Descarregar - Boletim Evoliano

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Boletim Evoliano
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Editorial
Como não encontramos, por enquanto, nenhuma fórmula
mágica para fazer crescer a Legião enquanto organismo vivo que
realmente é, fomos aprendendo, nós, o pequeno punhado de
homens que lhe dá corpo, a sermos rectos nas acções praticadas.
Não queremos com isto dizer que desconhecêssemos anteriormente a rectidão, muito pelo contrário, diríamos até que é uma
condição necessária para se ser legionário. O que mudou, de facto,
é a tomada de consciência interior dessa elevação, ou seja, vamos
gradualmente subindo na nossa própria consideração enquanto
militantes de uma Ordem, fiéis a determinados princípios.
Uma das cláusulas auto-impostas quando assumimos a Regra
é que o compromisso exige disponibilidade e como, felizmente,
todos (por enquanto) trabalhamos e temos as nossas profissões
e empregos, poderíamos facilmente escusar-nos com a falta de
tempo e termos assim uma espécie de compromisso à la carte,
consoante o humor.
A actividade de grupo de um qualquer organismo humano, e em
muitos casos animal, exige que cada um saiba o seu papel, e o que
dele se espera é que o desempenhe o melhor possível no seio do
grupo, o que exige, por conseguinte, ordem e hierarquia. Se
alguém por motivo de força maior não puder realizar a sua função
outro terá que o substituir e se não houver substituto alguém terá
que acumular funções. O que não se pode fazer é perder o ritmo,
pois é este que marca a transformação do gesto em obra realizada.
Mas nós não somos uma empresa pública, semi-pública, limitada, ou SA.
O nosso objectivo não é o lucro nem a produção economicista.
É outra a nossa meta, ou melhor, é outro o nosso Caminho, porque
na verdade, como já outras vezes o dissemos, não temos qualquer
meta. Almejamos, isso sim, ser unos com o Caminho e para tal é
preciso acrescentar o Ritual, ao ritmo e às pequenas realizações
que nos servem de combustível para continuar a Obra.
O contrário disto pensamos nós que ainda se chama individualismo, anarquia, democracia… mas já não temos certeza – a perpétua alternância está também a levar os poucos que ainda chamávamos de “nossa gente”.
Mas o nosso grito não é de agonia nem de desprezo, é mais um
grito de… diferença.
Na capa: Estátua de Buda com suástica no peito
ÍNDICE
2
Editorial
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3
De Maistre e a Maçonaria
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A história secreta
4
da subversão
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6
Religiosidade Indo-europeia
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A acção na Alemanha e
10
“A Doutrina do Despertar”
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Notas sobre a “divindade”
15
da Montanha
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19
O simbolismo da Suástica
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FICHA TÉCNICA
Número 2 (2ª Série)
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3º quadrimestre 2011
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Publicação quadrimestral
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Contacto:
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Boletim Evoliano
Figura
De Maistre e a Maçonaria
Julius Evola
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Após ter dissertado em artigos anteriores sobre a obra
e as teorias de J. de Maistre, houve leitores que nas suas
cartas referiram o facto de este pensador saboiano ter
sido maçon. Se nos regermos pelos padrões de medida
de hoje em dia, este facto seria paradoxal e mesmo
escandaloso. Com efeito, poderia haver um contraste
maior do que o existente entre a religião laica da
democracia, apregoada pela Maçonaria
actual, e a teoria intransigente da autoridade e do poder proveniente de cima afirmada por De Maistre, seja em relação à
ordem temporal e política como à espiritual?
De Maistre era efectivamente
maçon e pertencia à loja “La parfaite
sincerité” de Chambéry do rito Escocês Rectificado com o nome de
“Eques a floribus”. No entanto, devemos salientar que maçon foi também Frederico o Grande, que o foram
numerosos príncipes ingleses de sangue real e que em certas circunstâncias a Igreja acusou de serem maçons
alguns indivíduos próximos de Metternich, o carrasco de liberais e de democratas da sua época. Como se pode explicar
tudo isto?
Será, então, feita aqui uma abordagem, ainda que
genérica, sobre um tema de grande interesse e bastante
complexo, raramente aprofundado que é a história interna e a essência da Maçonaria.
Não apenas os adversários da Maçonaria mas também muitos maçons ignoram esta questão, acreditando
que a Maçonaria sempre foi aquilo que é hoje. Eles acreditam que as origens concretas da Maçonaria remontam
a 1717, ano em que se constituiu a Grande Loja de Londres. As coisas são bem diferentes. A Maçonaria existia
antes dessa data, a qual não foi do seu nascimento, mas
sim de uma crise profunda e uma espécie de inversão de
polaridade em relação à antiga tradição.
O que a partir daquele período se organizou e difundiu
de modo muito concreto foi a “maçonaria especulativa”,
isto é, ideológica, a qual, com os ambientes maçónicos
de hoje em dia, se contrapõe à “maçonaria operativa”.
Não é fácil falar em poucas palavras acerca desta maçonaria. Numa interpretação mais superficial, profana e
desviada, a maçonaria operativa foi a das corporações
dos verdadeiros maçons, ou pedreiros, e construtores, às
quais aderiram elementos distintos: a esta maçonaria
estavam entregues as obras reais e os respectivos materiais de construção. Não há qualquer dúvida de que a
maçonaria pré-moderna esteve em estreito contacto com
tradições corporativas desse tipo, as quais remontam à
Idade Média e a épocas ainda mais remotas. Para além
disto, estava inerente a estas corporações uma tradição
espiritual secreta, baseada na transposição simbólica dos
princípios das operações da arte da construção. A construção material convertia-se então numa alegoria para
expressar uma obra criativa interior, tal qual como o templo exterior está para o templo interior; a pedra rústica a
polir era a individualidade vulgar do ser humano que
deveria ser rectificada até se ter adaptado através do
“opus transformationis”, ou seja, através da
superação da caducidade humana e pela participação numa realidade transcendente,
cujos graus correspondiam aos originários da hierarquia da “maçonaria operativa” que, todavia, não se havia convertido em especulativa.
Em organizações nas quais a “arte” e
a “operatividade” possuíram este
significado, não tendo nada a ver
com o plano político e social, do
período entre fins de Seiscentos e
inícios de Setecentos, no qual poderá
ter tido lugar um processo de degeneração, tendo assim permitido a acção
de influências obscuras e a infiltração
de elementos que gradualmente foram
controlando aquelas organizações, infundindo nas mesmas um espírito diferente.
Ou seja, conduzindo a acção sobre o plano
ideológico e revolucionário e sujeitando-as a
estes mesmos fins. Um marco fundamental neste processo foi precisamente a criação da Grande Loja de Londres,
com a qual nasceu efectivamente aquilo que, em geral,
hoje em dia se conhece por maçonaria. Porém, tal
mudança significa uma involução e, mesmo, uma espécie de inversão sinistra da anterior maçonaria operativa.
Muito antes da referida data, algumas constituições
maçónicas estabeleceram uma obrigação de fidelidade
dos seus membros não apenas aos soberanos e às leis
do seu país como também à Igreja Católica. O contraste
mais evidente de tudo isto haveria de ser quando da
constituição de determinado grau da maçonaria posterior, no qual o neófito, para consagrar como acto ritual o
seu compromisso de combater a “dupla tirania” (ou seja,
o princípio de autoridade no campo político e religioso),
teria de cravar um punhal na Tiara e na Coroa.
Contudo, o processo de degeneração e de inversão foi
gradual e não repentino. Por isso, decerto que na época
de De Maistre existiam lojas que estavam excluídas de
tal processo degenerativo e que conservavam, em parte,
ainda aqueles vestígios da tradição espiritual anterior
(poderíamos dizer “iniciática” e “esotérica”): tradição que,
na sua essência, não se encontra em antítese com a doutrina contra-revolucionária de De Maistre nem com os
seus princípios de autoridade, antes pelo contrário, constituíam um complemento natural.
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Análise
A história secreta da subversão
Julius Evola
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Segundo um velho adágio – Diabolus
Deus inversus –, o mal é menos o
efeito de uma negação do que a
inversão e a perversão de uma
ordem superior. Esta verdade vale
também no domínio histórico. A história dos erros aos quais se deve a
crise da civilização moderna contemporânea terá ainda que ser
escrita e é precisamente em
relação a isso que o adágio citado acima se poderá revelar profundamente verdadeiro.
Que os “imortais princípios” da democracia, a igualdade, a “liberdade”, o racionalismo, o internacionalismo e o
laicismo maçónico, o messianismo
marxista
técnicoeconómico foram os principais
venenos do mundo moderno, disto já ninguém dúvida. Mas poucos
são aqueles que desconfiam da verdadeira origem destes erros. Supõese geralmente tratar-se de produtos
de um pensamento filosófico sui
generis, engendrado e difundido
pelos intelectuais revolucionários.
Isto só é verdade na aparência; quanto à sua génese interior, ela é bem
diferente: estes erros são o resultado
de processos muito precisos de involução espiritual, de profanação, de
“degradação” e, enfim, de inversão.
O termo “iluminismo” oferece-nos
desde logo um exemplo flagrante. Na
sua acepção agora comum, ele é
sinónimo de racionalismo, de crítica
iconoclasta, de anti-tradicionalismo.
Pois bem, primitivamente, o mesmo
é dizer antes da “politização” da seita dos “Iluminados”, “iluminismo”
tinha um sentido totalmente diferente; referia-se à “iluminação espiritual”, ou seja, a um tipo de conhecimento supra-racional e supraindividual, que estava ligado, anteriormente, não apenas a tradições
muito precisas de natureza sempre
aristocrática, mas também a uma
qualificação espiritual excepcional;
nada em comum, portanto, com
aquilo que o termo “iluminismo” acabou por significar no seu uso comum.
O mesmo se aplica à maior parte dos
Adam Weishaupt, fundador dos Iluminados
símbolos, dos “ritos” e das “dignidades”
da maçonaria. Aqui, trata-se ainda de
elementos que se reportam frequentemente aos antigos Rosa-Crucianos, à
Ordem dos Templários, às tradições espirituais das antigas corporações, ao primeiro gibelinismo e aos próprios Mistérios
Clássicos, ou seja, a um mundo que, na
sua essência hierárquica, sacra e espiritual, constitui a antítese absoluta das
ideologias da seita maçónica, na qual, de
resto, todos estes símbolos e sinais não
são mais do que uma super-estrutura
morta, de que ninguém se preocupa em
procurar o sentido e a origem.
E é assim que no campo oposto, ou
seja, anti-maçónico, se cometem frequentemente graves confusões, atribuindo, por
exemplo, os caracteres da seita maçónica
a antigas tradições e organizações iniciáticas que, à excepção dos sinais, não têm a
menor relação com tal seita.
Na sua génese, o individualismo anárquico e o liberalismo deixavam já transparecer mais claramente o processo involutivo sobre o qual queremos chamar a atenção. É conhecida esta frase de Aristóteles
sobre os soberanos: “Para estes homens,
não há lei; eles próprios são a lei”. Os termos “livre”, “invicto”, “senhor da lei”, etc.,
surgem constantemente na literatura
ascética dos indo-germanos da Ásia; à
expressão sobre o “indivíduo autónomo, mestre do eu”, que se encontra
no Extremo Oriente, corresponde,
em certos textos dos Mistérios alexandrinos, a ideia de uma “raça
primordial autónoma e sem rei”.
Todos estes atributos designam
uma dignidade espiritual, uma
qualidade “régia”, algo de sobrenatural que só se pode conceber
em relação a uma força do alto e
que diz respeito apenas a uma minoria de seres superiores, os “heróis”.
Pois bem, basta de profanar estes
princípios, de os secularizar, de os democratizar e de fazer deles um ideal ao
alcance de qualquer um, para assim os
tornar instrumentos de subversão e
chegar à anarquia e ao individualismo, ou seja, às atitudes e aos erros
que deveriam precisamente ter por
consequência a negação e a destruição do plano espiritual, o único sobre
o qual estes princípios poderiam ser
válidos e legítimos. Trata-se portanto
de uma inversão, que implicou imediatamente uma destruição.
Pode-se dizer o mesmo da ideia
de “igualdade”. Sobre o plano natural, a igualdade é um absurdo: na
natureza, não há nada de “igual”.
Num plano mais elevado, aquilo de
que se deve falar não é tanto de
“igualdade” mas sim de “paridade”.
Mas, mesmo aqui, são valores de
tipo essencialmente aristocrático os
que encontramos nas origens. É apenas entre “homens livres” e “nobres”
que a “paridade” tem um valor legítimo e viril, para lá de todas as dife-
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“
Pois bem, basta de profanar estes princípios, de os secularizar, de os democratizar
e de fazer deles um ideal ao alcance de
qualquer um, para assim os tornar instrumentos de subversão e chegar à anarquia e ao
individualismo.”
renças de natureza, a tal ponto que,
em alguns países como a Inglaterra,
a expressão “par” conserva ainda
hoje este significado e designa um
título de nobreza. Ao democratizar e
inverter esta ideia, obtém-se pelo
contrário o “imortal princípio” igualitário como instrumento da subversão
mundial.
Foi da alta antiguidade indoeuropeia que se transmitiu à Idade
Média germano-romana, e depois às
tradições que dela recolheram em
certa medida a herança espiritual, a
ideia de Império, de Regnum, entendida como uma realidade não apenas política, mas também metafísica, como uma ordem superior que
não se opõe ao princípio da “nação”,
mas supera-o fornecendo como ponto de referência uma organização
mais alargada, de tipo não apenas
temporal, mas também espiritual;
também, em todas as suas manifestações autênticas, o Imperium apresentava traços religiosos e apoiavase numa autoridade espiritual real,
fundamento do seu direito supranacional.
A involução de semelhante concepção desemboca no internacionalismo e no cosmopolitismo antinacional. Trata-se aqui efectivamente de um autêntico rebaixamento e
de uma autêntica falsificação:
enquanto que o Império encontrava
a sua justificação no que é superior à
nação, a destruição internacionalista
tem como ponto de referência aquilo
que é inferior à nação, e é ela que
leva de um tipo de ordem hierárquica e diferenciada ao nivelamento, à
desnaturação, ao híbrido, à promiscuidade. Poder-se-iam fazer considerações análogas sobre a ideia
“messiânica”.
Sabe-se que esta ideia, na sua
origem, estava estreitamente ligada
à própria concepção do Regnum e
que, além disso, era precisamente
nessa base que ela era conhecida
dos Indo-europeus arianos, muito
antes de o ser dos judeus ou dos cristãos. O Ariano pensava assim no
advento de um “Reino” e de um
“Senhor Universal” justo e vitorioso,
mediador entre a ordem humana e a
ordem supra-humana.
Pois bem, o tema messiânico
reaparece nas correntes mais corruptoras da época moderna, o marxismo
e o bolchevismo, mas, também aqui,
trata-se de uma falsificação materialista.
Trata-se da utopia absurda que
consiste em acreditar que os processos económicos e técnicos, após
terem eliminado toda a diferença
social e todo o móbil superior, prole-
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tarizado o homem e “socializado”
todos os seus bens, darão nascimento a uma nova era de felicidade e de
prosperidade universal.
Dostoïevski definiu justamente
esta nova miragem messiânica
como um Éden, que se assemelhará
em tudo ao Éden mítico, com a diferença que o trabalho será a lei universal e que os indivíduos deverão
previamente ser libertados de tudo
aquilo que é “eu” e livre arbítrio.
Este tema, que aqui apenas tratámos superficialmente, merece ser
aprofundado. Com efeito, o seu interesse não é apenas teórico ou histórico. É precisamente com vista à
acção que é fundamental conhecer a
génese das negações e dos erros que
devem ser combatidos. Caso contrário, mesmo que de boa fé, pode-se
cair em erros perigosos. O que queremos dizer com isto é que, ao lutar
contra a forma destrutiva tomada
por uma dada ideia pervertida e
deformada, pode-se facilmente acabar por combater a ideia em si, não a
sabendo reconhecer por falta de princípios adequados, o que tem como
resultado aumentar a confusão e a
desordem. Reconstituir o processo
de degradação e de inversão é pelo
contrário o único meio de separar o
positivo do negativo, de atacar o mal
pela raiz e de alcançar os verdadeiros pontos de referência necessários
para a obra de reconstrução.
“
Ao lutar contra a forma destrutiva tomada
por uma dada ideia pervertida e deformada, pode-se facilmente acabar por combater a ideia em si, não a sabendo reconhecer
por falta de princípios adequados, o que tem
como resultado aumentar a confusão e a desordem. Reconstituir o processo de degradação e de
inversão é pelo contrário o único meio de separar o positivo do negativo, de atacar o mal pela
raiz e de alcançar os verdadeiros pontos de referência necessários para a obra de reconstrução.”
O B O L E T I M EVO L I A N O TA M B ÉM E S T Á D I S P O N Í V E L
O N - L I N E EM : W W W. B O L ET I M EVO L I A N O. P T. V U
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Crítica
Religiosidade Indo-europeia
Julius Evola
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No período anterior sustentou-se
por parte do movimento que esteve
no poder na Europa central a justa
exigência de que uma luta política
não pode ser completa se não estiver
fundamentada numa concepção do
mundo. O termo que acabaria por se
tornar um estereótipo, Weltanschauung, significava a atitude geral
que o homem deveria assumir não
só perante o mundo e a vida, mas
também em relação aos valores éticos e espirituais, de modo tal a abarcar de certa maneira os próprios problemas religiosos. E para levar a
cabo esta luta num plano superior
pensou-se que a melhor fórmula
seria o retorno às origens, ou seja,
remeter-se às ideias e à maneira de
sentir que foram conhecidos antes
que manifestassem todo o seu poder
aqueles factores que deram forma à
civilização última conduzindo-a até
ao spengleriano “ocaso” (espiritual)
“do Ocidente”.
No entanto, a mencionada orientação teve muitas vezes um aspecto
“racista”. Falou-se de “arianidade”,
de herança nórdico-germânica e de
coisas similares. O perigo de uma
limitação dos horizontes devida quer
ao racismo, quer a uma utilização
unilateral e tendenciosa das ideias
em função simplesmente germânica,
foi algo sumamente evidente. Isto
aparece-nos de maneira notória num
livro que no III Reich teve uma grande difusão, O Mito do Século XX, de
Alfred Rosenberg, o qual no fundo
era apenas uma compilação baseada em materiais de terceira mão
sumamente heterogéneos. Menos
reservas se impõe pelo contrário a
respeito das investigações de um
especialista, o professor Hans Günther, autor de numerosas obras
sobre as raças e as civilizações antigas, incluindo Grécia e Roma. É digno de menção um ensaio seu no qual
tratou de definir a concepção fundamental do mundo e a religiosidade
dos povos indo-europeus mantendose num plano desapegado das con-
Hans F.K. Günther e Alfred Rosenberg, dois teóricos raciais nacional-socialistas
tingências políticas. Este ensaio foi
reeditado (numa sexta edição) mesmo depois da guerra e apareceu agora em tradução italiana (para as Edições Ar) a cargo de Adriano Romualdi e Carlo Minutoli. O título original
da obra era Frömmigkeit nordischer
Artung, ou seja, “A religiosidade de
tipo nórdico”; o título italiano é pelo
contrário
“Religiosidade
Indoeuropeia”, modificação esta que nos
parece oportuna e que permite
obviar as diferentes reservas que,
devido ao uso do termo “nórdico”,
teriam que ser feitas às teses do
autor. “Indo-europeu” é um conceito
muitíssimo mais vasto já que o mesmo retoma diferentes estirpes e civilizações pertencentes à raça branca,
incluídas as suas manifestações
asiáticas (os indo-europeu do Irão, da
Índia, etc.) que são também tidas em
consideração por Günther, mas ainda
assim resta-nos o inconveniente relativo à tese segundo a qual o núcleo
originário formativo de todas estas
civilizações teria sido de origem
“nórdica”. Mesmo concedendo que
tal termo deve ser aqui entendido de
maneira particular, com referência a
migrações de povos primordiais, de
modo tal a não aplicar-se meramen-
te às populações nórdico-escandinavas ou germânicas-setentrionais dos
tempos mais recentes, ainda assim
não pode deixar de haver a tal respeito alguns equívocos.
Os mesmos poderiam ser favorecidos em parte pelo amplo “Ensaio
sobre o problema indo-europeu” de
Adriano Romualdi que aparece como
introdução ao texto de Günther e que
quanto à sua extensão representa
mais do dobro do mesmo. Trata-se
de uma monografia desenvolvida
muito seriamente, com uma ampla e
variada documentação que resume
tudo aquilo que a partir de investigações filológicas, antropológicas, étnicas, históricas e culturais se disse a
respeito das origens indo-europeias,
mantendo-se no entanto a tese nórdica com um notório acento racista.
Mas independentemente disso
parece-nos apropriado prestarmos
atenção à extensão própria do conceito “indo-europeu” e não sem relação além do mais com aquilo que
impulsionou a actual tradução italiana do ensaio de Günther. Trata-se a
tal respeito da atitude de retomar a
exigência da “luta pela concepção do
mundo” num marco já não germânico/nacional-socialista, mas sim euro-
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peu. Escreve Romualdi a este respeito (p. 6): “Todos nós, e em particular
nós, os da nova geração, sentimos
que nos encontramos numa encruzilhada histórica. As antigas perspectivas nacionais, tal como fomos educados, quebram-se ao nosso redor
por todo o lado. Uma auto-suficiência
da pátria italiana, ou francesa ou
germânica, não existe e não deve
existir mais. Nacionalistas sem
nação, tradicionalistas sem tradição,
nós procuramos reconhecermo-nos
todos numa pátria e numa tradição
mais vastas”.
A este respeito volta a colocar-se
a ideia indo-europeia quer como mito
das origens comuns, quer como ideia
capaz de outorgar sentido a uma
unidade europeia ou ocidental que
não se reduza a um conglomerado
informe. Mas é justamente por isto
que a conotação “nórdica”, apesar de
qualquer precisão que se efectue,
aparece como algo de equívoco.
Além do mais, não se podem fazer
generalizações em relação a conceitos conformados por múltiplos elementos (neste caso, múltiplos
povos), tanto mais quando parece
que são justamente os povos europeus nórdicos (incluindo nesta altura
lamentavelmente os próprios alemães) aqueles que na actualidade
são os últimos a sentir exigências de
tal tipo e a encarnar este tipo de concepção do mundo.
Mas já nesta altura é necessário
dizer algo a respeito do ensaio de
Günther. Em geral, há que ressaltar
que teria sido oportuno limitar-se
sobretudo a uma consideração de
carácter morfológico reduzindo ao
máximo os factores raciais, ou seja,
definir apenas uma certa forma dos
valores e do modo de sentir e de
comportar-se, apresentando-o sobretudo como um “ideal”. De facto
poder-se-ia formular a Günther uma
muito fundamentada objecção metodológica, ressaltando o modo como
muitas vezes se move num círculo
vicioso. Com efeito, ele reconhece
que as fontes da sua investigação
não podem ser constituídas pelo
material fornecido pelo povos nórdicos em sentido próprio, já que até as
antigas concepções germânicas
teriam sido alteradas por contributos
externos, célticos e “druídicos”, e
inclusivamente a mitologia nórdica
por excelência – os Edda – seria muito pouco utilizável como verdadeiro
Adriano Romualdi, “nacionalista sem
nação e tradicionalista sem tradição”
documento do espírito nórdico; Günther considera como fontes melhores
aquelas que se podem recolher do
antigo mundo helénico, romano, irânico, e em parte também hindu, dentro de cujo conjunto ele no entanto
opera uma certa discriminação: isola
certos elementos de outros, que se
encontram presentes mas que não
podem ser remetidos a uma ideia no
fundo preconcebida de forma apriorística como “nórdica” (ou “ariana”
ou “indo-europeia”), e remete-os a
influências externas, a alterações
raciais produzidas por cruzamentos,
etc., procedimento equivalente àquilo que na lógica se define como petição de princípio. Tal objecção perderia parte da sua força no caso de se
tratar de uma abordagem essencialmente “morfológica”. De seguida as
referências de Günther referem-se
essencialmente às elites, e aqui vale
como um postulado a ideia de que
teria sido entre as elites que se
teriam conservado os valores da raça
originária portadora de uma superior
concepção do mundo. É assim que
Günther diz (p. 116): “Na verdade,
muito daquilo que nos é descrito
como formando parte da religião
indo-europeia não é senão a expressão de castas inferiores que teriam
aprendido a expressar-se na língua
indo-europeia”, o que é um sinal do
mencionado procedimento de discriminar a priori. Não há pois dúvida de
que por parte do autor se idealizou e
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generalizou muito, fazendo silêncio a
respeito de tudo aquilo que não se
adaptava à sua tese.
Quanto às características que
segundo Günther não seriam indoeuropeias, encontramos a concepção
de um Deus transcendente do qual o
homem se aproxima servilmente e
por medo, assim como a concepção
do homem como mera “criatura”.
“Posto que não é o servo de um Deus
soberano, o Indo-europeu não reza
prostrado de joelhos, mas sim de pé,
com os olhos para o céu e os braços
estendidos para o alto” (p. 122). Ele
tem um sentimento de vinculação e
de familiaridade com o divino, com
os “deuses”. O mundo para ele não é
“criado”, mas eterno, “sem princípio”
e sem fim. Não conhece um dualismo entre “este mundo” e o “outro
mundo”, pelo menos aquele dualismo através do qual o primeiro é desvalorizado em relação ao segundo e
só no segundo se concentra o espírito. Em parte como consequência,
não é sentido nem sequer um contraste “entre corpo perecível e alma
imortal, entre a carne e o espírito”.
Careceria pois da “redenção”, como
do pecado, da salvação por obra de
um “Salvador” e não como uma
“auto-redenção da alma que se purifica e se submerge no profundo do
próprio ser” (tal seria a orientação do
misticismo indo-europeu), como
aquela superação das paixões na
qual consistiria a via do primeiro
budismo e também do estoicismo.
Quanto ao “pecado”, na maneira de
sentir indo-europeia substituir-se-ia o
conceito de “culpa” pelo de responsabilidade que uma “alma nobre” é
capaz de assumir.
Por parte do Indo-europeu o mundo teria sido concebido como ordem
e como kosmos, como um todo formado por uma ratio superior. Mas
esta característica parece-nos que
não concorda muito com a outra,
indicada igualmente por Günther,
relativa a uma concepção “agonista”
da existência: o mundo como arena
de uma permanente luta, em correspondência com “a vocação hereditária e congénita para o combate” por
parte do Ariano ou Indo-europeu. De
facto, esta segunda concepção pressupõe evidentemente um dualismo,
não a existência de uma ordem
racional universal, mas também a
presença de alguma coisa antitética
em relação ao mesmo, ao kosmos,
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“
Günther (...) opera uma certa discriminação: isola certos elementos de outros, que
se encontram presentes mas que não podem
ser remetidos a uma ideia no fundo preconcebida de forma apriorística como «nórdica», e
remete-os a influências externas, a alterações
raciais produzidas por cruzamentos, etc., procedimento equivalente àquilo que na lógica se
define como petição de princípio.”
contra a qual combater. Maiores
reservas impõe-nos a ideia, para nós
errada, de que os Indo-europeus
“teriam tido sempre a inclinação de
ver na força do Destino uma coisa
superior aos próprios deuses, sobretudo os Hindus, os Helenos e os Germanos” (p. 129).
Não vemos como pode fundar-se
uma ideia semelhante, a qual, em
todo o caso prevaleceu em áreas não
reputadas propriamente como indoeuropeias (como na tardia civilização
etrusca e na pelásgica, não-helénica
e justamente Bachofen pôde mostrar
a origem pelásgica, não-helénica,
que pelo contrário Günther denominaria “não-nórdica”, daquilo que na
antiga Grécia se ressentiu daquela
obscura ideia fatalista). Günther pelo
contrário conserva-a pois serve-lhe
para indicar, como ulterior característica do homem indo-europeu, a aceitação do destino ou o manter-se
inquebrantável face ao mesmo:
“orgulhosa altivez com a qual aceita
o Destino que incumbe à própria
existência, fazendo-lhe frente de pé e
mantendo-se assim fiel a si mesmo” (p. 131).
Além do mais Günther opera um
grave menosprezo da herança da
espiritualidade indo-europeia ao
negar ou desconhecer aquilo que
podemos denominar como a
“dimensão da transcendência” na
ordem do humano não menos que
na do divino (onde reinaria o Destino,
e não uma suprema liberdade), não
tendo em conta de forma apriorística
os testemunhos múltiplos e unívocos
em sentido oposto. Felizmente, Günther não insistiu numa sua tese anterior, segundo a qual os Indo-europeus
“nórdicos”, só depois da sua chegada
à Ásia, tendo encontrado terras insuportáveis pelo clima e pelo ambiente, foram levados a inverter o seu
impulso originário de “afirmação da
vida” por um outro no fundo estranho
à sua raça (artfremd), o de libertar-se
da vida, entendida agora como “dor”.
De facto um ideal fundamental indoeuropeu foi o da “Grande Libertação”, da conquista do Incondicionado
(por exemplo no budismo das origens), da saída do “ciclo da geração” (na Hélade).
A razão desta atitude de Günther
é que nele tiveram primazia certas
preocupações “racistas” que, apesar
de tudo, marcaram com uma certa
tendência naturalista as suas interpretações. Assim, por exemplo, é
para ele inexistente o facto de que
justamente na tradição indo-ariana a
“via dos deuses” (deva-yana) que
conduz ao Incondicionado se encontre em contraposição à “via dos
pais” (pitri-yana), que é a via daqueles cujo destino consiste em perpetuar a vida da sua estirpe aqui em
baixo.
É aqui que se fazem sentir as consequências da suposta indivisibilidade do corpo e alma, a qual acaba por
limitar toda a superior concepção da
imortalidade. No fundo Günther acaba por reduzir os horizontes espirituais a uma “imortalidade imanen-
“
te” (efémera), que consiste na perpetuação e continuidade na estirpe e
na raça da qual o sujeito faz parte, o
que “na ordem das gerações produz
perenemente a vida” (p. 147). Se
bem que tentando mitigá-lo, Günther
acaba por ver no panteísmo, que
implica uma negação de toda a verdadeira transcendência, um traço
fundamental
da
religiosidade
“ariana” (encontramos nele a expressão “inspirado panteísmo naturalista”), o que equivale a degradá-la arbitrariamente, sustentando também
um suspeito “culto à vida” como contrapartida. É bom ter presente que
não se deve confundir o “panteísmo”
com um concepção sacralizadora do
mundo, que foi própria das origens e
que deve considerar-se tradicional de
forma geral, e que de nenhuma
maneira deve sustentar-se como
uma
prerrogativa
unicamente
“ariana” ou indo-europeia.
É no campo da ética que em parte as caracterizações de Günther têm
um valor mais convincente. Ele fala
dos ideais da firmeza e da grandeza
de ânimo, de um natural domínio de
si mesmo, de um também natural
sentimento das distâncias e de não
promiscuidade, da desconfiança por
todo o abandono da alma e portanto
por um desordenado e alienante misticismo. Além disto, indica também o
sentimento de honra, a predisposição à fidelidade e à lealdade, uma
comedida e consciente dignidade (a
humanitas na sua acepção clássica),
e o amor pela verdade e a repugnância pela mentira. A liberdade é um
ideal, mas na perspectiva indicada
pela frase de Goethe: “Tudo aquilo
que liberta o nosso espírito sem nos
elevar a um maior senhorio sobre
nós próprios, corrompe-nos”. A ética
que se articula em tais valores, para
Günther acaba por reduzir os horizontes
espirituais a uma «imortalidade imanente» (efémera), que consiste na perpetuação
e continuidade na estirpe e na raça (… )
Günther acaba por ver no panteísmo, que implica uma negação de toda a verdadeira transcendência, um traço fundamental da religiosidade
«ariana», o que equivale a degradá-la arbitrariamente, sustentando também um suspeito
«culto à vida» como contrapartida.”
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“
E´ bastante curioso o facto de Günther falar
frequentemente do espírito e da nobre ética
de uma «aristocracia camponesa» (poderse-ia falar, quanto muito, de uma aristocracia feudal). Aqui parece-nos aparecer o eco de
um slogan «racial» do hitlerismo, «sangue e
solo», pelo qual em nome de um certo
«enraizamento» e de uma certa política era
liquidado o precedente mito das raças arianas
originárias como raças de caçadores e conquistadores ávidos de grandes distâncias e de longínquos horizontes.”
Günther seria “natural” ao Indoeuropeu, não ligada a preceitos exteriores (assim como a religiosidade
indo-europeia seria “natural” e não
determinada por “revelações”).
Com isto pode-se concordar apenas em parte, mas com referência a
uma concepção não-racista da raça.
O ser “de raça” num sentido superior
implica justamente como algo natural actuar e comportar-se de uma
determinada maneira, mas sem
necessidade de referências externas.
Portanto não se pode falar de algo
que seja próprio da “raça” indoeuropeia. Tais qualidades éticas
naturais do “homem de raça”, para
dar um exemplo, estão também presentes entre outros povos (bastará
apenas a referência à nobreza tradicional do Japão) e a referência ao
“tradicional” não é algo extrínseco, já
que a tal respeito pode-se considerar
também aquilo que se torna congénito devido a uma rigorosa tradição.
Quanto à “nobreza”, ressaltemo-lo de
passagem, é bastante curioso o facto
de Günther falar frequentemente do
espírito e da nobre ética de uma
“aristocracia camponesa” (em todo o
caso, poder-se-ia falar, quanto muito,
de uma aristocracia feudal). Aqui
parece-nos aparecer o eco de um
slogan “racial” do hitlerismo, “sangue
e solo”, pelo qual em nome de um
certo “enraizamento” e de uma certa
política era liquidado o precedente
mito das raças arianas originárias
como raças de caçadores e conquistadores emigrantes ávidos de grandes distâncias e de longínquos horizontes.
Mencionou-se já que para isolar
os elementos “nórdicos”, Günther
responsabilizou
sistematicamente
supostas contaminações raciais devidas a cruzamentos e a influxos exógenos desnaturalizadores por tudo
aquilo que, estando de facto presente nas sociedades indo-europeias,
não corresponderia a estes valores e
comportamentos. De novo, isto revela o subjacente racismo biológico o
qual tem muito pouco em conta o
facto das misturas não serem o único factor de alteração já que são
possíveis processos de involução, de
decadência e de colapso no contexto
da manutenção de uma suficiente
integridade do sangue originário. Já
no início fizemos notar que precisamente os actuais povos maioritariamente “nórdicos”, são particularmente insensíveis aos ideais “nórdicos”
tal como Günther os define. No contexto histórico bastará apenas recordar este exemplo. Günther considera
acertadamente como estranho à
linha “ariana” o espírito da Reforma
protestante, pela sua exasperação
dos conceitos de pecado e da natureza irremediavelmente corrompida do
homem, havendo que entregar-se
apenas à fé, por necessidade da graça gratuitamente outorgada por
Deus ao servidor humano (de servo
arbitrio). Pois bem, a Reforma triunfou sobretudo entre os povos alemães e nórdicos, enquanto que os
povos mais ao sul e ao ocidente, aos
quais se atribui maior grau de alteração devido a cruzamentos, permaneceram refractários à mesma.
*
*
*
Perto do final do seu ensaio (p.
172) Günther escreve: “Com o século
XX os Indo-europeus começaram a
eclipsar-se no mundo da espirituali-
9
Boletim Evoliano
dade e da história. Hoje em dia tudo
aquilo que na música, na arte, na
literatura (dever-se-ia acrescentar: na
moral e nas formas políticas predominantes) do “Ocidente livre” é reputado
como
particularmente
“progressivo” já não reflecte uma
espiritualidade indo-europeia”. Isto
parece-nos acertado, mas apenas se
formos capazes de, tal como dissemos, definir aquilo que é indoeuropeu em termos essencialmente
morfológicos e gerais, sem estritas
referências étnico-raciais. Quanto à
capacidade de conjunto dos valores
“indo-europeus” (também com a
finalidade de superar tergiversações,
equívocos e visões unilaterais ou
evidentemente idealizadas como as
já mencionadas) para operarem
como anima de uma nova solidariedade e unidade supranacional ocidental, dados os tempos que correm,
ao contrário do que diz Romualdi,
sentimo-nos bastante cépticos: não
acreditamos que se possa encontrar
terreno fértil para obter a devida ressonância e cristalização desses valores.
Quanto ao resto, um análogo sentimento parece manifestar-se no
próprio Günther quando no prefácio
da última edição do seu interessante
ensaio (p. 105-106), ao referir-se “à
nossa era da Decadência do Ocidente”, diz: “Ainda que aquilo que permanece no mundo europeu ocidental
tenha que perecer pela carência de
verdadeiros Indo-europeus de raça,
ou seja, de verdadeiros Ocidentais,
permanecerá de todo o modo um
sentimento arraigado na tradicional
espiritualidade indo-europeia, aquele
que foi o sentimento dos últimos
Romanos (Romanorum ultimi) perante um império já não “romano”, o
sentimento do carácter inquebrantável perante o destino… pelo que já
Horácio exortava: Quocirca vivite fortes, Fortiaque adversis opponite pectora rebus!”
Uma instância de tal tipo, além
do mais susceptível de ser retomada
apenas por uns poucos e talvez a ser
modulada no sentido de uma desapegada impassibilidade, parece-nos
mais realista que qualquer optimismo de fundo “nostálgico” (no sentido
negativo deste termo em relação a
certos aspectos de conhecidas tendências políticas italianas actuais),
com a correspondente nova evocação das origens nórdicas.
Boletim Evoliano
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Autobiografia
A acção na Alemanha e
«A Doutrina do Despertar»
Julius Evola
————————————————
Passando à actividade que
desenvolvi até ao início da II Guerra
Mundial à margem das forças políticas então dominantes, poderia pensar-se que o Revolta contra o Mundo Moderno fornecia na Itália as
bases doutrinárias para uma séria
corrente tradicionalista da Direita
dotada de verdadeira força revolucionária (ou, melhor, contrarevolucionária). Contudo, nada disso
ocorreu. O livro quase não foi notado; o conjunto de ideias e horizontes que ali trouxe à luz parece ter
escapado totalmente à mentalidade das “hierarquias” e dos que
haviam aderido ao Fascismo – não
falando da habitual intelligentsia
diletante e académica que, graças à
adesão conformista ao regime da
época, conduzia a cultura e a
imprensa italianas através de cliques fechadas. Os únicos assomos
de pensamento “tradicional” que
havia nesse período tinham um fundo católico e burguês e prendiam-se
sobretudo à componente “exnacionalista” do Fascismo; caracterizavam-se por uma grande estreiteza de horizontes e um sectarismo
deveras antipático. Até ao período
do “Eixo”, a minha actividade limitou-se à direcção da página especial
do diário de Farinacci, a que já me
referi, e a artigos, ensaios e exames
críticos conhecidos apenas em círculos restritos. Assim pois, é pura
fantasia o que se escreveu em certos livros franceses recentes, a
saber que fui conselheiro de Mussolini (Werner Gerson) ou a “eminência parda do Duce” (Elizabeth
Antebi), entre outras razões porque
até 1942, data da reconversão
“
Como hóspede estrangeiro de uma nação
amiga, gozava de uma espécie de imunidade; era-me permitido apresentar e afirmar
ideias de um modo que durante o regime
nazi seria difícil ou impossível a um alemão, a
menos que se dispusesse arriscar o campo de
concentração. Tratava-se de ideias que podiam
rectificar o movimento político chegado ao
poder, reforçando as potencialidades positivas e
combatendo as negativas.”
“racista” do Fascismo, que irei
comentar mais adiante, não tive
qualquer contacto pessoal com
Mussolini. Em contrapartida, gostaria de precisar em que contexto se
usou a minha obra. Como hóspede
estrangeiro de uma nação amiga,
gozava de uma espécie de imunidade; era-me permitido apresentar e
afirmar ideias de um modo que
durante o regime nazi seria difícil ou
impossível a um alemão, a menos
que se dispusesse arriscar o campo
de concentração. Tratava-se de
ideias que podiam rectificar o movimento político chegado ao poder,
reforçando as potencialidades positivas e combatendo as negativas.
Sabe-se que não foi Hitler quem
inventou o termo III Reich, que realmente o tomou dos escritores da
“revolução conservadora”, que lhe
conferiam um conteúdo espiritual e
tradicional referido a uma ordem de
ideias semelhante à que eu próprio
defendia: a tal ponto que esses
escritores passaram à oposição por
considerarem o uso do termo e do
símbolo uma usurpação contaminante. Tratava-se, mediante uma
frente secreta da Direita, de voltar
gradualmente à ideia original, e,
neste quadro, a minha contribuição
poderia ser útil no plano doutrinário.
Em princípio, muitas das ideias
valoradas pelo Nacional-Socialismo
podiam entrar no mesmo quadro e
servir-lhe de apoio: sobretudo a
Ordensstatzgedanke, ou seja, o
ideal de um Estado regido, não por
uma “classe dirigente” democrática,
mas por uma Ordem, uma elite formada por uma ideia, uma tradição,
uma disciplina severa, um mesmo
estilo de vida. Aqui, no entanto, iríamos desembocar também no
“racismo”, pelo que se impunha a
tarefa de rectificar as exigências
que alimentavam essa tendência na
Alemanha, em certos casos de forma problemática.
Não me alargarei sobre este último ponto. Foi nesse quadro e nessa
direcção que desenvolvi alguma
actividade na Europa central até ao
início da II Guerra Mundial, não só
com os escritos que apontei, mas
também com conferências realizadas através de diferentes contactos.
Digo Europa central porque Viena,
cidade onde passei o Inverno e tive
ocasião de me relacionar com
representantes da Direita e da velha
aristocracia e com o grupo dirigido
pelo filósofo Othmar Spann, que
seguia a mesma linha, apresentava
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igualmente um terreno fecundo. Ali
se estabeleceu uma estreita colaboração entre mim e o príncipe K. A.
Rohan, que dispunha de um importante círculo de relações, e eu próprio.
Assim ganhou corpo a ideia,
bem vista pelos meios indicados, de
coordenar os elementos que em
certa medida podiam representar
em toda a Europa o pensamento
tradicional no plano político-cultural.
A fim de conseguir contactos precisos, empreendi várias viagens pela
Europa no ano de 1936. Durante
uma delas travei conhecimento
directo com Corneliu Codreanu, chefe da Guarda de Ferro romena, uma
das figuras mais dignas e mais
orientadas espiritualmente que
encontrei nos movimentos nacionais da época. Em Bucareste conheci também Mircea Eliade, que
adquiriu depois da guerra uma grande notoriedade graças às suas
numerosas obras sobre a história
das religiões, e com quem me mantive em contacto até agora. Nessa
época fazia parte do círculo de
Codreanu, e havia acompanhado
anteriormente a actividade do
“Grupo de Ur”.
O período do Eixo representou
para mim uma grande oportunidade, pois sempre desejara o reencontro integrador da romanidade e do
germanismo à maneira “gibelina”,
tendo proposto vários anos antes o
“mito das duas águias” como ponto
de partida da possível reconstrução
europeia. No que diz respeito à Itália, porém, não foi possível fazer
nada em razão do sistema das cliques oficiosas que prosperavam e
sabotavam sistematicamente todas
as iniciativas vivificadoras. Nos
intercâmbios culturais com a Alemanha essas “hierarquias” chegaram inclusivamente ao paradoxo de
utilizar conhecidos católicos sectár i o s d e s e n t i m e n t os a n t i germânicos, como Guido Manacorda, por exemplo (autor do livro A
Floresta e o Templo, no qual o espírito germânico é incrivelmente falsificado). Esses meios encaravam
com despeito os convites que me
dirigiam para conferências e encon-
tros na Alemanha e, apesar de não
ser de modo algum um elemento
designado e “autorizado” por eles,
era reconhecido naquele país. Em
certa ocasião, nomeadamente, tentaram impedir uma das minhas viagens a pretexto da renovação do
visto do meu passaporte, o que forçou Mussolini a intervir pessoalmente ao ter conhecimento de semelhantes intrigas.
A referência a estes domínios
relativamente exteriores não deve
fazer supor que durante esse período deixei de prestar atenção às disciplinas tradicionais. De facto, recordo que no final dos anos 30, antes
da fase posterior da minha actividade à margem das forças políticas,
me dediquei a dois dos meus principais livros sobre a sabedoria oriental: à revisão completa de O
Homem como Potência, que, como
disse, conheceu o novo título de
Yoga da Potência (por razões extrínsecas e devido ao que se seguiu, o
texto revisto e corrigido só foi publicado depois da guerra pelo editor
Bocca), e a uma obra sistemática
sobre o budismo das origens intitulada A Doutrina do Despertar –
Ensaio sobre a ascese búdica (que
só em 1943, durante a guerra, apareceu nas edições Laterza).
Com este segundo livro paguei
de algum modo uma dívida que
“
11
Boletim Evoliano
havia contraído com a doutrina de
Buda. Já referi anteriormente a
influência que um dos seus ensinamentos teve na superação da crise
interior que atravessei depois da I
Guerra Mundial. A seguir, fiz dos
textos búdicos um uso quotidiano,
prático e de realização, a fim de
alimentar uma consciência destacada do princípio “Ser”. O que fora
príncipe dos Sakias indicava-me
uma disciplina interior que eu sentia como congénita, a tal ponto que
as asceses de base religiosa, sobretudo a cristã, me pareciam estranhas.
A finalidade do meu livro foi trazer à luz a natureza verdadeira do
budismo das origens, doutrina que
perdeu vigor e se tornou irreconhecível na maioria das suas formas
posteriores, até se converter mais
ou menos numa religião e no conceito que geralmente se tem dele
no Ocidente. Com efeito, o núcleo
essencial desses ensinamentos
tinha um carácter metafísico e iniciático. A interpretação do budismo
como simples moral e tendo por
fundamento a compaixão, o humanitarismo, a evasão da vida, porque
“a vida é sofrimento”, é extrínseca,
profana e superficial a mais não
poder ser. Pelo contrário, o budismo
foi determinado pela vontade do
incondicionado na sua forma mais
A finalidade do meu livro foi trazer à luz
a natureza verdadeira do budismo das origens, doutrina que perdeu vigor e se tornou
irreconhecível na maioria das suas formas
posteriores, até se converter mais ou menos
numa religião e no conceito que geralmente se
tem dele no Ocidente (...) A interpretação do
budismo como simples moral e tendo por fundamento a compaixão, o humanitarismo, a evasão
da vida, porque «a vida é sofrimento», é extrínseca, profana e superficial a mais não poder ser.
Pelo contrário, o budismo foi determinado pela
vontade do incondicionado na sua forma mais
radical, pelos que procuram dominar a vida e a
morte. Não é tanto o «sofrimento» que se pretende superar, mas a agitação e a contingência da
existência condicionada”
Boletim Evoliano
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“
O carácter «aristocrático» do budismo e a
presença da força viril e guerreira (o rugido do leão não é mais que o anúncio da
chegada do Buda) aplicada ao plano imaterial e intemporal, são os traços que pus em relevo na exposição desta doutrina, abertamente
oposta às interpretações deformadas, quietistas
e humanitárias que antes assinalei.”
radical, pelos que procuram dominar a vida e a morte. Não é tanto o
“sofrimento” que se pretende superar, mas a agitação e a contingência da existência condicionada que
tem como origem, raiz e fundamento a sede, sede que pela sua própria
natureza é impossível extinguir na
vida ordinária, a intoxicação ou
“mania”, a “ignorância”, a cegueira
que leva à identificação desesperada, híbrida e cúpida do Eu em tal ou
tal forma do mundo perecível, a
corrente sem fim do porvir, do samsâra. O nirvâna não é mais que a
denominação negativa do trabalho
de extinção da sede e da ignorância
metafísicas. A sua contrapartida
positiva é a iluminação ou o despertar (bodhi), no qual o termo “Buda”
não é, como geralmente se crê, um
nome, mas um título que significa
“despertado”. Por essa razão escolhi como título do meu livro A Doutrina do Despertar.
Segundo o Buda histórico, esta
doutrina perdeu-se com a passagem do tempo. Na Índia acabou por
ser encoberta pelo ritualismo, pela
especulação vazia e presunçosa da
esclerótica casta brahmâna. O Buda
reafirmou-a, anunciou-a de novo e
conferiu-lhe uma formulação sobre
a qual não deixou de influir a sua
natureza, visto não se tratar de um
brahmâna, mas de um membro da
casta guerreira. O carácter
“aristocrático” do budismo e a presença da força viril e guerreira (o
rugido do leão não é mais que o
anúncio da chegada do Buda) aplicada ao plano imaterial e intemporal, são os traços que pus em relevo
na exposição desta doutrina, aber-
tamente oposta às interpretações
deformadas, quietistas e humanitárias que antes assinalei.
Outro ponto importante é que o
budismo – no seu núcleo essencial
e autêntico – não pode ser denominado uma religião no sentido corrente e teísta do termo, não porque
como doutrina moral não pudesse
chegar ao plano religioso, mas porque transcende e ultrapassa esse
plano. Do mesmo modo que uma
doutrina iniciática ou esotérica não
é uma “religião”, também o budismo não é uma religião. A vontade
do incondicionado conduz o asceta
budista mais além do Ser e do deus
do Ser, além dos céus e paraísos,
considerados ataduras, do mesmo
modo que as hierarquias das divindades tradicionais populares
entram no finito, na contingência do
samsâra que deverá transcender.
Nos textos encontra-se esta forma
recorrente: “Superou este mundo e
o outro mundo, libertou-se das ataduras humanas e das ataduras divinas, libertou-se das duas ataduras”.
Por conseguinte, o fim último, a
Grande Libertação, é aqui idêntica à
tradição metafísica mais pura: o
cume hiper-essencial anterior e
superior ao ser e ao não-ser, a toda
e qualquer figuração de um deus
pessoal “criador”.
Ainda que o meu livro estabeleça precisões e trace adequadamente o quadro doutrinário essencial do
budismo (ao indicar, por exemplo, o
sentido da teoria da “cadeia das
origens independentes” que conduz
à existência finita e a teoria do nãoEu que esclarece o equívoco da
reencarnação, etc.), foi consagrado
sobretudo à prática, à ascese búdica, mediante uma exposição sistemática baseada directamente nos
textos. A referência a elementos de
outros ensinamentos esotéricos
permitiu-me frequentemente ver
mais profundamente que os orientalistas e os representantes modernos do budismo.
Disse na introdução que o meu
desejo de expor “um sistema de
ascese completo e objectivo de forma tão clara e consciente como
conclusiva, experimentado, bem
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13
Boletim Evoliano
“
O próprio Buda se apresenta como um
homem que abriu a via por meios próprios,
unicamente com forças próprias, como um
«asceta combatente», mesmo que eventualmente fosse o ponto de partida de uma cadeia de
mestres e de influências espirituais ligadas a
eles. O lado importante do budismo das origens
era a exigência prática, o primado da acção, a
aversão contra toda a especulação vã, a divagação mental quanto aos problemas, hipóteses,
fantasias e mitos, e portanto o primado da experiência directa e realizadora.”
articulado, conforme ao espírito do
homem ariano e englobando as
condições estabelecidas nos tempos recentes”, me levaram a escolher as disciplinas búdicas como as
que, mais que quaisquer outras,
apresentam esse carácter. Com
efeito, trata-se de técnicas conscientes, livres de mitologias morais
ou religiosas (no budismo, a moral é
apenas um meio: ignora o fetichismo dos valores morais, isto é, o
carácter imperativo intrínseco de
certas normas), de técnicas que
apresentam um aspecto a que se
poderá chamar científico dada a
precisão das diferentes fases da
sua realização e encadeamento
orgânico. A meta precisa e eminente desta ascese é a destruição da
sede, o descondicionamento, o despertar, a Grande Libertação. Entretanto, devo fazer notar que pelo
menos uma parte das disciplinas
expostas é susceptível de se aplicar
à vida mundana mediante o fortalecimento da alma íntima, de um certo distanciamento, do desempenho
do que é invulnerável e indestrutível. Esta ascese “aristocrática” pode
ter então um valor imanente. Na
conclusão do livro faço uma alusão
ao sentido que numa época como a
actual reveste para o homem diferenciado, e como pode servir de
antídoto ao clima psíquico de um
mundo caracterizado por um activismo insensato identificado com forças “vitais”, irracionais e caóticas.
Recordar-se-á que precisei este ponto na parte final da segunda edição
de O Yoga da Potência ao falar das
premissas essenciais reclamadas
pela própria via tântrica. No fundo, o
princípio “Çiva” dos Tantras, graças
ao qual a “Çakti” encontra o seu
senhor e se une a ele indissoluvelmente, e o sentido “extrasamsárico” que o asceta budista
deve alcançar e reforçar.
Aparte esta questão, a alusão a
uma ascese “respeitante às condições estabelecidas nos tempos
actuais” remete à teoria geral da
involução verificada ao longo da
história, incluindo o plano existencial: a partir daí, o homem ficou
longe do estádio que lhe permitia a
realização espiritual efectiva, do
plano em que podia contar com
contactos subsistentes mas reais,
com o transcendente e igualmente
com suportes exteriores tradicionais. O próprio Buda se apresenta
como um homem que abriu a via
por meios próprios, unicamente
com forças próprias, como um
“asceta combatente”, mesmo que
eventualmente fosse o ponto de
partida de uma cadeia de mestres e
de influências espirituais ligadas a
eles. O lado importante do budismo
das origens era a exigência prática,
o primado da acção, a aversão contra toda a especulação vã, a divagação mental quanto aos problemas,
hipóteses, fantasias e mitos, e portanto o primado da experiência
directa e realizadora. Por isso mesmo o Buda seguiu no domínio doutrinário uma linha análoga à da
“teologia negativa”, recusando teorizar e falar do grau supremo a realizar, indicando-o apenas por meio de
termos negativos relacionados com
o que não é, ou, por outras palavras,
com tudo o que deve ser superado.
Depois da exposição das técnicas recolhidas no cânone pali, tratei
brevemente no meu livro das formas sucessivas do budismo, procurando também realçar o núcleo
essencial destacado do acessório, e
a continuar nessas formas a sua
linha central. Assim, no Mahâyâna,
uma das duas grandes escolas búdicas que despertou grande interesse
em certos meios ocidentais, separei
o que é imputável ao ressurgimento
do demónio da dialéctica e à especulação abstracta e mitologizante,
ao desvio provocado pela reafirmação de exigências de tipo religioso
(fenómeno inevitável quando o
Boletim Evoliano
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saber superior se encerra e se
protege atrás do véu do esoterismo: no início, o Buda histórico opunha-se à ideia de dar a
conhecer e difundir a verdade e
a via que tinha descoberto), ao
que é próprio de uma deslocação atrevida do ponto de referência, a saber a tentativa de
descrever a visão, não do que
se dirige para a iluminação,
mas do que a realizou plenamente. A este propósito, encontra-se no primeiro plano a doutrina mahayânica do “vazio” e
esta, complementar e paradoxal da identidade do nirvâna e
do samsâra, isto é, do incondicionado e do condicionado, da
transcendência e da imanência,
do supra-mundo e do mundo,
do absoluto e do relativo. A verdade típica dos altos cumes.
Em último lugar, a minha
obra oferece um resumo da
rama do budismo esotérico chamado Ch’an na China e Zen no Japão.
O mais interessante destas correntes é a retoma firme da exigência
que caracterizava a reacção do
Buda contra o bramanismo degenerado. Com efeito, foram-se sobrepondo teorizações, formas exteriores e rituais religiosos ou moralizantes na doutrina do despertar propriamente dita. O Zen fez saltar
tudo isso, em muitos casos pondo a
nu de maneira verdadeiramente
iconoclasta o problema central, a
ruptura do nível de consciência
comum (a realização do satori),
recorrendo frequentemente a técnicas violentas e paradoxais. Outro
ponto interessante que confirma o
que indiquei sobre o uso livre da
ascese budista é que, graças ao
Zen, o budismo se tornou também a
“doutrina dos samurais”, a casta
guerreira japonesa: as suas disciplinas foram criadas para criar estabilidade interna e um destacamento
autêntico, não apenas na contemplação transcendente, mas também
na acção absoluta. De modo mais
geral, o Zen desempenhou em diferentes domínios da vida prática
japonesa um papel importante na
formação das atitudes interiores, o
Graças ao Zen, o budismo tornou-se também
a “doutrina dos samurais”
que serviu também para desmentir
a imagem deformada e unilateral
do budismo concebido pela maioria.
Estou entre os primeiros que na
Itália falaram de maneira justa do
budismo. Sucede, no entanto, que
tal doutrina esteve na moda no
segundo pós-guerra num contexto
que atesta o incrível provincianismo
de certa imprensa italiana: o interesse pelo Zen chegou inclusivamente às revistas ilustradas a pretexto de ter sido “descoberto” por
certos grupos das gerações americanas mais recentes, os hipsters e
os beatniks, que viam nas doutrinas
irracionalistas e iconoclastas do
Zen, associadas à ideia de uma iluminação repentina e gratuita, algo
que ia ao encontro das suas necessidades e lhes podia evitar um irreparável desmoronamento interior.
A Doutrina do Despertar apareceu também em tradução inglesa
(em 1951, Ed. Luzac & Co.: o que
traduziu a obra, um tal Mutton, descobriu no livro um impulso para deixar a Europa e retirar-se no Oriente
na esperança de descobrir um centro onde se cultivassem ainda as
disciplinas que pus em relevo; infelizmente, não tive mais notícias
dele) e em tradução francesa
(1956, Ed. Adyar). A edição
inglesa recebeu a aprovação
oficial da Pâli Society, conhecido instituto académico de estudos sobre o budismo das origens, que reconheceu o valor da
minha obra. Em virtude do livro
em questão, alguns viam em
mim um budista ou um especialista do budismo, o que não é
exacto, já que depois de o
escrever não voltei a debruçarme sobre esta matéria. De facto, um dos objectivos que me
propus atingir ao indicar no
meu livro sobre os Tantras o
que em numerosos aspectos é
a via da afirmação, do empenho, da utilização e da transformação das forças imanentes
libertadas com o despertar da
Çakti como potência-raiz da
energia vital e especialmente
do sexo (a Kundalini), foi descrever nesta obra sobre o budismo
a via oposta, a via “seca” e intelectual do desapego puro. Em relação
ao fim último, trata-se de duas vias
equivalentes na condição de serem
levadas realmente a cabo. Segundo
as circunstâncias, a natureza e as
disposições existenciais de cada
um, pode recomendar-se uma ou
outra.
No meu livro sobre o hermetismo evoquei outra tradição, esta
ocidental, das técnicas de realização espiritual; noutra, sobre o Graal,
pus em relevo o conteúdo iniciático
oculto no simbolismo de certa literatura egípcia e cavaleiresca da
Idade Média europeia; no estudo
introdutório sobre o taoismo e nos
comentários da segunda apresentação do Tao-te-king de Lao-Tsé indiquei os pontos essenciais do esoterismo desta tradição. Acrescentando a estes as contribuições contidas
em Introdução à Magia e o que
expus sobre a “via do sexo” num
dos meus últimos livros, Metafísica
do Sexo, apresentei aos que se interessam por estes domínios uma
vasta documentação, recolhendo e
classificando matérias de acesso
muitas vezes difícil e interpretandoas adequadamente, isto é, do ponto
de vista tradicional.
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Boletim Evoliano
Doutrina
Notas sobre a
“divindade” da
Montanha
Julius Evola
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Num editorial publicado pela
Rivista del Club Alpino Italiano, S.
Manaresi sublinhou com eficazes
palavras algo que nunca é demais
enfatizar, nomeadamente, a necessidade de superar a limitadora antítese entre o tipo instruído e fisicamente débil – que foi privado das forças
mais profundas do corpo e da vida
pelo seu auto-imposto confinamento
a uma cultura feita de palavras e
livros – e o indivíduo meramente
desportivo, saudável, atlético e fisicamente forte – porém privado de qualquer ponto de referência superior.
Para além da unilateralidade destes
dois tipos é hoje necessário chegar a
algo mais completo: a um tipo no
qual o espírito se transforme em força e vida, e a disciplina física, por
sua vez, se transforme na introdução,
símbolo e quase diríamos “rito”, para
a disciplina espiritual.
S. Manaresi em muitas outras
ocasiões tem tido a oportunidade de
dizer que, entre os diversos desportos, o alpinismo é seguramente
aquele que oferece as melhores possibilidades de alcançar esta união
entre o corpo e o espírito. Na realidade, a grandeza, o silêncio e a majestade das grandes montanhas inclinam naturalmente o espírito para
aquilo que é mais do que humano,
atraindo assim os melhores ao ponto
do aspecto físico da escalada (com a
coragem, o auto-domínio e a lucidez
mental que requer) e a realização
espiritual interior, se tornarem partes
complementares e inseparáveis de
uma mesma coisa.
É interessante ressaltar que estas
ideias, que hoje começam a ser enfatizadas por indivíduos ilustres como
forma de promover uma
justa orientação entre as
novas gerações, podem
ser atribuídas a uma muito antiga tradição, a algo
a que se pode chamar
“tradicional” no sentido
mais amplo do termo.
Embora os antigos não
praticassem o alpinismo,
apesar
de
algumas
excepções rudimentares, eles tinham
não obstante uma percepção muito
vívida da sacralidade e do simbolismo da montanha. Eles consideravam
também – e isto é muito revelador –
a escalada da montanha e a residência na mesma como algo típico dos
heróis e dos iniciados, ou seja, de
seres que, em suma, consideravam
ter superado os limites da vida
comum e medíocre das planícies.
Nas páginas que se seguem oferecerei alguns comentários sobre o
conceito tradicional da divindade da
montanha, olhando para lá dos seus
símbolos até ao seu significado interior. Isto permitir-me-á evocar e definir alguns aspectos do lado espiritual
do alpinismo, cuja descrição técnica
representa apenas o aspecto externo, ou seja, o caput mortuum.
*
*
*
O conceito da divindade das montanhas encontra-se tanto em tradições do Ocidente quanto do Oriente,
desde as tradições chinesas até aos
astecas da América pré-colombiana;
desde os egípcios até aos arianos
nórdico-germânicos; dos helénicos
aos iranianos e hindus. Esta noção
encontra-se sob a forma de mitos e
lendas sobre a montanha “dos deuses” ou sobre a montanha “dos
heróis” – que é o lugar de residência
dos que foram “para lá arrebatados”
– ou sobre lugares onde se encontram forças misteriosas de glória e
de imortalidade.
O fundamento geral para o simbolismo da montanha é simples: já
que a terra se associa a tudo o que é
humano (a etimologia da palavra
“humano” vem de “humus”, solo), os
cumes da terra, que se erguem até
ao céu e que são transfigurados por
neves perenes, expressam espontaneamente a matéria mais adequada
para representar, mediante alegorias, estados transcendentais de
consciência, as realizações espirituais interiores ou as aparições de
modos supra-normais do ser, retratados figurativamente como “deuses” e
seres sobrenaturais. Deste modo,
temos as montanhas não só como
“moradas” simbólicas dos deuses,
mas encontramos também tradições, como as dos antigos arianos do
Irão e da Média que, segundo Xenofonte, nunca erigiam templos dedicados às suas divindades, usando os
cumes das montanhas para celebrar
o culto e o sacrifício ao Fogo e ao
Deus da Luz, encontrando nos cumes
um lugar mais digno, grandioso e
analogamente mais próximo do divino do que qualquer construção ou
templo feito pelas mãos humanas.
Para os hindus a cadeia montanhosa divina é, como todos sabem,
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os Himalaias, palavra que em sânscrito significa: “a morada das neves.”
Mais especificamente, o Monte Meru
é a montanha sagrada que se crê
estar localizada nos Himalaias. É
importante notar duas coisas. Primeiro, o Monte Meru é concebido
como o lugar em que Shiva, o
“grande asceta”, levou a cabo as
suas meditações. Em segundo lugar,
foi a partir daqui que Shiva fulminou
Kama, o deus hindu do amor, quando este tentou expor o seu coração à
paixão. Na tradição hindu, a ideia de
ascetismo absoluto e de austera
purificação da natureza é associada
ao cume mais alto da montanha.
Esta ideia é inacessível a qualquer
coisa proveniente da luxúria e do
desejo e é portanto estável num sentido transcendente. Assim, nas antigas fórmulas védicas para a consagração dos reis, vemos figurar precisamente a imagem da “montanha”
simbolizando a estabilidade do poder
e do imperium que o rei assumirá.
Por outro lado, no Mahabharata
vemos Arjuna ascender aos Himalaias para praticar o ascetismo porque está escrito que “apenas nas
altas montanhas poderia ele alcançar a visão divina”; do mesmo modo,
o imperador Yudhisthira viaja até aos
Himalaias para alcançar a sua apoteose ao subir à “carruagem” do “rei
dos deuses.”
É igualmente notável que a palavra em sânscrito paradesha signifique “sítio elevado” ou “região alta”,
e, portanto, num sentido meramente
material, cume de montanha. Mas
paradesha pode estar etimologicamente associado
com a palavra caldeia
pardes, da qual deriva o termo paraíso, que foi transformado num conceito teológico dogmático pela fé judaico-cristã. Na noção original ariana de
“paraíso”, encontramos uma associação íntima com o conceito das alturas, dos cumes; esta associação,
como veremos mais à frente, encontra-se formulada claramente na concepção Dórico-Aquéia do Olimpo.
Neste ponto, deve-se dizer algo
sobre as lendas helénicas relativas
às personagens míticas que foram
“arrebatados para a montanha”. É
sabido que os helenos, tal como a
maioria das tribos arianas, possuíam
uma visão marcadamente aristocrática do post-mortem. O destino da
maior parte das pessoas, daqueles
que nunca se haviam elevado acima
da vida comum, era o Hades, uma
existência residual e larval pós morte, desprovida de verdadeira consciência, passada no sub-mundo das
sombras. A imortalidade, ao lado dos
deuses olímpicos, era o privilégio dos
heróis, ou, por outras palavras, era
uma conquista excepcional de uns
poucos seres superiores. Nas mais
antigas tradições helénicas encontramos que a imortalidade dos heróis
se deduz especificamente no símbolo da sua ascensão às montanhas e
do seu “desaparecimento” nas montanhas. Assim, encontramos novamente o mistério das “alturas”, já
que neste “desaparecimento” devemos ver o símbolo material de uma
transfiguração espiritual. As expressões “desaparecer”, “tornar-se invisível”, ou “ser arrebatado até às alturas”, não devem ser tomadas num
sentido literal, mas significam essencialmente ser introduzido virtualmente no mundo além dos sentidos, no
qual não há morte e removido do
mundo visível dos corpos físicos, que
é o da comum experiência humana.
Esta tradição não se encontra
apenas na Grécia. No budismo faz-se
referência a uma montanha na qual
aqueles que alcançam o despertar
espiritual, descritos pelo Majjhima
Nikkaya como “mais que homens,
seres invictos e incorruptíveis, livres
e inatingíveis pelos apetites, redimidos”, desaparecem. As tradições taoistas chinesas falam do Monte KuenLun, no qual lendários seres régios
encontraram a poção da imortalidade. Existe algo parecido em algumas
tradições islâmicas orientais relativamente a pessoas que através da iniciação foram “arrebatadas” para os
cumes, sendo deste modo poupadas
à experiência da morte. Os egípcios
antigos falavam sobre uma montanha (Seth Amentet) atravessada por
um caminho, através do qual os
seres destinados à imortalidade
“solar” eventualmente penetravam
numa “terra triunfante”, na qual,
segundo uma inscrição hieroglífica,
“os líderes que se assentam no trono
do Grande Deus proclamam a sua
vida eterna e poder.”
Atravessando o Oceano Atlântico,
no México pré-colombiano encontramos uma impressionante correspondência com estes símbolos: a grande
montanha Culhuacán (que significa
“montanha curvada”,
porque o seu cume
inclina-se ligeiramente
para
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baixo), era considerada um ponto
divino que mantinha uma ligação
com as regiões inferiores. De acordo
com as tradições ancestrais americanas, alguns imperadores astecas
desapareceram sem deixar rasto
numa montanha análoga. Pois bem,
como é sabido, este mesmo tema
encontra-se nas lendas da Idade
Média Ocidental Romano-Germânica:
montanhas como o Kyffhauser e o
Odenberg são lugares para os quais
se acredita terem sido levados reis
tais como Carlos Magno, Artur, Frederico I e Frederico II, os quais alegadamente nunca morreram e esperam pelo momento em que aparecerão novamente. No ciclo das lendas
do Graal, encontramos o Monte
Montsalvat, que segundo Guénon
significa, “montanha da saúde” ou
“montanha da salvação”; o grito de
guerra dos cavaleiros medievais era
“Montjoie” e numa lenda à qual não
corresponde naturalmente nenhuma
realidade histórica, mas que nem por
isso deixa de ter um rico significado
espiritual, atravessar uma montanha
era o passo que precedia a coroação
“imperial”, sagrada e romana, de
Artur. Não poderei descrever em
detalhe o significado interior destes
símbolos e mitos, especialmente dos
que concernem aos reis desaparecidos que um dia retornarão, tema que
por outro lado, tratamos exaustivamente noutro lugar. Direi unicamente que nestes mitos de diversas origens encontramos o tema comum
da montanha concebida como uma
sede de imortalidade onde os indivíduos espirituais alcançam a realização e os heróis desaparecem, como
na antiga tradição helénica.
*
*
*
Diremos algo mais sobre dois
pontos: sobre a montanha como
sede do haoma e da glória e sobre a
montanha como Valhalla.
O termo iraniano haoma corresponde ao sânscrito soma, a chamada bebida da imortalidade. Nestas
duas antigas ideias arianas temos a
associação de diferentes conceitos,
parcialmente reais e parcialmente
simbólicos, parcialmente materiais e
parcialmente traduzíveis em termos
que descrevem a experiência espiritual. As tradições hindus, por exemplo, descrevem o soma quer como
um deus quer como o sumo de uma
17
Boletim Evoliano
“
A imortalidade, ao lado dos deuses olímpicos, era o privilégio dos heróis, ou, por
outras palavras, era uma conquista excepcional de uns poucos seres superiores. Nas
mais antigas tradições helénicas encontramos
que a imortalidade dos heróis se deduz especificamente no símbolo da sua ascensão às montanhas e do seu «desaparecimento» nas montanhas.
Assim, encontramos novamente o mistério das
«alturas», já que neste «desaparecimento» devemos ver o símbolo material de uma transfiguração espiritual.”
planta que é capaz de induzir sentimentos de exaltação, sentimentos
esses que eram tidos em grande
conta e eram induzidos durante os
rituais de transformação interior
para proporcionar uma espécie de
gosto da imortalidade.
Tal como Buda comparou a uma
alta montanha o estado “no qual não
há o aqui ou ali, nem vir e ir, apenas
calma e iluminação como no oceano
infinito” (o nirvana), nós lemos no
Yashna que o misterioso haoma cresce nas altas montanhas. E, uma vez
mais, encontramos a associação da
ideia de altura com a ideia de um
entusiasmo capaz de transformar,
inspirar e guiar indivíduos àquilo que
não é meramente humano, mortal e
efémero. O mesmíssimo tema
encontra-se também na Grécia, no
primeiro período dionisíaco. Segundo
testemunhos muito antigos, aqueles
que, durante os festivais religiosos,
fossem possuídos pelo “divino furor
de Dionísio”, eram arrastados até
aos cumes selvagens das montanhas
trácias por um estranho e arrebatador poder que surgia nas suas almas.
E no entanto há algo mais que
pode rectificar o que quer que seja
ainda caótico e não completamente
puro ao nível “dionisíaco”; é o antigo
conceito iraniano, exposto no Yasht,
acerca da montanha, nomeadamente, o poderoso Monte Ushi-darena,
que é também a sede da glória.
Na tradição iraniana, a “glória”
(hvareno ou farr) não era um conceito abstracto. Era concebida como
uma força real e quase física, embora invisível e de origem não humana.
A glória era de forma geral um privilégio da luminosa raça ariana, mas
especialmente pertencente a reis,
sacerdotes e conquistadores pertencentes a esta raça. Um símbolo testemunhava a presença da glória: a
vitória. A glória era atribuída a origens solares, já que o sol era visto
como o símbolo de um ente luminoso que todas as manhãs triunfava
sobre a escuridão. Transpondo estes
conceitos sub specie interioritatis, a
glória expressava as façanhas de
raças vitoriosas, nas quais a superioridade é poder (vitória) e o poder é
superioridade, como nos seres celestiais solares e imortais. No Yasht
está escrito que não só a planta do
haoma (dos estados dionisíacos)
cresce nas montanhas, mas também
que a montanha mais poderosa,
Ushi-darena, é o trono da glória ariana.
Chegamos ao último ponto: a
montanha como Valhalla. A palavra
Valhalla foi popularizada através da
obra de Richard Wagner, que em
muitos aspectos adopta uma interpretação literal dos antigos conceitos
nórdico-escandinavos dos Edda, de
onde obteve a sua inspiração. Tais
conceitos estão, no entanto, abertos
a interpretações mais profundas.
Valhalla significa literalmente “a corte dos heróis caídos”, da qual Odin
era o rei. Trata-se do conceito de um
lugar privilegiado de imortalidade
(nestas tradições, tal como nas tradições helénicas, a maior parte das
pessoas está destinada a ter depois
da morte uma existência obscura e
larval no Niflheim, o equivalente nórdico do Hades), reservado aos nobres
e aos heróis caídos no campo de
batalha. Quase como no ditado,
segundo o qual “o sangue dos heróis
é mais precioso para Deus que a
tinta dos filósofos ou as orações dos
Boletim Evoliano
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“
Valhalla significa literalmente «a
corte dos heróis caídos», da qual
Odin era o rei. Trata-se do conceito
de um lugar privilegiado de imortalidade reservado aos nobres e aos
heróis caídos no campo de batalha. Nestas tradições ancestrais, morrer num
campo de batalha era o sacrifício mais
apreciado pela divindade máxima (Odin,
Wotan ou Tiuz) e o mais proveitoso de
todos os feitos supra-humanos. Odin
fazia dos guerreiros caídos seus filhos e
tornava-os imortais, juntamente com os
reis divinizados, no Valhalla.”
fiéis”, nestas tradições ancestrais,
morrer num campo de batalha era o
sacrifício mais apreciado pela divindade máxima (Odin, Wotan ou Tiuz) e
o mais proveitoso de todos os feitos
supra-humanos. Odin fazia dos guerreiros caídos seus filhos e tornava-os
imortais, juntamente com os reis
divinizados, no Valhalla, lugar frequentemente associado com Asgard,
a cidade dos Asen, os seres divinos
da luz envolvidos numa batalha permanente contra as criaturas tenebrosas da terra (elementarwesen).
Os conceitos de Valhalla e de
Asgard apresentavam originariamente uma relação imediata com a montanha, tanto que Valhalla se tornou o
nome de montanhas suecas e escandinavas. Além disso, quando se pensava que se localizava em antigas
montanhas, tais como o Helgafell,
Krossholar e Hlidskjalf, o Valhalla foi
concebido como a sede dos heróis e
dos príncipes divinizados. O Asgard
aparece amiúde nos Edda como Glitmirbjorg, “a montanha resplandecente” ou como Himinbjorg, no qual as
ideias de montanha e céu luminoso,
ou de uma qualidade luminosa e
celeste confundem-se. Assim encontramos o tema central do Asgard
como uma montanha altíssima,
sobre cujo cume gelado brilha uma
luz eterna, acima das nuvens e da
neblina.
A montanha como Valhalla é também o lugar de onde a chamada Wildes Heer parte tempestuosamente e
o lugar para onde retorna. Trata-se
aqui de um antigo conceito popular
nórdico que foi formulado num nível
mais elevado quando
foi associado ao exército comandado por
Odin, um exército composto por heróis caídos. Segundo esta tradição,
o
sacrifício
heróico da própria vida
(que na tradição romana se chamava mors
triumphalis e através do qual o iniciado vitorioso se juntava às fileiras dos
heróis e dos soldados vitoriosos) serve também para acrescentar um
novo recruta àquele exército espiritual irresistível, a Wildes Heer, de
que Odin, deus das batalhas, precisa
para alcançar um derradeiro e transcendente objectivo: lutar contra o
ragna rökkr, ou seja, contra o obscurecimento do divino que espreita o
mundo desde um passado distante.
Através destas tradições, assumidas no seu significado íntimo em vez
de na sua forma mitológica exterior,
chegamos ao conceito mais elevado
deste ciclo de mitos sobre a divindade da montanha, que é quase um
eco destas realidades distantes.
Lugar do despertar, do heroísmo, e
por vezes de uma morte heróica
transfiguradora; lugar de um entusiasmo conducente a estados transcendentes; lugar de puro ascetismo e
de uma força solar triunfante que se
opõe a todos os poderes que paralisam, obscurecem e degradam a vida
– esta parece ser a percepção simbólica dos antigos acerca da montanha.
Esta percepção emerge num ciclo de
lendas e mitos que estão dotados de
muitas características similares, sen-
do que os exemplos mencionados
acima são apenas uns poucos de
entre uma extensa lista.
Naturalmente, não sugiro adoptar
evocações anacrónicas dos mitos, e
no entanto esta não é meramente
uma lista de curiosos exemplos históricos. Por trás do mito e do símbolo
que são condicionados pelo tempo
existe um espírito que pode sempre
reviver e tomar uma expressão eficaz
em novas formas e acções: isto é o
que realmente importa.
O melhor que podemos desejar
às novas gerações é que o alpinismo
não se torne na profanação da montanha. Além disso, espero sinceramente que todas aquelas sensações
profundas na raiz da deificação mitológica das montanhas pelos antigos
possam ser progressivamente despertadas e voltem a exercer uma
influência resplandecente sobre
aqueles que, hoje, levados de forma
confusa pelo instinto a superar as
limitações inerentes ao quotidiano
da vida comercial e mecânica das
planícies, trepam rochas, cristas, e
paredes rodeados pelo céu e pelo
abismo, avançando em direcção aos
cumes gelados e luminosos.
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Boletim Evoliano
Símbolos da Tradição
O simbolismo da Suástica
A suástica é um dos símbolos mais difundidos e
mais antigos. Encontra-se do Extremo oriente à América central, passando pela Mongólia, Índia e Norte de
Europa. Foi familiar aos Celtas, aos Etruscos, à Grécia
antiga, e o ornamento chamado grega deriva dela.
Alguns pretenderam fazê-la remontar aos Atlantes, o
que é uma forma de indicar a sua remota antiguidade.
Seja qual for a sua complexidade simbólica, a suástica, pelo seu próprio grafismo, indica claramente um
movimento de rotação em torno de um centro imóvel,
que pode ser o eu, ou o pólo. É, pois, um símbolo de
acção, de manifestação, de ciclo e de regeneração
perpétua. Foi neste sentido que acompanhou muitas
vezes a imagem dos sábios da humanidade: Cristo,
das catacumbas ao Ocidente medieval e ao nestorianismo das estepes: Os Cristos romanos são muitas
vezes concebidos em torno de uma espiral ou de uma
suástica: estas figuras dão ritmo à atitude, organizam
os gestos, as pregas das vestes. Por aí se reintroduz o
velho símbolo do turbilhão criacional em torno do qual
se dispõem as hierarquias criadas que dele emanam;
Buda, pois ele representa a Roda da Lei
(Dharmachakra) girando em torno do seu centro imutável, centro que frequentemente representa Agni.
A simbologia dos números ajuda a compreender
melhor o sentido de força totalizante deste emblema:
a suástica é feita de uma cruz cujos braços, como nas
orientações vectoriais que definem um sentido giratório e depois o reenviam para o centro, são quadruplicados. O seu valor numérico é, portanto, quatro vezes
quatro, isto é, dezasseis. É o desenvolvimento em
potência da Realidade, ou do universo. Desenvolvimento do universo criado que se associa a estas grandes figuras criadoras ou redentoras invocadas mais
acima; desenvolvimento duma realidade humana que
exprime o extremo desenvolvimento dum poder secular, o que explica as suas atribuições históricas, de Carlos Magno a Hitler. Aqui intervém igualmente o sentido
do seu movimento giratório, quer se trate do sentido
directo astronómico, cósmico e, portanto, ligado ao
transcendente: é a suástica de Carlos Magno; ou do
sentido inverso, chamado dos ponteiros do relógio,
pretendendo colocar a infinitude e o sagrado no temporal e no profano: é a suástica hitleriana. Guénon
interpreta estes sentidos opostos como a rotação do
mundo visto de um e de outro pólo; os pólos em questão são o homem e o pólo celeste e não os pólos do
globo terrestre.
Esta simbologia, em todos os casos totalizante,
encontra-se também na China, onde a suástica é o
sinal do número dez mil, que é a totalidade dos seres e
da manifestação. É também a forma primitiva do
carácter fang, que indica as quatro direcções do espaço. Poder-se-ia relacionar também com a disposição
dos números do Lo-chu, o qual, em qualquer dos
casos, evoca o movimento de giro cíclico.
Tomada na sua acepção espiritual, a suástica por
vezes substitui pura e simplesmente a roda na iconografia hindu, por exemplo, como emblema de Ganech,
divindade do conhecimento, e às vezes manifestação
do princípio supremo. Os mações colocam-se na estrita observância da simbologia cosmográfica, considerando que o centro da suástica é a estrela polar, e que
os quatro gamas que a formam são as quatro posições cardeais da Ursa Maior em torno daquela, o que
pode ajudar a interpretar a reflexão de Guénon referida mais acima. Existem ainda outras formas secundárias da suástica, como a forma de braços curvos, utilizada no País Basco, e que evoca com uma especial
clareza a figura da espiral. É o caso também da suástica clavígera, em que cada braço é constituído por uma
chave: é uma expressão muito completa dos simbolismos das chaves, correspondendo o eixo vertical à função sacerdotal e aos solstícios, o eixo horizontal à função real e aos equinócios.
Fonte: A. Gheerbrant e J. Chevalier,
Dicionário dos Símbolos
Da esquerda para a direita: suástica japonesa, suástica romana, suástica jainista, suástica ameríndia, suástica grega

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