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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL E X P E D I E N T E Diretoria (Gestão 2013/2015) PRESIDENTE Sônia Martins Sebenelo VICE-PRESIDENTE Sally Karina Brodski DIRETORA ADMINISTRATIVA Ione Maria Russo DIRETORA CIENTÍFICA Mazlowa Maris Heck DIRETORA FINANCEIRA Marcia Ines Monteiro Steffen DIRETORA SÓCIO CULTURAL Marilene de Almeida Marodin DIRETORA DO INTERIOR Milene Maria Gonzales Merg DIRETORA DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL Angela Flores Becker DIRETORA SUPLENTE Odete Botton de Souza Endereço: Rua Felipe Néri, 414, 2º Andar. Porto Alegre, RS Editora: Roberta Vial Giacobone Co-editora: Alexandra Dal Prá Editores Associados: Denise Hausen, Samanta Antoniazzi e Thomás Gomes Gonçalves Conselho Editorial Adriane Roso Ana Maria Jacó-Vilela Ana Mercês Bahia Bock Ana Teresa R. Cerqueira Filho Angela Helena Marin Anita Guazzelli Bernardes António José dos Santos Antonio Virgilio Bastos Armando Ribeiro das Neves Netto Bárbara de Souza Conte Claire Lazzaretti Cleber Gibbon Ratto Cristina Queirós Danichi Hausen Mizoguchi Edite Krawulski Eliane Seidl Fabián Rueda Ignácio Paim Filho Irani I. de Lima Argimon Karen Eidelwein Julieta Quayle João Carlos Alchieri Leonardo Lemos de Souza Lúcia Novaes Marco Aurélio M. Prado Marcus Vinicius de Oliveira Silva María del Luján González Maycoln L. M. Teodoro Mayte Raya Amazarray Pedro Gil-Monte Rosana Cecchini de Castro Silvia Coutinho Areosa Silvia H. Koller Sueli Souza dos Santos Tânia Mara Galli Fonseca Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araújo Valdiney Gouveia Projeto gráfico - Grau Soluções Gráficas Diagramação e Edição Própria Comunicação REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL EDITORIAL PALAVRAS DA DIRETORIA Pensar significa transpor Ernst Bloch¹ A gênese da revista da Sociedade de Psicologia se deu em 1975, quando foi editada pela primeira vez.“Ainda me lembro das idas e vindas entre a sede na Rua da Praia e uma gráfica que ficava na Rua General Vitorino, e o quanto incomodava os colegas para aprontarem os textos, meu Deus!... E a alegria de ver as capas a um só tempo brilhantes e sóbrias. Quanto tempo, quase quarenta anos.” ( Luiz-Olyntho Telles da Silva – Presidente da SPRGS – Gestão 75/76.) Revelou-se durante todos esses anos um espelho de produção científica e cultural, refletindo a riqueza e o perfil da SPRGS. O convite à presidência para apresentar o Editorial foi um privilégio, pois quando ideias precisam ser repensadas, o lançamento desta edição sublinha a intenção de, renascendo a revista, nesta e nas próximas edições, alinhavar o contemporâneo e o tradicional – forma virtual e impressa – para o leitor que aprecia colecionar e consultar. O movimento editorial que surge discreto e potente contempla a produção científica de autores da área acadêmica e de fora dela, enquanto o mesmo em relação aos pareceristas, como histórica e democraticamente sempre ocorreu nas publicações da revista. Com entusiasmo, a Diretoria da SPRGS – Gestão 2013/15 sente-se representada neste movimento empreendido pela atual Comissão Editorial. Apresentamos a nova edição da revista com temas variados, que suscitam e provocam o debate através de artigos inéditos na área da Psicologia, relatos de pesquisa, experiência profissional, artigos de revisão e resenhas, representando um espaço de produção de conhecimento e abertura de novos universos para reflexão e análise. Dentre os artigos, encontramos a discussão sobre os desafios frente à juventude, ao desamparo do adolescente contemporâneo e ao papel da escuta psicanalítica. Em revisão teórica da concepção freudiana e de autores atuais, outro artigo explora os alcances e limites da interpretação, presentes no trabalho psicanalítico. Um estudo de caso aprofunda o olhar sobre as internações psiquiátricas, seus efeitos no sujeito, a necessidade de uma transformação da relação cultural com a doença mental e o papel da arte como uma perspectiva em saúde. A análise do transtorno de personalidade borderline, e as comorbidades associadas, oferece uma contribuição à compreensão desse quadro clínico, de alta incidência na clínica ambulatorial e em internações psiquiátricas. Em relato clínico com pacientes oncológicos, somos instigados a pensar sobre a relação transferencial e o papel do psicólogo na ressignificação das inscrições subjetivas e suas possibilidades. Estudo sobre a neurose histérica e suas manifestações, à luz da psicanálise e através do entendimento das transformações culturais da contemporaneidade, e sua influência na sintomatologia atual, demonstra como a histeria é concebida hoje. A evolução da Psicologia é debatida em artigo que analisa o percurso da Psicologia Social até chegar à Teoria das Representações Sociais, como teorias ou sistemas de conhecimento da realidade social. Temos ainda a satisfação de publicar o trabalho escolhido para representar o Prêmio Estudante, sendo este a análise de um filme infantil que aborda o tema da adoção. Através de pesquisa teórica, foram avaliadas as motivações e as influências no relacionamento familiar, e a importância do campo de atuação do psicólogo neste processo. Visamos – a Diretoria SPRGS - Gestão 2013/15 – e Comissão Editorial – oferecer aos leitores o resultado de um momento fecundo no cenário da 2 que agora experimentamos. Aos instituição, daí o sentimento de realização autores que, com a excelência de seus textos, ensejaram a elaboração do acervo que compõe este número da revista, nosso agradecimento, bem como ao colega Alexandre Schossler, artífice da reinstalação da plataforma SEER, que esteve desativada. Boa leitura a todos nós – explorando fronteiras do pensamento e do conhecimento! Sônia Martins Sebenelo, presidente É com muita satisfação que apresentamos aos sócios e à comunidade em geral mais um número da Revista Diaphora, o primeiro exemplar confeccionado pela gestão 2013/2015. Nesta edição, mantivemos a veiculação online da revista, por entendermos que esta forma de divulgação permite ampla visibilidade e fácil acesso por parte dos leitores. Contudo, também abrimos espaço para um debate sobre a retomada da versão impressa, acreditando que estas duas formas podem coexistir e, juntas, contemplar as demandas de grande parte dos associados. Nosso compromisso durante o tempo que estivermos à frente da revista é de que a mesma se constitua em um espaço de troca entre os sócios, contemplando as mais diversas experiências e formatos, preservando como principal característica de nosso periódico a pluralidade. O entendimento de que a Diaphora é uma revista que tem como diretriz representar uma categoria profissional nos impulsiona a manter a ideologia de que esta publicação poderá contemplar a maior variedade de escritos. Gostaríamos de convidar a todos para publicarem conosco! Desejamos uma agradável leitura e um Feliz Dia do Psicólogo, recentemente comemorado! Forte abraço, Comissão Editorial ¹ Bloch Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto/Eduerj, 2005. 1 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Di Bobis: Adolescência e desamparo na contemporaneidade Di Bobis: Adolescence and helplessness in contemporary society 2 Amanda Pacheco Machadoa *, Luciana Balestrin Redivo Drehmer b* Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão a respeito da vivência da adolescência na atualidade. Para isso, são abordadas questões relativas à influência das primeiras relações que o sujeito estabelece para a constituição do psiquismo, analisando-se o tema a partir dos fenômenos da contemporaneidade marcados pela cultura do narcisismo e da condição do desamparo. Assim, frequentemente, observa-se a ocorrência de padecimentos marcados pelo desamparo, cuja saída é o ato. E, para ilustrar tal questão, apresenta-se o caso de um adolescente de quinze anos atendido em um serviço escola. Com isso, pode-se compreender a importância da leitura da passagem ao ato como um pedido de ajuda, e o quanto a psicanálise é uma ferramenta fundamental no entendimento desses casos. Palavras-chave: adolescência; desamparo; passagem ao ato; serviço escola. Abstract: This article presents a reflection about the experience of adolescence nowadays. To this end, issues are addressed on the influences of early relations on the subject and the formation of his/her psyche. This topic is considered based on the phenomena of contemporaneity, which is marked by narcissism and conditions of helplessness. Therefore, it can be observed more frequently the suffering, characterized by helplessness, to which the escape is the act. To illustrate this issue it is presented a case of a fifteen-year-old, who was attended at a school service. With this, one can understand the importance of reading of the passage to the act as a call for help and how psychoanalysis is an essential tool in understanding these cases. Keywords: Adolescence; helplessness; passage to the act; school service. a Psicóloga, mestranda em Psicologia Clínica (bolsista Capes), PUCRS, Brasil. E-mail: [email protected] b Psicóloga, Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, Professora da Faculdade de Psicologia PUCRS, Brasil. E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 2 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 Muitos autores vêm se debruçando sobre o estudo da sociedade contemporânea e suas características peculiares. Essas reflexões têm sido incitadas, principalmente, pela observação, na prática clínica, do que vem sendo nomeado como “novas patologias” ou “patologias do vazio”, que são consideradas reflexos, de certa maneira, do modo de vida predominante em nossa sociedade. Contudo, o interesse pelo estudo do contexto social para entender esses fenômenos não é novidade. Em 1930, Freud já ressaltava a relevância de voltar-se às questões culturais para entender o comportamento do homem, pois sua constituição é atravessada também por aspectos relacionados à cultura vigente. Naquela época, Freud (1930/1996) caracterizou sua sociedade como se mantendo energicamente dentro do limite e se opondo à satisfação das pulsões sexuais e agressivas, sendo descrita como uma sociedade marcada pela rigidez. De acordo com Savietto (2007), as sociedades ocidentais atuais, pelo contrário, caracterizam-se por exaltarem a liberdade individual como valor máximo e consagrarem o prazer. Ou seja, é uma cultura na qual a satisfação imediata é privilegiada acima de tudo, o que leva os indivíduos a uma busca eterna de meios para esconder e eliminar a dor, incitando resoluções imediatas e absolutas. Birman (2012) acrescenta ainda tratar-se de uma cultura em que a questão do olhar, da performance e da visibilidade adquirem grande valor na cena social. Devido à estreita ligação entre tais propriedades com o narcisismo, isso também nos coloca diante de características como a solidão e o desamparo componentes da subjetividade de qualquer ser humano. O que acontece atualmente é uma impossibilidade de tolerar a condição constitutiva do ser humano. Muitas dessas características que nossa sociedade hoje revela assemelham-se ao que até então era atribuído, essencialmente, à vivência do período da adolescência, momento no qual o indivíduo precisa elaborar suas experiências infantis para poder consolidar sua identidade. Assim, em uma sociedade em que predominam características como as citadas anteriormente, é importante nos questionarmos sobre como o adolescente irá viver esse período e constituir sua identidade. Trata-se de uma reflexão atual, extremamente relevante e que vem ganhando espaço dentro da psicanálise. O interesse por essa temática surgiu a partir de uma experiência de estágio em Psicologia Clínica, quando, ao iniciar o processo de psicoterapia com um adolescente, este mostrou ter uma constituição psíquica muito frágil, perpassada por questões da cultura e de sua estrutura familiar. Assim, o presente trabalho caracteriza-se como um estudo de caso cujo material provém de um atendimento no estágio de Psicologia Clínica, durante a graduação em psicologia. Seguindo os preceitos éticos das Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde, para a realização do presente estudo, por tratar-se de um sujeito menor de idade, o pai do paciente concedeu sua permissão para o uso das informações obtidas no atendimento de maneira sigilosa. O atendimento iniciou-se em março de 2011 e foi encerrado em meados de novembro do mesmo ano. No decurso desse tempo, foram realizados 32 encontros com o paciente. Assim, a partir do relato dos atendimentos, realizou-se uma análise qualitativa do material levantado embasada no referencial psicanalítico. Estados-limites e passagem ao ato Atualmente, na clínica psicanalítica, os profissionais deparam-se frequentemente com as chamadas “novas patologias”. Essa demanda vem contribuindo para uma reflexão, a partir dos referenciais teóricos, pertinente à prática com pacientes que apresentam uma organização psíquica considerada como estado-limite. A partir dessas reflexões, é de fundamental importância um olhar crítico à teoria psicanalítica, com objetivo de manter os paradigmas de base que são indispensáveis, mas também para que se possa repensar e recriar a prática clínica da teoria psicanalítica a fim de dar conta das subjetividades contemporâneas (Hornstein, 2009). Birman (2012) assinala três aspectos nos quais se inscreve a dor presente nestas formas de funcionamento: o corpo, a ação e a intensidade. Em geral, é por meio desses três registros que se desenvolve a narrativa dos sujeitos que chegam para atendimento. Tais manifestações podem ser encontradas em diferentes quadros clínicos, como os casos de drogadição e anorexia, que se assemelham pelo forte caráter compulsivo, no qual a droga, no caso da drogadição, ocuparia um lugar de objeto fetiche. Outra semelhança apontada pelo autor, de extrema importância para o presente estudo, é a questão que se liga ao corpo. Considera-se que o corpo é o palco de manifestações, o que desencadeia indícios sobre a existência de diferentes formas de corporeidade. Nesse sentido, apresentam-se maneiras de desrealização da experiência corpórea que indicam, por sua vez, que a vivência narcísica não fora vivenciada suficientemente, denunciando uma falha nessa experiência. Se, por um lado, estamos inseridos em uma cultura predominantemente narcísica, por outro, deparamo-nos com subjetividades que revelam um déficit do investimento narcísico do corpo. Indo mais além, não se trata apenas de uma falha de investimento no corpo, mas de um esvaziamento narcísico. Nesse sentido, para compreender um pouco melhor o desinvestimento narcísico, é relevante retomarmos o conceito de desamparo, condição muito presente em nossa sociedade. O desamparo, segundo Drehmer (2011), pode ser entendido enquanto base da constituição da subjetividade do indivíduo e aspecto proveniente da própria cultura. Através dessa condição, o 3 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 outro passa a ter um valor inestimável na construção do psiquismo, instaurando, mais tarde, a capacidade de desejar. Tendo em vista a importância do outro no que se refere ao desamparo, Garcia e Coutinho (2004) apontam que também podemos entendê-lo como sendo o cerne de uma falha desencadeada pela precariedade da qualidade do cuidado recebido. Assim, o desamparo refere-se a marcas que não poderão ser apagadas da história do sujeito, possivelmente tornando-se o âmago de padecimentos que se caracterizem pelo uso do ato e também de ataques que causem destruição ao outro ou a si mesmo. Entende-se, portanto, que o desamparo diz respeito a uma incapacidade do aparelho psíquico de conter o excesso de excitação pulsional, o que acaba por desestabilizar o sujeito, assim, colocando em xeque sua capacidade de assimilar e de dar sentido a sua própria experiência. Dockhorn, Macedo e Werlang (2007) trazem para discussão a possibilidade de entendermos o desamparo relacionado ao conceito de trauma, no sentido de que o trauma pode ser entendido como responsável por caracterizar uma situação na qual o psiquismo é invadido por quantidades, estímulos e experiências, os quais é incapaz de processar. Assim, o conceito de trauma – quando entendido juntamente à questão do desamparo – enquanto componente da condição humana, relaciona-se ao impacto daquilo que foge ao campo representacional do sujeito em razão da sua grandeza e intensidade. Outra característica fundamental atribuída a essas patologias é a passagem ao ato. Esse fenômeno indica a dimensão do traumático, para o campo daquilo que não se pode representar. Apresenta-se uma limitada capacidade de simbolização, ou seja, as excitações pulsionais foram inseridas em nível muito baixo no campo da linguagem, possibilitando e facilitando que o ato propriamente dito emergisse. O ato tornase a única possibilidade de o sujeito conseguir regular a tensão e a angústia excessivas que carrega dentro de si. Pode ser visto também como se fosse uma forma de o sujeito encenar, exteriorizar algo interno para tentar, precariamente, sair de uma condição de passividade psíquica. A compulsão à repetição está extremamente ligada a esse processo, visto que a passagem ao ato representa uma tentativa de conter o excesso pulsional sem que se realize o processo de elaboração. Como não atinge a simbolização, o excesso pulsional permanece, levando o psiquismo a repetir compulsivamente a tentativa de dominá-lo sem sucesso (Birman, 2012 e Savietto, 2007). Mas, afinal, o que está por trás desses padecimentos psíquicos? Moraes e Macedo (2011) explicam que, nessas constituições, atravessadas pela vivência da indiferença e que encontram no ato uma maneira de dar conta dos excessos, se identifica uma forma singular de organização do Eu, cuja etiologia não será possível encontrar na conflitiva edípica. Nesses padecimentos, a fragilidade psíquica encontra-se no que se refere à alteridade, quando aquilo que fora vivenciado de maneira intensa passa a ser atualizado através do ato de repetir, sem qualquer possibilidade de representação. O ato, como maneira de dar conta dessa intensidade, traz para a vida do sujeito o encontro com o outro, que fora vivenciado com intensa indiferença. Diante disso, o sujeito passa a ficar em um lugar de subordinação, o que acaba por impossibilitá-lo de ser autor de sua própria ação. Experimenta, então, uma condição de desapropriação de si e, no aprisionamento dessa identificação, internaliza tudo o que lhe foi oferecido a partir da indiferença. Constituição psíquica: as primeiras relações e a família Macedo et al. (2010) apontam que as relações que se estabelecem desde o momento em que se inicia a vida e a qualidade do cuidado recebido são fundamentais para a constituição do sujeito psíquico, o qual, mais tarde, irá se defrontar com situações referentes ao desamparo inicial. Quando um outro atende às necessidades básicas da criança, concomitantemente, ela fará o registro das vivências de satisfação em seu psiquismo incipiente, tornando-se um sujeito psíquico. É possível perceber o valor do investimento, por parte das figuras parentais, para a estruturação do aparelho psíquico e do narcisismo. É por meio da conflitiva edípica, quando existe a triangulação, que irá se instaurar as diferenças e as interdições. Com a entrada de um terceiro na relação, inscreve-se no psiquismo infantil a imago paterna, o que faz com que a criança passe a experimentar frustrações em virtude da separação da figura materna. Assim, o indivíduo fará o registro da interdição em relação aos seus desejos (Drehmer, 2011). Hornstein (2008) explica que a entrada do pai na intensa relação da mãe com a criança fará com que essa díade seja rompida através da percepção da criança do desejo da mãe pelo pai. Dessa maneira, a criança deverá abdicar do lugar de completude e de quem pode tudo que até então ocupava. Portanto, a conflitiva edípica diz respeito à aceitação de uma lei que, em princípio, é do pai e, posteriormente, da sociedade e da cultura. Quando o complexo de castração pode se inserir numa cadeia simbólica, abre-se espaço para que o filho encontre outras saídas, renunciando a plenitude do narcisismo (Paim & Leite, 2012). Para Birman (2003), é a falta que instaura o desejo, o que indica a passagem de um Eu Ideal para um Ideal de Eu, que pode ser considerado como uma representação narcisicamente perfeita. O Ideal de Eu dirige-se para o futuro, para o que irá vir, guiando o sujeito na vida que será construída. Freud (1933/1996) aponta que o processo de formação do Ideal de Eu incluirá a inauguração da instância superegoica, herdeira do 4 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 Complexo de Édipo, ao passo que, a partir dela, ocorre a integração dos valores parentais e sociais. Retomando as ideias de Hornstein (2008), por meio da constituição do superego, o sujeito poderá se voltar para o contexto social em que está inserido, internalizando seus valores. Para que seja possível o ingresso no mundo externo, o superego deverá confrontar o mundo interno, e a impulsividade do Id deverá ser renunciada. A compreensão sobre o que se deve e o que não se deve fazer tem ligação direta com a compreensão parental, ou seja, o entendimento do que é certo e errado é construído com base nos atributos éticos do outro. Dessa maneira, é interessante refletirmos brevemente sobre a relação entre a contemporaneidade e a família. Roudinesco (2003) assinala que podemos falar de uma nova configuração familiar a partir da década de 1960. Nessa nova configuração, existe uma família em que não há lugar para hierarquia, pois o poder e a autoridade encontram-se descentralizados. Figueira (1987) complementa assinalando que, a partir da década de 1960, a família tradicional e com hierarquia perdeu espaço para a família caracterizada por igualdade. Savietto (2007) acrescenta que o enfraquecimento dos modelos parentais desencadeou mais do que uma sensação de liberdade: acabou gerando um profundo sentimento de desamparo. Agora, temos um grupo familiar cujos filhos não se encontram, estão perdidos, sem rumo e desamparados. Nesse sentido, Mayer (2001) aponta que as manifestações através do ato, com as quais nos deparamos hoje, expõem os efeitos de uma atitude parental conivente, que, sustentada pela cultura, deixa de lado a tarefa de impor limites eficazes. Isso faz com que os adolescentes deixem de respeitar a autoridade parental e não tenham um ambiente favorável que possa oferecer suporte para o desenvolvimento de sua identidade. Adolescer na atualidade Assim como esses novos padecimentos despertam muito interesse e reflexão entre os estudiosos, a adolescência também vem ocupando lugar de destaque no campo científico, tornando-se um assunto que produz muitos questionamentos e a respeito do qual ainda há muito sobre o que se refletir. Ultrapassa o conceito de ser apenas uma fase intermediária entre a infância e a adultez, para se tornar uma fase que suscita muitas mudanças tanto no tocante ao corpo quanto no que se refere à organização psíquica. Esse período do ciclo vital pode ser entendido, de acordo com Rassial (1999), como uma parada subjetiva, ou seja, trata-se de um tempo em que ainda existem significações a serem feitas. Caracteriza-se, portanto, por ser o momento de retomada das questões infantis relacionadas à apropriação da imagem corporal, do sintoma, e ao ato de testar a eficácia das referências simbólicas. Ao vivenciar esse período, é necessário que deixe para trás o corpo infantil a fim de que seja possível adquirir um novo corpo, de adulto, genitalizado. Com isso, ganha-se também a capacidade reprodutiva, o que significa que o adolescente está apto para concretizar uma relação sexual genital e a concepção de um filho. Com a chegada da adolescência, torna-se possível o ingresso na vida sexual genital propriamente dita e a forma como a sexualidade passa a ser vivenciada se torna muito intensa, trazendo de volta à vida do sujeito a conflitiva edipiana. Essa revivência e toda a mudança corporal que ocorre nesse período demandam muito trabalho psíquico pelo sujeito, pois tudo isso foge ao seu controle; trata-se de um momento de muita fragilidade, falta de certezas, impotência e revivência do desamparo. Em decorrência dessas mudanças e do que o indivíduo adquire na adolescência, a questão do desamparo, explicam Savietto e Cardoso (2006), torna-se bastante relevante, principalmente quando refletimos sobre a sociedade atual. Em nosso contexto, a condição de desamparo impõe-se à vida psíquica com muita intensidade, provocando o uso de defesas de caráter narcísico para conter a fragilidade da ordem simbólica que falha em exercer mediação. Monteiro (2011) acrescenta que há também uma inquietude narcísica intensa, ao passo que o indivíduo se depara com o confronto agudo dos aspectos ambivalentes de seu desejo, explicitando dúvidas atinentes as suas capacidades e recursos internos. Nesse sentido, a autora explica que a falta de interdições impostas ao comportamento do indivíduo, tanto por conta de sua constituição psíquica quanto pela organização de nossa sociedade, faz com que ele se depare com contradições em relação ao seu desejo, o que o conduz a uma tensão interna capaz de desencadear transbordamento no ego. Para dar conta desse excesso que não consegue simbolizar, o jovem acaba fazendo uso de defesas arcaicas, pouco mediadas pelo psiquismo. Como resultado desse processo, pode-se perceber com frequência a exposição a situações de risco, que se expressam por meio do ato na adolescência. Nesse contexto, a ação transgressora, que, a princípio, seria considerada inerente à experiência do período adolescente, acaba denotando déficits na forma como o psiquismo se organizou internamente, ou seja, revela uma incapacidade do sujeito de metabolizar um afluxo de energia livre. Nesse sentido, um ato de delinquência revela a fragilidade de estruturação de processos psíquicos fundamentais, visto que o aparelho psíquico fica impossibilitado de estabelecer a contenção, que poderia dar ferramentas ao sujeito para o uso de processos secundários. Desta forma, o ato perderia sua importância na tentativa de simbolização, denunciando, assim, o reduzido investimento psíquico que houve no decorrer de sua história (Steffen, 2006). 5 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 Nesse sentido, Winnicott (2000) explica que, nessas constituições psíquicas, o sujeito é privado de algo que lhe proporcionava satisfação e cuidado, como se algo que era essencial lhe fosse tirado. Uma das características centrais seria a falta de esperança desse sujeito, sendo que os atos delinquentes seriam justamente o momento em que experimenta a esperança. Assim, o autor aponta que, na verdade, o ato delinquente é um sinal de esperança, um pedido de ajuda e de socorro e como tal deve ser entendido para que se possa compreender esse tipo de funcionamento psíquico. Um pedido de ajuda: o caso de André André tem quinze anos, é um menino de estatura mediana e magro. O que mais chama a atenção na aparência do menino é o uso de dois alargadores, um em cada orelha, os quais ele mesmo colocou. Além disso, ele tem também dois piercings: um no lábio, perfurado também por ele próprio, e um no nariz. O paciente chegou para atendimento por meio de sua escola, que o encaminhou devido a dificuldades de aprendizagem e de conduta. O menino estava cursando a quinta série pela quarta vez e, desde seu ingresso na escola, sempre houve queixas relacionadas ao seu comportamento. A mãe refere que o filho é muito agitado e conversa muito em sala de aula, já o pai conta que o filho costumava se envolver com frequência em algazarras juntamente com outros colegas. Desde os primeiros contatos, observava-se a desinformação da vida do filho por parte dos pais. No primeiro contato com a mãe e o paciente, em vários momentos em que era feita alguma pergunta, ela voltava-se para o filho, procurando saber a resposta. Nesse primeiro momento, André também comentou que costumava sair só com o pai para boates, em que, segundo ele, ambos mantinham relações sexuais com mulheres. Tornouse evidente, já nesse início, a dificuldade que o paciente tinha de encontrar referenciais de lei e relações submetidas à alteridade. A respeito da história do paciente e de sua família, é importante mencionar que ambos os pais têm filhos de outros casamentos. Desses, ao longo dos atendimentos, André só mencionou um irmão, por parte de mãe, que tem envolvimento com drogas e chegou a morar na mesma casa que André durante algum tempo. Do atual casamento, além de André, os pais também tiveram mais dois meninos, com os quais André costumava brigar muito, batendo nos mesmos algumas vezes. Isso acontece, segundo o paciente, porque os irmãos só o incomodam, e os pais não fazem nada, deixando que eles façam o que têm vontade. Apesar de se referir aos irmãos sempre em momentos de briga e dizendo que ambos não lhe dão paz, André mantém uma postura muito protetora com relação aos mesmos, cuidando para que os irmãos não entrem para o mundo do tráfico ou aconselhando-os a se manterem longe de situações que o próprio paciente está muito próximo, como o abuso de álcool, por exemplo. Com relação à infância do paciente, desde muito cedo, por volta dos dois anos de idade, André costumava acompanhar seu pai em viagens que fazia a trabalho, mantendo pouco contato com a figura materna. Isso ocorreu até o paciente ter idade para ingressar na escola. Pode-se perceber que, em uma idade em que ainda seria fundamental a função materna, bem como ter uma rotina organizada, houve um enfraquecimento da ligação entre André e sua mãe, que seria responsável pela maternagem. Esse enfraquecimento parece ter se prolongado por mais tempo do que o sujeito seria capaz de manter a lembrança da experiência viva em sua memória. Além disso, também nos leva a pensar sobre como foram os momentos em que o paciente permaneceu na estrada e o impacto dessa vivência para o seu psiquismo, que ainda estava se constituindo. O relato do pai mostrava a insdiscriminação do que é necessário para uma criança e um adulto em termos de cuidado. Logo no início do atendimento de André, percebeu-se que se tratava de um caso em que seria de extrema importância que os pais pudessem estar mais próximos do atendimento. Em princípio, como o pai estava trabalhando em outra cidade, a mãe foi chamada diversas vezes para que pudéssemos conversar a respeito de sua percepção sobre o filho e a questão de limites, que, desde o começo, demonstrou ser uma grande dificuldade na família. André costumava sair para onde queria, na hora que queria, sem avisar ninguém de onde estava indo, sendo que suas ausências em casa eram cada vez mais frequentes. Apesar de entendermos como um pedido de ajuda de André, os pais não se apresentavam como representantes da lei. Essas ausências também eram sentidas no tratamento, quando marcarcávamos um horário, e a mãe afirmava que iria, mas, com frequência, não comparecia. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, sem qualquer apoio familiar, o paciente não faltava as suas sessões, demonstrando desde o começo a importância que tinha para ele o espaço de escuta oferecido, ainda que muitas vezes verbalizasse não entender por que estava ali ou que não precisava de ajuda, pois ninguém o tinha ajudado antes em sua vida. Frequentemente, a terapeuta e a supervisora inundavamse com as perguntas: de que ajuda ele se refere? A construção do seu Eu e os limites do não eu? Como constituir um plano de futuro? Na primeira vez em que compareceu ao atendimento, o pai designava que André cumprisse uma função de organizar a vida da mãe e dos irmãos e a casa em que moravam, função essa que nem ele, nem sua esposa conseguiam cumprir. Tanto André quanto seu pai afirmavam que a relação do paciente e de seus irmãos com a figura paterna era praticamente nula, porém isso não era visto como um problema e ambos justificavam a falta de diálogo pela questão do respeito que os filhos devem ter em 6 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 relação ao pai. O paciente descrevia o pai como uma pessoa muito dura, com a qual não se podia conversar. Em um primeiro momento, parece tratar-se de um pai rígido em relação a regras e limites, e, de fato, no decorrer do tratamento de André, o pai foi tentando estabelecer regras para o filho quanto ao tempo que passava fora de casa, o que não foi obedecido por parte do paciente. O pai acabava não se mostrando atento e desistindo de suas próprias combinações sem procurar saber por que o menino não havia cumprido o estabelecido. Nesse sentido, podemos contemplar o que aponta Savietto (2007) a respeito do sentimento dos filhos em relação à figura paterna da família atual. Observamos que é uma família que carece de um pai forte, que possa ser respeitado e possa proteger. Assim, como nada mais está dado a priori, é tarefa do próprio sujeito construir modelos e referenciais para que possa constituir sua identidade, bem como formular as regras que irão regular sua existência, o que pode ser percebido claramente nesta família do paciente. André, na vigência da adolescência, procura limites fora de si mesmo, mas não os encontra, recorrendo ao ato como recurso. Se a figura paterna não oferece diálogo, com a mãe, pelo contrário, o paciente afirmava conseguir conversar, como questões de sua sexualidade e até mesmo reclamações a respeito da relação que tem com o pai. Entretanto, André afirmava que a mãe não lhe dizia nada além de que aquele era o jeito do pai e o pai não lhe deixava faltar nada material, por isso, não tinha motivos para reclamar. Diferentemente do pai, é possível perceber que a mãe fala do filho de uma maneira carinhosa e afetuosa, ainda que desconheça muitas informações a respeito de sua vida. O pai não se referia aos filhos de maneira afetuosa e costumava fazer comparações entre os três, afirmando que o menino mais novo tem plenas condições de ultrapassar André no que diz respeito à aprendizagem. Pensando na família de André, é impossível não questionarmos a respeito de quem interdita e coloca limites no que concerne ao desejo do paciente, pois estamos diante de um pai e de uma mãe que pouco sabem da vida do filho, não sabem dizer o que esperam e sonham para seu futuro e as poucas regras que estabelecem não precisam ser cumpridas. Mesmo sendo uma situação da atualidade, entende-se que esse funcionamento esteve presente desde muito cedo, ou seja, as intensidades vividas por André foram dificilmente qualificadas e significadas. A respeito do futuro de André, durante todo o tratamento, o pai comentou que via o filho sem interesse em estudar e trabalhar e que, inúmeras vezes, dizia para o filho que, desse jeito, ele só poderia “puxar carroça”(sic). Ao mesmo tempo em que faz duras críticas ao menino, o pai também o leva para conviver e comprar drogas para um tio que faz uso de substâncias e que costuma resolver seus problemas com as pessoas através da agressão e do ato de matar. Diante disso, afinal, o que é certo e o que é errado? Ao longo dos atendimentos, o paciente demonstrou muita dificuldade em conseguir tirar conclusões sobre as situações que vivenciava, denotando a impossibilidade de construir e manter um sistema de juízos de valor. A ambivalência se tornava vigente porque, por um lado, ele queria produzir um ideal, e, por outro, era seduzido pela identificação com a figura de lei fragilizada. Juntamente a esses elementos, percebe-se o empobrecimento do investimento amoroso, tendo este a marca da indiferença. Nos relacionamentos construídos por André, durante a adolescência, evidencia-se a impossibilidade de aceitar a diferença e construir uma relação que priorize a alteridade. As pessoas com as quais se relacionava não eram nomeadas, o paciente parecia não ter espaço de investimento, caracterizando-se somente por descargas pulsionais. André demonstrava muitas dúvidas a respeito de quem realmente era e de como irá construir sua identidade, chegando a verbalizar que não existia, pois não tinha documento de identidade. Além disso, percebia-se como uma pessoa de “cabeça fraca” (sic), que não consegue tomar suas próprias decisões, características que, em parte, estão associadas à vivência da adolescência e ao abalo das bases narcísicas (Rassial, 1999), mas que parecem intensificar-se devido às vivências infantis e às circunstâncias nas quais o psiquismo de André foi se constituindo. Ao mesmo tempo, o adolescente mostrava-se fascinado por situações em que vê a polícia e a lei funcionando de acordo com o esperado, como a prisão de traficantes de drogas da região em que o paciente residia. Por vezes, o menino chegava até mesmo a dizer que gostaria de ir para o quartel, mesmo sabendo que teria de submeter-se a regras muito rígidas e que seria punido caso as descumprisse. Porém, ao mesmo tempo em que vê a lei exercendo seu papel, André também relatava episódios em que via a polícia submetendo-se ao tráfico e fechando os olhos para situações como essas. Assim, como será possível ter a inscrição de uma lei que protege? Entende-se que a inscrição do sujeito em um universo simbólico não necessariamente precisa se dar através da função paterna, mas pode, inclusive, ocorrer através da cultura e da ordem social (Macedo et al., 2010). Entretanto, como aponta Mayer (2001), ambos falham: os pais por assumirem uma atitude conivente, ou, como no caso de André, uma atitude indiferente ao desenvolvimento do filho, e a cultura abdicando da tarefa de impor limites eficazes, exaltando o prazer acima de tudo e demonstrando ineficácia em oferecer e manter referências, ideais e valores para desempenhar função de proteger. Diante desse contexto, como fica a tentativa de o sujeito poder se organizar e lidar com tantos excessos que se impõem ao seu psiquismo? André verbalizava com bastante frequência a saída pelo ato. Contava de brigas em que se envolvia constantemente, sobre a vontade de bater em outras pessoas, 7 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09 incluindo dúvidas a respeito de se algum dia mataria alguém, a ingestão de álcool em excesso a cada fim de semana e o uso de maconha, entre outros comportamentos que o expunham a riscos muito grandes. Nesse sentido, podemos compreender o que Savietto e Cardoso (2006) explicam sobre a intensidade com a qual a questão do desamparo se impõe à vida psíquica, provocando o uso de defesas arcaicas para dar conta de um conteúdo que invade o ego e o qual o sujeito não consegue simbolizar ou metabolizar, restando-lhe o ato como tentativa de dar conta desse conteúdo. Durante boa parte de seu atendimento, ao ser questionado sobre seus sentimentos, André somente respondia“nada”, tudo se resumia a“nada”ou ainda que estava tranquilo e “di bobis” (sic), expressão que utilizava para dizer que estava de bobeira. Em poucos momentos, ele conseguiu verbalizar como realmente se sentia. Contudo, no final de seu tratamento, ainda que apresentasse dificuldade de nomear o que sentia, transferencialmente André conseguiu mostrar maior envolvimento emocional nas situações que tratava, principalmente com a despedida da estagiária do serviço escola, motivo pelo qual o tratamento foi interrompido. Talvez aí esteja colocada a importância de entendermos a atuação e o comportamento, algumas vezes considerado delinquente, como um pedido de ajuda, como postula Winnicott (2000). Considerações finais Atualmente, percebe-se como a sociedade vem dificultando a vivência da adolescência, ao invés de oferecer ferramentas para tal. Muitos autores reassaltam, inclusive, que se trata de uma sociedade que por si só é adolescente. Isso acaba se refletindo na família, a qual não se caracteriza mais como tradicional e responsável por ensinar e mostrar aos seus membros valores éticos e de como se organiza a forma de viver. Sem saber o que é certo e o que é errado, o que se pode e o que não se pode fazer, como viverá o adolescente em meio a tudo isso e a toda a vivência conturbada natural desse período? Trata-se de um assunto que produz questionamentos inesgotáveis e sobre o qual, de fato, ainda precisamos refletir muito, pois existem muitos Andrés por aí, que, apesar de toda dificuldade de conseguir pensar e de simbolizar os excessos advindos de si, da família e da sociedade, apresentam um grande desejo de poder alcançar novos modos de funcionamento e ressignificar suas experiências. Nesse sentido, a partir de tudo que foi exposto e de todos os meses de atendimento de André, considera-se que a psicanálise tem muito a contribuir para o entendimento de casos como o do paciente em questão, bem como de oferecer, a partir de seus postulados teóricos e técnicos, um espaço de escuta que proporcione o pensar sobre si mesmo. Referências Birman, J. (2003). Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar. Birman, J. 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Pulsional Revista de Psicanálise, 188, 82-86. Winnicott, D. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. 9 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Tratamentos Não Farmacológicos para Dependência Química Non Pharmacological Treatments for Drug Addiction 2 Karine Hahn Cafruni a *, Giovana Brolese b *, Fernanda Lopes c* Resumo: Objetivo: A dependência química (DQ) transformou-se em um grave problema de saúde pública em todo o mundo. O objetivo deste trabalho é apresentar e descrever algumas modalidades terapêuticas para o tratamento da DQ. Método: Foram pesquisados estudos de revisões sistemáticas utilizando os descritores “drug addiction” and “treatment” and “abstinence” nas bases Pubmed, Medline e Scielo; e livros especializados sobre DQ. Seis modalidades serão apresentadas: entrevista motivacional; terapia cognitivo-comportamental; prevenção de recaída; terapia familiar; programa de 12 passos; e redução de danos. Discussão: Constatou-se que o convívio familiar, os grupos de autoajuda, a religião e o acompanhamento psicológico são essenciais para a recuperação dos dependentes químicos. Ainda, mudar o estilo de vida e ocupar-se com atividades prazerosas mostraram-se fatores importantes para a manutenção da abstinência. Conclusões: Estudos baseados em evidências científicas e investigações de técnicas complementares às terapias existentes para o tratamento da DQ são necessários para direcionar a prática clínica. Palavras-chave: dependência química, abstinência, tratamento. Abstract: Objective: Drug addiction (DA) has become a serious problem of public health in entire world. The aim of this study is to show and describe some kinds of therapeutic treatment for DA. Method: Studies of systematic reviews were surveyed using as keywords "drug addiction" and "treatment" and "abstinence" from data bases Pubmed, Medline and Scielo (1994-2011); specialized books in DA were also consulted. Six kinds of treatment will be showed: Motivational interview; cognitive behavioral therapy; relapse prevention; family therapy; 12steps program; and harm reduction program. Discussion: It was found that family therapy; support groups, religion and psychological help are the main sources to help recovering from drug addiction. Moreover, changes in life style and keeping a busy schedule with pleasurable activities are important for abstinence maintenance. Conclusions: Studies based on scientific evidences and investigations about complementary techniques to available therapies for treatment of DA are needed to direct clinical practice. Keywords: drug addiction, abstinence, treatment. a Psicóloga, especialista em psicologia clínica no Instituto Fernando Pessoa, Brasil. E-mail: [email protected] b Farmacêutica, mestre em neurociências na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] c Psicóloga, doutora em psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 10 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 O consumo de substâncias psicoativas (SPA) transformou-se em um grave problema de saúde pública em praticamente todos os países do mundo. Está altamente associado com comportamentos violentos e criminais, como acidentes de trânsito e violência familiar, principalmente entre indivíduos com histórico de agressividade e com complicações médicas e psiquiátricas, elevando drasticamente os índices de morbidade e mortalidade (Scheffer, Pasa, & Almeida, 2010). O homem, pela sua própria natureza, tem buscado através dos tempos alternativas para aumentar seu prazer e diminuir o estresse. De início, os chás alucinógenos, o tabaco, os óleos medicinais e inclusive o chá feito com cannabis sativa eram empregados de forma controlada por normas sociais e ritos, sempre com intuito curativo, ritualístico, ou mesmo místico (Martins & Correa, 2004). Portanto, o uso de SPAs não é um evento novo no repertório humano e sim uma prática milenar e universal que as pessoas utilizam para alterar o estado de consciência (Toscano Jr., 2001). Estudos científicos nos últimos 20 anos mostram que a dependência química é uma doença crônica e recorrente, resultante da interação de efeitos prolongados da ação de uma determinada SPA no sistema nervoso central (SNC), que pode provocar alterações irreversíveis em diferentes estruturas encefálicas. Ademais, assim como outras patologias neuropsiquiátricas, importantes aspectos comportamentais, sociais e culturais são partes integrantes desta doença (Figlie, Bordin, & Laranjeira, 2004). O II Levantamento Domiciliar sobre uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, feito pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) em 2005, constatou que 74,6% dos entrevistados fizeram uso de álcool e 44% de tabaco alguma vez na vida. Em relação às drogas ilícitas, 22,8% da população pesquisada já havia feito pelo menos um episódio de uso, o que corresponde a 10.746.991 pessoas. O uso de maconha apareceu em primeiro lugar (8,8%), seguido de cocaína (2,9%), crack (0,7%) e merla (0,2%) (Carlini, Galduróz, Silva, Noto, & Fonseca, 2006). Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (2002), é possível constatar que de 3,3% a 4,1% da população mundial faz uso de algum tipo de droga ilícita, sendo estimados em 2,5% os usuários de maconha (WHO, 2002). Os critérios para dependência de substâncias psicoativas incluem um padrão de consumo em grandes quantidades, com frequência alta, levando a um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos prejudiciais ao funcionamento orgânico do indivíduo. Pode haver um desejo persistente ou esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da substância. Existe um padrão de autoadministração repetida que geralmente resulta em comportamento compulsivo de uso da droga, tolerância e sintomas de abstinência. A tolerância é definida pela necessidade de quantidades aumentadas de substância para se obter o mesmo efeito psicoativo atingido anteriormente por uma menor quantidade. Os sintomas de abstinência são sintomas físicos de desconforto quando na falta da substância psicoativa, por isso os usuários podem desenvolver um padrão de uso repetido tanto para obter prazer (reforço positivo) como para alívio do sofrimento causado pelos sintomas de abstinência (reforço negativo). Outros comportamentos indicativos de dependência envolvem utilização de grandes períodos de tempo em atividades necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos, além de redução ou abandono de atividades sociais ou ocupacionais por causa do seu uso. Por último, o uso continuado da droga, apesar do conhecimento de ter um problema físico ou psicológico causado ou exacerbado pela substância, é um forte indicativo de dependência (DSM IV, 2002). A classificação das substâncias psicoativas pode ser feita de acordo com a sua ação no SNC, que pode ser depressora, estimulante ou perturbadora. As depressoras – como álcool, benzodiazepínicos, barbitúricos, opiáceos e solventes – são substâncias que tendem a produzir diminuição da atividade do SNC, da reatividade à dor e da ansiedade, atingindo primeiramente a região do córtex pré-frontal (diminuição das inibições, do juízo critico, das tomadas de decisão e do controle dos impulsos) e posteriormente regiões cerebrais mais internas, como o tronco encefálico (responsável pelo controle vital, como a respiração e os batimentos cardíacos). Já as SPAs estimulantes, como cocaína, anfetaminas, nicotina e cafeína, são substâncias que aumentam a atividade do SNC, levando a um aumento do estado de alerta e a aceleração dos batimentos cardíacos. Já as perturbadoras, como maconha e derivados, LSD, ecstasy e anticolinérgicos, são substâncias que prejudicam a qualidade da transmissão da informação no SNC, retardando ou alterando o funcionamento neuronal. O indivíduo é capaz de experimentar sensações diversas desde um relaxamento físico até o surgimento de fenômenos psíquicos anormais (alucinações e delírios), alternando entre inibição ou estimulação do SNC (Laranjeira & Nicastre, 1996). Todas as drogas capazes de causar euforia ou aliviar a dor têm uma característica em comum, pois atuam no sistema de neurotransmissores, resultando na liberação de dopamina, entre outros elementos. A dopamina parece exercer um papel fundamental na transição do uso para o abuso, e desse para o estabelecimento da dependência, uma vez que atua nos mecanismos de recompensa e/ou prazer (Esperidião et al., 2008). Cada vez que o circuito de recompensa cerebral é estimulado, ele manda mensagens para a amígdala, que classifica o estimulo para áreas relacionadas à memória. Fica então memorizada a associação do prazer ao uso da droga, com todos os detalhes do ambiente que cerca o estímulo. O conhecimento deste fenômeno é essencial para o tratamento de 11 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 um dependente químico, pois a droga subverteu a função do circuito, de modo que prazeres naturais e rotineiros (comer, fazer sexo) perdem força quando comparados ao prazer propiciado pela SPA. O ambiente associado ao consumo fica gravado, e caberá ao dependente, auxiliado por seu terapeuta, substituir as memórias de droga por novas memórias, mais saudáveis e adaptativas (Fonseca & Lemos, 2011). O tratamento de pessoas com transtorno por uso de SPA é extremamente desafiador, pois, apesar dos esforços no objetivo de controlar o consumo, a maior parte dos indivíduos persiste em um comportamento autodestrutivo. Estudos nas últimas décadas demonstram que as tentativas de manutenção da abstinência de substâncias como álcool e nicotina apresentam uma taxa de 70% a 80% de recaídas no período de um ano (Cordioli, 2008). Em geral, os transtornos adictivos caracterizam-se por taxas muito altas de recaída após o sucesso inicial do tratamento (Marlatt & Gordon, 1994). Devido à complexidade da doença, abordagens de tratamento que integrem os aspectos biopsicossociais devem ser encorajadas e baseadas em evidências científicas. Portanto, uma revisão da literatura sobre o assunto poderá contribuir para salientar as diversas práticas que vem sendo adotadas nas últimas décadas. Considerando o exposto, este estudo tem por objetivo apresentar e descrever algumas modalidades terapêuticas para dependência química relatadas na literatura no período entre 1994 e 2011, bem como discutir fatores relacionados com a manutenção da abstinência. Serão destacadas as abordagens mais amplamente utilizadas, o que não invalida, exclui nem questiona outras modalidades de tratamento na área da dependência química, como a terapia psicanalítica, por exemplo. Método Para revisar a literatura sobre as modalidades terapêuticas mais utilizadas para tratamento em dependência química, este artigo partiu do estabelecido em estudos de revisões sistemáticas sobre o tema, bem como de livros clássicos sugeridos por terapeutas e pesquisadores com ampla experiência nesta área. As bases de dados consultadas foram Pubmed, Medline e Scielo, com os descritores “drug addiction” and “treatment” and “abstinence”, e com os seguintes filtros para os artigos: a) revisão sistemática; b) língua inglesa; c) estudos com humanos; e d) período entre 1994 e 2011. A escolha por tais bases de dados se justifica por compilarem o maior número de citações na literatura biomédica. Os critérios de inclusão foram estudos sobre tratamentos exclusivamente não farmacológicos. Os resultados da busca nas três bases de dados evidenciaram 46 artigos de revisão sistemática (excluídas as duplicidades), dos quais 37 foram excluídos por descreverem tratamentos farmacológicos. Em função do pequeno número de artigos (nove) encontrados preenchendo os critérios de inclusão previamente estabelecidos, alguns estudos que detalhavam as modalidades terapêuticas eleitas também foram incluídos para complementar sua descrição. A partir da análise dos artigos e dos livros especializados na área, foram selecionadas as seis modalidades terapêuticas mais utilizadas com pacientes dependentes químicos, que serão descritas a seguir: entrevista motivacional; terapia cognitivo-comportamental; prevenção de recaída; terapia familiar; programa de 12 passos; e redução de danos. Entrevista Motivacional A entrevista motivacional (EM), também conhecida como intervenção motivacional, é uma abordagem originalmente descrita pelo psicólogo americano William Miller, amplamente difundida na Europa, na Austrália e, mais recentemente, no Brasil. De acordo com Miller e Rollnick (2001), a entrevista motivacional é “um meio particular de ajudar as pessoas a reconhecer e fazer algo a respeito de seus problemas presentes ou potenciais. Ela é particularmente útil com pessoas que relutam em mudar e que estão ambivalentes quanto à mudança” (Miller & Rollnick, 2001, p.61). É uma abordagem breve que pode ser utilizada em uma única entrevista, porém, mais tipicamente é empregada em quatro a cinco consultas. Foi delineada basicamente para tratar transtorno alimentar, abuso e dependência de álcool e outras drogas, jogo patológico e outros comportamentos compulsivos (Figlie, Bordin, & Laranjeira, 2004). Cinco princípios clínicos estruturam a entrevista motivacional: expressar empatia; desenvolver a discrepância; evitar a argumentação; acompanhar a resistência; e promover a autoeficácia (Miller & Rollnick, 2001). A atitude que fundamenta o princípio da empatia pode ser chamada de “aceitação”. Por intermédio da escuta reflexiva habilidosa, o terapeuta busca compreender os sentimentos e as perspectivas do cliente sem julgar, criticar ou culpar. Contudo, aceitação não é a mesma coisa que concordância ou aprovação, é possível aceitar e compreender a perspectiva de um cliente sem concordar com ela. Desenvolver discrepância consiste em criar e ampliar, na mente do cliente, uma discrepância entre o comportamento atual de uso e as metas mais amplas, ou seja, criar uma discrepância entre onde se está e onde se quer estar. Quando um comportamento é visto como conflitante com metas pessoais importantes, tais como a própria saúde, o sucesso, a felicidade da família ou uma autoimagem positiva, é provável que a mudança aconteça. Evitar a argumentação significa que o terapeuta não deve entrar em confrontos diretos. A situação menos desejável, desse ponto de vista, é aquela na qual o terapeuta argumenta 12 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 que o cliente tem um problema e precisa mudar, enquanto esse defende o ponto de vista oposto. Acompanhar a resistência inclui envolver o cliente ativamente no processo de solução do problema, respeitando o fato de a decisão ser dele. A relutância e a ambivalência não são combatidas, mas reconhecidas como naturais e compreensíveis pelo terapeuta. Esse não impõe novas visões ou metas. Em vez disso, o cliente é convidado a considerar novas informações, e novas perspectivas são oferecidas a ele. Por último, promover a autoeficácia consiste em aumentar as percepções do cliente quanto à sua capacidade de enfrentar os obstáculos e de ter êxito na mudança. Intervenções breves como a EM estão fortemente relacionadas a preditores de bons resultados no tratamento da dependência química (Oliveira, Andreatta, Rigoni, & Szupszynski, 2008). Estudo de revisão sobre esta abordagem realizado em 2011 constatou que a EM é um dos métodos mais efetivos no tratamento de transtornos por uso de substâncias, uma vez que favorece os processos de mudança (Carvajal, 2010). Complementando tal resultado, estudo de meta-análise sobre eficácia de tratamento não farmacológico para tabagistas revelou que a EM, associada a aconselhamento, aumentou as chances de abstinência de longo prazo (Bala & Lesniak, 2007). Outro estudo realizado com 120 sujeitos, dos quais 60 foram submetidos à EM (grupo de intervenção) e 60 não (grupo controle), revelou que, passados seis meses, o grupo de intervenção apresentou uma redução mais significativa no consumo de álcool do que o grupo controle (Hulse & Tait, 2002). Terapia cognitivo-comportamental (TCC) A terapia cognitivo-comportamental (TCC), da qual Aaron Beck é um dos pioneiros com seus trabalhos sobre depressão, teve seu uso rapidamente estendido para diversas outras patologias, entre elas a dependência química (Luz, 2004). A TCC é considerada uma das intervenções mais promissoras e eficientes no tratamento da dependência química e entende que essa doença resulta de uma interação complexa entre cognições, comportamentos, emoções, relacionamentos familiares e sociais, e processos biológicos e fisiológicos. Estes, por sua vez, interagem com os sistemas emocionais, ambientais e fisiológicos, determinando se uma pessoa terá maior ou menor probabilidade de ser dependente (Silva & Serra, 2004). Conforme o modelo cognitivo, a maneira como o individuo interpreta determinada situação influencia em suas reações afetivas, comportamentais e motivacionais. Desta forma, o tratamento da dependência química para esta abordagem é igualmente baseado na análise e na modificação dos pensamentos automáticos e das crenças distorcidas que geram os comportamentos e as emoções disfuncionais (Caminha, Wainer, & Oliveira, 2003). O ato de consumir a droga é gerado por um ciclo de crenças e pensamentos automáticos que desencadeiam a fissura e levam à estratégia de busca pela substância. O dependente químico é aquele que, sozinho, não consegue interromper este ciclo e se livrar das drogas. O objetivo da terapia cognitiva é a modificação das crenças antecipatórias (“Ficarei mais tranqüilo e sociável se consumir” ou “Se eu não consumir, perderei meus amigos”), das crenças permissivas (“Como eu tive um dia cansativo, mereço”) e do comportamento de busca pela droga (Caminha et al., 2003). A TCC trabalha com técnicas de reestruturação cognitiva para modificar as interpretações do indivíduo sobre situações ou para atenuar suas crenças disfuncionais mais importantes sobre o uso de drogas. O objetivo final é treinar o paciente a desafiar seus pensamentos automáticos, a elaborar pensamentos e crenças alternativas no manejo de suas fissuras e no desafio das crenças permissivas, para habilitá-lo a desenvolver um estilo de vida sem drogas e a tomar decisões que modifiquem o funcionamento do processo adictivo (Luz, 2004). A teoria comportamental da dependência química tem seu foco nas teorias do aprendizado social, como o condicionamento clássico, a aprendizagem instrumental e a modelagem. O objetivo é a mudança do comportamento disfuncional por um comportamento mais saudável, buscando enfraquecer a associação do prazer imediato propiciado pela droga e ao mesmo tempo diminuir o comportamento impulsivo (Silva & Serra, 2004). Estudos que avaliam a eficácia da terapia comportamental no tratamento do tabagismo revelam que a taxa de abstinência após seis meses varia de 15% a 20% (Presmam, Carneiro, & Giglioti, 2005). Intervenções que associam múltiplas técnicas estão bem validadas, mas poucas pesquisas foram realizadas para a avaliação de cada uma das técnicas em separado. No entanto, existem evidências de que realizar treinamento de habilidades sociais e resolução de problemas, além de ajudar os fumantes a obter apoio social fora do tratamento, tornam o tratamento mais eficaz. Tais estratégias podem ser generalizadas para o tratamento da dependência de todas as drogas, além do tabaco. Prevenção de Recaída e Estágios de Mudança A Prevenção da Recaída (PR), desenvolvida por Marlatt e Gordon, é uma abordagem amplamente utilizada nos tratamentos dos transtornos adictivos. A PR é um programa de automanejo que busca melhorar o estágio de manutenção do processo de mudança de hábitos (Marlatt & Gordon, 1994). O modelo proposto pelos autores embasa-se na Teoria da Aprendizagem Social de Bandura. De acordo com essa teoria, o comportamento de uso ou abuso de substâncias é aprendido, e sua freqüência, duração e intensidade aumentam em função dos 13 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 benefícios psicológicos alcançados. Da mesma forma, este mesmo comportamento pode ser alterado mudando-se os fatores que sabidamente o afetam, tais como condições antecedentes, crenças, expectativas e consequências que o seguem. Um dos princípios fundamentais da Teoria da Aprendizagem Social do uso e dependência de álcool é o conceito de autoeficácia, de Bandura. Autoeficácia é o sentimento de ser capaz de resolver com sucesso uma situação, e é essa avaliação de chances de ser bem sucedido que determinará a seleção do comportamento. Pesquisas indicam que uma baixa autoeficácia está associada a recaídas e, inversamente, a autoeficácia está positivamente correlacionada à abstinência (Figlie et al., 2004). A prevenção da recaída busca, essencialmente, busca mudar um hábito autodestrutivo e manter essa mudança. Marlatt e Gordon descreveram dois níveis de intervenção: intervenções específicas e intervenções globais. As intervenções específicas consistem na identificação de situações de alto risco para um determinado indivíduo, no desenvolvimento de estratégias para lidar efetivamente com essas situações e em mudanças nas reações cognitivas e emocionais associadas. O próprio paciente ajuda ativamente a identificar as situações que, para ele, se configuram como sendo de alto risco, que podem envolver fatores intrapessoais (como estados emocionais negativos e positivos) e/ou fatores interpessoais (como conflitos e pressão social). Identificadas tais situações, o paciente precisa então aprender mecanismos de manejo mais efetivos, incluindo estratégias cognitivas, atividades substitutivas planejadas individualmente e uso gratificante do lazer (Figlie et. al, 2004). As intervenções globais focam o desenvolvimento de comportamentos positivos e saudáveis para substituir aqueles associados com o abuso de substâncias e reforçam o não uso. Marllat e Gordon discutiram o desequilíbrio do estilo de vida e o planejamento velado da recaída. O objetivo da prevenção de recaída é bem mais amplo do que apenas ajudar o paciente a desenvolver habilidade para aprender a viver sem ter no álcool ou na droga uma prioridade. Seu comportamento de uso é apenas o ponto de partida para a modificação de todo um estilo de vida (Figlie et al., 2004). O modelo dos estágios de mudança de DiClemente e Prochaska, que descreve como e quando os indivíduos mudam sua conduta, também permitiu uma melhor compreensão das freqüentes recaídas, bem como a oscilação da motivação dos pacientes para cessarem o consumo de drogas (Willians, Meyer, & Pechansky, 2007). Os autores descreveram os seguintes estágios de prontidão para mudança: Pré-contemplação (não estar consciente de ter um problema e não ter intenção de mudança), Contemplação (estar consciente que existe um problema, mas ainda não ter feito nada para mudar), Preparação (ter a intenção de realizar alguma mudança), Ação (concretizar a mudança) e Manutenção (já ocorreu a mudança e o paciente está procurando manter o comportamento modificado). Entendendo cada estágio, é possível elaborar e aplicar intervenções adequadas ao nível de motivação do paciente (Miller & Rollnick, 2001; Willians et al., 2007). Terapia familiar A busca pelo entendimento de como as relações se constroem e, a partir delas, quais os resultados gerados, forma o objetivo de qualquer intervenção familiar, independentemente de sua base teórica. Para compreender a complexidade do impacto do uso de uma substância, é preciso buscar alternativas interventivas no contexto social ou familiar do usuário. Hoje, a família pode ser entendida como um cenário de risco e/ou proteção frente às complexidades do abuso de substâncias. O pressuposto básico desse entendimento explica que as pessoas que usam drogas estão inseridas em um contexto no qual seus valores, crenças, emoções e comportamentos influenciam os comportamentos da família, também sendo influenciados por eles (Payá, 2011). O método de intervenção familiar varia de acordo com a orientação teórica do terapeuta, mas a maior parte delas vem da teoria sistêmica, em que a ênfase é dada à natureza relacional e contextual do comportamento humano. Nessa perspectiva, o funcionamento do indivíduo está reciprocamente interconectado ao dos outros indivíduos que compõem o seu primeiro contexto relacional: a família. Essa abordagem considera o comportamento como um sintoma da disfunção familiar, uma vez que o comportamento individual ocorre e adquire o seu significado no contexto dessa micro- instituição. A adicção é entendida como um conjunto de comportamentos desajustados que refletem problemas do sistema familiar como um todo (Schenker & Minayo, 2004). Estudo empírico mostrou que tratamentos nos quais a família foi o objeto de intervenção foram mais eficazes do que àqueles centrados no paciente identificado (Seadi & Oliveira, 2009). Programa de 12 passos Grupos de mútua ajuda são pequenas organizações com características de ajuda mútua e de realização de alguma meta. Os grupos de mútua ajuda mais conhecidos mundialmente são os alcoólicos anônimos (AA) e os narcóticos anônimos (NA), defendidos como uma irmandade de homens e mulheres que se ajudam a resolver problemas comuns com o álcool e outras drogas de abuso. Para tanto, seus membros utilizam o programa de 12 passos que originou da criação dos AA em 1935, em Ohio, Estados Unidos, com William Wilson e Robert Smith, ambos alcoolistas que se beneficiaram da troca de experiência, 14 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 alcançando assim a abstinência e a sobriedade (Marinho, Silva, & Ferreira, 2011). A filosofia dos AA e dos NA consiste nos 12 passos e nas 12 tradições. Os primeiros são definidos como um grupo de princípios espirituais em sua natureza, como honestidade, mente aberta e boa vontade, os quais, se aplicados como forma de vida, podem permitir ao sofredor tornar-se íntegro, feliz e útil. As 12 tradições são os princípios pelos quais as irmandades mantêm sua unidade e se relacionam com o mundo exterior, sua forma de viver e de se desenvolver (Marinho et al., 2011). O Programa de 12 passos tem mostrado inegável eficácia como recurso terapêutico informal ao tratamento de dependentes químicos. Diversos estudos comprovaram a eficácia dos AA ou de grupos semelhantes na redução no uso de álcool. Marinho e colaboradores (2011) citaram um estudo que mostrou que os membros de AA são mais ativos na irmandade e alcançam abstinência em uma taxa mais elevada do que alcoolistas tratados profissionalmente. Os resultados de estudo de AA são consistentes com a ideia de que o apoio social para sobriedade pode melhorar o resultado do tratamento (Marinho et al., 2011). Verifica-se também uma possível influência positiva da religiosidade para a recuperação dos dependentes de drogas. Nesse quesito, a maior parte dos estudos foca tratamentos baseados nos 12 passos dos AA, estando estes alicerçados na espiritualidade, mas não pautados em uma religiosidade específica. Estudo de revisão (Sanchez & Nappo, 2007) sobre os principais estudos científicos que tratam do papel da religiosidade no tratamento do uso de drogas mostrou que a frequência constante a uma igreja, a prática dos conceitos propostos por uma religião e a importância dada à religião e à educação religiosa na infância são possíveis fatores protetores do consumo de drogas. Redução de Danos O enfoque de redução de danos, difundido em nosso país a partir da epidemia de AIDS, vem sendo ampliado para outros comportamentos de risco, como abuso de álcool e outras drogas. A redução de danos é direcionada a indivíduos que têm algum tipo de comportamento de risco, e opta pela saúde e pela responsabilidade pessoal ao invés da doença e da punição. Pode ser aplicada a toda a população que se distribui ao longo de uma escala contínua de risco – de baixo a moderado e alto (Dea & Santos, 2004). Para o uso e a dependência de drogas, a ação de redução de danos representa uma alternativa de saúde pública para os modelos moral/ criminal e de doença. Assume o fato de que muitas pessoas usam drogas e promove acesso a serviços de baixa exigência. Sua ideia central é encontrar o indivíduo onde ele está, e não onde ele deveria estar; por isso, embora reconheça a abstinência como resultado ideal, aceita alternativas que possam reduzir os danos associados ao uso de drogas (Dea et al., 2004). Além disso, a abordagem da redução de danos põe em ação estratégias de autocuidado imprescindíveis para diminuição da vulnerabilidade frente à exposição às situações de risco, além de ser apontada como forma privilegiada de intervenção em saúde pública. No entanto, a implantação de programas e ações pautadas nessa abordagem ainda é alvo de críticas e censuras, gerando polêmicas e contradições de várias ordens. Seja qual for o modelo de atenção que oriente as ações em saúde, a literatura mostra que o tratamento deve se fundamentar em aspectos biológicos, psíquicos e sociais, sendo capaz de responder às particularidades do indivíduo, do grupo, do tipo de droga e do ambiente sociofamiliar (Moraes, 2008). O estigma, questão que o programa de redução de danos vem tentado diminuir, pode repercutir em que o dependente químico não procure ajuda. Estudo sobre um programa de redução de danos realizado em um ambulatório de DQ na Espanha (Daigre et al., 2010) mostrou que os usuários avaliaram que o diferencial nessa abordagem é o respeito à individualidade, fazendo com que eles se sintam aceitos e não discriminados pelo uso de drogas. Discussão Nos últimos anos, a ciência clínica tem avançado no sentido de basear suas práticas em informações fundamentadas em evidências científicas (Presman et al., 2005), o que tem diminuído a distância entre a pesquisa acadêmica e a aplicação dos seus resultados na psicoterapia. Contudo, devido à complexidade envolvida no tratamento da dependência química, muitos terapeutas que orientavam sua atividade a partir de crenças ou observações pessoais ainda podem ter dificuldades de escolher o tipo de abordagem que vão utilizar no tratamento de pacientes com este transtorno. Com objetivo de facilitar o trabalho dos profissionais da área da saúde que atuam neste campo, considerou-se importante apresentar e descrever as modalidades terapêuticas mais aplicadas no tratamento da dependência química nos últimos anos. A partir da descrição apresentada nas seis modalidades descritas, percebe-se como ponto de convergência a questão da aquisição e manutenção da abstinência, o que parece ser ainda o maior desafio de todas abordagens de tratamento. Estudos demonstram que aproximadamente um terço dos pacientes consegue a abstinência permanente com sua primeira tentativa. Um outro terço tem episódios breves de recaída, mas resultam, eventualmente, em abstinência de longo prazo. O terço adicional tem recaídas crônicas, o que implica recuperações transitórias da dependência química (Álvarez, 2007). A recaída é um regresso ao uso da substância no mesmo padrão de consumo que a pessoa usava antes de iniciar um programa de tratamento ou 15 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 recuperação (Knapp & Bertolote, 1994), e deve ser considerada uma parte do processo de reabilitação e não o final deste. Rigotto e Gomes (2002) referem três condições que parecem estar relacionadas à mobilidade pessoal para a remissão estável do consumo. A primeira refere-se ao abuso, por pouco tempo, de drogas muito leves e que a simples mudança nas circunstâncias de vida do adicto pode levar à remissão completa. A segunda refere-se ao abuso de drogas muito severas, o que fatalmente levará o adicto ao "fundo do poço" e à tomada de decisão de que é preciso fazer alguma coisa a favor de si mesmo. A terceira referese à ocorrência fortuita, na vida do adicto, de experiências que possam romper com os hábitos enraizados. As condições de remissão enunciadas incluíram os seguintes aspectos: adoção de comportamentos substitutos que venham competir com a adição, disponibilidade para supervisão compulsória, engajamento em projetos significativos, e recuperação de autoestima. Um estudo sobre os contextos de abstinência e recaída na recuperação de dependentes químicos mostrou que foram reconhecidos como fontes de apoio para a recuperação a família, os grupos de autoajuda, o convívio e troca de experiências com amigos recuperados, a religião e o acompanhamento psicológico. Pessoas de referência no ambiente familiar – como pais, tios e esposas – foram identificadas pelos informantes como suporte positivo na reabilitação. Além disso, o grupo de autoajuda trouxe novas possibilidades de existência através do reconhecimento das vantagens de viver em abstinência (Rigotto & Gomes 2002). Pesquisas mostram a importância do acolhimento (enfatizado na modalidade da entrevista motivacional), do acompanhamento técnico (enfatizado na TCC e na Prevenção de Recaída) e da religião como fonte de esperança (abordada no Programa 12 Passos) no processo de recuperação. Independentemente da modalidade terapêutica adotada, o grande desafio da recuperação é substituir a rotina centrada na droga por novos hábitos, evitando o retorno aos comportamentos destrutivos anteriores. Na implementação dessa mudança, o ambiente social exerce uma poderosa influência na recuperação, promovendo o restabelecimento do convívio familiar nos encontros com colegas recuperados e no apoio de profissionais especializados. O termo restabelecer significa uma reaprendizagem para viver sem drogas e encontrar sentido em atos corriqueiros e habituais (Rigotto & Gomes, 2008). Outros estudos confirmam que um dos fatores que poderia estar relacionado com a não reincidência do consumo de drogas é o apoio social. Este é definido como um processo interativo, no qual o individuo obtém ajuda emocional, instrumental e financeira da rede social na qual se encontra inserido. Numerosos estudos demonstram o impacto que exerce o apoio social sobre os processos relacionados com a saúde, assim como o seu efeito benéfico sobre a evolução das doenças (Garmendia, Alvarado, Montenegro, Pino, 2008). Os desafios relacionados ao tratamento da dependência química tornam-se ainda maiores quando existe comorbidade, ou seja, quando o paciente possui um quadro psiquiátrico associado. As comorbidades mais comuns incluem os transtornos de humor, de ansiedade, de conduta, déficit de atenção e hiperatividade, esquizofrenia, transtornos alimentares e transtornos da personalidade (Zaleski et al., 2006). O surgimento de uma doença adicional é capaz de alterar a sintomatologia, interferindo no diagnóstico, tratamento e prognóstico de ambas. Por sua vez, o abuso de substâncias é o transtorno coexistente mais freqüente entre portadores de transtornos mentais, sendo de importância fundamental o correto diagnóstico das patologias envolvidas (Zaleski et al., 2006). Ainda, é importante que o tratamento seja direcionado às múltiplas substâncias que causam prejuízo, pois estudo de revisão sobre fumantes e dependentes de álcool mostrou que maior tempo de abstinência de álcool e outras substâncias previu sucesso na cessação do tabagismo (Heffner, Barrett, & Anthenelli, 2007). No estudo realizado por Rigotto e Gomes (2008) sobre contextos de abstinência e recaída no tratamento da dependência química, os autores concluíram que o mais difícil não é atingir a abstinência, mas sim dar continuidade ao processo de mudança. Manter o tempo ocupado com alguma atividade prazerosa que substitua a droga e reforce, ainda mais, a decisão pessoal de não reincidir no seu consumo foi ressaltado pelos participantes como fator importante para permanecer abstinente. O envolvimento na recuperação de outros dependentes, seja através dos grupos de autoajuda ou monitorando comunidades terapêuticas, foi considerado importante para a abstinência. O referido estudo mostrou ainda que os informantes abstinentes indicaram estarem envolvidos em planos concretos como retornar aos estudos, ao trabalho, ao convívio familiar. Considerações Finais Este trabalho teve por objetivo apresentar algumas das modalidades terapêuticas utilizadas no tratamento da DQ nas últimas duas décadas, mas ressalta-se que este foi um recorte e que outras abordagens também podem ter eficácia. Existem vários modelos de tratamento propostos, e a escolha do mais adequado ao paciente depende de uma boa avaliação inicial, na qual fatores extrínsecos (do modelo disponível, das condições socioeconômicas) e intrínsecos (da motivação do paciente e do diagnóstico) devem ser levados em consideração (Marques et al., 2001). Confirmou-se que não existe somente um tratamento específico para a DQ, ressaltando-se a importância da interface das modalidades terapêuticas. 16 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19 Outra questão importante a ser considerada no tratamento da DQ é a ligação entre profissionais e grupos de autoajuda. Ainda que o modelo de autoajuda não se configure como um ambiente de tratamento, é uma fonte importante de apoio a muitas pessoas com problemas de álcool e outras drogas. Dessa forma, mostra-se necessário que os profissionais que tratam esta patologia adquiram conhecimento sobre o funcionamento desses grupos. A avaliação adequada das comorbidades também é essencial, já que um tratamento que não inclua essa avaliação pode acabar levando a recaídas. Aliado a isso está a importância do tratamento medicamentoso, que poderá tanto aliviar sintomas de abstinência e fissura quanto tratar comorbidades (Fonseca & Lemos, 2011). Estudos sugerem que o tratamento integrado de pacientes com comorbidade psiquiátrica tem um melhor resultado do que o tratamento seqüencial ou o paralelo, com uma abordagem abrangente, incluindo manejo da crise aguda por equipe multidisciplinar e por terapeuta individual, aguardando a desintoxicação com abstinência por no mínimo duas semanas (Zaleski et. al., 2006). O tratamento integrado também está ligado de forma direta a um melhor prognostico, sobretudo nos casos mais graves. Além disso, quanto mais cedo o diagnostico é realizado e o tratamento iniciado, maiores as chances de um desfecho favorável (Fonseca & Lemos, 2011). No entanto, até o presente, os resultados referentes às taxas de abstinência em dependência química mostram-se baixos, mostrando a necessidade de novos estudos com ênfase neste assunto. Por fim, novas possibilidades terapêuticas, como a utilização de aplicativos via internet ou avaliação momentânea ecológica, têm sido estudadas com objetivo de complementar as abordagens existentes e elevar os índices de eficácia do tratamento. A avaliação momentânea ecológica é um instrumento de medida que tem sido pesquisado com tabagistas para monitorar em tempo real a quantidade de cigarros fumados. Ela permite documentar os padrões de consumo e analisar os contextos associados ao fumar e ao estado de humor relacionado a isso, capturando informações importantes que não poderiam ser medidas através de questionários retrospectivos (Shiffman, 2009). O uso de tecnologias inovadoras que possam ser disponibilizadas via internet ou smartphone parece ser o futuro do campo de pesquisa em dependência química. Assim, é importante que os terapeutas estejam abertos e disponíveis a conhecerem novas técnicas que possam ser adicionais às tradicionalmente utilizadas na prática clínica. 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Inicia-se tendo por foco os primeiros escritos produzidos por Freud, numa retrospectiva do progresso técnico rumo à consolidação do método interpretativo, discutindo-se a evolução da técnica psicanalítica, seus limites e a própria eficácia da interpretação enquanto recurso técnico. O texto fornece subsídios e auxilia na pontuação de questões significativas do arcabouço psicanalítico, contemplando (1) o motivo pelo qual o psiquismo por tantas vezes mostra-se impenetrável frente às interpretações, (2) como a retirada do material recalcado move o afeto, (3) como são delineados os limites da evolução técnica da psicanálise e (4) quais as estruturas limítrofes ao efeito das interpretações em psicanálise. Palavras-chave: Freud - Psicanálise – Interpretação – Limites da Interpretação. Abstract: The present paper searches, fundamentally, to restore the primordial meaning of the freudian conception of interpretation and the limits that present to psychoanalytic work. In constant joints of the freudian method based on current authors, the scopes are delimited and the transformations are enhanced and crucial inflections of the technique throughout the freudian course. It is initiated focusing on the first writings produced by Freud, in a retrospective of the technic progress to the consolidation of the interpretative method, discussing the evolution of the psychoanalysis technique, its limits and its own effectiveness of the interpretation as a technic resource. The text provides subsidies and assists on the points of significant questions of psychoanalysis structure, considering (1) taking into the reason for consideration which the psyche for several times demonstrates to be impenetrable in confrontation to the interpretations, (2) how the removal of the repressed material moves the affection, (3) how the limits of the technique of the psychoanalysis evolution are outlined and (4) which the bordering structure are to the effect of the interpretations in psychoanalysis. Keywords: Freud - Psychoanalysis – Interpretation – Limits of the intepretation. * Psicólogo Clínico graduado pelo Centro Universitário de Brasília, Brasil. E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 20 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 Durante o seu percurso prático-teórico, Freud apresentou queixas referentes ao que denominava serem os obstáculos no caminho da cura. Que obstáculos seriam esses? No texto Análise terminável e interminável, Freud (1937/1996) utiliza-se de retornos sintomáticos ocorridos após o findar de uma análise – e mesmo de substanciais adoecimentos em virtude de desejos realizados ou devido ao notável êxito alcançado na vida – para exemplificar as barreiras antepostas às curas terapêuticas. No referido texto, além de apontar a questão transferencial e a da reatualização dos conflitos como fatores que, intrínsecos a si, podem conter também mecanismos propulsores ao insucesso terapêutico, Freud retoma ainda a ideia de que – além da força determinante do Eu – os resultados de uma análise podem advir da combinação entre fatores constitucionais e acidentais. Contribuindo significativamente com o desenvolvimento do tema, Mezan (2008) levanta importantes questões: “Até que ponto é possível dominar as pulsões mediante um reforço do ego? (...) Como prevenir as recaídas ou o surgimento de uma nova neurose em lugar da que se acaba de debelar?” (Mezan, 2008, p.327). Afinal, o que estaria acontecendo nesses casos? Na medida em que as resistências surgiam como frutos do processo defensivo, sua atuação passou então a ser vista não apenas em direção aos eventos traumáticos, como também num âmbito mais complexo e dinâmico. Acerca do tema, Figueiredo (2011) visualiza uma mudança processual na qual as resistências inconscientes, outrora transpostas ou evitadas, passam a ser evocadas como protagonistas do processo terapêutico: “na verdade, [o processo] deixa-se conduzir pelas próprias resistências”(p.187). No 'Caso Dora' (1905), Freud já havia conseguido aproximar-se de questões fundamentais para a posteridade da técnica psicanalítica. Nesse estudo estão os importantes fundamentos que cunharam os termos transferência e repetição. Contudo, encontra-se também presente nesse caso o reconhecimento de uma força que só foi teorizada posteriormente e que, estando além do princípio do prazer e do recalque, notoriamente se opõe ao buscado processo de cura terapêutica. Nesse momento do desenvolvimento técnico-teórico da psicanálise, Freud já reconhecia o conflito psíquico-pulsional interno e de ordem sexual como fundamental no processo de patologização. Já era também reconhecida a tradução do material patogênico enquanto principal forma de solução dos conflitos psíquicos. A interrogação freudiana dirigia-se aqui ao porquê de os sintomas de Dora não desaparecerem perante o trabalho psicanalítico, mas apenas quando dissolvidas as relações com o analista. Restos transferenciais e insuficientes ou mal-logradas interpretações seriam partes fundamentais no fracasso de um processo analítico. Chegou a ser atribuída à própria pessoa do psicanalista a exclusiva responsabilização pelo atraso numa cura ou mesmo por um equivocado desfecho operacional do tratamento. Mas, conforme apontava Freud (1916/1996) já no início do texto Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, quando se empreende um tratamento psicanalítico, o interesse não se dirige primordialmente, de modo algum, para o caráter do paciente. É dada, sim, maior atenção à significância sintomática de quais impulsos instintuais se encontram ocultos ou satisfeitos por esse quadro sintomático, e qual o percurso trilhado entre os componentes instintuais e a sintomatização. Nesse mesmo texto, Freud salienta ainda que nem sempre o que se opõe aos esforços de um tratamento psicanalítico são os traços de caráter que o paciente reconhece em si mesmo e que lhe são atribuídos pelas pessoas que o cercam. Utilizando-se de figurações shakespearianas em texto intitulado Os arruinados pelo êxito, parte integrante dos supracitados tipos de caráter (...), Freud (1916/1996) revelou também uma particular tendência que certas pessoas possuem em se entregar à enfermidade neurótica e a ela sucumbir após perceberem a realização de seus desejos. O intuito freudiano nesse texto foi o de ressaltar que não apenas da privação ou da frustração adviriam os fatores necessários ao adoecimento psíquico. Contudo, é no texto Análise terminável e interminável, aproximadamente vinte anos mais tarde, que Freud (1937/1996) esmiúça fatores processualmente desfavoráveis e exclusivamente apresentados pelo paciente. Pela proposição freudiana, haveria fatores constitucionais e, a partir deles, alguns fragmentos de velhos mecanismos permaneceriam incólumes ao tratamento psicanalítico. Fruto do conflito interno entre as pulsões sexuais e as de autoconservação, o processo neurótico era explicado pela contrariedade ao princípio do prazer, apresentada pelas privações e frustrações da vida cotidiana. Conforme explica Mezan (2008): O neurótico sofre em consequência da debilidade pretérita do seu ego, que, ao reprimir as tendências pulsionais de maneira excessiva, por um lado limitou sua esfera de ação e realizou uma síntese incompleta de si mesmo, e por outro lado permitiu aos conteúdos assim isolados gozarem de uma proliferação desenfreada, reforçando-se mutuamente e terminando por exigir uma satisfação substitutiva sob a forma dos sintomas. A terapia recua até os anos infantis para encontrar as situações patogênicas, atualizá-las e permitir um confronto a partir de condições mais favoráveis ao ego, que poderá então desfazer certas repressões e reconstituir outras, atingindo um ponto de equilíbrio em que o sofrimento desapareça e a capacidade de viver plenamente seja 21 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 restaurada (Mezan, 2008, p. 327). Entretanto, o próprio Mezan (2008) esclarece ainda que: Mesmo o ego aproximadamente normal, apresenta fortes resistências à cura: as repressões, ao menos, garantem um certo controle sobre o id; a própria transferência tem um sentido de resistência, na medida em que o repetir exclui o recordar, e portanto a emergência consciente do reprimido; a enfermidade tem vantagens primárias e secundárias às quais não é agradável renunciar. O id resiste por meio da compulsão de repetição e da atração que os protótipos inconscientes exercem sobre o processo a ser reprimido. O superego resiste através da consciência de culpa, como se o individuo devesse sofrer para expiar algum pecado terrível, e como se a supressão deste sofrimento fosse um prêmio imerecido pelo ego. Esta última resistência, que se expressa na 'reação terapêutica negativa', é também um obstáculo insuperável pela análise, porque a revelação paulatina do reprimido não consegue compensar as tendências masoquistas do individuo, que dela se aproveita justamente para se infligir tormentos ainda maiores (Mezan, 2008, p.328). E como então se explicaria o adoecimento psíquico de alguém em função do próprio êxito logrado? Freud já havia fornecido pistas acerca dessa interrogação em O Ego e o Id (1923/1996), quando desenvolveu a noção de Reação Terapêutica Negativa, tendo nesse conceito as severas manifestações de resistência ao processo de cura, e sendo, como definem Laplanche e Pontalis (1982/2001): [um] fenômeno encontrado em certos tratamentos psicanalíticos como tipo de resistência à cura especialmente difícil de superar: cada vez que se poderia esperar uma melhoria do progresso da análise, produz-se um agravamento, como se certos sujeitos preferissem o sofrimento à cura. Freud liga este fenômeno a um sentimento de culpa inconsciente inerente a certas estruturas masoquistas (Laplanche & Pontalis, 1982/2001, p. 424). Inicialmente, o desenvolvimento freudiano conduziu esse movimento acerca do adoecimento psíquico a teóricas especulações que apontavam no sentido de tendências punitivas em virtude de um superego clamando por castigo. Estruturado nas relações edípicas, o controle exercido pelo superego seria o principal fator fomentador da consciência moral e da necessidade de castigo presentes no inconsciente. Sendo assim, é reconhecido como fruto do fator moral e do recalque dos impulsos, o desencadeamento do sentimento de culpa e sua consequente busca pelo castigo a ser empreendido. Condicionando a análise desse sentimento de culpa ao seu próprio nível de intensidade, Freud ressalta ser mais uma importante tarefa do analista a de tornar consciente esse sentimento, necessariamente descobrindo seus fundamentos recalcados. É num importante texto intitulado O inconsciente, que Freud (1915a/1996) expõe e busca nortear, na proposição de seu aparelho psíquico, a instância do inconsciente. No referido texto, Freud inicia uma dialética na qual vislumbra a ideia de conteúdos inconscientes que não seriam exclusivamente recalcados. Ele aponta ser o material recalcado apenas uma parte do inconsciente e salienta que todo o material recalcado é inconsciente, mas que nem todo o material inconsciente é recalcado. É nessa porção inconsciente e não recalcada que se encontram, por exemplo, os mecanismos de defesa do ego (Freud. 1915a/1996). Na diferenciação das instâncias psíquicas e consequente mapeamento topográfico que compõe o aparelho freudiano, o id da segunda tópica é tido como aquela parte obscura e inacessível, atemporal e regida pelo processo primário de prazer, onde não há lógica de pensamento ou mesmo termos de contradição, segundo definições constantes em O ego e o id (Freud, 1923/1996). O id conteria, sim, cargas de pulsões com alto poder de demanda e com conteúdos da ordem do nãorepresentável. Em suma, a noção de reação terapêutica negativa contemplaria tanto os aspectos (representáveis ou nãorepresentáveis) do superego quanto do id, em seus formatos de culpabilidade, punição e destrutibilidade dirigidos fundamentalmente contra a própria pessoa. Com o desenvolvimento da interpretação, estabelecida como recurso técnico peculiar da psicanálise, uma nova concepção passou a levantar maiores e importantes suspeitas de cunho metodológico. O inconsciente – principal objeto do estudo psicanalítico – passou, então, a ser questionado em relação a seu conteúdo: seria o inconsciente um reservatório ou, ao contrário, não possuiria ele quaisquer conteúdos? O entendimento que abriu novas perspectivas a se pensar e teorizar foi o de que o inconsciente até poderia, sim, ser desprovido de conteúdos, mas que, paradoxalmente, também não deixaria de ter um resíduo indecifrável que impõe peculiares condições ao trabalho interpretativo que se realiza em psicanálise (Nunes, Ferreira & Peres, 2009). Como lembram Nunes et al. (2009): (...) não fosse pela intromissão dos afetos, (...) o trabalho investigativo avançaria até atingir o ponto visado, os sentidos inconscientes seriam plenamente descobertos. Mas os estados afetivos estão aí como representantes dos limites desse procedimento. Sua emergência representa um impasse clínico para a psicanálise (Nunes et al., p.445). 22 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 Se todo conteúdo apresentar sempre uma possibilidade de tradução que o conduza a algo de melhor adequação, consequentemente, ao que parece, haverá sempre algo a mais, um algo novo ou apenas diferente a se dizer. Assim sendo, todo o processo de deciframento redundará sempre em algo apenas parcial, que remeterá a novas associações. E assim será até o encontro de uma irredutibilidade interpretativa: um lugar no qual a associação (a fala) torna-se impossibilitada, um resíduo da ordem do intraduzível. Conforme aponta Vegas (2008), mais que a firme e pura exatidão, o trabalho que Freud empreendeu em direção ao seu compromisso com a verdade propunha principalmente a circunscrição do real, ou, mais especificamente, do núcleo do real. E “mesmo não o tendo formulado, esse conceito [de núcleo do real] é apresentado em noções como umbigo do sonho e trauma. Ambas falam sobre o que não pode ser representado” (p.38). No sonho, especificamente, refere-se ao conteúdo latente que não pode ser trazido à consciência, a parcela do sonho que não pode ser interpretada (Vegas, 2008). Contrariando o que outrora foi preconizado, o então trabalho psicanalítico de deciframento de sintomas por intermédio da interpretação passava a dar lugar às questões voltadas aos pontos de indecifrabilidade do inconsciente. Num lugar onde deveria surgir uma interpretação ao conteúdo inconsciente, como advento do processo metodológico-psicanalítico da livreassociação, ocorre uma falha, e o inconsciente não se dispõe ao deciframento. Sem a possibilidade de uma plena tradução, as palavras dão lugar ao silêncio. As associações param e o processo silencia (Nunes et al., 2009). Assim sendo, a constatação desse resto irredutível ou dessa impossibilidade de alcance da palavra em pleno proceder psicanalítico remete à ilusão da completude, ilusão da visão do todo: a falta, o rochedo da castração, o umbigo do sonho. É em virtude desses desdobramentos em relação a uma supracitada “irredutibilidade” que as atenções se voltam para a singular questão de quais seriam os limites de uma interpretação. Partindo de contribuições fornecidas por Celes e Garcia (2011), tem-se que, dentre as variadas situações que se apresentam como limítrofes à interpretação, se podem elencar (1) o inconsciente enquanto entidade grandemente resistente e obviamente não-interpretável em sua plenitude, significância aí de uma caótica aniquilação do psiquismo, (2) a condição não tratável e não curável da neurose enquanto estrutura fundamental humanizante, presentificada pelo advento do recalcamento, (3) as fantasias originárias situadas na ordem de transmissão filogenética e ontogenética como adventos passíveis de construção, mas não de uma interpretação propriamente dita, (4) a transferência em sua alteridade e condição humana “como objeto real e atual que também se apresenta na relação analítica” (Celes & Garcia, 2011, p. 124), na qual, em relação à interpretação, não há muito o que se possa fazer, e, (5) numa perspectiva da clínica das pulsões, a modificação dos destinos pulsionais, com ênfase na perversão tanto como parte da sexualidade infantil quanto como organização psíquica que abarca o mecanismo da recusa ou do desmentido (Verleugnung). Contudo, é interessante verificar que, mesmo sendo reconhecido o entrelaçamento dessas diversas perspectivas supracitadas, um elemento comum aparece como substrato, percorrendo todos eles: o rochedo da castração. Entidade que não se submete à interpretação. Como abordam Celes e Garcia (2011): A castração como fato fundamental foi aproximada por Freud às fantasias originárias e com elas goza da condição de não ser analisável. Na história singular de cada um, a castração faz seu efeito não como compreendida nem como interpretada, mas enquanto assumida como castração. O recalque da castração do outro suporta a interpretação até determinado limite a partir do qual a integração da castração no eu não é mais possível e é substituída pelo ideal... Também o ideal que ilude a castração não se dissolve na interpretação, tornando-se a análise quase um trabalho de convencimento de abandono da realização completa do ideal, um trabalho (Celes & Garcia, 2011, p.125). Esse nebuloso irrepresentável seria permeado pela controvertida noção de pulsão de morte, sendo essa, por sua vez – segundo a caracterização utilizada por Laplanche e Pontalis (1982/2001) –, tanto “uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo a seu estado inorgânico”(pág. 407), quanto aquelas pulsões que tenderiam à autodestruição e que, inicialmente dirigidas para o interior, secundariamente estariam voltadas para o exterior, onde se expressariam por intermédio da pulsão de agressão ou destruição (Laplanche & Pontalis, 1982/2001). A pulsão de morte seria uma forma irreprimível constante nos fenômenos de repetição, mas não apenas nesses. Refere-se a uma pulsão sem representação que se encontra presentificada numa força propulsora de campos, como a agressividade, o ódio, a guerra e as reações terapêuticas negativas. Mas por que se deve pensar que tal pulsão incorre numa peculiar falta de representação? Seria essa uma medida de cunho teórico na tentativa de resposta e explicação para as distintas intensidades dos afetos inconscientes? O fato é que um dos formatos técnicos na tentativa de saída dessa aparente finitude clínica foi o estabelecimento, em 1937, da noção freudiana de construção enquanto tentativa de integralização da ordem simbólica do indivíduo. Aqueles ideais 23 Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 de superação em relação ao recalque, e de um total deciframento dos processos inconscientes, passaram a ser repensados através desse advento nomeado. Dentre outros aspectos, as construções em análise mostrar-se-iam tentativas metodológicas de suprir o que há de inalcançável nos processos de recordação, naquele local onde o lugar da palavra fracassa. E ali elas concederiam uma capacidade de alucinação acerca da própria história do indivíduo. Em síntese, o viés trilhado por Freud vislumbrava inicialmente a possibilidade de que a pulsão como força – inscrita na ordem simbólica mediante uma série de destinos - pudesse, pelo trabalho de linguagem, ser inteiramente transformada em símbolo. Contudo, com o desenvolvimento de seus estudos, o que passaram a ser evidenciados foram justamente os impasses e as impossibilidades existentes nesse processo psicanalítico de transformação, posto que o inconsciente e a pulsão não poderiam ser traduzidos em sua integralidade. Portanto, com o desenvolvimento teórico freudiano, o método psicanalítico passaria a marcar a transição entre aquele objetivo inicial de alcance à totalidade do material psíquico inacessível à consciência – mediante a transformação da força pulsional em símbolo de linguagem – e as reflexões acerca dos impasses, limites e impossibilidades que permeiam a práxis psicanalítica. Considerações Finais Diferenciando a compreensão da psicanálise em suas três formas clínicas – a clínica do trauma, a clínica da representação e a clínica da pulsão –, Celes e Garcia (2011) tentam clarificar a complexa questão dos limites da interpretação psicanalítica. Dentre esses limites, no tocante à denominada clínica da representação em sua perspectiva teórica, encontram-se representações pré-verbais de experiências não recalcadas que ocorreram no seio de uma ausência na ligação com as palavras e que, assim, não se mostram suscetíveis à interpretação. Esse é o núcleo do recalcado que trata da “impossibilidade de alcançar o que se constitui inconsciente fora da representação verbal, ou além dela”(Celes & Garcia, 2011, p.122). Posto que a neurose, enquanto entidade estruturante do ser humano, não se trata e não se cura, o inconsciente, por sua vez, mantém-se no intenso conflito contra as invasivas interpretações. “O limite da interpretação se encontra onde se espera que ela venha a reinar: no tratamento da neurose”(Celes & Garcia, 2011, p. 122). Postulando também o próprio conteúdo transferencial como objeto da interpretação e condição para a sua eficácia, sob o ponto de vista clínico, vale inicialmente ressaltar o papel fundamental estabelecido pela transferência enquanto “parceira principal da interpretação” (Celes & Garcia, 2011, p. 123) e como “vínculo afetivo com o analista que cria a condição [necessária] para a interpretação e veicula seu efeito” (ibid., p.124). Vale ainda ressaltar que, diferentemente da interpretação, a construção caracteriza-se como a criação, pelo analista, de um conteúdo até então inexistente no registro do analisando. Tem como função servir de complemento ao discurso do analisando, delineando a contextualização histórica dos fatos e marcando, sobremaneira, a inscrição do tempo na subjetividade do indivíduo, sendo a transferência, em suas peculiaridades, o fenômeno que concede a veracidade necessária para que esse conteúdo advindo de uma construção se estabeleça e passe a existir enquanto fato. Em termos de aplicabilidade, vê-se que, mesmo com suas aproximações, esses dois aparatos técnicos possuem distinções. A principal dessas diferenças se mostra quando a tríade freudiana preconizada como recordar, repetir e elaborar impõe limites à interpretação: “aquilo que não tem possibilidade de ser recordado coincide com o recalque primário e, desta maneira, pode-se dizer ser este o objeto da construção, aludir ao conteúdo desse primeiro recalque”(Vegas, 2008, p.109). É a partir do recalque originário que os demais recalques propriamente ditos são também estruturados. Em contraposição a essa estruturação, encontra-se a noção de rochedo da castração, ou mesmo, de umbigo do sonho. Algo da ordem do irrepresentável, do irredutível. O ponto onde o psiquismo não se deixa revelar pela interpretação. A interpretação encontrou, então, seu limite no irrepresentável, conteúdo esse que pode ser mais bem compreendido através da articulação entre as noções de pulsão de morte e masoquismo. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1996) e em O instinto e suas vicissitudes (Freud, 1915b/1996) o conceito de masoquismo aparece como sendo aquele componente indissolúvel do par sadismo-masoquismo. O masoquismo é visto como o efeito do retorno da libido sobre o próprio indivíduo, após as frustrações pulsionais ocasionadas na relação com o mundo externo. Após a elaboração do texto O problema econômico do masoquismo, entretanto, Freud (1924/1996) passou a teorizar essa noção como sendo um dentre outros três formatos do masoquismo. Partindo da concepção de princípio do nirvana, Freud (1924/1996) postula a concepção de masoquismo para explicar a tendência na persistência da dor. Ele desenvolve a noção de um masoquismo originário¹ como sendo aquele que fora constituído por bases biológicas e constitucionais. Entretanto, exceto pelo fato de se considerar o masoquismo como a mais nítida expressão da pulsão de morte, permanece ainda nebuloso o entrelaçamento entre esse tipo de masoquismo (originário) e a 1 Também denominado masoquismo primário ou mesmo masoquismo erógeno, esse formato difere-se dos outros dois tipos de masoquismo: o masoquismo feminino e o masoquismo moral (Freud, 1924). 24 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 reação terapêutica negativa, enquanto elemento que resiste ao processo de cura. Conforme postula Freud (1924/1996): Pode-se dizer que o instinto de morte operante no organismo – sadismo primário – é idêntico ao masoquismo. Após sua parte principal ter sido transposta para fora, para os objetos, dentro resta como um resíduo seu o masoquismo erógeno propriamente dito que, por um lado, se tornou componente da libido e, por outro, ainda tem o eu (self) como seu objeto (Freud, 1924/1996, p.182). Em relação à fundamental noção psicanalítica de pulsão de morte, é importante demarcá-la como força instintiva que, por não possuir uma natureza de cunho propriamente sexual, consequentemente não é objeto do recalque. Desta forma, a pulsão de morte mantém-se como algo sem história e sem representação, e por isso também não possui a capacidade de vínculo ou de fixação aos objetos. Não tem descarga ou qualquer forma de escoamento. Trata-se de algo que não possui formas simbolizáveis. Portanto, o que se encontra nesse campo carente de representações é um campo pulsional sem inscrição, denominado pulsão de morte, que tem na noção de masoquismo – através do bloqueio feito à libido e a consequente impossibilidade de interpretação – sua melhor forma de expressão. Se, por um lado, a pulsão de morte se torna a mola propulsora de atitudes como o masoquismo, a reação terapêutica negativa ou a agressividade, por outro, não fica nítido o motivo pelo qual essas pulsões careçam de representações. E o que será possível fazer com todo o conteúdo que não é simbolizado? Seria possível atrair todo esse conteúdo para um sistema de representações? Finalizar um texto deixando perguntas a serem pensadas talvez signifique o testemunhar da própria incerteza. Sem servir de consolo, vale lembrar terem sido esses alguns dos questionamentos também deixados por Freud. Segundo a contribuição de Vegas (2008): A construção [enquanto recurso técnico da psicanálise] pretende enlaçar pela palavra o excedente pulsional não representável e parar o movimento compulsivo... Mas a pulsão e a sua dimensão conservadora servem como indicação de que existe algo fora do psiquismo, afetando-o constantemente (Vegas, 2008, p.110). Visto ser o entrelaçamento entre representação e interpretação a condição sine qua non ao processo psicanalítico, o limite da interpretação constitui-se, portanto, naquele material que é irrepresentável. Contudo, não é exclusivamente esse o conteúdo que impõe limites à análise. Quando se tenta vencer os limites da interpretação é que, consequentemente, se consegue ampliar o processo analítico. Conclui-se, com isso, que o processo analítico não se encontra cerceado pelos limites (ou não) das interpretações. Há ainda que se considerar a utilização das construções em análise como o instrumento psicanalítico que, por suas peculiaridades, consegue viabilizar a expansão desses limites então atribuídos à interpretação. Referências: Celes, L. A. M. & Garcia, C. A. (2011). Limites da interpretação. In C. A. Garcia & M. R. Cardoso (Eds.). Limites da clínica, clínica dos limites. P. 117-135. Rio de Janeiro: Cia de Freud. Figueiredo, L. C. (2011). A questão dos limites e a situação analisante na clínica contemporânea. In C. A. Garcia & M. R. Cardoso (Eds.). Limites da clínica, clínica dos limites. P. 185-307. Rio de Janeiro: Cia de Freud. Freud, S. (1905/1996). Fragmento da análise de um caso de histeria. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. VII. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1915a/1996). O inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIV. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1915b/1996). Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIV. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1916/1996). Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIV. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1923/1996). O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIX. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1924/1996). O problema econômico do masoquismo. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIX. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1937/1996). Análise terminável e interminável. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XXIII. Rio de Janeiro: Imago. Laplanche, J. & Pontalis, J-B. (1982/2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. Mezan, R. (2008). Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: 25 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26 Perspectiva. Nunes, T. R., Ferreira, R. W. G. & Peres, W. G. (2009). A Suspeita em Freud: o estatuto da interpretação em psicanálise. Psico. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. V. 40. N. 4. P. 443-448. Vegas, M. Z. (2008). A noção freudiana de construção. Curitiba: Juruá. 26 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Tecendo a Sanidade: Arthur Bispo do Rosário O Gênio da Contemporaneidade Weaving Sanity: Arthur Bispo do Rosário The Genius of Contemporary 2 Eliane Tonello* Resumo: Este trabalho foi realizado a partir do caso de Arthur Bispo do Rosário, um sobrevivente das rígidas normas institucionais, provocando rupturas de paradigmas na medicina psiquiátrica do século XX. Ele aceitou o rótulo de louco e de esquizofrênico paranóide e fez de si um “Deus de sua própria criação”, deixando registrado em 804 peças de arte tudo aquilo que borbulhava internamente, agregando com o que acontecia ao seu redor e usando a arte como forma de comunicação. Bispo do Rosário foi um gênio que teceu sua realidade vivida usando o delírio místico, a fé e a arte, fazendo do silêncio um momento eterno capaz de transformar sentimentos do ser humano e percepções do mundo contemporâneo. Palavras-chave: Arthur Bispo do Rosário, ruptura, paradigmas Institucionais, saúde mental, arte e Psicodrama. Abstract: This work was carried out based on the case of Arthur Bispo do Rosario, a survivor of rigid institutional rules, disrupting paradigms of psychiatric medicine in the Twentieth Century. He accepted the label of crazy and paranoid schizophrenic, and made himself a "god of his own creation", leaving recorded in 804 pieces of art everything was bubbling internally, aggregating to what was happening around him and using art as a form of communication. Bispo do Rosario was a genius who wove his lived reality using the mystical delirium, faith and art, making of silence an eternal moment able to transform human feelings and perceptions of the contemporary world. Keywords: Arthur Bispo do Rosario, rupture, Institutional paradigms, mental health, art and Psychodrama. * Acadêmica do curso de Psicologia do Centro Universitário Metodista, do IPA - Porto Alegre - Brasil, TCC2, Professora Algaides Rodrigues, 10º Semestre. E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 27 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 Este artigo apresenta o estudo do “caso” de Arthur Bispo do RoEste artigo apresenta o estudo do caso de Arthur Bispo do Rosário, um artista plástico brasileiro que viveu 30 anos na Colônia Juliano Moreira, chamado “hospício” na época. Nas inúmeras vezes em que os pacientes ficavam agitados, como era o caso de Bispo do Rosário, a cela-forte era um local onde eles passavam dias até se acalmarem. Com o passar do tempo, Bispo do Rosário se adonou da cela, passando a fazer dela seu espaço. Lá foi onde iniciou a construção das inúmeras peças que compõem a sua obra, a partir dos objetos (canecas, talheres, pentes, entre outros) que outros internos deixavam no chão da própria colônia, inclusive as roupas azuis de que muitos deles se desfaziam. Ele se apegou à arte, recusando os tratamentos psiquiátricos propostos (medicalização excessiva, eletrochoques e lobotomia) e oficinas de criatividade. Suas obras refletem uma poética que tem profundo impacto em diversas áreas além da arte e da sociologia, mas principalmente na saúde mental. Neste instante, acolho o que Basaglia deixou em seus últimos escritos, nos dizendo que, se algum dia a história de alguma experiência de inclusão social fosse relatada, preferia que fosse não só através de números, como também das “histórias de vida que foram reinventadas, reconstruídas, redescobertas a partir do processo de transformação”(BASAGLIA apud AMARANTE, 2007). Arthur Bispo do Rosário transformou os seus delírios em uma obra viva, usufruindo da magia da agulha e da pintura, numa construção organizada e ordenada. Eduardo Galeano já afirmara (1998): ”temos direito ao delírio”. Jacob Levy Moreno nos apresenta que “a desordem é apenas uma aparência exterior, internamente existe uma força propulsora coerente, uma aptidão plástica, uma necessidade imperiosa de assumir forma definida” (MORENO, 1975, p.85). Compreende-se nos referidos autores que a comunicação, mesmo que aparentemente caótica, pode transmitir a força da expressão de seu comunicante. Estudando a vida e obra de Arthur Bispo do Rosário e, a partir da visitação feita à exposição “Arthur Bispo do Rosário: A poesia do fio”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2012, este trabalho foi tomando corpo na forma de uma interrogação recorrente, constituindo o alvo inquietante da pesquisa que pode ser assim expressa: como, através do caso Arthur Bispo do Rosário, se pode compreender a experiência da arte como dispositivo de produção de saúde? Pretende-se também, a partir do caso Arthur Bispo do Rosário, tecer reflexões sobre a sanidade e sobre como podemos compreender a experiência da arte como dispositivo de produção de saúde. O trabalho requereu o levantamento de informações acerca da vida e da obra do referido artista, analisando-se possíveis relações entre as concepções de saúde e criação a partir de Jacob Levy Moreno e formulando-se um estudo de caso respondendo ao objetivo geral proposto. Muitos temas foram abordados no Curso de Psicologia que despertaram a ideia de realização deste trabalho: Saúde Coletiva e Direitos Humanos, aprovação da lei manicomial, seminários de integração, e visitas à oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, à Morada Viamão e ao CAPS I – Serviço de Saúde Mental – Nossa Casa na cidade de São Lourenço do Sul. Nessas visitas, foram ouvidos inúmeros relatos de pessoas que tinham contato com a arte. Na cidade de São Lourenço do Sul, um paciente assim disse: “Eu fico muito triste quando não consigo vir pra cá, tudo que eu faço aqui me deixa muito bem, a arte faz eu me sentir vivo”. E quando a autora compra uma de suas peças, ele se aproxima sorrindo e diz “fui eu que fiz”. Já na oficina de criatividade do São Pedro, ao constatar que alguns alunos tinham medo de se aproximar dos pacientes, a coordenadora da oficina diz: “Fiquem tranquilos porque quem está em surto não tem capacidade de criar e nem vem pra cá, os que estão aqui não são agressivos, podem circular por aí e ver o que eles estão fazendo”. Na Morada Viamão, um dos pacientes assim falou: “Olha só o meu desenho, olha aí na parede como eu pinto bem”. Outra paciente se aproxima e diz: “Eu adoro filmar as pessoas e bater foto”. Associando esses relatos com a experiência da autora no contato benéfico com a arte (música, crochê, tricô, pintura, desenhos, confecção de artesanato, bordados, fotografia e poesia), além dos elementos obtidos a partir da exposição “Arthur Bispo do Rosário - A Poesia do Fio”, esta pesquisa tornouse relevante por proporcionar uma sistematização dos aprendizados que teve durante o curso de graduação em psicologia do Centro Universitário Metodista do IPA. E, com o tema escolhido para esta pesquisa, juntou-se a arte e a psicologia, especialmente porque ela acredita que a vida sem o contato com a arte teria menos sentido. Para ilustrar, evoca as palavras de Nietzsche: “Temos a arte para que a verdade não nos destrua”(NIETZSCHE apud ARALDI, 2008 e SANTOS, 2010). Como método de análise, foi utilizada uma atitude fenomenológica-existencial e, tendo considerado os objetivos propostos, duas unidades de sentido pareceram mais significativas: “Vida e Obra de Arthur Bispo do Rosário“ e “Arte e Saúde”. O trabalho tem como fundamentação teórica principal os autores Jacob Levy Moreno, Luciana Hidalgo e Júlia Motta, que auxiliaram a tecer neste estudo o conceito da sanidade do caso Arthur Bispo do Rosário. Metodologia Com a intenção de compreender como Arthur Bispo do Rosário viveu até os 80 anos dentro de uma cela manicomial no século XX, no auge da psiquiatrização, tendo a arte como ferramenta diária de saúde, buscou-se captar através do “estudo de caso”os sentidos significativos, analisados a partir do método Fenomenológico-Existencial. Este processo procura penetrar na própria vivência da pessoa que busca conhecer, na tentativa de 28 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 aapreender o seu modo de existir, considerando como de importância fundamental sua maneira de vivenciar o espaço e o tempo. Assim, para chegar a adentrar nos objetivos vividos, o observador utiliza-se de uma compreensão intuitiva do convívio, ou seja, da empatia. Para o estudo do caso Arthur Bispo do Rosário, foi evocado o Método do Estudo de Caso que os autores Goode e Hatt (1969) apresentam como um meio de organizar os dados, preservando no objeto estudado seu caráter unitário. Considera-se a unidade como um todo, incluindo o seu desenvolvimento (pessoa, família, conjunto de relações ou processos, etc.). O estudo de caso permite o conhecimento de algo singular, que tem um valor em si mesmo, no caso, a arte como dispositivo de produção de saúde, além de ter grande utilidade na exploração de novos processos ou comportamentos que contribuem na construção de novas pesquisas (VENTURA, 2007). Fonseca ressalta: “Cada caso não é um caso” (FONSECA, 1999). Trata-se de uma expressão que a referida autora usa para nos mostrar que, ao coletar dados para uma determinada pesquisa, como no presente estudo, nem sempre se está falando de algo inédito, e sim algo que perpassa outros casos com muita semelhança. Assim, vão perceber que os dados aqui coletados mostram o olhar focado na arte como dispositivo de produção de saúde. Esta escolha não ocorreu de forma aleatória, mas teve interferência das experiências da autora com a arte. Esta, ao mesmo tempo em que se aprofundou no histórico de Bispo, procurou fazer uma revisão da própria vida, o que trouxe muitos momentos de angústia. Isso tudo, de certo modo, acaba retratando modos subjetivos semelhantes que perpassam as dinâmicas sociais. Para Motta, o pesquisador tem como instrumento de pesquisa a vida, suas inquietações e conflitos, e também seus estudos, sua bagagem intelectual, sua formação como estudioso das Ciências Humanas. Com suas inquietações investigativas, tenta compreender e transformar seus conhecimentos através do estudo de seu semelhante. O papel do pesquisador que busca uma resposta na pesquisa traz consigo uma proposta de éticaestética, ciência-arte, que visa conquistar um estado da arte na ação dramática como um ápice na construção do conhecimento. Moreno afirma que “para transformar o universo social, os experimentos sociais devem ser planejados de forma que possam produzir mudanças (...) e as pessoas são incluídas na operação”(MORENO apud MOTTA, 2011, p.84-5). A primeira etapa da pesquisa consistiu em captar um sentido do todo através de documentários, filmes, artigos e estudos já publicados. Após a visitação à exposição “Arthur Bispo do Rosário: a poesia do fio”, a autora contatou a equipe responsável, no Santander Cultural, relatando a pesquisa que estava realizando e recebeu da Coordenação/Ação Educativa um farto documento sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário. Após a visão do todo e a descrição do fenômeno, para obter este estudo fenomenológico-existencial, surgiram as Unidades de Sentido: Vida e Obra de Arthur Bispo do Rosário e Arte e Saúde, que são dimensões mais significativas, reveladoras da estrutura do fenômeno, e foram aflorando ao longo do estudo realizado em consonância com os objetivos da pesquisa. A seguir, serão descritas e analisadas as Unidades de Sentido trabalhadas à luz da teoria psicodramática de Jacob Levy Moreno. As unidades de sentido Vida e obra de Arthur Bispo do Rosário A partir das pesquisas realizadas sobre a vida de Arthur Bispo do Rosário, coletou-se dados indicando que, nos períodos da infância e da adolescência, ele permaneceu na terra natal junto com a família. Constatou-se que era filho legítimo de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus, nascido em Japaratuba, no interior de Sergipe, no dia 14 de maio de 1909, segundo registros da Marinha de Guerra do Brasil, onde serviu de 1925 a 1933. Como consta no registro de batismo da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Saúde de Japaratuba, “aos 5 de outubro de 1909, batizei solenemente Arthur, com 3 meses de idade, legítimo de Claudino Bispo do Rosário e Blandina Francisca De Jesus. Foram padrinhos Maximiliano Ribeiro dos Santos e Candida dos Prazeres” (HIDALGO, 2011, p.30). Aos 15 anos, migrou para a cidade do Rio de Janeiro. Moreno considera que todo bebê nasce numa “placenta social”, referindo-se ao conjunto de pessoas que o acolhem ao nascer e cuidam de suprir as suas necessidades. Conhecer os elementos da história de vida de Arthur Bispo do Rosário tornase significativo para compreender a sua trajetória. Especialmente considerando que a situação do nascimento encontra nessa placenta social “o locus em que a criança mergulha suas raízes” (MORENO, 1975, p. 114). As memórias vinham da terra natal, como Hidalgo (2011) afirma: “Uma usina de tradições e alegorias (...) os bordados eram a mais bem-acabada tradução da cultura (...) cada traje impunha seu respeito, encerrava tradições africanas, indígenas nordestinas (...) detalhes de cada roupa, cada cor incrustaram-se nos bordados de Bispo” (HIDALGO, 2011.p.33). Levando-se em conta que as raízes de Arthur Bispo do Rosário se assentavam em uma família pobre, descendente de escravos africanos, vivendo numa sociedade arraigada em preconceitos, pode-se compreender as dificuldades maiores que tenha encontrado para ser reconhecido socialmente, na época, e conseguir os espaços necessários para crescer dignamente. No entanto, em si guardava a potência de suas raízes, que iria se expressar em toda a sua obra. Na juventude, logo que chegou ao Rio de Janeiro, serviu à 29 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 Marinha Brasileira e lá teve a função de sinalizador, conhecendo uma boa parte do mundo. Ficou por um determinado período, mas acabou sendo afastado por indisciplina. Foi também campeão de boxe, embora isso não tenha sido muito divulgado, talvez em virtude de pertencer aos quadros da Marinha. A autora evoca o pensamento de Moreno que salienta a importância de todas as pessoas encontrarem na vida um espaço que lhes possibilite criar: “Todos os homens nasceram para criar (...). Todos os criadores estão a sós até que o seu amor pela criação forme um mundo ao seu redor (...). Somente um ser criativo pode ser verdadeiro. Somente um ser criativo pode existir (...)” (MORENO, 1992.pp,107 e 113). Quando o ambiente afetivoemocional, familiar e social incluir valores e formas de padrões de comportamento estereotipados, que acarretam a automatização do ser humano – o que Moreno denominou de “conser vas culturais” –, criam-se obstáculos ao desenvolvimento (MORENO, 1975, p. 158). E Gonçalves complementa: “Para que tenhamos o prazer de nos sentirmos vivos é preciso que nos reconheçamos como agentes do nosso próprio destino. Quando somos reduzidos a condição de peças de engrenagens, na s quais somos colocados sem reconhecimento de nossa vontade, impedidos de iniciativa pessoal, estamos privados de nossa espontaneidade” (GONÇALVES, 1988, p. 46). Bispo do Rosário também trabalhou como segurança na companhia de eletricidade do Rio de Janeiro, fez segurança de políticos e trabalhou em casas de família como um “faz tudo”. A autora recorre ao fator espontaneidade através das palavras de Moreno: “A espontaneidade deve ser considerada o mais importante vitalizador da estrutura viva. Como função criadora, esforça-se por criar o eu e um meio adequado para ele” (MORENO, 1994, p. 152). Na pesquisa realizada no programa Inclusão – “Rosário Sagrado de Arthur Bispo do Rosário” – aparecem os depoimentos de José Carlos Leoni e Margareth Leoni, fazendo referências sobre o comportamento de Bispo do Rosário quando morou na casa do avô Leoni. Segundo relatam, Bispo do Rosário mantinha ali um comportamento espontâneo, talvez por encontrar no ambiente dessa família condições adequadas para a sua expressão como sujeito criativo. Eles não o consideravam um sujeito agressivo, ao contrário, tinha muito carinho pelas crianças e pelas pessoas que viviam ao seu redor. Há um relato de Margareth, falando de Bispo do Rosário, em que ela relembra as palavras de seu avô referindo que, quando a mãe de Margareth estava grávida, ele a cuidava com muito carinho. Na noite de 22 de Dezembro de 1938, com 29 anos, após um delírio místico, Bispo diz ter visto Cristo descer no quintal da casa em que residia, acompanhado de sete anjos azuis e envolto numa luz radiante. Após esse episódio, ficou dois dias vagando pela Rua Primeiro de Março e por várias igrejas do então Distrito Federal. A seguir, subiu ao Mosteiro de São Bento, anunciando a um grupo de monges que era um enviado de Deus, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Em seu delírio místico, considerou ter recebido a missão de recriar o universo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final. Conforme o prontuário, dois dias depois, no dia 24 de dezembro, foi detido sem documentos e fichado pela polícia como indigente, sendo conduzido ao Hospital dos Alienados na Praia Vermelha. Hidalgo (2011) cita que consta registrado no livro 12.206 da Polícia Civil uma lista de remoção de dementes: foram removidos para o hospital “todos por apresentarem sintomas visíveis de alienação mental (...) uma senhora de identidade ignorada cometia desatinos em via pública, de cor parda (...) Arthur Bispo do Rosário, brasileiro, preto, solteiro (...), e Euclides Felipe, brasileiro, negro, interdito” (HIDALGO, 2011, p. 51). Após um mês de internação, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde uma junta médica concluiu pelo diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Hidalgo cita a ordem médica que consta no prontuário: “Peço transferência para a Colônia Juliano Moreira. Tratase de doente crônico, calmo, não rejustifica sua permanência na seção, em face de seus delírios de grandeza incentivarem conflitos com outros doentes. Outrossim, o paciente não suportava ver doentes agitados.(...) com uma certa liberdade, passa muito bem (HIDALGO, 2011, p. 52). Arthur Bispo do Rosário não era um homem de muitas palavras e não gostava de falar de seu passado; constantemente afirmava:“Um dia, simplesmente apareci pelos braços da Virgem Maria”. Fonseca Filho relata, através das palavras de Moreno, que todo ser humano sofre fundamentalmente por não poder realizar todos os papéis que existem dentro de si. Salienta também que “os papéis delirantes significam uma rebelião contra as táticas repressivas da personalidade que impediram fluir os livres papéis proibidos”(FONSECA FILHO, 1980, p. 80). No começo da década de 1960, Bispo do Rosário consegue conquistar a simpatia da maioria dos médicos e dos funcionários e, com isso, driblar a burocracia do estabelecimento, saindo e voltando várias vezes. Bispo do Rosário chegou a iniciar um trabalho em uma Clínica Pediátrica, onde viveu em um quartinho no sótão, iniciando ali literalmente a produção de suas obras. Em 1964, regressa definitivamente à Colônia Juliano Moreira, ali permanecendo, até sua morte, produzindo ininterruptamente suas diversas obras. No ambiente da Colônia, Bispo do Rosário era um sujeito considerado agitado, e inúmeras vezes precisou ser detido em uma das celas-fortes. Com o passar do tempo, ele conquistou o status de xerife, e fez da cela seu 30 Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 ateliê. Fonseca Filho alega que nascemos com uma potencialidade de gênios específica de nossa raça, isto é, com certas capacidades e atitudes básicas latentes, e que, por algum motivo, seja pelos conceitos morais, sociais ou culturais, pode ou não ser liberada no decorrer da vida (FONSECA FILHO, 1980). Bispo do Rosário, com a sua capacidade criativa, passou a recolher objetos da sociedade e fez dos objetos recolhidos uma forma de potencializar sua existência, nos mostrando, ao mesmo tempo, a fluidez do descarte da sociedade de consumo e a atitude estética dessa mesma sociedade. Moreno (1985) apresenta a espontaneidade como a primeira característica do ato criador; a segunda é uma sensação de surpresa, e a terceira é a sua irrealidade, que tem por missão mudar a realidade em que surge, além de ser algo interior que vai além da realidade dada, porque na vida os sofrimentos, o amor, a cólera, a fome são do mundo real e, muitas vezes, difíceis de suportar. O referido autor afirma: “Enquanto que um ato vivente é um elemento no nexo causal do processo vital da pessoa real, o ato criador espontâneo faz parecer como se, por um momento, o nexo causal tivesse sido quebrado ou eliminado” (MORENO, 1985, p. 84). Como uma quarta característica, ele coloca a diferença entre uma criatura e um criador, pois significa um atuar sui generis, querendo com isso dizer que, durante o processo de viver, atua-se muito mais sobre si mesmo. Esses processos apresentados não determinam somente as condições psíquicas, mas produzem efeitos miméticos, isto é, o ser humano, através do ato criador, possibilita desenvolver novas capacidades adaptativas e delas emergem novas tendências, que fazem subir certos processos à consciência. Esta é a quinta característica do ato criador. Como poderão perceber, ao longo do trabalho, em muitos momentos a autora coloca as palavras de Moreno como um eco de Bispo do Rosário. “Como Eu poderia suportar a viver, se Eu não tivesse criado a Mim mesmo? Portanto Eu tive que criar a Mim mesmo. Como poderia Eu ter criado a Mim mesmo, se Eu não pudesse ter criado o universo também? Portanto, com o fim de criar-me a Mim mesmo, eu tive que criar todo o universo também’’ (MORENO,1995.p. 95). A realidade que Bispo viveu é consequência das escolhas que os homens do poder, desde o século XVIII, fizeram ao criar um novo jeito de se perceber e de vivenciar a condição humana, criando assim também o “diferente”, ou seja, aquele que não segue os padrões de comportamento que a sociedade define. Para este, foram construídas instituições visando a excluir do convívio dos normais aquela pessoa considerada uma ameaça à sociedade. Assim foi criada a loucura como doença, resultando, como decorrência, no surgimento da psiquiatria como especialidade médica. Em um trecho do “Senhor do Labirinto” (2011), percebe-se a presença de dois guardas em uma visita à cela-forte, cada um desempenhando papéis diferentes, isto é, cada um com um olhar diferente sobre a pessoa de Bispo do Rosário. Logo na entrada, percebem que Bispo do Rosário estava bordando um pano de linho e desfiando uma das peças do vestuário. Um deles, ao ver que Bispo do Rosário estava com uma agulha, diz: “Olha pra mim, seu crioulo, me dá esta agulha!” Enquanto o outro guarda tenta acalmar o colega, Bispo do Rosário diz: ”Eu tenho Deus aqui comigo, ele está aqui em cima” – e aponta pra cabeça – “o senhor não vê?” O guarda pede novamente para o outro se acalmar e diz: “Deixa ele falar!” Bispo do Rosário continua: “(...) deixa eu ficar com a agulha, eu faço tudo o que vocês quiserem”. O guarda, então furioso, diz para o outro que ele ficará responsável por deixar a agulha com Bispo do Rosário. A autora acolhe neste momento as palavras de Carreteiro, que fala do potencial que tem o olhar do outro no sentido de ajudar no fortalecimento da subjetividade do indivíduo, assim como também pode feri-lo profundamente, invalidando-o psiquicamente. No caso de Bispo do Rosário, tratou-se de um olhar confiante e estruturador, permitindo que a espontaneidade pudesse ter voz (CARRETEIRO, 2011). A psiquiatria do século XIX foi a responsável pela grande indústria da loucura, levando para os hospitais gerais as pessoas pobres, os desempregados, os que esperavam julgamento por crimes de menor grau, os insensatos, as prostitutas e os andarilhos. Outros, ainda, foram jogados ao mar, simplesmente por não corresponder ao padrão exigido pela sociedade industrial. Com a criação de Hospitais Psiquiátricos, institucionalizou-se a ideia de local de salvação do chamado doente, na espera da morte, sob o cuidado de religiosas. Como afirma Foucault, “os hospitais tinham mais função caritativa para salvar a alma do desvalido”(FOUCAULT, 2004, p.102). O Classicismo inventou o internamento, a Idade Média, a segregação dos leprosos, e este legado continuou com a instituição dos “internos”. “O gesto que aprisiona tem significações políticas, sociais, religiosas, econômicas e morais” (Foucault, 2008, p. 53). Durante a Inquisição Católica, os deficientes físicos e mentais foram também considerados seres diabólicos e que mereciam castigos para serem purificados. As estruturas sociais eram regidas sob o domínio de leis divinas, e qualquer pessoa ou ideia que pudesse atentar contra a estrutura da igreja teria que ser exterminada. Esse papel foi cumprido com o sacrifício de milhares de ateus, endemoniados, loucos, adivinhos, alucinados e deficientes mentais. Esta explicação consiste na visão pessimista do homem, entendido como alguém demoníaco, no qual vem a faltar a razão ou a ajuda divina. Os estigmas de idiota, bobo da corte, louco e imbecil significando alguém irrecuperável, e seguem sendo sustentados 31 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 pela Medicina durante décadas, enquanto o médico psiquiatra surge como um novo árbitro do destino que julga, salva e condena. De acordo com Foucault, os Hospitais Gerais não tinham a função de simples refúgio para a velhice, para a enfermidade, e sim de receber os “estragados”, funcionando como uma Instituição Moral cujo estatuto ético revestia seus diretores do poder de castigar, corrigir uma “certa” falha moral dos homens, podendo para isto utilizar as prisões e as celasfortes. A loucura não era vista como uma doença, mas percebida como um defeito extremo, só tendo hospitalidade entre os muros do hospital, ao lado de todos os pobres (FOUCAULT, 1984, p. 63-136). Na década de 70, inúmeros debates vinham acontecendo em torno da necessidade de transformação do modelo de assistência psiquiátrica, bem como nas relações entre a sociedade e a loucura. Franco Basaglia inicia na Itália um movimento de Reforma Psiquiátrica que ficou conhecido como “psiquiatria democrática”, que luta pelo fim dos manicômios e acaba inspirando o mundo inteiro, incluindo o Brasil. Muito criticava a tradicional cultura médica, porque transformava o indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção. Ele não negava a existência da doença mental, mas chamava atenção para a relação entre médico e paciente no sentido de que as intervenções deveriam estar centradas na tentativa de reconduzir o paciente às suas plenas possibilidades existenciais, bem como à prática de seus direitos (SEVERO, 2012). Pensadores como Michel Foucault, George Canguilhem e Jacques Derrida se destacaram pela contestação, porque tanto a psiquiatria clássica quanto a hospitalar eram centradas no princípio do isolamento do paciente. Falar da arte e da loucura é remexer em sentimentos inquietantes, que foram resguardados atrás de muros obscuros da sociedade preconceituosa por longos séculos na história. Moreno (1995) assegura que, ao criar um novo método terapêutico para a loucura, descobre também que a história é o berço da explosão das contradições intersubjetivas. Para Goffman “o que a psiquiatria denomina o curso natural da doença é, na realidade, a 'carreira moral do doente mental'” (GOFFMAN apud AMARANTE, 2007, p. 54). A aprovação da lei da Reforma Psiquiátrica foi um marco muito importante, porque possibilitou que o“Sujeito e a Saúde Mental”pudessem ser vistos com olhar diferenciado, rompendo com paradigmas sociais. Na cela-forte, mesmo isolado da sociedade normatizadora, Bispo do Rosário construiu um mundo, dando pistas de que a criatividade e a espontaneidade são fortes aliados e necessários para a sobrevivência. Hugo Denizart (2011), psiquiatra e fotógrafo, afirma em uma entrevista que Bispo do Rosário trabalhava 24 horas. Citando suas palavras: ”(...) ele tinha um tamanho giro, uma tamanha potência transformadora que a minha razão não conseguia dar conta daquilo”. O que mais o deixava perplexo era o tamanho investimento feito na elaboração daquelas obras. É considerável a reação daqueles que tentam dissociar sua obra da “arte de louco”, uma vez que esta classificação é, na maior parte das vezes, estigmatizante, preconceituosa e depreciativa. Moreno afirma que o agente da improvisação, seja ele poeta, ator, músico ou pintor, encontra o ponto de partida dentro de si mesmo, no estado de espontaneidade. Não é algo rígido, nem dado e registrado, mas de uma fluência rítmica, com altos e baixos, que cresce e desaparece gradualmente como atos da vida e, no entanto, é diferente da vida. E assim se constitui o estado de produção e o princípio essencial de toda a experiência criadora (MORENO, 1975). Ainda que, para alguns, suas obras sejam vistas como obra de louco, enquanto, para outros, obra de gênio, é inconteste a importância da criação de Bispo do Rosário. Além do conjunto de suas obras ser considerado um retrato de sua vida, elas foram também consideradas Arte Contemporânea Brasileira. Como nos diz Archer,“nossas vidas são grandes esculturas”(ARCHER, 2001, p.109). Em grande parte de sua obra, Arthur Bispo do Rosário utilizou a linha que ele mesmo desfiava de uniformes azuis dos internos e de roupas que encontrava no lixo. Frederico de Morais, crítico de arte, denominou este segmento de ORFA, que significa Objetos Recobertos por Fio Azul (AQUINO, 2012, p.29). O trabalho que fez era o mesmo que os homens de sua terra natal, do interior sergipano, executavam ao bordar o manto do Menino Deus, o qual tinha muito presente em sua memória da infância. “Os bordados eram a mais perfeita tradução da cultura de Japaratuba” (CORREA, 2001, p.17). Com suas cores, seus símbolos e sua intensa religiosidade, ele bordou roupas e lençóis do hospital, bem como estandartes contando a história dos locais que visitou. Entre os temas, destacam-se navios, estandartes, faixas de misses e objetos domésticos. Na principal obra, o Manto da Apresentação, há inúmeros registros que aparecem em seu lado interno, criando, através de nomes próprios, uma memória de futuro. Este trabalho é um exemplo de que todo ser humano carrega dentro de si a essência da existência, a fome de criar, isto é, uma força dinâmica, uma corrente que pode ser expressa por diferentes linguagens. Fonseca Filho salienta, através das palavras de Moreno, o quanto as palavras são insuficientes para a comunicação humana. Ele traz um trecho da conversa entre Buber e Rogers, afirmando que o diálogo humano vai além da conversa, englobando também o silêncio. Assim, “a comunicação humana, portanto, pode ser efetiva, apesar da ausência de palavras”(FONSECA FILHO, 1980, p.61). A autora acolhe a oração de Moreno como um retrato que nos aproxima dos olhos a vivência de Bispo do Rosário dentro da cela-forte, em um momento em que a sociedade não tinha ouvidos para ele: 32 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 “Benditos sejam aqueles que trabalham em silêncio no anonimato das almas viventes, na escuridão das suas noites. Eles são perseguidos e ameaçados. Eles são mortos, mas oxalá seus trabalhos sobrevivam! Oxalá Ele penetre nas palavras dos homens e lute por suas vitórias! Oxalá se aninhe dentro dos corações do povo! Oxalá Ele atemorize os líderes e force os tiranos a se renderem!” (MORENO, 1992. p.220). A vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário demonstram uma rebelião silenciosa e solitária, sendo ele um “Deus–Eu”, um Deus da própria criação. No decorrer da história, é corriqueira a ideia da existência de um Deus Criador do Universo, e Jacob Levy Moreno (1992) vem apresentar um novo pensamento com a finalidade de nos apontar a figura de um Deus num sentido de existência. Ele defende que o Deus do Antigo Testamento era um Deus-Ele, um ser supremo, uma entidade distante que governava a vida dos homens. Com o passar do tempo, acontece uma reavaliação do conceito de Deus e, desta vez, o mundo passa a ser o mundo dos homens, que eles mesmos escolheram e criaram, podendo ser um local de projeção de sonhos. A relação entre Deus e o homem, segundo Moreno, torna-se dual, passando a entrelaçar o coração do homem com Deus. Desta forma, o passado infinito se atualiza, Deus torna-se uma realidade no aqui-e-agora e sua palavra passa a ser uma voz presente, que pode ser manifestada por diferentes ordens, captada e apresentada em diferentes linguagens numa relação de amizade. Cada integrante, que chega numa condição de co-criador, aos poucos vai fazendo parte do reino da existência que está em contínuo desenvolvimento (MORENO, 1992). Na Colônia, Bispo do Rosário não gostava de fazer as refeições junto com os outros pacientes, assim ia até o refeitório, pegava a bandeja e saía, ou um dos funcionários a levava até ele, que sempre ia para bem longe. Ele era um dos únicos internos da colônia Juliano Moreira que se negava totalmente a viver com os pacientes crônicos, que diariamente passavam circulando pela Instituição. Denizart, no programa “De Lá Pra Cá – Bispo do Rosário - Vida e Obra”, relata: “Por um acaso, eu descobri que Bispo tinha um lugar, ele não circulava pela Instituição, passava a maior parte do tempo na cela-forte”. Inúmeras vezes, os pacientes perdiam suas colheres, canecas e, junto com outros objetos que encontrava, como botas, sapatos, chapéus e garrafas plásticas, Bispo do Rosário construía de forma rígida e geométrica, em cima de pranchas de madeira, as chamadas “assemblages”. Gonçalves cita as palavras de Moreno: “Ainda que afastado do convívio de fato com outras pessoas, o homem age em função da imagem que tem de si mesmo, de seus semelhantes e de suas relações com estes” (MORENO apud GONÇALVES, 1988, p. 47). A maior parte dos trabalhos de Bispo do Rosário se consistiu em diversas miniaturas, entre navios de guerra, automóveis, caixas de música, moinhos de cana, roda da fortuna, entre tantos outros. Também bordou peças de vestuário da Colônia que revolucionaram conceitos no mundo da moda. Todos os visitantes – como era o caso da estagiária Rosangela Maria Grilo Magalhães –, quando iam vê-lo em seu ateliê, eram recebidos à porta com a pergunta-senha: “qual a cor da minha aura?” Assim, o visitante passava a ser incorporado em sua obra. Todas as respostas foram escritas, bordadas, mumificadas, miniaturizadas, catalogadas, acumuladas, ordenadas e incorporadas na composição e na construção das obras. Ao julgar que recebeu de Deus a missão de que estaria na hora de reconstruir o mundo, Bispo do Rosário se propôs a reconstruir e representar em miniatura todos os objetos, de modo a apresentá-los a Deus. A sua obra mais conhecida é o Manto da Apresentação, que Bispo do Rosário deveria vestir no dia do Juízo Final, e com o qual pretendia marcar a passagem de Deus na Terra. E, assim, a autora retoma as palavras de Moreno: “Como poderia EU, o criador, não fazer que cada instante fosse mais perfeito e mais intenso do que o último? Cada novo momento é mais perfeito do que aquele que Eu acabei de viver. Cada ser que eu crio é mais perfeito do que aquele que acabei de criar. E meu momento mais perfeito, Meu momento mais intenso deve ser o Meu último momento!” (MORENO, 1992, p. 92). Em um de seus estandartes, Bispo do Rosário bordou um mapa da praia de Botafogo: Rua Senador Vergueiro, Praia do Flamengo e a Rua Primeiro de Março. Em um canto deste pano de linho, abaixo da figura do homem, bordou seus inscritos com um tom de urgência: ”EU PRECISO DESTAS PALAVRAS - ESCRITA” (HIDALGO, 1996, p.133-4). E Moreno assim alegava:“O que seria de ti, se Eu não existisse? O que seria de Mim, se tu não existisses?”(Moreno, 1992.p.92). Tanto para Moreno quanto para Buber, “o homem individualmente não existe, ele é quando vive em relação com o outro porque ganha plena condição humana”. Para Buber, o Eu não é uma realidade em si; ele é relacional. No entanto, quando se fala em Eu, automaticamente se está falando do mundo, isto é, do Isso e do Tu. Assim, quando o Eu decide por uma ou por outra atitude, significa que é o fenômeno da relação 33 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 homem-mundo como um todo que está definindo a possibilidade do Eu decidir. A relação atual “atuante” de que o autor fala envolve tanto a passividade quanto a espontaneidade e assim nos diz: “Torno-me Eu na relação com o Tu”. Desta forma, “o Tu orienta a atualização do Eu e este, pela sua aceitação, exerce sua ação na presentificação do outro que, neste evento, é o seu Tu” (BUBER, 1974, LVIII). Enquanto esperava a hora do Juízo Final, Bispo do Rosário optou por produzir suas inúmeras obras, as quais seguem uma lógica e podem ser organizadas por algumas semelhanças bem visíveis. Frederico Morais (1989) encarregou-se dessa organização e dividiu a obra toda em segmentos: primeiro, o texto (os estandartes bordados), segundo, as roupas (o Manto da Apresentação e os fardões), terceiro, os objetos enrolados com linha (barcos e miniaturas), e quarto, as assemblagens ou vitrines, como dizia Bispo do Rosário. Para Moreno,“um criador é como um corredor, para quem, no ato de correr, a parte do caminho que ele já passou e a parte que tem diante de si são uma só coisa, qualitativamente” (MORENO, 1985, p. 85). O mesmo autor afirma que, numa psicologia do ato criador, não existiria a distinção entre consciente e inconsciente, pois como o inconsciente é criado pelos próprios indivíduos criadores, eles mesmos podem encher, esvaziar, substituir ou desfazer seu reservatório continuamente. Severo salientou que a obra de Bispo do Rosário está intrinsecamente inscrita e visceralmente conectada à sua condição de esquizofrênico paranóide (SEVERO, 2012). Para Moreno, nos momentos da representação criadora espontânea, as emoções, os pensamentos e as frases parecem ser desordenados, mas, no decurso do desenvolvimento, tudo se torna claro como se fossem sons de uma melodia, como numa relação semelhante a das células de um novo organismo. Foi graças à sensibilidade da revolucionária psiquiatra Nise da Silveira e da já citada estudante de psicologia Rosangela Maria, que a obra de Bispo do Rosário acabou sendo mostrada ao mundo. A mostra está intitulada “Arthur Bispo do Rosário: a poesia do fio”. Toda a sua produção artística se encontra no Museu Bispo do Rosário, antigo Museu de Imagens do Inconsciente, localizado onde funcionava a extinta Colônia Juliano Moreira. Atualmente, a obra do artista é conhecida também internacionalmente a partir da amostra Viva Brasil, em uma das principais instituições culturais de Estocolmo, na Suécia. Representou o Brasil, em 1995, na 4ª Bienal de Veneza, reconhecidamente o principal evento de artes plásticas do mundo. A consagração abre um amplo leque de reflexões em torno dos sentidos e dos significados de sua obra. Louco? Contemporâneo? Marginal? Daí resultou uma série de convites para expor também nos EUA, no México e na Espanha. Neste ano de 2012, a autora salienta a presença da exposição “Arthur Bispo do Rosário, a Poesia do Fio” em Porto Alegre, bem como “A iminência das poéticas”, nome dado à 30ª edição da Bienal de São Paulo, onde Bispo do Rosário foi considerado o principal artista brasileiro a partir de seu principal meio de expressão, seus bordados. A arte de Bispo do Rosário, para Paulo Amaral (2012), “resulta em uma obra poética, reveladora de inegável beleza estética e repleta de significados que comovem o espectador (...). É uma poesia concreta, é vida, ela não representa, ela é. Ele fazia parte da exibição da obra (...)”(AMARAL, 2012). Arthur Bispo do Rosário, às 19 horas do dia 5 de julho de 1989, já acometido de arteriosclerose e broncopneumonia, faleceu aos 80 anos de idade com um infarto do miocárdio, na própria Colônia Juliano Moreira. Arte e produção de saúde O conjunto de obras de Bispo do Rosário é uma espécie de convocação, um apelo à sensibilidade e à espontaneidade; é um convite para a vivência simultânea, assim como um poeta que convoca o outro para a experiência renovadora fora do cotidiano. A despeito de sua agitação interna, que inclusive o fez estar na cela-forte por inúmeras vezes, Bispo do Rosário, com o passar do tempo, além de conseguir o status de xerife e a liberação da agulha para bordar dentro da cela, conseguiu resgatar a sua espontaneidade. Moreno afirma: “A espontaneidade deve ser considerada o mais importante vitalizador da estrutura viva. Como função criadora, esforça-se por criar o eu e um meio adequado para ele. Quando as funções da espontaneidade são deixadas sem direção, se desenvolvem tendências contraditórias que provocam a desunidade do eu e o desmembramento do meio cultural”. (MORENO,1975, p.152). Mesmo isolado da sociedade normatizadora, Bispo do Rosário construiu um mundo, nos dando pistas de que a criatividade e a espontaneidade são fortes aliados e necessários para a sobrevivência. Em cada fio que Bispo do Rosário desfiou, em cada curva do bordado que pontou, retratou vozes de alegrias e de tristezas que nasciam dentro de si. Moreno afirma que não há palavra que se repita e nem criação que possa ser recriada, porque cada fase da criação tem uma palavra como expressão complementar, um logos; cada palavra é uma expressão única, uma criação singular.“Eu passo pelo mundo uma só vez. Eu passo pela rua uma só vez. Eu te vejo, mas apenas uma vez. Nada vem de Mim, além de uma só vez”(MORENO, 1992.p.90). Conforme Moreno (1975), tudo começa pelo ato do nascimento porque o bebê, na hora do parto, é participante ativo do processo, assim este é considerado o primeiro ato espontâneo de um indivíduo. O autor conceitua espontaneidade como sendo a “resposta do indivíduo a uma nova situação – e a nova resposta 34 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 a uma antiga situação”(MORENO, 1975. p. 101). “O momento do nascimento é o grau máximo de aquecimento preparatório do ato espontâneo de estar nascendo para um novo ambiente a que o nascituro terá de ajustar-se rapidamente. O que o acompanha é uma energia vital de viver como um sistema organizado de forças psíquicas que funcionam em nível existencial”. (MORENO, 1975, p. 105). Através da lente de Gonçalves, conhecemos a visão moreniana do homem como um agente espontâneo. Ela mostra que, desde o nascimento, o homem carrega dentro de si recursos inatos como a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade. Estes fatores são favoráveis tanto à vida e à criação quanto ao desenvolvimento, porque no homem não existe tendência destrutiva, mas podem ser perturbados pelo ambiente ou por sistemas sociais constrangedores. Assim, cabe a cada um buscar a recuperação dos fatores vitais através da renovação das relações afetivas e da ação transformadora sobre o meio. (GONÇALVES, 1988). A aproximação entre Arte e Psicologia não é um movimento recente. No século XVIII, Baumgarten incorpora a disciplina de Psicologia, e nela a estética dentro de uma perspectiva do belo, do domínio da sensibilidade relacionada com a percepção, os sentimentos e a imaginação. O fenômeno artístico começou a ser decifrado através do pensamento alemão, e é na Áustria que se inicia a investigação sobre as obras de arte com os professores da escola de Viena. Foi através da Filosofia de Kant que a questão do belo converteu-se na questão da “experiência estética”, que muito contribuiu para as tendências teóricas no século XIX, que passaram a abandonar o domínio metafísico para se aproximar do domínio experimental e psicológico. A Psicologia passa, então, a se ocupar do aspecto subjetivo, valorizando os elementos heterogêneos, como o prazer sensível, os impulsos, os sentimentos e as emoções. Os estudos feitos por técnicos, como afirma Frayze-Pereira (1994) ao detectar esboços em carvão por debaixo das pinturas nas cavernas, levaram especialistas a pensar que as cavernas poderiam ser verdadeiros santuários. A autora deste trabalho acrescenta que estes espaços também poderiam ser compreendidos como complexos ateliês de criação da época. No século XX, a Psicologia Social surge para estabelecer uma ponte entre a Psicologia e as Ciências Sociais. Tem como seu objeto de estudo o comportamento dos indivíduos quando estão em interação com os demais. É considerada uma ciência que procura compreender os “comos” e os “porquês” do comportamento social e da interação e a interdependência entre os indivíduos e o encontro social. A sua formação acompanhou os movimentos ideológicos, as grandes guerras e a luta do capitalismo contra o socialismo. Seu campo de ação é, portanto, um grande desafio para os profissionais, porque requer analisar o comportamento e os fenômenos particulares que diferenciam a vida dos indivíduos em sociedade. E, neste trajeto, a teoria psicodramática tem uma grande contribuição nesta construção histórica, vindo a apresentar um conjunto de métodos, técnicas e procedimentos adequados para descrever, vivenciar e interpretar os sentidos e significados dados aos fenômenos, relacionandoos à vida das pessoas. Desta forma, possibilita que o sujeito, através do ato, além das palavras, possa reviver e construir estruturas humanas expressivas (MOTTA, 2011, p. 88). A obra de arte de Bispo do Rosário não é o reflexo de um real recortado, mas nos dá indício de um processo de representação dialética entre o percebido, o real e o imaginário. É uma atividade em que a execução e a invenção andam juntas e de forma simultânea. A arte é um conceber executado e historicamente vivido como resultado de uma conserva cultural. A obra de arte, quando acabada, é algo inteiramente novo, um devir humano. A arte como parte de uma estrutura simbólica é capaz de permitir inúmeras possibilidades e perspectivas de expressão e percepções. Assim, o poder de transcendência põe o artista como um sujeito histórico. De acordo com Merleau-Ponty, “o que define o homem não é a capacidade para criar uma segunda natureza econômica, social e cultural para além da natureza biológica, é, sobretudo, o poder de ultrapassar as estruturas criadas criando outras”. Para o mesmo autor, quando se observa uma obra, o que se vê não é o que existe em si mesmo, mas o que nos atinge, convidando-nos a retomar o gesto que impulsionou o artista a criar a obra, alcançando o mundo silencioso do artista. (MERLEAU-PONTY, 1942, p.189). Para Rauter, pensar em novas alternativas para solucionar problemas da subjetividade clínica contemporânea é também retomar problemáticas no campo da arte. Precisamos compreender a obra de arte a partir do processo terapêutico, fazendo dele um processo de criação artística, no sentido de produzir “mutações no campo da subjetividade”. A mesma autora nos apresenta Otto Rank, que foi o pioneiro em chamar atenção para o fato de que a criação artística não poderia se restringir à história individual, infantil, familiar, mas também incluir aquilo que rompe com essa a trajetória. As forças sociais e o plano cosmos estariam em jogo nessa produção artística (RANK apud RAUTER, 1997, p.109-10). Conforme nos apresenta Burrowes (1999), “a máquina semiótica de Bispo do Rosário” consiste em uma “linguagem capaz de arrancar-nos à nossa prisão subjetiva, tragando-nos para uma diferente possibilidade de subjetivação nadando no contrafluxo do consumo” (BURROWES, 1999, p. 43). Muitos autores, como Foucault, Denzelot, Ariès e Sennet, defendem hoje que está surgindo uma “subjetividade intimista” com uma interioridade de paradoxos, porque“nunca se lutou por 35 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 um eu, e nunca a produção de subjetividade teve um caráter tão serializado, uniformizado e impessoal” (RAUTER, 1997, p.114). Enfim, a aproximação entre a arte e a clínica possibilita que os fluxos desterritorializados possam produzir novos universos existenciais. Fala-se do rompimento com a linha contínua da historicidade do passado da arte, que classificava estilos e modos de aperfeiçoamento do que seria a cultura humana, e apresentase um novo campo da criação: o resgate do que há ali de cósmico e que não pode ser reduzido a uma atividade de memória. Um resgate de uma arte arqueológica voltada a essências imemoriais que refletirão no modo de pensar, tanto no universo subjetivo como no universo social, substituindo a “postura do arqueólogo pela do viajante-construtor” de mundos subjetivos (RAUTER, 1997). Moreno assegura que o homem, além de ser social, e individual: ele é um ser cósmico. Quando possui condições télicas¹ e aquecedoras, automaticamente entra em funcionamento um mecanismo propício para a atuação e a integração de elementos catalisadores de espontaneidade favoráveis à criatividade e ao Encontro. Tanto Moreno quanto Buber concebem o homem no Encontro como um ser atuando para fora, num sair de si que vislumbra um novo horizonte, uma nova perspectiva de vida (FONSECA FILHO, 1980). Bispo do Rosário, através de distintos movimentos, deixa marcas não só de uma vida, mas de uma história evolutiva. O trabalho que deixa registrado em distintas peças inquieta-nos, mas também possibilita uma nova visão de mundo. Arthur Bispo do Rosário nos dá fortes indícios de que os hospitais destinados ao tratamento da doença mental – espaços da dor, do horror e da humilhação – poderiam ser transformados em locais de cultura, de liberdade, de saúde e de superação. E Moreno assegura: “Todos os homens nasceram para criar” (...) “Todos os criadores estão a sós até que o seu amor pela criação forme um mundo ao seu redor.” (...) “Somente um ser criativo pode ser verdadeiro. Somente um ser criativo pode existir” (MORENO, 1992, p.p.107 e113). O conceito de saúde mental que nos traz Canguilhem relaciona-se ao sujeito e ao meio, referindo-se a uma certa capacidade do sujeito de superar crises psíquicas para instaurar uma nova ordem mental. Contudo, não se pode reduzir o portador de anomalias mentais ao chamado louco, pois a anomalia pode ser a expressão da normatividade psíquica frente a um determinado meio sociocultural. Segundo o mesmo autor, em Psicologia existe o risco de se perder o fio condutor que permite, na presença de uma inadaptação a um meio de cultura determinado, distinguir entre a loucura e a genialidade (CANGUILHEM, 1982). A autora traz as palavras de Clarice 1 Tele, segundo Moreno, é a percepção interna mútua entre dois indivíduos e “um fator decisivo para o progresso terapêutico” (MORENO, 1975, p. 44). Lispector, escritas em janeiro de 1974 para uma amiga, em Berna: “Até para cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício interior”(LISPECTOR apud MONTERO, 2002, p.165). Wilson Lázaro (2012), ao fazer uma leitura das obras Arthur Bispo do Rosário, denominou três formas de sentidos: a Fé, a Criação e a Glória. A Fé como reconstituinte através da religiosidade e do compromisso com sua obra; a Criação como um sintoma de saúde no seu próprio surto; e a Glória representando o apogeu de sua realização. “Nossas vidas são grandes esculturas” nos diz Archer (2001, p.109). Bispo do Rosário era uma escultura viva: sua obra era a sua vida, um movimento que passa por um esquema mais complexo do que aquele do mundo platônico. O corpo está presente, o artista atua em sua obra enquanto cria. Maria Ester Maciel (MACIEL apud BORGES, 2004, p. 459) diz: Arthur Bispo do Rosário “extrai do delírio o rigor”, aceita o diagnóstico de esquizofrênico, mas não se prende a ele; escolhe a linguagem da arte que mais representa seu mundo interno saudável, a qual percorre uma linha tênue, como nos mostra o título de sua obra. A sua produção é capaz de tirar as vendas de nossas pupilas, como se fôssemos sugados e condenados a entrar em contato com outras instâncias esquecidas. Em Cartas a um jovem poeta, Rilke afirma: ”Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor (...), pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo, encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou” (RILKE, 2008, p. 26-7). No entanto, a abertura do psicólogo para a manifestação artística dependerá da sua disposição como espectador da arte, mesmo sabendo que corre o risco de experimentar vertigem e perda de pontos fixos. Portanto, a Psicologia da Arte tem o papel de evidenciar os princípios de uma conduta própria do homem que regula tanto a estrutura material como a imaginária, no quadro de limites de poder e conhecimentos e em um determinado momento da história circular da civilização. Francastel diz: “A ciência da arte e a própria arte têm muito a ganhar com uma apreciação melhor de seu papel psicológico e técnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do passado e a do presente se conhecermos melhor a significação humana”(FRANCASTEL, 1973, p. 48). Se olharmos positivamente para a fase inicial, espontânea e criativa da vida e da obra de Bispo do Rosário, e não somente para o produto final, vemos que é uma espécie de convite para o encontro mais aprofundado com o potencial criador, o Deus-Eu. Moreno (1992) propõe: “O tempo e o espaço precisam estar juntos, o Psicodrama é a ação no momento(...)” (MORENO apud MOTTA, 2011, p. 87). Para Motta (2011), a base da realidade é o eixo da existência humana, e o tempo-espaço reunidos geram a motivação para a 36 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 espontaneidade-criadora e também a liberdade. Investigar a realidade por meio da arte, associando-a à espontaneidade, não busca “o” sentido de cada fenômeno, dor ou conflito, mas sim amplia o leque de sentidos possíveis, tanto em termos artísticos como na vida como um todo. Motta afirma ainda que “essa abordagem tem uma implicação ética importante, porque tem um sentido libertador que é a debilitação do pensamento hegemônico, ou seja, da ideia de que existe uma única verdade, alguém a deter, e de ser preciso concordar com o detentor para atingi-la”(MOTTA, 2011, p. 65). na escuridão das suas noites. Eles são perseguidos e ameaçados. Eles são mortos, mas oxalá seus trabalhos sobrevivam! Oxalá Ele penetre nas palavras dos homens e lute por suas vitórias! Oxalá se aninhe dentro dos corações do povo! Oxalá Ele atemorize os líderes e force os tiranos a se renderem!” (MORENO, 1992, p.220) Na unidade de sentido Arte e Produção de Saúde, Arthur Bispo do Rosário, afastado do sistema social e do ambiente perturbador, se reconheceu como agente do próprio destino. Ele “Aqui jaz aquele que abriu as portas da psiquiatria à foi realmente um Deus da própria criação, que aceitou o pedido alegria” (MORENO 1889-1974). dos anjos, reconstruindo a própria identidade com suas memórias culturais. Ao perceber o funcionamento do Hospital Parafraseando Moreno, poder-se-ia aplicar a Bispo do psiquiátrico, ele se dispôs a modificar a condição de ser um incapaz, um insano, usando da sua força para resistir à medicina Rosário o seguinte epíteto: psiquiátrica e vivendo por 80 anos. A cela, temida por muitos, foi para ele um refúgio saudável, “Aqui jaz aquele que abriu as portas da psiquiatria à arte e à psicologia” onde pode viver ouvindo as vozes em silêncio, longe da privação de iniciativa pessoal e de ser considerado uma “peça de Um curso tem demarcação cronológica e também engrenagem” (Gonçalves, 1988, p. 46). Com bravura, Bispo do necessidade formal de um registro. Com essa intenção, apresento Rosário resgatou sua memória e sua liberdade, reafirmando sua algumas considerações para finalizar esta etapa, com essência, sua espontaneidade, transformando sua força interna consciência de que este caso é apenas um entre tantos outros em 804 obras. A renovação requer momentos que se manifestam no aqui e agora, como se fossem lampejos que onde a arte foi testemunha da saúde psíquica. A finalização da escrita de um trabalho nem sempre é uma acontecem em cada momento sublime da criação. Neles está tarefa fácil. No entanto, para mim está sendo desafiador e tenho a estampada sua história viva, inscrita através da poesia do fio, que intenção de explicar e ser mais uma autora a tornar pública a nos convoca para uma vivência sensível e harmônica. A cada encontro que acontecia e a cada ponto que fazia, experiência do caso Bispo do Rosário. Bispo do Rosário se atualizava na condição de um sujeito que Retomo a unidade de sentido Vida e obra de Arthur Bispo do Rosário, onde é mostrado como um sujeito foi vítima de uma reconhecia sua existência. Ele sabia muito bem dialogar com o sociedade normatizadora e negligente, que o considerou como silêncio e conviver com os objetos da sociedade do descarte. louco por apresentar delírio místico, privando-o de sua liberdade. Desta forma, Bispo do Rosário foi capaz de dialogar com a A fé que tinha na Virgem Maria o amparou, acrescida da realidade do mundo contemporâneo de forma genial, nos dando confiança recebida de um guarda que permitiu que pistas de que a sociedade perde humanidade quando foca na permanecesse com sua agulha, podendo, assim, transformar em produção, no preconceito e na rotulação. Seu exemplo contém obra de arte sua experiência e vivência existencial. Gonçalves inúmeros temas que podem trazer reflexões sobre o caminho (1988) traz as palavras de Moreno: “Desde a Primeira Guerra, os sem volta que se transformou em um lugar de esperança, homens diante da dor buscavam na fé e na crença religiosa uma amando o Deus-EU da criação. Este caso nos aponta que os psicodiagnósticos não podem relação harmoniosa com Deus, e na espontaneidade e na criatividade elementos de superação da doença” ser fechados de modo a engessar o sujeito de qualquer (GONÇALVES,1988, p. 36). Desde seu nascimento, Bispo do capacidade espontânea, impedindo-o de se inserir no meio Rosário foi nutrido pela “placenta social” com informações social. Francastel diz:“A ciência da arte e a própria arte têm muito psicológicas significativas para a vida, sendo constituídas por a ganhar com uma apreciação melhor de seu papel psicológico e técnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do fatores materiais, sociais e históricos. E Moreno assim narra: passado e a do presente se conhecermos melhor a significação humana.”(FRANCASTEL, 1973, p. 48). “Benditos sejam aqueles que trabalham em silêncio Como sugestão, considero que o caso Bispo do Rosário no anonimato das almas viventes, Considerações Finais 37 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39 deixou como lição aos Cursos de Psicologia a ideia de que as expressões de arte podem e devem circular em tais cursos, pois se trata de um dispositivo de produção de saúde que pode auxiliar em muitos espaços onde só a palavra não dá conta de expressar o que se passa no mundo interno subjetivo. Não quero jamais deixar de ser pesquisadora, porque assim posso aprender e compartilhar conhecimentos e desta forma sou feliz. Portanto, resta o desejo de que este trabalho possa contribuir para que outras pesquisas sobre o assunto possam acontecer. Finalizo esta etapa de pesquisa com a elaboração do artigo do Curso de Psicologia, e, por fazerem sentido para mim tanto a arte como a Psicologia, vale afirmar:“Todos os homens nasceram para criar (...). Todos os criadores estão a sós até que o seu amor pela criação forme um mundo ao seu redor (...). Somente um ser criativo pode ser verdadeiro. Somente um ser criativo pode existir (...)”(MORENO, 1992, pp. 107 e 113). 1973. GONÇALVES, C.S.; ALMEIDA, W.C.; WOLFF, J.R. Lições de Psicodrama: Introdução ao Pensamento de J. L. Moreno. 4. ed. São Paulo: Àgora, 1988. HIDALGO, L. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. 2. ed (rev. e ampliada). Rio de Janeiro: Rocco, 2011. MERLEAU-PONTY, M. La structure du comportement. Paris: PUF, 1942. MONTERO. T. Correspondências – Clarice Lispector. Rocco, 2002. MORENO, J. L. Psicodrama. tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, 1975. Referências: _________, As palavras do Pai. Traduzido por Dr. José Carlos Landini & José Carlos Vitor Gomes. 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Programa“Inclusão”, TV Senado. 39 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL A História e a construção do conceito de representação social The history and the construction of social representations concept 2 Jacir Alfonso Zanatta a *, Márcio Luis Costa b * Resumo: O presente artigo busca mostrar o processo de transformação da Psicologia, passando pela Psicologia Social até chegar à Teoria das Representações Sociais. Pretende-se mostrar que as Representações Sociais formam, hoje, um conceito fecundo que atualmente possui forte influência em várias áreas do conhecimento. Busca-se ainda dialogar com os precursores da teoria para mostrar como conseguiram quebrar a ortodoxia da própria ciência para avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso comum como produção do conhecimento, algo até então deixado de lado pelo modelo positivista de pesquisa. Assim, as Representações Sociais rompem com a ahistoricidade que predominava nas pesquisas, buscando dar ênfase à dimensão de construção humana histórica e cultural. Ressalta-se o fato de que a teoria se baseia em um esquema radicalmente diferente daquele admitido nas teorias clássicas do conhecimento. Desta forma, a realidade estudada pela Teoria das Representações Sociais é dinâmica e não estática. Esta dinamicidade permite que elas sejam reelaboradas e modificadas constantemente. São estas características que permitem a elasticidade à teoria e fazem com que seja ampliada e enriquecida com novos elementos todos os dias. O artigo mostra ainda que toda representação não é material, mas psíquica, e está situada no campo das ideias. Palavras-chave: Psicologia – Psicologia Social – Representações Sociais. Abstract: This paper seeks to demonstrate the transformation process of Psychology, going through Social Psychology and reaching the Theory of Social Representations. The aim is also to show that today the Social Representations form a fruitful concept that has a strong influence in several areas of knowledge. It also seeks to dialogue with the precursors of the theory in order to show how they broke the orthodoxy of Science itself, moving into new fields of knowledge and recognizing common sense as knowledge production – something that until now had been put aside by the positivist model of research. Thus, Social Representations disconnect with history which once prevailed in researches, seeking to emphasize the dimension of cultural and historical human construction. It is underscored that the theory is based on a scheme radically different from the one accepted in the classical theories of knowledge. Therefore, the reality studied by the Representations is dynamic and not static. This dynamic allows them to be constantly reworked and modified. These are the characteristics that provide elasticity to the theory, causing them to be expanded and enriched with new elements every day. The paper also shows that every representation is not material, but psychic instead, and it is in the field of ideas. Keywords: Psychology – Social Psychology – Social Representations. Doutorando em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e mestrando em Psicologia da Saúde pela UCDB. * E-mail: [email protected] b Doutor e mestre em Filosofia pela Universidad Nacional Autonoma de México. Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior e formado em Filosofia pela Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT). * E-mail: [email protected] a Sistema de Avaliação: Double Blind Review 40 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 Para pensar a história e a construção do conceito de Representações Sociais se faz necessário, em primeiro lugar, voltar um pouco mais no tempo. Só com esta volta ao passado é possível entender o surgimento da Psicologia e, posteriormente, da Psicologia Social, vertente que contribuirá diretamente para o surgimento da Teoria das Representações Sociais. Na produção deste artigo, optou-se em voltar um pouco mais na história para compreender os acontecimentos que deram origem à Teoria das Representações Sociais e que atualmente servem como base para várias pesquisas desenvolvidas no campo social. No entanto, mesmo fazendo um retorno ao passado, é importante fazer um recorte histórico. Sem esta delimitação, corre-se o risco de se voltar muito na história e acabar na Grécia antiga, origem da Filosofia e, por que não dizer, da Psicologia. Observe que um rápido descuido é suficiente para defender que Aristóteles (2006), com seu livro “De Anima”, é o criador – ou, como alguns preferem – o pai da Psicologia. Este artigo não tem a intenção de fazer um resgate de mais de 2.500 anos. Até porque, de acordo com Schultz & Schultz (2002), a Psicologia só vai se firmar como ciência e se desvincular da Filosofia em 1879, com a fundação do laboratório para pesquisas psicológicas em Leipzing, na Alemanha, por Wilhelm Wundt. Percebe-se com isso que a Psicologia deixa de ser o estudo da vida mental e da alma, conforme defendia Aristóteles, e passa a ser o estudo da consciência ou dos fatos conscientes. Ao se fazer este recorte histórico, não se pretende negar a influência que a Psicologia sofreu da Filosofia ao longo do tempo. Mas colocar Wundt como fundador da Psicologia é aceitar o fato de que esta nova área do conhecimento nasceu com caráter experimental, com forte influência das ciências naturais, de cunho positivista. Rose (2008) ressalta que a psicologia como uma ciência moderna não foi formada nos corredores tranquilos da academia, nem no empirismo dos aventais brancos do laboratório e do experimento. Na verdade, a psicologia começou a se formar em todos aqueles locais práticos que tomaram forma durante o século XIX, no qual problemas de conduta coletiva e individual humanas eram de responsabilidade das autoridades que procuravam controlálas – nas fábricas, na prisão, no exército, na sala de aula, no tribunal... (Rose,2008, p.156) Percebe-se, assim, que a Psicologia inicialmente tomou forma não como uma disciplina ou uma área profissional, mas como uma cadeia de pretensões de conhecimento sobre pessoas, individual e coletivamente, que permitiria que elas fossem melhor administradas. Rose (2008) mostra ainda que não é possível esquecer que a Psicologia nasceu, como uma disciplina, dentro de uma variedade de projetos políticos para o controle de indivíduos. Desta forma, é importante observar o alerta que Contini (2010, p. 06) faz a quem pretende estudar Psicologia: “A atuação profissional baseada no modelo médico, com ênfase adaptativa e remediativa, teve sucesso durante décadas por estar coerente com a ideologia liberal, subjacente ao sistema capitalista, cujo núcleo é o conceito de individualismo”. Observe que, até agora, se buscou evitar fazer um juízo de valor ou mesmo uma crítica sobre as conseqüências da ligação da nova ciência – a Psicologia – com sua origem positivista. Esta rápida volta ao passado da Psicologia, mesmo sem um olhar mais crítico, serve, de acordo com Farr (2008), para compreender melhor o presente. E esta pequena reconstrução histórica é salutar para mostrar, de forma rápida e sucinta, os caminhos percorridos pela Psicologia como ciência experimental, até chegar à Psicologia Social de base antipositivista. Sem este entendimento histórico, não é possível entender as diferenças existentes dentro do próprio bojo da Psicologia Social. Pode-se observar que, no início de sua existência, a Psicologia – e posteriormente a Psicologia Social Psicológica – surge atrelada ao método positivista de ciência que, de acordo com Japiassu (1978, p. 45), não busca “mais contemplar a verdade, mas constituí-la pela força da demonstração. Conhecer significa medir, experimentar, provar e comprovar”. Esta raiz epistemológica exposta por Japiassu não se rompe facilmente, uma vez que, até os dias de hoje, as duas vertentes da Psicologia Social – a psicológica e a sociológica – operam com métodos diferentes, desde vertentes mais positivistas eté abordagens mais críticas edescontrutivas. Sobre a divergência entre as duas concepções de Psicologia Social, Lane (1989) mostra que é apenas no século XX que a Psicologia Social surge com a incumbência de, pelo menos, tentar romper com o positivismo e com as ciências naturais. Antes disso, ela continuava atrelada ao modelo vigente de se produzir ciência, ou seja, o positivista. Percebe-se, então, que a Psicologia Social só se desenvolve como estudo científico, sistemático, após a Primeira Guerra Mundial, tentando compreender as crises que abalavam o mundo naquele momento. Assim, é possível afirmar que a Psicologia veio se transformando ao longo dos anos por circular para além de seu próprio contexto de produção. A ideia desta breve síntese foi mostrar, a exemplo de Diehl, Maraschin & Tittoni (2006, p. 413), que, mesmo operando com outro tipo de representação, “o percurso se faz em uma trajetória que comporta deslocamentos e paradas. As paradas envolvem lugares e posições, e os deslocamentos, modos e obstáculos à passagem. Pensar o lugar é também pensar de onde partimos”. Desta forma, ao elaborar este artigo, buscou-se compreender o surgimento da Psicologia e seu processo transformativo até a Psicologia Social. Só assim é possível compreender a Teoria das Representações Sociais, oriunda da Psicologia Social sociológica e que hoje possui forte 41 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 influência em várias áreas do conhecimento. Um conceito fecundo Depois de um rápido apanhado sobre a origem e a transformação da Psicologia Social, se faz necessário avançar um pouco mais para mostrar como a Psicologia Social contribuiu para o nascimento da Teoria das Representações Sociais (TRS). Este artigo dialoga com os precursores desta teoria, que em 2011 completou 50 anos de história e, conforme Jodelet (2011) completa 30 anos de Brasil em 2012. O objetivo deste é mostrar que as Teorias das Representações Sociais, ao menos na sua versão moscoviciana, quebram a ortodoxia da própria ciência para avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso comum como produção do conhecimento. Algo que, até então, era deixado de lado pelo modelo positivista de pesquisa. Antes de iniciar esta trajetória, é importante prestar um pouco de atenção ao alerta feito por Lahlou (2011) no sentido de que as Representações Sociais são um campo de estudo e não uma teoria, o que explica sua longevidade. Lahlou (2011, p. 66) define a Representação Social como um “meio pelo qual os seres humanos representam objetos de seu mundo”. Assim, para prosseguir nesta discussão, é importante voltar um pouco mais na história. Só esta volta ao passado permite perceber que o conceito de Representações Sociais de Moscovici teve suas origens no conceito de representações coletivas de Durkheim. Por este motivo, os autores selecionados para o desenvolvimento deste tópico, de uma forma ou de outra, concordam que a concepção de Representações Sociais desenvolvida por Moscovici tem proximidade com o conceito de representações coletivas desenvolvido por Durkheim. Duveen (2003), por sua vez, explica que, enquanto Durkheim vê as representações coletivas como formas estáveis de compreensão coletiva, Moscovici esteve mais interessado em explorar a variação e a diversidade das ideias coletivas nas sociedades modernas. De acordo com Duveen (2003), na teoria da Representação Social, o conceito de representação possui um sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao processo pelo qual as representações são elaboradas como às estruturas de conhecimento já estabelecidas. Neste sentido, é importante levar em consideração que, para Moscovici (2003), as representações possuem precisamente duas funções: a) elas convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram; b) são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós como uma força irresistível. No que se refere à convencionalização, Moscovici (2003) acredita que as pessoas pensam por meio da linguagem. É ela que ajuda a organizar os pensamentos, de acordo com um sistema que está condicionado tanto pelas representações que os seres humanos possuem como por sua cultura. Já sobre as representações prescritivas, Moscovici (2003) argumenta que elas são partilhadas pela coletividade, penetram e influenciam a mente de cada um, mesmo não sendo pensadas por eles, mas são repensadas, recitadas e representadas constantemente por quem as usa. Isso mostra que Jovchelovitch (2008) estava certa ao defender que as representações não são estáticas, mas fazem parte de um sistema construído. Com isso, a autora cria um conceito de representação que apresenta uma forma triangular, cuja arquitetura básica é construída pelas inter-relações sujeitooutro-objeto. Por isso, é importante levar em consideração o vasto campo das relações humanas e as teias de complexidade que elas produzem. Percebe-se, assim, que para Jovchelovitch (2008, p. 33) “a realidade do mundo humano é, em sua totalidade, feita de representações e não faz sentido falar de realidade em nosso mundo humano sem o trabalho da representação”. Com isso, a autora está defendendo a ideia de que as representações não são um espelho do mundo e, menos ainda, construções mentais de sujeitos individuais. Para Jovchelovitch (2008, p. 35), as representações “implicam um trabalho simbólico que emerge das inter-relações Eu, Outro e Objeto-Mundo, e, como tal, têm o poder de significar, de construir sentido, de criar realidade”. Notase, assim, que o status da representação é polivalente. As representações são construções ontológicas, epistemológicas, psicológicas, sociais, culturais e históricas. Sendo assim, elas constroem o real, mas nunca capturam plenamente a totalidade da realidade, mesmo que desejem fazê-lo. Moscovici (2011) defende que a teoria das Representações Sociais deve conduzir o pesquisador a um modo de olhar a Psicologia Social que exige a manutenção de um laço estreito entre as ciências psicológicas e as ciências sociais. Nesta mesma concepção, Trindade, Santos & Almeida (2011) buscam mostrar que uma boa teoria precisa revelar a dinâmica do real e, por isso, ela mesma deve estar sempre em construção. Desta forma, as autoras defendem que a teoria das Representações Sociais pode ser vista como um conceito guarda-chuva, capaz de englobar aqueles estudados por meio de modelos pautados nas microteorias, como as que caracterizam a ancoragem, objetivação, redes e comunicação. Pelo exposto acima, é possível observar que, por meio da Teoria das Representações Sociais, Moscovici (2011) busca quebrar a dicotomia criada entre a Psicologia Social Psicológica e a Psicologia Social Sociológica. Para o autor, as Representações Sociais expressam o conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida diária no curso das comunicações interindividuais. Para Moscovici (2011), os indivíduos não são apenas processadores de informações, nem meros portadores de ideologias ou crenças coletivas, mas pensadores ativos, que produzem e comunicam representações e soluções específicas para as questões que se colocam a si mesmos. 42 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 Buscando aprofundar um pouco mais a reflexão em questão, Jovchelovitch (2008, p. 86) argumenta que “a teoria das Representações Sociais deve ser entendida não apenas como uma psicologia social dos saberes, mas também como uma teoria sobre como novos saberes são produzidos e acomodados no tecido social”. Percebe-se, assim, que todo o saber depende de um contexto e está enraizado em um modo de vida. No entanto, é importante esclarecer que, apesar da proximidade, não são a mesma coisa. Buscando fazer uma análise do tecido social, Rêses (2003) mostra que a teoria das Representações Sociais se dirige à formação das explicações produzidas pelo senso comum em sociedades complexas, e não exatamente às formas de saber mais elaboradas ou estruturadas. Para Rêses (2003, p. 194), “as representações constituem modos de vida e formas de comunicação entre as pessoas; por isso, elas são Representações Sociais”. As Representações Sociais, portanto, orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais, assim como intervêm na difusão e na assimilação de conhecimentos, no desenvolvimento individual e coletivo, na definição das identidades pessoais e sociais, na expressão dos grupos e nas transformações sociais. Almeida & Cunha (2003) também compactuam desta postura e mostram que a Teoria das Representações Sociais desenvolvida no âmbito da Psicologia Social tem oferecido um importante aporte teórico aos pesquisadores que buscam compreender os significados e os processos neles imbricados, criados pelos seres humanos para explicar o mundo e sua inserção dentro dele. Assim, é importante ressaltar que, para Moscovici (2003, p. 48), o que realmente interessa são as representações da sociedade atual. as Representações Sociais que me interessam não são nem as das sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa sociedade atual, de nosso solo político, científico, humano, que nem sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente para se tornarem tradições imutáveis (Moscovici, 2003, P. 48). Observe que, para Moscovici (2003), a gênese das representações expressa a natureza do universo consensual, produto do qual elas são e ao qual elas pertencem exclusivamente. Almeida & Cunha (2003, p. 147) compactuam desta postura e buscam mostrar que“intimamente articuladas às teorias científicas, as Representações Sociais ou as teorias populares submetem os conhecimentos elaborados pelas ciências a um processo de ressignificação, visto que são negociados e recriados no bojo das teorias populares”. Já Cardoso & Gomes (2000) defendem que a questão das Representações Sociais é bastante controversa, possuindo, inclusive, um uso bastante diversificado. Herzlich (1991), no entanto, alerta para o fato de que as Representações Sociais não são o somatório das representações individuais; elas se constituem numa realidade que se impõe ao indivíduo. Segundo Herzlich (1991), é importante observar que a Representação Social não é mero reflexo do real, mas sua construção. Percebe-se, assim, que se faz necessário ter um cuidado redobrado para não se incorrer no erro de defender que, a partir de agora, tudo é Representação Social. Um dos cuidados necessários é não confundir o social com a soma das partes individuais existentes na sociedade. Social, no fundo, é uma relação que inclui o individual e o total, ou seja, a sociedade é construída por pedaços de saberes que formam o tecido social do qual todos fazem parte. Desta forma, fica claro que toda representação não é material, mas psíquica: está no campo das ideias. É preciso perceber, no estudo das Representações Sociais, que ela é prática e, como tal, se desvela na observação do pesquisador. Lembre-se que as Representações Sociais se dão nas relações, entendidas como um fenômeno comunicativo e dialógico. Jovchelovitch (2011b) acredita que a conexão entre a teoria das Representações Sociais e a vida cotidiana ocupa um lugar fundante na arquitetura conceitual desenvolvida por Moscovici, e se apresenta como um problema central das ciências sociais e, em particular, da Psicologia Social. Jovchelovitch (2011b) argumenta ainda que a Representação Social é um saber que não pode ser considerado idêntico ao da ciência, mas que nem por isso deixa de ser um saber. Após estas considerações, Jovchelovitch (2011b, p. 169) define Representação Social como sendo um “ponto móvel dentro de um sistema de transformação que compreende um jogo representacional derivado de relações intergrupais e interinstitucionais na esfera pública, bem como dos processos de reprodução e renovação da cultura”. Por isso, toda representação precisa ter uma dimensão que dá concretude ao social, ao mesmo tempo em que institui a matriz social, cultural e histórica do sujeito psicológico. Dentro desta reflexão, é importante observar que Moscovici (2011) alerta para o fato de que as Representações Sociais são uma teoria com certo grau de elasticidade e complexidade. Estes dois pontos são elementos essenciais para que ela possa perdurar. Afinal, com a Teoria das Representações Sociais, ele rompe com a ahistoricidade que predominava nas pesquisas, buscando dar ênfase à dimensão de construção humana histórica e cultural. Guareschi & Jovchelovitch (2011) explicam que as Representações Sociais enquanto teoria são altamente questionadoras e não se acomodam com o já pensado. Por isso, elas buscam constantemente o novo, onde o peso hegemônico do pensamento tradicional impõe suas contradições. Esta é a capacidade e a elasticidade que a teoria apresenta. Isso permite 43 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 que ela se renove constantemente e tenha condições de se adaptar a situações adversas. Banchs (2011) também alerta para o fato de que a representação não deve ser confundida com a imagem, porque a imagem é a impressão do objeto no sujeito, enquanto que a representação é uma reconstrução. Nesta perspectiva, Banchs (2011, p. 240) defende que“negar às Representações Sociais a dupla face processual dinâmica e portadora da marca cultural transgeracional é negá-la como teoria. Ou seja, as representações são ao mesmo tempo forma e significado, estruturas e processos. São, simultaneamente, icônicas e simbólicas”. Neste mesmo sentido, Alaya (2011) avança um pouco mais na discussão ao mostrar que a Teoria das Representações Sociais se baseia em um esquema radicalmente diferente daquele admitido nas teorias clássicas do conhecimento. Para entender o processo do conhecimento do seu ponto de vista, convém ir além da concepção binária da epistemologia clássica formulada pelo esquema sujeito-objeto e avançar no sentido de reconhecer o eu-outro-objeto-mundo. No entanto, é importante prestar atenção a outras questões. De acordo com Jesuíno (2011), os conceitos de representação remetem necessariamente para a linguagem e para a multiplicidade das suas combinações. Neste sentido, Villas-Boas (2010, p. 379) defende que “as Representações Sociais são resultado, de um lado, da reapropriação de conteúdos advindos de períodos cronológicos distintos e, de outro, daqueles gerados por novos contextos”. De acordo com Villas-Boas (2010), é na experiência que se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Desta forma, é possível perceber que uma das funções das Representações Sociais é, essencialmente, a de orientar as práticas e o discurso. Villas-Boas (2010) argumenta ainda que o surgimento de uma Representação Social está atrelado à existência de três fatores relacionados ao posicionamento de um grupo perante um objeto socialmente significativo para ele, quais sejam: dispersão da informação, focalização e pressão à inferência. Nesta mesma linha de pensamento, Guareschi & Jovchelovitch (2011) mostram que a Teoria das Representações Sociais tem a função de questionar ao invés de adaptar-se. Ela deve constantemente buscar o novo, longe do peso hegemônico do que é tradicional. A análise proposta por Guareschi & Jovchelovitch (2011) procura dar conta das mediações existentes entre a vida social e a vida individual. Por este motivo, as Representações Sociais são estruturas simbólicas que se originam tanto na capacidade criativa do psiquismo humano como nas fronteiras que a vida social impõe. Percebe-se, assim, que, para Jovchelovitch (2011a), as pessoas constroem na sua relação com o mundo um novo mundo de significados. Desta forma, não se pode negar que as Representações Sociais são processos que estão embebidos na comunicação e nas práticas sociais. Observa-se, assim, que é por meio das mediações sociais em suas várias formas que se acabam por gerar as Representações Sociais. Comunicação é mediação entre um mundo de perspectivas diferentes, trabalho é mediação entre necessidades humanas e o material bruto da natureza, ritos, mitos e símbolos são mediações entre a alteridade de um mundo frequentemente misterioso e o mundo da intersubjetividade humana: todos revelam numa ou noutra medida a procura de sentido e significado que marca a existência humana no mundo (Jovchelovitch, 2011a, P. 68). Fica claro que, para Jovchelovitch (2011a), as Representações Sociais são estratégias desenvolvidas por atores sociais para enfrentar as diversidades de um mundo que, embora pertença a todos, transcende a cada um individualmente. Assim, as Representações Sociais surgem como um processo desafiador capaz de reproduzir, repetir e superar o modelo de vida social de uma comunidade. Dentro deste mesmo contexto, é importante observar que, para Palmonari & Cerrato (2011), as Representações Sociais sempre envolvem tanto o conhecimento como as crenças, e é pouco provável encontrar um sistema de pensamento que possa se basear puramente em conhecimentos ou simplesmente em crenças porque, nesse caso, estaríamos falando de ciência ou de religião, respectivamente. Palmonari & Cerrato (2011) mostram ainda que a Teoria das Representações Sociais foi formulada como alternativa à maneira dominante de conceber a Psicologia Social e o comportamento humano. Nesta mesma linha, Guareschi (2011) mostra que as representações que as pessoas possuem da sociedade em que vivem não são independentes: têm a ver com a concepção de ser humano e de sociedade. Guareschi (2011) defende ainda que, em seus escritos, Moscovici buscou mostrar que a visão de realidade como pressuposta pela teoria positivista e funcionalista era parcial e não dava conta de explicar outras dimensões da realidade, principalmente sua dimensão histórica e crítica. Este é o motivo pelo qua, as Representações Sociais sempre serão ideológicas. Spink (1993), por sua vez, acredita que, por serem ideológicas, elas são definidas como formas de conhecimento prático. Por isso, as Representações Sociais inserem-se entre as correntes que estudam o conhecimento do senso comum. Para Spink (1993, p. 300) as Representações Sociais são, consequentemente, formas de conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos — imagens, conceitos, categorias, teorias —, mas que não se reduzem jamais aos componentes cognitivos. 44 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de produção (Spink, 1993, P.300) Desta forma, Spink (1993) mostra que toda representação é uma construção do sujeito enquanto sujeito social. Por isso, as representações são sempre construções contextualizadas, resultados das condições em que surgem e circulam. Sendo assim, elas são interpretações da realidade que possuem estruturas dinâmicas. Trindade et al (2011) avança nesta discussão ao mostrar que uma boa teoria precisa revelar a dinâmica do real e, por isso, ela mesma deve estar sempre em construção. Trindade et al (2011, p. 173) explica ainda que “toda Representação Social possui uma dimensão que dá concretude ao social, ao mesmo tempo em que institui a matriz social, cultural e histórica do sujeito psicológico”. Contudo, é com Alaya (2011) que se chega ao X da questão proposta por Moscovici e que dá sustentabilidade às Representações Sociais. De acordo com Alaya (2011), a teoria das Representações Sociais baseia-se em um esquema radicalmente diferente daquele admitido nas teorias clássicas do conhecimento. a representação não é um simples reflexo ou uma reprodução da realidade, mas, uma reconstrução por distorções, exclusões e adições. As representações não fazem apenas representar o real, eles lhe dão forma, até certo ponto. A informação recebida é transformada. Portanto, há um vaivém de informações, uma interação entre a representação e a realidade (Alaya, 2011, p. 270). Complementando a concepção defendida acima, Guareschi (2011, p. 162) alerta para o fato de que “o conceito de Representação Social é dinâmico e explicativo, tanto da realidade social, como física e cultural. Possui uma dimensão histórica e transformadora. Junta aspectos culturais, cognitivos e valorativos, isto é, ideológicos”. Pelo exposto, é possível perceber que as Representações Sociais estão em constante construção. São realidades dinâmicas e não estáticas. Esta dinamicidade permite que elas sejam reelaboradas e modificadas constantemente. São estas características que permitem a elasticidade à teoria e fazem com que seja ampliada e enriquecida com novos elementos todos os dias. Percebe-se, assim, que as Representações Sociais são capazes de estabelecer conexões entre as abstrações do saber e das crenças com a concretude da vida do indivíduo em seus processos de troca com os outros. Chaves & Silva (2011) fazem um alerta importante aos pesquisadores que pretendem trabalhar com a teoria das Representações Sociais. Explicam que, “apesar de descrever uma forma de conhecimento, as Representações Sociais não constituem uma teoria que se aplica a todas as formas de conhecimento que são produzidas e mobilizadas em uma dada sociedade” (p.313). Nota-se, então, que, enquanto teoria, as Representações Sociais oferecem um ótimo suporte às investigações, desde que se consiga partir do conhecimento do sujeito ou grupo estudado, mostrando como esse conhecimento orienta as suas práticas cotidianas. Castro (2011), por sua vez, alerta todos aqueles que pretendem utilizar as Representações Sociais como ferramenta para a pesquisa. Segundo ele, ...as Representações Sociais são tanto conservadoras como inovadoras, estruturadas com uma lógica singular que permite a um determinado grupo social compreender o mundo que o rodeia e lidar com os problemas que nele identifica. É, pois, um saber que organiza um modo de vida e que, por isso mesmo, adquire dimensão de realidade (Castro, 2011, P.07). Percebe-se, assim, que o conhecimento no contexto das representações se transforma diariamente. Ao estudar as Representações Sociais, é preciso levar em consideração a visão que os indivíduos ou os grupos possuem e empregam na forma de agir e se posicionar perante o mundo. Farr (2011) vai um pouco mais além ao defender a ideia de que só vale à pena estudar uma Representação Social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo é feito. Desta forma, o indivíduo estudado pela teoria das Representações Sociais é, ao mesmo tempo, um agente de mudança na sociedade e um produto dessa mesma sociedade. De acordo com Chaves & Silva (2011, p. 299), “a Teoria das Representações Sociais é uma abordagem psicossociológica sobre o processo de construção do pensamento social”. Assim sendo, estudar as Representações Sociais é identificar a visão social, política, econômica e cultural que indivíduos ou grupos possuem e como empregam na forma de agir e se posicionar. É importante observar, pelo que foi exposto, que a influência do social não é percebida como um estímulo que atinge o indivíduo, mas um contexto de relações onde o pensamento é construído. Por isso, as Representações Sociais exercem papel de mediação entre o indivíduo e a sociedade. Percebe-se ainda que as Representações Sociais são abordadas, ao mesmo tempo, como o produto e o processo de uma atividade de apropriação do mundo social pelo pensamento e elaboração psicológica e social dessa realidade, podendo ser organizada a partir de conteúdos centrais e periféricos. Ainda que Marková (2006) tenha assinalado que as discussões mocovicianas sobre Representações Sociais tenham 45 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 paulatinamente transitado da noção de núcleo-central para a noção da noção de tema, nota-se que Chaves & Silva (2011, p. 307-308) mostram que “os elementos periféricos são, portanto, mais flexíveis que o núcleo central e permitem a integração de experiências e histórias individuais, admitindo a heterogeneidade do grupo e as contradições”. Desta forma, os elementos periféricos constituem o aspecto móvel e evolutivo da Representação Social. Segundo os autores, é na periferia das Representações Sociais que informações novas, assim como elementos de conflitos em relação aos fundamentos do núcleo central, podem ser integradas. Os pesquisadores acreditam que o núcleo central resiste à mudança, pois isto implicaria em uma transformação completa da representação. Moscovici (2003) propõe um conceito de representação social baseado no senso comum, no conhecimento e na comunicação. É importante observar que ele não se interessou apenas em compreender como o conhecimento é produzido, mas principalmente em analisar seu impacto nas práticas sociais. Ele se preocupou em compreender como os grupos, os atos humanos e as ideias constituem e transformam a sociedade. Desta forma, o tema da relação entre grupos, atos e ideias é recorrente nas representações sociais. Percebe-se que, para o autor, a produção de conhecimentos plurais constitui e reforça a identidade dos grupos, além de influenciar em suas práticas e na forma como reconstituem o próprio pensamento. Moscovici (2003, p.224) defende que “a noção de tema indica que a possibilidade efetiva de sentido vai sempre além daquilo que foi concretizado pelos indivíduos, ou realizado pelas instituições”. Nota-se que o autor volta seu interesse para o debate em torno da permanência de certos temas no cotidiano das relações sociais. Dentro dessa abordagem, os sistemas centrais e periféricos das representações podem parecer contraditórios, mas são, na verdade, complementares. Fica claro, então, que os elementos periféricos são sensíveis ao contexto imediato e têm um caráter evolutivo que permite a adaptação à realidade concreta e à diferença de conteúdo. Por serem mais concretos, os elementos periféricos respondem por três funções: concretização, regulação e defesa. Chaves & Silva (2011) argumentam ainda que as Representações Sociais permitem justificar comportamentos e tomadas de posição. Com isso, elas contribuem para preservar e justificar a diferenciação social, podendo, então, estereotipar as relações entre grupos, contribuir para a discriminação ou para a manutenção da distância social entre eles. Considerações finais Pelo exposto no presente texto, percebe-se que as Representações Sociais se constituem como um conceito fecundo, que possui influência de várias áreas do conhecimento, que vão desde a Sociologia, passando pela Filosofia e pela Antropologia, até chegar à Psicologia. Neste sentido, foi importante dialogar com os precursores da teoria para mostrar como conseguiram quebrar a ortodoxia da própria ciência e, com isso, avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso comum como produção do conhecimento. Percebe-se ainda que as Representações Sociais rompem com o modelo positivista e com a ahistoricidade que predominava nas pesquisas, buscando dar ênfase à dimensão de construção humana de forma histórica e cultural. Desta forma, é possível notar que a realidade estudada pela Teoria das Representações Sociais é dinâmica e não estática. É esta mesma dinamicidade da teoria que faz com que ela seja reelaborada e modificada constantemente. São estas características mostradas neste texto que permitem não só a elasticidade da teoria, como também o enriquecimento com novos elementos, que são agregados diariamente. Diante do que foi abordade até o presente momento, é possível perceber ainda que, segundo Jodelet (2009), as Representações Sociais são fenômenos complexos sempre ativados e em ação na vida social. Por isso, elas envolvem elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões e imagens, formando uma totalidade significante em relação à ação. Este mesmo entendimento é defendido por Guareschi & Jovchelovitch (2011) quando argumentam que a teoria das Representações Sociais traz em seu bojo várias dimensões, e que o cognitivo, afetivo e o social fazem parte do campo das representações. Aos poucos, é possível notar que a busca pela compreensão do caminho das Representações Sociais enquanto teoria permite que o pesquisador repense a própria prática sem, no entanto, perder o rigor teórico e a capacidade de interagir com a realidade social. Guareschi & Jovchelovitch (2011) buscam mostrar o tempo todo que as Representações Sociais são estruturas simbólicas que se originam da capacidade criativa do psiquismo humano. Percebe-se, desta forma, que a discussão dos processos emocionais e inconscientes está envolvida na formação da representação simbólica. Isso ajuda a compreender como o desenvolvimento do saber não está restrito à formação de estruturas cognitivas racionais, mas também é moldado pelos inúmeros sentimentos e fantasias que constituem a vida. Por isso, a análise da forma representacional mostra que o trabalho da representação envolve sujeitos em relação a outros sujeitos, e a ação comunicativa que circunscreve e configura suas relações na medida em que se engajam no processo de dar sentido a um objeto ou a um conjunto de objetos. Jovchelovitch (2011a) lembra que, no processo de construção das Representações Sociais, é preciso ficar atento à forma como os sujeitos constroem sua relação com o mundo. Jovchelovitch (2011a, p. 67) mostra que “os processos que engendram Representações Sociais estão embebidos na comunicação e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais, 46 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 40-49 padrões de trabalho e produção, arte, em suma, cultura”. É interessante observar que, de uma forma geral, direta ou indiretamente, todos os pesquisadores que trabalham com as Representações Sociais dão uma importância considerável para a comunicação. Percebe-se, ainda, que as Representações Sociais acabam se transformando em estratégias necessárias, desenvolvidas pelos atores sociais para enfrentar as adversidades do mundo contemporâneo que, embora pertença a todos, transcende a cada um isoladamente. Neste sentido, é importante lembrar as palavras de Minayo (2011, p.79) ao defender que “o mundo do dia a dia é entendido como um tecido de significados, instituídos pelas ações humanas e passível de ser captado e interpretado”. Fica claro que, para a autora, as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos, e servem de trama para as relações sociais em todos os domínios. Mas é Spink (2011) quem consegue mostrar que não se pode deixar escapar no estudo das Representações Sociais o fato de que elas são teorias do senso comum, encarregadas de desvendar as associações de ideias subjacentes em determinada realidade. Observa-se, assim, que as Representações Sociais são estruturas cognitivo-afetivas e não podem ser reduzidas apenas ao seu conteúdo cognitivo. O afetivo também precisa estar presente. Pelo exposto até aqui, percebe-se que as Representações Sociais possuem um conceito multifacetado. É importante observar que, para Wagner (2011), as Representações Sociais geralmente podem ser explicadas através das condições socioestruturais e sociodinâmicas de um grupo. Já para Alexandre (2004), as Representações Sociais surgem como um campo multidimensional que permite ao pesquisador questionar a natureza do conhecimento e a relação indivíduosociedade. Alexandre (2004) defende que, no seu entender, o que motivou Moscovici a desenvolver o estudo das Representações Sociais dentro de uma metodologia científica foi, sem sombra de dúvidas, sua crítica aos pressupostos positivistas e funcionalistas das demais teorias. Por isso, Alexandre (2004) argumenta que as Representações Sociais estão situadas numa região fronteiriça entre a Sociologia e a Psicologia. Nesta mesma linha de pensamento, Chaves & Silva (2011, p. 310) esclarecem que “representar socialmente é um processo de selecionar visões de mundo significativas, seguidas de verificações contínuas”. Assim, por serem elaboradas na fronteira entre o psicológico e o social, as Representações Sociais, são capazes de estabelecer conexões entre as abstrações do saber e das crenças e a concretude da vida do indivíduo em seus processos de troca com os outros. Desta forma, fica claro que, para descrever as Representações Sociais em sua pluralidade, é preciso conhecer quem fala, qual a sua posição na estrutura social e quais os espaços sociais que produzem esse discurso. É importante entender as representações dentro do contexto em que elas estão sendo geridas. Neste sentido, é preciso valorizar Doise (2002) quando explica que é somente a partir das divergências que uma teoria se renova e se constrói constantemente. No que se refere à teoria das Representações Sociais, Doise (2002) explica que as diferenças existem porque alguns pesquisadores optam trabalhar com um construcionismo radical, enquanto outros preferem partir para uma prática da análise de discurso, rejeitando a ideia de quantificação ou das variáveis experimentais. Desta forma, Doise (2002, p. 30) define “as Representações Sociais como princípios organizadores das relações simbólicas entre indivíduos e grupos”. Ele lembra ainda que existem outros pesquisadores que aderem a uma corrente da cognição social que, ao contrário, privilegia a abordagem experimental. Percebe-se, assim, que falar de sujeito no campo de estudo das Representações Sociais é falar de pensamento, ou seja, referir-se a processos que implicam dimensões físicas e cognitivas do conhecimento e do saber que levem à abertura para o mundo e os outros. Nesta mesma linha de pensamento, Rêses (2003) argumenta que as Representações Sociais se desenvolvem com o propósito de transformar algo não familiar em familiar, por meio de dois processos: objetivação e ancoragem. Percebe-se, assim, que os dois termos são fundamentais na teoria das Representações Sociais. Desta forma, se faz necessário ressaltar que, quanto menos as pessoas pensam nas representações, quanto menos tomam consciência delas, maior se torna sua influência. Moscovici (2003) defende ainda que o estudo das Representações Sociais vê o ser humano enquanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o circundam, e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nascimento, de sua existência corporal e de suas humilhações. Percebe-se que estudar as Representações Sociais é estudar o ser humano em sua singularidade e coletividade. Por isso, pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e comunicam incessantemente suas próprias e específicas representações e soluções às questões que eles mesmos se colocam. Desta forma, as Representações Sociais devem ser vistas como uma maneira especifica de compreender e comunicar o que nós já sabemos. Por isso, de acordo com Camino & Torres (2011), as Representações Sociais são teorias ou sistemas de conhecimento que contribuem para a descoberta e organização da realidade. Referências: Alaya, D. B. (2011). Abordagens filosóficas e a teoria das Representações Sociais. 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(www.scielo.org.br – acessado no dia 09 de maio de 2011) 49 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Efeitos da transferência no atendimento a pacientes oncológicos Effects of transference in the treatment of oncology patients 2 Andrea Theise a *, Marianne Montenegro Stolzmann Mendes Ribeiro b * Resumo: Este artigo busca refletir sobre o efeito da relação transferencial que se estabelece com pacientes oncológicos, bem como as questões que surgem diante da vulnerabilidade em que tais sujeitos se encontram. Além de fragilidade orgânica e psíquica, os pacientes atendidos encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Assim sendo, nas primeiras sessões é feita uma escuta acolhedora a fim de dar suporte para que, no decorrer dos atendimentos, estes pacientes possam se confrontar com o adoecimento, bem como com seus conflitos psíquicos que podem estar relacionados com o câncer. Para isso, utiliza-se o entendimento psicanalítico, tendo como base a prática realizada junto à Liga Feminina de Combate ao Câncer da cidade de Novo Hamburgo. Ao fim dos atendimentos, o relato dos pacientes revela o quanto esta escuta contribui para a melhoria da qualidade de vida, sendo que muitos superam momentos de medo, luto e depressão. Alguns pacientes que antes se sentiam incapacitados em lidar com questões cotidianas, conseguiram, após certo número de sessões, retomar algumas tarefas diárias, construindo planos a médio prazo, resgatando o desejo em viver. Palavras-chave: transferência; psicanálise; paciente oncológico. Abstract: This article aims to reflect the transference relationship established with oncology patients, as well as the issues that arise from the susceptibility of such individuals. Those cancer patients are not only under physical and emotional distress, but also under social vulnerability. Thus, among the individual counseling session first offered to the patients, the psychologist provides them with a receptive listening so that they can get support in order to cope with the disease, as well as with the emotional conflicts, which might be related to cancer. Therefore, the psychoanalytic approach is the method used in the praxis offered at the Liga Feminina de Combate ao Câncer in Novo Hamburgo, Brazil. The feedback from the patients reveals how much those receptive listening sessions contribute to the patients' well-being. Many of those patients overcome moments of fear, grief and depression. Some patients who used to feel incapable of dealing with daily life activities could resume some of their daily tasks after undergoing a certain number of sessions. They are able to set short - term goals, recovering the desire to live. Keywords: transference; psychoanalysis; oncology patients. a Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo - RS - Brasil. * E-mail: [email protected] b Orientadora; Psicóloga; Psicanalista, membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica PUCRS; Coordenadora do Centro Integrado de psicologia da Universidade Feevale; Professora e Supervisora de Estágio no Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo - RS - Brasil. * E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 50 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 Este artigo é fruto de uma reflexão a respeito das particularidades percebidas nos atendimentos psicológicos realizados com pacientes oncológicos. Os atendimentos ocorreram nas dependências da Liga Feminina de Combate ao Câncer da cidade de Novo Hamburgo, semanalmente, com uma hora de duração. O encaminhamento destes pacientes ao atendimento é feito através de uma triagem. Desta forma, são selecionados aqueles com maior urgência de atendimento, avaliando se é o próprio paciente que irá se beneficiar desta escuta, ou ainda se será mais benéfico o atendimento ao cuidador, como um suporte a esta família, a qual, muitas vezes, tem suas relações adoecidas juntamente com o paciente oncológico. A família funciona como um sistema vivo, de maneira que tudo que acontece a um de seus membros repercute sobre os demais; assim, os seus efeitos não se restringem apenas a uma pessoa em particular, mas afetam normalmente todos os demais membros (SILVA, 2000, p. 13). Observou-se, então, que o paciente com câncer e sua família sempre chegam aos atendimentos com uma grande carga de angústia. Isto se dá devido ao entendimento inconsciente de que há uma condenação à morte intrinsecamente ligada ao momento de recebimento do diagnóstico. "O câncer pode roubar-lhe aquela alegre ignorância que uma vez o levou a acreditar que o amanhã se estenderia para sempre". (PICHETI; DUARTE, 2008, p. 59). Esta carga emocional tem uma demanda de urgência, que, depois de ser acolhida, abre espaço para que tenham voz sentimentos e vivências relacionados ao adoecimento. A necessidade de uma escuta acolhedora, bem como a fragilidade destes pacientes, será descrita a seguir, assim como o manejo realizado nas sessões. Apesar de inicialmente os atendimentos possuírem o enfoque da psicoterapia de apoio, percebe-se que, no decorrer do tratamento, diante da aderência e da transferência estabelecidas, há um aprofundamento desta escuta, embarcando no campo da psicoterapia de orientação analítica. Para ilustrar estas especificidades, será exposto, no decorrer do artigo, o recorte de um caso de uma paciente que será apresentada como G. Quem é o paciente oncológico Até o final do século XIX, o sujeito acometido pelo câncer não tinha reais possibilidades de sobreviver, restando apenas esperar pela morte. Em 1920, surgiu uma novidade – a radioterapia – trazendo a esperança do prolongamento de vida do paciente, mas esta era utilizada apenas nos casos em que a cirurgia não havia sido bem sucedida. A partir de 1940, começaram a surgir as drogas anticâncer e a quimioterapia, trazendo ainda mais possibilidades com a combinação dos diferentes tratamentos, mas nem sempre a cura. A palavra câncer era ameaçadora de tal forma que o médico só revelava o diagnóstico aos familiares, jamais ao paciente. Câncer estava associado à dor, à tumoração deformante, ao odor fétido e, inevitavelmente, à morte. Havia desconfiança de que fosse doença transmissível, por isso o paciente era previamente rejeitado (SILVA, 2000, p. 21). Desta forma, o paciente oncológico, ao receber o diagnóstico, recebe também esta carga histórica. Muitos avanços já foram conquistados, mas de acordo com o Instituto Nacional do Câncer – INCA (2011), o câncer ainda é o responsável por 13% (7 milhões de pessoas) de mortes no mundo, sendo registrados só no Brasil cerca de 141 mil óbitos por câncer. Estes números aumentam anualmente, e o paciente que chega para o atendimento traz consigo, inconscientemente, estes estigmas. O paciente oncológico percebe o diagnóstico como uma ameaça e, a partir deste momento, sente-se como quem caminha pelo corredor da morte, vendo o fim sem escapatória. Depara-se com sentimentos de desesperança, angústia e medo. Este vivencia a solidão de enfrentar a ameaça de morte, tão iminente neste momento inicial. A reação psicológica do paciente ao diagnóstico de câncer começa com a suspeita. Apesar do carcinoma ser mais tratável, atualmente ainda persiste o medo, que tem repercussão nas atitudes e crenças em relação ao câncer (SILVA, 2000, p.26). Este paciente passa por momentos física e psicologicamente dolorosos, tratamentos momentaneamente incapacitantes que, além da dor, geram um mal estar total. Assim, o sujeito que chega para atendimento psicológico vem muito fragilizado, na maioria dos casos com as defesas psíquicas muito baixas, necessitando uma escuta acolhedora. O psicólogo coloca-se junto ao seu paciente, dá voz a alguns sentimentos e traz esclarecimentos práticos sobre a doença, dando sentido à angústia que toma conta do ser. Esta é uma pessoa experiente que se torna ajuda estrangeira, apoio que vem apaziguar essa excitação sendo também o portador de uma outra excitação que cava, entre a dor e o indivíduo, uma distância na qual poderá nascer uma concepção interpretativa da experiência dolorosa: uma vida psíquica nasce da experiência sensível ao desprender-se dela por apoio sobre um outro humano. Pela experiência de satisfação torna-se possível dar o passo qualitativo que, 51 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 certamente sem poder ser eximido do sofrimento, permite não parar de gozar a vida cedo demais (VILLA, 2008, p. 334). (VENÂNCIO, 2004). Ansiedade e depressão são os mais frequentes, sendo o acompanhamento psíquico fundamental para um bom andamento do tratamento deste sujeito. Desta forma, este sujeito adoecido agora encontra uma escuta, um apoio, um lugar para enfrentar seus conflitos. Assim, surge um fortalecimento psíquico que é fundamental no enfrentamento do câncer. Vários estudos referentes ao câncer comprovam que pacientes que participam de atendimento psicológico possuem um melhor ajustamento à doença, redução dos distúrbios emocionais (como ansiedade e depressão), melhor adesão ao tratamento e diminuição dos sintomas adversos associados ao câncer e aos tratamentos, podendo até obter um aumento no tempo de sobrevida (VENÂNCIO, 2004, p. 55). A liga feminina de combate ao câncer Todos os atendimentos ocorreram nas dependências da Liga Feminina de Combate ao Câncer, da cidade de Novo Hamburgo (RS), que é uma entidade formada por mulheres voluntariamente associadas, com o propósito de arrecadar fundos em prol dos pacientes oncológicos. Sem fins lucrativos, conta com o apoio de empresas e da comunidade para oferecer ajuda a pessoas em situação de vulnerabilidade social e que foram acometidas por qualquer tipo de câncer. Atende tanto homens como mulheres, acima dos 18 anos de idade. Nas suas dependências, há uma sala destinada aos atendimentos psicológicos, garantindo o setting e valorizando a importância e a necessidade da psicologia junto ao adoecimento. A Liga atende a toda comunidade carente da cidade, fornecendo materiais como fraldas, perucas, lenços, curativos e cadeiras de rodas, entre outros, além dos atendimentos com nutricionista, assistente social, arteterapia, advogados e o atendimento psicológico. Os pacientes que demonstram necessidade de psicoterapia são entrevistados por uma psicóloga voluntária, que faz uma escuta prévia e os encaminha às demais psicólogas e estagiárias que trabalham voluntariamente na Liga. Para elucidar as especificidades destes atendimentos, será abordado o caso da paciente apresentada como G, a fim de preservar sua identidade. G estava com 34 anos no momento dos atendimentos e tinha descoberto o câncer de colo de útero havia dois anos. Já tinha passado por todas as oito sessões de quimioterapia recomendadas por seu médico, além de 25 sessões de radioterapia e sete de braquiterapia¹. Não precisou fazer cirurgia. Casada, tinha dois filhos com quinze e sete anos de idade. Chegou aos atendimentos bastante fragilizada, declarando não encontrar mais sentido em sua vida. Ao chegar para o atendimento psicológico, a paciente G trouxe uma grande carga de medo e ansiedade. Ao fim do tratamento médico, ela não fez os exames de controle, uma vez que, inconscientemente, preferiu permanecer acreditando na cura e no seu suposto poder de controlar a morte, ao invés de enfrentar novamente a possibilidade de um novo e doloroso tratamento, ou ainda uma cirurgia de histerectomia total². Afligida pelo medo da morte, G negava o adoecimento e se culpava por isso. O conflito da paciente ilustra o de muitos outros, pois culpa e negação estão associadas ao processo de adoecimento de grande parte dos pacientes oncológicos, já que, historicamente, o câncer estava associado à vida promíscua. Sempre foi algo a ser escondido por vir acompanhado de muitos estigmas, como a inevitabilidade da morte e as explicações equivocadas a respeito de sua etiologia que atribuíam sua origem à promiscuidade ou falta de higiene [...] (VEIT; CARVALHO, 2008, p. 16). Muitas pesquisas apontam que o paciente oncológico é frequentemente acometido por problemas psicológicos Ao negar o adoecimento, a paciente buscava mostrar-se saudável. Calava seu medo e sua dor, fazendo com que seu corpo manifestasse esta dor psíquica através do adoecimento. Neste caso, o câncer representou a dor de seu sofrimento desde criança. No decorrer dos atendimentos, G falou do abandono sofrido por seu pai aos dois anos de idade, seguido dez anos depois pelo abandono de sua mãe. Durante o tempo em que permaneceu com a mãe, G foi vítima de muito sofrimento, como a falta de alimentação, além de abusos, como ouvir que ela não deveria ter nascido, e ter de presenciar as relações sexuais de sua mãe com diversos parceiros. Ao ser abandonada uma segunda vez, aos 12 anos de idade e agora por sua mãe, G demonstra pela primeira vez o desejo de ¹ ² A psicologia entendendo o câncer Braquiterapia é uma forma interna de radioterapia, onde uma fonte de radiação é inserida no local do tumor. Este tem se mostrado um tratamento muito eficaz, já que a radiação atinge diretamente o tumor de forma precisa. Histerectomia total é uma cirurgia para a retirada do útero, ovários, colo do útero e trompas de falópio, quando há alguma condição patológica, sem a possibilidade de outro tipo de tratamento. 52 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 morrer, pensando em cometer suicídio, sem conseguir chegar ao ato. Passa a morar com uma tia, irmã de sua mãe, que a trata como empregada, sem garantir-lhe direitos básicos como a educação. Aos 14 anos de idade é expulsa desta casa e, então, acolhida por uma família que a conhecia e tinha uma filha da mesma idade. Neste momento, G relata que foi surpreendida pelo carinho e acolhimento, deparando-se pela primeira vez com uma família. Novamente, surge o desejo de morrer porque, inconscientemente, não se achava digna dos cuidados que passa a receber. Pode-se entender que o desejo de morte presente na paciente não é dela, mas sim o que foi almejado para sua vida. Corso (1996) refere a necessidade em fazer esta leitura sobre as consequências psíquicas sofridas pela criança em ocupar o lugar do desejo de Outro, uma vez que é neste desejo que ela se constitui psiquicamente. Ele pressupõe a existência de um estádio de amor objetal passivo, no qual o adulto toma a criança como objeto de satisfação e esta responde introjetando-o. A violação, o trauma, a violência que ele detecta advém da condição objetal que ele percebe no infantil, no assujeitamento ao que chamaríamos de fantasma da mãe (CORSO, 1996, p. 70). São estas as sequelas de constituição demonstradas por G: o desejo de morte recebido de sua mãe e que agora, na clínica, encontra um lugar onde pode ser visto e ressignificado. G foi assujeitada a este desejo, tendo sido abandonada em três momentos de sua vida. Em especial, o abandono sofrido por seus progenitores foi por ela, inconscientemente, compreendido como desejo de morte. O ser humano adoece sempre como uma totalidade e então o câncer tem um significado dentro da história pessoal do paciente e, muitas vezes, se constitui na única maneira suportável de viver por ser mais acessível às deficiências adaptativas do indivíduo (ANGERAMI-CAMON, 2004, p. 79). Assim, pode-se compreender o adoecimento de G através da psicossomática, em que seu adoecimento físico mostra-se como o reflexo de um adoecimento psíquico, emocional e afetivo. A doença está além da desordem física, denotando uma motivação profunda e secreta à paciente, que, ao longo do atendimento, pode se confrontar aos poucos com a origem de suas dores. Assim sendo, podemos supor que o surgimento do câncer no útero expressa a dor da rejeição materna, estando o tumor em um órgão diretamente ligado à geração, à maternidade. Acolhendo os ruídos do corpo, Freud (1914[1915], p. 99) ressalta a organização hipocondríaca como a retirada do 'interesse da libido do mundo externo e dos objetos de amor, concentrando-a no órgão que lhe prende atenção'. Histeria e hipocondria aproximaram a psicanálise do fenômeno psicossomático, defrontando-a com desafios que não eram facilmente convocados à palavra, à expressão da vida onírica e fantasmática, à elaboração dos trabalhos de luto; enfim, à montagem de uma história nos moldes de um romance familiar (TEIXEIRA, 2006, p.24). Ao defrontar-se com o câncer, G vê concretamente a sua condenação à morte. Revela que, ao descobrir a doença, pensa em um primeiro momento em não tratar e simplesmente esperar a morte. Mas encontra no apoio e carinho do esposo e filhos a motivação para o enfrentamento necessário. Desvela a ambiguidade de seu sentimento, a pulsão de vida e de morte, a vontade de deixar-se morrer e a luta para viver. Enfrenta o tratamento com muitas dores, buscando neste momento o cuidado de sua mãe e de seu pai, tentando resgatar relações arcaicas que foram abruptamente rompidas. G sempre manteve contato com sua mãe, mesmo estando distante e, neste momento de tamanho sofrimento, vai em busca de seu pai. Encontra-o morando em uma cidade vizinha e surpreende-se com o apoio e auxílio que passa a receber. A partir deste momento, constituiu-se uma relação fundamental para o tratamento de G. Durante as sessões, é possível analisar que, ao deparar-se com sua história passada, tão diretamente ligada ao desejo de morte, G. consegue se desvencilhar destes elos doentios que a mantinham presa. Passa a olhar para a vida que conseguiu construir de forma muito resiliente. Através deste resgate, rompe com estas relações adoecidas, percebendo de maneira única as diferenças entre a sua forma de maternar seus filhos daquela que observou em sua mãe. Uma vez inscritas no corpo as trocas afetivas e linguísticas vividas com o meio ambiente, torna-se possível ter acesso a elas novamente desde que se saiba interrogar o corpo e decifrar sua linguagem. Decifrar esta linguagem por meio dos disfarces, dos sintomas e dos sonhos devidos ao recalcamento permitiu a Freud compreender que o modo de expressão do psiquismo no corpo é essencialmente metafórico e analógico e que, para ser apreendido, ele exige, além de uma escuta atenta, um trabalho de interpretação. [...] Por querer conter o sofrimento psíquico, o corpo torna-se uma metáfora viva desse sofrimento (DUMAS, 2004, p. 12). Desta forma, entende-se que o corpo torna-se a fala do sofrimento. No caso de G, essa fala comunica de forma especial a 53 Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 dor do abandono desta mãe, e este mesmo adoecimento se faz na busca pelo resgate desta relação através dos cuidados que a paciente necessita. Posteriormente, será elucidado que, quando a paciente consegue distanciar-se da figura da mãe, é que ela pode ir novamente em busca do atendimento médico, tendo a vontade de fazer os exames necessários para avaliar suas condições físicas. Descobre que o câncer estava em remissão, não necessitando mais de nenhum tratamento adicional. Desvelando transferência com o paciente oncológico Foi com a descoberta da transferência que Freud inaugurou o método psicanalítico. Ele percebeu que os pacientes necessitavam de algo que iria além de simplesmente reviver seus traumas, para que, então, surgisse a manifestação daquilo que havia sido recalcado. Para que isso pudesse ocorrer, havia a necessidade de viabilizar a estes sujeitos meios os quais, mais do que reviver, possibilitariam ressignificar os traumas sofridos. O fenômeno da transferência é a chave da invenção desse novo método de tratamento. A Überträgung, termo alemão que além de transferência significa também transmissão, contágio, tradução, versão, e até audição, ganhará, enquanto conceito psicanalítico, o sentido de estabelecimento de um laço afetivo intenso, que se instaura de forma quase automática e independente da realidade, na relação com o médico, revelando o pivô em torno do qual gira a organização subjetiva do paciente (MAURANO, 2006, p. 16). Portanto, a transferência pode ser compreendida como o campo onde se estabelece o tratamento, sendo o lugar que este sujeito tem junto ao analista para confiar seus sentimentos, desejos, fantasias e vivências. Já o terapeuta utiliza-se da transferência para analisar as resistências e os demais sentimentos ali investidos pelo paciente, indicando, assim, qual o diagnóstico e as possibilidades de tratamento. Para Lacan, a transferência consiste na imissão que o paciente faz no terapeuta, que é compreendido como o grande Outro, sendo percebido como aquele que detém um saber que virá ao encontro do desejo posto nesta relação. O sujeito inconsciente crê que este Outro possui o conhecimento que ele precisa para libertar-se da experiência traumática. Na clínica com pacientes oncológicos, a transferência se constitui com o mesmo propósito, mas com algumas particularidades que serão abordadas a seguir, sendo ilustrada com o caso de G. Como já foi anteriormente mencionado, o sujeito acometido pelo câncer chega ao atendimento psicológico psíquica e fisicamente muito fragilizado. Além do adoecimento, há outras questões em volta deste sujeito que podem ser classificadas como graves, tais como a falta de dinheiro, de alimentação adequada, falta de moradia, fortes sintomas do tratamento, entre outros sofrimentos que estes pacientes trazem consigo. Desta forma, surge a necessidade de um trabalho investigativo que busque compreender este adoecimento em meio a tantas outras questões que o cercam. Para que isto seja possível, é fundamental o estabelecimento de uma relação de confiança entre o paciente oncológico e o psicólogo que o atende. Portanto, para que esta relação com o terapeuta ocorra, é feito um acolhimento da angústia com que este paciente chega na clínica. A ele é oferecido o apoio que necessita neste momento, buscando trazer a clareza que ele precisa para que consiga sair da posição de condenado à morte e coloque-se como um sujeito desejante pela vida. Abre-se a possibilidade deste perceber-se como sujeito único, ao mesmo tempo em que pode voltar a ver que todos temos nossas dores e males. De fato viver é estar sob estresse. Ser humano é experimentar humilhações, rejeições, mudanças, separações, desapontamentos, fracassos, triunfos, vitórias, gratificações, esperanças e êxitos. Os acontecimentos da vida repercutem na mente, propagam-se pelo corpo, e acabam atingindo a saúde do indivíduo como tal (SILVA, 2000, p. 16). Podemos afirmar, ainda, que ao chegar para o tratamento psicológico este sujeito torna-se a própria dor que necessita de amparo. Isto posto, nesta relação que se estabelece, o psicólogo é aquele que pode se colocar entre o sujeito e sua dor, oferecendo um lugar no entre, que propicia, então, um novo significado deste sofrimento e o surgimento da fonte geradora do adoecimento. Neste sentido, Villa (2008) sugere que a transferência pode também ser compreendida como a apreensão do somático, já que é esta que possibilita o tratamento psíquico. Nos atendimentos com G, ficou claramente estabelecido que, na relação transferencial, ela vivenciava a psicóloga como sua figura materna. Em meio a sua dor, colocava-se como a filha, a criança, trazendo sua necessidade de cuidados, ao mesmo tempo em que fazia a negação faltando às sessões. De forma saudável, G conseguiu depositar nesta transferência suas dores, raivas e afetos, abrindo assim a possibilidade de elaborar suas questões. Cada ser humano precisa para bem de se apossar de suas plenas faculdades mentais abandonar a morada do corpo da mãe, perdê-la, tornando-se sábio de como se faz para reencontrá-la. Assim, quando o psicanalista oferece seu "saber de adulto" para livrar a criança do assujeitamento ao inconsciente dos pais, não faz mais do que querer lhes acelerar 54 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 a morte da coisa-mãe, para que apareça a representação da mãe, propiciar o saber que nasce da perda (CORSO, 1996, p. 72). Houve um momento em que G abandonou o tratamento, retomando-o posteriormente somente após um encontro com sua mãe. Neste encontro, ela tentou expor a esta mãe um pouco da aflição que emergiu no decorrer das sessões, mas não encontrou ali o apoio que buscava. Ao deparar-se com esta frustração, G consegue então retomar os atendimentos e é, neste momento, que se abre a possibilidade de elaborar alguns de seus traumas. E, não obstante, é provavelmente no retorno de/para esse sofrimento originário que se encontra o ponto onde pode se produzir a mudança, onde a escolha entre permanecer o mesmo e modificar-se modificando o mundo, por um instante se torna possível de novo. Mais além de toda simpatia, de toda a empatia e de toda antipatia, sobrevém uma exigência de reconhecer essa dor e o saber que daí adveio ou não, saber do sofrimento e pelo sofrimento (VILLA, 2008, p. 342). É importante ressaltar que foi também neste momento de sua vida que a paciente passou por uma nova bateria de exames, a fim de avaliar a eficácia do tratamento médico que já havia feito. A angústia e o medo permeavam os atendimentos, demandaram uma compreensão e uma entrega da terapeuta para que G conseguisse deparar-se com as dores psíquicas, juntamente com toda sua fragilidade emocional. Neste período do tratamento pelo qual G passava, a relação transferencial tornou-se seu lugar de amparo e possibilidades. Então, cabe ao profissional da psico-oncologia a importante tarefa de resgatar vida nesses pacientes, englobando os aspectos físicos e psíquicos para, assim, permitir a eles revelarem seus medos, desejos, emoções e sentimentos (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 77). Recebendo o investimento de desejo oferecido pela terapeuta, a paciente conseguiu apresentar-se como sujeito em busca de seu próprio desejo, sem ter que se submeter novamente ao desejo do outro. Surge, então, a possibilidade de trilhar um novo caminho, liberta do aprisionamento desejante de morte proveniente de sua mãe. Se a constituição está fora do território da escolha, não é menos verdade que há certo grau de liberdade quanto à escolha da posição que podemos adotar diante dela. O destino que daremos às pulsões é aquele que a constituição vai encontrar em nossa vida e que vai se manifestar nas formas que a disposição à transferência vai engendrar (VILLA, 2008, p. 339). Assim, é oferecida a G a possibilidade de separação, mas agora de forma saudável, permitindo a elaboração do abandono sofrido. A paciente usufrui deste momento e, baseando-se na segurança desta relação, consegue compreender a distância existente entre ela e sua mãe, pondo em palavras o sofrimento que durante tanto tempo a atormentou. "Sabe Andrea, eu vivi correndo atrás da minha mãe, sempre eu, sempre eu. Eu queria o amor que nem eu tenho pelo G e a I (filhos), meu deus, não posso nem pensar em fazer com eles que nem ela fez comigo.(pausa) Mas eu acho que ela não tem pra dar. Eu queria que ela me amasse, mas como ela vai me dar uma coisa que ela não tem?" (SIC). Foi esta mesma relação que serviu como um lugar onde a paciente pode lidar com a angústia dos inúmeros exames pelos quais passou. As vésperas destas avaliações médicas, G sempre era tomada de uma angústia que a colocava em estado de alerta, não permitindo que ela descansasse. Este fator se observa nos pacientes de uma forma geral, e falar sobre o receio dos resultados traz o alívio de grande parte desta angústia. Isto revela o quanto esta escuta contribuiu para a diminuição do sofrimento, abrindo caminho para que novamente possa se dar continuidade às elaborações necessárias para o tratamento psíquico. Os atendimentos com pacientes oncológicos têm esta especificidade: a necessidade em lidar sempre com uma demanda urgente que pode surgir a qualquer momento. Esta urgência não se dá sozinha, mas em conjunto com o medo da morte, ou ainda, diante de uma cirurgia, o medo da mutilação, a angústia frente ao desconhecido, mas que sempre é previamente compreendido como um mau momento a ser enfrentado. No decorrer dos atendimentos de G, houve ocasiões em que seu oncologista apontou a possibilidade de se fazer mais algumas sessões de braquiterapia, o que não foi necessário. Mas, em meio à elaboração de seus sentimentos, especialmente aqueles relacionados a sua mãe, e o medo de ter que enfrentar novamente o doloroso tratamento, a paciente conseguiu enfrentar e superar esta fase, tendo o suporte desta relação transferencial. É necessário considerar todos os aspectos, físico, emocional, espiritual, social ou cultural, atingindo a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas no processo de adoecimento, independentemente da fase da doença, ou seja: prevenção do câncer, diagnóstico, tratamento, cura ou a terminalidade (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78). Inúmeras vezes, G pontuou que não conseguia falar deste sofrimento com outras pessoas, sendo a psicoterapia o suporte fundamental neste momento. Nesta etapa dos atendimentos, as 55 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 sessões passavam do tempo previamente estabelecido, sendo esta uma flexibilidade necessária para a evolução da paciente. Diante deste suporte encontrado por G na terapia, ela começou a trazer mais questões que marcaram sua vida e que também podem ser relacionadas ao tumor desenvolvido. Se, por um lado, foi extremamente benéfico, pois se abriu caminho para que sua dor tivesse voz, por outro, houve uma precipitação de seus sentimentos, que foram expostos no ímpeto da busca pela cura de suas dores. Seu sentir estava fragilizado pelo momento do tratamento médico e G tinha um medo real de morrer. Foi necessária uma nova combinação com a paciente, na qual, após estes atendimentos permeados pela profunda dor e sofrimento, ela precisava de um tempo maior que uma semana, sendo marcada nova sessão em quinze dias. Este rearranjo foi fundamental para o bom andamento do tratamento de G, pois ela encontrou amparo e segurança, sabendo que poderia ter o seu tempo e a terapeuta estaria aguardando por ela. Não havia perdas nem abandonos. Portanto, houve a possibilidade de a paciente desenvolver outras formas eficazes de enfrentamento da doença, permitindo a expressão das suas emoções. A partir disso, é necessário enfrentar, lidar, lutar diante do diagnóstico de câncer e sabe-se que o enfrentamento vem sendo um fator relevante para a qualidade de vida, como por exemplo, a potencialização da esperança como estratégia importante para a trajetória do câncer e que pode mudar o transcorrer do tratamento (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78). Deste modo, o adoecimento pode receber uma nova significação, mudando a forma como ela se percebia frente ao câncer. Se, antes, sentia-se fraca e incapaz de enfrentar o tratamento, agora percebia a força que já possuía e que, por toda sua vida, manteve-a lutando para sobreviver. Considerações Finais Compreendendo que o sofrimento físico pode ter sua causa em um campo além do fisiológico, podendo ter sua procedência em um local secreto e desconhecido, o fazer do psicólogo se dá na busca desta incógnita que repousa no inconsciente. O trabalho na clínica com pacientes oncológicos pode-se mostrar exaustivo no que diz respeito a acolher o sofrimento tanto físico quanto psíquico apresentado pelo paciente, tendo sempre em vista a busca pela origem psíquica da doença organicamente manifesta. Contudo, mostra-se extremante gratificante diante das possibilidades apresentadas e, na maioria das vezes, muito bem aproveitadas por estes sujeitos. Com o entendimento de que as relações afetivas são inscritas no corpo, pode-se pensar que, se estas se constituem de forma adoecida, há a probabilidade deste corpo também adoecer. Cabe ao psicólogo possibilitar o espaço de segurança que o paciente necessita para compreender suas relações e ressignificá-las, trazendo um novo entendimento sobre a doença. Assim, a clínica com pacientes oncológicos torna-se o local que possibilita esta ressignificação das inscrições subjetivas que levam ao adoecimento. Cada sujeito tem seu tempo para lidar com as questões que o trazem à terapia, mas, no caso do paciente com câncer, este tempo precisa ser muito bem compreendido, uma vez que a possibilidade da morte é concreta, podendo ser esta a questão. Muitas vezes, há a necessidade de avaliar qual a urgência psíquica que deve ser trabalhada, havendo um foco muito bem estabelecido com o paciente, sendo a transferência quem anuncia e conduz este tratamento emergencial. Desta forma, a relação transferencial com o paciente oncológico surge permeada não apenas pelas fantasias, desejos e crenças do paciente, como também pela dor física. No estabelecimento desta relação é esta a dor que surge como a primeira demanda. Aos poucos, abre-se espaço para que o conflito psíquico possa surgir, convocando todos os medos e fantasmas deste paciente a se apresentarem. Referências: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Tendências em Psicologia Hospitalar. São Paulo: Pioneira-Thomson Learning, 2004. BRASIL, Ministério da Saúde. A situação do câncer no Brasil. Instituto Nacional do Câncer - INCA, 2011. CHRISTO, Zuriel Mello de. TRAESEL, Elisete Soares. Aspectos psicológicos do paciente oncológico e a atuação da psico-oncologia no hospital. Disc. Scientia. Série: Ciências Humanas, S. Maria, v. 10, n. 1, p. 75-87, 2009. CORSO, Diana. Os Caça-fantasmas. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, ano VII, 1996, p. 65-77. DUMAS, Marc. A psicossomática - quando o corpo fala ao espírito. São Paulo: Edições Loyola, 2004. MAURANO, Denise. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. PICHETI, Jeovana Scopel. DUARTE, Viviane Marcon. Câncer - a influência dos aspectos psicológicos na adesão ao tratamento. In: HART, Carla Fabiane Mayer [Org.]. Câncer 56 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 uma abordagem psicológica. Porto alegre: AGE, 2008. SILVA, Célia Nunes. Como o câncer (des)estrutura a família. São Paulo: Annablume, 2000. TEIXEIRA, Leônia Cavalcante. Um corpo que dói: considerações sobre a clínica psicanalítica dos fenômenos psicossomáticos. Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, VI, 1, 21-42, 2006. VEIT, Maria Teresa. CARVALHO, Augusto de. Psico-oncologia: definições e área de atuação. In: CARVALHO, Augusto de [Org.]. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus, 2008. VENÂNCIO, Juliana Lima. Importância da atuação do psicólogo no tratamento de mulheres com câncer de mama. Revista Brasileira de Cancerologia, 2004. VILLA, François. Primeira transferência: afastar a sugestão do somático. Rio de Janeiro: Revista Ágora, 2008, vol.11, n.2, pp. 333-347. 57 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Aspectos emocionais e psicossociais em pacientes renais pós- transplantados¹ Psychosocial and emotional aspects on post transplanted renal patients 2 Samantha Sittart Navarrete a *, Luciane Slomka b * Resumo: As estimativas, no ano de 2011, revelaram que cerca de 10 milhões de brasileiros foram portadores de doença renal crônica (DRC). Apesar do expressivo crescimento do número de pessoas com a patologia, verificou-se que há relativamente poucas pesquisas sobre os aspectos emocionais e psicossociais dessa população. O presente estudo constitui-se em uma revisão de literatura sobre a produção teórica a respeito dos aspectos emocionais e psicossociais presentes em pacientes que realizaram transplante renal. Os resultados indicaram prejuízos nos aspectos de ordem social, laboral e emocional – principalmente ansiedade e depressão – que podem afetar diretamente este tipo de paciente. Na medida em que conhecemos os aspectos emocionais dos pacientes transplantados renais, torna-se possível criar estratégias de intervenção para a melhoria da qualidade de vida e saúde destes. Palavras-chave: Pós-transplante renal; Aspectos emocionais; Aspectos psicossociais Abstract: The estimates in 2011 revealed that about ten million Brazilians were suffering from chronic kidney disease (CKD). Despite the significant growth in the number of people with CKD, it was found that there is relatively little research on the emotional and psychosocial aspects of this population. The present study consists in a literature review on theoretical works about the emotional and psychosocial aspects present in patients who underwent renal transplantation. The results indicated losses in the aspects of social, labor, emotional - especially anxiety and depression - that can affect this type of patient. To the extent that we know the emotional aspects of renal transplant patients, it is possible to create intervention strategies for improving the quality of life and health of these patient. Keywords: After renal transplantation; Emotional aspects; Psychosocial aspects 1 Artigo de revisão de literatura apresentado ao Curso de Psicologia da FADERGS, como requisito parcial para aprovação na disciplina Trabalho de Conclusão II. a Psicóloga da FADERGS, Brasil. * E-mail: [email protected] b Psicóloga, Mestre em Medicina e Ciências da Saúde (PUC), Docente do Curso de Psicologia da FADERGS, Brasil. * E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 58 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65 As estimativas, no ano de 2011, revelaram que cerca de 10 milhões de brasileiros foram portadores de doença renal crônica (DRC) e a maioria não sabia de tal condição, conforme a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN, n.d.b). As principais causas da DRC são o diabetes, a hipertensão arterial e a glomerulonefrite (SBN, n.d.b). A DRC – ou insuficiência renal crônica – caracteriza-se pela presença de lesão renal progressiva e irreversível. Sendo diagnosticada a perda de mais de 50% da função renal, o paciente passa a apresentar uma série de sintomas, como inchaço, pressão alta e anemia, entre outros (SBN, n.d.a). Em sua fase mais avançada, é chamada de doença renal crônica terminal (DRCT) ou de insuficiência renal crônica (IRC), na qual a função renal fica comprometida em 90%. Os tratamentos disponíveis como terapia renal substitutiva são a hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante renal (Cherchiglia et al., 2010; Moura et al., 2009). O transplante renal é a forma de tratamento na qual, por meio de uma cirurgia, o paciente recebe um rim de um doador vivo ou falecido. Com a realização do transplante, o paciente tem que fazer uso de medicações que inibam a reação do corpo contra os organismos estranhos, e, nesse caso, o rim transplantado, evitando-se, assim, a rejeição do seu novo órgão (SBN, n.d.c). É imprescindível que, após esse procedimento, o paciente tenha um acompanhamento médico permanente (Castro, n.d.b). Salienta-se ainda que o transplante renal não é a cura, mas, sim, uma forma de tratamento, ou seja, uma alternativa para a melhoria na qualidade de vida do paciente (Baron, 2010). Mesmo realizando o transplante renal, o paciente continua sendo portador de uma doença crônica (Ravagnani, Domingos & Miyazaki, 2007). Entretanto, Ravagnani et al. (2007) afirma, com base em seu estudo sobre Qualidade de Vida Pré e Póstransplante, que não houve uma mudança significativa na qualidade de vida dos pacientes pós-transplante, comparados aos pacientes pré-transplante. Um dos fatores associados a esse resultado é o estresse e a preocupação quanto à saúde e aos efeitos colaterais das medicações. De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2002, p.194), “as emoções são expressões afetivas acompanhadas de reações intensas e breves do organismo, em resposta a um acontecimento inesperado ou, às vezes, a um acontecimento muito aguardado”. É possível observar nas emoções uma relação entre os afetos e a organização corporal, ou seja, as modificações e as reações que ocorrem no organismo. No caso dos pacientes transplantados, muitos fatores influenciam a estabilidade das emoções. Neste sentido, a adaptação a esta nova condição física exige cuidados que mudam o modo e a qualidade de vida de cada um, o que pode gerar dificuldades emocionais e psicossociais, e é deste sofrimento psíquico que o presente estudo pretende dar conta. Metodologia Para a realização deste estudo, utilizou-se o método de pesquisa bibliográfica que, segundo Gil (2011), é desenvolvido de acordo com um material já elaborado em livros, artigos científicos, entre outros. A principal vantagem desse método é o de permitir ao pesquisador “a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”(Gil, 2011, p.50). Para assegurar a confiabilidade dos dados obtidos, realizouse uma profunda e cuidadosa análise desses dados, para que incoerências ou contradições fossem checadas de forma minuciosa (Gil, 2011). A partir disso, a busca de bibliografias para esse estudo deu-se em livros de autores consagrados no assunto. Além disso, pesquisaram-se artigos científicos em bases de dados já reconhecidas pela comunidade científica, tais como Scielo, Lilacs e Pubmed. Os descritores que foram utilizados nas bases de dados para esse estudo são: “póstransplante renal”, “transplante renal” e, posteriormente, foi feita uma busca mais refinada, com os termos “aspectos psicológicos” e “emoções”. Para tal, algumas tarefas básicas foram realizadas: a exploração de fontes bibliográficas, a leitura do material pesquisado e a análise desse material encontrado para o desenvolvimento do estudo. A doença renal crônica Os rins são órgãos essenciais e vitais para funcionamento e manutenção da homeostase do corpo humano (Bastos et al., 2004). Eles são responsáveis por algumas funções, dentre elas eliminar as impurezas do sangue, regular a pressão arterial, produzir hormônios, bem como participar na formação e na manutenção dos ossos e estimular a produção de glóbulos vermelhos (Castro, n.d.a). A perda de 50% da capacidade de filtragem leva à Doença Renal Crônica (DRC), e a perda de 90% dessa função, à Doença Renal Crônica Terminal (DRCT). Atualmente, a incidência de pacientes com DRC cresce em uma alta escala em todo o mundo, inclusive no Brasil (Alvares, 2011). A DRC apresenta estágios que correspondem ao tratamento ao qual o paciente será submetido. O primeiro estágio do tratamento chama-se conservador, em que o paciente faz uso de medicamentos como forma de reduzir os efeitos da doença. O tratamento conservador não leva à cura total, mas ameniza o processo de avanço da doença. Conforme a evolução da doença, o paciente receberá outras formas de tratamento: a diálise peritoneal, a hemodiálise e o transplante renal (SBN, n.d.c). A diálise peritoneal é uma opção de tratamento através do qual o sangue que circula nos vasos sanguíneos do peritônio, que fica em contato com um líquido de diálise, é colocado na cavidade abdominal através de um cateter. Isso permite que as 59 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65 substâncias que estão acumuladas no sangue, como ureia, creatinina e potássio, sejam removidas, bem como o excesso de líquido que não está sendo eliminado pelo rim. Neste procedimento, o paciente possui autonomia, pois ele mesmo ou algum membro da família e/ou cuidador treinado pode realizar a troca do líquido. Porém, este tipo de tratamento requer cuidado, já que há riscos de infecções porque o procedimento ocorre por meio de um cateter (SBN, n.d.c). A hemodiálise é um tratamento para pacientes que sofrem de insuficiência renal aguda ou crônica grave, em que o sangue é filtrado por uma máquina, e as substâncias acumuladas no sangue são removidas, assim permitindo que o paciente continue vivendo. A hemodiálise é realizada em hospitais ou em clínicas especializadas, com frequência de no mínimo três vezes por semana, e cada sessão tem duração de aproximadamente 3 a 4 horas. (SBN, n.d.c). O processo de transplante O transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na implantação de um órgão sadio para substituir a função anteriormente perdida pelo rim. O novo órgão implantado pode ser advindo tanto de um doador vivo como de um doador cadavérico (Castro, n.d.a). Os primeiros transplantes renais surgiram na década de 1950, sendo, em Paris, com doadores cadáveres e, em Boston, com doadores vivos (Manfro & Gonçalves, 2006). No Brasil, os primeiros transplantes de rim foram realizados na década de 1960 em São Paulo (Cherchiglia, Queiroz & Junior, 2007). Já o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e as primeiras centrais de transplantes surgiram no ano de 1997 (Cherchiglia et al., 2007). De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, em junho de 2013, o número de pacientes ativos em lista de espera por um rim era de 19.913 no Brasil e de 1.049 no Rio Grande do Sul (ABTO, 2013). Já o número de transplantes permanece o mesmo referente ao ano de 2012. Entretanto, houve um aumento de 4,5% no transplante com doador falecido e uma queda de 11,6% com doador vivo. Nos últimos 10 anos, houve uma queda preocupante de 27% no número de transplantes renais com doador vivo (ABTO, 2013). O transplante de órgãos está normatizado pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001. Segundo Flores e Thomé (2004), a espera do órgão a ser transplantado é geradora de expectativas aos pacientes em lista de espera. A percepção dos pacientes acerca dessa espera é marcada por sentimentos ambivalentes de medo, culpa, fé e esperança. Muitos pacientes não resistem à espera do órgão a ser transplantado, e outros nem chegam a realizar os exames preparatórios para a realização do transplante, mesmo já tendo indicação médica, tanto por medo de não passarem nesses exames quanto pelo medo da cirurgia e da própria rejeição do novo órgão (Kazley, Simpson,Chavin & Baliga, 2012). O pós-transplante Com a realização do transplante, o paciente continua com uma rotina demandada pelos cuidados pós-cirúrgicos, o que inclui consultas regulares que despertam emoções estressoras, especialmente, nos seis primeiros meses (Ravagnani et al., 2007). Além das preocupações com o cuidado continuado, o mesmo autor ressalta que podem surgir sentimentos e emoções oriundos das preocupações com o retorno ao trabalho, o convívio com a família e as responsabilidades do cotidiano. Quanto aos prazos de uma sobrevida pós-transplante renal, estes são incertos, tendo em vista que as rejeições podem ocorrer a qualquer momento. No entanto, estudos apontam que uma parcela significativa dos pacientes transplantados tem sobrevida de, no mínimo, cinco anos e, no máximo, de 10 anos (Cassini, 2009; Marinho, 2006; Miranda et al., 2003; Peres, 2002 apud Fontoura, 2012). Porém, estudos mais recentes evidenciaram que a sobrevida do rim pode chegar até os 15 anos (Souza, 2006). Hoje, em média, 20% das perdas de enxertos se dão pela não aderência ao tratamento medicamentoso (Marinho et al., 2005). Alguns fatores colaboram para tal, sendo um deles a desinformação do próprio paciente, por achar que, como ele recebeu um novo órgão, já está apto a parar por conta própria a medicação. O resultado sempre negativo dessa atitude aparece em um ou dois meses, quando o rim para de funcionar novamente (Marinho, Santos, Pedrosa & Lucia, 2005). Portanto, é fundamental que o paciente siga à risca uma dieta nutricional restritiva e que faça uso de medicamentos imunossupressores para o resto da vida, entre outros cuidados que precisará ter, para que doenças oportunistas não apareçam. Muitas variáveis influenciam na estimativa de vida do paciente transplantado e exigem maiores cuidados desde as primeiras horas do transplante até o primeiro ano da implantação do enxerto (Manfro & Veronese, 2004). Aspectos emocionais Vasconcellos (2008) relata, em seu estudo, que há uma diversidade de perspectivas teóricas acerca das emoções. Desta forma, compreender uma definição de emoção depende da perspectiva teórica em que se encontra implícita essa definição. Zajonc (1998, apud Vasconcellos, 2008, p.19) refere-se às emoções “como sistemas complexos que implicam recursos psicológicos, interpessoais, sociais, culturais, além de envolverem processos neurofisiológicos, neuroanatômicos e 60 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65 neuroquímicos” aos quais se ligam à cognição e à motivação também, e estão presentes em todos os tipos de comportamentos humanos. Logo, definir completamente as emoções representa um desafio e, devido a isso, o autor limita-se a considerá-las como uma reação emocional. A capacidade que se tem para reagir emocionalmente é a de distinguir entre as situações presentes ou futuras, que podem ser ameaçadoras ou benéficas, e responder adequadamente a elas. Tal definição encontra-se de acordo com a perspectiva teórica desse autor, que considera o afeto como uma reação primária a todo e qualquer evento (Zajonc, 1998 apud Vasconcellos, 2008). As emoções, tais como a raiva, o medo, a tristeza, o desespero, a alegria, a vergonha e a surpresa, estão vinculadas diretamente à vida afetiva da pessoa. As referidas emoções podem ser expressas tanto de forma difusa quanto de forma mais consciente, ou, ainda, podem estar encobertas (Bock et al., 2002). O processo de transplante é permeado de aspectos e reações emocionais contraditórias, com as quais o paciente precisa lidar. Há uma perspectiva de mudança no panorama de vida do sujeito após a realização do procedimento, todavia o conflito entre a dúvida de o transplante dar certo, não ocasionando na rejeição, o medo do processo cirúrgico e o da própria morte podem dar lugar a sentimentos repletos de esperança e fé e, principalmente, de não mais depender dos procedimentos dialíticos (Baron, 2010). No estudo realizado por Camargo, Quintana, Weissheimer, Junges e Martins (2011), os pesquisadores verificaram que os pacientes que se encontravam em hemodiálise tinham uma percepção muito negativa da realização do transplante em si. Tal percepção estava associada à ideia de morte ou insucesso do procedimento, pois a totalidade dos entrevistados disse já ter perdido colegas que fizeram o transplante e outros que retornaram à hemodiálise por conta da rejeição. Os pacientes renais crônicos, de modo geral, têm certa dificuldade em expressar seus sentimentos acerca do adoecimento, diferentemente de pacientes com outros tipos de doença orgânica (Rudnicki, 2006). O recebimento de um órgão, no caso o rim, é permeado por fantasias que podem ser de cunho persecutório e também ser variáveis, dependendo da forma de recebimento do órgão (Baron, 2010). Quando o recebimento do órgão parte de um ente da família ou mesmo de alguém conhecido, isso pode gerar crises de identidade, de acordo com a relação do paciente com o doador. Baron (2010, p.381) destaca que perguntas e indagações, como “Tenho medo de ficar com os defeitos da minha irmã. Será que vou virar mulher? Terei trejeitos femininos? Vou engordar até ficar do tamanho do meu irmão? Vou perder meu senso de humor?” são frequentes nesses casos e podem interferir no equilíbrio emocional do paciente. No caso do recebimento de um rim de um doador cadavérico, o paciente pode apresentar tanto crise de identidade quanto reações de ansiedade por conta do medo do desconhecido (Baron, 2010). O paciente, por estar diante do anonimato deste órgão, pode também enfrentar o vazio existente diante da figura do doador, que se constitui como uma tela branca para projeções do universo psíquico (Leis, 2013; Pereira, 2006). Alguns sintomas psiquiátricos podem aparecer no pósoperatório do transplante renal, bem como ao longo desse. Arapaslan, Soykan, Soykan e Kumbasar (2004) asseveraram em seu estudo que a frequência de transtornos psiquiátricos, mesmo depois de um transplante de rim bem sucedido, é muito alta: 50% dos pacientes pesquisados apresentaram diagnóstico psiquiátrico, sendo 25% dessa amostra acometidos de depressão grave. Nas primeiras 24 horas do transplante, podem ocorrer tanto sintomas de abstinência de medicamentos utilizados anteriormente como o delirium caracterizado por um estado confusional agudo, comprometendo, por conseguinte, a cognição, o humor, a percepção, o pensamento e o sono (Manfro & Blaya, 2004). Os sintomas de ansiedade estão presentes desde o pré-transplante e podem permanecer por alguns dias após o transplante (Manfro & Blaya, 2004). As alterações de humor tendem a ocorrer tanto em episódio depressivo maior quanto em episódio maníaco. No episódio depressivo maior, o paciente apresenta humor deprimido ou mesmo perda do interesse em quase todas as atividades por um período mínimo de duas semanas. Também encontram-se presentes sintomas como diminuição do apetite, perturbação do sono, diminuição de energia, sentimento de culpa ou desvalia e prejuízo na capacidade de pensar. O estado de depressão pode vir associado à morbidade pós-transplante, ocasionando a não adesão medicamentosa. Tal conduta pode levar à rejeição do órgão, assim tendo o paciente que retornar à diálise. Os pacientes que se deparam com essa situação tendem a ter tentativas de suicídio (Manfro & Blaya, 2004). No episódio maníaco, o paciente apresenta um humor anormal, juntamente com sintomas de grandiosidade ou autoestima elevada, pressão por falar, fuga de ideias, entre outros. Se essas alterações não forem tratadas, há risco de perda do órgão também pela não aderência medicamentosa (Manfro & Blaya, 2004). Após o transplante, com a ingestão dos imunossupressores, podem ocorrer tanto o aumento do peso como problemas dermatológicos na face. As mulheres, muitas vezes, deixam de tomar a medicação por conta dessas alterações (Manfro & Blaya, 2004). Os mesmos autores assinalam que a rejeição do rim pode ser de ordem psicológica, já que está associada à falta de adesão ao tratamento, ocasionada por depressão, dificuldade de memória e abuso de substâncias, ou à reação de ajustamento relacionado ao estresse psicológico e à alteração da imagem corporal. Silva (2011) constatou em seu estudo que 37,5% dos 61 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65 pacientes transplantados apresentaram ocorrência no comprometimento do sono. Já Sabbatini et al. (2005, apud Silva, 2011) observou que a qualidade do sono de pacientes transplantados renais pode ter não somente aspectos psicológicos envolvidos, como também comorbidades da própria doença renal. A depressão pode ocorrer em receptores, doadores, doadores não compatíveis e eventualmente nos familiares (Castro, n.d.a). De acordo com Zimmermann, Carvalho e Mari (2004), a etiologia da depressão é usualmente associada a uma perda, e as perdas são normalmente numerosas e duradouras para o paciente com doença renal. Existe a perda da função renal, da sensação de bem-estar, de seu papel tanto na família quanto no trabalho, perda do tempo, de fontes de recursos financeiros, da função sexual, entre outras. A isso é preciso acrescentar as características da personalidade do paciente, além de uma eventual predisposição genética para depressão. Outro fator que incide na estabilidade emocional do paciente transplantado é a ansiedade referente ao próprio medo da perda do novo órgão, e o paciente geralmente apresenta um sofrimento psíquico maior do que o sofrimento físico (Garcia, Souza & Holanda, 2005). Em um estudo com pacientes chineses transplantados, verificou-se que os principais fatores estressores identificados foram o medo da rejeição, a interação medicamentosa bem como os efeitos colaterais, a incerteza sobre o futuro, o medo de infecção e o custo despendido (Kong & Molassiotis, 1999). Diante disso, é essencial que haja uma atenção específica para ansiedade e depressão, pois o quanto antes tais comorbidades psiquiátricas forem detectadas e tratadas, melhor será, em curto prazo, o bem estar geral do paciente (Noohi et al., 2007). Baines, Joseph & Jindal (2002) compararam dois grupos de pacientes transplantados, sendo um grupo que recebia tratamento psicoterápico e outro não. Como resultado, o grupo que realizou acompanhamento psicoterápico apresentou menores escores para depressão. De acordo com a pesquisa realizada por Weng, Dai, Huang e Chiang (2009), os pacientes transplantados não relatam mudanças expressivas no pós-transplante, pois muitos cuidados ainda são demandados. Os mesmos autores sugerem que se trabalhe a autogestão dos pacientes transplantados, pois, se aprenderem a detectar precocemente os sintomas de uma possível rejeição, terão mais confiança e bem estar. Aspectos psicossociais Quando o paciente renal está em tratamento dialítico, ele é amparado pelo governo e recebe tanto o benefício de auxíliodoença quanto a isenção do transporte público. Além do amparo do governo, nesse período, o paciente também conta com o auxílio da rede pública de saúde e com apoio de seus familiares e ou cuidadores. Com a realização do transplante e o sucesso desse tratamento, o paciente perde o benefício cedido temporariamente pelo governo, tendo que retornar ao mercado de trabalho (Silva, 2011), o que também irá interferir no quadro emocional do paciente. Todavia, esse período pode ser marcado por conflitos emocionais, pois, de um lado, ele está livre da dependência da máquina de hemodiálise e, por outro, tem que lutar pela sua sobrevivência financeira (Silva, 2011). É uma fase em que o paciente terá tanto a implicação com o seu autocuidado quanto com a sua autogestão financeira. Overbeck et al. (2005) constatou em seu estudo que, apesar de os pacientes apresentarem uma boa recuperação física e maior qualidade de vida pós-transplante renal, o índice de reinserção no mercado de trabalho ainda é baixo. É devido a todas estas questões de ordem social e emocional que, em 1978, Norman Levy, juntamente com um grupo de psiquiatras americanos da cidade de Nova York, preocupados com a adaptação psicológica e social dos pacientes renais, fundou um movimento chamado de psiconefrologia (Matta, 2000). Hoje, a psiconefrologia “representa a área de interface entre a psicologia e a nefrologia” (Diniz, 2006, p.588) que se utiliza de referenciais teóricos da psicologia da saúde. Atualmente, nos livros e manuais de nefrologia, há um capítulo destinado aos aspectos psiquiátricos e psicossociais dos pacientes renais, mas ainda há uma escassez de estudos que envolvam os aspectos emocionais após a realização do transplante renal, o que foi almejado no presente estudo. Considerações Finais Através desse estudo, pôde-se reforçar o quanto o paciente renal é acometido por uma gama de sentimentos desde o diagnóstico da doença até o pós-transplante renal. A partir da revisão de literatura realizada, foram levantados aspectos de ordem social, laboral e emocional – principalmente ansiedade e depressão – que podem afetar este tipo de paciente. É primordial que se busque um entendimento o mais completo possível sobre os atravessamentos desse adoecimento desde o seu início. Dessa forma, espera-se facilitar a compreensão e, consequentemente, a aplicação de intervenções psicoterápicas. As adaptações físicas e emocionais de cada paciente dependerão de diversos fatores, que vão desde a informação precisa da doença e as suas possibilidades de tratamento até a sua condição após a realização do transplante. A relação do paciente com a doença, o órgão doente e o novo que será recebido, pode despertar no indivíduo variadas emoções ou ainda estar refletindo emoções inconscientes, as quais o corpo pode manifestar através da doença. Salienta-se que, mesmo tendo uma base dos aspectos emocionais que circundam o 62 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65 paciente em relação à doença renal, o ser humano é subjetivo, sente e reage de formas diferentes frente ao adoecimento e a cada fase da doença. Através dos dados levantados, foi sobressalente a porcentagem de rejeições do órgão transplantado pela não aderência ao tratamento. Entretanto, essa porcentagem pode ser ainda maior, pois rejeições de outras ordens também podem acontecer. Neste estudo, não foram contemplados os números reais dessas perdas, já que não foi possível o acesso preciso a essas informações devido à limitação de tempo, mas é de grande importância que essas informações sejam levantadas nos próximos estudos. De forma geral, os achados da presente revisão de literatura foram ao encontro do que se esperava com relação ao sofrimento do paciente e às novas adaptações no pós-transplante renal. Contudo, ainda se fala pouco sobre a etapa do pós-transplante, o que resultou em um trabalho mais minucioso na busca de literatura. Há mais estudos relacionados aos processos dialíticos. Com a realização deste estudo, foi possível perceber o quanto é necessário o aprofundamento nas necessidades do paciente, a fim de propor intervenções terapêuticas que possam minimizar o sofrimento vivenciado no enfrentamento do pós-transplante renal. O acompanhamento psicológico, grupos de autoajuda, psicoeducação e psicoterapia breve de apoio seriam indicações pertinentes para esse público. Uma rede de apoio é fundamental nesse processo, bem como um atendimento multidisciplinar. É imprescindível que o psicólogo trabalhe com um olhar sistêmico, amplo, acerca das questões que permeiam o pós-transplante, o que faz chamar atenção para o quanto é essencial o trabalho em uma equipe multidisciplinar. É importante ressaltar igualmente que o estudo não teve o objetivo de generalizar as suas conclusões, entretanto é necessário que mais pesquisas dessa natureza sejam realizadas, de modo que possam contribuir para melhores condições psicossociais e de qualidade de vida do paciente renal após a realização do transplante. Cabe ressaltar também que esse estudo, por ser um trabalho acadêmico, como parte de conclusão do Curso de Psicologia, contou com um tempo reduzido para um aprofundamento em uma temática tão multifacetada e profunda, o que despertou na pesquisadora a vontade de prosseguir realizando mais pesquisas nesta área. Referências Alvares, J. (2011). Avaliação da qualidade de vida e análise de custoutilidade das terapias renais substitutivas no Brasil. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Arapaslan, B., Soykan, A., Soykan, C., & Kumbasar, H. (2004). 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O presente trabalho teve como objetivo identificar, na história de um filme infantil, as motivações e as expectativas do adotante quanto à adoção, buscando, também, apontar as influências que estas questões podem ter no relacionamento familiar. O filme analisado foi “Meu Malvado Favorito”, no qual o personagem principal Gru adota três irmãs órfãs. Utiliza-se da Teoria do Apego, de John Bowlby, para o entendimento da ligação construída entre os personagens. Pode-se pensar que as motivações, conscientes e inconscientes, necessitam ser identificadas e elaboradas para que não interfiram negativamente na construção de um relacionamento familiar saudável. Ao final, ressalta-se a importância da atuação do psicólogo. Palavras-chave: Adoção, Apego, Motivação para adoção, Relacionamento Familiar a Psicóloga – CRP 21554. Sistema de Avaliação: Double Blind Review 66 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 O tema da adoção é antigo no curso da humanidade, existindo, no entanto, imprecisão quanto ao surgimento desta prática em termos históricos (Pereira e Nunes, 2010). No Brasil, as primeiras leis sobre adoção datam do período compreendido entre o final do século XIX até a metade do século XX, sendo a inovação mais relevante da legislação de 1965 a introdução da “legitimação adotiva”, segundo a qual filhos adotivos passaram a ser considerados legítimos, adquirindo os mesmos direitos dos filhos biológicos, tornando-se o ato de adotar irrevogável (Bittencourt, Pereira, Forster, Orengo, Fuchs, Sternberg e Breda, 2009). Observa-se, no último século, no mundo ocidental – a partir de uma nova concepção de infância –, que as legislações pertinentes à adoção se abrandaram, tornando-se menos restritivas e mais preocupadas com o bem-estar do adotando (Campos e Costa, 2001). No Brasil, o início das investigações sobre adoção é muito recente (Weber, 1999). Dessa maneira, o desejo de estudar a adoção deu-se pela necessidade de entendimento dessa prática sob a perspectiva dos adotantes para que se possa verdadeiramente compreender as vicissitudes do processo adotivo, não somente para a resolução de possíveis dificuldades como também para a prevenção destas. Para aprofundar o entendimento na questão da adoção, pretende-se abordar certos aspectos da Teoria do Apego, de John Bowlby, as motivações em adotar e a repercussão destas na relação entre a família, os pais e os filhos adotivos. Após, estas questões serão discutidas em relação ao filme infantil “Meu Malvado Favorito”, à luz da literatura sobre o tema. Cabe ressaltar que as análises realizadas no presente trabalho referentes ao filme se basearam em suposições a partir dos dados apresentados na história da narrativa e na literatura científica acerca do tema. Alguns autores (Weber, 2001; Brodzinsky, Schechter e Henig, 1993) utilizam-se da Teoria do Apego de Bowlby para entendimento da criação do vínculo entre o bebê e sua mãe¹ nos primórdios do desenvolvimento humano, e a comparação deste processo no caso de crianças adotadas. Os postulados de Bowlby serão aqui brevemente descritos como forma de compreensão da importância das relações com as figuras materna e/ou paterna no princípio da vida para o adequado desenvolvimento emocional e para compreensão da vinculação que ocorre entre os pais e os filhos adotivos. A Teoria do Apego de Bowlby A capacidade de estabelecer laços emocionais íntimos com outros indivíduos é considerada como o traço principal do efetivo ¹ No presente trabalho, assim como nos escritos de John Bowlby, o termo mãe é empregado para representar qualquer figura de apego do bebê, podendo ser de fato a mãe ou pai biológicos, os pais adotivos ou qualquer outro cuidador significativo. funcionamento da personalidade e da saúde mental (Bowlby, 1989). Conforme a Teoria do Apego, desenvolvida por este autor, uma criança seguramente apegada tende a explorar para longe de sua figura de apego, quando sabe que seus pais estão acessíveis e serão receptivos quando requisitados. No entanto, quando alarmado, cansado ou sentindo-se mal, por exemplo, o indivíduo sente a urgência da proximidade com esta figura. Este seria o modelo de exploração a partir de uma base segura, representativo da interação entre a criança e os pais, descrito primeiramente por Ainsworth em 1967 (Bowlby, 1989). Assim como muitos outros tipos de relacionamento social, o relacionamento pais-filhos é complementar (Bowlby, 1969). Para o autor, no curso natural dos eventos, o comportamento de um é o complemento do comportamento do outro. Dessa forma, na definição do autor, o apego limitar-se-ia ao comportamento dirigido a alguém considerado mais capaz de fazer frente à situação, enquanto o cuidado especificaria o comportamento complementar para com alguém considerado menos capaz de assim agir. Por isso, Bowlby refere-se a esta relação como apegocuidado. O autor revela, com sua teoria, a influência que a relação da díade mãe-bebê exerce sobre o desenvolvimento humano. Para Weber (2001), segundo esta teoria, o apego estabelecido entre o bebê e sua mãe é o protótipo de todas as relações que serão criadas em seguida. Dessa forma, quando ocorrem perdas e separações em relação à figura de apego, Bowlby (1989) aponta os cuidados institucionais prolongados e as trocas freqüentes da figura materna durante os primeiros anos de vida como danosos ao desenvolvimento da personalidade. Neste contexto, o processo de adoção surge como uma das formas de separação da criança em relação a sua primeira figura de apego. Processos Psíquicos do Adotar Parece ser consenso na literatura que toda a filiação é, antes de tudo, uma adoção (Weber, 1997; Sonego e Lopes, 2007; Peccin e Oliveira, 2009). A adoção, neste sentido, é entendida aqui como o imprescindível lugar do filho que precisa ser criado no psiquismo dos pais, sejam eles adotivos ou biológicos. Ducatti (2004) corrobora esta visão quando afirma que o desejo de maternar é determinante para que a mulher, gerando ou não um filho, obtenha o status de mãe. Essa autora define, então, funções materna e paterna como a ocupação do lugar de mãe/pai, independentemente do aspecto biológico. A adoção, do ponto de vista jurídico, é um procedimento legal que consiste em transferir todos os direitos e deveres de pais biológicos para uma família substituta, conferindo para crianças e adolescentes todos os direitos e deveres de filho, quando e somente quando forem esgotados todos os recursos para que a convivência com a família original seja mantida (Associação dos 67 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 Magistrados Brasileiros, n. d.). Sob outro enfoque, a adoção pode ser entendida como a inscrição da criança ou do adolescente em uma simbologia familiar (Rosa, 2008). Então, neste contexto, ser adotado pressupõe uma situação anterior de separação e abandono, interrompendo uma relação iniciada entre a criança e a sua mãe biológica na gestação (Weber, 1997; Pereira e Nunes, 2010). Uma das características essenciais do ser humano é o desejo de procriação e continuidade por meio da experiência da maternidade e da paternidade (Levinzon, 2004). Portanto, a filiação e também a adoção de uma criança são projetos narcísicos por excelência (Ghirardi, 2008). Para Freud (1914), o desejo de ter filhos é também o desejo pela imortalidade do ego. De acordo com Freud, o amor dos pais para com os filhos relaciona-se ao narcisismo renascido destes pais, que há muito abandonaram. Os pais depositarão nos filhos suas frustrações, aspirações e aquilo que tomam como ideal (Ghirardi, 2008). Neste sistema narcísico, a criança teria, então, a incumbência de concretizar os sonhos que os pais jamais realizaram (Freud, 1914), alcançando, assim, uma forma de imortalidade. Posto isto, pode-se notar a importância dada por Freud ao reconhecimento do lugar do filho no imaginário dos pais. Outros autores, como Sonego e Lopes (2007) e Ducatti (2004), compartilham desta visão. Para eles, tanto nos casos de pais biológicos quanto de adotivos, qualquer sentimento dirigido ao bebê real passou antes pelo seu imaginário. Ainda de acordo com os autores, esse filho imaginário deve ser gradualmente abandonado pelos pais, os quais necessitarão passar por um processo de luto pela“perda”do bebê imaginado frente ao real. Entretanto, existem distinções entre a filiação adotiva e a biológica. Dentre estas, para a filiação adotiva, pode-se citar a indeterminação do tempo de espera pelo filho, as diferenças físicas entre pais e filhos, as lacunas no passado da criança ou do adolescente referente às suas origens. Conforme Weber (2001), uma destas distinções é a possibilidade de os pais adotivos fazerem escolhas sobre características da criança adotada (idade, gênero, raça, dentre outras). Em pesquisa conduzida por esta autora, da qual participaram 240 pais adotivos, a maioria destes indicou que escolher a criança a ser adotada seria melhor porque garantiria melhor afeto. No entanto, o estudo demonstrou que não é a possibilidade de escolha que determina mais ou menos dificuldades no relacionamento durante a vida. Para Reppold e Hutz (2001), outra diferença entre a filiação adotiva e biológica é a exposição dos pretendentes a um processo avaliativo realizado para fins de habilitação à adoção. As entrevistas com equipe psicossocial, uma das etapas deste processo, visam conhecer as reais motivações e expectativas dos candidatos à adoção (AMB, n.d.). A investigação destes interesses dos pais ao efetuar uma adoção é um aspecto fundamental, visto que esta variável é um indicador da qualidade da interação entre pais e filhos (Brodzinsky, Smith e Brodzinsky, 1998). Levinzon (2004) está de acordo com esta visão quando afirma que “a função que uma criança tem para uma família determina inúmeras vezes estereótipos e caminhos traçados inconscientemente que podem representar posteriormente um fardo para a criança e para a família em geral”(p. 16). Frente ao exposto, uma questão coloca-se: o que leva as pessoas a desejarem adotar? Motivações para a Adoção Há diversos motivos que levam pessoas a desejarem a adoção. A literatura comprova que a principal motivação para adotar dá-se, atualmente, pela infertilidade de ambos ou de um dos membros do casal (Weber, 2001; Reppold e Hutz, 2003). Isso porque, conforme Ebrahim (2001), a adoção, no Brasil, é comumente vista como uma das soluções para a infertilidade, constituindo uma das razões para a procura de bebês. Muitos autores entendem a infertilidade como uma ferida narcísica para os pais, pois interromperia suas fantasias de continuidade biológica e imortalidade (Levinzon, 2006; Levy, Pinho e Faria, 2009). O indivíduo infértil se vê privado de uma importante defesa na sua luta contra a morte, que é a procriação (Levinzon, 2004). Nestes casos, o adotar pode vir acompanhado de sentimentos de desqualificação dos pais e da desvalorização da adoção em si, surgindo diante do olhar parental o filho que revela a incapacidade de gerar (Ghirardi, 2008). Sentimentos de perda, decepção e luto podem fazer-se presentes (Levinzon, 2004). Contudo, Zavaschi (1979) revela que, no contexto da infertilidade, a adoção pode surgir como resolução de problemas pessoais, matrimoniais e familiares decorrentes da dificuldade ou incapacidade de ter filhos biológicos. Assim, pode ocorrer uma supervalorização da adoção, chegando, conforme esta autora, a um extremo de negação da filiação adotiva e tentativa de aproximação com a filiação biológica (através de práticas como simulação da gestação e não revelação da adoção à criança). Outra motivação possível para a adoção é o altruísmo, definido por Reppold e Hutz (2003) como comportamento prósocial que visa a atender as necessidades alheias em detrimento de benefícios ou interesses particulares. Em estudo de Weber (2001), 34,6% dos 240 pais adotivos participantes alegaram motivação social ou caridosa e religiosa, ou seja, adotaram para ajudar uma criança ou um adolescente em situação de risco, apesar de terem filhos biológicos. Na mesma pesquisa, a autora percebeu que os pais adotivos motivados pelo altruísmo tendem a ser mais críticos em relação a seus filhos, atribuindo-lhes maior número de atributos negativos do que os pais cuja motivação foi a infertilidade. Por fim, em revisão da literatura, Reppold e Hutz (2003) 68 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 demonstram que adoções motivadas pela perda recente de um filho ou de um parente próximo implicam potenciais dificuldades de adaptação decorrentes da fragilidade em que se encontram. Isto porque, informam os autores, o luto a ser elaborado pode ser um obstáculo para a execução de tarefas importantes no contexto da maternidade, como a criação de uma rede de apoio adequada. Existem, ainda, outras motivações para a adoção, que não serão tratadas no presente trabalho, tais como a necessidade de preencher a solidão, proporcionar companhia a um filho único (Gondim, Crispim, Fernandes, Rosendo, Brito, Oliveira e Nakano, 2008), não ter de passar por um processo de gravidez, por medo ou por razões estéticas; o anseio de serem pais por aqueles que não possuem um parceiro amoroso (Levinzon, 2006) ou por casais homossexuais (Weber, 1999). Quanto às intenções do adotante para realizar tal ato, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) indica a necessidade de a adoção fundar-se em “motivos legítimos”, sem especificar quais seriam estes. Já Winnicott (1954) aponta para a existência de “motivações distorcidas”, que seriam uma das causas para o fracasso do projeto adotivo. Entretanto, autores como Levinzon (2006) propõem uma mudança de paradigma. Para ela, sentimentos e fantasias inconscientes, dentre eles as motivações, necessitam ser suficientemente discriminados e elaborados para que “entraves” não ocorram no curso da adoção. Weber (1997) corrobora esta visão, a qual pressupõe a inexistência de motivações “legítimas” ou “ilegítimas”, “certas”ou “erradas”: a partir deste ponto de vista, os pretendentes à adoção devem ter a oportunidade de identificarem e elaborarem os motivos inconscientes que os levaram a desejar tal ato para tornarem-se aptos a desenvolver o papel de pais. Para esta autora, “uma preparação para ter um filho, seja ele biológico ou adotivo, refere-se a uma reflexão sobre as próprias motivações, riscos, expectativas, desejos, medos, entre outros. Preparar-se para ter um filho significa, de maneira muito resumida, tomar consciência dos limites e possibilidades de si mesmo, dos outros e do mundo” (p.124). Ainda de acordo com Weber, “nos processos de adoção, os técnicos são fundamentais, não tanto para selecionar (que é o que fazem a maior parte das agências de adoção), mas para preparar [...]”(p.127) Justificativa e Objetivos Conforme exposto, a literatura demonstrou que a identificação e o entendimento das motivações para adotar são relevantes no sentido de compreender as fantasias inconscientes dos pais adotivos, as quais, por sua vez, podem influenciar a qualidade da interação entre pais e filhos adotivos e demais membros da família. Dessa forma, pensa-se ser possível que a clarificação das intenções em adotar possa atuar como um fator protetor, não só evitando fracassos no processo de adoção, como também criando um relacionamento saudável entre pais e filhos. Outra questão relevante, como apontam Peccin e Oliveira (2009), é que a maioria dos estudos acerca da adoção centra-se mais nas crianças do que nos pais adotivos e seus sentimentos frente a esta prática. Tendo em vista essas questões, o presente trabalho buscou identificar, na história de um filme infantil atual, motivações e expectativas do adotante quanto à adoção. Procurou, também, apontar as influências que estas motivações podem ter no relacionamento entre o adotante, a criança e os demais membros da família. Um aspecto a ser ressaltado é a validade de se realizar esta análise em uma história fantasiosa, que, neste caso, se trata de um filme infantil. Sabe-se que as histórias infantis sempre tiveram o poder de auxiliar as crianças a nomear e suportar seus conflitos básicos (Rosa, 2008). Mais do que isso, Corso e Corso (2011) indicam que as histórias possuem o poder de revelar fantasias coletivas para o uso individual e atribuem a estas narrativas a função essencial de construção e sustentação da personalidade das pessoas. Dito isso, compreende-se que o filme Meu Malvado Favorito retrata fantasias coletivas da cultura ocidental sobre a adoção e a parentalidade, auxiliando adultos e crianças a suportar seus conflitos relacionados a esta temática. Metodologia Para contemplar o objetivo do presente trabalho, procedeuse à análise do filme infantil de animação Meu Malvado Favorito (título original: Despicable Me), dirigido por Chris Renaud e Pierre Coffin, lançado nos Estados Unidos no ano de 2010 (http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140623/). O furto das pirâmides do Egito, realizado pelo vilão Vetor, é considerado o roubo do século, o que mexe com o orgulho do malvado Gru. Desejando realizar algo ainda mais maléfico e impressionante, ele planeja raptar a Lua. Para isto, conta com a ajuda dos mínions, seres amarelados que trabalham como seus ajudantes, e do doutor Nefario, um cientista. No entanto, para realizar o roubo, terá que tomar de Vetor um instrumento que emite um raio capaz de diminuir o tamanho de tudo que atinge. Sem conseguir invadir a fortaleza de Vetor, Gru encontra o plano perfeito quando vê três órfãs entrarem no local para vender biscoitos. Ele, então, decide adotá-las para colocar em prática seu plano. Entretanto, não esperava que as irmãs o vissem como um pai em potencial. No processo de construção deste relacionamento, há altos e baixos. Para a realização desta análise, procedeu-se à leitura de livros e artigos científicos sobre o tema da adoção. Após, buscou-se fazer um contraponto entre a literatura e os aspectos identificados no filme. 69 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 Discussão A análise do filme centrou-se em duas questões principais e inter-relacionadas, a saber: motivação e expectativas em adotar; e pouco preparo para a adoção e as consequências disso para a relação familiar. Motivação e expectativas em adotar Ao se deparar com dificuldades para invadir a fortaleza de seu inimigo, um grande obstáculo em seu plano de roubar a Lua, o malvado Gru vê três irmãs órfãs entrarem tranquilamente na residência de Vetor para vender-lhe biscoitos. Imediatamente, Gru traça seu plano maléfico: irá adotar as três irmãs, construir “biscoitos-robôs” e fazer com que elas os entreguem na casa do inimigo, para que ele possa roubar um artefato de seu interesse. Dessa forma, fica evidente que a motivação consciente de Gru em adotar as irmãs deu-se pela possibilidade de um ganho secundário (entrar na fortaleza inimiga para roubar uma arma). A partir disso, houve, por parte de Gru, a idealização do projeto adotivo: a adoção surgiu como resolução de todos os problemas, não sendo vislumbrado nenhum obstáculo ou dificuldade. Conforme Ghirardi (2008), é frequente na prática clínica o fenômeno da idealização da adoção e da criança: esta idealização seria um substituto do narcisismo perdido e uma tentativa de sua recuperação. Contudo, Levinzon (2006) afirma que a idealização pode resultar em sérias dificuldades no estabelecimento de um relacionamento verdadeiro com o filho adotado, o que de fato ocorre no início da relação entre Gru e as irmãs adotadas. Poderia se traçar um paralelo da intenção em adotar de Gru, motivada por um ganho secundário, com outras motivações semelhantes, como exemplo aquelas nas quais há a crença de que a inclusão de uma criança na família aumentaria a probabilidade de fecundação dos casais com problemas de fertilidade. De acordo com Weber (1999), mesmo que em pequeno número, ainda há pessoas que acreditam ser válido adotar na tentativa de aumentar as chances de concepção. Na visão de Reppold e Hutz (2003), estas pessoas concordam em utilizar um filho adotivo para diminuir a ansiedade frente às dificuldades de reprodução, vendo a criança ou o adolescente adotado como um meio e não como um fim. O mesmo ocorre na história do filme, porém por razões distintas: Gru adota as meninas vendo-as como um meio para obter o fim narcisista que o motiva (roubar a Lua para tornar-se um vilão mais conhecido e respeitado). O personagem é tão “egoísta” nesta empreitada que nem sequer cogita a hipótese de que poderia apegar-se às filhas ou elas a ele. Nestas situações, parece claro que a não elaboração deste lugar de “objeto” da criança no inconsciente dos pais pode trazer dificuldades no relacionamento familiar. De fato, foi o que ocorreu de início com Gru e suas três filhas adotivas. No momento em que Gru conseguiu o que desejava com a adoção, seu primeiro pensamento foi o de abandonar as meninas em um parque de diversões. Contudo, ele se diverte no parque com as filhas e, a partir deste momento, o relacionamento entre eles começa a modificar-se: as meninas passam a ocupar um espaço dentro de Gru, e isto faz com que ele possa vislumbrar a possibilidade da parentalidade. É igualmente evidente, na história do filme, outro aspecto da adoção concretizada por Gru: sua motivação inconsciente. De acordo com Levy e Féres-Carneiro (2001), a história psíquica de cada um dos pais adotivos terá repercussão na relação a ser estabelecida com a criança. A infância do personagem principal é retratada no filme por meio de cenas nas quais Gru, ainda criança, mostra suas produções incríveis (desenhos, protótipos e até mesmo um foguete de verdade) para sua mãe, e esta não lhe emite resposta alguma: não olha, não elogia, enfim, não cuida emocionalmente. Motta (2001) aponta alguns padrões típicos da parentalidade patogênica, dentre os quais cita a ausência persistente de respostas de um ou ambos os pais no cuidado com a criança e/ou depreciação e rejeição em relação a ela. Para Bowlby (1989), o comportamento de cuidado das figuras de apego é definido como a provisão, por ambos os pais, de uma base segura a partir da qual uma criança ou um adolescente podem explorar o mundo exterior e a ele retornar certos de que serão bem-vindos, nutridos física e emocionalmente, confortados se houver um sofrimento e encorajados se forem ameaçados. Pode-se supor, então, que o personagem Gru não se sentiu cuidado desta maneira durante sua infância, apegandose de maneira insegura à sua figura de apego, que, neste caso, era sua mãe biológica. Esta mãe, por sua vez, apesar de ter vínculo biológico com o filho, não o adotou psiquicamente. A partir da falta de disponibilidade da mãe, Gru cresce utilizando-se da maldade como um mecanismo de defesa. Quando adulto, seu desejo inconsciente em adotar parece ser em razão da resolução do conflito anterior com a mãe. O lado afetivo que fora ausente no relacionamento com a mãe, foi acionado no malvado Gru através da adoção. Após o desfecho final do filme, é possível notar que ser um bom pai é motivo de orgulho para o personagem e este fato é reconhecido pela sua mãe. Pouco preparo para a adoção e suas consequências para a relação familiar Na literatura consultada, parece ser consenso a importância da elaboração das motivações inconscientes pelos pais antes de realizarem a adoção, para que fantasias e sentimentos não sejam projetados no filho adotado. No caso de Gru, não houve esta 70 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 elaboração ou qualquer forma de preparação. O processo de adoção, no filme, se dá de maneira bastante caricata: Gru cria uma história de vida falsa e comovente e esta é muito brevemente analisada pela dona do orfanato. Outros aspectos que chamam atenção no processo adotivo realizado no filme, mas que não serão tratados no presente trabalho, são a ausência do período de convivência e a não valorização das opiniões e sentimentos das crianças a serem adotadas. Acredita-se que, em conseqüência da não elaboração das motivações em adotar, Gru não estava preparado para as atitudes das meninas e nem para os cuidados que estas exigiam. Para Levinson (2006), a inabilidade de alguns pais adotivos em aceitar as expressões mais instintivas da criança pode estar ligada à descontinuidade biológica, que impede que possam fazer um investimento narcísico em seu filho. Assim, a autora aponta que comportamentos instintivos normais, como sujeira, curiosidade sexual, agressão, entre outros, são compreendidos como reflexos do“mau sangue”da criança. Estes aspectos podem ser identificados no filme. No início da história, por ainda não ver as meninas como suas filhas, e sim como um meio para alcançar outro objetivo, Gru não consegue realizar um investimento narcísico nas meninas adotadas. Dessa forma, estabelece regras de convivência irreais para inibir os comportamentos por ele indesejados, tais como não tocar em nada, não lhe atrapalhar enquanto trabalha e não fazer “sons irritantes”, como rir, espirrar ou chorar. Em conseqüência desta não preparação psicológica de Gru à adoção, outras “preparações” foram igualmente negligenciadas, como a preparação do espaço físico. A casa de Gru era totalmente inapropriada para crianças, havendo objetos e substâncias perigosos ao alcance, além de um cão bravo. Dessa forma, vê-se que a falta de espaço psíquico para a chegada das irmãs também se traduziu na falta de espaço físico. O processo de filiação satisfatório depende também, dentre diversas outras variáveis, de um envolvimento familiar global (Ducatti, 2004). De acordo com Maldonado (1989), ter um filho acarreta profundas alterações intra e interpessoais, com a possibilidade de revisões, ampliações e modificações de aspectos de identidade de cada um dos membros do que a autora denominou de “família grávida”. Estes aspectos ficam claros na história do filme. A não elaboração da motivação em adotar e a não preparação de toda a família de Gru para o processo de adoção levou a dificuldades no relacionamento familiar, personificadas na figura do doutor Nefário, um cientista que reside com Gru. Para Nefário, as meninas adotadas estavam dificultando o envolvimento de Gru no plano de roubar a Lua, pois ele estava despendendo tempo e atenção mais a elas do que à construção do foguete. Pode-se entender a reação do cientista, já que em momento algum este foi consultado, informado ou preparado sobre a decisão de adotar, estando à margem de todo o processo. Dessa forma, tentando restabelecer sua família, o doutor Nefário chama a responsável pelo orfanato e devolve a ela as três irmãs. Este ato institui para a criança o retorno a uma condição anterior, caracterizando uma experiência que reedita outras anteriores ligadas ao abandono (Ghirardi, 2008). De fato, podese notar que a devolução é um momento muito difícil para as três irmãs, mas também o é para o pai Gru, que neste momento demonstrava ambivalência entre cuidar de seu projeto ou de suas filhas. Entende-se que os indivíduos, ao decidirem por um processo de adoção, e consequentemente por uma tentativa de oferecer uma família a uma criança, devem tomar suas decisões em conjunto, sempre baseadas no diálogo, no respeito e na compreensão, visto que a vida e a rotina de todos os membros da família serão alteradas, devendo se enquadrar à nova realidade familiar (Gondim et al, 2008). Após a devolução, Gru sente a ausência das filhas, percebendo que havia se vinculado a elas. O apego entre uma criança e uma figura cuidadora é algo que se estabelece de forma lenta e gradual, através de semanas, meses e anos de interação amorosa, e pode existir tão bem entre pais e filhos adotados quanto entre biológicos (Brodzinsky, et al, 1993). No filme, este apego se estabelece, talvez até de forma mais rápida do que seria possível na vida real. Ainda assim, é um retrato da possibilidade de construção de um relacionamento afetivo verdadeiro, que independe de qualquer aspecto biológico e de qualquer motivação julgada como “ilegítima ou distorcida”. Este apego é, também, o resultado de um processo que envolve a criação de um espaço psíquico para os filhos no imaginário dos pais, e do investimento narcísico destes pais em seus filhos, como aponta a literatura. Para Bowlby (1989), os tipos de experiências que um indivíduo teve com sua família de origem ou fora dela influenciarão, em alto grau, a forma segundo a qual seu comportamento de apego se origina. Este comportamento terá repercussões na vida adulta do indivíduo e, inclusive, no exercício da parentalidade. Gru decide-se pela adoção, motivado por questões conscientes e inconscientes relacionadas a um ganho secundário (narcisismo) e a um conflito anterior com sua figura de apego (mãe biológica), respectivamente, sem proceder a qualquer tipo de preparação (psicológica, familiar). A partir de um julgamento inicial, poder-se-ia dizer que esta adoção não teria sucesso. Todavia, ao longo do processo de convivência, Gru pode, verdadeiramente, adotar psiquicamente suas filhas, exercendo sua função “materna”, o que se traduziu em uma melhora significativa no relacionamento de toda a família. De fato, há evidências de que a maioria das crianças adotadas se adapta de maneira adequada à nova família (Brodzinsky, et al, 1993). A história do filme parece estar, então, de acordo com o 71 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73 paradigma defendido por Levinzon (2006) e Weber (1997) apresentado anteriormente, segundo o qual a preparação e a elaboração, antes da seleção e do julgamento da motivação em adotar, auxiliam os pais adotivos no exercício de suas funções, o que influenciaria em grande medida o sucesso da adoção. Sobre esta preparação para adotar, Weber (1999) realizou uma pesquisa com pais adotivos e demonstrou que, apesar de os grupos de apoio aos pretendentes à adoção, no Brasil, não serem obrigatórios, 67% dos entrevistados relataram considerar importante a preparação e o acompanhamento após o processo adotivo ter sido concluído judicialmente. Considerando-se o exposto, é evidente a importância do papel do profissional da Psicologia para a preparação dos pretendentes à adoção (e também das crianças a serem adotadas), processo que envolve, entre outros aspectos, a elaboração das motivações conscientes e inconscientes. Fuchs, L. D. C.; Sternberg, P. W. & Breda, R. P. L. S. (2009). Quando a agressividade expressa a dor do abandono: a propósito da adoção. Revista de Psicoterapia da Infância e da Adolescência – Publicação CEAPIA, ano 18, n. 18, pp. 73-82, 2009. Bowlby, J. (1969). Apego. Volume I da Trilogia Apego e Perda. São Paulo: Martins Fontes, 1984. Bowlby, J. (1989). Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. pp: 17-119 Brasil (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]. Lei Federal nº 8.069, de 13.07.1990. Artigo 43. Brodzinsky, D. M.; Schechter, M. D. & Henig, R. M. (1993). Being Adopted: The Lifelong Search for Self. New York: Anchor Books, 1993. Considerações Finais Este trabalho abordou o tema da adoção, sob a perspectiva dos pais adotivos e suas motivações em realizar tal ato, bem como a influência deste fator no relacionamento de toda a família, através da análise de um filme infantil. Acredita-se que o presente estudo revela a importância da preparação para adoção, no sentido de que os pretendentes possam identificar e elaborar as motivações inconscientes que os levaram a desejar a adoção de uma criança ou um adolescente, para que estas questões interfiram positivamente no relacionamento familiar. Posto isto, fica evidente a importância da atuação do psicólogo não somente após a adoção, no sentido de seu acompanhamento, como também antes da ocorrência desta, em uma ênfase preventiva. Entretanto, a limitação deste estudo reside em seu enfoque exclusivo às motivações em adotar, que se constituem como um único aspecto dentro do “universo” da adoção. De acordo com Ducatti (2004), o desejo para se tornar pais tem um caráter multifacetado, resultando de vários processos psíquicos, não podendo ser reduzido a apenas um de seus componentes. Ainda assim, entende-se que a discussão deste aspecto tenha contribuído um pouco mais para o entendimento da adoção na perspectiva de quem adota. Referências Associação dos Magistrados Brasileiros [AMB] (n. d.). Adoção Passo a Passo. Disponível em: www.mp.rs.gov.br/areas/infancia/arquivos/adocaopassoa passso.pdf Acesso em 08 de Maio de 2012. Brodzinsky, D. M.; Smith, D. W. & Brodzinsky, A. B. (1998). Children's adjustment to adoption: developmental and clinical issues. Thousand Oaks: Sage. Campos, N. M. V. & Costa, L. F. (2001). A família nos estudos psicossociais de adoção: uma experiência na vara da infância e da juventude do Distrito Federal. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2001. Corso, D. L. & Corso, M. (2011). A Psicanálise na Terra do Nunca: Ensaios sobre a Fantasia. 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Intrigante para nós, Eliane joga com a palavra, negativando-a, talvez para falar daquilo que esteve presente desde seu nascimento: uma irmã, cuja vida não aconteceu; um luto que não aconteceu; a casa com rosas onde não morou; a mãe que não teve presente; as histórias que – acontecendo – impediram que ela acontecesse, enquanto uma filha reconhecida em sua própria existência. É uma leitura que nos deixa atônitos, assombrados, de tanto contato que nos convoca a fazer com aquilo que, em nós, na conveniente correria do dia-a-dia, queda silenciado: nosso nascimento, nossa infância, com suas faltas, perdas, ausências e mortes. Desde o lugar de leitores, somos tragados para dentro de suas dores, levados a viver e sofrer com ela tudo o que se passou. É uma leitura densa, porque, em maior ou menor grau, todos vivemos um tanto destas histórias dramáticas, de uma infância vivida com toda a sua intensidade, com suas boas e, principalmente, suas mais terríveis experiências, que agora a autora divide conosco. Impossível somente ler e não viver cada frase, não sentir na pele cada página, não se ver em seu lugar em cada passagem que ela vai nos contando, cada uma das “histórias de sua vida com as palavras”. Eliane, porém, não está tão somente contando sua história com as palavras. Ela conta a história dela-menina, quando viveu a morte desde que habitava o útero da mãe, quando uma irmã que era um túmulo no cemitério, um túmulo que ninguém da família conseguia fechar, muito menos eu roubou-lhe a casa, o sol, as roseiras, a luz, quando sentiu que nasceu para viver entre mortos-vivos, não de um, mas de vários túmulos. E um deles era um túmulo vivo; uma menina que sempre viveu e sentiu tudo no corpo. 74 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 74-76 s Seu livro é feito de morte e de vida, que é a grande questão de nossa mais precoce infância. Não trata de dramas de Édipos, com seus conflitos, questões em aberto e enigmas a desvelar; pelo contrário: trata de lugares fechados, de cemitérios, do apartamento escuro como o que ela cresceu, da depressão da mãe que estava lá sem estar, ou que esteve mais em corpo do que em alma. Seu livro é feito de não lugares, de entrecasas, que ela viveu na infância, com uma sensação de quase-morte. E não são os mesmos lugares escuros que habitam a todos nós, seja pelas filhas que fomos, pelas mães que perdemos, pelos lutos que não elaboramos, pelos segredos que não revelamos, pelas heranças malditas, pelas histórias de captura, por relações de alienação, por uma inexistência, condenações com prisão perpétua, por pactos narcísicos? Falando de si, ela fala da vida de todas nós, com nossas mães, pais, irmãos e irmãs, vivos e mortos. Fala de modo sensível e profundo de uma época pretérita, em que somos apenas carne, onde nos habita o silêncio e, incapazes de falar, somos objetos do outro. Em um estado narcísico, primário, estamos largados a nossa própria morte, se não for o outro-mãe, sem que ela seja ainda um outro. Estamos expostos a ser bem conduzidos ou mal conduzidos, podendo crescer ou sendo trancafiados no corpo desta mãe, na fala da mãe, nas expectativas da mãe. Enquanto impera aquilo que ela define por nós e para nós, ainda não somos sujeitos de nosso desejo. Enquanto, como Eliane propõe,“não nos arrancarmos do silêncio para virar narrativa”, nada teremos de realmente nosso. Contudo, ela reconhece: das mães, um parto só não basta; é preciso arrancar-se. Arrancar-se – esse é o verbo que ela usa, uma expressão exata. Habilidosa como é com as palavras, não usaria qualquer uma. Arrancar-se, porque não é fácil discriminar(se), saber parir e saber partir, nem para uma, nem para a outra. Quando a libido que deveria banhar um bebê que nasce é embargada pela morte, o que seria expressão de vida fica impedido de acontecer. Eliane fala de uma morte que não era dela, que não tinha sido vivida por ela. Todavia, tendo sido concebida e instalada no útero materno, divide compulsoriamente o espaço com o cadáver da menina morta, a primeira filha de sua mãe. E nós? Quantos cadáveres ganham direito a usufruto de nosso corpo e nossa alma? Quantos não existem à custa de nossa existência? Com o sacrifício de nossa vida? Para devolver a vida a essa menina que a mãe não podia enterrar, ela tem que se fazer morta. Por tentar fazer passar a dor sem consolo desta mãe, ela temia o tempo todo que a mãe lhe trocasse, caso descobrisse um modo de fazer isso: “E a cada repetição, eu, a filha viva, sentia que a viva era a outra”. Ela viveu isso tudo de fato, na literalidade que a compõe. Mas, em outro nível, quantos defuntos não carregamos? Quantos sonhos não realizados de nossos pais ou antepassados tentamos, mas temos que aguentar não cumprir? Quantos desejos seus frustrados temos que aceitar não realizar? Eliane descreve o mundo sem palavras em que viveu antes de aprender a ler. “Percebo que o escuro era uma ausência. Uma ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu antes da história, eu antes das palavras. Eu caos”. O escuro e o túmulo desta etapa pré-palavra e tudo o que se passou lá, disso nada sabemos. Não sabemos porque não temos uma memória que nos permita lembrar e, lembrando, elaborar e mudar. E, mesmo não sabendo, ela está lá, essa história, como uma mortaviva, enterrada viva, com todo o barulho que faz, mesmo que tentemos silenciá-la; ela se impõe e se faz ouvir. Penso no bebê que, desprovido da linguagem, ficará dependente por algum tempo de quem lhe deu à luz; ele dependerá da compreensão da mãe, que fará por ele tudo o que, só bem mais tarde, ele será capaz. Ou não. Se ele tem a sorte de ter pais que podem se haver com sua própria história e seus próprios lutos, ele poderá também, um dia, falar em nome próprio, o que significa muito mais do que ter aprendido a falar; isso todos aprendemos. Mas e quando não houver uma mãe que permita que esse jánão-bebê fale a partir de sua própria boca e lhe comunique aquilo que ele precisa e deseja? Quando ela não reconhece o direito de sua prole de falar por si e segue impondo a ele a sua própria fala? O seu próprio desejo? E quando não há um pai presente em sua função de apresentar o mundo ao infante, liberando-o dos braços da mãe? Com pais mergulhados em luto, silêncios e impossibilidades, Eliane não teve. A palavra, então, deu contornos ao que teria ficado disperso; juntou os pedaços todos que, já estando espalhados dentro dela, seriam perdidos do lado de fora. Quando a palavra junta vogais e consoantes, sílabas entre si, ela nos sinaliza um processo possível, nos anuncia um psiquismo. Antes disso, temos coisas, excessivas coisas e pouca capacidade de dar conta; carecemos do simbólico que, na escrita, logramos. Em algum ponto do livro, Eliane confessa que sempre vai temer o retorno da escuridão. No entanto, paradoxalmente, é somente por conseguir submergir nesse espaço sem luz, sem som, sem ar, sem vida, que alguém pode escrever assim como ela escreve: de forma absolutamente viva. Em Meus Desacontecimentos, não inventou ou criou personagens; com transparência – talvez proporcional à ânsia de ser vista –, ela mesma se faz aparecer em todas as experiências que compuseram sua relação com a escrita, as melhores e as piores. Com seu estilo sem floreios, mas cru e profundo, fez-nos ver que, tal como penso a escrita, o ato de escrever se faz com intensidade, com realidade, enfrentamento e nudez; se faz a escrita quando nos sentimos em carne viva, escalpelados, sofridos. Neste livro, ela está em carne viva. E escreve para curar. 75 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 74-76 Foi isso que ela fez desde pequena, desde que descobriu que palavras salvam. Percebeu que, “no dia em que se tornasse capaz de emendar uma história na outra, não precisaria mais temer perder a cabeça (Ou tornar-se aquela presa no túmulo)”. Na escrita, aquilo que nos mataria sufocados ganha expressão, audiência e leitores; ganha registro, escuta e olhar. Escrevemos quando vemos que não precisamos mais suportar sozinhos, isolados e mudos, aquilo que ninguém – como aconteceu com ela – pode ouvir, em um tempo que já ficou para trás. Ou que, pelo menos, já deveria ter ficado. Quando escreve, Eliane se faz ouvir e se faz ler por muitas pessoas, todas as que não escutaram aquilo que, antes, ela não podia falar. É disso que ela trata: da possibilidade da palavra dar borda e significado ao que foi vivido de forma bruta e brutal. Quando escreve, promove esta transformação possível do que foi, um dia, traumático. Nesse segundo tempo, somos agentes, ativos, contadores de uma história que, em um primeiro tempo, apenas sofremos, sujeitos, passivos e que, agora, criamos. Ela anuncia: “Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira”. E não é, também, esse tipo de escrita que ela nos propõe? Uma escrita em que falamos de nós, em que estamos completamente dentro e presentes até as vísceras em cada frase posta no papel? A psicanálise que acontece nos divãs de nossos tratamentos aconteceu na leitura deste livro, que foi, em si mesma, uma experiência analítica. Eliane faz e nos leva a um percurso de dentro para dentro, como anuncia logo no início; e é um dentro em seu fundo sem fundo. Para nós, leitores, é esta função que seu livro faz cumprir: ela retira as cascas que cobrem mal nossas feridas abertas, escondendo que, por baixo, elas nunca cicatrizaram. Ela faz nossa alma irromper na pele, como ela mesma sentiu, levando-nos a olhar para o que é fácil ocultar. “Às vezes, me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. [...] O que tento dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, [...] eu possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em algum momento, o rasgaria demais”. A escrita salvou-a de se assassinar, mas penso que, mais do que isso, mais do que nos salvar da morte, a escrita injeta vida. Hoje, com nossas infâncias já longínquas, mas nossas dores tão perto, é a escrita que nos banha de palavras. Palavras que nos dão voz, que nos trazem luz, que nos garantem existência, que nos ofertam o mundo. 76 REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Í N D I C E Editorial........................................................................................................................................................................................1 Sônia Martins Sebenelo Comissão editorial Artigos Di Bobis: Adolescência e desamparo na contemporaneidade....................................................................................................02-09 Di Bobis: Alolescence and helplessness in contemporary society Amanda Pacheco Machado Luciana Balestrin Redivo Drehmer Tratamentos Não Farmacológicos para Dependência Química..................................................................................................10-19 Non Pharmacological Treatments for Drug Addiction Karine Hahn Cafruni Giovana Brolese Fernanda Lopes Limites da Interpretação: irredutibilidade, castração e umbigo do sonho.................................................................................20-26 Limits of Interpretation: irreducibility, castration and navel of the dream Carlos Alexandre Araújo Benício da Costa e Silva Tecendo a sanidade: Arthur Bispo do Rosário - O gênio da contemporaneidade........................................................................27-39 Weaving Sanity: Arthur Bispo do Rosário - The Genius of Contemporary Eliane Tonello A História e a construção do conceito de Representação Social - Representação Social: a história de um conceito......................40-49 The history and the construction of social representations concept Jacir Alfonso Zanatta Márcio Luis Costa Efeitos da transferência no atendimento a pacientes oncológicos............................................................................................50-57 Effects of transference in the treatment of oncology patients Andrea Theise Marianne Montenegro Stolzmann Mendes Ribeiro Aspectos emocionais e psicossociais em pacientes renais pós- transplantados..........................................................................58-65 Psychosocial and emotional aspects on post transplanted renal patients Samantha Sittart Navarrete Luciane Slomka Artigo premiado Motivações para Adotar e Relacionamento na Família Adotiva: Análise de um Filme Infantil.....................................................66-73 Gabriela Vescovi Resenha Meus Desacontecimentos: A história da minha vida com palavras............................................................................................74-76 Ana Cláudia S. Meira 77