fantasia, nossa memória, nossa culinária, nossa
maneira de brincar, etc. – presente na obra “O que faz o brasil, Brasil?” do mesmo autor. 3. CARNAVAL DE RUA DE BELO HORIZONTE DE 2015: NOTAS SOBRE ALGUNS BLOCOS
Vale ressaltar o caráter antropológico deste artigo. Como um esforço antropológico, foi
orientado metodologicamente pela etnografia, “o método antropológico por excelência”
nas palavras de Clifford Geertz3. As noções de trabalho de campo, de diário de campo, de
3 GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura (p. 3-21), In, A interpretação das culturas
– 1ª ed., 13ª reimpr., Rio de Janeiro, LTC, 2008.
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organização do estudo em categorias, de estabelecer as relações, de selecionar fontes e
informantes, de conhecimento de “primeira mão” para uma interpretação teoricamente
conduzida estão presentes aqui.
Considerações: (a) Os blocos do carnaval de rua contemplados para o presente estudo são:
Então, Brilha; Praia da Estação; Pena de Pavão de Krishna; e, Baianas Ozadas4; (b) Os blocos
escolhidos justificam-se aqui pela visibilidade conquistada entre brincantes da cidade; (c) A
descrição dos blocos procurou realizar não uma extensa coleta de informações, mas, sim,
responder a questões de cada bloco como “onde?”, “quando?”, “como?”, “quem?”, “com
quem?”, “por quê?”, “contra quem?” como forma de viabilizar a pesquisa; (d) Vale ressaltar
a participação dos integrantes dos blocos na infraestrutura e organização, isto é, batuqueiras
e batuqueiros compram seu próprio instrumento musical e fantasias, regentes das baterias
ensinam como tocar os instrumentos gratuitamente, na maioria dos blocos há financiamento
coletivo e voluntário para arcar com despesas geradas pelo aluguel dos locais de ensaio quando
não são realizados na praça ou em locais cedidos, grupos de dança também se destacam pela
criatividade e alegria, dedicação e fantasia; (e) Organizadores e puxadores dos blocos planejam
o antes, o durante e o depois da saída dos blocos. Os ensaios, o repertório de canções, fantasias,
abadá, marcam os encontros, providenciam o trio elétrico e o equipamento de som, definem
a rota por onde passará o bloco, procuram estabelecer comunicação entre membros do grupo
e com a cidade como um todo através das redes sociais na internet e através dos meios de
comunicação de massa de modo geral, produzem o seu próprio material de divulgação do
bloco agregando voluntários e profissionais de comunicação, mantem contato com o poder
público solicitando fechamento de ruas e avenidas e a aquisição de banheiros químicos em
pontos estratégicos.
3.1. ENTÃO, BRILHA, O BLOCO DA GUAICURUS.
Sábado de carnaval, 14/02/2015 o Bloco Então Brilha, um dos mais irreverentes da capital
concentrou-se das 7 às 9 horas em frente ao hotel Brilhante na Rua dos Guaicurus, Hipercentro de Belo Horizonte por onde iniciou seu percurso, com fogos de artifício anunciando
a saída do bloco. Foliões adotaram as cores do bloco, ou seja, o amarelo e o rosa, seguindo
o trio-elétrico até a Praça da Estação, onde foi finalizada sua apresentação, por volta das 12
horas. Com muito confete e muita glitter, embalados pelo samba e pelo axé baiano, pessoas de
várias idades, fantasiadas com perucas, fantasias várias, fizeram a alegria da capital mineira.
Artistas, intelectuais, ativistas de diferentes seguimentos, profissionais liberais, entre uma
ampla diversidade de pessoas (de gênero, de orientação sexual, de sexo, de idades, de diferentes
4 Para informações sobre o carnaval de Belo Horizonte de 2015, sugerimos o artigo do jornal eletrônico “Divirta-se” sobre a
programação oficial: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/especiais/2013/carnaval/2015/01/30/noticia_carnaval,164026/
belotur-divulga-programacao-oficial-do-carnaval-de-bh-confira.shtml. Acesso: 10/02/2015 às 10 horas.
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características fenotípicas, de diferentes identidades) são frequentes nos ensaios e na saída5
do Então Brilha. Neste ano, o desfile apresentou considerável crescimento de participantes. Ali
encontramos, também, vários vendedores ambulantes de “catuçaí, a bebida do amor” como é
conhecida entre os seus vendedores e consumidores.
São aspectos importantes na construção do Bloco Então, Brilha: O nome deste bloco teve como
inspiração a canção “Gente”, de Caetano Veloso, mais especificamente o trecho que afirma
“gente é pra brilhar”, canção que integra o disco “Bicho” de 1977. Dessa forma, se gente é para
brilhar, como sugere a canção, os idealizadores do bloco responde, humoradamente: “Então,
Brilha!”6; A rua dos Guaicurus, ou, simplesmente, rua Guaicurus fica na região também conhecida
como a “zona do baixo meretrício”. Principalmente, devido a sua história boêmia há décadas.
As profissionais do sexo atuam ali em vários prédios. Hilda Furacão foi uma das mais célebres
personalidades como profissional do sexo e como musa inspiradora. A “garota do maiô dourado”,
homenageada por Roberto Drumond em seu romance “Hilda Furacão”, publicado em 1991, que
retrata a Belo Horizonte do início dos anos 1960. Este romance foi adaptado para a TV em forma
de minissérie pela autora Glória Pérez e exibida pela Rede Globo em 1998.
Os regentes de bateria e cantores e compositores locais assumem a liderança do bloco, desde
sua fundação, em 2009. Os idealizadores do bloco são Rafael Gonçalves da Costa e Luna
Gomides e hoje, à frente estão Geison Almeida, Di Souza, Glauco Gonçalves, Gustavito, Rubens
Aredes e Hernani Mendes.7
Encontramos neste bloco as profissionais do sexo acenando pelas janelas dos prédios ao longo
da Rua dos Guaicurus durante o percurso do Então Brilha. Encontramos pessoas vindas de
outras cidades mineiras e até mesmo de outros estados para este bloco. As manifestações
das religiosidades de matriz afro-brasileiras foram compartilhadas e bem aceitas nos ensaios.
Notamos, também, muitas pessoas LGBT brincando o carnaval. 3.2. BLOCO PRAIA DA ESTAÇÃO: DA DISSIDÊNCIA POLÍTICA À ALEGRIA DO
CARNAVAL.
Sábado de carnaval, 14/02/2015. O bloco Praia Da Estação contagiou a cidade ao som de
sua entusiasmada bateria tocando diversos ritmos brasileiros, como, o frevo e o Axé,
e principalmente, marchinhas de carnaval. Sua formação conta com percussionistas e
batuqueiros que comparecem aos sábados, ao longo do ano, na Praça da Estação, centro de
BH, em ato público conhecido como “Praia da Estação”, movimento social de protesto contra
5 Saída e desfile são palavras com sentido similar no carnaval referindo-se ao momento que o bloco sai com a multidão em
desfile pelas ruas da cidade até o momento final do desfile.
6 Para ouvir a marcha-axé do “Então, brilha!: https://soundcloud.com/gustavitoamaral/ent-obrilha. Acesso em 22/02/2015
às 8 horas.
7 Para ver as fotos do bloco “Então, brilha!” acessar a fanpage do grupo através do link: https://www.facebook.com/entaobrilha/photos_stream. Acesso: 26/06/2015.
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a administração do atual prefeito Marcio Lacerda que, através de um decreto de dezembro de
2009, proibiu a realização de eventos nesta praça. Assim, os encontros semanais para banho
de sol foi a maneira pela qual a dissidência política em oposição à política higienista de Lacerda
expressa-se com muito bom humor, juventude e crítica social.8
Segundo Rafa Barros, antropólogo e ativista do “movimento Praia da Estação” este bloco
carnavalesco é o mais improvisado em relação aos demais9. Após concentração na Praça da
Estação o bloco percorreu a Rua Aarão Reis e parou duas vezes para banho de mangueira
(na primeira parada) e de caminhão pipa (na segunda) oferecido aos foliões (o primeiro na
rua Aarão Reis, em frente ao teatro “Espanca!” e o segundo na avenida Afonso Pena, em
frente a sede da Prefeitura). Quem comandou o banho público, mais uma vez, foi Chapolin,
Denise Lopes, ativista do movimento Praia da Estação, foliã e atriz vestida a caráter do antiherói mexicano, muito popular entre frequentadores da Praia da Estação. Entre os presentes
estão Rafa Barros, atores de teatro do grupo “Espanca!”, Chapolin, Guto Borges, batuqueiros,
músicos da UFMG, muita gente jovem, e estudantes secundaristas e universitários no “juntajunta” do bloco.10
3.3. PENA DE PAVÃO DE KRISHNA (PPK) E SEU AFOXÉ TRANSCENDENTAL.
Domingo de carnaval, 15/02/2015. O Bloco Pena de Pavão de Krishna (PPK) coordenado por
Gustavito, Flora Rajão, Tulio Nobre e Rafael Gonçalves saiu às ruas da capital ao ritmo do ijexá.
Neste ano o bloco concentrou-se a partir das 9 horas, na Praça 15 de maio, bairro Lagoinha
e seguiu com seu trio-elétrico pelas ruas da região finalizando o seu desfile no aglomerado
Pedreira Prado Lopes. Como o bloco não tem trajeto divulgado com antecedência como
os demais, os foliões que desejam acompanhar o PPK aguardam com grande expectativa a
divulgação do local de onde ele partirá.
O PPK menciona as culturas hindu e afro-brasileira observáveis nas canções, nas danças e no
figurino que compõe as fantasias. O nome do bloco foi extraído do trecho da canção “Trilhos
Urbanos” do LP Cinema Transcendental de Caetano Veloso lançado em 1979 pela gravadora
Verve. Inspirado, também, no bloco “Filhos de Gandhi” de Salvador conta com a presença de
adeptos do movimento Hare-Krishna durante os desfiles e com uma canção tema de autoria
do compositor Gustavito. As fantasias dos seus integrantes apresentam traje hindu (turbantes,
túnicas e colares). Seus integrantes maquiam-se pintando seus rostos de azul em homenagem
8 Ver: LACERDA, Márcio Araújo de. DECRETO Nº 13.798 DE 09 DE DEZEMBRO DE 2009, Ano XV - Edição N.: 3481, in, Diário
Oficial do Município, Belo Horizonte, 09 de dezembro de 2009. Disponível em: http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.d
o?method=DetalheArtigo&pk=1017732 . Acesso: 07/05/2015.
9 Informação obtida em uma rápida conversa entre o pesquisador e o ativista.
10 Ver, também, o vídeo: PEREIRA, Tiago. História # 7 Praia da Estação – Belo Horizonte/MG, Belo Horizonte, Imagina Coletivo,
14/02/2013. Disponível através do link: https://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07E. Acesso: 27/06/2015.
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a colorada pele de Krishna11. O bloco atrai pessoas de religiões minoritárias, principalmente,
de matriz africana, orientais e kardecista, praticantes de Yoga, de capoeira e pessoas que,
em geral, buscam uma maneira alternativa de viver. A mistura musical produzida por agbês,
agogôs, atabaques, violão e violino conferem a marca musical do bloco. 12
3.4. BAIANAS OZADAS: O BLOCO QUE ARRASTA A MUTIDÃO.
O grupo concentrou-se na segunda-feira de carnaval, 16/02/2015, saindo às 13 horas da
Praça da Liberdade. Dirigido por Renata Chamilet, Geo Cardoso, Peu Cardoso e Heleno
Augusto, apresenta-se desde 2012. Neste ano, “o Baianas” foi capaz de aglutinar uma
multidão de cerca de 100 mil foliões13 de acordo com as estimativas da PM divulgadas pelos
principais meios de comunicação (uma multidão entremeada de fotógrafos, jornalistas e de
câmeras de TV). Sua concentração aconteceu na Praça da Liberdade, seguindo o trio-elétrico
pelas Avenidas João Pinheiro e Afonso Pena, Rua da Bahia, Rua dos Tamoios e Avenida dos
Andradas até a Praça da Estação.
A multidão não se desanimou, nem mesmo com a forte chuva que caiu durante o desfile do bloco
já na Rua da Bahia, permanecendo até o fim na Praça da Estação. Com um repertório de antigos
sucessos da axé-music das décadas de 80 e 90, os membros da bateria, cerca de 100, os dois
cantores e o guitarrista, desfilaram com camisetas personalizadas do bloco, saias (tanto homens
quanto mulheres), turbantes e colares representando as baianas. A cor predominante da fantasia
adotada pelo bloco é a branca (camiseta estampada, saia rodada e turbante) e colares de todas
as cores. À linha de frente do bloco é constituída pelo regente da bateria, pelos representantes
de cada naipe do conjunto da bateria, pelos dois cantores e por um guitarrista – grupo que já se
apresenta profissionalmente em shows musicais pelo Brasil e pelo mundo.
Entre seus participantes o bloco atrai e agrega pessoas de religiões de matriz afro-brasileira.
Além disso, sobre a fantasia adotada pelo bloco é notável que seus partícipes (femininos e
masculinos) ao incorporarem turbantes, colares, saias rodadas, entre outros adereços próprios
da identidade visual das baianas dos terreiros de candomblé da Bahia homenageiam-nas
durante o carnaval de BH. E, produzem e reproduzem os ritmos que compõe as musicalidades
baianas como o “samba-regue”, o “samba-duro”, o “afoxé”, etc.14
11 Para saber mais sobre a Sociedade Internacional para Consciência da Krishna em Belo Horizonte, veja o link a seguir: http://
www.harekrishnabh.com.br/. Acesso em: 07/05/2015.
12 Para ver algumas fotos do bloco Pena de Pavão de Krishna acessar a fanpage através do link a seguir: https://www.facebook.com/pages/Bloco-Pena-De-Pav%C3%A3o-De-Krishna/1415576388691620?fref=ts . Acesso: 26/06/2015.
13 Ver: Bloco Baianas Ozadas reúne 100 mil foliões no carnaval de Belo Horizonte, in, Divirta-se, Belo Horizonte, 16/02/2015.
Disponível em: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/especiais/carnaval/2015/02/16/noticia_carnaval,164698/blocobaianas-ozadas-desfila-no-carnaval-de-belo-horizonte.shtml. Acesso: 11/05/2015.
14 Para visualizar fotos do Bloco Baianas Ozadas acessar a fanpage do grupo através do link: https://www.facebook.com/
baianasozadas/photos_stream. Acesso: 26/06/2015.
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4. ENTRE OUTRAS ATRAÇÕES, O “CARNAVAL DE RUA”.
Além do “carnaval de rua”, o carnaval de Belo Horizonte contou com outras opções como o
desfile das escolas de samba cuja fundação de algumas delas nos remontam à década de 1950
e contam com a participação de compositores de sambas-enredo consagrados pela crítica; o
desfile dos blocos caricatos – rei momo, rainha-da-bateria, mestre-sala e porta-bandeira; o
desfile da Banda Mole (banda de pré-carnaval mais tradicional de Belo Horizonte existente
desde 1975); os clubes de carnaval (que ocorrem na quadra do Cruzeiro Esporte Clube, na sede
do Clube Atlético Mineiro e no Minas Tênis Clube); e, o Concurso Mestre Jonas de Marchinhas
(em homenagem ao compositor mineiro falecido 2011 devido ao seu legado para a música
local) o qual vem renovando o repertório de marchinhas de carnaval de Belo Horizonte.
Os foliões interessados puderam encontrar a festa em pontos do hipercentro da cidade
(Avenida Afonso Pena, Praça da Liberdade, Praça da Estação) e em vários bairros como
Funcionários, Savassi, Floresta, Lagoinha, Santa Tereza, Serra, Mangabeiras, Barro Preto,
Padre Eustáquio, Prado15.
A Catuçaí foi a bebida mais experimentada neste carnaval. Conhecida como “Catuçaí, a
bebida do amor”16. Um drinque vendido por vendedores ambulantes “antenados” composto
basicamente pela mistura tropical de açaí, catuaba alcoólica da marca “selvagem” e gelo.
Servido em copos de 300 ou de 500 ml, com ou sem canudo. Seus apreciadores exaltam o poder
energético, afrodisíaco e o caráter nacional da bebida, isto é, seus ingredientes simbolizam um
pouco da biodiversidade encontrada no norte brasileiro (açaí, catuaba, guaraná, marapuama
entre outras) 17. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os blocos do “carnaval de rua” tecem uma teia de significados específicos do momento atual de
Belo Horizonte. Mostra-se em consonância à cultura nacional compartilhando valores de nossa
identidade nacional através da inversão do carnaval, na influência da cultura afro-brasileira,
através de ritmos musicais das marchinhas de carnaval, sambas, frevos e do Axé, mas, também,
através da homenagem dos blocos Então Brilha e do bloco Pena de Pavão de Krishna a artistas de
expressão nacional como os cantores e compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil.
15 A Belotur é o órgão municipal responsável pela organização do carnaval de Belo Horizonte.
16 Catuaba Selvagem. Ingredientes (informações do rótulo da garrafa): vinho tinto seco, álcool etílico potável de origem agrícola, açúcar, suco de maçã, xarope de maça, fermento de maçã, composto com extrato de catuaba, guaraná e marapuama,
caramelo de açúcar, acidulante, estabilizantes, conservadores e água. Graduação alcóolica 14% vol. Não contém glúten.
17 Para mais informações sobre a penetração social da catuaba, ver o artigo de BALAGO, Rafael. Catuaba vira moda na noite
de SP por seu apelo sexual e baixo preço. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 03 de agosto de 2014. Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/08/1494081-catuaba-vira-moda-na-noite-de-sp-por-seu-apelo-sexual-e-baixo-preco.shtml. Acesso em 27/02/2015 às 7 horas.
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Observamos o ressurgimento de blocos de carnaval de rua de forma significativa a partir do
ano 2009 inicialmente compostos por pequenos grupos de amigos e familiares. Em 2015 o
carnaval belo-horizontino ganha projeção nacional sendo noticiado nos principais meios de
comunicação de massa do país.
Encontramos críticas sociais e protestos contra o atual prefeito acusado pelos movimentos
sociais de fazer uma política higienista em Belo Horizonte. Os blocos voltaram a protestar
contra o autoritarismo e contra a política higienista do atual prefeito.
Constatamos as hierarquias e os significados da vida coletiva manifestas nas inversões do
carnaval, levando ao centro de suas representações as identidades sociais periféricas de
LGBT, mulheres, “negros”, profissionais do sexo, Hare Krishna, candomblecistas, entre outras,
fazendo ressurgir dramatizações dos dilemas e paradoxos de nossa sociedade em contraponto
à vida cotidiana. A defesa do carnaval revolução é presente nos blocos mencionados neste
artigo entendendo como revolução além da contestação contra a política conservadora do
atual prefeito, a revolução pela cultura (em respeito aos direitos dos seguimentos sociais
menos favorecidos, pró-amor LGBT, pró-direitos das profissionais do sexo, negros, mulheres,
moradores de periferias, candomblecistas, Hare Krishna, entre outros não menos importantes
que manifestam a vontade popular por novas maneiras de ser e estar no mundo).
Finalmente, o presente artigo não pretendeu elaborar uma extensa análise sobre o carnaval,
mas, sim, contribuir com um olhar antropológico a este respeito, procurando, sobretudo,
captar as novidades do novo momento vivido na cidade cuja força maior emerge dos blocos
de rua e suscitar o debate em torno do carnaval de Belo Horizonte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DAMATTA, Roberto. A inversão do carnaval, In, Carnavais, Malandros e Heróis – Para uma
sociologia do dilema Brasileiro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco LTDA, 1997.
GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura (p. 3-21), In,
A interpretação das culturas – 1ª ed., 13ª reimpr., Rio de Janeiro, LTC, 2008.
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CIDADE
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HIP HOP E DIÁSPORA:
REFLEXÕES ACERCA DO MOVIMENTO EM MACEIÓ, AL.
Sérgio da Silva Santos1
Resumo
Este artigo trata dos percursos do movimento Hip Hop no Brasil e em Maceió, AL. Busca,
com base nas experiências traçadas por este movimento, apresentar suas características e
discutir a diáspora como categoria analítica útil no debate sobre ele. O campo de analise que
pautou a pesquisa em que este texto se baseou são três grupos juvenis – conhecidas no Hip
Hop como posses - de Maceió, que marcaram a trajetória do Hip Hop na cidade a partir de
1994. A experiência de tais grupos apontam reflexões também relacionadas à organicidade no
movimento e debates atuais em torno da profissionalização do Hip Hop.
Palavras-chaves: Diáspora, Movimento Hip Hop, Cultura Política.
Abstract
This article deals with the Hip Hop movement routes in Brazil and specifically in Maceió-AL.
Our search was drawn from the experiments presented by this movement. This work brings a
discussion surrounding the diaspora as an analytical category, and its usefulness in the debate
about the Hip Hop movement. In this sense, our analysis field consists of three groups of
Maceió that have marked the history of Hip Hop in this city since 1994. The experience of
these groups promotes reflections about the organicity in the movement, and causes debates
surrounding the professionalisation of Hip Hop.
Keywords: Diaspora. Hip Hop Movement. Political Culture.
1 Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, coordenador do Instituto do Negro de Alagoas e membro do Grupo
de Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTS, UFS). E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado em sociologia, desenvolvida entre anos de 2012 a
20142. Ele apresenta algumas reflexões sobre o movimento Hip Hop e de suas mudanças a partir
do advento da globalização, tendo como base noção de diáspora. A partir das organizações do
Hip Hop em Maceió, AL, analisam-se as dimensões históricas e estratégicas que mobilizaram
esse movimento no Brasil e, especificamente, em Maceió.
O que é o movimento Hip Hop? O que permite afirmar que esse movimento seja detentor
de elementos diaspóricos? Essas foram perguntas fundamentais para a construção deste
trabalho. Ressalta-se que o sentido de diáspora contemplado aqui é o que vem sendo usado
pelos Estudos Culturais, a ser tratado na seção seguinte.
É importante enfatizar os aspectos históricos e estéticos do Hip Hop, pois eles estão imbricados
em questões políticas, sociais e culturais que, em certa medida, são os eixos norteadores que
indicam as dinâmicas das ações do movimento no cotidiano. Para Tavares (2009, p. 77)
[...] historicamente, o Hip Hop se refere a um movimento cultural, produzido
por jovens negros e latinos, surgidos em espaços segregados de grandes
metrópoles nos Estados Unidos, Inglaterra, no final dos anos sessenta por
intermédio da influência dub3 da cultura caribenha que chegava aos EUA
trazida por imigrantes.
Tal contextualização histórica de origem abre possibilidades de reflexão sobre atuais práticas
políticas, sociais e culturais que direcionam alguns aspectos da vida dos jovens que compartilham
da cultura Hip Hop, como expressões artísticas, estilos de vida e identidade. Difundido a partir
da globalização, o Hip Hop é uma cultura que agrega algumas características definidas pelo
local em que esse movimento se manifesta. No entanto, atualmente, uma característica
marcante desse movimento é sua forte presença nas periferias de grandes cidades. Perceber
interinfluências entre as reivindicações originárias e a reverberação política e estética do
movimento por onde ele se expandiu é crucial para compreendê-lo de forma mais ampla.
O Hip Hop é formado por quatro elementos caracterizados por formas diferentes de expressão:
a dança, a musicalidade da poesia, a produção de efeitos musicais e o desenho artístico. Essas,
que se tornaram elementos simbólicos para a cultura. Tais símbolos permeiam o universo
urbano através de diversas facetas, em contextos de expressão artística, de consumo, de estilo
de vida e de resistência.
Considerar o Hip Hop como uma expressão da diáspora permite afirmar que essa cultura
tem sua influência baseada no advento da globalização, ou seja, na troca de experiências,
2 A pesquisa teve como produto a dissertação intitulada O cotidiano das posses de Hip Hop em Maceió: visibilidades, territorialidades e poder.
3 Dub – Música instrumental com efeitos eletrônicos.
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e, principalmente, que ele é dotado de uma capacidade de hibridização e de ressignificação.
É um pressuposto para que possamos discutir as diversas transformações desse movimento
cultural e político em diversos lugares do mundo. Pensar o Hip Hop a partir da diáspora é
afirmar que esse fenômeno não se permite fixar, ou melhor, os sujeitos que o movimentam
estão constantemente prontos a ressignificá-lo.
Utiliza-se a noção de diáspora, de Stuart Hall, como contribuição analítica para pensar o campo
da difusão global do Hip Hop refletindo sobre a sua dispersão pelo mundo. O contexto de
seu surgimento nos Estados Unidos e na Inglaterra foi influenciado pelas lógicas de imigração
estabelecidas na época; e foram esses imigrantes que fomentaram Hip Hop como movimento,
que passou a se caracterizar pelo seu formato geral e particular, híbrido e contextualizado. Não
há apenas um Hip Hop, mas vários, a depender do contexto social em que se desenvolve.
Souza (2011) diz que foi em Nova York, no final dos anos 1960 e início de 1970, em meio às lutas
pelos direitos civis dos negros americanos que o Hip Hop tomou seu contorno de movimento
sociocultural. A autora enfatiza que tal quadro servirá como pano de fundo para as primeiras
expressões do Hip Hop, embriões de uma cultura que, mais tarde, faria sentido na trajetória
de parte da juventude negra nova-iorquina. Grosso modo, em distintos lugares do mundo por
onde se encontre o Hip Hop, é comum que se atribua à sua gênese esse contexto.
Assim, apresenta-se, neste texto, uma discussão sobre o Hip Hop, a diáspora, a cultura e a política
na globalização; posteriormente, traça-se um percurso do desenvolvimento do movimento no
Brasil e em Alagoas. Por fim, tecem-se algumas considerações sobre a organicidade dos atores e a
importância desse tipo de atuação para o alcance político das práticas identitárias de resistência.
HIP HOP, DIÁSPORA, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO.
O processo de difusão do Hip Hop no mundo inteiro passa pelas articulações das práticas sociais
de um lugar específico, compostas por divergências e conflitos, em contextos específicos de
interação social. Dessa maneira, foram criados diversos grupos que deram significados às suas
ações em torno de símbolos e discursos associados a estilos de vidas próprios e localizados,
incorporando elementos do Hip Hop como forma de expressão cultural. Grupos foram
constituídos a partir de tais contextos circunscritos a bairros, que passaram a ser denominados
de Crews e Coletivos (SOUZA, 2011).
Esta heterogeneidade no processo de expansão do Hip Hop e as diversas facetas que estão
postas atualmente tornam complexo entendimento do tema. Nesse sentido, a noção de
diáspora possibilita entender tanto as relações difusas do Hip Hop, como os instrumentos
de deslocamento do pensamento dos sujeitos que compartilham da cultura Hip Hop e as
difundem de algum modo.
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Segundo Hall (2013, p. 36),
[...] é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma
subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. Como
outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante
em seus efeitos. Suas compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas
novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o “lugar”. Disjunturas
patentes de tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar
seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas, é claro, têm seus locais. Porém,
não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam.
As influências jamaicanas, por exemplo, acionadas por Afrika Bambaataa4 nos EUA, para
construir suas percepções do Hip Hop e suas práticas diante da realidade dos jovens negros e
imigrantes, serviram como efetivação dos dispositivos imaginários emanados pela diáspora. A
construção da “casa” fora de casa é uma perspectiva que norteia a disseminação do Hip Hop
nos EUA e no mundo. É a partir da concepção de diáspora que podemos entender e questionar
as práticas produzidas pelos agentes que compartilham da cultura Hip Hop e compreender os
acirramentos políticos que envolvem o seu deslocamento mental em busca do reconhecimento
da “sua cultura” em um lugar hostil. Passadas algumas décadas, o Hip Hop continua a ser uma
forma de expressão que possibilita esse deslocamento imaginativo e essa tentativa diária de
reconhecimento e estabilidade em uma sociedade multicultural.
O Hip Hop e suas práticas são considerados aqui uma manifestação cultural com múltiplos
formatos de expressão. Mesmo que se considere a possibilidade das influências caribenhas e
africanas, essa cultura é potencializada a partir de um universo cosmopolita difuso. A busca pela
“casa” ou pelas “origens”, fortemente considerada na gênese do Hip Hop, pode ser considerada
uma busca por um pertencimento imaginário ao lugar, e também a forma de sentir-se em casa,
em comunidade, em busca do reconhecimento e de reidentificações simbólicas em contextos
urbanos e periféricos. As práticas desenvolvidas pelo Hip Hop propõem não só um argumento
unidimensional, mas um pensamento multidimensional. Hall (2013) entende que, na condição
de diáspora, as identidades tornam-se múltiplas e esse efeito aplica-se também em relação
ao Hip Hop, se considerarmos suas várias práticas dispersas pelo mundo, em condições
cosmopolitas e justificadas por uma origem imaginada.
Nesse sentido, o Hip Hop constitui-se como uma desconstrução e uma negação de uma dada
identidade unívoca, nacional, quebrando os pressupostos da integração e negando o pacto
em torno da ideia de uma identidade nacional. O surgimento do Hip Hop potencializa um
pensamento crítico e complexo que podemos entender como uma possibilidade de desmarcar
os discursos hegemônicos. A partir das intervenções dos seus grupos e coletivos, o Hip Hop
impõe um processo de negociação e de ressignificação que acreditamos estabelecer um
universo crítico dos discursos hegemônicos. Ser negro (mas não só), morar na periferia (mas
4 Bambaataa foi precursor do Hip Hop nos Estados Unidos e um dos criadores da Zulu Nation. Articulou experiências e influências jamaicanas para tentar ressignificar as rivalidades existentes nos guetos daquele país através da arte.
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não só), dançar, falar, cantar, produzir sons e ter um estilo de vida diferente de uma sociedade
estabelecida denota outros significados que não apenas o de algum horizonte negativo,
fechado numa alteridade rígida.
A importante reflexão de Stuart Hall sobre a diáspora se aplica à análise do Hip Hop, como
nos propomos a desenvolvê-la neste estudo. Ou seja, as práticas dos sujeitos que interagem a
partir da diáspora põem em xeque discursos nacionalistas e de identidades homogeneizadoras.
Também coloca em ênfase a autonomia dos sujeitos para desconstruir, a partir de uma condição
tempo e espaço, elementos hegemônicos de relações sociais.
Mesmo originado em países considerados de primeiro mundo, o Hip Hop tornou-se um
exemplo importante das lutas por reconhecimento dos imigrantes, ou descendentes, originários
do terceiro mundo. Mas só podemos concordar com tal afirmativa quando consideramos a
diáspora como uma categoria fundamental de reflexão sobre o assunto. Sendo assim, pode-se
entender como o Hip Hop foi adotado como um forte instrumento de luta social e de denúncia
em diferentes lugares do mundo.
Tendo como referências tais considerações, cabe ressaltar a importância do Hip Hop no Brasil,
tendo em vista o contexto de seu aparecimento e as relações que foram construídas política e
socialmente a partir daí, nas periferias das grandes cidades. Sendo assim, é relevante ressaltar
em que momento o Hip Hop chega ao Brasil e quais os meios que os jovens da periferia
utilizaram para difundir e ressignificar alguns discursos. É necessário também apresentar quais
os reflexos do Hip Hop em torno das demandas sociais e políticas na sociedade brasileira.
O PERCURSO DO HIP HOP NO BRASIL
Diversos estudos sobre o Hip Hop no Brasil apresentam São Paulo como o berço de tal
expressão no país. Segundo Souza (2011), o Hip Hop surgiu no contexto das contradições sociais
experimentadas pela grande cidade. Contradições que, nos anos finais da Ditadura Militar, em
meados da década de 1970, evidenciavam inúmeros problemas sociais, como desemprego e
precarização das condições de vida que, por sua vez, geravam fortes reivindicações sociais e
direitos democráticos. Esse cenário serve de base para interpretar práticas desenvolvidas pelos
sujeitos que se envolveram com o Hip Hop e os sentidos dados por eles face às discussões
políticas que estavam em voga naquele momento.
A chegada e o desenvolvimento do Hip Hop em São Paulo se deram num contexto de
mobilizações sociais com forte tendência à criação de entidades representativas da sociedade
civil, como, por exemplo, associações de bairro, novos partidos políticos e movimentos sociais
organizados – entre eles, as entidades do movimento negro.
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O período de 1970 caracterizou-se como cenário de forte movimento migratório no país.
Segundo Brito (2009), nesse período específico, contabilizava-se no Brasil uma população de
aproximadamente 93 milhões de habitantes. Um terço desse total tinha como residência os
municípios pertencentes às aglomerações metropolitanas. Sabendo que, na década de 1960, a
população urbana superou a população rural, pode-se afirmar que o processo de urbanização
tornou-se acelerado e que esse movimento permitiu o surgimento de novas dinâmicas sociais
e culturais no universo social da cidade. Diversas culturas urbanas associadas a estilos de vidas
juvenis foram aparecendo associadas ao consumo musical.
Brito enfatiza que a trajetória da migração mobilizava a esperança por melhorias de vida. O
autor afirma que
[...] mudar de residência com a família para outro município ou estado era
uma opção social consagrada pela sociedade e pela cultura, estimulada pela
economia e com a possibilidade de se obter êxito na melhoria de vida. Contudo,
as desigualdades sociais, que historicamente têm sido uma característica da
sociedade brasileira, tornaram-se mais agudas e se projetaram sobre o Brasil
urbano e moderno (BRITO, 2009, p. 14).
A migração e as condições de vida encontradas por esses migrantes possibilitaram algumas
experiências no universo das metrópoles. Em São Paulo, o inchaço da cidade, o aumento
significativo da população e as disputas pelos espaços criaram um cenário peculiar para o
processo de interação social dinamizada pela cultura Hip Hop.
Como contribuição à reflexão sobre a relação entre a diáspora e o hip-hop também é
importante a discussão sobre o processo de constituição de movimentos culturais e sociais em
torno das questões que envolvem as relações raciais no Brasil. Guimarães (2002) afirma que
a população negra vivenciava condições de discriminação racial, à medida que se ampliavam
os mercados e a competição, pois os preconceitos e os estereótipos racializados continuavam
a definir as oportunidades de emprego e as expectativas de desenvolvimento, e grande parte
da população “de cor” continuava marginalizada do processo de desenvolvimento das grandes
cidades como São Paulo.
Para refletir sobre o surgimento e o crescimento do Hip Hop no Brasil, é preciso evidenciar
os discursos e as práticas desses movimentos que deram novos significados sociais ao negro
e às práticas culturais dessa população. Nesse sentido, é importante pensar na trajetória da
institucionalização e organização política dos movimentos negros no Brasil, para daí analisar até
que ponto e medida há confluências com desenvolvimento do Hip Hop. Segundo Domingues
(2007), para reverter o quadro de marginalização nas primeiras décadas da República, os libertos,
ex-escravos e seus descendentes instituíram movimentos de mobilização racial negra no Brasil,
criando inicialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados.
Ainda conforme o autor, é na década de 1930 que o movimento negro dá um salto qualitativo.
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O surgimento da Frente Negra Brasileira, em São Paulo, em 1931, potencializa o surgimento
de outras organizações como, por exemplo, a Frente Negra Socialista, em 1932, em São Paulo.
Para ele, a importância do Teatro Experimental do Negro, surgido em 1944, foi a formação
da consciência política para o crescimento dos movimentos negros. Essa organização tomou
outra proporção, quando, por exemplo, passou a oferecer curso de alfabetização, de corte e
costura; fundou o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro e organizou o I Congresso do
Negro Brasileiro. De acordo com Domingues (2007), só em 1978, no entanto, com a fundação
do Movimento Negro Unificado (MNU), surge na cena política do país um movimento social
negro mais amplo e organizado.
Segundo Guimarães (2007), os movimentos negros do pós-constituição de 1988 tentam construir
mecanismos de combate ao racismo e de ressignificação da noção de negro na sociedade. Ao
afirmar tal posicionamento, o autor corrobora com o pensamento de Hall (2013) que admite
que essas formas de articulação cultural possibilitam a construção de “novas etnicidades” de
caráter móvel, descentrado e múltiplo. Costa (2006, p 37), por sua vez, declara que
[...] essa reconstrução simbólica só pode ser adequadamente compreendida no
contexto de seus vínculos com transformações que se dão fora das fronteiras
nacionais, conforme as dinâmicas políticas e culturais observadas junto à
população afrodescendentes mostradas de forma particular e evidente.
É necessário contextualizar o Hip Hop nesse deslocamento das práticas e do discurso dos
movimentos sociais. O movimento negro no Brasil, a partir do surgimento do MNU, potencializou
a realização de uma diversidade de manifestações políticas e culturais que se fortaleceram nos
anos 1980. Mesmo com o ímpeto de concentrar as ações de cunho político dos movimentos
negros, o MNU não conseguiu centralizar toda a multidiversidade existente no eixo cultural e
político desse segmento.
Assim, é possível entender a identitária híbrida do Hip Hop, que surge como discurso
associado aos movimentos negros no Brasil, mas não se restringe a ele. Segundo Andrade
(1996, p. 86) “o baile para o jovem negro é um espaço fundamental de afirmação da sua
identidade, mais do que um simples espaço de sociabilidade juvenil”. Os chamados bailes
black’s tornaram-se instrumentos de encontros e exposição de um estilo de vestir, de
linguagem e musicalidade. Além disso, é importante ressaltar que o Hip Hop surge com forte
participação da juventude negra em São Paulo, mas também com participação de jovens
brancos moradores da periferia paulista.
Um dos pontos de vista traçados pelo Hip Hop foi justamente quebrar o paradigma de uma
identidade fixa, ou seja, dar diversos sentidos aos processos de construção de identidades.
Sendo assim, defende-se que os caminhos trilhados pelo Hip Hop permitiram uma multiplicidade
de sentidos e discursos, ou seja, a criação de novos significados, a partir de uma ideia original,
como diz Domingues (2007, p. 120),
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[...] o hip-hop no Brasil não tem um recorte estritamente racial, ou seja, não
visa defender apenas os interesses dos negros. Daí o discurso ambivalente.
Se, de um lado, esse movimento tem um discurso radicalizado de rebeldia
contra o sistema (termo sempre usado de maneira abstrata!), de outro, não
define explicitamente qual é o eixo central da luta. Desde que chegou ao país,
o hip-hop adquiriu um caráter social. Embora seja esposado pelos negros, ele
também tem penetração nos setores da juventude branca marginalizada que
vive na periferia dos principais centros urbanos do país.
Compreendendo a necessidade de efetivar as ações em torno da luta contra a discriminação racial,
desigualdade social e, principalmente, contra a violência policial aplicada aos jovens da periferia,
alguns ativistas que compartilhavam de um estilo de vestir e de linguagem associada ao Hip Hop
iniciaram um processo de organização coletiva nas comunidades. Souza (2011) diz que esses
grupos passaram a atuar em locais fechados, tais como ONGs, escolas e centros comunitários.
Isso é fundamental para se entender o deslocamento realizado pelo Hip Hop: de um movimento
com preocupações estéticas para as um movimento engajado em questões sociais.
Num contexto de mudanças, em meados da década de 1980, surgem as posses no Brasil e, em
1990, é fundado Movimento Hip Hop Organizado em São Paulo. Para Felix (2005, p. 80)
[...] as posses são espaços, por excelência, em que as discussões políticas de
interesse do Hip Hop ocorrem. Isso quer dizer que é nas posses que o Hip Hop
tem sua existência vivenciada plena e criticamente. O autor ainda enfatiza
que é na posse que os praticantes de quaisquer dos “quatro elementos”
definidores do Hip Hop fazem suas reflexões políticas e ideológicas.
As posses são redes de coletivos juvenis que compartilham dos elementos da cultura Hip
Hop e que por um objetivo em comum tornam-se um grupo. Por meio dessa organização, os
jovens realizam eventos e criam pautas de reivindicações em torno de diversas causas, como,
por exemplo, lutam contra a desigualdade social, pedem melhorias no bairro onde residem,
denunciam abuso de autoridade por parte da polícia e se mobilizam em torno da necessidade
de acesso à cultura. As ações políticas do Hip Hop, assim, devem estar voltadas aos seus
próprios interesses no cotidiano.
Shetara (2001), militante do movimento, membro da Nação Hip Hop diz, em seu livro “A Nação
Hip Hop,” que a primeira posse registrada no Brasil surgiu em 1988 e chamava-se “Sindicato
Negro”. O nome dado à posse sugere uma relação com as questões raciais. Isso significa que
essas questões entram no movimento em diferentes momentos e diferentes intensidades,
sendo utilizadas especificamente como significantes de articulação. Uma característica
fundamental das posses são as práticas de ordem política que se tornaram fortes no Brasil.
Segundo Shetara (2001), as posses se fortaleceram promovendo “reuniões, festas, eventos e
atividades culturais e sociais”, mas, “além de reunir pessoas com afinidades artísticas, também
congregaram jovens com posições políticas parecidas”.
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O PERCURSO DO HIP HOP EM ALAGOAS
O Hip Hop em Alagoas teve início na década de 1980, exclusivamente na cidade de Maceió.
Os principais espaços em que se desenvolviam as atividades relacionadas ao Hip Hop eram a
Praça Jornalista Denis Agra, no bairro Santo Eduardo, e a orla da Praia da Avenida, na parte
baixa da cidade, próxima do Centro da Cidade. Lugares em que se reuniam tanto pessoas que
dançavam Break quanto pessoas curiosas, que estavam apenas de passagem. Em tal contexto,
o Hip Hop surge como uma manifestação mais associada ao entretenimento para os jovens
dos bairros socialmente periféricos de Maceió, que também circulavam na orla da praia.
Até 1994, o Hip Hop concentrou-se na parte baixa da cidade, onde ocorriam os encontros de
B’Boys, B’Girls, e DJs. Bairros como Vergel do Lago, Jacintinho, Ponta Grossa e Trapiche eram os
locais de procedência, em que residia a maioria dos dançarinos da cidade e que se deslocava
para os espaços citados, com o intuito de confraternizar e se divertir. A Praça Jornalista Denis
Agra tinha uma maior presença do público e era tida como um centro da cultura Hip Hop.
Naquele mesmo período, há registros de encontros entre dançarinos no bairro da Ponta Grossa,
zona sul da cidade, numa casa de eventos chamada de DISCOL. Tal casa de eventos, durante
o período que vai do final da década de 1980 ao início da década de 1990, tornou-se um
lugar de referência das chamadas festas de Black Music, onde eram realizados, por exemplo,
campeonatos de dança. Tanto a DISCOL quanto a Praça Jornalista Denis Agra tornaram-se
pontos de encontro de jovens que compartilhavam a cultura Hip Hop.
Em Maceió, é só a partir de 1994 que identificamos elementos que passam a evidenciar uma
conotação também associada às atividades políticas. A chegada do DJ Paulo, em Alagoas, que
teria vivenciado a cultura Hip Hop em São Paulo, influenciou o surgimento de uma conotação
política ao movimento em Maceió. Surgiram, então, aos moldes de organização política, a
Posse Atitude Periférica (PAP) e outros movimentos em diferentes cidades do estado, como,
por exemplo, a criação da posse Movimento Hip Hop Palmarino (MH2P), na cidade de União
dos Palmares, AL.
A PAP iniciou seu trabalho de militância na parte alta da cidade, na periferia, especificamente
nos bairros Santa Lúcia, Cleto Marques Luz e Dubeaux Leão, tornando tais lugares referência
para os jovens que já compartilhavam da cultura Hip Hop e para outros que buscavam participar
de suas atividades. As principais ações desenvolvidas pela PAP para difundir a cultura Hip Hop
foram as festas blacks, realizadas em escolas e centros comunitários, os ensaios de break aos
domingos e as reuniões e debates sobre o que seria o movimento Hip Hop.
As atividades da PAP eram realizadas na Associação dos Moradores do Dubeaux Leão, lugar
cedido pela comunidade para a realização dos encontros, festas, reuniões e debates. Segundo
Arnaldo Silva Barbosa, ou DJ ASB, ex-integrante da PAP e um dos diretores do atual Coletivo
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Cia Hip Hop, a Posse Atitude Periférica tornou-se referência para jovens de Maceió ligados ao
Hip Hop naqueles anos, jovens que saíam de outros bairros para participar dos seus eventos.
Segundo ele, foi ouvindo a programação de uma rádio comunitária que descobriu a PAP.
[...] eu tava em casa tentando sintonizar uma rádio, e de repente estava
tocando Rap, fiquei escutando a rádio mesmo “chiando” esperando alguém
falar. Passou uma música, duas... e depois da terceira música começou um
cara falar. O cara dizendo que se reunia todos os domingos, tal hora no
B’leão, e quem quisesse aparecer lá poderia aparecer, dizendo que era uma
família e que quem chegasse seria bem recebido. Então imediatamente liguei
pra rádio e falei com o locutor da rádio, que era o DJ Paulo. No domingo
seguinte eu fui para o encontro. Cheguei cedo, daí os caras foram chegando,
fiquei aliviado. Perguntei quem era o Paulo, conheci pessoalmente, todos me
cumprimentaram, não teve uma pessoa que não me cumprimentou. Comecei
a olhar o movimento, os caras me explicaram e foi a dali que eu comecei a
conhecer a cultura Hip Hop (informação verbal)5.
A programação na rádio comunitária, apresentada pelo DJ Paulo, durante o final da década
de 1990, e as panfletagens realizadas pelos integrantes da PAP, no mesmo período, fizeram
com que houvesse um crescimento no número de adeptos da cultura Hip Hop desenvolvida
pela posse, como também possibilitou aumentar a diversidade de integrantes em relação aos
bairros da cidade; fato que, posteriormente, incentivou a realização de eventos não só na
parte da alta da cidade, mas também na parte baixa.
Na medida em que o movimento se desenvolvia, a PAP iniciou alguns trabalhos nas escolas do bairro,
principalmente com palestras divulgando o Hip Hop e o combate às drogas. Com o lema: “periferia
sem vício é periferia menos violenta” essa organização juvenil conseguiu o reconhecimento da
Escola Irene Garrido, no mesmo bairro e, a partir de então, começou a realizar suas atividades com
frequência nessa escola. Com o crescimento da posse Atitude Periférica e as diversas linhas de
pensamento que começaram a surgir, iniciou-se um processo de divergência entre os integrantes,
o que ocasionou, posteriormente, o desmembramento e o surgimento de outra posse. Alguns
integrantes da PAP criaram a Associação Alagoana de Hip Hop Guerreiros Quilombolas (PGQ),
em 2004 e, a partir de então, começaram a desenvolver atividades relacionadas ao Hip Hop no
Complexo Benedito Bentes, também bairro periférico de Maceió.
O Hip Hop em Alagoas ampliou-se, com duas posses. As referências ao movimento tornaramse cada vez mais marcantes, principalmente com algumas matérias de jornais e a produção
de grafites em áreas enobrecidas da cidade. As atividades das posses nos bairros e a busca
pela criação de redes de solidariedade e articulação política foram marcas desse processo. Em
2007, a PGQ conseguiu, a partir da articulação com a Fundação Municipal de Ação Cultural,
montar uma delegação para participar do II Encontro Nordestino de Hip Hop, em João Pessoa,
PB, sendo, segundo alguns entrevistados, a primeira vez que um movimento organizado de
5 Entrevista fornecida por Arnaldo Silva Barbosa, DJ ASB, membro da Cia Hip Hop, em Maceió, em 2013.
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Alagoas participava de um evento fora do estado.
Logo após o II Encontro Nordestino de Hip Hop na Paraíba, houve a separação de alguns membros
da PGQ que iniciaram uma nova posse no bairro Village Campestre, chamada Associação do
Coletivo Companhia Hip Hop de Alagoas (CIA Hip Hop) que, desde então, realiza eventos nos
bairros Village Campestre e Graciliano Ramos, lugares muito próximos e que concentraram
seis edições do principal evento realizado pelo grupo: o “Abril Pró Hip Hop”. É a partir desse
contexto que une separação e atuação, que o movimento Hip Hop em Alagoas dinamiza suas
ações politicas e sociais, intervindo numa perspectiva comunitária, mas também buscando em
alguns espaços institucionais a promoção do Hip Hop no Estado.
O ORGÂNICO E O MOVIMENTO: REFLEXÕES ACERCA DA MILITÂNCIA
NO HIP HOP
Durante a pesquisa, identificamos a menção dos jovens em relação à posição de estar orgânico
ao movimento Hip Hop. Esse discurso de organicidade6 tornou-se uma estratégia de diferenciar
os jovens engajados daqueles que praticavam apenas um dos elementos do Hip Hop. É uma
forma de indicar que no Hip Hop existem duas dimensões: a dimensão do movimento, como
organização, e a dimensão individual. A posse é o movimento em sua totalidade; é neste espaço
que jovens atuam de forma sistemática em relação a perspectivas políticas e ações práticas
em defesa de uma ideia, enquanto o individual estaria apenas em um universo de produção e
visibilidade artística.
O entendimento que temos em relação aos discursos emanados por esses jovens é de que há
uma necessidade de demonstrar que, estando em uma posse, as práticas os tornam militantes
do Hip Hop, enquanto, estando fora, as práticas são dispersas. Felix (2005) contribui para
que essa dinâmica torne-se compreensível, já que ele entende as posses como “espaços,
por excelência, em que as discussões políticas de interesse do Hip Hop ocorrem”. Esse é
também o entendimento dos jovens que participaram da pesquisa. Eles buscam, a partir dos
discursos, o reconhecimento da militância e das suas organizações como representantes do
Hip Hop em Alagoas.
Se as organizações do Hip Hop tornaram-se fóruns de debates e de construções políticas,
as relações que norteiam tais subsídios, e que orientam as práticas desses jovens, estão
consolidadas na ideia de um movimento social. Neste sentido, esses jovens podem ser
considerados orgânicos nos termos gramscianos (HALL, 2013), justamente por entender
que suas práticas cotidianas baseiam-se na premissa de que a posse é um terreno em que
se tornam possíveis a consciência da posição e as dimensões da luta por algum objetivo. O
6 Entendemos que organicidade se refere às práticas políticas dos jovens que estão inseridos nesses grupos.
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debate sobre essa questão é também uma investigação de pautas políticas dos grupos que
pesquisamos e que são norteadas pelas pautas de cada movimento, no contexto de disputa
por visibilidade. Embora tenhamos identificado algumas diferenças em relação às pautas, há
um debate comum entre elas: o projeto de Lei 6756/20137 apresentado pelo deputado federal
Romário, que pretende regulamentar as atividades culturais do Hip Hop.
Apesar de identificarmos uma forte ligação destas posses com outras organizações do Hip
Hop fora do estado, não conseguimos identificar uma dimensão organizacional delas sobre o
debate em torno do projeto de lei em um nível nacional. Entretanto, identificamos durante as
entrevistas menção sobre o tema e posicionamentos contrários em relação à ideia conduzida
pelo projeto de lei.
Esse projeto deve ser debatido pelo movimento. O Hip Hop é uma arte da
rua, ninguém precisa ser profissional de carteira assinada. Depois a gente
vai ter que frequentar o SENAI pra aprender a rimar! [...] Essa ideia é mais
uma que surge da cabeça de uma pessoa que não conhece o movimento Hip
Hop no Brasil, talvez isso seja interessante pra alguém, mas pra gente isso
tá distante das nossas necessidades. A CIA junto com a Posse Nova Tropa de
Zumbi vai realizar um evento pra debater isso. É importante! (Informação
verbal)8.
Profissionalizar o Hip Hop poderá produzir desdobramentos importantes, seja na produção
ou reprodução dessa cultura. Em certa medida, poderá aumentar os níveis de interação, por
exemplo, nas relações de trabalho. Enquanto movimento social, essas organizações, pelo menos
em Alagoas, não tomaram definitivamente posição em relação a esta questão especifica, mas
apresentaram interesse em debater essa temática.
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7 Disponível em http://www.romario.org/portfolio/all/hip-hop/. Acesso em 20 Mar. 2013.
8 Entrevista fornecida por Geyson Santos, MC Geyson, membro da Cia Hip Hop, em Maceió, em 2014.
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