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REVISTA DA
SOCIEDADE DE
PSICOLOGIA DO
RIO GRANDE
DO SUL
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
E X P E D I E N T E
Diretoria (Gestão 2013/2015)
PRESIDENTE
Sônia Martins Sebenelo
VICE-PRESIDENTE
Sally Karina Brodski
DIRETORA ADMINISTRATIVA
Ione Maria Russo
DIRETORA CIENTÍFICA
Mazlowa Maris Heck
DIRETORA FINANCEIRA
Marcia Ines Monteiro Steffen
DIRETORA SÓCIO CULTURAL
Marilene de Almeida Marodin
DIRETORA DO INTERIOR
Milene Maria Gonzales Merg
DIRETORA DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL
Angela Flores Becker
DIRETORA SUPLENTE
Odete Botton de Souza
Endereço: Rua Felipe Néri, 414, 2º Andar. Porto Alegre, RS
Editora: Roberta Vial Giacobone
Co-editora: Alexandra Dal Prá
Editores Associados: Denise Hausen, Samanta Antoniazzi e Thomás
Gomes Gonçalves
Conselho Editorial
Adriane Roso
Ana Maria Jacó-Vilela
Ana Mercês Bahia Bock
Ana Teresa R. Cerqueira Filho
Angela Helena Marin
Anita Guazzelli Bernardes
António José dos Santos
Antonio Virgilio Bastos
Armando Ribeiro das Neves Netto
Bárbara de Souza Conte
Claire Lazzaretti
Cleber Gibbon Ratto
Cristina Queirós
Danichi Hausen Mizoguchi
Edite Krawulski
Eliane Seidl
Fabián Rueda
Ignácio Paim Filho
Irani I. de Lima Argimon
Karen Eidelwein
Julieta Quayle
João Carlos Alchieri
Leonardo Lemos de Souza
Lúcia Novaes
Marco Aurélio M. Prado
Marcus Vinicius de Oliveira Silva
María del Luján González
Maycoln L. M. Teodoro
Mayte Raya Amazarray
Pedro Gil-Monte
Rosana Cecchini de Castro
Silvia Coutinho Areosa
Silvia H. Koller
Sueli Souza dos Santos
Tânia Mara Galli Fonseca
Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araújo
Valdiney Gouveia
Projeto gráfico - Grau Soluções Gráficas
Diagramação e Edição
Própria Comunicação
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
EDITORIAL
PALAVRAS DA DIRETORIA
Pensar significa transpor
Ernst Bloch¹
A gênese da revista da Sociedade de Psicologia se deu em 1975, quando
foi editada pela primeira vez.“Ainda me lembro das idas e vindas entre a sede
na Rua da Praia e uma gráfica que ficava na Rua General Vitorino, e o quanto
incomodava os colegas para aprontarem os textos, meu Deus!... E a alegria de
ver as capas a um só tempo brilhantes e sóbrias. Quanto tempo, quase
quarenta anos.” ( Luiz-Olyntho Telles da Silva – Presidente da SPRGS –
Gestão 75/76.)
Revelou-se durante todos esses anos um espelho de produção científica
e cultural, refletindo a riqueza e o perfil da SPRGS. O convite à presidência
para apresentar o Editorial foi um privilégio, pois quando ideias precisam ser
repensadas, o lançamento desta edição sublinha a intenção de, renascendo a
revista, nesta e nas próximas edições, alinhavar o contemporâneo e o
tradicional – forma virtual e impressa – para o leitor que aprecia colecionar e
consultar. O movimento editorial que surge discreto e potente contempla a
produção científica de autores da área acadêmica e de fora dela, enquanto o
mesmo em relação aos pareceristas, como histórica e democraticamente
sempre ocorreu nas publicações da revista.
Com entusiasmo, a Diretoria da SPRGS – Gestão 2013/15 sente-se
representada neste movimento empreendido pela atual Comissão Editorial.
Apresentamos a nova edição da revista com temas variados, que suscitam e
provocam o debate através de artigos inéditos na área da Psicologia, relatos
de pesquisa, experiência profissional, artigos de revisão e resenhas,
representando um espaço de produção de conhecimento e abertura de
novos universos para reflexão e análise.
Dentre os artigos, encontramos a discussão sobre os desafios frente à
juventude, ao desamparo do adolescente contemporâneo e ao papel da
escuta psicanalítica. Em revisão teórica da concepção freudiana e de autores
atuais, outro artigo explora os alcances e limites da interpretação, presentes
no trabalho psicanalítico. Um estudo de caso aprofunda o olhar sobre as
internações psiquiátricas, seus efeitos no sujeito, a necessidade de uma
transformação da relação cultural com a doença mental e o papel da arte
como uma perspectiva em saúde. A análise do transtorno de personalidade
borderline, e as comorbidades associadas, oferece uma contribuição à
compreensão desse quadro clínico, de alta incidência na clínica ambulatorial
e em internações psiquiátricas. Em relato clínico com pacientes oncológicos,
somos instigados a pensar sobre a relação transferencial e o papel do
psicólogo na ressignificação das inscrições subjetivas e suas possibilidades.
Estudo sobre a neurose histérica e suas manifestações, à luz da psicanálise e
através do entendimento das transformações culturais da
contemporaneidade, e sua influência na sintomatologia atual, demonstra
como a histeria é concebida hoje. A evolução da Psicologia é debatida em
artigo que analisa o percurso da Psicologia Social até chegar à Teoria das
Representações Sociais, como teorias ou sistemas de conhecimento da
realidade social.
Temos ainda a satisfação de publicar o trabalho escolhido para
representar o Prêmio Estudante, sendo este a análise de um filme infantil que
aborda o tema da adoção. Através de pesquisa teórica, foram avaliadas as
motivações e as influências no relacionamento familiar, e a importância do
campo de atuação do psicólogo neste processo.
Visamos – a Diretoria SPRGS - Gestão 2013/15 – e Comissão Editorial –
oferecer aos leitores o resultado de um momento fecundo no cenário da
2 que agora experimentamos. Aos
instituição, daí o sentimento de realização
autores que, com a excelência de seus textos, ensejaram a elaboração do
acervo que compõe este número da revista, nosso agradecimento, bem
como ao colega Alexandre Schossler, artífice da reinstalação da plataforma
SEER, que esteve desativada.
Boa leitura a todos nós – explorando fronteiras do pensamento e do
conhecimento!
Sônia Martins Sebenelo, presidente
É com muita satisfação que apresentamos aos sócios e à comunidade
em geral mais um número da Revista Diaphora, o primeiro exemplar
confeccionado pela gestão 2013/2015. Nesta edição, mantivemos a
veiculação online da revista, por entendermos que esta forma de divulgação
permite ampla visibilidade e fácil acesso por parte dos leitores. Contudo,
também abrimos espaço para um debate sobre a retomada da versão
impressa, acreditando que estas duas formas podem coexistir e, juntas,
contemplar as demandas de grande parte dos associados.
Nosso compromisso durante o tempo que estivermos à frente da revista
é de que a mesma se constitua em um espaço de troca entre os sócios,
contemplando as mais diversas experiências e formatos, preservando como
principal característica de nosso periódico a pluralidade. O entendimento de
que a Diaphora é uma revista que tem como diretriz representar uma
categoria profissional nos impulsiona a manter a ideologia de que esta
publicação poderá contemplar a maior variedade de escritos.
Gostaríamos de convidar a todos para publicarem conosco! Desejamos
uma agradável leitura e um Feliz Dia do Psicólogo, recentemente
comemorado!
Forte abraço,
Comissão Editorial
¹ Bloch Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro:
Contraponto/Eduerj, 2005.
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REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Di Bobis: Adolescência e desamparo na
contemporaneidade
Di Bobis: Adolescence and helplessness in
contemporary society
2
Amanda Pacheco Machadoa *, Luciana Balestrin Redivo Drehmer b*
Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão a respeito da vivência da adolescência na atualidade. Para isso, são
abordadas questões relativas à influência das primeiras relações que o sujeito estabelece para a constituição do
psiquismo, analisando-se o tema a partir dos fenômenos da contemporaneidade marcados pela cultura do
narcisismo e da condição do desamparo. Assim, frequentemente, observa-se a ocorrência de padecimentos
marcados pelo desamparo, cuja saída é o ato. E, para ilustrar tal questão, apresenta-se o caso de um adolescente
de quinze anos atendido em um serviço escola. Com isso, pode-se compreender a importância da leitura da
passagem ao ato como um pedido de ajuda, e o quanto a psicanálise é uma ferramenta fundamental no
entendimento desses casos.
Palavras-chave: adolescência; desamparo; passagem ao ato; serviço escola.
Abstract: This article presents a reflection about the experience of adolescence nowadays. To this end, issues are
addressed on the influences of early relations on the subject and the formation of his/her psyche. This topic is
considered based on the phenomena of contemporaneity, which is marked by narcissism and conditions of
helplessness. Therefore, it can be observed more frequently the suffering, characterized by helplessness, to
which the escape is the act. To illustrate this issue it is presented a case of a fifteen-year-old, who was attended at
a school service. With this, one can understand the importance of reading of the passage to the act as a call for
help and how psychoanalysis is an essential tool in understanding these cases.
Keywords: Adolescence; helplessness; passage to the act; school service.
a
Psicóloga, mestranda em Psicologia Clínica (bolsista Capes), PUCRS, Brasil.
E-mail: [email protected]
b Psicóloga, Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, Professora da Faculdade de Psicologia PUCRS, Brasil.
E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09
Muitos autores vêm se debruçando sobre o estudo da
sociedade contemporânea e suas características peculiares. Essas
reflexões têm sido incitadas, principalmente, pela observação, na
prática clínica, do que vem sendo nomeado como “novas
patologias” ou “patologias do vazio”, que são consideradas
reflexos, de certa maneira, do modo de vida predominante em
nossa sociedade. Contudo, o interesse pelo estudo do contexto
social para entender esses fenômenos não é novidade. Em 1930,
Freud já ressaltava a relevância de voltar-se às questões culturais
para entender o comportamento do homem, pois sua
constituição é atravessada também por aspectos relacionados à
cultura vigente.
Naquela época, Freud (1930/1996) caracterizou sua
sociedade como se mantendo energicamente dentro do limite e
se opondo à satisfação das pulsões sexuais e agressivas, sendo
descrita como uma sociedade marcada pela rigidez. De acordo
com Savietto (2007), as sociedades ocidentais atuais, pelo
contrário, caracterizam-se por exaltarem a liberdade individual
como valor máximo e consagrarem o prazer. Ou seja, é uma
cultura na qual a satisfação imediata é privilegiada acima de
tudo, o que leva os indivíduos a uma busca eterna de meios para
esconder e eliminar a dor, incitando resoluções imediatas e
absolutas. Birman (2012) acrescenta ainda tratar-se de uma
cultura em que a questão do olhar, da performance e da
visibilidade adquirem grande valor na cena social. Devido à
estreita ligação entre tais propriedades com o narcisismo, isso
também nos coloca diante de características como a solidão e o
desamparo componentes da subjetividade de qualquer ser
humano. O que acontece atualmente é uma impossibilidade de
tolerar a condição constitutiva do ser humano.
Muitas dessas características que nossa sociedade hoje
revela assemelham-se ao que até então era atribuído,
essencialmente, à vivência do período da adolescência,
momento no qual o indivíduo precisa elaborar suas experiências
infantis para poder consolidar sua identidade. Assim, em uma
sociedade em que predominam características como as citadas
anteriormente, é importante nos questionarmos sobre como o
adolescente irá viver esse período e constituir sua identidade.
Trata-se de uma reflexão atual, extremamente relevante e que
vem ganhando espaço dentro da psicanálise. O interesse por essa
temática surgiu a partir de uma experiência de estágio em
Psicologia Clínica, quando, ao iniciar o processo de psicoterapia
com um adolescente, este mostrou ter uma constituição psíquica
muito frágil, perpassada por questões da cultura e de sua
estrutura familiar.
Assim, o presente trabalho caracteriza-se como um estudo
de caso cujo material provém de um atendimento no estágio de
Psicologia Clínica, durante a graduação em psicologia. Seguindo
os preceitos éticos das Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho
Nacional de Saúde, para a realização do presente estudo, por
tratar-se de um sujeito menor de idade, o pai do paciente
concedeu sua permissão para o uso das informações obtidas no
atendimento de maneira sigilosa. O atendimento iniciou-se em
março de 2011 e foi encerrado em meados de novembro do
mesmo ano. No decurso desse tempo, foram realizados 32
encontros com o paciente. Assim, a partir do relato dos
atendimentos, realizou-se uma análise qualitativa do material
levantado embasada no referencial psicanalítico.
Estados-limites e passagem ao ato
Atualmente, na clínica psicanalítica, os profissionais
deparam-se frequentemente com as chamadas “novas
patologias”. Essa demanda vem contribuindo para uma reflexão,
a partir dos referenciais teóricos, pertinente à prática com
pacientes que apresentam uma organização psíquica
considerada como estado-limite. A partir dessas reflexões, é de
fundamental importância um olhar crítico à teoria psicanalítica,
com objetivo de manter os paradigmas de base que são
indispensáveis, mas também para que se possa repensar e recriar
a prática clínica da teoria psicanalítica a fim de dar conta das
subjetividades contemporâneas (Hornstein, 2009).
Birman (2012) assinala três aspectos nos quais se inscreve a
dor presente nestas formas de funcionamento: o corpo, a ação e a
intensidade. Em geral, é por meio desses três registros que se
desenvolve a narrativa dos sujeitos que chegam para
atendimento. Tais manifestações podem ser encontradas em
diferentes quadros clínicos, como os casos de drogadição e
anorexia, que se assemelham pelo forte caráter compulsivo, no
qual a droga, no caso da drogadição, ocuparia um lugar de objeto
fetiche. Outra semelhança apontada pelo autor, de extrema
importância para o presente estudo, é a questão que se liga ao
corpo. Considera-se que o corpo é o palco de manifestações, o
que desencadeia indícios sobre a existência de diferentes formas
de corporeidade. Nesse sentido, apresentam-se maneiras de
desrealização da experiência corpórea que indicam, por sua vez,
que a vivência narcísica não fora vivenciada suficientemente,
denunciando uma falha nessa experiência. Se, por um lado,
estamos inseridos em uma cultura predominantemente
narcísica, por outro, deparamo-nos com subjetividades que
revelam um déficit do investimento narcísico do corpo. Indo mais
além, não se trata apenas de uma falha de investimento no
corpo, mas de um esvaziamento narcísico.
Nesse sentido, para compreender um pouco melhor o
desinvestimento narcísico, é relevante retomarmos o conceito de
desamparo, condição muito presente em nossa sociedade. O
desamparo, segundo Drehmer (2011), pode ser entendido
enquanto base da constituição da subjetividade do indivíduo e
aspecto proveniente da própria cultura. Através dessa condição, o
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09
outro passa a ter um valor inestimável na construção do
psiquismo, instaurando, mais tarde, a capacidade de desejar.
Tendo em vista a importância do outro no que se refere ao
desamparo, Garcia e Coutinho (2004) apontam que também
podemos entendê-lo como sendo o cerne de uma falha
desencadeada pela precariedade da qualidade do cuidado
recebido. Assim, o desamparo refere-se a marcas que não
poderão ser apagadas da história do sujeito, possivelmente
tornando-se o âmago de padecimentos que se caracterizem pelo
uso do ato e também de ataques que causem destruição ao outro
ou a si mesmo. Entende-se, portanto, que o desamparo diz
respeito a uma incapacidade do aparelho psíquico de conter o
excesso de excitação pulsional, o que acaba por desestabilizar o
sujeito, assim, colocando em xeque sua capacidade de assimilar
e de dar sentido a sua própria experiência.
Dockhorn, Macedo e Werlang (2007) trazem para discussão
a possibilidade de entendermos o desamparo relacionado ao
conceito de trauma, no sentido de que o trauma pode ser
entendido como responsável por caracterizar uma situação na
qual o psiquismo é invadido por quantidades, estímulos e
experiências, os quais é incapaz de processar. Assim, o conceito
de trauma – quando entendido juntamente à questão do
desamparo – enquanto componente da condição humana,
relaciona-se ao impacto daquilo que foge ao campo
representacional do sujeito em razão da sua grandeza e
intensidade.
Outra característica fundamental atribuída a essas
patologias é a passagem ao ato. Esse fenômeno indica a
dimensão do traumático, para o campo daquilo que não se pode
representar. Apresenta-se uma limitada capacidade de
simbolização, ou seja, as excitações pulsionais foram inseridas
em nível muito baixo no campo da linguagem, possibilitando e
facilitando que o ato propriamente dito emergisse. O ato tornase a única possibilidade de o sujeito conseguir regular a tensão e
a angústia excessivas que carrega dentro de si. Pode ser visto
também como se fosse uma forma de o sujeito encenar,
exteriorizar algo interno para tentar, precariamente, sair de uma
condição de passividade psíquica. A compulsão à repetição está
extremamente ligada a esse processo, visto que a passagem ao
ato representa uma tentativa de conter o excesso pulsional sem
que se realize o processo de elaboração. Como não atinge a
simbolização, o excesso pulsional permanece, levando o
psiquismo a repetir compulsivamente a tentativa de dominá-lo
sem sucesso (Birman, 2012 e Savietto, 2007).
Mas, afinal, o que está por trás desses padecimentos
psíquicos? Moraes e Macedo (2011) explicam que, nessas
constituições, atravessadas pela vivência da indiferença e que
encontram no ato uma maneira de dar conta dos excessos, se
identifica uma forma singular de organização do Eu, cuja
etiologia não será possível encontrar na conflitiva edípica. Nesses
padecimentos, a fragilidade psíquica encontra-se no que se
refere à alteridade, quando aquilo que fora vivenciado de
maneira intensa passa a ser atualizado através do ato de repetir,
sem qualquer possibilidade de representação. O ato, como
maneira de dar conta dessa intensidade, traz para a vida do
sujeito o encontro com o outro, que fora vivenciado com intensa
indiferença. Diante disso, o sujeito passa a ficar em um lugar de
subordinação, o que acaba por impossibilitá-lo de ser autor de
sua própria ação. Experimenta, então, uma condição de
desapropriação de si e, no aprisionamento dessa identificação,
internaliza tudo o que lhe foi oferecido a partir da indiferença.
Constituição psíquica: as primeiras
relações e a família
Macedo et al. (2010) apontam que as relações que se
estabelecem desde o momento em que se inicia a vida e a
qualidade do cuidado recebido são fundamentais para a
constituição do sujeito psíquico, o qual, mais tarde, irá se
defrontar com situações referentes ao desamparo inicial. Quando
um outro atende às necessidades básicas da criança,
concomitantemente, ela fará o registro das vivências de
satisfação em seu psiquismo incipiente, tornando-se um sujeito
psíquico. É possível perceber o valor do investimento, por parte
das figuras parentais, para a estruturação do aparelho psíquico e
do narcisismo.
É por meio da conflitiva edípica, quando existe a
triangulação, que irá se instaurar as diferenças e as interdições.
Com a entrada de um terceiro na relação, inscreve-se no
psiquismo infantil a imago paterna, o que faz com que a criança
passe a experimentar frustrações em virtude da separação da
figura materna. Assim, o indivíduo fará o registro da interdição
em relação aos seus desejos (Drehmer, 2011). Hornstein (2008)
explica que a entrada do pai na intensa relação da mãe com a
criança fará com que essa díade seja rompida através da
percepção da criança do desejo da mãe pelo pai. Dessa maneira,
a criança deverá abdicar do lugar de completude e de quem pode
tudo que até então ocupava. Portanto, a conflitiva edípica diz
respeito à aceitação de uma lei que, em princípio, é do pai e,
posteriormente, da sociedade e da cultura. Quando o complexo
de castração pode se inserir numa cadeia simbólica, abre-se
espaço para que o filho encontre outras saídas, renunciando a
plenitude do narcisismo (Paim & Leite, 2012).
Para Birman (2003), é a falta que instaura o desejo, o que
indica a passagem de um Eu Ideal para um Ideal de Eu, que pode
ser considerado como uma representação narcisicamente
perfeita. O Ideal de Eu dirige-se para o futuro, para o que irá vir,
guiando o sujeito na vida que será construída. Freud
(1933/1996) aponta que o processo de formação do Ideal de Eu
incluirá a inauguração da instância superegoica, herdeira do
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Complexo de Édipo, ao passo que, a partir dela, ocorre a
integração dos valores parentais e sociais. Retomando as ideias
de Hornstein (2008), por meio da constituição do superego, o
sujeito poderá se voltar para o contexto social em que está
inserido, internalizando seus valores. Para que seja possível o
ingresso no mundo externo, o superego deverá confrontar o
mundo interno, e a impulsividade do Id deverá ser renunciada. A
compreensão sobre o que se deve e o que não se deve fazer tem
ligação direta com a compreensão parental, ou seja, o
entendimento do que é certo e errado é construído com base nos
atributos éticos do outro. Dessa maneira, é interessante
refletirmos brevemente sobre a relação entre a
contemporaneidade e a família.
Roudinesco (2003) assinala que podemos falar de uma nova
configuração familiar a partir da década de 1960. Nessa nova
configuração, existe uma família em que não há lugar para
hierarquia, pois o poder e a autoridade encontram-se
descentralizados. Figueira (1987) complementa assinalando
que, a partir da década de 1960, a família tradicional e com
hierarquia perdeu espaço para a família caracterizada por
igualdade.
Savietto (2007) acrescenta que o enfraquecimento dos
modelos parentais desencadeou mais do que uma sensação de
liberdade: acabou gerando um profundo sentimento de
desamparo. Agora, temos um grupo familiar cujos filhos não se
encontram, estão perdidos, sem rumo e desamparados. Nesse
sentido, Mayer (2001) aponta que as manifestações através do
ato, com as quais nos deparamos hoje, expõem os efeitos de uma
atitude parental conivente, que, sustentada pela cultura, deixa
de lado a tarefa de impor limites eficazes. Isso faz com que os
adolescentes deixem de respeitar a autoridade parental e não
tenham um ambiente favorável que possa oferecer suporte para
o desenvolvimento de sua identidade.
Adolescer na atualidade
Assim como esses novos padecimentos despertam muito
interesse e reflexão entre os estudiosos, a adolescência também
vem ocupando lugar de destaque no campo científico,
tornando-se um assunto que produz muitos questionamentos e
a respeito do qual ainda há muito sobre o que se refletir.
Ultrapassa o conceito de ser apenas uma fase intermediária entre
a infância e a adultez, para se tornar uma fase que suscita muitas
mudanças tanto no tocante ao corpo quanto no que se refere à
organização psíquica.
Esse período do ciclo vital pode ser entendido, de acordo com
Rassial (1999), como uma parada subjetiva, ou seja, trata-se de
um tempo em que ainda existem significações a serem feitas.
Caracteriza-se, portanto, por ser o momento de retomada das
questões infantis relacionadas à apropriação da imagem
corporal, do sintoma, e ao ato de testar a eficácia das referências
simbólicas. Ao vivenciar esse período, é necessário que deixe
para trás o corpo infantil a fim de que seja possível adquirir um
novo corpo, de adulto, genitalizado. Com isso, ganha-se também
a capacidade reprodutiva, o que significa que o adolescente está
apto para concretizar uma relação sexual genital e a concepção
de um filho. Com a chegada da adolescência, torna-se possível o
ingresso na vida sexual genital propriamente dita e a forma como
a sexualidade passa a ser vivenciada se torna muito intensa,
trazendo de volta à vida do sujeito a conflitiva edipiana. Essa
revivência e toda a mudança corporal que ocorre nesse período
demandam muito trabalho psíquico pelo sujeito, pois tudo isso
foge ao seu controle; trata-se de um momento de muita
fragilidade, falta de certezas, impotência e revivência do
desamparo.
Em decorrência dessas mudanças e do que o indivíduo
adquire na adolescência, a questão do desamparo, explicam
Savietto e Cardoso (2006), torna-se bastante relevante,
principalmente quando refletimos sobre a sociedade atual. Em
nosso contexto, a condição de desamparo impõe-se à vida
psíquica com muita intensidade, provocando o uso de defesas de
caráter narcísico para conter a fragilidade da ordem simbólica
que falha em exercer mediação.
Monteiro (2011) acrescenta que há também uma
inquietude narcísica intensa, ao passo que o indivíduo se depara
com o confronto agudo dos aspectos ambivalentes de seu
desejo, explicitando dúvidas atinentes as suas capacidades e
recursos internos. Nesse sentido, a autora explica que a falta de
interdições impostas ao comportamento do indivíduo, tanto por
conta de sua constituição psíquica quanto pela organização de
nossa sociedade, faz com que ele se depare com contradições em
relação ao seu desejo, o que o conduz a uma tensão interna capaz
de desencadear transbordamento no ego. Para dar conta desse
excesso que não consegue simbolizar, o jovem acaba fazendo
uso de defesas arcaicas, pouco mediadas pelo psiquismo. Como
resultado desse processo, pode-se perceber com frequência a
exposição a situações de risco, que se expressam por meio do ato
na adolescência.
Nesse contexto, a ação transgressora, que, a princípio, seria
considerada inerente à experiência do período adolescente,
acaba denotando déficits na forma como o psiquismo se
organizou internamente, ou seja, revela uma incapacidade do
sujeito de metabolizar um afluxo de energia livre. Nesse sentido,
um ato de delinquência revela a fragilidade de estruturação de
processos psíquicos fundamentais, visto que o aparelho psíquico
fica impossibilitado de estabelecer a contenção, que poderia dar
ferramentas ao sujeito para o uso de processos secundários.
Desta forma, o ato perderia sua importância na tentativa de
simbolização, denunciando, assim, o reduzido investimento
psíquico que houve no decorrer de sua história (Steffen, 2006).
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09
Nesse sentido, Winnicott (2000) explica que, nessas
constituições psíquicas, o sujeito é privado de algo que lhe
proporcionava satisfação e cuidado, como se algo que era
essencial lhe fosse tirado. Uma das características centrais seria a
falta de esperança desse sujeito, sendo que os atos delinquentes
seriam justamente o momento em que experimenta a
esperança. Assim, o autor aponta que, na verdade, o ato
delinquente é um sinal de esperança, um pedido de ajuda e de
socorro e como tal deve ser entendido para que se possa
compreender esse tipo de funcionamento psíquico.
Um pedido de ajuda: o caso de André
André tem quinze anos, é um menino de estatura mediana e
magro. O que mais chama a atenção na aparência do menino é o
uso de dois alargadores, um em cada orelha, os quais ele mesmo
colocou. Além disso, ele tem também dois piercings: um no lábio,
perfurado também por ele próprio, e um no nariz.
O paciente chegou para atendimento por meio de sua escola,
que o encaminhou devido a dificuldades de aprendizagem e de
conduta. O menino estava cursando a quinta série pela quarta
vez e, desde seu ingresso na escola, sempre houve queixas
relacionadas ao seu comportamento. A mãe refere que o filho é
muito agitado e conversa muito em sala de aula, já o pai conta
que o filho costumava se envolver com frequência em algazarras
juntamente com outros colegas.
Desde os primeiros contatos, observava-se a desinformação
da vida do filho por parte dos pais. No primeiro contato com a
mãe e o paciente, em vários momentos em que era feita alguma
pergunta, ela voltava-se para o filho, procurando saber a
resposta. Nesse primeiro momento, André também comentou
que costumava sair só com o pai para boates, em que, segundo
ele, ambos mantinham relações sexuais com mulheres. Tornouse evidente, já nesse início, a dificuldade que o paciente tinha de
encontrar referenciais de lei e relações submetidas à alteridade.
A respeito da história do paciente e de sua família, é
importante mencionar que ambos os pais têm filhos de outros
casamentos. Desses, ao longo dos atendimentos, André só
mencionou um irmão, por parte de mãe, que tem envolvimento
com drogas e chegou a morar na mesma casa que André durante
algum tempo. Do atual casamento, além de André, os pais
também tiveram mais dois meninos, com os quais André
costumava brigar muito, batendo nos mesmos algumas vezes.
Isso acontece, segundo o paciente, porque os irmãos só o
incomodam, e os pais não fazem nada, deixando que eles façam
o que têm vontade. Apesar de se referir aos irmãos sempre em
momentos de briga e dizendo que ambos não lhe dão paz, André
mantém uma postura muito protetora com relação aos mesmos,
cuidando para que os irmãos não entrem para o mundo do
tráfico ou aconselhando-os a se manterem longe de situações
que o próprio paciente está muito próximo, como o abuso de
álcool, por exemplo.
Com relação à infância do paciente, desde muito cedo, por
volta dos dois anos de idade, André costumava acompanhar seu
pai em viagens que fazia a trabalho, mantendo pouco contato
com a figura materna. Isso ocorreu até o paciente ter idade para
ingressar na escola. Pode-se perceber que, em uma idade em
que ainda seria fundamental a função materna, bem como ter
uma rotina organizada, houve um enfraquecimento da ligação
entre André e sua mãe, que seria responsável pela maternagem.
Esse enfraquecimento parece ter se prolongado por mais tempo
do que o sujeito seria capaz de manter a lembrança da
experiência viva em sua memória. Além disso, também nos leva
a pensar sobre como foram os momentos em que o paciente
permaneceu na estrada e o impacto dessa vivência para o seu
psiquismo, que ainda estava se constituindo. O relato do pai
mostrava a insdiscriminação do que é necessário para uma
criança e um adulto em termos de cuidado.
Logo no início do atendimento de André, percebeu-se que se
tratava de um caso em que seria de extrema importância que os
pais pudessem estar mais próximos do atendimento. Em
princípio, como o pai estava trabalhando em outra cidade, a mãe
foi chamada diversas vezes para que pudéssemos conversar a
respeito de sua percepção sobre o filho e a questão de limites,
que, desde o começo, demonstrou ser uma grande dificuldade
na família. André costumava sair para onde queria, na hora que
queria, sem avisar ninguém de onde estava indo, sendo que suas
ausências em casa eram cada vez mais frequentes. Apesar de
entendermos como um pedido de ajuda de André, os pais não se
apresentavam como representantes da lei. Essas ausências
também eram sentidas no tratamento, quando marcarcávamos
um horário, e a mãe afirmava que iria, mas, com frequência, não
comparecia. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, sem
qualquer apoio familiar, o paciente não faltava as suas sessões,
demonstrando desde o começo a importância que tinha para ele
o espaço de escuta oferecido, ainda que muitas vezes
verbalizasse não entender por que estava ali ou que não
precisava de ajuda, pois ninguém o tinha ajudado antes em sua
vida. Frequentemente, a terapeuta e a supervisora inundavamse com as perguntas: de que ajuda ele se refere? A construção do
seu Eu e os limites do não eu? Como constituir um plano de
futuro?
Na primeira vez em que compareceu ao atendimento, o pai
designava que André cumprisse uma função de organizar a vida
da mãe e dos irmãos e a casa em que moravam, função essa que
nem ele, nem sua esposa conseguiam cumprir. Tanto André
quanto seu pai afirmavam que a relação do paciente e de seus
irmãos com a figura paterna era praticamente nula, porém isso
não era visto como um problema e ambos justificavam a falta de
diálogo pela questão do respeito que os filhos devem ter em
6
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 02-09
relação ao pai. O paciente descrevia o pai como uma pessoa
muito dura, com a qual não se podia conversar. Em um primeiro
momento, parece tratar-se de um pai rígido em relação a regras e
limites, e, de fato, no decorrer do tratamento de André, o pai foi
tentando estabelecer regras para o filho quanto ao tempo que
passava fora de casa, o que não foi obedecido por parte do
paciente. O pai acabava não se mostrando atento e desistindo de
suas próprias combinações sem procurar saber por que o menino
não havia cumprido o estabelecido. Nesse sentido, podemos
contemplar o que aponta Savietto (2007) a respeito do
sentimento dos filhos em relação à figura paterna da família
atual. Observamos que é uma família que carece de um pai forte,
que possa ser respeitado e possa proteger. Assim, como nada
mais está dado a priori, é tarefa do próprio sujeito construir
modelos e referenciais para que possa constituir sua identidade,
bem como formular as regras que irão regular sua existência, o
que pode ser percebido claramente nesta família do paciente.
André, na vigência da adolescência, procura limites fora de si
mesmo, mas não os encontra, recorrendo ao ato como recurso.
Se a figura paterna não oferece diálogo, com a mãe, pelo
contrário, o paciente afirmava conseguir conversar, como
questões de sua sexualidade e até mesmo reclamações a respeito
da relação que tem com o pai. Entretanto, André afirmava que a
mãe não lhe dizia nada além de que aquele era o jeito do pai e o
pai não lhe deixava faltar nada material, por isso, não tinha
motivos para reclamar. Diferentemente do pai, é possível
perceber que a mãe fala do filho de uma maneira carinhosa e
afetuosa, ainda que desconheça muitas informações a respeito
de sua vida. O pai não se referia aos filhos de maneira afetuosa e
costumava fazer comparações entre os três, afirmando que o
menino mais novo tem plenas condições de ultrapassar André no
que diz respeito à aprendizagem.
Pensando na família de André, é impossível não
questionarmos a respeito de quem interdita e coloca limites no
que concerne ao desejo do paciente, pois estamos diante de um
pai e de uma mãe que pouco sabem da vida do filho, não sabem
dizer o que esperam e sonham para seu futuro e as poucas regras
que estabelecem não precisam ser cumpridas. Mesmo sendo
uma situação da atualidade, entende-se que esse
funcionamento esteve presente desde muito cedo, ou seja, as
intensidades vividas por André foram dificilmente qualificadas e
significadas.
A respeito do futuro de André, durante todo o tratamento, o
pai comentou que via o filho sem interesse em estudar e
trabalhar e que, inúmeras vezes, dizia para o filho que, desse
jeito, ele só poderia “puxar carroça”(sic). Ao mesmo tempo em
que faz duras críticas ao menino, o pai também o leva para
conviver e comprar drogas para um tio que faz uso de substâncias
e que costuma resolver seus problemas com as pessoas através
da agressão e do ato de matar. Diante disso, afinal, o que é certo e
o que é errado? Ao longo dos atendimentos, o paciente
demonstrou muita dificuldade em conseguir tirar conclusões
sobre as situações que vivenciava, denotando a impossibilidade
de construir e manter um sistema de juízos de valor. A
ambivalência se tornava vigente porque, por um lado, ele queria
produzir um ideal, e, por outro, era seduzido pela identificação
com a figura de lei fragilizada. Juntamente a esses elementos,
percebe-se o empobrecimento do investimento amoroso, tendo
este a marca da indiferença. Nos relacionamentos construídos
por André, durante a adolescência, evidencia-se a
impossibilidade de aceitar a diferença e construir uma relação
que priorize a alteridade. As pessoas com as quais se relacionava
não eram nomeadas, o paciente parecia não ter espaço de
investimento, caracterizando-se somente por descargas
pulsionais. André demonstrava muitas dúvidas a respeito de
quem realmente era e de como irá construir sua identidade,
chegando a verbalizar que não existia, pois não tinha documento
de identidade. Além disso, percebia-se como uma pessoa de
“cabeça fraca” (sic), que não consegue tomar suas próprias
decisões, características que, em parte, estão associadas à
vivência da adolescência e ao abalo das bases narcísicas (Rassial,
1999), mas que parecem intensificar-se devido às vivências
infantis e às circunstâncias nas quais o psiquismo de André foi se
constituindo.
Ao mesmo tempo, o adolescente mostrava-se fascinado por
situações em que vê a polícia e a lei funcionando de acordo com o
esperado, como a prisão de traficantes de drogas da região em
que o paciente residia. Por vezes, o menino chegava até mesmo a
dizer que gostaria de ir para o quartel, mesmo sabendo que teria
de submeter-se a regras muito rígidas e que seria punido caso as
descumprisse. Porém, ao mesmo tempo em que vê a lei
exercendo seu papel, André também relatava episódios em que
via a polícia submetendo-se ao tráfico e fechando os olhos para
situações como essas. Assim, como será possível ter a inscrição
de uma lei que protege? Entende-se que a inscrição do sujeito
em um universo simbólico não necessariamente precisa se dar
através da função paterna, mas pode, inclusive, ocorrer através
da cultura e da ordem social (Macedo et al., 2010). Entretanto,
como aponta Mayer (2001), ambos falham: os pais por
assumirem uma atitude conivente, ou, como no caso de André,
uma atitude indiferente ao desenvolvimento do filho, e a cultura
abdicando da tarefa de impor limites eficazes, exaltando o prazer
acima de tudo e demonstrando ineficácia em oferecer e manter
referências, ideais e valores para desempenhar função de
proteger.
Diante desse contexto, como fica a tentativa de o sujeito
poder se organizar e lidar com tantos excessos que se impõem ao
seu psiquismo? André verbalizava com bastante frequência a
saída pelo ato. Contava de brigas em que se envolvia
constantemente, sobre a vontade de bater em outras pessoas,
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incluindo dúvidas a respeito de se algum dia mataria alguém, a
ingestão de álcool em excesso a cada fim de semana e o uso de
maconha, entre outros comportamentos que o expunham a
riscos muito grandes. Nesse sentido, podemos compreender o
que Savietto e Cardoso (2006) explicam sobre a intensidade com
a qual a questão do desamparo se impõe à vida psíquica,
provocando o uso de defesas arcaicas para dar conta de um
conteúdo que invade o ego e o qual o sujeito não consegue
simbolizar ou metabolizar, restando-lhe o ato como tentativa de
dar conta desse conteúdo. Durante boa parte de seu
atendimento, ao ser questionado sobre seus sentimentos, André
somente respondia“nada”, tudo se resumia a“nada”ou ainda que
estava tranquilo e “di bobis” (sic), expressão que utilizava para
dizer que estava de bobeira. Em poucos momentos, ele
conseguiu verbalizar como realmente se sentia. Contudo, no final
de seu tratamento, ainda que apresentasse dificuldade de
nomear o que sentia, transferencialmente André conseguiu
mostrar maior envolvimento emocional nas situações que
tratava, principalmente com a despedida da estagiária do serviço
escola, motivo pelo qual o tratamento foi interrompido. Talvez aí
esteja colocada a importância de entendermos a atuação e o
comportamento, algumas vezes considerado delinquente, como
um pedido de ajuda, como postula Winnicott (2000).
Considerações finais
Atualmente, percebe-se como a sociedade vem dificultando
a vivência da adolescência, ao invés de oferecer ferramentas para
tal. Muitos autores reassaltam, inclusive, que se trata de uma
sociedade que por si só é adolescente. Isso acaba se refletindo na
família, a qual não se caracteriza mais como tradicional e
responsável por ensinar e mostrar aos seus membros valores
éticos e de como se organiza a forma de viver. Sem saber o que é
certo e o que é errado, o que se pode e o que não se pode fazer,
como viverá o adolescente em meio a tudo isso e a toda a
vivência conturbada natural desse período?
Trata-se de um assunto que produz questionamentos
inesgotáveis e sobre o qual, de fato, ainda precisamos refletir
muito, pois existem muitos Andrés por aí, que, apesar de toda
dificuldade de conseguir pensar e de simbolizar os excessos
advindos de si, da família e da sociedade, apresentam um grande
desejo de poder alcançar novos modos de funcionamento e
ressignificar suas experiências. Nesse sentido, a partir de tudo
que foi exposto e de todos os meses de atendimento de André,
considera-se que a psicanálise tem muito a contribuir para o
entendimento de casos como o do paciente em questão, bem
como de oferecer, a partir de seus postulados teóricos e técnicos,
um espaço de escuta que proporcione o pensar sobre si mesmo.
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9
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Tratamentos Não Farmacológicos para Dependência Química
Non Pharmacological Treatments for Drug Addiction
2
Karine Hahn Cafruni a *, Giovana Brolese b *, Fernanda Lopes c*
Resumo: Objetivo: A dependência química (DQ) transformou-se em um grave problema de saúde pública em
todo o mundo. O objetivo deste trabalho é apresentar e descrever algumas modalidades terapêuticas para o
tratamento da DQ. Método: Foram pesquisados estudos de revisões sistemáticas utilizando os descritores “drug
addiction” and “treatment” and “abstinence” nas bases Pubmed, Medline e Scielo; e livros especializados sobre DQ.
Seis modalidades serão apresentadas: entrevista motivacional; terapia cognitivo-comportamental; prevenção
de recaída; terapia familiar; programa de 12 passos; e redução de danos. Discussão: Constatou-se que o convívio
familiar, os grupos de autoajuda, a religião e o acompanhamento psicológico são essenciais para a recuperação
dos dependentes químicos. Ainda, mudar o estilo de vida e ocupar-se com atividades prazerosas mostraram-se
fatores importantes para a manutenção da abstinência. Conclusões: Estudos baseados em evidências científicas
e investigações de técnicas complementares às terapias existentes para o tratamento da DQ são necessários
para direcionar a prática clínica.
Palavras-chave: dependência química, abstinência, tratamento.
Abstract: Objective: Drug addiction (DA) has become a serious problem of public health in entire world. The aim
of this study is to show and describe some kinds of therapeutic treatment for DA. Method: Studies of systematic
reviews were surveyed using as keywords "drug addiction" and "treatment" and "abstinence" from data bases
Pubmed, Medline and Scielo (1994-2011); specialized books in DA were also consulted. Six kinds of treatment
will be showed: Motivational interview; cognitive behavioral therapy; relapse prevention; family therapy; 12steps program; and harm reduction program. Discussion: It was found that family therapy; support groups,
religion and psychological help are the main sources to help recovering from drug addiction. Moreover, changes
in life style and keeping a busy schedule with pleasurable activities are important for abstinence maintenance.
Conclusions: Studies based on scientific evidences and investigations about complementary techniques to
available therapies for treatment of DA are needed to direct clinical practice.
Keywords: drug addiction, abstinence, treatment.
a
Psicóloga, especialista em psicologia clínica no Instituto Fernando Pessoa, Brasil.
E-mail: [email protected]
b Farmacêutica, mestre em neurociências na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
E-mail: [email protected]
c Psicóloga, doutora em psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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O consumo de substâncias psicoativas (SPA) transformou-se
em um grave problema de saúde pública em praticamente todos
os países do mundo. Está altamente associado com
comportamentos violentos e criminais, como acidentes de
trânsito e violência familiar, principalmente entre indivíduos com
histórico de agressividade e com complicações médicas e
psiquiátricas, elevando drasticamente os índices de morbidade e
mortalidade (Scheffer, Pasa, & Almeida, 2010).
O homem, pela sua própria natureza, tem buscado através dos
tempos alternativas para aumentar seu prazer e diminuir o
estresse. De início, os chás alucinógenos, o tabaco, os óleos
medicinais e inclusive o chá feito com cannabis sativa eram
empregados de forma controlada por normas sociais e ritos,
sempre com intuito curativo, ritualístico, ou mesmo místico
(Martins & Correa, 2004). Portanto, o uso de SPAs não é um
evento novo no repertório humano e sim uma prática milenar e
universal que as pessoas utilizam para alterar o estado de
consciência (Toscano Jr., 2001).
Estudos científicos nos últimos 20 anos mostram que a
dependência química é uma doença crônica e recorrente,
resultante da interação de efeitos prolongados da ação de uma
determinada SPA no sistema nervoso central (SNC), que pode
provocar alterações irreversíveis em diferentes estruturas
encefálicas. Ademais, assim como outras patologias
neuropsiquiátricas, importantes aspectos comportamentais,
sociais e culturais são partes integrantes desta doença (Figlie,
Bordin, & Laranjeira, 2004).
O II Levantamento Domiciliar sobre uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil, feito pelo Centro Brasileiro de Informações
sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) em 2005, constatou que
74,6% dos entrevistados fizeram uso de álcool e 44% de tabaco
alguma vez na vida. Em relação às drogas ilícitas, 22,8% da
população pesquisada já havia feito pelo menos um episódio de
uso, o que corresponde a 10.746.991 pessoas. O uso de maconha
apareceu em primeiro lugar (8,8%), seguido de cocaína (2,9%),
crack (0,7%) e merla (0,2%) (Carlini, Galduróz, Silva, Noto, &
Fonseca, 2006). Segundo dados da Organização Mundial da
Saúde (2002), é possível constatar que de 3,3% a 4,1% da
população mundial faz uso de algum tipo de droga ilícita, sendo
estimados em 2,5% os usuários de maconha (WHO, 2002).
Os critérios para dependência de substâncias psicoativas
incluem um padrão de consumo em grandes quantidades, com
frequência alta, levando a um conjunto de sintomas cognitivos,
comportamentais e fisiológicos prejudiciais ao funcionamento
orgânico do indivíduo. Pode haver um desejo persistente ou
esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da
substância. Existe um padrão de autoadministração repetida que
geralmente resulta em comportamento compulsivo de uso da
droga, tolerância e sintomas de abstinência. A tolerância é
definida pela necessidade de quantidades aumentadas de
substância para se obter o mesmo efeito psicoativo atingido
anteriormente por uma menor quantidade. Os sintomas de
abstinência são sintomas físicos de desconforto quando na falta
da substância psicoativa, por isso os usuários podem desenvolver
um padrão de uso repetido tanto para obter prazer (reforço
positivo) como para alívio do sofrimento causado pelos sintomas
de abstinência (reforço negativo). Outros comportamentos
indicativos de dependência envolvem utilização de grandes
períodos de tempo em atividades necessárias para obter a
substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos, além de
redução ou abandono de atividades sociais ou ocupacionais por
causa do seu uso. Por último, o uso continuado da droga, apesar
do conhecimento de ter um problema físico ou psicológico
causado ou exacerbado pela substância, é um forte indicativo de
dependência (DSM IV, 2002).
A classificação das substâncias psicoativas pode ser feita de
acordo com a sua ação no SNC, que pode ser depressora,
estimulante ou perturbadora. As depressoras – como álcool,
benzodiazepínicos, barbitúricos, opiáceos e solventes – são
substâncias que tendem a produzir diminuição da atividade do
SNC, da reatividade à dor e da ansiedade, atingindo
primeiramente a região do córtex pré-frontal (diminuição das
inibições, do juízo critico, das tomadas de decisão e do controle
dos impulsos) e posteriormente regiões cerebrais mais internas,
como o tronco encefálico (responsável pelo controle vital, como a
respiração e os batimentos cardíacos). Já as SPAs estimulantes,
como cocaína, anfetaminas, nicotina e cafeína, são substâncias
que aumentam a atividade do SNC, levando a um aumento do
estado de alerta e a aceleração dos batimentos cardíacos. Já as
perturbadoras, como maconha e derivados, LSD, ecstasy e
anticolinérgicos, são substâncias que prejudicam a qualidade da
transmissão da informação no SNC, retardando ou alterando o
funcionamento neuronal. O indivíduo é capaz de experimentar
sensações diversas desde um relaxamento físico até o
surgimento de fenômenos psíquicos anormais (alucinações e
delírios), alternando entre inibição ou estimulação do SNC
(Laranjeira & Nicastre, 1996).
Todas as drogas capazes de causar euforia ou aliviar a dor têm
uma característica em comum, pois atuam no sistema de
neurotransmissores, resultando na liberação de dopamina, entre
outros elementos. A dopamina parece exercer um papel
fundamental na transição do uso para o abuso, e desse para o
estabelecimento da dependência, uma vez que atua nos
mecanismos de recompensa e/ou prazer (Esperidião et al.,
2008). Cada vez que o circuito de recompensa cerebral é
estimulado, ele manda mensagens para a amígdala, que
classifica o estimulo para áreas relacionadas à memória. Fica
então memorizada a associação do prazer ao uso da droga, com
todos os detalhes do ambiente que cerca o estímulo. O
conhecimento deste fenômeno é essencial para o tratamento de
11
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19
um dependente químico, pois a droga subverteu a função do
circuito, de modo que prazeres naturais e rotineiros (comer, fazer
sexo) perdem força quando comparados ao prazer propiciado
pela SPA. O ambiente associado ao consumo fica gravado, e
caberá ao dependente, auxiliado por seu terapeuta, substituir as
memórias de droga por novas memórias, mais saudáveis e
adaptativas (Fonseca & Lemos, 2011).
O tratamento de pessoas com transtorno por uso de SPA é
extremamente desafiador, pois, apesar dos esforços no objetivo
de controlar o consumo, a maior parte dos indivíduos persiste em
um comportamento autodestrutivo. Estudos nas últimas décadas
demonstram que as tentativas de manutenção da abstinência de
substâncias como álcool e nicotina apresentam uma taxa de 70%
a 80% de recaídas no período de um ano (Cordioli, 2008). Em
geral, os transtornos adictivos caracterizam-se por taxas muito
altas de recaída após o sucesso inicial do tratamento (Marlatt &
Gordon, 1994). Devido à complexidade da doença, abordagens
de tratamento que integrem os aspectos biopsicossociais devem
ser encorajadas e baseadas em evidências científicas. Portanto,
uma revisão da literatura sobre o assunto poderá contribuir para
salientar as diversas práticas que vem sendo adotadas nas últimas
décadas.
Considerando o exposto, este estudo tem por objetivo
apresentar e descrever algumas modalidades terapêuticas para
dependência química relatadas na literatura no período entre
1994 e 2011, bem como discutir fatores relacionados com a
manutenção da abstinência. Serão destacadas as abordagens
mais amplamente utilizadas, o que não invalida, exclui nem
questiona outras modalidades de tratamento na área da
dependência química, como a terapia psicanalítica, por exemplo.
Método
Para revisar a literatura sobre as modalidades terapêuticas
mais utilizadas para tratamento em dependência química, este
artigo partiu do estabelecido em estudos de revisões sistemáticas
sobre o tema, bem como de livros clássicos sugeridos por
terapeutas e pesquisadores com ampla experiência nesta área. As
bases de dados consultadas foram Pubmed, Medline e Scielo, com
os descritores “drug addiction” and “treatment” and “abstinence”, e
com os seguintes filtros para os artigos: a) revisão sistemática; b)
língua inglesa; c) estudos com humanos; e d) período entre 1994
e 2011. A escolha por tais bases de dados se justifica por
compilarem o maior número de citações na literatura biomédica.
Os critérios de inclusão foram estudos sobre tratamentos
exclusivamente não farmacológicos.
Os resultados da busca nas três bases de dados evidenciaram
46 artigos de revisão sistemática (excluídas as duplicidades), dos
quais 37 foram excluídos por descreverem tratamentos
farmacológicos. Em função do pequeno número de artigos (nove)
encontrados preenchendo os critérios de inclusão previamente
estabelecidos, alguns estudos que detalhavam as modalidades
terapêuticas eleitas também foram incluídos para
complementar sua descrição. A partir da análise dos artigos e dos
livros especializados na área, foram selecionadas as seis
modalidades terapêuticas mais utilizadas com pacientes
dependentes químicos, que serão descritas a seguir: entrevista
motivacional; terapia cognitivo-comportamental; prevenção de
recaída; terapia familiar; programa de 12 passos; e redução de
danos.
Entrevista Motivacional
A entrevista motivacional (EM), também conhecida como
intervenção motivacional, é uma abordagem originalmente
descrita pelo psicólogo americano William Miller, amplamente
difundida na Europa, na Austrália e, mais recentemente, no
Brasil. De acordo com Miller e Rollnick (2001), a entrevista
motivacional é “um meio particular de ajudar as pessoas a
reconhecer e fazer algo a respeito de seus problemas presentes
ou potenciais. Ela é particularmente útil com pessoas que
relutam em mudar e que estão ambivalentes quanto à mudança”
(Miller & Rollnick, 2001, p.61). É uma abordagem breve que
pode ser utilizada em uma única entrevista, porém, mais
tipicamente é empregada em quatro a cinco consultas. Foi
delineada basicamente para tratar transtorno alimentar, abuso e
dependência de álcool e outras drogas, jogo patológico e outros
comportamentos compulsivos (Figlie, Bordin, & Laranjeira,
2004).
Cinco princípios clínicos estruturam a entrevista
motivacional: expressar empatia; desenvolver a discrepância;
evitar a argumentação; acompanhar a resistência; e promover a
autoeficácia (Miller & Rollnick, 2001). A atitude que fundamenta
o princípio da empatia pode ser chamada de “aceitação”. Por
intermédio da escuta reflexiva habilidosa, o terapeuta busca
compreender os sentimentos e as perspectivas do cliente sem
julgar, criticar ou culpar. Contudo, aceitação não é a mesma coisa
que concordância ou aprovação, é possível aceitar e
compreender a perspectiva de um cliente sem concordar com
ela.
Desenvolver discrepância consiste em criar e ampliar, na
mente do cliente, uma discrepância entre o comportamento
atual de uso e as metas mais amplas, ou seja, criar uma
discrepância entre onde se está e onde se quer estar. Quando um
comportamento é visto como conflitante com metas pessoais
importantes, tais como a própria saúde, o sucesso, a felicidade da
família ou uma autoimagem positiva, é provável que a mudança
aconteça. Evitar a argumentação significa que o terapeuta não
deve entrar em confrontos diretos. A situação menos desejável,
desse ponto de vista, é aquela na qual o terapeuta argumenta
12
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que o cliente tem um problema e precisa mudar, enquanto esse
defende o ponto de vista oposto.
Acompanhar a resistência inclui envolver o cliente ativamente
no processo de solução do problema, respeitando o fato de a
decisão ser dele. A relutância e a ambivalência não são
combatidas, mas reconhecidas como naturais e compreensíveis
pelo terapeuta. Esse não impõe novas visões ou metas. Em vez
disso, o cliente é convidado a considerar novas informações, e
novas perspectivas são oferecidas a ele. Por último, promover a
autoeficácia consiste em aumentar as percepções do cliente
quanto à sua capacidade de enfrentar os obstáculos e de ter êxito
na mudança.
Intervenções breves como a EM estão fortemente
relacionadas a preditores de bons resultados no tratamento da
dependência química (Oliveira, Andreatta, Rigoni, & Szupszynski,
2008). Estudo de revisão sobre esta abordagem realizado em
2011 constatou que a EM é um dos métodos mais efetivos no
tratamento de transtornos por uso de substâncias, uma vez que
favorece os processos de mudança (Carvajal, 2010).
Complementando tal resultado, estudo de meta-análise sobre
eficácia de tratamento não farmacológico para tabagistas revelou
que a EM, associada a aconselhamento, aumentou as chances de
abstinência de longo prazo (Bala & Lesniak, 2007). Outro estudo
realizado com 120 sujeitos, dos quais 60 foram submetidos à EM
(grupo de intervenção) e 60 não (grupo controle), revelou que,
passados seis meses, o grupo de intervenção apresentou uma
redução mais significativa no consumo de álcool do que o grupo
controle (Hulse & Tait, 2002).
Terapia cognitivo-comportamental (TCC)
A terapia cognitivo-comportamental (TCC), da qual Aaron
Beck é um dos pioneiros com seus trabalhos sobre depressão, teve
seu uso rapidamente estendido para diversas outras patologias,
entre elas a dependência química (Luz, 2004). A TCC é
considerada uma das intervenções mais promissoras e eficientes
no tratamento da dependência química e entende que essa
doença resulta de uma interação complexa entre cognições,
comportamentos, emoções, relacionamentos familiares e sociais,
e processos biológicos e fisiológicos. Estes, por sua vez, interagem
com os sistemas emocionais, ambientais e fisiológicos,
determinando se uma pessoa terá maior ou menor probabilidade
de ser dependente (Silva & Serra, 2004).
Conforme o modelo cognitivo, a maneira como o individuo
interpreta determinada situação influencia em suas reações
afetivas, comportamentais e motivacionais. Desta forma, o
tratamento da dependência química para esta abordagem é
igualmente baseado na análise e na modificação dos
pensamentos automáticos e das crenças distorcidas que geram os
comportamentos e as emoções disfuncionais (Caminha, Wainer,
& Oliveira, 2003).
O ato de consumir a droga é gerado por um ciclo de crenças e
pensamentos automáticos que desencadeiam a fissura e levam à
estratégia de busca pela substância. O dependente químico é
aquele que, sozinho, não consegue interromper este ciclo e se
livrar das drogas. O objetivo da terapia cognitiva é a modificação
das crenças antecipatórias (“Ficarei mais tranqüilo e sociável se
consumir” ou “Se eu não consumir, perderei meus amigos”), das
crenças permissivas (“Como eu tive um dia cansativo, mereço”) e
do comportamento de busca pela droga (Caminha et al., 2003).
A TCC trabalha com técnicas de reestruturação cognitiva para
modificar as interpretações do indivíduo sobre situações ou para
atenuar suas crenças disfuncionais mais importantes sobre o uso
de drogas. O objetivo final é treinar o paciente a desafiar seus
pensamentos automáticos, a elaborar pensamentos e crenças
alternativas no manejo de suas fissuras e no desafio das crenças
permissivas, para habilitá-lo a desenvolver um estilo de vida sem
drogas e a tomar decisões que modifiquem o funcionamento do
processo adictivo (Luz, 2004).
A teoria comportamental da dependência química tem seu
foco nas teorias do aprendizado social, como o condicionamento
clássico, a aprendizagem instrumental e a modelagem. O
objetivo é a mudança do comportamento disfuncional por um
comportamento mais saudável, buscando enfraquecer a
associação do prazer imediato propiciado pela droga e ao
mesmo tempo diminuir o comportamento impulsivo (Silva &
Serra, 2004). Estudos que avaliam a eficácia da terapia
comportamental no tratamento do tabagismo revelam que a
taxa de abstinência após seis meses varia de 15% a 20%
(Presmam, Carneiro, & Giglioti, 2005). Intervenções que
associam múltiplas técnicas estão bem validadas, mas poucas
pesquisas foram realizadas para a avaliação de cada uma das
técnicas em separado. No entanto, existem evidências de que
realizar treinamento de habilidades sociais e resolução de
problemas, além de ajudar os fumantes a obter apoio social fora
do tratamento, tornam o tratamento mais eficaz. Tais estratégias
podem ser generalizadas para o tratamento da dependência de
todas as drogas, além do tabaco.
Prevenção de Recaída e Estágios de Mudança
A Prevenção da Recaída (PR), desenvolvida por Marlatt e
Gordon, é uma abordagem amplamente utilizada nos
tratamentos dos transtornos adictivos. A PR é um programa de
automanejo que busca melhorar o estágio de manutenção do
processo de mudança de hábitos (Marlatt & Gordon, 1994). O
modelo proposto pelos autores embasa-se na Teoria da
Aprendizagem Social de Bandura. De acordo com essa teoria, o
comportamento de uso ou abuso de substâncias é aprendido, e
sua freqüência, duração e intensidade aumentam em função dos
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benefícios psicológicos alcançados. Da mesma forma, este
mesmo comportamento pode ser alterado mudando-se os
fatores que sabidamente o afetam, tais como condições
antecedentes, crenças, expectativas e consequências que o
seguem.
Um dos princípios fundamentais da Teoria da Aprendizagem
Social do uso e dependência de álcool é o conceito de
autoeficácia, de Bandura. Autoeficácia é o sentimento de ser
capaz de resolver com sucesso uma situação, e é essa avaliação de
chances de ser bem sucedido que determinará a seleção do
comportamento. Pesquisas indicam que uma baixa autoeficácia
está associada a recaídas e, inversamente, a autoeficácia está
positivamente correlacionada à abstinência (Figlie et al., 2004).
A prevenção da recaída busca, essencialmente, busca mudar um
hábito autodestrutivo e manter essa mudança. Marlatt e Gordon
descreveram dois níveis de intervenção: intervenções específicas
e intervenções globais. As intervenções específicas consistem na
identificação de situações de alto risco para um determinado
indivíduo, no desenvolvimento de estratégias para lidar
efetivamente com essas situações e em mudanças nas reações
cognitivas e emocionais associadas. O próprio paciente ajuda
ativamente a identificar as situações que, para ele, se configuram
como sendo de alto risco, que podem envolver fatores
intrapessoais (como estados emocionais negativos e positivos)
e/ou fatores interpessoais (como conflitos e pressão social).
Identificadas tais situações, o paciente precisa então aprender
mecanismos de manejo mais efetivos, incluindo estratégias
cognitivas, atividades substitutivas planejadas individualmente e
uso gratificante do lazer (Figlie et. al, 2004).
As intervenções globais focam o desenvolvimento de
comportamentos positivos e saudáveis para substituir aqueles
associados com o abuso de substâncias e reforçam o não uso.
Marllat e Gordon discutiram o desequilíbrio do estilo de vida e o
planejamento velado da recaída. O objetivo da prevenção de
recaída é bem mais amplo do que apenas ajudar o paciente a
desenvolver habilidade para aprender a viver sem ter no álcool ou
na droga uma prioridade. Seu comportamento de uso é apenas o
ponto de partida para a modificação de todo um estilo de vida
(Figlie et al., 2004).
O modelo dos estágios de mudança de DiClemente e
Prochaska, que descreve como e quando os indivíduos mudam
sua conduta, também permitiu uma melhor compreensão das
freqüentes recaídas, bem como a oscilação da motivação dos
pacientes para cessarem o consumo de drogas (Willians, Meyer, &
Pechansky, 2007). Os autores descreveram os seguintes estágios
de prontidão para mudança: Pré-contemplação (não estar
consciente de ter um problema e não ter intenção de mudança),
Contemplação (estar consciente que existe um problema, mas
ainda não ter feito nada para mudar), Preparação (ter a intenção
de realizar alguma mudança), Ação (concretizar a mudança) e
Manutenção (já ocorreu a mudança e o paciente está procurando
manter o comportamento modificado). Entendendo cada
estágio, é possível elaborar e aplicar intervenções adequadas ao
nível de motivação do paciente (Miller & Rollnick, 2001; Willians
et al., 2007).
Terapia familiar
A busca pelo entendimento de como as relações se
constroem e, a partir delas, quais os resultados gerados, forma o
objetivo de qualquer intervenção familiar, independentemente
de sua base teórica. Para compreender a complexidade do
impacto do uso de uma substância, é preciso buscar alternativas
interventivas no contexto social ou familiar do usuário. Hoje, a
família pode ser entendida como um cenário de risco e/ou
proteção frente às complexidades do abuso de substâncias. O
pressuposto básico desse entendimento explica que as pessoas
que usam drogas estão inseridas em um contexto no qual seus
valores, crenças, emoções e comportamentos influenciam os
comportamentos da família, também sendo influenciados por
eles (Payá, 2011).
O método de intervenção familiar varia de acordo com a
orientação teórica do terapeuta, mas a maior parte delas vem da
teoria sistêmica, em que a ênfase é dada à natureza relacional e
contextual do comportamento humano. Nessa perspectiva, o
funcionamento do indivíduo está reciprocamente
interconectado ao dos outros indivíduos que compõem o seu
primeiro contexto relacional: a família. Essa abordagem
considera o comportamento como um sintoma da disfunção
familiar, uma vez que o comportamento individual ocorre e
adquire o seu significado no contexto dessa micro- instituição. A
adicção é entendida como um conjunto de comportamentos
desajustados que refletem problemas do sistema familiar como
um todo (Schenker & Minayo, 2004). Estudo empírico mostrou
que tratamentos nos quais a família foi o objeto de intervenção
foram mais eficazes do que àqueles centrados no paciente
identificado (Seadi & Oliveira, 2009).
Programa de 12 passos
Grupos de mútua ajuda são pequenas organizações com
características de ajuda mútua e de realização de alguma meta.
Os grupos de mútua ajuda mais conhecidos mundialmente são
os alcoólicos anônimos (AA) e os narcóticos anônimos (NA),
defendidos como uma irmandade de homens e mulheres que se
ajudam a resolver problemas comuns com o álcool e outras
drogas de abuso. Para tanto, seus membros utilizam o programa
de 12 passos que originou da criação dos AA em 1935, em Ohio,
Estados Unidos, com William Wilson e Robert Smith, ambos
alcoolistas que se beneficiaram da troca de experiência,
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 10-19
alcançando assim a abstinência e a sobriedade (Marinho, Silva, &
Ferreira, 2011).
A filosofia dos AA e dos NA consiste nos 12 passos e nas 12
tradições. Os primeiros são definidos como um grupo de
princípios espirituais em sua natureza, como honestidade, mente
aberta e boa vontade, os quais, se aplicados como forma de vida,
podem permitir ao sofredor tornar-se íntegro, feliz e útil. As 12
tradições são os princípios pelos quais as irmandades mantêm sua
unidade e se relacionam com o mundo exterior, sua forma de viver
e de se desenvolver (Marinho et al., 2011).
O Programa de 12 passos tem mostrado inegável eficácia
como recurso terapêutico informal ao tratamento de
dependentes químicos. Diversos estudos comprovaram a eficácia
dos AA ou de grupos semelhantes na redução no uso de álcool.
Marinho e colaboradores (2011) citaram um estudo que mostrou
que os membros de AA são mais ativos na irmandade e alcançam
abstinência em uma taxa mais elevada do que alcoolistas tratados
profissionalmente. Os resultados de estudo de AA são
consistentes com a ideia de que o apoio social para sobriedade
pode melhorar o resultado do tratamento (Marinho et al., 2011).
Verifica-se também uma possível influência positiva da
religiosidade para a recuperação dos dependentes de drogas.
Nesse quesito, a maior parte dos estudos foca tratamentos
baseados nos 12 passos dos AA, estando estes alicerçados na
espiritualidade, mas não pautados em uma religiosidade
específica. Estudo de revisão (Sanchez & Nappo, 2007) sobre os
principais estudos científicos que tratam do papel da religiosidade
no tratamento do uso de drogas mostrou que a frequência
constante a uma igreja, a prática dos conceitos propostos por uma
religião e a importância dada à religião e à educação religiosa na
infância são possíveis fatores protetores do consumo de drogas.
Redução de Danos
O enfoque de redução de danos, difundido em nosso país a
partir da epidemia de AIDS, vem sendo ampliado para outros
comportamentos de risco, como abuso de álcool e outras drogas.
A redução de danos é direcionada a indivíduos que têm algum
tipo de comportamento de risco, e opta pela saúde e pela
responsabilidade pessoal ao invés da doença e da punição. Pode
ser aplicada a toda a população que se distribui ao longo de uma
escala contínua de risco – de baixo a moderado e alto (Dea &
Santos, 2004).
Para o uso e a dependência de drogas, a ação de redução de
danos representa uma alternativa de saúde pública para os
modelos moral/ criminal e de doença. Assume o fato de que
muitas pessoas usam drogas e promove acesso a serviços de baixa
exigência. Sua ideia central é encontrar o indivíduo onde ele está,
e não onde ele deveria estar; por isso, embora reconheça a
abstinência como resultado ideal, aceita alternativas que possam
reduzir os danos associados ao uso de drogas (Dea et al., 2004).
Além disso, a abordagem da redução de danos põe em ação
estratégias de autocuidado imprescindíveis para diminuição da
vulnerabilidade frente à exposição às situações de risco, além de
ser apontada como forma privilegiada de intervenção em saúde
pública. No entanto, a implantação de programas e ações
pautadas nessa abordagem ainda é alvo de críticas e censuras,
gerando polêmicas e contradições de várias ordens. Seja qual for
o modelo de atenção que oriente as ações em saúde, a literatura
mostra que o tratamento deve se fundamentar em aspectos
biológicos, psíquicos e sociais, sendo capaz de responder às
particularidades do indivíduo, do grupo, do tipo de droga e do
ambiente sociofamiliar (Moraes, 2008).
O estigma, questão que o programa de redução de danos
vem tentado diminuir, pode repercutir em que o dependente
químico não procure ajuda. Estudo sobre um programa de
redução de danos realizado em um ambulatório de DQ na
Espanha (Daigre et al., 2010) mostrou que os usuários avaliaram
que o diferencial nessa abordagem é o respeito à
individualidade, fazendo com que eles se sintam aceitos e não
discriminados pelo uso de drogas.
Discussão
Nos últimos anos, a ciência clínica tem avançado no sentido
de basear suas práticas em informações fundamentadas em
evidências científicas (Presman et al., 2005), o que tem
diminuído a distância entre a pesquisa acadêmica e a aplicação
dos seus resultados na psicoterapia. Contudo, devido à
complexidade envolvida no tratamento da dependência
química, muitos terapeutas que orientavam sua atividade a
partir de crenças ou observações pessoais ainda podem ter
dificuldades de escolher o tipo de abordagem que vão utilizar no
tratamento de pacientes com este transtorno. Com objetivo de
facilitar o trabalho dos profissionais da área da saúde que atuam
neste campo, considerou-se importante apresentar e descrever
as modalidades terapêuticas mais aplicadas no tratamento da
dependência química nos últimos anos.
A partir da descrição apresentada nas seis modalidades
descritas, percebe-se como ponto de convergência a questão da
aquisição e manutenção da abstinência, o que parece ser ainda o
maior desafio de todas abordagens de tratamento. Estudos
demonstram que aproximadamente um terço dos pacientes
consegue a abstinência permanente com sua primeira tentativa.
Um outro terço tem episódios breves de recaída, mas resultam,
eventualmente, em abstinência de longo prazo. O terço adicional
tem recaídas crônicas, o que implica recuperações transitórias da
dependência química (Álvarez, 2007). A recaída é um regresso
ao uso da substância no mesmo padrão de consumo que a
pessoa usava antes de iniciar um programa de tratamento ou
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recuperação (Knapp & Bertolote, 1994), e deve ser considerada
uma parte do processo de reabilitação e não o final deste.
Rigotto e Gomes (2002) referem três condições que parecem
estar relacionadas à mobilidade pessoal para a remissão estável
do consumo. A primeira refere-se ao abuso, por pouco tempo, de
drogas muito leves e que a simples mudança nas circunstâncias
de vida do adicto pode levar à remissão completa. A segunda
refere-se ao abuso de drogas muito severas, o que fatalmente
levará o adicto ao "fundo do poço" e à tomada de decisão de que é
preciso fazer alguma coisa a favor de si mesmo. A terceira referese à ocorrência fortuita, na vida do adicto, de experiências que
possam romper com os hábitos enraizados. As condições de
remissão enunciadas incluíram os seguintes aspectos: adoção de
comportamentos substitutos que venham competir com a
adição, disponibilidade para supervisão compulsória,
engajamento em projetos significativos, e recuperação de
autoestima.
Um estudo sobre os contextos de abstinência e recaída na
recuperação de dependentes químicos mostrou que foram
reconhecidos como fontes de apoio para a recuperação a família,
os grupos de autoajuda, o convívio e troca de experiências com
amigos recuperados, a religião e o acompanhamento psicológico.
Pessoas de referência no ambiente familiar – como pais, tios e
esposas – foram identificadas pelos informantes como suporte
positivo na reabilitação. Além disso, o grupo de autoajuda trouxe
novas possibilidades de existência através do reconhecimento das
vantagens de viver em abstinência (Rigotto & Gomes 2002).
Pesquisas mostram a importância do acolhimento
(enfatizado na modalidade da entrevista motivacional), do
acompanhamento técnico (enfatizado na TCC e na Prevenção de
Recaída) e da religião como fonte de esperança (abordada no
Programa 12 Passos) no processo de recuperação.
Independentemente da modalidade terapêutica adotada, o
grande desafio da recuperação é substituir a rotina centrada na
droga por novos hábitos, evitando o retorno aos comportamentos
destrutivos anteriores. Na implementação dessa mudança, o
ambiente social exerce uma poderosa influência na recuperação,
promovendo o restabelecimento do convívio familiar nos
encontros com colegas recuperados e no apoio de profissionais
especializados. O termo restabelecer significa uma
reaprendizagem para viver sem drogas e encontrar sentido em
atos corriqueiros e habituais (Rigotto & Gomes, 2008). Outros
estudos confirmam que um dos fatores que poderia estar
relacionado com a não reincidência do consumo de drogas é o
apoio social. Este é definido como um processo interativo, no qual
o individuo obtém ajuda emocional, instrumental e financeira da
rede social na qual se encontra inserido. Numerosos estudos
demonstram o impacto que exerce o apoio social sobre os
processos relacionados com a saúde, assim como o seu efeito
benéfico sobre a evolução das doenças (Garmendia, Alvarado,
Montenegro, Pino, 2008).
Os desafios relacionados ao tratamento da dependência
química tornam-se ainda maiores quando existe comorbidade,
ou seja, quando o paciente possui um quadro psiquiátrico
associado. As comorbidades mais comuns incluem os
transtornos de humor, de ansiedade, de conduta, déficit de
atenção e hiperatividade, esquizofrenia, transtornos alimentares
e transtornos da personalidade (Zaleski et al., 2006). O
surgimento de uma doença adicional é capaz de alterar a
sintomatologia, interferindo no diagnóstico, tratamento e
prognóstico de ambas. Por sua vez, o abuso de substâncias é o
transtorno coexistente mais freqüente entre portadores de
transtornos mentais, sendo de importância fundamental o
correto diagnóstico das patologias envolvidas (Zaleski et al.,
2006). Ainda, é importante que o tratamento seja direcionado às
múltiplas substâncias que causam prejuízo, pois estudo de
revisão sobre fumantes e dependentes de álcool mostrou que
maior tempo de abstinência de álcool e outras substâncias previu
sucesso na cessação do tabagismo (Heffner, Barrett, &
Anthenelli, 2007).
No estudo realizado por Rigotto e Gomes (2008) sobre
contextos de abstinência e recaída no tratamento da
dependência química, os autores concluíram que o mais difícil
não é atingir a abstinência, mas sim dar continuidade ao
processo de mudança. Manter o tempo ocupado com alguma
atividade prazerosa que substitua a droga e reforce, ainda mais, a
decisão pessoal de não reincidir no seu consumo foi ressaltado
pelos participantes como fator importante para permanecer
abstinente. O envolvimento na recuperação de outros
dependentes, seja através dos grupos de autoajuda ou
monitorando comunidades terapêuticas, foi considerado
importante para a abstinência. O referido estudo mostrou ainda
que os informantes abstinentes indicaram estarem envolvidos
em planos concretos como retornar aos estudos, ao trabalho, ao
convívio familiar.
Considerações Finais
Este trabalho teve por objetivo apresentar algumas das
modalidades terapêuticas utilizadas no tratamento da DQ nas
últimas duas décadas, mas ressalta-se que este foi um recorte e
que outras abordagens também podem ter eficácia. Existem
vários modelos de tratamento propostos, e a escolha do mais
adequado ao paciente depende de uma boa avaliação inicial, na
qual fatores extrínsecos (do modelo disponível, das condições
socioeconômicas) e intrínsecos (da motivação do paciente e do
diagnóstico) devem ser levados em consideração (Marques et
al., 2001). Confirmou-se que não existe somente um tratamento
específico para a DQ, ressaltando-se a importância da interface
das modalidades terapêuticas.
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Outra questão importante a ser considerada no tratamento da
DQ é a ligação entre profissionais e grupos de autoajuda. Ainda
que o modelo de autoajuda não se configure como um ambiente
de tratamento, é uma fonte importante de apoio a muitas pessoas
com problemas de álcool e outras drogas. Dessa forma, mostra-se
necessário que os profissionais que tratam esta patologia
adquiram conhecimento sobre o funcionamento desses grupos.
A avaliação adequada das comorbidades também é essencial,
já que um tratamento que não inclua essa avaliação pode acabar
levando a recaídas. Aliado a isso está a importância do tratamento
medicamentoso, que poderá tanto aliviar sintomas de abstinência
e fissura quanto tratar comorbidades (Fonseca & Lemos, 2011).
Estudos sugerem que o tratamento integrado de pacientes com
comorbidade psiquiátrica tem um melhor resultado do que o
tratamento seqüencial ou o paralelo, com uma abordagem
abrangente, incluindo manejo da crise aguda por equipe
multidisciplinar e por terapeuta individual, aguardando a
desintoxicação com abstinência por no mínimo duas semanas
(Zaleski et. al., 2006). O tratamento integrado também está
ligado de forma direta a um melhor prognostico, sobretudo nos
casos mais graves. Além disso, quanto mais cedo o diagnostico é
realizado e o tratamento iniciado, maiores as chances de um
desfecho favorável (Fonseca & Lemos, 2011). No entanto, até o
presente, os resultados referentes às taxas de abstinência em
dependência química mostram-se baixos, mostrando a
necessidade de novos estudos com ênfase neste assunto.
Por fim, novas possibilidades terapêuticas, como a utilização
de aplicativos via internet ou avaliação momentânea ecológica,
têm sido estudadas com objetivo de complementar as
abordagens existentes e elevar os índices de eficácia do
tratamento. A avaliação momentânea ecológica é um
instrumento de medida que tem sido pesquisado com tabagistas
para monitorar em tempo real a quantidade de cigarros fumados.
Ela permite documentar os padrões de consumo e analisar os
contextos associados ao fumar e ao estado de humor relacionado
a isso, capturando informações importantes que não poderiam
ser medidas através de questionários retrospectivos (Shiffman,
2009). O uso de tecnologias inovadoras que possam ser
disponibilizadas via internet ou smartphone parece ser o futuro do
campo de pesquisa em dependência química. Assim, é
importante que os terapeutas estejam abertos e disponíveis a
conhecerem novas técnicas que possam ser adicionais às
tradicionalmente utilizadas na prática clínica.
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19
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Limites da Interpretação: irredutibilidade, castração
e umbigo do sonho
Limits of Interpretation: irreducibility, castration
and navel of the dream
2
Carlos Alexandre Araújo Benício da Costa e Silva*
Resumo: O presente trabalho busca, fundamentalmente, restaurar o significado primordial da concepção
freudiana de interpretação e os limites que se apresentam ao trabalho psicanalítico. Em constantes articulações
do método freudiano com perspectivas de autores atuais, delimitam-se os alcances e destacam-se as
transformações e inflexões cruciais da técnica ao longo do percurso freudiano. Inicia-se tendo por foco os
primeiros escritos produzidos por Freud, numa retrospectiva do progresso técnico rumo à consolidação do
método interpretativo, discutindo-se a evolução da técnica psicanalítica, seus limites e a própria eficácia da
interpretação enquanto recurso técnico. O texto fornece subsídios e auxilia na pontuação de questões
significativas do arcabouço psicanalítico, contemplando (1) o motivo pelo qual o psiquismo por tantas vezes
mostra-se impenetrável frente às interpretações, (2) como a retirada do material recalcado move o afeto, (3)
como são delineados os limites da evolução técnica da psicanálise e (4) quais as estruturas limítrofes ao efeito das
interpretações em psicanálise.
Palavras-chave: Freud - Psicanálise – Interpretação – Limites da Interpretação.
Abstract: The present paper searches, fundamentally, to restore the primordial meaning of the freudian
conception of interpretation and the limits that present to psychoanalytic work. In constant joints of the freudian
method based on current authors, the scopes are delimited and the transformations are enhanced and crucial
inflections of the technique throughout the freudian course. It is initiated focusing on the first writings produced
by Freud, in a retrospective of the technic progress to the consolidation of the interpretative method, discussing
the evolution of the psychoanalysis technique, its limits and its own effectiveness of the interpretation as a
technic resource. The text provides subsidies and assists on the points of significant questions of psychoanalysis
structure, considering (1) taking into the reason for consideration which the psyche for several times
demonstrates to be impenetrable in confrontation to the interpretations, (2) how the removal of the repressed
material moves the affection, (3) how the limits of the technique of the psychoanalysis evolution are outlined
and (4) which the bordering structure are to the effect of the interpretations in psychoanalysis.
Keywords: Freud - Psychoanalysis – Interpretation – Limits of the intepretation.
*
Psicólogo Clínico graduado pelo Centro Universitário de Brasília, Brasil.
E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
20
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26
Durante o seu percurso prático-teórico, Freud apresentou
queixas referentes ao que denominava serem os obstáculos no
caminho da cura. Que obstáculos seriam esses?
No texto Análise terminável e interminável, Freud (1937/1996)
utiliza-se de retornos sintomáticos ocorridos após o findar de
uma análise – e mesmo de substanciais adoecimentos em
virtude de desejos realizados ou devido ao notável êxito
alcançado na vida – para exemplificar as barreiras antepostas às
curas terapêuticas.
No referido texto, além de apontar a questão transferencial e a da
reatualização dos conflitos como fatores que, intrínsecos a si,
podem conter também mecanismos propulsores ao insucesso
terapêutico, Freud retoma ainda a ideia de que – além da força
determinante do Eu – os resultados de uma análise podem advir
da combinação entre fatores constitucionais e acidentais.
Contribuindo significativamente com o desenvolvimento do
tema, Mezan (2008) levanta importantes questões: “Até que
ponto é possível dominar as pulsões mediante um reforço do
ego? (...) Como prevenir as recaídas ou o surgimento de uma
nova neurose em lugar da que se acaba de debelar?” (Mezan,
2008, p.327). Afinal, o que estaria acontecendo nesses casos?
Na medida em que as resistências surgiam como frutos do
processo defensivo, sua atuação passou então a ser vista não
apenas em direção aos eventos traumáticos, como também num
âmbito mais complexo e dinâmico. Acerca do tema, Figueiredo
(2011) visualiza uma mudança processual na qual as resistências
inconscientes, outrora transpostas ou evitadas, passam a ser
evocadas como protagonistas do processo terapêutico: “na
verdade, [o processo] deixa-se conduzir pelas próprias
resistências”(p.187).
No 'Caso Dora' (1905), Freud já havia conseguido aproximar-se
de questões fundamentais para a posteridade da técnica
psicanalítica. Nesse estudo estão os importantes fundamentos
que cunharam os termos transferência e repetição. Contudo,
encontra-se também presente nesse caso o reconhecimento de
uma força que só foi teorizada posteriormente e que, estando
além do princípio do prazer e do recalque, notoriamente se opõe
ao buscado processo de cura terapêutica.
Nesse momento do desenvolvimento técnico-teórico da
psicanálise, Freud já reconhecia o conflito psíquico-pulsional
interno e de ordem sexual como fundamental no processo de
patologização. Já era também reconhecida a tradução do
material patogênico enquanto principal forma de solução dos
conflitos psíquicos. A interrogação freudiana dirigia-se aqui ao
porquê de os sintomas de Dora não desaparecerem perante o
trabalho psicanalítico, mas apenas quando dissolvidas as
relações com o analista.
Restos transferenciais e insuficientes ou mal-logradas
interpretações seriam partes fundamentais no fracasso de um
processo analítico. Chegou a ser atribuída à própria pessoa do
psicanalista a exclusiva responsabilização pelo atraso numa cura
ou mesmo por um equivocado desfecho operacional do
tratamento.
Mas, conforme apontava Freud (1916/1996) já no início do
texto Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho
psicanalítico, quando se empreende um tratamento
psicanalítico, o interesse não se dirige primordialmente, de modo
algum, para o caráter do paciente. É dada, sim, maior atenção à
significância sintomática de quais impulsos instintuais se
encontram ocultos ou satisfeitos por esse quadro sintomático, e
qual o percurso trilhado entre os componentes instintuais e a
sintomatização. Nesse mesmo texto, Freud salienta ainda que
nem sempre o que se opõe aos esforços de um tratamento
psicanalítico são os traços de caráter que o paciente reconhece
em si mesmo e que lhe são atribuídos pelas pessoas que o
cercam.
Utilizando-se de figurações shakespearianas em texto
intitulado Os arruinados pelo êxito, parte integrante dos
supracitados tipos de caráter (...), Freud (1916/1996) revelou
também uma particular tendência que certas pessoas possuem
em se entregar à enfermidade neurótica e a ela sucumbir após
perceberem a realização de seus desejos. O intuito freudiano
nesse texto foi o de ressaltar que não apenas da privação ou da
frustração adviriam os fatores necessários ao adoecimento
psíquico. Contudo, é no texto Análise terminável e interminável,
aproximadamente vinte anos mais tarde, que Freud
(1937/1996) esmiúça fatores processualmente desfavoráveis e
exclusivamente apresentados pelo paciente. Pela proposição
freudiana, haveria fatores constitucionais e, a partir deles, alguns
fragmentos de velhos mecanismos permaneceriam incólumes
ao tratamento psicanalítico.
Fruto do conflito interno entre as pulsões sexuais e as de
autoconservação, o processo neurótico era explicado pela
contrariedade ao princípio do prazer, apresentada pelas
privações e frustrações da vida cotidiana. Conforme explica
Mezan (2008):
O neurótico sofre em consequência da debilidade pretérita
do seu ego, que, ao reprimir as tendências pulsionais de
maneira excessiva, por um lado limitou sua esfera de ação e
realizou uma síntese incompleta de si mesmo, e por outro lado
permitiu aos conteúdos assim isolados gozarem de uma
proliferação desenfreada, reforçando-se mutuamente e
terminando por exigir uma satisfação substitutiva sob a forma
dos sintomas. A terapia recua até os anos infantis para
encontrar as situações patogênicas, atualizá-las e permitir um
confronto a partir de condições mais favoráveis ao ego, que
poderá então desfazer certas repressões e reconstituir outras,
atingindo um ponto de equilíbrio em que o sofrimento
desapareça e a capacidade de viver plenamente seja
21
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26
restaurada (Mezan, 2008, p. 327).
Entretanto, o próprio Mezan (2008) esclarece ainda que:
Mesmo o ego aproximadamente normal, apresenta fortes
resistências à cura: as repressões, ao menos, garantem um
certo controle sobre o id; a própria transferência tem um
sentido de resistência, na medida em que o repetir exclui o
recordar, e portanto a emergência consciente do reprimido; a
enfermidade tem vantagens primárias e secundárias às quais
não é agradável renunciar. O id resiste por meio da compulsão
de repetição e da atração que os protótipos inconscientes
exercem sobre o processo a ser reprimido. O superego resiste
através da consciência de culpa, como se o individuo devesse
sofrer para expiar algum pecado terrível, e como se a supressão
deste sofrimento fosse um prêmio imerecido pelo ego. Esta
última resistência, que se expressa na 'reação terapêutica
negativa', é também um obstáculo insuperável pela análise,
porque a revelação paulatina do reprimido não consegue
compensar as tendências masoquistas do individuo, que dela
se aproveita justamente para se infligir tormentos ainda
maiores (Mezan, 2008, p.328).
E como então se explicaria o adoecimento psíquico de
alguém em função do próprio êxito logrado? Freud já havia
fornecido pistas acerca dessa interrogação em O Ego e o Id
(1923/1996), quando desenvolveu a noção de Reação
Terapêutica Negativa, tendo nesse conceito as severas
manifestações de resistência ao processo de cura, e sendo, como
definem Laplanche e Pontalis (1982/2001):
[um] fenômeno encontrado em certos tratamentos
psicanalíticos como tipo de resistência à cura especialmente
difícil de superar: cada vez que se poderia esperar uma
melhoria do progresso da análise, produz-se um
agravamento, como se certos sujeitos preferissem o sofrimento
à cura. Freud liga este fenômeno a um sentimento de culpa
inconsciente inerente a certas estruturas masoquistas
(Laplanche & Pontalis, 1982/2001, p. 424).
Inicialmente, o desenvolvimento freudiano conduziu esse
movimento acerca do adoecimento psíquico a teóricas
especulações que apontavam no sentido de tendências punitivas
em virtude de um superego clamando por castigo. Estruturado
nas relações edípicas, o controle exercido pelo superego seria o
principal fator fomentador da consciência moral e da
necessidade de castigo presentes no inconsciente. Sendo assim,
é reconhecido como fruto do fator moral e do recalque dos
impulsos, o desencadeamento do sentimento de culpa e sua
consequente busca pelo castigo a ser empreendido.
Condicionando a análise desse sentimento de culpa ao seu
próprio nível de intensidade, Freud ressalta ser mais uma
importante tarefa do analista a de tornar consciente esse
sentimento, necessariamente descobrindo seus fundamentos
recalcados.
É num importante texto intitulado O inconsciente, que Freud
(1915a/1996) expõe e busca nortear, na proposição de seu
aparelho psíquico, a instância do inconsciente. No referido texto,
Freud inicia uma dialética na qual vislumbra a ideia de conteúdos
inconscientes que não seriam exclusivamente recalcados. Ele
aponta ser o material recalcado apenas uma parte do
inconsciente e salienta que todo o material recalcado é
inconsciente, mas que nem todo o material inconsciente é
recalcado. É nessa porção inconsciente e não recalcada que se
encontram, por exemplo, os mecanismos de defesa do ego
(Freud. 1915a/1996).
Na diferenciação das instâncias psíquicas e consequente
mapeamento topográfico que compõe o aparelho freudiano, o id
da segunda tópica é tido como aquela parte obscura e
inacessível, atemporal e regida pelo processo primário de prazer,
onde não há lógica de pensamento ou mesmo termos de
contradição, segundo definições constantes em O ego e o id
(Freud, 1923/1996). O id conteria, sim, cargas de pulsões com
alto poder de demanda e com conteúdos da ordem do nãorepresentável. Em suma, a noção de reação terapêutica negativa
contemplaria tanto os aspectos (representáveis ou nãorepresentáveis) do superego quanto do id, em seus formatos de
culpabilidade, punição e destrutibilidade dirigidos
fundamentalmente contra a própria pessoa.
Com o desenvolvimento da interpretação, estabelecida
como recurso técnico peculiar da psicanálise, uma nova
concepção passou a levantar maiores e importantes suspeitas de
cunho metodológico. O inconsciente – principal objeto do
estudo psicanalítico – passou, então, a ser questionado em
relação a seu conteúdo: seria o inconsciente um reservatório ou,
ao contrário, não possuiria ele quaisquer conteúdos?
O entendimento que abriu novas perspectivas a se pensar e
teorizar foi o de que o inconsciente até poderia, sim, ser
desprovido de conteúdos, mas que, paradoxalmente, também
não deixaria de ter um resíduo indecifrável que impõe peculiares
condições ao trabalho interpretativo que se realiza em
psicanálise (Nunes, Ferreira & Peres, 2009).
Como lembram Nunes et al. (2009):
(...) não fosse pela intromissão dos afetos, (...) o trabalho
investigativo avançaria até atingir o ponto visado, os sentidos
inconscientes seriam plenamente descobertos. Mas os estados
afetivos estão aí como representantes dos limites desse
procedimento. Sua emergência representa um impasse clínico
para a psicanálise (Nunes et al., p.445).
22
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26
Se todo conteúdo apresentar sempre uma possibilidade de
tradução que o conduza a algo de melhor adequação,
consequentemente, ao que parece, haverá sempre algo a mais,
um algo novo ou apenas diferente a se dizer. Assim sendo, todo o
processo de deciframento redundará sempre em algo apenas
parcial, que remeterá a novas associações. E assim será até o
encontro de uma irredutibilidade interpretativa: um lugar no
qual a associação (a fala) torna-se impossibilitada, um resíduo
da ordem do intraduzível.
Conforme aponta Vegas (2008), mais que a firme e pura
exatidão, o trabalho que Freud empreendeu em direção ao seu
compromisso com a verdade propunha principalmente a
circunscrição do real, ou, mais especificamente, do núcleo do
real. E “mesmo não o tendo formulado, esse conceito [de núcleo
do real] é apresentado em noções como umbigo do sonho e
trauma. Ambas falam sobre o que não pode ser representado”
(p.38). No sonho, especificamente, refere-se ao conteúdo latente
que não pode ser trazido à consciência, a parcela do sonho que
não pode ser interpretada (Vegas, 2008).
Contrariando o que outrora foi preconizado, o então trabalho
psicanalítico de deciframento de sintomas por intermédio da
interpretação passava a dar lugar às questões voltadas aos
pontos de indecifrabilidade do inconsciente. Num lugar onde
deveria surgir uma interpretação ao conteúdo inconsciente,
como advento do processo metodológico-psicanalítico da livreassociação, ocorre uma falha, e o inconsciente não se dispõe ao
deciframento. Sem a possibilidade de uma plena tradução, as
palavras dão lugar ao silêncio. As associações param e o processo
silencia (Nunes et al., 2009).
Assim sendo, a constatação desse resto irredutível ou dessa
impossibilidade de alcance da palavra em pleno proceder
psicanalítico remete à ilusão da completude, ilusão da visão do
todo: a falta, o rochedo da castração, o umbigo do sonho. É em
virtude desses desdobramentos em relação a uma supracitada
“irredutibilidade” que as atenções se voltam para a singular
questão de quais seriam os limites de uma interpretação.
Partindo de contribuições fornecidas por Celes e Garcia
(2011), tem-se que, dentre as variadas situações que se
apresentam como limítrofes à interpretação, se podem elencar
(1) o inconsciente enquanto entidade grandemente resistente e
obviamente não-interpretável em sua plenitude, significância aí
de uma caótica aniquilação do psiquismo, (2) a condição não
tratável e não curável da neurose enquanto estrutura
fundamental humanizante, presentificada pelo advento do
recalcamento, (3) as fantasias originárias situadas na ordem de
transmissão filogenética e ontogenética como adventos
passíveis de construção, mas não de uma interpretação
propriamente dita, (4) a transferência em sua alteridade e
condição humana “como objeto real e atual que também se
apresenta na relação analítica” (Celes & Garcia, 2011, p. 124), na
qual, em relação à interpretação, não há muito o que se possa
fazer, e, (5) numa perspectiva da clínica das pulsões, a
modificação dos destinos pulsionais, com ênfase na perversão
tanto como parte da sexualidade infantil quanto como
organização psíquica que abarca o mecanismo da recusa ou do
desmentido (Verleugnung).
Contudo, é interessante verificar que, mesmo sendo
reconhecido o entrelaçamento dessas diversas perspectivas
supracitadas, um elemento comum aparece como substrato,
percorrendo todos eles: o rochedo da castração. Entidade que
não se submete à interpretação.
Como abordam Celes e Garcia (2011):
A castração como fato fundamental foi aproximada por
Freud às fantasias originárias e com elas goza da condição de
não ser analisável. Na história singular de cada um, a
castração faz seu efeito não como compreendida nem como
interpretada, mas enquanto assumida como castração. O
recalque da castração do outro suporta a interpretação até
determinado limite a partir do qual a integração da castração
no eu não é mais possível e é substituída pelo ideal... Também
o ideal que ilude a castração não se dissolve na interpretação,
tornando-se a análise quase um trabalho de convencimento
de abandono da realização completa do ideal, um trabalho
(Celes & Garcia, 2011, p.125).
Esse nebuloso irrepresentável seria permeado pela
controvertida noção de pulsão de morte, sendo essa, por sua vez
– segundo a caracterização utilizada por Laplanche e Pontalis
(1982/2001) –, tanto “uma categoria fundamental de pulsões
que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a
redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser
vivo a seu estado inorgânico”(pág. 407), quanto aquelas pulsões
que tenderiam à autodestruição e que, inicialmente dirigidas
para o interior, secundariamente estariam voltadas para o
exterior, onde se expressariam por intermédio da pulsão de
agressão ou destruição (Laplanche & Pontalis, 1982/2001).
A pulsão de morte seria uma forma irreprimível constante
nos fenômenos de repetição, mas não apenas nesses. Refere-se a
uma pulsão sem representação que se encontra presentificada
numa força propulsora de campos, como a agressividade, o ódio,
a guerra e as reações terapêuticas negativas.
Mas por que se deve pensar que tal pulsão incorre numa
peculiar falta de representação? Seria essa uma medida de cunho
teórico na tentativa de resposta e explicação para as distintas
intensidades dos afetos inconscientes?
O fato é que um dos formatos técnicos na tentativa de saída
dessa aparente finitude clínica foi o estabelecimento, em 1937,
da noção freudiana de construção enquanto tentativa de
integralização da ordem simbólica do indivíduo. Aqueles ideais
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Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 20-26
de superação em relação ao recalque, e de um total deciframento
dos processos inconscientes, passaram a ser repensados através
desse advento nomeado. Dentre outros aspectos, as construções
em análise mostrar-se-iam tentativas metodológicas de suprir o
que há de inalcançável nos processos de recordação, naquele
local onde o lugar da palavra fracassa. E ali elas concederiam uma
capacidade de alucinação acerca da própria história do indivíduo.
Em síntese, o viés trilhado por Freud vislumbrava inicialmente a
possibilidade de que a pulsão como força – inscrita na ordem
simbólica mediante uma série de destinos - pudesse, pelo
trabalho de linguagem, ser inteiramente transformada em
símbolo. Contudo, com o desenvolvimento de seus estudos, o
que passaram a ser evidenciados foram justamente os impasses
e as impossibilidades existentes nesse processo psicanalítico de
transformação, posto que o inconsciente e a pulsão não
poderiam ser traduzidos em sua integralidade.
Portanto, com o desenvolvimento teórico freudiano, o
método psicanalítico passaria a marcar a transição entre aquele
objetivo inicial de alcance à totalidade do material psíquico
inacessível à consciência – mediante a transformação da força
pulsional em símbolo de linguagem – e as reflexões acerca dos
impasses, limites e impossibilidades que permeiam a práxis
psicanalítica.
Considerações Finais
Diferenciando a compreensão da psicanálise em suas três
formas clínicas – a clínica do trauma, a clínica da representação e
a clínica da pulsão –, Celes e Garcia (2011) tentam clarificar a
complexa questão dos limites da interpretação psicanalítica.
Dentre esses limites, no tocante à denominada clínica da
representação em sua perspectiva teórica, encontram-se
representações pré-verbais de experiências não recalcadas que
ocorreram no seio de uma ausência na ligação com as palavras e
que, assim, não se mostram suscetíveis à interpretação. Esse é o
núcleo do recalcado que trata da “impossibilidade de alcançar o
que se constitui inconsciente fora da representação verbal, ou
além dela”(Celes & Garcia, 2011, p.122).
Posto que a neurose, enquanto entidade estruturante do ser
humano, não se trata e não se cura, o inconsciente, por sua vez,
mantém-se no intenso conflito contra as invasivas
interpretações. “O limite da interpretação se encontra onde se
espera que ela venha a reinar: no tratamento da neurose”(Celes &
Garcia, 2011, p. 122). Postulando também o próprio conteúdo
transferencial como objeto da interpretação e condição para a
sua eficácia, sob o ponto de vista clínico, vale inicialmente
ressaltar o papel fundamental estabelecido pela transferência
enquanto “parceira principal da interpretação” (Celes & Garcia,
2011, p. 123) e como “vínculo afetivo com o analista que cria a
condição [necessária] para a interpretação e veicula seu efeito”
(ibid., p.124).
Vale ainda ressaltar que, diferentemente da interpretação, a
construção caracteriza-se como a criação, pelo analista, de um
conteúdo até então inexistente no registro do analisando. Tem
como função servir de complemento ao discurso do analisando,
delineando a contextualização histórica dos fatos e marcando,
sobremaneira, a inscrição do tempo na subjetividade do
indivíduo, sendo a transferência, em suas peculiaridades, o
fenômeno que concede a veracidade necessária para que esse
conteúdo advindo de uma construção se estabeleça e passe a
existir enquanto fato.
Em termos de aplicabilidade, vê-se que, mesmo com suas
aproximações, esses dois aparatos técnicos possuem distinções.
A principal dessas diferenças se mostra quando a tríade
freudiana preconizada como recordar, repetir e elaborar impõe
limites à interpretação: “aquilo que não tem possibilidade de ser
recordado coincide com o recalque primário e, desta maneira,
pode-se dizer ser este o objeto da construção, aludir ao conteúdo
desse primeiro recalque”(Vegas, 2008, p.109).
É a partir do recalque originário que os demais recalques
propriamente ditos são também estruturados. Em contraposição
a essa estruturação, encontra-se a noção de rochedo da
castração, ou mesmo, de umbigo do sonho. Algo da ordem do
irrepresentável, do irredutível. O ponto onde o psiquismo não se
deixa revelar pela interpretação. A interpretação encontrou,
então, seu limite no irrepresentável, conteúdo esse que pode ser
mais bem compreendido através da articulação entre as noções
de pulsão de morte e masoquismo.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud,
1905/1996) e em O instinto e suas vicissitudes (Freud,
1915b/1996) o conceito de masoquismo aparece como sendo
aquele componente indissolúvel do par sadismo-masoquismo.
O masoquismo é visto como o efeito do retorno da libido sobre o
próprio indivíduo, após as frustrações pulsionais ocasionadas na
relação com o mundo externo. Após a elaboração do texto O
problema econômico do masoquismo, entretanto, Freud
(1924/1996) passou a teorizar essa noção como sendo um
dentre outros três formatos do masoquismo.
Partindo da concepção de princípio do nirvana, Freud
(1924/1996) postula a concepção de masoquismo para explicar
a tendência na persistência da dor. Ele desenvolve a noção de um
masoquismo originário¹ como sendo aquele que fora constituído
por bases biológicas e constitucionais. Entretanto, exceto pelo
fato de se considerar o masoquismo como a mais nítida
expressão da pulsão de morte, permanece ainda nebuloso o
entrelaçamento entre esse tipo de masoquismo (originário) e a
1 Também denominado masoquismo primário ou mesmo
masoquismo erógeno, esse formato difere-se dos outros dois tipos
de masoquismo: o masoquismo feminino e o masoquismo moral
(Freud, 1924).
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reação terapêutica negativa, enquanto elemento que resiste ao
processo de cura.
Conforme postula Freud (1924/1996):
Pode-se dizer que o instinto de morte operante no
organismo – sadismo primário – é idêntico ao masoquismo.
Após sua parte principal ter sido transposta para fora, para os
objetos, dentro resta como um resíduo seu o masoquismo
erógeno propriamente dito que, por um lado, se tornou
componente da libido e, por outro, ainda tem o eu (self) como
seu objeto (Freud, 1924/1996, p.182).
Em relação à fundamental noção psicanalítica de pulsão de
morte, é importante demarcá-la como força instintiva que, por
não possuir uma natureza de cunho propriamente sexual,
consequentemente não é objeto do recalque.
Desta forma, a pulsão de morte mantém-se como algo sem
história e sem representação, e por isso também não possui a
capacidade de vínculo ou de fixação aos objetos. Não tem
descarga ou qualquer forma de escoamento. Trata-se de algo que
não possui formas simbolizáveis. Portanto, o que se encontra
nesse campo carente de representações é um campo pulsional
sem inscrição, denominado pulsão de morte, que tem na noção
de masoquismo – através do bloqueio feito à libido e a
consequente impossibilidade de interpretação – sua melhor
forma de expressão.
Se, por um lado, a pulsão de morte se torna a mola
propulsora de atitudes como o masoquismo, a reação
terapêutica negativa ou a agressividade, por outro, não fica nítido
o motivo pelo qual essas pulsões careçam de representações. E o
que será possível fazer com todo o conteúdo que não é
simbolizado? Seria possível atrair todo esse conteúdo para um
sistema de representações?
Finalizar um texto deixando perguntas a serem pensadas
talvez signifique o testemunhar da própria incerteza. Sem servir
de consolo, vale lembrar terem sido esses alguns dos
questionamentos também deixados por Freud.
Segundo a contribuição de Vegas (2008):
A construção [enquanto recurso técnico da psicanálise]
pretende enlaçar pela palavra o excedente pulsional não
representável e parar o movimento compulsivo... Mas a pulsão
e a sua dimensão conservadora servem como indicação de que
existe algo fora do psiquismo, afetando-o constantemente
(Vegas, 2008, p.110).
Visto ser o entrelaçamento entre representação e
interpretação a condição sine qua non ao processo psicanalítico,
o limite da interpretação constitui-se, portanto, naquele material
que é irrepresentável. Contudo, não é exclusivamente esse o
conteúdo que impõe limites à análise. Quando se tenta vencer os
limites da interpretação é que, consequentemente, se consegue
ampliar o processo analítico. Conclui-se, com isso, que o processo
analítico não se encontra cerceado pelos limites (ou não) das
interpretações. Há ainda que se considerar a utilização das
construções em análise como o instrumento psicanalítico que,
por suas peculiaridades, consegue viabilizar a expansão desses
limites então atribuídos à interpretação.
Referências:
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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XIX. Rio de
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Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
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26
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Tecendo a Sanidade: Arthur Bispo do Rosário
O Gênio da Contemporaneidade
Weaving Sanity: Arthur Bispo do Rosário
The Genius of Contemporary
2
Eliane Tonello*
Resumo: Este trabalho foi realizado a partir do caso de Arthur Bispo do Rosário, um sobrevivente das rígidas
normas institucionais, provocando rupturas de paradigmas na medicina psiquiátrica do século XX. Ele aceitou o
rótulo de louco e de esquizofrênico paranóide e fez de si um “Deus de sua própria criação”, deixando registrado
em 804 peças de arte tudo aquilo que borbulhava internamente, agregando com o que acontecia ao seu redor e
usando a arte como forma de comunicação. Bispo do Rosário foi um gênio que teceu sua realidade vivida
usando o delírio místico, a fé e a arte, fazendo do silêncio um momento eterno capaz de transformar
sentimentos do ser humano e percepções do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Arthur Bispo do Rosário, ruptura, paradigmas Institucionais, saúde mental, arte e Psicodrama.
Abstract: This work was carried out based on the case of Arthur Bispo do Rosario, a survivor of rigid institutional
rules, disrupting paradigms of psychiatric medicine in the Twentieth Century. He accepted the label of crazy and
paranoid schizophrenic, and made himself a "god of his own creation", leaving recorded in 804 pieces of art
everything was bubbling internally, aggregating to what was happening around him and using art as a form of
communication. Bispo do Rosario was a genius who wove his lived reality using the mystical delirium, faith and
art, making of silence an eternal moment able to transform human feelings and perceptions of the
contemporary world.
Keywords: Arthur Bispo do Rosario, rupture, Institutional paradigms, mental health, art and Psychodrama.
*
Acadêmica do curso de Psicologia do Centro Universitário Metodista, do IPA - Porto Alegre - Brasil, TCC2, Professora Algaides Rodrigues,
10º Semestre.
E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39
Este artigo apresenta o estudo do “caso” de Arthur Bispo do
RoEste artigo apresenta o estudo do caso de Arthur Bispo do
Rosário, um artista plástico brasileiro que viveu 30 anos na
Colônia Juliano Moreira, chamado “hospício” na época. Nas
inúmeras vezes em que os pacientes ficavam agitados, como era
o caso de Bispo do Rosário, a cela-forte era um local onde eles
passavam dias até se acalmarem. Com o passar do tempo, Bispo
do Rosário se adonou da cela, passando a fazer dela seu espaço.
Lá foi onde iniciou a construção das inúmeras peças que
compõem a sua obra, a partir dos objetos (canecas, talheres,
pentes, entre outros) que outros internos deixavam no chão da
própria colônia, inclusive as roupas azuis de que muitos deles se
desfaziam. Ele se apegou à arte, recusando os tratamentos
psiquiátricos propostos (medicalização excessiva, eletrochoques
e lobotomia) e oficinas de criatividade. Suas obras refletem uma
poética que tem profundo impacto em diversas áreas além da
arte e da sociologia, mas principalmente na saúde mental. Neste
instante, acolho o que Basaglia deixou em seus últimos escritos,
nos dizendo que, se algum dia a história de alguma experiência
de inclusão social fosse relatada, preferia que fosse não só através
de números, como também das “histórias de vida que foram
reinventadas, reconstruídas, redescobertas a partir do processo
de transformação”(BASAGLIA apud AMARANTE, 2007).
Arthur Bispo do Rosário transformou os seus delírios em uma
obra viva, usufruindo da magia da agulha e da pintura, numa
construção organizada e ordenada. Eduardo Galeano já afirmara
(1998): ”temos direito ao delírio”. Jacob Levy Moreno nos
apresenta que “a desordem é apenas uma aparência exterior,
internamente existe uma força propulsora coerente, uma aptidão
plástica, uma necessidade imperiosa de assumir forma definida”
(MORENO, 1975, p.85). Compreende-se nos referidos autores
que a comunicação, mesmo que aparentemente caótica, pode
transmitir a força da expressão de seu comunicante.
Estudando a vida e obra de Arthur Bispo do Rosário e, a partir
da visitação feita à exposição “Arthur Bispo do Rosário: A poesia
do fio”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2012, este
trabalho foi tomando corpo na forma de uma interrogação
recorrente, constituindo o alvo inquietante da pesquisa que pode
ser assim expressa: como, através do caso Arthur Bispo do
Rosário, se pode compreender a experiência da arte
como dispositivo de produção de saúde? Pretende-se
também, a partir do caso Arthur Bispo do Rosário, tecer reflexões
sobre a sanidade e sobre como podemos compreender a
experiência da arte como dispositivo de produção de saúde. O
trabalho requereu o levantamento de informações acerca da vida
e da obra do referido artista, analisando-se possíveis relações
entre as concepções de saúde e criação a partir de Jacob Levy
Moreno e formulando-se um estudo de caso respondendo ao
objetivo geral proposto.
Muitos temas foram abordados no Curso de Psicologia que
despertaram a ideia de realização deste trabalho: Saúde Coletiva
e Direitos Humanos, aprovação da lei manicomial, seminários de
integração, e visitas à oficina de criatividade do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, à Morada Viamão e ao CAPS I – Serviço de
Saúde Mental – Nossa Casa na cidade de São Lourenço do Sul.
Nessas visitas, foram ouvidos inúmeros relatos de pessoas que
tinham contato com a arte. Na cidade de São Lourenço do Sul,
um paciente assim disse: “Eu fico muito triste quando não
consigo vir pra cá, tudo que eu faço aqui me deixa muito bem, a
arte faz eu me sentir vivo”. E quando a autora compra uma de
suas peças, ele se aproxima sorrindo e diz “fui eu que fiz”. Já na
oficina de criatividade do São Pedro, ao constatar que alguns
alunos tinham medo de se aproximar dos pacientes, a
coordenadora da oficina diz: “Fiquem tranquilos porque quem
está em surto não tem capacidade de criar e nem vem pra cá, os
que estão aqui não são agressivos, podem circular por aí e ver o
que eles estão fazendo”. Na Morada Viamão, um dos pacientes
assim falou: “Olha só o meu desenho, olha aí na parede como eu
pinto bem”. Outra paciente se aproxima e diz: “Eu adoro filmar as
pessoas e bater foto”. Associando esses relatos com a experiência
da autora no contato benéfico com a arte (música, crochê, tricô,
pintura, desenhos, confecção de artesanato, bordados, fotografia
e poesia), além dos elementos obtidos a partir da exposição
“Arthur Bispo do Rosário - A Poesia do Fio”, esta pesquisa tornouse relevante por proporcionar uma sistematização dos
aprendizados que teve durante o curso de graduação em
psicologia do Centro Universitário Metodista do IPA. E, com o
tema escolhido para esta pesquisa, juntou-se a arte e a
psicologia, especialmente porque ela acredita que a vida sem o
contato com a arte teria menos sentido. Para ilustrar, evoca as
palavras de Nietzsche: “Temos a arte para que a verdade não nos
destrua”(NIETZSCHE apud ARALDI, 2008 e SANTOS, 2010).
Como método de análise, foi utilizada uma atitude
fenomenológica-existencial e, tendo considerado os objetivos
propostos, duas unidades de sentido pareceram mais
significativas: “Vida e Obra de Arthur Bispo do Rosário“ e “Arte e
Saúde”. O trabalho tem como fundamentação teórica principal os
autores Jacob Levy Moreno, Luciana Hidalgo e Júlia Motta, que
auxiliaram a tecer neste estudo o conceito da sanidade do caso
Arthur Bispo do Rosário.
Metodologia
Com a intenção de compreender como Arthur Bispo do
Rosário viveu até os 80 anos dentro de uma cela manicomial no
século XX, no auge da psiquiatrização, tendo a arte como
ferramenta diária de saúde, buscou-se captar através do “estudo
de caso”os sentidos significativos, analisados a partir do método
Fenomenológico-Existencial. Este processo procura penetrar na
própria vivência da pessoa que busca conhecer, na tentativa de
28
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39
aapreender o seu modo de existir, considerando como de
importância fundamental sua maneira de vivenciar o espaço e o
tempo. Assim, para chegar a adentrar nos objetivos vividos, o
observador utiliza-se de uma compreensão intuitiva do convívio,
ou seja, da empatia.
Para o estudo do caso Arthur Bispo do Rosário, foi evocado o
Método do Estudo de Caso que os autores Goode e Hatt (1969)
apresentam como um meio de organizar os dados, preservando
no objeto estudado seu caráter unitário. Considera-se a unidade
como um todo, incluindo o seu desenvolvimento (pessoa,
família, conjunto de relações ou processos, etc.). O estudo de
caso permite o conhecimento de algo singular, que tem um valor
em si mesmo, no caso, a arte como dispositivo de produção de
saúde, além de ter grande utilidade na exploração de novos
processos ou comportamentos que contribuem na construção de
novas pesquisas (VENTURA, 2007).
Fonseca ressalta: “Cada caso não é um caso” (FONSECA,
1999). Trata-se de uma expressão que a referida autora usa para
nos mostrar que, ao coletar dados para uma determinada
pesquisa, como no presente estudo, nem sempre se está falando
de algo inédito, e sim algo que perpassa outros casos com muita
semelhança. Assim, vão perceber que os dados aqui coletados
mostram o olhar focado na arte como dispositivo de produção de
saúde. Esta escolha não ocorreu de forma aleatória, mas teve
interferência das experiências da autora com a arte. Esta, ao
mesmo tempo em que se aprofundou no histórico de Bispo,
procurou fazer uma revisão da própria vida, o que trouxe muitos
momentos de angústia. Isso tudo, de certo modo, acaba
retratando modos subjetivos semelhantes que perpassam as
dinâmicas sociais.
Para Motta, o pesquisador tem como instrumento de
pesquisa a vida, suas inquietações e conflitos, e também seus
estudos, sua bagagem intelectual, sua formação como estudioso
das Ciências Humanas. Com suas inquietações investigativas,
tenta compreender e transformar seus conhecimentos através do
estudo de seu semelhante. O papel do pesquisador que busca
uma resposta na pesquisa traz consigo uma proposta de éticaestética, ciência-arte, que visa conquistar um estado da arte na
ação dramática como um ápice na construção do conhecimento.
Moreno afirma que “para transformar o universo social, os
experimentos sociais devem ser planejados de forma que
possam produzir mudanças (...) e as pessoas são incluídas na
operação”(MORENO apud MOTTA, 2011, p.84-5).
A primeira etapa da pesquisa consistiu em captar um sentido
do todo através de documentários, filmes, artigos e estudos já
publicados. Após a visitação à exposição “Arthur Bispo do
Rosário: a poesia do fio”, a autora contatou a equipe responsável,
no Santander Cultural, relatando a pesquisa que estava
realizando e recebeu da Coordenação/Ação Educativa um farto
documento sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário.
Após a visão do todo e a descrição do fenômeno, para obter
este estudo fenomenológico-existencial, surgiram as Unidades
de Sentido: Vida e Obra de Arthur Bispo do Rosário e Arte e
Saúde, que são dimensões mais significativas, reveladoras da
estrutura do fenômeno, e foram aflorando ao longo do estudo
realizado em consonância com os objetivos da pesquisa. A
seguir, serão descritas e analisadas as Unidades de Sentido
trabalhadas à luz da teoria psicodramática de Jacob Levy
Moreno.
As unidades de sentido
Vida e obra de Arthur Bispo do Rosário
A partir das pesquisas realizadas sobre a vida de Arthur Bispo
do Rosário, coletou-se dados indicando que, nos períodos da
infância e da adolescência, ele permaneceu na terra natal junto
com a família. Constatou-se que era filho legítimo de Adriano
Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus, nascido em
Japaratuba, no interior de Sergipe, no dia 14 de maio de 1909,
segundo registros da Marinha de Guerra do Brasil, onde serviu de
1925 a 1933. Como consta no registro de batismo da Igreja
Matriz de Nossa Senhora da Saúde de Japaratuba, “aos 5 de
outubro de 1909, batizei solenemente Arthur, com 3 meses de
idade, legítimo de Claudino Bispo do Rosário e Blandina
Francisca De Jesus. Foram padrinhos Maximiliano Ribeiro dos
Santos e Candida dos Prazeres” (HIDALGO, 2011, p.30). Aos 15
anos, migrou para a cidade do Rio de Janeiro.
Moreno considera que todo bebê nasce numa “placenta
social”, referindo-se ao conjunto de pessoas que o acolhem ao
nascer e cuidam de suprir as suas necessidades. Conhecer os
elementos da história de vida de Arthur Bispo do Rosário tornase significativo para compreender a sua trajetória. Especialmente
considerando que a situação do nascimento encontra nessa
placenta social “o locus em que a criança mergulha suas raízes”
(MORENO, 1975, p. 114). As memórias vinham da terra natal,
como Hidalgo (2011) afirma: “Uma usina de tradições e
alegorias (...) os bordados eram a mais bem-acabada tradução
da cultura (...) cada traje impunha seu respeito, encerrava
tradições africanas, indígenas nordestinas (...) detalhes de cada
roupa, cada cor incrustaram-se nos bordados de Bispo”
(HIDALGO, 2011.p.33). Levando-se em conta que as raízes de
Arthur Bispo do Rosário se assentavam em uma família pobre,
descendente de escravos africanos, vivendo numa sociedade
arraigada em preconceitos, pode-se compreender as
dificuldades maiores que tenha encontrado para ser reconhecido
socialmente, na época, e conseguir os espaços necessários para
crescer dignamente. No entanto, em si guardava a potência de
suas raízes, que iria se expressar em toda a sua obra.
Na juventude, logo que chegou ao Rio de Janeiro, serviu à
29
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39
Marinha Brasileira e lá teve a função de sinalizador, conhecendo
uma boa parte do mundo. Ficou por um determinado período,
mas acabou sendo afastado por indisciplina. Foi também
campeão de boxe, embora isso não tenha sido muito divulgado,
talvez em virtude de pertencer aos quadros da Marinha. A autora
evoca o pensamento de Moreno que salienta a importância de
todas as pessoas encontrarem na vida um espaço que lhes
possibilite criar: “Todos os homens nasceram para criar (...).
Todos os criadores estão a sós até que o seu amor pela criação
forme um mundo ao seu redor (...). Somente um ser criativo
pode ser verdadeiro. Somente um ser criativo pode existir (...)”
(MORENO, 1992.pp,107 e 113). Quando o ambiente afetivoemocional, familiar e social incluir valores e formas de padrões
de comportamento estereotipados, que acarretam a
automatização do ser humano – o que Moreno denominou de
“conser vas culturais” –, criam-se obstáculos ao
desenvolvimento (MORENO, 1975, p. 158). E Gonçalves
complementa:
“Para que tenhamos o prazer de nos sentirmos vivos é
preciso que nos reconheçamos como agentes do nosso próprio
destino. Quando somos reduzidos a condição de peças de
engrenagens, na s quais somos colocados sem
reconhecimento de nossa vontade, impedidos de iniciativa
pessoal, estamos privados de nossa espontaneidade”
(GONÇALVES, 1988, p. 46).
Bispo do Rosário também trabalhou como segurança na
companhia de eletricidade do Rio de Janeiro, fez segurança de
políticos e trabalhou em casas de família como um “faz tudo”. A
autora recorre ao fator espontaneidade através das palavras de
Moreno: “A espontaneidade deve ser considerada o mais
importante vitalizador da estrutura viva. Como função criadora,
esforça-se por criar o eu e um meio adequado para ele”
(MORENO, 1994, p. 152). Na pesquisa realizada no programa
Inclusão – “Rosário Sagrado de Arthur Bispo do Rosário” –
aparecem os depoimentos de José Carlos Leoni e Margareth
Leoni, fazendo referências sobre o comportamento de Bispo do
Rosário quando morou na casa do avô Leoni. Segundo relatam,
Bispo do Rosário mantinha ali um comportamento espontâneo,
talvez por encontrar no ambiente dessa família condições
adequadas para a sua expressão como sujeito criativo. Eles não o
consideravam um sujeito agressivo, ao contrário, tinha muito
carinho pelas crianças e pelas pessoas que viviam ao seu redor.
Há um relato de Margareth, falando de Bispo do Rosário, em que
ela relembra as palavras de seu avô referindo que, quando a mãe
de Margareth estava grávida, ele a cuidava com muito carinho.
Na noite de 22 de Dezembro de 1938, com 29 anos, após um
delírio místico, Bispo diz ter visto Cristo descer no quintal da casa
em que residia, acompanhado de sete anjos azuis e envolto
numa luz radiante. Após esse episódio, ficou dois dias vagando
pela Rua Primeiro de Março e por várias igrejas do então Distrito
Federal. A seguir, subiu ao Mosteiro de São Bento, anunciando a
um grupo de monges que era um enviado de Deus, encarregado
de julgar os vivos e os mortos. Em seu delírio místico, considerou
ter recebido a missão de recriar o universo para apresentar a Deus
no dia do Juízo Final. Conforme o prontuário, dois dias depois, no
dia 24 de dezembro, foi detido sem documentos e fichado pela
polícia como indigente, sendo conduzido ao Hospital dos
Alienados na Praia Vermelha. Hidalgo (2011) cita que consta
registrado no livro 12.206 da Polícia Civil uma lista de remoção
de dementes: foram removidos para o hospital “todos por
apresentarem sintomas visíveis de alienação mental (...) uma
senhora de identidade ignorada cometia desatinos em via
pública, de cor parda (...) Arthur Bispo do Rosário, brasileiro,
preto, solteiro (...), e Euclides Felipe, brasileiro, negro, interdito”
(HIDALGO, 2011, p. 51). Após um mês de internação, foi
transferido para a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro,
onde uma junta médica concluiu pelo diagnóstico de
esquizofrenia paranóide. Hidalgo cita a ordem médica que
consta no prontuário:
“Peço transferência para a Colônia Juliano Moreira. Tratase de doente crônico, calmo, não rejustifica sua permanência
na seção, em face de seus delírios de grandeza incentivarem
conflitos com outros doentes. Outrossim, o paciente não
suportava ver doentes agitados.(...) com uma certa liberdade,
passa muito bem (HIDALGO, 2011, p. 52).
Arthur Bispo do Rosário não era um homem de muitas
palavras e não gostava de falar de seu passado; constantemente
afirmava:“Um dia, simplesmente apareci pelos braços da Virgem
Maria”. Fonseca Filho relata, através das palavras de Moreno, que
todo ser humano sofre fundamentalmente por não poder
realizar todos os papéis que existem dentro de si. Salienta
também que “os papéis delirantes significam uma rebelião
contra as táticas repressivas da personalidade que impediram
fluir os livres papéis proibidos”(FONSECA FILHO, 1980, p. 80).
No começo da década de 1960, Bispo do Rosário consegue
conquistar a simpatia da maioria dos médicos e dos funcionários
e, com isso, driblar a burocracia do estabelecimento, saindo e
voltando várias vezes. Bispo do Rosário chegou a iniciar um
trabalho em uma Clínica Pediátrica, onde viveu em um
quartinho no sótão, iniciando ali literalmente a produção de suas
obras. Em 1964, regressa definitivamente à Colônia Juliano
Moreira, ali permanecendo, até sua morte, produzindo
ininterruptamente suas diversas obras. No ambiente da Colônia,
Bispo do Rosário era um sujeito considerado agitado, e inúmeras
vezes precisou ser detido em uma das celas-fortes. Com o passar
do tempo, ele conquistou o status de xerife, e fez da cela seu
30
Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 27-39
ateliê. Fonseca Filho alega que nascemos com uma
potencialidade de gênios específica de nossa raça, isto é, com
certas capacidades e atitudes básicas latentes, e que, por algum
motivo, seja pelos conceitos morais, sociais ou culturais, pode ou
não ser liberada no decorrer da vida (FONSECA FILHO, 1980).
Bispo do Rosário, com a sua capacidade criativa, passou a
recolher objetos da sociedade e fez dos objetos recolhidos uma
forma de potencializar sua existência, nos mostrando, ao mesmo
tempo, a fluidez do descarte da sociedade de consumo e a
atitude estética dessa mesma sociedade. Moreno (1985)
apresenta a espontaneidade como a primeira característica do
ato criador; a segunda é uma sensação de surpresa, e a terceira é a
sua irrealidade, que tem por missão mudar a realidade em que
surge, além de ser algo interior que vai além da realidade dada,
porque na vida os sofrimentos, o amor, a cólera, a fome são do
mundo real e, muitas vezes, difíceis de suportar. O referido autor
afirma: “Enquanto que um ato vivente é um elemento no nexo
causal do processo vital da pessoa real, o ato criador espontâneo
faz parecer como se, por um momento, o nexo causal tivesse sido
quebrado ou eliminado” (MORENO, 1985, p. 84). Como uma
quarta característica, ele coloca a diferença entre uma criatura e
um criador, pois significa um atuar sui generis, querendo com
isso dizer que, durante o processo de viver, atua-se muito mais
sobre si mesmo. Esses processos apresentados não determinam
somente as condições psíquicas, mas produzem efeitos
miméticos, isto é, o ser humano, através do ato criador, possibilita
desenvolver novas capacidades adaptativas e delas emergem
novas tendências, que fazem subir certos processos à
consciência. Esta é a quinta característica do ato criador.
Como poderão perceber, ao longo do trabalho, em muitos
momentos a autora coloca as palavras de Moreno como um eco
de Bispo do Rosário.
“Como Eu poderia suportar a viver,
se Eu não tivesse criado a Mim mesmo?
Portanto Eu tive que criar a Mim mesmo.
Como poderia Eu ter criado a Mim mesmo,
se Eu não pudesse ter criado o universo também?
Portanto, com o fim de criar-me a Mim mesmo,
eu tive que criar todo o universo também’’
(MORENO,1995.p. 95).
A realidade que Bispo viveu é consequência das escolhas que
os homens do poder, desde o século XVIII, fizeram ao criar um
novo jeito de se perceber e de vivenciar a condição humana,
criando assim também o “diferente”, ou seja, aquele que não
segue os padrões de comportamento que a sociedade define.
Para este, foram construídas instituições visando a excluir do
convívio dos normais aquela pessoa considerada uma ameaça à
sociedade. Assim foi criada a loucura como doença, resultando,
como decorrência, no surgimento da psiquiatria como
especialidade médica. Em um trecho do “Senhor do Labirinto”
(2011), percebe-se a presença de dois guardas em uma visita à
cela-forte, cada um desempenhando papéis diferentes, isto é,
cada um com um olhar diferente sobre a pessoa de Bispo do
Rosário. Logo na entrada, percebem que Bispo do Rosário estava
bordando um pano de linho e desfiando uma das peças do
vestuário. Um deles, ao ver que Bispo do Rosário estava com uma
agulha, diz: “Olha pra mim, seu crioulo, me dá esta agulha!”
Enquanto o outro guarda tenta acalmar o colega, Bispo do
Rosário diz: ”Eu tenho Deus aqui comigo, ele está aqui em cima”
– e aponta pra cabeça – “o senhor não vê?” O guarda pede
novamente para o outro se acalmar e diz: “Deixa ele falar!” Bispo
do Rosário continua: “(...) deixa eu ficar com a agulha, eu faço
tudo o que vocês quiserem”. O guarda, então furioso, diz para o
outro que ele ficará responsável por deixar a agulha com Bispo do
Rosário. A autora acolhe neste momento as palavras de
Carreteiro, que fala do potencial que tem o olhar do outro no
sentido de ajudar no fortalecimento da subjetividade do
indivíduo, assim como também pode feri-lo profundamente,
invalidando-o psiquicamente. No caso de Bispo do Rosário,
tratou-se de um olhar confiante e estruturador, permitindo que a
espontaneidade pudesse ter voz (CARRETEIRO, 2011).
A psiquiatria do século XIX foi a responsável pela grande
indústria da loucura, levando para os hospitais gerais as pessoas
pobres, os desempregados, os que esperavam julgamento por
crimes de menor grau, os insensatos, as prostitutas e os
andarilhos. Outros, ainda, foram jogados ao mar, simplesmente
por não corresponder ao padrão exigido pela sociedade
industrial. Com a criação de Hospitais Psiquiátricos,
institucionalizou-se a ideia de local de salvação do chamado
doente, na espera da morte, sob o cuidado de religiosas. Como
afirma Foucault, “os hospitais tinham mais função caritativa para
salvar a alma do desvalido”(FOUCAULT, 2004, p.102).
O Classicismo inventou o internamento, a Idade Média, a
segregação dos leprosos, e este legado continuou com a
instituição dos “internos”. “O gesto que aprisiona tem
significações políticas, sociais, religiosas, econômicas e morais”
(Foucault, 2008, p. 53). Durante a Inquisição Católica, os
deficientes físicos e mentais foram também considerados seres
diabólicos e que mereciam castigos para serem purificados. As
estruturas sociais eram regidas sob o domínio de leis divinas, e
qualquer pessoa ou ideia que pudesse atentar contra a estrutura
da igreja teria que ser exterminada. Esse papel foi cumprido com
o sacrifício de milhares de ateus, endemoniados, loucos,
adivinhos, alucinados e deficientes mentais. Esta explicação
consiste na visão pessimista do homem, entendido como
alguém demoníaco, no qual vem a faltar a razão ou a ajuda
divina. Os estigmas de idiota, bobo da corte, louco e imbecil
significando alguém irrecuperável, e seguem sendo sustentados
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pela Medicina durante décadas, enquanto o médico psiquiatra
surge como um novo árbitro do destino que julga, salva e
condena. De acordo com Foucault, os Hospitais Gerais não
tinham a função de simples refúgio para a velhice, para a
enfermidade, e sim de receber os “estragados”, funcionando
como uma Instituição Moral cujo estatuto ético revestia seus
diretores do poder de castigar, corrigir uma “certa” falha moral
dos homens, podendo para isto utilizar as prisões e as celasfortes. A loucura não era vista como uma doença, mas percebida
como um defeito extremo, só tendo hospitalidade entre os
muros do hospital, ao lado de todos os pobres (FOUCAULT,
1984, p. 63-136).
Na década de 70, inúmeros debates vinham acontecendo
em torno da necessidade de transformação do modelo de
assistência psiquiátrica, bem como nas relações entre a
sociedade e a loucura. Franco Basaglia inicia na Itália um
movimento de Reforma Psiquiátrica que ficou conhecido como
“psiquiatria democrática”, que luta pelo fim dos manicômios e
acaba inspirando o mundo inteiro, incluindo o Brasil. Muito
criticava a tradicional cultura médica, porque transformava o
indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção. Ele não
negava a existência da doença mental, mas chamava atenção
para a relação entre médico e paciente no sentido de que as
intervenções deveriam estar centradas na tentativa de
reconduzir o paciente às suas plenas possibilidades existenciais,
bem como à prática de seus direitos (SEVERO, 2012). Pensadores
como Michel Foucault, George Canguilhem e Jacques Derrida se
destacaram pela contestação, porque tanto a psiquiatria clássica
quanto a hospitalar eram centradas no princípio do isolamento
do paciente. Falar da arte e da loucura é remexer em sentimentos
inquietantes, que foram resguardados atrás de muros obscuros
da sociedade preconceituosa por longos séculos na história.
Moreno (1995) assegura que, ao criar um novo método
terapêutico para a loucura, descobre também que a história é o
berço da explosão das contradições intersubjetivas. Para
Goffman “o que a psiquiatria denomina o curso natural da
doença é, na realidade, a 'carreira moral do doente mental'”
(GOFFMAN apud AMARANTE, 2007, p. 54). A aprovação da lei
da Reforma Psiquiátrica foi um marco muito importante, porque
possibilitou que o“Sujeito e a Saúde Mental”pudessem ser vistos
com olhar diferenciado, rompendo com paradigmas sociais.
Na cela-forte, mesmo isolado da sociedade normatizadora,
Bispo do Rosário construiu um mundo, dando pistas de que a
criatividade e a espontaneidade são fortes aliados e necessários
para a sobrevivência. Hugo Denizart (2011), psiquiatra e
fotógrafo, afirma em uma entrevista que Bispo do Rosário
trabalhava 24 horas. Citando suas palavras: ”(...) ele tinha um
tamanho giro, uma tamanha potência transformadora que a
minha razão não conseguia dar conta daquilo”. O que mais o
deixava perplexo era o tamanho investimento feito na
elaboração daquelas obras. É considerável a reação daqueles que
tentam dissociar sua obra da “arte de louco”, uma vez que esta
classificação é, na maior parte das vezes, estigmatizante,
preconceituosa e depreciativa. Moreno afirma que o agente da
improvisação, seja ele poeta, ator, músico ou pintor, encontra o
ponto de partida dentro de si mesmo, no estado de
espontaneidade. Não é algo rígido, nem dado e registrado, mas
de uma fluência rítmica, com altos e baixos, que cresce e
desaparece gradualmente como atos da vida e, no entanto, é
diferente da vida. E assim se constitui o estado de produção e o
princípio essencial de toda a experiência criadora (MORENO,
1975). Ainda que, para alguns, suas obras sejam vistas como
obra de louco, enquanto, para outros, obra de gênio, é inconteste
a importância da criação de Bispo do Rosário. Além do conjunto
de suas obras ser considerado um retrato de sua vida, elas foram
também consideradas Arte Contemporânea Brasileira. Como nos
diz Archer,“nossas vidas são grandes esculturas”(ARCHER, 2001,
p.109).
Em grande parte de sua obra, Arthur Bispo do Rosário
utilizou a linha que ele mesmo desfiava de uniformes azuis dos
internos e de roupas que encontrava no lixo. Frederico de Morais,
crítico de arte, denominou este segmento de ORFA, que significa
Objetos Recobertos por Fio Azul (AQUINO, 2012, p.29). O
trabalho que fez era o mesmo que os homens de sua terra natal,
do interior sergipano, executavam ao bordar o manto do Menino
Deus, o qual tinha muito presente em sua memória da infância.
“Os bordados eram a mais perfeita tradução da cultura de
Japaratuba” (CORREA, 2001, p.17). Com suas cores, seus
símbolos e sua intensa religiosidade, ele bordou roupas e lençóis
do hospital, bem como estandartes contando a história dos
locais que visitou. Entre os temas, destacam-se navios,
estandartes, faixas de misses e objetos domésticos.
Na principal obra, o Manto da Apresentação, há inúmeros
registros que aparecem em seu lado interno, criando, através de
nomes próprios, uma memória de futuro. Este trabalho é um
exemplo de que todo ser humano carrega dentro de si a essência
da existência, a fome de criar, isto é, uma força dinâmica, uma
corrente que pode ser expressa por diferentes linguagens.
Fonseca Filho salienta, através das palavras de Moreno, o quanto
as palavras são insuficientes para a comunicação humana. Ele
traz um trecho da conversa entre Buber e Rogers, afirmando que
o diálogo humano vai além da conversa, englobando também o
silêncio. Assim, “a comunicação humana, portanto, pode ser
efetiva, apesar da ausência de palavras”(FONSECA FILHO, 1980,
p.61).
A autora acolhe a oração de Moreno como um retrato que
nos aproxima dos olhos a vivência de Bispo do Rosário dentro da
cela-forte, em um momento em que a sociedade não tinha
ouvidos para ele:
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“Benditos sejam aqueles que trabalham em silêncio
no anonimato das almas viventes,
na escuridão das suas noites.
Eles são perseguidos e ameaçados.
Eles são mortos, mas oxalá seus trabalhos sobrevivam!
Oxalá Ele penetre nas palavras dos homens
e lute por suas vitórias!
Oxalá se aninhe dentro dos corações do povo!
Oxalá Ele atemorize os líderes e force os tiranos a se
renderem!” (MORENO, 1992. p.220).
A vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário demonstram uma
rebelião silenciosa e solitária, sendo ele um “Deus–Eu”, um Deus
da própria criação. No decorrer da história, é corriqueira a ideia da
existência de um Deus Criador do Universo, e Jacob Levy Moreno
(1992) vem apresentar um novo pensamento com a finalidade
de nos apontar a figura de um Deus num sentido de existência.
Ele defende que o Deus do Antigo Testamento era um Deus-Ele,
um ser supremo, uma entidade distante que governava a vida
dos homens. Com o passar do tempo, acontece uma reavaliação
do conceito de Deus e, desta vez, o mundo passa a ser o mundo
dos homens, que eles mesmos escolheram e criaram, podendo
ser um local de projeção de sonhos. A relação entre Deus e o
homem, segundo Moreno, torna-se dual, passando a entrelaçar
o coração do homem com Deus. Desta forma, o passado infinito
se atualiza, Deus torna-se uma realidade no aqui-e-agora e sua
palavra passa a ser uma voz presente, que pode ser manifestada
por diferentes ordens, captada e apresentada em diferentes
linguagens numa relação de amizade. Cada integrante, que
chega numa condição de co-criador, aos poucos vai fazendo
parte do reino da existência que está em contínuo
desenvolvimento (MORENO, 1992).
Na Colônia, Bispo do Rosário não gostava de fazer as refeições
junto com os outros pacientes, assim ia até o refeitório, pegava a
bandeja e saía, ou um dos funcionários a levava até ele, que
sempre ia para bem longe. Ele era um dos únicos internos da
colônia Juliano Moreira que se negava totalmente a viver com os
pacientes crônicos, que diariamente passavam circulando pela
Instituição. Denizart, no programa “De Lá Pra Cá – Bispo do
Rosário - Vida e Obra”, relata: “Por um acaso, eu descobri que
Bispo tinha um lugar, ele não circulava pela Instituição, passava a
maior parte do tempo na cela-forte”. Inúmeras vezes, os
pacientes perdiam suas colheres, canecas e, junto com outros
objetos que encontrava, como botas, sapatos, chapéus e garrafas
plásticas, Bispo do Rosário construía de forma rígida e
geométrica, em cima de pranchas de madeira, as chamadas
“assemblages”. Gonçalves cita as palavras de Moreno: “Ainda que
afastado do convívio de fato com outras pessoas, o homem age
em função da imagem que tem de si mesmo, de seus
semelhantes e de suas relações com estes” (MORENO apud
GONÇALVES, 1988, p. 47).
A maior parte dos trabalhos de Bispo do Rosário se consistiu
em diversas miniaturas, entre navios de guerra, automóveis,
caixas de música, moinhos de cana, roda da fortuna, entre tantos
outros. Também bordou peças de vestuário da Colônia que
revolucionaram conceitos no mundo da moda. Todos os
visitantes – como era o caso da estagiária Rosangela Maria Grilo
Magalhães –, quando iam vê-lo em seu ateliê, eram recebidos à
porta com a pergunta-senha: “qual a cor da minha aura?” Assim,
o visitante passava a ser incorporado em sua obra. Todas as
respostas foram escritas, bordadas, mumificadas,
miniaturizadas, catalogadas, acumuladas, ordenadas e
incorporadas na composição e na construção das obras. Ao julgar
que recebeu de Deus a missão de que estaria na hora de
reconstruir o mundo, Bispo do Rosário se propôs a reconstruir e
representar em miniatura todos os objetos, de modo a
apresentá-los a Deus. A sua obra mais conhecida é o Manto da
Apresentação, que Bispo do Rosário deveria vestir no dia do Juízo
Final, e com o qual pretendia marcar a passagem de Deus na
Terra. E, assim, a autora retoma as palavras de Moreno:
“Como poderia EU, o criador,
não fazer que cada instante
fosse mais perfeito
e mais intenso do que o último?
Cada novo momento é mais perfeito
do que aquele que Eu acabei de viver.
Cada ser que eu crio é mais perfeito
do que aquele que acabei de criar.
E meu momento mais perfeito,
Meu momento mais intenso
deve ser o Meu último momento!” (MORENO, 1992, p.
92).
Em um de seus estandartes, Bispo do Rosário bordou um
mapa da praia de Botafogo: Rua Senador Vergueiro, Praia do
Flamengo e a Rua Primeiro de Março. Em um canto deste pano de
linho, abaixo da figura do homem, bordou seus inscritos com um
tom de urgência: ”EU PRECISO DESTAS PALAVRAS - ESCRITA”
(HIDALGO, 1996, p.133-4). E Moreno assim alegava:“O que seria
de ti, se Eu não existisse? O que seria de Mim, se tu não
existisses?”(Moreno, 1992.p.92). Tanto para Moreno quanto para
Buber, “o homem individualmente não existe, ele é quando vive
em relação com o outro porque ganha plena condição humana”.
Para Buber, o Eu não é uma realidade em si; ele é relacional. No
entanto, quando se fala em Eu, automaticamente se está falando
do mundo, isto é, do Isso e do Tu. Assim, quando o Eu decide por
uma ou por outra atitude, significa que é o fenômeno da relação
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homem-mundo como um todo que está definindo a
possibilidade do Eu decidir. A relação atual “atuante” de que o
autor fala envolve tanto a passividade quanto a espontaneidade
e assim nos diz: “Torno-me Eu na relação com o Tu”. Desta forma,
“o Tu orienta a atualização do Eu e este, pela sua aceitação, exerce
sua ação na presentificação do outro que, neste evento, é o seu Tu”
(BUBER, 1974, LVIII).
Enquanto esperava a hora do Juízo Final, Bispo do Rosário
optou por produzir suas inúmeras obras, as quais seguem uma
lógica e podem ser organizadas por algumas semelhanças bem
visíveis. Frederico Morais (1989) encarregou-se dessa
organização e dividiu a obra toda em segmentos: primeiro, o
texto (os estandartes bordados), segundo, as roupas (o Manto da
Apresentação e os fardões), terceiro, os objetos enrolados com
linha (barcos e miniaturas), e quarto, as assemblagens ou
vitrines, como dizia Bispo do Rosário. Para Moreno,“um criador é
como um corredor, para quem, no ato de correr, a parte do
caminho que ele já passou e a parte que tem diante de si são uma
só coisa, qualitativamente” (MORENO, 1985, p. 85). O mesmo
autor afirma que, numa psicologia do ato criador, não existiria a
distinção entre consciente e inconsciente, pois como o
inconsciente é criado pelos próprios indivíduos criadores, eles
mesmos podem encher, esvaziar, substituir ou desfazer seu
reservatório continuamente.
Severo salientou que a obra de Bispo do Rosário está
intrinsecamente inscrita e visceralmente conectada à sua
condição de esquizofrênico paranóide (SEVERO, 2012). Para
Moreno, nos momentos da representação criadora espontânea,
as emoções, os pensamentos e as frases parecem ser
desordenados, mas, no decurso do desenvolvimento, tudo se
torna claro como se fossem sons de uma melodia, como numa
relação semelhante a das células de um novo organismo.
Foi graças à sensibilidade da revolucionária psiquiatra Nise
da Silveira e da já citada estudante de psicologia Rosangela
Maria, que a obra de Bispo do Rosário acabou sendo mostrada ao
mundo. A mostra está intitulada “Arthur Bispo do Rosário: a
poesia do fio”. Toda a sua produção artística se encontra no Museu
Bispo do Rosário, antigo Museu de Imagens do Inconsciente,
localizado onde funcionava a extinta Colônia Juliano Moreira.
Atualmente, a obra do artista é conhecida também
internacionalmente a partir da amostra Viva Brasil, em uma das
principais instituições culturais de Estocolmo, na Suécia.
Representou o Brasil, em 1995, na 4ª Bienal de Veneza,
reconhecidamente o principal evento de artes plásticas do
mundo. A consagração abre um amplo leque de reflexões em
torno dos sentidos e dos significados de sua obra. Louco?
Contemporâneo? Marginal? Daí resultou uma série de convites
para expor também nos EUA, no México e na Espanha. Neste ano
de 2012, a autora salienta a presença da exposição “Arthur Bispo
do Rosário, a Poesia do Fio” em Porto Alegre, bem como “A
iminência das poéticas”, nome dado à 30ª edição da Bienal de
São Paulo, onde Bispo do Rosário foi considerado o principal
artista brasileiro a partir de seu principal meio de expressão, seus
bordados. A arte de Bispo do Rosário, para Paulo Amaral (2012),
“resulta em uma obra poética, reveladora de inegável beleza
estética e repleta de significados que comovem o espectador
(...). É uma poesia concreta, é vida, ela não representa, ela é. Ele
fazia parte da exibição da obra (...)”(AMARAL, 2012).
Arthur Bispo do Rosário, às 19 horas do dia 5 de julho de
1989, já acometido de arteriosclerose e broncopneumonia,
faleceu aos 80 anos de idade com um infarto do miocárdio, na
própria Colônia Juliano Moreira.
Arte e produção de saúde
O conjunto de obras de Bispo do Rosário é uma espécie de
convocação, um apelo à sensibilidade e à espontaneidade; é um
convite para a vivência simultânea, assim como um poeta que
convoca o outro para a experiência renovadora fora do cotidiano.
A despeito de sua agitação interna, que inclusive o fez estar na
cela-forte por inúmeras vezes, Bispo do Rosário, com o passar do
tempo, além de conseguir o status de xerife e a liberação da
agulha para bordar dentro da cela, conseguiu resgatar a sua
espontaneidade. Moreno afirma:
“A espontaneidade deve ser considerada o mais
importante vitalizador da estrutura viva. Como função
criadora, esforça-se por criar o eu e um meio adequado para
ele. Quando as funções da espontaneidade são deixadas sem
direção, se desenvolvem tendências contraditórias que
provocam a desunidade do eu e o desmembramento do meio
cultural”. (MORENO,1975, p.152).
Mesmo isolado da sociedade normatizadora, Bispo do
Rosário construiu um mundo, nos dando pistas de que a
criatividade e a espontaneidade são fortes aliados e necessários
para a sobrevivência. Em cada fio que Bispo do Rosário desfiou,
em cada curva do bordado que pontou, retratou vozes de alegrias
e de tristezas que nasciam dentro de si. Moreno afirma que não
há palavra que se repita e nem criação que possa ser recriada,
porque cada fase da criação tem uma palavra como expressão
complementar, um logos; cada palavra é uma expressão única,
uma criação singular.“Eu passo pelo mundo uma só vez. Eu passo
pela rua uma só vez. Eu te vejo, mas apenas uma vez. Nada vem
de Mim, além de uma só vez”(MORENO, 1992.p.90).
Conforme Moreno (1975), tudo começa pelo ato do
nascimento porque o bebê, na hora do parto, é participante ativo
do processo, assim este é considerado o primeiro ato espontâneo
de um indivíduo. O autor conceitua espontaneidade como sendo
a “resposta do indivíduo a uma nova situação – e a nova resposta
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a uma antiga situação”(MORENO, 1975. p. 101).
“O momento do nascimento é o grau máximo de
aquecimento preparatório do ato espontâneo de estar
nascendo para um novo ambiente a que o nascituro terá de
ajustar-se rapidamente. O que o acompanha é uma energia
vital de viver como um sistema organizado de forças psíquicas
que funcionam em nível existencial”. (MORENO, 1975, p.
105).
Através da lente de Gonçalves, conhecemos a visão
moreniana do homem como um agente espontâneo. Ela mostra
que, desde o nascimento, o homem carrega dentro de si recursos
inatos como a espontaneidade, a criatividade e a sensibilidade.
Estes fatores são favoráveis tanto à vida e à criação quanto ao
desenvolvimento, porque no homem não existe tendência
destrutiva, mas podem ser perturbados pelo ambiente ou por
sistemas sociais constrangedores. Assim, cabe a cada um buscar
a recuperação dos fatores vitais através da renovação das relações
afetivas e da ação transformadora sobre o meio. (GONÇALVES,
1988).
A aproximação entre Arte e Psicologia não é um movimento
recente. No século XVIII, Baumgarten incorpora a disciplina de
Psicologia, e nela a estética dentro de uma perspectiva do belo,
do domínio da sensibilidade relacionada com a percepção, os
sentimentos e a imaginação. O fenômeno artístico começou a ser
decifrado através do pensamento alemão, e é na Áustria que se
inicia a investigação sobre as obras de arte com os professores da
escola de Viena. Foi através da Filosofia de Kant que a questão do
belo converteu-se na questão da “experiência estética”, que
muito contribuiu para as tendências teóricas no século XIX, que
passaram a abandonar o domínio metafísico para se aproximar
do domínio experimental e psicológico. A Psicologia passa,
então, a se ocupar do aspecto subjetivo, valorizando os
elementos heterogêneos, como o prazer sensível, os impulsos, os
sentimentos e as emoções. Os estudos feitos por técnicos, como
afirma Frayze-Pereira (1994) ao detectar esboços em carvão por
debaixo das pinturas nas cavernas, levaram especialistas a
pensar que as cavernas poderiam ser verdadeiros santuários. A
autora deste trabalho acrescenta que estes espaços também
poderiam ser compreendidos como complexos ateliês de criação
da época.
No século XX, a Psicologia Social surge para estabelecer uma
ponte entre a Psicologia e as Ciências Sociais. Tem como seu
objeto de estudo o comportamento dos indivíduos quando estão
em interação com os demais. É considerada uma ciência que
procura compreender os “comos” e os “porquês” do
comportamento social e da interação e a interdependência entre
os indivíduos e o encontro social. A sua formação acompanhou os
movimentos ideológicos, as grandes guerras e a luta do
capitalismo contra o socialismo. Seu campo de ação é, portanto,
um grande desafio para os profissionais, porque requer analisar o
comportamento e os fenômenos particulares que diferenciam a
vida dos indivíduos em sociedade. E, neste trajeto, a teoria
psicodramática tem uma grande contribuição nesta construção
histórica, vindo a apresentar um conjunto de métodos, técnicas e
procedimentos adequados para descrever, vivenciar e interpretar
os sentidos e significados dados aos fenômenos, relacionandoos à vida das pessoas. Desta forma, possibilita que o sujeito,
através do ato, além das palavras, possa reviver e construir
estruturas humanas expressivas (MOTTA, 2011, p. 88).
A obra de arte de Bispo do Rosário não é o reflexo de um real
recortado, mas nos dá indício de um processo de representação
dialética entre o percebido, o real e o imaginário. É uma atividade
em que a execução e a invenção andam juntas e de forma
simultânea. A arte é um conceber executado e historicamente
vivido como resultado de uma conserva cultural. A obra de arte,
quando acabada, é algo inteiramente novo, um devir humano. A
arte como parte de uma estrutura simbólica é capaz de permitir
inúmeras possibilidades e perspectivas de expressão e
percepções. Assim, o poder de transcendência põe o artista como
um sujeito histórico. De acordo com Merleau-Ponty, “o que
define o homem não é a capacidade para criar uma segunda
natureza econômica, social e cultural para além da natureza
biológica, é, sobretudo, o poder de ultrapassar as estruturas
criadas criando outras”. Para o mesmo autor, quando se observa
uma obra, o que se vê não é o que existe em si mesmo, mas o que
nos atinge, convidando-nos a retomar o gesto que impulsionou
o artista a criar a obra, alcançando o mundo silencioso do artista.
(MERLEAU-PONTY, 1942, p.189).
Para Rauter, pensar em novas alternativas para solucionar
problemas da subjetividade clínica contemporânea é também
retomar problemáticas no campo da arte. Precisamos
compreender a obra de arte a partir do processo terapêutico,
fazendo dele um processo de criação artística, no sentido de
produzir “mutações no campo da subjetividade”. A mesma
autora nos apresenta Otto Rank, que foi o pioneiro em chamar
atenção para o fato de que a criação artística não poderia se
restringir à história individual, infantil, familiar, mas também
incluir aquilo que rompe com essa a trajetória. As forças sociais e
o plano cosmos estariam em jogo nessa produção artística
(RANK apud RAUTER, 1997, p.109-10). Conforme nos apresenta
Burrowes (1999), “a máquina semiótica de Bispo do Rosário”
consiste em uma “linguagem capaz de arrancar-nos à nossa
prisão subjetiva, tragando-nos para uma diferente possibilidade
de subjetivação nadando no contrafluxo do consumo”
(BURROWES, 1999, p. 43).
Muitos autores, como Foucault, Denzelot, Ariès e Sennet,
defendem hoje que está surgindo uma “subjetividade intimista”
com uma interioridade de paradoxos, porque“nunca se lutou por
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um eu, e nunca a produção de subjetividade teve um caráter tão
serializado, uniformizado e impessoal” (RAUTER, 1997, p.114).
Enfim, a aproximação entre a arte e a clínica possibilita que os
fluxos desterritorializados possam produzir novos universos
existenciais. Fala-se do rompimento com a linha contínua da
historicidade do passado da arte, que classificava estilos e modos
de aperfeiçoamento do que seria a cultura humana, e apresentase um novo campo da criação: o resgate do que há ali de cósmico
e que não pode ser reduzido a uma atividade de memória. Um
resgate de uma arte arqueológica voltada a essências imemoriais
que refletirão no modo de pensar, tanto no universo subjetivo
como no universo social, substituindo a “postura do arqueólogo
pela do viajante-construtor” de mundos subjetivos (RAUTER,
1997).
Moreno assegura que o homem, além de ser social, e
individual: ele é um ser cósmico. Quando possui condições
télicas¹ e aquecedoras, automaticamente entra em
funcionamento um mecanismo propício para a atuação e a
integração de elementos catalisadores de espontaneidade
favoráveis à criatividade e ao Encontro. Tanto Moreno quanto
Buber concebem o homem no Encontro como um ser atuando
para fora, num sair de si que vislumbra um novo horizonte, uma
nova perspectiva de vida (FONSECA FILHO, 1980). Bispo do
Rosário, através de distintos movimentos, deixa marcas não só de
uma vida, mas de uma história evolutiva. O trabalho que deixa
registrado em distintas peças inquieta-nos, mas também
possibilita uma nova visão de mundo. Arthur Bispo do Rosário
nos dá fortes indícios de que os hospitais destinados ao
tratamento da doença mental – espaços da dor, do horror e da
humilhação – poderiam ser transformados em locais de cultura,
de liberdade, de saúde e de superação. E Moreno assegura:
“Todos os homens nasceram para criar” (...) “Todos os criadores
estão a sós até que o seu amor pela criação forme um mundo ao
seu redor.” (...) “Somente um ser criativo pode ser verdadeiro.
Somente um ser criativo pode existir” (MORENO, 1992, p.p.107
e113).
O conceito de saúde mental que nos traz Canguilhem
relaciona-se ao sujeito e ao meio, referindo-se a uma certa
capacidade do sujeito de superar crises psíquicas para instaurar
uma nova ordem mental. Contudo, não se pode reduzir o
portador de anomalias mentais ao chamado louco, pois a
anomalia pode ser a expressão da normatividade psíquica frente
a um determinado meio sociocultural. Segundo o mesmo autor,
em Psicologia existe o risco de se perder o fio condutor que
permite, na presença de uma inadaptação a um meio de cultura
determinado, distinguir entre a loucura e a genialidade
(CANGUILHEM, 1982). A autora traz as palavras de Clarice
1 Tele, segundo Moreno, é a percepção interna mútua entre
dois indivíduos e “um fator decisivo para o progresso
terapêutico” (MORENO, 1975, p. 44).
Lispector, escritas em janeiro de 1974 para uma amiga, em
Berna: “Até para cortar os próprios defeitos pode ser perigoso,
nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício
interior”(LISPECTOR apud MONTERO, 2002, p.165).
Wilson Lázaro (2012), ao fazer uma leitura das obras Arthur
Bispo do Rosário, denominou três formas de sentidos: a Fé, a
Criação e a Glória. A Fé como reconstituinte através da
religiosidade e do compromisso com sua obra; a Criação como
um sintoma de saúde no seu próprio surto; e a Glória
representando o apogeu de sua realização. “Nossas vidas são
grandes esculturas” nos diz Archer (2001, p.109). Bispo do
Rosário era uma escultura viva: sua obra era a sua vida, um
movimento que passa por um esquema mais complexo do que
aquele do mundo platônico. O corpo está presente, o artista atua
em sua obra enquanto cria. Maria Ester Maciel (MACIEL apud
BORGES, 2004, p. 459) diz: Arthur Bispo do Rosário “extrai do
delírio o rigor”, aceita o diagnóstico de esquizofrênico, mas não se
prende a ele; escolhe a linguagem da arte que mais representa
seu mundo interno saudável, a qual percorre uma linha tênue,
como nos mostra o título de sua obra. A sua produção é capaz de
tirar as vendas de nossas pupilas, como se fôssemos sugados e
condenados a entrar em contato com outras instâncias
esquecidas. Em Cartas a um jovem poeta, Rilke afirma: ”Uma
obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo
como ela se origina que se encontra seu valor (...), pois o criador
tem de ser um mundo para si mesmo, encontrar tudo em si
mesmo e na natureza, da qual se aproximou” (RILKE, 2008, p.
26-7).
No entanto, a abertura do psicólogo para a manifestação
artística dependerá da sua disposição como espectador da arte,
mesmo sabendo que corre o risco de experimentar vertigem e
perda de pontos fixos. Portanto, a Psicologia da Arte tem o papel
de evidenciar os princípios de uma conduta própria do homem
que regula tanto a estrutura material como a imaginária, no
quadro de limites de poder e conhecimentos e em um
determinado momento da história circular da civilização.
Francastel diz: “A ciência da arte e a própria arte têm muito a
ganhar com uma apreciação melhor de seu papel psicológico e
técnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do
passado e a do presente se conhecermos melhor a significação
humana”(FRANCASTEL, 1973, p. 48).
Se olharmos positivamente para a fase inicial, espontânea e
criativa da vida e da obra de Bispo do Rosário, e não somente para
o produto final, vemos que é uma espécie de convite para o
encontro mais aprofundado com o potencial criador, o Deus-Eu.
Moreno (1992) propõe: “O tempo e o espaço precisam estar
juntos, o Psicodrama é a ação no momento(...)” (MORENO apud
MOTTA, 2011, p. 87).
Para Motta (2011), a base da realidade é o eixo da existência
humana, e o tempo-espaço reunidos geram a motivação para a
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espontaneidade-criadora e também a liberdade. Investigar a
realidade por meio da arte, associando-a à espontaneidade, não
busca “o” sentido de cada fenômeno, dor ou conflito, mas sim
amplia o leque de sentidos possíveis, tanto em termos artísticos
como na vida como um todo. Motta afirma ainda que “essa
abordagem tem uma implicação ética importante, porque tem
um sentido libertador que é a debilitação do pensamento
hegemônico, ou seja, da ideia de que existe uma única verdade,
alguém a deter, e de ser preciso concordar com o detentor para
atingi-la”(MOTTA, 2011, p. 65).
na escuridão das suas noites.
Eles são perseguidos e ameaçados.
Eles são mortos, mas oxalá seus trabalhos sobrevivam!
Oxalá Ele penetre nas palavras dos homens
e lute por suas vitórias!
Oxalá se aninhe dentro dos corações do povo!
Oxalá Ele atemorize os líderes e force os tiranos a se
renderem!” (MORENO, 1992, p.220)
Na unidade de sentido Arte e Produção de Saúde, Arthur
Bispo do Rosário, afastado do sistema social e do ambiente
perturbador, se reconheceu como agente do próprio destino. Ele
“Aqui jaz aquele que abriu as portas da psiquiatria à foi realmente um Deus da própria criação, que aceitou o pedido
alegria” (MORENO 1889-1974). dos anjos, reconstruindo a própria identidade com suas
memórias culturais. Ao perceber o funcionamento do Hospital
Parafraseando Moreno, poder-se-ia aplicar a Bispo do psiquiátrico, ele se dispôs a modificar a condição de ser um
incapaz, um insano, usando da sua força para resistir à medicina
Rosário o seguinte epíteto:
psiquiátrica e vivendo por 80 anos.
A cela, temida por muitos, foi para ele um refúgio saudável,
“Aqui jaz aquele que abriu as portas da psiquiatria à arte e
à psicologia” onde pode viver ouvindo as vozes em silêncio, longe da privação
de iniciativa pessoal e de ser considerado uma “peça de
Um curso tem demarcação cronológica e também engrenagem” (Gonçalves, 1988, p. 46). Com bravura, Bispo do
necessidade formal de um registro. Com essa intenção, apresento Rosário resgatou sua memória e sua liberdade, reafirmando sua
algumas considerações para finalizar esta etapa, com essência, sua espontaneidade, transformando sua força interna
consciência de que este caso é apenas um entre tantos outros em 804 obras. A renovação requer momentos que se
manifestam no aqui e agora, como se fossem lampejos que
onde a arte foi testemunha da saúde psíquica.
A finalização da escrita de um trabalho nem sempre é uma acontecem em cada momento sublime da criação. Neles está
tarefa fácil. No entanto, para mim está sendo desafiador e tenho a estampada sua história viva, inscrita através da poesia do fio, que
intenção de explicar e ser mais uma autora a tornar pública a nos convoca para uma vivência sensível e harmônica.
A cada encontro que acontecia e a cada ponto que fazia,
experiência do caso Bispo do Rosário.
Bispo
do Rosário se atualizava na condição de um sujeito que
Retomo a unidade de sentido Vida e obra de Arthur Bispo do
Rosário, onde é mostrado como um sujeito foi vítima de uma reconhecia sua existência. Ele sabia muito bem dialogar com o
sociedade normatizadora e negligente, que o considerou como silêncio e conviver com os objetos da sociedade do descarte.
louco por apresentar delírio místico, privando-o de sua liberdade. Desta forma, Bispo do Rosário foi capaz de dialogar com a
A fé que tinha na Virgem Maria o amparou, acrescida da realidade do mundo contemporâneo de forma genial, nos dando
confiança recebida de um guarda que permitiu que pistas de que a sociedade perde humanidade quando foca na
permanecesse com sua agulha, podendo, assim, transformar em produção, no preconceito e na rotulação. Seu exemplo contém
obra de arte sua experiência e vivência existencial. Gonçalves inúmeros temas que podem trazer reflexões sobre o caminho
(1988) traz as palavras de Moreno: “Desde a Primeira Guerra, os sem volta que se transformou em um lugar de esperança,
homens diante da dor buscavam na fé e na crença religiosa uma amando o Deus-EU da criação.
Este caso nos aponta que os psicodiagnósticos não podem
relação harmoniosa com Deus, e na espontaneidade e na
criatividade elementos de superação da doença” ser fechados de modo a engessar o sujeito de qualquer
(GONÇALVES,1988, p. 36). Desde seu nascimento, Bispo do capacidade espontânea, impedindo-o de se inserir no meio
Rosário foi nutrido pela “placenta social” com informações social. Francastel diz:“A ciência da arte e a própria arte têm muito
psicológicas significativas para a vida, sendo constituídas por a ganhar com uma apreciação melhor de seu papel psicológico e
técnico na vida das sociedades. Apreciaremos melhor a arte do
fatores materiais, sociais e históricos. E Moreno assim narra:
passado e a do presente se conhecermos melhor a significação
humana.”(FRANCASTEL, 1973, p. 48).
“Benditos sejam aqueles que trabalham em silêncio
Como sugestão, considero que o caso Bispo do Rosário
no anonimato das almas viventes,
Considerações Finais
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deixou como lição aos Cursos de Psicologia a ideia de que as
expressões de arte podem e devem circular em tais cursos, pois se
trata de um dispositivo de produção de saúde que pode auxiliar
em muitos espaços onde só a palavra não dá conta de expressar o
que se passa no mundo interno subjetivo.
Não quero jamais deixar de ser pesquisadora, porque assim
posso aprender e compartilhar conhecimentos e desta forma sou
feliz. Portanto, resta o desejo de que este trabalho possa
contribuir para que outras pesquisas sobre o assunto possam
acontecer.
Finalizo esta etapa de pesquisa com a elaboração do artigo
do Curso de Psicologia, e, por fazerem sentido para mim tanto a
arte como a Psicologia, vale afirmar:“Todos os homens nasceram
para criar (...). Todos os criadores estão a sós até que o seu amor
pela criação forme um mundo ao seu redor (...). Somente um ser
criativo pode ser verdadeiro. Somente um ser criativo pode existir
(...)”(MORENO, 1992, pp. 107 e 113).
1973.
GONÇALVES, C.S.; ALMEIDA, W.C.; WOLFF, J.R. Lições de
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“Arthur Bispo do Rosário”. Programa“De lá pra cá”, TV Brasil.
“Arthur Bispo do Rosário: O senhor do Labirinto”. Documentário.
“O Bispo”. Documentário da série "vídeo-cartas", Fernando Gabeira.
“O Rosário Sagrado de Arthur Bispo”. Programa“Inclusão”, TV Senado.
39
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
A História e a construção do conceito
de representação social
The history and the construction of social
representations concept
2
Jacir Alfonso Zanatta a *, Márcio Luis Costa b *
Resumo: O presente artigo busca mostrar o processo de transformação da Psicologia, passando pela Psicologia
Social até chegar à Teoria das Representações Sociais. Pretende-se mostrar que as Representações Sociais
formam, hoje, um conceito fecundo que atualmente possui forte influência em várias áreas do conhecimento.
Busca-se ainda dialogar com os precursores da teoria para mostrar como conseguiram quebrar a ortodoxia da
própria ciência para avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso comum como produção do
conhecimento, algo até então deixado de lado pelo modelo positivista de pesquisa. Assim, as Representações
Sociais rompem com a ahistoricidade que predominava nas pesquisas, buscando dar ênfase à dimensão de
construção humana histórica e cultural. Ressalta-se o fato de que a teoria se baseia em um esquema
radicalmente diferente daquele admitido nas teorias clássicas do conhecimento. Desta forma, a realidade
estudada pela Teoria das Representações Sociais é dinâmica e não estática. Esta dinamicidade permite que elas
sejam reelaboradas e modificadas constantemente. São estas características que permitem a elasticidade à
teoria e fazem com que seja ampliada e enriquecida com novos elementos todos os dias. O artigo mostra ainda
que toda representação não é material, mas psíquica, e está situada no campo das ideias.
Palavras-chave: Psicologia – Psicologia Social – Representações Sociais.
Abstract: This paper seeks to demonstrate the transformation process of Psychology, going through Social
Psychology and reaching the Theory of Social Representations. The aim is also to show that today the Social
Representations form a fruitful concept that has a strong influence in several areas of knowledge. It also seeks to
dialogue with the precursors of the theory in order to show how they broke the orthodoxy of Science itself,
moving into new fields of knowledge and recognizing common sense as knowledge production – something
that until now had been put aside by the positivist model of research. Thus, Social Representations disconnect
with history which once prevailed in researches, seeking to emphasize the dimension of cultural and historical
human construction. It is underscored that the theory is based on a scheme radically different from the one
accepted in the classical theories of knowledge. Therefore, the reality studied by the Representations is dynamic
and not static. This dynamic allows them to be constantly reworked and modified. These are the characteristics
that provide elasticity to the theory, causing them to be expanded and enriched with new elements every day.
The paper also shows that every representation is not material, but psychic instead, and it is in the field of ideas.
Keywords: Psychology – Social Psychology – Social Representations.
Doutorando em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) e mestrando em Psicologia da Saúde pela UCDB.
* E-mail: [email protected]
b Doutor e mestre em Filosofia pela Universidad Nacional Autonoma de México. Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior
e formado em Filosofia pela Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT).
* E-mail: [email protected]
a
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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Para pensar a história e a construção do conceito de
Representações Sociais se faz necessário, em primeiro lugar,
voltar um pouco mais no tempo. Só com esta volta ao passado é
possível entender o surgimento da Psicologia e, posteriormente,
da Psicologia Social, vertente que contribuirá diretamente para o
surgimento da Teoria das Representações Sociais. Na produção
deste artigo, optou-se em voltar um pouco mais na história para
compreender os acontecimentos que deram origem à Teoria das
Representações Sociais e que atualmente servem como base
para várias pesquisas desenvolvidas no campo social.
No entanto, mesmo fazendo um retorno ao passado, é
importante fazer um recorte histórico. Sem esta delimitação,
corre-se o risco de se voltar muito na história e acabar na Grécia
antiga, origem da Filosofia e, por que não dizer, da Psicologia.
Observe que um rápido descuido é suficiente para defender que
Aristóteles (2006), com seu livro “De Anima”, é o criador – ou,
como alguns preferem – o pai da Psicologia. Este artigo não tem
a intenção de fazer um resgate de mais de 2.500 anos. Até
porque, de acordo com Schultz & Schultz (2002), a Psicologia só
vai se firmar como ciência e se desvincular da Filosofia em 1879,
com a fundação do laboratório para pesquisas psicológicas em
Leipzing, na Alemanha, por Wilhelm Wundt. Percebe-se com isso
que a Psicologia deixa de ser o estudo da vida mental e da alma,
conforme defendia Aristóteles, e passa a ser o estudo da
consciência ou dos fatos conscientes.
Ao se fazer este recorte histórico, não se pretende negar a
influência que a Psicologia sofreu da Filosofia ao longo do tempo.
Mas colocar Wundt como fundador da Psicologia é aceitar o fato
de que esta nova área do conhecimento nasceu com caráter
experimental, com forte influência das ciências naturais, de
cunho positivista. Rose (2008) ressalta que
a psicologia como uma ciência moderna não foi formada
nos corredores tranquilos da academia, nem no empirismo dos
aventais brancos do laboratório e do experimento. Na verdade,
a psicologia começou a se formar em todos aqueles locais
práticos que tomaram forma durante o século XIX, no qual
problemas de conduta coletiva e individual humanas eram de
responsabilidade das autoridades que procuravam controlálas – nas fábricas, na prisão, no exército, na sala de aula, no
tribunal... (Rose,2008, p.156)
Percebe-se, assim, que a Psicologia inicialmente tomou
forma não como uma disciplina ou uma área profissional, mas
como uma cadeia de pretensões de conhecimento sobre pessoas,
individual e coletivamente, que permitiria que elas fossem
melhor administradas. Rose (2008) mostra ainda que não é
possível esquecer que a Psicologia nasceu, como uma disciplina,
dentro de uma variedade de projetos políticos para o controle de
indivíduos.
Desta forma, é importante observar o alerta que Contini
(2010, p. 06) faz a quem pretende estudar Psicologia: “A atuação
profissional baseada no modelo médico, com ênfase adaptativa
e remediativa, teve sucesso durante décadas por estar coerente
com a ideologia liberal, subjacente ao sistema capitalista, cujo
núcleo é o conceito de individualismo”. Observe que, até agora,
se buscou evitar fazer um juízo de valor ou mesmo uma crítica
sobre as conseqüências da ligação da nova ciência – a Psicologia
– com sua origem positivista.
Esta rápida volta ao passado da Psicologia, mesmo sem um
olhar mais crítico, serve, de acordo com Farr (2008), para
compreender melhor o presente. E esta pequena reconstrução
histórica é salutar para mostrar, de forma rápida e sucinta, os
caminhos percorridos pela Psicologia como ciência
experimental, até chegar à Psicologia Social de base
antipositivista. Sem este entendimento histórico, não é possível
entender as diferenças existentes dentro do próprio bojo da
Psicologia Social. Pode-se observar que, no início de sua
existência, a Psicologia – e posteriormente a Psicologia Social
Psicológica – surge atrelada ao método positivista de ciência
que, de acordo com Japiassu (1978, p. 45), não busca “mais
contemplar a verdade, mas constituí-la pela força da
demonstração. Conhecer significa medir, experimentar, provar e
comprovar”. Esta raiz epistemológica exposta por Japiassu não se
rompe facilmente, uma vez que, até os dias de hoje, as duas
vertentes da Psicologia Social – a psicológica e a sociológica –
operam com métodos diferentes, desde vertentes mais
positivistas eté abordagens mais críticas edescontrutivas. Sobre a
divergência entre as duas concepções de Psicologia Social, Lane
(1989) mostra que é apenas no século XX que a Psicologia Social
surge com a incumbência de, pelo menos, tentar romper com o
positivismo e com as ciências naturais. Antes disso, ela
continuava atrelada ao modelo vigente de se produzir ciência, ou
seja, o positivista. Percebe-se, então, que a Psicologia Social só se
desenvolve como estudo científico, sistemático, após a Primeira
Guerra Mundial, tentando compreender as crises que abalavam
o mundo naquele momento.
Assim, é possível afirmar que a Psicologia veio se
transformando ao longo dos anos por circular para além de seu
próprio contexto de produção. A ideia desta breve síntese foi
mostrar, a exemplo de Diehl, Maraschin & Tittoni (2006, p. 413),
que, mesmo operando com outro tipo de representação, “o
percurso se faz em uma trajetória que comporta deslocamentos
e paradas. As paradas envolvem lugares e posições, e os
deslocamentos, modos e obstáculos à passagem. Pensar o lugar
é também pensar de onde partimos”. Desta forma, ao elaborar
este artigo, buscou-se compreender o surgimento da Psicologia
e seu processo transformativo até a Psicologia Social. Só assim é
possível compreender a Teoria das Representações Sociais,
oriunda da Psicologia Social sociológica e que hoje possui forte
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influência em várias áreas do conhecimento.
Um conceito fecundo
Depois de um rápido apanhado sobre a origem e a
transformação da Psicologia Social, se faz necessário avançar um
pouco mais para mostrar como a Psicologia Social contribuiu
para o nascimento da Teoria das Representações Sociais (TRS).
Este artigo dialoga com os precursores desta teoria, que em 2011
completou 50 anos de história e, conforme Jodelet (2011)
completa 30 anos de Brasil em 2012. O objetivo deste é mostrar
que as Teorias das Representações Sociais, ao menos na sua
versão moscoviciana, quebram a ortodoxia da própria ciência
para avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso
comum como produção do conhecimento. Algo que, até então,
era deixado de lado pelo modelo positivista de pesquisa.
Antes de iniciar esta trajetória, é importante prestar um
pouco de atenção ao alerta feito por Lahlou (2011) no sentido de
que as Representações Sociais são um campo de estudo e não
uma teoria, o que explica sua longevidade. Lahlou (2011, p. 66)
define a Representação Social como um “meio pelo qual os seres
humanos representam objetos de seu mundo”. Assim, para
prosseguir nesta discussão, é importante voltar um pouco mais
na história. Só esta volta ao passado permite perceber que o
conceito de Representações Sociais de Moscovici teve suas
origens no conceito de representações coletivas de Durkheim.
Por este motivo, os autores selecionados para o desenvolvimento
deste tópico, de uma forma ou de outra, concordam que a
concepção de Representações Sociais desenvolvida por
Moscovici tem proximidade com o conceito de representações
coletivas desenvolvido por Durkheim.
Duveen (2003), por sua vez, explica que, enquanto
Durkheim vê as representações coletivas como formas estáveis
de compreensão coletiva, Moscovici esteve mais interessado em
explorar a variação e a diversidade das ideias coletivas nas
sociedades modernas. De acordo com Duveen (2003), na teoria
da Representação Social, o conceito de representação possui um
sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao processo pelo qual
as representações são elaboradas como às estruturas de
conhecimento já estabelecidas. Neste sentido, é importante
levar em consideração que, para Moscovici (2003), as
representações possuem precisamente duas funções: a) elas
convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que
encontram; b) são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós
como uma força irresistível.
No que se refere à convencionalização, Moscovici (2003)
acredita que as pessoas pensam por meio da linguagem. É ela
que ajuda a organizar os pensamentos, de acordo com um
sistema que está condicionado tanto pelas representações que os
seres humanos possuem como por sua cultura. Já sobre as
representações prescritivas, Moscovici (2003) argumenta que
elas são partilhadas pela coletividade, penetram e influenciam a
mente de cada um, mesmo não sendo pensadas por eles, mas
são repensadas, recitadas e representadas constantemente por
quem as usa. Isso mostra que Jovchelovitch (2008) estava certa
ao defender que as representações não são estáticas, mas fazem
parte de um sistema construído. Com isso, a autora cria um
conceito de representação que apresenta uma forma triangular,
cuja arquitetura básica é construída pelas inter-relações sujeitooutro-objeto. Por isso, é importante levar em consideração o
vasto campo das relações humanas e as teias de complexidade
que elas produzem.
Percebe-se, assim, que para Jovchelovitch (2008, p. 33) “a
realidade do mundo humano é, em sua totalidade, feita de
representações e não faz sentido falar de realidade em nosso
mundo humano sem o trabalho da representação”. Com isso, a
autora está defendendo a ideia de que as representações não são
um espelho do mundo e, menos ainda, construções mentais de
sujeitos individuais. Para Jovchelovitch (2008, p. 35), as
representações “implicam um trabalho simbólico que emerge
das inter-relações Eu, Outro e Objeto-Mundo, e, como tal, têm o
poder de significar, de construir sentido, de criar realidade”. Notase, assim, que o status da representação é polivalente. As
representações são construções ontológicas, epistemológicas,
psicológicas, sociais, culturais e históricas. Sendo assim, elas
constroem o real, mas nunca capturam plenamente a totalidade
da realidade, mesmo que desejem fazê-lo.
Moscovici (2011) defende que a teoria das Representações
Sociais deve conduzir o pesquisador a um modo de olhar a
Psicologia Social que exige a manutenção de um laço estreito
entre as ciências psicológicas e as ciências sociais. Nesta mesma
concepção, Trindade, Santos & Almeida (2011) buscam mostrar
que uma boa teoria precisa revelar a dinâmica do real e, por isso,
ela mesma deve estar sempre em construção. Desta forma, as
autoras defendem que a teoria das Representações Sociais pode
ser vista como um conceito guarda-chuva, capaz de englobar
aqueles estudados por meio de modelos pautados nas
microteorias, como as que caracterizam a ancoragem,
objetivação, redes e comunicação.
Pelo exposto acima, é possível observar que, por meio da
Teoria das Representações Sociais, Moscovici (2011) busca
quebrar a dicotomia criada entre a Psicologia Social Psicológica e
a Psicologia Social Sociológica. Para o autor, as Representações
Sociais expressam o conjunto de conceitos, proposições e
explicações originado na vida diária no curso das comunicações
interindividuais. Para Moscovici (2011), os indivíduos não são
apenas processadores de informações, nem meros portadores de
ideologias ou crenças coletivas, mas pensadores ativos, que
produzem e comunicam representações e soluções específicas
para as questões que se colocam a si mesmos.
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Buscando aprofundar um pouco mais a reflexão em questão,
Jovchelovitch (2008, p. 86) argumenta que “a teoria das
Representações Sociais deve ser entendida não apenas como
uma psicologia social dos saberes, mas também como uma
teoria sobre como novos saberes são produzidos e acomodados
no tecido social”. Percebe-se, assim, que todo o saber depende
de um contexto e está enraizado em um modo de vida. No
entanto, é importante esclarecer que, apesar da proximidade,
não são a mesma coisa. Buscando fazer uma análise do tecido
social, Rêses (2003) mostra que a teoria das Representações
Sociais se dirige à formação das explicações produzidas pelo
senso comum em sociedades complexas, e não exatamente às
formas de saber mais elaboradas ou estruturadas.
Para Rêses (2003, p. 194), “as representações constituem
modos de vida e formas de comunicação entre as pessoas; por
isso, elas são Representações Sociais”. As Representações Sociais,
portanto, orientam e organizam as condutas e as comunicações
sociais, assim como intervêm na difusão e na assimilação de
conhecimentos, no desenvolvimento individual e coletivo, na
definição das identidades pessoais e sociais, na expressão dos
grupos e nas transformações sociais. Almeida & Cunha (2003)
também compactuam desta postura e mostram que a Teoria das
Representações Sociais desenvolvida no âmbito da Psicologia
Social tem oferecido um importante aporte teórico aos
pesquisadores que buscam compreender os significados e os
processos neles imbricados, criados pelos seres humanos para
explicar o mundo e sua inserção dentro dele.
Assim, é importante ressaltar que, para Moscovici (2003, p.
48), o que realmente interessa são as representações da
sociedade atual.
as Representações Sociais que me interessam não são
nem as das sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes,
no subsolo de nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas
são as de nossa sociedade atual, de nosso solo político,
científico, humano, que nem sempre têm tempo suficiente
para se sedimentar completamente para se tornarem
tradições imutáveis (Moscovici, 2003, P. 48).
Observe que, para Moscovici (2003), a gênese das
representações expressa a natureza do universo consensual,
produto do qual elas são e ao qual elas pertencem
exclusivamente. Almeida & Cunha (2003, p. 147) compactuam
desta postura e buscam mostrar que“intimamente articuladas às
teorias científicas, as Representações Sociais ou as teorias
populares submetem os conhecimentos elaborados pelas
ciências a um processo de ressignificação, visto que são
negociados e recriados no bojo das teorias populares”. Já Cardoso
& Gomes (2000) defendem que a questão das Representações
Sociais é bastante controversa, possuindo, inclusive, um uso
bastante diversificado.
Herzlich (1991), no entanto, alerta para o fato de que as
Representações Sociais não são o somatório das representações
individuais; elas se constituem numa realidade que se impõe ao
indivíduo. Segundo Herzlich (1991), é importante observar que
a Representação Social não é mero reflexo do real, mas sua
construção. Percebe-se, assim, que se faz necessário ter um
cuidado redobrado para não se incorrer no erro de defender que,
a partir de agora, tudo é Representação Social. Um dos cuidados
necessários é não confundir o social com a soma das partes
individuais existentes na sociedade. Social, no fundo, é uma
relação que inclui o individual e o total, ou seja, a sociedade é
construída por pedaços de saberes que formam o tecido social do
qual todos fazem parte.
Desta forma, fica claro que toda representação não é
material, mas psíquica: está no campo das ideias. É preciso
perceber, no estudo das Representações Sociais, que ela é prática
e, como tal, se desvela na observação do pesquisador. Lembre-se
que as Representações Sociais se dão nas relações, entendidas
como um fenômeno comunicativo e dialógico. Jovchelovitch
(2011b) acredita que a conexão entre a teoria das
Representações Sociais e a vida cotidiana ocupa um lugar
fundante na arquitetura conceitual desenvolvida por Moscovici,
e se apresenta como um problema central das ciências sociais e,
em particular, da Psicologia Social. Jovchelovitch (2011b)
argumenta ainda que a Representação Social é um saber que não
pode ser considerado idêntico ao da ciência, mas que nem por
isso deixa de ser um saber.
Após estas considerações, Jovchelovitch (2011b, p. 169)
define Representação Social como sendo um “ponto móvel
dentro de um sistema de transformação que compreende um
jogo representacional derivado de relações intergrupais e
interinstitucionais na esfera pública, bem como dos processos de
reprodução e renovação da cultura”. Por isso, toda representação
precisa ter uma dimensão que dá concretude ao social, ao
mesmo tempo em que institui a matriz social, cultural e histórica
do sujeito psicológico. Dentro desta reflexão, é importante
observar que Moscovici (2011) alerta para o fato de que as
Representações Sociais são uma teoria com certo grau de
elasticidade e complexidade. Estes dois pontos são elementos
essenciais para que ela possa perdurar. Afinal, com a Teoria das
Representações Sociais, ele rompe com a ahistoricidade que
predominava nas pesquisas, buscando dar ênfase à dimensão de
construção humana histórica e cultural.
Guareschi & Jovchelovitch (2011) explicam que as
Representações Sociais enquanto teoria são altamente
questionadoras e não se acomodam com o já pensado. Por isso,
elas buscam constantemente o novo, onde o peso hegemônico
do pensamento tradicional impõe suas contradições. Esta é a
capacidade e a elasticidade que a teoria apresenta. Isso permite
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que ela se renove constantemente e tenha condições de se
adaptar a situações adversas. Banchs (2011) também alerta para
o fato de que a representação não deve ser confundida com a
imagem, porque a imagem é a impressão do objeto no sujeito,
enquanto que a representação é uma reconstrução.
Nesta perspectiva, Banchs (2011, p. 240) defende que“negar
às Representações Sociais a dupla face processual dinâmica e
portadora da marca cultural transgeracional é negá-la como
teoria. Ou seja, as representações são ao mesmo tempo forma e
significado, estruturas e processos. São, simultaneamente,
icônicas e simbólicas”. Neste mesmo sentido, Alaya (2011)
avança um pouco mais na discussão ao mostrar que a Teoria das
Representações Sociais se baseia em um esquema radicalmente
diferente daquele admitido nas teorias clássicas do
conhecimento. Para entender o processo do conhecimento do
seu ponto de vista, convém ir além da concepção binária da
epistemologia clássica formulada pelo esquema sujeito-objeto e
avançar no sentido de reconhecer o eu-outro-objeto-mundo.
No entanto, é importante prestar atenção a outras questões.
De acordo com Jesuíno (2011), os conceitos de representação
remetem necessariamente para a linguagem e para a
multiplicidade das suas combinações. Neste sentido, Villas-Boas
(2010, p. 379) defende que “as Representações Sociais são
resultado, de um lado, da reapropriação de conteúdos advindos
de períodos cronológicos distintos e, de outro, daqueles gerados
por novos contextos”. De acordo com Villas-Boas (2010), é na
experiência que se fundem tanto a elaboração racional quanto as
formas inconscientes de comportamento, que não estão mais ou
que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Desta
forma, é possível perceber que uma das funções das
Representações Sociais é, essencialmente, a de orientar as
práticas e o discurso.
Villas-Boas (2010) argumenta ainda que o surgimento de
uma Representação Social está atrelado à existência de três
fatores relacionados ao posicionamento de um grupo perante
um objeto socialmente significativo para ele, quais sejam:
dispersão da informação, focalização e pressão à inferência.
Nesta mesma linha de pensamento, Guareschi & Jovchelovitch
(2011) mostram que a Teoria das Representações Sociais tem a
função de questionar ao invés de adaptar-se. Ela deve
constantemente buscar o novo, longe do peso hegemônico do
que é tradicional. A análise proposta por Guareschi &
Jovchelovitch (2011) procura dar conta das mediações existentes
entre a vida social e a vida individual. Por este motivo, as
Representações Sociais são estruturas simbólicas que se
originam tanto na capacidade criativa do psiquismo humano
como nas fronteiras que a vida social impõe.
Percebe-se, assim, que, para Jovchelovitch (2011a), as
pessoas constroem na sua relação com o mundo um novo
mundo de significados. Desta forma, não se pode negar que as
Representações Sociais são processos que estão embebidos na
comunicação e nas práticas sociais. Observa-se, assim, que é por
meio das mediações sociais em suas várias formas que se
acabam por gerar as Representações Sociais.
Comunicação é mediação entre um mundo de
perspectivas diferentes, trabalho é mediação entre
necessidades humanas e o material bruto da natureza, ritos,
mitos e símbolos são mediações entre a alteridade de um
mundo frequentemente misterioso e o mundo da
intersubjetividade humana: todos revelam numa ou noutra
medida a procura de sentido e significado que marca a
existência humana no mundo (Jovchelovitch, 2011a, P. 68).
Fica claro que, para Jovchelovitch (2011a), as
Representações Sociais são estratégias desenvolvidas por atores
sociais para enfrentar as diversidades de um mundo que, embora
pertença a todos, transcende a cada um individualmente. Assim,
as Representações Sociais surgem como um processo desafiador
capaz de reproduzir, repetir e superar o modelo de vida social de
uma comunidade. Dentro deste mesmo contexto, é importante
observar que, para Palmonari & Cerrato (2011), as
Representações Sociais sempre envolvem tanto o conhecimento
como as crenças, e é pouco provável encontrar um sistema de
pensamento que possa se basear puramente em conhecimentos
ou simplesmente em crenças porque, nesse caso, estaríamos
falando de ciência ou de religião, respectivamente. Palmonari &
Cerrato (2011) mostram ainda que a Teoria das Representações
Sociais foi formulada como alternativa à maneira dominante de
conceber a Psicologia Social e o comportamento humano.
Nesta mesma linha, Guareschi (2011) mostra que as
representações que as pessoas possuem da sociedade em que
vivem não são independentes: têm a ver com a concepção de ser
humano e de sociedade. Guareschi (2011) defende ainda que,
em seus escritos, Moscovici buscou mostrar que a visão de
realidade como pressuposta pela teoria positivista e
funcionalista era parcial e não dava conta de explicar outras
dimensões da realidade, principalmente sua dimensão histórica
e crítica. Este é o motivo pelo qua, as Representações Sociais
sempre serão ideológicas.
Spink (1993), por sua vez, acredita que, por serem
ideológicas, elas são definidas como formas de conhecimento
prático. Por isso, as Representações Sociais inserem-se entre as
correntes que estudam o conhecimento do senso comum. Para
Spink (1993, p. 300)
as Representações Sociais são, consequentemente, formas
de conhecimento que se manifestam como elementos
cognitivos — imagens, conceitos, categorias, teorias —,
mas que não se reduzem jamais aos componentes cognitivos.
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Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem
para a construção de uma realidade comum, que possibilita a
comunicação. Deste modo, as representações são,
essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a
partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a
partir do seu contexto de produção (Spink, 1993, P.300)
Desta forma, Spink (1993) mostra que toda representação é
uma construção do sujeito enquanto sujeito social. Por isso, as
representações são sempre construções contextualizadas,
resultados das condições em que surgem e circulam. Sendo
assim, elas são interpretações da realidade que possuem
estruturas dinâmicas. Trindade et al (2011) avança nesta
discussão ao mostrar que uma boa teoria precisa revelar a
dinâmica do real e, por isso, ela mesma deve estar sempre em
construção. Trindade et al (2011, p. 173) explica ainda que “toda
Representação Social possui uma dimensão que dá concretude
ao social, ao mesmo tempo em que institui a matriz social,
cultural e histórica do sujeito psicológico”. Contudo, é com Alaya
(2011) que se chega ao X da questão proposta por Moscovici e
que dá sustentabilidade às Representações Sociais.
De acordo com Alaya (2011), a teoria das Representações
Sociais baseia-se em um esquema radicalmente diferente
daquele admitido nas teorias clássicas do conhecimento.
a representação não é um simples reflexo ou uma
reprodução da realidade, mas, uma reconstrução por
distorções, exclusões e adições. As representações não fazem
apenas representar o real, eles lhe dão forma, até certo ponto.
A informação recebida é transformada. Portanto, há um
vaivém de informações, uma interação entre a representação e
a realidade (Alaya, 2011, p. 270).
Complementando a concepção defendida acima, Guareschi
(2011, p. 162) alerta para o fato de que “o conceito de
Representação Social é dinâmico e explicativo, tanto da realidade
social, como física e cultural. Possui uma dimensão histórica e
transformadora. Junta aspectos culturais, cognitivos e
valorativos, isto é, ideológicos”. Pelo exposto, é possível perceber
que as Representações Sociais estão em constante construção.
São realidades dinâmicas e não estáticas. Esta dinamicidade
permite que elas sejam reelaboradas e modificadas
constantemente. São estas características que permitem a
elasticidade à teoria e fazem com que seja ampliada e
enriquecida com novos elementos todos os dias.
Percebe-se, assim, que as Representações Sociais são
capazes de estabelecer conexões entre as abstrações do saber e
das crenças com a concretude da vida do indivíduo em seus
processos de troca com os outros. Chaves & Silva (2011) fazem
um alerta importante aos pesquisadores que pretendem
trabalhar com a teoria das Representações Sociais. Explicam que,
“apesar de descrever uma forma de conhecimento, as
Representações Sociais não constituem uma teoria que se aplica
a todas as formas de conhecimento que são produzidas e
mobilizadas em uma dada sociedade” (p.313). Nota-se, então,
que, enquanto teoria, as Representações Sociais oferecem um
ótimo suporte às investigações, desde que se consiga partir do
conhecimento do sujeito ou grupo estudado, mostrando como
esse conhecimento orienta as suas práticas cotidianas.
Castro (2011), por sua vez, alerta todos aqueles que
pretendem utilizar as Representações Sociais como ferramenta
para a pesquisa. Segundo ele,
...as Representações Sociais são tanto conservadoras
como inovadoras, estruturadas com uma lógica singular que
permite a um determinado grupo social compreender o
mundo que o rodeia e lidar com os problemas que nele
identifica. É, pois, um saber que organiza um modo de vida e
que, por isso mesmo, adquire dimensão de realidade (Castro,
2011, P.07).
Percebe-se, assim, que o conhecimento no contexto das
representações se transforma diariamente. Ao estudar as
Representações Sociais, é preciso levar em consideração a visão
que os indivíduos ou os grupos possuem e empregam na forma
de agir e se posicionar perante o mundo. Farr (2011) vai um
pouco mais além ao defender a ideia de que só vale à pena
estudar uma Representação Social se ela estiver relativamente
espalhada dentro da cultura em que o estudo é feito. Desta
forma, o indivíduo estudado pela teoria das Representações
Sociais é, ao mesmo tempo, um agente de mudança na
sociedade e um produto dessa mesma sociedade.
De acordo com Chaves & Silva (2011, p. 299), “a Teoria das
Representações Sociais é uma abordagem psicossociológica
sobre o processo de construção do pensamento social”. Assim
sendo, estudar as Representações Sociais é identificar a visão
social, política, econômica e cultural que indivíduos ou grupos
possuem e como empregam na forma de agir e se posicionar. É
importante observar, pelo que foi exposto, que a influência do
social não é percebida como um estímulo que atinge o indivíduo,
mas um contexto de relações onde o pensamento é construído.
Por isso, as Representações Sociais exercem papel de mediação
entre o indivíduo e a sociedade.
Percebe-se ainda que as Representações Sociais são
abordadas, ao mesmo tempo, como o produto e o processo de
uma atividade de apropriação do mundo social pelo
pensamento e elaboração psicológica e social dessa realidade,
podendo ser organizada a partir de conteúdos centrais e
periféricos. Ainda que Marková (2006) tenha assinalado que as
discussões mocovicianas sobre Representações Sociais tenham
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paulatinamente transitado da noção de núcleo-central para a
noção da noção de tema, nota-se que Chaves & Silva (2011, p.
307-308) mostram que “os elementos periféricos são, portanto,
mais flexíveis que o núcleo central e permitem a integração de
experiências e histórias individuais, admitindo a
heterogeneidade do grupo e as contradições”. Desta forma, os
elementos periféricos constituem o aspecto móvel e evolutivo da
Representação Social. Segundo os autores, é na periferia das
Representações Sociais que informações novas, assim como
elementos de conflitos em relação aos fundamentos do núcleo
central, podem ser integradas. Os pesquisadores acreditam que o
núcleo central resiste à mudança, pois isto implicaria em uma
transformação completa da representação.
Moscovici (2003) propõe um conceito de representação
social baseado no senso comum, no conhecimento e na
comunicação. É importante observar que ele não se interessou
apenas em compreender como o conhecimento é produzido,
mas principalmente em analisar seu impacto nas práticas sociais.
Ele se preocupou em compreender como os grupos, os atos
humanos e as ideias constituem e transformam a sociedade.
Desta forma, o tema da relação entre grupos, atos e ideias é
recorrente nas representações sociais. Percebe-se que, para o
autor, a produção de conhecimentos plurais constitui e reforça a
identidade dos grupos, além de influenciar em suas práticas e na
forma como reconstituem o próprio pensamento. Moscovici
(2003, p.224) defende que “a noção de tema indica que a
possibilidade efetiva de sentido vai sempre além daquilo que foi
concretizado pelos indivíduos, ou realizado pelas instituições”.
Nota-se que o autor volta seu interesse para o debate em torno da
permanência de certos temas no cotidiano das relações sociais.
Dentro dessa abordagem, os sistemas centrais e periféricos
das representações podem parecer contraditórios, mas são, na
verdade, complementares. Fica claro, então, que os elementos
periféricos são sensíveis ao contexto imediato e têm um caráter
evolutivo que permite a adaptação à realidade concreta e à
diferença de conteúdo. Por serem mais concretos, os elementos
periféricos respondem por três funções: concretização, regulação
e defesa. Chaves & Silva (2011) argumentam ainda que as
Representações Sociais permitem justificar comportamentos e
tomadas de posição. Com isso, elas contribuem para preservar e
justificar a diferenciação social, podendo, então, estereotipar as
relações entre grupos, contribuir para a discriminação ou para a
manutenção da distância social entre eles.
Considerações finais
Pelo exposto no presente texto, percebe-se que as
Representações Sociais se constituem como um conceito
fecundo, que possui influência de várias áreas do conhecimento,
que vão desde a Sociologia, passando pela Filosofia e pela
Antropologia, até chegar à Psicologia. Neste sentido, foi
importante dialogar com os precursores da teoria para mostrar
como conseguiram quebrar a ortodoxia da própria ciência e, com
isso, avançar em novos campos do saber, reconhecendo o senso
comum como produção do conhecimento. Percebe-se ainda que
as Representações Sociais rompem com o modelo positivista e
com a ahistoricidade que predominava nas pesquisas, buscando
dar ênfase à dimensão de construção humana de forma histórica
e cultural. Desta forma, é possível notar que a realidade estudada
pela Teoria das Representações Sociais é dinâmica e não estática.
É esta mesma dinamicidade da teoria que faz com que ela seja
reelaborada e modificada constantemente. São estas
características mostradas neste texto que permitem não só a
elasticidade da teoria, como também o enriquecimento com
novos elementos, que são agregados diariamente.
Diante do que foi abordade até o presente momento, é
possível perceber ainda que, segundo Jodelet (2009), as
Representações Sociais são fenômenos complexos sempre
ativados e em ação na vida social. Por isso, elas envolvem
elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos,
crenças, valores, atitudes, opiniões e imagens, formando uma
totalidade significante em relação à ação. Este mesmo
entendimento é defendido por Guareschi & Jovchelovitch (2011)
quando argumentam que a teoria das Representações Sociais
traz em seu bojo várias dimensões, e que o cognitivo, afetivo e o
social fazem parte do campo das representações. Aos poucos, é
possível notar que a busca pela compreensão do caminho das
Representações Sociais enquanto teoria permite que o
pesquisador repense a própria prática sem, no entanto, perder o
rigor teórico e a capacidade de interagir com a realidade social.
Guareschi & Jovchelovitch (2011) buscam mostrar o tempo todo
que as Representações Sociais são estruturas simbólicas que se
originam da capacidade criativa do psiquismo humano.
Percebe-se, desta forma, que a discussão dos processos
emocionais e inconscientes está envolvida na formação da
representação simbólica. Isso ajuda a compreender como o
desenvolvimento do saber não está restrito à formação de
estruturas cognitivas racionais, mas também é moldado pelos
inúmeros sentimentos e fantasias que constituem a vida. Por
isso, a análise da forma representacional mostra que o trabalho
da representação envolve sujeitos em relação a outros sujeitos, e
a ação comunicativa que circunscreve e configura suas relações
na medida em que se engajam no processo de dar sentido a um
objeto ou a um conjunto de objetos.
Jovchelovitch (2011a) lembra que, no processo de
construção das Representações Sociais, é preciso ficar atento à
forma como os sujeitos constroem sua relação com o mundo.
Jovchelovitch (2011a, p. 67) mostra que “os processos que
engendram Representações Sociais estão embebidos na
comunicação e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais,
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padrões de trabalho e produção, arte, em suma, cultura”. É
interessante observar que, de uma forma geral, direta ou
indiretamente, todos os pesquisadores que trabalham com as
Representações Sociais dão uma importância considerável para a
comunicação. Percebe-se, ainda, que as Representações Sociais
acabam se transformando em estratégias necessárias,
desenvolvidas pelos atores sociais para enfrentar as adversidades
do mundo contemporâneo que, embora pertença a todos,
transcende a cada um isoladamente.
Neste sentido, é importante lembrar as palavras de Minayo
(2011, p.79) ao defender que “o mundo do dia a dia é entendido
como um tecido de significados, instituídos pelas ações
humanas e passível de ser captado e interpretado”. Fica claro que,
para a autora, as palavras são tecidas a partir de uma multidão de
fios ideológicos, e servem de trama para as relações sociais em
todos os domínios. Mas é Spink (2011) quem consegue mostrar
que não se pode deixar escapar no estudo das Representações
Sociais o fato de que elas são teorias do senso comum,
encarregadas de desvendar as associações de ideias subjacentes
em determinada realidade. Observa-se, assim, que as
Representações Sociais são estruturas cognitivo-afetivas e não
podem ser reduzidas apenas ao seu conteúdo cognitivo. O afetivo
também precisa estar presente.
Pelo exposto até aqui, percebe-se que as Representações
Sociais possuem um conceito multifacetado. É importante
observar que, para Wagner (2011), as Representações Sociais
geralmente podem ser explicadas através das condições
socioestruturais e sociodinâmicas de um grupo. Já para
Alexandre (2004), as Representações Sociais surgem como um
campo multidimensional que permite ao pesquisador
questionar a natureza do conhecimento e a relação indivíduosociedade. Alexandre (2004) defende que, no seu entender, o
que motivou Moscovici a desenvolver o estudo das
Representações Sociais dentro de uma metodologia científica foi,
sem sombra de dúvidas, sua crítica aos pressupostos positivistas
e funcionalistas das demais teorias. Por isso, Alexandre (2004)
argumenta que as Representações Sociais estão situadas numa
região fronteiriça entre a Sociologia e a Psicologia.
Nesta mesma linha de pensamento, Chaves & Silva (2011, p.
310) esclarecem que “representar socialmente é um processo de
selecionar visões de mundo significativas, seguidas de
verificações contínuas”. Assim, por serem elaboradas na fronteira
entre o psicológico e o social, as Representações Sociais, são
capazes de estabelecer conexões entre as abstrações do saber e
das crenças e a concretude da vida do indivíduo em seus
processos de troca com os outros. Desta forma, fica claro que,
para descrever as Representações Sociais em sua pluralidade, é
preciso conhecer quem fala, qual a sua posição na estrutura
social e quais os espaços sociais que produzem esse discurso.
É importante entender as representações dentro do contexto
em que elas estão sendo geridas. Neste sentido, é preciso
valorizar Doise (2002) quando explica que é somente a partir das
divergências que uma teoria se renova e se constrói
constantemente. No que se refere à teoria das Representações
Sociais, Doise (2002) explica que as diferenças existem porque
alguns pesquisadores optam trabalhar com um construcionismo
radical, enquanto outros preferem partir para uma prática da
análise de discurso, rejeitando a ideia de quantificação ou das
variáveis experimentais. Desta forma, Doise (2002, p. 30) define
“as Representações Sociais como princípios organizadores das
relações simbólicas entre indivíduos e grupos”. Ele lembra ainda
que existem outros pesquisadores que aderem a uma corrente da
cognição social que, ao contrário, privilegia a abordagem
experimental.
Percebe-se, assim, que falar de sujeito no campo de estudo
das Representações Sociais é falar de pensamento, ou seja,
referir-se a processos que implicam dimensões físicas e
cognitivas do conhecimento e do saber que levem à abertura
para o mundo e os outros. Nesta mesma linha de pensamento,
Rêses (2003) argumenta que as Representações Sociais se
desenvolvem com o propósito de transformar algo não familiar
em familiar, por meio de dois processos: objetivação e
ancoragem. Percebe-se, assim, que os dois termos são
fundamentais na teoria das Representações Sociais.
Desta forma, se faz necessário ressaltar que, quanto menos
as pessoas pensam nas representações, quanto menos tomam
consciência delas, maior se torna sua influência. Moscovici
(2003) defende ainda que o estudo das Representações Sociais
vê o ser humano enquanto ele tenta conhecer e compreender as
coisas que o circundam, e tenta resolver os enigmas centrais de
seu próprio nascimento, de sua existência corporal e de suas
humilhações. Percebe-se que estudar as Representações Sociais
é estudar o ser humano em sua singularidade e coletividade. Por
isso, pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos,
pensam por si mesmos, produzem e comunicam
incessantemente suas próprias e específicas representações e
soluções às questões que eles mesmos se colocam. Desta forma,
as Representações Sociais devem ser vistas como uma maneira
especifica de compreender e comunicar o que nós já sabemos.
Por isso, de acordo com Camino & Torres (2011), as
Representações Sociais são teorias ou sistemas de conhecimento
que contribuem para a descoberta e organização da realidade.
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49
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Efeitos da transferência no atendimento
a pacientes oncológicos
Effects of transference in the treatment
of oncology patients
2
Andrea Theise a *, Marianne Montenegro Stolzmann Mendes Ribeiro b *
Resumo: Este artigo busca refletir sobre o efeito da relação transferencial que se estabelece com pacientes
oncológicos, bem como as questões que surgem diante da vulnerabilidade em que tais sujeitos se encontram.
Além de fragilidade orgânica e psíquica, os pacientes atendidos encontram-se em situação de vulnerabilidade
social. Assim sendo, nas primeiras sessões é feita uma escuta acolhedora a fim de dar suporte para que, no
decorrer dos atendimentos, estes pacientes possam se confrontar com o adoecimento, bem como com seus
conflitos psíquicos que podem estar relacionados com o câncer. Para isso, utiliza-se o entendimento
psicanalítico, tendo como base a prática realizada junto à Liga Feminina de Combate ao Câncer da cidade de
Novo Hamburgo. Ao fim dos atendimentos, o relato dos pacientes revela o quanto esta escuta contribui para a
melhoria da qualidade de vida, sendo que muitos superam momentos de medo, luto e depressão. Alguns
pacientes que antes se sentiam incapacitados em lidar com questões cotidianas, conseguiram, após certo
número de sessões, retomar algumas tarefas diárias, construindo planos a médio prazo, resgatando o desejo em
viver.
Palavras-chave: transferência; psicanálise; paciente oncológico.
Abstract: This article aims to reflect the transference relationship established with oncology patients, as well as
the issues that arise from the susceptibility of such individuals. Those cancer patients are not only under physical
and emotional distress, but also under social vulnerability. Thus, among the individual counseling session first
offered to the patients, the psychologist provides them with a receptive listening so that they can get support in
order to cope with the disease, as well as with the emotional conflicts, which might be related to cancer.
Therefore, the psychoanalytic approach is the method used in the praxis offered at the Liga Feminina de Combate
ao Câncer in Novo Hamburgo, Brazil. The feedback from the patients reveals how much those receptive listening
sessions contribute to the patients' well-being. Many of those patients overcome moments of fear, grief and
depression. Some patients who used to feel incapable of dealing with daily life activities could resume some of
their daily tasks after undergoing a certain number of sessions. They are able to set short - term goals, recovering
the desire to live.
Keywords: transference; psychoanalysis; oncology patients.
a Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo - RS - Brasil.
* E-mail: [email protected]
b Orientadora; Psicóloga; Psicanalista, membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica PUCRS; Coordenadora do Centro Integrado de
psicologia da Universidade Feevale; Professora e Supervisora de Estágio no Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo
- RS - Brasil.
* E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
50
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57
Este artigo é fruto de uma reflexão a respeito das
particularidades percebidas nos atendimentos psicológicos
realizados com pacientes oncológicos. Os atendimentos
ocorreram nas dependências da Liga Feminina de Combate ao
Câncer da cidade de Novo Hamburgo, semanalmente, com uma
hora de duração. O encaminhamento destes pacientes ao
atendimento é feito através de uma triagem. Desta forma, são
selecionados aqueles com maior urgência de atendimento,
avaliando se é o próprio paciente que irá se beneficiar desta
escuta, ou ainda se será mais benéfico o atendimento ao
cuidador, como um suporte a esta família, a qual, muitas vezes,
tem suas relações adoecidas juntamente com o paciente
oncológico.
A família funciona como um sistema vivo, de maneira que
tudo que acontece a um de seus membros repercute sobre os
demais; assim, os seus efeitos não se restringem apenas a uma
pessoa em particular, mas afetam normalmente todos os
demais membros (SILVA, 2000, p. 13).
Observou-se, então, que o paciente com câncer e sua família
sempre chegam aos atendimentos com uma grande carga de
angústia. Isto se dá devido ao entendimento inconsciente de que
há uma condenação à morte intrinsecamente ligada ao
momento de recebimento do diagnóstico. "O câncer pode
roubar-lhe aquela alegre ignorância que uma vez o levou a
acreditar que o amanhã se estenderia para sempre". (PICHETI;
DUARTE, 2008, p. 59). Esta carga emocional tem uma demanda
de urgência, que, depois de ser acolhida, abre espaço para que
tenham voz sentimentos e vivências relacionados ao
adoecimento.
A necessidade de uma escuta acolhedora, bem como a
fragilidade destes pacientes, será descrita a seguir, assim como o
manejo realizado nas sessões. Apesar de inicialmente os
atendimentos possuírem o enfoque da psicoterapia de apoio,
percebe-se que, no decorrer do tratamento, diante da aderência e
da transferência estabelecidas, há um aprofundamento desta
escuta, embarcando no campo da psicoterapia de orientação
analítica. Para ilustrar estas especificidades, será exposto, no
decorrer do artigo, o recorte de um caso de uma paciente que será
apresentada como G.
Quem é o paciente oncológico
Até o final do século XIX, o sujeito acometido pelo câncer não
tinha reais possibilidades de sobreviver, restando apenas esperar
pela morte. Em 1920, surgiu uma novidade – a radioterapia –
trazendo a esperança do prolongamento de vida do paciente,
mas esta era utilizada apenas nos casos em que a cirurgia não
havia sido bem sucedida. A partir de 1940, começaram a surgir as
drogas anticâncer e a quimioterapia, trazendo ainda mais
possibilidades com a combinação dos diferentes tratamentos,
mas nem sempre a cura.
A palavra câncer era ameaçadora de tal forma que o
médico só revelava o diagnóstico aos familiares, jamais ao
paciente. Câncer estava associado à dor, à tumoração
deformante, ao odor fétido e, inevitavelmente, à morte. Havia
desconfiança de que fosse doença transmissível, por isso o
paciente era previamente rejeitado (SILVA, 2000, p. 21).
Desta forma, o paciente oncológico, ao receber o diagnóstico,
recebe também esta carga histórica. Muitos avanços já foram
conquistados, mas de acordo com o Instituto Nacional do Câncer
– INCA (2011), o câncer ainda é o responsável por 13% (7
milhões de pessoas) de mortes no mundo, sendo registrados só
no Brasil cerca de 141 mil óbitos por câncer. Estes números
aumentam anualmente, e o paciente que chega para o
atendimento traz consigo, inconscientemente, estes estigmas.
O paciente oncológico percebe o diagnóstico como uma
ameaça e, a partir deste momento, sente-se como quem
caminha pelo corredor da morte, vendo o fim sem escapatória.
Depara-se com sentimentos de desesperança, angústia e medo.
Este vivencia a solidão de enfrentar a ameaça de morte, tão
iminente neste momento inicial.
A reação psicológica do paciente ao diagnóstico de câncer
começa com a suspeita. Apesar do carcinoma ser mais
tratável, atualmente ainda persiste o medo, que tem
repercussão nas atitudes e crenças em relação ao câncer
(SILVA, 2000, p.26).
Este paciente passa por momentos física e psicologicamente
dolorosos, tratamentos momentaneamente incapacitantes que,
além da dor, geram um mal estar total. Assim, o sujeito que
chega para atendimento psicológico vem muito fragilizado, na
maioria dos casos com as defesas psíquicas muito baixas,
necessitando uma escuta acolhedora. O psicólogo coloca-se
junto ao seu paciente, dá voz a alguns sentimentos e traz
esclarecimentos práticos sobre a doença, dando sentido à
angústia que toma conta do ser.
Esta é uma pessoa experiente que se torna ajuda
estrangeira, apoio que vem apaziguar essa excitação sendo
também o portador de uma outra excitação que cava, entre a
dor e o indivíduo, uma distância na qual poderá nascer uma
concepção interpretativa da experiência dolorosa: uma vida
psíquica nasce da experiência sensível ao desprender-se dela
por apoio sobre um outro humano. Pela experiência de
satisfação torna-se possível dar o passo qualitativo que,
51
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certamente sem poder ser eximido do sofrimento, permite não
parar de gozar a vida cedo demais (VILLA, 2008, p. 334).
(VENÂNCIO, 2004). Ansiedade e depressão são os mais
frequentes, sendo o acompanhamento psíquico fundamental
para um bom andamento do tratamento deste sujeito.
Desta forma, este sujeito adoecido agora encontra uma
escuta, um apoio, um lugar para enfrentar seus conflitos. Assim,
surge um fortalecimento psíquico que é fundamental no
enfrentamento do câncer.
Vários estudos referentes ao câncer comprovam que
pacientes que participam de atendimento psicológico
possuem um melhor ajustamento à doença, redução dos
distúrbios emocionais (como ansiedade e depressão), melhor
adesão ao tratamento e diminuição dos sintomas adversos
associados ao câncer e aos tratamentos, podendo até obter
um aumento no tempo de sobrevida (VENÂNCIO, 2004, p.
55).
A liga feminina de combate ao câncer
Todos os atendimentos ocorreram nas dependências da Liga
Feminina de Combate ao Câncer, da cidade de Novo Hamburgo
(RS), que é uma entidade formada por mulheres
voluntariamente associadas, com o propósito de arrecadar
fundos em prol dos pacientes oncológicos. Sem fins lucrativos,
conta com o apoio de empresas e da comunidade para oferecer
ajuda a pessoas em situação de vulnerabilidade social e que
foram acometidas por qualquer tipo de câncer. Atende tanto
homens como mulheres, acima dos 18 anos de idade. Nas suas
dependências, há uma sala destinada aos atendimentos
psicológicos, garantindo o setting e valorizando a importância e
a necessidade da psicologia junto ao adoecimento.
A Liga atende a toda comunidade carente da cidade,
fornecendo materiais como fraldas, perucas, lenços, curativos e
cadeiras de rodas, entre outros, além dos atendimentos com
nutricionista, assistente social, arteterapia, advogados e o
atendimento psicológico. Os pacientes que demonstram
necessidade de psicoterapia são entrevistados por uma
psicóloga voluntária, que faz uma escuta prévia e os encaminha
às demais psicólogas e estagiárias que trabalham
voluntariamente na Liga.
Para elucidar as especificidades destes atendimentos, será
abordado o caso da paciente apresentada como G, a fim de
preservar sua identidade. G estava com 34 anos no momento dos
atendimentos e tinha descoberto o câncer de colo de útero havia
dois anos. Já tinha passado por todas as oito sessões de
quimioterapia recomendadas por seu médico, além de 25
sessões de radioterapia e sete de braquiterapia¹. Não precisou
fazer cirurgia. Casada, tinha dois filhos com quinze e sete anos de
idade. Chegou aos atendimentos bastante fragilizada,
declarando não encontrar mais sentido em sua vida.
Ao chegar para o atendimento psicológico, a paciente G
trouxe uma grande carga de medo e ansiedade. Ao fim do
tratamento médico, ela não fez os exames de controle, uma vez
que, inconscientemente, preferiu permanecer acreditando na
cura e no seu suposto poder de controlar a morte, ao invés de
enfrentar novamente a possibilidade de um novo e doloroso
tratamento, ou ainda uma cirurgia de histerectomia total².
Afligida pelo medo da morte, G negava o adoecimento e se
culpava por isso.
O conflito da paciente ilustra o de muitos outros, pois culpa e
negação estão associadas ao processo de adoecimento de
grande parte dos pacientes oncológicos, já que, historicamente,
o câncer estava associado à vida promíscua.
Sempre foi algo a ser escondido por vir acompanhado de
muitos estigmas, como a inevitabilidade da morte e as
explicações equivocadas a respeito de sua etiologia que
atribuíam sua origem à promiscuidade ou falta de higiene [...]
(VEIT; CARVALHO, 2008, p. 16).
Muitas pesquisas apontam que o paciente oncológico é
frequentemente acometido por problemas psicológicos
Ao negar o adoecimento, a paciente buscava mostrar-se
saudável. Calava seu medo e sua dor, fazendo com que seu corpo
manifestasse esta dor psíquica através do adoecimento.
Neste caso, o câncer representou a dor de seu sofrimento
desde criança. No decorrer dos atendimentos, G falou do
abandono sofrido por seu pai aos dois anos de idade, seguido dez
anos depois pelo abandono de sua mãe. Durante o tempo em
que permaneceu com a mãe, G foi vítima de muito sofrimento,
como a falta de alimentação, além de abusos, como ouvir que ela
não deveria ter nascido, e ter de presenciar as relações sexuais de
sua mãe com diversos parceiros.
Ao ser abandonada uma segunda vez, aos 12 anos de idade e
agora por sua mãe, G demonstra pela primeira vez o desejo de
¹
²
A psicologia entendendo o câncer
Braquiterapia é uma forma interna de radioterapia, onde uma
fonte de radiação é inserida no local do tumor. Este tem se
mostrado um tratamento muito eficaz, já que a radiação atinge
diretamente o tumor de forma precisa.
Histerectomia total é uma cirurgia para a retirada do útero,
ovários, colo do útero e trompas de falópio, quando há alguma
condição patológica, sem a possibilidade de outro tipo de
tratamento.
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morrer, pensando em cometer suicídio, sem conseguir chegar ao
ato. Passa a morar com uma tia, irmã de sua mãe, que a trata
como empregada, sem garantir-lhe direitos básicos como a
educação. Aos 14 anos de idade é expulsa desta casa e, então,
acolhida por uma família que a conhecia e tinha uma filha da
mesma idade. Neste momento, G relata que foi surpreendida
pelo carinho e acolhimento, deparando-se pela primeira vez com
uma família. Novamente, surge o desejo de morrer porque,
inconscientemente, não se achava digna dos cuidados que passa
a receber.
Pode-se entender que o desejo de morte presente na
paciente não é dela, mas sim o que foi almejado para sua vida.
Corso (1996) refere a necessidade em fazer esta leitura sobre as
consequências psíquicas sofridas pela criança em ocupar o lugar
do desejo de Outro, uma vez que é neste desejo que ela se
constitui psiquicamente.
Ele pressupõe a existência de um estádio de amor objetal
passivo, no qual o adulto toma a criança como objeto de
satisfação e esta responde introjetando-o. A violação, o
trauma, a violência que ele detecta advém da condição objetal
que ele percebe no infantil, no assujeitamento ao que
chamaríamos de fantasma da mãe (CORSO, 1996, p. 70).
São estas as sequelas de constituição demonstradas por G: o
desejo de morte recebido de sua mãe e que agora, na clínica,
encontra um lugar onde pode ser visto e ressignificado. G foi
assujeitada a este desejo, tendo sido abandonada em três
momentos de sua vida. Em especial, o abandono sofrido por seus
progenitores foi por ela, inconscientemente, compreendido
como desejo de morte.
O ser humano adoece sempre como uma totalidade e
então o câncer tem um significado dentro da história pessoal
do paciente e, muitas vezes, se constitui na única maneira
suportável de viver por ser mais acessível às deficiências
adaptativas do indivíduo (ANGERAMI-CAMON, 2004, p.
79).
Assim, pode-se compreender o adoecimento de G através da
psicossomática, em que seu adoecimento físico mostra-se como
o reflexo de um adoecimento psíquico, emocional e afetivo. A
doença está além da desordem física, denotando uma
motivação profunda e secreta à paciente, que, ao longo do
atendimento, pode se confrontar aos poucos com a origem de
suas dores. Assim sendo, podemos supor que o surgimento do
câncer no útero expressa a dor da rejeição materna, estando o
tumor em um órgão diretamente ligado à geração, à
maternidade.
Acolhendo os ruídos do corpo, Freud (1914[1915], p. 99)
ressalta a organização hipocondríaca como a retirada do
'interesse da libido do mundo externo e dos objetos de amor,
concentrando-a no órgão que lhe prende atenção'. Histeria e
hipocondria aproximaram a psicanálise do fenômeno
psicossomático, defrontando-a com desafios que não eram
facilmente convocados à palavra, à expressão da vida onírica e
fantasmática, à elaboração dos trabalhos de luto; enfim, à
montagem de uma história nos moldes de um romance
familiar (TEIXEIRA, 2006, p.24).
Ao defrontar-se com o câncer, G vê concretamente a sua
condenação à morte. Revela que, ao descobrir a doença, pensa
em um primeiro momento em não tratar e simplesmente
esperar a morte. Mas encontra no apoio e carinho do esposo e
filhos a motivação para o enfrentamento necessário. Desvela a
ambiguidade de seu sentimento, a pulsão de vida e de morte, a
vontade de deixar-se morrer e a luta para viver. Enfrenta o
tratamento com muitas dores, buscando neste momento o
cuidado de sua mãe e de seu pai, tentando resgatar relações
arcaicas que foram abruptamente rompidas.
G sempre manteve contato com sua mãe, mesmo estando
distante e, neste momento de tamanho sofrimento, vai em busca
de seu pai. Encontra-o morando em uma cidade vizinha e
surpreende-se com o apoio e auxílio que passa a receber. A partir
deste momento, constituiu-se uma relação fundamental para o
tratamento de G.
Durante as sessões, é possível analisar que, ao deparar-se
com sua história passada, tão diretamente ligada ao desejo de
morte, G. consegue se desvencilhar destes elos doentios que a
mantinham presa. Passa a olhar para a vida que conseguiu
construir de forma muito resiliente. Através deste resgate, rompe
com estas relações adoecidas, percebendo de maneira única as
diferenças entre a sua forma de maternar seus filhos daquela que
observou em sua mãe.
Uma vez inscritas no corpo as trocas afetivas e linguísticas
vividas com o meio ambiente, torna-se possível ter acesso a
elas novamente desde que se saiba interrogar o corpo e
decifrar sua linguagem. Decifrar esta linguagem por meio dos
disfarces, dos sintomas e dos sonhos devidos ao recalcamento
permitiu a Freud compreender que o modo de expressão do
psiquismo no corpo é essencialmente metafórico e analógico e
que, para ser apreendido, ele exige, além de uma escuta
atenta, um trabalho de interpretação. [...] Por querer conter o
sofrimento psíquico, o corpo torna-se uma metáfora viva
desse sofrimento (DUMAS, 2004, p. 12).
Desta forma, entende-se que o corpo torna-se a fala do
sofrimento. No caso de G, essa fala comunica de forma especial a
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dor do abandono desta mãe, e este mesmo adoecimento se faz
na busca pelo resgate desta relação através dos cuidados que a
paciente necessita.
Posteriormente, será elucidado que, quando a paciente
consegue distanciar-se da figura da mãe, é que ela pode ir
novamente em busca do atendimento médico, tendo a vontade
de fazer os exames necessários para avaliar suas condições
físicas. Descobre que o câncer estava em remissão, não
necessitando mais de nenhum tratamento adicional.
Desvelando transferência com o paciente oncológico
Foi com a descoberta da transferência que Freud inaugurou o
método psicanalítico. Ele percebeu que os pacientes
necessitavam de algo que iria além de simplesmente reviver seus
traumas, para que, então, surgisse a manifestação daquilo que
havia sido recalcado. Para que isso pudesse ocorrer, havia a
necessidade de viabilizar a estes sujeitos meios os quais, mais do
que reviver, possibilitariam ressignificar os traumas sofridos.
O fenômeno da transferência é a chave da invenção desse
novo método de tratamento. A Überträgung, termo alemão
que além de transferência significa também transmissão,
contágio, tradução, versão, e até audição, ganhará, enquanto
conceito psicanalítico, o sentido de estabelecimento de um laço
afetivo intenso, que se instaura de forma quase automática e
independente da realidade, na relação com o médico,
revelando o pivô em torno do qual gira a organização subjetiva
do paciente (MAURANO, 2006, p. 16).
Portanto, a transferência pode ser compreendida como o
campo onde se estabelece o tratamento, sendo o lugar que este
sujeito tem junto ao analista para confiar seus sentimentos,
desejos, fantasias e vivências. Já o terapeuta utiliza-se da
transferência para analisar as resistências e os demais
sentimentos ali investidos pelo paciente, indicando, assim, qual o
diagnóstico e as possibilidades de tratamento.
Para Lacan, a transferência consiste na imissão que o
paciente faz no terapeuta, que é compreendido como o grande
Outro, sendo percebido como aquele que detém um saber que
virá ao encontro do desejo posto nesta relação. O sujeito
inconsciente crê que este Outro possui o conhecimento que ele
precisa para libertar-se da experiência traumática.
Na clínica com pacientes oncológicos, a transferência se
constitui com o mesmo propósito, mas com algumas
particularidades que serão abordadas a seguir, sendo ilustrada
com o caso de G.
Como já foi anteriormente mencionado, o sujeito acometido
pelo câncer chega ao atendimento psicológico psíquica e
fisicamente muito fragilizado. Além do adoecimento, há outras
questões em volta deste sujeito que podem ser classificadas
como graves, tais como a falta de dinheiro, de alimentação
adequada, falta de moradia, fortes sintomas do tratamento,
entre outros sofrimentos que estes pacientes trazem consigo.
Desta forma, surge a necessidade de um trabalho investigativo
que busque compreender este adoecimento em meio a tantas
outras questões que o cercam. Para que isto seja possível, é
fundamental o estabelecimento de uma relação de confiança
entre o paciente oncológico e o psicólogo que o atende.
Portanto, para que esta relação com o terapeuta ocorra, é
feito um acolhimento da angústia com que este paciente chega
na clínica. A ele é oferecido o apoio que necessita neste
momento, buscando trazer a clareza que ele precisa para que
consiga sair da posição de condenado à morte e coloque-se
como um sujeito desejante pela vida. Abre-se a possibilidade
deste perceber-se como sujeito único, ao mesmo tempo em que
pode voltar a ver que todos temos nossas dores e males.
De fato viver é estar sob estresse. Ser humano é
experimentar humilhações, rejeições, mudanças, separações,
desapontamentos, fracassos, triunfos, vitórias, gratificações,
esperanças e êxitos. Os acontecimentos da vida repercutem na
mente, propagam-se pelo corpo, e acabam atingindo a saúde
do indivíduo como tal (SILVA, 2000, p. 16).
Podemos afirmar, ainda, que ao chegar para o tratamento
psicológico este sujeito torna-se a própria dor que necessita de
amparo. Isto posto, nesta relação que se estabelece, o psicólogo é
aquele que pode se colocar entre o sujeito e sua dor, oferecendo
um lugar no entre, que propicia, então, um novo significado
deste sofrimento e o surgimento da fonte geradora do
adoecimento. Neste sentido, Villa (2008) sugere que a
transferência pode também ser compreendida como a
apreensão do somático, já que é esta que possibilita o tratamento
psíquico.
Nos atendimentos com G, ficou claramente estabelecido
que, na relação transferencial, ela vivenciava a psicóloga como
sua figura materna. Em meio a sua dor, colocava-se como a filha,
a criança, trazendo sua necessidade de cuidados, ao mesmo
tempo em que fazia a negação faltando às sessões. De forma
saudável, G conseguiu depositar nesta transferência suas dores,
raivas e afetos, abrindo assim a possibilidade de elaborar suas
questões.
Cada ser humano precisa para bem de se apossar de suas
plenas faculdades mentais abandonar a morada do corpo da
mãe, perdê-la, tornando-se sábio de como se faz para
reencontrá-la. Assim, quando o psicanalista oferece seu
"saber de adulto" para livrar a criança do assujeitamento ao
inconsciente dos pais, não faz mais do que querer lhes acelerar
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a morte da coisa-mãe, para que apareça a representação da
mãe, propiciar o saber que nasce da perda (CORSO, 1996, p.
72).
Houve um momento em que G abandonou o tratamento,
retomando-o posteriormente somente após um encontro com
sua mãe. Neste encontro, ela tentou expor a esta mãe um pouco
da aflição que emergiu no decorrer das sessões, mas não
encontrou ali o apoio que buscava. Ao deparar-se com esta
frustração, G consegue então retomar os atendimentos e é, neste
momento, que se abre a possibilidade de elaborar alguns de seus
traumas.
E, não obstante, é provavelmente no retorno de/para esse
sofrimento originário que se encontra o ponto onde pode se
produzir a mudança, onde a escolha entre permanecer o
mesmo e modificar-se modificando o mundo, por um instante
se torna possível de novo. Mais além de toda simpatia, de toda
a empatia e de toda antipatia, sobrevém uma exigência de
reconhecer essa dor e o saber que daí adveio ou não, saber do
sofrimento e pelo sofrimento (VILLA, 2008, p. 342).
É importante ressaltar que foi também neste momento de
sua vida que a paciente passou por uma nova bateria de exames,
a fim de avaliar a eficácia do tratamento médico que já havia
feito. A angústia e o medo permeavam os atendimentos,
demandaram uma compreensão e uma entrega da terapeuta
para que G conseguisse deparar-se com as dores psíquicas,
juntamente com toda sua fragilidade emocional.
Neste período do tratamento pelo qual G passava, a relação
transferencial tornou-se seu lugar de amparo e possibilidades.
Então, cabe ao profissional da psico-oncologia a
importante tarefa de resgatar vida nesses pacientes,
englobando os aspectos físicos e psíquicos para, assim,
permitir a eles revelarem seus medos, desejos, emoções e
sentimentos (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 77).
Recebendo o investimento de desejo oferecido pela
terapeuta, a paciente conseguiu apresentar-se como sujeito em
busca de seu próprio desejo, sem ter que se submeter novamente
ao desejo do outro. Surge, então, a possibilidade de trilhar um
novo caminho, liberta do aprisionamento desejante de morte
proveniente de sua mãe.
Se a constituição está fora do território da escolha, não é
menos verdade que há certo grau de liberdade quanto à
escolha da posição que podemos adotar diante dela. O destino
que daremos às pulsões é aquele que a constituição vai
encontrar em nossa vida e que vai se manifestar nas formas
que a disposição à transferência vai engendrar (VILLA, 2008,
p. 339).
Assim, é oferecida a G a possibilidade de separação, mas
agora de forma saudável, permitindo a elaboração do abandono
sofrido. A paciente usufrui deste momento e, baseando-se na
segurança desta relação, consegue compreender a distância
existente entre ela e sua mãe, pondo em palavras o sofrimento
que durante tanto tempo a atormentou. "Sabe Andrea, eu vivi
correndo atrás da minha mãe, sempre eu, sempre eu. Eu queria o
amor que nem eu tenho pelo G e a I (filhos), meu deus, não posso
nem pensar em fazer com eles que nem ela fez comigo.(pausa)
Mas eu acho que ela não tem pra dar. Eu queria que ela me
amasse, mas como ela vai me dar uma coisa que ela não tem?"
(SIC).
Foi esta mesma relação que serviu como um lugar onde a
paciente pode lidar com a angústia dos inúmeros exames pelos
quais passou. As vésperas destas avaliações médicas, G sempre
era tomada de uma angústia que a colocava em estado de alerta,
não permitindo que ela descansasse. Este fator se observa nos
pacientes de uma forma geral, e falar sobre o receio dos
resultados traz o alívio de grande parte desta angústia. Isto revela
o quanto esta escuta contribuiu para a diminuição do sofrimento,
abrindo caminho para que novamente possa se dar continuidade
às elaborações necessárias para o tratamento psíquico.
Os atendimentos com pacientes oncológicos têm esta
especificidade: a necessidade em lidar sempre com uma
demanda urgente que pode surgir a qualquer momento. Esta
urgência não se dá sozinha, mas em conjunto com o medo da
morte, ou ainda, diante de uma cirurgia, o medo da mutilação, a
angústia frente ao desconhecido, mas que sempre é previamente
compreendido como um mau momento a ser enfrentado.
No decorrer dos atendimentos de G, houve ocasiões em que
seu oncologista apontou a possibilidade de se fazer mais
algumas sessões de braquiterapia, o que não foi necessário. Mas,
em meio à elaboração de seus sentimentos, especialmente
aqueles relacionados a sua mãe, e o medo de ter que enfrentar
novamente o doloroso tratamento, a paciente conseguiu
enfrentar e superar esta fase, tendo o suporte desta relação
transferencial.
É necessário considerar todos os aspectos, físico,
emocional, espiritual, social ou cultural, atingindo a qualidade
de vida de todas as pessoas envolvidas no processo de
adoecimento, independentemente da fase da doença, ou seja:
prevenção do câncer, diagnóstico, tratamento, cura ou a
terminalidade (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78).
Inúmeras vezes, G pontuou que não conseguia falar deste
sofrimento com outras pessoas, sendo a psicoterapia o suporte
fundamental neste momento. Nesta etapa dos atendimentos, as
55
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sessões passavam do tempo previamente estabelecido, sendo
esta uma flexibilidade necessária para a evolução da paciente.
Diante deste suporte encontrado por G na terapia, ela
começou a trazer mais questões que marcaram sua vida e que
também podem ser relacionadas ao tumor desenvolvido. Se, por
um lado, foi extremamente benéfico, pois se abriu caminho para
que sua dor tivesse voz, por outro, houve uma precipitação de
seus sentimentos, que foram expostos no ímpeto da busca pela
cura de suas dores. Seu sentir estava fragilizado pelo momento
do tratamento médico e G tinha um medo real de morrer.
Foi necessária uma nova combinação com a paciente, na
qual, após estes atendimentos permeados pela profunda dor e
sofrimento, ela precisava de um tempo maior que uma semana,
sendo marcada nova sessão em quinze dias. Este rearranjo foi
fundamental para o bom andamento do tratamento de G, pois
ela encontrou amparo e segurança, sabendo que poderia ter o
seu tempo e a terapeuta estaria aguardando por ela. Não havia
perdas nem abandonos.
Portanto, houve a possibilidade de a paciente desenvolver
outras formas eficazes de enfrentamento da doença, permitindo
a expressão das suas emoções.
A partir disso, é necessário enfrentar, lidar, lutar diante do
diagnóstico de câncer e sabe-se que o enfrentamento vem
sendo um fator relevante para a qualidade de vida, como por
exemplo, a potencialização da esperança como estratégia
importante para a trajetória do câncer e que pode mudar o
transcorrer do tratamento (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78).
Deste modo, o adoecimento pode receber uma nova
significação, mudando a forma como ela se percebia frente ao
câncer. Se, antes, sentia-se fraca e incapaz de enfrentar o
tratamento, agora percebia a força que já possuía e que, por toda
sua vida, manteve-a lutando para sobreviver.
Considerações Finais
Compreendendo que o sofrimento físico pode ter sua causa
em um campo além do fisiológico, podendo ter sua procedência
em um local secreto e desconhecido, o fazer do psicólogo se dá na
busca desta incógnita que repousa no inconsciente. O trabalho
na clínica com pacientes oncológicos pode-se mostrar exaustivo
no que diz respeito a acolher o sofrimento tanto físico quanto
psíquico apresentado pelo paciente, tendo sempre em vista a
busca pela origem psíquica da doença organicamente manifesta.
Contudo, mostra-se extremante gratificante diante das
possibilidades apresentadas e, na maioria das vezes, muito bem
aproveitadas por estes sujeitos.
Com o entendimento de que as relações afetivas são inscritas
no corpo, pode-se pensar que, se estas se constituem de forma
adoecida, há a probabilidade deste corpo também adoecer. Cabe
ao psicólogo possibilitar o espaço de segurança que o paciente
necessita para compreender suas relações e ressignificá-las,
trazendo um novo entendimento sobre a doença. Assim, a clínica
com pacientes oncológicos torna-se o local que possibilita esta
ressignificação das inscrições subjetivas que levam ao
adoecimento.
Cada sujeito tem seu tempo para lidar com as questões que o
trazem à terapia, mas, no caso do paciente com câncer, este
tempo precisa ser muito bem compreendido, uma vez que a
possibilidade da morte é concreta, podendo ser esta a questão.
Muitas vezes, há a necessidade de avaliar qual a urgência
psíquica que deve ser trabalhada, havendo um foco muito bem
estabelecido com o paciente, sendo a transferência quem
anuncia e conduz este tratamento emergencial.
Desta forma, a relação transferencial com o paciente
oncológico surge permeada não apenas pelas fantasias, desejos
e crenças do paciente, como também pela dor física. No
estabelecimento desta relação é esta a dor que surge como a
primeira demanda. Aos poucos, abre-se espaço para que o
conflito psíquico possa surgir, convocando todos os medos e
fantasmas deste paciente a se apresentarem.
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REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Aspectos emocionais e psicossociais em pacientes
renais pós- transplantados¹
Psychosocial and emotional aspects on post
transplanted renal patients
2
Samantha Sittart Navarrete a *, Luciane Slomka b *
Resumo: As estimativas, no ano de 2011, revelaram que cerca de 10 milhões de brasileiros foram portadores de
doença renal crônica (DRC). Apesar do expressivo crescimento do número de pessoas com a patologia,
verificou-se que há relativamente poucas pesquisas sobre os aspectos emocionais e psicossociais dessa
população. O presente estudo constitui-se em uma revisão de literatura sobre a produção teórica a respeito dos
aspectos emocionais e psicossociais presentes em pacientes que realizaram transplante renal. Os resultados
indicaram prejuízos nos aspectos de ordem social, laboral e emocional – principalmente ansiedade e depressão
– que podem afetar diretamente este tipo de paciente. Na medida em que conhecemos os aspectos emocionais
dos pacientes transplantados renais, torna-se possível criar estratégias de intervenção para a melhoria da
qualidade de vida e saúde destes.
Palavras-chave: Pós-transplante renal; Aspectos emocionais; Aspectos psicossociais
Abstract: The estimates in 2011 revealed that about ten million Brazilians were suffering from chronic kidney
disease (CKD). Despite the significant growth in the number of people with CKD, it was found that there is
relatively little research on the emotional and psychosocial aspects of this population. The present study consists
in a literature review on theoretical works about the emotional and psychosocial aspects present in patients who
underwent renal transplantation. The results indicated losses in the aspects of social, labor, emotional - especially
anxiety and depression - that can affect this type of patient. To the extent that we know the emotional aspects of
renal transplant patients, it is possible to create intervention strategies for improving the quality of life and health
of these patient.
Keywords: After renal transplantation; Emotional aspects; Psychosocial aspects
1 Artigo de revisão de literatura apresentado ao Curso de Psicologia da FADERGS, como requisito parcial para aprovação na disciplina
Trabalho de Conclusão II.
a Psicóloga da FADERGS, Brasil.
* E-mail: [email protected]
b Psicóloga, Mestre em Medicina e Ciências da Saúde (PUC), Docente do Curso de Psicologia da FADERGS, Brasil.
* E-mail: [email protected]
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
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As estimativas, no ano de 2011, revelaram que cerca de 10
milhões de brasileiros foram portadores de doença renal crônica
(DRC) e a maioria não sabia de tal condição, conforme a
Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN, n.d.b). As principais
causas da DRC são o diabetes, a hipertensão arterial e a
glomerulonefrite (SBN, n.d.b). A DRC – ou insuficiência renal
crônica – caracteriza-se pela presença de lesão renal progressiva
e irreversível. Sendo diagnosticada a perda de mais de 50% da
função renal, o paciente passa a apresentar uma série de
sintomas, como inchaço, pressão alta e anemia, entre outros
(SBN, n.d.a). Em sua fase mais avançada, é chamada de doença
renal crônica terminal (DRCT) ou de insuficiência renal crônica
(IRC), na qual a função renal fica comprometida em 90%. Os
tratamentos disponíveis como terapia renal substitutiva são a
hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante renal
(Cherchiglia et al., 2010; Moura et al., 2009).
O transplante renal é a forma de tratamento na qual, por
meio de uma cirurgia, o paciente recebe um rim de um doador
vivo ou falecido. Com a realização do transplante, o paciente tem
que fazer uso de medicações que inibam a reação do corpo contra
os organismos estranhos, e, nesse caso, o rim transplantado,
evitando-se, assim, a rejeição do seu novo órgão (SBN, n.d.c). É
imprescindível que, após esse procedimento, o paciente tenha
um acompanhamento médico permanente (Castro, n.d.b).
Salienta-se ainda que o transplante renal não é a cura, mas,
sim, uma forma de tratamento, ou seja, uma alternativa para a
melhoria na qualidade de vida do paciente (Baron, 2010).
Mesmo realizando o transplante renal, o paciente continua sendo
portador de uma doença crônica (Ravagnani, Domingos &
Miyazaki, 2007). Entretanto, Ravagnani et al. (2007) afirma, com
base em seu estudo sobre Qualidade de Vida Pré e Póstransplante, que não houve uma mudança significativa na
qualidade de vida dos pacientes pós-transplante, comparados
aos pacientes pré-transplante. Um dos fatores associados a esse
resultado é o estresse e a preocupação quanto à saúde e aos
efeitos colaterais das medicações.
De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2002, p.194), “as
emoções são expressões afetivas acompanhadas de reações
intensas e breves do organismo, em resposta a um
acontecimento inesperado ou, às vezes, a um acontecimento
muito aguardado”. É possível observar nas emoções uma relação
entre os afetos e a organização corporal, ou seja, as modificações
e as reações que ocorrem no organismo. No caso dos pacientes
transplantados, muitos fatores influenciam a estabilidade das
emoções. Neste sentido, a adaptação a esta nova condição física
exige cuidados que mudam o modo e a qualidade de vida de
cada um, o que pode gerar dificuldades emocionais e
psicossociais, e é deste sofrimento psíquico que o presente
estudo pretende dar conta.
Metodologia
Para a realização deste estudo, utilizou-se o método de
pesquisa bibliográfica que, segundo Gil (2011), é desenvolvido
de acordo com um material já elaborado em livros, artigos
científicos, entre outros. A principal vantagem desse método é o
de permitir ao pesquisador “a cobertura de uma gama de
fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia
pesquisar diretamente”(Gil, 2011, p.50).
Para assegurar a confiabilidade dos dados obtidos, realizouse uma profunda e cuidadosa análise desses dados, para que
incoerências ou contradições fossem checadas de forma
minuciosa (Gil, 2011). A partir disso, a busca de bibliografias
para esse estudo deu-se em livros de autores consagrados no
assunto. Além disso, pesquisaram-se artigos científicos em
bases de dados já reconhecidas pela comunidade científica, tais
como Scielo, Lilacs e Pubmed. Os descritores que foram
utilizados nas bases de dados para esse estudo são: “póstransplante renal”, “transplante renal” e, posteriormente, foi feita
uma busca mais refinada, com os termos “aspectos psicológicos”
e “emoções”. Para tal, algumas tarefas básicas foram realizadas: a
exploração de fontes bibliográficas, a leitura do material
pesquisado e a análise desse material encontrado para o
desenvolvimento do estudo.
A doença renal crônica
Os rins são órgãos essenciais e vitais para funcionamento e
manutenção da homeostase do corpo humano (Bastos et al.,
2004). Eles são responsáveis por algumas funções, dentre elas
eliminar as impurezas do sangue, regular a pressão arterial,
produzir hormônios, bem como participar na formação e na
manutenção dos ossos e estimular a produção de glóbulos
vermelhos (Castro, n.d.a). A perda de 50% da capacidade de
filtragem leva à Doença Renal Crônica (DRC), e a perda de 90%
dessa função, à Doença Renal Crônica Terminal (DRCT).
Atualmente, a incidência de pacientes com DRC cresce em uma
alta escala em todo o mundo, inclusive no Brasil (Alvares, 2011).
A DRC apresenta estágios que correspondem ao tratamento
ao qual o paciente será submetido. O primeiro estágio do
tratamento chama-se conservador, em que o paciente faz uso de
medicamentos como forma de reduzir os efeitos da doença. O
tratamento conservador não leva à cura total, mas ameniza o
processo de avanço da doença. Conforme a evolução da doença,
o paciente receberá outras formas de tratamento: a diálise
peritoneal, a hemodiálise e o transplante renal (SBN, n.d.c).
A diálise peritoneal é uma opção de tratamento através do
qual o sangue que circula nos vasos sanguíneos do peritônio, que
fica em contato com um líquido de diálise, é colocado na
cavidade abdominal através de um cateter. Isso permite que as
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substâncias que estão acumuladas no sangue, como ureia,
creatinina e potássio, sejam removidas, bem como o excesso de
líquido que não está sendo eliminado pelo rim. Neste
procedimento, o paciente possui autonomia, pois ele mesmo ou
algum membro da família e/ou cuidador treinado pode realizar a
troca do líquido. Porém, este tipo de tratamento requer cuidado,
já que há riscos de infecções porque o procedimento ocorre por
meio de um cateter (SBN, n.d.c).
A hemodiálise é um tratamento para pacientes que sofrem
de insuficiência renal aguda ou crônica grave, em que o sangue é
filtrado por uma máquina, e as substâncias acumuladas no
sangue são removidas, assim permitindo que o paciente
continue vivendo. A hemodiálise é realizada em hospitais ou em
clínicas especializadas, com frequência de no mínimo três vezes
por semana, e cada sessão tem duração de aproximadamente 3 a
4 horas. (SBN, n.d.c).
O processo de transplante
O transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na
implantação de um órgão sadio para substituir a função
anteriormente perdida pelo rim. O novo órgão implantado pode
ser advindo tanto de um doador vivo como de um doador
cadavérico (Castro, n.d.a).
Os primeiros transplantes renais surgiram na década de
1950, sendo, em Paris, com doadores cadáveres e, em Boston,
com doadores vivos (Manfro & Gonçalves, 2006). No Brasil, os
primeiros transplantes de rim foram realizados na década de
1960 em São Paulo (Cherchiglia, Queiroz & Junior, 2007). Já o
Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e as primeiras centrais
de transplantes surgiram no ano de 1997 (Cherchiglia et al.,
2007).
De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de
Órgãos, em junho de 2013, o número de pacientes ativos em lista
de espera por um rim era de 19.913 no Brasil e de 1.049 no Rio
Grande do Sul (ABTO, 2013). Já o número de transplantes
permanece o mesmo referente ao ano de 2012. Entretanto,
houve um aumento de 4,5% no transplante com doador falecido
e uma queda de 11,6% com doador vivo. Nos últimos 10 anos,
houve uma queda preocupante de 27% no número de
transplantes renais com doador vivo (ABTO, 2013). O transplante
de órgãos está normatizado pela Lei nº 10.211, de 23 de março
de 2001.
Segundo Flores e Thomé (2004), a espera do órgão a ser
transplantado é geradora de expectativas aos pacientes em lista
de espera. A percepção dos pacientes acerca dessa espera é
marcada por sentimentos ambivalentes de medo, culpa, fé e
esperança. Muitos pacientes não resistem à espera do órgão a ser
transplantado, e outros nem chegam a realizar os exames
preparatórios para a realização do transplante, mesmo já tendo
indicação médica, tanto por medo de não passarem nesses
exames quanto pelo medo da cirurgia e da própria rejeição do
novo órgão (Kazley, Simpson,Chavin & Baliga, 2012).
O pós-transplante
Com a realização do transplante, o paciente continua com
uma rotina demandada pelos cuidados pós-cirúrgicos, o que
inclui consultas regulares que despertam emoções estressoras,
especialmente, nos seis primeiros meses (Ravagnani et al.,
2007). Além das preocupações com o cuidado continuado, o
mesmo autor ressalta que podem surgir sentimentos e emoções
oriundos das preocupações com o retorno ao trabalho, o convívio
com a família e as responsabilidades do cotidiano.
Quanto aos prazos de uma sobrevida pós-transplante renal,
estes são incertos, tendo em vista que as rejeições podem ocorrer
a qualquer momento. No entanto, estudos apontam que uma
parcela significativa dos pacientes transplantados tem sobrevida
de, no mínimo, cinco anos e, no máximo, de 10 anos (Cassini,
2009; Marinho, 2006; Miranda et al., 2003; Peres, 2002 apud
Fontoura, 2012). Porém, estudos mais recentes evidenciaram
que a sobrevida do rim pode chegar até os 15 anos (Souza,
2006).
Hoje, em média, 20% das perdas de enxertos se dão pela não
aderência ao tratamento medicamentoso (Marinho et al., 2005).
Alguns fatores colaboram para tal, sendo um deles a
desinformação do próprio paciente, por achar que, como ele
recebeu um novo órgão, já está apto a parar por conta própria a
medicação. O resultado sempre negativo dessa atitude aparece
em um ou dois meses, quando o rim para de funcionar
novamente (Marinho, Santos, Pedrosa & Lucia, 2005). Portanto,
é fundamental que o paciente siga à risca uma dieta nutricional
restritiva e que faça uso de medicamentos imunossupressores
para o resto da vida, entre outros cuidados que precisará ter, para
que doenças oportunistas não apareçam. Muitas variáveis
influenciam na estimativa de vida do paciente transplantado e
exigem maiores cuidados desde as primeiras horas do
transplante até o primeiro ano da implantação do enxerto
(Manfro & Veronese, 2004).
Aspectos emocionais
Vasconcellos (2008) relata, em seu estudo, que há uma
diversidade de perspectivas teóricas acerca das emoções. Desta
forma, compreender uma definição de emoção depende da
perspectiva teórica em que se encontra implícita essa definição.
Zajonc (1998, apud Vasconcellos, 2008, p.19) refere-se às
emoções “como sistemas complexos que implicam recursos
psicológicos, interpessoais, sociais, culturais, além de
envolverem processos neurofisiológicos, neuroanatômicos e
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neuroquímicos” aos quais se ligam à cognição e à motivação
também, e estão presentes em todos os tipos de
comportamentos humanos. Logo, definir completamente as
emoções representa um desafio e, devido a isso, o autor limita-se
a considerá-las como uma reação emocional. A capacidade que
se tem para reagir emocionalmente é a de distinguir entre as
situações presentes ou futuras, que podem ser ameaçadoras ou
benéficas, e responder adequadamente a elas. Tal definição
encontra-se de acordo com a perspectiva teórica desse autor, que
considera o afeto como uma reação primária a todo e qualquer
evento (Zajonc, 1998 apud Vasconcellos, 2008). As emoções, tais
como a raiva, o medo, a tristeza, o desespero, a alegria, a
vergonha e a surpresa, estão vinculadas diretamente à vida
afetiva da pessoa. As referidas emoções podem ser expressas
tanto de forma difusa quanto de forma mais consciente, ou,
ainda, podem estar encobertas (Bock et al., 2002).
O processo de transplante é permeado de aspectos e reações
emocionais contraditórias, com as quais o paciente precisa lidar.
Há uma perspectiva de mudança no panorama de vida do sujeito
após a realização do procedimento, todavia o conflito entre a
dúvida de o transplante dar certo, não ocasionando na rejeição, o
medo do processo cirúrgico e o da própria morte podem dar
lugar a sentimentos repletos de esperança e fé e, principalmente,
de não mais depender dos procedimentos dialíticos (Baron,
2010).
No estudo realizado por Camargo, Quintana, Weissheimer,
Junges e Martins (2011), os pesquisadores verificaram que os
pacientes que se encontravam em hemodiálise tinham uma
percepção muito negativa da realização do transplante em si. Tal
percepção estava associada à ideia de morte ou insucesso do
procedimento, pois a totalidade dos entrevistados disse já ter
perdido colegas que fizeram o transplante e outros que
retornaram à hemodiálise por conta da rejeição. Os pacientes
renais crônicos, de modo geral, têm certa dificuldade em
expressar seus sentimentos acerca do adoecimento,
diferentemente de pacientes com outros tipos de doença
orgânica (Rudnicki, 2006).
O recebimento de um órgão, no caso o rim, é permeado por
fantasias que podem ser de cunho persecutório e também ser
variáveis, dependendo da forma de recebimento do órgão
(Baron, 2010). Quando o recebimento do órgão parte de um ente
da família ou mesmo de alguém conhecido, isso pode gerar
crises de identidade, de acordo com a relação do paciente com o
doador. Baron (2010, p.381) destaca que perguntas e
indagações, como “Tenho medo de ficar com os defeitos da
minha irmã. Será que vou virar mulher? Terei trejeitos femininos?
Vou engordar até ficar do tamanho do meu irmão? Vou perder
meu senso de humor?” são frequentes nesses casos e podem
interferir no equilíbrio emocional do paciente.
No caso do recebimento de um rim de um doador cadavérico,
o paciente pode apresentar tanto crise de identidade quanto
reações de ansiedade por conta do medo do desconhecido
(Baron, 2010). O paciente, por estar diante do anonimato deste
órgão, pode também enfrentar o vazio existente diante da figura
do doador, que se constitui como uma tela branca para projeções
do universo psíquico (Leis, 2013; Pereira, 2006).
Alguns sintomas psiquiátricos podem aparecer no pósoperatório do transplante renal, bem como ao longo desse.
Arapaslan, Soykan, Soykan e Kumbasar (2004) asseveraram em
seu estudo que a frequência de transtornos psiquiátricos, mesmo
depois de um transplante de rim bem sucedido, é muito alta:
50% dos pacientes pesquisados apresentaram diagnóstico
psiquiátrico, sendo 25% dessa amostra acometidos de
depressão grave. Nas primeiras 24 horas do transplante, podem
ocorrer tanto sintomas de abstinência de medicamentos
utilizados anteriormente como o delirium caracterizado por um
estado confusional agudo, comprometendo, por conseguinte, a
cognição, o humor, a percepção, o pensamento e o sono (Manfro
& Blaya, 2004). Os sintomas de ansiedade estão presentes desde
o pré-transplante e podem permanecer por alguns dias após o
transplante (Manfro & Blaya, 2004).
As alterações de humor tendem a ocorrer tanto em episódio
depressivo maior quanto em episódio maníaco. No episódio
depressivo maior, o paciente apresenta humor deprimido ou
mesmo perda do interesse em quase todas as atividades por um
período mínimo de duas semanas. Também encontram-se
presentes sintomas como diminuição do apetite, perturbação do
sono, diminuição de energia, sentimento de culpa ou desvalia e
prejuízo na capacidade de pensar. O estado de depressão pode vir
associado à morbidade pós-transplante, ocasionando a não
adesão medicamentosa. Tal conduta pode levar à rejeição do
órgão, assim tendo o paciente que retornar à diálise. Os pacientes
que se deparam com essa situação tendem a ter tentativas de
suicídio (Manfro & Blaya, 2004). No episódio maníaco, o
paciente apresenta um humor anormal, juntamente com
sintomas de grandiosidade ou autoestima elevada, pressão por
falar, fuga de ideias, entre outros. Se essas alterações não forem
tratadas, há risco de perda do órgão também pela não aderência
medicamentosa (Manfro & Blaya, 2004).
Após o transplante, com a ingestão dos imunossupressores,
podem ocorrer tanto o aumento do peso como problemas
dermatológicos na face. As mulheres, muitas vezes, deixam de
tomar a medicação por conta dessas alterações (Manfro & Blaya,
2004).
Os mesmos autores assinalam que a rejeição do rim pode ser
de ordem psicológica, já que está associada à falta de adesão ao
tratamento, ocasionada por depressão, dificuldade de memória
e abuso de substâncias, ou à reação de ajustamento relacionado
ao estresse psicológico e à alteração da imagem corporal.
Silva (2011) constatou em seu estudo que 37,5% dos
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pacientes transplantados apresentaram ocorrência no
comprometimento do sono. Já Sabbatini et al. (2005, apud
Silva, 2011) observou que a qualidade do sono de pacientes
transplantados renais pode ter não somente aspectos
psicológicos envolvidos, como também comorbidades da
própria doença renal.
A depressão pode ocorrer em receptores, doadores, doadores
não compatíveis e eventualmente nos familiares (Castro, n.d.a).
De acordo com Zimmermann, Carvalho e Mari (2004), a etiologia
da depressão é usualmente associada a uma perda, e as perdas
são normalmente numerosas e duradouras para o paciente com
doença renal. Existe a perda da função renal, da sensação de
bem-estar, de seu papel tanto na família quanto no trabalho,
perda do tempo, de fontes de recursos financeiros, da função
sexual, entre outras. A isso é preciso acrescentar as características
da personalidade do paciente, além de uma eventual
predisposição genética para depressão.
Outro fator que incide na estabilidade emocional do paciente
transplantado é a ansiedade referente ao próprio medo da perda
do novo órgão, e o paciente geralmente apresenta um sofrimento
psíquico maior do que o sofrimento físico (Garcia, Souza &
Holanda, 2005). Em um estudo com pacientes chineses
transplantados, verificou-se que os principais fatores estressores
identificados foram o medo da rejeição, a interação
medicamentosa bem como os efeitos colaterais, a incerteza
sobre o futuro, o medo de infecção e o custo despendido (Kong &
Molassiotis, 1999). Diante disso, é essencial que haja uma
atenção específica para ansiedade e depressão, pois o quanto
antes tais comorbidades psiquiátricas forem detectadas e
tratadas, melhor será, em curto prazo, o bem estar geral do
paciente (Noohi et al., 2007).
Baines, Joseph & Jindal (2002) compararam dois grupos de
pacientes transplantados, sendo um grupo que recebia
tratamento psicoterápico e outro não. Como resultado, o grupo
que realizou acompanhamento psicoterápico apresentou
menores escores para depressão.
De acordo com a pesquisa realizada por Weng, Dai, Huang e
Chiang (2009), os pacientes transplantados não relatam
mudanças expressivas no pós-transplante, pois muitos cuidados
ainda são demandados. Os mesmos autores sugerem que se
trabalhe a autogestão dos pacientes transplantados, pois, se
aprenderem a detectar precocemente os sintomas de uma
possível rejeição, terão mais confiança e bem estar.
Aspectos psicossociais
Quando o paciente renal está em tratamento dialítico, ele é
amparado pelo governo e recebe tanto o benefício de auxíliodoença quanto a isenção do transporte público. Além do amparo
do governo, nesse período, o paciente também conta com o
auxílio da rede pública de saúde e com apoio de seus familiares e
ou cuidadores. Com a realização do transplante e o sucesso desse
tratamento, o paciente perde o benefício cedido
temporariamente pelo governo, tendo que retornar ao mercado
de trabalho (Silva, 2011), o que também irá interferir no quadro
emocional do paciente. Todavia, esse período pode ser marcado
por conflitos emocionais, pois, de um lado, ele está livre da
dependência da máquina de hemodiálise e, por outro, tem que
lutar pela sua sobrevivência financeira (Silva, 2011). É uma fase
em que o paciente terá tanto a implicação com o seu
autocuidado quanto com a sua autogestão financeira. Overbeck
et al. (2005) constatou em seu estudo que, apesar de os
pacientes apresentarem uma boa recuperação física e maior
qualidade de vida pós-transplante renal, o índice de reinserção
no mercado de trabalho ainda é baixo.
É devido a todas estas questões de ordem social e emocional
que, em 1978, Norman Levy, juntamente com um grupo de
psiquiatras americanos da cidade de Nova York, preocupados
com a adaptação psicológica e social dos pacientes renais,
fundou um movimento chamado de psiconefrologia (Matta,
2000). Hoje, a psiconefrologia “representa a área de interface
entre a psicologia e a nefrologia” (Diniz, 2006, p.588) que se
utiliza de referenciais teóricos da psicologia da saúde.
Atualmente, nos livros e manuais de nefrologia, há um capítulo
destinado aos aspectos psiquiátricos e psicossociais dos
pacientes renais, mas ainda há uma escassez de estudos que
envolvam os aspectos emocionais após a realização do
transplante renal, o que foi almejado no presente estudo.
Considerações Finais
Através desse estudo, pôde-se reforçar o quanto o paciente
renal é acometido por uma gama de sentimentos desde o
diagnóstico da doença até o pós-transplante renal. A partir da
revisão de literatura realizada, foram levantados aspectos de
ordem social, laboral e emocional – principalmente ansiedade e
depressão – que podem afetar este tipo de paciente. É
primordial que se busque um entendimento o mais completo
possível sobre os atravessamentos desse adoecimento desde o
seu início. Dessa forma, espera-se facilitar a compreensão e,
consequentemente, a aplicação de intervenções psicoterápicas.
As adaptações físicas e emocionais de cada paciente
dependerão de diversos fatores, que vão desde a informação
precisa da doença e as suas possibilidades de tratamento até a
sua condição após a realização do transplante. A relação do
paciente com a doença, o órgão doente e o novo que será
recebido, pode despertar no indivíduo variadas emoções ou
ainda estar refletindo emoções inconscientes, as quais o corpo
pode manifestar através da doença. Salienta-se que, mesmo
tendo uma base dos aspectos emocionais que circundam o
62
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 58-65
paciente em relação à doença renal, o ser humano é subjetivo,
sente e reage de formas diferentes frente ao adoecimento e a
cada fase da doença.
Através dos dados levantados, foi sobressalente a
porcentagem de rejeições do órgão transplantado pela não
aderência ao tratamento. Entretanto, essa porcentagem pode ser
ainda maior, pois rejeições de outras ordens também podem
acontecer. Neste estudo, não foram contemplados os números
reais dessas perdas, já que não foi possível o acesso preciso a
essas informações devido à limitação de tempo, mas é de grande
importância que essas informações sejam levantadas nos
próximos estudos.
De forma geral, os achados da presente revisão de literatura
foram ao encontro do que se esperava com relação ao sofrimento
do paciente e às novas adaptações no pós-transplante renal.
Contudo, ainda se fala pouco sobre a etapa do pós-transplante, o
que resultou em um trabalho mais minucioso na busca de
literatura. Há mais estudos relacionados aos processos dialíticos.
Com a realização deste estudo, foi possível perceber o quanto
é necessário o aprofundamento nas necessidades do paciente, a
fim de propor intervenções terapêuticas que possam minimizar
o sofrimento vivenciado no enfrentamento do pós-transplante
renal. O acompanhamento psicológico, grupos de autoajuda,
psicoeducação e psicoterapia breve de apoio seriam indicações
pertinentes para esse público. Uma rede de apoio é fundamental
nesse processo, bem como um atendimento multidisciplinar. É
imprescindível que o psicólogo trabalhe com um olhar sistêmico,
amplo, acerca das questões que permeiam o pós-transplante, o
que faz chamar atenção para o quanto é essencial o trabalho em
uma equipe multidisciplinar.
É importante ressaltar igualmente que o estudo não teve o
objetivo de generalizar as suas conclusões, entretanto é
necessário que mais pesquisas dessa natureza sejam realizadas,
de modo que possam contribuir para melhores condições
psicossociais e de qualidade de vida do paciente renal após a
realização do transplante. Cabe ressaltar também que esse
estudo, por ser um trabalho acadêmico, como parte de conclusão
do Curso de Psicologia, contou com um tempo reduzido para um
aprofundamento em uma temática tão multifacetada e
profunda, o que despertou na pesquisadora a vontade de
prosseguir realizando mais pesquisas nesta área.
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REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
ARTIGO PREMIADO
Motivações para Adotar e Relacionamento na Família Adotiva:
Análise de um Filme Infantil
Esse é um artigo premiado. Numa sessão diferente teremos dois
artigos que receberem o Prêmio Estudante. Esse é um deles.
2
Gabriela Vescovi a
Resumo: A adoção é um tema que sempre esteve presente no curso da humanidade. Ainda assim, são escassos
os estudos que abordam este tema na perspectiva de quem adota. O presente trabalho teve como objetivo
identificar, na história de um filme infantil, as motivações e as expectativas do adotante quanto à adoção,
buscando, também, apontar as influências que estas questões podem ter no relacionamento familiar. O filme
analisado foi “Meu Malvado Favorito”, no qual o personagem principal Gru adota três irmãs órfãs. Utiliza-se da
Teoria do Apego, de John Bowlby, para o entendimento da ligação construída entre os personagens. Pode-se
pensar que as motivações, conscientes e inconscientes, necessitam ser identificadas e elaboradas para que não
interfiram negativamente na construção de um relacionamento familiar saudável. Ao final, ressalta-se a
importância da atuação do psicólogo.
Palavras-chave: Adoção, Apego, Motivação para adoção, Relacionamento Familiar
a
Psicóloga – CRP 21554.
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
66
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73
O tema da adoção é antigo no curso da humanidade,
existindo, no entanto, imprecisão quanto ao surgimento desta
prática em termos históricos (Pereira e Nunes, 2010). No Brasil, as
primeiras leis sobre adoção datam do período compreendido
entre o final do século XIX até a metade do século XX, sendo a
inovação mais relevante da legislação de 1965 a introdução da
“legitimação adotiva”, segundo a qual filhos adotivos passaram a
ser considerados legítimos, adquirindo os mesmos direitos dos
filhos biológicos, tornando-se o ato de adotar irrevogável
(Bittencourt, Pereira, Forster, Orengo, Fuchs, Sternberg e Breda,
2009). Observa-se, no último século, no mundo ocidental – a
partir de uma nova concepção de infância –, que as legislações
pertinentes à adoção se abrandaram, tornando-se menos
restritivas e mais preocupadas com o bem-estar do adotando
(Campos e Costa, 2001).
No Brasil, o início das investigações sobre adoção é muito
recente (Weber, 1999). Dessa maneira, o desejo de estudar a
adoção deu-se pela necessidade de entendimento dessa prática
sob a perspectiva dos adotantes para que se possa
verdadeiramente compreender as vicissitudes do processo
adotivo, não somente para a resolução de possíveis dificuldades
como também para a prevenção destas. Para aprofundar o
entendimento na questão da adoção, pretende-se abordar certos
aspectos da Teoria do Apego, de John Bowlby, as motivações em
adotar e a repercussão destas na relação entre a família, os pais e
os filhos adotivos. Após, estas questões serão discutidas em
relação ao filme infantil “Meu Malvado Favorito”, à luz da
literatura sobre o tema. Cabe ressaltar que as análises realizadas
no presente trabalho referentes ao filme se basearam em
suposições a partir dos dados apresentados na história da
narrativa e na literatura científica acerca do tema.
Alguns autores (Weber, 2001; Brodzinsky, Schechter e Henig,
1993) utilizam-se da Teoria do Apego de Bowlby para
entendimento da criação do vínculo entre o bebê e sua mãe¹ nos
primórdios do desenvolvimento humano, e a comparação deste
processo no caso de crianças adotadas. Os postulados de Bowlby
serão aqui brevemente descritos como forma de compreensão da
importância das relações com as figuras materna e/ou paterna
no princípio da vida para o adequado desenvolvimento
emocional e para compreensão da vinculação que ocorre entre os
pais e os filhos adotivos.
A Teoria do Apego de Bowlby
A capacidade de estabelecer laços emocionais íntimos com
outros indivíduos é considerada como o traço principal do efetivo
¹ No presente trabalho, assim como nos escritos de John Bowlby,
o termo mãe é empregado para representar qualquer figura de
apego do bebê, podendo ser de fato a mãe ou pai biológicos, os
pais adotivos ou qualquer outro cuidador significativo.
funcionamento da personalidade e da saúde mental (Bowlby,
1989). Conforme a Teoria do Apego, desenvolvida por este autor,
uma criança seguramente apegada tende a explorar para longe
de sua figura de apego, quando sabe que seus pais estão
acessíveis e serão receptivos quando requisitados. No entanto,
quando alarmado, cansado ou sentindo-se mal, por exemplo, o
indivíduo sente a urgência da proximidade com esta figura. Este
seria o modelo de exploração a partir de uma base segura,
representativo da interação entre a criança e os pais, descrito
primeiramente por Ainsworth em 1967 (Bowlby, 1989). Assim
como muitos outros tipos de relacionamento social, o
relacionamento pais-filhos é complementar (Bowlby, 1969).
Para o autor, no curso natural dos eventos, o comportamento de
um é o complemento do comportamento do outro. Dessa forma,
na definição do autor, o apego limitar-se-ia ao comportamento
dirigido a alguém considerado mais capaz de fazer frente à
situação, enquanto o cuidado especificaria o comportamento
complementar para com alguém considerado menos capaz de
assim agir. Por isso, Bowlby refere-se a esta relação como apegocuidado.
O autor revela, com sua teoria, a influência que a relação da
díade mãe-bebê exerce sobre o desenvolvimento humano. Para
Weber (2001), segundo esta teoria, o apego estabelecido entre o
bebê e sua mãe é o protótipo de todas as relações que serão
criadas em seguida. Dessa forma, quando ocorrem perdas e
separações em relação à figura de apego, Bowlby (1989) aponta
os cuidados institucionais prolongados e as trocas freqüentes da
figura materna durante os primeiros anos de vida como danosos
ao desenvolvimento da personalidade. Neste contexto, o
processo de adoção surge como uma das formas de separação da
criança em relação a sua primeira figura de apego.
Processos Psíquicos do Adotar
Parece ser consenso na literatura que toda a filiação é, antes
de tudo, uma adoção (Weber, 1997; Sonego e Lopes, 2007;
Peccin e Oliveira, 2009). A adoção, neste sentido, é entendida
aqui como o imprescindível lugar do filho que precisa ser criado
no psiquismo dos pais, sejam eles adotivos ou biológicos. Ducatti
(2004) corrobora esta visão quando afirma que o desejo de
maternar é determinante para que a mulher, gerando ou não um
filho, obtenha o status de mãe. Essa autora define, então, funções
materna e paterna como a ocupação do lugar de mãe/pai,
independentemente do aspecto biológico.
A adoção, do ponto de vista jurídico, é um procedimento
legal que consiste em transferir todos os direitos e deveres de pais
biológicos para uma família substituta, conferindo para crianças
e adolescentes todos os direitos e deveres de filho, quando e
somente quando forem esgotados todos os recursos para que a
convivência com a família original seja mantida (Associação dos
67
Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 66-73
Magistrados Brasileiros, n. d.). Sob outro enfoque, a adoção pode
ser entendida como a inscrição da criança ou do adolescente em
uma simbologia familiar (Rosa, 2008). Então, neste contexto, ser
adotado pressupõe uma situação anterior de separação e
abandono, interrompendo uma relação iniciada entre a criança e
a sua mãe biológica na gestação (Weber, 1997; Pereira e Nunes,
2010).
Uma das características essenciais do ser humano é o desejo
de procriação e continuidade por meio da experiência da
maternidade e da paternidade (Levinzon, 2004). Portanto, a
filiação e também a adoção de uma criança são projetos
narcísicos por excelência (Ghirardi, 2008). Para Freud (1914), o
desejo de ter filhos é também o desejo pela imortalidade do ego.
De acordo com Freud, o amor dos pais para com os filhos
relaciona-se ao narcisismo renascido destes pais, que há muito
abandonaram. Os pais depositarão nos filhos suas frustrações,
aspirações e aquilo que tomam como ideal (Ghirardi, 2008).
Neste sistema narcísico, a criança teria, então, a incumbência de
concretizar os sonhos que os pais jamais realizaram (Freud,
1914), alcançando, assim, uma forma de imortalidade.
Posto isto, pode-se notar a importância dada por Freud ao
reconhecimento do lugar do filho no imaginário dos pais. Outros
autores, como Sonego e Lopes (2007) e Ducatti (2004),
compartilham desta visão. Para eles, tanto nos casos de pais
biológicos quanto de adotivos, qualquer sentimento dirigido ao
bebê real passou antes pelo seu imaginário. Ainda de acordo com
os autores, esse filho imaginário deve ser gradualmente
abandonado pelos pais, os quais necessitarão passar por um
processo de luto pela“perda”do bebê imaginado frente ao real.
Entretanto, existem distinções entre a filiação adotiva e a
biológica. Dentre estas, para a filiação adotiva, pode-se citar a
indeterminação do tempo de espera pelo filho, as diferenças
físicas entre pais e filhos, as lacunas no passado da criança ou do
adolescente referente às suas origens. Conforme Weber (2001),
uma destas distinções é a possibilidade de os pais adotivos
fazerem escolhas sobre características da criança adotada (idade,
gênero, raça, dentre outras). Em pesquisa conduzida por esta
autora, da qual participaram 240 pais adotivos, a maioria destes
indicou que escolher a criança a ser adotada seria melhor porque
garantiria melhor afeto. No entanto, o estudo demonstrou que
não é a possibilidade de escolha que determina mais ou menos
dificuldades no relacionamento durante a vida.
Para Reppold e Hutz (2001), outra diferença entre a filiação
adotiva e biológica é a exposição dos pretendentes a um processo
avaliativo realizado para fins de habilitação à adoção. As
entrevistas com equipe psicossocial, uma das etapas deste
processo, visam conhecer as reais motivações e expectativas dos
candidatos à adoção (AMB, n.d.). A investigação destes
interesses dos pais ao efetuar uma adoção é um aspecto
fundamental, visto que esta variável é um indicador da qualidade
da interação entre pais e filhos (Brodzinsky, Smith e Brodzinsky,
1998). Levinzon (2004) está de acordo com esta visão quando
afirma que “a função que uma criança tem para uma família
determina inúmeras vezes estereótipos e caminhos traçados
inconscientemente que podem representar posteriormente um
fardo para a criança e para a família em geral”(p. 16).
Frente ao exposto, uma questão coloca-se: o que leva as
pessoas a desejarem adotar?
Motivações para a Adoção
Há diversos motivos que levam pessoas a desejarem a
adoção. A literatura comprova que a principal motivação para
adotar dá-se, atualmente, pela infertilidade de ambos ou de um
dos membros do casal (Weber, 2001; Reppold e Hutz, 2003). Isso
porque, conforme Ebrahim (2001), a adoção, no Brasil, é
comumente vista como uma das soluções para a infertilidade,
constituindo uma das razões para a procura de bebês.
Muitos autores entendem a infertilidade como uma ferida
narcísica para os pais, pois interromperia suas fantasias de
continuidade biológica e imortalidade (Levinzon, 2006; Levy,
Pinho e Faria, 2009). O indivíduo infértil se vê privado de uma
importante defesa na sua luta contra a morte, que é a procriação
(Levinzon, 2004). Nestes casos, o adotar pode vir acompanhado
de sentimentos de desqualificação dos pais e da desvalorização
da adoção em si, surgindo diante do olhar parental o filho que
revela a incapacidade de gerar (Ghirardi, 2008). Sentimentos de
perda, decepção e luto podem fazer-se presentes (Levinzon,
2004). Contudo, Zavaschi (1979) revela que, no contexto da
infertilidade, a adoção pode surgir como resolução de problemas
pessoais, matrimoniais e familiares decorrentes da dificuldade
ou incapacidade de ter filhos biológicos. Assim, pode ocorrer
uma supervalorização da adoção, chegando, conforme esta
autora, a um extremo de negação da filiação adotiva e tentativa
de aproximação com a filiação biológica (através de práticas
como simulação da gestação e não revelação da adoção à
criança).
Outra motivação possível para a adoção é o altruísmo,
definido por Reppold e Hutz (2003) como comportamento prósocial que visa a atender as necessidades alheias em detrimento
de benefícios ou interesses particulares. Em estudo de Weber
(2001), 34,6% dos 240 pais adotivos participantes alegaram
motivação social ou caridosa e religiosa, ou seja, adotaram para
ajudar uma criança ou um adolescente em situação de risco,
apesar de terem filhos biológicos. Na mesma pesquisa, a autora
percebeu que os pais adotivos motivados pelo altruísmo tendem
a ser mais críticos em relação a seus filhos, atribuindo-lhes maior
número de atributos negativos do que os pais cuja motivação foi
a infertilidade.
Por fim, em revisão da literatura, Reppold e Hutz (2003)
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demonstram que adoções motivadas pela perda recente de um
filho ou de um parente próximo implicam potenciais
dificuldades de adaptação decorrentes da fragilidade em que se
encontram. Isto porque, informam os autores, o luto a ser
elaborado pode ser um obstáculo para a execução de tarefas
importantes no contexto da maternidade, como a criação de
uma rede de apoio adequada. Existem, ainda, outras motivações
para a adoção, que não serão tratadas no presente trabalho, tais
como a necessidade de preencher a solidão, proporcionar
companhia a um filho único (Gondim, Crispim, Fernandes,
Rosendo, Brito, Oliveira e Nakano, 2008), não ter de passar por
um processo de gravidez, por medo ou por razões estéticas; o
anseio de serem pais por aqueles que não possuem um parceiro
amoroso (Levinzon, 2006) ou por casais homossexuais (Weber,
1999).
Quanto às intenções do adotante para realizar tal ato, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) indica a
necessidade de a adoção fundar-se em “motivos legítimos”, sem
especificar quais seriam estes. Já Winnicott (1954) aponta para a
existência de “motivações distorcidas”, que seriam uma das
causas para o fracasso do projeto adotivo. Entretanto, autores
como Levinzon (2006) propõem uma mudança de paradigma.
Para ela, sentimentos e fantasias inconscientes, dentre eles as
motivações, necessitam ser suficientemente discriminados e
elaborados para que “entraves” não ocorram no curso da adoção.
Weber (1997) corrobora esta visão, a qual pressupõe a
inexistência de motivações “legítimas” ou “ilegítimas”, “certas”ou
“erradas”: a partir deste ponto de vista, os pretendentes à adoção
devem ter a oportunidade de identificarem e elaborarem os
motivos inconscientes que os levaram a desejar tal ato para
tornarem-se aptos a desenvolver o papel de pais. Para esta
autora, “uma preparação para ter um filho, seja ele biológico ou
adotivo, refere-se a uma reflexão sobre as próprias motivações,
riscos, expectativas, desejos, medos, entre outros. Preparar-se
para ter um filho significa, de maneira muito resumida, tomar
consciência dos limites e possibilidades de si mesmo, dos outros
e do mundo” (p.124). Ainda de acordo com Weber, “nos
processos de adoção, os técnicos são fundamentais, não tanto
para selecionar (que é o que fazem a maior parte das agências de
adoção), mas para preparar [...]”(p.127)
Justificativa e Objetivos
Conforme exposto, a literatura demonstrou que a
identificação e o entendimento das motivações para adotar são
relevantes no sentido de compreender as fantasias inconscientes
dos pais adotivos, as quais, por sua vez, podem influenciar a
qualidade da interação entre pais e filhos adotivos e demais
membros da família. Dessa forma, pensa-se ser possível que a
clarificação das intenções em adotar possa atuar como um fator
protetor, não só evitando fracassos no processo de adoção, como
também criando um relacionamento saudável entre pais e filhos.
Outra questão relevante, como apontam Peccin e Oliveira
(2009), é que a maioria dos estudos acerca da adoção centra-se
mais nas crianças do que nos pais adotivos e seus sentimentos
frente a esta prática.
Tendo em vista essas questões, o presente trabalho buscou
identificar, na história de um filme infantil atual, motivações e
expectativas do adotante quanto à adoção. Procurou, também,
apontar as influências que estas motivações podem ter no
relacionamento entre o adotante, a criança e os demais
membros da família.
Um aspecto a ser ressaltado é a validade de se realizar esta
análise em uma história fantasiosa, que, neste caso, se trata de
um filme infantil. Sabe-se que as histórias infantis sempre
tiveram o poder de auxiliar as crianças a nomear e suportar seus
conflitos básicos (Rosa, 2008). Mais do que isso, Corso e Corso
(2011) indicam que as histórias possuem o poder de revelar
fantasias coletivas para o uso individual e atribuem a estas
narrativas a função essencial de construção e sustentação da
personalidade das pessoas. Dito isso, compreende-se que o filme
Meu Malvado Favorito retrata fantasias coletivas da cultura
ocidental sobre a adoção e a parentalidade, auxiliando adultos e
crianças a suportar seus conflitos relacionados a esta temática.
Metodologia
Para contemplar o objetivo do presente trabalho, procedeuse à análise do filme infantil de animação Meu Malvado Favorito
(título original: Despicable Me), dirigido por Chris Renaud e Pierre
Coffin, lançado nos Estados Unidos no ano de 2010
(http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140623/).
O furto das pirâmides do Egito, realizado pelo vilão Vetor, é
considerado o roubo do século, o que mexe com o orgulho do
malvado Gru. Desejando realizar algo ainda mais maléfico e
impressionante, ele planeja raptar a Lua. Para isto, conta com a
ajuda dos mínions, seres amarelados que trabalham como seus
ajudantes, e do doutor Nefario, um cientista. No entanto, para
realizar o roubo, terá que tomar de Vetor um instrumento que
emite um raio capaz de diminuir o tamanho de tudo que atinge.
Sem conseguir invadir a fortaleza de Vetor, Gru encontra o plano
perfeito quando vê três órfãs entrarem no local para vender
biscoitos. Ele, então, decide adotá-las para colocar em prática seu
plano. Entretanto, não esperava que as irmãs o vissem como um
pai em potencial. No processo de construção deste
relacionamento, há altos e baixos.
Para a realização desta análise, procedeu-se à leitura de livros
e artigos científicos sobre o tema da adoção. Após, buscou-se
fazer um contraponto entre a literatura e os aspectos
identificados no filme.
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Discussão
A análise do filme centrou-se em duas questões principais e
inter-relacionadas, a saber: motivação e expectativas em adotar;
e pouco preparo para a adoção e as consequências disso para a
relação familiar.
Motivação e expectativas em adotar
Ao se deparar com dificuldades para invadir a fortaleza de
seu inimigo, um grande obstáculo em seu plano de roubar a Lua,
o malvado Gru vê três irmãs órfãs entrarem tranquilamente na
residência de Vetor para vender-lhe biscoitos. Imediatamente,
Gru traça seu plano maléfico: irá adotar as três irmãs, construir
“biscoitos-robôs” e fazer com que elas os entreguem na casa do
inimigo, para que ele possa roubar um artefato de seu interesse.
Dessa forma, fica evidente que a motivação consciente de Gru em
adotar as irmãs deu-se pela possibilidade de um ganho
secundário (entrar na fortaleza inimiga para roubar uma arma).
A partir disso, houve, por parte de Gru, a idealização do projeto
adotivo: a adoção surgiu como resolução de todos os problemas,
não sendo vislumbrado nenhum obstáculo ou dificuldade.
Conforme Ghirardi (2008), é frequente na prática clínica o
fenômeno da idealização da adoção e da criança: esta idealização
seria um substituto do narcisismo perdido e uma tentativa de sua
recuperação. Contudo, Levinzon (2006) afirma que a idealização
pode resultar em sérias dificuldades no estabelecimento de um
relacionamento verdadeiro com o filho adotado, o que de fato
ocorre no início da relação entre Gru e as irmãs adotadas.
Poderia se traçar um paralelo da intenção em adotar de Gru,
motivada por um ganho secundário, com outras motivações
semelhantes, como exemplo aquelas nas quais há a crença de
que a inclusão de uma criança na família aumentaria a
probabilidade de fecundação dos casais com problemas de
fertilidade. De acordo com Weber (1999), mesmo que em
pequeno número, ainda há pessoas que acreditam ser válido
adotar na tentativa de aumentar as chances de concepção. Na
visão de Reppold e Hutz (2003), estas pessoas concordam em
utilizar um filho adotivo para diminuir a ansiedade frente às
dificuldades de reprodução, vendo a criança ou o adolescente
adotado como um meio e não como um fim. O mesmo ocorre na
história do filme, porém por razões distintas: Gru adota as
meninas vendo-as como um meio para obter o fim narcisista que
o motiva (roubar a Lua para tornar-se um vilão mais conhecido e
respeitado). O personagem é tão “egoísta” nesta empreitada que
nem sequer cogita a hipótese de que poderia apegar-se às filhas
ou elas a ele.
Nestas situações, parece claro que a não elaboração deste
lugar de “objeto” da criança no inconsciente dos pais pode trazer
dificuldades no relacionamento familiar. De fato, foi o que
ocorreu de início com Gru e suas três filhas adotivas. No
momento em que Gru conseguiu o que desejava com a adoção,
seu primeiro pensamento foi o de abandonar as meninas em um
parque de diversões. Contudo, ele se diverte no parque com as
filhas e, a partir deste momento, o relacionamento entre eles
começa a modificar-se: as meninas passam a ocupar um espaço
dentro de Gru, e isto faz com que ele possa vislumbrar a
possibilidade da parentalidade.
É igualmente evidente, na história do filme, outro aspecto da
adoção concretizada por Gru: sua motivação inconsciente. De
acordo com Levy e Féres-Carneiro (2001), a história psíquica de
cada um dos pais adotivos terá repercussão na relação a ser
estabelecida com a criança. A infância do personagem principal
é retratada no filme por meio de cenas nas quais Gru, ainda
criança, mostra suas produções incríveis (desenhos, protótipos e
até mesmo um foguete de verdade) para sua mãe, e esta não lhe
emite resposta alguma: não olha, não elogia, enfim, não cuida
emocionalmente. Motta (2001) aponta alguns padrões típicos
da parentalidade patogênica, dentre os quais cita a ausência
persistente de respostas de um ou ambos os pais no cuidado com
a criança e/ou depreciação e rejeição em relação a ela. Para
Bowlby (1989), o comportamento de cuidado das figuras de
apego é definido como a provisão, por ambos os pais, de uma
base segura a partir da qual uma criança ou um adolescente
podem explorar o mundo exterior e a ele retornar certos de que
serão bem-vindos, nutridos física e emocionalmente,
confortados se houver um sofrimento e encorajados se forem
ameaçados. Pode-se supor, então, que o personagem Gru não se
sentiu cuidado desta maneira durante sua infância, apegandose de maneira insegura à sua figura de apego, que, neste caso, era
sua mãe biológica.
Esta mãe, por sua vez, apesar de ter vínculo biológico com o
filho, não o adotou psiquicamente. A partir da falta de
disponibilidade da mãe, Gru cresce utilizando-se da maldade
como um mecanismo de defesa. Quando adulto, seu desejo
inconsciente em adotar parece ser em razão da resolução do
conflito anterior com a mãe. O lado afetivo que fora ausente no
relacionamento com a mãe, foi acionado no malvado Gru através
da adoção. Após o desfecho final do filme, é possível notar que
ser um bom pai é motivo de orgulho para o personagem e este
fato é reconhecido pela sua mãe.
Pouco preparo para a adoção e suas consequências
para a relação familiar
Na literatura consultada, parece ser consenso a importância
da elaboração das motivações inconscientes pelos pais antes de
realizarem a adoção, para que fantasias e sentimentos não sejam
projetados no filho adotado. No caso de Gru, não houve esta
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elaboração ou qualquer forma de preparação. O processo de
adoção, no filme, se dá de maneira bastante caricata: Gru cria
uma história de vida falsa e comovente e esta é muito
brevemente analisada pela dona do orfanato. Outros aspectos
que chamam atenção no processo adotivo realizado no filme,
mas que não serão tratados no presente trabalho, são a ausência
do período de convivência e a não valorização das opiniões e
sentimentos das crianças a serem adotadas.
Acredita-se que, em conseqüência da não elaboração das
motivações em adotar, Gru não estava preparado para as atitudes
das meninas e nem para os cuidados que estas exigiam. Para
Levinson (2006), a inabilidade de alguns pais adotivos em
aceitar as expressões mais instintivas da criança pode estar
ligada à descontinuidade biológica, que impede que possam
fazer um investimento narcísico em seu filho. Assim, a autora
aponta que comportamentos instintivos normais, como sujeira,
curiosidade sexual, agressão, entre outros, são compreendidos
como reflexos do“mau sangue”da criança. Estes aspectos podem
ser identificados no filme. No início da história, por ainda não ver
as meninas como suas filhas, e sim como um meio para alcançar
outro objetivo, Gru não consegue realizar um investimento
narcísico nas meninas adotadas. Dessa forma, estabelece regras
de convivência irreais para inibir os comportamentos por ele
indesejados, tais como não tocar em nada, não lhe atrapalhar
enquanto trabalha e não fazer “sons irritantes”, como rir, espirrar
ou chorar.
Em conseqüência desta não preparação psicológica de Gru à
adoção, outras “preparações” foram igualmente negligenciadas,
como a preparação do espaço físico. A casa de Gru era totalmente
inapropriada para crianças, havendo objetos e substâncias
perigosos ao alcance, além de um cão bravo. Dessa forma, vê-se
que a falta de espaço psíquico para a chegada das irmãs também
se traduziu na falta de espaço físico.
O processo de filiação satisfatório depende também, dentre
diversas outras variáveis, de um envolvimento familiar global
(Ducatti, 2004). De acordo com Maldonado (1989), ter um filho
acarreta profundas alterações intra e interpessoais, com a
possibilidade de revisões, ampliações e modificações de
aspectos de identidade de cada um dos membros do que a
autora denominou de “família grávida”. Estes aspectos ficam
claros na história do filme. A não elaboração da motivação em
adotar e a não preparação de toda a família de Gru para o
processo de adoção levou a dificuldades no relacionamento
familiar, personificadas na figura do doutor Nefário, um cientista
que reside com Gru. Para Nefário, as meninas adotadas estavam
dificultando o envolvimento de Gru no plano de roubar a Lua,
pois ele estava despendendo tempo e atenção mais a elas do que
à construção do foguete. Pode-se entender a reação do cientista,
já que em momento algum este foi consultado, informado ou
preparado sobre a decisão de adotar, estando à margem de todo
o processo.
Dessa forma, tentando restabelecer sua família, o doutor
Nefário chama a responsável pelo orfanato e devolve a ela as três
irmãs. Este ato institui para a criança o retorno a uma condição
anterior, caracterizando uma experiência que reedita outras
anteriores ligadas ao abandono (Ghirardi, 2008). De fato, podese notar que a devolução é um momento muito difícil para as três
irmãs, mas também o é para o pai Gru, que neste momento
demonstrava ambivalência entre cuidar de seu projeto ou de
suas filhas. Entende-se que os indivíduos, ao decidirem por um
processo de adoção, e consequentemente por uma tentativa de
oferecer uma família a uma criança, devem tomar suas decisões
em conjunto, sempre baseadas no diálogo, no respeito e na
compreensão, visto que a vida e a rotina de todos os membros da
família serão alteradas, devendo se enquadrar à nova realidade
familiar (Gondim et al, 2008).
Após a devolução, Gru sente a ausência das filhas,
percebendo que havia se vinculado a elas. O apego entre uma
criança e uma figura cuidadora é algo que se estabelece de forma
lenta e gradual, através de semanas, meses e anos de interação
amorosa, e pode existir tão bem entre pais e filhos adotados
quanto entre biológicos (Brodzinsky, et al, 1993). No filme, este
apego se estabelece, talvez até de forma mais rápida do que seria
possível na vida real. Ainda assim, é um retrato da possibilidade
de construção de um relacionamento afetivo verdadeiro, que
independe de qualquer aspecto biológico e de qualquer
motivação julgada como “ilegítima ou distorcida”. Este apego é,
também, o resultado de um processo que envolve a criação de
um espaço psíquico para os filhos no imaginário dos pais, e do
investimento narcísico destes pais em seus filhos, como aponta a
literatura.
Para Bowlby (1989), os tipos de experiências que um
indivíduo teve com sua família de origem ou fora dela
influenciarão, em alto grau, a forma segundo a qual seu
comportamento de apego se origina. Este comportamento terá
repercussões na vida adulta do indivíduo e, inclusive, no exercício
da parentalidade. Gru decide-se pela adoção, motivado por
questões conscientes e inconscientes relacionadas a um ganho
secundário (narcisismo) e a um conflito anterior com sua figura
de apego (mãe biológica), respectivamente, sem proceder a
qualquer tipo de preparação (psicológica, familiar). A partir de
um julgamento inicial, poder-se-ia dizer que esta adoção não
teria sucesso. Todavia, ao longo do processo de convivência, Gru
pode, verdadeiramente, adotar psiquicamente suas filhas,
exercendo sua função “materna”, o que se traduziu em uma
melhora significativa no relacionamento de toda a família. De
fato, há evidências de que a maioria das crianças adotadas se
adapta de maneira adequada à nova família (Brodzinsky, et al,
1993).
A história do filme parece estar, então, de acordo com o
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paradigma defendido por Levinzon (2006) e Weber (1997)
apresentado anteriormente, segundo o qual a preparação e a
elaboração, antes da seleção e do julgamento da motivação em
adotar, auxiliam os pais adotivos no exercício de suas funções, o
que influenciaria em grande medida o sucesso da adoção. Sobre
esta preparação para adotar, Weber (1999) realizou uma
pesquisa com pais adotivos e demonstrou que, apesar de os
grupos de apoio aos pretendentes à adoção, no Brasil, não serem
obrigatórios, 67% dos entrevistados relataram considerar
importante a preparação e o acompanhamento após o processo
adotivo ter sido concluído judicialmente. Considerando-se o
exposto, é evidente a importância do papel do profissional da
Psicologia para a preparação dos pretendentes à adoção (e
também das crianças a serem adotadas), processo que envolve,
entre outros aspectos, a elaboração das motivações conscientes e
inconscientes.
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Adopted: The Lifelong Search for Self. New York: Anchor
Books, 1993.
Considerações Finais
Este trabalho abordou o tema da adoção, sob a perspectiva
dos pais adotivos e suas motivações em realizar tal ato, bem
como a influência deste fator no relacionamento de toda a
família, através da análise de um filme infantil. Acredita-se que o
presente estudo revela a importância da preparação para adoção,
no sentido de que os pretendentes possam identificar e elaborar
as motivações inconscientes que os levaram a desejar a adoção
de uma criança ou um adolescente, para que estas questões
interfiram positivamente no relacionamento familiar. Posto isto,
fica evidente a importância da atuação do psicólogo não
somente após a adoção, no sentido de seu acompanhamento,
como também antes da ocorrência desta, em uma ênfase
preventiva.
Entretanto, a limitação deste estudo reside em seu enfoque
exclusivo às motivações em adotar, que se constituem como um
único aspecto dentro do “universo” da adoção. De acordo com
Ducatti (2004), o desejo para se tornar pais tem um caráter
multifacetado, resultando de vários processos psíquicos, não
podendo ser reduzido a apenas um de seus componentes. Ainda
assim, entende-se que a discussão deste aspecto tenha
contribuído um pouco mais para o entendimento da adoção na
perspectiva de quem adota.
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73
REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
RESENHA
Meus Desacontecimentos:
A história da minha vida com palavras (144p.)
Eliane Brum
São Paulo, SP: Leya, 2014
2
Ana Cláudia S. Meira
A leitura dos livros de Eliane Brum não é para fim-de-semana, para uma relaxada tarde de sol; não é uma
leitura leve, não é para distrair, nem divertir, nem descontrair. Assim como foi impossível ler tranquila no sofá a
primeira obra de ficção da autora, “Uma/Duas”, o livro autobiográfico “Meus Desacontecimentos” nos faz pensar e,
mais que pensar, sentir no coração e nas tripas, como ela descreve. Ele já começa a nos movimentar de um lugar
bem acomodado e simplesmente receptivo desde o título – bem acomodados é o que Eliane menos nos deixa.
Por que desacontecimentos? Intrigante para nós, Eliane joga com a palavra, negativando-a, talvez para falar
daquilo que esteve presente desde seu nascimento: uma irmã, cuja vida não aconteceu; um luto que não
aconteceu; a casa com rosas onde não morou; a mãe que não teve presente; as histórias que – acontecendo –
impediram que ela acontecesse, enquanto uma filha reconhecida em sua própria existência.
É uma leitura que nos deixa atônitos, assombrados, de tanto contato que nos convoca a fazer com aquilo
que, em nós, na conveniente correria do dia-a-dia, queda silenciado: nosso nascimento, nossa infância, com suas
faltas, perdas, ausências e mortes. Desde o lugar de leitores, somos tragados para dentro de suas dores, levados a
viver e sofrer com ela tudo o que se passou. É uma leitura densa, porque, em maior ou menor grau, todos vivemos
um tanto destas histórias dramáticas, de uma infância vivida com toda a sua intensidade, com suas boas e,
principalmente, suas mais terríveis experiências, que agora a autora divide conosco.
Impossível somente ler e não viver cada frase, não sentir na pele cada página, não se ver em seu lugar em
cada passagem que ela vai nos contando, cada uma das “histórias de sua vida com as palavras”. Eliane, porém, não
está tão somente contando sua história com as palavras. Ela conta a história dela-menina, quando viveu a morte
desde que habitava o útero da mãe, quando uma irmã que era um túmulo no cemitério, um túmulo que ninguém da
família conseguia fechar, muito menos eu roubou-lhe a casa, o sol, as roseiras, a luz, quando sentiu que nasceu para
viver entre mortos-vivos, não de um, mas de vários túmulos. E um deles era um túmulo vivo; uma menina que sempre
viveu e sentiu tudo no corpo.
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s Seu livro é feito de morte e de vida, que é a grande questão
de nossa mais precoce infância. Não trata de dramas de Édipos,
com seus conflitos, questões em aberto e enigmas a desvelar;
pelo contrário: trata de lugares fechados, de cemitérios, do
apartamento escuro como o que ela cresceu, da depressão da
mãe que estava lá sem estar, ou que esteve mais em corpo do que
em alma.
Seu livro é feito de não lugares, de entrecasas, que ela viveu
na infância, com uma sensação de quase-morte. E não são os
mesmos lugares escuros que habitam a todos nós, seja pelas
filhas que fomos, pelas mães que perdemos, pelos lutos que não
elaboramos, pelos segredos que não revelamos, pelas heranças
malditas, pelas histórias de captura, por relações de alienação,
por uma inexistência, condenações com prisão perpétua, por
pactos narcísicos?
Falando de si, ela fala da vida de todas nós, com nossas mães,
pais, irmãos e irmãs, vivos e mortos. Fala de modo sensível e
profundo de uma época pretérita, em que somos apenas carne,
onde nos habita o silêncio e, incapazes de falar, somos objetos do
outro. Em um estado narcísico, primário, estamos largados a
nossa própria morte, se não for o outro-mãe, sem que ela seja
ainda um outro. Estamos expostos a ser bem conduzidos ou mal
conduzidos, podendo crescer ou sendo trancafiados no corpo
desta mãe, na fala da mãe, nas expectativas da mãe. Enquanto
impera aquilo que ela define por nós e para nós, ainda não somos
sujeitos de nosso desejo. Enquanto, como Eliane propõe,“não nos
arrancarmos do silêncio para virar narrativa”, nada teremos de
realmente nosso.
Contudo, ela reconhece: das mães, um parto só não basta; é
preciso arrancar-se. Arrancar-se – esse é o verbo que ela usa,
uma expressão exata. Habilidosa como é com as palavras, não
usaria qualquer uma. Arrancar-se, porque não é fácil
discriminar(se), saber parir e saber partir, nem para uma, nem
para a outra. Quando a libido que deveria banhar um bebê que
nasce é embargada pela morte, o que seria expressão de vida fica
impedido de acontecer.
Eliane fala de uma morte que não era dela, que não tinha sido
vivida por ela. Todavia, tendo sido concebida e instalada no útero
materno, divide compulsoriamente o espaço com o cadáver da
menina morta, a primeira filha de sua mãe. E nós? Quantos
cadáveres ganham direito a usufruto de nosso corpo e nossa
alma? Quantos não existem à custa de nossa existência? Com o
sacrifício de nossa vida?
Para devolver a vida a essa menina que a mãe não podia
enterrar, ela tem que se fazer morta. Por tentar fazer passar a dor
sem consolo desta mãe, ela temia o tempo todo que a mãe lhe
trocasse, caso descobrisse um modo de fazer isso: “E a cada
repetição, eu, a filha viva, sentia que a viva era a outra”. Ela viveu
isso tudo de fato, na literalidade que a compõe. Mas, em outro
nível, quantos defuntos não carregamos? Quantos sonhos não
realizados de nossos pais ou antepassados tentamos, mas temos
que aguentar não cumprir? Quantos desejos seus frustrados
temos que aceitar não realizar?
Eliane descreve o mundo sem palavras em que viveu antes
de aprender a ler. “Percebo que o escuro era uma ausência. Uma
ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu
antes da história, eu antes das palavras. Eu caos”. O escuro e o
túmulo desta etapa pré-palavra e tudo o que se passou lá, disso
nada sabemos. Não sabemos porque não temos uma memória
que nos permita lembrar e, lembrando, elaborar e mudar. E,
mesmo não sabendo, ela está lá, essa história, como uma mortaviva, enterrada viva, com todo o barulho que faz, mesmo que
tentemos silenciá-la; ela se impõe e se faz ouvir.
Penso no bebê que, desprovido da linguagem, ficará
dependente por algum tempo de quem lhe deu à luz; ele
dependerá da compreensão da mãe, que fará por ele tudo o que,
só bem mais tarde, ele será capaz. Ou não. Se ele tem a sorte de
ter pais que podem se haver com sua própria história e seus
próprios lutos, ele poderá também, um dia, falar em nome
próprio, o que significa muito mais do que ter aprendido a falar;
isso todos aprendemos.
Mas e quando não houver uma mãe que permita que esse jánão-bebê fale a partir de sua própria boca e lhe comunique
aquilo que ele precisa e deseja? Quando ela não reconhece o
direito de sua prole de falar por si e segue impondo a ele a sua
própria fala? O seu próprio desejo? E quando não há um pai
presente em sua função de apresentar o mundo ao infante,
liberando-o dos braços da mãe?
Com pais mergulhados em luto, silêncios e impossibilidades,
Eliane não teve. A palavra, então, deu contornos ao que teria
ficado disperso; juntou os pedaços todos que, já estando
espalhados dentro dela, seriam perdidos do lado de fora. Quando
a palavra junta vogais e consoantes, sílabas entre si, ela nos
sinaliza um processo possível, nos anuncia um psiquismo. Antes
disso, temos coisas, excessivas coisas e pouca capacidade de dar
conta; carecemos do simbólico que, na escrita, logramos.
Em algum ponto do livro, Eliane confessa que sempre vai
temer o retorno da escuridão. No entanto, paradoxalmente, é
somente por conseguir submergir nesse espaço sem luz, sem
som, sem ar, sem vida, que alguém pode escrever assim como
ela escreve: de forma absolutamente viva. Em Meus
Desacontecimentos, não inventou ou criou personagens; com
transparência – talvez proporcional à ânsia de ser vista –, ela
mesma se faz aparecer em todas as experiências que
compuseram sua relação com a escrita, as melhores e as piores.
Com seu estilo sem floreios, mas cru e profundo, fez-nos ver que,
tal como penso a escrita, o ato de escrever se faz com
intensidade, com realidade, enfrentamento e nudez; se faz a
escrita quando nos sentimos em carne viva, escalpelados,
sofridos. Neste livro, ela está em carne viva. E escreve para curar.
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Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 74-76
Foi isso que ela fez desde pequena, desde que descobriu que
palavras salvam. Percebeu que, “no dia em que se tornasse capaz
de emendar uma história na outra, não precisaria mais temer
perder a cabeça (Ou tornar-se aquela presa no túmulo)”. Na
escrita, aquilo que nos mataria sufocados ganha expressão,
audiência e leitores; ganha registro, escuta e olhar.
Escrevemos quando vemos que não precisamos mais
suportar sozinhos, isolados e mudos, aquilo que ninguém –
como aconteceu com ela – pode ouvir, em um tempo que já ficou
para trás. Ou que, pelo menos, já deveria ter ficado. Quando
escreve, Eliane se faz ouvir e se faz ler por muitas pessoas, todas
as que não escutaram aquilo que, antes, ela não podia falar.
É disso que ela trata: da possibilidade da palavra dar borda e
significado ao que foi vivido de forma bruta e brutal. Quando
escreve, promove esta transformação possível do que foi, um dia,
traumático. Nesse segundo tempo, somos agentes, ativos,
contadores de uma história que, em um primeiro tempo, apenas
sofremos, sujeitos, passivos e que, agora, criamos. Ela anuncia:
“Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas
também sou a parteira”. E não é, também, esse tipo de escrita que
ela nos propõe? Uma escrita em que falamos de nós, em que
estamos completamente dentro e presentes até as vísceras em
cada frase posta no papel?
A psicanálise que acontece nos divãs de nossos tratamentos
aconteceu na leitura deste livro, que foi, em si mesma, uma
experiência analítica. Eliane faz e nos leva a um percurso de
dentro para dentro, como anuncia logo no início; e é um dentro
em seu fundo sem fundo. Para nós, leitores, é esta função que seu
livro faz cumprir: ela retira as cascas que cobrem mal nossas
feridas abertas, escondendo que, por baixo, elas nunca
cicatrizaram. Ela faz nossa alma irromper na pele, como ela
mesma sentiu, levando-nos a olhar para o que é fácil ocultar.
“Às vezes, me perguntam o que aconteceria comigo se não
existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado,
consciente ou não de que estava me matando. [...] O que tento
dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, [...] eu
possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em algum momento, o
rasgaria demais”. A escrita salvou-a de se assassinar, mas penso
que, mais do que isso, mais do que nos salvar da morte, a escrita
injeta vida. Hoje, com nossas infâncias já longínquas, mas nossas
dores tão perto, é a escrita que nos banha de palavras. Palavras
que nos dão voz, que nos trazem luz, que nos garantem
existência, que nos ofertam o mundo.
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REVISTA DA
SOCIEDADE DE PSICOLOGIA
DO RIO GRANDE DO SUL
Í N D I C E
Editorial........................................................................................................................................................................................1
Sônia Martins Sebenelo
Comissão editorial
Artigos
Di Bobis: Adolescência e desamparo na contemporaneidade....................................................................................................02-09
Di Bobis: Alolescence and helplessness in contemporary society
Amanda Pacheco Machado
Luciana Balestrin Redivo Drehmer
Tratamentos Não Farmacológicos para Dependência Química..................................................................................................10-19
Non Pharmacological Treatments for Drug Addiction
Karine Hahn Cafruni
Giovana Brolese
Fernanda Lopes
Limites da Interpretação: irredutibilidade, castração e umbigo do sonho.................................................................................20-26
Limits of Interpretation: irreducibility, castration and navel of the dream
Carlos Alexandre Araújo Benício da Costa e Silva
Tecendo a sanidade: Arthur Bispo do Rosário - O gênio da contemporaneidade........................................................................27-39
Weaving Sanity: Arthur Bispo do Rosário - The Genius of Contemporary
Eliane Tonello
A História e a construção do conceito de Representação Social - Representação Social: a história de um conceito......................40-49
The history and the construction of social representations concept
Jacir Alfonso Zanatta
Márcio Luis Costa
Efeitos da transferência no atendimento a pacientes oncológicos............................................................................................50-57
Effects of transference in the treatment of oncology patients
Andrea Theise
Marianne Montenegro Stolzmann Mendes Ribeiro
Aspectos emocionais e psicossociais em pacientes renais pós- transplantados..........................................................................58-65
Psychosocial and emotional aspects on post transplanted renal patients
Samantha Sittart Navarrete
Luciane Slomka
Artigo premiado
Motivações para Adotar e Relacionamento na Família Adotiva: Análise de um Filme Infantil.....................................................66-73
Gabriela Vescovi
Resenha
Meus Desacontecimentos: A história da minha vida com palavras............................................................................................74-76
Ana Cláudia S. Meira
77